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Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO NO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal contemporâneo : estudos em homenagem a António Monteiro Cardoso e Dalila Cabrita Mateus / coord. António Simões do Paço… [et al.]. – 1ª ed. – (Extra-colecção) ISBN 978-989-689-639-3

I – PAÇO, António Simões do, 1957-

CDU 94(469)”18/20”

Este trabalho é financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional Factores de Competitividade – COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/HIS/04209/2013

Título: Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal contemporâneo. Estudos em homenagem a António Monteiro Cardoso e Dalila Cabrita Mateus Coordenadores: António Simões do Paço, Maria Augusta Tavares, Raquel Varela, Diogo Cancela Editor: Fernando Mão de Ferro Capa: Raquel Ferreira Depósito legal n.º 420 437/17

Lisboa, Janeiro de 2017 ÍNDICE

Introdução ...... 7

«Houve um genocídio na África portuguesa» Entrevista com Dalila Mateus Isabel Braga ...... 13

«Em Portugal o século XIX foi um período extraordinário de movimentações populares» Entrevista com António Monteiro Cardoso Raquel Varela ...... 23

Acumulação, regime e revolução: contributos para a história do capitalismo português (séculos XIX-XX) Raquel Varela, Felipe Abranches Demier, Luísa Barbosa Pereira ...... 41

Direito ao trabalho e segurança no emprego em Portugal: 1951-2013 Eduardo Petersen ...... 61

Os dois andamentos do marcelismo Fernando Rosas ...... 81

Anos de brasa: uma visão do movimento operário português na década de 70 Miguel Pérez ...... 85

O movimento operário na Setenave Jorge Fontes ...... 101 6 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO …

A lei geral da acumulação capitalista e as relações de trabalho na atualidade Marcelo Badaró Mattos ...... 113

Robôs e inteligência artificial: utopia ou distopia Michael Roberts ...... 135

Consciência operária e acumulação capitalista Maria Augusta Tavares ...... 155

A esquerda marxista e as questões do regime político. Marx e a ditadura do proletariado António Simões do Paço ...... 171

História e literatura em As Vinhas da Ira Camilo Domingues ...... 179

A chamada acumulação primitiva Karl Marx ...... 201

Biografias dos autores ...... 253

INTRODUÇÃO

Trabalho, acumulação capitalista e regime político no Portugal con- temporâneo é um livro colectivo que tem por objectivo homenagear António Monteiro Cardoso e Dalila Cabrita Mateus, investigadores do Instituto de História Contemporânea falecidos em 11 de janeiro de 2016 e 30 de outubro de 2014, respectivamente.

Nascida em Viana do Castelo em 1952, Dalila Cabrita Mateus era mestra em História Social Contemporânea e doutora em História Moder- na e Contemporânea, tendo focado a sua investigação na história das ex- -colónias portuguesas e da guerra colonial. Sem deixar de ser professora no ensino secundário, estava ligada ao Grupo de História Global do Trabalho do Instituto de História Contemporânea da UNL. A sua tese de doutoramento, de onde foi extraído o livro A PIDE/DGS na guerra colonial 1961-1974 (Terramar, 2004), tornou-se uma referên- cia para os interessados no papel da antiga polícia política nas ex- -colónias. Dalila escreveu vários livros com o marido, Álvaro Mateus, ex- -militante do PCP (até 1987), professor, advogado, jornalista e professor, falecido em 5 de agosto de 2013, como o conhecido e polémico Purga em Angola (Texto Editores, 2009), sobre os acontecimentos do 27 de Maio de 1977. Desta parceria resultaram ainda títulos como Angola 61. Guerra colonial: causas e consequências (Texto Editora, 2011) e Nacionalistas de Moçambique. Da luta armada à independência (Edições Asa, 2012). Em livros como Memórias do Colonialismo e da Guerra (Edições Asa, 2006) e A Luta pelas Independências (Inquérito, 2006) Dalila Ma- teus estudou a resistência anticolonial, as memórias do colonialismo, o trabalho forçado durante o Estado Novo e a luta pelo poder em Angola. “A Dalila era uma historiadora corajosa”, escreveu Raquel Varela no seu blogue por altura da morte da nossa colega e amiga, “e o seu acto mais destemido foi ter escolhido estudar a PIDE nas ex-colónias, provan- do que era uma polícia facínora, que cometia assassinatos, uma polícia muito eficaz que operava em relação estreita com o Exército, e com um 8 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … apoio massivo entre os colonos que, ao contrário do que acontecia no ‘continente’, os acolhiam respeitosamente nas cidades africanas quando estes entravam num hotel ou restaurante (salvo honrosas excepções)”. As entrevistas realizadas para a feitura de Purga em Angola, um mate- rial precioso que era necessário proteger, estão depositadas na Torre do Tombo. Também o seu arquivo foi entregue à guarda de Raquel Varela, num almoço tristíssimo dois meses antes da sua morte – dois livros estavam a caminho e muitos outros podem sair daquela imensidão de notas, documentos e saber acumulado. Aguardam o interesse dos investi- gadores, jovens e menos jovens, que queiram dar seguimento ao seu valioso trabalho.

