Z Dossiê

Prof. Júlio Cláudio da Silva

Relações Raciais e de Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas, Centro Gênero nas Telas do de Estudos Superiores de Parintins, e Professor Cinema Brasileiro nas Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Narrativas Sobre a do Amazonas. Atuação de Léa Garcia em Orfeu do Carnaval (1950-1960)1

Resumo

O universo das artes cênicas pode ser um lócus privilegiado de observação da presença da variável raça e gênero na sociedade brasileira? A análise, em perspectiva histórica, da trajetória de uma atriz negra de teatro, cinema e televisão, pode iluminar a presença do racismo e do antirracismo na História do Brasil? Essas e outras perguntas podem ser respondidas quando visitamos a trajetória da atriz de teatro, cinema e televisão e ativista do movimento social negro, a partir das narrativas contidas nas entrevistas e periódicos, sobre os primeiros anos de atuação de Léa Lucas Garcia, na década de 1950. Léa Garcia atuou em sete montagens do Teatro Experimental do Negro dirigida por Abdias Nascimento, no e em São Paulo, entre 1952 e 1957. O ano de 1956 marca o início do seu trabalho como atriz profissional no teatro, ao participar da montagem de Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes. Orfeu do Carnaval (1957), dirigido por Marcel Camus, foi a sua estreia no cinema, graças a sua interpretação nesta obra, foi agraciada com o segundo lugar na premiação de melhor atriz no Festival de Cinema de Cannes.

Palavras chave: Léa Garcia; Relações raciais; Orfeu do Carnaval

1 O artigo apresenta resultados parciais dos projetos de pesquisa “Relações ra- ciais e de gênero nas telas do cinema brasileiro: a trajetória de Léa Garcia entre Orfeu do Carnaval e O Forte (1957-1973)”, fomentado pela bolsa de produtivida- de de pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas, conforme processo nº 2018/00016109 e portaria 141/2019 e “Relações raciais, gênero e memória: a traje- tória de Léa Garcia entre o Teatro Experimental do Negro e Ganga Zumba (1951- 1963)”, desenvolvido no âmbito do estágio de pós-doutorado no Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Edição 03 | Agosto de 2020

Abstract nos primeiros anos de sua atuação como atriz profissional na década de 1950. Can the universe of performing arts be a Na década de 1950, Léa Garcia atuou em privileged locus for observing the presence of sete montagens do TEN dirigida por Abdias the variable race and gender in Brazilian society? Nascimento, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Can the analysis, in historical perspective, of the Os espetáculos foram, a saber: Rapsódia Negra trajectory of a black actress in theater, cinema (1952), roteiro de Abdias Nascimento; O Filho and television, illuminate the presence of racism Pródigo, de Lúcio Cardoso (2ª montagem em and anti-racism in the History of Brazil? These and other questions can be answered when we visit 1953 e 3ª montagem em 1955); Festival O’Neill, the trajectory of the actress of theater, cinema com cenas de Todos os filhos de Deus têm asas and television and activist of the black social e O Imperador Jones, e Onde está marcada movement, from the narratives contained in the a cruz na íntegra (1954), de Eugene O’Neill; e interviews and periodicals, about the first years Sortilégio (Mistério Negro) (1957), de Abdias of Léa Lucas Garcia’s performance, in the decade Nascimento. O ano de 1956 marca o início da of 1950. Léa Garcia performed in seven plays atuação profissional da atriz Léa Garcia com at the Teatro Experimental do Negro directed sua participação na montagem de Orfeu da by Abdias Nascimento, in Rio de Janeiro and Conceição, de Vinícius de Moraes3. São Paulo, between 1952 and 1957. The year 1956 Em uma longa carreira com mais de seis dé- marks the beginning of her work as a professional cadas, Léa Garcia tem atuado no cinema, teatro actress in the theater, by participating editing e televisão. Um de seus personagens mais co- by Orfeu da Conceição, by Vinícius de Moraes. nhecidos foi a escrava Rosa na novela A escrava Orpheus of Carnival (1957), directed by Marcel Isaura (1975), da TV Globo, exibida em dezenas Camus, was his debut in cinem;a, thanks to his de países. Por sua atuação em Orfeu do Carna- interpretation in this work, he was awarded the val (1957), dirigido por Marcel Camus, ficou em second place in the award for best actress at segundo lugar como Melhor Atriz no Festival de the Cannes Film Festival. Cinema de Cannes. Venceu vários prêmios, como Keywords: Léa Garcia; Race relations; o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Grama- Orfeu do Carnaval do, em 2004, o Tatu de Prata de Melhor Atriz, na Jornada Internacional de Cinema da Bahia, em Introdução 2007, e Melhor Atriz no Festival de Natal, em 2009. Recebeu também diversas homenagens, como a O que pode revelar, o estudo da trajetória Medalha Pedro Ernesto, da Câmara Municipal do de uma atriz negra, sobre o racismo e o antir- Rio de Janeiro, em 1994; a Medalha Comemorativa racismo no Brasil? Em que medida o universo de 110 anos de fundação da Academia Brasileira das artes cênicas pode ser um lócus privile- de Letras como Personalidade Realizadora do giado de observação da presença da variável País, em 2007; o Golfinho de Ouro, na categoria raça e gênero na sociedade brasileira? Essas Cinema, do Conselho de Cultura do Estado do e outras perguntas podem ser respondidas Rio de Janeiro, em 2007; e Menção Honrosa no quando analisamos aspectos da trajetória da , em 20084. atriz de cinema, teatro, televisão e ativista do movimento social negro2, Léa Lucas Garcia, Rastros e Biografia 2 Na década de 1950, atuou como atriz no Teatro Expe- rimental do Negro e na década de 1980 atuou junto ao Embora tenhamos como objeto de análise Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Ver: Curriculum Vitae de Léa Garcia. Acervo Privado Léa a trajetória profissional da atriz de cinema, Garcia/Grupo de Estudos Históricos do Amazonas. O IPCN foi fundado no Rio de Janeiro, em 1976, como uma 3 Curriculum Vitae de Léa Garcia. Acervo Privado Léa das ações antirracistas no período da ditadura militar, Garcia/Grupo de Estudos Históricos do Amazonas. anterior ao surgimento do Movimento Negro Unificado. 4 Idem.

