UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

FILIPE PAROLIN DE SOUZA

A FOTOGRAFIA CINEMATOGRÁFICA DE CHICK FOWLE: DA GPO FILM UNIT A .

Campinas 2020

FILIPE PAROLIN DE SOUZA

A FOTOGRAFIA CINEMATOGRÁFICA DE CHICK FOWLE: DA GPO FILM UNIT A O PAGADOR DE PROMESSAS.

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Multimeios.

Orientador: Francisco Elinaldo Teixeira. Este trabalho corresponde à versão final da Dissertação defendida pelo aluno Filipe Parolin de Souza, orientada pelo Prof. Dr. Francisco Elinaldo Teixeira.

Campinas 2020

COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

FILIPE PAROLIN DE SOUZA

ORIENTADOR: FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA

MEMBROS: 1. PROF. DR. FRANCISCO ELINALDO TEIXEIRA 2. PROFA. DRA. ANA CAROLINA DE MOURA DELFIM MACIEL 3. PROF. DR. EDUARDO TULIO BAGGIO

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 30.11.2020

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço ao Prof. Dr. Elinaldo Teixeira, pela orientação e inspirações. Aos membros da Banca Examinadora, Prof.ª Dra. Ana Carolina de Moura Delfim Maciel e Prof. Dr. Eduardo Tulio Baggio, pelas contribuições assertivas ao meu trabalho. A Galileu Garcia pela entrevista gentilmente concedida em 2014, que contribuiu para minhas elucidações a respeito da figura de Chick Fowle. Aos Professores Drs. Ana Carolina Maciel Moura, Noel dos Santos Carvalho e Marcius Cesar Soares Freire, que contribuíram generosamente com suas leituras, discussões, inspirações, indicações de textos e filmes para a construção do meu objeto de pesquisa. Aos meus pais, Sonia e Erasmo, pelo apoio incondicional em todas as horas. Ao meu irmão Lucas e sua família, pela compreensão e amizade. Aos meus sogros, Fernando e Carolina, pelo suporte à minha família. E muito especialmente, à minha muito amada esposa, Maria Fernanda, a Nana do meu coração, e ao meu amado filhinho Theo, pelo incentivo, apoio, desprendimento, dedicação e paciência nesses dias de ausência. Meu eterno amor e gratidão!

RESUMO

Esta pesquisa faz uma abordagem fotográfica do trabalho do diretor de fotografia Chick Fowle e tem como objetivo analisar as particularidades e singularidades do estilo fotográfico de Chick, no intuito de se compreender a dimensão e a importância da sua cinematografia, principalmente no Brasil. Essa busca envolve a teoria da fotografia cinematográfica, aliada à criação de sentido na narrativa fílmica, especialmente dos filmes em que ele atua. Para isso, o trabalho realiza uma pesquisa histórica de algumas de suas produções, desde os primórdios no Reino Unido, na GPO Film Unit, na Crown Film Unit, na Wessex Film Production, e no Brasil, na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, até meados dos anos 1960, cuja culminância é a obra, objeto de análise desse trabalho, O pagador de promessas (1962). No intuito de compreender a importância desse fotógrafo e da problemática do porquê das ressalvas e críticas frente à fotografia cinematográfica realizada por Chick, que, por vezes, minimizam a sua importância no cinema brasileiro, fazem-se necessárias a contextualização histórica, a análise da atuação dos estúdios de cinema da época, bem como a verificação dos embates de movimentos cinematográficos, principalmente com o advento do Cinema Novo, período concomitante ao de atuação desse fotógrafo no Brasil. Nesse sentido, a pesquisa tem como base teórica os estudos de Blain Brown (2012), no uso das ferramentas conceituais da cinematografia, que auxiliaram na compreensão das técnicas que envolvem o trabalho do diretor de fotografia; David Bordwell (2013) em relação aos estilos dos filmes; e ainda autores como Joseph Maschelli (2010), Ricardo Aronovich (2004), John Alton (1997) e Edgar Moura (2009), que auxiliaram na compreensão da conjunção entre as ferramentas conceituais e o estilo. No aspecto histórico, obras de Fernão Ramos e Sheila Schvarzman (2018) e Laurent Desbois (2016) são referências no estudo das relações existentes, para melhor se compreender o contexto da época. Desse modo, é possível perceber-se a verdadeira essência do trabalho de Chick Fowle, independentemente dos embates da época, ao adentrar-se nas imagens produzidas por esse fotógrafo, e das suas importantes contribuições para a cinematografia brasileira.

Palavras-chave: Cinematografia, Chick Fowle, Estilo, Direção de fotografia, Fotografia cinematográfica, O pagador de Promessas.

ABSTRACT

This work presents an approach of the cinematography work of Chick Fowle, and aims to analyze the particularities and uniqueness of Chick's cinematography style, in order to understand the dimension and importance of his films, especially in . This research involves the theory of cinematography, combined with the creation of meaning in the film narrative, especially of the films in which he works. For this purpose, the work carries out a historical research of some of its productions, from its beginnings in the United Kingdom, at the GPO Film Unit, at the Crown Film Unit, at Wessex Film Production, and in Brazil, at Companhia Cinematográfica Vera Cruz, until the 1960s, highlighting the object of analysis of this work, the film The Given Word (1962).In order to understand the importance of this cinematographer and the problem of why the reservations and criticisms regarding his cinematographic works, which sometimes minimize their importance in Brazilian cinema, it is necessary to make a historical contextualization, regarding the performance of film studios of the time, and the clashes of cinematographic movements, mainly with the rise of Cinema Novo, a concomitant period in which Chick worked in Brazil. Thus, the research has as theoretical basis the studies of Blain Brown (2012), in the use of the conceptual tools of cinematography, which helped in the understanding of the techniques that involve the work of the director of photography; David Bordwell (2013) in relation to film styles; and also authors such as Joseph Maschelli (2010), Ricardo Aronovich (2004), John Alton (1997) and Edgar Moura (2009), who helped to understand the conjunction between conceptual tools and film style. In the historical aspect, works by Fernão Ramos and Sheila Schvarzman (2018) and Laurent Desbois (2016), are important references of the study, to better understand the Brazilian cinema context of that time. Thus, it is possible to perceive the true essence of Chick Fowle's work, regardless of the cinema clashes of that time, by entering into the images captured by this cinematographer, and in his important contributions to Brazilian cinematography.

Keywords: Cinematography, Chick Fowle, Director of photography, Film style, The given word.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fig.01 Trabalhador nas minas de carvão 23 Fig.02 Filmagem de The Silent Village (1943) 29 Fig.03 Créditos de abertura do filme 29 Fig.04 Movimento de câmera que se inicia no rosto para então mostrar a contagem feita pelo aprendiz 30 Fig.05 Câmera posicionadas fora do tripé 31 Fig.06 Planos que mostram os malotes fora do trem 32 Fig.07 Planos de execução de tarefas: engate dos vagões 33 Fig.08 Procedimento de fechamento de malote 33 Fig.09 Planos de execução de tarefas: engate dos vagões 34 Fig.10 Câmera posicionada fora do tripé 35 Fig.11 Movimento de câmera sobre os trilhos mostra as famílias na estação de metrô 35 Fig.12 Diálogos em campo e contra campo 36 Fig.13 Alta relação de contraste na iluminação 37 Fig.14 Encenação em diversas camadas do quadro 39 Fig.15 Evidência de encenação em profundidade em dois planos distintos da mesma cena 40 Fig.16 Longas sombras de caráter tenebroso 40 Fig.17 Metáfora visual: beijo e faísca 41 Fig.18 Reenquadramento pela aproximação e afastamento da câmera 41 Fig.19 Still de cena do filme Caiçara (1950) 43 Fig.20 Still de cena do filme O Cangaceiro (1953) 43 Fig.21 Registro de Empregado – Chick Fowle 44 Fig.22 Carlo Guglielme, assistente de câmera 49 Fig.23 Equipamentos de fotografia 50 Fig.24 Evidência do Keylight em plano do filme Caiçara 59 Fig.25 Evidência do Keylight em plano do filme Caiçara 59 Fig.26 Teste de fotogenia 60 Fig.27 Fotograma mostrando o efeito do keylight 61 Fig.28 Posição da luz em relação à câmera: (1) Luz de Upstage; (2) Luz de Downstage 62 Fig.29 Exemplo de luz de Upstage no plano do filme Caiçara 62 Fig.30 Adição da luz de preenchimento no filme Caiçara 63 Fig.31 Adição da luz de preenchimento no filme Caiçara 64 Fig.32 Adição da luz de preenchimento no filme Caiçara 65 Fig.33 Iluminação de contraluz e Kicker 65 Fig.34 Ajuste da exposição do plano no filme Caiçara 67 Fig.35 Variações de tons entre preto e branco 68 Fig.36 Efeitos da iluminação sobre os objetos claros e escuros 69 Fig.37 Exposição em materiais com alta reflexão de luz 70 Fig.38 Sensação de profundidade a partir da gradação de cinzas 71 Fig.39 Iluminação gradativa das camadas do plano 73 Fig.40 Continuidade dinâmica 74 Fig.41 Movimentos de câmera 76

Fig.42 Movimentos de câmera 77 Fig.43 Linhas na composição 80 Fig.44 Linhas na composição 81 Fig.45 Linhas de transição 82 Fig.46 Linha Sinuosa 82 Fig.47 Linhas diagonais 83 Fig.48 Triângulos composicionais 84 Fig.49 Ponto de vista 85 Fig.50 Ponto de vista 87 Fig.51 Planos Abertos 94 Fig.52 Única Fonte de Luz Principal 96 Fig.53 Pontos de vistas em planta baixa 97 Fig.54 Ações encadeadas pela movimentação dos personagens 98 Fig.55 Repetição de Enquadramentos 99 Fig.56 Iluminação na casa de José Amaro 100 Fig.57 Iluminação na casa de José Amaro 101 Fig.58 Iluminação na casa de José Amaro (luz de compensação) 102 Fig.59 Planos Abertos – Números Musicais 103 Fig.60 Luz de compensação em exterior 109 Fig.61 Uso ostensivo de rebatedores na compensação da luz 105 Fig.62 Uso da luz existente 106 Fig.63 Luz desenhada a partir da movimentação e atuação dos personagens 107 Fig.64 Luz incidente com característica mais naturalista 108 Fig.65 Iluminação silhuetada 108 Fig.66 Revelar e Ocultar informações 109 Fig.67 Contraste do film noir 110 Fig.68 Silhuetas em contraluz 111 Fig.69 Silhuetas em contraluz 111 Fig.70 Criação de tensão 113 Fig.71 Travelling que intensifica a violência 114 Fig.72 Travelling que intensifica o começo de uma ação 114 Fig.73 Intensificação do movimento (objetivas grandes angulares) 115 Fig.74 Intensificação do movimento 116 Fig.75 Metáforas visuais 116 Fig.76 Metáforas visuais 117 Fig.77 Detalhe dos procedimentos 118 Fig.78 Rostos anônimos 118 Fig.79 Rostos anônimos 119 Fig.80 A exposição da pele negra 120 Fig.81 Valorização da pele negra 121 Fig.82 A exposição da pele negra 122 Fig.83 Travelling dos cenários de números musicais 123 Fig.84 First Person Shooter 124 Fig.85 Corpo de Jorge estendido no chão 129 Fig.86 Profundidade de campo: Cristo, O Redentor 130 Fig.87 Potencialização da luz do sol com uma compensação difusa 136 Fig.88 Potencialização da luz do sol com uma compensação por espelhos 137 Fig.89 Realismo Fotográfico (Close-up) 138 Fig.90 Realismo Fotográfico com ênfase no contra luz 138

Fig.91 Esquema de iluminação noturno 139 Fig.92 Planos abertos: a esperança está nos céus, na religiosidade e na chuva que não vem 140 Fig.93 Planos detalhes 150 Fig.94 Travelling out revela a presença de Zé do Burro 151 Fig.95 Noturnas de iluminação contrastada 152 Fig.96 Planos detalhes 152 Fig.97 Sequência da jornada de Zé do Burro 153 Fig.98 Chegada a Salvador 154 Fig.99 Bonitão observa a chegada de Zé e Rosa 155 Fig.100 Escadaria da Igreja de Santa Bárbara 156 Fig.101 Plano que evidencia a discussão entre Rosa e Zé do Burro 159 Fig.102 Triângulo composicional e maleabilidade dos pontos de iluminação 159 Fig.103 Diálogo de campo e contracampo 159 Fig.104 Profondeur de champ 160 Fig.105 Luz delicada para um momento “romântico” 161 Fig.106 Padre Olavo 162 Fig.107 Travelling que segue subindo a escadaria 163 Fig.108 Padre Olavo acima de Zé do Burro 165 Fig.109 Vetada a entrada de Zé do Burro 166 Fig.110 Movimento de câmera principal inicia-se motivado por outra ação, para então se fixar no personagem de Dedé Cospe-Rima 168 Fig.111 Lavagem da escadaria 168 Fig.112 Lavagem da escadaria 169 Fig.113 Rosa corre em busca do marido (dolly) 170 Fig.114 Plano conjunto: a cruz separa Zé e Rosa 171 Fig.115 Plano conjunto: ponto de vista privilegia a visualização das reações de Zé do Burro 172 Fig.116 Plano conjunto: a disposição dos atores muda conforme mais um personagem entra em cena 172 Fig.117 Plano geral com câmera na mão da procissão de Santa Bárbara 173 Fig.118 Plano geral em profundidade de campo: Rosa vai até Bonitão enquanto Zé fixa seu olhar para na santa 174 Fig.119 Plano conjunto/ Plano médio de Galego 175 Fig.120 Profondeur de champ: o foco prioriza os acontecimentos ao fundo 176 Fig.121 Planos médios se “aproximam” até planos fechados da feita que a admiração de Zé por Santa Bárbara se intensifica 177 Fig.122 Contra plano enfocando Bonitão e Marli 178 Fig.123 Travelling out: Zé do Burro pede “Chega!” 180 Fig.124 Travelling out: plano fechado do jornal que revela o grupo de capoeira do Mestre Coca 181 Fig.125 Movimentos de câmera e corte em fusão prolongam a sensação de movimento que converge de encontro ao personagem do Monsenhor 182 Fig.126 Travelling in focaliza o Monsenhor em plano único 183 Fig.127 Falso raccord de movimento e ponto de vista 183 Fig.128 A câmera acompanha os movimentos dos personagens 184 Fig.129 Planos únicos destacam os rostos que anseiam pela resposta de Zé 185 Fig.130 Zé do Burro tenta invadir a igreja num plano neutro 186

Fig.131 Movimento de travelling que se inicia em plano conjunto daqueles que buscavam uma ajuda milagrosa de Zé do Burro, para planos fechados dos instrumentos da capoeira 187 Fig.132 Baianas dançam o tradicional samba de roda 188 Fig.133 Múltiplos planos do jogo da capoeira que priorizam os fortes elementos da luta e dos instrumentos 189 Fig.134 Antônio Pitanga e Canjiquinha jogam capoeira 190 Fig.135 Jogo de planos entre o padre e os berimbaus da capoeira 191 Fig.136 Metáfora da grade como prisão para Rosa 193 Fig.137 Padre Olavo desarma Zé do Burro e o tumulto se inicia 194 Fig.138 Embate entre policiais e capoeiristas 195 Fig.139 Rostos anônimos se unem aos personagens da trama 196 Fig.140 Movimento de câmera de Minha Tia para Mestre Coca 197 Fig.141 Olhares de cumplicidade entre os capoeiristas 197 Fig.142 Os capoeiristas “crucificam” Zé do Burro 197 Fig.143 Composição que prioriza o equilíbrio das massas 198 Fig.144 Teleobjetiva em zoom out 199 Fig.145 Movimento de tilt de Zé crucificado entrando na igreja 200 Fig.146 Plano de subversão do espaço 201 Fig.147 Zé na Cruz conduzido ao interior da igreja 202 Fig.148 Plano aberto de Rosa entrando por último na igreja 202 Fig.149 ChickFowle operando uma câmera Newman Sinclair 210 Fig.150 Imagens de animação do comercial da Tergal 213 Fig.151 Henry E. Fowle, sentado em sua mesa, lendo jornal 214

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 13

1. HENRY EDWARD FOWLE, THE BRITISH CINEMATOGRAPHER QUE APORTOU EM TERRAS BRASILEIRAS...... 20

1.1 GPO Film Unit...... 21 1.2 Os filmes de Chick na GPO e Crown Film Unit...... 28 1.3 Os filmes de Chick na Wessex Film Production...... 38 1.4 Chick Fowle e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz...... 42

2. CHICK FOWLE E AS TÉCNICAS DE FOTOGRAFIA CINEMATOGRÁFICA APLICADAS...... 54

2.1 Iluminação...... 56 2.2 Ambientação e Movimento...... 73 2.3 Quadro...... 79 2.4 Ponto de vista e objetiva...... 85 2.5 Soluções Fotográficas na Textura Fílmica...... 88

3. DÍVIDA PAGA: A PROMESSA DE UM NOVO CINEMA...... 126

3.1 O pagador de promessas...... 141 3.2 A análise de O pagador de promessas no âmbito da fotografia cinematográfica...... 147 3.3 Síntese da fotografia de O pagador de promessas ...... 203

SINGULARIDADES CONCLUSIVAS...... 205

REFERÊNCIAS...... 216

CINEMATOGRAFIA ABORDADA DE CHICK FOWLE (H. E. FOWLE)..... 225

13

INTRODUÇÃO

Henry Edward Fowle, mais conhecido como “Chick” Fowle, foi um diretor de fotografia inglês. Aportou em terras brasileiras na década de 1950 e ficou conhecido nacionalmente pelos trabalhos que desenvolveu na Companhia Cinematográfica Vera Cruz e, posteriormente, no cinema publicitário paulista. Numa rápida pesquisa pela internet, é possível identificar reportagens de Luiz Carlos Merten e Ugo Giorgetti, respectivamente, no jornal Estadão e na Folha de São Paulo a respeito de Chick. Inclusive, Giorgetti, em 2019, lança uma minissérie intitulada O cinema sonhado, numa vontade de recapitulação e memórias de uma época em que começou a vivenciar o cinema em São Paulo. No capítulo Pelas ruas do Bexiga, dedica diversos momentos e pequenas histórias e perguntas sobre Chick Fowle a seus entrevistados. Salta aos olhos também um curta-metragem recentemente publicado no YouTube, intitulado Chick Fowle, o faixa preta do cinema (1981), dirigido por Roberto Santos, que presta uma entusiasmada homenagem a esse diretor de fotografia. De alguma forma, um resgate da figura desse diretor de fotografia parece emergir de diferentes fontes e o pouco que se tinha publicado a respeito de Chick até então acaba tomando proporções diferentes. Seu trabalho é vasto, como é possível perceber numa pesquisa ao site do IMDb1, no qual é possível encontrar dados sobre a relevância da sua trajetória fílmica, que se inicia como operador de câmera no filme documentário The King's Stamp (1935) e se encerra em O pagador de promessas (1962), com 46 títulos de filmes associados ao seu nome como diretor de fotografia. Ele passa parte de sua carreira na Grã-Bretanha, mas é na sua estadia no Brasil que ele desenvolve inúmeros filmes que marcam sua carreira como fotógrafo, como em o já citado O pagador de promessas, mas também em Caiçara (1950), em Terra é sempre terra (1951), em Tico-tico no fubá (1952), e, principalmente, em O cangaceiro (1953). Como realizador, no campo da fotografia cinematográfica, em uma de minhas empreitadas em São Paulo, trabalhando como assistente de fotografia, tive a oportunidade de me deparar com uma obra literária intitulada Yes, nós temos bananas (2011), de Ana Carolina

1 A esse respeito, cf.: https://www.imdb.com/name/nm0288626/. Acesso em: 19 set. 2020. 14

Maciel. Nesse momento, ela dirigia o documentário Memória em prosa e imagem: o Museu Paulista na USP (2014), no qual eu participei da equipe técnica. Com a diretora, foi possível aprender a ter um novo olhar sobre as produções realizadas nesse período que ela focava. Posteriormente, o que mais chamou a atenção ao assistir, em 2014, aos filmes dessa época, no acervo do MIS em São Paulo, foi a direção de fotografia, com seus esquemas de iluminação, enquadramentos e movimentos de câmera. O aprofundamento nesses estudos trouxe surpresas, entre elas o fato de a Companhia contar com muitos técnicos estrangeiros, trazidos sob a chancela de Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro de renome internacional, para compor o corpo de profissionais da Vera Cruz. Algumas produções da Vera Cruz, como Caiçara (1950), O cangaceiro (1953) e Sinhá moça (1953), ganharam prêmios internacionais graças à contribuição desses profissionais. Um deles, de grande importância, que despertou a atenção, foi justamente Henry “Chick” Fowle, fotógrafo documentarista, que fez diversos filmes do grupo General Post Office, estatal inglesa, dirigida por John Grierson. Sua experiência foi fundamental para orientar na Vera Cruz os diretores Adolfo Celi, Abílio P. de Almeida, Luciano Salce, Carlos Thiré, Flaminio Bollini e Lima Barreto, em sua maioria pouco experientes no trabalho de direção de cinema. Entre os estrangeiros que vieram para o Brasil, Chick Fowle foi considerado um dos mais notórios. Segundo César Mêmolo, em entrevista transcrita por Paulo Schettino, afirma que “além de ser um profissional com uma disciplina extraordinária, era um ser humano fora de série. Era uma pessoa de um caráter, de uma compleição moral e profissional extraordinária” (SCHETTINO, 2007, p. 80). Luiz Carlos Merten (2019) escreve que Chick foi mítico e mesmo com o seu olhar estrangeiro foi extremamente importante para o cinema latino-americano. Ugo Giorgetti comenta também que Chick Fowle, em sua essência, era um fotógrafo à maneira clássica, mas que: Sabia que a apreensão e o domínio da técnica cinematográfica não deveriam ser um fim em si mesmo. O apuro e o rigor não deveriam servir a um pseudo- esteticismo a embelezar filmes vazios e estúpidos. Ao contrário, o domínio técnico era fundamental para que ideias fossem expressas adequadamente e pudessem ser apreciadas (GIORGETTI, 1995).

Esse trecho do artigo de Ugo Giorgetti, em sua reportagem à Folha de São Paulo, destaca a descrição que faz da pessoa e do trabalho de Chick. Porém, em uma pesquisa realizada de forma mais profunda, revelou-se não ser uma opinião partilhada de forma uníssona. 15

É possível encontrar críticas ao trabalho de Chick em obras importantes da literatura cinematográfica brasileira, como a Introdução ao cinema brasileiro (1959), de Alex Viany, e principalmente em Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), de . São obras que por si só representam um teor crítico mais geral de muitos filmes do mesmo período, frente ao novo movimento do Cinema Novo que se enraizava em alguns cineastas. As obras da literatura cinematográfica brasileira que destacam os trabalhos de Chick fazem-no por vezes de forma breve, detendo-se a uma exaltação muito mais referente à qualidade técnica do que artística, principalmente em relação aos filmes da Companhia Vera Cruz. É o caso da citação de Carlos Ebert afirmando que Chick, “como diretor de fotografia, assinou alguns dos melhores e mais bem acabados filmes feitos no Brasil” (EBERT, 2020), ou na citação de Antônio Neto (2010), que diz que “Chick, com seu estilo clássico e perfeccionista, contribui de forma decisiva para a qualidade da fotografia do cinema brasileiro” (NETO, 2010, p. 68). Quando muito, é possível encontrar uma definição do seu trabalho feita de forma estereotipada, referindo-se a ele como uma “fusão do expressionismo alemão (a luz intensa, e bem apropriadamente chamada de artificial, privilegiando um ponto da cena) com o neorrealismo italiano (a luz espalhada por toda a cena assim como o dia costuma iluminar a paisagem)” (AVELLAR, 2007, p. 12). Frente ao seu ofício de diretor de fotografia, a descrição mais detalhada em relação ao trabalho de Chick é citada no verbete de Paulo Antônio Paranaguá, em Enciclopédia do Cinema Brasileiro (2010), que melhor descreve as características da fotografia cinematográfica de Chick Fowle:

A fotografia é um dos maiores trunfos do filme [O pagador de promessas] de : o preto-e-branco expressa todas as suas possibilidades plásticas, uma riqueza de nuances e tons que não limita mais os movimentos dos intérpretes e figurantes, conforme acontecia numa época recente. A fusão é perfeita entre os rostos anônimos e os atores vindos do palco (do TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, como Leonardo Vilar, ou do teatro baiano, como Geraldo D’El Rey, Othon Bastos e Antônio Pitanga). Nesse momento, Fowle não revela apenas a plenitude dos seus recursos técnicos: o inglês mostra que é um dos autênticos descobridores da luz brasileira, o homem que representa a transição entre o “alemão” Edgar Brasil e o argentino Ricardo Aronovich. Isso não se chama mais competência e profissionalismo, isso é sensibilidade e talento: a fotografia concebida como uma grande arte no processo de criação coletiva do cinema (PARANGUÁ, 2000, p. 260).

16

Deparar-me com essa descrição feita por Paulo Antônio Paranaguá ao trabalho de Chick Fowle, sabendo que outras opiniões tendem a desmerecer o trabalho desse diretor de fotografia, acaba por despertar em mim uma curiosidade que acabou se desdobrando para uma empreitada de pesquisador e analista, frente a esse impasse de opiniões. Um impasse, uma dualidade que requer um estudo minucioso e que instiga o debruçar sobre o estudo das particularidades e singularidades do estilo fotográfico de Chick Fowle, no intuito de identificar a importância desse diretor de fotografia para o cinema brasileiro, indo além das meras descrições encontradas, que, por vezes, não dão conta do real teor do seu trabalho e até mesmo na busca por compreender o porquê de algumas ressalvas e críticas em relação à sua fotografia, principalmente frente ao momento histórico do cinema brasileiro em que Chick atuou. Afinal, como processo de pesquisa, interessante se faz compreender o porquê da cisão de opiniões, como a de Glauber Rocha ao afirmar que as “engrenagens” de Chick “atrasaram” o cinema brasileiro em anos (ROCHA, 2003). Por outro lado, observa-se que é fato notável a associação do trabalho desse fotógrafo a filmes indicados e premiados num curto espaço de tempo e com destaque nacional e internacional. Esse processo culmina principalmente na análise de O pagador de promessas, filme que para Paulo Antônio Paranaguá desponta como sendo uma grande obra, por expressar outro patamar frente ao trabalho de fotografia cinematográfica de Chick Fowle. Diferentes fatos e opiniões demonstram diferentes juízos de valores que incitam a investigação, a busca de um olhar mais apurado em relação ao trabalho desse fotógrafo, numa historiografia brasileira que, por vezes, tende a criar uma grade de “blocos” e “rótulos” de períodos cinematográficos, como a “Bela Época”, os “Ciclos Regionais”, a “Chanchada”, os “Estúdios Paulistas”, o “Cinema Novo”, e que “dizem muito pouco sobre os filmes, mesmo porque nenhuma dessas definições prioriza uma visão estética” (SCHVARZMAN, 2008, p. 8) e também não colabora tanto para uma visão mais nuançada da história do cinema brasileiro. É com um olhar percuciente e um debruçar de pesquisador sobre as particularidades e singularidades do trabalho de Chick, frente às suas abordagens fotográficas, que será possível e extremamente importante compreender a dinâmica e as soluções encontradas frente às dificuldades de filmagens em terras brasileiras. Isso significa ir às origens históricas das produções nas quais ele participou antes de aportar no Brasil, assim como levantar as técnicas e os procedimentos adotados por ele na fotografia cinematográfica, tudo isso para se compreender melhor a dimensão da importância da sua cinematografia. 17

Para isso, o presente trabalho terá uma divisão em três capítulos, sendo o primeiro intitulado “Henry Edward Fowle, the British cinematographer que aportou em terras brasileiras”, para dar conta do entendimento da sua cinematografia no Reino Unido e no Brasil. Portanto, faz-se fundamental compreender suas origens e abordagens como fotógrafo no desenvolvimento do seu trabalho, no caso na General Post Office Film Unit e posteriormente na Crown Film Unit, unidades de produção de filmes documentais patrocinadas pelo governo britânico, esta última destinada exclusivamente a produções de filmes documentários nacionais ligados à Segunda Guerra Mundial. Nesse período do seu trabalho, podem-se destacar os curtas Night Mail (1936), North Sea (1938), Christimas under fire (1940), London can take it! (1940) e Listen to Britain (1942). Ainda na Inglaterra, Chick tem uma passagem pela Wessex Film Production, uma companhia situada na Pinewood Studios, no qual fotografa filmes de ficção de longa-metragem como The Woman in the Hall (1947), Esther Waters (1948), Once a Jolly Swagman (1949) e Dear Mr. Prohack (1949). Para o intuito dessa elucidação, bibliografias como Rise and Fall of Britsh Documentary (1975), de Elizabeth Sussex, e The British Documentary Film Movement (1989), de Paul Swann, são o norte na compreensão da dimensão desses trabalhos nesse período. O mesmo pode-se dizer da obra Alberto Cavalcanti: Realism, Surrealism and National Cinemas (2000), de Ian Aitken, no intuito de permear melhor o entendimento por trás da filosofia do trabalho desses documentaristas. Ainda no mesmo capítulo, uma breve alusão ao contexto de sua chegada ao Brasil para compor o plantel de profissionais estrangeiros, no emergente cinema industrial paulista. Esse período é relatado, principalmente, no texto de Afrânio Catani, na obra organizada por Fernão Ramos e Sheila Schvarzman, intitulada A nova história do cinema brasileiro (2018). Ela ressalta também os desafios que ele encontra na proposta desse desenvolvimento cinematográfico e que acaba por dar gancho ao segundo capítulo. Permeando de forma mais exclusiva o trabalho do diretor de fotografia nas obras cinematográficas, o segundo capítulo, intitulado “Chick Fowle e as técnicas de fotografia cinematográficas aplicadas”, tem por finalidade estabelecer uma aproximação mais detalhada frente às abordagens fotográficas feitas por Chick, principalmente na Vera Cruz, com o intuito de desbravar as técnicas e os procedimentos utilizados por ele nos filmes nos quais participou no Brasil. Para melhor elucidação dessa abordagem, o filme Caiçara (1950), o primeiro realizado por Chick em terras brasileiras, servirá de norte para identificar os elementos que 18

serão priorizados nesse desbravamento, intitulados ferramentas conceituais da cinematografia e dissertadas por Blain Brown em seu livro Cinematografia, teoria e prática (2012). Entre elas, citam-se: a luz, uma das mais importantes ferramentas do fotógrafo; a textura, que envolve a cor, o contraste, a saturação, os filtros e os efeitos de imagem; o quadro, que envolve a composição, o ritmo e a perspectiva; a objetiva, ou seja, a percepção através da lente; o movimento, envolvendo a dinâmica; e a ambientação, como a capacidade da câmera de revelar ou ocultar informações; e, por fim, o ponto de vista (BROWN, 2010). Os entendimentos dessas ferramentas conceituais, como parte integrante do trabalho do diretor de fotografia, servirão para uma imersão mais fundamentada nas imagens captadas por Chick. Trata-se de um processo de análise-desconstrução do plano, para um estudo mais minucioso, a partir de um corpus fílmico que envolve os filmes Caiçara, Terra é sempre terra, O cangaceiro, Na senda do crime e Absolutamente certo, estabelecendo também um breve paralelo com um trabalho contemporâneo, o Carnaval Atlântida. Como auxílio bibliográfico referente à direção de fotografia, obras como Os cinco Cs da cinematografia (2010), de Joseh V. Maschelli; Expor uma história (2004), de Ricardo Aronovich; Painting with light (1997), de John Alton; e 50 anos Luz Câmera e Ação (2005), de Edgar Moura, fazem-se importantes para fundamentar com mais detalhes os assuntos referentes a esse ofício. Aliado também a todas as bibliografias citadas acima, o trabalho de David Bordwell (2013) também é importante acerca dos entendimentos em relação ao estilo. Muito focado na mise-en-scène e centrado principalmente na encenação dos atores em relação à câmera, o entendimento do autor acerca do estilo contribui muito para a compreensão de como o trabalho do fotógrafo está intrinsicamente ligado às possibilidades quanto ao uso sistemático de técnicas cinematográficas e, também, como a partir de tudo isso pode-se identificar um estilo fotográfico em determinado filme, no caso desse trabalho, focado na fotografia cinematográfica de Chick Fowle (BORDWELL, 2013). Feita a apreensão acerca das abordagens realizadas por Chick frente às possibilidades técnicas que são caras à fotografia cinematográfica, o capítulo três, intitulado “Dívida paga: a promessa de um novo cinema”, é uma alusão direta ao filme O pagador de promessas (1962), dirigido por Anselmo Duarte, em meio ao surgimento do movimento Cinema Novo, encabeçado principalmente pela figura de Glauber Rocha. O trocadilho do título tem por fim um olhar para a fotografia de Chick desse período, com os filmes Ana (1955) e O pagador de promessas (1962), já fora da empreitada nos moldes de grandes estúdios. É uma alusão a um suposto “débito” do cinema brasileiro com 19

o trabalho profissional desse fotógrafo, que estabelece inclusive alguns paralelos com obras como Rio, 40 graus (1955) e Cinco vezes favela (1962). “Dívida paga” é oposição às críticas da época, por meio da análise fílmica de O pagador de promessas, com viés na fotografia cinematográfica. A análise expõe minunciosamente o trabalho de Chick Fowle e mostra as novas abordagens e soluções, assim como as características que reincidem em seu trabalho, abrindo novas possiblidades ao ofício de diretor de fotografia cinematográfico. Em “Singularidades conclusivas”, dá-se conta do estilo fotográfico de Chick Fowle perante a desconstrução da sua fotografia, principalmente na análise de O pagador de promessas. Nessa obra, ele concentra grande parte das suas abordagens fotográficas e das suas singularidades como diretor de fotografia, alcançadas ao longo das suas atividades como fotógrafo no Brasil, reiterando a importância do seu trabalho para a cinematografia brasileira.

20

1. HENRY EDWARD FOWLE, THE BRITISH CINEMATOGRAPHER QUE APORTOU EM TERRAS BRASILEIRAS

Nascido em Londres no dia 24 de dezembro de 1915, Henry Edward Fowle, mais conhecido como Chick Fowle, “forma-se na escola de documentário inglês com o fotógrafo Jonah Jones (Frank H. Jones). Começou a trabalhar em 1932, como um simples mensageiro da empresa britânica de correios e telégrafos, a General Post Office” (PARANAGUÁ, 2000). Faleceu em 16 de junho de 1995, em Warwickshire, Inglaterra, mas apesar do início e o fim da sua vida ter sido em terras britânicas, sua história envolve uma Londres antes e durante o conflito da Segunda Guerra Mundial, e metade de uma vida dedicada à cinematografia em um país latino-americano: o Brasil. Nessas duas sagas que envolvem sua vida, a europeia e a brasileira, deixou legados importantíssimos ao cinema mundial. Seus primeiros filmes foram realizados junto ao Movimento do Documentário Britânico sob a chancela de John Grierson, e mais tarde de Alberto Cavalcanti na GPO Film Unit, dividindo o trabalho com grandes diretores como Harry Watt, Basil Wright e Humphrey Jennings. Com o advento da Segunda Guerra, sua unidade passa a se chamar Crown Film Unit e os filmes realizados acabam tendo um foco exclusivo para propaganda de guerra. Chick, além de trabalhar como fotógrafo, trabalha também como correspondente de guerra. No entanto, seus trabalhos com os documentários2 da General Post Office e da Crown Film Unit não são os únicos importantes no Reino Unido. Os longas-metragens de ficção da Wessex Film Production foram igualmente fundamentais na consolidação da sua carreira. Na Wessex, o teor de seu trabalho como fotógrafo atinge um patamar diferente dos documentários produzidos nas unidades da GPO e do Ministério da Informação, o que será fundamental para o desenvolvimento dos seus trabalhos no Brasil. Como trajeto profissional, pode-se dizer que Chick começou como cameraman, para depois ser identificado como fotógrafo, e, no Brasil, começa sendo creditado como iluminador. No entanto, é importante ressaltar que apesar das rotulações e dos créditos, que por vezes não chegam a aparecer nos filmes, seu trabalho pode ser compreendido, segundo os entendimentos atuais, como o de Diretor de Fotografia.

2 Importante ressaltar que em uma concepção contemporânea, Fernão Ramos define o documentário como “[...] uma narrativa com imagem-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, à medida que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo. A natureza das imagens-câmera e, principalmente, a dimensão da tomada através da qual as imagens são constituídas determinam a singularidade da narrativa documentária em meio a outros enunciados, escritos ou falado” (RAMOS, 2013, p. 22). 21

Affonso Beato, em seu texto Sobre a autoria das imagens cinematográficas, constante no site da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC), ao ser questionado sobre a função do diretor de fotografia, responde prontamente que “[...] nós éramos os responsáveis por todas as imagens em movimento que existiram nos últimos cem anos” (BEATO, 2000). Mais à frente ainda, cita que mesmo que as imagens nem sempre tenham sido produto da sua vontade, a determinação ou indicação do diretor de fotografia frente a elas torna- o a pessoa responsável por elas existirem. E, nessa responsabilidade, na sua grande participação e colaboração como diretor de fotografia na produção das imagens é que será possível reconhecer em Chick, desde o início da jornada como fotógrafo, alguns ímpetos e aspectos criativos que irão acompanhá-lo pelo resto de sua carreira. Assim como a própria diversificação da sua criação, seja como operador de câmera, ou como fotógrafo, seja nos trabalhos documentais ou nos longas de ficção, a força do seu trabalho estará presente. Ainda que os termos mais técnicos relacionados à fotografia cinematográfica sejam somente aprofundados no segundo capítulo, é possível dialogar com as imagens de Chick, no intuito de compreender a gênese de seu trabalho e o desenvolvimento do seu percurso como fotógrafo, ao longo da sua trajetória no cinema.

1.1 GPO Film Unit

Antes de tudo, por documentário, entende-se que as premissas do trabalho em que Chick esteve envolvido em seus primórdios baseavam-se nos pressupostos de John Grierson3, o líder do Movimento do Documentário Britânico. Em seu First principles of documentary, ele criou um conceito de “tratamento criativo da realidade”, baseado na intervenção ou “invenção” da realidade. Ele estava ansioso para “[...] distinguir os documentários dos cinejornais, dos filmes, sobre viagens, dos filmes científicos” já que via, na figura dos documentaristas, artistas que com sua percepção mediavam “[...] a filmagem do mundo real para iluminar a condição humana” (WISTON, 2005, p. 22). O termo “documentário” em si foi usado como adjetivo por Grierson quando se referia a Moana (1926), de Robert Flaherty. Com o decorrer do seu trabalho, definiu o termo

3 Grierson foi um cineasta de origem escocesa e um dos grandes nomes dos primórdios do documentário ao lado de Robert Flaherty e Dziga Vertov. 22

como um gênero para se referir a certos tipos de filmes com os quais ele trabalhava (SUSSEX, 1975, p. 3). Os trabalhos de Grierson pautaram-se nos seus aprendizados nos Estados Unidos, quando estudou os mecanismos de funcionamento da opinião pública do país. Na Rússia, Itália e Alemanha, o uso do cinema como propaganda política havia se tornado uma poderosa arma ideológica, especialmente no regime nazista, que chegou a ter todas as mídias sobre o controle do Ministério de Esclarecimento Popular e Propaganda (BARNOUW, 1993, p. 100). O potencial do filme de propaganda vinculado ao Estado despertou o interesse de países europeus, especialmente o Reino Unido, que tinha como objetivo a educação, assim como a propagação do funcionamento de alguns órgãos e serviços governamentais. A unidade de filmes da General Post Office intitulada GPO Film Unit, por exemplo, foi na Inglaterra uma iniciativa do próprio governo, de caráter propagandista, que via no cinema uma possibilidade de transmissão de informações de caráter educativo. Ela se inicia no departamento de propaganda inglês intitulado Empire Marketing Board (EMB), em 1926, sobre a tutela do secretário Sir Stephen George Tallents. O objetivo era de potencializar o aumento da produção de filmes ingleses e, consequentemente, promover o crescimento da comercialização de produtos do Império Britânico (SWANN, 1989). A GPO Film Unit se firma em 1933, sob a liderança de John Grierson. Ele convence Arthur M. Samuel, secretário do tesouro britânico, num encontro arranjado por Tallents, a produzir o filme documentário Drifters, o qual possui um pouco mais de 20 minutos de duração e cuja narrativa é a descrição do trabalho da pesca do arenque na Escócia. O filme ganha notoriedade, sendo considerado o primeiro documentário britânico sob a direção de Grierson. Considerado um filme de vanguarda, a obra faz um extenso uso da montagem, de forma expressiva, e cria tensões dramáticas, com a ausência de qualquer tipo de caracterização psicológica. No intuito de criar uma autenticidade frente à realidade, ele faz uso de “tipos”, que não são atores profissionais, com a captação das imagens majoritariamente em locações. Tendo os pescadores como figura principal do filme, numa segunda camada, ele apresenta um Império Britânico moderno e industrializado, estabelecendo uma tensão entre aquilo que era tradicional à época, frente ao surgimento da modernidade (SEXTON, 2003). O sucesso de público e crítica alavancou o trabalho de John Grierson, que conseguiu, com sua fluência diplomática, convencer membros do governo britânico e da EMB das possiblidades do documentário. Ele tinha fortes convicções e sabia como conduzir seu trabalho sobre o dito de Lenin, “the power of film for ideological propaganda”, ou “o poder do filme para propaganda 23

ideológica” (SWANN, 1989), fato esse presente até os dias de hoje, de forma sutil e massificada. Apesar da ambiguidade nas representações de uma social democracia, Grierson acreditava na possibilidade de contribuição desses filmes britânicos na cidadania do povo, por meio da educação de forma prática, pautada numa conscientização, sem ideários revolucionários. Ele visava a integração, frente às novas possibilidades como o rádio e o filme. Grierson acabou sofrendo muitas críticas por não relatar, por exemplo, as condições vergonhosas de trabalho nos correios em Night Mail, ou mesmo em Coal face, em que acaba se limitando a mostrar o caráter nobre daqueles trabalhadores, sem entrar no mérito da crítica à estrutura social desigual (BARNOUW, 1993). Coal face era o “retrato” das contradições que envolviam o modelo de capitalismo industrial vigente na Inglaterra, com suas mazelas expostas no cotidiano dos mineiros. Homens que, dia após dia, adentravam perigosamente nas profundezas das minas de carvão, para no trabalho árduo tirarem o seu sustento (Figura 1).

Figura 1 – Trabalhador nas minas de carvão.

Fonte: Frame do filme Coal Face (1935).

Sobre esse aspecto, Paulo Emilio Sales Gomes (2015) relata que Grierson e seus discípulos procuravam reformar a sociedade, mas não de forma simplista e afirmativa como nos filmes de propaganda. Eles de alguma forma procuraram:

[...] dramatizar documentos da realidade de seu tempo a fim de provocar nos cidadãos a tomada de consciência dos problemas humanos modernos. Examinando-se as fitas desse período na perspectiva de hoje, verifica-se que todas conservam a marca profunda da missão cinematográfica de Flaherty: 24

revelar a poesia e a nobreza da humanidade comum e do trabalho (GOMES, 2015, p. 246).

Esse ideário pautou um trabalho que priorizava também o coletivo, com caminhos abertos à experimentação e a profissionais de renome internacional. Esse contexto favorável à entrada de novos profissionais acabou abrindo o caminho para a futura chegada de Alberto Cavalcanti4, figura importante para o impressionismo francês, para o documentarismo inglês e, também, para o futuro cinema de estúdio brasileiro, na figura da Companhia Vera Cruz. Toda essa articulação de Grierson acabou tornando a EMB Film Unit o berço do chamado Movimento do Documentário Britânico, considerando que os próprios realizadores identificavam-se e viam-se dessa forma, um movimento que se intitulou como uma escola de preceitos bem definidos e que trabalhavam com uma forma de arte específica, com finalidades específicas e, inicialmente, com um líder em comum (SWANN, 1989, p. 18). Em 1933, a unidade passa para as mãos da GPO, intitulando-se então GPO Film Unit, que na busca pelo desenvolvimento de um mercado de telefone doméstico, assim como outras demandas de relações públicas, acaba se interessando pelo trabalho desenvolvido pela EMB Film Unit, o que faz com que Tallents, Grierson e toda a equipe migrem de departamento (SWANN, 1989). Nessa mesma época, chega à unidade nomes internacionalmente famosos, como Flaherty e Alberto Cavalcanti. Porém, os diretores da unidade ficariam também igualmente conhecidos pelo seu esplendoroso trabalho, destacando-se entre eles: Basil Wright, com filmes como Song of Ceylon (1934); Harry Watt, com Night Mail (1936, com colaboração de Basil Wright) e North Sea (1938); Humphrey Jennings, com Spring Offensive (1940) e London Can Take It! (1940); Norman McLaren, com News for the Navy (1937)5; dentre outros. No entanto, nesse momento, um adendo a Alberto Cavalcanti é importante pelo que ele representou para a unidade, já que Flaherty deixa o grupo pouco tempo depois. Cavalcanti muda-se para a Inglaterra a pretexto de uma busca por um novo estímulo, por novos caminhos cinematográficos, que a Paramount francesa já não lhe oferecia mais. Ele chega ao país carregado do conhecimento versátil de um veterano na arte, uma vez que ele passa com extrema desenvoltura de um gênero a outro, da ficção ao documentário e

4 Cavalcanti foi um cineasta que trabalhou como diretor, roteirista, produtor cinematográfico e cenógrafo. Nascido no em 1897, trabalhou na França nos anos 1920, na Inglaterra nos anos 1930, e em 1950 volta ao Brasil e ajuda a organizar a Companhia Vera Cruz de Cinema. Suas obras iniciais mais conhecidas como diretor são Le train sans yeux (1936) e Rien que les heures (1926). 5 Importante destacar que a GPO Film Unit foi uma das poucas produtoras da época que tinha mulheres em seu quadro de realizadores, como as familiares de Grierson, Margaret Taylor (esposa) Ruby e Marion (irmãs) e a diretora Evelyn Spice. 25

vice-versa, e de uma especialidade a outra: da cenografia à assistência de direção, da direção à montagem, ligando o próprio nome a filmes como Le train sans yeux (1926), En rade (1927) etc. (VALENTINETTI, 2004, p. 298). Inclusive, Harry Watt descreve que a chegada de Cavalcanti foi um ponto de virada no documentarismo britânico, que, cercado de jovens inexperientes, acabam se defrontando com um excelente profissional, sedimentado com fundamentos e trazendo consigo a experiência do som até então inédito na Inglaterra (SUSSEX, 1975). O equipamento de som, na época, tinha acabado de chegar à unidade e isso facilitou o casamento de Cavalcanti com a GPO Film Unit. Sobre uma notória fala de Grierson, ele afirma que “[...] meus rapazes não tem ideia do que é o som” (SUSSEX, 1975, p. 321, tradução nossa). Mas a grande repercussão da exibição de Rien que les heures no primeiro cineclube inglês, o London Film Society, da qual os “rapazes” eram frequentadores, já antecipara a fama do trabalho do cineasta brasileiro. A estreia de “Cav”, como era chamado pelos ingleses, foi com o filme Pett and Pott, de 1934, com uma presença exitosa, ao mostrar “como um bruxo, consegue transformar meia hora sobre vantagens de possuir um telefone em casa em uma pequena-grande gag cômico-social de ritmo e de senso de humor exemplares” (VALLENTINETI, 2004, p. 301). Cavalcanti ganha notoriedade com o seu trabalho e junto com Grierson empenham- se em representar o homem comum do Reino Unido, a partir da recriação dramatúrgica da realidade. Eles associam elementos poéticos e cotidianos, que acabam tornando-se as premissas dos filmes neorrealistas italianos do pós-guerra. Segundo Deleuze, os neorrealistas inauguram o cinema moderno, sobretudo pela forma como a narrativa e os personagens relacionavam-se com o espaço e o tempo (DELEUZE, 2010). No entanto, obras de Cavalcanti, como Rien que les heures, já demonstravam uma quebra da narrativa espaço-temporal, desde sua fase de produção na França. Aliás, ele tinha conceitos bem definidos sobre o seu cinema, ou seja, um compromisso com a realidade, elencados com a natureza poética e experimental, para elevar o trabalho realizado por ele e por outros cineastas a um patamar de obra de arte. Com isso, ele tenta passar para aqueles que estavam consigo, nesse Movimento inglês do documentário, suas bases fundamentais, que são o “social, poético e o técnico” (CAVALCANTI, 1977). Quanto à técnica, com a entrada de Cavalcanti, é possível perceber nos filmes da GPO um apuro na planificação das cenas, que cobriam as ações com diferentes planos, ângulos 26

e enquadramentos com vários cortes que encadeiam as ações. Planos de paisagem (landscape) e planos contemplativos, característicos dos espaços e regiões nas quais se passavam as narrativas, são extensamente apresentados. Quanto à fotografia, passa-se a ter uma preocupação maior com a composição, com uso de perspectivas e de sobreposição de camadas nos planos com diferentes ações, assim como um desenho de luz que incorpora o uso de luz artificial, ainda com a predominância naturalista não somente nas internas, mas também nas externas, feito de forma mais simplificada. Uma influência dos feature films agora incorporada de forma mais intensa nas produções do Movimento. Aos poucos, o que nascera com o objetivo de propaganda de Estado, vai se transformando num registro experimental e poético. Isso refletia as condições de vida do proletariado do Império, com espectadores que passavam a assistir à sua realidade dramatizada e esteticamente apurada nos filmes da GPO. A visão estética de Cavalcanti, porém, acaba contrapondo à de Grierson, que tinha características mais pragmáticas. O Movimento Britânico começara por uma afeição à educação nacional, muito mais sociológica, e não tanto pelas características que envolvem a estética do filme em si (AITKEN, 2000). Por isso que as inclinações experimentais ou de vanguarda têm um envolvimento direto com Cavalcanti, incluindo Coal face, dirigido por ele mesmo. Ele produziu mais filmes da GPO do que o próprio Grierson, tendo extrema influência sobre os cineastas da unidade. Estes começaram a recorrer a Cav para sanarem suas dúvidas referentes aos próprios trabalhos. No entanto, Grierson sempre foi a figura máxima, a autoridade da GPO Film Unit (CUNNINGHAM, 2008). Frente a isso, diversos foram os atritos entre ambos na unidade, envolvendo desde o aparecimento dos créditos, a abordagem dos filmes e principalmente a distribuição. Cavalcanti era a favor da exibição em cinemas, pois considerava que a contribuição do Movimento estava diretamente relacionada à arte e ao fato de que os filmes deveriam se pagar e dar lucro. Grierson defendia a distribuição dos trabalhos da GPO em instituições como escolas, igrejas, sindicatos, dentre outros. Ele se apoiava na afirmação de que, desprovidos de uma exibição sólida nas salas de cinema, o único jeito do trabalho da unidade chegar ao público era fora das vias comerciais. 27

Como a figura de Grierson está diretamente ligada ao Governo Britânico, a quem prestava contas, faz com que ele busque resultados dentro do que se propusera, desde o início com os seus filmes de propaganda, na sua forma conservadora de encarar o cinema. Os filmes eram de baixo orçamento, o que resultou num trabalho fora dos grandes estúdios. Ir às ruas, filmar em locações, diferente das filmagens em estúdio, como se pregoava naquele tempo, acaba se transformando na essência dos filmes da GPO, o que influenciava diretamente na estética das obras frente à alternativa encontrada. Segundo os preceitos de Grierson, “Os filmes de estúdio ignoram totalmente a possibilidade de se abrir ao mundo real, eles fotografam histórias artificiais em panos de fundo artificiais. O documentário fotografa cenas vivas, histórias vivas” (GRIERSON, 1997, p. 65). A própria palavra “documentário” em si acabou sendo um dos motivos de desavenças entre ambos, já que Cavalcanti achava que a palavra tinha sabor de “poeira e tédio”, que a definição dos trabalhos daquela escola poderia ser denominada de neorrealistas e que o “documento” era “[...] um argumento muito precioso junto ao governo conservador” (CAVALCANTI, 1977, p. 68). Sobre o neorrealismo, Siegfried Kracauer relata que o surgimento do termo, segundo o autor, foi uma síntese da junção do componente surrealista que Cavalcanti, como ele mesmo se denominava, trouxe das suas experiências na França, com os trabalhos de cunho naturalista desenvolvidos pela GPO (AITKEN, 1998). Os atritos entre ambos perduraram até saída de Grierson, em 1939. Novamente pela influência de Tallents, ele se muda para o Canadá, para criar o National Film Board, no ano da eclosão da Segunda Grande Guerra. Com isso, Cavalcanti passa a chefiar a GPO Film Unit e as produções começaram a voltar-se para esse evento histórico, começando por First days (1939), de Pat Jackson, Humphrey Jennings e Harry Watt. Logo após, a unidade é transferida para o Ministério de Informação e rebatizada como Crown Film Unit, com o Movimento dedicando-se agora à propaganda de guerra. Os filmes ganharam extensa notoriedade como Target for Tonight (1941), de Harry Watt, que nos Estados Unidos estima-se que teve uma audiência de 50 milhões de pessoas, tanto em espaços coletivos abertos, quanto nas salas de cinema (SWANN, 1989). Ao longo de 12 anos, a Crown Film Unit foi responsável por cerca de 130 filmes destinados ao cinema e a espaços fora de exibição comercial. O refinamento artístico tornou-se cada vez mais ambicioso entre os realizadores, que priorizaram o formato de documentários de história, que a GPO assumira no decorrer dos seus trabalhos, filmes em que não atores 28

representavam-se em narrativas emocionantes, de cunho realista, típicas de suas próprias experiências (RUSSEL, 2003). Sobre o Movimento Documentarista Inglês, a escrita de Paulo Emilio ressalta que Grierson insistiu em obter a colaboração de Cavalcanti por conta de seu background, dando ênfase à importância do trabalho dessa unidade como um todo:

Vários artigos de jornal seriam insuficientes para indicar o desenvolvimento histórico do documentário na Inglaterra. Da GPO Unit, que passou mais tarde para o Ministério da Informação com o nome de Crown Unit, o movimento espalhou-se pelas mais variadas instituições governamentais e particulares. Os discípulos de Grierson, Wright, Rotha, Watt, criaram seus próprios grupos, enquanto o pioneiro e líder continuou a exercer a sua influência através do Film Centre, órgão de consulta e orientação que coordenou durante alguns anos a gigantesca produção de filmes documentários na Grã-Bretanha. A guerra encontrou o cinema, graças à escola de Grierson, preparado para cumprir de forma digna a sua missão. As necessidades de propaganda não corromperam o gênero. Todo o passado do documentário britânico o tinha tornado apto, pelo relato da fadiga e beleza da vida cotidiana, a contar o heroísmo do homem comum na adversidade (GOMES, 2015, p. 248).