António Monteiro Cardoso nasceu em Freixo de Espada à Cinta em 8 de Setembro de 1950. Estudou em Lisboa, onde se licenciou na Faculda- de de Direito em 1974. Em Direito, no início dos anos 70, inicia uma actividade política organizada contra o regime que Caetano herdara de Salazar e contra a guerra colonial. Participa nos CLAC – Comités de Luta Anti-Colonial, e adere ao MRPP – de que viria a afastar-se em 1977. Exerceu funções como jurista em diversas áreas, em especial no direito da comunicação social, tendo publicado o livro Da Liberdade de Impren- sa, com Alberto Arons de Carvalho e Nuno Godinho de Matos. Com Arons de Carvalho e João Pedro de Figueiredo publicaria também Direito da Comunicação Social. A partir de finais dos anos 70, passou a dedicar-se também à pesquisa histórica, de que resultou a obra A Guerrilha do Remexido, em co-autoria com António do Canto Machado. Desde então, orientou as suas investigações para os oratorianos de Freixo de Espada à Cinta e para Trás-os-Montes na época das lutas libe- rais, assuntos a que dedicou numerosos artigos, muitos deles publicados na revista Brigantia. Doutorou-se em História Moderna e Contemporânea, em 2005, no ISCTE-IUL, Instituto Universitário de Lisboa, com a tese “A Revolução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834) – O Povo e as Elites”. Interes- sou-se também por Timor-Leste e publicou Timor na 2.ª Guerra Mundial – O Diário do Tenente Pires, sobre a ocupação japonesa. É autor, com António d’Oliveira Pinto da França, da obra Correspon- dência Luso-Brasileira, vol. I Das Invasões Francesas à Corte no Rio de Janeiro (1807-1821) e vol. II Cartas Baianas – O Liberalismo e a Inde- pendência do Brasil (1821-1823). Quando morreu, em 11 de janeiro de 2016, era membro desde há al- gum tempo do Grupo de História Global do Trabalho do Instituto de História Contemporânea da UNL. Transmontano, o António apaixonou- INTRODUÇÃO | 9

-se por compreender o século XIX na sua complexidade, demonstrando que as revoltas “conservadoras” tinham pouco de nacionalismo ou ideo- logia e muito de sobrevivência. Os seus protagonistas eram, como ele afirma na entrevista que integra este volume – e que ele, já muito doente, foi cuidadosamente corrigindo, com a seriedade, o cuidado, a atenção, a clareza que punha em todos os seus trabalhos –, “camponeses pobres, que aproveitam a resistência contra os franceses para hostilizar os proprietá- rios locais, acusando-os de jacobinos e afrancesados. Foi uma vaga de grande violência, que levou à pilhagem de casas e mesmo ao assassínio de magistrados e outras autoridades. Uma espécie de rebelião popular, que atingiu praticamente todo o País”.