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teatro e televisão, Léa Garcia, especialmente, nos palcos e/ou telas de cinema, por vezes, das a sua atuação no filme Orfeu do Carnaval, o coxias ou set de filmagens, enfim, dos bastidores presente texto centra-se tanto na análise de das produções artísticas. críticas e notícias sobre os trabalhos nos quais Desta forma, parece atual o caráter inova- a atriz atuou, publicadas em periódicos, quanto dor dos periódicos, atribuído por Tânia Regina em entrevistas realizadas com colaboradores de Lucas (2005), ao uso dos periódicos como contemporâneos às referidas produções artís- fonte. Especialmente ao destacar as inovações ticas. Buscamos assim recuperar aspectos do historiográficas trazidas pela terceira geração contexto histórico e social no qual a atriz esteve dos Annales, na década de 1970, que tornaram inserida na década de 1950 e nos orientar pelo possível o uso dessas fontes em pesquisa his- alerta feito por Pierre Bourdieu em relação aos tórica, por meio da adoção de novos métodos usos das trajetórias e biografias. de análise e crítica aos documentos históricos, Bourdieu sublinha as críticas a esses estu- além do surgimento de novas concepções e dos no que diz respeito ao papel do sujeito e ao perspectivas sobre as fontes jornalísticas. lugar do indivíduo no contexto social analisado. Nessa seara, Marialva Barbosa (1998) argu- Para ele, os estudiosos das biografias devem menta que os periódicos são apreendidos como enfrentar o desafio de não cair em uma história fontes para observação também de elemen- cronológica e pouco problemática. Vale a pena tos do cotidiano social, do coletivo, tornando sublinharmos o alerta dado por Pierre Bourdieu a imprensa uma importante ferramenta para ao lembrar que enclausurar a existência em o trabalho do historiador, abrindo novas pos- busca de uma improvável unidade de sentido sibilidades para a construção de objetos de e enquadrá-la no sentido de uma mera suces- pesquisa. Assim como toda e qualquer fonte, são de acontecimentos históricos coerentes é os periódicos não são o registro da verdade uma ingenuidade. Para Bourdieu, o essencial é sobre aquilo que é analisado: é imprescindí- reconstruir o contexto em que age o indivíduo vel dialogar com outras fontes, entrecruzar (BOURDIEU, 1996). informações, problematizar os silêncios e as O estudo sobre uma trajetória profissional omissões. E, principalmente, manter um olhar recuada, dos artistas de cinema e teatro, nas crítico sobre a suposta objetividade da notí- décadas de 1940 ou 1950 oferecem alguns de- cia, “vista como uma falácia, até para o mais safios, peculiares à História do Tempo Presente ingênuo dos profissionais”, pois o jornalismo (MOTTA, 2012). Transcorrido mais de meio século seleciona, hierarquiza, prioriza as informações, das realizações das obras analisadas, é cada vez fazendo “uma seletiva reconstrução do pre- mais difícil localizarmos colaboradoras que par- sente” (BARBOSA, 1998, p 88). ticiparam das apresentações dos espetáculos ou “Escrever a história das mulheres” é retirá- exibição dos filmes, seja na condição de membro, las “do silêncio em que elas estavam confinadas”. seja de espectador. Ainda que os localizemos para Ao enfrentar este tema, a pesquisadora Michelle uma entrevista com a metodologia da história Perrot (2007) deparou-se com uma questão: oral (ALBERTI, 2005), seus processos de constru- “Mas por que esse silêncio? Ou antes: será ção de memória e seleção sobre o que lembrar que as mulheres têm uma história?”. Rachel ou esquecer, narrar ou calar (POLLAK, 1992; 1989), Soihet e Joana Maria Pedro identificaram uma nem sempre coincidem com os anseios ou obje- contribuição fundamental e recíproca entre a tivos do pesquisador ou do projeto de pesquisa. história das mulheres e o movimento feminista. Assim parece ser, também, bastante significativa Para os historiadores sociais, as mulheres eram as contribuições fornecidas por outras fontes, uma categoria homogênea, biologicamente como os periódicos. Nelas encontram-se narrati- feminina, com papéis e contextos diferentes, vas redigidas por espectadores privilegiados. Em mas com essência comum. Nos limites sua maioria, testemunhas oculares das atuações dessa perspectiva estão as contradições e

