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Anexo: Testemunhos de Deslocados, 2000 e 2001

Os Abusos da UNITA

Durante os últimos anos da guerra, os rebeldes da UNITA exerceram um controlo rigoroso sobre a população civil, recorrendo a actos de violência e de terror, incluindo assassínios, mutilações, violações, uso de minas antipessoais, rapto de civis para fins de combate e trabalhos forçados, tortura e pilhagem.

Em Outubro de 1999, as FAA [as Forças Armadas Angolanas, exército do governo] passaram pela nossa aldeia a caminho do , no Bié. Como a UNITA não queria que as pessoas passassem para o lado do governo, levaram-nos para a mata, onde vivemos com eles durante oito meses, até Maio de 2000. As populações de muitas aldeias foram também levadas para a mata para aí viverem com os soldados da UNITA. As pessoas foram divididas em grupos de dez ou quinze e construíram cabanas de cana a cerca de cinco quilómetros da nossa aldeia. Não podíamos ter aí lavras nossas e éramos obrigados a voltar aos nossos campos para buscar comida... Vivíamos todos juntos com os soldados da UNITA, dando-lhes comida e trabalhando para eles nas suas lavras e transportando coisas1.

Não havia lugar para ficar na mata. Estávamos sempre em movimento. Às vezes, parávamos um dia. Outras vezes, dois dias. Por vezes, caminhávamos o dia inteiro… Enquanto estávamos na mata, o meu filho, de dois meses, teve problemas respiratórios durante vários dias e acabou por morrer2.

Cheguei a em 5 de Novembro [de 2000]…. Somos de uma aldeia chamada Zonga e tivemos que deixar a nossa terra porque a UNITA apareceu duas vezes nos últimos meses... Durante estas incursões, os mais jovens fugiram para a mata, enquanto os mais idosos e as crianças ficaram na aldeia. Na sua última visita à aldeia, a UNITA espancou e matou várias pessoas dizendo: "Vocês apoiaram-os [tropas do governo], mas agora estão aqui sozinhos e vão pagar pelo que fizeram3."

Só agora conseguimos vir para aqui [para ] porque a UNITA não deixava ninguém sair daquela área. Instalaram postos de controlo e minas. A minha irmã foi morta há algum tempo por uma mina4.

1 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocado interno com quatro filhos de Cuanza Sul, Novembro de 2000. 2 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); mulher deslocada de trinta e oito anos de Cuanza Sul, Janeiro de 2001. 3 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); homem deslocado em Malanje, Novembro de 2000. 4 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte), Novembro de 2000.

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Quando perderam , avisaram-nos de que, se o governo tomasse Belo Horizonte, ninguém poderia ir para a cidade e aqueles que optassem por ficar do lado do governo não poderiam voltar para os seus campos. Porém, até isto me acontecer a mim, ninguém acreditava realmente que eles fossem tão longe... Amarraram-me os pés, os joelhos e também os pulsos. Depois, fizeram-me ajoelhar e colocaram-me as mãos no tronco de uma árvore que estava no solo. Soltaram-me as mãos e um soldado atingiu-me cinco vezes com uma catana no braço direito, que caiu no chão ... Então, ordenaram que me levantasse e o mesmo soldado cortou-me a orelha direita e atirou-a para o chão... Depois, disseram que me fosse embora e mostrasse o que me tinha acontecido aos outros que estavam em Belo Horizonte5.

Quando estávamos na prisão [no município de , depois de ter sido tomada pela UNITA], as mulheres estavam autorizadas a levar-nos comida uma vez por dia. Mais tarde, contaram-nos que tinham sido violadas pelos soldados da UNITA enquanto estávamos na prisão6.

Em Dumba Quicala [onde vivia com a minha família depois de ter fugido da nossa aldeia], os homens da UNITA reuniam as mulheres, levavam-nas para uma casa e forçavam-nas a desempenharem o papel de "namoradas". Aquelas que recusavam eram mortas... Era indiferente que já fossem casadas ou mesmos idosas. Fizeram isso comigo uma vez. É verdade, violaram-me 7.

A UNITA chegava e levava os rapazes e as raparigas… As raparigas serviam para tomar conta dos bebés da UNITA, ir buscar água e cozinhar para eles. Os rapazes serviam para apanhar lenha e transportar os mantimentos e as armas da UNITA e eram treinados para se tornarem soldados da UNITA8.