Além das entrevistas com os dois homenageados, este volume integra um estudo de Raquel Varela, Felipe Abranches Demier e Luísa Barbosa Pereira sobre “Acumulação, regime político e revolução: contributos para a história do capitalismo português (séculos XIX-XX)” que procura demonstrar a tese de que “o projeto de desenvolvimento nacional que assentava na ideia de que a elevação dos salários e do bem-estar era compatível com o desenvolvimento capitalista e, portanto, poderia ser encontrado um equilíbrio entre frações de classes sociais distintas, jamais logrou êxito em Portugal”. “Direito ao trabalho e segurança no emprego em Portugal (1951- -2013)”, do jurista (e doutorando em História Contemporânea na FCSH) Eduardo Petersen, sustenta que “o direito ao trabalho constitucionalmente garantido e conceptualizado como um direito humano ao trabalho digno nunca foi assistido de condições plenas de efectivação, condições estas que hoje, no essencial, deixaram de existir”. Em “Os dois andamentos do marcelismo”, Fernando Rosas fala-nos “da falência do reformismo chegado ao poder, a crónica da impossibili- dade política de resolver a questão da guerra e, com isso, de levar por diante um processo de transição a partir do próprio regime. No primeiro andamento, tentar liberalizar sem abandono do esforço militar nas coló- nias; num segundo andamento, manter o esforço militar em África, sacri- ficando a liberalização e, com ela, o próprio regime”. Miguel Pérez, em “Anos de brasa: uma visão do movimento operário português na década de 70”, conta-nos a história da reconstituição do movimento operário organizado em Portugal no período final da ditadura e na grande explosão social que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974. Jorge Fontes, em “O movimento operário na Setenave”, como que complementa esta história centrando a sua análise nos estaleiros navais da Setenave e na “sua importância na história das relações laborais em Portu- gal: do controlo operário aos ‘pactos sociais’ e à reconversão industrial”. 10 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Em “A lei geral da acumulação capitalista e as relações de trabalho na actualidade”, de Marcelo Badaró Mattos, professor titular (catedrático) de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (Niterói, Brasil) e também investigador associado/visitante no Instituto de História Contem- porânea da UNL, discute o quadro atual de crescimento e predomínio de um perfil “precário” da classe trabalhadora ao redor do mundo à luz da formulação da “lei geral da acumulação capitalista” expressa por Marx em O Capital. O economista Michael Roberts, autor do muito recente e actual The Long Depression (Haymarket, 2016), em “Robôs e inteligência artificial: utopia ou distopia, o futuro do trabalho?” discute as implicações destas novas tecnologias para o capitalismo. Mais concretamente, se “estão os robôs e a inteligência artificial destinados a tomar de assalto o mundo do trabalho, e, por conseguinte, a economia, nas próximas gerações, e o que é que isso significa em termos de empregos e qualidade de vida para as pessoas?” Em “Consciência operária e acumulação capitalista”, Maria Augusta Tavares, do Grupo de Pesquisas sobre o Trabalho da UFPB-Brasil e também membro do Grupo de História Global do Trabalho e dos Confli- tos Sociais do IHC/FCSH/UNL, tenta compreender porquê, “embora as formas de existência na sociedade capitalista sejam tão desumanas para o trabalhador”, “o discurso liberal advogado pelo Estado e materializado nas relações capitalistas tem sido assumido pela maioria dos trabalhado- res”. António Simões do Paço, em “A esquerda marxista e as questões do regime político”, investiga, a partir dos escritos de Karl Marx e dos seus críticos coevos ou contemporâneos, o significado do conceito de ditadura do proletariado, a sua génese e a sua relação com os acontecimentos históricos do período em que foi formulado. Em “História, Acumulação e Literatura em As Vinhas da Ira”, Camilo Domingues, graduado em Artes Cénicas pela Universidade Federal da Baía e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (Nite- rói, Brasil), aborda o romance do grande escritor norte-americano e a discussão ao redor da obra, do seu escritor e a partir dos factos históricos retratados, bem como a partir das suas abordagens literárias. Este volume é completado por um famoso texto de Karl Marx, do li- vro I de O Capital, sobre “A chamada acumulação primitiva”, uma acumulação “que não é”, nas palavras de Marx, “resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida”. “Essa acumulação primi- tiva”, escreveu Marx, “desempenha na economia política um papel aná- logo ao pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e deste modo o INTRODUÇÃO | 11 pecado desceu sobre o género humano. Explica-se a sua origem contan- do-a como episódio ocorrido no passado. Em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimo- niosa, e, por outro lado, uma ralé preguiçosa que dissipava tudo o que tinha e mais que houvesse.” Assim se explicava, e explica, “que os pri- meiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para vender a não ser a sua própria pele”. Ora Marx, aqui no papel de historia- dor, trata de demonstrar como “na história real”, “a conquista, a subjuga- ção, o assassínio para roubar, em suma, a violência, desempenham o principal papel”, não a preguiça ou a diligência de uns e outros. O texto em português que aqui incluímos é fixado por António Simões do Paço a partir de duas traduções em português já existentes, a da edição brasileira da Abril Cultural (São Paulo, 1984) e a de José Barata-Moura e Álvaro Pina para a Editorial Avante! e a tradução inglesa de Samuel Moore e Edward Aveling, editada por Friedrich Engels. Não nos ocorre melhor forma de homenagear o António Monteiro Cardoso e a Dalila Cabrita Mateus que prosseguindo aquilo a que eles dedicaram boa parte das suas vidas: exercendo o trabalho de historiado- res, que com eles tivemos o privilégio de partilhar.

Os coordenadores: António Simões do Paço, Maria Augusta Tavares, Raquel Varela, Diogo Cancela

“HOUVE UM GENOCÍDIO N A ÁFRICA PORTUGUESA” Entrevista com Dalila Mateus* Isabel Braga

A historiadora Dalila Mateus apresentou no ISCTE, a 25 de Março [de 2004], um doutoramento sobre “A PIDE/DGS na Guerra Colonial”. Este foi o resultado de quatro anos de investigação, que incluiu entrevistas a dezenas de antigos presos políticos em Angola e Moçambique, para onde a historiadora viajou várias vezes, com um subsídio do Instituto de Coo- peração Científica e Tecnológica Internacional. Em Maio, a tese será publicada num livro com o mesmo título pela editora Terramar.

Colonialismo português “não foi de brandos costumes”! Dalila Mateus discorda da classificação do colonialismo português como tendo sido mais brando que outros de outras nações europeias. “Não sou eu que digo que não havia brandos costumes nenhuns, é a própria PIDE que o afirma e que critica a violência dos colonos”, afirma Dalila Mateus. A historiadora remete para vários documentos. Num deles, São José Lopes afirma, em 1973, que, nas operações de repressão da PIDE/DGS às “organizações clandestinas” em Angola, é “de evitar que os europeus tomem parte activa nessa repressão”. Dalila Mateus explica: “É que, quando vinham as camionetas carregadas de presos, havia colonos que se entretinham a disparar contra as camionetas”. A tese cita também docu- mentos em que a PIDE refere a falta de educação dos colonos. Um relató- rio de 1965, da subdelegação em Carmona, alude à “falta de preparação

* Publicada na edição de 29 de abril de 2004 do jornal Público. Reproduzida com autorização expressa da autora. 14 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … da população europeia”. Um outro relatório, de 1970, informa Luanda do caso de um rapaz de 17 anos “barbaramente chicoteado na Fazenda Santa Maria”. Noutro relatório, em Fevereiro de 1973, a PIDE assinala que alguns trabalhadores da Fazenda S. Julião apresentavam sinais de espan- camentos violentos. Em Tete, Moçambique, o inspector Sabino, conheci- do como um torcionário da PIDE, escreve num relatório: “A maioria dos administradores, eivados de mentalidade retrógrada como reis absolutos, juntam e dispõem das massas africanas para contratos de trabalho ou para a reparação de estradas”. Dalila Mateus conclui: “Se foi a própria PIDE, de métodos brutais, a fazer esta avaliação, como é que se pode falar de brandos costumes!”