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impossibilidades de se pensar uma identidade da Zona Sul”. Seu pai, José dos Santos Garcia, comum no interior da categoria “mulheres” foi um bombeiro hidráulico: “filho de uma negra (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 287). campista e de um cigano espanhol que teria Ao mesmo tempo, a oposição das categorias chegado à Campos num carro, uma daquelas mulher e homem não é suficiente para explicar carroças de ciganos e lá ficou com minha avó a primeira, não obstante as “desigualdades e e a irmã dele, Carmem, o bando foi embora e relações de poder entre os sexos”. Joan Scott ele ficou com minha avó”. Léa Garcia descreve propõe a adoção da análise dos processos a sua avó paterna enfatizando o seu fenótipo de construção das relações de gênero para negroide, afirmando assim a sua linhagem de debater classe, raça, etnicidade ou qualquer família negra. “Minha vó era uma negra bem outro processo social. Seu objetivo é clarificar retinta com os traços meios judeus e com e especificar “como é preciso pensar o efeito nariz adunco, uns lábios batidos em forma de gênero nas relações sociais e institucionais, de coração”. A formação étnico racial parece porque essa reflexão não é geralmente feita de ser algo bastante valorizado no processo de forma própria e sistemática”. Segundo a autora, construção de memória da atriz e em sua “o gênero é uma forma primeira de significar as identidade individual e coletiva: “engraçado que relações de poder”, uma forma de estruturação meu tio Laurindo era igualzinho a ela também, 5 do poder a partir da “qual o poder é articulado” os parentes dela eram muito parecidos” . (SCOTT, 1996, p. 16). A matéria sugere que ainda antes do faleci- A pesquisa geradora deste artigo ancorou- mento de Dona Estela havia um entendimento, -se no Acervo de Periódicos acessado via a entre os pais da jovem Léa Garcia, quanto ao ferramenta de pesquisa Hemeroteca Digital seu destino profissional: “pretendiam torná-la Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional, contabilista. Para isso é que ela cursou a Escola relatos publicados em livros, entrevistas publi- Amaro Cavalcanti”. Quase meio século depois, cadas em livro e feitas por mim. Nos periódicos em entrevista à Sandra Almada, a atriz informa e entrevistas buscamos analisar aspectos da que estabeleceu, com Abdias Nascimento, uma história das produções e atuação da atriz Léa convivência matrimonial, antes de ingressar no nas produções teatrais e cinematográficas nas Teatro Experimental do Negro. Naquela época, quais atuou na década de 1950. Léa Garcia ainda se orientava pelo desejo de ter a escrita por oficio “Eu continuava dizendo A matéria “Nossa amiga Léa Garcia”, assinada que queria ser escritora” (ALMADA, 1995, p. 87). por Zenaide Andréa, informa aos seus leitores, A matéria indica ter a atriz dado os primeiros de modo sintético, alguns dados biográficos da passos em 1951, sem, contudo, deixar claro o lugar atriz de cinema, teatro e televisão. Segundo o do Teatro Experimental do Negro como ponto de texto, Léa Lucas Garcia teria nascido no Rio de partida. “Mas, uma vez formada (1951), Léa decidiu Janeiro, em uma maternidade na Praça Mauá, seguir uma carreira artística, embora contra- no dia 11 de março de 1933. Filha do “negociante riando a vontade paterna. Começou a estudar de artigos de eletricidade”, José dos Santos danças folclóricas com a professora Mercedes Garcia e da Sra. Estela Lucas Garcia (já falecida) Batista” (ZENAIDE, p. 72). Segundo a entrevista (ZENAIDE, p. 72). O primeiro dado indicador ...ele a teria incentivado a percorrer uma outra de desigualdade de gênero é a omissão da seara. “E ele insistia: “Você tem temperamento profissão de Dona Estela, independentemente de atriz”. Aí, me colocou para fazer balé com a de seu falecimento. Mercedes Batista” (ALMADA, 1995, p. 87). Dona Estela Lucas de Garcia de Aguiar foi uma importante modista. Segundo as palavras da atriz: “minha mãe era uma das 5 Entrevista com a atriz Léa Garcia realizada por Júlio Cláudio da Silva, nas dependências do SATED-RJ, maiores costureiras do Rio de Janeiro e era Centro da Cidade do Rio de Janeiro, no dia 06 de procurada por toda aquela clientela grã-fina Julho do ano de 2015.

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Segundo o texto, o encontro da atriz com o em São Paulo; e, grávida do seu segundo filho, diretor do Teatro Experimental do Negro te- na remontagem de “O Filho Pródigo”, de Lúcio ria sido posterior ao seu ingresso no grupo de Cardoso (ALMADA, 1995, p. 87-88). teatro e entidade do movimento social negro. Em uma sociedade marcada pelas variáveis “Quando ingressou no teatro, conheceu Abdias gênero e raça, para ultrapassarem os obs- do Nascimento, personalidade de projeção no táculos no processo de construção de suas meio, com o qual contraiu matrimônio pouco carreiras, atrizes e atores negros contam com depois" (ZENAIDE, p. 72). O relato da atriz indica o estímulo, o apoio e a solidariedade de au- ter sido o seu ingresso no teatro um trabalho de tores e diretores. Além do estímulo de Abdias convencimento do diretor do TEN após conhe- Nascimento nos tempos do TEN, Léa Garcia cê-la na Praia de Botafogo, quando Léa Garcia contou com o apoio e o incentivo do poeta e se dirigia ao cinema6. diplomata , que a convidou para atuar em Orfeu da Conceição ao lado de Das Mulheres Egressas do “grande parte dos atores do TEN, inclusive com Teatro Experimental do Negro a Pérola Negra, que fez a Proserpina, Haroldo Costa, que interpretou o Orfeu, e vários atores O TEN foi fundado em 1944, tendo os palcos dos e bailarinos”. Léo Jusi8 é outro nome lembrado teatros como uma de suas trincheiras de combate no grupo dos incentivadores da carreira da ao racismo. Nos primeiros anos de atuação do atriz (ALMADA, 1995, p. 88). grupo experimental, duas estrelas destacaram- Segundo a sua própria definição, Léa Garcia -se em seus elencos: Ruth de Souza, entre 1945 e nasceu para ser atriz. Após ter atuado no TEN, 1951 (SILVA, 2017) e Léa Garcia, entre 1951 e 1956 surgiram convites para atuar no Rio de Janeiro (SILVA; BEZERRA, 2017). Nos últimos anos, têm-se e em São Paulo, no teatro, no cinema e na tele- ampliado e consolidado os trabalhos dedicados visão (ALMADA, 1995, p. 88). Como evidência do às mais diversas temáticas constituintes do cam- seu mérito profissional, a atriz afirma: “Nunca 7 po de emancipações e pós-abolição e dentro dele fui a uma emissora pedir nada. (Enquanto acon- os estudos das mulheres negras no pós-abolição tecia essa entrevista, Léa recebeu dois convites (XAVIER; FARIAS; GOMES, 2012). Nesse sentido, os para atuar em uma minissérie e num filme). Eu estudos de cunho biográfico sobre as mulheres fico em casa, as pessoas vêm me buscar aqui” componentes e/ou egressas do TEN parecem ser (ALMADA, 1995, p. 88). promissores para pensarmos as experiências históricas relacionadas ao racismo, às relações O aprimoramento técnico profissional de de gênero e aos movimentos sociais negros. Léa Garcia foi feito a partir de cursos e de sua prática. Na juventude teria tomado aulas de Léa Garcia estreou no TEN em 1951, após a dicção com Lilian Nunes e de expressão corpo- fase dos “muitos congressos”; Ruth de Souza ral com Nina de Luca. Aos dezesseis anos leu a havia se afastado do grupo e ido estudar nos “Tragédia Grega” e outros textos de teatro. E EUA. Mas recupera suas atuações nos primeiros prática, muita prática e observação. “Sempre anos como atriz em “Rapsódia Negra”, de Abdias frequentei muito teatro e cinema” (ALMADA, Nascimento; em “Todos os Filhos de Deus têm 1995, p. 89). Asas”, de Eugene O’Neill, sua atuação na TV,