Cavalcanti permaneceu na unidade até 1940, quando foi convidado a se retirar, já que o comando de uma unidade inglesa por um estrangeiro, em tempos de guerra, não era visto com bons olhos. assume o controle, num momento em que o Movimento do Documentário Britânico já alçava para além do setor governamental, inclusive tendo unidades parceiras no desenvolvimento dos filmes como Verity Films, Greenpark e Paul Rotha Productions.

1.2 Os filmes de Chick na GPO e Crown Film Unit

No Movimento do Documentário Britânico, Chick participou de diversos filmes, como cameraman, sozinho ou dividindo o trabalho com outros profissionais. As produções tinham estruturas pequenas se comparadas aos filmes de grandes estúdios, como se pode ver na Figura 2, um still do set de filmagem de The Silent Village, produzido em 1943, dirigido por Humphrey Jennings e com a participação de Chick Fowle na fotografia.

29

Figura 2 – Filmagem de The Silent Village (1943).

Fonte: BFI (British Filme Institute)

A estreia de Chick dá-se ao lado do seu mentor, Jonah Jones, em Night Mail, considerado um dos filmes mais aclamados do movimento. Essa produção teve maior repercussão comercial e é a mais associada quando se refere ao Movimento. Jones e Chick são creditados no filme como cameraman (Figura 3), mas é perceptível que o trabalho realizado por ambos envolve muito mais que a operação de câmera, uma vez que tinham que lidar com equipamentos de luz e principalmente com o aspecto criativo. Isso envolve a tarefa da direção de fotografia, que era o que realmente se fazia, apesar da descrição não condizer exatamente com o trabalho realizado por esses profissionais.

Figura 3 – Créditos de abertura do filme.

Fonte: Frame do filme Night Mail (1936).

30

Em 1936, a produção de filmes na GPO Film Unit acaba sendo dividida entre os filmes rotineiros, que se fazia a serviço da instituição, e aqueles mais ambiciosos. Isso envolvia experimentos do uso de som, de estilo visual, de narrativa e de técnicas de edição, sendo claramente Night Mail parte dessa segunda vertente (AITKEN, 2003). Night Mail é um filme que mostra a operação de serviços noturnos do correio operados pela Royal Mail. O detalhamento do serviço mostra as diversas operações envolvidas no processo, com narração descritiva, com diálogos entre os funcionários e a jornada de todo o processo da correspondência. Isso envolvia procedimentos de separação, de coleta e depósito de malotes, em várias estações de trem ao longo do percurso. Conforme o trem aproxima-se de seu destino, há uma sequência – a mais conhecida no filme – na qual os versos falados e a música são combinados em imagens de montagem com ênfase nas rodas do trem. Segundo o teórico Erik Barnow, “A narração triunfalmente rítmica do Night Mail, escrita por W.H. Auden e ritmada por Benjamim Britten, foi imensamente bem- sucedida e tornou-se um modelo para inúmeras imitações. O filme foi editado ao ritmo de sua banda sonora” (BARNOUW, 1993, p. 94, tradução nossa). Night Mail possui muita autenticidade e forte narrativa que destaca muito bem os olhares e os tiques corporais daquelas pessoas envolvidas no trabalho (ANTHONY, 2007). Esses elementos são mostrados de forma muito elegante, combinados a diversos planos e cortes da narrativa, mas especialmente pelo trabalho de câmera com o uso de reenquadramentos. São aspectos importantes que dão ênfase aos detalhes, como o que aparece na Figura 4, na qual o atento aprendiz faz a contagem das batidas do trem, para então acionar a alavanca que permitirá que o malote seja coletado na estação.

Figura 4 – Movimento de câmera que se inicia no rosto para então mostrar a contagem feita pelo aprendiz.

Fonte: Frame do filme Night Mail (1936).

31

Inúmeras eram as dificuldades que tornaram a gravação de Night Mail extremamente difícil. A principal delas deve-se ao fato de ser feita, praticamente, toda em locações. A equipe trabalhava contra o tempo, pois dependia dos horários dos trens em pleno funcionamento, com pequenas janelas de gravação para capturar suas imagens. As câmeras portáteis utilizadas eram alojadas em uma caixa de alumínio retangular, volumosa, que as tornavam pesadas e difíceis de segurar, tanto é que algumas imagens feitas, sem o auxílio do tripé, são fáceis de identificar devido à sua instabilidade (Figura 5).

Figura 5 – Câmera posicionadas fora do tripé.

Fonte: Frame do filme Night Mail (1936).

As luzes portáteis também não conseguiam igualar a luz do exterior do trem e as lentes não tinham um sistema de torre de rotação que pudesse acoplar três lentes num único sistema. Uma torre assim permitiria uma gravação ao estilo “reportagem” de fácil intercâmbio de objetivas, diferente de um sistema comum, que acopla somente uma lente e demanda um tempo muito maior, que envolve todos os cuidados do intercâmbio de objetiva. A cada mudança de angulação desejada, uma lente mais aberta ou mais fechada tinha que ser feita por meio de uma troca de lente. Os magazines não suportavam mais do que dois minutos de gravação, sendo que, para complicar ainda mais, o viewfinder (visor) da câmera mostrava as imagens de cabeça para baixo (ANTHONY, 2007). Essas eram algumas das diversas situações problemas, que requeriam forte adaptação e improvisação da equipe, principalmente a de câmera. Tudo isso sem mencionar as dificuldades nas gravações, levando-se em conta que elas eram feitas em um trem em movimento. 32

No clímax central do filme, é mostrada uma atividade extremamente perigosa. Os homens do correio que trabalham no trem tinham que apanhar com uma rede os malotes que ficavam pendurados para fora da estação, na passagem do trem. Ao mesmo tempo, tinham também que despejar os malotes do trem endereçados à mesma estação, ficando eles pendurados por braços metálicos (ANTHONY, 2007). Muitos acidentes ocorreram com os funcionários dos correios na realização desses procedimentos. Com a introdução da alimentação elétrica e o combustível a diesel, essa atividade teve que ser abandonada devido ao seu alto nível de periculosidade. É numa dessas cenas, regradas talvez por um ímpeto jovem, que Chick Fowle começa sua demonstração de abertura ao improviso, como um profissional de fotografia e câmera. Para garantir uma tomada das cartas sendo coletadas pelo trem, Chick arrisca-se, com o corpo e a câmera, para fora da janela do veículo em movimento, logo atrás de uma das redes que apanhavam os malotes, segurado apenas pelas pernas. De tempos em tempos, com a velocidade do impacto, as redes se rompiam. Caso isso acontecesse, como salientou Watt, seria o fim de Chick (ANTHONY, 2007). Para sorte de todos, nada aconteceu e as imagens podem ser vistas no corte final de Night Mail (Figura 6).

Figura 6 – Planos que mostram os malotes fora do trem.

Fonte: Frame do filme Night Mail (1936).

O caráter educativo por trás desses documentários, como da demonstração da entrega e coleta dos malotes, sempre teve grande ênfase. Sempre houve, também, uma preocupação na condução da encenação dos “não atores”. Isso se fazia necessário porque envolvia grande planificação das cenas, para explicar da melhor maneira possível os procedimentos e os trabalhos e, especialmente, os trabalhadores envolvidos no processo. Pode-se ver esse exemplo na Figura 7, em que as imagens encadeadas atentam-se à execução do acoplamento dos vagões. Com os diferentes planos, enquadramentos e pontos de 33

vista resultantes do trabalho de direção e de fotografia, é possível perceber a movimentação do operador de vagões, que se desdobra para fazer os devidos engates, desde o momento em que um vagão encosta no outro.

Figura 7 – Planos de execução de tarefas: engate dos vagões.

Fonte: Frame do filme Night Mail (1936)

Outro exemplo de como o encadeamento dos planos prioriza o modo de se realizar um trabalho pode ser visto na demonstração de ensino de um experiente profissional da linha para um trabalhador novato. Na cena, um ensina o outro a realizar o procedimento de fechamento adequado do malote a ser colocado para fora e entregue na próxima estação (Figura 8).

Figura 8 – Procedimento de fechamento de malote.

Fonte: Frame do filme Night Mail (1936).

Esse passo a passo de como realizar as tarefas, num jogo de encenação com diálogos interpretados e falados pelos próprios funcionários da Royal Mail, tem um objetivo educacional por trás, pensado de forma inteligente por Watt e Wright. A intenção é de construir uma narrativa que também ensine o espectador sobre os procedimentos da entrega noturna de correspondências. Planos mais abertos, seguidos de planos mais fechados, já demonstravam o caráter de continuidade da ação, buscado dentro da proposta educacional dos documentários do 34

Movimento. Os diretores e fotógrafos, inclusive, realizavam tais abordagens de planificação com a participação de crianças, como as mostradas na Figura 9, do filme Christmas Under Fire.

Figura 9 – Planos de execução de tarefas: engate dos vagões.

Fonte: Frame do filme Christmas Under Fire (1940).

Na imagem, as crianças brincam como se estivessem num verdadeiro combate, imitando aqueles que porventura poderiam ser a representação de seus familiares próximos – irmãos, irmãs e pais. Esse talvez seja um dos trabalhos mais representativos de Chick frente à fotografia do Movimento Documentário Britânico, pois representa um trabalho de transição creditado a duas unidades: GPO Fim Unit e Crown Film Unit. Christmas Under Fire é um filme de propaganda destinado à exibição na América do Norte, com Quentin Reynolds, da popular revista de notícias Collier's Weekly. Ele contribui com uma introdução na tela e uma narração amigável de relato da guerra aos Estados Unidos, em tempos de celebração natalina, frente aos bombardeios sofridos pelo exército alemão (BROOKE, 2003). A mensagem principal do filme mostra um Reino Unido que segue o seu dia a dia mesmo com as modificações e as dificuldades impostas pela guerra e que, apesar do conflito e dos ataques sofridos, segue sem sentir pena de si mesmo, certamente determinado a lutar – uma mensagem direta aos americanos que, naquela altura, ainda não tinham se juntado aos Aliados6. Uma das sequências mais memoráveis do filme conta com a habilidade de Chick, para mostrar parte das pessoas que se abrigavam nos subterrâneos do metrô a fim de se protegerem dos bombardeiros. Num posicionamento fora da instabilidade do tripé, a câmera que desce lentamente as escadas rolantes mostra um plano que, aos poucos, revela ao espectador a quantidade de gente que se abriga no interior da estação (Figura 10).

6 Os Aliados da Segunda Guerra Mundial, chamados de “Nações Unidas” a partir da declaração de 1.º de janeiro de 1942, foram os países que se opuseram às Potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, compostos principalmente por França, Polônia e Reino Unido. Em dezembro de 1941, após a batalha de Pearl Harbor, os Estados Unidos se unem ao grupo. 35

Figura 10 – Câmera posicionada fora do tripé.

Fonte: Frame do filme Christmas Under Fire (1940).

A surpresa de encontrar as pessoas amontoadas daquela forma é uma forte alusão a um ponto de vista de um espectador que desce até a estação. E num movimento de câmera de Chick, que passeia sobre os trilhos do trem, é possível ver as famílias empilhadas numa noite de Natal, preparando-se para descansar. Uma forma muito provocativa para instigar os espectadores americanos, que até então não tinham passado por situação semelhante (Figura 11).

Figura 11 – Movimento de câmera sobre os trilhos mostra as famílias na estação de metrô.

Fonte: Frame do filme Christmas Under Fire (1940).

Na parceria com Harry Watt, Chick participou de outro notável projeto, intitulado North Sea, em 1938, já com a unidade sob a direção de Cavalcanti. O filme tem forte característica de dramatização, numa tentativa de o cineasta brasileiro, apoiado por Watt, 36

quebrar as distinções convencionais entre o documentário e o longa-metragem de ficção, usando aspectos do segundo dentro de um formato documental (AITKEN, 2003). É um documentário que não possui o artifício do voice over e a narrativa desenvolve-se dentro de um enredo, com diálogos e desenvolvimentos dramáticos. A história aborda a viagem de um navio de pesca, que adentra águas profundas e acaba danificado em uma tempestade, mas, após contratempos e enfrentando os perigos da natureza, acaba retornando em segurança. Frente à fotografia cinematográfica, é possível perceber, também, um tratamento elaborado com os planos e com a iluminação de forma diferenciada aos documentários anteriores, já com uma mescla naturalista de iluminação em ambientes externos, se comparado a abordagens que Chick faz nos ambientes internos, principalmente no barco. Na Figura 12, por exemplo, o diálogo em campo e contracampo dos personagens demonstra uma abordagem de luz natural, muito característica na realização de gravações de cenas externas, mas com o uso de artifícios de iluminação perceptíveis nos highlights identificados nos ombros e nos cabelos do personagem que se posta ao portão.

Figura 12 – Diálogos em campo e contra campo.

Fonte: Frame do filme North Sea (1938).

Essa pequena demonstração do uso de uma fonte de iluminação, numa cena de exterior, era algo que até então não estava presente em filmes anteriores de Chick, a exemplo de Night Mail, que fazia uso de iluminação somente em locações de interiores. A abordagem da iluminação nesse filme também tem aspectos de contraste, na relação entre claro e escuro, numa preocupação de caracterização do espaço e do cenário, diferente da abordagem de outros filmes da unidade. 37

Anteriormente, os filmes lidavam muito mais com a luz da forma como ela se apresentava, ou melhor, da forma como se podia vê-la captada nos filmes em seu aspecto natural no momento em que foi escolhido para ser filmado o plano, já que nenhum artifício de iluminação era utilizado. Um exemplo de iluminação, frente a essas novas abordagens de desenho de luz, é evidente na representação dos alojamentos da embarcação, cuja escuridão ganha ênfase no uso de fontes de luz em parte do cenário e dos atores, escurecendo as demais partes da locação e criando uma relação de contraste (Figura 13).

Figura 13 – Alta relação de contraste na iluminação.

Fonte: Frame do filme North Sea (1938).

Aos poucos, é possível perceber as diferentes abordagens de Chick frente à evolução do trabalho e dos conceitos dos filmes do Movimento de Documentário Britânico, algumas já tratadas anteriormente com a utilização mais aprimorada da iluminação, da decupagem e da composição, que se intensificaram, também, nos trabalhos por ele realizados na Wessex Film Production, já com ênfase nos filmes de longa-metragem. Apesar das disparidades das produções e das temáticas, alguns desses princípios já utilizados por Chick, principalmente em relação à iluminação e aos enquadramentos dos personagens, deslocam-se de contexto e ganham uma ressignificação num universo de produção de filmes.

38

1.3 Os filmes de Chick na Wessex Film Production

Em 1946, desvencilhando-se da Crown Film Unit, o produtor Ian Dalrymple, que assumira o lugar de Cavalcanti, forma sua própria produtora, a Wessex Film Production, com sede na Pinewood Studios. Dentre o seu quadro de funcionários, constavam Pat Jackson e Jack Lee, ambos os diretores que trabalharam com Ian na unidade, assim como o próprio Chick Fowle. O primeiro filme produzido pela companhia foi Woman in the Hall (1947), escrito e produzido por Dalrymple e dirigido por Lee. Chick assina a fotografia com C.M. Pennington- Richards. O ator , que se tornou conhecido mundialmente, é primeiramente apresentado em Esther Waters, sendo que, na companhia, seu papel de destaque fica com Once a Jolly Swagman, filme cuja narrativa envolve corridas de motocicletas em complexos fechados, esporte que estava em alta popularidade na época em que o filme foi feito. Nos trabalhos de fotografia que Chick começa a desenvolver nesses filmes, é perceptível a intensificação do trabalho do desenho de luz, à medida que a encenação e a disposição dos atores vão se diferenciando daquilo que se fazia nos documentários da GPO e da Crown, que geralmente enquadrava poucos personagens no plano, dispondo também de menos elementos cenográficos, principalmente quando necessária a utilização de luz artificial. A diferença desse uso mais elaborado da luz pode ser observada em Once a Jolly Swagman, num plano geral que mostra a família do piloto Bill Fox, personagem de Dirk Bogarde. A disposição dos personagens se dá nas diversas camadas do plano, postando-se desde mais próximos à câmera, até o fundo do cenário, onde se encontra a mãe e o irmão do ator principal (Figura 14).

39

Figura 14 – Encenação em diversas camadas do quadro.

Fonte: Frame do filme Once a Jolly Swagman (1949).

Nas diversas camadas do filme, é possível perceber desde um objeto no primeiro plano à direita do quadro, até a irmã e o pai mais à esquerda, denunciando a pouca importância desses personagens nesse momento da narrativa. Inclusive, parte do personagem da irmã está fora de quadro, mas contribui efetivamente para priorizar a composição dos personagens que são a verdadeira ênfase do plano: a mãe e o irmão de Bill, que parte para a guerra. Cada personagem tem o seu devido tratamento de luz. Inclusive, o cenário possui áreas luminosas e áreas sombreadas, que permitem uma visão volumétrica do quadro, a qual evidencia a área mais luminosa ao centro, em que se encontra o irmão de Bill e para onde os olhares se convergem. Diferentes camadas que envolvem narrativas paralelas também começaram a surgir no trabalho de Chick. Um prenúncio da encenação em profundidade, melhor debatida nas seções seguintes, na qual tanto os acontecimentos do primeiro plano, quanto do segundo plano, são igualmente importantes. No caso da Figura 15, a conversa sobre a corrida de Lag Gibbon, personagem de Bill Owen, e de seu acidente com seus parceiros de trabalho é tão ou igualmente importante ao diálogo, que dará início ao envolvimento romântico entre Bill e Pat, personagem de Renée Asherson, irmã de Lag.

40

Figura 15 – Evidência de encenação em profundidade em dois planos distintos da mesma cena.

Fonte: Frame do filme Once a Jolly Swagman (1949).

O uso de metáforas visuais a partir de artifícios que envolvem a fotografia começa a aparecer de forma mais enfática nos trabalhos de Chick na Wessex, como o exemplo da anunciação da viúva que se utiliza de suas filhas para extorquir dinheiro de famílias abastadas em The Woman in the Hall (Figura 16).

Figura 16 – Longas sombras de caráter tenebroso.

Fonte: Frame do filme The Woman in the Hall (1947).

A sombra das mulheres, que aplicam o golpe ao visitar casas pedindo ajuda monetária, é um prenúncio da obscuridade que envolve a personagem da mãe, ao usar as filhas como um joguete, ou mesmo das faíscas que saem frente a um reparo de uma peça da motocicleta na oficina da equipe dos Cobras, em Once a Jolly Swagman. Outro exemplo é uma montagem em fusão, cuja imagem aparece logo após um beijo caloroso do personagem de Bill Fox e de sua nova amante, para, então, num artifício de 41

rack focus – mudança de foco da objetiva – iniciar uma nova sequência na narrativa (Figura 17).

Figura 17 – Metáfora visual: beijo e faísca.

Fonte: Frame do filme Frame do filme Once a Jolly Swagman (1949).

Por fim, algo de inusitado, referente ao movimento de câmera, surge no filme Once a Jolly Swagman, com o uso do reenquadramento por aproximação ou afastamento da objetiva. Na cena do bar, logo após o primeiro acidente de Lag, a câmera enquadra os veteranos motociclistas e o empresário dos Cobras, que tentam persuadi-lo a ir para casa enquanto que ele deseja se embriagar, quase destratando uma fã que lhe pede um autógrafo, para então se perder na sua própria lamentação (Figura 18).

Figura 18 – Reenquadramento pela aproximação e afastamento da câmera.

Fonte: Frame do filme Once a Jolly Swagman (1949).

42

Todas essas abordagens relatadas durante esses 17 anos de experiência com fotografia, desde os seus trabalhos com documentários, até os longas metragens, são fundamentais para Chick consolidar diversas soluções fotográficas frente às diversas situações narrativas nas quais esteve presente como fotógrafo. Percebe-se já uma diferenciação e uma adaptação de um estilo fotográfico, que, segundo Affonso Beato, deve estar a serviço da narrativa e daquilo que busca o diretor sem nunca se valer de um conceito ou de um estilo próprio (BEATO, 2014). No entanto, algumas abordagens frente às soluções imagéticas encontradas por Chick acabam caracterizando, de alguma forma, o ímpeto do trabalho desse profissional. É possível reconhecer os traços do seu trabalho desde os primórdios das produções em que esteve envolvido, até as suas produções no Brasil, cuja evolução e diversificação se tornam ainda mais evidentes.

1.4 Chick Fowle e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz foi um estúdio cinematográfico brasileiro que atuou no mercado, produzindo e distribuindo filmes nacional e internacionalmente, entre 1950 e 1954. Foi fundada na cidade de São Bernardo do Campo pelo produtor italiano Franco Zampari e pelo industrial Francisco Matarazzo Sobrinho. Durante esse período de quatro anos, foram produzidos 18 filmes de ficção longa- metragem e quatro documentários. Chick atua como fotógrafo nos seguintes filmes da companhia: Caiçara (1950) (Figura 19), Terra é sempre terra, Ângela, Tico-tico no Fubá, O cangaceiro (Figura 20), Floradas na Serra, São Paulo em festa e Na senda do crime, num total de oito produções.

43

Figura 19 – Still de cena do filme Caiçara (1950).

Fonte: MARTINELLI (2005).

Figura 20 – Still de cena do filme O Cangaceiro (1953).

Fonte: MARTINELLI (2005).

A criação da Companhia e de outros estúdios cinematográficos paulistas teve início em 1948, quando o Museu de Arte de São Paulo (MASP), criado por Assis Chateaubriant, organiza em sua instituição o Centro de Estudos Cinematográficos. Em 1949, o Masp promove um seminário de cinema cujo convidado é o cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, antigo companheiro de Chick Fowle no Movimento Documentário Britânico. 44

A ambição da criação de uma produtora de filmes no estado de São Paulo refletia a efervescência de uma ascensão econômica e o surgimento de uma burguesia industrial, parte dela composta por imigrantes que acabaram enriquecendo e se mesclando às elites comerciais e industriais paulistas, o que fomentou o surgimento de uma indústria cinematográfica local. Existia uma aspiração, uma vontade de se ter uma “produção brasileira de padrão internacional”, com filmes de “alto nível”, com uma equipe que fizesse o cinema brasileiro “correr o mundo” (CATANI, 2018, p. 437). Nesse intento, Cavalcanti fica incumbido do cargo de diretor-geral da Companhia que decide trazer técnicos estrangeiros para encabeçar os departamentos, sendo eles: Osvald Hafenritcher (editor e montador inglês), Erik Rasmussen (técnico dinamarquês de som e gravação), Howard Randall (técnico americano de som e gravação), Michael Stoll (técnico inglês de microfone), Henry “Chick” Fowle (diretor de fotografia inglês), Nigel C. Huke (cameraman inglês), Jacques Dehenzelis (cameraman francês), Horace C. Fletcher (técnico inglês de maquiagem), Aldo Calvo (cenógrafo italiano), além dos diretores cinematográficos Adolfo Celi, Tomas Payne e John Waterhouse (MACIEL, 2011). Na Figura 21, a seguir, tem-se um fac-símile do registro de empregado de número 73, de Chick Fowle, na Companhia Cinematográfica Vera Cruz.

Figura 21 –Registro de Empregado – Chick Fowle.

Fonte: Cinemateca Brasileira (2014). 45

Alguns filmes da companhia ganharam destaque internacional, concorrendo desde o princípio aos principais prêmios no exterior:

Os êxitos artísticos vieram com Sinhá Moça, premiado com um Leão de Bronze em Veneza; Santuário, também premiado em Veneza; e O Cangaceiro, Primeiro Prêmio Internacional para Fitas de Aventuras, com Menção Especial para a Música, no VI Festival Internacional de Cinema de Cannes (1953), além de outro prêmio no Festival Internacional de Cine de Punta del Este, Uruguai. O Cangaceiro atingiu dez semanas de exibição contínua em inúmeros cinemas ao mesmo tempo, tendo sido visto por mais de 800 mil pessoas, um recorde absoluto de bilheteria no país até então. É importante ressaltar essa cifra, superior inclusive à das chanchadas cariocas, comédias que possuíam grande empatia com os espectadores. Outro êxito alcançado pela Vera Cruz, embora, mas modesto, deu-se com Sinhá Moça, que estreou em 26 cinemas da capital paulista, no circuito da Companhia Serrador (CATANI, 2018, p. 438).

A própria existência de Vera Cruz fomentou o mercado e instigou a criação de novas produtoras, como a Companhia Cinematográfica Maristela, a Kino Filmes, a Multifilmes S.A., a Cinedistri e até mesmo a PAM Filmes, de Amácio Mazzaropi, que na Vera Cruz acaba achando sua fórmula de sucesso, numa versão paulista de os “Atlânticos” Oscarito e .7 No entanto, a proposta de uma criação de estúdio não era uma empreitada inovadora, a qual já tinha sido realizada por Adhemar Gonzaga, em 1930, quando fundou o Studio Cinédia Companhia Cinematográfica no Rio de Janeiro. Ele tinha o intuito de realizar sua produção aos moldes norte-americanos, tentando trazer, sem sucesso, uma mão de obra especializada do exterior para uma “uma verdadeira missão artística” (MACIEL, 2011). Um grande exemplo de sucesso da época aos moldes de estúdio, no Rio de Janeiro, fora alcançado pela Atlântida Cinematográfica, fundada em 18 de setembro de 1941, por Moacir Fenelon e José Carlos Burle, que estava em seu auge quando do surgimento dos estúdios da Vera Cruz. A Atlântida estabelece uma equação financeira que acaba pendendo mais para as comédias musicais que, denominadas de chanchadas, tinham sucesso de público muito forte, dentre elas Carnaval de fogo (1949) e Aviso aos navegantes (1950), filmes voltados exclusivamente ao mercado (VIEIRA, 2018).

7 Com títulos como: O comprador de fazendas, produção da Maristela de 1951, dirigido por Alberto Pieralisi; Simão, o caolho, dirigido por Alberto Cavalcanti para a Maristela em 1952; Modelo 19, dirigido por Armando Couto para a Multifilmes em 1952; O canto do mar, dirigido por Cavalcanti, em 1954, para a Kino Filmes; Absolutamente certo, produção da Cinedistri, dirigida por Anselmo Duarte em 1957; e Jeca Tatu, dirigido por Milton Amaral para a PAM Filmes em 1959 (GONÇALVEZ, 2010, p. 143). 46

A Companhia Vera Cruz adota um esquema comercial que acaba se implementando como uma concorrência, quiçá uma negação frente à hegemonia da produção cinematográfica carioca, com 18 filmes lançados em 1949, contra apenas dois no estado de São Paulo (Luar do Sertão e Quase Céu), garantindo à capital da república, na época, o “posto de primazia na produção nacional” (MACIEL, 2011). Uma atitude de negação que a Companhia Vera Cruz acaba adotando em relação ao estilo de filme que se vinha produzindo até então, sob a justificativa de uma precariedade técnica resultante de uma produção “artesanal”, “de consumo fácil e aparentemente descartáveis” principalmente em relação ao cinema carioca da Atlântida (CALIL, 2005, p. 165). E se a Vera Cruz traçava suas críticas a determinados filmes e estúdios, a Companhia paulista também não deixa de ser alvo de ataques por parte de um emergente cinema que surge na década de 1960: O Cinema Novo. Aliás, como bem explicita Adilson Ruiz (2002) e Ana Carolina Maciel (2011), essas críticas acabaram sendo implacáveis, por vezes pesadas e carregadas de adjetivos, embasados numa ideologia que tratam a Companhia como um fracasso e até mesmo como uma inimiga do cinema nacional, principalmente em livros como Introdução ao cinema brasileiro (1958), de Alex Viany, e Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), de Glauber Rocha. Grande parte desses discursos vem inflamada pelo combate ao cinema estrangeiro, da discussão do papel do Estado e da militância cinematográfica, sendo esse um debate compreensível do porquê a vinda de estrangeiros para alguns críticos de cinema não foi algo muito bem visto para o cinema brasileiro, mesmo com esses profissionais proporcionando o desenvolvimento de técnicos nacionais frente a um novo modo de produção e de fazer cinema. No entanto, independentemente das justificativas ou atritos históricos, é importante ressaltar que residia nessas disputas, acima de tudo, estilos diferentes de se fazer cinema, que podem ser notados também na Fotografia Cinematográfica, assunto abordado com mais afinco no segundo capítulo, especialmente no trabalho de Chick Fowle. Seu trabalho na Companhia, assim como a própria empreitada da Vera Cruz, dura pouco tempo, devido a diversos fatores extensamente debatidos em diversas obras e autores, em extensa bibliografia. Em grande parte delas existem alguns traços comuns que relatam a situação econômica insustentável que foi criada em torno do sonho almejado pelos seus criadores. Essa situação deveu-se a “[...] empréstimos bancários, altos custos, desorganização da produção, dificuldades de colocação dos filmes no mercado exterior, etc.” (CATANI, 2018, p. 438). 47

Oficialmente, a Companhia encerra seus trabalhos em 1954, mas a modificação do sistema de produção acabou resultando num arranjo paralelo à criação da Brasil Filmes, na qual Chick participou das comédias O sobrado (1956), dirigido por Walter George Durst e Cassiano Gabus Mendes; Osso amor e papagaio (1957), dirigido por Carlos Alberto de Souza Barros e César Mêmolo; Gato de madame (1957), dirigido por Agostinho Martins Pereira; e o western Paixão de gaúcho (1957), dirigido por Walter George Durst. No entanto, a Brasil Filmes também tem um prazo de vida curto e, como bem destaca Ana Carolina Maciel (2011), até os dias atuais não se conseguiu de fato a criação de um cinema industrial que se sustentasse e que perdurasse no Brasil. Dentre muitas tentativas fracassadas de estúdios no Brasil, a Companhia Vera Cruz acaba sendo um alvo recorrente de críticas apesar do sucesso de muitos de seus filmes, além do legado que deixou ao cinema brasileiro, com produções consideráveis para a época e para os dias atuais, com a formação e a qualificação de profissionais do mercado que podem ser notados no premiado cinema publicitário da época, alavancado pelos profissionais estrangeiros que vieram à Companhia, a exemplo do próprio Chick, que se associou a Lyxn Films, de César Mêmolo Jr., em 1957. A empresa Álamo, por exemplo, foi fundado por Michael Stoll, outro inglês que veio com a primeira leva de estrangeiros em 1950. No seu livro Yes, nós temos banana (2011), Ana Maciel escreve um capítulo sobre a Vera Cruz, intitulado “fracasso” entre aspas, porque de fato a pouca duração do estúdio não minimiza em nada as produções que lá foram realizadas e do grande impacto que trouxe para o cinema nacional da época, uma empreitada extremamente ousada e inovadora. Inclusive, a própria autora declara que “[...] caso a Vera Cruz fosse uma tentativa fracassada (ou bem- sucedida) entre tantas outras, talvez não se buscasse tanto explicá-la, julgá-la, enaltecê-la ou atacá-la” (MACIEL, 2011, p. 125). Fato é que, independentemente do que se escreveu ou se escreve a respeito da Companhia, Chick Fowle foi a figura escolhida por Alberto Cavalcanti para chefiar o departamento de fotografia e ele praticamente chega imerso na produção de Caiçara, o primeiro filme da Vera Cruz. Isso mostra a urgência com que as coisas caminhavam, tanto é que o próprio Alberto Cavalcanti chega ao Brasil em 4 de setembro de 1949 e se junta à companhia em 3 de novembro do mesmo ano, para logo em seguida voltar à Europa em busca dos principais profissionais que 48

encabeçariam a Companhia. Quando retorna, já se depara com a decisão de se filmar Caiçara, que seria dirigido por Adolfo Celi8. Em depoimento bem descontraído, Chick fala da sua chegada ao Brasil na época, assim como o seu ingresso no universo da produção cinematográfica da Vera Cruz, o seu novo desafio cinematográfico:

Bom, eu cheguei ao Rio no dia 28 de março (de 1950). Fiquei hospedado uma noite. Cheguei a São Paulo às 10h00m do dia seguinte. Dormi umas quatro horas e logo em seguida peguei um “teco-teco” para descer lá em Ilha Bela, São Sebastião. Peguei uma canoa, atravessei lá para Ilha Bela e desembarquei com um terno de inverno lá da Inglaterra. Evidentemente gargalhadas em tudo em volta: a chegada do inglês todo bonitinho e tal, mas com um terno de inverno lá de Londres, né? E logo em seguida no dia seguinte já estava trabalhando em Ilha Bela, no Caiçara (FOWLE. In: MUSEU DA IMAGEM E DO SOM DE SÃO PAULO).

É interessante se pensar a respeito de como deve ter sido para esse inglês a sensação de atravessar o Atlântico, vindo do Reino Unido, para fazer cinema em um país tão heterogêneo e de proporções continentais como o Brasil. O que será que Chick esperava encontrar? Como, a seu ver, seriam os elementos que caracterizariam para ele essa nova cultura? Como deve ter sido o olhar dessas pessoas para esse estrangeiro e desse estrangeiro para essas pessoas? Além do mais, Carlos Augusto Calil registra observações interessantes em relação a essa primeira empreitada da companhia, já imersa em dificuldades, cuja amplitude de problemas envolvia uma “[...] filmagem com equipamento pesado, diretor inexperiente, equipe multilinguística, em Ilha Bela... há cinquenta anos!” (CALIL, 2005, p. 167). Essas dificuldades eram fruto do que foi almejado pela companhia, que escolhera uma locação para filmar seu primeiro filme, dispondo de um equipamento técnico moderno e adquirindo o que se tinha de melhor na época: oito toneladas de equipamentos exportados pela RCA Victor por avião, direto da fábrica nos Estados Unidos, para os estúdios da Vera Cruz. Entre esses equipamentos havia:

[...] um equipamento completo de transparência (blackprojection), uma truca (máquina especial para produzir efeitos ópticos fotográficos), três dollies (dos quais um com braço de guindaste), duas câmeras “Mitchell” e uma “Super- Parvo”, todas completas e sonoras, uma câmera “Cameflex” e uma “Emyo”, [...] uma cabine elétrica de 350KWA com corrente AC-DC, acrescidos de 300KWA de corrente alternada, três geradores portáteis [...] além de uma

8 Adolfo Celi foi um ator e diretor de cinema italiano que teve grande importância no teatro e no cinema brasileiros nas décadas de 1950 e 1960. A convite de Franco Zampari, Celi, na época ator, foi o primeiro diretor artístico do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1949, e estreou como diretor também na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com Caiçara e Tico-Tico no Fubá, ambos na década de 1950. 49

grande quantidade de lâmpadas-arco e incandescentes (MACIEL, 2011, p. 53).

Na Figura 22, é possível identificar alguns desses equipamentos, como a dolly, em que o assistente de câmera, Calor Guglielme, está sentado. Um aparato que permite à câmera se deslocar sobre um chão liso ou por trilhos acompanhados do operador e do assistente. Sobre ela, uma Mitchell que suporta a bitola de filme 35mm.

Figura 22 – Carlo Guglielme, assistente de câmera.

Fonte: MARTINELLI (2005).

Outros equipamentos fundamentais à fotografia podem ser observados na Figura 23, como os espelhos rebatedores, carregados do barco e postados junto ao trilho sobre o rio, com a função de iluminar os personagens através da luz rebatida do sol, abordagem que será recorrente no trabalho de Chick, em sua fotografia em terras brasileiras.

50

Figura 23 –Equipamentos de fotografia.

Fonte: Cinemateca Brasileira (2014).

É possível notar os geradores sendo descarregados no cais em Ilha Bela, pois sem uma alta corrente de energia não é possível fazer funcionar os refletores de arco voltaico, que precisam de uma potência grande para serem ligados e utilizados em sua máxima capacidade. Apesar da vinda de equipamentos de alta qualidade, a Companhia teve que lidar com adaptações ao que se tinha disponível, o que gerou problemas em algumas produções, como em Caiçara, em relação aos próprios geradores, essenciais à iluminação, na qual Chick, segundo Rex, tinha sido muito específico e meticuloso:

Nós precisávamos dos geradores para as filmagens externas; não geradores quaisquer, mas com características especificas, apropriados para filmagens. ‘Muito bem, vamos comprar’, disse Zampari. Um amigo dele, também um industrial, tinha dois geradores usados à venda, em bom estado. ‘Não servem’ objetou Chick, ‘não são geradores apropriados para filmagem’. Mas Zampari achou que não havia o menor problema, era só explicar como eles deveriam ser e manda-se adapta-los, ficariam ótimos e muito mais baratos. ‘Não vai adiantar’, insistia Chick, ‘assim não funciona’. Evidentemente, os geradores foram comprados, adaptados, readaptados, e nunca funcionaram. Durante todo o tempo em que estive na Vera Cruz, qualquer filmagem externa que fossemos fazer arcava com as consequências da economia dos geradores: gastos de reformas, perda de tempo, irritação, a produção suspensa. E tudo era assim (ENDSLEIGH, 1981, p. 119). 51

De fato, é perceptível que a opção pelo uso de rebatedores nos filmes da Vera Cruz, principalmente em filmagens externas, é muito evidente já em Caiçara, o que traz uma estética particular à fotografia cinematográfica, que em partes pode ter se originado na dificuldade da utilização de equipamentos que efetivamente pudessem gerar luz artificial. Lima Barreto, em O cangaceiro, destaca ainda que os geradores lhe foram negados durante grande parte da produção do filme, tendo que, em suas palavras, aprender a “quebrar pedra” e “a fazer interior – interior!”, com Chick posicionando diferentes rebatedores para conduzir a luz até a cena (BARRETO, 1981). Apesar dessas precariedades, a Companhia contou com uma estrutura física de grandes estúdios e que logo foi associada ao esquema hollywoodiano. No entanto, Amir Labaki (2002) diz que Cavalcanti se espelhou muito mais num modelo europeu de produção, frente às suas experiências na França, e por último nos estúdios da Ealing, na Grã-Bretanha, que eram bem diferentes dos gigantescos estúdios norte-americanos. Uma grande comparação pode ser observada no modelo de produção que objetivava locações em detrimentos de estúdios fechados, sendo que em Caiçara toda a equipe teve que se deslocar para Ilha Bela, no litoral paulista, local de gravação do filme, contando inclusive com a participação da população da ilha. Em relação a essas produções, é importante ressaltar que muito se debate a respeito da brasilidade dos filmes produzidos pela Vera Cruz, com a crítica sendo incisiva em relação à representação do povo brasileiro de forma caricata e irrealista. Antônio Cândido (1980) ressalta que apesar de os filmes possuírem um caráter burguês, o autor fica espantado pela constante “acusação de estrangeirismo”, pois os filmes, apesar dos estrangeiros, eram brasileiros e não menos importantes por conta do nome do sujeito se chamar “Zampari em vez de Souza”. No entanto, grande parte dos filmes desenvolvidos e produzidos por Cavalcanti, e consequentemente por Chick Fowle na Inglaterra, era imantada de discursos referentes a questões sociais, que também seriam transplantados já no primeiro filme Caiçara. Só que a visão frente às produções tinha um objetivo comercial e de circulação internacional e para isso Cavalcanti teve uma grande preocupação com a forma, mas sem deixar de trabalhar uma questão social ou cultural, mesmo desprovido de um discurso crítico e certamente revelando características de diferentes realidades e contextos. A filosofia de base de Cavalcanti sobre a abordagem “social, poética e técnica” implantada no Movimento do Documentário Britânico reaparece também, principalmente, nas abordagens das imagens frente à fotografia cinematográfica de Chick, trazendo uma mistura da 52

narrativa cinematográfica dos últimos filmes feitos na Wessex, com a abordagem naturalista da GPO e da Crown Film Unit. É perceptível, em Caiçara, a presença muito forte dos figurantes e coadjuvantes, frente ao tratamento da imagem. Os entornos, os hábitos, a diversidade do ambiente e da caracterização da narrativa são muito bem mostrados apesar da diversidade dos olhares na construção da textura fílmica. Independentemente da origem daqueles que contribuíram na construção desse discurso fílmico, ele é o “[...] resultado de um determinado contexto histórico e o reflexo desse contexto na produção cultural que lhe é contemporânea” (GONÇALVES, 2010, p. 134). Os filmes da Vera Cruz, em suma, têm a prioridade do foco na narrativa que envolve os personagens principais, independentemente do entorno que os cerca, que, por vezes, surge como uma ambientação ou um pano de fundo para um desenrolar dramático. No caso de Caiçara, acaba sendo a Ilha Bela e o modo de vida de seus habitantes, diferentes dos costumes da cidade grande. Sobre isso, Gonçalves destaca sua percepção sobre a demonstração desses costumes:

[...] verdade que o filme contém várias cenas em que os caiçaras gastam seu tempo ouvindo futebol no rádio, conversando com amigos no bar, descansando sob sombra de árvores, mas também os mostra trabalhando, levando seus barcos ao mar, pescando, lavando roupa, varrendo o chão, enfim, tratando de sua subsistência. Zico e seu povo não negam o trabalho – portanto, não podem ser chamados de preguiçosos – utilizam-no não para o acúmulo capitalista, mas sim na sua função essencial de garantia da subsistência, o que abre espaço em seu cotidiano para o lazer e a interação social (GONÇALVES, 2010, p. 129).

E, certamente, Chick priorizou esses olhares em sua imagem, o que poderá ser visto no segundo capítulo, que mostra não só uma abordagem mais técnica, extensamente ressaltada como sendo a preocupação principal da vinda dos técnicos estrangeiros, mas, também, por meio das soluções fotográficas em prol da narrativa na qual esses elementos culturais também se inserem, afinal, a fotografia cinematográfica está a favor do filme e do enredo que se constrói e da abordagem da direção, que revelam a experiência de Chick Fowle como um forte determinante no resultado das imagens. No entanto, a Vera Cruz, no capítulo da sua história como fotógrafo, esteve a serviço de um tipo de representação do Brasil e de sua cultura, conforme as aspirações daqueles que a fundaram, não necessariamente sendo uma representação basilar da forma de Chick ver o próprio meio no qual está inserido. 53

Muito dessa representação segue tomando outros rumos, com o Cinema Novo, cujo enfoque analítico “[...] era reflexo de um novo contexto histórico e social que surgia no cenário mundial e nacional” e que de modo algum tira a importância da visão da Vera Cruz sobre o Brasil que, mesmo com uma inspiração europeia, é capaz de “[...] construir um discurso cinematográfico repleto de brasilidade e preocupado com nossas questões” (GONÇALVEZ, 2010, p. 143).

54

2 CHICK FOWLE E AS TÉCNICAS DE FOTOGRAFIA CINEMATOGRÁFICA APLICADAS

Entende-se atualmente que a função do fotógrafo cinematográfico é equivalente à do diretor de fotografia e não como fotógrafo still. É importante um parêntese para ressaltar o significado dessa terminologia, pois ainda existe essa confusão quando se faz referência ao profissional artista como fotógrafo. Em inglês, o termo é Cinematographer, que pode ser traduzido ao português como “Cinematografista” ou até mesmo “Cinegrafista”, significados que não abrangem por completo o real trabalho desse profissional. A palavra “cinematografia” vem do grego, numa junção entre kinema (que significa “movimento”), e graphein (“gravar”). Em termos genéricos, o diretor de fotografia ou “cinematografista” é o profissional que usa a câmera e a luz para transformar o roteiro em imagens, de acordo com a dramaturgia do filme. Sua função é tão importante no cinema que Brown afirma que, em grande medida, os conhecimentos do fotógrafo “[...] se sobrepõem aos conhecimentos do diretor” (BROWN, 2012, p. xiii). Utilizando essa linha de raciocínio com cautela, é possível afirmar que o fotógrafo e o diretor possuem responsabilidades específicas na produção do filme. O primeiro tem funções que são técnicas, mas que são utilizadas de acordo com a necessidade de materialidade da narrativa estabelecida pelo diretor, já o segundo lida diretamente com o roteiro e sua conversão literária em imagens e, principalmente, com a encenação. No entanto, ambos estão envolvidos na tarefa singular de um filme, que é a narração por meio da câmera. Esse envolvimento torna o conhecimento do trabalho de ambos fundamentais. Quanto mais o diretor entender de câmera e quanto mais o fotógrafo entender de direção, ou seja, quanto mais houver reciprocidade, melhor será o trabalho colaborativo entre ambos. Nesse sentido que muitas vezes o trabalho do fotógrafo permeia o campo da direção, pela proximidade da relação entre essas duas funções. É muito importante destacar esse aspecto, essa simbiose entre direção e direção de fotografia, pois esse entendimento colabora na condução de toda a pesquisa que envolve a cinematografia de Chick Fowle, principalmente no Brasil, pois sua experiência cinematográfica será de imenso valor para podermos compreender os percursos narrativos dos filmes nos quais ele esteve presente. Esses percursos, essas formas do filme podem ser classificados, segundo David Bordwell (2013), como estilo, que nada mais é que a textura do filme, cujas características estão de acordo com as escolhas feitas pelos cineastas. 55

Se considerarmos o trabalho do fotógrafo e do diretor, no caso específico da Vera Cruz, em seus primeiros filmes, essa noção de estilo ganha outra dimensão, conforme relatado por Rex Endsleigh, no livro Burguesia e cinema, de Maria Rita Galvão: Na medida em que os diretores eram inexperientes, os filmes eram feitos na sala de montagem. Frequentemente chegava pra gente um material que não tinha pé nem cabeça, e Haffenrichter, que era o editor-chefe, ficava desesperado, sem saber o que fazer com aquilo. Se alguém criou alguma coisa nos filmes, foi Haffenrichter. Porque eram as modificações que ele mandava a gente fazer entre as sequencias, e dentro das sequencias, que acabavam dando alguma lógica ao material frequentemente primário que nos chegava às mãos, que simplesmente não dava pra montar (ENDSLEIGH, 1981, p. 125).