Quando é que a PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado] surge em África? Em 1954, quando se dá uma reorganização desta polícia. De qualquer forma, antes da guerra colonial, determinados personagens já eram lá conhecidos, por exemplo, Roquete, um antigo jogador de futebol, que atinge uma patente elevada na PIDE e que já vinha da PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, que dá lugar à PIDE em 1945]. Havia a percepção de um grande movimento entre a África do Sul e Moçambique e Roquete foi investigar. Os moçambicanos, efectivamente, iam à África do Sul e traziam informação e propaganda do Partido Comunista Sul- -Africano.

Mas a PIDE, enquanto estrutura policial, surge só em 1954 nas colónias? A legislação é de 1954, mas só em 1957 aparecem os primeiros funcioná- rios. É criada uma sede em Lourenço Marques e uma em Luanda, ambas ligadas à PSP. Quando se dá o ataque às cadeias em Luanda, no 4 de Fevereiro de 1961, foi às cadeias que estavam adstritas à PSP, não a cadeias da PIDE.

A PIDE não tinha cadeias próprias nas colónias? No começo não, só vem a tê-las a partir de 1961, depois dos aconteci- mentos que marcaram o início da guerra colonial, e que foram o assalto às cadeias em Luanda, em 4 de Fevereiro, e o ataque da UPA na zona dos Dembos, a 15 de Março. Nessa altura, é presa tanta gente que vai ser preciso reabrir o campo do Tarrafal em Cabo Verde, para receber presos de Angola. Em Angola, os presos políticos vão, primeiro, para a Cadeia de S. Paulo, depois há o Forte de São Pedro da Barra onde a quantidade de presos é tal que os que entram acabam por esmagar os que estão lá dentro. O Campo de Péu Péu, também em Angola, que recebia presos comuns, ENTREVISTA COM DALILA MATEUS | 15 muda de nome para Campo do Missombo e começa a receber presos políticos. Quando, mais tarde, o MPLA cria a frente leste de luta, a PIDE teme a chegada dos guerrilheiros àquela zona e o Missombo desaparece e todos os presos são enviados para S. Nicolau, a que chamaram “o Tarrafal angolano”. Em Moçambique há a prisão de Sommerchild, a cadeia da Machava, a Fortaleza do Ibo, o campo de trabalho de Mabalane…

É possível fazer um cálculo do número de presos que passaram por essas cadeias todas? É muito difícil saber ao certo. Na cadeia da Machava, em 1974, estavam largos milhares de presos, tal como no campo de Mabalane… O proble- ma é que só havia registos dos dirigentes dos movimentos pró-indepen- dência. Também só eles eram levados a tribunal, e isto apenas no início da guerra. Sobre todos os outros, arrebanhados em rusgas às dezenas ou centenas, não havia registos nenhuns. As rusgas da PIDE tinham muitas vezes o carácter de massas, nos musseques. No Calemba, em 1966, foram detidas duas mil pessoas. Em Dezembro de 1968, nos musseques Mora e Rangel, são presas, respectivamente, 441 e 489 pessoas.

As medidas de segurança ou administrativas eram aplicadas em África como cá? Sim, e muito pior do que cá.

A PIDE foi apanhada de surpresa pela revolta da população negra em 1961? Não, a PIDE tinha a informação toda, começa logo em Janeiro de 1961 a avisar os Ministérios do Interior e do Ultramar, e ninguém liga. Mas a PIDE tinha redes de informadores muitíssimo bem colocadas, alguns deles estavam mesmo dentro dos movimentos de libertação. Já no final de 1960, há um colaborador da PIDE em Leopoldville [antigo Congo belga] que envia para Luanda uma carta a um hipotético amigo em que diz, e vou citar: “Dentro em breve explodirá na nossa terra de Luanda uma grave revolta, pois todos os naturais de Angola aqui residentes estão preparados para o assalto. Informai todos de que dentro em breve se vai espalhar uma grave onda de revoltas não só aí mas em todas as localida- des de Angola. Acautelai-vos bem.” Em 13 de Março, uns dias antes dos ataques nos Dembos, um informador do posto de Cuimba vem avisar um servente de que vai haver graves ataques dos homens da UPA e que iam ser mortos muitos brancos. Dias depois, chegam informações de Cabinda de que a UPA se prepara para entrar em Angola. Na véspera do 15 de Março, o posto da PIDE em São Salvador informa sobre o que vai acon- tecer. A PIDE transmitiu tudo isto para Luanda e para Lisboa, e nada é 16 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … protegido nem salvaguardado. Possivelmente não terão acreditado no que um PIDE dizia.

Quem montou essas redes? Gente de Lisboa. São José Lopes e António Vaz eram os responsáveis pela PIDE em Angola e Moçambique, respectivamente, sendo o primeiro o inspector superior do Ultramar.

