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Leopardi, poeta do infinito

MARCO LUCCHESI

I – DIAS FUTUROS

“Cada objeto amado é o centro de um pa- raíso” (, Pólen, frag. 50).

“A quantidade de ensaios críticos em torno da obra de Giacomo Leopardi só pode ser equiparada com o renovado entu- siasmo de seus leitores. Leopardi não é um homem de letras, mas um acontecimento. Como se cada geração de escritores – para encontrar o seu espaço no sistema literário italiano – se ocupasse em bem compreen- der o universo de Leopardi, de que todos dependem em maior ou menor grau. Da parte de seus leitores, nenhum outro poeta chegou a ser tão radicalmente amado quan- to Leopardi. Um homem solitário diante de sua dolorosa solidão. A história de uma alma – como tantos disseram – em profun- do desencanto. Mas quanta beleza, quanta harmonia, quanta altitude, naquele desen- canto! Os seus poemas – apenas 41 – ofe- recem uma leitura espantosamente clara do mistério das coisas do mundo, da hu- MARCO LUCCHESI mana sorte e de sua estranha condição. Para é professor de Língua e Literatura Italiana da UFRJ. Schopenhauer, ninguém chegou a tratar

146 REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 da miséria de nossa vida de modo tão pro- mos por esse caminho, largo e sinuoso e fundo e encantador como Leopardi. Tal a claro, quando nos dermos conta de seu força de “As Lembranças”, de “A Giesta”, moderado excesso, sem metáforas pere- ou de “O Infinito” (escrito aos 21 anos), grinas e outros recursos, começaremos a mais impressionante do que o silêncio de entender por que Giacomo Leopardi é um Pascal. Quase um espasmo kantiano. E acontecimento. como esquecer “A Si mesmo”, “Amor e Morte”, ou “Safo”? Tudo isso pertence II – VARIAÇÕES PARA UM TEMA agora ao patrimônio da cultura ocidental. Sem as lágrimas de um Corazzini. Sem as flores de gelo de um Kierkegaard. Sem os “Quidve mali fuerat nobis non esse creatis?” violinos de um D’Annunzio. O fenômeno (Lucrécio, De rerum natura, 5.174). de sua poesia é todo intensidade. Chega- mos a seus poemas com um misto de dis- Profunda, comovente, perturbadora. A tância e adesão, solidariedade e tremor, obra de Giacomo Leopardi ainda guarda assombro e admiração. Saímos da super- muitos segredos. A espinha dorsal de sua fície e mergulhamos num plano abissal. poesia consiste num pessimismo denso e Impossível não sermos tocados pela sua arraigado. Contundente e belo. Abismado poesia. Impossível não sentirmos um na dor e na solidão, Leopardi criou uma grande entusiasmo. Tudo de forma suave língua nova, poderosa, helenizante, capaz e severa. de traduzir os matizes mais sutis do pensa- Dante Milano escreveu certa vez que a mento. Nietzsche, Pound e Calvino – con- poesia de Leopardi exige uma leitura me- quanto diversos – apreciavam-no radical- ditada, constituindo um desafio à facilida- mente. Entre nós – além de Machado, Rui de. E que não seria jamais uma distração, e Carpeaux –, Pompéia foi um leitor mas um estudo profundo e uma emoção congenial de sua obra. O incêndio no absorvente. Não nos ocorre uma síntese Ateneu e o fim do mundo nos Opúsculos melhor. Leopardi não é o poeta do efeito. Morais parecem coincidir com os “plane- Da palavra fácil. Leopardi não procurava tas exorbitados de uma astronomia mor- o Belo. A beleza de seus versos não de- ta” e com os “sóis de ouro destronados e pende singularmente de cada um, mas do incinerados”. O já citado Dante Milano mistério de seu conjunto, da estrutura que surpreendia nos versos leopardianos a “im- os engendra, do sentimento do mundo que pressão de um mistério onipresente”. Da empresta a cada verso a raiz de sua própria claridade lunar, talvez. Pura, difusa e gla- necessidade e concretude. Quando desco- cial. Da noite metafísica. Quando a luz do brirmos esse mistério, e seu incomparável nada brilha sobre o cosmos. Metafísica. coeficiente de solidão, quando avançar- Ou melhor: hiperfísica.

REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 147 Tal sentimento não pertence apenas aos mento vos resgatará da quietude e do sono, Cantos. Permeia toda a sua obra, chegando mas nela sempre e inesgotavelmente inclusive ao diário e às cartas, e demonstra repousareis.” a perfeita e comovente unidade de quanto escreveu. Diz Leopardi, na primavera de Quando isso ocorrer, nada mais sendo 1819: “É vã, é um nada esta minha dor, que exílio, um silêncio universal cobrirá todo o num momento passará e se anulará, dei- universo. Havendo universo. Quase um xando-me num vazio universal”. Eis o que eterno retorno: tematizam os Opúsculos Morais: a vanidade da vida e a caducidade das coisas. Ante- “Cada parte do universo apressa-se, infati- sala dos últimos poemas, como “O Pôr-da- gavelmente, para a morte com solicitude e lua”, a prosa dos Opúsculos tem autono- celeridade admiráveis. Apenas o próprio mia própria. Páginas admiráveis, aquelas. planeta parece imune à decadência e ao Cristalinas. Cortantes. Voltadas ao bem declínio. Contudo, se no outono e no inver- maior, ao não-ser. Absoluta aguarrás, que no mostra-se quase enfermo e velho, não tanto e tanto impressionaria Cioran. Leo- menos, na nova estação, rejuvenesce sem- pardi e Nietzsche (o da Origem da Tragé- pre. Mas como os mortais no primeiro dia) coincidem aqui. Quando o alemão re- momento de cada dia readquirem uma par- conhece, entre os homens, a triste herança te da juventude, assim envelhecem todos do acaso, através de Sileno, que sabe que o os dias e finalmente se extinguem; igual- melhor é morrer, e depressa. Em Leopardi, mente o universo no princípio de cada ano a infelicidade não poupa sequer os deuses. renasce e nem por isso deixa de continua- A vida imortal torna-se-lhes um fardo. Até mente envelhecer. Tempo virá em que ele mesmo “Quíron, que era um deus, com o e a própria natureza se apagarão. Assim decorrer do tempo entediou-se com a vida, como de grandes reinos e impérios huma- pediu licença a Júpiter e morreu”. Fogem nos com seus movimentos maravilhosos, as sombras. Cessam as ilusões. Cheiro de famosíssimos em outros tempos, nada res- abismo. Nietzschiano, ou quase. ta hoje, de indícios ou fama; o mesmo, do A morte ocupa o centro das coisas. In- mundo inteiro, dos acontecimentos infini- vade o universo. Devora-o impiedo- tos e das calamidades das coisas criadas, samente. E não deixa marcas. Onda uni- não restará um vestígio sequer. Apenas um versal, tudo naufraga. Fim do mundo. Dos silêncio nu e uma altíssima quietude en- homens. Dos deuses. “Cada parte do uni- cherão o espaço imenso [lembrando aqui verso apressa-se, infatigavelmente, para a partes de “O Infinito”]. Assim esse arcano morte. Apenas um silêncio desnudo e uma admirável e espantoso da existência uni- altíssima quietude encherão o espaço imen- versal, antes de ser declarado ou compre- so.” Quase uma conclusão schopenhau- endido, se extinguirá e perderá”. eriana. Um mundo de vias-lácteas e de sóis, que formam o nada, onde a vontade de vi- Essa paisagem desolada nutre-se ainda ver é cega, irracional, e se desdobra sem da melhor poesia em prosa, que atravessa finalidade (voluntas/noluntas), que quer por os Opúsculos Morais. Aquela vasta e apai- querer e para aumentar a insatisfação e a xonada obra de que falava Bontempelli: dor, segundo O Mundo como Vontade e entre observações de história e filologia, Representação. Parece mesmo algo metafísica e psicologia, Leopardi cria num lucreciano (sem a harmonia da Alma oceano opaco lúcidas ilhas de poesia, onde Vênus) inspirando seu universo, como no reconhecemos as ressonâncias do livro cin- “Cântico do Galo Silvestre”: co de De rerum natura (ibi si tristior incubuisset causa, darent late cladem “Mortais, despertai. Não estais ainda livres magnasque ruinas). Páginas de uma altitu- da vida. Virá o tempo em que nenhuma de incomum. Quase esturricadas pelo fogo força exterior, nenhum intrínseco movi- que as consome. Nada mais belo e terrível,