Com certo distanciamento e evitando um julgamento de valor, o que pode se observar na fala de Endsleigh é que, a partir do seu entendimento, os diretores ainda não possuíam conhecimento suficiente à condução de todo o processo fílmico e a montagem acabava dando os indicativos à formatação final da obra. Rex também estende essa condição a Chick ao afirmar que “[...] como Haffenrichter fez na sala de montagem, o Chick teve que assumir a responsabilidade do trabalho nos sets de filmagem”, o que de certa forma é compreensível, pois é fato que a larga experiência desses profissionais, trazidos por Alberto Cavalcanti, contribuiu de forma decisiva à estética dos filmes da Companhia, mas que de forma alguma são deméritos dos outros profissionais envolvidos, principalmente os diretores, como Endsleigh dá a entender, afinal, Adolfo Celi era um conhecido ator de cinema e teatro e o próprio Tom Payne tinha larga experiência como assistente de direção (ENDSLEIGH, 1981, p. 125). Além dos conhecimentos que diretor e diretor de fotografia partilham na condução da narrativa, o fotógrafo tem uma realidade de organização que também envolve equipe de câmera, de maquinária e elétrica, além das preocupações relacionadas ao aspecto visual, como composição, exposição do cenário e dos atores, iluminação, lentes e filtros necessários ou outros equipamentos a serem empregados (CLARKE, 1999, p. 151). Com todos esses apontamentos, é possível ter uma noção mais clara do trabalho do fotógrafo e para entender melhor, de forma mais pragmática, algumas bibliografias atuais e da época que acabam por sacramentar essas convenções fotográficas e cinematográficas. A ênfase em aspectos como a luz, o quadro, o movimento, a ambientação e o ponto de vista, discorridos principalmente por Blain Brown (2012), associados ao estilo de cinema praticado, auxilia a compreender algumas escolhas fotográficas de Chick. Não que ele como fotógrafo respondesse a todos esses conceitos que serão expostos aqui, o que seria um tanto presunçoso. Porém, muitas de suas escolhas vão ao encontro de muitas características 56

expostas nas bibliografias deste trabalho, que possibilitam ao leitor um auxílio na compreensão e na assimilação no oficio da direção de fotografia a partir dos próprios trabalhos de Chick, analisando não só as técnicas, mas em como o seu fazer fotográfico influencia diretamente na textura fílmica. Para isso, vale a pena recordar novamente sua origem e trajetória com a GPO Film Unit e a Crow Film Unit, assim como as próprias narrativas de ficção nas quais atuou como diretor de fotografia: outro universo, outro continente, outros esquemas de problema e solução que foram enfrentados. Conhecimentos trazidos, desenvolvidos e aperfeiçoados da feita na qual seus filmes no Brasil foram de desenrolando. Mas quais são esses aspectos de fato? Como identificar em seu trabalho essas técnicas e essas soluções criativas? Para responder a essas perguntas, é preciso não somente entrar nos meandros técnicos da fotografia cinematográfica, mas, também, saber como esses aspectos, aliados ao estilo dos filmes (podendo arriscar aqui também a afirmação de estilo fotográfico ressaltada por Affonso Beato), contribuem no desenrolar da narrativa. Falando em narrativa, Caiçara será a referência inicial de filme para se tratar desses aspectos técnicos, pois, como primeira obra realizada por Fowle em terras brasileiras, acaba servindo de referência para algumas de suas opções criativas logo de início. Essas técnicas utilizadas em Caiçara, assim como outras produções suas, que serão destacadas no decorrer do capítulo, servirão para elucidar melhor suas singularidades como fotógrafo. Assim, inicia-se essa jornada por um dos fundamentos mais importantes e mais perceptíveis quando se fala em fotografia cinematográfica: a iluminação.

2.1 Iluminação

Tudo que nos envolve é imagem-movimento. A imagem é igual a movimento e a matéria é igual à imagem-movimento e são constituintes do universo. “A matéria é o universo das imagens-movimento em ação e reação entre si, antes mesmo da distinção entre corpos, qualidades e ações” (MACHADO, 2009, p. 253). Nesse universo material, a matéria não é nada mais que luz: “[...] a identidade da imagem e do movimento tem por razão a identidade da matéria e da luz. A imagem é movimento como matéria é luz” (DELEUZE, 2009, p. 99). As imagens movimento são figuras luminosas e, para Bergson, “[...] as próprias coisas são luminosas, luminosas em si, imagens de luz sem precisar de nada para clareá-las” (MACHADO, 2009, p. 254). 57

Na fotografia cinematográfica, a exposição do negativo permite que essas figuras luminosas se eternizem no fotograma9. No entanto, a evolução da fotografia como ferramenta criativa fez com que ela deixasse de desempenhar um papel puramente físico, de fornecer luz para expor o negativo e até mesmo por intensificar a luz sobre os atores para permitir a filmagem, tornando-se uma ferramenta estética e narrativa. Frederico Fellini nos traz algo muito mais substancial e igualmente poético sobre a luz no cinema: A luz é a substância do filme e é porque a luz é, no cinema, ideologia, sentimento, cor, tom, profundidade, atmosfera, narrativa. A luz é aquilo que acrescenta, reduz, exalta, torna crível e aceitável o fantástico, o sonho ou, ao contrário, torna fantástico o real, transforma em miragem a rotina, acrescenta transparência, sugere tensão, vibrações. A luz esvazia um rosto ou lhe dá brilho... A luz é o primeiro dos efeitos especiais, considerados como trucagem, como artifício, como encantamento, laboratório de alquimia, máquina do maravilhoso. A luz é o sal alucinatório que, queimando, destaca as visões [...] (FELLINI, 2000, p. 182).

Definitivamente, a luz é a substância do filme. No entanto, o objetivo não é se demorar no seu conceito, mas, sim, entendermos como a iluminação é indiscutivelmente importante à arte do cinema. Segundo Blain Brown, não existe uma maneira certa de se iluminar uma cena, mas o que se pode fazer é “[...] tentar identificar o que queremos que a iluminação faça por nós” (BROWN, 2012, p. 104). Nesse sentido, esse autor destaca pontos importantes para se levar em consideração em relação à iluminação no cinema: clima e tom10 (conteúdo emocional); intervalo completo de tonalidades e de gradações de tom; controle e balanço de cores; profundidade e dimensão: primeiro plano, planos intermediários e plano de fundo; forma e dimensão dos temas individuais; separação dos temas em relação ao fundo; textura; exposição11. Grande parte da fundamentação da luz de Chick Fowle tem origem no conceito clássico de iluminação de cinema predominante na década de 1950, que envolve até quatro tipos básicos de iluminação: ataque, compensação, contraluz e luz de fundo. Ainda que esses quatro tipos não apareçam simultaneamente em uma mesma cena, era muito comum o uso desses artifícios de iluminação, principalmente, em cenas filmadas em interiores e estúdios.

9 Cada impressão fotográfica ou quadro unitário de um filme cinematográfico. 10 Entenda-se tom como tradução para mood em inglês, que tem uma explanação mais abrangente. 11 Muitos desses pontos são coincidentes nas chamadas ferramentas conceituais que o próprio autor expõe em seu livro: o quadro, a luz, a objetiva, o movimento, a ambientação e o ponto de vista que nortearão os tópicos referentes ao trabalho do fotógrafo. 58

Na natureza, uma árvore é iluminada por uma fonte de luz, que é o sol, e ele por si só já fornece aos olhos humanos a noção de tridimensionalidade, identificada pelas diferentes reflexões em torno da árvore e, principalmente, porque a visão humana tem uma percepção muito grande das diferentes densidades de luz, gerando a sensação de diferentes planos e profundidade simultaneamente. Com a câmera, essa percepção torna-se diferente. Uma única luz nem sempre dá o resultado desejado em relação à imagem que se quer obter, principalmente, levando-se em consideração como eram feitos os filmes naquela época. Para isso, além da fonte principal de luz (keylight), os fotógrafos adicionavam à cena luzes de compensação (fill light), uma luz lateralizada vinda de trás (kicker) e a contraluz, vinda no topo da cabeça (back light). O uso do kicker e da contraluz se dava principalmente pela ausência do matiz12 das cores no filme preto e branco, sendo elas determinadas somente pela saturação13 ou luminosidade, que muitas vezes poderiam ter valores muito parecidos, ou até mesmo coincidentes, o que poderia acabar numa sobreposição dos elementos da imagem. Em relação à fonte principal de luz, entende-se que

Esse primeiro refletor com que se ilumina um ator é chamado de ataque, os franceses, que começaram a fazer cinema antes dos americanos, chamam-no de ataque. Em português, a mesma palavra existe, e com o mesmo significado. É prático usá-la. Os americanos chamam de keylight. Ou seja, luz básica (MOURA, 2009 p. 32).

Essa luz principal ou keylight é a luz predominante no sujeito e não necessariamente a mais intensa, mas a que destaca a forma do objeto ou sujeito principal da cena. Geralmente, pensa-se no keylight como uma luz vinda de frente, no entanto, podem existir muitas variações na direção dessa luz. Uma maneira de se pensar a luz principal é levando-se em conta que normalmente ela é a que “cria uma sombra no sujeito” (BROWN, 2007, p. 44). Pode haver uma luz principal para toda a cena ou para cada ator especificamente, ou até mesmo uma combinação de ambos.

12 Referente à cor “pura”, sem adição de branco ou preto. 13 Saturação ou grau de pureza da cor é um parâmetro que especifica a qualidade de um matiz de cor pelo grau de mesclagem do matiz com a cor branca. Quanto menos cinza na composição da cor, mais saturada ela é. A redução da saturação transforma a cor em cinza médio. Diminuindo a saturação, uma imagem adquire características preto e branco. 59

Figura 24 – Evidência do Keylight em plano do filme Caiçara.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Figura 25 – Evidência do Keylight em plano do filme Caiçara.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

No caso das Figuras 24 e 25 acima, é possível identificar a luz principal pela observação do rosto dos atores, comumente priorizados na hora de iluminar o sujeito. O lado do rosto mais iluminado revela-nos a origem dessa luz em relação à câmera, que na Figura 24 vem da esquerda para a direita do quadro, e na Figura 25, da direita para a esquerda, sempre posicionada pensando no ângulo de visão do personagem e na sua localização espacial no plano. O desenho da sombra no nariz, no pescoço e na face lateral nos fornece pistas em relação ao ângulo de incidência e posição dessa iluminação, que nas imagens apresentadas está em torno de 45º de cima para baixo e não tão lateralizada em relação aos personagens, pois o lado aposto do rosto iluminado pela luz principal está parcialmente exposto pelo keylight. Chick Fowle e seu departamento de fotografia chegaram a desenvolver na Vera Cruz esquemas de iluminação e posicionamento de câmera para os atores, a fim de obter os 60

melhores resultados. Além de Chick, fotografaram também filmes da Vera Cruz: J. M. Beltran, Nigel C. Huke, Ray Sturgess, Edgard Brasil, Ugo Lombardi e Edgar Eichhorn.

Figura 26 - Teste de fotogenia.

Fonte: MARTINELLI (2005).

Nas imagens da Figura 26, a partir das observações feitas na própria imagem, é possível perceber a preocupação minuciosa em relação à fotografia na companhia Vera Cruz. Nos registros e documentação de suas produções, os resultados foram extremamente valiosos para o conhecimento dos técnicos e dos artistas. Percebe-se a riqueza de detalhes e do apuro técnico quanto à preocupação com o rosto, os lábios e os olhos da atriz tanto no âmbito da iluminação principal, quanto da objetiva e do ângulo de câmera a ser usado na cena. E, ressaltando essa preocupação, um dos aspectos mais importantes quando se fala de uma iluminação principal refere-se à direção dessa luz:

Uma luz vinda de uma direção causa um tipo de relevo [...]. A direção da luz tem a capacidade de fazer aparecer o relevo do rosto. Modelar. Dar forma desejada. Arredondar ou tornar oval. Alongar para a direita ou para a esquerda. A direção modela, independentemente da distância, cor ou tamanho da fonte. (MOURA, 2009, p. 50).

61

Uma fonte de luz posicionada frontalmente ao objeto ou sujeito em relação à câmera resulta numa configuração diferente de uma luz posicionada lateralmente. Essa luz lateral em relação à câmera é capaz de imprimir mais forma e relevo ao objeto14. Na Figura 27, comparando-se as imagens em primeiro plano, observa-se que, na imagem da esquerda, a luz foi posicionada bem próxima ao eixo da câmera, devido à pouca sombra do queixo que incide no pescoço. A fonte de iluminação praticamente ilumina todos os elementos captados pela câmera. Já na imagem da direita, é possível identificar os relevos e as formas devido ao posicionamento da iluminação de forma bem lateralizada em relação ao eixo da câmera.

Figura 27 - Fotograma mostrando o efeito do keylight.

Fonte: BORDWELL (2007).

Nas imagens da Figura 28 e 29, os conceitos que envolvem a luz principal tomam diferentes proporções. Afinal, como considerar o posicionamento dessa luz em relação à cena a ser filmada de acordo com a sequência narrativa? O fotógrafo Edgar Moura, em seu livro 50 anos luz, câmera e ação (2009), faz uma observação importante em relação à questão acima, ou seja, do posicionamento da luz em relação à câmera, afirmando que essa posição ideal é “[...] para lá do nariz da atriz, a luz iluminando seus dois olhos e se a câmera estiver à direita da atriz, a luz estará a sua esquerda” (MOURA, 2009, p. 59). Segundo Brown, essa denominação da luz no lado oposto à direção da câmera e do rosto da atriz é denominado de luz de upstage. Se a luz estiver incidindo lateralmente, na mesma direção do rosto que se “mostra” para a câmera, ela é denominada de downstage, que seria “para

14 Um ataque eficaz produz uma sombra. Mesmo se for usado mais de um refletor, ele deve produzir uma sombra. 62

cá do nariz da atriz”, e não para “lá” como denomina Moura. Se assim fosse, o rosto estaria quase iluminado de frente e teria pouco relevo.

Figura 28 - Posição da luz em relação à câmera: (1) Luz de Upstage; (2) Luz de Downstage.

Fonte: BORDWELL (2007).

Figura 29 - Exemplo de luz de Upstage no plano do filme Caiçara.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

A luz principal por si só não é suficiente para criar o mood15 da cena e, para isso, outras luzes são necessárias à composição dela. Ao observarmos novamente as Figuras 24 e 25, poderemos estabelecer um comparativo a partir dos rostos dos atores e perceber que há outra luz pertencente aos esquemas básicos de iluminação. Na Figura 24, a sombra criada pela luz principal da personagem da Diretora é mais escura que a sombra criada pela luz principal do rosto de José Amaro, na Figura 25, o que se dá devido ao uso da luz de compensação.

15 Entenda-se mood como uma tradução para clima, de uma forma menos precisa. O mood pode evocar sensações alegres, soturnas, aconchegantes, sufocantes, dentre outros exemplos. Para efeito, a luz principal, ou a ausência dela, fala muito sobre a característica geral da cena. 63

O ataque pode ser a única luz da cena, no entanto, se as sombras deixadas por essa luz principal forem compensadas com alguma outra fonte de luz, essa luz é chamada de luz de compensação ou preenchimento. A luz de compensação é aquela que faz um balanceamento com o contraste da iluminação da luz principal.

A função do refletor de compensação é esta: iluminar as sombras. A gradação que se vai usar, a natureza e a intensidade dessa iluminação das sombras, é uma das grandes dificuldades e um dos desafios da fotografia. O desafio está em resolver qual a relação entre a luz de ataque e a de compensação, saber resolver que intensidade terá uma e outra e decidir a relação entre as duas, saber até que ponto será clara a luz que ilumina o rosto do ator e até que ponto será escura a sua sombra (MOURA, 2009, p. 35).

Comumente se refere à luz de compensação como uma luz suave, que estará posicionada perto da câmera e do lado oposto da luz de ataque. No entanto, isso não é uma regra e, sim, uma forma simplista de encarar a compensação. Essa luz pode vir de qualquer ângulo e ser trabalhada de inúmeras formas pelo fotógrafo. A luz de preenchimento pode ser usada a qualquer momento, no entanto, nota-se facilmente que Chick faz um uso evidente dessa luz quando seus quadros estão em planos médios, close-ups e planos conjuntos, muito provavelmente pelo fato de as sombras nos rostos dos personagens serem mais perceptíveis quando a câmera está mais próxima do sujeito (Figura 30).

Figura 30 - Adição da luz de preenchimento no filme Caiçara.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950).

64

Em planos mais abertos, a quantidade de informações e a dimensão dos sujeitos têm uma relação de importância diferente de planos médios e fechados. Assim, muitas vezes, não existe a necessidade do uso de uma luz de preenchimento. Porém, quando a câmera se aproxima, esse desafio de resolver essa relação de luz de ataque e preenchimento, exposto por Moura, torna-se evidente, pois está diretamente relacionado ao contraste que se busca na cena. A Figura 31 é um exemplo claro da percepção do uso da luz de preenchimento. A luz principal é a luz solar que incide lateralmente nos personagens, vinda da esquerda para a direita do quadro, bem perceptível na imagem da esquerda da figura, pela sua incidência em vários elementos da cena, principalmente, no mastro do barco que está em primeiro plano.

Figura 31 - Adição da luz de preenchimento no filme Caiçara.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Se comparado ao plano conjunto, evidenciado na Figura 32, percebe-se o uso da luz de preenchimento (principalmente se repararmos no rosto da personagem interpretada por Eliane Lage), pois agora o objeto de interesse são os personagens de Marina e José Amaro, personagens que, sem essa compensação, estariam com os rostos bem contrastados devido à forte incidência e à direção da luz principal. É possível notar e a incidência dessa luz de compensação é igualmente forte, o que caracteriza o uso de espelhos rebatedores, elementos muito utilizados por Chick em externas, pois eles refletem e aproveitam a indecência da luz do sol, redirecionando-a com a mesma intensidade, podendo ser suavizados com elementos colocados à sua frente.

65

Figura 32 - Adição da luz de preenchimento no filme Caiçara.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950).

A contraluz é a luz posicionada atrás do sujeito, comumente direcionada para iluminar o topo da cabeça e muito utilizada em diferentes abordagens estilísticas, pois é uma luz que tem a características mais artificiais (Figura 33).

Figura 33 - Iluminação de contraluz e Kicker.

Contraluz Kicker

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Em relação a esse aspecto, adeptos do uso da luz mais naturalista do cinema só utilizam esse tipo de iluminação quando ela se apresenta no espaço de forma natural. Dentro de uma cena, a iluminação no sujeito depende da sua relação com o cenário, sendo que ele pode parecer “chapado”, sem uma distinção precisa dos contornos, dependendo 66

do ambiente. A contraluz “nasce” com esse intuito de fazer o espectador distinguir os elementos do sujeito e do espaço na cena. Essa luz pode ser chamada também de “luz de cabelo” ou “luz de ombro” (BROWN, 2012). Em adição a esses três tipos de iluminação citados, existem também o kicker e rims, que são muito confundidas com a contraluz: “o kicker é uma luz que vem de trás do sujeito, mas pegando mais o lado do rosto e não só o topo da cabeça. Rim é semelhante ao kicker, mas não ilumina tanto o lado do rosto, servindo mais para criar um contorno que define a forma” (BROWN, 2007, p. 45). A luz de fundo pode ser denominada como luz que ilumina o cenário. No caso de Caiçara, o uso dessa luz é feito tanto em locações internas quanto nas externas, que compõem a cena, não sendo difícil notar os desenhos das paredes, plantas iluminadas e/ou paisagens claras vistas através das janelas ou no próprio ambiente. Mesmo durante cenas caracterizadas pela luz noturna, é possível perceber a paisagem, a geografia e os elementos ao redor. No que diz respeito à natureza da luz utilizada por Chick em Caiçara, sua predominância é pela utilização de uma luz dura, pontual, com uma sombra bem definida, seja ela proveniente da luz do sol (sem a interposição de qualquer elemento que modifique sua natureza); seja da luz incandescente, cuja iluminação provém diretamente do filamento aquecido; seja ela a luz de um refletor, direcionada por um Fresnel16, ou simplesmente concentrada por um facho que emane de uma cabeça de luz. Quanto aos refletores utilizados, diversos são os seus tipos, porém, pelas suas características, todos incidem e produzem uma luz de natureza dura, diferenciados na intensidade e no tamanho do facho de luz. Em uma cena “externa dia”, para a luz artificial utilizada ser eficaz, é preciso uma quantidade grande de refletores ou um refletor de grande intensidade, pois a exposição normalmente ajustada à luz do dia tem no sol uma força descomunal se comparada à luz artificial de cinema utilizada na época. Em uma cena “interna dia”, um refletor precisa pode ter uma intensidade menor, sendo que Chick normalmente faz uso de refletores com fachos direcionais para atender somente aos objetos e aos sujeitos de forma individualizada.

16 Unidades Fresnel são lâmpadas com lentes. A maioria das lâmpadas de cinema emprega a lente de Fresnel do tipo escalonada, a qual tem a função de direcionar o facho de luz e possibilita aumentar ou diminuir o facho conforte ajuste do refletor. 67

Um mesmo refletor usado para uma “externa dia” dificilmente será utilizado em uma interna, pois sua intensidade é muito forte e poderá causar problemas de fotometria e de exposição. A exposição na fotografia cinematográfica não envolve somente a percepção de “muito escuro” ou “muito claro”, mas, sim, a habilidade de traduzir de forma técnica e criativa os diversos elementos da cena: mostrar tudo aquilo que se deseja mostrar; ocultar tudo aquilo que se deseja ocultar. Essas escolhas envolvem saberes técnicos próprios da fotografia, que são: a quantidade de luz que incide sobre a cena; a abertura de diafragma (válvula que permite a entrada de mais ou menos luz na objetiva); a velocidade do obturador17 (quanto mais tempo o obturador permanecer aberto, mais luz incide sobre a película e vice-versa); ASA ou ISO18. Na Figura 34, é possível destacar a habilidade de Chick em ajustar a exposição do plano para atender desde as áreas mais escuras, acentuadas pelas sombras dos objetos, até as áreas mais claras, representadas pelo avental do Médico.

Figura 34 - Ajuste da exposição do plano no filme Caiçara.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950).

17 O obturador é um dispositivo mecânico ou digital que fica dentro da câmera e controla a luz que chega ao filme ou ao sensor, determinando o período de tempo que permanece aberto. O filme ou o sensor precisa estar completamente imóvel. Quando a câmera movimenta o filme para colocá-lo no próximo quadro a ser exposto, o obturador deve permanecer fechado, até ser aberto novamente para expor o próximo fotograma. 18 O índice ASA (ou ISO, como é internacionalmente conhecido) mede a sensibilidade do filme à luz. Quanto maior o índice ASA, mais sensível à luz é o filme. Quanto mais sensível o filme, menor a quantidade de luz que você precisa para registrar uma cena. Usar filme de ISO mais alto é uma alternativa fácil, mas tende a ser mais granulado e tem menos resolução que filmes de baixa velocidade, que eram filmes mais comuns na época e que necessitavam de mais luz para imprimir a imagem na película. 68

As próprias coisas são luminosas, já dizia Bergson (2006), mas a refletância de cada uma depende, em suma, do material que compõe esse objeto. Essas sensações visuais resultam da luz que incide nesses objetos e que depois se reflete na retina, ou, no caso do cinema, na película cinematográfica. É comum em testes de câmeras a utilização, por exemplo, de um veludo escuro para representar uma exposição em níveis mais baixos e algum objeto de aço inoxidável para representar a exposição em níveis mais altos. O veludo, além de ser um material escuro, tem um índice muito baixo de refletância, tornando difícil a percepção do seu material, mesmo utilizando uma luz de intensidade muito alta. Por outro lado, qualquer luz que incida em uma jarra de aço, por exemplo, resultará na reflexão desse brilho em intensidade similar a essa luz, além de refletir a imagem em seu entorno. A exposição, então, permite ao fotógrafo ajustar os objetos mais claros e mais escuros, se assim desejar, em uma sensibilidade permitida pela película. Esse ajuste técnico tem como propósito a busca pelo intervalo completo de tonalidades, que se refere à escala de cinza da imagem, fazendo uma referência direta à latitude19. Imagens com maior gradação são mais confortáveis aos olhos e trazem maior impacto e realismo, com exceção de casos nos quais a intenção vai em direção contrária a esse conceito. Na Figura 34 é possível identificar a maioria dos elementos que trazem essas diferentes gradações de cinzas associados à forma como os atores e os objetos são iluminados. Em relação à Figura 35, por exemplo, podemos elencar uma gradação que possibilita compreender melhor esse intervalo de tonalidades.

Figura 35 - Variações de tons entre preto e branco.

Fonte: Ilustração criada a partir de frame do filme Caiçara (1950).

19 Relação com o intervalo de brilho do tema em termos de valores monocromáticos (Sistema de Zonas de Ansel Adams). 69

Essas diferentes tonalidades, assim como a utilização do esquema de iluminação, contribuem para adicionar forma, profundidade e dimensão. Como falamos nos esquemas básicos de iluminação, no que cabe à forma, uma luz lateral ou que venha de trás revela a forma de um objeto, diferentemente de uma luz frontal, que comumente dá somente uma impressão de bidimensionalidade ao que está sendo iluminado. Essa noção de volumetria através da iluminação é uma busca por se assemelhar à percepção da visão humana que “[...] depende de várias pistas para determinar a profundidade, a forma e a distância dos objetos: como a luz e a sombra incidem em um objeto são partes significativas desse processo” (BROWN, 2007, p. 38, tradução nossa). No filme preto e branco essa preocupação torna-se mais minuciosa no que tange à iluminação, por conta do intervalo de tonalidades. O autor John Alton, em seu livro Painting With Light (1997), escreve a respeito de diversos procedimentos e “regras” em relação à iluminação e enfatiza exatamente essa busca pela volumetria por meio da iluminação e, inclusive, destaca o que era considerado iluminar “certo” e “errado” segundo os parâmetros cinematográficos de Hollywood. Na Figura 36, notam-se os resultados e os problemas que poderiam acontecer nos diferentes elementos da cena, em filme preto e branco, caso não fossem iluminados da maneira “correta”20.

Figura 36 – Efeitos da iluminação sobre os objetos claros e escuros.

Fonte: ALTON (1997).

No caso da Figura 36, na imagem da esquerda, a iluminação é considerada incorreta, pois os objetos parecem “chapados”. Já na imagem da direita, ao contrário da primeira, a

20 Utiliza-se entre aspas os termos “regras”, “certo” e “errado”, “correta” porque era uma visão considerada na época como forma acertada de se fazer a fotografia cinematográfica. No entanto, já foi destacado que não existe uma maneira correta na abordagem da fotografia, sendo que diversos fatores devem ser levados em conta. 70

iluminação provoca maior sensação de profundidade do objeto em relação ao fundo. Por isso esse tipo de iluminação é considerado como correta, ou a mais indicada conceitualmente, conforme exposto por Brown (2007), quando aborda o conceito de forma, em seus fundamentos de iluminação. Na Figura 37, tem-se um exemplo de uma cena do filme Caiçara, semelhante ao proposto por Alton. Mesmo se o figurino fosse escuro, como no caso de José Amaro (Figura 32), ainda existe a preocupação em diferenciar a gradação do cinza dos materiais, não só com a escolha do figurino, mas com o cenário, considerando a intensidade de luz que incide nos atores e nos objetos.

Figura 37 – Exposição em materiais com alta reflexão de luz.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950).

Essa característica de volumetria tem uma ligação direta com o conceito de separação que, para Brown, está diretamente vinculada em destacar o sujeito do fundo apresentado no plano, sendo que o uso frequente para essa abordagem é a utilização da contraluz. Outra forma de se alcançar esse resultado é iluminando o fundo ou mais escuro ou mais claro que o tema mais próximo à câmera. Essa separação pode ser intensificada pela criação de diversas camadas (layers) para a cena, criando, então, uma sensação de profundidade. Segundo Jacques Aumont, a impressão de profundidade no cinema é aparente e singular, resultante da “combinação de procedimentos” utilizados, o que comprova “[...] com eloquência a inserção particular do cinema na história dos meios de representação” (AUMONT, 2012, p. 30). 71

A iluminação é um desses procedimentos e essa sensação de profundidade não está somente atrelada aos elementos no écran. Transformar uma tela plana e deixá-la o mais tridimensional possível é dar-lhe profundidade, forma e perspectiva. A ilusão da tridimensionalidade e da profundidade é a soma da disposição de pessoas e objetos divididos em conjuntos de vários planos com uma distribuição adequada de luzes e sombras. Segundo Alton (1997), como a tela do cinema está postada em um ambiente escuro e distante do espectador, tem-se ali uma relação prévia de sensação de profundidade. Para dar continuidade a essa profundidade na tela, a progressão de áreas escuras para áreas mais iluminadas deve ser seguida. No plano, o local que parece ser o mais distante deve ser o mais leve, mais claro e mais iluminado se comparado ao que está mais perto em relação à câmera; a ilusão é realizada empregando uma escala completa de tons do preto ao branco (Figura 38).

Figura 38 – Sensação de profundidade a partir da gradação de cinzas.

Fonte: ALTON (1997).

Em uma cena, dificilmente se conseguirá realizar essa disposição de forma totalmente gradativa. No entanto, ao observarmos novamente a Figura 35, que trata das variações de tons, é possível reiterar esse pressuposto da escala do preto ao branco levando em conta a disposição dos objetos mais próximos às linhas do quadro até os elementos restantes. As sombras provenientes da iluminação principal, dos objetos, como o caderno postado na mesa, a roupa da Diretora, sua pele, o fundo iluminado e a textura criada na parede, que denota uma sensação de vinheta no cenário e na cena, possibilitam concentrar o olhar na tela e dar continuidade ao que seria o escuro da sala de cinema. 72

Essa textura que dá essa impressão de vinheta ou vignettes está presente em diversos planos do filme e pode ser considerada uma espécie de assinatura de Chick Fowle no que diz respeito à iluminação de fundo. No entanto, outras características de textura estão muito presentes nos diversos planos de Caiçara. Sobre esse tema, a ênfase é nas texturas produzidas pela luz que incide nos objetos e sujeitos do plano. Poderia se falar de textura da película do filme, até mesmo dos figurinos, no entanto, por ora, é válido ater-se àquelas destacadas pelo fotógrafo como sendo um aspecto criativo proporcionado por meio da luz. Sendo assim, a textura é percebida pelas sombras dos objetos. Por isso, uma luz frontal quase nunca demonstra essas possibilidades devido ao fato de a iluminação estar no eixo da câmera como um flash de máquina fotográfica. Quanto mais a luz é posicionada lateralmente ao tema, mais revela sombras e com as sombras destacam-se as texturas. Ainda em relação às Figuras 34 e 37, referente à sala da Diretora, é possível identificar as camadas e as separações dos temas, numa diferenciação dos objetos e dos personagens, e, especificamente, em relação às paredes do cenário. Ao olhar para elas, ver-se- á que nunca aparecem totalmente lisas, sempre acompanhadas de objetos, como plantas, quadros e armários, sendo possível identificar um tratamento de luz com esses elementos. As paredes nunca estão totalmente iluminadas de cima abaixo, tendo sempre um degradê de tonalidade mais escura próxima ao que seria o “teto” do cenário. Isso, ao mesmo tempo em que reforça a direção da luz, sempre de cima para baixo, possibilita a criação de texturas e sombras. Cada espaço, cada ambiente do plano, é tratado de forma singular, como é possível perceber na Figura 37, com a identificação da vegetação depois da janela (mesmo que um pouco superexposta), com as paredes próximas à janela, as plantas e as demais camadas até a camada dos personagens, com diferentes intensidades de luz, que criam intervalos de tonalidades que destacam cada elemento do plano. Vale ressaltar que as sombras dessas paredes não são duras como as percebidas nos personagens. É muito comum na fotografia cinematográfica o uso de bandeiras para controlar a projeção de sombras, a fim de evitar a dispersão da luz e concentrá-la em determinados pontos ou até mesmo utilizar esse artifício para bloquear reflexos no interior da objetiva. Nesse caso, o uso das bandeiras permite suavizar as sombras incidentes, principalmente se projetadas perto do refletor ou a uma distância que não seja tão próximo ao elemento que esteja iluminado (Figura 39).

73

Figura 39 – Iluminação gradativa das camadas do plano.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950).

Dentre alguns conceitos e estratégias exemplificados aqui, um fator muito importante que o diretor de fotografia tem em mente ao fotografar um filme é referente à unidade fotográfica, que, em suma, envolve alguns conceitos de luz apresentados até então. Essa percepção da unidade fotográfica ao longo do filme abre um novo precedente de discussão referente à continuidade. Muito se fala em continuidade referente às ações no plano e nos raccords, mas a continuidade fotográfica é tão importante quanto. Por isso, retornaremos a esse conceito mais amplo no decorrer do capítulo. Por ora, vale a pena a abertura de um novo tópico chamado Ambientação e Movimento.

2.2 Ambientação e Movimento

Por que não tratar desses aspectos de forma separada? Essa deve ser a primeira pergunta do leitor referente a esse tema. A explicação se dá pelo fato de que tratar esses itens separadamente, como a luz, é torná-lo mais didático. A luz é extremamente importante, senão o mais importante trabalho no qual se debruça o diretor de fotografia. Quanto aos demais aspectos, a intenção é associar esses conceitos à imagem assistida nos filmes. A ambientação “[...] na narrativa verbal, significa transmitir informações ou antecedentes importantes para o público. Ela está no coração da narrativa visual” (BROWN, 2012, p. 10). A referência a planos cinematográficos, como plano geral, médio ou fechado, ou o plano de ambientação, é muita utilizada para situar o espectador, ou seja, é uma forma de dizer “onde estamos”. 74

Esse plano é facilmente identificado em narrativas clássicas, quando em planos abertos é mostrado o local no qual se passará a narrativa, normalmente uma cidade ou um espaço geográfico específico. Outra forma de ambientar o espectador é pela organização da geografia dos espaços: “[...] estabelecer a geografia é útil para que o público conheça o ‘estado das coisas’ dentro de uma cena. Isso os ajuda a se orientar e evita qualquer confusão que pudesse desviar sua atenção da história. É claro que há momentos em que se deseja manter o layout um mistério” (BROWN, 2012, p. 18). Normalmente, essa orientação vem associada a diferentes formas de estabelecer continuidade, e de movimentos de câmera, que muitas vezes direcionam e revelam elementos no plano. Ao se considerar a continuidade aliada à ambientação, é possível elencar alguns métodos expostos por Mascelli (2010), que estão ligados diretamente ao trabalho de direção, sendo essa dinâmica relacionada a correspondências a corpos em movimento e à estática de corpos em repouso. A dinâmica pode ser dividida em constante (da esquerda para a direita ou vice- versa), contrastante (da direita para a esquerda e da esquerda para a direita) e neutra (afastando- se ou aproximando-se da câmera). Direção constante é aquela que representa o movimento sempre em uma direção (Figura 40).

Figura 40 – Continuidade dinâmica.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

75

Em Caiçara, quando Manuel persegue Marina, em meio a uma festividade na vila, (Figura 38), os personagens se movimentam no quadro sempre da esquerda para a direita e assim permanecem desde o começo da sequência até o final, na chegada de Marina à casa de Felicidade. Isso se faz com exceção de alguns planos neutros dos dois adentrando a multidão. Se houvesse um desencontro desses movimentos, de Manuel deslocando-se numa direção e Marina deslocando-se noutra, a impressão de perseguição acabaria sendo substituída por uma percepção de encontro ou de afastamento, dependendo da direção com que ambas as personagens deslocam-se no quadro. Um dos fatores fundamentais que estão aliados à ambientação e ao direcionamento é o princípio da linha de 180º, eixo imaginário entre dois personagens, ou entre o espectador e os acontecimentos da cena, sendo definida por um olhar, um movimento, uma ação específica, pela entrada ou saída de quadro ou pela geografia física dos acontecimentos (BROWN, 2012). Sem aprofundar muito nesse aspecto, é importante o conhecimento profundo a respeito do eixo e de suas considerações, sendo que elas dificilmente se exaurem e “[...] mais importante ainda, somente quando compreendemos todo o sistema teórico é que podemos realmente saber quando é permissível quebrar essas regras” (BROWN, 2012, p. 83). Não deixa de ser comum a discussão de eixo entre fotógrafo e diretor, ou até mesmo do assistente de direção ou continuísta no momento em que executa a filmagem, sempre com o objetivo de melhor orientar o espectador. A emancipação da câmera, não só de sua posição, mas de movimentos que podem ser criados com diferentes aparatos, trouxe para o cinema possibilidades muito particulares. “O movimento em si, o estilo, a trajetória, o ritmo e o timing em relação à ação, tudo contribui ao estado de espírito e à sensação da cena. Eles adicionam subtexto e conteúdo emocional independentes do tema” (BROWN, 2012, p. 210). Segundo Brown (2012), o movimento está presente de duas maneiras na narrativa cinematográfica, sendo a primeira delas motivada por alguma ação (como uma caminhada, um levantar da cadeira) ou na intenção de revelar novas informações ou uma nova visão da cena. Os movimentos de câmeras típicos do cinema são: panorâmica (movimentos horizontais), tilt (movimentos verticais), aproximação e afastamento (com trilhos ou dolly) e o zoom (aproximação ou afastamento por mudança ótica). Marcel Martin, em seu livro Linguagem cinematográfica (2011), um dos importantes livros a respeito de cinema, destaca as diversas funções do movimento como expressão fílmica: o acompanhamento de um personagem ou de um objeto em movimento são claramente motivados pela ação dele, como na Figura 41 (imagens 1 e 2), nas quais a câmera 76

segue Manuel e Marina, que caminham pela praia; a criação da ilusão do movimento de um objeto estático, como o plano de apresentação do orfanato (Figura 41, imagens 3 e 4), quando o afastamento em travelling out causa no espectador uma primeira impressão da aproximação de uma grade para depois estabelecer uma relação de afastamento da câmera em relação ao portão de entrada; a descrição de um espaço ou de uma ação com um conteúdo dramático particular para o filme, como o caso do travelling lateral (Figura 41, imagens 5, 6, 7, 8, 9 e 10), que acompanha a chegada de Marina e José Amaro na Ilha, mostrando o espaço rústico da vila e do conglomerado de habitantes que observam e irão sempre observar atentamente os passos do casal21.

Figura 41 – Movimentos de câmera.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

21 Uma ressalva importante para esse plano que, apesar de parecer único, é divido em duas partes com um corte de tela preta no meio. Essa observação é feita com base nas características que apresentam um corte no plano e da diferente fotometria e características de luz no início e no final da tomada. 77

O movimento pode ser responsável também pela definição de relações espaciais entre dois elementos da ação, aqui caracterizados pela ameaça de José Amaro à Marina, quando num movimento de câmera de aproximação de Marina antecipa a ameaça e a agressão de José Amaro (Figura 42, imagens 13 e 14). Realce dramático de um personagem ou objeto, como no plano em que a câmera dá ênfase ao boneco na água no ritual de Felicidade, cuja ligação narrativa está conectada ao acidente provocado por Manuel em alto-mar, o qual lança José Amaro ao oceano (Figura 42, imagens 15 e 16).

Figura 42 – Movimentos de câmera.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Um movimento de câmera pode realçar a expressão da tensão mental de um personagem, como o travelling para frente no rosto de Marina toda vez que ela se sente angustiada com a situação em que se encontra em sua nova vida na ilha e com José Amaro. Se levados em consideração os travellings que se afastam, pode-se atribuir o movimento, segundo Martin (2011), a umas finalidades de conclusão, de afastamento do espaço, de acompanhamento de um personagem que avança, de desligamento psicológico e de solidão. Outra referência a movimentos de câmera, mas que não aparecem de forma evidente em Caiçara, seria um movimento de qualidade rítmica, com a câmera permanentemente móvel 78

durante todo o tempo, criando uma espécie de dinâmica ou um quadro vivo e fluído, que permite constantes mudanças de ponto de vista. Ao se observar com calma as imagens, é possível perceber que esses movimentos estão quase sempre associados a movimentos de eixo da câmera como panorâmicas e tilt. Chick realiza esses movimentos sempre com um objetivo muito claro e não somente do movimento pelo movimento em si, o que banalizaria essas ferramentas. Na Figura 41 (imagens 1 e 2) é possível perceber a correção de câmera em tilt para baixo acompanhando a ação de Marina que se agacha para apanhar suas coisas que caem na areia. É um movimento muito rápido e mesmo assim a câmera está preparada para realiza-lo motivado pela ação da personagem. Na Figura 41 (imagens 3 e 4), a câmera associa o movimento de travelling out ao movimento de panorâmica para a esquerda, não só motivada pela movimentação das moças em quadro, mas também com o intuito de relevar a placa do orfanato. As ações da direita para a esquerda de quadro contribuem para a revelação do lugar e da ambientação para o espectador. A descrição do espaço na Figura 41 (imagens 5 a 10) é duplamente motivada, primeiramente pelo grupo que caminha (em que se encontram José Amaro, Marina e Manuel) e depois na revelação das pessoas que acompanham o grupo com seus olhares. O movimento panorâmico para a esquerda segue até se fixar em um senhor com chapéu, cuja ação dá um novo ímpeto na motivação do movimento da câmera. Ele caminha em direção à objetiva, assumindo o primeiro plano do quadro, enquanto a câmera segue seu curso no trilho e desloca-se para a esquerda, enquadrando a parede do prédio (nesse deslocamento é possível ver um ponto de corte em preto, mas que tem o intuito de se fazer pertencente à mesma tomada). Na continuação do plano, o movimento estaciona e é possível identificar nas últimas camadas do quadro o grupo composto por José Amaro, Marina e Manuel, que continuam caminhando, afastando-se da objetiva. Pelo mesmo lugar por onde o grupo entrou, outros observadores entram da direita para a esquerda e impulsionam novamente a câmera para um papel revelador, num movimento panorâmico no mesmo sentido da entrada dos personagens, reenquadrando mais observadores até postar novamente em primeiro plano o senhor de chapéu. Em todos esses movimentos, a câmera “passeia” com objetivos bem explícitos e no mesmo plano ela pode ter várias finalidades, iniciando a partir de uma ação que acaba se desenrolando em um realce dramático, variando seus enquadramentos e os elementos do quadro.

79

2.3 Quadro

O uso da palavra quadro, enquadramento ou decupagem já pertence de certa forma ao linguajar corriqueiro quando se refere ao cinema. No entanto, antes de iniciar esse tópico, dando ênfase às abordagens relacionadas à fotografia cinematográfica, é importante ressaltar alguns pensamentos a respeito dessas terminologias. Segundo Deleuze, “[...] chama-se enquadramento à determinação de um sistema fechado, relativamente fechado, que compreende tudo o que está presente na imagem, cenários, personagens, acessórios” (DELEUZE, 2009, p. 29). É também “[...] a arte de escolher toda a espécie de partes que entram num conjunto. Este conjunto é um sistema fechado, relativamente e artificialmente fechado” (DELEUZE, 2009, p. 38). Ainda que na narrativa como um todo o quadro tenha uma relação direta com o campo e o extracampo, o trabalho particular da cinematografia lida muito mais com esses elementos, levando em conta o seu sistema fechado. Em sua explicitação técnica, Brown relata que “[...] selecionar o quadro é o ato fundamental da produção cinematográfica; como cineastas devemos dirigir a atenção do público: ‘Olhe aqui, agora olhe isso, agora lá...’. Escolher o quadro é transmitir a história, mas é também uma questão de composição, ritmo e perspectiva” (BROWN, 2012, p. 4). Quando o autor trata desses aspectos, como composição, ritmo e perspectiva, ele está se referindo ao que descreve como linguagem visual, apesar de Deleuze questionar a aproximação de terminologias que se aproximem da linguagem, pois, em seu entendimento, o cinema está mais para uma modulação de elementos não linguísticos em constante modificação: luz, cenários, personagens, cores, dentre outros. O uso da iluminação e de seus sistemas é considerado uma ferramenta de extrema importância, como visto anteriormente. No entanto, alguns elementos, como composição, somam num entendimento mais completo ao se referir ao quadro, já que a iluminação também faz parte da composição. Dentro desse sistema informativo, a composição seria o “fator” organizador do quadro. “Uma boa composição é a disposição de elementos visuais para formar um todo unificado e harmonioso” (MASCELLI, 2010, p. 227), ou, como descreve Deleuze, “[...] o quadro é concebido como uma composição de espaço em paralelas e diagonais, constituindo um receptáculo de modo tal que as massas e linhas da imagem que vêm ocupá-lo encontrarão um equilíbrio, e seus movimentos, uma invariante” (DELEUZE, 2009, p. 30). 80

Linhas, formas, massas e movimentos são todos elementos muito característicos da composição. As linhas podem ser definidas pelos próprios contornos dos objetos, ou por linhas imaginárias no espaço, sendo retas, curvas, horizontais, verticais ou qualquer combinação dessas. Elas podem ter diferentes funções, inclusive de orientar o olhar do espectador ao olhar para a imagem em movimento:

[...] o olho do espectador pode percorrer uma linha curva formada pelo agrupamento de vários atores; mover-se em diagonal ao seguir um avião decolando; ou ainda, seguir uma linha vertical traçada por um míssil em ascensão. A composição linear de uma cena depende, portanto, não só de linhas de contornos reais, mas também de linhas de transição criadas pelo movimento do olho (MASCELLI, 2010, p. 231).

A ilustração de modo geral utiliza as linhas na construção de suas composições, não somente as utilizando para o traço do desenho. Adrew Loomis, artista ilustrador estadunidense nascido no final do século XIX, em seu livro Creative Ilustration (2012), destaca diversos usos das linhas, sendo elas: a produção de um design formal ou informal no quadro; o uso simétrico das linhas; o uso da “linha por ela mesma”, de letras, símbolos e até formas geométricas conjugadas, cujos traçados serão a base para a elaboração da composição.

Figura 43 – Linhas na composição.

Fonte: LOOMIS (2012).

81

Figura 44 – Linhas na composição.

Fonte: LOOMIS (2012).

É possível perceber, pelas figuras acima (Figuras 43 e 44), que a composição no cinema valeu-se muito dos conceitos já utilizados na pintura, sendo no caso aqui demonstrado pelos exemplos da ilustração. Por mais que as linhas na fotografia cinematográfica possam ser ilusórias ou até mesmo de características transitórias, de alguma forma elas existem e permeiam o quadro. Essas transições imaginárias são muito utilizadas por Chick, como demonstrado na Figura 45, na qual as linhas, tanto dos objetos em quadro, quanto dos elementos que se movimentam, induzem o olhar do espectador.

82

Figura 45 – Linhas de transição.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

A própria geografia da natureza pode sugerir traçados, curvas que transmitem uma impressão de profundidade e de espaços longínquos. Um exemplo é a linha sinuosa (Figura 46), também chamada de S invertido, que “[...] era amplamente utilizada como um princípio composicional por artistas renascentistas; ela tem uma harmonia e um equilíbrio composicional característicos” (BROWN, 2012, p. 45).

Figura 46 – Linha Sinuosa.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Linhas ou elementos verticais contribuem para uma repetição de padrão, sendo que as linhas verticais dificilmente são paralelas à linha dos lados do quadro a não ser quando formadas por elementos muito destacados ou que servem como elementos de composição do próprio quadro. 83

As diagonais são muito utilizadas para o uso da perspectiva, como ponto de fuga, seja no horizonte ou em elementos que ascendem ou descendem. O posicionamento da câmera nesse aspecto particular tende a valorizar, principalmente em ambientes externos, a diagonal, dificilmente posicionada de forma neutra ou lateralizada. Na Figura 47, na imagem da esquerda, é possível identificar o posicionamento da câmera um pouco abaixo da linha do olhar do personagem, que valoriza as linhas diagonais das estruturas prediais das construções à esquerda do plano; na imagem da direita, a câmera está muito baixa, quase próxima à linha do chão, onde caminha Marina. A perspectiva do plano acaba sendo valorizada pelo corrimão da ponte de madeira, devido à linha diagonal ascendente.

Figura 47 – Linhas diagonais.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Todos os objetos naturais têm forma. Como ressaltado no item da luz de Caiçara, a iluminação tende a contribuir e muito na tridimensionalidade dessas formas. No entanto, outras possibilidades visuais também são importantes, pois o olhar do espectador tende a “passear” pelo quadro, e saber explorar visualmente esse artifício pode ser uma poderosa estratégia para o fotógrafo:

Todos os objetos, quer sejam naturais, quer sejam feitos pelo homem, têm forma. Formas físicas são fáceis de reconhecer. Formas criadas pelo movimento do olho do espectador ao passar de um objeto a outro nem sempre são fáceis de reconhecer, a não ser que sejam assinaladas. Assim, muitas formas abstratas existem unicamente na mente do espectador, no espaço criado por vários objetos físicos (MASCELLI, 2010, p. 233).

A partir dessa citação, importante uma ressalva feita numa explanação feita no item sobre iluminação, em relação à criação das vinhetas como texturas a partir do efeito de sombras 84

criado nos fundos do cenário. No próprio plano estático ou nos movimentos panorâmicos, essas formas criadas pelas vinhetas evitam que o olhar do espectador fuja daquela faixa de visualização mais clara do plano, concentrando o olhar nas ações que acontecem nesses espaços. Essa abordagem não deixa de ser a criação de uma forma por meio dos artifícios de iluminação, que apesar de não ter definição em linhas, possui uma definição espacial. Outra ferramenta de formas muito utilizada no cinema são os triângulos composicionais. A “[...] forma triangular sugere força, estabilidade; a solidez da pirâmide” (MASCELLI, 2010, p. 233). “Os triângulos composicionais mantêm o quadro ativo, mesmo ao longo de uma cena expositiva relativamente demorada” (BROWN, 2012, p. 45). Chick faz uso ostensivo desses triângulos composicionais, sendo possível encontrá- los em diversos planos, especialmente em planos de conjunto com mais de duas pessoas (Figura 48).

Figura 48 – Triângulos composicionais.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Reiterando a observação de Brown (2012), nesses quadros de diálogos, a sugestão do triângulo possibilita que o olhar do espectador dirija-se para diferentes partes do plano, direcionados por essa forma triangular. Outros elementos ligados à forma também contribuem à composição da imagem: um quadro “aberto” possui elementos que expandem o plano; um quadro “fechado” tem elementos definidores de forma e possuem uma composição mais formal; o quadro dentro do quadro altera a relação das dimensões do formato de exibição, pois relativiza a dimensão dos objetos de interesse no quadro; a regra dos terços, que divide, a princípio, o quadro em três partes e cria pontos de interesse nas interseções das linhas de terços verticais e horizontais é 85

utilizada há séculos pelos artistas; massas, como unidades singulares dos corpos que compõem o quadro e como sua disposição gera equilíbrio ou desequilíbrio. Todos esses elementos da composição envolvem escolhas que são fundamentalmente importantes. No entanto, existe outro fator decisivo nesse processo, que envolve perguntas como: onde colocar a câmera para atingir tal resultado? A que altura colocá- la? Qual será a direção apontada pela objetiva? Para cima, para baixo? São escolhas que envolvem a definição do ponto de vista.

2.4 Ponto de vista e objetiva

Segundo Gilles Deleuze, “[...] o quadro se reporta a um ângulo de enquadramento. É que o próprio conjunto fechado é um sistema ótico que remete a um ponto de vista sobre o conjunto das partes. [...] o cinema mostra pontos de vista extraordinários, rente ao chão, de cima para baixo, de baixo para cima, etc.” (DELEUZE, 2009, p. 33). Normalmente, quando nos referimos ao ponto de vista, ele é reportado como sendo um ponto de vista subjetivo, a representação do olhar de um personagem da cena. Na Figura 49, a imagem da direita é a representação do ponto de vista de Chico, que observa Marina e Manuel na praia. A escolha pelo ângulo da câmera, nesse caso, dá a impressão ao espectador de que Chico observa posicionado a uma altura elevada em relação aos dois personagens.