6 Entrevista com a atriz Léa Garcia realizada por Júlio 8 Léo Jusi (1930, Curitiba–2011, Rio de Janeiro) estu- Cláudio da Silva, nas dependências do SATED-RJ, dou escultura, pintura e teatro; atuou em pequenos Centro da Cidade do Rio de Janeiro, no dia 06 de papéis até começar a dirigir peças de teatro. En- Julho do ano de 2015. tre seus trabalhos, dirigiu Orfeu da Conceição, de 7 Sobre o campo de emancipações e pós-abolição ver: Vinicius de Moraes, e Perdoa-me por me traíres, de ABREU, M. et al. Histórias do Pós-Abolição no Mundo . Ajudou a fundar e dirigiu o Teatro Atlântico, volume 1, Identidades e projetos políticos. Santa Rosa, no Rio de Janeiro, e após isso seguiu car- Niterói: EDUFF, 2014. 3 v. reira acadêmica. Léo Jusi. Enciclopédia Itaú Cultural.

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Ao sair do TEN e profissionalizar-se, Léa políticas e culturais contidas em seus projetos, Garcia passou a ter em seu cotidiano e des- montagem de espetáculos que visassem a cria- tino profissional a variável social que denun- ção e ampliação de temáticas negras e espaços ciara, ao lado dos outros membros do TEN, o para a atuação de atores negros, defendidas racismo na sociedade e nos palcos brasileiros. pelo Teatro Experimental do Negro desde sua Na condição de atriz profissional, Léa Garcia fundação em 1944 (SILVA, 2017). também enfrentou a presença das variáveis A montagem de Orfeu da Conceição contou raça e gênero nos circuitos cinematográfico com grandes nomes da cena cultural e artística e televisivo. Ao longo de sua carreira, a atriz brasileira, da segunda metade do século XX. enfrentou uma dupla discriminação, de raça A direção do espetáculo foi dada ao “jovem di- e de gênero, nos espaços em que atuou, como retor” Léo Jusi que, naquele momento, já havia indicam os registros feitos pelos espectadores dirigido a peça de Nelson Rodrigues Vestido de privilegiados daquelas produções. Nesse sen- noiva. O cenário coube a Oscar Niemeyer, des- tido, a partir da interpretação das matérias crito como o “grande arquiteto”; “Antônio Carlos sobre o filme Orfeu do Carnaval e a atuação Jobim, o conhecido Tom, será responsável pela da atriz Léa Garcia, nos importa perceber quais parte musical”; o vestuário foi feito por Lila de foram os discursos sobre a mulher negra, pro- Moraes, esposa do autor; e a coreografia foi duzidos na década de 1950. Como os críticos idealizada por Lina Luca. A montagem contou e os espectadores perceberam a atuação de com a atuação de um elenco de quarenta atores Léa Garcia e dos demais atores no filmeOrfeu negros, entre os quais estavam: “Haroldo Costa do Carnaval? (Orfeu), Daisy Paiva (Eurídice), Léa Garcia (Mira), Ciro Monteiro (Apolo), Abdias do Nascimento (Aristeu), Zelia Pereira (Clio) e Adhemar Ferrei- Orfeu da Conceição ra da Silva”, também conhecido pelas vitórias e Orfeu Negro olímpicas no salto triplo (AQUINO, 1956, p. 9).

Orfeu da Conceição é um clássico da produ- Como referência temática, estética e das ção cultural brasileira. O espetáculo foi mon- potencialidades da atuação dos atores negros, tado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e Orfeu da Conceição também parece ter sido um parece ter sido um divisor de águas na traje- divisor de águas na vida do cineasta, escritor tória da atriz Léa Garcia. A iniciativa de escre- e membro da Academia Brasileira de Letras, vê-la despertou-se em 1942, quando Vinicius de Carlos José Fontes. O registro da narrativa do Moraes teria tomado “conhecimento mais íntimo cineasta do Cinema Novo é um caso raro de tes- com a lenda de Orfeu, o velho mito grego, cujas temunho sobre a produção artística dos anos origens se perdem num tempo muito anterior cinquenta. Para o acadêmico, assistir Orfeu da ao de Homero”. Chama atenção no registro dos Conceição foi uma experiência definitiva em bastidores, feito por Flávio de Aquino, a leitura sua vida, especialmente pela visão da atuação antirracista do escritor brasileiro. Vinicius de de Léa Garcia e de seus colegas do TEN, em Moraes teria percebido as “semelhanças existen- uma montagem teatral profissional. O jovem tes entre certos aspectos do caráter helênico e Carlos contava dezesseis anos quando o seu o do negro; a idêntica dignidade espiritual, o pa- pai, o antropólogo e jornalista Manoel Diegues, recido conceito panteísta do mundo”. Tais seme- o convidou para ir à estreia do espetáculo no 9 lhanças identificadas pelo diplomata brasileiro Theatro Municipal . o fizeram perceber que “pouco precisava mudar para transpô-lo para o Brasil; e particularmente para as favelas cariocas (AQUINO, 1956, p. 9). 9 Entrevista com Carlos José Fontes Diegues (Cacá Diegues), realizada por Júlio Cláudio da Silva, no dia Nesse sentido, parece haver uma certa identida- 13 de julho de 2016, na produtora do entrevistado, na de da percepção do diplomata com as pautas cidade do Rio de Janeiro.