148 REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 nada mais delicado e espantoso, nada mais de Anacreonte” (na versão grega) e um dramático e ameno do que essas páginas “Hino a Netuno”, do qual redigiu apenas a irretocáveis. versão italiana. Nenhum grande filólogo chegou a duvidar da autenticidade daque- les textos, especialmente os de Anacreonte, tal a perfeição da língua grega. Seu domí- III – PÁGINAS DE FOGO nio do hebraico e do alemão, do francês e do espanhol, do grego e do latim é deveras incomparável. Como Friedrich Hölderlin “The pale stars are gone!” (Shelley, (em seus belíssimos metros pindáricos), Prometheus Unbound, 4,1). Leopardi terá sido o último dos atenienses. Nenhum deles jamais conheceu a Grécia. Leopardi é sem sombra de dúvida uma O mundo dos deuses, todavia, parecia força da natureza. Antes de tudo, a sua habitá-los. Leopardi admirava irreligio- impressionante, monumental, vastíssima samente a religião antiga. Como Nietzsche, erudição, que parece ultrapassar o conhe- Machiavelli, ou Fustel de Coulanges. E cimento do quase imbatível filósofo Hölderlin – tomado por “espíritos metafí- Giambattista Vico, que Leopardi não des- sicos” – sentia-se esmagado pela ira dos conheceu, enquanto leitor da Ciência Nova. deuses em plena loucura. Leopardi – ao Leopardi era mais sutil no manejo da contrário –, quando escreve o poema “O filologia antiga. Superior no campo da Infinito”, vai naufragando num mundo sem etimologia. Absoluto no da tradução. Nin- homens ou deuses. Como já disse alguém, guém menos do que o douto Niebuhr fica- o naufrágio do poeta é sem espectador. ria espantado com os seus conhecimentos. Anos de solidão radical e bárbara, Diz Leopardi a : Leopardi descreve a Giordani o estado físi- co e mental que o consome: “A erudição que o senhor diz ter encontra- do nas notas ao ‘Hino a Netuno’ é na ver- “Creio que senhor já saiba, mas espero que dade muito vulgar; ocorre que as escrevi na não tenha sentido, em que medida o pensa- Itália, mas na Alemanha ou Inglaterra se- mento possa crucificar e martirizar uma riam uma vergonha para mim. Por um bom pessoa que fique à mercê e pense um tanto tempo, persegui a erudição mais recôndita diversamente dos outros; quero dizer, quan- e peregrina, e dos 13 aos 17 anos enfronhei- do a pessoa não tem qualquer divertimento me profundamente neste estudo, tanto que ou distração, mas apenas o estudo, o qual, escrevi de seis a sete tomos volumosos sobre porque fixa e mantém a mente imóvel, pre- matérias eruditas (fadiga que me valeu a judica mais do que ajuda. A mim o pensa- ruína), e um escritor estrangeiro – que está mento deu e continua dando, por períodos em Roma, mas que não conheço –, vendo longuíssimos, esses martírios, e isso por- alguns dos meus escritos, não os desapro- que sempre me teve inteiramente à sua vou, exortando-me a que eu me tornasse, mercê (e, repito, sem nenhuma vontade dizia ele, um grande filólogo”. minha), prejudicando-me a olhos vistos, e me matará se eu antes não mudar de condi- Leopardi escrevia tratados volumosos, ção. Tenha por muito certo que, estando como o Ensaio sobre os Erros Populares como estou, não posso divertir-me mais do dos Antigos, além de outros e tantos dedi- que faço – e não me divirto nada. Afinal, a cados aos autores da Spätantique. Tradu- solidão não foi feita para os que ardem e se ziu a Batracomiomaquia, do pseudo- consomem por si mesmos”. Homero, a Titanomaquia, de Hesíodo, o segundo livro da Eneida e o primeiro da Como vemos, a erudição leopardiana Odisséia, entre outros. Ainda na adoles- coincidia com a teoria de Vico: o primeiro cência, fingiu ter descoberto “Duas Odes passo é o da filologia (terreno firme na

REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 149 acumulação do conhecimento). A erudição ler e não suportava nem o seu doloroso – conquanto necessária – devia servir para estado, nem a vida em família. Planeja, estabelecer analogias e sínteses, abstrações então, a fuga do palácio, que será de pronto e comparações. Numa palavra, a filologia frustrada. Ainda se conserva a carta precisava estar redimensionada na filoso- endereçada ao pai (dolorosa e terrível como fia. Tanto assim, que Leopardi passará por a que escreveu Kafka): três fases marcantes em sua vida. Primeiro, o “estudo desvairado e desesperadíssimo”. “O senhor conhecia ainda a miserabilíssima Em seguida, a “conversão do erudito ao vida que eu levava, com as horríveis me- belo”. E, finalmente, a passagem “do belo lancolias e tormentos de toda a espécie, ao verdadeiro”. Todas essas fases profun- advindos de minha estranha imaginação, e damente amalgamadas na sua altíssima não podia ignorar o que era mais que evi- poesia. dente, ou seja, que a isto, e à minha saúde que se ressentia visivelmente de todas es- tas coisas, que sofria desde que se formou em mim esta compleição miserável, não IV – TITANISMO E SOLIDÃO havia outro remédio senão poderosas dis- trações – tudo aquilo que em eu jamais poderia encontrar. Contudo, o se- “La froide cruauté de ce soleil de glace” nhor deixava por anos e anos um homem (Baudelaire, De Profundis Clamavi). do meu caráter consumindo-se em estudos mortíferos ou enterrando-se no mais pro- Anos a fio de estudo incessante entre os fundo tédio e, por conseguinte, na melan- milhares de volumes da biblioteca paterna; colia, derivada da necessária solidão e da uma vastíssima erudição e uma delica- vida ociosa, mormente nos últimos meses”. díssima compleição física, eis o árduo e precoce legado que herdou de si mesmo. A A partir desse período, o pessimismo cidade onde nasceu – “burgo selvagem” – histórico de Leopardi adquire dimensões era-lhe odiosa. Assim como o palácio em cósmicas (embora seja sempre complexo que vivia. Apenas a correspondência com usar o conceito de pessimismo sem com- Pietro Giordani (famoso escritor daquele preender-lhe o heróico estoicismo). A cha- tempo, que chegaria mesmo a visitá-lo em mada crise de 1819 ia determinando a dire- Recanati) era-lhe uma de suas poucas ale- ção da sensibilidade e do sistema do jovem grias. Giordani teve o mérito de reconhe- poeta. As esperanças todas se mostravam cer no jovem Leopardi o gênio erudito e vãs, impossíveis. Caem todos os véus. A poético de que já dava mais do que mos- natureza assume a condição de madrasta, tras, confirmando-lhe os seus anseios de criando miragens e ilusões. Promessas ja- glória. Um encontro histórico. Parecido mais cumpridas, eis como termina o poema apenas com aquele – literário, de que bem “À Sílvia”: fala Curtius – entre Dante e Virgílio. Ou – em carne-e-osso – de Lou Salomé e Rilke. “Também desfez-se em mim Ou de Benjamin e Scholem. Aquilo que Há pouco o doce anseio: à minha idade Raïssa Maritain definiu como as Grandes Negou-me o fado mesmo Amizades. O Eu-Tu de Martin Buber, em A juventude. Ai como, sua teoria de Encontro. Um pouco de seu Como passaste a esmo, destino começava a confirmar-se. O pri- Ó cara amiga dos meus tenros anos! meiro amigo dava-lhe as boas-vindas ao Lacrimosa esperança! mundo literário. Aquele mundo é isto? Onde os entes Leopardi, contudo, já em 1819, sente a Diletos, puro amor, obras, assuntos saúde gravemente ameaçada. Chega a per- Sobre os quais cogitamos juntos? der a visão por um longo período. Não podia Este é o destino das humanas gentes?”