São José Lopes é sempre referido como alguém muito próximo de Costa Gomes, quando este era o comandante em chefe das Forças Armadas portuguesas em Angola. Quem foi este personagem? São José Lopes foi sempre uma grande figura em Angola, já era da PIDE quando estudava aqui em Lisboa, no Instituto Superior de Economia e Finanças, onde foi colega de Vasco Cabral, da Guiné. É de facto um homem com uma grande capacidade de trabalho, os relatórios mais perspicazes sobre a situação de guerra são dele, é de uma capacidade de análise espectacular.

Como era a estrutura da PIDE colonial? Em Angola, a PIDE chegou a ter nove subdelegações e cerca de 40 postos em todo o território, num total de 801 funcionários. Em Moçambique existiam 583 funcionários, em sete subdelegações e pelo menos uma quinzena de postos. Na Guiné, havia 82 funcionários numa dúzia de postos. Em Angola, por volta de 1966, também existiam brigadas móveis. Estas, para o trabalho de informação e contra-subversão, apoiavam-se em grupos de voluntários africanos. Terão sido os resultados animadores desta experiência que levaram a PIDE a criar o Corpo de Auxiliares, mais tarde estruturado nos Flechas.

Os informadores também eram numerosos nas colónias? Quem eram eles? Eram bastantes. O inspector Pereira de Carvalho, que era o director do Serviço de Informação da PIDE/DGS em 1974, dizia que um informador era qualquer indivíduo com acesso a qualquer sector da vida política, que tinha que ter um pseudónimo e ser pago. Podiam até ser os comerciantes, muitas vezes eram. A partir do início da guerra colonial vai haver mesmo o chamado espião, a PIDE monta redes de espionagem nos países limítro- fes das colónias.

Quem controlava essas redes? O controlo era feito na central da PIDE, em Lisboa, na Rua António Maria Cardoso. ENTREVISTA COM DALILA MATEUS | 17

Pode dar exemplos de uma rede dessas? Havia a rede da Zâmbia, dois sobas desse país que faz fronteira com Angola, com o Zimbabwe, o Malawi e Moçambique. Através dessa rede era possível apanhar informação de todos os movimentos dos guerrilhei- ros, quer da UPA quer dos do MPLA, quer dos da Frelimo. No Congo, havia a “Madame X”. Havia um agente provocador na Guiné, dizia que era da ARA para ver se conseguia obter informações dos guerrilheiros do PAIGC. Havia ainda informadores ocasionais, há um enfermeiro que não sabia se havia de ir trabalhar para o MPLA ou para a UPA, é a PIDE que lhe diz para ir para a UPA, que era melhor. A PIDE cativa pessoas a troco de dinheiro, que podia ser muito ou pouco, podia até haver quem recebes- se uma lata de marmelada ou uma garrafa de Casal Garcia ou uns suposi- tórios de transbronquina e ficasse satisfeito.

Quem era a ‘Madame X’? “Madame X” era uma informadora colocada no Congo pela PIDE, “uma mulher com uma história muito complicada”. A mãe de “Madame X”, casada com um espanhol, era uma comunista que se infiltra no Partido Socialista Republicano espanhol, refugia-se em França, acaba por ir para o Congo belga e casa por lá. A filha regressa a Espanha e vai viver com umas tias ricas, que a vão educar num ódio feroz ao comunismo. Apaixo- na-se por um primo que a engravida e recusa-se a casar com ela. Em consequência disso, é expulsa da casa das tias. Já mãe, a trabalhar “num negócio”, conhece uns portugueses e torna-se amante de um deles, com quem vem para Lisboa, mas ele abandona-a. Em Lisboa, “Madame X” começa a fazer traduções e monta um prostíbulo, frequentado por gente vinda de África. Um porteiro de um hotel manda-lhe um cliente, Edmond Nlandu, antigo ministro de Kasavubu, que oferece a “Madame X” um lugar de secretária no Congo belga. A PIDE recruta-a como informadora, paga o colégio da filha, em Portugal, e ela vai para o Congo, encarregada de descobrir quais as ligações dos independentistas e por onde entravam as armas dos guerrilheiros.

Nas colónias, a PIDE era uma instituição respeitada ou apenas temida? A generalidade dos colonos respeitava a PIDE, porque considerava que era esta que impedia a subversão de chegar às portas da capital. Encontrei uma informação confidencial da própria PIDE, em 1966, em Luanda, que diz: “Tanto nesta capital como por toda a parte existe um enorme respeito e muita gratidão pela acção que a PIDE vem desenvolvendo em Angola, ninguém regateando louvores à sua actuação”. Na minha tese, um entre- 18 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … vistado conta-me que estava na fila para um notário e apareceu um ho- mem com uns papéis na mão a gritar “eu sou da PIDE, eu sou da PIDE”, e toda a gente o deixou passar à frente. Aqui em Portugal isso seria impensável. Quando foi da descolonização, listas de pessoas, em Luanda, foram queixar-se dos maus tratos que sofreram às mãos da PIDE, disse- ram os nomes dos agentes e não aconteceu nada a nenhum deles, não foi apanhado nem um. Em Moçambique foram presos pouquíssimos, no 7 de Setembro fogem todos, as cadeias foram abertas pelos colonos. Mesmo nos musseques de Luanda, muitos colonos que viviam no limite entre o musseque e a chamada cidade do asfalto acabam por dar protecção aos pides.

