Z Dossiê Prof. Júlio Cláudio da Silva Relações Raciais e de Professor Adjunto da Universidade do Estado do Amazonas, Centro Gênero nas Telas do de Estudos Superiores de Parintins, e Professor Cinema Brasileiro nas Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Narrativas Sobre a do Amazonas. Atuação de Léa Garcia em Orfeu do Carnaval (1950-1960)1 Resumo O universo das artes cênicas pode ser um lócus privilegiado de observação da presença da variável raça e gênero na sociedade brasileira? A análise, em perspectiva histórica, da trajetória de uma atriz negra de teatro, cinema e televisão, pode iluminar a presença do racismo e do antirracismo na História do Brasil? Essas e outras perguntas podem ser respondidas quando visitamos a trajetória da atriz de teatro, cinema e televisão e ativista do movimento social negro, a partir das narrativas contidas nas entrevistas e periódicos, sobre os primeiros anos de atuação de Léa Lucas Garcia, na década de 1950. Léa Garcia atuou em sete montagens do Teatro Experimental do Negro dirigida por Abdias Nascimento, no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre 1952 e 1957. O ano de 1956 marca o início do seu trabalho como atriz profissional no teatro, ao participar da montagem de Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes. Orfeu do Carnaval (1957), dirigido por Marcel Camus, foi a sua estreia no cinema, graças a sua interpretação nesta obra, foi agraciada com o segundo lugar na premiação de melhor atriz no Festival de Cinema de Cannes. Palavras chave: Léa Garcia; Relações raciais; Orfeu do Carnaval 1 O artigo apresenta resultados parciais dos projetos de pesquisa “Relações ra- ciais e de gênero nas telas do cinema brasileiro: a trajetória de Léa Garcia entre Orfeu do Carnaval e O Forte (1957-1973)”, fomentado pela bolsa de produtivida- de de pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas, conforme processo nº 2018/00016109 e portaria 141/2019 e “Relações raciais, gênero e memória: a traje- tória de Léa Garcia entre o Teatro Experimental do Negro e Ganga Zumba (1951- 1963)”, desenvolvido no âmbito do estágio de pós-doutorado no Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Edição 03 | Agosto de 2020 Abstract nos primeiros anos de sua atuação como atriz profissional na década de 1950. Can the universe of performing arts be a Na década de 1950, Léa Garcia atuou em privileged locus for observing the presence of sete montagens do TEN dirigida por Abdias the variable race and gender in Brazilian society? Nascimento, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Can the analysis, in historical perspective, of the Os espetáculos foram, a saber: Rapsódia Negra trajectory of a black actress in theater, cinema (1952), roteiro de Abdias Nascimento; O Filho and television, illuminate the presence of racism Pródigo, de Lúcio Cardoso (2ª montagem em and anti-racism in the History of Brazil? These and other questions can be answered when we visit 1953 e 3ª montagem em 1955); Festival O’Neill, the trajectory of the actress of theater, cinema com cenas de Todos os filhos de Deus têm asas and television and activist of the black social e O Imperador Jones, e Onde está marcada movement, from the narratives contained in the a cruz na íntegra (1954), de Eugene O’Neill; e interviews and periodicals, about the first years Sortilégio (Mistério Negro) (1957), de Abdias of Léa Lucas Garcia’s performance, in the decade Nascimento. O ano de 1956 marca o início da of 1950. Léa Garcia performed in seven plays atuação profissional da atriz Léa Garcia com at the Teatro Experimental do Negro directed sua participação na montagem de Orfeu da by Abdias Nascimento, in Rio de Janeiro and Conceição, de Vinícius de Moraes3. São Paulo, between 1952 and 1957. The year 1956 Em uma longa carreira com mais de seis dé- marks the beginning of her work as a professional cadas, Léa Garcia tem atuado no cinema, teatro actress in the theater, by participating editing e televisão. Um de seus personagens mais co- by Orfeu da Conceição, by Vinícius de Moraes. nhecidos foi a escrava Rosa na novela A escrava Orpheus of Carnival (1957), directed by Marcel Isaura (1975), da TV Globo, exibida em dezenas Camus, was his debut in cinem;a, thanks to his de países. Por sua atuação em Orfeu do Carna- interpretation in this work, he was awarded the val (1957), dirigido por Marcel Camus, ficou em second place in the award for best actress at segundo lugar como Melhor Atriz no Festival de the Cannes Film Festival. Cinema de Cannes. Venceu vários prêmios, como Keywords: Léa Garcia; Race relations; o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Grama- Orfeu do Carnaval do, em 2004, o Tatu de Prata de Melhor Atriz, na Jornada Internacional de Cinema da Bahia, em Introdução 2007, e Melhor Atriz no Festival de Natal, em 2009. Recebeu também diversas homenagens, como a O que pode revelar, o estudo da trajetória Medalha Pedro Ernesto, da Câmara Municipal do de uma atriz negra, sobre o