150 REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 Tudo agora vai-se tornando grave. O Eu pensava, a fingir no meu viver Grande-Negador começa a reger o univer- Arcanos mundos e ventura arcana! so leopardiano. Sem o desespero de Ignaro do meu fado, e quantas vezes Kierkegaard ou a compaixão de Scho- Esta doída e nua vida minha penhauer. Apenas um rastro de solidão Não teria eu trocado pela morte”. universal. A natureza perde seu valor posi- tivo (como no primeiro Hölderlin, ou em A rara beleza das vagas estrelas da Ursa Shelley) e adquire a sua marca anti-huma- (caras também a Dante) e a delicada descri- na. Não é mais o homem que se afastou da ção dos arredores (lembrando Eichendorf) natureza, causando a sua própria infelici- fizeram desse poema um dos clássicos da dade, como escrevera Leopardi inicialmen- literatura italiana. Ainda que, como no te. Ao contrário: vemos a face terrível – até poema anterior, “As Lembranças”, se mo- então desconhecida – de um universo hos- vam em busca de um tempo definitivamen- til e indiferente ao homem. Que mais pode te perdido, a diferença é que não existe aqui desejar um – na prisão – a um centro unificador da memória (provo- não ser sonhar com a amada. Melhor a cado pela morte de Sílvia), mas uma estru- imagem do que a vida. A felicidade não tura aberta, obedecendo ao fluxo arcano da existe agora. Dela parecemos estar lembra- memória, em que cada fragmento de recor- dos. Ou então a desejamos. Possuí-la é a dação atrai, por sua vez, outros belos e nossa impossibilidade. Desejamos o que dolorosos fragmentos. Um mundo de pro- não podemos alcançar. Tudo isso aparece messas jamais cumpridas. O sono e a ilu- em “As Lembranças”. Mas de tal modo alto são representam pequenas mortes para que e solene, desprovido de qualquer possamos continuar vivendo. A dor, a lem- desbordamento, numa admirável conten- brança, o amor e a glória fazem parte da ção clássica, que bem se coaduna com a infinita vanidade de tudo, como Leopardi melancolia de um Petrarca. Tudo aqui é escreveu em “A Si Mesmo”: grave. Nenhum desespero. Nenhuma com- paixão. Tudo é exílio: “Enfim repousas sempre Meu lasso coração. Findo é o engano “Vagas estrelas da Ursa, eu não contava Que perpétuo julguei. Findou. Bem sinto Voltar ao hábito de vos olhar Que em nós dos caros erros Sobre o pátrio jardim esplendoroso Mais que a esperança, o próprio anelo é E conversar convosco das janelas [extinto. Deste refúgio onde morei menino Repousa sempre. Muito E vi o fim de minhas alegrias. Palpitaste. Nenhuma coisa vale Então, quantas imagens, quantas fábulas Teus impulsos, nem digna é de suspiros Suscitou-me na mente o aspecto vosso A terra. Nojo e tédio E das vossas luzentes companheiras! É a vida, nada mais, e lama é o mundo. Sentado, mudo, sobre a grama verde Repousa. E desespera Eu passava das noites grande parte A última vez. À nossa espécie o fado A contemplar o céu, a ouvir o canto Não deu mais que o morrer. Enfim Da rã remotamente na planície! [despreza E o pirilampo errava pelas sebes, A natureza, o rudo Pelos canteiros, sussurrando ao vento Poder que, oculto, o comum dano gera Os ciprestes e aléias perfumadas E a vacuidade sem final de tudo.” Lá na floresta; e sob o pátrio teto Ouviam-se as conversas dos criados Leopardi toca novamente o sublime. O Em seu calmo labor. Que pensamentos ritmo sincopado, os enjambements, os ar- Vastos, que doces sonhos deu-me a vista caísmos, os versos peremptórios e absolu- Do mar ao longe e os azulados montes tos, a formidável força de sentimento e a Que daqui vejo e que transpor um dia clareza de expressão. Quase o limbo

REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 151 apaixonada inversão detectada por De Sanctis? Até que ponto poder-se-ia passar da anulação da vontade (noluntas) à vonta- de de poder (Wille zur Kraft)? Quais forças poderiam ter destruído a própria vida?

