DOGMA FEIJOADA A invenção do cinema negro brasileiro

Noel dos Santos Carvalho Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas – SP, Brasil – E-mail: [email protected] Petrônio Domingues Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju – SE, Brasil. E-mail: [email protected]

DOI: 10.17666/339612/2018

Introdução ada – Mostra da Diversidade Negra foram exibi- dos: Dia de alforria (Zózimo Bulbul, 1981), Abá No dia 17 de agosto de 2000, o jornal Folha de (Raquel Gerber e Cristina Amaral, 1992), Almoço S. Paulo noticiava que o Dogma Feijoada prometia executivo (Marina Person e Jorge Espírito Santo, ser uma das atrações do 11º Festival Internacional 1996), Ordinária (Billy Castilho, 1997), O catedrá- de Curtas Metragens de São Paulo, ao propor o de- tico do samba (Noel Carvalho e Alessandro Gamo, bate sobre a imagem do negro no cinema brasileiro, 1999) e Gênesis 22 (do próprio Jeferson De, 1999) tema novo na programação do evento, que já havia (Folha de S. Paulo, 2000a). exibido, em 1997, na seção Foco, obras de cineastas Essa foi a primeira de uma série de reportagens negros de vários países. que esse jornal publicou sobre o Dogma Feijoada. Assim, o manifesto Gênese do Cinema Negro Mas, em que consistia o manifesto Gênese do Cine- Brasileiro, escrito pelo jovem cineasta Jeferson De ma Negro Brasileiro? Aliás, o que seria esse movi- (nome artístico de Jeferson Rodrigues de Rezende), mento que preconizava um “debate sobre a imagem então estudante do curso de cinema na Universidade do negro no cinema brasileiro”? Qual a sua propos- de São Paulo (USP), foi lido e debatido em uma das ta estética, política e conteudística? E quais seriam sessões do festival. Seis filmes (entre curtas e docu- suas implicações na produção cinematográfica de mentários) integravam o programa Dogma Feijo- Jeferson De, um dos idealizadores do Dogma Feijo- ada, e de outros diretores que se autoproclamavam Artigo recebido em 18/08/2016 afro-brasileiros? Como esse movimento definiu o Aprovado em 22/08/2017 cinema negro e foi pautado por setores da impren- RBCS Vol. 33 n° 96 /2018: e339612 2 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96 sa? A finalidade deste artigo é justamente responder deando uma forte crise no setor. Em sintonia com a essas questões. Longe de esgotar o assunto, o que o quadro econômico do país, as atividades cine- nos interessa aqui é tecer uma discussão preliminar matográficas só readquiriram dinamismo em me- de aspectos da produção contemporânea dos cine- ados da década de 1990, momento em que as leis astas negros brasileiros. de incentivo fiscal à cultura – Lei Rouanet e a Lei Desde o final da década de 1990, a produ- do Audiovisual – surtiram efeito e impulsionaram ção de filmes de diretores que assumem seu per- as atividades do setor audiovisual. Essa é a fase da tencimento como sujeitos vinculados à população “retomada” do cinema nacional, quando novas pe- afro-brasileira cresce e começa a ocupar espaço na lículas despertaram a atenção do público e da im- cena artístico-cultural, ao mesmo tempo que as de- prensa, como Alma corsária (Carlos Reichenbach, mandas dos movimentos sociais negros e da cha- 1994), A terceira margem do rio (Nelson Pereira mada “classe média negra” – setor que reúne um dos Santos, 1994), Veja esta canção (Cacá Diegues, número ascendente de profissionais com formação 1994), Carlota Joaquina, princesa do Brasil (Carla superior, buscando afirmar um gosto de classe e es- Camurati, 1995), O quatrilho (Fábio Barreto, 1995), tilo de vida sofisticado no universo de consumo – O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e ampliam-se e adquirem visibilidade institucional, Central do Brasil (Walter Sales, 1998). o que tem contribuído para a construção de um Uma das características do cinema da reto- ambiente favorável ao multiculturalismo e à diver- mada é a diversidade na estética, na linguagem e sidade étnico-racial nos meios audiovisuais (Veja, no modo de realização dos filmes. As produções 1999). Faltam, entretanto, reflexões acadêmicas acenam para a multiplicidade de narrativas e plu- voltadas a essa nova produção fílmica. Para além ralidade temática, dedicadas amiúde a explorar os dos apontamentos de Robert Stam (2008), Noel diferentes nichos do mercado cinematográfico na- dos Santos Carvalho (2005, 2014), Pedro Vinicius cional. Pragmáticas ou de estilo pop, as novas pro- Lapera (2007), Mahomed Bamba (2012) e Teresa duções apresentavam uma proposta de sétima arte Cristina Matos (2016), são raras as pesquisas que se comprometida, sobretudo, com o espetáculo e as debruçam sobre o processo de racialização do cine- regras do mercado, sem preocupação de investir no ma brasileiro contemporâneo. experimentalismo nem contestar o establishment. As mazelas e contradições da sociedade brasileira, por exemplo, lhes servem apenas de ornamento, O audiovisual em preto e branco não são discutidas.1 Tal abordagem levou a pesqui- sadora e crítica Ivana Bentes a argumentar que, no Antes, porém, de responder às indagações rela- cinema da retomada, a “estética da fome” – uma tivas ao Dogma Feijoada, faz-se necessário recons- alusão ao ideal de Glauber Rocha de produção de tituir o panorama do audiovisual no momento em um cinema com baixo orçamento, porém engajado, que esse movimento floresceu. tanto com as causas sociais e políticas, quanto com A redemocratização do Brasil reacendeu a es- o processo de renovação da linguagem cinemato- perança no desenvolvimento da indústria cinema- gráfica – foi substituída pela “cosmética da fome”, tográfica nacional. O tema mobilizou a atenção dos um discurso segundo o qual os filmes, ambientados profissionais do setor. Entretanto, não demorou para em cenários de carências, visavam ao entretenimen- essa expectativa ser frustrada, pois, quando assu- to e ao espetáculo agradável de se ver e não a uma miu a presidência da República em 1990, Fernando reflexão contundente (Bentes, 2001, 2007). Collor de Mello decretou a extinção da Embrafil- Sem a perspectiva, portanto, de transmitir me – a empresa estatal responsável por patrocinar mensagens de conscientização e politização da so- a produção e garantir a distribuição e exibição dos ciedade – tal como fizera o Cinema Novo (Rocha, filmes nacionais. Os danos dessa medida para o ci- 2004; Xavier, 2001) –, os filmes brasileiros con- nema brasileiro foram devastadores. A produção de temporâneos irão se conectar à nova ordem mun- novos filmes foi reduzida drasticamente, desenca- dial (marcada pelo fim do socialismo na União So- DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO 3 viética, pela queda do muro de Berlim, pelo triunfo e verificou que a discriminação contra os “negros” e dos projetos neoliberais etc.) tendendo a se esvaziar “mestiços” na publicidade brasileira era cristalina. A de sentidos ao adotar técnicas e narrativas cinema- discriminação racial se manifestava tanto no menor tográficas tradicionais, pasteurizadas, para explorar tempo de exposição desse segmento populacional, melodramas, relações familiares e de amizade, ten- quanto na sua inferioridade numérica – a proporção sões do cotidiano, mundo da favela e a violência ca- de comerciais com participação de negros variava en- racterística da vida nas grandes cidades brasileiras. tre as emissoras, de 4,7% a 17,8%. A pesquisa cons- Todavia, essa nova fase do cinema nacional – tatou que a recorrência de papéis estereotipados (em- de euforia e novas perspectivas de produção, dis- pregadas domésticas, posições subalternas em geral, tribuição e exibição, inclusive no mercado interna- esportistas e músicos) era um padrão típico de repre- cional – não implicou uma mudança significativa sentação dos negros na publicidade. Além disso, os nas tradicionais imagens e representações sobre afro-brasileiros apareciam duas vezes mais no papel o negro. Quando o ensaísta Robert Stam concluiu o de coadjuvantes do que no papel de protagonistas livro Multiculturalismo tropical, em 1995, ele no- (Folha de S. Paulo, 1995). tou que a sétima arte no país parecia sofrer de certo No decorrer da segunda metade da década de “embranquecimento” (Stam, 2008, p. 501), qual 1990, houve pequeno aumento da presença negra seja, os negros geralmente ficavam ausentes dos fil- na televisão e no cinema, como modelo cultural e mes ou somente apareciam em papéis