Figura 49 – Ponto de vista.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Nessa mesma Figura 49, é demonstrada outra variante importante em relação ao uso da lente de cinema, ou objetiva. A perspectiva da objetiva define a relação espacial entre o 86

quadro e a câmera e, mais importante de tudo, o quanto desse ponto de vista é incluído de acordo com a escolha da angulação da lente. A visão humana estende-se a um campo visual que atinge a proximidade de 180º. “A visão fóvea (ou central), que tem maior capacidade de perceber detalhes, cobre aproximadamente 40º. No filme de 35mm, a lente 50mm, geralmente é considerada uma objetiva normal” (BROWN, 2012, p. 54). Uma objetiva é considerada normal quando a distância focal é equivalente à diagonal do receptor da imagem, o que pode variar dependendo da plataforma, especialmente nos dias atuais, com as câmeras digitais. Ao deter-se novamente à Figura 49, principalmente no plano da direita, referente ao ponto de vista de Chico, teoricamente deveria ser uma representação de uma lente normal, cujas características dos elementos em quadro tivessem uma concordância espacial que se aproximassem mais da visão humana. No entanto, o cinema tem a capacidade de desvirtuar essa relação ao mesmo tempo em que mantém a impressão desse olhar subjetivo. A escolha da objetiva desse plano não é de uma objetiva normal, mas, sim, de uma teleobjetiva. As teleobjetivas possuem uma distância focal longa e seu efeito ótico “aproxima” os elementos do espaço do receptor da câmera: objetos que estão mais longe parecem estar mais perto e a relação espacial entre os objetos no plano também se modificam, dando a impressão de estarem mais perto um dos outros. A teleobjetiva também causa efeitos de compressão e achatamento da imagem e diminui ainda a profundidade de campo22. Com o esclarecimento desses efeitos óticos, é possível perceber que a escolha da objetiva por Chick contrapõe-se aos conceitos estéticos do enquadramento exposto principalmente por Brown (2012), sendo que ele só poderia alcançar esse efeito nesse plano com uma teleobjetiva. A perspectiva está achatada; as árvores diminuem de tamanho à medida que estão mais distantes da câmera, mas a variação da proporção entre elas é de pouca gradação; o fundo está longe, mas não tão longe a ponto de não ser possível perceber as características das árvores e das montanhas; e o S sinuoso mostra-se evidente com os efeitos dessa lente, caso contrário, o desenho da costa não teria sua forma tão evidente.

22 Na ótica da objetiva, a profundidade de campo é um efeito que descreve até que ponto objetos que estão mais ou menos perto do plano de foco aparentam estar nítidos. De modo vulgar, em objetivas grande-angulares, esse espaço de nitidez é maior, sendo que em lentes teleobjetivas o espaço de nitidez diminui. 87

Mas é importante ressaltar que o ponto de vista não é somente aquele referente ao ponto de vista subjetivo do sujeito da cena, sendo esse conceito aplicado principalmente em relação ao espectador e à narrativa fílmica. Em termos mais objetivos, podemos tomar mais um exemplo de Andrew Loomis (2012). Suas ilustrações (Figura 50) praticamente demonstram que a primeira relação da imagem com o espectador (no caso com o ilustrador que se baseia em uma cena cotidiana para realizar seus traços artísticos) nada mais é que a escolha do ponto de vista que se assume para determinado quadro, para, então, realizar a construção artística dos (e com) seus elementos.

Figura 50 – Ponto de vista.

Fonte: LOOMIS (2012).

No procedimento do set de filmagem, o ponto de vista e a escolha da objetiva (em grande maioria determinados previamente por um estudo visual de composição e storyboard) determinam o restante do trabalho da equipe, como a iluminação, os elementos em cena, a movimentação dos atores, dos elementos de arte, dentre muitos outros. A abordagem do ponto de vista como tópico de encerramento dessa seção permite avançar em relação a outros planos de outros filmes com a direção de fotografia de Chick Fowle, para uma compreensão mais ampla daquilo que Brown (2012) classifica como ferramentas conceituais da cinematografia, agora aplicadas e entendidas como abordagens de fotografia frente ao filme, ou seja, soluções fotográficas na textura fílmica. O aprofundando por meio do estabelecimento de comparações com diferentes abordagens do mesmo diretor de fotografia frente uma nova obra, ou de obras de outros 88

fotógrafos no Brasil no mesmo período, faz-se interessante para compreender melhor a recorrência, a ruptura ou a adaptação desses conceitos, sem deixar de elencar um fator fundamental nesse processo: o estilo.

2.5 Soluções Fotográficas na Textura Fílmica

Após passar por algumas técnicas consideradas fundamentais, utilizadas por Chick no tratamento da fotográfica cinematográfica, o próximo passo lógico é compreender como essas técnicas de fato contribuem na narrativa fílmica, investigando também alguns traços de seu trabalho nessas obras cinematográficas que podem dar indícios do estilo desse fotógrafo. Não se configura uma análise dos filmes em si, mas exemplificações dessas aplicações na demonstração do trabalho e da expertise do profissional na construção do filme, principalmente dos filmes brasileiros. O cinema brasileiro na década de 1950, principalmente, foi marcado pela vinda de um levante de fotógrafos estrangeiros que atuaram nos mercados do Rio de Janeiro e de São Paulo, principalmente na Atlântida e na Vera Cruz, sendo todos, sem exceção, fotógrafos por excelência, com um destaque especial a Edgar Brasil, que possivelmente tenha feito o mais expressivo trabalho de fotografia para um filme em terras brasileiras: Limite (1931), de Mário Peixoto. Ray Strugess, Ugo Lombardi, Rudolph Icsey, Mário Pages, Amleto Daissé, Ozen Sermet e certamente Chick Fowle contribuíram muito para elevar o patamar da fotografia em terras brasileiras (NETO, 2010) e não somente no aspecto técnico, como se costuma dizer, que era algo que realmente se carecia o Brasil, mas também na abordagem artística, já que as ferramentas que envolvem a Direção de Fotografia vão muito mais além do tecnicismo. Por isso, evidenciar o trabalho de Chick não é ignorar obras de fotógrafos contemporâneos a ele, atuantes no Brasil, mesmo porque os trabalhos desses profissionais, brasileiros e estrangeiros em terras brasileiras, são extremamente importantes para adentrar os feitos do próprio Fowle, objeto de imersão dessa escrita. Afinal, o que faz uma fotografia ser fotografia por excelência e não simplesmente uma aplicação de conceitos universais? Para isso, é importante agora retornar mais a fundo à questão do estilo. Num sentido mais estrito, estilo é o “[...] uso sistemático e significativo de técnicas da mídia cinema em um filme. Essas técnicas são classificadas em domínios amplos: mise-en-scène (encenação, iluminação, representação e ambientação), enquadramento, foco, controle de valores 89

cromáticos e outros aspectos da cinematografia, da edição e do som” (BORDWELL, 2013, p. 17). Repare que David Bordwell faz uma divisão diferente daquelas que elegemos como ferramentas conceituais da cinematografia segundo Blain Brown (2012). No entanto, uma observação no seu pressuposto é extremamente importante: a mise-en-scène, a disposição dos corpos e das coisas no espaço cênico. Tudo que envolve essas escolhas depende particularmente daquelas feitas principalmente pelo diretor, já que são elas que muitas vezes vão determinar o estilo do filme, seja ele qual for, independentemente do seu momento na história. A mise-en-scène ganhou força na geração da nouvelle vague francesa, na construção do seu conceito de cinema autoral, reivindicando a modernidade do cinema nos anos 1950. Jacques Aumont inclusive exalta Jean Renoir e Jacques Rivette quando disserta a respeito da mise-en-scène e coloca a pintura e o teatro como fortes influenciadores do modo estilístico cinematográfico, que na Europa se vê marcado por forte realismo praticado por esses diretores (RAMOS, s/n). Uma das grandes mudanças estilísticas largamente dissertadas por André Bazin, por exemplo, pode ser observada em filmes com os fotógrafos Charles Lawton Jr., em A dama de Xangai (1947), e Greg Tolland, em Cidadão Kane (1941), que aplicaram focos profundos em diversos planos de tais obras. Tolland inclusive desenvolveu técnicas específicas, como o pan focus, e de diferentes exposições, para alcançar os efeitos desejados de profundidade. Na época, Bazin (1991) eleva essas obras como questionadoras das técnicas características da decupagem dos filmes de 1930 a 1939, que basicamente tinham uma descrição de história por sucessão de planos com característica de diálogo de campo e contracampo. Muito do que se escreveu a respeito do pensamento da decupagem clássica vem da ideia da montagem orgânica que Ismail Xavier, em seu livro Discurso cinematográfico, disserta, principalmente em relação aos filmes hollywoodianos:

Em primeiro lugar, a rigor, eu deveria falar em decupagem/montagem, pois uma pressupõe a outra – são logicamente equivalentes. O uso dos dois termos deve-se a uma ordem cronológica encontrada na prática, onde decupagem identifica-se com a fase de confecção do roteiro do filme e montagem, em sentido estrito, é identificada com operações materiais de organização, corte e colagem dos fragmentos filmados (XAVIER, 2012, p. 36).

Ao esclarecer a relação entre decupagem e montagem enquanto ações sequenciais e importantes à construção da narrativa fílmica, Xavier ressalta as características presentes na 90

decupagem clássica, cuja junção desses procedimentos deve extrair ao máximo o rendimento dos efeitos, a fim de torná-los invisíveis (XAVIER, 2012). Atualmente, esse entendimento dos procedimentos como sendo invisíveis ou transparentes já foi colocado em cheque e o próprio David Bordwell disserta que tais termos como “transparência” e “invisibilidade” não são propriedades para classificação do filme clássico, já que este tende a ser “onisciente” e possuir “alto grau de comunicabilidade” e ser “moderadamente autoconsciente”: “[...] ou seja, a narração sabe mais do que qualquer um dos personagens ou todos eles, esconde relativamente pouco (basicamente ‘o que vai acontecer a seguir’) e quase nunca reconhece que está se dirigindo ao público (BORDWELL, 2009, p. 285). Retornando ao pensamento de Bazin (1991), em sua crítica a esses procedimentos clássicos, admite que a profundidade de campo não foi uma invenção de Orson Welles, assim como o primeiro plano não foi invenção de Griffith, mas eleva a condição de filmes como Cidadão Kane e de Soberba a outro patamar:

Graças à profundidade de campo, cenas inteiras são tratadas numa única tomada, a câmera ficando até mesmo imóvel. Os efeitos dramáticos, que anteriormente se exigia da montagem, surgem aqui do deslocamento dos atores dentro do enquadramento escolhido de uma vez por todas (...) para quem sabe ver, os planos-sequência de Welles em Soberba não são de modo algum o “registro” passivo de uma ação fotografada num mesmo quadro, mas, ao contrário, que a recusa de cortar o acontecimento, de analisar no tempo a área dramática, é uma operação positiva cujo efeito é superior ao que a decupagem clássica poderia ter produzido (BAZIN, 1991, p. 76).

No decorrer da história, como relata David Bordwell em seu livro Sobre a história do estilo cinematográfico (2013), percebe-se que muitas revisões históricas do cinema permitiram a historiadores o acesso a mais filmes no decorrer do tempo, possibilitando, inclusive, releituras e questionamentos acerca dos diversos estilos de cinema e das vanguardas que se buscavam a cada tempo. O apreço de Bazin pelo cinema de Renoir, Welles, Wyler e os neorrealistas em detrimento daquilo que normalmente se fazia em termos de produção também acaba ocorrendo com seus sucessores, como Godard e Astruc, que afirmavam que a montage, diferente do que propunha Bazin, torna-se um componente essencial da mise-en-scène, “[...] particularmente quando há uma necessidade de expressar qualidades como a hesitação abrupta ou intensificar o momento em que os personagens trocam olhares” (BORDWELL, 2013, p. 111). 91

Esses autores chegaram a exaltar os filmes de CinemaScope como uma “[...] confirmação da primazia da ação encenada para a câmera. Não que a montagem agora fosse eliminada; em vez disso, ela se tornara serva da mise-en-scène” (BORDWELL, 2013, p. 113). Relatos de situações históricas como essas são importantes justamente para não se impor um juízo de valor prévio às obras cinematográficas, ou defender a “flecha”23 da evolução cinematográfica muito comum ao discurso modernista, mesmo porque o questionamento de certas formas de fazer filme não necessariamente fará com esses estilos desapareçam, pois sua ressignificação pode ressurgir em outros tempos. A negação num momento pode ser a exaltação em outro. A Nouvelle Critique decretou, com o cinema sonoro, o fim da montage, que sugeria um corte abstrato, conceitual e rítmico para autores dessa estilística. Para esses novos críticos, a découpage, além de ser uma referência direta à decomposição da ação em planos breves, também é uma decomposição do todo espaço- temporal em vistas mais próximas. Mas mesmo no detalhamento das suas análises, Bazin, segundo Bordwell, tinha tendência a ignorar certas cenas e planos que não se adequavam ao seu esquema dialético:

Apesar da aceitação de tendência conflitantes em um filme individual, ele tende a subestimar os componentes não realistas de muitas de suas obras mais queridas – o corte construtivo e a música floreada em muitos filmes neorrealistas, o grotesco no expressionismo e a montagem de estilo soviético no trabalho de Welles após Soberba. Em geral, Bazin tende a deixar passar despercebida a grande extensão em que mesmo os seus diretores favoritos dependem da montagem. Renoir reserva seus movimentos de câmera longos apenas para certas cenas de A regra do jogo; as porções iniciais valem-se de montagem paralela e campo/contracampo, criando assim uma decupagem hibrida (BORDWELL, 2013, p. 106).

Muito das estratégias dos críticos tende a valorizar apenas alguns aspectos mais importantes das obras, sendo que possivelmente, como um todo, muitas obras cinematográficas têm características híbridas. Mas por que evocar tais críticos e pensadores, bem como seus apontamentos em determinados momentos da história? Por que tais abordagens históricas teriam alguma relação com a filmografia brasileira da década de 1950?

23 Termo utilizado por Fernão Ramos na apresentação do livro Lendo as imagens do cinema (2009), de Laurent Jullier e Michel Marie. 92

Se tomarmos o estilo como textura fílmica e como “[...] resultado de escolhas feitas pelo(s) cineasta(as) em circunstâncias históricas específicas” (BORDWELL, 2013, p. 17), pode-se entender o porquê. Do embate ideológico nascem diferentes aspirações na realização cinematográfica e, assim como ocorreu da França, ocorre no Brasil também na década de 1950 (e posteriormente na década de 1960) não só com a criação e aspiração da Companhia Vera Cruz, mas também com a Companhia Maristela e até mesmo com diretores como Watson Macedo, que rompe com a Atlântida para se tornar um produtor independente. Como citado anteriormente, as produções das comédias musicais carnavalescas não caiam muito nas graças da crítica carioca e paulista dos anos 1950 e o surgimento da Vera Cruz acontece num anseio de um cinema de padrões internacionais em detrimento às produções feitas a “toque de caixa”, como definiam as chanchadas, cujo estilo era resultado das próprias aspirações do estúdio com as paródias dos clássicos do cinema americano, imantados de repulsa e fascínio (VIEIRA, 2018). Os filmes eram produzidos de forma rápida e seus estúdios tinham aspecto um tanto desleixado, como conta o próprio diretor , que ao entrar nas dependências da Atlântida encontrou tábuas espalhadas pela parede, chão sujo e seu ídolo dos musicais, o próprio Watson Macedo, com serrote na mão, trabalhando na carpintaria (DESBOIS, 2016). Apesar de tudo, a Companhia Atlântida atingia grande sucesso de público, contando ainda com duas estrelas brilhantes, que eram Oscarito e Grande Otelo, atores cujo humor transbordava e que fizeram deles o carro-chefe do estúdio: “[...] um é branco, o outro é negro: dois Brasis se encontram na tela, graças a uma dupla de comediantes que sela a mais bela história de amor do público local com o seu cinema. Mendigos ou cowboys, Romeus ou malandros, eles formam uma parceria cúmplice e complementar sem igual” (DESBOIS, 2016, p. 34). O diretor Watson Macedo, considerado um dos mestres da chachada, transformou o improviso desses dois artistas em virtude para os filmes da Atlântida, interferindo diretamente na narrativa das obras da Companhia. Anselmo Duarte, no livro de Luiz Carlos Merten (2004), revela inclusive que com sua participação na roteirização do filme Carnaval de fogo (1949), um novo jeito de fazer os musicais, com uma trama policial, ação, confusão, aliados à forma original com humor e canção, trazem uma nova fórmula de sucesso de público às chanchadas, assim como as paródias que a Companhia fazia dos filmes de Hollywood. 93

Juntos, Carlos Manga e José Carlos Burle dirigem o que é considerada uma das grandes obras da década de 1950 no Brasil: Carnaval Atlântida (1952). Assim como a Vera Cruz fazia suas críticas à Atlântida, o filme da Companhia carioca é uma crítica direta aos novos parâmetros de cinema que a Companhia paulista começava a introduzir no cinema nacional: “[...] um manifesto prático de uma política mais ‘realista’ para o cinema brasileiro (...) uma experiência inédita no campo reflexivo, uma vez que sua narrativa é centrada exatamente sobre a (im)possibilidade de se fazer determinado tipo de cinema de qualidade no Brasil, nos termos provavelmente sonhados pela Vera Cruz” (VIEIRA, 2018, p. 378). De fato, o filme tem muitas referências diretas e indiretas, mas sem perder seu charme de chanchada. A vontade do diretor em filmar um épico que acaba não se consagrando traz uma reflexão por detrás do pensamento da Companhia Atlântida, entre temas intelectualizados, referentes ao passado e temas mais populares, que são manifestações daquele presente, como a própria trajetória do professor Xenofontes (Oscarito), que polido e de linguagem erudita, acaba seduzido por Lolita (Maria Antonieta Pons), caindo no mambo e no samba e descambando para total autoavacalhação (VIEIRA, 2018). Tomar o filme Carnaval Atlântida como um exemplo referencial para iniciar a exposição a respeito das soluções fotográficas é importante por esse contexto histórico da produção da obra e das importantes discussões cinematográficas a respeito das diferentes concepções de “cinema” incorporadas pelos realizadores da época. Carlos Manga, como diretor de filmes da Atlântida, norteia seu trabalho no trunfo de ter grandes comediantes à sua disposição, que mesmos dispostos em cenários um tanto limitados e simples (características dos próprios estúdios da Companhia Atlântida), quase sempre estão prontos para comportar um número musical. Essa recorrência musical imprimiu uma característica única de direção aos filmes brasileiros de chanchada da época, que acaba predominando em grande parte nas obras da Atlântida. Carnaval Atlântida, como obra narrativa, quase em sua totalidade, evidencia seus personagens numa disposição de “varal”, aos moldes do primeiro cinema, com seus corpos postados para câmera ou perfilados de forma que possamos sempre ver as expressões e as gesticulações dos atores. Bordwell destaca que “[...] como seres humanos, somos levados a prestar atenção em nossos semelhantes. Focalizamos particularmente as zonas mais carregadas de informação em seus corpos: olhos, bocas e mãos, que por sua própria natureza, são portadores de grande carga dramática” (BORDWELL, 2008, p. 81). 94

Percebe-se que Carlos Manga faz uso extensivo das técnicas quase teatrais de seus comediantes que, mesmo a uma distância significativa da objetiva, faz-se muito evidente. É possível perceber nos planos da Figura 51, por exemplo, que os personagens de Grande Otelo (Assistente) e Colé Santana (Pedro), funcionários da Acrópole Filmes, assustam- se e encolhem-se em reação à bronca de seu patrão, Cecílio B. de Milho,24 a uma ideia de roteiro carnavalesco para ser filmado em detrimento à sua vontade, por um argumento sério para um filme de Helena de Tróia.

Figura 51 – Planos Abertos.

Fonte: Frames do filme Carnaval Atlântida (1952).

A exacerbação dos gestos, dos braços tomados por sustos, e do abraço de Otelo e Santana enfatizando o receio às ameaças do patrão, são vistos e facilmente assimilados pelo espectador, nos planos abertos da fotografia de Amleto Daissé25. Identificando suas expressões faciais, é possível entender, por suas expressões corporais, a intimidação de Cecílio, que se posta em riste ao centro do quadro, comandando o grau de importância na hierarquia do estúdio. À esquerda de quadro, o assistente Augusto, o personagem de Cyl Farney, posta-se condescendente às afirmações do patrão, atitude que se perdura em diversas cenas desse personagem, que age sempre com cautela. Essas características corporais interpretativas são recorrentes durante grande parte do filme e podem ser percebidas nas disposições dos personagens, cujo grau de importância vai se alternando no decorrer dos planos.

24 Uma clara alusão ao diretor Cecil B. DeMille, de Sansão e Dalila (1949). 25 Nascido em 1906, inicia sua carreira de fotógrafo na Itália, como câmera de Ugo Lombardi. Já no Brasil, foi operador de câmera no filme Caçula do barulho (1949), fotografado por Ugo Lombardi. Seu primeiro filme como fotógrafo foi Iracema (1949), com direção de Vittorio Cardinalli e Gino Talamo. Na Atlântida, assume o posto de Edgar Brasil, tornando-se parceiro inseparável de Carlos Manga em inúmeras chanchadas, como Dupla do barulho (1953), Matar ou correr (1954) e Colégio de brotos (1956). Trabalhou também com Nelson Pereira dos Santos em Boca de ouro (1963) e assina direção de fotografia de seu mais importante filme, Assalto ao trem pagador (1962), de . 95

Mesmo quando os personagens estão todos em pé, o momento de cada um se sobressai a partir da fala e da gesticulação. Cada um tem o seu momento, sua fala no plano, sendo que os demais personagens normalmente reagem à fala daquele que está em evidência. A apresentação dos personagens de forma horizontalizada em relação à câmera é esteticamente bem pensada nos padrões de filmes da Companhia Atlântida. Como não existem muitos cortes de junção de planos nas cenas, o próprio espectador faz o corte natural dentro do plano: os olhos saltam de um personagem para o outro da feita que cada um tem o seu protagonismo no plano, seja por meio de uma fala ou de uma reação. Algumas abordagens dos filmes demonstram amplo conhecimento da decupagem clássica aos moldes do cinema hollywoodiano, mesmo que utilizados de formas diferentes se comparados aos filmes da Vera Cruz. Diferente também é o trato com a iluminação, valendo-se agora mais especificamente do trabalho do italiano Amleto Daissé como fotógrafo. Em grande parte dos planos de Carnaval Atlântida, como em quase todo o percurso estilístico do filme, os cenários e os atores são bem iluminados, sem muita gradação tonal nas diferentes camadas dos planos, bem como sem muita variação de contraste nos rostos dos atores ou no cenário, uma abordagem muito presente nos filmes de comédia da Companhia, com uma direção de iluminação postada mais no eixo da câmera. Na Figura 51, as diversas sombras projetadas pelos refletores demonstram que o cenário é praticamente iluminado como um todo, com as luzes incidindo em diversas direções, no intuito de iluminar bem os personagens, o que valoriza muito o olhar nas gesticulações deles. A preocupação com a iluminação, que se expande uniformemente pelo plano, além de ser recorrente em filmes de comédias, permite evidenciar as características criativas que envolvem a habilidade corporal e típica dos números musicais da chanchada. Por vezes, essa iluminação como um todo acaba sendo feita no filme mediante a utilização de uma única fonte de luz, como demonstrado na Figura 52, o que permite agilidade na preparação e contribui para um esquema rápido de produção.

96

Figura 52 – Única Fonte de Luz Principal.

Fonte: Frame do filme Carnaval Atlântida (1952).

Como existem no filme muitos planos de conjunto, sendo que o posicionamento dos personagens são quase todos angulados para a câmera, essa opção de iluminação funciona muito bem para essa abordagem estilística. Nos filmes da Vera Cruz, por exemplo, a disposição dos atores se fazia de forma bem diferente da que se propunha, especificamente, no filme Carnaval Atlântida, além de muitos outros filmes da Companhia carioca, porém, não em todos, pois em Nem Sansão nem Dalila (1954), Carlos Manga e Amleto Daissé assumem uma abordagem bem diferente da de Carnaval Atlântida, com os personagens realizando atuações que exploram a profundidade do cenário, com encenações de brigas com muitos movimentos panorâmicos de câmera e com os planos dotados de diferentes camadas e com perspectiva mais acentuada, não somente pela disposição das linhas e objetos do espaço, mas também pelo trabalho de iluminação. Se em Atlântida grande parte dos filmes tinha um esquema de plano em conjunto de longa duração e com os “cortes” realizados pelos olhares que transitam entre os personagens no plano, em Nem Sansão nem Dalila, a direção e a fotografia assumem uma decupagem de planos mais variadas, introduzindo mais cortes e mais pontos de vista numa cena. Na Companhia Vera Cruz, essa abordagem de uma decupagem mais elaborada é inclusive planificada de modo a ter exatamente os pontos de vista da câmera bem definidos de antemão, em planta baixa (Figura 53), o que contribuiu muito para uma organização da produção na filmagem.

97

Figura 53 – Pontos de vistas em planta baixa.

Fonte: MARTINELLI (2005).

Pela observação do encadeamento dos planos, é possível perceber que as cenas normalmente seguiam pressupostos de filmagem de uma cena mestra para depois partir para filmagens de planos mais fechados ou contraplanos. Muitos planos eram filmados, também, com movimentos de aproximação e afastamento dos personagens, o que evidenciava os trejeitos de suas atuações. Nesse caso, um princípio de cena mestra não impera, com os planos e pontos de vista pensados de forma a se diferenciarem em angulações, quase nunca repetindo um mesmo enquadramento, num mesmo espaço. Ou seja, cada angulação é pensada de forma a servir o propósito daquele momento da cena, sem o artificio de poder ter uma cena master que venha a garantir o corte do plano. No exemplo da Figura 54, do filme Caiçara, é possível perceber um encadeamento, cujos planos que compõem a cena estão dispostos em diferentes pontos de vista e que se encadeiam por raccords de movimentos dos personagens em quadro.

98

Figura 54 – Ações encadeadas pela movimentação dos personagens

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

As imagens 1, 2 e 3, da Figura 54, mostram Marina, que prepara o jantar no fogão de sua casa, para logo em seguida sentar-se à mesa para a refeição. A câmera está posicionada em um ângulo que mostra Marina em plongée, na busca por captar sua reação ao se sentar à mesa, quando percebe que alguém se aproxima de sua residência. Toda a movimentação e o posicionamento da câmera são pensados para essa ação da personagem. As imagens 4, 5 e 6, da Figura 54, mostram a chegada de Manuel, que caminha em profundidade até aproximar-se de Marina e, consequentemente, da objetiva. A surpresa da moça se desenrola numa discussão com mais planos subsequentes, com diferentes angulações, mostrando um diferente tratamento com a montagem e com a encenação. Um trabalho assim, consequentemente, toma mais tempo de produção e certamente os filmes da Companhia Vera Cruz duravam mais para serem filmados que os da Companhia Atlântida. 99

Essa percepção de agilidade dos filmes cariocas pode ser captada por meio da própria decupagem desenvolvida, já que é possível identificar grande quantidade de planos, cujas características são recorrentes e similares, senão iguais. Como no exemplo da Figura 55, no escritório de Cecílio, cujo enquadramento é o mesmo com três diferentes personagens que o visitam, sem variação de altura de câmera, de quadro e de movimento panorâmico, sendo que possivelmente a posição permaneceu a mesma para a gravação de todos esses planos em sequência. Encadeados entre os cortes da cena, a recorrência dos aspectos dos planos reitera uma preocupação voltada mais ao encadeamento da narrativa pelos diálogos do que por uma abordagem de variação de pontos de vista.

Figura 55 – Repetição de Enquadramentos.

Fonte: Frames do filme Carnaval Atlântida (1952).

Em uma diferente abordagem de direção, num propósito estilístico em que os atores ocupem diferentes posições em relação à objetiva, ou mais próximo, ou mais longe, é possível o desenvolvimento de uma abordagem diferente quanto à iluminação. No filme Caiçara, por exemplo, no momento em que Marina está junto a Zé Amaro para conhecer o seu novo lar em Ilha Bela (Figura 56), é possível identificar um tratamento diferente de luz, que condiz com o momento de apresentação do novo lar de Marina. A iluminação feita por Chick no plano tem a preocupação de caracterizar o lar de Marina e Zé, com nuances que realçam os aspectos do ambiente, privilegiando a atuação e a movimentação dos atores, que são muito bem marcadas. 100

Figura 56 – Iluminação na casa de José Amaro.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

A casa de Zé Amaro é uma casa rústica, distante da cidade, situada em uma ilha desconhecida para a personagem de Eliane Lage. Ao abrir a porta, é possível identificar somente uma contraluz, que incide em Zé Amaro, vindo do lado de fora da casa (imagem 1, Figura 56). A escuridão representa algo não desbravado ainda pelo espectador e muito menos por Marina, que tem uma expressão inquieta, acuada. Ao “clique” de Zé Amaro no interruptor, o espaço se revela e todas as luzes acendem, não somente a que está presente na cena em forma de luminária, mas também as luzes artificiais que delineiam os personagens e o cenário. Percebe-se todo um desenho de luz. O posicionamento bem marcado permite uma disposição de iluminação com uma abordagem minuciosa, que consequentemente demora mais para ser concretizada, mas permite inúmeras possibilidades imagéticas no plano. Pode-se identificar, com a movimentação de Zé Amaro, uma luz de compensação que está posicionada mais abaixo, à direita em relação à câmera. Sua intensidade é inferior à luz principal e à luz de fundo, mas ainda é possível percebê-la. A fonte serve tanto para compensar a intensidade da luz principal de Zé Amaro, quanto da de Marina. Quando ambos se movimentam em direção à mesa, um novo ponto de luz aparece para iluminar Zé Amaro. Essa luz é perceptível pelas duas sombras projetadas (imagem 5, 101

Figura 57) na parede na qual está a porta de entrada e revelam o momento em que essas duas luzes de ataque se somam ao personagem na transição entre seus dois pontos de marcação.

Figura 57 – Iluminação na casa de José Amaro.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Não existe somente uma luz principal, pois os personagens se movimentam no cenário e, em suma, suas falas se dão em pontos determinados, nos quais geralmente há um refletor que os ilumina. Com uma abordagem de encenação mais livre, todo um detalhamento de iluminação provavelmente não existiria e outra forma criativa teria que emergir frente ao estilo que se deseja na disposição dos atores. Para Sergio Hingst, por exemplo, um dos atores da Vera Cruz, toda essa marcação era muito “chata” e “[...] você como ator, em vez de se preocupar com o seu personagem, tinha que ficar atento à iluminação” (HINGST, 1981, p. 159). Talvez uma declaração um tanto precipitada de Hingst, por considerar que a luz de alguma forma era algo que prejudicava a atuação dos atores. É como se sua fala mostrasse que o tipo de esquema de iluminação engessava a atuação, sem levar em conta que os refletores eram muito direcionais e pontuais e, para terem resultado esperado, era preciso que os atores tivessem sua movimentação muito clara e marcada, já que o desenho de luz era todo feito em função desse estilo de disposição dos atores. Ricardo Aronovich ressalta inclusive que a realização do trabalho de luz é mais eficaz se feito a partir do ensaio cênico, já que o diretor de fotografia pode a partir daí sugerir uma mudança de posicionamento dos atores ou até mesmo da câmera (ARONOVICH, 2004). John Alton também faz observações referentes à marcação do ator em relação à iluminação da cena, que para o autor é algo que faz parte do trabalho de atuação. Um exemplo destacado pelo autor. 102

A campainha toca. Um homem do lado de dentro abre a porta e um casal entra. Eles param, conversam, depois todos os três vão até o sofá e se sentam. Enquanto caminhavam pelo set, ficou claro que a luz geral era inadequada; os rostos estavam apagados e consequentemente ficaram turvos. Quando o ensaio termina, os stand-ins entram e nós iluminamos os rostos deles. Os keylights individuais são adicionados e balanceados com as luzes do kicker. Mais uma passada no ensaio e estamos prontos pra rodar. Com os ensaios terminados, as preocupações fotográficas realmente começam. Durante a filmagem da cena, devemos nos certificar de que (1) todas as luzes estejam acesas; (2) que nenhuma luz se mova; (3) que os dimmers estejam corretos; (4) que não haja queda de tensão; (5) que os atores retornem às suas posições designadas (marcas) exatamente como nos ensaios; (6) que um ator não sombreie a face do outro de forma muito extensa; (7) que a maquiagem não seja danificada (ALTON, 1997, p. 35).

Algo que poderia parecer rígido em termos de procedimento por parte de Chick Fowle na construção da sua luz pode ser considerado uma busca por excelência no campo da iluminação fotográfica se tomada como exemplo a declaração de Alton e imaginar esse procedimento feito no set de filmagem. Em relação à textura do cenário, é possível perceber as sombras da luz de fundo, resultado de diferentes ângulos de incidência, projetados na estante atrás de José Amaro (imagem 6, Figura 57). A parede é iluminada por diferentes fontes de luz, vindas de diferentes direções, e bandeiradas para causarem essa textura de tonalidades, deixando o alto da parede mais escuro que o restante dela. Na Figura 58 percebe-se, também, a influência da luz de compensação no rosto de Marina, que olha para cima, reconhecendo o seu novo lar. A luz de compensação diminui as sombras que estariam muito fortes, dada a posição do rosto de Marina em relação à luz principal.

Figura 58 – Iluminação na casa de José Amaro (luz de compensação).

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950). 103

Toda a parte do rosto embaixo do queixo e da sobrancelha estariam tomados por sombras muito contrastadas que deformariam o rosto da personagem26. É como se a luz de compensação da cena estivesse inteiramente a serviço do posicionamento final do plano da personagem vivida por Eliane Lage, que naquele momento se posta frustrada e com medo frente uma nova vida que lhe aguarda, num lar desconhecido e ao lado de um marido desconhecido, que se demonstrará rude e violento. No entanto, algumas vantagens em se iluminar o cenário como um todo, sem um desenho de luz mais elaborado, permite maior liberdade para os atores, principalmente para os comediantes natos da Atlântida. Os enredos da companhia eram pensados de forma que a atuação com diálogos e movimentação fossem concomitantes às danças e aos números musicais que, muitas vezes, mesclavam-se, como na Figura 59, em que Xenofontes “aprende” a dançar mambo com Lolita, na casa de seu patrão Cecílio.

Figura 59 – Planos Abertos – Números Musicais.

Fonte: Frame do filme Carnaval Atlântida (1952).

Os planos abertos de Carnaval Atlântida demonstram que, nas chanchadas musicais, os corpos e os números são o ápice do desenvolvimento das narrativas desse estilo. É perceptível, a partir das exposições feitas, as diferenças de abordagem estilística e as diferentes formas criativas de lidar com a disposição dos atores. No caso específico de Chick frente às aspirações da Companhia Vera Cruz, suas experiências diversas, tanto nos seus

26 Na iluminação de rostos femininos, principalmente das atrizes principais, Chick busca sempre a suavidade dos traços. No caso de personagens homens, o contraste muitas vezes é mantido, deixando os traços masculinos mais fortes. 104

filmes no Movimento do Documentário Inglês quanto dos longas metragens da Wessex, são fundamentais para o estilo de filmes que a Companhia desejava realizar. No entanto, essas experiências servem como norte numa realidade diferente que é o Brasil, primeiramente deparando-se com uma luz de caraterísticas muito diferentes que Carlos Ebert descreve em seu texto Desafio da luz tropical, disponível no site da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC), citando uma entrevista de Mário Carneiro, na qual ele afirma que a luz brasileira, entre a “luz e a sombra”, tem um intervalo de oito diafragmas, o que torna extremamente difícil expor o filme, sendo que uma das formas de “amansar” isso seria a filmagem em horários correspondentes ao início da manhã e ao final da tarde (EBERT, s/a). Sendo assim, a luz brasileira teria sempre as mesmas características, produzindo sombras alongadas devido ao posicionamento do sol, o que não reflete de fato a realidade da luz do país. Chick acaba encontrando algumas formas para contornar essa situação técnica, relatada pelo próprio Ebert, que envolvem uso de rebatedores, refletores de arco voltaico e telas difusoras, assim como filtros específicos de coloração amarela, laranja e vermelha, que no caso das emulsões pancromáticas, permitiam diminuir a intensidade do azul do céu (EBERT, s/a). Sobre a utilização de filtros e suas especificidades, Ricardo Aronovich cita aspectos que elucidam sobre os efeitos possíveis que podem ser alcançados:

Quando trabalhamos em preto e branco, é necessário estar muito atento ao rendimento das cores das roupas, dos acessórios, do cenário em sua equivalência com os diversos tons de cinza de nossa escala. Sobretudo quando utilizados – o que é habitual principalmente em exteriores – filtros para escurecer ou clarear um elemento do cenário, do rosto ou das vestimentas de um personagem. Mesmo que um filtro possa ser utilizado para escurecer um céu ou clarear um tom de pele, é importante saber que isso é possível graças ao fato de que cada filtro clareia sua própria cor e escurece a cor complementar (o filtro amarelo deixa passar a luz amarela e absorve a luz azul, etc.). De forma que cada elemento do cenário cuja cor estiver compreendida no espectro do filtro utilizado é modificado (ARONOVICH, 2004, p. 62).

Tais artifícios de ajuste de filtros têm o objetivo de trabalhar as gradações das escalas de cinza a partir das cores e do comprimento de onda que emanam dos materiais, que apesar de não serem impressas como coloridas, podem ser modificadas para dar mais nuances à imagem. Em relação ao uso de rebatedores, é possível perceber em Caiçara a utilização desse artifício de compensação em vários planos, como já foi demonstrado. Em O cangaceiro, esse recurso é utilizado de forma mais moderada, sendo que a presença da força da luz é muito mais 105

evidente, apesar dos recursos utilizados para compensar a iluminação contrastada dos atores, a fim de potencializar suas atuações (Figura 60).

Figura 60 – Luz de compensação em exterior.

Fonte: Frames do filme O Cancageiro (1953).

Num dos planos que mostra a fuga de Teodoro com a professora Olívia, é possível perceber a incidência da luz rebatida no plano aberto no momento em que os cavalos param de cavalgar. No plano mais fechado, que evidencia o diálogo dos dois personagens, a compensação tem o intuito de expor melhor as sombras que incidem em Teodoro e Olívia. Nota-se também a afirmativa de Ricardo Aronovich quando escreve sobre o escurecimento gradativo dos céus com a utilização dos filtros de correção para evidenciar mais as texturas das nuvens, aqui um tanto modestas, e para controlar também a luminância da imagem (Figura 60). Mais tarde, nos anos 1960, fotógrafos como Luís Carlos Barreto e José Rosa, no filme Vidas secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e Waldemar de Lima, no filme Deus e o diabo na terra do sol, dirigido por Glauber Rocha, acabam optando por demover qualquer artifício de filtragem corretiva, na busca por uma representação diferente numa fotografia de luz existente (EBERT, s/a). Esteticamente, a exposição do negativo era feita com o objetivo de intensificar a presença das altas luzes, resultado que lembra as xilogravuras que ilustram a literatura de cordel. O resultado fotográfico de Deus e o diabo na terra do sol segue a linha das aspirações do diretor, no caso de Glauber, que partira do princípio de que a fotografia do seu filme não deveria ser bonita. Waldemar de Lima ressalta ainda que a opção pela superexposição como estilo fotográfico eliminava o uso de rebatedores em cena, o que facilitaria muito a agilidade da produção do filme (EBERT, s/a). Em seu artigo, Carlos Ebert também cita dois filmes, sendo o primeiro exemplo o episódio Pedreira de São Diogo (Figura 61), dirigido por Leon Hirzman e fotografado pelo turco Ozen Sermet, que compõe o Cinco vezes favela, de 1961. Nesse filme, Ebert ressalta que a fotografia possui os contrastes de luminância compensados com o uso ostensivo de 106

rebatedores, que são facilmente identificados pelo brilho nas peles dos personagens (EBERT, s/a). Figura 61 – Uso ostensivo de rebatedores na compensação da luz.

Fonte: Frames do episódio do filme Pedreira de São Diogo de Cinco vezes favela (1961).

No segundo exemplo, ele cita outro episódio do mesmo filme, o Couro de gato, dirigido por e fotografado por Mário Carneiro, numa estética que tem o viés documental e trabalha com uma fotografia com a luz existente no momento, sem uma continuidade plástica (Figura 62).

Figura 62 – Uso da luz existente.

Fonte: Frames do episódio filme Couro de gato de Cinco vezes favela (1961).

No entanto, em ambas as obras, é perceptível o uso de abordagens diferentes quanto à iluminação dos personagens em momentos nos quais não existe a compensação da luz, como em Pedreira de São Diogo, e em momentos nos quais é utilizada a compensação, como em Couro de gato, o que demonstra que muitas vezes a fotografia também se utiliza do hibridismo na construção do filme, apesar de se privilegiar mais uma estratégia em detrimento de outra. Relatos de diferentes estilos de iluminação como esses podem acabar gerando críticas frente à abordagem utilizada pelos fotógrafos, seja em relação a Chick, Amleto Daisse 107

ou até mesmo Waldemar de Lima. O próprio Ebert traça suas críticas a alguns fotógrafos, como Breno Silveira, de Eu, tu e eles (2000), Ozen Sermet e até mesmo Chick Fowle. Sobre essa reflexão, Lauro Escorel, em resposta à publicação de Carlos Ebert, afirma que não existe uma representação mais ou menos verdadeira da luz brasileira, já que ela se difere em suas diferentes regiões e que seu comentário reflete um determinado momento do cinema, não levando em conta os negativos e a sensibilidade dos filmes existentes, com latitudes muito restritas (ESCOREL, s/a). Ressalta, também, que é comum criticar a fotografia dos filmes a partir do que se imagina e não a partir do filme que de fato foi realizado. Fotógrafos como Ozem Sermet, Chick Fowle, Mario Carneiro, Luis Carlos Barreto ou Breno Silveira corresponderam às necessidades estéticas dos seus projetos e do seu tempo (ESCOREL, s/a). Dentro do projeto da Vera Cruz, Chick traz uma abordagem de iluminação que trabalha a serviço da narrativa, com uma unicidade fotográfica, mas ao mesmo tempo híbrida, como no caso de O cangaceiro, com planos com uma iluminação desenhada pensada na movimentação e na atuação dos personagens (Figura 63) e planos cuja característica tem uma abordagem mais naturalista, o que evidencia uma luz que incide de uma direção em relação à imagem (Figura 64), provinda de uma janela ou de um espaço aberto.

Figura 63 – Luz desenhada a partir da movimentação e atuação dos personagens.

Fonte: Frames do filme O Cangaceiro (1953).

108

Figura 64 – Luz incidente com característica mais naturalista.

Fonte: Frames do filme O Cangaceiro (1953).

Porém, há momentos que o mistério impera na cena, como na sequência em que Teodoro planeja libertar a professora Olívia do cativeiro do seu próprio bando, o que faz de maneira sorrateira, de forma que a iluminação totalmente silhuetada possibilita identificar o personagem pela evidência dos traços do seu rosto (Figura 65).

Figura 65 – Iluminação silhuetada.

Fonte: Frame do filme Carnaval Atlântida (1952).

O fundo iluminado de forma discreta permite identificar o acampamento e a localização dos personagens, criando um espaço entre eles frente à escuridão dos seus corpos. Um ótimo exemplo no qual o uso da contraluz faz a vez da única luz que incide nos personagens, tornando-a a principal do plano: expor apenas parte dos personagens e do cenário é suficiente para se trabalhar uma intenção misteriosa por trás das atitudes do herói da trama. Ocultar e revelar informações para o espectador na busca por certo mistério possibilita uma ambientação dos personagens na trama. 109

Em Caiçara, quando Zé Amaro leva Marina pela primeira vez à ilha, é recebida por Manuel, que passa a ter uma atração pela esposa do seu sócio. Numa demonstração de obsessão da figura de Manuel por Marina, Chick utiliza um recurso de iluminação para ocultar e depois revelar o personagem que se posta escondido em frente à casa do casal (Figura 66).

Figura 66 – Revelar e Ocultar informações.

Fonte: Frames do filme Caiçara (Plano 54) (1950).

A casa é emoldurada pela silhueta das folhagens e, quando a porta se fecha, um movimento panorâmico de câmera para a direita corrige o quadro para uma área escura, o qual antecipa a revelação da presença de Manuel ao acender um cigarro. Manuel é revelado esgueirando a casa e a recém-chegada Marina na ilha. Chick usa o artifício de revelar o personagem com a correção do enquadramento e com o uso de uma luz motivada, que simula a iluminação do fósforo ao acender o cigarro. A luz incide exclusivamente no personagem e mostra seu rosto e parte do dorso. Quando o fósforo se apaga, a luz motivada se apaga também. No filme Na senda do crime (1954), Chick também faz utilização dessa luz misteriosa em momentos cruciais da narrativa do estilo característico do film noir, de alto contraste de luz e pouca compensação. Logo no plano de abertura dos créditos, Chick capta as ruas da cidade de São Paulo entre a sombra e a luz, contextualizando, por meio da iluminação, o teor característico desse subgênero policial (Figura 67).

110

Figura 67 – Contraste do film noir.

Fonte: Frames do filme Na senda do crime (1954).

A utilização de um contraste maior nas cenas em ambientes internos evidencia um mistério, a exemplo da trama que se desenvolve ao redor de um jogo de sinuca, no qual homens discutem e são persuadidos a realizar o roubo de um colar. Esse teor que causa muito sombreamento nos rostos dos atores remete a filmes de composição dramática, como O segredo das joias (1950), dirigido por John Huston e com direção de fotografia de Harold Rosson, que foi responsável por assinar filmes como O mágico de Oz (1939) e Cantando na chuva (1952). Se esse tipo de abordagem de iluminação é associável aos film noir, outras abordagens podem remeter a diferentes representações de um mesmo estilo de imagem. Chick, por exemplo, em dois momentos da sua carreira, utiliza de uma mesma abordagem de iluminação com propósitos diferentes para a narrativa. No famoso plano de abertura de O cangaceiro, a gangue de Galdino desce por uma colina, nos primeiros raios de sol da manhã, evidenciados por silhuetas num contraluz que mostra uma grande fileira de bandidos prestes a se prepararem para avançar com seus saques e levantes (Figura 68).

111

Figura 68 – Silhuetas em contraluz.

Fonte: Frame do filme O Cangaceiro (1953).

Rebatizado pela Columbia Pictures por The Outlaws, o plano inicial mostra-se muito mais ameaçador, se tomarmos o título como referência, pois se apresenta como um prenúncio de ameaça daquele bando de cangaceiros e da violência que causarão pelos caminhos que passarão. Num propósito totalmente diferente, em Christmas under fire, pastores em seu trabalho, conduzindo ovelhas do seu rebanho perto do anoitecer, portam armas para se proteger, preparados para os eminentes ataques alemães, que eram constantemente sofridos pela Inglaterra durante o segundo Natal consecutivo em meio à Segunda Guerra Mundial (Figura 69).

Figura 69 – Silhuetas em contraluz.

Fonte: Frame do filme Christmas under fire (1953). 112

As silhuetas dos homens armados em Christmas under fire têm o intuito de exaltar a esperança e a resistência do povo, na figura dos dois homens, bem diferente do intuito ameaçador do bando de Galdino em O cangaceiro. Mesmo se a opção do fotógrafo resida num trabalho mais naturalista, com pouco uso de compensação, ou mais desenhado, com utilização de múltiplos refletores em cena, ou até mesmo com um alto contraste de luz, como o film noir, que tem suas fontes no expressionismo alemão, o mais importante é o uso que se faz dessas abordagens em prol do roteiro e da narrativa. Ricardo Aronovich destaca em seu livro Expor uma história (2004) a dificuldade de traduzir e interpretar em termos de iluminação aquilo que imagina o diretor ou o roteirista, “[...] pois a luz é algo imponderável, ao menos até que se materialize” (ARONOVICH, 2004, p. 70). No entanto, é importante ressaltar que a abordagem da iluminação em um filme não é o único fator definidor das características do trabalho do fotógrafo na obra, como relatado no começo do capítulo frente às ferramentas conceituais da cinematografia. Todo o trabalho em torno da câmera e da fotografia envolve questões que não se figuram somente ao plano em si, mas ao encadeamento desses planos. Uma questão importante de ressaltar no trabalho de Chick é seu cuidado frente às proporções das formas em relação à objetiva e à câmera frente aos diferentes enquadramentos. Um exemplo mais objetivo disso pode ser percebido em Absolutamente certo (1957), na sequência final da cena em que Zé do Lino está no programa de televisão prestes a dar as respostas finais que podem garantir a ele o prêmio de 1 milhão de cruzeiros, mas se posta hesitante frente à ameaça dos agiotas, que desejam que ele erre as respostas para que sua casa de apostas saia vitoriosa (Figura 70).

113

Figura 70 – Criação de tensão.

Fonte: Frames do filme Absolutamente certo (1957).

Os olhares de Zé do Lino frente às ameaças dos agiotas, que esperam na coxia do palco do programa, possuem uma relação espacial de proporção dos corpos que é muito parecida. É uma busca por uma relação similar ao que se faz com os planos sobre o ombro, que são filmados de forma parecida para possuírem uma aparência uniforme que “[...] embora não seja absolutamente imperativo que a distância e o ângulo da câmera e tamanho da imagem sejam exatamente iguais, eles devem ser aproximados”, para não causar estranheza ao espectador (MASCELLI, 2010, p. 201). No entanto, às vezes a estranheza e o incômodo são um artifício para causar desconforto e um exemplo disso é quando Chick faz uso do movimento para a ênfase na representação que beira a expectativa e a violência, como é o caso do uso do travelling in como recurso de aproximação frente a um ato praticado por um dos bandidos de Galdino, que marca o rosto de uma mulher com ferro quente, reivindicando-a como sua propriedade (Figura 71).

114

Figura 71 – Travelling que intensifica a violência.

Fonte: Frames do filme O Cangaceiro (1953).

O efeito da imagem e a violência praticada, que não chega a ser mostrada de fato, são extremamente impactantes, pois a aproximação em plano fechado do travelling mostra o desespero da jovem mulher no intuito de causar agonia e incômodo, num movimento de câmera muito efetivo no efeito que deseja causar (uma abordagem de movimento e enquadramento semelhante à Figura 42). E na mesma utilização da ferramenta do travelling in visando o detalhe, Chick aproxima a câmera no intuito de causar expectativa, frente ao espectador e ao público no autódromo que assiste à corrida dos Cobras, no filme Once a Jolly Swagman, em que a câmera evidencia a mão do piloto Tommy na espera do sinal para soltar o freio e arrancar a motocicleta (Figura 72).

Figura 72 – Travelling que intensifica o começo de uma ação.

Fonte: Frames do filme Once a Jolly Swagman (1949).

115

Once a Jolly Swagman é um filme com muita ação de corrida, com imagens surpreendentes e com uma operação de câmera que assume pontos de vista muito próximos dos motociclistas, o que intensifica bastante a sensação de tensão e velocidade, com bastante uso de perspectiva em relação às linhas dos cenários e da locação do autódromo com o seu circuito circular. O uso das lentes grande-angulares associado ao seu posicionamento próximo ao chão permite uma sensação de aproximação dos veículos em alta velocidade, principalmente quando as motocicletas passam bem próximo à câmera, pois o exagero da profundidade causado pela grande-angular “[...] faz as figuras que estão se aproximando ou se afastando da câmera parecem percorrer o espaço mais rapidamente” (BORDWELL; THOMPSON, 2013, p. 283) (Figura 73).