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Na descrição do impacto causado com a apre- e fazer a Mira”. A atriz havia se preparado para sentação de Orfeu da Conceição, Cacá Diegues assumir o mesmo personagem feito no teatro: enfatiza: “Aí eu vi, ali, uma pessoa que me encan- “só que a Mira, para o Marcelo, não era a mesma tou”. A pessoa encantadora era: “Léa Garcia, Mira do teatro”. Segundo a atriz, Marcel Camus que era atriz na peça e fazia ‘Mira’, e que eu me colocou anúncio nos jornais: “convocando a deslumbrei com o papel dela”10. Em seu processo todos atores e pessoas negras para se candi- de construção de memória, o encanto não se datarem a uma seleção na Aliança Francesa restringia somente à atuação de Léa Garcia, para o filme”12. mas à visão do espetáculo como um todo. Teria O filmeOrfeu do Carnaval, alcançou reper- lhe impactado, especialmente, a possibilidade de cussão internacional e nacional e ganhou as produção de arte no Brasil, incluindo as temáticas páginas de um periódico mineiro. O artigo ho- e artistas negros. Cacá Diegues viu ser possível, mônimo à película descreve, de modo sintético, dentro do Theatro Municipal, “com aquela no- a trama levada as telas. Segundo o articulista breza, aquela arrogância” uma montagem de não identificado, “a lenda de Orfeu e de Eurídice espetáculo com: “uma coisa popular, de samba, vem impressionando o nosso século.” Antes de de (incompreensível), de negro, de coisa e tal… Orfeu Negro, “Jean Cocteau realizou um filme E eu fiquei apaixonado por aquilo.11 Era possível sobre estas figuras mitológicas.” Depois disso desenvolver espetáculos com qualidade compa- Vinicius de Morais fez a adaptação do mito tível ao processo de modernização do teatro ou grego. “Pelo visto, Orfeu da Grécia desceu aos um novo cinema com um elenco de atores negros infernos e dos infernos subiu ao Brasil”. O arti- e um repertório e temáticas negras. culista não identificado sintetiza a adaptação A atuação de Léa Garcia como Mira “encan- do mito grego feita para o teatro: “O Orfeu de tou” o jovem e futuro cineasta Cacá Diegues, Vinicius é um negro brasileiro, músico e poeta mas também convenceu o cineasta francês, tão genial quanto em sua encarnação original, Marcel Camus, a contratá-la, para atuar em que dominava o morro com seus sambas”13. Orfeu Negro, a versão cinematográfica do tex- O articulista atribui a “razões incertas” e to de Vinicius de Moraes. A matéria “Orfeu da “sorte nossa” o fato da peça do escritor e di- Conceição”, publicada no jornal A Noite, em 23 plomata brasileiro ter caído em mãos do pro- de novembro de 1955, fez menção à possibilidade dutor francês Sacha Gordine, posteriormente da produção de um filme baseado na peça de adaptada para o cinema por Jacques Viot e Vinicius de Moraes. No texto há sugestões de dirigida por Marcel Camus. A produção teria nomes para o elenco, entre os quais o de Léa se iniciado em fevereiro de 1957, quando Marcel Garcia, para “Eurídice”, reconhecida como es- Camus veio conhecer o carnaval carioca, “o trela do Teatro Experimental do Negro, “pois quadro de fundo do filme”14. tem beleza, expressão dramática e experiência como dançarina”. Ruth de Souza, a primeira atriz O autor não indica em qual momento do ano egressa do TEN a profissionalizar-se, também de 1957 ou 1958 foi feita a seleção dos atores foi indicada para o papel da “Dama de Negro”, de Orfeu Negro. Desconsiderando a trajetó- que simboliza a morte (JAFA, 1955). ria de membros do elenco como Léa Garcia, o autor informa não haver no filme “um só ator A primeira atuação em filme da atriz Léa profissional, há nele uma estudante, uma se- Garcia foi em Orfeu Negro. “Como eu já tinha feito a peça, eu estava crente que ia chegar lá 12 Entrevista com a atriz Léa Garcia feita por Júlio Cláudio da Silva nas dependências do SATED, no dia 10 Entrevista com Carlos José Fontes Diegues (Cacá 26 de Janeiro de 2016. Diegues), realizada por Júlio Cláudio da Silva, no dia 13 Sem autor identificado. Orfeu do Carnaval. Alterosa, 13 de julho de 2016, na produtora do entrevistado, na Belo Horizonte, 15 de outubro de 1959. Ano XXI, Edição cidade do Rio de Janeiro. 316, p. 93. 11 Idem. 14 Ibidem. p. 93.