secundários, estético. Todavia, nada que fosse tão animador em ao passo que as pessoas brancas eram super-repre- termos quantitativos e qualitativos, algo quase anó- sentadas, ocupando o primeiro plano. Havia pouca dino diante do peso real desse segmento popula- atenção para o multiculturalismo e a diversidade cional no Brasil. Segundo Joel Zito Araújo, a “ação racial, quer no cinema brasileiro, quer no audiovi- politicamente correta de publicitários e empresários sual como um todo. não ultrapassou os marcos de uma sub-representa- Na televisão, a presença de atores e persona- ção do personagem negro, que, em média, apare- gens negros nem de longe refletia a proporção desse cia cinco vezes menos que os modelos brancos nas segmento populacional no país. Entre 1991 e 1994, propagandas” (Araújo, 2000a, p. 89).2 Fato é que 72 novelas traziam personagens negros, no entanto, o imaginário racial de produtores, cineastas, dire- oscilando entre papéis estereotipados e subalter- tores, autores e patrocinadores tendia a mudar len- nos e com poucas possibilidades de interpretação tamente, muito em decorrência das polêmicas, das de personagens heroicos – no caso das novelas am- controvérsias e dos avanços no campo dos direitos bientadas no período da escravidão –, sem falar que da população negra. nenhuma, do conjunto dessas novelas, tratou das Assim, as mudanças que se operaram no perío- tensões raciais na sociedade brasileira diretamente. do não estavam relacionadas somente às iniciativas Somente em 1995, A próxima vítima trouxe, pela internas do setor audiovisual. Várias evidências de- primeira vez, uma família de classe média negra monstravam um salto nas ações do movimento ne- em horário nobre. Não é de estranhar, assim, que a gro. A preocupação com os meios de comunicação população afro-brasileira estivesse invisibilizada em era antiga e constante na agenda da militância afro- dois terços dos programas dramatúrgicos levados ao -brasileira, que, em vários momentos, pautou nas ar nas emissoras de televisão no período (Araújo, instâncias do Estado e da sociedade civil a necessi- 2000a, pp. 79, 85). dade de diversidade racial na mídia, em geral, e da A mensagem publicitária também manejou ressignificação da imagem do negro, em particular. uma política racial marcada pela ausência de negros, A compreensão de que apenas um esforço sistemá- quando não pela reificação de estereótipos desabo- tico dos próprios afro-brasileiros no seio do audio- nadores desse segmento populacional. Em agosto visual poderia garantir um futuro diferente levou a de 1995, o instituto de pesquisa Datafolha acompa- debates em torno das estratégias de pressão e inser- nhou os intervalos comerciais de 115 horas de pro- ção no setor. Nesse sentido, seminários, encontros e gramação das emissoras de sinal aberto de São Paulo congressos do movimento negro foram convocados 4 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96 para discutir a temática, desdobrando-se em pro- programação foi aberta com um debate sobre a postas de cotas raciais,3 representações na Justiça4 imagem do negro no cinema nacional, seguido pela e mobilizações que até sensibilizaram parte da opi- exibição dos filmes já citados. Na ocasião, Jeferson nião pública. Isso não significa dizer que esse mo- De tornou público o manifesto que pautava o Dog- vimento tenha conseguido influenciar diretamente ma Feijoada – Gênese do Cinema Negro Brasileiro a configuração do audiovisual, mas certamente suas –, no qual preconizava sete exigências (ou man- denúncias e proposições ecoaram no imaginário ra- damentos) fundamentais para a produção de um cial brasileiro (Ramos, 2002; Telles, 2003). cinema negro: (1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar rela- Dogma Feijoada cionada com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-ur- Foi nesse contexto de retomada da produção ci- gentes; (5) personagens estereotipados negros (ou nematográfica nacional, por um lado, e de problemas não) estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar relacionados às desigualdades raciais no setor audio- o negro comum brasileiro; (7) super-heróis ou ban- visual, por outro, que produtores, documentaristas e didos deverão ser evitados.9 curtametragistas negros de São Paulo (Jeferson De, Na edição de 30 de agosto de 2000, o jornal Rogerio de Moura, Ari Candido, Noel Carvalho, informa: “a reivindicação por maior espaço para ci- Billy Castilho, Daniel Santiago, Lilian Solá Santiago neastas negros no Brasil imprimiu a tônica do deba- e Luiz Paulo Lima) passaram a questionar as imagens e te ‘Dogma Feijoada: – manifesto acerca da imagem representações de seu grupo racial no cinema brasi- do negro no cinema brasileiro’”. Além de Jeferson leiro. Desde 1998, eles vinham mantendo contatos De, participaram da mesa o rapper Xis, vencedor informais, trocando ideias e tomando conhecimento na categoria rap do Video Music Brasil em 2000 dos trabalhos e projetos uns dos outros. Nesse ano, – evento da MTV que premiava os melhores video- por exemplo, Billy Castilho teve seu curta Ordinária clipes do ano –, e o escritor Ferréz, que havia publi- (1997) selecionado e exibido no 9º Festival Interna- cado naquele ano seu primeiro livro, Capão pecado, cional de Curtas Metragens de São Paulo. Em 1999, acerca da periferia de São Paulo. A mediação do foi a vez de Jeferson De, Noel Carvalho e Alessandro debate foi feita pelo jornalista Sérgio Rizzo, críti- Gamo participarem do mesmo festival. O primeiro, co de cinema e então colaborador da Folha. Jefer- com o filmeGênesis 22 (1999) e os dois últimos co- son De iniciou expondo os pontos que norteavam dirigindo O catedrático do samba (1999). Também o manifesto. “É preciso evitar personagens negros em 1999, Jeferson De e Daniel Santiago organiza- estereotipados”, afirmou. “No período da chancha- ram o 1º Encontro de Realizadores e Técnicos Ne- da havia Grande Otelo, que só interpretava preto gros, no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São burro assexuado. Na minha infância, meu ídolo era Paulo, no qual se discutiu a possibilidade de haver o Mussum, que fazia um negro bêbado que fala- um cinema negro. Compareceram ao encontro afro- va errado, isso é um absurdo. Em Orfeu, não me -brasileiros de perfis heterogêneos: desde militantes identifiquei quando vi aquele sambista compondo da cultura e do audiovisual (como o poeta Arnaldo num laptop. Tem algumas coisas que me incomo- Conceição e o fotógrafo Luís Paulo Lima), passando dam no filme [...]”. Jeferson De comentou também pelos realizadores neófitos (como Rogério de Mou- sobre a realidade da indústria brasileira de cinema ra e Lilian Solá Santiago), até os mais experientes, negro comparada à dos Estados Unidos, tomando como Agenor Alves,5 Valter José,6 Celso Prudente7 e como exemplo o diretor Spike Lee. “Quando o Spi- Ari Cândido.8 ke Lee precisou de dinheiro para fazer o Malcolm Em 2000, entra em cena o Dogma Feijoada X, ele ligou para o Michael Jordan. Se eu ligar para – Mostra da Diversidade Negra, no 11º Festival o Vampeta [então jogador de futebol] pedindo di- Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, nheiro para complementar o meu curta, eu duvido sessão copatrocinada pela Folha de S. Paulo, cuja que ele vá dar algum”.10 O rapper Xis e o escritor DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO 5