Figura 73 – Intensificação do movimento (objetivas grande angulares).

Fonte: Frames do filme Once a Jolly Swagman (1949).

A mesma abordagem feita por Chick em Once a Jolly Swagman acaba se apresentando com um adendo diferente em O cangaceiro. O raciocínio frente os efeitos óticos é o mesmo se levada em consideração a aproximação da gangue de Galdino, que se dirige ao vilarejo para realizar seus saques. Um pequeno movimento de grua descendente enfatiza as patas dos cavalos, que passam cavalgando e levantando poeira, o que, aliado ao som e à trilha sonora, evidencia os sons dos cascos que batem ao chão, como uma sonoridade que emana e anuncia a chegada dos cangaceiros. A sonoridade dos cavalos se aproximando colocam a povo do pequeno vilarejo em alerta (Figura 74).

116

Figura 74 – Intensificação do movimento.

Fonte: Frames do filme O Cangaceiro (1953).

O efeito estético do movimento no plano da Figura 73 tem uma diferenciação se comparado ao plano da Figura 74, pois além das possibilidades óticas que contribuem para a intensificação do plano, existe uma camada narrativa que vai além e funciona como prenúncio de algo terrível que está para acontecer, similar aos sons de uma tempestade que se anuncia por si só. Essas diferentes abordagens realizadas por Chick, seja frente à iluminação, ou até mesmo com a utilização de um mesmo princípio frente a diferentes possibilidades da imagem, são uma demonstração de versatilidade muito forte desse fotógrafo. O uso de metáforas visuais também é bem evidente em seu trabalho, seja uma alusão mais direta, como a justaposição da imagem por fusão, que evidencia as faíscas em um plano posterior a um beijo entre Bill e Dotty Liz, ou uma alusão mais velada, nos planos de Marina em Caiçara, cuja representação de linhas, grades e janelas remetem a sensação de aprisionamento da personagem em um ambiente ao qual ela não pertence (Figuras 75 e 76).

Figura 75 – Metáforas visuais.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950). 117

Figura 76 – Metáforas visuais.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950).

Outras peculiaridades das imagens trabalhadas por Chick também dão sinais de algumas preocupações ou até mesmo reiterações de certos tratamentos com as situações que se apresentam a ele através da câmera, desde o Movimento Documentário Inglês. A ênfase aos procedimentos educativos, à representação do povo britânico em suas diferentes manifestações sociais e culturais e, principalmente, a temáticas dos filmes frente ao advento da modernidade, que acabam modificando e muito as relações de trabalho, e não menos importante, à Segunda Guerra Mundial. Dessas experimentações visuais e fotográficas, é curioso como Chick volta e meia traz os procedimentos dos fazeres manuais para obras em que participa, seja os procedimentos de engates de trens, ou a separação e o fechamento de malotes de cartas em Night mail, ou até mesmo os preparativos de um barco que sai para o mar afora em North face. Na sua cinematografia brasileira não seria diferente, pois filmes como Caiçara, Terra é sempre terra e O cangaceiro, esses fazeres são decupados por vezes com detalhe quando não muito representados de maneira contemplativa e educativa aos moldes dos primórdios do seu trabalho (Figura 77).

118

Figura 77 – Detalhe dos procedimentos.

Fonte: Frames do filme Caiçara (1950) e Terra é sempre terra (1951).

As pessoas, os rostos e as expressões dificilmente escapavam à câmera de Chick, que chegara inclusive a captar momentos contemplativos, não só do trabalho, mas das pessoas, momentos de pura observação, como as imagens de um baile em Listen to Britain, com pessoas flertando, conversando e dançando (Figura 78).

Figura 78 – Rostos anônimos.

Fonte: Frames do filme Listen to Britain (1942).

Já no seu primeiro filme, Caiçara, Chick capta muito bem esses rostos anônimos apesar da diferente abordagem narrativa. A opção de chamá-los de “anônimos” se dá pelos 119

papéis coadjuvantes que interpretam a de representantes da população local da ilha na qual vivem os personagens principais da trama. Apesar da crítica de Robert Stam (2008) ao pouco espaço e à representação dos negros, mestiços e indígenas, relegados a aparições folclóricas e ocasionais nos filmes dos anos 1950 da Vera Cruz, a imagem dessas pessoas captadas por Chick e a forma como são expostas no filme as expressões dos rostos desses personagens vão muito além da pouca representatividade deles na narrativa (Figura 79).

Figura 79 – Rostos anônimos.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950).

É como se o tratamento dado a eles na imagem tivesse o mesmo grau de importância ou até mesmo maior, principalmente se tomadas suas expressões faciais, que parecem ter muito mais destaque e se fazem muito mais presentes e marcantes em determinados momentos do que dos próprios personagens principais. A luz de Chick que incide em seus rostos evidencia suas expressões e remete muito ao Movimento Documentário Inglês e sua abordagem frente aos “não atores”, quase como uma intimidade do fotógrafo frente a esses personagens que se apresentam, muitas vezes, até mais naturais frente à câmera. Uma visão colonialista às vezes associada ao seu trabalho pode parecer um pouco injusta com o fotógrafo, que ignorando as origens da sua carreira, acaba sofrendo críticas frente à estética da produção da Vera Cruz em conformidade com os cinemas industriais europeus e americanos. Dona Felicidade, por exemplo, personagem que representa a ex-sogra de Zé Amaro, é muito bem fotografada por Chick e não numa intenção exuberante ou exótica que a narrativa teima por enveredar, inclusive ressaltando um ritual sem nenhuma preocupação antropológica em que a personagem espeta bonequinhos de pano para praticar o mal (RODRIGUES, 2011). A casa de Felicidade e seu figurino escuro são um desafio para o fotógrafo, frente à pele escura da personagem. A situação merece um tratamento diferente na exposição do 120

negativo, já que a própria gradação tonal que possui números associados à luminância prioriza o indicativo para “rostos de pele branca”, sendo que outras tonalidades estão associadas a outros graus de reprodução da escala, mas sem um indicativo específico (ARONOVICH, 2004, p. 11) (Figura 80).

Figura 80 – A exposição da pele negra.

Fonte: Frame do filme Caiçara (1950).

O resultado é uma exposição que não só preserva a tonalidade de cor da personagem, como também destaca o seu rosto que, associado ao figurino branco da camisa e do lenço de cabeça de Felicidade, permite ao espectador fixar seu olhar entre esses altos pontos de luminosidade. O rosto acaba situado entre esses dois elementos brancos, o que contribui para guiar o olhar para essa área segmentada do plano, que acaba se fixando nas fortes expressões da personagem destacada não somente pela força da imagem da atriz no filme, mas também por sua atuação. O cenário, majoritariamente escuro, acaba evidenciado por texturas que são ressaltadas pela iluminação oblíqua do fundo e em nenhum momento comprometem a movimentação e a atuação da personagem. O mesmo princípio também é utilizado com a personagem de Ruth de Souza no filme Ângela (1951), que interpreta a funcionária de Vanju (), amante de Dinarte (Alberto Ruschel), homem envolvido com jogos de azar, que acaba adquirindo uma grande propriedade rural de uma família endividada. Nas poucas cenas em que aparece, Ruth de Souza é destacada pela fotografia cinematográfica em concordância com as opções de figurino e cenário (Figura 81).

121

Figura 81 – Valorização da pele negra.

Fonte: Frames do filme Ângela (1951).

Percebe-se uma lógica de tratamento das tonalidades que evitam uma sobreposição de claro com claro, e escuro com escuro, perceptível principalmente no figurino claro de Ruth de Souza e no terno do agiota. Uma ressalva é válida nesse momento para o filme Sinhá Moça (1953), dirigido por Tom Payne e Oswaldo Sampaio e fotografado por Ray Sturgess. Esse adendo é referente à forma como a fotografia retrata e exalta com muita beleza a representação dos personagens negros do filme. Sinhá Moça foi um dos filmes de maior êxito da companhia e retrata uma história ambientada no período que precede à abolição da escravatura no Brasil, em 1888. Na narrativa, Sinhá Moça (Eliane Lage) luta pelos ideais antiescravagistas e ganha apoio de Rodolfo (Anselmo Duarte), um advogado que passa a atuar estrategicamente para ajudar os escravos a fugirem da senzala ao mesmo tempo em que defende a escravidão frente às autoridades. O filme possui uma plasticidade que remete a E o vento levou (1939), de Victor Fleming, e Rodolfo disfarçado evoca o personagem de Zorro. No entanto, George Sadoul escreve que o filme mostra algo que a obra americana não retrata: os negros acorrentados e chicoteados até a morte (SINHÁ MOÇA, 2017). Em 1954, o filme ganha dois prêmios internacionais, o Leão de Bronze, no Festival de Veneza, e o Urso de Prata, no de Berlim. O filme conta com um grande plantel de atores negros que, apesar de terem um protagonismo relegados a segundo plano, possuem uma presença muito forte na narrativa, vistos quase sempre com os troncos desnudados pela falta de roupa e pelo descaso frente aos belos figurinos das figuras brancas do filme (Figura 82).

122

Figura 82 – A exposição da pele negra.

Fonte: Frames do filme Sinhá Moça (1953).

A maquiagem que reforça o brilho do corpo dos personagens que ressalta a vitalidade e o vigor, sobre a luz desenhada de Ray Sturgess, preserva as características da pele e o contorno dos seus corpos, que sempre estão em evidência, independentemente do tipo de iluminação do plano. No entanto, isso acaba reforçando a impressão de que seus corpos estão sempre suados, o que de certa forma corrobora o contexto da exploração pelo trabalho, mas que não necessariamente representa uma característica natural do corpo. Sobre a questão do espaço do negro no cinema da época, João Carlos Rodrigues ressalta:

A partir dos anos 1950 o número de atores negros aumenta, mas alguns, depois de uma interpretação memorável, nunca mais encontraram um papel a altura das suas possibilidades. Como é o caso de Henricão (Henrique Felipe Costa), o líder quilombola de Sinhá moça (1953); Milton Ribeiro, o capitão Galdino de O cangaceiro (1952) [...] São bem poucos na verdade os que lograram impor uma diversidade dentro da continuidade. Ruth de Souza e Léa Garcia foram nesse sentido pioneiras. Oriundas do teatro Experimental negro, em períodos diferentes, Ruth foi contratada da Vera Cruz, onde teve sua melhor intepretação como mucama de Sinhá Moça (1953); Léa esteve em Orfeu Negro, na peça e no filme (1959). Ambas poderiam ter sido melhor aproveitadas. Trabalharam menos do que mereciam (RODRIGUES, 2011, p. 133).

Mais no final dos anos 1950, com o advento da discussão a respeito do cinema nacional e popular, o negro começa a ter uma representação positiva, sendo Rio, 40 graus (1957), de Nelson Pereira dos Santos, o expoente dessa representação, que começa a colocar o negro no verdadeiro protagonismo da narrativa. 123

E para encerrar esse breve apanhado das abordagens de Chick Fowle como fotógrafo, duas situações se mostram inusitadas e demonstram a gama de possibilidades criativas pela qual esse profissional se deparou. A primeira delas é frente a um número musical típico das chanchadas brasileiras. O filme Absolutamente certo, diferente das chanchadas cariocas, introduz esses números dentro de um contexto da narrativa do filme, apresentadas ou no início do programa de televisão Absolutamente certo ou num jantar de celebração do protagonista. E no número musical a participação especial fica a encargo do grupo Trio Irakitan, com a música “Zezé” (1957): “Zezé, Zezé; até um cego pode ver; Zezé, Zezé; que eu tô doidin por você; Zezé, Zezé; mesmo assim não sei por que, que todo mundo sabe desse amor, menos você”. A música é cantada repetidamente em diferentes línguas e em diferentes cenários, sendo que cada espaço desses, por onde passam os músicos e Zezé, representa um país com seu gênero musical e que, coincidência ou não, são países com tradição cinematográfica, como México, Estados Unidos, França, Itália e também o Brasil. Ao final do número musical, Zezé sai correndo pelos cenários que estão emparelhados um ao lado do outro. Na passagem por cada um deles, é possível perceber o tratamento frente à caracterização de luz de cada espaço, cada um com suas peculiaridades, seja evidenciado pelas texturas do cenário, pelas lâmpadas de rua, pela forte contraluz, ou pela luz teatral que seguem os personagens. Diferentes soluções frente a diferentes situações de caracterização (Figura 83).

Figura 83 – Travelling dos cenários de números musicais.

Fonte: Frame do filme Absolutamente certo (1957). 124

A segunda situação inusitada envolve o filme O cangaceiro, numa sequência em que Teodoro finalmente se vê sem saída sobre o encalço da gangue de capitão Galdino, resolvendo, então, preparar-se para a luta, após conduzir a professora segura em liberdade. O primeiro tiro disparado é o dele e vai diretamente no capitão que, furioso e ferido, pede a aniquilação do traidor. O plano que demonstra o tiro (Figura 84) é pensando num ponto de vista de primeira pessoa, muito bem centralizado no quadro, num foco profundo que evidencia a mão do atirador num processo catártico que ganha força em meados dos anos 1990, com a introdução comercial do primeiro jogo de First Person Shooter (FPS), ou jogo de tiro em primeira pessoa: Wolfenstein 3D27.

Figura 84 – First Person Shooter.

Fonte: Frame do filme O Cangaceiro (1953).

27 Wolfenstein 3D é um jogo de videogame de tiro em primeira pessoa, desenvolvido pela id Software e publicado pela Apogee Software e FormGen. Originalmente lançado para DOS, em 1992, foi inspirado no videogame Castle Wolfenstein, de 1981. Em Wolfenstein 3D, o jogador assume o papel do espião aliado William “B.J.” Blazkowicz durante a Segunda Guerra Mundial enquanto escapa da prisão nazista alemã Castle Wolfenstein e realiza uma série de missões cruciais contra os nazistas. O jogador atravessa cada um dos níveis do jogo para encontrar um elevador para o próximo nível ou matar um chefe final, lutando contra soldados nazistas, cães e outros inimigos com facas e uma variedade de armas.

125

Esteticamente, uma imagem bem centralizada, com uma arma bem fixada num artifício em que a câmera e a arma se movem juntas como parte de um só corpo. Um plano que parece pensado como referência aos modelos de videogame de batalhas em primeira pessoa se não fosse a diferença de 40 anos entre ambas as criações.

126

3 DÍVIDA PAGA: A PROMESSA DE UM NOVO CINEMA

A década de 1950 e 1960 é um marco na história do cinema brasileiro, com uma efervescência de pensamentos, de crítica e com a erupção de uma nova forma estilística, que culminaria no tão conhecido movimento do Cinema Novo28, que teria como seu principal representante o jovem cineasta Glauber Rocha. Uma abordagem mais ampla de toda a história e relações que envolvem o surgimento desse movimento são muito bem relatados no livro Nova história do cinema brasileiro, organizado por Fernão Pessoa Ramos e Sheila Schvarzman. A riqueza com que é relatado todo o surgimento desse movimento é muito instigante e rico, capaz de transportar o leitor para o contexto da época e fazer sentir um pouco as aspirações daqueles jovens cineastas em seus encontros na boêmia carioca. Considerando a abordagem feita por esses autores, alguns aspectos são importantes destacar. Ao se tornar Glauber uma espécie de líder desse movimento (sem deixar de lado, obviamente, Alex Viany29), o jovem Nelson Pereira dos Santos pode ser considerado o impulsionador, com o seu filme Rio, 40 graus, de 1955. Assim como o filme O grande momento (1958), produzido por Nelson e dirigido por Roberto Santos, que também entra no hall de grande influência para os jovens cineastas baianos e cariocas que ansiavam por um novo cinema. Nele, se “[...] nota a presença da inspiração neorrealista como horizonte novo para o cinema, conforme antevisto na geração que conviveu criticamente com os grandes estúdios”, e com ótima recepção da crítica, “[...] pois faz coincidir a perfeição dramatúrgica da mise-en-scène com ritmo e imagens bem cuidadas, articulando ainda as preocupações do realismo social” (RAMOS, 2018, p. 26). O modo como foi concebido Rio, 40 graus deu um vislumbre das possibilidades dessa desvinculação dos estúdios e abriu caminhos para as produções independentes e modos particulares de produção. Dessa forma,

[...] é o sistema particular de produção que dá a Nelson maior liberdade em termos estilísticos para inovar na forma narrativa cinematográfica, promovendo a disposição da trama em universo popular, por intermédio de fait divers que se sucedem (RAMOS, 2018, p. 24).

28 De maneira geral, pode-se dizer que o Cinema Novo é um movimento da década de 1960, pautado na renovação do estilo cinematográfico brasileiro, com forte marca do realismo e da crítica social, com base na concepção de cinema autoral e com baixo orçamento de produção. 29 Jovem diretor que circunda o Partido Comunista Brasileiro (PCB), com formação crítica e experiência cinematográfica, figura-chave para entender um pré-Cinema Novo, pelas articulações que fez em prol de uma nova política cinematográfica (RAMOS; SCHVARZMAN, 2018). 127

Esse filme de 1955 é considerado um percursor do Cinema Novo, pelos aspectos particulares de abordagem do popular, numa figuração já contemporânea ainda desconhecida do cinema, com os morros, cinco meninos negros vendedores de amendoim (com ênfase na história de Jorge, que precisa cuidar da mãe doente), um domingo típico carioca, muitas tramas, fios condutores narrativos que se intercalam mesmo que por vezes de forma superficial, com dilemas encontrados em dois universos de bruscas diferenças sociais, nos quais os pontos turísticos “aparecem como símbolo da exclusão dos pequenos favelados” (TOLENTINO, 2001, p. 144). Vale ressaltar que, na mesma época, a crítica, que antes desmerecia e muito as chanchadas brasileiras, passa a reconhecê-las como um produto genuíno brasileiro. Isso se deve ao fato de que a “chave intelectual para a análise fílmica” possibilitou a abertura de novas interpretações dessas obras, de cunho carnavalesco e da intensidade da “figuração popular” apresentada nos filmes (RAMOS, 2018), como algo que o Cinema Novo teve dificuldade em lidar, por não aceitar com facilidade as referências que vêm do estrangeiro, mesmo em números musicais e paródias (assunto muito caro a Alex Viany). Isso propiciou um destaque maior para a obra de Anselmo Duarte, Absolutamente certo (1957), considerada uma chanchada respeitável, em detrimento aos “lamentáveis especialistas do gênero” (GOMES, 2016), merecedor de elogio de um crítico ferrenho, como Glauber Rocha, que o considera como uma boa produção:

Absolutamente Certo, sua estreia diretorial, após ter participado do roteiro de Depois eu te conto, é um passo positivo na evolução da chanchada para o filmusical carnavalesco. O senso de humor, a espontaneidade narrativa, e o detalhe opinativo, heranças do realismo carioca, imprimiram neste filme esperanças quanto ao futuro do ator convertido em cineasta (ROCHA, 2003, p. 160).

No entanto, o movimento do Cinema Novo acirra as discussões que pendem para o aspecto político, muito visto em Glauber Rocha e Paulo Emílio Salles Gomes. Por isso, o olhar para obras como Rio, 40 graus em detrimento a determinadas produções da época, que se dissociavam das ideologias nascentes desse novo movimento, mas que necessariamente não deixavam de ser políticas e com abordagens de questões sociais. Isso fica claro nos textos que o próprio Glauber escreveu para imprensa e que se tornaria o livro Revisão crítica do cinema brasileiro, editado em 1963, e que estabelece uma historiografia brasileira própria a partir da sua visão, associando filmes que corroboram sua construção histórica, cujo ponto máximo se exprime no Cinema Novo (SCHVARZMAN, 2008). 128

Tais ideais justificam o grande apreço por Rio, 40 graus, cuja abordagem estilística está diretamente ligada a uma produção independente, alternativa aos grandes estúdios, segundo as aspirações de um jovem cineasta, que mesmo com suas deficiências, que acabam sendo “escamoteadas” devido à “variedade de situações” e à “vivacidade do tratamento”, é uma grande obra cinematográfica do cinema brasileiro (GOMES, 2016). E mesmo Nelson, por vezes, não escapa à crítica que acabou sendo mais incisiva com o seu segundo filme de uma suposta trilogia, o Rio, Zona Norte30 (1957), filme acusado de não ser neorrealista, conceito no qual a crítica se apoiava na época. Fernão Ramos destaca que na verdade o filme paira “[...] sobre uma demanda de um realismo mais rasteiro e banal, quando a crítica com viés mais pra esquerda (um dos alvos do comentário é certamente Viany, que foi bastante ‘azedo’ com o filme) talvez estivesse esperando uma obra mais amarrada dramaticamente” (RAMOS, 2018, p. 26). Como o estilo é um aspecto importante neste trabalho, é importante destacarmos as abordagens de Rio, 40 graus para fazer um contraponto importante. Essa é uma obra que busca muitas referências no neorrealismo e na vontade de retratar o povo e que mostra locações e pontos turísticos muito conhecidos do Rio de Janeiro, como as praias da Zona Sul, o Maracanã e a Central do Brasil. A figura de Miro, o “malandro respeitado”, personagem de Jece Valadão, pai de família “vagabundo” e bêbado; a constante extorsão sofrida pelos garotos que vendem amendoim, no caso a vida de Jorge acidentalmente tirada, tem o objetivo de mostrar (no âmbito do povo) a constante de uma sociedade destruída, cujos diferentes escalonamentos sociais e “balanças de poder” acabam prevalecendo. No que tange aos artifícios narrativos do filme como um todo, trama e planos são utilizados para “dar o seu recado” à sociedade, sendo que o diretor envolve o espectador com ideias que permeiam a alienação e o sacrifício centrado no personagem de Jorge (Figura 85).

30 Rio, Zona Norte relata as desventuras de um compositor popular, Espírito, encarnado por Grande Otelo, que é obrigado a vender seus sambas para sobreviver (RAMOS, 2018, p. 25). 129

Figura 85 – Corpo de Jorge estendido no chão

Fonte: Frame do filme Rio 40 graus. (1955)

Nesta cena da morte de Jorge, tem-se não só a “espetacularização” da cena, como as adversidades as quais uma classe menos favorecida é submetida, que, no dizer de Lapera, alia-se ao:

[...] objeto a tragédia que auxilia a exposição tanto da exploração a que o povo é submetido como das estratégias de dominação das massas que, segundo a retórica do filme, seria identificada no futebol e, em menor escala, na religião (cuja presença é metaforizada pela vela acesa ao lado do corpo do menino) (LAPERA, 2015, p. 182).

Nos aspectos narrativos das sequências e planos, percebe-se a cronologia que corresponde a um dia na vida de todos esses personagens, com o uso de técnicas provenientes do modo clássico hollywoodiano, porém modificadas, ou melhor, adequadas à narrativa. Nesse sentido, é evidente a ausência de planos e contraplanos em diálogos, maquiados por close-ups que não se alternam entre os personagens. Sai-se de um plano conjunto para um plano mais fechado, ou, até mesmo, alternando o diálogo entre dois personagens, com variação de ângulos e posicionamento de câmera devido à movimentação em quadro, na busca por um diferente ponto de vista que beneficie a visualização da ação. A encenação em profundidade de campo também é algo marcante no filme, com ações prioritárias acontecendo em primeiro plano, mas com camadas de ações em segundo ou terceiro plano, com bastante destaque para o background em relação aos turistas que passam, ou para dar enfoque às damas belamente vestidas, cuja panorâmica acompanha o caminhar do grupo no parque, para logo em seguida mostrar a situação precária dos pequenos vendedores de amendoim: contrapontos que evidenciam o distanciamento de classes pela justaposição de 130

camadas narrativas que convergem ou têm interação, motivadas por algum conflito ou iniciativa dos personagens principais da trama na luta diária para venderem seu produto. Em determinadas situações, essas ações secundárias tomam espaço quando os personagens em primeiro plano saem de quadro. Isso aponta para uma questão de fundo entre a realidade mostrada e a vivida. No entanto, vale notar que a profundidade de campo também agrega a composição de outros elementos na cena, como no caso do Cristo Redentor (Figura 86), que, estando acima dos personagens, acaba dando atenção ao casal, que se vira de costas à condição humana dos meninos (uma metáfora em relação a religiões que se interessam pelos “bem aquinhoados”), sendo muito mais cúmplice das tramoias do coronel em detrimento das situações de vida dos jovens personagens do morro, como se, aos “olhos do divino”, a situação deles pouco importasse.

Figura 86 – Profundidade de campo: Cristo, O Redentor

Fonte: Frames do filme Rio 40 graus. (1955)

Características como essa marcam uma abordagem estilística bem própria de Nelson Pereira dos Santos, de grande criatividade, a qual mostra domínio de mise-en-scène e a movimentação de seus personagens, inclusive elaborando enquadramentos que dão uma alusão às situações consideradas “certas” e “normais” do cotidiano versus àquelas “desconhecidas” ao espectador e consideradas “caóticas” na sociedade, um contraponto evidente entre classes. De forma geral, a iluminação de Rio, 40 graus é bem naturalista e faz uso de bastante rebatedores, bem como de luz de compensação, além de priorizar, nas cenas externas, o ataque dos personagens no eixo da câmera para iluminá-los bem. Carlos Ebert inclusive ressalta que Hélio Silva fica conhecido no meio fotográfico com esse filme pelo uso de grande intuição na fotografia, aliada a uma improvisação com o desenvolvimento de “traquitanas” que foram possíveis para atingir determinados movimentos de câmera no filme (EBERT, s/a). 131

Todas essas abordagens estilísticas de Rio, 40 graus fazem do filme uma obra cara ao Cinema Novo, mas, também, principalmente pelo fato de relatar uma realidade mais chocante, algo que acaba sendo evidenciado muito mais a partir do manifesto da “Estética da Fome”, de 1965, num propósito de ruptura com os elementos de uma cultura civilizada, consequentemente com o estilo cinematográfico do mainstream. É de conhecimento amplo a efervescência da escrita de Glauber. É importante se reter em suas críticas a “reflexão de rara intensidade” e a forma “visceral” da sua escrita, como destaca Ismail Xavier, no prefácio de Revisão crítica do cinema brasileiro (ROCHA, 2003), num livro que exerce força militante e estabelece diversos confrontos que demarcam o território (a exemplo de filmes de Humberto Mauro), buscando uma nova forma de representação da cultura nacional, de maneira mais intervencionista, cabendo ao cinema esse papel fundamental:

Nesse sentido, o resgate das práticas e representações populares tinha uma dupla função para o cinema: era imprescindível para que o cinema aqui produzido pudesse ser chamado de Cinema Nacional e atuava como forma de recuperação de uma “memória popular” de resistência política à maciça entrada no país de produtos culturais estrangeiros e particularmente norte- americanos (LINO, 2000, p. 120).

No entanto, no que tange à fotografia cinematográfica, não existe distância ou abismo estilístico entre obras como a de Rio, 40 graus, se comparada aos filmes com a direção de fotografia de Chick Fowle, mostrados nos capítulos anteriores. A presença do que é por vezes classificado como fotografia “clássica” ou “acadêmica” tem traços muito presentes nas obras de Nelson, de Humberto Mauro, inclusive, nas produções cinematográficas do próprio Cinema Novo. A esse respeito, Carlos Ebert ressalta um ponto extremamente importante no que tange ao cinema brasileiro nessa época, contrariando uma opinião generalizada, a de que o advento do Cinema Novo não causou ruptura na cinematografia nacional. No campo da fotografia cinematográfica, a transição se deu de forma gradual, “[...] com muitos profissionais experientes emprestando sua técnica e talento aos novos filmes” (EBERT, s/a). Hélio Silva, por exemplo, fora assistente de Mário Pagés no filme Agulha no palheiro; Ozen Sermet foi diretor de fotografia de alguns dos episódios de Cinco vezes favela; Tony Rabatoni, formado na Vera Cruz, fora fotógrafo de Barravento e de Os cafajestes (1961), de Rui Guerra e José Rosa, sobrinho de Edgar Brasil e ex-assistente de Mario Pagés e Amleto Daissé, que fotografou Vidas secas (com L.C. Barreto), do próprio Nelson Pereira dos Santos e a Selva trágica (1964) (EBERT, s/a). 132

As diferenças dos filmes desse novo movimento não se diferenciam tanto no aspecto da fotografia, mas, sim, no aspecto narrativo e de como a realidade e a cultura brasileira são mostradas, segundo as buscas que o Cinema Novo desejava implantar. Porém, notada diferença é perceptível na cinematografia de Glauber, pautada no cinema de autor, anti-industrial que não buscava somente um engajamento social. Ele queria “[...] maior ênfase na análise do estilo e invenção de uma linguagem ajustada à carência de recursos em tensão com as questões da cultura e da formação nacional [...] sua revisão crítica é pensada a partir do presente, do projeto estético do Cinema Novo” (SCHVARZMAN, 2018, p. 13). Frente à crítica, principalmente de Glauber, na “construção” desse projeto do Cinema Novo, figuras como Mário Peixoto, Lima Barreto, Alberto Cavalcanti e Chick Fowle, este último em consequência da filiação aos dois cineastas (Lima e Cavalcanti), acabam sendo alvos daquilo que não representava o “novo movimento” de fato, mesmo com fotógrafos experientes permeando essa transição. Essa associação acaba implicando numa tensão entre críticos e cineastas em relação a algumas obras, como Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias, e a obra objeto de análise desse capítulo, O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte. Essas arestas são perceptíveis nos embates ideológicos entre o CPC31 e os cinemanovistas, já que o segundo grupo questionava que a representação do popular só poderia ser alcançada por meio do questionamento formal do classicismo narrativo, por ser classificado como uma forma “burguesa”, portanto antipopular, indo de encontro à exposição dos intuitos originais por meio da “sintaxe das massas”, valorizada no discurso do CPC (RAMOS, 2000). Apesar de não serem considerados como Cinema Novo, essas obras são essenciais à compreensão da dinâmica do movimento, considerando-se que Assalto ao trem pagador teve mais de um milhão de espectadores no Rio de Janeiro e é hoje um clássico do cinema brasileiro, sendo ao mesmo tempo autoral e comercial.

Sucesso de público e crítica, filme à americana e totalmente brasileiro, mescla uma estética clássica às ideias do Cinema Novo. [...] Baseado num fato real (o ataque ao trem pagador em Japeri, perto do Rio de Janeiro, em 1960), o filme

31 O Centro Popular de Cultura (CPC) foi uma organização associada à União Nacional de Estudantes (UNE), composta por um grupo de intelectuais de esquerda, com o objetivo de criar e divulgar uma “arte popular revolucionária”, reunindo diversas áreas artísticas para defender o caráter coletivo e didático da obra de arte, bem como o engajamento político do artista. O centro foi criado em 1962, no Rio de Janeiro, e alguns cineastas, como Alex Viany e Leon Hirszman, compunham o grupo. O filme Cinco vezes favela, de 1962, considerado uma das obas fundamentais pré-cinemanovista, foi produzido pelo CPC e conta cinco histórias separadas, cada uma delas com diferentes diretores. 133

se inscreve nas linhagens do filme de ação tradicional (tema recorrente nos cinemas ocidentais), do cinema-verdade (a câmera e o drama partem do ponto de vista do povo desfavorecido dos barracos) e do cinema de denúncia sociopolítica (o roubo e a violência são as saídas propostas aos miseráveis numa sociedade antropofágica) (DESBOIS, 2016, p. 125).

Em relação ao O pagador de promessas, Desbois o classifica como a “quintessência” do que se fazia anteriormente, uma consagração de obras relacionadas ao estilo clássico (a exemplo da Vera Cruz) até aquele momento, sendo a vitória em Cannes “[...] ao recompensar Anselmo Duarte, Chick Fowle e a qualidade técnica de certo profissionalismo, trata-se de uma vitória póstuma da Vera Cruz” (DESBOIS, 2016, p. 130). Para o autor, Ganga Zumba (1963), de Cacá Diegues, e a trilogia do sertão com Os fuzis (1964), de Ruy Guerra, Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, representariam, em 1964, no mesmo festival de Cannes, um novo movimento “recém-eclodido”, um sonho que acaba “desarticulado” pelo então Golpe de Estado militar no Brasil, no mesmo ano do festival (DESBOIS, 2016). Deus e o diabo na terra do sol foi certamente o marco do Primeiro Cinema Novo32 e, como outra obras do cinema brasileiro, também sofreu críticas ríspidas, como a de Benedito J. Duarte, que o classificou como um filme “primário”, com “projeção trêmula, quadros trepidantes, incríveis vaivéns de panorâmicas sem função, iluminação precária da fotografia (não raro fora de foco), totalmente apartada da dramaturgia cinematográfica, ausência de qualquer elemento criador na montagem, narrativa fragmentada, descosida, muitas vezes incompreensível” (DUARTE, 1974 apud DESBOIS, 2016, p. 116). Para Anselmo Duarte, os cinemanovistas “rasgaram a Cartilha cinematográfica” e, a partir desse movimento, o “filme brasileiro virou sinônimo de filme mal feito” (MERTEN, 2004, p. 150). No entanto, a textura fílmica de Deus e o diabo na terra do sol, da câmera stylo, são justamente os elementos que dão à obra um caráter original e inovador, tornando-a uma das mais célebres obras fílmicas do cinema brasileiro. Nessas disputas de egos e primazias, que eram muito frequentes entre os cineastas da época, Anselmo Duarte relata que a vitória em Cannes, com O pagador de promessas anos antes, foi o que “cavou o fosso” que o separou do Cinema Novo, já que, para ele, os jovens cinemanovistas não tinham muito respeito intelectual pelo “ex-galã”, considerando-o parte do

32 São consideradas três fases do Cinema Novo que se diferem em tema, estilo e assunto. A primeira fase vai de 1960 a 1964, a segunda de 1964 a 1968 e a última vai de 1968 a 1972, aproximadamente. 134

movimento, para anos mais tarde situar o filme como fronteira entre o velho e novo (MERTEN, 2004). Ainda em seu relato no livro de Luiz Carlos Merten, Anselmo Duarte considerava Glauber como um amigo antes desses impasses históricos. Chama-o de “intelectual político”, mas também de um “analfabeto em cinema”, ao criticá-lo na forma de fazer cinema, afirmando que ele:

[...] enquadrava errado, botava as pessoas falando dos dois lados e dizia que aquilo era Cinema Novo. E conseguiu convencer meio mundo com o argumento que aquilo era contrário a Hollywood. Nunca engoli essa, acho que a geração de Glauber praticou o pior cinema da história (MERTEN, 2004, p. 150).

Porém, Anselmo não relata em seu depoimento a Merten que Glauber, na época um jovem jornalista baiano, colaborou e muito à realização do filme ao apresentar a equipe paulista ao prefeito da Bahia, na época, e mostrar e indicar locações, conseguindo, inclusive, a licença com o corpo de bombeiros (o que Duarte comenta vagamente) sem ganhar nada com isso e sem ter seu nome sequer citado nos créditos, como relata Vera Barroso ao programa televisivo da TV Brasil intitulado De lá pra cá (2012). Esses são indicativos de um embate histórico que tomou grandes proporções num momento delicado do cinema brasileiro frente a uma afirmação do fazer cinematográfico de cada diretor. Continuando, em relação às ideias cinemanovistas, Laurent Debois lista alguns aspectos que elucidam se O pagador de promessas “é ou não é” Cinema Novo ao afirmar que o filme de Anselmo é clássico e não inova, com atores dirigidos de forma teatral, com magnífica música de Gabriel Migliori e “fotografia apurada de Chick Fowle (ex-Vera Cruz)”, mas que “bebe no reservatório popular do naturalismo neorrealista do Cinema Novo”, com um social que se “[...] mistura à crítica da intolerância religiosa e política, numa metáfora anunciadora de uma crise que levará o país rumo a uma ditadura” (DESBOIS, 2016, p. 130). Novamente, alguns juízos de valores estéticos (muito presente na crítica do cinema) que teimam em estigmatizar certas obras, cujos argumentos se fundam em palavras como “teatral” em detrimento a um complexo esquema de mise-en-scène, ou “fotografia apurada” (dando ênfase à sua conexão à Vera Cruz, historicamente relatada como companhia tecnicista) acabam desconsiderando uma abordagem fotográfica de caráter bem realista, direta e simples, porém, extremamente cuidadosa em sua concepção, mesmo com recursos orçamentários limitados:

135

Como tínhamos pouco dinheiro, o filme teve que ser feito a toque de caixa. Filmava rapidamente, com medo que estourar os prazos e, mesmo assim, no segundo mês, acabou a verba e tivemos de devolver os equipamentos à Vera Cruz. Só consegui concluir O Pagador porque havia uma equipe francesa filmando O Santo Módico em Salvador e eles, por solidariedade, me emprestaram a câmera para as tomadas que faltavam (MERTEN, 2004, p. 133).

Importante também uma exposição interessante de Hernani Heffner no programa De lá pra cá, de 2012, da TV Brasil, no qual relata uma conversa com Geraldo Gabriel, cameraman de O pagador de promessas, a respeito dos movimentos que se fazia com a câmera e que “Geraldinho dizia ‘nossa Hernani quando fazia a curva era uma loucura, porque não tinha onde segurar’, então as pessoas seguravam aquilo na mão, no muque [...] mas o resultado; era um resultado excepcional” (O PAGADOR DE PROMESSAS, 2012). O resultado do filme como um todo, as soluções, os improvisos, assim como em Rio, 40 graus, fazem emergir atualmente um novo olhar a O pagador de promessas, distante da efervescência da época, que se debruça também em obras como a de Assalto ao trem pagador. É o que nos mostra os trechos da fala de Cacá Diegues, e Silvio Back em uma reportagem de Alexandre Maron, intitulada Absolutamente Anselmo, da Folha de São Paulo, datada de 2000:

O diretor Cacá Diegues, por exemplo, diz que não entende porque um vencedor como Duarte guarda tantas mágoas. “Ele é uma figura histórica do cinema brasileiro, com uma trajetória muito pessoal. Acho que ele atribui ao cinema novo uma certa falta de atenção ao cinema dele, mas nenhum movimento tem poder para destruir a obra de alguém, principalmente a dele.” “Hoje, penso que é possível ver além do confronto entre Anselmo e os cinemanovistas. Visto com recuo, ‘O Pagador de Promessas’ foi uma adaptação clássica, mas vigorosa da peça de Dias Gomes. Anselmo Duarte teve um papel importante na história do cinema brasileiro”, afirma Walter Salles, que dirigiu “Central do Brasil”. Silvio Back é outro diretor que admira Anselmo Duarte. Para ele, Duarte foi “crucificado pela soberba da geração do cinema novo”. “Ele é um arquivo vivo do nosso cinema, o outro lado da história oficial do cinema brasileiro.” (MARON, 2000).

De fato, os anos 1960 foram anos de ebulição cinematográfica, em que um mergulho histórico mais profundo permite ao estudioso “sentir” um pouco o que acontecia numa época tão controversa, controversa a ponto de o próprio Chick ter sua trajetória e seu trabalho de fotografia questionado, sendo que ele, como muitos outros profissionais, acaba aliando o seu conhecimento e a sua experiência à produção de obras de cunho pré- cinemanovista, como é o caso do curta-metragem Ana (1955), que irá compor o filme Rosa dos Ventos (1957), uma produção filmada em cinco países, produzida pelo Partido Comunista da 136

Alemanha Oriental, sob organização do cineasta holandês Joris Ivens (1898-1989), que tem na fome sua temática principal. O curta nunca foi exibido no Brasil, cuja produção ficou a encargo da Companhia Cinematográfica Maristela, como relata Máximo Barro, no livro de Laurent Desbois (2016):

A direção da parte brasileira fora confiada a Cavalcanti, que, por motivos pouco explicáveis, repentinamente partiu para a Europa, assumindo em seu lugar Alex Viany. É indiscutivelmente seu melhor trabalho. Cru, direto, sem concessões. A fotografia de Chick Fowle antecede de muitos anos o que veremos em Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol. Nunca foi exibido comercialmente no Brasil. Pena, porque é um filme que muito nos honra artisticamente (BARRO, 2009 apud DESBOIS, 2016, p. 81).

Na continuação do texto, Laurent Desbois faz uma reflexão muito pertinente, cuja citação33 é importante para ampliar as reflexões acerca da fotografia de Fowle, que pode, em partes, ser associada àquilo que buscava o Cinema Novo em termos de imagem, principalmente pela importância da textura fílmica de Ana, que implica diretamente em O pagador de promessas, do ponto de vista estilístico da fotografia cinematográfica. O curta em si é merecedor de uma atenção especial em termos de análise, mas cabem aqui alguns realces muito importantes para entender uma variação na fotografia cinematográfica de Chick frente aos movimentos da época. Nesse trabalho, Chick potencializa a fotografia realista e utiliza praticamente a luz do sol em sua totalidade. O uso de refletores só era feito em algumas situações, no caminhão “pau de arara” e nas cenas noturnas, mas o uso de rebatedores para refletir a luz do sol é de uso muito mais característico (Figura 87).

Figura 87 – Potencialização da luz do sol com uma compensação difusa

Fonte: Frames do filme Ana. (1955)

33 O Cinema Novo, apesar da participação de Trigueirinho Neto (roteirista) e Alex Viany, poderia reconhecer sua dívida para com aqueles contra quem se insurgia, como Cavalcanti e Fowle (Vera Cruz), Audrá (Maristela)? Para justificar o nome “Novo”, não seria preciso tabula rasa? (DESBOIS, 2016, p. 81). 137

E não são características de espelhos, como usados em alguns planos de O cangaceiro (Figura 88), cuja luz refletida possui traços mais fortes e marcantes. Em Ana, a reflexão, apesar de possuir intensidade, tem característica difusa, mesmo nos personagens masculinos34.

Figura 88 – Potencialização da luz do sol com uma compensação por espelhos

Fonte: Frames do filme O Cangaceiro. (1953)

Essa abordagem de iluminação fotográfica tem preocupação com a verossimilhança da luz encontrada no dia a dia, muito similar à abordagem do cinema documental, sem a preocupação com o desenho de luz em três pontos (ataque, compensação e contraluz), muito característico do cinema narrativo. Mesmo quando existe a preocupação de iluminar, isso se faz de modo a ocultar ao máximo a presença dessa luz, a ponto de termos cenas de close-up da personagem principal com a ausência total de qualquer compensação, realçando a característica presente da iluminação do sol naquele momento do dia, muito perceptível nas sombras que incidem no olho e no nariz da personagem Ana (Vanja Orico), que indicam um sol praticamente a pino, o que exalta ainda mais a característica do realismo fotográfico (Figura 89).

34 Normalmente, a luz difusa é mais usada para destacar personagens femininos, a fim de preservar os traços do rosto. 138

Figura 89 – Realismo Fotográfico (Close-up)

Fonte: Frame do filme Ana. (1955)

Uma referência de esquema de iluminação usada muito por Chick nas externas de Caiçara (apresentado no capítulo 2) pode ser observada num plano no caminhão, na sequência do filme. Com uma contraluz que incide em Ana e nos demais personagens que estão no caminhão, supostamente a caminho de São Paulo, o único plano no qual a contraluz é evidentemente predominante (Figura 90) é esse que faz parte de uma sequência em que uma viajante está prestes e dar à luz um bebê no meio da viagem.

Figura 90 – Realismo Fotográfico com ênfase no contra luz

Fonte: Frame do filme Ana. (1955)

Um realismo fotográfico criado com o uso de refletores à maneira de luz justificada, em que se tem um lampião mostrado na cena e que pode ser percebido também (Figura 91) com um esquema de luz contrastado, muito utilizado por Chick em Caiçara, Terra é sempre terra e 139

O cangaceiro, o que dava um prenúncio de uma preocupação mais realista com essas características de cenas anteriormente em seus outros filmes.

Figura 91 – Esquema de iluminação noturno

Fonte: Frame do filme Ana. (1955)

Certamente, o tratamento da cena, por mais que seja a representação de uma realidade duramente vivida por esses personagens, dormindo amontoados dentro do caminhão, faz uma abordagem simples frente a ela, porém, existe a preocupação com as relações de textura e de claro/escuro das disposições dos personagens em cena. Essa preocupação também é evidente nos planos externos das jornadas daqueles moradores em busca de melhores oportunidades. Isso é percebido nos planos da estrada (Figura 92), cuja perspectiva, com suas evidências diagonais, intensificam a imensidão daquela região árida e da vastidão que ocupa; das longas distâncias que precisam ser percorridas para se chegar 140

a algum lugar; assim como as “bonitas nuvens” de Chick, cuja beleza da natureza evidenciada no plano não é nada mais que a seca, da chuva que está longe de vir.

Figura 92 – Planos abertos: a esperança está nos céus, na religiosidade e na chuva que não vem.

Fonte: Frame do filme Ana. (1955).

Esse filme merece destaque, pois abre precedentes para uma aproximação e uma afinidade que surgiriam anos mais tarde no movimento cinemanovista. São possibilidades muito ricas de análise com associações à crença religiosa, à esperança, à pobreza, à enganação e à escravidão, essa última uma associação direta à sequência clímax do curta, na qual o grupo de Ana, confrontando o capataz da fazenda, livra os viajantes de caírem num golpe e de sofrerem com trabalho remunerado ainda análogo à escravidão, ou que ao menos os colocaria numa condição de “rebanho”, em alusão direta à abertura do filme, sem a possibilidade de lutarem pelo próprio destino, como afirma um dos personagens no final: “Eu não tenho nada pra dar pra você, só uma coisa que aprendi – é que quando a gente tá unido, nunca perde!”. Muitos desses aspectos estarão na obra de Anselmo Duarte e, apesar dos “desencontros” das críticas e da Palma de Ouro que virou um “prêmio meio maldito” 141

(AUGUSTO, 1989), é muito importante adentrar nos elementos cinematográficos além da superficialidade dos temas, ou da narrativa em si, para poder ver as possibilidades e a potencialidade do filme, principalmente na fotografia de Chick Fowle. Em Ana, a potencialização da luz brasileira e do trabalho com a sua incidência quase sempre zenital supera aquela apresentada em O cangaceiro, ainda com uma preocupação grande de destacar os personagens. No caráter do realismo da luz, o curta-metragem abre precedentes à abordagem de Fowle em O pagador de promessas, que seguirá a mesma linha realista ao mesclar finas abordagens de movimentos de câmera, do claro e escuro dos seus trabalhos anteriores, a fim de potencializar as nuances características do realismo e deixar algumas abordagens de iluminação (com o uso da luz em três e quatro pontos) para situações muito específicas, preocupando-se, quando as utiliza, em preservar ao máximo a verossimilhança com a luz natural e “esconder” seus artifícios.

3.1 O pagador de promessas

O filme O pagador de promessas conta a história de Zé do Burro, que tem seu burro de estimação atingido por um raio e que na esperança de sua recuperação, faz uma promessa à Santa Bárbara. Por não haver nenhuma igreja ou imagem da Santa no seu povoado, distante sete léguas35 de Salvador, ele recorre a um templo de Candomblé para fazer a sua promessa, cuja imagem é reverenciada no sincretismo religioso como Iansã, a protetora dos raios e trovões. A promessa consistiu em repartir a sua terra com os colonos mais pobres e ir do Sertão a Salvador, carregando uma cruz nas costas para ir depositá-la no altar da Igreja de Santa Bárbara, acompanhado de sua esposa Rosa, dando início à sua jornada com a recuperação do seu burro. Zé do Burro e sua esposa Rosa chegam à Igreja de madrugada e aguardam na escadaria a sua abertura para que ele possa cumprir a sua promessa e depositar a cruz no altar. No entanto, o padre Olavo, responsável pela Igreja, surpreende-se com o fato de a promessa ter sido para salvar o “melhor amigo” de Zé, seu burro, e fica indignado por ela ter sido feita em outra crença religiosa, que para o padre é associada ao “diabo”, evidenciando a intolerância do personagem para com as religiões de origem africana, fato ainda presente nos dias de hoje por outras correntes religiosas.

35 O equivalente a 42 quilômetros, uma vez que a légua nordestina equivaleria a 6 quilômetros, ou seja, a distância percorrida durante um dia de caminhada. 142

Mesmo impedido de entrar na Igreja, Zé permanece decidido a cumprir sua promessa, chamando a atenção de todos que presenciam aquela cena insólita, dele com a sua cruz e a discussão com padre Olavo sobre a entrada ou não na igreja. Vários são os personagens que gravitam em torno da situação, desde Bonitão, um gigolô que acaba conquistando Rosa desde a sua chegada a Salvador; a imprensa local, que acaba transformando sua promessa numa história revolucionária a respeito da reforma agrária, a partir da declaração ingênua de Zé do Burro que afirma ter repartido suas terras com os mais pobres da sua região, também como parte da promessa; até o comércio local, que passa a lucrar com a situação; entre outros grupos, como os capoeiristas. Ao mesmo tempo em que padre Olavo busca uma solução para o entrave, Zé vai se tornando uma espécie de herói perante o grupo de pessoas que se forma em torno dele na escadaria da Igreja, no dia da celebração religiosa de Santa Bárbara, e ao mesmo tempo de Iansã, despertando também o interesse de pessoas que desejam tirar proveito dessa situação. Com a crescente população negra colocando-se a favor de Zé do Burro, ocorre a mediação do arcebispo em relação à situação criada, que tomara proporções que poderiam comprometer a Igreja e o próprio catolicismo. Assim, o arcebispo propõe uma solução a Zé do Burro para cumprir a sua promessa: levar a cruz ao templo de candomblé e cumprir sua promessa a Iansã, ou, renunciar a promessa feita por “inspiração do diabo”, para então cumpri- la na Igreja, perante Santa Bárbara. Sem aceitar as proposições feitas e resoluto no cumprimento da sua promessa na forma como foi prometida, Zé decide enfrentar a autoridade da Igreja e entrar a todo custo com a sua cruz. Nessa parte da cena, observa-se o ápice da fé de Zé do Burro e a determinação em cumprir a sua promessa. Esse fato é reiterado pelo símbolo sete, que entre outros símbolos, estão presentes ao longo da narrativa fílmica. O sete é conhecido como o número da perfeição e está presente em várias situações, como na numerologia, na Bíblia, no Judaísmo, assim como no esoterismo. Segundo o dicionário de símbolos36, o sete “representa a totalidade, a perfeição, a consciência, o sagrado e a espiritualidade”, assim como a “conclusão cíclica e a renovação”, portanto, associado à espiritualidade e à transformação. É isso que ocorre com Zé do Burro, que, além de ser possuidor de uma índole de bondade e fé, é justo em suas obrigações e em nenhum momento lhe passa pela cabeça quebrar sua promessa.