V – SÓCRATES E A MÚSICA

“La luce del crepuscolo si attenua” (Dino Campana, Il Canto della Tenebra).

Numa carta datada de 1874, Hans von Bülow, escritor e pianista, convidava Nietzsche a traduzir a prosa do grande ir- mão romântico de , Giacomo Leopardi. Dizia-lhe precisar de um pensador que lhe fosse próximo e afim (Nach-und-Mit-Denker). Nietzsche – em- bora creditando a Leopardi enorme admi- O poeta dantesco onde todos se encontram ração – declina do convite, por não domi- Giacomo suspensos por um desejo sem esperança. nar de todo a língua italiana. Conhecia-o Quase o Eclesiastes. Tudo agora torna-se em tradução e sentia-lhe o peso da existên- Leopardi mais drástico. O desejo é findo. A esperan- cia (Schmerzhaftigkeit). Com o tempo, ça é falta. Nem céu ou inferno. Deus ou Nietzsche começa a freqüentar cada vez Demônio. Apenas a negação. E a vanidade mais a sua obra, chegando a adaptar alguns das coisas espelhando a natureza cruel, de seus versos (como o do “Infinito”: “e o enquanto prepara a destruição da vida. Que naufragar me é doce neste mar”, assim tra- mais legou-nos o fado além da morte? duzido: “Schön in diesem Meer zu O que mais impressiona em Leopardi é scheitern”, ou ainda “an der Unendlichkeit exatamente aquilo que De Sanctis obser- zu scheitern”). Coube a Antimo Neri de- vou em seu artigo “Leopardi e monstrar os elementos de contato entre os Schopenhauer”: uma espécie de inversão interminados espaços de Leopardi e o eter- entre o sentimento do texto e o sentimento no retorno de Nietzsche. Além de Antimo do leitor: Neri, não é difícil constatar outras e mais intensas redes que os unem drasticamente. “Porque Leopardi produz o efeito contrá- Como é sabido, para Nietzsche o fim do rio a que se propõe. Não acredita no pro- mundo antigo ocorre com o binômio gresso, e faz com que o desejes; não acre- Sócrates-Eurípides, e seus terríveis proces- dita na liberdade, e faz com que a ames. sos de dissecação e conceituação, maiêutica Considera ilusões o amor, a glória, a virtu- e ironia, que deflagraram o término de uma de, e acende em teu coração um desejo in- síntese anterior a Homero. O sonho de cessante. É cético e te faz crente. Tem um Sócrates, para que ele próprio se exercitas- conceito tão baixo da humanidade, e a sua se na música (na arte e não apenas na ra- alma alta, delicada e pura acaba por honrá- zão), deu-lhe a entender — poucas horas la e enobrecê-la”. antes de sua morte — a vanidade de seu projeto, onde apenas e exclusivamente a Seria talvez o vitalismo (ou titanismo) razão, a luz de Apolo, excluía as sombras capaz de poder explicar essa estranha e poderosas de Dionísio. Eis a diferença que