Ferréz acrescentaram ao debate sua experiência na O nome Dogma Feijoada se inspirou no Dog- produção independente de música e literatura, res- ma 95, um movimento cinematográfico animado pectivamente, e disseram que estavam conquistan- a partir de um manifesto publicado em Copenha- do espaço aos poucos na indústria cultural (Folha gue, na Dinamarca, em 1995. Seus idealizadores, de S. Paulo, 2000b). os cineastas dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Cerca de dez dias depois do evento, o mesmo Vinterberg, preconizavam um cinema mais realista jornal (10 set. 2000) publicou uma matéria sobre (ou seja, sem artificialismo) e menos comercial, fora “a difícil arte de filmar” no Brasil e não perdeu a dos moldes de Hollywood. O manifesto do Dogma oportunidade de se perguntar: aqui “cinema ne- 95 estabelecia dez controvertidas regras de cunho gro, seria possível? Jeferson De, cineasta e mentor técnico e estético, também conhecidas como “votos do Dogma Feijoada – Manifesto da gênese de um de castidade” (Trier e Vinterberg, 2000). Esse mo- cinema negro brasileiro acha que sim”. Mas como vimento ecoou no meio cinematográfico brasileiro, foi concebido aquele movimento? De acordo com para não dizer no internacional. Todos os filmes o jornal, De passou “dois anos pesquisando a parti- que recebiam o selo Dogma 95 obedeciam rigoro- cipação de atores e personagens negros vistos sob a samente às famigeradas regras. ótica dos cineastas brancos que procuraram dar voz Já o vocábulo “feijoada”, que aparecia no nome aos negros”. Foi a partir daí que teria tido a ideia do manifesto nacional, conferia um tom provoca- de procurar reverter essa situação, investindo numa dor e jocoso ao movimento de cineastas negros. “nova filmografia, autorreferente, que olhasse para No melhor sentido tropicalista, o Dogma Feijoada o próprio umbigo”. Seria uma “biografia do negro procurava canibalizar o Dogma europeu. Se este brasileiro em película, já iniciada por talentos ‘invi- primava pela austeridade e sisudez, aquele remetia síveis’, como o cineasta Zózimo Bulbul”. à maleabilidade e plasticidade, significando a pró- De fato, o manifesto foi fruto dos estudos fei- pria inversão de qualquer sistema rígido (Carva- tos por Jeferson De entre 1997 e 1998, quando era lho, 2014). Afinal, nada menos dogmático que a graduando do curso de cinema na Escola de Co- feijoada, considerada um prato típico da culinária municação e Artes (ECA) da USP e desenvolveu brasileira, que amalgama ingredientes de diferentes uma pesquisa de iniciação científica sobre diretores tradições culturais.11 A ambiguidade da expressão cinematográficos negros brasileiros. A pesquisa lhe Dogma Feijoada saltava aos olhos, o que, de modo possibilitou conhecer a trajetória dos principais ci- travesso, contribuiu para divulgar o movimento. neastas afro-brasileiros e estabelecer contato direto Quando Jeferson De redigiu o manifesto em com vários deles, como Zózimo Bulbul, Agenor 1999, apresentou-o para alguns professores da Alves, Waldir Onofre, Ary Candido, Quim Negro ECA, especialmente para Jean-Claude Bernardet (Joaquim Teodoro), entre outros. Ao mesmo tem- e Carlos Augusto Calil. Os produtores Zita Car- po que estudava cinema, Jeferson De era editor na valhosa, Francisco César Filho, Daniel Santiago e Cinematográfica Superfilmes, de propriedade de o documentarista Noel Carvalho leram a primeira Zita Carvalhosa, a produtora de cinema que diri- versão do documento e discutiram o seu conteúdo. gia o Festival Internacional de Curtas Metragens Ainda 1999, Jeferson De e Daniel Santiago promo- de São Paulo, o maior do gênero na América La- veram um encontro sobre cinema negro no MIS- tina. Quando concluiu o primeiro curta, Gênesis -SP, ocasião na qual o manifesto foi submetido ao 22 (1999), Jeferson De teve seu filme selecionado escrutínio dos realizadores negros presentes, que o e exibido na décima edição do festival. Assim, foi discutiram e decidiram assiná-lo. E, assim, a produ- a partir das reflexões suscitadas pela pesquisa sobre ção do 11º Festival Internacional de Curtas incluiu as imagens e representações raciais no cinema bra- o Dogma Feijoada na programação e reservou uma sileiro, de um lado, e da experiência de direção e sessão especial para debatê-lo. Próximo ao lança- filmagem, de outro, que ele encampou o desafio de mento do manifesto, a Folha de S. Paulo fez cha- buscar definir os parâmetros de um cinema negro madas semanais em notas que tinham títulos suges- no Brasil e lançar o Dogma Feijoada. tivos: “Dogma Feijoada lança polêmica”, “Temática 6 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96 negra está no Dogma Feijoada”. No dia do evento, O Dogma Feijoada, com seu tom provocativo o Jornal do Brasil, sediado no , repor- ao mainstream, desencadeou reações polêmicas e di- tou-se aos “jovens diretores” que lançariam em São vergências múltiplas. Suas propostas foram vistas, Paulo “mandamentos” para incentivar a produção ora como mera imitação do movimento Dogma 95, de filmes que revelariam o negro brasileiro: criado pelos europeus, ora como mandamentos fun- damentalistas, que cerceavam a liberdade de criação Não existe cinema negro no Brasil. Não há dire- artística, ora como apenas uma jogada de marke- tores, há poucos bons papéis para atores, não há ting de autopromoção de Jeferson De. Até mesmo longas. Desde a propalada retomada da produção cineastas brasileiros tarimbados se viram divididos nacional – iniciada em 1994 e que já contabilizou na controvérsia. Enquanto Cacá Diegues recebeu mais de 100 filmes – não há nenhum longa diri- as propostas do Dogma Feijoada com entusiasmo, gido por um negro. [...] Por isso, e por nunca se Sylvio Back as (des)classificou de “sectárias” e “racis- reconhecerem plenamente nas telas, um grupo de tas”, por açular um tipo de separatismo racial que, cineastas reunidos no Festival de Curtas de São a seu ver, era incompatível com a tradição cultural Paulo lança hoje o Dogma Feijoada, espécie de brasileira (O Estado de S. Paulo, 2001a). cartilha para a produção de filmes com temáticas Seja como for, o manifesto lançado em 2000 negras (Jornal do Brasil, 23 ago. 2000). ensejou uma surpreendente discussão sobre a pos- sibilidade de um cinema brasileiro feito por negros, Finalmente, na sessão de 23 de agosto de 2000, sem incorrer nos discursos – panfletários e/ou de à noite, o manifesto veio a público, causando con- vitimização – típicos dos movimentos antirracistas. trovérsias, algumas exaltadas, na plateia. A revista De forma pragmática, cavou uma agenda mínima Isto É Gente o repercutiu na reportagem “Celuloide para se pensar um cinema negro nacional. Nos anos com feijão” (Cancino, 2000). Já a Folha de S. Pau- seguintes, Jeferson De e os realizadores afro-brasi- lo (Anderson, 2000) não só repercutiu a edição do leiros que se aglutinavam em torno do movimento documento, como saudou a iniciativa dos “jovens passaram a se encontrar frequentemente. Criaram, diretores”: “Vida longa ao Dogma Feijoada, que, então, um nome para o grupo, Cinema Feijoada, assim como a iguaria afro-brasileira, é imbatível e mantiveram um site na internet até 2004 (com a para muitos, mas provoca arrepios noutros tantos”. biografia, a filmografia, fotos de cena, making of e O historiador francês Pierre Sorlin entende que informações sobre os novos projetos dos integran- o meio cinematográfico é formado pelo público dos tes do grupo). Também promoveram mostras e de- filmes e pelas forças periféricas que legitimam a sua bates sobre as imagens e representações do negro existência e a de seus realizadores. Essas forças em no cinema.12 jogo na construção da “encenação social” – como O impacto e o frisson produzidos pelo manifes- festivais, jornais, revistas, críticos etc. – estruturam to contribuíram para impulsionar a carreira de al- uma rede de relações de dependência e complemen- guns dos membros do Cinema Feijoada, conferin- taridade, cumprindo para o meio cinematográfico o do-lhes certa “autenticidade” e reconhecimento no papel de legitimadores e divulgadores de suas ativi- circuito alternativo. Alguns deles, aliás, chegaram dades ao fabricarem suspenses, rumores, factoides à direção de filmes de longa-metragem (Carvalho, e expectativas no seio da opinião pública (Sorlin, 2005, p. 97).13 1977, pp. 101-102). O Festival de Curtas e a im- Na mesma linha, outro manifesto veio a pú- prensa desempenharam exatamente essa função no blico durante o V Festival de Cinema do Recife, caso do manifesto Dogma Feijoada. A adesão, quer em 2001. Cineastas e atores negros de destacada dos produtores do maior evento de filmes de curta- trajetória na televisão e no cinema (Milton Gonçal- -metragem na América Latina, quer do jornal Folha ves, Antonio Pitanga, Ruth de Souza, Léa Garcia, de S. Paulo , foi de suma importância para divulgar e Maria Ceiça, Maurício Gonçalves, Norton Nasci- ressoar o manifesto junto a um público mais amplo mento, Antônio Pompêo, Thalma de Freitas, Luiz que o do meio cinematográfico de São Paulo. Antonio Pilar, Joel Zito Araújo e Zózimo Bulbul) DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO 7

Da esquerda para a direita, os cineastas: Ari Candido, Billy Castilho, Daniel Santiago, Jeferson De, Noel Carvalho, Rogerio de Moura e o veterano Zózimo Bulbul. Fonte: Site Cinema Feijoada, que ficou no ar entre 2000 e 2004.