36 A esse respeito, cf. Dicionário de símbolos. Significado dos símbolos e simbologias. Disponível em: https://www.dicionariodesimbolos.com.br/numero-7. Acesso em: 31 jul. 2020. 143

Nesse ínterim, a polícia é acionada e chega à Igreja para prendê-lo. Um tumulto se instala entre a polícia e os que estavam ali para defendê-lo – os capoeiristas e o restante da população. Nesse embate, entre a população e a polícia, Zé do Burro acaba morto acidentalmente. O povo, sensibilizado com a situação de Zé do Burro e por iniciativa dos capoeiristas, acaba adentrando à Igreja, com Zé preso na própria cruz que carregou ininterruptamente ao longo do trajeto, sendo agora conduzido pelos capoeiristas, no cumprimento da sua promessa feita, e sem qualquer oposição de padre Olavo. O filme produzido em 1962 é dirigido por Anselmo Duarte, com o roteiro adaptado da peça de Dias Gomes de 1959, estrelado por Leonardo Vilar (Zé do Burro) e Glória Menezes (Rosa). Anselmo, como apresentado anteriormente, tem um percurso cinematográfico que vai de ator, roteirista e então diretor, passando pela Atlântida e Vera Cruz, ingressando em seu primeiro trabalho de direção com Absolutamente certo. A escolha de Chick para a fotografia de ambos seus filmes de sucesso37 parece ter sido premeditada. Anselmo desejava realizar o filme de “seu Cristo” após uma frutífera temporada de incursão pela Europa, principalmente depois de se ambientar e conhecer o Festival de Cannes. Já no Brasil, viu-se atravancado com uma história que chamou de Messias, o Mensageiro, até se deparar com a obra teatral de Dias Gomes, que a princípio foi relutante em ceder os direitos autorais à Duarte, que foi bem insistente. Gomes assina o contrato com o produtor Oswaldo Massaini38, com uma cláusula que obrigava o diretor a seguir estritamente cena por cena a obra do dramaturgo. No entanto, os diálogos foram adaptados por Anselmo, por considerá-los “redundantes” ou “estéreis”, afirmando que “[...] o cinema não precisa de diálogo, se pode mostrar as coisas por meio da ação” (MERTEN, 2004, p. 121). A adaptação da peça ao cinema foi muito bem recebida, tanto por parte dos espectadores, como pela crítica, projetando o cinema brasileiro no exterior, que de onde começaram a se voltar os olhos para as produções nacionais, principalmente para os filmes posteriores. Para a Bahia, o filme foi um marco, um grande acontecimento com a ida de um

37 Filmes posteriores, como Vereda de salvação (1965) e Quelé do Pajeú (1970), segundo o próprio Anselmo, não tiveram boa receptividade, sendo que o diretor considerava Vereda da salvação o seu melhor trabalho (MERTEN, 2004). No entanto, o filme e a fotografia de Ricardo Aronovich merecem atenção especial, assim como Os fuzis (1963), de Ruy Guerra, “[...] considerado um marco na fotografia moderna pela dissimulação dos volumes e da profundidade” (RAMOS; MIRANDA, 2000, p. 31). 38 Por sinal, Massaini, fundador da empresa Cinedistri (um “prolongamento” da Cinédia), alcançou maior respeitabilidade com O pagador de promessas, mas a figura de Oswaldo como produtor foi de “empenho” e “criatividade”, conseguindo, em 1958, produzir e colocar no mercado sete títulos de longa-metragem, enquanto a Atlântida lançara dois, a Warner Brothers três e a Columbia Pictures um título (RAMOS, 2018). Seu trabalho se mostrou de uma estratégia mercadológica com abordagem diferente daquela pretendida pela Vera Cruz e pela Atlântida, dando certa notoriedade a Massaini. 144

elenco nacional e uma produção experiente para a capital, o que despertou o interesse local para produção cinematográfica. Até hoje, O pagador de promessas é o único filme brasileiro a conquistar a Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, na França, tornando-se também o primeiro filme da América do Sul a ser indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, tendo o prêmio ficado para o francês Les dimanches de Ville d'Avray39, em 1963. Anselmo, em seu depoimento a Carlos Merten, assim como em diversos textos que falam a respeito de O pagador de promessas, relata que levaria o prêmio máximo de Cannes com o seu Cristo terceiro mundista (verdade ou lenda?), mas que esmoreceu frente a grandes nomes e obras de peso no cinema, como O eclipse, de Michelangelo Antonioni; Le Procès de Jeanne D’Arc, de Robert Bresson; O anjo exterminador, de Luis Buñuel; Long Day’s Journey Into Night, de Sidney Lumet; Electra, a vingadora, de Michael Cacoyannis; Divorico à italiana, de Pietro Germi; e Cléo das 5 às 7, de Agnès Varda. La Parole Donnée (A palavra dada), como foi rebatizado no festival, foi ganhando público e adeptos de tal maneira que boatos foram se espalhando. O filme ganhou o festival e várias histórias começaram a circular na imprensa, principalmente a brasileira:

O Cinema Novo estava nascendo e não ficava bem um galã ligado ao velho cinema levar o maior prêmio do cinema internacional. Criou-se um conflito de narrativas. Anselmo não teria vencido por suas qualidades, mas porque o júri não conseguira chegar a um consenso, tendo de escolher entre tantos grandes filmes concorrentes. Pode até ser que exista um fundo de verdade. Thierry Frémaux, que se tornou responsável pela seleção oficial de Cannes, diz que não existe isso do ‘melhor filme’. Existe o melhor para um júri. Outro júri poderia, quem sabe, fazer outra escolha, e isso vale para todos os anos (MERTEN, 2020).

É compreensível que a surpreendente premiação de O pagador de promessas, vencendo filmes de diretores consagrados no festival, na época mais importante que o Oscar e também recebido vários outros prêmios nacionais e internacionais, despertasse o olhar da crítica, recebendo a alcunha de um filme “acadêmico” e “colonizado”, o que não reflete a realidade das temáticas abordadas em O pagador de promessas. Isso pode ser observado na fala do principal expoente do Cinema Novo, Glauber Rocha, que enaltece aspectos do filme ao afirmar que “O Pagador de Promessas é um filme de envergadura [...] Duarte inegavelmente tem a força do grande espetáculo” (ROCHA, 2003, p. 163).

39 Filme de 1962, dirigido por Serge Bourguignon, com Direção de Fotografia de Henri Decaë. 145

Alex Viany, que segundo Anselmo foi mudando de opinião em relação ao Pagador com o passar dos anos (MERTEN, 2004), também estendeu críticas positivas ao filme, sendo celebrado pelo próprio Viany na noite de exibição de Os cafajestes (1962), de Ruy Guerra, e de O pagador de promessas, noite que definiria qual dos filmes representaria o Brasil no Festival de Cannes: [...] a contribuição de Anselmo Duarte é enorme, não estando na adaptação cinematográfica de Dias Gomes, por exemplo, dois melhores momentos do filme: a cena em que Zé do Burro, retomando a cruz, namora Santa Bárbara, que, na procissão, sobe as escadas da igreja em seu andor; e a sequência em que o padre, agoniado por suas dúvidas, e enfurecido com o barulho que fazem os berimbaus, lá fora, na festa herética de Iansã, inutilmente tenta fazer como eu seus sinos abafem os sons do mundo exterior (VIANY, 1999, p. 45).

Mesmo com todo esse embate com os cinemanovistas, o experiente Alinor Azevedo40 afirma que O pagador de promessas é extremamente importante para o cinema nacional porque abriu portas para as produções nacionais no exterior, mostrando e resolvendo problemas que aparentemente não tinham solução:

1. O filme sério não é comercial, diziam os apóstolos da chanchada. Mas, apesar de seu tema complexo, cheio de subentendidos e sutilezas, O Pagador de promessas é acessível em vários níveis, tendo mensagens correlatas que serão facilmente apreendidas por quaisquer plateias. E, assim, está fadado a um enorme sucesso de bilheteria: é, de fato, aquilo que se anunciou e nunca se fez: um filme brasileiro para o mundo; 2. Não há cineastas no Brasil, gozavam os snobs. Mas justamente quem se revela um diretor de importância nacional é Anselmo Duarte, ex-galã que, na Atlântida como na Vera Cruz, nunca perdeu a oportunidade de trabalhar nas salas de corte e em todos os departamentos técnicos. O Pagador de Promessas é um filme cheio de problemas técnicos e artísticos (cenas de multidão, transformação de peça teatral em cinema, muitas personagens marcantes, muitos motivos entrecruzados, etc.), que o diretor Anselmo Duarte resolve com extraordinária segurança e perspicácia. 3. A língua portuguesa não se adapta ao cinema, apregoavam os colonos, mas O Pagador de promessas, como aliás, Os Cafajestes, acaba de vez com essa lenda, dando-nos uma dialogação legitima em sua força popular. 4. Os filmes brasileiros devem procurar os temas universais, aconselhavam os alienados, propondo uma temática sueca (a la Bergman) ou italiana (a la Fellini). Mas O Pagador de promessas demonstra uma verdade a muito conhecida dos revolucionários de teatro e de cinema do Brasil: quanto mais brasileiro o tema, mais universal ele é. Não é por acaso que O Pagador de promessas reúne um diretor paulista, ex-galã da Atlântida e da Vera Cruz, com um escritor baiano, tarimbado em radio-teatro, e um ator

40 Alinor Azevedo foi roteirista, argumentista e um dos fundadores da Atlântida com Moacyr Fenelon. Escreveu roteiros como o de Moleque Tião 1943), Carnaval de fogo (1949) e Assalto ao trem pagador (1962). “Alinor Azevedo, ex-membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), pensava em dar ao cinema brasileiro uma estrutura sólida, sustentada por um trabalho criterioso e sério, sempre preocupado com a linha temática que o identificaria mais tarde com, por exemplo, Nelson Pereira dos Santos” (RAMOS; MIRANDA, 2000, p. 38). 146

paulista do TBC. O filme, afinal, é o resultado de uma experiência coletiva, de muita gente, de muitos erros, tanto no teatro como na rádio e no cinema, chegou a hora da soma, e, somando tudo, temos, sem desprezo pelos exercícios e tentativas do passado, o que deve ser analisado como Opus 1 do Cinema Novo (AZEVEDO, 1962 apud VIANY, 1999, p. 30).

Diversos aspectos no filme mostram um Brasil pouco visto nas telas do cinema até então e, para muitos críticos, Anselmo entendera verdadeiramente a autenticidade da Bahia, aliando ao tema uma forte crítica aos sistemas ortodoxos que envolvem a religiosidade (CARVALHO, 2003). Porém, ainda que alguns considerem a representação do “popular” como “folclórica”, de uma característica mais exótica, ainda assim é um aspecto que configura “[...] as expressões culturais e religiosas populares como universo distante” (FERNÃO, 1998, p. 52). Certamente, esse “popular” é encontrado de forma mais superficial em Caiçara e em O cangaceiro, mas em O pagador existe uma aproximação mais forte, que possibilita, inclusive, conflitos na narrativa fílmica, em detrimento desse popular instaurado na sociedade brasileira que envolve questões políticas, de crença e de geografia, frente ao sertanejo que desconhece a cidade grande.

Em O Pagador de Promessas, a luta não é mais contra um inimigo único e poderoso como a polícia, o dono da rede ou os empresários. O embate agora se dá entre forças menores, porém disseminadas. Em uma emergente sociedade de massas, da qual Zé do Burro não faz parte, cada um busca cuidar dos seus próprios interesses. O padre, representando a intolerância dessa sociedade, abre espaços para que seus diversos elementos explorem o pagador da promessa, símbolo de valores éticos perdidos no mundo moderno. Muitos tiram proveito da fé e da firmeza de caráter de Zé do Burro: os meios de comunicação de massa, ao transformar o sofrimento do camponês em espetáculo para vender mais jornais ou aumentar a audiência do rádio e da televisão; o dono do bar, ao torcer pela não resolução do problema para incrementar o movimento em seu estabelecimento comercial; o cafetão, ao provocar a prisão de um homem inocente para ter mais uma mulher como fonte de renda. Até mesmo o poeta popular tentou aproveitar-se do tumulto para vender mais livros. Claramente inspirado na figura de Cuíca de Santo Amaro, que em A Grande Feira ocupou o lugar do juízo popular da história, o personagem Dedé Cospe-Rima desloca-se para a posição de mais um entre os vários algozes do camponês (CARVALHO, 2003, p. 223).

E essa manifestação do popular ainda está presente, com embates presenciados hoje na sociedade brasileira, inclusive nas suas manifestações metafóricas. Por isso mesmo o ator de Zé do Burro, Leonardo Villar, destaca que O pagador “[...] é um filme que permanece vivo e atual” e que “grandes filmes da história são os que sobrevivem a modismos e cultos”41.

41 A esse respeito, Cf. Conquista inesquecível. Leonardo Villar e Glória Menezes falam sobre experiência de ganhar a Palma de Ouro com “O Pagador de Promessas”. (2012). Disponível em: 147

Ancelmo Gois, apresentador do programa De lá pra cá, da TV Brasil, destaca em seu programa veiculado no dia 8 de abril de 2012, por exemplo, a atualidade do tema referente à mídia e à figura do personagem interpretado por Othon Bastos, que “[...] faz o papel de um repórter sensacionalista, da imprensa marrom, que quer transformar o Zé do Burro em um mártir, exatamente pra quê? Pra vender jornal! Ou seja, o filme também discute a ética da imprensa que é um debate que está até hoje em todo o lugar” (O PAGADOR DE PROMESSAS, 2012). No filme O pagador de promessas, as tematizações suscitam discussões e reflexões que ainda se fazem presentes nos dias atuais, sob diversos aspectos, entre eles os históricos, os religiosos, as relações de poder, o sensacionalismo, e também frente às abordagens cinematográficas da obra. E em relação à fotografia de O pagador de promessas? O que se pode dizer? É o que será abordado no item seguinte.

3.2 A análise de O pagador de promessas no âmbito da fotografia cinematográfica

Nos capítulos anteriores, o leitor deparou-se com inúmeras soluções frente a diferentes possibilidades fotográficas exploradas por Chick Fowle, em obras com a presença desse diretor de fotografia. No entanto, é relevante, nesse momento do presente estudo, realizar grande parte do percurso de um filme para se compreender melhor o trabalho da fotografia como um todo na obra. Em O pagador de promessas, a manifestação do trabalho de Chick torna-se mais ampla, já que ele encontrava-se naquele momento com mais de 10 anos de experiências e vivências em terras brasileiras. Importante retomar as ferramentas conceituais da cinematografia (BROWN, 2010), como a luz, o quadro, o movimento, a ambientação e o ponto de vista, não somente como recursos e técnicas, que serão discorridos de forma mais livre nesse momento, mas também com aplicações diretas na criação de sentido, sem se esquecer do estilo empregado no filme, um estilo fílmico rico em diversos aspectos e que acaba tendo com um dos pontos altos a fotografia cinematográfica. Apesar de não existir uma metodologia universal que dê conta de toda a abordagem que envolve o campo da análise (AUMONT, 1999), em O pagador de promessas busca-se um https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2012/05/leonardo-villar-e-gloria-menezes-falam-sobre- experiencia-de-ganhar-a-palma-de-ouro-com-o-pagador-de-promessas-3766597.html. Acesso em: 31 jul. 2020. 148

procedimento que priorize muito mais uma análise interna (do filme em si como obra formal) a uma análise externa (referente às relações existentes frente à sua produção e realização com o contexto social, político, econômico, estético e tecnológico da época) (PENAFRIA, 2007). Com isso, o filme é abordado de forma mais geral e detalha aspectos mais importantes frente aos objetos desse estudo, que priorizam sequências e planos ao realizar uma descrição no intuito de compreender as relações desses elementos, decompondo e interpretando-os sobre a prioridade do aspecto da fotografia cinematográfica e das soluções que se sobressaltam nesse campo no filme (VANOYE, 1994). A preferência pela análise interna em detrimento da externa reside no fato de haver possibilidade de analisar o filme “[...] tendo em conta a filmografia do seu realizador de modo a identificar procedimentos presentes nos filmes, ou seja, identificar o estilo desse realizador”, sendo esse, no caso, Chick Fowle (PENAFRIA, 2009, p. 7). Importante primeiramente entrar no âmbito da narrativa que, como recurso de estrutura dramatúrgica, segue uma linha hollywoodiana de representação da história que, segundo Bordwell:

[...] apresenta indivíduos bem definidos, empenhados em resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos. Nessa busca, os personagens entram em conflito com os outros personagens ou com circunstancias externas, a história finaliza com uma vitória ou uma derrota decisiva, a resolução do problema e a clara consecução ou não consecução dos objetivos (BORDWELL, 2009, p. 278).

Um percurso similar às tragédias clássicas de unidade e ação sugeridas por Aristóteles em sua poética, que como a obra de Dias Gomes, o filme corresponde às unidades de tempo e espaço, passando-se num período cronológico correspondente à madrugada até o fim do dia (quase em um único dia), sendo que, no filme, a maior parte das cenas se passa em frente à Igreja, na escadaria. Os acontecimentos, para fortuna ou infortúnio do herói, sucedem-se segundo as leis de causa e efeito, que resultam, no caso, da não consecução dos seus objetivos, como personagem, mas que acaba sendo concluída num âmbito maior da trama. De modo geral, a estrutura narrativa da história tem o personagem Zé do Burro resoluto no cumprimento de um propósito: cumprir sua promessa. Essa é a força que impulsiona o protagonista e sua esposa em direção a Salvador, como um ato de gratidão à Santa Bárbara pela “graça” alcançada, a fim de poder ficar em paz com a sua consciência pelo ato cumprido e poder retomar sua vida cotidiana. 149

No decorrer da narrativa, grande parte da história acontece na escadaria da Igreja de Santa Bárbara, assim como os reveses, os apoiadores, os aproveitadores, etc., que aparecem por “curiosidade, por “acaso” ou por “necessidade”. Tudo isso gerado pelo “sincretismo religioso”42, ponto de partida da promessa e principal antagonista ao seu cumprimento, por não corresponder aos princípios católicos em questão43. Já as religiões de origem africana, desde a colonização, sofreram perseguições, preconceito e intolerância. Como forma de resistência, tiveram que se “adaptar” aos simbolismos da fé católica, enquanto estratégia de “sobrevivência” à “cristianização” imposta aos negros e às suas descendências, para que pudessem manter vivas suas tradições. Segundo dados do IBGE44, em 2014, a população negra era a maioria da população brasileira, representando 53,6% da população. O Nordeste possui a maior concentração de população negra, e a Bahia, um dos Estados de maior densidade, chega a 80% da população total. Nesse sentido, é também maior a manifestação de religiões de origem africana, entre elas o candomblé. Esse aspecto já aparece na sequência inicial de O pagador de promessas, sendo a tônica que irá permear os plots do filme. É observado já no início o apreço dos planos detalhes da filmografia de Chick, que valorizam as habilidades manuais que permeiam as periferias das narrativas, aparecendo aqui como pontapé inicial que guia o espectador diretamente para um templo de candomblé, em pleno ritual, conduzido pelo ritmar dos atabaques. Nessas manifestações religiosas, a música e o canto são importantes veículos de expressão do pensamento e do sentimento, que compõem o espírito humano, necessários à conexão com as suas divindades. Isso concorre para que as suas cerimônias sejam sempre animadas e prezem por minuciosa e ritmada formação instrumental. Os planos detalhes mostrados na Figura 93 denotam que Chick faz uso de uma iluminação direta, a qual destaca os instrumentos que dão ritmo e compõem a linha melódica das cerimônias no candomblé45. Na sequência das imagens, são mostrados o atabaque, que são

42 Fusão de concepções religiosas ou a influência exercida por uma religião nas práticas de uma outra. 43 O Brasil, como Estado laico, não possui uma religião oficial e é seu dever garantir a liberdade de culto às pessoas. No país, religiões cristãs são predominantes, p. ex., em 1970, a parcela da população católica era de 91,9%. Já em 2010, diminuiu para 64,9%; nesse mesmo período, os evangélicos cresceram de 5,2% para 22,2%, com as expansões de suas igrejas para a periferia, em busca de novos adeptos, numa investida “corpo a corpo”, ganhando novos espaços deixados pelo movimento católico. A esse respeito, cf. https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/o- ibge-e-a-religiao-cristaos-sao-86-8-do-brasil-catolicos-caem-para-64-6-evangelicos-ja-sao-22-2/. Acesso em: 05 ago. 2020. 44 A esse respeito, cf. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-representam-54-da- populacao-do-pais-mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm. Acesso em: 05 ago. 2020. 45 A esse respeito, cf. O candomblé na música brasileira. Disponível em: https://www.geledes.org.br. Acesso em: 05 ago. 2020. 150

ao todo três em diferentes tamanhos; o agogô, de uma ou duas bocas, chamado Gã; e o Xequerê, chamado de Abê; seguidos da representação de um Orixá, para então relevar o motivo da batucada: uma cerimônia de terreiro.

Figura 93 – Planos detalhes.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

À medida que os planos dos instrumentos aparecem, as sonoridades específicas de cada um se revelam e a alternância entre os planos valoriza-os e mostra a importância cerimonial deles. A câmera que passeia mostra a cerimônia e a cantoria e o ponto de vista aproxima o espectador da dança, próximo dos ornamentos e dos trajes, vivenciando todo o processo. Os sons dos instrumentos acompanham as imagens e o espectador vai absorvendo a sonoridade e sentindo parte da celebração. Os planos fechados detalham as particularidades dessa típica cerimônia de raízes africanas. Um plano de conjunto em travelling out finalmente revela no mesmo ambiente da celebração a presença de Zé do Burro (Figura 94), que alheio ao ritual que se desdobra, conversa com uma imagem de Iansã no candomblé. No decorrer da narrativa, tem-se a revelação de ser ela o equivalente à Santa Bárbara, no catolicismo. É a ela que ele dirige suas rogativas e faz a promessa de carregar uma cruz “tão pesada como a de Cristo” se “ela” salvar o seu burro de estimação que se encontrava doente.

151

Figura 94 – Travelling out revela a presença de Zé do Burro.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962)

Ainda na Figura 94, Zé do Burro é mostrado em primeiro plano, olhando diretamente para a imagem da Santa. Essa relação de importância já demonstra que, acima de tudo, o mais importante nesse momento é a relação dele com a “entidade” e a promessa é a principal razão da sua presença no candomblé e da jornada desse personagem que terá início a partir desse momento. Esse aspecto é evidenciado pela presença dele de costas para a cerimônia que transcorre sob o olhar atento de todas as demais pessoas, incluindo sua esposa. Isso reitera que a sua ligação não é diretamente com o candomblé, mas, sim, com Santa Bárbara, a quem possivelmente ele seja devoto, pouco importando a distinção entre ser ela Iansã ou Santa Bárbara. É um plano que diz muito sobre o personagem, imerso nessa dimensão multicultural, demonstrando uma crença sem rótulos específicos ou distinções. Sua esposa Rosa aparece nessa cena em segundo plano, mais ao centro do quadro, e a priori confunde-se com as próprias pessoas que assistem à cerimônia. No entanto, sua posição é muito bem pensada, em um triângulo composicional com Zé do Burro e a imagem da Santa. Por mais que ela passe despercebida, num primeiro momento, por estar em segundo plano, quando chamada pelo marido, percebe-se que são um casal. Observando melhor esse plano, Rosa está colocada entre ele e a Santa e parece ser uma antecipação de uma postura que ela assumirá mais tarde, ao tentar demovê-lo de cumprir sua promessa em sua totalidade, já em Salvador, diante das várias ocorrências vividas. A iluminação de Chick na cena tem uma característica muito parecida com as noturnas de O cangaceiro (Figura 95), tomando-se o exemplo do acampamento da “gangue” de Galdino. A “luz da lua cheia” prevalece como fonte de luz predominante (e de um ponto) na iluminação contrastada de um ataque bem marcante, com características mais naturalistas e muita presença de espaço escuros. 152

Figura 95 – Noturnas de iluminação contrastada

Fonte: Frames do filme O Cangaceiro. (1953)

A contraluz se faz presente de forma discreta, com uma característica própria para ressaltar a linearidade dos objetos, conforme as Figuras 93 e 94, frente à escuridão do fundo dos planos, levemente destacado com as folhagens. A mise-en-scène, no que se refere à disposição dos corpos em quadro, já se mostra de maneira a priorizar as diferentes camadas narrativas, como aparece na Figura 94, na qual o grau de importância se altera e nada escapa nos diferentes níveis de profundidade do plano, abordagem recorrente de Chick em sua fotografia. Ou seja, se entre Zé do Burro e a Santa a promessa se mostra como o elo condutor da história, Rosa, apesar de aparentemente relegada a um segundo plano, terá sua importância direta na narrativa. Uma fusão do plano (Figura 96), no término da sequência inicial, dá início à sequência de créditos com planos da jornada de Zé do Burro, de Rosa e da cruz, passando por diversas paisagens e adversidades do caminho até chegar a Salvador. O primeiro plano dessa sequência prenuncia os acontecimentos do porvir: um tilt down de câmera revela a jornada de Zé e de Rosa e ao fundo um poço de petróleo em chamas arde ostensivamente.

Figura 96 – Planos detalhes

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962) 153

Os créditos do filme são apresentados na sequência da jornada com uma trilha musical que inicia ao som do berimbau e vai crescendo de intensidade, sendo tomada por instrumentos de orquestra e coro de vozes, que dão o tom da jornada épica. Zé do Burro, Rosa e a cruz (Figura 97) passam por diversas paisagens e adversidades no caminho até chegar a Salvador. O ponto de vista tende a privilegiar os pés em planos fechados, com objetivas normais, mostrando a simplicidade dos calçados que usam frente à aridez do terreno, além do enlameado da chuva, evidenciando, principalmente, as sombras causadas pela luz do sol a pino, bem diferente da luz lateralizada de fim de tarde, muito utilizada para delinear os personagens e criar uma contraluz natural.

Figura 97 – Sequência da jornada de Zé do Burro

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas. (1962)

Diferente de O cangaceiro, que utiliza também esse recurso, aqui não existe a presença de rebatedores para compensar as sombras dos personagens, deixando-os, inclusive, com acentuado contraste em determinadas situações. Há prevalência da verdadeira luz da natureza, a luz natural, e o sol é forte e castiga a jornada de Zé e de Rosa, que mesmo com todos os percalços, seguem resilientes e resolutos, atravessando diferentes lugares característicos do Sertão ao litoral da Bahia. 154

A aridez, a adversidade e o sol escaldante também dão espaço a belas imagens de cactos e de paisagens de coqueiros do litoral, assim como em Caiçara, sendo aqui privilegiada por uma objetiva grande angular, que cobre a vastidão da paisagem, mostrando o percurso compreendido nas sete léguas percorridas até a cidade de Salvador. Essa sequência remete aos lugres difíceis de transpor, mas ao mesmo tempo belos e admiráveis. Nos planos em que a câmera companha os passos de Zé, tem-se um movimento de dolly, que se mostra mais solto e oscilante. Percebe-se o chacoalhar da câmera que entrega uma estabilização parcial, possivelmente por ser um movimento mais livre, apesar de contínuo, mas desvinculado dos trilhos que eram muito utilizados nos travellings da Vera Cruz, versatilidade que permite atravessar diferentes terrenos, dando a possibilidade de gravar as cenas com um recurso técnico adaptado, possivelmente em cima de algum veículo. Enquanto as adversidades enfrentadas por Zé e Rosa durante o percurso eram sentidas pelos ambientes e pelas intempéries da natureza, já na cidade grande, eles se deparam com a zombaria das pessoas em uma boate, ante o acontecimento inusitado e inesperado tarde da noite, as quais caçoam do homem que passa carregando uma cruz (Figura 98).

Figura 98 – Chegada a Salvador

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962)

Na Figura 98, quando Zé e Rosa chegam à noite de sua jornada em Salvador, uma forte contraluz desenha a rua e cria textura nas construções históricas daquela parte da cidade, o que evidencia uma arquitetura de influência portuguesa da época do Brasil Colônia. Na Figura 99, tem-se à espreita o personagem de Bonitão, que observa a passagem do casal, com olhar lascivo em direção à Rosa, já indicando as intenções do personagem, indiferente aos propósitos de Zé do Burro. O contraste do rosto, intensificado pela iluminação que mostra parcialmente a face do Bonitão, já dá indícios do perfil psicológico do personagem 155

e revela sua personalidade e seu caráter, cujas intenções são dissimuladas pela imagem de um homem bem vestido e de “conversa fácil”, encarnado pelo ator Geraldo Del Rey.

Figura 99 – Bonitão observa a chegada de Zé e Rosa.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

As camadas de iluminação criam nessa cena (Figuras 98 e 99) faixas iluminadas e faixas escuras, que permitem uma ambientação característica dessa parte da cidade, ou seja, um aspecto soturno, boêmio e perigoso, reiterado pela fachada da boate e pelo personagem Bonitão. A diferença entre claro e escuro dos planos permite a focalização do olhar nas pessoas que zombam do homem que carrega a cruz, mesmo estando elas em segundo plano. O grau de importância do plano certamente é Zé e Rosa, devido à proximidade deles da objetiva. No entanto, esses personagens são “ofuscados” pelos zombeteiros. O lento movimento de câmera empregado por Chick Fowle acompanha a subida de Zé e Rosa (Figura 100), mostrando a imponência da Igreja e da escadaria, dando ao espectador a real dimensão do desafio que o espera frente à promessa feita. A transposição dessa curta distância até a Igreja apenas representa o começo dos desafios que virão para o final da sua jornada e que culminaria em sua trajetória ascensional.

156

Figura 100 – Escadaria da Igreja de Santa Bárbara.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

De alguma forma, esse lento movimento captado por uma lente teleobjetiva evidencia muito mais a Igreja do que Zé e Rosa, que ficam pequenos e quase despercebidos no plano. A cena, aliada às texturas luminosas da escada, além da grandiosidade do ambiente, dá um aspecto obscuro à construção, como se estivesse ali para “tragar” Zé do Burro. Esse efeito também tem sua contribuição na escolha de uma teleobjetiva, que cria um achatamento proporcionado que comprime e “espreme” a imagem da Igreja, dando uma caraterística muito mais imponente ao edifício. Na cena da discussão entre o casal (Figura 101), Rosa está cansada e diz para Zé que poderiam descansar, pois a promessa já estaria cumprida, já que a cruz fora levada para o local de destino. Zé se pronuncia que precisaria conversar com a Santa, pois não fora esse o acordo que fez. Rosa pede para ele “consultá-la”. Pensativo e com um medo aparente de um homem receoso que possa não saber interpretar a “resposta”, Zé rapidamente se demove da ideia de dar por cumprida a promessa. Essa ação é evidenciada em uma parte do plano que dura um minuto e quarenta e três segundos, quando a aproximação e o afastamento da câmera de Chick são motivados pela movimentação dos personagens: primeiramente num plano conjunto de Rosa e Zé. no início da discussão; com a aproximação de Zé da câmera, posicionada entre ele e a Igreja, tem-se um breve momento de “intimidade” do promesseiro com Santa Bárbara, num plano fechado dele, sem a presença de Rosa ou outros elementos mais significativos; com o recuo do personagem à sua posição inicial com Rosa, o plano mostra mais elementos para a composição do quadro, com um movimento de travelling out, para enquadrar Rosa, Zé e a cruz.

157

Figura 101 – Plano que evidencia a discussão entre Rosa e Zé do Burro.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Mas sua decisão é firme e vendo que Zé está resoluto no cumprimento da promessa da forma como a concebeu, Rosa permanece estática na escadaria, com Zé apanhando a cruz e subindo em direção à Igreja. A movimentação dos atores no plano permite uma mise-en-scène que trabalha com movimentos sutis de aproximação e afastamento, seja dos atores ou da câmera, o que demonstra um aspecto que será muito presente em toda a narrativa, a evidência da devoção e da conexão silenciosa que Zé tem com a Santa. Isso somente o espectador tem a chance de presenciar, devido aos planos dessa característica serem bem próximos da objetiva, seja ele em planos fechados, distintos por natureza, ou pela aproximação do personagem, como apresentado na Figura 108. Em Once a Jolly Swagman, a mesma estratégia foi utilizada por Chick para isolar o personagem de Lag no bar quando ele se encontra reflexivo, em devaneio, como se falasse 158

para si, mesmo em companhia dos seus parceiros de corrida. Aqui, no entanto, Zé se manifesta de forma silenciosa, com ênfase às expressões do personagem, que dão um indicativo menos literal se comparado ao filme britânico. Vale a pena destacar que o dressing dos postes de luz da escadaria foram colocados especialmente para o filme, como destaca Anselmo, que não pensava em criar somente recursos de iluminação adicionais, mas também para adaptar os travellings para a cena (MERTEN, 2004). Nas cenas na escadaria, evidencia-se a escolha dessa Igreja46 como locação por permitir um espaço hermético, com uma entrada gradeada, da qual veio Zé e Rosa, e uma “saída”, que é a Igreja, o lugar objetivo no qual o personagem deseja cumprir sua jornada. Duarte destaca que os paredões e a escadaria que unem o “átrio à rua” criavam um “espaço dramático forte, fechado sobre si mesmo”, em que sobressairia o aspecto “claustrofóbico” de toda a situação, chegando a “um ponto em que a história não tem solução, não tem saída, só a morte”, evocando também a escadaria de Odessa, de um dos grandes clássicos do cinema O encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein (MERTEN, 2004, p. 129). Na escadaria também se encontra uma profusão do que seria a “representação” de Salvador e da “cultura popular” baiana, como “o candomblé, o samba de roda, a capoeira, a literatura de cordel, a música e a dança dos cabarés e a presença da prostituição nas ruas do centro” (CARVALHO, 2002, p. 209). A adição dos postes de luz possibilita uma criação maleável do ponto de vista da iluminação, que explora bem os ataques e a contraluz. Isso porque o ambiente, com fontes de iluminação em diversos pontos, possibilita uma luz justificada que não se engessa (Figura 102), ou seja, o ataque pode vir tanto de uma direção quanto de outra, sem mexer com a unidade fotográfica da cena, servindo para diferentes abordagens criativas do fotógrafo no tratamento dos personagens e do cenário.

46 O desejo de Dias Gomes era que a filmagem do filme fosse feita na Igreja do Pelourinho, devido à visualização de um pagador de promessas nessa mesma Igreja quando criança (MERTEN, 2004). 159

Figura 102 – Triângulo composicional e maleabilidade dos pontos de iluminação.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Isso possibilita ao fotógrafo criar diferentes texturas, inverter as posições da luz que incide no personagem, como no caso de Rosa, que com a mudança do eixo da câmera, a luz muda de direção, mas permanece da direção plástica do plano, com a incidência da direita para a esquerda no personagem. Os vignettes do plano, característica muito presente em todos os trabalhos de Chick, possibilitam a concentração do olhar nos planos em áreas que realmente importam, desconsiderando um pouco as arestas do quadro, mas sem esquecer a força das linhas e da geometria, sejam elas triangulares, conectando visualmente os personagens, ou horizontais, intensificadas pela textura da sombra das escadas. Isso possibilita o realce de Rosa, que foge ao padrão linear da escadaria e que nesse plano representa o ponto de vista de Bonitão, que visa a mulher desde sua chegada à cidade. A relação mais direta e perceptível com o cinema clássico americano, em termos de planificação e decupagem, pode ser evidenciada nessa sequência pela representação do plano e do contraplano dos personagens de Zé e Bonitão (Figura 103).

Figura 103 – Diálogo de campo e contracampo

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962) 160

A característica presente do over the shoulder tem o objetivo didático de manter o espectador como uma figura presente na cena e de modo mais profundo nessa sequência, que visa aproximar Zé e Bonitão no momento do diálogo em que o gigolô acaba envolvendo-o na conversa, de acordo com suas intenções, para tirar proveito do casal. Na Figura 104, Bonitão e Rosa conversam na ausência de Zé, o qual subira até a Igreja, momento em que o personagem de Geraldo Del Rey tenta envolvê-la com justificativas para convencê-la a ir com ele para um hotel ter o “descanso” que merece, demonstrando claramente suas intenções por trás da fala.

Figura 104 – Profondeur de champ.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

O plano retrata uma abordagem que será utilizada por Chick novamente no filme, que é a de profondeur de champ, mostrando a encenação de dois personagens em primeiro plano, postados na mesma linha em relação à objetiva, os quais falam de um assunto relacionado a Zé do Burro, mas sem a presença dele no diálogo. Rosa e Bonitão, ao seguir para o hotel, são pegos de surpresa por uma chuva e rapidamente procuram um lugar para se abrigar. No local no qual ficam protegidos, a iluminação é capaz de reiterar a tempestade no fundo e de concentrar nosso olhar no flerte entre os personagens, com um delicado desenho de luz que focaliza parte de seus corpos para a câmera, com ênfase em Rosa. Isso cria uma vinheta suave que transmite um mood romântico ao plano, mesmo sendo esse um flerte às escondidas (Figura 105). 161

Figura 105 – Luz delicada para um momento “romântico”.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Enquanto Rosa dá seu relato indignada a Bonitão, “arrependida” de ter se casado com Zé, Bonitão, pouco atento à fala da moça, procura brechas e oportunidades para beijá-la e tê-la em seus braços. Ambos vão para o hotel e a parte final da sequência termina com uma porta fechada e um cross dissolve encerra aquilo que provavelmente o espectador já previa, mas que será revelado mais tarde no filme. Inclusive a respeito da cena, Anselmo relata que o subentendido entre Rosa e Bonitão era mostrado no filme de forma explícita, mas, na versão final, alguns planos acabaram suprimidos para trazer mais originalidade à obra, como relata Anselmo Duarte:

E justamente por gostar do filme Le Bret queria me fazer um pedido. Ele sugeriu que eu cortasse as cenas em que Glória Menezes, como Rosa, apareceu nua no chuveiro e é beijada por Geraldo Del Rey, como Bonitão. Le Bret argumentou que o filme todo era muito forte e original e a cena poderia ser considerada imitação de E Deus Criou a Mulher, de Roger Vadim, com Brigitte Bardot, que tinha uma cena similar. Nunca assisti ao filme francês, nem antes e nem depois, mas levei muito a sério o que o Le Bret me disse. Se o presidente do festival achava que eu tinha chance, era bom eu me animar. Foi o que fiz (MERTEN, 2004, p. 155).

Ressalta-se que a supressão das cenas entre Rosa e Bonitão, além de salvaguardar a originalidade do filme, não desvia o foco do tema central e mantém a mesma coerência narrativa nas demais tematizações abordadas ao longo do percurso, deixando a cargo do espectador. 162

Na manhã seguinte, à medida que os sinos tocam, os primeiros fiéis retratados unicamente por mulheres chegam à Igreja e se deparam com Zé do Burro, sendo que algumas delas o olham com carinho e outras o encaram indignadas, como se o promesseiro beirasse um herege ao estar com uma cruz de madeira aos pés da Igreja. Eis que se vê pela primeira vez padre Olavo à procura de seu acólito e que de pronto já demonstra a sua característica enérgica, chamando seu ajudante, de forma incisiva e autoritária, como demonstrado na Figura 106.

Figura 106 – Padre Olavo.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Na construção dessa cena, faz-se uso do contra plongée, que é o posicionamento da câmera de baixo para cima, num ponto de vista que coloca a figura do padre numa aparente superioridade, reiterando a sua postura autoritária. O uso do contra plongée pode ser melhor entendido a seguir. O contra plongée (o tema fotografado de cima para baixo, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar) dá geralmente uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torna-los magníficos, destacando-os contra o céu aureolado de nuvens [...] o plongeé (filmagem de cima para baixo) tende, com efeito apequenar o indivíduo, esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um objeto preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade (MARTIN, 1990, p. 41).

Em um primeiro momento, tem-se a impressão de ele estar caminhando em direção à objetiva num mesmo patamar de olhar. Porém, quando se posta próximo à câmera para chamar seu acólito, a posição de padre Olavo e a troca de olhares entre os personagens assume um ponto de vista em contra plongée enquadrando o padre numa abordagem que será corriqueira no filme, colocando-o sempre em uma situação de superioridade hierárquica, de grande autoridade. 163

Zé chama o padre, que está atrasado para a missa, e se dirige à Igreja. Ao ver a cruz, padre Olavo dirige-se curioso e indagativo para o peregrino. Ele considera que a promessa é exagerada em carregar uma cruz por léguas, machucando o ombro, para salvar o Nicolau. No entanto, ao escutar a história de Zé, tem-se o movimento de câmera que “Geraldinho” classificaria como sendo um daqueles movimentos feitos no “muque”. A sequência sai de um diálogo de plano e contraplano, entre Zé e o padre, para um plano sequência de travelling, quando ele apressa o seu ajudante e as fiéis para a missa que está atrasada. Nesse momento, um recuo de câmera revela as devotas que o padre encaminha, enquanto Zé pega sua cruz e dá sequência ao seu diálogo com o sacerdote, que acaba descobrindo que na verdade Nicolau era um burro (Figura 107).

Figura 107 – Travelling que segue subindo a escadaria.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962)

É nesse momento, numa tensão gerada pela expectativa, que padre Olavo considera o ato de Zé do Burro um exagero, pois a medicina de Preto Zeferino não lhe interessa, chamando-o de feiticeiro, afirmando que as orações dele são feitas para tentar. Terreiros são antros de feitiçaria, com falsas divindades, pensa o padre. 164

Os movimentos de travelling, como o da Figura 107, em suma, são lentos e bem calculados, geralmente associados à movimentação dos atores, motivados por alguma ação em quadro com o intuito de criar uma expectativa acerca da conversa entre ambos. Nesse plano, ele é motivado pela saída das fiéis à direita da câmera. Da feita que a câmera recua, ela faz uma curva e começa a acompanhar os dois personagens que conversam. No momento da curva, é possível perceber uma inclinação da câmera, possivelmente por uma dificuldade de montagem de um aparato para tornar o movimento uniforme e fluído, mas que, em determinado ponto, torna-se um tanto instável e deixa o quadro inclinado à esquerda. Com a subida dos personagens degraus acima, a câmera assume novamente um enquadramento nivelado, com os atores acompanhando-os escada acima de forma estável. Esse é um exemplo de que, mesmo um movimento complexo, pode ser improvisado e bem executado, com uma “falha” pouco perceptível. Uma inclinação de Chick por soluções aparentemente difíceis, mas que não se transportam efetivamente para o filme, camufladas como o travelling sobe o rio em O cangaceiro. No caso de O pagador de promessas, um artifício de movimento de câmera que sobe uma escadaria é igualmente complicado, mas permite ao espectador estar sempre próximo do desenrolar dos acontecimentos. Possivelmente esse plano da Figura 107 foi gravado do começo ao fim do diálogo, mesmo a sequência tendo cortes e posicionamentos de câmera que intercalam o plano do travelling. O plano, mesmo quando interrompido por esses cortes, demonstra as mesmas características do começo ao fim, denunciando o mesmo posicionamento de câmera e de movimento. Acompanhar os dois personagens subindo as escadas rumo à Igreja, com o padre escutando atentamente as palavras de Zé, não é somente desafiador do ponto de vista da fotografia cinematográfica, mas extremamente importante por trazer uma cumplicidade e um entendimento e até mesmo de um sentimento de acolhida por parte do personagem do padre. Porém, esse sentimento acaba mudando radicalmente sua postura com o promesseiro ao descobrir que as diferentes tentativas de Zé para salvar seu amigo acabam levando-o a um terreiro de candomblé, o que afronta as crenças do sacerdote, principalmente, quando se refere a uma promessa que envolve carregar uma cruz tão pesada como a de Cristo. O que era uma conversa amigável, com sorrisos e tiradas, ganha um basta do padre Olavo, que deixa de caminhar ao lado do pagador de promessas, até então se identificando com sua condição e fé, para, enfim, deter Zé, subindo degraus acima sempre que deseja se dirigir ao 165

personagem do promesseiro. Ao fazer isso, ele assume uma postura que se seguirá no restante da narrativa, a de um “inquisidor” (Figura 108).

Figura 108 – Padre Olavo acima de Zé do Burro

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962)

O percurso da conversa chega ao ponto em que o padre questiona Zé se depois da promessa ele não iria querer ser visto como um novo messias, mesmo repetindo a via crucis a partir de uma promessa feita em um terreiro de candomblé. Zé do Burro insiste em afirmar que fez à Santa Bárbara, já que na sua cidade não existe uma imagem da Santa, mas tinha a de Iansã, que é a mesma Santa Bárbara, ou sua representação. Padre Olavo se exalta e questiona coisas a Zé do Burro que se demonstram incompreensíveis ao personagem. Sua indignação chega ao ponto de deixar claro ao promesseiro que nessa Igreja ele não entrará com a cruz, marcando o primeiro ponto de virada da narrativa, pois Zé se vê impedido de cumprir sua promessa. A música, até então ausente na conversa de ambos, surge e vai crescendo aos poucos, evocando um aspecto sombrio frente ao obstáculo que Zé não esperava encontrar. O vento sopra, bagunça os vestidos e os cabelos das fiéis e faz balançar as vestimentas do padre, intensificando o drama da revolta dele, que não admite a promessa de Zé do Burro. O vento é como o prenúncio de uma “tempestade” que desabará sobre ele, impedido de levar a bom termo seu propósito. O padre proíbe a entrada de Zé, pois, caso isso acontecesse, tornaria a Igreja um local de “falsos” ídolos pagãos e isso seria o fim da religião, na sua visão. No caso a instituição maior do catolicismo é representada aqui pela Igreja, que se configura como tal da porta para dentro, tanto é que mais à frente, na narrativa, é perceptível a segregação daqueles que podem adentrar o espaço. 166

Essa delimitação física da porta representa a fronteira entre o “sagrado” e o “profano”, que, segundo Mircea Eliade (1992), um dos pesquisadores mais referenciados sobre tema, é uma relação que se constitui:

O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, fronteira que distingue e opõe dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado. [...] o limiar, a porta, mostra de maneira imediata e concreta a solução de continuidade de espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo, e ao mesmo tempo, de um veículo de passagem (ELIADE, 1992, p. 29).

Notadamente, é perceptível que a ambiência da Igreja, com a porta fechada (Figura 109), é escura e outros planos irão demonstrar que o espaço é representado dessa forma. Especificamente nesse caso, o plano também serve para um propósito conceitual: um artifício de corte, cuja escuridão estabelece uma justaposição de planos de outra porta, a do escritório do repórter, representado por Othon Bastos.

Figura 109 – Vetada a entrada de Zé do Burro.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Tem-se nessa sequência, da Igreja para o escritório, um raccord temporal e espacial através de objetos, sendo representados, no caso, pela porta da Igreja e do escritório. Esse recurso será utilizado novamente de forma inteligente no filme. 167

É interessante notar que na página do IMDb47 referente ao filme, o personagem de Othon Bastos é nominado como Repórter, assim como outras figuras que acabam sendo a representação de uma instituição, como o Monsenhor, o Inspetor e o Delegado. No decorrer da narrativa, os personagens do povo são representados por apelidos, aproximando-se mais da realidade cotidiana: Minha Tia (Maria Conceição), Dedé Cospe-Rima (Roberto Ferreira), Galego (Gilberto Marques), Mestre Coca (Antônio Pitanga), assim como o próprio Bonitão. No entanto, as alegorias permitem que o universo da história tome um corpo generalizado, fazendo com que essas figuras sejam representações de tipo e instituições sociais históricas (SILVA, 2009, p. 86). Minha Tia é uma dessas representações que simpatizam e inclusive oferece saída à promessa de Zé do Burro, para que esse a cumpra com dignidade. Ela e Mestre Coca são a representação mais enraizada da Bahia, na figura da religião e dos costumes culturais. Os filmes O pagador de promessas e O assalto ao trem pagador, assim como a maioria dos filmes da primeira fase do Cinema Novo, abordam o negro e os aspectos da sua história num momento de ressignificação do negro no cinema brasileiro (CARVALHO; DOMINGUES, 2017). Diferente dos personagens rurais centrais na trama, os personagens de Minha Tia e Mestre Coca, apesar de não assumirem um protagonismo inicial na trama, possuem um papel fundamental no desenrolar dela, principalmente no desfecho. É o caso do grupo de capoeiristas, que promovem a “revolução” na escadaria, a qual culmina na morte do protagonista, mas que também dá força à insurgência deles, acuando a Polícia e a Igreja, ambos com letra maiúscula, pela força da representação da alegoria e da união desses personagens frente a essas instituições. Outro personagem, o de Dedé, é apresentado à história com um elemento de movimento de um artifício muito utilizado no filme, que é a mudança de situações, ou de personagens, a partir do movimento de câmera. A câmera segue o vendedor de araçá, que olha rapidamente para Zé e continua subindo as escadas. Quando o personagem de Dedé aparece em quadro, a câmera deixa de acompanhar o vendedor para, então, priorizar o poeta que, ao reparar o promesseiro, posta-se em frente a ele com curiosidade (Figura 110). Esse movimento de câmera, além de dar continuidade à sucessão de movimento dos personagens, também nos coloca na movimentação do espaço, sem nos darmos conta.

47 IMDb, também conhecida como Internet Movie Database, é uma base de dados on-line de informação sobre música, cinema, filmes, programas e comerciais para televisão e jogos de computador, hoje pertencente à Amazon. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0056322. Acesso em: 26 ago. 2020. 168

Figura 110 – Movimento de câmera principal inicia-se motivado por outra ação, para então se fixar no personagem de Dedé Cospe-Rima.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Esse é um artifício de câmera cuja fluidez do movimento permite a mudança sutil e dinâmica dos elementos em prioridade no quadro, sem dar indícios explícitos ao espectador, que acaba sendo conduzido pela história pelo movimento. Assim como as cenas de abertura no terreiro, o filme mostra uma das manifestações mais importantes de Salvador, superada em festividade apenas pelo Carnaval: a lavagem da escadaria do Senhor do Bonfim (Figura 111), embora transplantada para as escadarias da Igreja de “Santa Bárbara”.

Figura 111 – Lavagem da escadaria.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

169

Essa é uma manifestação que remete a uma tradição desde o século XVII, na qual os negros escravizados realizavam a lavagem da Igreja, na quinta anterior ao louvor ao Senhor do Bonfim. Nos “terreiros”, isso virou também um hábito antigo, que foi reinterpretado pelos escravizados ao sincretizar o Senhor do Bonfim com Oxalá, preparando a homenagem à entidade, cuja sexta-feira é o dia regido por esse Orixá. Em 1889, por determinação do arcebispo, a festa ao Senhor do Bonfim foi proibida e as baianas foram impedidas de lavar o interior do templo, passando, então, a lavar a escadaria, a fim de garantir assim as bênçãos do Senhor do Bonfim e de Oxalá. Antônio Pitanga, que faz o personagem do Mestre Coca, relata que levaram anos para a Igreja aceitar a lavagem da escadaria do Bonfim (O PAGADOR DE PROMESSAS, 2012). Ainda na Figura 118, o enquadramento enfoca o ato da lavagem em si e prioriza os detalhes desse processo, como o vaso, os objetos, etc. Como de costume, em diversos planos de Chick, há ênfase no labor, no trabalho, cujo movimento panorâmico releva de súbito o ritual da lavagem, e os personagens, dispostos ao longo da escadaria, em perspectiva em relação à câmera. A cantoria das baianas (oyá tetê), aliada a um movimento de câmera sutil, proporciona ênfase ao ritual numa rica e breve demonstração das vestimentas, da lavagem e das baianas, com a câmera mais próxima em plano de conjunto, que releva mais detalhes e os rostos dessas personagens (Figura 112).