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cretária, um motorista de táxi... e tantos outros elenco contou com as atuações de “Lurdes de amadores”. E exemplifica citando a atuação do Oliveira (Mira), Léa Garcia (Serafina), Waldetar atleta Ademar Ferreira da Silva, no papel por de Souza (Chico Bôto), Alexandre Constantino ele definido como “tétrico: a Morte”15. (Hermes), Jorge dos Santos (o garoto Zeca)”. Segundo o autor “difícil mesmo foi escolha O campeão mundial de salto tríplice, Ademar de um Orfeu e de uma Eurídice.” O autor não Ferreira da Silva, fez uma participação especial, 18 faz referência à como Marcel Camus escolheu como a “Morte” . Muito provavelmente a “de a atriz norte-americana, Marpessa Dawn para corpo e alma ao espetáculo” e autenticidade interpretar Eurídice. Mas enfatiza o desafio da do carnaval fora de época, foi garantida pela busca de um ator para encarnar o Orfeu. participação alegre dos membros de quaro escolas de samba.

Orfeu continuava sumido. Camus dese- nhara um retrato imaginário do poeta, que Orfeu do Carnaval foi publicado em nossos jornais, sem resul- tados, todavia. Percorreu depois as praias, e o Cinema Internacional visitou corporações militares, o exército, os paraquedistas, os fuzileiros (o comandan- No teatro, Léa Garcia interpretou a Mira, te reunia os homens no pátio e Camus os na peça de Vinícius de Moraes. No cinema seu passava em revista). Finalmente, um cen- papel foi Serafina, personagem incluído na troavante do Fluminense, Breno Melo, en- adaptação de Marcel Camus para o cinema. contrado por acaso na rua, foi escolhido16. A atuação no novo papel, como a Serafina em Orfeu Negro, garantiu a Léa Garcia a indica- Orfeu do Carnaval foi rodado em dezembro ção para concorrer ao prêmio de melhor atriz de 1958. Para isso, a produção do filme organizou no Festival de Cannes, na França. Para o prê- um carnaval fora de época, “com suas músicas mio concorreu com as atrizes Anna Magnani e e ritmos marcados”, inundando parte da cidade Simone Signoret. A indicação deixou Léa Garcia do Rio de Janeiro. O carnaval inusitado surpre- muito assustada, por concorrer com Magnani, endeu, mesmo assim o povo “aderiu de corpo e então sua atriz predileta (ALMADA, 1995). alma ao espetáculo, não deixando descambar Na estreia de Orfeu do Carnaval no Rio de para a artificialidade uma das manifestações Janeiro, com a presença do diretor Camus, Léa mais populares do povo carioca”. Parece ter Garcia conta que chorou copiosamente, quan- assim sido garantida a autenticidade do am- do a plateia gargalhava com as cenas de seu biente festivo no filme com música de Antônio personagem cômico e o amante, “porque eram Carlos Jobim17. dois loucos numa orgia cômica e estabanada”. A nota publicada em Cinelândia, em março A jovem atriz assustou-se com as gargalhadas: de 1959, informa mais um pouco sobre o elenco “Meu Deus, eu estou fazendo ‘bico’. Estou fazen- e demais componentes da produção cinema- do ‘boca-de-flor’ e todo mundo ficava rindo.” tográfica. Pelo menos quatro escolas de samba Camus tentava acalmar a atriz, que assistiu cariocas, Escolas de Samba Capela, Salgueiro, ao filme todo chorando, e, no final, a levou ao Portela e Mangueira, teriam participado do banheiro para “lavar esse rosto e subir no palco carnaval fora de época. O que explica a ade- sorrindo, para você receber as flores” (ALMADA, são alegre ao carnaval fora de época. Ao lado 1995, p. 87). dos já citados Marpessa Dawn e Breno Melo, o Zenaide Andréa, ao escrever para a revista

15 Sem autor identificado. Orfeu do Carnaval. Alterosa, Cinelândia, de setembro de 1959, sugeria quan- Belo Horizonte, 15 de outubro de 1959. Ano XXI, Edição 316, p. 93. 18 Sem autor identificado. Filmes. Cinelândia, Rio de 16 Ibidem. p. 93. Janeiro, março de 1959. 1º quinzena. Fora de Foco, Ano 17 Ibidem. p. 93. VIII, Edição 152.