subscreveram o Manifesto do Recife, um documen- sim, o nosso descrédito com a capacidade das to que conclamava o fim da marginalização dos entidades associativas ou autorreguladoras de atores, atrizes, apresentadores e jornalistas negros publicitários e produtores de TV de, esponta- na indústria audiovisual (produtoras, agências de neamente, tomar iniciativas que ponham fim publicidade e emissoras de televisão). Para tanto, à injustiça histórica que nos condiciona a uma reivindicavam a “criação de um fundo para o in- ínfima presença nas imagens produzidas sobre centivo de uma produção audiovisual multirracial o Brasil.14 no Brasil”; a “ampliação do mercado de trabalho para atrizes, atores, técnicos, produtores, diretores Em síntese, o Manifesto do Recife reclamava a e roteiristas afrodescendentes”; a “criação de uma inserção do negro em toda a cadeia audiovisual. nova estética para o Brasil que valorizasse a diversi- Para efetivar tal projeto, exigia sanções legais às dade e a pluralidade étnica, regional e religiosa da emissoras de televisão, produtoras de cinema e população brasileira”. agências de publicidade – que insistiam na prática da discriminação racial – e evocava uma “aliança am- Este manifesto é uma atitude de denúncia. Ex- pla, geral e irrestrita” entre todos os produtores de pressamos o fim da nossa paciência com a per- audiovisual de todas as etnias, a fim de criar uma sistência em nossa indústria audiovisual (TV, “nova estética” para o Brasil, tendo em vista pro- cinema e publicidade) da cota de segregação mover a sua “multirracialidade”. Durante o festival, existente que não consegue oferecer mais de Joel Zito Araújo – um dos articuladores do mani- 10% de trabalho para atores, atrizes, apresen- festo – exibiu A negação do Brasil, longa-metragem tadores e jornalistas negros em seus programas, baseado no livro homônimo do cineasta, que ma- filmes e peças publicitárias. A invisibilidade e peia a questão da representação do negro nas te- a falta de reconhecimento dos atores negros lenovelas brasileiras no período de 1963 a 1997. demonstram por parte dos produtores uma O filme veicula estatísticas que demonstram a completa ignorância do impacto negativo dos discriminação racial, mas também faz menção aos seus produtos nos processos de autoestima da esforços do negro para conseguir uma representa- população negra e indígena do nosso país, em ção mais adequada, sem estereótipos, caricaturas especial de nossas crianças. Expressamos, as- ou folclorizações. A conclusão de Araújo – tanto 8 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96 no livro quanto no filme – é que a telenovela não radores e lideranças comunitárias, negras em sua retrata fielmente a composição racial do Brasil. De maioria.16 98 novelas produzidas pela Rede Globo, apenas em Luiz Paulo Lima dirigiu Outros carnavais 29 o número de atores negros contratados ultrapas- (2009), curta-metragem que, de modo original, sou a marca de 10% do total do elenco; as imagens tece os fios das memórias e vivências de célebres predominantes em todas elas carregam, como sub- mestres do samba e foliões antigos de São Paulo. texto, o elogio dos traços brancos como o ideal de Os irmãos Daniel Santiago e Lilian Solá Santiago, beleza para todos os brasileiros; em poucas novelas, por sua vez, filmaram Família Alcântara (2004), os atores negros interpretam os papéis principais, documentário que aborda a trajetória da família de protagonistas ou antagonistas. De modo geral, homônima do Quilombo do Caxambu, em Minas ao ator afro-brasileiro estão reservados os persona- Gerais, enfatizando suas atividades de preservação gens sem, ou quase sem, ação, os personagens pas- cultural (coral, peças teatrais e congadas), expe- sageiros, decorativos, que buscam compor o espaço riências identitárias, memórias e tradições, que, da domesticidade, ou da realidade das ruas, em es- embora reinventadas do outro lado do Atlântico, pecial das favelas; são raras as famílias negras, assim remontam às raízes da região do Congo, na África. como as cenas de preconceito e discriminação. O Lilian Santiago ainda dirigiu outros documentá- racismo brasileiro é “representado da mesma forma rios, a exemplo de Uma cidade chamada Tiradentes em que ele aparece na sociedade, como um tabu (2007), Caminhos preta (2007) e Graffiti (2008), sempre escamoteado no discurso oficial e privado com destaque para Balé de pé no chão – a dança dos brasileiros” (Araújo, 2000b, pp. 305-310).15 afro de Mercedes Baptista (2005), o qual acompanha a trajetória dessa singular bailarina, considerada a principal precursora da dança afro-brasileira, e Eu A sétima arte pelas lentes escurecidas tenho a palavra (2010), a respeito de uma “viagem linguística”, centrada no legado bantu, em busca No que tange ao Cinema Feijoada, este se in- das origens africanas da cultura brasileira e das co- clinou a demarcar território no circuito audiovisual nexões entre os dois lados do Atlântico negro. ao longo da primeira década do terceiro milênio. Da geração mais antiga de realizadores afro- Sob a influência direta ou indireta dos preceitos -brasileiros enfronhados no Cinema Feijoada, vale estipulados pelo movimento, diversos realizadores mencionar as produções de Celso Prudente – di- negros investiram em produções cinematográfi- retor de Dialética do amor (2012), película rodada cas. Em vez de “uma câmara na mão e uma ideia em Maputo (Moçambique), que trata da importân- na cabeça”, temos a câmara na mão do “outro” e cia das viúvas dos ex-combatentes do processo de muitas ideias em várias cabeças. Rogério de Moura, descolonização dessa nação africana – e de Ari Cân- que estreou com os curtas-metragens A revolta do dido, um cineasta versátil e diaspórico, que, após videotape (1999) e Velhos, viúvos e malvados (2001) suas experiências no exílio e conexões na Europa e trabalhou no roteiro de diversos filmes, dirigiu e África, regressou ao Brasil e filmouO moleque Bom dia, eternidade (2010), seu primeiro longa- (2005), ficção baseada num conto do escritor afro- -metragem, o qual aborda uma história de realismo -brasileiro Lima Barreto, depois Pacaembu terras fantástico sobre o futebol, com um elenco protago- alagadas (2006), sobre o bairro paulistano, e Jardim nizado por atores negros. Depois d’O catedrático do beleléu (2009), uma adaptação livre do conto “Não samba (1999), Noel Carvalho dirigiu Novos quilom- era uma vez”, do escritor afro-brasileiro Cuti (pseu- bos de Zumbi (2002), documentário que cartografa dônimo de Luis Silva). Antes da produção dessas o Capão Redondo, região periférica da Zona Sul películas, Cândido quis incursionar pela cinebio- paulistana, sob três aspectos: o do movimento hip- grafia, e assim nasceuO rito de Ismael Ivo (2003) -hop, o da produção artística de escritores e artistas acerca do bailarino negro brasileiro. plásticos moradores do local e o das iniciativas de Oriundo de uma família pobre da periferia da ação social empreendidas por associação de mo- cidade de São Paulo, Ismael Ivo enfrentou uma sé- DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO 9 rie de dificuldades até ascender na carreira e deixar morte (2001), filme sobre três adolescentes negros o Brasil no início da década de 1980 para brilhar que perambulam pelas ruas e avenidas da metró- no exterior. Seus depoimentos sobre dança, seu pole, correndo todo tipo de risco. Os dois meninos estilo e suas performances são registrados por Ari riem de suas próprias piadas racistas, enquanto a Cândido com sensibilidade. Do ponto de vista da menina não compactua com tal comportamento. linguagem, a pantomima domina a cena através Vivendo precariamente e sem perspectiva de futu- dos movimentos do bailarino. Embora haja uma ro, eles se lançam numa brincadeira inconsequen- conotação homoerótica nas imagens, o filme en- te, que resulta na morte trágica de um deles. Um ruste essa parte. Trata-se, antes, da ressignificação dos destaques do elenco é Ruth de Souza, uma do corpo masculino negro feito pela câmera que das atrizes afro-brasileiras mais respeitadas no acompanha os movimentos de Ivo: tomadas de seu meio cultural. Sem circunlóquio, a temática negra dorso nu, das pernas e das costas justapõem-se às é abordada no filme, assumindo o caráter de fio imagens de seus movimentos dançando. A intenção condutor da narrativa. Talvez seja por isso que o do cineasta não é outra senão exaltar a beleza cor- próprio Jeferson De tenha admitido: “ao escrever poral de um