152 REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 separava o coro de Ésquilo do coro de aprendê-lo pela religião. Tê-lo aprendi- Eurípides, o mito do logos (como disse do destruiria a vida, se o homem seguisse Vernant). Em seguida, o cristianismo re- fiel e precisamente os ditames e o espíri- presentava o segundo grande golpe dentro to da religião. Consideremos o cristia- daquela idade de ouro, definitivamente per- nismo em seu fervor primitivo, quando dida. Tais os princípios de uma vida anódina todos anelavam a virgindade, quando três e cruel: os evangelhos ensinando o despre- quartos do ano eram passados em oração, zo desta vida (a única vida de que dispo- nos templos, em vigílias, em penitências mos) e de sua conseqüente destruição. Tra- excessivas, etc., e indaguemos: se o cris- tava-se da negação das forças vitais, tianismo não se tivesse corrompido ou telúricas e heróicas. Passávamos ao domí- enfraquecido, quanto teria podido fisica- nio da melancolia a sonhar com um mundo mente durar? Mas aquela era contudo sua distante e perfeito, em contraste com este perfeição e seu estado primitivo e puro. vale de aflição e tormentos. Entre Nietzsche O mundo não pode subsistir se não tem a e Leopardi a diferença é que, para este, a si mesmo por fim. Todas as coisas estão genealogia de um Ocidente desfibrado co- dispostas de tal forma que, quanto a si meçava a partir de Platão (como podemos próprias, não visam senão a si mesmas. O ler no “Diálogo de Plotino e Porfírio”), homem deveria apenas visar não só aos daquela constante remissão para um mun- outros ou a si mesmo neste mundo, mas do que se encontrava além do mundo, infi- a um mundo inteiramente diverso e con- nitamente melhor do que este. A religião siderar-se como fora deste. Como, por- cristã, com sua herança neoplatônica, se- tanto, poderiam durar a espécie e a vida guiria completando esse adeus à vida he- humanas, contra os ensinamentos da na- róica dos antigos. A imortalidade da alma, tureza e a ordem geral e particular de todos o seu maior crime: os outros seres?”

“O cristianismo constitui um misto de ali- Escrito em 1821, este texto, tão pareci- ado e de adversário da civilização, de ci- do com o de Nietzsche, é da autoria de vilização e barbárie; efeito do processo Leopardi. Quase a mesma chama do civilizatório e inimigo de seus progres- Anticristo. Mais silencioso, talvez, e não sos: 1 – como o são todas as crenças, etc., menos contundente, porque silencioso. Esse que imobilizam o espírito humano e o im- impressionante julgamento – em parte de- pedem de progredir, conforme têm sem- vedor das reflexões de um Machiavelli – pre feito as teorias, conquanto derivadas permaneceu quieto em seu diário (no de doutrina e cultura notáveis; 2 – como Zibaldone). Passada a crise de 1819, é natural a um condenado, a um fruto da Leopardi jamais trilhou um caminho de con- civilização dissoluta, antes, corrompida. versão e ascetismo. Voltou-se corajosamen- O cristianismo, na sua perfeição (e a na- te para um irreversível materialismo. tureza, a propriedade, o efeito das coisas Interessante será ainda ouvir Nietzsche, são considerados em sua perfeição, não tratando – anos mais tarde e com icono- em estado imperfeito, isto é, não como clasmo da filosofia do martelo – do mesmo devem ser), é incompatível, não só com tema: os progressos da civilização, mas com a subsistência do mundo e da vida huma- “Chama-se ao cristianismo religião de pi- na. Como é possível que aquele que tem edade. A piedade está em oposição com a si mesmo como um nada, etc., e que os afetos tônicos, que elevam a energia do anela sua própria destruição dure? O sentimento vital; opera de uma maneira homem não deveria compreender, pela depressiva. Quando uma pessoa se com- razão, que as coisas não valem nada e são padece, perde força. Pela piedade, aumenta infelicíssimas. Ele fora destinado a elas. e multiplica-se ainda mais a perda de for- Nesse sentido, não deveria, portanto, ça que o sofrimento já ocasiona à vida. O

REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 153 sofrimento mesmo chega a ser contagioso gido em 1817, sendo interrompido apenas pela piedade; em determinados casos pode em 1832, sem que dele jamais se afastasse acarretar uma perda total de vida e energia o próprio autor. Nada parecido com o Di- vital”. ário de Amiel ou com o Dicionário de Voltaire. Era algo novo que desconhecia Claro está que outros componentes – precedentes. como o darwinismo e a vontade, deslocada Tanto assim que o Zibaldone ainda hoje de Schopenhauer e reinterpretada com va- não comparece de todo integrado ao uni- lor positivo – separam capilarmente verso da crítica leopardiana, apesar dos Nietzsche de Leopardi. Mas é na vontade esforços de um Solmi, de um De Robertis de poder que as afinidades poderiam ser ou de um Pacella. As dificuldades de com- buscadas. De que maneira, a não ser por preender uma estrutura dinâmica de pen- denegação (Verneinung), poder-se-ia vin- samento – que atravessa cada página da- cular o vitalismo ao pessimismo? Basta quele diário – pareceram intransponíveis. percorrer as páginas do Zibaldone para en- Houve mesmo quem decidisse ignorar o contrar uma de suas palavras mais recor- Zibaldone, como se fosse desprovido de rentes, as esperanças mortas. Tudo que fi- inteligência interna, quase uma simples cou para trás. Uma anatomia (post litteram) coleção de fragmentos. Ou – quando mui- da esperança. Mil astros incinerados. E a to – recorria-se ao Zibaldone para retirar- estranha luminosidade promanando de cada lhe esta ou aquela passagem que mais se fragmento. Este seria — para Nietzsche — adequasse aos Cantos ou aos Opúsculos. o começo do meio-dia. Tem razão Cesare Luporini ao afirmar que um estudo sistemático do pensamento leopardiano seja ainda prematuro. Será preciso conhecer melhor este território, VI – MENSAGEM FUTURA segundo uma perspectiva geral e articula- da, minuciosa e flexível. Nessa direção tem avançado a crítica. “Al the night in woe” (Blake, The Little Girl Dentre as muitas surpresas do Found). Zibaldone, De Robertis sublinhou uma sur- preendente observação de Leopardi, quan- Quando – e principalmente por mérito do voltava (após um silêncio demorado) a de Carducci – foram publicadas as 4.526 escrever os grandes Idílios: “A privação de páginas do diário de Leopardi (1890-1900), todas as esperanças acabou por apagar pou- houve uma grande comoção por parte da co a pouco dentro de mim quase todo o crítica, que começava a descortinar um desejo. Agora, mudadas as circunstâncias, formidável território investigativo. Era pre- ao ressurgir a esperança, eu me encontro na ciso mapear esse mundo complexo e apa- estranha situação de ter mais esperanças do rentemente desornado. Como quem entras- que desejos”. Um impressentido raio de sol. se num continente desconhecido (ou qua- Mas é claro que não estamos sugerindo uma se) que se intitulava Zibaldone. Tratava-se leitura otimista daquele universo. Nem de uma densa floresta – como diria tampouco desejamos inserir um princípio- Bernardes –, que abrigava fragmentos de esperança do avesso. Podemos constatar, futuros poemas, observações de ordem entretanto, o resplendor de sua vontade. moral e afetiva, meditações metafísicas, Esse quase meio-dia que marca a sua der- inscrições literárias, máximas e provér- radeira ilusão. Esse entusiasmo que nasce bios, estudos de filologia e retórica, além do concerto literário. de pequenas e flutuantes cosmologias. Algumas vezes, o Zibaldone se parece Esse belo e estranho diário (que do caos com uma terra devastada, entre os tantos devia engendrar uma obra de arte, quase a projetos desenhados, mencionados e aban- estrela de Nietzsche) começou a ser redi- donados. Quase um ano antes da citação

154 REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 146-155, setembro/novembro 1999 anterior, encontramos um desses projetos. permite-nos supor que ele imaginava uma Chegamos apenas ao título. Anota audiência futura. E que – talvez – a men- Leopardi: “Isto pode servir para a Carta sagem maior de nosso remetente pudesse para um Jovem do Século XX”. Como se- estar circunscrita ao modo de quem viveu ria esta carta, é impossível descobrir. Sa- radicalmente a solidão e a literatura, com bemos que o Zibaldone está de algum uma generosidade tanto mais rara quanto modo endereçado ao nosso tempo. Não mais solidária. E que o jovem do século por uma atualidade de permanência, mas XX – mais contemporâneo do que seus por uma atualidade de resistência. O mes- próprios contemporâneos – pudesse com- mo quadro de luz e o mesmo quadro de preender e amar alguém que escolheu a sombras parece subjugar o nosso destino. literatura como princípio e ação. Talvez E o cuidado de Leopardi com o seu diário aqui, o meio-dia.

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