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to a uma proximidade entre a autora, a atriz na”. Ao saberem tratar-se de uma brasileira e e o público, cujo título dado foi “Nossa amiga carioca indagavam-lhe “se é verdade o que se Léa Garcia”. A articulista afirma queOrfeu do conta da beleza do Rio de Janeiro”. Carnaval abriu o cinema internacional para Depois, o autor conta um episódio da estada a atriz, pois Marcel Camus a incluiu no novo da atriz em Paris, quando encontrou um eleva- Os Bandeirantes, “que se desenrolará entre a dor muito antigo. Léa teria hesitado ao entrar floresta amazônica e a futura capital do país, na máquina, e alguém lhe perguntou se nunca Brasília, com um sentido bastante moderno de vira um elevador. A atriz respondera que não um pioneirismo" (ZENAIDE, p. 72). daquele jeito, e teve que explicar ao interlocutor, Segundo Zenaide Andréa, o cineasta soube que insistia na pergunta se não havia elevadores do trabalho de Léa como “Mira” na peça de no Rio de Janeiro. Diz ainda que as atrizes Léa e Vinícius de Moraes, quando esteve no Brasil pela Lourdes de Oliveira receberam dos parisienses 20 primeira vez, exatamente para a produção do o apelido de “Les Brunes Endiablées”. filme. Ainda assim, colocou a atriz para os tes- O autor destaca como “cômica” uma pas- tes de “Serafina”, papel ganho por Léa Garcia sagem preconceituosa reveladora de um cer- em concorrida disputa. O papel, anteriormen- to complexo de superioridade do interlocutor te representado por Léa Garcia, em Orfeu de francês ao dirigir-se à atriz brasileira e negra Carnaval, a Mira, foi dado à Lurdes de Oliveira, Léa Garcia. Durante a: “estada de Léa em Pa- “outra maravilhosa revelação ‘colored’”. “Nossa ris” a atriz deparou-se com um elevador antigo. amiga Léa Garcia” traz uma síntese da biografia “Quando hesitou pisar no que lhe parecia mais um da atriz, do seu nascimento até a sua atuação esqueleto de elevador, pois todo aberto”. Um de no cinema. O texto também faz referência a seus interlocutores, ao observar a sua hesitação uma das mais marcantes características da indagou-lhe: “se nunca tinha visto um elevador”. atriz: “De olhar tristonho e lânguido, Léa é, no Segundo o articulista, a atriz em sua respos- entanto, uma verdadeira otimista, de espírito ta teria: “lembrado os ultramodernos e rápidos alegre e entusiasta, que sabe amar a vida com elevadores do Rio de Janeiro. Estabeleceu-se acerto e graça.”19 um ligeiro quiproquó, e tendo a pessoa insistido A intersecção entre raça e gênero na nar- para saber se não havia elevadores na Belacap, 21 rativa construída pelo articulista a partir do Léa deu as explicações” . Parece que Léa Garcia, relato da atriz é publicada no caderno “Correio nesta passagem, teria adotado mais uma de suas Feminino”, do jornal Correio da Manhã. Na ma- atitudes de insubordinação, enfrentamento, ou téria, chama atenção o modo como o autor, não para usar as palavras da atriz referindo-se a identificado, descreve a atriz negra egressa do sua experiência de juventude: “indisciplina, con- 22 Teatro Experimental do Negro. Segundo o autor, siderando isso como indisciplina” . “a morena” Léa Garcia “empolgou a Europa e A matéria destaca o encantamento da atriz América do Norte desempenhando o papel da pelas belezas de Paris e registra o seu lamento tão humana e meiga Serafina”. Ela tem uma voz por “não ter podido ver tudo, mas como há pro- suave “e reencontramos aquele olhar inquieto e babilidade dela voltar para filmar com Camus”, bondoso da Serafina”. Dado o seu fenótipo, na a atriz teria esse alento. Em Paris teria visto capital francesa, seus interlocutores a identi- alguns astros e estrelas como Micheline Presle e ficaram como alguém vindo da Martinica e lhe indagavam sobre as notícias do departamento 20 Sem autor identificado. Paris descobre a moderna es- ultramarino francês no Caribe. Para outros, trela Léa Garcia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1960. Correio Feminino, Edição 20.768, p. 5. tratava-se de uma “artista norte-america- 21 Ibidem. p. 5. 22 Entrevista com a atriz Léa Garcia realizada por 19 Sem autor identificado. Filmes. Cinelândia, Rio de Júlio Cláudio da Silva, nas dependências do SATED- Janeiro, março de 1959. 1º quinzena. Fora de Foco, Ano -RJ, Centro da Cidade do Rio de Janeiro, no dia 06 de VIII, Edição 152. p. 72. Julho do ano de 2015.

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Jeanne Moreau e Sidney Poitier, Vera e Georges mais e se tornava mais bonito a meus olhos. Clouzot e encontrado os brasileiros moradores No fim, já estava morrendo de saudades”26. da Cidade Luz, pelos quais foi reconhecida. “Nas A matéria indica haver uma expectativa so- ruas, ao meio dos que pediram-lhe autógrafos bre o retorno de Léa Garcia à Paris, em função havia brasileiros ali residindo”23. da possibilidade de sua atuação no próximo Nesta viagem à Paris, Léa Garcia conheceu filme de Camus. “Se Camus conseguir pôr de a Judith Aucagos, a dubladora da voz francesa pé o seu próximo filme conforme o estava pla- da Serafiana de “Orfeu do Carnaval”. Mais uma nejando, Léa Garcia irá a Paris em abril de 1961 vez escolhe o mesmo termo utilizado na descri- para participar do elenco”. O texto também ção de Léa Garcia para apresentar o fenótipo revela qual era a provável identidade artística da artista nascida em Guadalupe. “Chama-se de Léa Garcia em 1960. “Mas o grande sonho de Judith Aucagos, é também morena, mas da Léa é trabalhar no teatro, no Brasil, em peças Guadalupe é artista, e tem muita sensibilidade. interessantes com enredos onde ela possa re- Léa ficou satisfeita em conhecer a moça que presentar”. Com menos de dez anos como atriz emprestou a sua voz ao personagem”24. e após a reconhecida e prestigiada atuação em seu primeiro filme, Léa Garcia considerava-se A publicação deixa claras indicações de ter uma atriz de teatro27. contado com uma escala em Portugal, o roteiro da viagem com destino à Paris. Léa Garcia teria Os debates sobre a contribuição histórica das gostado de Paris e desejava retornar à cidade. populações e culturas de origem africana na O articulista parece reproduzir uma descrição formação social brasileira e a refutação aca- da atriz sobre a cidade com “ruas estreitas, dêmica contra o racismo podem ser localizadas, pracinhas”; ao avistar a Praça da Concórdia de modo sistemático, na década de 1930 e 1940 e a Avenida dos Campos Elíseos, a atriz ficou (BRASIL, 2004, p. 36). Sendo, portanto, anterior às “deslumbrada e surpresa”. Parece ter sido curto determinações estabelecidas pela Lei 10.639/03, o tempo de viagem, pois a atriz que sonhava ter responsável pela alteração de parte da LDB (Lei. sido escritora: “Adorou os cais do Sena, onde 9.394 de 20 de dezembro de 1996), no que se refere há centenas de bancas vendendo livros que às determinações estabelecidas pelo artigo “26- gostaria de folhear horas a fio”25. A” sobre a inclusão nos conteúdos programáticos das escolas do ensino fundamental e médio do Na seção “Interesse dos franceses”, o ar- estudo da História da África e dos africanos, a ticulista deixa claro ser a matéria redigida a luta dos negros no Brasil, a cultura negra bra- partir da entrevista com a atriz, mas antes sileira e o negro na formação da sociedade na- apresenta as suas impressões sobre ela. “Léa cional, resgatando a contribuição do povo negro é risonha e fala juntando as mãos com frequ- na área social, econômica e política e pertinentes ência como para rezar. É alta, esguia e muito à História do Brasil. Assim, deriva da legislação mais bonita do que nos filmes”. E teria ficado federal propostas para o estudo de cunho bio- impressionada com o interesse dos franceses gráfico sobre a contribuição de negros e negras pelo Rio de Janeiro, o café e a recém-inaugu- nos processos de rupturas e transformações rada Brasília. “- Nós já estávamos começando históricas do Brasil, entre o quais a criação e a ficar com saudade e à medida que foram nos ampliação de temáticas para atrizes e atores perguntando e eu respondendo, contando as negros no Brasil. maravilhas de minha terra, tudo crescia ainda Parece-nos profícuo o estudo sobre a tra- jetória de atrizes egressas do Teatro Experi- 23 Sem autor identificado. Paris descobre a moderna es- trela Léa Garcia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 de 26 Ibidem. p. 5. dezembro de 1960. Correio Feminino, Edição 20.768, p. 5. 27 Sem autor identificado. Paris descobre a moderna es- 24 Ibidem. p. 5. trela Léa Garcia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 de 25 Ibidem. p. 5. dezembro de 1960. Correio Feminino, Edição 20.768, p. 5.