segmento populacional marcado pelo o roteiro de Distraída para a morte, percebi que o desprestígio social originado do racismo.17 As cenas Dogma Feijoada (desenvolvido no universo da que mostram o bailarino em contato com a natu- academia) ia tornando-se realidade” (Jeferson De, reza remetem ao ideário de uma África ancestral, 2005, p. 112). Tal percepção foi reforçada após a icônica e essencial para o negro. exibição do curta numa sessão especial no início E como a filmografia de Jeferson De – o prin- de julho de 2001. Eis como a Folha de S. Paulo cipal formulador do Cinema Feijoada – está com- (2001b) reportou o evento: prometida com o projeto de um cinema negro bra- sileiro? Sua estreia se deu com Genesis 22 (1999), O cineasta Jeferson De, que está agitando o curta que, inspirado na passagem bíblica de Gê- circuito alternativo do cinema brasileiro com nesis, capítulo 1, versículo 22, foi rodado em uma seu Dogma Feijoada, fórmula moderna e ori- única locação. Genesis 22 se revela, sobretudo, um ginal de posicionar o negro na frente das câ- ensaio audiovisual situado na fronteira entre o do- meras, fez, a convite da “Coluna Social”, uma cumentário e a ficção, caracterizado pela revalori- exibição especial do seu curta-metragem “Dis- zação de performances e identidades raciais. Conta traída para a morte”. Os espectadores foram os a história da relação conflituosa entre um pai e seu jovens da Fala Preta, ONG que trabalha contra filho. A questão da identidade emerge em pelo me- a discriminação e a violência étnico-racial. A nos dois aspectos: na exploração fotográfica da pele maneira como Jeferson retrata o negro no fil- escura e na estetização do corpo negro masculino. me deixou todos de queixo caído, e a discussão Opondo-se ao recurso visual das peles brilhantes, sobre o racismo no Brasil rolou solta. “É um Jeferson De configurou a iluminação e a fotografia trabalho de muito impacto. Eu nunca tinha tendo em vista celebrar o corpo negro, que, de es- me visto em um filme. Mostra o que acontece pécie de repositório dos martírios da escravidão, é na vida real: a gente tem uma educação racista ressignificado como objeto de adoração e desejos.18 e aprende a ser racista com a gente mesmo”, Quando se reportou ao lançamento do Dogma Fei- diz “Rá”, 22 anos. [...] O curta fez a cabeça dos joada no ano 2000, a Folha de S. Paulo (Anderson, jovens da Fala Preta. 2000) reconheceu o potencial artístico de Jeferson De: “O movimento é legítimo e De é bom no que Distraída para a morte representou o Brasil no faz – basta ver o curta-metragem Genesis 22, do Festival Panafricano de Cinema de Ouagadougou próprio, para saber que ali está uma promessa”. (Fespaco), em Burkina Faso, na África.19 O afro- Iniciava-se, assim, uma carreira ascendente de -brasileiro, enfim, deixava de ser representado, ide- curtas-metragens premiados sob o selo Feijoada. alizado, alegorizado; em vez disso, torna-se o sujei- Depois de Genesis 22, foi a vez de Distraída para to da representação. Em 2003, Jeferson De lança 10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

Carolina, curta baseado na história de uma mulher visto pelos brancos como um garoto branco e re- negra, Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que conhecido como um garoto negro pelos negros. O vivia na favela do Canindé, na cidade de São Paulo, conflito se instala quando outro garoto, branco e e escrevia diários até ser “descoberta” pelo jornalista rico, encontra a lâmpada e faz o mesmo pedido. Audálio Dantas e publicar Quarto de despejo (Jesus, Segundo resenha publicada na Folha de S. Paulo, 1960), livro que fez extraordinário sucesso, tendo o filme é uma “provocação” em “tempos de dis- sido traduzido em treze idiomas. Apesar de ter ad- cussões polarizadas sobre as cotas e o Estatuto da quirido fama, algum dinheiro e reconhecimento em Igualdade Racial”, assuntos que suscitavam acirra- vida, a autora morreu pobre e esquecida.20 O filme dos debates na sociedade brasileira. é ambientado dentro do barraco onde Carolina (in- terpretada por Zezé Motta) mora com a filha, nos Mais do que resolver o problema proposto tra- anos 1950, e se estrutura em torno de três camadas çando um final feliz, o filme parece estar pre- sobrepostas: o livro, de onde foi extraído os textos ocupado em colocar mais “fotograma no ven- da trama; as imagens documentais retiradas de ar- tilador”, expondo o momento de crise em que quivos da Cinemateca Brasileira e da TV Cultura, se encontra a discussão sobre quem é e o que é que se comunicam com as cartelas de textos mais ser negro no Brasil. Ao apontar para a canção informativos; e as imagens feitas no estúdio, real- “Nem vem que não tem”, de [Wilson] Simo- çando as dimensões intimista e subjetiva da prota- nal, fica a dúvida: será que o diretor indica um gonista. No início, predominam a encenação e os dos caminhos possíveis na discussão? É curioso movimentos de câmera que procuram descrevê-la. perceber como essa e outras obras do cineasta A performance dá o tom da narrativa. À medida e do seu grupo podem servir de contraponto à que o filme se desenvolve, as imagens documentais discussão racial que toma conta do Congresso em preto e branco, os textos informativos e as pau- e da sociedade e que já deu os seus primeiros sas de silêncios poéticos ganham espaço. Premida passos (Folha de S. Paulo, 2006). por uma realidade de fome, miséria e preconceito, Carolina extravasa sua dor, angústia e revolta coti- Já no documentário Jonas, só mais um (2008), dianas por meio das palavras. Numa das cenas do Jeferson De conta a história de Jonas Eduardo San- filme, o texto do diário é projetado no corpo dela tos de Souza, um jovem negro trabalhador, que, ao e de sua filha como tropo da vida de infortúnios ser barrado indevidamente e discutir com o segu- e desventuras das duas mulheres negras. O desfe- rança na porta de uma agência bancária na qual era cho da película traz a canção de protesto “Negro cliente no centro do Rio de Janeiro, é assassinado drama”, do grupo de rap Racionais MC’s. Com- cruelmente com um tiro no peito. Provavelmente posta décadas após a morte da escritora, a música a origem dessa violência, como mostrada no filme, veicula uma mensagem pungente: embora tenha está no fato de Jonas ter uma cor de pele vista como se passado quase meio século, os males provenien- suspeita por setores da segurança pública e privada. tes da opressão racial e social continuam afligindo Com depoimentos dos familiares de Jonas, o cur- milhares de pessoas. Carolina foi o filme vencedor ta apresenta algumas cenas chocantes, como a do na categoria curtas-metragens do 31º Festival de corpo da vítima estendido no chão da agência ban- Cinema de Gramado, em 2003, tendo angariado cária. Além de retratar uma história de violência também o prêmio de fotografia (de Carlos Ebert) também enfrentada por outros jovens do mesmo e o da crítica. grupo racial, o filme denuncia – de forma sensível, No ano seguinte, Jeferson De dirigiu Narciso mas incisiva – o chamado “genocídio da juventude rap, fábula voltada ao público infantil e cujo ro- negra” brasileira. teiro, mais uma vez, ficava centrado na temática Estribando-se nas premissas do Dogma Feijoa- racial. Narciso, um garoto negro e pobre da peri- da, Jeferson De produziu curtas-metragens que, por feria, ganha uma lâmpada mágica e faz um pedido diferentes olhares, narrativas e nuances, exploram a pouco trivial para o gênio: quer ser rico, porém possibilidade de mostrar a figura do negro brasilei- DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO 11 ro de forma realista, sem romantismos, o que vem Considerações finais provocando reflexões diversas em torno das identi- dades e relações raciais, em geral, e do preconceito O negro e aspectos de sua história e cultura e da discriminação racial que afetam a vida da po- apareceram representados nos filmes do Cinema pulação negra, em particular. Seu primeiro longa- Novo, movimento estético e político que agitou a -metragem de ficção,Bróder! (2010), foi rodado cinematografia brasileira nos anos 1960 e teve em após grandes expectativas. O filme se passa em 24 Glauber Rocha seu maior ícone. Apostando numa horas e enfoca o reencontro de três grandes amigos noção de cultura nacional-popular como resistên- no Capão Redondo, bairro da periferia da cidade cia à cultura colonizada, os cineastas vinculados ao de São Paulo. Quando se comemora o aniversário movimento viam o negro como metáfora de povo – de Macu (interpretado por Caio Blat) – um jovem pobre, favelado e oprimido. O período foi marca- branco, que continua morando no bairro onde en- do por filmes celebrativos de quilombolas, sambis- trou para o mundo do crime – seus dois melhores tas e adeptos dos cultos afro-brasileiros (Carvalho, amigos de infância, que seguiram caminhos distin- 2005). tos ao crescer, aparecem de surpresa. São eles Jaimi- Na década de 1970, os movimentos negros nho, um negro, jogador de futebol bem-sucedido, articularam uma agenda ampla de lutas, que iam com carreira internacional, e Pibe, também negro, de reivindicações políticas gerais contra o racismo corretor de seguros, que, casado e com um filho, até demandas de ordem simbólica, o que passava precisa trabalhar muito para sustentar a família. pela construção de modelos positivos de autorre- Em meio à alegria pelo reencontro, o fantasma da presentação (Hanchard, 2001). O teatro, a litera- criminalidade ameaça a amizade do trio. tura e o cinema foram agenciados em torno desse A questão racial tem seus desdobramentos em projeto de afirmação identitária. Zózimo Bulbul, Bróder!. Assim, o fato de o filme trazer um prota- um dos principais realizadores afro-brasileiros da gonista branco, Macu, que se considera negro e se época, teve sua produção associada às aspirações e comporta como um “mano” da periferia, é umas expectativas do movimento negro. Dirigiu os curtas das originalidades da trama.21 O filme aprofunda o Alma no olho (1973), Artesanato do samba (1974), debate sobre as tensões e ambiguidades relaciona- com Vera de Figueiredo, e Dia de alforria (1981), das às identidades afro-brasileiras, as quais são en- e o longa Abolição (1988). Outros cineastas negros feixadas no plano da afetividade. Negros e brancos também entraram em cena. Waldir Onofre realizou vivem relações familiares conflituosas. Questões em As aventuras amorosas de um padeiro (1975), An- torno da paternidade e do machismo do homem tonio Pitanga, Na boca do mundo (1978), e Quim negro são abordadas de forma direta. É como se Negro, Um crioulo brasileiro (1979).23 o ambiente “periferia” só aparentemente igualasse Apesar desses avanços, foi somente no final dos a todos. Bróder! se equilibra numa linha tênue: se anos 1990 que um grupo de produtores e diretores faz concessões de um produto comercial apoiado sistematizou diretrizes com vistas a formular um pelo maior conglomerado brasileiro de comuni- conceito de cinema negro. E assim foi se construin- cações;22 em contrapartida, é arrojado o suficiente do esse conceito em meio a um cipoal semântico para expressar o ponto de vista de um novo agente semelhante ao de outras linguagens artísticas que no meio cinematográfico: o cineasta negro. O filme carregam a rubrica “negro”, especialmente o teatro foi escolhido para representar o Brasil no 60º Festi- e a literatura. val Internacional de Cinema de Berlim, foi premia- De acordo com Ieda Maria Martins, a distin- do com quatro estatuetas no III Paulínia Festival ção e singularidade do “teatro negro” não se pren- de Cinema e se sagrou o grande vencedor do 38º dem, necessariamente, “à cor, fenótipo ou etnia Festival de Cinema de Gramado, com três kikitos: do dramaturgo, ator, diretor, ou do sujeito que se melhor filme, direção e ator O( Estado de S. Paulo, encena”, mas “se ancora nessa cor e fenótipo, na 2010; Jornal do Brasil, 2010). experiência, memória e lugar desse sujeito, erigi- dos esses elementos como signos que projetam e 12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96 representam” (Martins, 1995, p. 26). Nesse sen- cendentes em cena? Ou então pelo “simples” fato tido, a expressão “teatro negro” não delimitaria, de o diretor ser desse segmento populacional? No ou demarcaria, fronteiras discursivas excludentes, ou caso do Dogma Feijoada, engendrou-se um concei- conceitos monolíticos, prescritivos. Martins busca to de cinema negro baseado em alguns postulados discernir alguns “traços e rastros sígnicos” que lhe fundamentais: o filme tinha de ser dirigido por um permitam apreender a “nervura da diferença, evi- realizador negro, apresentar personagens, inclusive tando, assim, o engodo das concepções generalizan- o protagonista, desse segmento populacional (sem tes e universalistas, que, muitas vezes, discriminam fazer uso de estereótipos e maniqueísmos) e abor- sem, no entanto, compreender e apontar, critica- dar temática relacionada à questão racial e/ou cul- mente, os traços da diversidade” (Idem, ibidem). De tura negra.26 uma perspectiva diversa, Christine Douxami argu- Com esses postulados no horizonte, os cineas- menta que a denominação “teatro negro” é con- tas associados ao movimento produziram pelícu- troversa: pode tanto ser aplicada a um teatro que las cujas características mais recorrentes remetem tenha a “presença de atores negros, quanto aquele a: privilegiar a luta diária do negro brasileiro co- caracterizado pela participação de um diretor ne- mum, denunciar as situações de discriminação e gro, ou, ainda, de uma produção negra. Uma outra preconceito raciais, valorizar as identidades e cul- definição possível seria a partir do tema tratado nas turas (símbolos, ritos e tradições) afro-brasileiras, peças” (Douxami, 2001, p. 313).24 construir performances racializadas como disposi- Já no que concerne à “literatura negra”, a ques- tivo narrativo, assim como positivar, para não dizer tão não é menos polêmica. Enquanto Zilá Bernd a humanizar, imagens e representações audiovisuais define como uma literatura que “não se atrela nem à negras. Porém, dependendo do cineasta, surgem cor da pele do autor nem apenas à temática por ele diferentes formas de realização do cinema negro. utilizada, mas emerge da própria evidência textu- Uns acentuam aspectos da linguagem militante, al cuja consistência é dada pelo surgimento de um em sintonia com o projeto de cidadania inclusiva e eu enunciador que se quer negro” (Bernd, 1988, igualdade racial;27 outros celebram o estilo e a pre- p. 22), Eduardo de Assis Duarte prefere adotar a sença estética do corpo negro em cena; e, ainda, há expressão “literatura afro-brasileira”, para se referir aqueles que jogam luz sobre importância da experi- à literatura que reúne os seguintes componentes: ência afrodiaspórica, nos domínios da história, do uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não modelo familiar, da religiosidade e das manifesta- no discurso; temática afro-brasileira; um ponto de ções artístico-culturais. vista ou lugar de enunciação política e culturalmen- Ocorre que cinema negro se trata de um con- te identificado à afrodescendência; um vocabulá- ceito em construção ou, antes, em disputa. Não rio pertencente às práticas linguísticas oriundas de apenas em função de seu caráter polissêmico, mul- África e inseridas no processo transculturador em tivocal, aberto, com diferentes concepções formais curso no Brasil e, por fim, um projeto discursivo, e estilísticas, mas uma disputa em torno de como explícito ou não, que dialogue com o horizonte de essa categoria analítica se conecta aos planos estéti- expectativas do leitor afrodescendente, combatendo co e político. Cinema negro: processo e devir. Além o preconceito e inibindo a discriminação sem cair de nicho ou segmento específico, consiste num no simplismo muitas vezes maniqueísta do panfleto componente integrado ao amplo encadeamento (Duarte, 2015, pp. 28-41).25 estrutural da sétima arte. Ao mesmo tempo “den- Percebe-se, assim, que não há consenso em tor- tro e fora” do cinema nacional. Daí sua conotação no de um conceito do que seja “teatro negro” ou muitas vezes marginal, porque fundado na diferen- “literatura negra”, cabendo dizer o mesmo para o ça. Uma produção que implica, obviamente, novos campo cinematográfico. Pode-se entender por ci- direcionamentos (no âmbito da distribuição, da nema negro aquele que incursione, no seu roteiro, exibição, do público e da crítica) e novas herme- pela situação do negro? Ou esse conceito pode ser nêuticas de sentido à história tradicional do cinema garantido apenas pela presença de atores afrodes- brasileiro contemporâneo. DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO 13