Figura 112 – Lavagem da escadaria.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

A textura dessa imagem, realçada pela contraluz e pela compensação que iluminam as mulheres, é tão rica que acaba apreendendo o olhar de Zé do Burro ao descer as escadas para o trânsito com sua cruz, num sinal de admiração da beleza de tal cerimônia. 170

O amanhecer daquele dia marca o início das celebrações, mas também o despertar de Rosa, que sai do hotel em direção à Igreja. A música desse momento da trama evoca uma sensação de tensão ao caminhar de Rosa. Com os sinos badalando, a caminhada de Glória Menezes transforma-se em corrida, sendo possível sentir a apreensão da personagem, que acelera seu ritmo, como se estivesse correndo contra o tempo, aflita, em busca do marido, em meio a uma cidade desconhecida, urbana e cheia de gente. Rosa está visivelmente incomodada. A exacerbação desse incômodo e dessa aflição é intensificada num longo plano que acompanha justamente esse momento, em que a personagem começa a correr (Figura 113).

Figura 113 – Rosa corre em busca do marido (dolly).

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962). A câmera acompanha Rosa, de forma intensa, traçando o percurso de aproximação da personagem. O ponto de vista prioriza o olhar do espectador para ela, enquanto corre, vivenciando de perto seu conflito. Esse travelling que acompanha a personagem é visivelmente adaptado e foge um pouco da abordagem que Chick fazia na Vera Cruz. Nesse plano, é possível perceber, assim como na sequência de abertura, o trepidar da câmera e a mudança de velocidade com que ela se afasta e se aproxima da personagem, ou vice-versa, o que denuncia seu posicionamento em algum veículo adaptado, uma demonstração de versatilidade. Ao mesmo tempo em que determinadas situações das cenas são muito bem controladas, no aspecto da locação, dos extras e dos figurantes, nessa cena em particular, é possível perceber que as pessoas olham para a câmera à medida que o plano se desenrola, o que denuncia uma mise-en-scène que foge ao controle do diretor. Essa é uma característica muito visível em filmes, cuja produção tem um controle limitado do domínio daquilo que se filma, próprio de filmes considerados independentes ou de 171

baixo orçamento. Essa “falta” de controle também é perceptível nos planos dos filmes que mostram áreas históricas e turísticas de Salvador, como Pelourinho e o Elevador Lacerda. Quando Rosa chega à Igreja, encontra Zé debruçado sobre seus pensamentos. Seu olhar é fugidio quando Zé começa a falar sobre os acontecimentos que o impediram de entrar na Igreja. Nesse diálogo, percebe-se uma separação entre os dois, reiterado pela cruz que imageticamente se coloca entre ambos: o símbolo da promessa que os unia, é agora o mesmo que os separa (Figura 114).

Figura 114 – Plano conjunto: a cruz separa Zé e Rosa.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

A vontade que Rosa tem de ir embora de Salvador não pode se realizar, pois a promessa, aqui representada pela cruz, está entre ela e seu marido. Se na Figura 94 tem-se a representação de uma anunciação do que aconteceria ao personagem de Rosa, na tentativa de demover Zé de entrar na Igreja, a Figura 114 demonstra isso de forma mais clara frente aos embates dos dois personagens. O personagem de Othon Bastos surge na narrativa com o objetivo da divulgação noticiada da promessa de Zé do Burro. Ao entrevistá-lo, o Repórter o envolve em sua conversa, na busca de seus propósitos, fazendo uma reportagem segundo seus interesses. Suas indagações, reiteradas ingenuamente por Zé, acabam colocando-o como um herói “a favor da reforma agrária” e “contra a exploração do homem pelo homem”. Nessa cena, o ponto de vista da câmera no plano da Figura 115 assume uma posição que reflete a fragilidade da situação de Zé, de forma diferente do artifício de plongée, que coloca o personagem numa situação de vulnerabilidade e impotência. 172

Figura 115 – Plano Conjunto: ponto de vista privilegia a visualização das reações de Zé do Burro.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Com a possibilidade de ver as reações do personagem de Zé, privilegiado pelo posicionamento de câmera, é possível perceber suas reações frente aos ostensivos assédios que sofre e que serão uma constante na narrativa. Zé se irrita com as investidas do Repórter e alega não ser compreendido. No plano da Figura 116, a forma como esse jogo de encenação se dá segue um estilo muito parecido com planos do filme A virgem desnudada por seus celibatários (2000), de Hong Sang-soo, como relata Bordwell (2008), cuja opção do diretor em enquadrar todos os personagens juntos e travar um diálogo exalta a confiança nos personagens e nas suas interações, mesmo estando dois deles de costas para a câmera. Com uma abordagem similar ao de Hong, o jogo dramático da disposição dos atores sai de uma composição entre Rosa, o Repórter e Zé, para dar lugar a mais um personagem: o guarda.

Figura 116 – Plano conjunto: a disposição dos atores muda conforme mais um personagem entra em cena.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962) 173

Rosa, dando cabo aos argumentos do Repórter, entra no mundo fictício proposto pelo profissional, postando-se em pé ao lado desse personagem. O posicionamento dos dois nesse mesmo espaço do quadro causa um desequilíbrio em relação ao posicionamento de Zé do Burro, numa diagonal descendente à direita. O promesseiro toma uma atitude, levanta-se e, ao fazer isso, faz com que Rosa o acolha e passe para o “lado” dele, tanto de forma física quando metafórica, já que o Repórter ainda permanece com a atitude de convencê-lo a fazer parte de seu esquema de reportagem. Rosa passa pelas costas do marido e fica à sua direita e não à sua esquerda, pois assim possibilita um espaço no quadro para o posicionamento do personagem do guarda, que fica ao lado do Repórter, que participa do plano no intuito de reiterar a decisão do padre Olavo de negar a permissão da entrada do promesseiro com a cruz na Igreja. Rosa e Zé estão de costas para a câmera, o que permite ao espectador focalizar nas expressões e nas falas tanto do Repórter quanto do guarda. O leve movimento de câmera de reenquadramento é discreto, mas denuncia a ação bem articulada da parte da direção e da fotografia cinematográfica aliadas ao jogo de encenação. Outro momento de um artifício da câmera de Chick Fowle, que tende a ser discreto, é presenciado no momento em que a procissão de Santa Bárbara chega à Igreja. A câmera está fora da estabilidade do tripé, num mesmo princípio de captação de imagem utilizada em Nightmail e em Christmas Under Fire, objetivando uma abordagem improvisada. Num plano (Figura 117) com um pouco mais que sete segundos, o leve movimento da câmera denuncia sua leve instabilidade.

Figura 117 – Plano geral com câmera na mão da procissão de Santa Bárbara.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962). 174

No entanto, a riqueza da cena que apresenta a procissão católica de Santa Bárbara, em que a imagem da Santa é carregada numa berlinda florida, é suficiente para captar e direcionar o olhar do espectador para o plano, que pode acabar desconsiderando esse oscilar do aparato. Nesse momento do filme, cada personagem acaba se detendo no seu ponto de interesse, reforçado por planos de ponto de vista dos personagens, que unem o olhar de Rosa e Bonitão e de Zé com Santa Bárbara. Toda a geografia desse paralelismo das relações e dos acontecimentos que se sucederão na narrativa é reforçada novamente por um plano cuja profundidade de campo permite colocar os personagens dispostos de forma que o olhar de Zé capta a ascendência da Santa na escadaria em direção à Igreja, e o olhar de Rosa capta Bonitão, postado na penumbra em frente ao estabelecimento de Galelo. Ela desce as escadas em direção a ele, a pretexto de ir até a venda tomar um café (Figura 118).

Figura 118 – Plano geral em profundidade de campo: Rosa vai até Bonitão enquanto Zé fixa seu olhar para na santa.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Ao entrar no estabelecimento de Galego, Rosa vai conversar com Bonitão sobre seu arrependimento em relação à noite anterior. A posição do personagem de Galego se dá estrategicamente entre Rosa e Bonitão (Figura 119), o que evidencia a postura sorrateira e oportunista do comerciante, exprimido imageticamente na cena pelos personagens.

175

Figura 119 – Plano conjunto/ Plano médio de Galego.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962)

A evidência a essa personalidade é reiterada quando a câmera permanece no personagem após a saída de quadro de Bonitão e de Rosa, deixando-o centralizado, no centro do quadro, reafirmando sua postura debochada. Mesmo que o assunto no primeiro layer do plano esteja com Bonitão e Rosa, com os seus corpos e seu diálogo em voga, a atenção do espectador vai ao encontro de Galego, frente à centralização desse personagem. Uma disposição simples e inteligente para reforçar as camadas por detrás da narrativa, que revela que o segundo layer é tão importante quanto o primeiro. Trata-se de um recurso utilizado em vários momentos do filme, que demonstra uma profundidade de campo em mais de um layer e destaca sua importância nos planos de conjunto. O exemplo da Figura 119, pela disposição dos personagens, faz o espectador repensar o protagonismo nas cenas, que, por vezes, serão priorizadas para os personagens coadjuvantes. Rosa e Bonitão decidem conversar e o personagem tenta, segundo seus interesses, convencer a esposa de Zé que o melhor seria largá-lo e ficar na cidade. Esse diálogo acontece no estabelecimento de Galego, com os dois sentados em frente a uma das portas que dá visão à escadaria da Igreja. O plano de conjunto dos dois perfilados para a câmera, frente a frente, centraliza os acontecimentos da escadaria numa superposição de layers, ao fundo, mostrando a procissão que sobre rumo à Igreja (Figura 120).

176

Figura 120 – Profondeur de champ: o foco prioriza os acontecimentos ao fundo.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Novamente o recurso usado na cena da Figura 119, no diálogo entre Rosa e Bonitão no primeiro layer e o Galego no segundo, aparece novamente nessa cena (Figura 120). Entre eles, interpõe-se Zé do Burro, ao fundo, hipnotizando pela figura da Santa. A conversa dos dois implica diretamente na construção da narrativa clássica de características canônicas da perseguição do protagonista a seu objetivo, que parece ser questionado por personagens ao seu redor (BORDWELL, 2009). O enfoque na procissão, que é o verdadeiro acontecimento do plano, acaba desmembrando a narrativa em montagens de acontecimentos simultâneos, sendo reiterado por uma técnica de profundidade de campo intitulada como distância hiperfocal:

Essa é a distância de foco mais próxima em que tanto os objetos que estão no infinito quanto aqueles mais próximos estão em foco. Quando uma objetiva é definida na distância hiperfocal, tudo, da metade da distância hiperfocal até o infinito estará em foco (BROWN, 2012, p. 277).

Esse procedimento também está associado ao foco profundo, artifício muito utilizado por Gregg Toland, em Cidadão Kane, que permite contar a história do plano em diversas camadas. Em outras palavras, permite que uma lente em determinada configuração focal destaque tanto os objetos mais próximos à objetiva quanto os objetos a uma distância considerada como infinito (BROWN, 2012). Essa relação matemática tem conexão direta com a abertura do diafragma da lente, pois quanto mais alto o diafragma, mais fechado, com menos incidência de luz que passa pela objetiva, o que permite maior distância hiperfocal, ou seja, os objetos ficam mais próximos da objetiva, sem perder sua relação de foco com o fundo. 177

Especialmente na Figura 120, Chick alcança uma profundidade de campo muito próxima da hiperfocal para os personagens Rosa e Bonitão, no primeiro layer, que aparecem levemente desfocados, imperceptíveis ao espectador comum. Isso reforça que a prioridade é destacar a procissão e a conexão de Zé com a Santa, mesmo em segundo plano, em detrimento aos personagens postados frente à câmera. Interessante um parênteses na breve passagem de Dedé Cospe-Rima – um poeta de rua que acompanha de perto a saga de Zé do Burro na escadaria, podendo ser caracterizado como um layer intermediário a Rosa e Bonitão em relação à procissão – à semelhança da figura de Galego, colocando-se como um observador dos acontecimentos em torno do promesseiro. Zé, por sua vez, tem uma fé exacerbada, até certo ponto ingênua, a qual o filme tenta demonstrar que está desprovida de interesses sociais, políticos ou religiosos. Sua conexão com a Santa é forte e isso é evidenciado numa sucessão de planos fechados que revelam ao espectador uma cumplicidade com sua fé e sua promessa. Uma cena carregada de emoção, louvor e admiração, que Alex Viany (1999) considera como sendo uma das contribuições fundamentais de Anselmo na sua adaptação da peça de Dias Gomes para o cinema, a qual pode ser apreciada na Figura 121.

Figura 121 – Planos médios se “aproximam” até planos fechados da feita que a admiração de Zé por Santa Bárbara se intensifica.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962). 178

A cruz, a escada e as dificuldades impostas para o personagem não são obstáculos para Zé seguir os “passos” da Santa, numa cumplicidade de rostos que se aproximam mais e mais com a subida da escadaria, como se a sua súplica e sua fé o levassem cada vez mais para próximo da Santa. A sensação que se tem é de um “olhar” terno e silencioso, mas de encorajamento, de alguém que compreende a jornada de Zé. É a verdadeira conexão que ele anteriormente buscara (Figura 101), já que nesse recorte temporal os arredores não importam, somente a relação do protagonista com a imagem, que se dá numa intensificação de cortes e planos, cuidadosamente estáveis, que apreendem o olhar do promesseiro num travelling que não deixa escapar em nenhum momento a “troca de olhares” entre eles. Apesar de ser uma representação escultural, ela parece “ganhar vida” e “responder” veladamente às súplicas do promesseiro. Zé acaba impedido novamente de entrar à Igreja e, quando as portas se fecham, Minha Tia, personagem que vende produtos e comidas ao pé da escadaria, fala para Zé do Burro que mais tarde o Terreiro da Menininha vai estar em festa e que sua promessa feita a Iansã poderá ser cumprida lá mesmo, ao que Zé responde a ela que “Não é a mesma coisa”. Na sequência, Marli, a namorada que é explorada por Bonitão no filme, procura o gigolô na procissão, para então achá-lo no estabelecimento de Galego, flertando com Rosa. Aqui se tem um exemplo de condução do movimento de câmera, que parte de um ponto para repousar em outro, com a entrada da personagem Marli, que continua numa panorâmica para se fixar em Rosa e Bonitão no primeiro layer do plano. Ambos estão sentados na mesa do bar e logo são surpreendidos pela entrada do Repórter com o seu fotógrafo, cujos olhares rapidamente captam o que está acontecendo entre eles. Todos parecem perceber a relação de Rosa e Bonitão. Antes do clímax da conversa entre ambos, Marli observa cuidadosamente a conversa dos dois, num contraplano de Rosa, que tende a priorizar Marli e Bonitão, tendo apenas parte do corpo de Rosa em quadro (Figura 122).

Figura 122 – Contra plano enfocando Bonitão e Marli.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962). 179

Na Figura 122, tem-se um plano aparentemente simples, mas de uma riqueza fotográfica típica da abordagem de Chick, com texturas, nuances e contrastes que sedimentam a posição e as relações dos personagens, marcas da fotografia de Fowle que aparecem em seus filmes. Se antes a relação dos planos era entre Rosa e Bonitão, na cena da Figura 122, ela é posicionada bem ao canto do quadro, à esquerda, tornando-se um recurso que emoldura Bonitão e Marli. Mesmo com ambos próximos de uma mesma linha do quadro, o enfoque, pela iluminação clara atrás do personagem, sinalizada em laranja, prioriza muito mais o olhar em Bonitão do que em Marli. É um destaque semelhante à abordagem do Windmill principle48, cujas relações de claro e escuro entre o personagem e fundo são gradativas, numa transição tonal entre uma área mais escura do cenário com uma área mais clara do personagem e vice- versa. Em outras palavras, é como se ele “saltasse” do fundo emoldurado por uma textura luminosa, com nuances de claro e escuro em seu contorno, em um plano que flui num olhar que passeia, mesmo que brevemente, numa imagem que sempre converge para Bonitão, seja por conta do olhar dos demais personagens, ou pelo cuidado com a iluminação muito bem desenhada por Fowle. Mais um conflito se inicia, com Marli tomando Bonitão como sendo dela, discutindo e humilhando Rosa na frente do marido. A discussão dos casais passa a ser registrada por inúmeros fotógrafos que cercam Zé e Rosa, com o personagem se revoltando com o assédio sofrido. Esse momento da cena é captado num movimento de câmera que recua e enquadra os fotógrafos, que registram a revolta de Zé (Figura 123).

48 James Gurnay disserta a respeito do Windmill principle a partir da observação da pintura O moinho, de Rembrandt, de 1648, e das relações entre escuro/escuro, claro/escuro, escuro/claro e claro/claro inseridas na imagem, sendo que cada palheta do moinho representa um dos quatro arranjos tonais possíveis. O artista reparou esse princípio em diversas outras pinturas de diferentes artistas, como Anders Zorn e Sir Alfred Munnings. Cf. http://gurneyjourney.blogspot.com/2008/04/windmill-principle.html. Acesso em: 29 ago. 2020. 180

Figura 123 – Travelling out: Zé do Burro pede “Chega!”

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

O plano prioriza a iluminação em Zé e Rosa, deixando os fotógrafos subexpostos, como que vinhetados pela imagem, o que faz com que o olhar se concentre no promesseiro. Um prenúncio dos flashs e dos holofotes se concentram no espetáculo do dia, competindo com a procissão, o que resultará em mais um ponto de virada no filme, já que a foto do jornal e a notícia farão com que a saga do herói seja conhecida em toda a cidade de Salvador. No entanto, a forma como a notícia se espalha apresenta duas caraterísticas distintas de conteúdo. Uma de acesso mais popular do Jornal da Bahia, com a manchete “Novo Cristo Prega a Revolução”, e outra, que dialoga com a classe média, o jornal A Tarde, que levanta uma interrogação se Zé é “Místico ou Agitador?”. O corte do plano dos fotógrafos que tiram a foto de Zé permite um raccord de movimento que paralisa o tempo, com a expressão de Zé do Burro, e o transporta espacialmente em diversas ocasiões, entre diferentes cenários e situações. Uma delas é a cena com Mestre Coca (Figura 124), que no cais do porto, lê a matéria e simpatiza com a causa de Zé, desejando ajudar o camarada. Isso reitera “[...] um certo envolvimento dos capoeiristas com os assuntos políticos, fato muito recorrente em tempos passados” (CASTRO JR., 2010, p. 150).

181

Figura 124 – Travelling out: plano fechado do jornal que revela o grupo de capoeira do Mestre Coca.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Essa cena é o início do envolvimento decisivo do Mestre Coca na narrativa, na demonstração de uma relação de identidade, uma vez que Mestre Coca “[...] toma partido do camarada, no caso, Zé do Burro, que representa a resistência contra a intolerância, e, portanto, num ato de solidariedade, os capoeiristas saem em defesa do novo Santo” (CASTRO JR., 2010, p. 150)49. Da maneira que o jornal circula e a notícia se espalha, ela chega ao estabelecimento de Galelo, em que é mostrada a discussão entre ele, Mestre Coca e Dedé Cospe-Rima. Bonitão com o jornal em mãos liga para o departamento de polícia, seu antigo trabalho, para “alertar” sobre o tal agitador comunista. Vale ressaltar que o filme foi recebido por parte da crítica como um filme de esquerda. Anselmo inclusive faz um relato, sobre interessante ponto de vista seu, em relação à exibição do filme em Cannes, em que “[...] durante toda a projeção, houve uma dicotomia curiosa. Os espectadores estavam divididos entre esquerdistas e direitistas, entre ateus e católicos. Quando uma ala aplaudia, a outra vaiava” (MERTEN, 2004, p. 161). Em cena posterior, meditando a respeito da situação no alto da Igreja, padre Olavo escuta os gritos das manchetes do jornal e se debruça sobre seus braços em oração. O movimento da câmera guia o olhar para as súplicas do sacerdote, estacionando temporariamente em sua reza, para então se lançar em um movimento diagonal, de tilt up, que enquadra o azul do céu e as nuvens.

49 Vale ressaltar que a capoeira já foi considerada crime e os praticantes já foram vítimas da intolerância e também sofreram perseguições pelo poder público. A descriminalização da prática só ocorreria em 1937, quando passou a ser praticada em academias. A esse respeito, cf.: https://www.politize.com.br/capoeira-um-ato-de-resistencia/. Acesso em: 30 ago. 2020. 182

Numa fusão de imagens, os céus se mesclam ao teto da imensa sala do Monsenhor, relevando uma reunião que debate justamente as atitudes a serem tomadas frente a uma situação tão delicada para a Igreja diante do impasse da promessa de Zé (Figura 125).

Figura 125 – Movimentos de câmera e corte em fusão prolongam a sensação de movimento que converge de encontro ao personagem do Monsenhor.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

A plasticidade do movimento e da fusão prolonga e une um plano a outro, em uma sequência orgânica, para mostrar ao espectador a alta cúpula católica de Salvador, que debate sobre as verdadeiras intenções da Igreja em solucionar o problema que lhe bate à porta. Preocupa-lhes o fato de que padre Olavo esteja sendo injusto e cruel com o promesseiro, segundo a visão do povo, fazendo-se necessária a busca de uma rápida solução para que a instituição não fique vulnerável frente à opinião pública. E, nesse jogo, novamente o recurso de montagem com o jornal transporta o espectador para diferentes lugares. Isso, no caso, ocorre a partir do movimento de travelling in na conclusão da decisão tomada pelo Monsenhor, ao final do plano, para finalizar com um plano único, enquadrando somente a figura central da mesa, que levanta o jornal para ler novamente a notícia (Figura 126).

183

Figura 126 – Travelling in focaliza o Monsenhor em plano único.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Ao levantar o jornal num raccord de movimento, o espectador percebe que não se trata mais do ponto de vista que focaliza o jornal do Monsenhor, mas, sim, o jornal que Bonitão segura, anunciando a chegada do Policial, que interrompe a leitura do gigolô e senta-se à mesa para conversar com ele (Figura 127).

Figura 127 – Falso raccord de movimento e ponto de vista.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

É um recurso muito inteligente de montagem, que alia não só a direção como também a fotografia, que se propõe a criar um ambiente fotográfico coerente entre as duas cenas, ocorridas em lugares diferentes. O raccord só é identificado quando revelado por um afastamento da câmera, que mostra os arredores e os personagens que são diferentes. A chegada do policial coloca em xeque novamente os propósitos de Zé do Burro, que se irrita com as constantes tentativas de ajuda que recebe, cuja indignação chega a tal ponto que exclama desejar jogar uma bomba na Igreja. Com a chegada do Monsenhor, o “mar” de gente que habita a escadaria se abre como na profecia mosaica e, apesar da aparente misericórdia e empolgação da vinda do 184

Monsenhor a mando do arcebispo, a música que celebra a sua chegada remete a uma tensão contrária, escura, longe da esperança celebrada. Uma ambiguidade que o filme, com sua textura, tem como retorcer e ressignificar, já que não só a música é tenebrosa, mas, também, suas vestimentas negras frente a um mar de gente vestida de branco, numa dualidade que pode, enfim, ter uma solução. Sobre essa ambiguidade a respeito do filme, Jean Claude Bernardet descreve o seguinte:

O padre Olavo não é mau; se proíbe o ingresso do Zé do Burro no templo, se é intransigente, é após meditação e rezas, é cumprindo o que ela acha ser o seu dever de sacerdote; o padre Olavo, sendo homem, pode se enganar e ser orgulhoso. [...] Outrossim, o filme retrata uma situação verdadeira que, até, poderia ser exemplar; e, então, a frase do monsenhor sobre o papel que a igreja deve de vez em quando desempenhar, deixa de ser satírica (BERNARDET, 1962, p. 60).

A forma como o diálogo entre o Monsenhor e o padre se apresenta é carregada de uma significação visual, reiterada por uma câmera oscilante, novamente fora dos trilhos estáveis dos travelling. A câmera os acompanha num caminhar, mas diferente da proposta das abordagens usuais de um diálogo dessa natureza, em que normalmente o ponto de vista mostra os personagens virados em direção à objetiva. Nessa cena, faz-se o inverso, ou seja, enquanto os dois caminham e discutem o papel político da Igreja na busca por uma solução flexível, que não desprestigie a instituição, fazem-no de costas, escondendo suas expressões do espectador, como se maquiassem suas verdadeiras intenções (Figura 128).

Figura 128 – A câmera acompanha os movimentos dos personagens.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Quando eles caminham em determinado ponto do plano no intuito de manter a mesma fotometria, Chick faz uso de um artifício de diafragma e abre a abertura da objetiva para entrar mais luz, de modo a não subexpor os personagens num espaço mais escuro da locação. 185

É possível perceber que o fundo do cenário torna-se mais luminoso com a aproximação dos personagens, devido a essa compensação de abertura do diafragma. Uma solução simples e eficaz para a compensação da iluminação. Trata-se de um recurso também utilizado em filmes documentários, que não possuem grande estrutura de luz para compensar todo o trajeto de uma câmera, que está normalmente ao encalço dos personagens, desbravando diferentes ambientes e cuja intensidade luminosa se difere50. Fora da Igreja, já na escadaria, Monsenhor oferece uma saída para Zé do Burro, que consiste em renegar todos os atos praticados em nome do “diabo” e retornar ao seio da “Madre Igreja”, a fim de revalidar sua promessa, já que os sacerdotes, segundo os dogmas católicos, têm o direito de trocar uma promessa por outra. Frente ao questionamento que se faz ao personagem, uma rodada de olhares se estabelece entre aqueles que esperam ansiosos pela resposta de Zé. Uma tensão, um suspense dominado pelo silêncio musical e pelo silêncio de todos em volta que se olham na expectativa do desfecho do embate (Figura 129).

Figura 129 – Planos únicos destacam os rostos que anseiam pela resposta de Zé.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

50 Tal recurso foi extensamente utilizado no filme Elefante (2003), de Gus Van Sant, fotografado por Harris Savides, numa câmera que acompanha o personagem John Robinson pelos corredores e salas da sua escola. É uma abordagem extremamente naturalista de iluminação, cuja constante compensação de diafragma permite ao espectador visualizar, sem alterações fotométricas na imagem, a rotina do personagem. 186

Anselmo Duarte e Chick Fowle usam novamente o mesmo recurso de Absolutamente certo, quando a plateia, os bandidos, os amigos e os familiares esperam pela resposta final de Zé do Lino, do programa de televisão, no desfecho do filme, que acaba respondendo quando tem a certeza de que sua vida e a daqueles que ama não está mais ameaçada. No entanto, se a resposta em Absolutamente certo impulsiona o desfecho do filme, em O pagador de promessas abre mais um capítulo na trama. Negando cumprir sua promessa daquela forma, é chamado pelo padre de falso Cristo e falso profeta, ao qual muitos seguiriam, sem saber que estariam seguindo um impostor, citando falas dos apóstolos de Jesus contidos no Novo Testamento. Revoltado com as acusações do padre Olavo, Zé tenta arrombar a porta da Igreja com a cruz, na tentativa de entrar pela força (Figura 130).

Figura 130 – Zé do Burro tenta invadir a igreja num plano neutro.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas. (1962)

Um plano, de um ponto de vista que enquadra Zé e a cruz do alto, mostra as pessoas ao redor e que o observam. A cada corrida em direção à porta, a multidão ao redor abre e fecha a passagem por onde Zé do Burro tenta a sua investida. É um esquema de plano e contraplano, cuja posição da câmera em relação à encenação permite o engrandecimento da escala do acontecimento. Como a luz do sol que incide na cena coloca a fachada da Igreja naturalmente no escuro, observa-se que rebatedores mantêm a característica da luz incidente, provavelmente com o uso de espelhos, para iluminar a porta que Zé tenta arrombar. 187

Nota-se a direção dessa luz rebatida, que advém dos dois lados, sendo mais intensa da direita do que da esquerda do quadro, pela sombra da cruz que incide na entrada da Igreja. Frustrado com sua tentativa, Zé acaba se postando na entrada da Igreja, atraindo novos repórteres e uma legião de pessoas que buscam nele um milagre. Incapaz de atender aos pedidos, aqueles que tinham esperança em obter algo daquele “místico” acabam indo embora. A câmera segue os passos dos cegos, doentes e cadeirantes, encerrando mais uma etapa da narrativa, que acaba se centrando na manifestação sincrética de fato, desse dia de celebração (Figura 131).

Figura 131 – Movimento de travelling que se inicia em plano conjunto daqueles que buscavam uma ajuda milagrosa de Zé do Burro, para planos fechados dos instrumentos da capoeira.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

A retomada da roda de capoeira é novamente a ampliação de um recurso, no qual uma ação conduz a outra, realizando uma transição sem cortes, numa valorização recorrente dos instrumentos musicais. Esses, por sua vez, são de extrema importância na narrativa, tanto que são os primeiros elementos apresentados no filme51.

51 O enfoque no pandeiro, e principalmente no berimbau, instrumento que dá a nota em diversos momentos de tensão ao filme, é um exemplo específico de uma cultura genuinamente brasileira. A partir da década de 1970, a capoeira passou a representar o Brasil mundo afora, sendo uma grande disseminadora da língua portuguesa, e que atualmente está presente em 72 países de todos os continentes. A esse respeito, Cf.: https://www.redbull.com/br- pt/until-18-capoeira-fora-do-brasil. Acesso em: 30 ago. 2020. 188

Observa-se, não só nesse filme, a atração que Chick tem por esses fazeres laborais e pela típica arte brasileira, mas também em Caiçara, no qual o detalhe do trabalho braçal e da musicalidade sempre esteve presente em sua cinematografia brasileira, sendo uma de suas marcas. Muitas dessas peculiaridades em torno dessa arte ainda são desconhecidas de muitos brasileiros, e quando o são, nem sempre expressam o real significado das suas manifestações. Isso diz respeito não apenas à capoeira, mas, também, ao samba de roda, uma variante musical mais tradicional, que deu origem ao conhecido samba carioca, cujos primeiros registros são datados desde 1860, na Bahia (Figura 132) (CASTRO JR., 2010).

Figura 132 – Baianas dançam o tradicional samba de roda.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

O filme valoriza essas manifestações e dedica mais de um minuto somente à capoeira, a fim de mostrar o jogo de Mestre Coca, de forma aparentemente contemplativa, mas valorizando cada detalhe e a movimentação, como um marco que dará novo rumo à narrativa (Figura 133).

189

Figura 133 – Múltiplos planos do jogo da capoeira que priorizam os fortes elementos da luta e dos instrumentos.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

O toque de São Bento Grande de Bimba, ou da regional, permeia o filme, como a musicalidade da roda. O jogo é mostrado de forma extremamente realista, apesar de diversos cortes de plano e pontos de vista buscarem privilegiar “[...] um jogo rápido, bonito e dinâmico, cuja plasticidade dos movimentos forma a paisagem dos corpos fluentes em jogo, com rasteira e cabeçada entrando” (CASTRO JR., 2010, p. 151). Os movimentos das pernas, dos golpes rodados, e os instrumentos acabam sendo utilizados como ponto de corte, para permitir que a câmera assuma diferentes ângulos e pontos de vistas simulando o olhar de diferentes espectadores da roda. Nessas cenas, inclusive, prioriza-se muito uma câmera baixa, já que o jogo da capoeira tem muitos movimentos no chão, facilmente perceptíveis pela forma como são capturados. O desenrolar do jogo é feito em ato, não necessariamente performado exclusivamente para a câmera, ou com uma coreografia determinada, tanto que a sensação que se tem é a de se estar, de fato, presenciando um jogo real de capoeira.

A cena do jogo revela um estado meio mágico entre os jogadores; eles estão totalmente integrados ao ritmo da música. Com o desenrolar do jogo, Canjiquinha derruba Antônio Pitanga com um chute lateral (martelo) que 190

pegou de cheio na sua cabeça; no entanto, o lado festivo e lúdico prevalece até o momento. Antônio Pitanga, em relação à cena, nos falou que “você joga capoeira pra valer, não tem brincadeira, a verdadeira capoeira quando você vai jogar não tem armação [...] você tem os contragolpes, você tem a saída. Então quando no final, por exemplo, ele dá um martelo e pega em mim mesmo”. A saga do Mestre Canjiquinha está no domínio do repertório dramático do jogo, e isso não evita a aplicação de um golpe mais incisivo (CASTRO JR., 2010, p. 151).

Sobre esse relato, o plano da imagem que captura a queda do Mestre Coca, personagem de Antônio Pitanga, de fato pode ter sido ocasionado pelo desenrolar de um jogo muito bem estudado da parte do seu parceiro de roda, Canjiquinha, que agrega realismo à cena (Figura 134).

Figura 134 – Antônio Pitanga e Canjiquinha jogam capoeira.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Assim como o samba de roda e a capoeira, o frevo também ganha espaços no filme e revela como a dança tem suas origens nesse movimento de arte e de luta. Dessa forma, continua a festa na escadaria, com os movimentos dos corpos, da dança e da felicidade estampada no rosto daqueles que integram a festividade. Se por um lado o povo ao pé da Igreja está em festa, padre Olavo na torre da Igreja está impaciente e inquieto em seus pensamentos, andando de um lado para outro, mesmo após ter tomado sua decisão. Ele não consegue se concentrar em seus pensamentos por conta da festividade na escadaria, que o impede de pensar com clareza.

Quando a festa se organiza na escadaria, por aqueles que não podem entrar na igreja, com fortes elementos sincréticos, que para ele são pagãos, os sons do batuque e os cantos a Iansã chegam à torre da igreja. Padre Olavo tenta sufocá- los batendo fortemente no sino, o que não atrapalha o desenrolar da festa. Nesse momento vemos um padre atormentado, com um forte sentimento de perda, numa grande crise existencial. Acreditando no que prega, ele perdeu 191

aqueles fieis para o candomblé, ele não conseguiu impedir que aquelas pessoas se desgarrassem transformando-se em fáceis alvos para uma falsa religião. Suas crenças e sua dedicação ao cristianismo e principalmente ao catolicismo o impedem de analisar criticamente o caso, o impedem de visualizar inclusive como uma situação política, conforme lhe assinala o Monsenhor Otaviano, não vislumbrando além de uma questão religiosa (FRESSATO, 2011, p. 5).

Essas batidas violentas no sino que o padre executa representam o seu estresse, que cresce com a musicalidade e com o corte entre os planos dos instrumentos, sentimentos de um padre perturbado. São batidas que sequer atrapalham a festividade do dia (Figura 135).

Figura 135 – Jogo de planos entre o padre e os berimbaus da capoeira.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Num breve recorte, Robert Stam, em seu livro Crítica da imagem eurocêntrica, descreve que:

O pagador de promessas gira em torno de valores conflitantes do catolicismo e do candomblé, evocados através da utilização de certos símbolos que dão origem a uma batalha cultural entre, por exemplo, o berimbau e o sino da igreja, numa sinédoque que remete a uma luta religiosa e política muito maior (STAM, 2006, p. 437).

192

Nessa intensificação do conflito, da batalha sonora mostrada na Figura 135, utilizam-se planos repetidos, numa espécie de aproveitamento de imagens já utilizadas dos instrumentos na cena da roda de capoeira. A letra da música que prevalece nessa sequência tem forte metáfora com os acontecimentos daquele momento e de todo o contexto dos embates do filme: “[...] quebra Gereba, quebra, se não quebra tudo hoje, quebra, amanhã nada quebra” (CASTRO JR., 2010, p. 153). A música tem uma característica muito específica na roda de capoeira e alerta quando dois capoeiristas estão num jogo não muito amistoso. No caso da narrativa, o embate transcende a roda para um âmbito muito maior, conforme nos afirma Luís Vitor Castro Jr.

O casamento da cena com a música é fantástico – o padre se encontra na torre da igreja, perto dos sinos, angustiado com a festança do povo na escadaria. A música cantada pode-se associar à vontade do povo de querer quebrar com a intolerância do poder instituído; através dela, os personagens reivindicam que se abra a porta da igreja para que Zé do Burro cumpra sua promessa naquele momento, porque “amanhã nada quebra”, e isso, no universo da capoeira, se compreende no aqui e agora de um jogo mais viril no qual os jogadores mostram toda sua sagacidade, o instante ímpar de tomar decisões (CASTRO JR., 2010, p. 153).

Ao final das batidas do sino da Igreja, a cruz que está apoiada no poste cai no chão. Seria a derrocada anunciada da promessa de Zé do Burro? Ou seria a derrocada da “representação da fé” do próprio padre? O promesseiro a recolhe e a festividade continua. No entanto, os assédios a Zé não cessam, seja na figura de Dedé Cospe-Rima, que tenta profetizar sua entrada no dia seguinte, seja na figura de Galego, que vem oferecer a ambos um lanche como contrapartida ao promesseiro para permanecer onde está. Num determinado momento da narrativa – após um embate violento entre Rosa e Marli – no qual Zé puxa uma peixeira52 para desafiar aqueles que zombam dele, o promesseiro e a esposa cogitam ir embora de Salvador pela primeira vez na narrativa, já que Rosa alerta da possibilidade de o marido ser preso. O assédio sobre eles continua e Rosa se afasta cansada para apoiar-se na grade, como se estivesse presa àquela escadaria e a toda aquela situação. É quando Bonitão aparece claramente à sua procura, reconhecendo-a em meio às grades (Figura 136).

52 Faca de médio a grande porte utilizada para o cortar, tratar e eviscerar o peixe, daí o nome peixeira. 193

Figura 136 – Metáfora da grade como prisão para Rosa.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Ao olhar hipnotizada para Bonitão, segue atraída ao seu encalço, como numa libertação momentânea daquela situação. A metáfora das grades como prisão dos personagens é um recurso de imagem muito utilizado em Caiçara. O Delegado chega para falar com o padre, impedindo a entrada do Repórter, que deseja o furo de reportagem. Seu fotógrafo o advertira de que tudo isso iria desgraçar a vida do homem, que, debochado, responde: “Manchete é manchete”. Com um sentimento de compadecimento com a situação de Zé, o grupo composto pelos capoeiristas – Mestre Coca, Dedé e Minha Tia – desce as escadarias para alertar que a polícia está na porta da Igreja e que o melhor a se fazer é fugir. Rosa se junta ao grupo e pede para ela e Zé irem embora, no entanto, prevalece a determinação de Zé de ir até o fim, nem que seja para ficar em paz com sua própria consciência. Para os policiais, a promessa e a história do burro são pretextos e “conversa fiada”. Desejam levá-lo para a delegacia para ele dar as devidas explicações. É quando Mestre Coca entra na conversa e rapidamente o delegado lhe responde rispidamente. O Inspetor traz à tona a sua alegação de “jogar uma bomba” na tentativa de invadir a Igreja. Apesar das investidas do padre Olavo e de suas acusações, Zé não se deixa conduzir pela polícia, com o enfrentamento de que “só me levam daqui morto, juro por Santa Bárbara”, empunhando sua peixeira, para espanto e cautela de todos à sua volta. Uma roda se forma em torno dele e da cruz, semelhante a uma disputa de roda de capoeira. Prevendo o pior, rapidamente Mestre Coca se coloca em favor do promesseiro, defendendo-o: “aqui vocês não vão prender ninguém”. O clímax do filme nessa sequência também o encaminha para o epílogo, já que a cena é carregada de suspense, com uma oposição de forças agora manifestada uma a favor e outra contra Zé do Burro. Essa dualidade ganha proporções físicas, num embate sem prognóstico; uma luta inflamada pelo conflito crescente na altercação entre o simbolismo eclesiástico e o simbolismo popular, que extrapola o limite da razão. 194

Esgueirando-se por trás de Zé, de forma sorrateira e calma, o padre desfere um tapa que derruba a arma do promesseiro, o qual, ao tentar recuperá-la, é derrubado com um chute por um policial (Figura 137).

Figura 137 – Padre Olavo desarma Zé do Burro e o tumulto se inicia.37

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

O tumulto se instala quando os capoeiristas tomam partido de Zé e enfrentam a polícia e “[...] a pancadaria é geral; muita bênção, voo de morcego, martelo e outros golpes. A briga só acaba depois dos tiros recebidos por Zé” (CASTRO JR., 2010, p. 154). Num depoimento de Mestre Gigante, ele relata que o envolvimento dos figurantes com a cena foi tanta que a briga acabou acontecendo de verdade, com pessoas se machucando. Anselmo teve que intervir e explicar aos figurantes que a luta tinha que ser amigável (CASTRO JR., 2010, p. 155). Mesmo a par dessa intervenção, a disposição da ação na decupagem da luta é impressionante. Se os planos abertos incorporados ao filme foram aqueles que Mestre Gigante relata terem acontecido, isso é uma incógnita. No entanto, a verossimilhança de um embate, mesmo nos planos gerais que mostram as lutas de Mestre Coca e Canjiquinha, merece destaque pela atuação dos figurantes nessa cena (Figura 138).

195

Figura 138 – Embate entre policiais e capoeiristas.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

O importante é que a opção dos pontos de vista, mostrados na Figura 138, privilegiam a luta em dois âmbitos: o primeiro relacionado aos planos abertos posicionados em plongée, que permitem não só o vislumbre da magnitude do embate, mas também torna aqueles que lutam em figuras não identificáveis, concentrando o espectador numa massa de combate, cujo corte do olhar se desloca para diferentes partes do plano segundo o interesse do espectador, frente a alguma ação que lhe chame a atenção; e o segundo, os planos gerais da luta de Mestre Coca e Canjinha, que com a câmera baixa, permite ao espectador visualizar não somente a luta e o êxito no embate desse capoeiristas, mas a massa que briga num layer posterior ao priorizado pela câmera. Aos sons dos tiros, a luta cessa e novamente uma roda se forma com a cruz ao centro e Zé caído ao seu lado. Não existe um plano que identifique o atirador, muito menos que mostre o exato momento do tiro, já que o plano aberto mostra Zé caído no chão. Rostos apreensíveis e em silêncio, bem como semblantes amargurados são enquadrados observando o destino trágico de Zé do Burro. Todos aparecem retratados em pé de igualdade quanto à abordagem de enquadramento, objetiva, ponto de vista e iluminação (Figura 139).

196

Figura 139 – Rostos anônimos se unem aos personagens da trama.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Essa série de enquadramentos reflete o “retrato” do homem caído nos rostos que expressam um sentimento de pesar, num elo que os unem existencialmente frente à morte, tornando-os iguais ante à tragédia que acaba de assolar Zé do Burro. Padre Olavo ainda tenta, num gesto de arrependimento, encomendar a alma de Zé, para amargura de Rosa, que chora sobre o corpo do marido. Nesse momento, quando Minha Tia faz as suas rogativas aos céus, celebrando a bênção para a alma de Zé, a câmera rapidamente faz um movimento panorâmico à esquerda, enquadrando Mestre Coca, que olha para os companheiros com um propósito firme na cabeça, que se revelará na concretização da intenção de Zé (Figura 140).

197

Figura 140 – Movimento de câmera de Minha Tia para Mestre Coca.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Numa sintonia velada entre eles – os capoeiristas – os rostos subitamente ganham vida e poder, frente ao indicativo de seu mestre, que tomam a decisão de avançar em um levante calmo e calculado, com os passos ritmados pelo berimbau. Essa cena é prontamente captada pelo espectador, ao perceber que um embate muito mais sério acontecerá, quando entre os olhares surge o plano de conjunto dos policiais, visivelmente acuados e recuando temerosos (Figura 141).

Figura 141 – Olhares de cumplicidade entre os capoeiristas.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Ao posicionarem Zé deitado em sua cruz, numa variante de ângulo de objetiva em um mesmo ponto de vista semelhante ao demonstrado na Figura 138, a câmera enquadra agora parte da multidão, que faz a vez de um vignette do enquadramento, focalizando a cruz e Zé ao centro (Figura 142).

Figura 142 – Os capoeiristas “crucificam” Zé do Burro.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962). 198

A multidão agora, sobre as escadas, caminha lentamente, como em uma procissão que não é mais a de Santa Bárbara, mas, sim, a da “crucificação” do homem que tentou cumprir em vida a sua promessa. Pelas mãos dos capoeiristas, ele é conduzido em direção à Igreja, para adentrá-la após a sua morte (Figura 143). A cruz que ele carregou agora é a mesma que o conduz, pondo termo ao seu “calvário de libertação”.

Figura 143 – Composição que prioriza o equilíbrio das massas.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

A figura das instituições representadas pelo padre e pela Polícia agora são apresentadas minimizadas por meia dúzia de indivíduos, que se depara com um enorme grupo de pessoas. Uma representação de força, que munida do propósito do herói, conduz Zé escadaria acima. Uma massa que encurrala aqueles que à sua frente só têm uma direção para seguir, ou mais precisamente para fugir. A composição do plano da Figura 143 é reforçada por uma estética, que privilegia o grupo de pessoas que compõe essa “procissão”. A disposição desses corpos figurados nas linhas do quadro, cujas intercepções são muito bem conectadas, traz equilíbrio e força visual ao plano. Numa troca de eixo, indo para um plano neutro, a prioridade de visualização é da população, que intimida os policias e o padre e que não se acua mais diante do confronto. Num zoom de uma teleobjetiva que enquadra primeiramente um plano conjunto dos capoeiristas carregando a cruz, abre-se para o quadro que mostra todo o contexto da escadaria, com a “procissão” seguindo rumo à Igreja (Figura 144).

199

Figura 144 – Teleobjetiva em zoom out.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Necessário ressaltar que a teleobjetiva tem efeitos “[...] opostos àqueles das objetivas grande-angulares: elas comprimem o espaço, têm menos profundidade de campo e não enfatizam o movimento de aproximação ou distanciamento em relação à câmera” (BROWN, 2010, p. 56). Se em muitos casos é usada para propósitos de “percepção de compactação claustrofóbica”, em O pagador de promessas a utilização dela é muito específica, com o zoom usado como um artifício que aparece somente nesse momento da dramaturgia. A imagem comprimida, que prioriza Zé crucificado, modifica sua característica de angulação fechada para angulação aberta, com o intuito de “revelar” o grupo determinado a adentrar a Igreja, ocupando um espaço central do quadro, que prioriza a porta, o Zé e a cruz. Observa-se que esse foi o único movimento de zoom na cinematografia de Chick Fowle utilizado até então. Historicamente, é relevante ressaltar que o uso desse artifício tecnológico surge ostensivamente nos anos 1960, com o advento dos programas de noticiários de televisão. Os “Jovens Cinemas”, como descreve Bordwell, adotaram a engenhoca rapidamente53 e “[...] em pouco tempo as lentes de distância focal longa e zoom tornaram-se básicas não apenas nas filmagens externas, mas também no estúdio” (BORDWELL, 2013, p. 322). Na continuação do zoom, surge para o espectador o plano mais famoso do filme, quiçá um dos mais conhecidos da cinematografia brasileira. O ponto de vista aponta os céus e o corpo em silhueta dos capoeiristas carregando Zé na cruz, adentrando a Igreja, num movimento de tilt, entre 90º e 180º (alguns cravam como 180º), para finalizar com o

53 Esse recurso é muito característico nos filmes de artes marciais, sendo que “Nq See-Yuen [...] afirma ter inovado o uso do zoom-out rítmico para intensificar as cenas de luta: ‘Quando chega a hora dos punhos, os planos com lente 50mm carecem de impacto’” (BORDWELL, 2013, p. 322). 200

enquadramento da cruz ao centro do quadro e a Igreja visualizada de cabeça para baixo (Figura 145).

Figura 145 – Movimento de tilt de Zé crucificado entrando na igreja.

Fonte: Frames do filme O Pagador de Promessas (1962).

Luiz Carlos Merten sempre foi um grande admirador desse trabalho de Anselmo Duarte e além do livro Anselmo Duarte, o homem da Palma de Ouro, o jornalista e crítico de cinema escreve o seguinte, a respeito desse plano em particular:

Toda a arquitetura dramática converge para a cena em que Zé, morto na cruz, adentra a igreja. Anselmo conta que quis fazer um plano artístico, para vencer festival. Colocou a câmera no chão, pedindo a seu fotógrafo, Chick Fowle, que percorresse o trajeto da cruz, 180 graus, sem corte. (No fundo, estava repetindo o russo Grigotri Tchoukrai na cena do tanque, na abertura de A Balada do Soldado, mas talvez nem soubesse.) A cena, 100% de cinema, foi um dos momentos em que o público não conteve os aplausos, durante a projeção oficial, em Cannes. Zé do Burro entra na igreja carregado pelos negros, oficiantes do candomblé, que o prenderam àquela cruz. Entra para subverter a ordem, para virar a igreja de cabeça para baixo - foi a interpretação de um entusiasmado crítico francês. Entendeu tudo. No confronto entre a fé simples do povo e a institucionalizada da Igreja, vence a primeira. Venceu o filme (MERTEN, 2020)54.

Subverter a ordem e virar a Igreja de “cabeça para baixo” de fato é uma metáfora que condiz com o grande desfecho do filme. A comparação com a cena do filme russo (Figura 146) tem a essência do mesmo movimento, mas com uma direção invertida, já que a câmera focaliza o chão e não os céus, com um peso imagético não tão forte quanto o desfecho de O pagador de promessas.

54 A esse respeito, Cf.: https://www.terra.com.br/diversao/cinema/classico-do-dia-o-pagador-de-promessas- reflete-a-intolerancia-religiosa,526ee798f15847e9e9a8289670414354tf0iga7b.html. Acesso em: 30 ago. 2020. 201

Figura 146 – Plano de subversão do espaço.

Fonte: Frames do filme A Balada do Soldado (1959).

A subversão do espaço também pode significar a mudança na condição do personagem, que no filme de Anselmo, frente à temática, estende-se para campos figurativos muito mais amplos, com a vitória da “religião” do povo, com o cumprimento da promessa aparentemente simples, de um homem determinado na sua fé, mas de uma grande força frente aos impositivos aqui encabeçados pela Igreja. Uma alusão à Igreja e particularmente em relação à cruz, em seu topo e de cabeça para baixo, pode ser referendada também na figuração da cruz invertida, o que remete a duas possibilidades de interpretação: a primeira, a da cruz invertida como um dos símbolos satanistas medievais, anticristão e representante das “forças do mal”, ou seja, uma alusão crítica à instituição Igreja em si. No caso de Zé do Burro, ele torna-se no filme um ícone da insurgência contra essa intolerância religiosa representada na figura do catolicismo da época; a segunda possibilidade de interpretação da cruz invertida está na crucificação de São Pedro, representado inclusive em uma pintura de Caravaggio, em 1601, que ao ser crucificado de cabeça para baixo a seu próprio pedido, fá-lo alegando não ser digno de morrer que nem seu mestre Jesus. É uma atitude tomada como símbolo de humildade e de respeito. Na sequência dessa cena, a câmera pela primeira vez enquadra padre Olavo acuado, sob o ponto de vista plongée, colocando-o numa condição em que nada mais pode fazer, a não ser observar o homem ser carregado para dentro da Igreja à sua revelia, com as portas sendo arrombadas por aqueles que carregam Zé na cruz, seguido por um grande cortejo ao som de berimbaus (Figura 147).