As FAA ocuparam Cambundi Catembo em Novembro de 1999. Nessa altura, a UNITA atacou e incendiou doze bairros... A UNITA disse que tinha incendiado a aldeia porque as pessoas tinham informado as FAA das suas posições. Eles [a UNITA] têm uma base em Maxito e costumavam apoderar- se de alimentos e pessoas para servir os seus fins. Assassinaram o soba Kakunga e raptaram crianças9.

5 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocado interno do município de , Província do Bié, Maio de 2000. 6 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocado interno da comuna de Chipaeta, Catabola, Bié, Maio de 2000. 7 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); mulher deslocada com dois filhos de Malanje, Novembro de 2000. 8 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); pequeno grupo de recém-chegados a Malanje, Novemb ro de 2000. 9 Entrevista da Human Rights Watch a deslocados internos em Cambondo, Malanje, , Maio de 2001.

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Existem outros testemunhos em que os deslocados internos descrevem os abusos de que foram alvo. Aqueles que vivem na área de Catepa, em Malanje, relataram muitos casos de violação de jovens em Talamungongo em Abril de 2001, quando a UNITA atacou e incendiou todas as casas. Um dos deslocados tinha assistido à exploração sexual de raparigas de quinze anos pelas tropas da UNITA10. Em Agosto de 2000, um grupo de pescadores conseguiu escapar das forças da UNITA, depois de terem sido capturados ao voltarem para Bembo, em Malanje, tendo sido então avisados pela UNITA de que a população local merecia morrer porque se tinha juntado ao governo 11. Os rebeldes da UNITA cortaram a orelha a uma mulher que costumava ir de Belo Horizonte para os seus campos, em Gamba, ambas na província do Bié 12. Uma deslocada de trinta e oito anos, oriunda de Cuanza Sul, declarou que os homens da UNITA mutilavam as pessoas que encontravam no caminho para os campos, em , impossibilitando assim a sua fuga. Chegaram mesmo a abrir o peito de civis para lhes retirar o coração13.

Os Abusos do Exército e da Polícia Angolanos

Durante os dois últimos anos de guerra, as forças armadas foram também responsáveis por muitos abusos, nomeadamente execuções sumárias, actos de violência sexual contra mulheres e espancamentos indiscriminados. Os soldados que guardavam os campos para deslocados internos maltratavam também aqueles que deveriam proteger.

Em 29 de Março de 2000, saí de casa sozinho para ir para os campos. Cerca das 11 horas da manhã, quando arrancava ervas daninhas à volta do meu campo, vi um polícia fardado com o uniforme azul caminhar na minha direcção. Quando estava a uma distância de cerca de 10 metros, alvejou-me. A bala atravessou-me o joelho direito. O homem não disse uma única palavra. Depois do que me aconteceu, ouvi relatos de casos semelhantes. Disseram-me que a polícia tinha alvejado também um jovem de em Março. Este jovem foi ferido em ambas as pernas por uma bala. Penso que alguns chefes da polícia autorizam e chegam mesmo a dar ordens para que os civis sejam alvejados, enquanto para outros essa é uma questão que os deixa completamente indiferentes14.

Um dia, as FAA chegaram a uma aldeia, entraram na casa de umas pessoas e levaram as mulheres e crianças para Jamba, abatendo a tiro todos os homens da casa: quatro homens e até um rapazinho de nove anos. Estes homens eram

10 Entrevista da Human Rights Watch a deslocados internos em Catepa, Malanje, Maio de 2001. 11 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocado de quarenta e cinco anos, com dois filhos, de Bembo, Malanje, Outubro de 2000. 12 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocada de Nharea, Bié, Maio de 2000. 13 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocado interno de trinta e oito anos de Cuanza Sul, Janeiro de 2001. 14 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocado interno do município de Cunhinga, Província de Bié, Maio de 2000.

20 apenas agricultores que viviam do lado da UNITA porque não tinham escolha. Estes homens nada sabiam sobre a UNITA, mas, mesmo assim, as FAA mataram-os a todos. Algumas pessoas desta aldeia queriam ir com os homens das FAA, mas, quando eles chegaram, estas pessoas fugiram para a mata com medo de serem também mortas15.