racismo e o antir- Rio de Janeiro, em 1994; a Medalha Comemorativa racismo no Brasil? Em que medida o universo de 110 anos de fundação da Academia Brasileira das artes cênicas pode ser um lócus privile- de Letras como Personalidade Realizadora do giado de observação da presença da variável País, em 2007; o Golfinho de Ouro, na categoria raça e gênero na sociedade brasileira? Essas Cinema, do Conselho de Cultura do Estado do e outras perguntas podem ser respondidas Rio de Janeiro, em 2007; e Menção Honrosa no quando analisamos aspectos da trajetória da Festival de Gramado, em 20084. atriz de cinema, teatro, televisão e ativista do movimento social negro2, Léa Lucas Garcia, Rastros e Biografia 2 Na década de 1950, atuou como atriz no Teatro Expe- rimental do Negro e na década de 1980 atuou junto ao Embora tenhamos como objeto de análise Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Ver: Curriculum Vitae de Léa Garcia. Acervo Privado Léa a trajetória profissional da atriz de cinema, Garcia/Grupo de Estudos Históricos do Amazonas. O IPCN foi fundado no Rio de Janeiro, em 1976, como uma 3 Curriculum Vitae de Léa Garcia. Acervo Privado Léa das ações antirracistas no período da ditadura militar, Garcia/Grupo de Estudos Históricos do Amazonas. anterior ao surgimento do Movimento Negro Unificado. 4 Idem. 42 Pluri. Relações África-Brasil: cotidiano, sociedade e experiências religiosas, São Paulo, n. 3, p. 41 - 52, ago. 2020. Z Dossiê teatro e televisão, Léa Garcia, especialmente, nos palcos e/ou telas de cinema, por vezes, das a sua atuação no filme Orfeu do Carnaval, o coxias ou set de filmagens, enfim, dos bastidores presente texto centra-se tanto na análise de das produções artísticas. críticas e notícias sobre os trabalhos nos quais Desta forma, parece atual o caráter inova- a atriz atuou, publicadas em periódicos, quanto dor dos periódicos, atribuído por Tânia Regina em entrevistas realizadas com colaboradores de Lucas (2005), ao uso dos periódicos como contemporâneos às referidas produções artís- fonte. Especialmente ao destacar as inovações ticas. Buscamos assim recuperar aspectos do historiográficas trazidas pela terceira geração contexto histórico e social no qual a atriz esteve dos Annales, na década de 1970, que tornaram inserida na década de 1950 e nos orientar pelo possível o uso dessas fontes em pesquisa his- alerta feito por Pierre Bourdieu em relação aos tórica, por meio da adoção de novos métodos usos das trajetórias e biografias. de análise e crítica aos documentos históricos, Bourdieu sublinha as críticas a esses estu- além do surgimento de novas concepções e dos no que diz respeito ao papel do sujeito e ao perspectivas sobre as fontes jornalísticas. lugar do indivíduo no contexto social analisado. Nessa seara, Marialva Barbosa (1998) argu- Para ele, os estudiosos das biografias devem menta que os periódicos são apreendidos como enfrentar o desafio de não cair em uma história fontes para observação também de elemen- cronológica e pouco problemática. Vale a pena tos do cotidiano social, do coletivo, tornando sublinharmos o alerta dado por Pierre Bourdieu a imprensa uma importante ferramenta para ao lembrar que enclausurar a existência em o trabalho do historiador, abrindo novas pos- busca de uma improvável unidade de sentido sibilidades para a construção de objetos de e enquadrá-la no sentido de uma mera suces- pesquisa. Assim como toda e qualquer fonte, são de acontecimentos históricos coerentes é os periódicos não são o registro da verdade uma ingenuidade. Para Bourdieu, o essencial é sobre aquilo que é analisado: é imprescindí- reconstruir o contexto em que age o indivíduo vel dialogar com outras fontes, entrecruzar (BOURDIEU, 1996). informações, problematizar os silêncios e as O estudo sobre uma trajetória profissional omissões. E, principalmente, manter um olhar recuada, dos artistas de cinema e teatro, nas crítico sobre a suposta objetividade da notí- décadas de 1940 ou 1950 oferecem alguns de- cia, “vista como uma falácia, até para o mais safios, peculiares à História do Tempo Presente ingênuo dos profissionais”, pois o jornalismo (MOTTA, 2012). Transcorrido mais de meio século seleciona, hierarquiza, prioriza as informações, das realizações das obras analisadas, é cada vez fazendo “uma seletiva reconstrução do pre- mais difícil localizarmos colaboradoras que par- sente” (BARBOSA, 1998, p 88). ticiparam das apresentações dos espetáculos ou “Escrever a história das mulheres” é retirá- exibição dos filmes, seja na condição de membro, las “do silêncio em que elas estavam confinadas”. seja de espectador. Ainda que os localizemos para Ao enfrentar este tema, a pesquisadora Michelle uma entrevista com a metodologia da história Perrot (2007) deparou-se com uma questão: oral (ALBERTI, 2005), seus processos de constru- “Mas por que esse silêncio? Ou antes: será ção de memória e seleção sobre o que lembrar que as mulheres têm uma história?”.
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