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mental do Negro, como Léa Garcia. Ao fazê-lo, estrela de Orfeu Negro como “morena”. Talvez contemplamos algumas das propostas da lei fosse um termo mais palatável para o leitor, 10.639 e das Diretrizes Curriculares Nacionais possivelmente branco. Ao que parece, o leitor para a Educação das Relações Étnico-Raciais do periódico não encontrou a descrição negra para o Ensino de História e Cultura Afro-Bra- na referência sobre a segunda mulher egressa sileira e Africana. Embora estejamos fazendo do Teatro Experimental do Negro a se profis- um estudo de cunho biográfico de uma mulher sionalizar. Não parece provável que após anos não indicada por este documento, esse tipo de atuação junto a uma das mais importantes de trajetória nos possibilita iluminar as redes entidades do movimento negro brasileiro, a atriz de aliança estabelecidas no âmbito do TEN e Léa Garcia tenha concedido uma entrevista por seus egressos (BRASIL, 2004, p. 9-28). E para o articulista carregada de eufemismos percebermos como seus integrantes estavam ou preconceitos racistas sobre si e sobre a du- inseridos em uma ampla rede de artista e inte- bladora de seu personagem28. lectuais que, em certa medida, compartilhavam iguais expectativas de luta por meio de uma Referências arte antirracista. Não por acaso, o autor de Orfeu da Conceição e do argumento de Orfeu ALBERTI, V. Fontes orais: História dentro da Negro incluiu o TEN em um espetáculo no Thea- história. In: PINSKY, C. B. Fontes históricas. São tro Municipal do Rio de Janeiro. No mesmo palco Paulo: Contexto, 2005. p. 155. onde Ruth de Souza estreou em 8 de maio de ALMADA, S. Damas Negras: sucesso, lutas, discri- 1945, como integrante do TEM, em O Imperador minação: Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de Souza, Jones. O mesmo diplomata ofereceu a atriz Zezé Motta. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p. 87. uma carta como salvo conduto quando esta foi estudar teatro nos Estados Unidos, em 1951. AQUINO, F. de. Uma lenda negra num morro ca- rioca. O Semanário, Rio de Janeiro, 30 ago.-6 set. As narrativas orais são reveladoras da vi- 1956. Ano 1, Número 22. são sobre os espetáculos como um todo ou da atuação de uma atriz, em particular. Por outro BARBOSA, M. Jornalismo e História: um olhar lado, a atuação de Léa Garcia encantou o jovem e duas temporalidades. In: NEVES, L. M. B. das; e futuro cineasta e acadêmico, Cacá Diegues, MOREL, M. (org.). História e Imprensa: homenagem mas a sua primeira atuação no cinema pare- à Barbosa Lima Sobrinho – 100 anos. Anais do ce ter sido forte o suficiente para lhe garantir Colóquio. Rio de Janeiro: UERJ, 1998. uma indicação ao prêmio de melhor atriz no BOURDIEU, P. A ilusão biográfica.In : FERREIRA, Festival de Cannes. M. de M.; AMADO, J. (org.). Uso e abusos da his- Também me parece reveladora das desi- tória oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. gualdades de gênero ou de um certo racismo BRASIL. LEI Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. as narrativas contidas nas matérias dos peri- Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu- ódicos. Seja quando um articulista não revela a cação das Relações Étnico-Raciais e para o profissão de modista bem-sucedida, oficio pelo Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e qual Léa Garcia muito se orgulhava, seja quando Africana, Brasília, 2004, p. 36. classifica como “morena”, uma atriz egressa do DOMINGUES, P. Movimento. Negro Brasileiro: combativo e antirracista Teatro Experimental alguns apontamentos históricos. Revista Tempo, do Negro. O articulista utilizou igual qualifi- Niterói. 2007. cativo étnico racial adotado para referir-se à Léa Garcia e a dubladora da sua personagem. Muito provavelmente, assim como a brasileira, 28 Sem autor identificado. Paris descobre a moderna es- a atriz de Guadalupe também é negra. Parece trela Léa Garcia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 de fazer sentido, para o articulista, descrever a dezembro de 1960. Correio Feminino, Edição 20.768, p. 5.

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