O grupo Cinema Feijoada foi a primeira ação co- 2 Sobre a sub-representação do negro na publicida- letiva e unificada na esfera pública de diretores negros de televisiva brasileira na década de 1990, ver Leslie no Brasil, o que não é de somenos importância, tendo (1999). em vista que o modelo de produção do cinema na- 3 Em 1995, a senadora negra Benedita da Silva, do cional concentra o poder de decisão na figura do di- Partido dos Trabalhadores (PT) do Rio de Janeiro, retor. O movimento de cineastas negros sobraçou um apresentou o Projeto de Lei nº 10, que “dispõe sobre desafio espinhoso, principalmente no terreno sim- a inclusão da presença dos negros nas produções das emissoras de televisão, filmes e peças publicitárias”. bólico, questionando quem detém o monopólio sobre Tal projeto gerou grande polêmica na opinião pública, as imagens e representações de si, do seu grupo ra- uma vez que propugnava a participação obrigatória de cial e dos outros. Parece que o questionamento surtiu 40% de negros nas peças publicitárias governamentais efeito, pois aqueles que foram historicamente objetos e em produções nacionais para televisão, como nove- do olhar e da representação dos produtores culturais las e minisséries. Em 1998, o deputado federal negro audiovisuais – muitos dos quais brancos da classe mé- Paulo Paim, do PT do Rio Grande do Sul, apresentou dia –, passaram a tomar em suas rédeas a produção o Projeto de Lei nº 4.370, que dispõe sobre a repre- de imagens sobre si, constituindo-se em sujeitos da sentação racial/étnica nos filmes, programas e peças representação. O chamado “marginal” ocupa o cen- publicitárias exibidas pelas emissoras de televisão. Seu tro da nossa atenção; não vira herói, mas pelo me- artigo 3º prevê a obrigatoriedade às emissoras de te- levisão de “apresentar imagens de pessoas afrodescen- nos torna-se sujeito, sem direito a demagogia nem dentes em proporção não inferior a 25% do número paternalismo da parte do diretor (Stam, 2008, pp. total de atores e figurantes. As peças publicitárias de- 503-504). Em termos de prognóstico, tendemos a verão apresentar imagens de pessoas afrodescenden- ver cada vez mais filmes e vídeos não “sobre” o negro, tes não inferior a 40% do número total de atores e mas do próprio negro. figurantes” (Cardoso, 1998). Na década seguinte, a Portanto, é escusado dizer que o Cinema Fei- ideia de ações afirmativas no audiovisual ganhou mais joada procurou inovar no meio cinematográfico, força, conforme noticiado: “Cotas nas telas: artistas e urdindo narrativas mais plurais sobre as histórias, técnicos de cinema e TV pedem reserva de 30% para estéticas e subjetividades negras e colocando a sé- negros no mercado de trabalho audiovisual” (Jornal tima arte em rota de colisão com o racismo à bra- do Brasil, 2003). sileira (Venturi e Turra, 1995). Talvez seja por isso 4 No final de 1994, a ONG de mulheres negras Geledés que venha influenciando, ainda que de maneira fez uma interpelação formal junto à Rede Globo de televisão, “protestando contra a apresentação do com- transversal, a produção coeva de alguns cineastas 28 portamento servil de um personagem afrodescenden- que se autoidentificam de origem afro-brasileira. te diante de uma agressão racista, na telenovela Pátria O grupo não só tentou promover a discussão – via minha, e demonstrando que o roteiro e representa- imprensa, intelectuais, críticos e setores da opinião ção feriram a autoestima da comunidade negra. Com pública – sobre a diversidade racial no cinema bra- esta ação, Geledés buscou interceder na trama, exi- sileiro, como ainda buscou sensibilizar alguns in- gindo mudança de conduta dos personagens negros e terlocutores para a postura etnocêntrica de direto- brancos. Embora não tenha havido nenhum tipo de res, produtores e roteiristas brancos, sem falar que punição contra a Rede Globo, o desenvolvimento da fomentou o advento de alguns realizadores negros trama atendeu à pressão das entidades afro-brasileiras, que, sem a existência do grupo, dificilmente teriam e em uma novela seguinte, no mesmo horário nobre, apareceu a primeira família de classe média negra” feito carreira no audiovisual. (Araújo, 2000a, p. 91). 5 Agenor Alves começou no audiovisual como fotó- grafo. Seus primeiros trabalhos foram comerciais e Notas documentários filmados em Super 8 e 16 mm. Ao longo da carreira, dirigiu sete longas-metragens no 1 As reflexões sobre o cinema brasileiro da “retomada” contexto da Boca do Lixo em São Paulo, entre 1979 se basearam em Nagib (2002, especialmente pp. 13- e 1987, notabilizando-se no gênero designado de 18) e Oricchio (2003). pornochanchada. O primeiro de seus filmes,Tráfico 14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

de fêmeas (1979), foi protagonizado pelo ator negro 11 Originalmente conhecida como “comida de escravos”, Tony Tornado. Depois vieram Noite de orgia (1980), a feijoada se tornou, a partir dos anos 1930, em “co- As prisioneiras da ilha do diabo (1980), A cafetina de mida nacional”, carregando consigo a representação meninas virgens (1981), A volta de Jerônimo no sertão simbólica do hibridismo associada à ideia de naciona- dos homens sem lei (1981), Lídia e seu primeiro amante lidade. “O feijão preto e o arroz branco remetem me- (1984) e Eu matei o Rei da Boca (1987). No final da taforicamente aos elementos negro e branco de nossa década de 1990, preparava-se para filmar O mistério população. A eles misturam-se ainda os acompanha- da Maria do Ingá, sobre a lenda que deu origem à ci- mentos: o verde da couve é o verde das nossas matas; dade de Maringá, no Estado do Paraná (produção que o amarelo da laranja, um símbolo de nossas potenciais não teve sequência por motivos que desconhecemos). riquezas materiais” (Schwarcz, 1995). 6 Valter José tornou-se doutor em filosofia pela USP no 12 Em 24 de novembro de 2003, a Folha de S. Paulo di- final dos anos 1990. Após trabalhar como jornalista e vulgou a mostra Da Chanchada à Feijoada, prevista escrever críticas de cinema para o Guia do Vídeo Erótico, para acontecer no MIS: “Para o bom observador, um tornou-se produtor, roteirista e diretor de filmes porno- filme ou uma simples novela bastam: negros e pardos, gráficos. Até o ano de 2002, tinha participado da rea- que somam 46% da população brasileira, não estão lização de nove filmes, entre os quaisEróticas criaturas proporcionalmente representados – diante ou atrás (1999), Corpo amante (2000) e Sexo por dinheiro (2000). das câmeras – nas produções nacionais. Para chamar a atenção do público para o tema da inclusão racial, o 7 Celso Prudente era doutorando em educação pela Museu da Imagem e do Som (av. Europa, 158) inicia USP em finais da década de 1990. No mestrado, na amanhã, às 20h30, uma semana de exibição grátis de área de comunicação social, pesquisou o negro como curtas e longas-metragens brasileiros que enfocam a te- possível referencial estético no Cinema Novo de mática negra, em homenagem ao mês da Consciência Glauber Rocha. Dirigiu o filme Axé: a alma de um Negra. A mostra ‘Da Chanchada à Feijoada’ integra o povo (1987); mais tarde, teve uma experiência com ci- projeto ‘EnQuadros Negros’, que pretende levar às telas nema na África, onde rodou Amor no Calhau (1992), cinco curtas de diretores negros, além de longas que sobre aspectos do amor revolucionário na luta pela abordam o tema. Até domingo (30/11) serão exibidos independência em Cabo Verde. filmes diariamente, às 19h e às 21h, entre os quais lon- 8 Ari Cândido iniciou o curso de cinema na Universi- gas de Antonio Pitanga e de Nelson Pereira dos Santos. dade de Brasília (UnB) no auge da ditadura militar. Na sexta (28/11), às 19h00, vai haver um debate entre Participou de várias atividades estudantis e políticas, o ator Norton Nascimento e o cineasta Jeferson De, alinhado que era aos ideais do Partido Comunista Bra- autor do Dogma Feijoada, manifesto do cinema negro sileiro (PCB). Em virtude disso, recebera ameaças de brasileiro”. A respeito das iniciativas do grupo Cinema prisão por parte dos órgãos de repressão, quando então Feijoada, ver ainda “Mostra reúne três gerações do ci- decidiu se exilar na Europa, em 1971. Foi nesse contex- nema negro brasileiro” (O Estado de S. Paulo, 2001b); to que realizou o curta Paris (1977), “Cinema” (Jornal da USP, 10-16 maio 2004); “Negros acompanhando a passagem do sambista carioca pela questionam estereótipos” (Correio Braziliense, 2005). capital francesa. Depois, foi para a África e codirigiu 13 Por volta de meados da primeira década do terceiro Pourquoi l’Erythrée? (1978), uma produção franco-tu- milênio, o grupo que girava na órbita do manifesto se nisiana sobre a guerra da Eritreia. No final da década dissipou gradativamente. Embora seus componentes de 1990, Cândido já havia voltado do exílio, contribu- continuassem dialogando entre si e selando parcerias ído com a construção do Movimento Negro Unificado eventuais, passaram a seguir caminhos próprios, rea- (MNU) e buscava capitar recursos para filmarO rito de lizando trabalhos em diversas áreas – principalmente Ismael Ivo, projeto concluído em 2003. no cinema, mas também na televisão, na publicidade 9 Ver notícia publicada na Folha de S. Paulo (2000a): e nos estudos acadêmicos –, sem perderem de vista a “Dogma Feijoada lança polêmica”. A “cartilha” do agenda da inserção do negro no audiovisual brasileiro. manifesto também foi publicada no Jornal do Brasil 14 Arquivo pessoal de Noel dos Santos Carvalho: Mani- (23 ago. 2000). festo do Recife, documento apresentado no V Festival 10 Para análise do cinema negro nos Estados Unidos, de Cinema do Recife, em 30 de abril de 2001. abrangendo a produção do prestigiado diretor Spike 15 1 Joel Zito Araújo é um dos mais notáveis diretores Lee, consultar a coletânea organizada por Diawara negros do cinema brasileiro contemporâneo. Depois (1993). d’A negação do Brasil (2000), ele realizou Vista minha DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO 15