A PIDE apercebeu-se antes dos militares que a guerra colonial estava perdida? Em Moçambique, em 1973, a PIDE dá informações de que as nossas tropas estão a ser vencidas e Kaúlza de Arriaga vem dizer “não, não, isto está ganho”. Em fins de 1973, começos de 1974, na Beira, Moçambique, há grandes manifestações de colonos contra o Exército, por este estar a perder a guerra. Nessa altura, São José Lopes manda informações a dizer que está preocupado com a divisão entre civis e militares. A PIDE fazia uma muito boa análise da situação. Quer Pereira de Carvalho quer Silva Pais [o último director da PIDE/DGS] sabiam muito bem o que se passa- va. António Vaz, chefe da delegação da PIDE em Lourenço Marques, tem consciência de que vão perder o controlo sobre a guerra, que os guerrilheiros estão a avançar, cada vez com mais armas e melhor equi- pamento.

A guerra colonial estava perdida? Em Moçambique sim, e também na Guiné, em Angola era diferente. Aí a PIDE foi talvez mais eficaz em termos de repressão, tudo o que era grupo que começasse a surgir no musseque era preso, as redes de apoio ao MPLA eram apanhadas umas atrás das outras. Em Angola a PIDE soube utilizar a calúnia; por exemplo, forjava panfletos do MPLA a dizer mal da UPA, ou da UNITA, era a contra-informação muito bem desenvolvida e trabalhada. A certa altura, o próprio São José Lopes tem medo das conse- quências deste tipo de actuação.

Havia uma colaboração estreita entre a PIDE e os militares? Havia. Em Angola, sem dúvida. Os militares não gostam muito de admi- tir isso, Costa Gomes era uma excepção, ele assumiu mesmo essa colabo- ração e dava todo o valor à informação estratégica que a PIDE dava. ENTREVISTA COM DALILA MATEUS | 19

Toda a gente sabia disso? Sabiam as chefias.

Em que é que se traduzia a colaboração? A PIDE participou em operações ao lado de militares, acompanhou as tropas no massacre de Wiriamu, e há outros massacres do mesmo género em que participou, massacres de populações civis, em que ninguém ficava vivo. Há operações militares conduzidas pela própria PIDE, como aquela que levou à desarticulação dos Comités de Acção Clandestina, do MPLA, em Julho de 1970. São presas cerca de 100 pessoas.

Houve muitos massacres? Antigos presos falam-me de variadíssimos massacres. Muitas vezes não sobrevivia quase ninguém, ou sobreviviam só crianças, pequeníssimas, não ficou ninguém para contar. Tive alguns presos de Moçambique que me falaram de uma praia, Tohofinho, onde a PIDE ia descarregar presos na maré para serem depois comidos pelos tubarões. Havia coisas destas, mas é muito difícil gerir esta dor toda e pôr as pessoas a falar. Nos mas- sacres ardia tudo, dizimavam tudo. A ONU pediu a Portugal que investi- gasse. É Costa Gomes – estávamos já depois do 25 de Abril –, que vai fazer que isso não seja tratado. Em Dezembro de 1973 a Assembleia Geral da ONU criou uma comissão de inquérito encarregada de estudar os massacres e as violações dos direitos humanos na África portuguesa. A comissão confirma uma extensa e aterradora lista de crimes de guerra, traduzindo, e vou citar, “uma prática comum frequente e generalizada de acções traduzindo uma política de genocídio por parte do Governo portu- guês”. Não tenho dúvidas em dizer que houve mesmo um genocídio.

Massacres com a participação da PIDE? “Nos massacres de Wiryiamu, Juwau e Chaole, a matar estiveram por toda a parte os comandos e os africanos dos Grupos Especiais ou os Flechas”, afirma a historiadora na sua tese. E aponta como os “organiza- dores do morticínio os comandantes da Zona Operacional de Tete com o consentimento do governador” daquele distrito. “No massacre de Mu- cumbura, em Maio de 1971, segundo os padres Valverde e Hernandez, os comandantes eram um sargento e um agente da PIDE/DGS. Bateram, torturaram e massacraram, da maneira mais cruel, inofensivos campone- ses, cujo único crime era terem dado alimentos aos guerrilheiros. Em Inhaminga, a PIDE/DGS queria desfazer-se dos presos que se amontoa- vam nas cadeias. Segundo uma estimativa, 35 africanos foram metidos num camião e transportados para o meio do mato, à beira de um caminho 20 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … que passava por detrás do hospital, na direcção de Thombo la Mphale e Massandza. Naquele sítio foi aberta uma vala, onde foram enterrados os homens fuzilados. Mais tarde, foram transportados, fuzilados e enterrados mais dois grupos de 30 a 48 pessoas. Agora na Zambézia, na zona com- preendida entre as missões de Milange, de Mocuba e a serra de Morrum- bala, funcionários administrativos, acompanhados de agentes da PI- DE/DGS, fizeram uma busca, desconfiando da existência de guerrilhei- ros. Os guerrilheiros não foram encontrados. Contudo foram mortos centenas de homens e mulheres indefesos. Já depois do 25 de Abril, na aldeia de Sena, em Moçambique, foi descoberta uma vala comum com as ossadas de dezenas de africanos, que teriam sido torturados e assassina- dos pela PIDE.”