Quando o exército chega, os idosos, as raparigas e as crianças são levados para o município, [os rapazes ficam] porque é difícil controlar as áreas circundantes e eles precisam de informadores. Há dois anos, em , na província do Zaire, os deslocados internos foram levados à força para o centro depois de terem sido espancados e de as mulheres terem sido violadas, nomeadamente a esposa de um catequista16.

Na semana passada [Maio de 2001], um grupo de homens armados, com uniformes das FAA, apareceram no nosso bairro e obrigaram-nos a retirar o tecto de zinco das nossas casas e a transportá-lo, juntamente com as camas e outros objectos da casa, para Malanje. Se não lhes obedecêssemos, batiam- nos. Demorámos quatro dias a chegar a Malanje. Então, disseram-nos para deixar as coisas perto do mercado17.

Em Setembro de 2000, três soldados e um sargento, fardados e armados, chegaram ao campo e exigiram-nos [ao vice-coordenador do campo e a um professor] alimentos e outros objectos. Amarraram-nos as mãos e bateram- nos repetidas vezes. Não lhes demos o que queriam e, mais tarde, apresentámos queixa ao seu comandante. Por fim, estes militares foram transferidos para outra área e nunca mais voltaram aqui18.

Estas histórias repetem-se em muitos outros relatos. Em Fevereiro de 2001, entre as comunas do Lago Dilolo e , um grupo de vários soldados e um sargento mandou parar um deslocado acompanhado da filha com a intenção de a violar. O homem tentou impedi-los, mas foi alvejado na perna. Depois de ter sido transportado para o hospital de Luena, acabou por morrer em Maio de 200119. A sua filha foi várias vezes violada. Os recém-chegados de Mussende relataram também casos de violações em Novembro de 2000 na área de Cangandala 20. Em Maio de 2001, um soldado entrou no campo de Cavango durante a noite, espancou e quase violou uma mulher e roubou-lhe a comida. Este não foi um caso isolado. Os soldados passeavam-se frequentemente pelos campos durante o dia

15 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); deslocado interno do município de , Província de Huila, Fevereiro de 2001. 16 Entrevista da Human Rights Watch a um trabalhador de uma organização religiosa da Província do Zaire, , Angola, Maio de 2001. 17 Testemunho de uma organização humanitária internacional (nome não divulgado a pedido da fonte); pequeno grupo de recém-chegados a Malanje, Janeiro de 2001. 18 Entrevista da Human Rights Watch a deslocados internos, campo Sangondo II, Moxico, Angola, Maio de 2001. 19 Entrevista da Human Rights Watch a deslocados internos no campo Sangondo II, Angola, Maio de 2001. 20 Entrevista da Human Rights Watch a deslocados internos em Catepa, Malanje, Angola, Maio de 2001.

21 com o objectivo de localizar mulheres solteiras e voltavam durante a noite para as violar21. São frequentes os relatos de perseguições, ameaças, saques e pilhagens. Em 15 de Janeiro de 2001, onze catequistas católicos que se dirigiam para o Luena província do Moxico, vindos de Sautar, em Malanje, foram detidos num posto de controlo do exército, situado a cerca de oito quilómetros da cidade, e foi-lhes ordenado que entregassem todos os seus pertences porque, segundo os soldados, tinham contribuído para a UNITA22. Em Fevereiro de 2001, na área de Catepa, em Malanje, grupos de soldados atacaram casas onde se albergavam deslocados internos, aterrorizando as pessoas e roubando-lhes os seus haveres23. Em Malanje, a polícia tentava extorquir dinheiro a adolescentes. Aqueles que não pagavam os subornos foram apunhalados por graduados da polícia. Muitos deles foram hospitalizados24.

21 Entrevista da Human Rights Watch a deslocados internos, Cavango, Moxico, Angola, Maio de 2001. 22 Entrevista da Human Rights Watch a um líder religioso, Angola, Maio de 2001. 23 Entrevista da Human Rights Watch a deslocados internos em Catepa, Malange, Angola, Maio de 2001. 24 Entrevista da Human Rights Watch a um trabalhador de uma organização religiosa, Malanje, Angola, Maio de 2001.

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