pele (2003), Cinderelas, lobos e um príncipe encanta- cinematográficas, desde escalação dos atores, com pre- do (2009), Raça (2013), com destaque para Filhas do ferência para os “da casa”, até o acompanhamento da vento (2004), filme de ficção com elenco todo negro, elaboração do roteiro. que recebeu oito kikitos no 32º Festival de Cinema de 23 Para análise sobre a questão racial no cinema brasileiro Gramado (ocorrido em agosto de 2004): o de melhor na década de 1970 e a filmografia de Zózimo Bulbul, diretor, melhores atores e atrizes e o prêmio da crítica. ver Lapera (2012) e Carvalho (2006). 16 Sobre esse documentário, ver “Capão Redondo é visto 24 A respeito do “teatro negro”, ver também Augel por dentro e ‘desabafa’ sua dor” (Folha de S. Paulo, 2001). (2000). 17 Para análise da celebração do corpo negro no processo 25 Sobre a “literatura negra”, ver também Brookshaw de racialização e afirmação de novas culturas e identi- (1983). dades afrodiaspóricas, ver Sansone (2004). 26 Robert Stam nota uma tendência no cinema brasilei- 18 Possivelmente as mediações cinemáticas presente em ro, da virada da década de 1990, no sentido de incluir Genesis 22 visam evitar os recursos visuais de cunho atores negros, notadamente nos filmes ambientados etnocêntrico, pois, como adverte Robert Stam (2008, nas favelas. Nesses filmes, “o que se encontra margi- p. 473), “privilegiar a representação social, a trama e nalizado em termos sociais e políticos se revela crucial os personagens leva, muitas vezes, à escamoteação das em termos simbólicos e culturais. Vemos exemplos mediações especificamente cinemáticas dos filmes: a dessa tendência em filmes comoOrfeu (1999) de Cacá estrutura narrativa, as convenções de gênero, o esti- Diegues, Madame Satã (2001), de Karim Aïnouz, lo cinematográfico. O discurso etnocêntrico do filme Natal da Portela (1988), de Paulo César Saraceni, e, pode ser conduzido não pelos personagens ou pela sobretudo, Cidade de Deus (2002), de Fernando Mei- trama, mas pela iluminação, enquadramento, mise en relles” (Stam, 2008: 506). Realmente, tais filmes ex- scène, música”. pressam uma tendência de certa “blackização” – para 19 Segundo o artigo “Dogma Feijoada leva curta a fes- pegar de empréstimo o neologismo de Stam – no ci- tival na África” (O Estado de S. Paulo, 2001a), “o tra- nema brasileiro contemporâneo, principalmente em dicional festival cinematográfico negro é realizado a termos temáticos e performáticos, mas, como eles não cada dois anos desde 1969. Ouagadougou é a capital são dirigidos por cineastas negros, pelos critérios do de Burkina Faso, país localizado na região Oeste da Dogma Feijoada é indevido classificá-los sob o selo África”. Distraída para a morte concorreu com dez tí- cinema negro. tulos norte-americanos e um da Martinica ao Prêmio 27 Sobre o projeto de cidadania inclusiva e igualdade ra- da Diáspora. cial a partir do papel propositivo do cinema negro, 20 A respeito da vida e obra de Carolina de Jesus, ver consultar o pronunciamento do então ministro da Meihy e Levine (1994), Santos (2009) e Silva (2008). Cultura, , durante o Seminário Cinema 21 Quando indagado em entrevista (O Povo, 19 nov. Negro no Brasil: reflexões e perspectivas, realizado 2007) a respeito da contradição de ter escalado um na Faculdade de Educação da USP em 13 de novem- ator branco (Caio Blat) como protagonista de Bróder!, bro de 2003. Disponível em: ; acesso em: 9 sentada é: quem é negro e quem não é. Ter o Caio maio 2016. Ver ainda “Na USP, Gilberto Gil reafirma como protagonista é exatamente a polêmica. Há luga- incentivos ao cinema negro” (Jornal da USP, 2003). res na periferia dos grandes centros que a cor da pele 28 Mesmo não tendo ligação direta com o Cinema Feijo- não importa. Mas se saímos deste espaço, ser preto ada, outras produções cinematográficas reverberaram ou ser branco faz uma enorme diferença. Bróder! fala de alguma maneira os ideais do movimento. Este foi disso e de muitos outros assuntos. Mas é uma obra o caso de Cinema de preto (Dandara, 2004), Negro in- que vai pelo lado da emoção, da amizade e jamais da grato (Dandara, 2005), Cores e botas (Juliana Vicente, violência – embora ela sempre esteja presente onde há 2010) e, mais recentemente, O dia de Jerusa (Viviane miséria humana”. Ferreira, 2014), selecionado para fazer parte da pro- 22 O filme foi distribuído pela Globofilmes, empresa que gramação de curtas-metragens do Festival de Cannes, adota um protocolo rigoroso para apoiar as produções em 2014. 16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

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DOGMA FEIJOADA: A INVENÇÃO FEIJOADA DOGMA: THE LE DOGME FEIJOADA: DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO INVENTION OF THE BRAZILIAN L’INVENTION DU CINÉMA BLACK MOVIES BLACK BRÉSILIEN Noel dos Santos Carvalho e Petrônio Domingues Noel dos Santos Carvalho e Petrônio Noel dos Santos Carvalho et Petrônio Domingues Domingues Palavras-chave: Cinema; Negro; Produ- ção audiovisual; Relações raciais. Keywords: Cinema; Afro descendant; Mots-clés: Cinéma; Black; Production Audiovisual production; Racial relations audiovisuelle; Relations entre les races. A finalidade deste artigo é analisar aspectos do Dogma Feijoada, um movimento de The aim of the current article is to ana- Le but de cet article est d’analyser les as- diretores e profissionais negros do audio- lyze the aspects of the Feijoada Dogma, pects du Dogme Feijoada, un mouvement visual de São Paulo que, desde o final da which was a movement launched by de directeurs et de professionnels de l’au- década de 1990, preconizava a necessidade black movie directors and audio-visual diovisuel à São Paulo qui, depuis la fin de ressignificar as imagens e representações professional in São Paulo, who, since the des années 1990, préconisaient la nécessi- sobre o negro no cinema brasileiro. A par- late 1990s, advocated for the need of giv- té de resignifier les images et les représen- tir do lançamento do manifesto Dogma ing new meanings and representations to tations de l’homme noir dans le cinéma Feijoada, em 2000, escrito pelo cineasta Afro descendants in the Brazilian movie brésilien. C’est à partir du manifeste du Jeferson De, o movimento buscou produ- industry. Based on the Feijoada Dogma Dogme Feijoada, en 2000, écrit par le ci- zir filmes centrados na temática racial e de- manifesto, from 2000, which was writ- néaste Jeferson De, que le mouvement a senvolver um conceito de “cinema negro” ten by Jeferson De, the movement had tenté de produire des films centrés sur le brasileiro, o que causou polêmicas e con- the goal to produce films about the race thème racial et de développer un concept trovérsias no meio cinematográfico, sem issue and to develop a concept of “Bra- de « cinéma black » brésilien, ce qui a contudo deixar de influenciar a produção zilian black movie industry”. It led to provoqué des polémiques et des contro- contemporânea de cineastas autodeclara- controversy in the cinematographic field, verses dans le milieu cinématographique, dos afro-brasileiros. although it did not stop influencing the sans toutefois empêcher une influence contemporary production of self-declared sur la production contemporaine des ci- Afro-Brazilian movie makers. néastes autoproclamés afro-brésiliens.