As tropas utilizavam armas proibidas? Na tese, falo no célebre “agente laranja”, que era um desfolhante e vai ser utilizado pelos portugueses em Moçambique, há o carbúnculo, foi o próprio Costa Gomes a contar que eram preparadas caldas bacteriológicas no Hospital Egas Moniz e é ele que as manda destruir. Foi usado “na- palm”. Há um guerrilheiro que fala da “rega” e as bombas incendiárias eram constantes.

O que é isso da “rega”? Entrevistei um guerrilheiro do MPLA que fala nisso, a “rega” era quando os aviões vinham pela manhã, cinco, seis horas, deixar cair desfolhantes químicos, se caíssem na pele queimavam. Penso que também aconteceu em Moçambique. Depois, as lavras não davam nada e a população passa- va fome. Este ex-guerrilheiro explicou-me o tipo de cicatrizes que os desfolhantes deixavam e tenho reparado em africanos com esse tipo de marcas, muito irregulares.

A actuação da PIDE endureceu com o avanço da guerra colonial? A PIDE é de uma grande violência logo desde o começo da guerra.

Quantos mortos fez a PIDE em África? Sei que devem ser milhares, os presos falam de muitos milhares, que foram apanhados pelos massacres. Presos dentro das cadeias, morreram umas centenas largas, muitas.

A PIDE em África também distinguia entre presos intelectuais e operários, entre brancos e negros? Sim, fazia essa distinção, mas a distinção tinha também que ver com o cargo que desempenhavam no movimento. São poucos os julgamentos, ENTREVISTA COM DALILA MATEUS | 21 em geral os dirigentes vão a tribunal e os brancos também. O António Dias Cardoso, o Luandino Vieira e o António Jacinto vão a julgamento. E são muito maltratados. Houve um indivíduo crucificado no Campo de São Nicolau, para dar o exemplo aos outros de que não podiam fugir.

A PIDE não desapareceu em Angola com o 25 de Abril? Mudou de nome, passou a chamar-se Polícia de Informação Militar (PIM), e continuou a mandar informações para Lisboa. Só desapareceu quando foi nomeado o primeiro governo provisório em Angola, depois da independência.

“EM PORTUGAL O SÉCULO XIX FOI UM PERÍODO EXTRAORDINÁRIO DE MOVIMENTAÇÕES POPULARES” Entrevista com António Monteiro Cardoso Raquel Varela

António Monteiro Cardoso: É curioso tomarmos como tema o século XIX, uma época muito esqueci- da, não obstante ser imprescindível para compreendermos a época actual. Esse esquecimento deve-se em grande parte ao facto de se tratar de um período de revoluções, conforme lhe chamou Hobsbawm numa das suas obras. De facto, também em Portugal o século XIX foi um período extra- ordinário de movimentações populares, desde o princípio até ao fim.

Era isso que eu queria perguntar. Se fizesses um roteiro de todas as mobilizações populares do século XIX, quais seriam as mais impor- tantes? Destacaria a resistência às invasões francesas como a principal movi- mentação popular, tanto mais que foi aí que tudo começou. Há um antes e um depois desse acontecimento.

Quem são os sujeitos sociais aí? Os sujeitos sociais são essencialmente camponeses pobres, que aprovei- tam a resistência contra os franceses para hostilizar os proprietários locais, acusando-os de jacobinos e afrancesados. Foi uma vaga de grande violência, que levou à pilhagem de casas e mesmo ao assassínio de ma- gistrados e outras autoridades. Uma espécie de rebelião popular, que atingiu praticamente todo o País.

24 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Apesar disso fala-se dos brandos costumes do povo português… Isso é uma construção mítica feita a partir do apagamento dos factos que desmentem essa ideia. Brandos costumes, nada!

Mas não foi o Alexandre Herculano o primeiro a vir com essa ideia? Pelo contrário, o Alexandre Herculano temia e odiava as movimentações da plebe. Impressionado pela sua intervenção na revolução de Setembro de 1836, de que já falaremos, exilou-se na Galiza, onde publicou um escrito chamado A Voz do Profeta, uma feroz diatribe contra as classes populares, a quem chama “antropófagos”, “sedentos de sangue”, “migue- listas” e assim por diante. Enfim, foi uma posição tomada a quente, num momento difícil para ele…

Mas voltando às invasões francesas, o que é que a resistência popular trouxe de novo? Muita coisa, e irreversível. Desde logo, o armamento popular com armas de fogo e o treino no seu manejo. A partir de então, qualquer movimento assume facilmente uma expressão armada, quer em Portugal, quer em Espanha. Não te esqueças de que o termo “guerrilha” é um vocábulo castelhano, designando uma táctica de combate, que se difundiu pelo mundo inteiro. Outra consequência não menos importante é o doutrina- mento prático causado pela guerra, a ideia embrionária de que é possível e legítimo ao povo intervir nos acontecimentos políticos.