202

Figura 147 – Zé na Cruz conduzido ao interior da igreja.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Se a Igreja acaba, por fim, “tragando” Zé, seja para consumi-lo ou consagrá-lo, Rosa, que esteve sempre ao lado do marido, acaba só e sem ninguém, relegada a seu próprio destino (Figura 148).

Figura 148 – Plano aberto de Rosa entrando por último na igreja.

Fonte: Frame do filme O Pagador de Promessas (1962).

Se o destino dos personagens posteriormente torna-se incerto, o desfecho por sua vez é claro ao distanciar o espectador no encerramento do filme, não permitindo que ele adentre à Igreja acompanhando o cortejo. Este apenas acompanha a subida solitária de Rosa pela escadaria em direção à entrada da Igreja. Esse momento faz o espectador refletir a condição desse povo, dessa luta velada contra a intolerância e os poderes instituídos, independentes da sua natureza, e principalmente contra as manifestações religiosas originárias do sincretismo religioso, da manifestação da fé simples, aspectos esses detalhados de formas sutis, que envolvem os personagens e os contextos de uma época que, muitas décadas após, ainda a dá a impressão de ser atual.

203

3.3 Síntese da fotografia de O pagador de promessas

O filme O pagador de promessas acaba sendo a culminância de todo um trajeto cinematográfico, em que Chick potencializa não somente suas habilidades técnicas, como suas habilidades criativas nessa obra. Luiz Carlos Merten, em seu texto de 29 de junho de 2020, do Jornal Estadão, na seção “Clássico do Dia: O pagador de promessas”, reflete a intolerância religiosa” (MERTEN, 2020)55 e ressalta a importância do papel de Chick nessa produção. Afirma ainda que Anselmo Duarte nunca agradeceu a Chick Fowle o suficiente pelos enriquecimentos dos matizes de preto e branco do filme, considerado essencial pelo diretor e, principalmente, por captar o conceito que Anselmo queria para o filme, que seria a fusão entre os rostos anônimos e os dos atores principais. De fato, duas soluções fundamentais que foram abordadas no decorrer da análise do filme: a primeira referente à riqueza de texturas enaltecidas pela fotografia e pela gradação na escala de cinza, o que reflete os detalhes nas sombras e também nas altas luzes do negativo, perceptíveis não somente nos rostos dos personagens, mas em suas vestimentas, em seus adereços e em suas edificações. A textura está presente tanto nas cenas de dia quanto nas da noite, com um trabalho muito bem-feito com a luz existente, em uma abordagem mais naturalista. Um trabalho enriquecido se comparado também a outras obras que Chick realizou, principalmente na Vera Cruz, numa evolução da melhoria do trabalho referente à revelação dos negativos pela RexFilms, capitaneada pelo próprio Fowle. Em suma, como apresentado, ele se utiliza de um desenho de luz justificado pelas “iluminações práticas” da cidade e da escadaria, possibilitando um trabalho mais característico de iluminação de quatro pontos, com ataque, contraluz, compensação e luz de fundo, sem deixar de aplicar a criatividade em suas abordagens. Nas externas, sobrepõe-se o uso da luz natural, de cunho extremamente realista e que reflete bem a luz tropical do sol, o qual incide num ângulo bastante zenital. Chick acaba compensando, por vezes, essa intensa luz em planos mais fechados, com a utilização de rebatedores suaves. No entanto, o trabalho com os intervalos tonais assume sua potencialidade numa nuance bastante gradativa frente ao grande contraste de luz e sombra proporcionado pelo

55A esse respeito, cf.: https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,classico-do-dia-o-pagador-de-promessas- reflete-a-intolerancia-religiosa,70003347816. Acesso em: 14 set. 2020. 204

espaço cênico da escadaria, numa imagem que nunca perde as características dos detalhes proporcionados pela grande latitude de imagem que Chick entrega. A segunda solução exemplificada por Merten é a abordagem que Chick faz com sua câmera, que enaltece as figuras humanas, protagonistas ou não, atores ou não, cujas proporções de quadro e de iluminação colocam os rostos em patamares de igualdade frente à imagem, independentemente do efetivo envolvimento deles na trama. Isso se consideradas somente as observações de Merten em relação à iluminação. Porém, foi visto que a criatividade de Chick vai muito mais além ao demonstrar clara preocupação em criar texturas, tridimensionalidade, aliando-as à composição e à profundidade, que enfatizam não só o posicionamento de câmera em relação às camadas, mas também nas linhas e nas ações dos personagens, que nunca cessam no quadro; da utilização de artifício da encenação em profundidade; dos movimentos de câmera altamente elaborados principalmente em situações de encenação em walk-and-talk, assim como soluções de uma câmera que passeia e é capaz de transferir o espectador de uma cena para outra com “cortes imaginários”. Planos imantados de um teor de profissionalismo e carregados de significados, que vão muito além do que uma mera pretensão de entregar um material de qualidade técnica.

205

SINGULARIDADES CONCLUSIVAS

Se o imaginário que fica impregnado nas leituras e críticas a respeito dos profissionais que vieram de fora do país em meados de 1950 era somente o de elevar o nível técnico do cinema nacional, com um olhar estrangeiro impossibilitado de captar a verdadeira essência do Brasil, pertinente se faz, nesse momento, reverem-se alguns desses apontamentos a respeito desses fotógrafos, da mesma forma em que o pesquisador se debruça com um novo olhar nas obras da Vera Cruz em detrimento ao emergente Cinema Novo da década de 1960, fazendo surgir “novos olhares”. É importante lembrar que fotógrafos consagrados por alguns críticos de cinema e historiadores, que deram grandes contribuições para o cinema nacional, são de fato estrangeiros. Entre eles, podemos citar o alemão Edgar Brasil, fotógrafo de obras importantes para o cinema brasileiro, como Limite (1931) e Ganga bruta (1933), e o argentino Ricardo Aronovich, com Os fuzis (1964), Vereda da salvação (1965) e São Paulo, cidade anônima (1965). Atualmente, muitos fotógrafos fizeram o caminho inverso, saindo do Brasil e conquistando os mercados internacionais. Um dos pioneiros foi Affonso Beato, conhecido pelo célebre trabalho em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha. Ele conquistou o destaque mundial em filmes como Tudo sobre minha mãe (1999), de Pedro Almodóvar, e A rainha (2006), de Stephen Fears. Importante ressaltar que a presença de fotógrafos experientes, em muitos casos, contribui de forma efetiva no desenvolvimento do trabalho de direção pela proximidade dos conceitos basilares com o qual trabalham. É importante recapitular que esse foi um dos motivos de Chick vir ao Brasil, quando chamado para compor a Vera Cruz. Não é à toa que Anselmo Duarte, que assumiu ser uma figura sempre interessada nos ofícios que envolvem o cinema, atuando e escrevendo roteiros desde a Companhia Atlântida, viu em Chick um parceiro para os seus filmes Absolutamente certo e O pagador de promessas. Henry Edward Fowle, pelos filmes fotografados na GPO Film Unit, na Crown Film Unit, na Wessex e pelos filmes realizados no Brasil, é reconhecido postumamente pela British Society of Cinematographers pela excelência do seu trabalho56. O reconhecimento dessa sociedade de fotógrafos britânicos à sua carreira é uma clara demonstração da sua importância não só no âmbito técnico, mas também artístico.

56 A esse respeito, cf.: https://bscine.com/bsc-members/?id=306. Acesso em: 15 set. 2020. 206

Sua formação, sua gênese, está fora dos estúdios, o que resulta numa fotografia, em suma, com não atores, em ambientes de locações, produzindo materiais de caráter neorrealista, de baixo orçamento e com o propósito poético, experimental e educativo. Assim, tem início o trabalho do fotógrafo Chick Fowle, cujos aspectos não devem ser desconsiderados pelo leitor, pelo pesquisador, pela crítica e pelos cineastas que pretendem, enfim, conhecer e analisar a sua contribuição à cinematografia mundial e, principalmente, à brasileira. Dessas experiências nascem suas singularidades como fotógrafo, que podem ser elencadas ao estilo do seu trabalho, sendo que algumas abordagens o acompanham por toda a sua carreira. Outras vão surgindo e se modificando à medida que novos desafios aparecem, dando origem a novas soluções imagéticas. Isso sempre resulta numa fotografia cinematográfica de grande destaque e importância em suas obras. A partir do esquema proposto por Bordwell (2013) frente a mise-en-scène, Chick Fowle lida com inúmeras possibilidades de encenações e abordagens de direção que resultaram em diferentes soluções na sua fotografia, seja em filmes que o colocavam em contato com a decupagem de inúmeros planos, pontos de vista, posições de encenação, ou em filmes com situações em que os personagens atuavam de maneira lateralizada em relação à câmera. É o estilo de fotografia adaptado ao estilo de atuação, mas sem perder suas particularidades como fotógrafo. Isso é possível perceber nas exposições das imagens e nas recorrências frente a determinadas abordagens fotográficas, que constituem um modus operandi de Chick na realização da sua fotografia. Nessa perspectiva, é possível, inclusive, listar algumas singularidades suas a partir de uma recapitulação de tudo que foi observado a respeito das suas abordagens, embasadas nas ferramentas conceituais da cinematografia, ou seja, da iluminação, do quadro, do movimento, da ambientação e do ponto de vista, que acabam culminando, na sua essência, em O pagador de promessas.

A versatilidade da estética da iluminação fotográfica

Grande parte de suas imagens externas eram filmadas com a luz disponível. Percebe-se a variação de suas características em momentos de incidência direta do sol e em momentos nublados, tornando-se a luz mais difusa e homogênea. Essa relevância de uma luz mais uniforme, e até mesmo desenhada, passa a ser mais característica com North Sea, quando os não atores passam a ter diálogos, numa mescla 207

dramatúrgica que inclusive passa a adotar um esquema de campo e contracampo em sua estrutura de planos. Em situações internas mais controladas, o desenho de luz passa a ser mais presente, com o advento de uma luz de ataque e de fundo mais evidente, além de um desenho mais detalhado da iluminação, que começa a ter um impacto maior, de fato, quando a sua experiência com a Wessex lhe permite ter mais recursos em mãos. Esses recursos podem ser traduzidos na percepção da luz de quatro pontos, cuidadosamente pensada pela movimentação dos personagens, num esquema de atuação com diálogos que acontecem em posicionamentos bem marcados. Isso permite ao fotógrafo um controle mais cuidadoso com a iluminação a serviço da narrativa. Essa abordagem é visivelmente perceptível na Vera Cruz, já em seu primeiro filme Caiçara, no qual Chick potencializa o uso da luz desenhada em situações internas, como na casa de Felicidade, cujo aspecto da iluminação do espaço traduz de forma coerente a simplicidade da casa. Se a visão burguesa da companhia frente aos filmes que produzia era algo questionável, o tratamento da iluminação dada por Chick condizia e muito com os aspectos da vida dos personagens. Elegantemente, Chick consegue transmitir, por meio da iluminação, a sensação de uma representação dos espaços que beira o realismo57, já que a própria Vera Cruz se propôs a filmar grande parte de seus filmes, quase todos em locações, colocando Chick em contato direto com a luz brasileira logo de início. Foi um desafio para as suas habilidades nesse trabalho inicial e num ambiente de características extremamente diferentes se comparado ao Reino Unido. A forte intensidade da luz direta, o desafio da luz tropical e a eventual problemática de não ter geradores disponíveis para a utilização de luzes artificiais, a exemplo de O cangaceiro, faz Chick usar rebatedores para trabalhar os altos contrastes gerados entre áreas de luz e sombra. Tais desafios o colocam como um estrangeiro em plena faculdade de lidar com uma luz brasileira, como é perceptível em seus filmes, cujas situações lhe impõem, desde o princípio, maneiras de buscar soluções que lhe dessem a condição de entregar um trabalho almejado pela Companhia. No decorrer da sua trajetória cinematográfica no Brasil, frente ao tratamento de luz em locações externas, Chick primeiramente assume uma luz do sol rebatida de características

57 Isso é feito com o uso cauteloso da palavra, se tomado como referência o que se entendia por realismo na época, já que a visão em relação ao termo tende a ter constantes modificações (BORDWELL; THOMPSOM, 2013). 208

mais pontuais, passando para uma utilização de uma compensação mais suave. Em Ana, e consequentemente em O pagador de promessas, arrisca inclusive imagens sem qualquer utilização desse artifício, respeitando e utilizando a luz como ela se apresenta naquele determinado momento do plano, sem causar qualquer rompimento com a unidade fotográfica do filme. É perceptível o resultado final dos trabalhos de Chick, que busca o perfeccionismo, independentemente da produção e do momento histórico dos filmes que fotografou. De certa forma, isso demonstra que ele partilha, em seu trabalho, mais de elementos similares do que díspares, quanto à iluminação cinematográfica apregoada na década de 1960, arriscando-se dizer que Henry Edward Fowle e seus colegas fotógrafos da GPO e da Crown Film Unit antecipam em pelo menos dez anos uma abordagem estética que, ressignificada, ganha proporções mundiais com os novos movimentos cinematográficos desse período. Essa adaptação da luz a determinadas condições, sejam estéticas, sejam relacionadas à produção ou a questões orçamentárias, demonstram que Chick nunca chega a empregar um estilo imutável. Ele está sempre se moldando às condições e às realidades da narrativa fílmica, seja num gênero de western ou em um film noir, e até mesmo de cunho cinemanovistas. Ele permeia-se em um esquema de iluminação que trabalha com posicionamentos de atores bem definidos sob uma luz desenhada, como em Caiçara, e também para uma mise- en-scène com inúmeros personagens, postados em planos abertos, sob uma luz que abrange a todos, permitindo uma atuação que não se limita a espaços determinados, como em O pagador de promessas. No entanto, apesar de sua maleabilidade, algumas abordagens são reticentes, perceptíveis em seus diferentes trabalhos, quase como que assinaturas próprias: as vinhetas no desenho dos fundos do cenário; a gradação de texturas dos ambientes; a contraluz individualizada em internas de personagens importantes da trama; a luz de incidência forte e contrastada em suas noturnas, num caráter de abordagem em lowkey; o tratamento mais suave com a luz nas personagens femininas; assim como a constante preocupação com a incidência da luz nos personagens, sempre valorizando o aspecto da volumetria tão cara em seus filmes, dotadas de muitas camadas no plano com nuances de claro e escuro, que tendem para uma abordagem um pouco mais contrastada que as características clássicas de iluminação de high key, mas sem deixar de criar uma rica noção de profundidade58.

58 O low-key é uma abordagem frente à iluminação que tende a colocar grande parte do cenário na escuridão, iluminando o assunto e utilizando apenas uma fonte de luz, podendo ou não ter alguma espécie de luz de 209

Todas essas potencialidades demonstradas no trabalho de Chick, tratadas por vezes numa adjetivação que estereotipa o seu fazer fotográfico, como “luz expressionista” e “neorrealismo italiano”, podem ser encontradas em O pagador de promessas, obra que exprime toda sua trajetória histórica e fotográfica. Se as belas paisagens de Caiçara e O cangaceiro eram trunfos imagéticos na Companhia Vera Cruz, por sua vez, a multidão na escadaria, na sua riqueza de texturas, nas diferentes tonalidades de peles, materiais e diferentes níveis de intervalos tonais, com uma luz de característica naturalista, certamente são um trunfo de uma abordagem fotográfica que nunca deixou de exprimir a representação do povo, do popular, e das expressões culturais que não escapam às nuances e às representações imagéticas de Chick Fowle. O prêmio máximo em Cannes foi uma vitória muito creditada ao trabalho de Anselmo Duarte como diretor. Porém, ele também não deixa de ser uma consagração de Chick Fowle e de um histórico dedicado à fotografia, com os seus já 47 anos de idade e quase 30 anos de experiência, começando ainda jovem em um movimento que revolucionou a cinematografia do seu país e, consequentemente, a mundial. Com as elucidações apresentadas a respeito das suas abordagens fotográficas frente às diferentes narrativas nas quais atuou, pode-se dizer que, com um olhar diferente para uma transição estilística e histórica que se apresentava com o surgimento do Cinema Novo na década de 1960, Chick passa o bastão para os jovens fotógrafos e cineastas. Jovens profissionais com suas ambições e aspirações cinematográficas, mas sem deixar de partilhar abordagens congruentes às de Chick Fowle, que na maioria das vezes tendem a deixar esse fotógrafo inglês para trás, numa espécie de ruptura histórica entre o novo e o velho, o que de fato é injusto para com ele e com seu trabalho, que desde muito tempo, inclusive, já utilizava a sua “câmera na mão” (Figura 149).

compensação. Já a iluminação em high key faz uso comum da iluminação de três ou quatro pontos, tendo características de baixo contraste e menos sombra (BORDWELL; THOMPSON, 2013). 210

Figura 149 – Chick Fowle operando uma câmera Newman Sinclair59.

Fonte: Frame do filme Worker's Week-End (1943).

Se o tom do texto soou como conclusivo, de encerramento de raciocínio, é porque o que já foi exposto, por si só, dá conta das contribuições de Chick à cinematografia brasileira, seja num elogio à sua qualidade técnica e fotográfica, observada nas telas do cinema pelos críticos e espectadores com os filmes da Vera Cruz, que nas evidências mostradas, tinha uma preocupação fotográfica que ia muito mais além do que comumente se expõe como contribuições desse fotógrafo no campo cinematográfico, seja também numa caminhada lado a lado com o surgimento de novos cineastas nos anos 1960, quiçá inspiradora para o “bem” e para o “mal”, na busca desses jovens pela sua identidade no cinema. No entanto, algumas singularidades não podem ser deixadas de lado, como mostradas a seguir.

O enaltecimento dos rostos anônimos e comuns

Os planos da multidão na escadaria de O pagador de promessas e a forma como os rostos daquela gente salta e é valorizada nas rodadas de close-ups dos personagens centrais e

59 Modelo de câmera de fácil manuseio, relativamente leve e robusta produzido pela empresa Newman & Sinclair. Seu design foi desenvolvido por Arthur Samuel Newman, com um corpo revestido de duralumínio, um metal leve e resistente à alta temperatura. O primeiro modelo com objetiva de 35 mm era acionado pelo usuário por um mecanismo de alavanca removível, sendo que os modelos posteriores eram alimentados por bateria. Esse modelo de câmera permitia a captura em taxas de quadros entre 10 e 24 frames por segundo. 211

coadjuvantes da trama demonstram que, mesmo naquele que seria o último filme de ficção de Chick, esses rostos nunca escaparam à sua câmera. Certamente, o Movimento do Documentário Inglês fez escola no desenvolvimento das habilidades de Chick, na sua aproximação de objetos e pessoas como cameraman. Os não atores filmados denotam inclusive certo despojamento frente à câmera, como se estivessem à vontade, a exemplo das brincadeiras das crianças em Christmas under fire. É como se já em Caiçara, em contato com uma nova cultura, a brasileira, sua câmera buscasse retratar novos rostos, na persona de um fotógrafo que nunca deixou o documentarismo de lado. Esses rostos, essas figuras caiçaras, Dona Felicidade, Minha Tia, Mestre Coca e todos que eventualmente surgem em sua câmera, em planos eternizados em close-ups, ganham tanta notoriedade que marcam sua presença nos filmes tanto quanto a dos próprios protagonistas, arriscando dizer que seus traços, por vezes, ficam até mais retidos na lembrança. Sem esquecer também que todos esses rostos em O pagador de promessas, reflexos da cultura e do povo baiano na sua expressão, no manifesto da cultura imersa no sincretismo religioso, são exaltados num espaço hermético com uma câmera que passeia lindamente com os seus movimentos ascendentes, de afastamento e aproximação, de diferentes pontos de vista (extremamente altos e também muito baixos), que passam quase imperceptíveis ao espectador, dando à narrativa uma fluidez proporcionada pela habilidade de Chick Fowle.

O olhar atento ao jeito de se fazer as coisas

Se os rostos não escapam à sua câmera, muito menos os fazeres manuais que envolvem desde o laçar do barco no cais, o ofício do carpinteiro naval, o tratador de cavalos e, principalmente, os detalhes que envolvem a musicalidade dos instrumentos de raízes africanas e da demonstração da cultura brasileira na capoeira, no samba de roda e no frevo, em O pagador de promessas. Inclusive, esse último filme se detém num ponto de vista que se aproxima desses elementos de forma curiosa e investigativa, que exaltam até mesmo um olhar educativo na planificação desses fazeres que foram muito caros ao Movimento Documentarista Inglês, numa busca por um olhar que pretende captar a essência desses jeitos, de forma digna, a fazer jus às suas representações. Desde os primórdios, esses aspectos nunca deixaram de ser de extrema prioridade em sua fotografia documental.

212

A preocupação na formação de profissionais

Sobre esse aspecto, considera-se não como uma singularidade, mas como uma contribuição amplamente exposta, em relação à formação de profissionais como legado técnico que começa na Vera Cruz e se estende para outras companhias e posteriormente para o mercado publicitário paulista. Isso ocorre devido à decadência dos grandes estúdios, que acabaram deixando inúmeros profissionais desempregados. Nesse aspecto do legado técnico, não somente Chick foi precursor, mas também Osvald Hafenritcher e Michael Stoll, que, com outros tantos profissionais, foram responsáveis por organizar uma estrutura de trabalho até então pouco clara na hierarquia da produção cinematográfica do Brasil. A formação desses profissionais acaba fazendo escola em diversos campos da cinematografia paulista, com o mérito de Chick na formação de figuras importantes na fotografia paulista, como Geraldo Gabriel, Marcelo Primavera e Walter de Carvalho.

Por fim, uma conexão entre o Documentarismo Britânico e o Cinema Paulista

Walter, o paulista, por sinal começou como office boy na LynxFilm, criada por César Mêmolo, que mais tarde tem como associados Galileu Garcia e Chick Fowle, ambos oriundos e parceiros na Vera Cruz. Em meados dos anos 1960, contemporânea às produções de Ana e O pagador de promessas, a Lynx, com a Jota Filmes, de John Waterhousee Jacques Deheinzelin, impulsiona o mercado publicitário até então pouco explorado como potencialidade econômica no estado de São Paulo. A dedicação da companhia fica a encargo da produção de propagandas e documentários empresariais, mas também trabalha diretamente com a produção de longas- metragens. Nessa empreitada, Chick se depara com um novo desafio que envolve o filme de animação nas produções de comerciais desses produtos, a exemplo de filmes como Cobertores Parahyba, Pernod 45, Conhaque Napoleão e o icônico comercial da Tergal, baseado no universo western do cangaço, com a composição musical “Mulher rendeira”, de Zé do Norte, icônica trilha sonora de O cangaceiro. Em uma tirada cômica, um grupo de cangaceiros troca tiros e é alvejado, aparecendo todos “arrebentados”, menos um, que ao som do corte do diretor do “filme” 213

questiona o cangaceiro do porquê de ele estar sem nenhum amassado e todo elegante. O motivo? Sua roupa que “não amassa” como as outras, pois é “feita de Tergal”, diferencial competitivo em relação às roupas tradicionais. Uma animação com elementos que trazem para o âmbito televisivo não só a referência clara aos planos do filme, como também a própria figura de Lima Barreto como representação de uma direção “extravagante” (Figura 151).

Figura 150 – Imagens de animação do comercial da Tergal.

Fonte: Frames do filme publicitário Tergal.

Seria esse teor cômico uma reflexão descontraída sobre o próprio trajeto da experiência cinematográfica de Chick, Galileu Garcia e Cesar Mêmolo na Vera Cruz? Se no campo da reflexão essa resposta fica em aberto, outra elucidação a respeito do título dessa última parte se faz evidente: a conexão de um movimento anterior à Segunda Guerra Mundial, que faz escola cinematográfica no Brasil. E não só isso. Um trajeto histórico que auxilia na formação de profissionais já citados, mas também de tantos outros, como Ugo Giorgetti, Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Palmari, Francisco Dreux, Paulo Dantas, Jorge Monclair, Paulo Parente, Célia Botelho, Wilson Botelho, Peter Gasper, Edney Silvestre, Ramiro Salles, Hector Sápia, Miguel Parente, e daí por diante. Esses são profissionais que não somente atuaram no campo da publicidade, mas que num passado não tão distante implementaram uma produção organizada, reflexo do que hoje é o cinema paulista e que caminha de mãos dadas com a publicidade, por conta dos 214

profissionais que permeiam os dois ambientes, e também, por si só, geram novos frutos, como o próprio filho de Walter de Carvalho, Rodrigo Carvalho, que atua como diretor de fotografia, assim como fora o pai, e que atualmente assina filmes como O doutrinador, de 2018, de Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça, e Jesus Kid (2020), de Aly Muritiba, produzido em Curitiba no ano de 2019 e a ser lançado em breve nos cinemas. Um fio condutor que reitera a importância da figura de “Seu Chick”, ou o “Chico” Fowle, o homem que trocou o pub inglês pelo barzinho da esquina. No documentário intitulado Chick Fowle, faixa preta de cinema, de 1981, o diretor Roberto Santos presta uma homenagem, “uma carta aberta de amizade e respeito” a esse diretor de fotografia que deixou amigos e um legado traduzido numa belíssima locução do filme apresentado a seguir.

[...] nós éramos quatro garotos quando vimos O Cangaceiro, e nem passou pela nossa cabeça se cangaceiro andava a cavalo ou a pé. Ninguém pensou nada disso. Éramos ingênuos como o público que assistiu ao filme. A gente só adivinhou a presença de dois grandes cineastas – o Lima Barreto e você.

Por fim, uma homenagem a esse importante fotógrafo cinematográfico, nessa singela imagem (Figura 151), mas de profundo significado, daquele que dedicou mais tempo de sua vida produzindo e criando em terras brasileiras do que propriamente em sua terra natal.

Figura 151 – Henry E. Fowle, sentado em sua mesa, lendo jornal.

Fonte: Frames do filme documentário Chick Fowle, faixa preta do cinema (1981).

215

Nessa imagem de Henry Edward Fowle, Chick Fowle, Seu Chick, Chico Fowle, num largo sorriso de satisfação, como se “revisitasse no jornal” toda a sua trajetória de produção e ao mesmo tempo a gratidão às terras brasileiras, que lhe oportunizaram poder expressar a sua criatividade, o seu conhecimento e a sua experiência no cinema brasileiro, marcando para sempre a sua trajetória. A Ele o meu sincero agradecimento pela possibilidade de adentrar, ainda que timidamente, no “seu mundo” e na sua “percepção apurada”, com o olhar de um aprendiz nesse campo de conhecimento inesgotável que é a fotografia no cinema.

216

REFERÊNCIAS

AITKEN, Ian. Distraction and redemption: Kracauer, surrealism and phenomenology. London: Screen, 1998.

______. Night Mail (1936). BFI: Screenonline, 2003. Disponível em: http://www.screenonline.org.uk/film/id/530415/index.html. Acesso em: 01.ago.2020.

______. North Sea (1938). BFI: Screenonline, 2003. Disponível em: http://www.screenonline.org.uk/film/id/798742/index.html. Acesso em: 02.ago.2020.

______. Alberto Cavalcanti: Realism, Surrealism and National Cinemas. Trowbridge: Flicks Books, 2000.

ADES, Eduardo; KAUFMAN, Mariana. Luz em movimento: a fotografia do cinema brasileiro. São Paulo: Tempo produções, 2007.

ALTON, John. Painting with Lighting. 2ª ed. University of California Press: California: 1997.

ANTHONY, Scott. BFI Film Classics, Night Mail. London: Bloomsbury Publishing/ BFI Film Institute, 2007.

ARONOVICH, Ricardo. Expor uma história: a fotografia do cinema. Rio de Janeiro: Gryphus; São Paulo: ABC, 2004.

AUGUSTO, Sérgio. Este Mundo É um Pandeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

AUMONT, Jacques. A estética do filme. 9ª ed. Tradução Marina Apenzeller. São Paulo: Papirus, 2012.

AVELLAR, José Carlos. Memória fotográfica. In: ADES, Eduardo; KAUFMAN, Mariana. Luz em movimento: a fotografia do cinema brasileiro. São Paulo: Tempo produções, 2007.

BARNOUW, Erick. Documentary - the history of non-fiction film. London: Oxford University Press, 1993.

BARRETO, Lima. Depoimentos. In: GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Burguesia e Cinema: O Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

BARRO, Máximo apud DEBOIS, Laurent. A odisseia do cinema brasileiro: da Atlântida a Cidade de Deus. Tradução de Júlia da Rosa Simões. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

BAZIN, Andre. O Cinema Ensaios. Editora Brasiliense, 1991.

BEATO, Affonso. Sobre a autoria das imagens cinematográficas. Associação Brasileira de Cinematografia, 2000. Disponível em: . Acesso em: 30.ago.2020.

BEATO, Affonso. Affonso Beato crava: "o diretor de fotografia deve servir a um roteiro e ao olhar do diretor". Fundação Joaquim Nabuco, Blog da Fundação: Notícias, 2014. Disponível 217

em:https://www.fundaj.gov.br/index.php/ultimas-noticias/131-blog-da-fundacao/noticias/646- afonso-beatto-ministrou-masterclass-no-cinema-da-fundacao. Acesso em: 03.ago.2020.

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Coleção Tópicos. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BERNARDET, Jean-Claude. O Pagador de Compromissos. O Estado de São Paulo, 8/9/62. In Trajetória Crítica. São Paulo: Livraria Editora Polis Ltda., 1978.

BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos In: RAMOS, Fernão Pessoa. Teoria contemporânea do cinema, documentário e narrativa ficcional. v.2. São Paulo: Senac, 2005.

BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Tradução: Maria Luiza Machdo Jatobá. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008.

BORDWELL, David. Sobre a História do Estilo Cinematográfico. Tradução: Luz Carlos Borges. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

______.; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema, uma introdução. Tradução: Roberta Gregoli. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

BROOKE, Michael. Christmas Under Fire (1941). BFI: Screenonline, 2003. Disponível em: http://www.screenonline.org.uk/film/id/1266565/index.html. Acesso em: 01.ago.2020.

BROWN, Blain. Cinematografia, Teoria e Prática: produção de imagem para cineastas e diretores. 2ª ed. Tradução de Edson Furmankiewicz. Burlington: Elsevier, 2012.

______. Motion Picture and Video Lighting. 2ª ed. Rio de Janeiro: Focal Press, 2013.

CALIL, Carlos Augusto. A Vera Cruz e o mito do cinema industrial. In: MARTINELLI, Sérgio (org.) Vera Cruz: imagens e história do cinema brasileiro. São Paulo: Books, 2005.

CÂNDIDO, Antônio. Teresina Etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CARVALHO, Maria do Socorro S. A nova onda Baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: EDUFBA, 2002. Disponível em: SciELO Books .

CARVALHO, Noel dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. A representação do negro em dois manifestos do cinema brasileiro. Estudos Avançados. v31(89), 2017. Disponível em: http://anpocs.com/index.php/estudos-avancados/user-category/26-estudosavanccados/101- estud-av-vol-31-no-89-sao-paulo-jan-abr-2017/6615-revista-estudos-avancados. Acessado em: 28.set.2020. de CARVALHO, Talita. Capoeira: um ato de resistência. Politizei, 2008. Disponível em: https://www.politize.com.br/capoeira-um-ato-de-resistencia/. Acesso em: 30.ago.2020.

CASTRO Jr., Luis Vitor. Campos de visibilidade da capoeira baiana: as festas populares, as escolas de capoeira, o cinema e a arte (1955 – 1985). Brasília: Ministério do Esporte/ 1º Prêmio Brasil de Esporte e Lazer de Inclusão Social, 2010. 218

CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o cinema industrial paulista nos anos 50. São Paulo: Panorama do saber, 2002.

CATANI, Afrânio Mendes. A Vera Cruz e os estúdios paulistas nos anos 1950. In: RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro, v.1. São Paulo: Edições Sesc, 2018.

CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1977.

CHICK Fowle, O Faixa Preta do Cinema. Direção: Roberto Santos. São Paulo, SP. Embrafilme, 1981, (17min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SiAgeXHXdS8. Acessado em: 12.jan.2019.

CLARKE, Charles G. What is a Director of Photography? American Cinematographer, v. 80, n.3, mar., 1999. Disponível em: https://ascmag.com/magazine/mar99/director/index.htm. Acessado em: 24.set.2020.

CUNNINGHAM, John. The Avant-garde, the GPO Film Unit, and British Documentary in the 1930’s. London: Eger Journal of English Studies VIII, 2008.

DEBOIS, Laurent. A odisseia do cinema brasileiro: da Atlântida a Cidade de Deus. Tradução de Júlia da Rosa Simões. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2010.

______. A imagem-movimento: cinema 1. Tradução: Sousa Dias. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

______. A imagem-tempo: cinema 2. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. Revisão filosófica: Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2009.

DUARTE, J. B. apud DEBOIS, Laurent. A odisseia do cinema brasileiro: da Atlântida a Cidade de Deus. Tradução de Júlia da Rosa Simões. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

EBERT, Carlos. Desafio da luz tropical. Associação Brasileira de Cinematografia, Artigos. Disponível em: http://abcine.org.br/site/desafio-da-luz-tropical/. Acessado em 26.set.2020.

______. Pequena História da Cinematografia no Brasil. Cátedra Marino. Disponível em: https://hamamarino.wordpress.com/pequena-historia-da-cinematografia-no-brasil. Acessado em 20.set.2020.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ENDSLEIGH, Rex. Depoimentos. In.: GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Burguesia e Cinema: O Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

ESCOREL, Lauro. Desafio da luz tropical 2. Associação Brasileira de Cinematografia, Artigos. Disponível em: https://abcine.org.br/site/desafio-da-luz-tropical-2/. Acessado em: 26.set.2020. 219

______. Ricardo Aronovich, ABC. Associação Brasileira de Cinematografia, Artigos. Disponível em: https://abcine.org.br/site/ricardo-aronovich-abc/. Acessado em: 17.set.2020.

FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira do Santos: um olhar neo-realista? São Paulo: Edusp: Fapesp, 2004.

FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000.

FRESSATO, Solene B. Duas faces da religiosidade baiana: sincretismo e intolerância. Reflexões em O Pagador de Promessas. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História/ ANPUH, São Paulo, julho 2011.

GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/ EMBRAFILME, 1981.

GIORGETTI. Ugo. Fowle era o fotógrafo à maneira clássica. Folha de São Paulo. Ilustrada, 24 de junho de 1995. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/24/ilustrada/16.html. Acessado em: 19.set.2020.

GOMES, Paulo Emilio Sales. Uma situação colonial? São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

GOMES, Ricardo. Arte que mistura música, dança e luta ultrapassa as fronteiras e finca bandeira em todos os continentes. RedBull – Artes Marciais, 2019. Disponível em: https://www.redbull.com/br-pt/until-18-capoeira-fora-do-brasil. Acessado em: 03.08.2020

GONÇALVES, Maurício Reinaldo. Companhia Cinematográfica Vera Cruz: inspiração europeia e discurso de brasilidade. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.33, n.1, p. 127-144, jan./jun. 2010.

GURNAY, James. The Windmill principle. Gurnay journey, 2008. Disponível em: http://gurneyjourney.blogspot.com/2008/04/windmill-principle.html. Acessado em: 29.ago.2020.

GRIERSON, John. Primeiros Princípios do documentário. Revista Cinemais, n.8 (nov-dez), 1997, Rio de Janeiro: Ed. Cinemais.

HINGST, Sergio. Depoimentos. In: GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Burguesia e Cinema: O Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

IMDb. H.E. Fowle (1915–1995) Biography, (s/a). Disponível em: https://www.imdb.com/name/nm0288626/?ref_=fn_al_nm_1. Acessado em: 19.set.2020.

______. O Pagador de Promessas (1962). Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0056322/. Acessado em: 26.ago.2020.

JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo imagens no cinema. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Senac, 2009.

220

LABAKI, Amir. O Caso Vera Cruz. In: MARTINELLI, Sérgio (org.). Vera Cruz: imagens e história do cinema brasileiro. São Paulo: Books, 2005.

LAPERA, Pedro Vinicius Asteriro. Entre brechas, cortes e rasuras: relações étnico-raciais e censura cinematográfica na ditadura militar. Revista Famecus: mídia, cultura e tecnologia – seção Cinema. v.22 n.2, abr/maio/jun, 2015, pp. 82-98. DOI: https://doi.org/10.15448/1980- 3729.2015.2.19927. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/19927. Acessado em: 27.set.2020.

LEONARDO Villar e Glória Menezes falam sobre experiência de ganhar a Palma de Ouro com "O Pagador de Promessas". Gazeta Zero Hora – seção Cultura e Lazer. 23.05.2012. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2012/05/leonardo- villar-e-gloria-menezes-falam-sobre-experiencia-de-ganhar-a-palma-de-ouro-com-o-pagador- de-promessas-3766597.html. Acessado em: 31.jul.2020.

LINO, Sônia Cristina. Humberto Mauro e o Cinema Novo. Locus: Revista de História. v.6, n.1, 11, 2000, pp. 117-126. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20507. Acessado em: 27.set.2020.

LOOMIS, Andrew. Creative Illustration. London: Titan Books, 2012.

LUMET, Sidney. Fazendo filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984.

MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

MACIEL, Ana Carolina de Moura Delfim. Yes, nós temos bananas. Cinema industrial paulista: a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, atrizes de cinema e Eliane Lage. Brasil, anos 1950. São Paulo: Alameda, 2011.

MARON, Alexandre. Absolutamente Anselmo. Diretor do filme "O Pagador de Promessas", premiado em Cannes, completa 80 anos hoje. Folha de São Paulo: Ilustrada, 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2104200025.htm. Acessado em: 27.set.2020.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução de Paulo Neves. 3ª ed., São Paulo: Brasiliense, 2011.

MARTINELLI, Sérgio; LABAKI, Amir; CALIL, Carlos Augusto; GARCIA, Galileu; CONSORTE, Renato; KHOURI, Walter Hugo. Vera Cruz: imagens e história do cinema brasileiro. São Paulo/SP: aBooks, 2005.

MASCELLI, Joseph V. Os cinco Cs da cinematografia: técnicas de filmagem. Tradução de Janaína Marcoantônio. São Paulo: Summus, 2010.

MERTEN, Luiz Carlos. Anselmo Duarte: o homem da Palma de Ouro. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. 221

______. Ainda o cinema sonhado, o legado de Chick Fowle. O Estadão. Cultura. 22 de janeiro de 2019. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/luiz-carlos-merten/ainda-o- cinema-sonhado-o-legado-de-chick-fowle. Acessado em 19.set.2020.

______. Clássico do Dia: ‘O Pagador de Promessas’ reflete a intolerância religiosa. Terra: seção Cinema. 19.06.2020. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/cinema/classico-do-dia-o-pagador-de-promessas-reflete-a- intolerancia-religiosa,526ee798f15847e9e9a8289670414354tf0iga7b.html. Acessado em: 27.set.2020.

MOURA, Edgar. 50 anos Luz Câmera e Ação. 4ª ed., São Paulo: SENAC, 2009.

MUSEU DA IMAGEM E DO SOM DE SÃO PAULO. Debate sobre a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Participantes: Aldo, Oswaldo Sampaio, Chick Fowle, Ciccillo Matarazzo, Mário Sérgio e Anselmo Duarte. Coleção Memória Vera Cruz. 00251MVC. Item 00251MVC00032AD, tombo 54.2, registro A-0084, formato CD, idioma português, 56min 28s. Disponível em: http://acervo.mis-sp.org.br/audio/debate-sobre-vera-cruz. Acessado em: 24.set.2020.

NEGROS REPRESENTAM 54% DA POPULAÇÃO DO PAÍS, MAS SÃO SÓ 17% DOS MAIS RICOS. In: UOL, Economia, 2015. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-representam-54-da- populacao-do-pais-mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm. Acessado em: 05.ago.2020.

NETO, Antonio Leão da Silva. Dicionário de fotógrafos do cinema brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.

NÚMERO 7. In: Dicionário de símbolos: significado dos símbolos e simbologias. Disponível em: https://www.dicionariodesimbolos.com.br/numero-7. Acessado em 31.jul.2020.

O CANDOMBLÉ na música brasileira. Portal Geledés, 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-candomble-ma-musica-brasileira/. Acessado em: 03.ago.2020.

O PAGADOR de Promessas. Empresa Brasil de Comunicação/ EBC. Programa De Lá Pra Cá, no ar em: 08.04.2012, às 21h. Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/delapraca/episodio/o-pagador-de-promessas. Acessado em 03.08.2020.

PARANAGUÁ, Paulo Antônio. FOWLE, Chick (Henry Edward Fowle). In: RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe. Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Editora SENAC, 2000, p. 259-260.

PELLIZZARI, Lorenzo; VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti. Editions du Festival international du film de Locarno, 1995. PENAFRIA, Manuela. Análise de Filmes - conceitos e metodologia(s). VI Congresso SOPCOM, Abril de 2009. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/. Acessado em: 03.08.2020.

RAMOS, Fernão Pessoa. A mise-en-scène realista: Renoir, Rivette e Michel Mourlet. Mesa Documentário em Reflexão. s/n. Disponível em: 222

https://www.iar.unicamp.br/docentes/.../20Mise-enSceneSiteRealista.pdf. Acessado em: 24.09.2020.

______. Três voltas do popular e a tradição escatológica do cinema brasileiro. In: Estudos de cinema: Socine II e III/ Socine. São Paulo: Annablume, 2000.

______. A ascensão do novo jovem cinema. In: RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila (org.). Nova história do cinema brasileiro, v.2, São Paulo: Edições Sesc, 2018.

______. (org.); MIRANDA, Luiz Felipe (org.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000. p.37/38 R791.430981 E56.

______. SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro. v.1, ão Paulo: Edições Sesc, 2018.

______. SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro. v.2, São Paulo: Edições Sesc, 2018.

RAMOS, Luciano. Massaini, produtor e distribuidor (1935 – 1992): um lado pouco conhecido do cinema brasileiro. In: RAMOS, Fernão Pessoa. SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro. v.1 (edição ampliada), São Paulo: Edições Sesc, 2018.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas Editora e Distribuidora Ltda, 2011.

ROTHA, Paul. Documentary Film. London, Faber and Faber, 1973, p. 115-122.

RUIZ, A. J. (2002). A imagem da Vera Cruz nos livros. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 29 (17), 115-126. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316- 7114.sig.2002.65548. Acessado em 24.set.2020.

RUSSEL, Patrick. Crown Film Unit. BFI: Screenonline, 2003. Disponível em: http://www.screenonline.org.uk/film/id/469778/. Acessado em: 01.ago.2020. dos SANTOS, Nelson Pereira. RIO, 40 Graus. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo. Itaú Cultural, 30.08.2016. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85- 7979-060-7. Disponível em: . Acessado em: 13.jul.2020.

SCHETTINO, Paulo B. C. Diálogos sobre a tecnologia do cinema brasileiro. Cotia, São Paulo: Ateliê, 2007.

SCHVARZMAN, Sheila. Cinema Brasileiro, História e Historiografia. 2008. Disponível em: http://www.mnemocine.com.br/index.php/2017-03-19-18-18-46/historia-e-cinema/120- cinema-brasileiro-historia-e-historiografia. Acessado em: 16.set.2020.

SEXTON, Jamie. Drifters (1929). BFI: Screenonline, 2003. Disponível em: http://www.screenonline.org.uk/film/id/439877/index.html. Acesso em: 30.ago.2020. 223

SILVA, Sebastiana Siqueira. O pagador de promessas: um drama em tempos modernos. Dissertação de Mestrado da Universidade Federal da Paraíba, 2009.

SINHÁ Moça. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7. Acessado em: 03 de Set. 2020.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução de Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.

______. Crítica da Imagem Eurocêntrica. Multiculturalismo e representação. Cosacnaify. 2006.

______. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. São Paulo: Edusp, 2008.

STORARO, Vittorio. Scrivere com la luce/Writing with light. Electa/Academia dell‟immagine: Milano, 2001.

SUSSEX, Elizabeth. Rise and Fall of Britsh Documentary. Berkley: Berkley University of California Press, 1975.

SWANN, Paul. The British Documentary Film Movement – 1926-1946. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

TOLENTINO, Célia A. F. O Rural no cinema brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001.

VALENTINETI, Claudio M. O Documentário segundo Cavalcanti. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário no Brasil - Tradição e Transformação. São Paulo: Summus Editorial, 2004.

VANOYE, Francis; GOLLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a Análise Fílmica. Campinas, Papirus: 1994.

VIANY, Alex. Depoimentos. In: GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Burguesia e Cinema: O Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

______. O processo do Cinema Novo. Organizado por José Carlos Avellar.Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

VIEIRA, João Luiz. Chanchada e o cinema carioca (1930-1950). In.: RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro. v.1, São Paulo: Edições Sesc, 2018.

WINSTON, Brian. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (org.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naif, 2005. 224

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

225

CINEMATOGRAFIA ABORDADA DE CHICK FOWLE (H. E. FOWLE)

Night Mail 1936, p&b, 35mm, 25 min. Direção: Harry Watt, Basil Wright. Direção de Fotografia: H.E. Fowle e Jonah Jones. Montagem: Basil Wright, Alberto Cavalcanti e Richard Q. McNaughton. Direção de Som: Alberto Cavalcanti. Música: Benjamin Britten. Roteiro: W.H. Auden, Hugh Westman (como Baron Westman Kenneth Westman). Produção: Harry Watt, Basil Wright. Companhia Produtora: GPO Film Unit.

North Sea 1938, p&b, 35mm, 33 min. Direção: Harry Watt. Direção de Fotografia: H.E. Fowle e Jonah Jones. Montagem: Richard Q. McNughton. Música: Enst Hermann Meyer. Roteiro: Harry Watt. Produção: Alberto Cavalcanti. Companhia Produtora: GPO Film Unit.

London Can Take It! 1940, p&b, 35mm, 9min. Direção: Humphrey Jennings, Harry Watt. Direção de Fotografia: H.E. Fowle, Jonah Jones. Montagem, Música, Roteiro e Produção: sem crédito. Narração: Quentin Reynolds Companhia Produtora: GPO Film Unit.

226

Christimas Under Fire 1940, p&b, 35mm, 10 min. Direção: Harry Watt. Direção de Fotografia: Eric Cross, H.E. Fowle. Montagem: sem crédito. Música: sem crédito. Roteiro: sem crédito. Produção: Charles Hasse. Companhia Produtora: Crown Film Unit.

Listen to Britain 1942, p&b, 35mm, 19 min. Direção: Humphrey Jennings, Stewart McAllister. Direção de Fotografia: H.E. Fowle, Fred Gamage. Montagem: Humphrey Jennings, Stewart McAllister. Departamento de som: Ken Cameron, Des Edwards , A.J. Stafford Música: Muir Mathieson. Roteiro: Humphrey Jennings, Stewart McAllister. Produção: Ian Dalrymple. Companhia Produtora: Crown Film Unit.

The Woman in the Hall 1947, p&b, 35mm, 1h22 min. Direção: Jack Lee. Direção de Fotografia: H.E. Fowle, C.M. Pennington-Richards. Montagem: John Krish. Música: Temple Abady. Roteiro: Ian Dalrymple, Jack Lee, G.B. Stern. Produção: Ian Dalrymple. Elenco principal: Ursula Jeans, Jean Simmons, Cecil Parker. Companhia Produtora: Wessex Film Production.

227

Once a Jolly Swagman 1949, p&b, 35mm, 1h40 min. Direção: Jack Lee. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: Jack Harris. Música: Bernard Stevens. Roteiro: William Rose, Jack Lee. Produção: Ian Dalrymple. Elenco principal: Dirk Bogarde, Bonar Colleano, Bill Owen. Companhia Produtora: Wessex Film Production.

Caiçara 1950, p&b, 35mm, 1h32 min. Direção: Adolfo Celi. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: Oswald Hafenrichter. Música: Francisco Mignone. Roteiro: Alberto Cavalcanti, Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi. Produção: Alberto Cavalcanti. Elenco principal: Eliane Lage, Abilio Pereira de Almeida, Carlos Vergueiro. Companhia Produtora: Companhia Cinematográfica Vera Cruz.

Terra é sempre terra 1951, p&b, 35mm, 1h30 min. Direção: Tom Payne. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: Edith Hafenrichter. Música: Guerra Peixe. Roteiro: Alberto Cavalcanti, Guilherme de Almeida, Abílio Pereira de Almeida. Produção: Alberto Cavalcanti. Elenco principal: Marisa Prado, Abilio Pereira de Almeida, Mário Sérgio. Companhia Produtora: Companhia Cinematográfica Vera Cruz. 228

Ângela 1951, p&b, 35mm, 1h35 min. Direção: Tom Payne, Abilio Pereira de Almeida. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: Edith Hafenrichter. Música: Francisco Mignone. Roteiro: Abílio Pereira de Almeida. Produção: Abilio Pereira de Almeida. Elenco principal: Eliane Lage, Abilio Pereira de Almeida, Alberto Ruschel. Companhia Produtora: Companhia Cinematográfica Vera Cruz.

O Cangaceiro 1953, p&b, 35mm, 1h45 min. Direção: Lima Barreto. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: Giuseppe Baldacconi, Lúcio Braun. Música: Gabriel Migliori. Roteiro: Lima Barreto. Produção: Cid Leite da Silva. Elenco principal: Alberto Ruschel, Marisa Prado, Milton Ribeiro, Vanja Orico. Companhia Produtora: Companhia Cinematográfica Vera Cruz.

Na senda do crime 1953, p&b, 35mm, 1h06 min. Direção: Flamínio Bollini Cerri. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: Edith Hafenrichter. Música: Enrico Simonetti. Roteiro: Alinor Azevedo, Flaminio Bollini, Fabio Carpi. Produção: Pio Piccinini. Elenco principal: Marly Bueno, Nelson Camargo, Miro Cerni. Companhia Produtora: Companhia Cinematográfica Vera Cruz. 229

Absolutamente Certo! 1957, p&b, 35mm, 1h35 min. Direção: Anselmo Duarte. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: José Cañizares. Música: Enrico Simonetti. Roteiro: Anselmo Duarte. Produção: Oswaldo Massaini. Elenco principal: Anselmo Duarte, Dercy Gonçalves, . Companhia Produtora: Cinedistri.

O Pagador de promessas 1957, p&b, 35mm, 1h35 min. Direção: Anselmo Duarte. Direção de Fotografia: H.E. Fowle. Montagem: Carlos Coimbra. Música: Gabriel Migliori. Roteiro: Anselmo Duarte. Produção: Oswaldo Massaini. Elenco principal: Leonardo Villar, Glória Menezes, Dionísio Azevedo, Geraldo Del Rey, Antônio Pitanga. Companhia Produtora: Cinedistri.