Mas quais eram as ideias que os moviam? A isso é mais difícil responder, porque esta mobilização surge quase sempre sob bandeiras tradicionalistas de defesa do trono e do altar e de combate ao jacobinismo. Isto, por força da acção do clero, que dessa forma pretende dirigi-la. E em boa parte consegue-o. Só que, ao mesmo tempo, atacam-se autoridades e proprietários ricos com a maior violência.

E como explicas essa contradição? Acho que o povo queria era acima de tudo ajustar contas com os podero- sos locais de quem não gostava e ver-se livre das autoridades que os oprimiam. A razão desde ódio terá a ver com ofensas à sua “economia moral” e a uma desaprovação moral da desigualdade social desmesurada, enfim aquilo que George Rudé e Raymond Huard chamaram política popular.

E o povo não quereria evitar a desapropriação ou expropriação? Ou seja a proletarização? Naquela altura, em Portugal, era muito, muito cedo para se colocar o problema. ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 25

Mas não existiam já algumas alterações que provocaram descontentamento? Bem, desde meados do século XVIII, durante o pombalino e no reinado seguinte, tiveram lugar as primeiras apropriações privadas de baldios, que provocaram descontentamentos locais, sobretudo aos que se dedicavam ao pastoreio nesses terrenos comuns. Foram tomadas medidas de rees- truturação fundiária, que passaram pela abolição de caminhos públicos em benefício dos donos das propriedades atravessadas e pela venda compulsiva de prédios encravados e contíguos, em favor dos proprietá- rios confinantes. Estas e outras medidas vão numa lógica de afirmação de um novo tipo de propriedade murada.

E os proprietários mais ricos tentam apropriar-se… Sem dúvida, mas trata-se ainda de um movimento pouco generalizado, que se confinava a uma esfera local. O grande ataque aos baldios só se verificou depois da vitória dos liberais, em 1834, e durará ainda muitos anos.

Também é na altura de Pombal que se cria a Companhia da Agricul- tura das Vinhas do Alto Douro. Quer dizer, o Estado… já tem a ver com isso ou não? A Companhia criou uma zona demarcada para a produção e comerciali- zação do vinho, que controlava despoticamente, através de centenas e depois milhares de empregados. Um avanço enorme do poder de Estado, que assumia um peso enorme, se o compararmos com o escasso número de magistrados e outros funcionários ao serviço da coroa.

Mas voltando de novo atrás, às invasões francesas, referiste há bocado que o povo atacara os poderosos, incluindo os magistrados. É verdade. Embora os magistrados, corregedores e juízes de fora, fossem poucos, eram todos letrados e vinham imbuídos de uma concepção jurídi- ca, assente na lei escrita, contra o direito consuetudinário das populações, o que os tornava pouco populares. O certo é que nestes levantamentos o povo se lançou em perseguição dos magistrados e chegou a assassinar alguns.

Mas queriam matar os juízes porquê? Porque prendiam pessoas do povo, ou seja os que tinham de infringir a lei para sobreviver. Além disso, havia um óptimo pretexto para ajustar contas. Eles tinham cumprido as ordens dos franceses e era facílimo apontá-los como “afrancesados” e jacobinos perigosos. 26 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Então era uma luta contra o Estado? Era o que eu queria dizer… Existe uma oposição às autoridades do Estado, que põem em causa os costumes locais e um certo autogoverno local, mas nesta altura o aparelho administrativo e judicial a nível local é muito débil. À excepção das circunscrições mais importantes, onde exercem funções juízes letrados de carreira, na maioria das povoações são nomeados juízes leigos (juízes pela lei ou pela ordenação), escolhidos entre os vizinhos, pelo que inte- gram a comunidade local, ao contrário dos juízes letrados (corregedores e juízes de fora), que facilmente são vistos como “despóticos”.

A crise do Estado leva as populações a avançar… Claro que as invasões francesas e a ausência do rei no Brasil forneceram pretextos para alguns povos se recusarem a pagar os tributos, invocando que as ordens de cobrança não tinham sido subscritas pelo soberano e outros argumentos semelhantes.

Quer dizer que se iniciou um processo de alguma desagregação do Estado. Que foi rapidamente preenchido pela constituição, nas principais cidades e vilas, de juntas governativas, chefiadas por bispos ou oficiais do Exérci- to, mas que nalguns casos, como em Viseu e Arcos de Valdevez, incluí- ram elementos que visavam mudanças, o que provocou grandes receios às autoridades. Mas tudo acabou por se restabelecer, através da acção da Igreja e da nobreza das províncias, com o auxílio, a partir de 1809, dos ingleses, que não permitiram qualquer mudança política.

Então os ingleses sustentaram o poder de Estado, mas armaram as populações. Enquanto durou a guerra, apoiam-se nas ordenanças, que já estavam armadas. Constituíam a terceira linha da força armada, que praticamente incluía toda a população capaz de pegar em armas. Para este efeito, o País estava dividido em capitanias-mores, comandadas pelos capitães-mores e demais oficiais, que eram civis, membros das elites locais. Em tempo de guerra, reuniam anualmente e tratavam do recrutamento para o exército permanente, o que lhes dava grande influência local.

E qual foi a importância das ordenanças nesta guerra? Foi muito importante, sobretudo depois das revoltas de 1808 contra os franceses. Os invasores tinham dissolvido o Exército português e por isso os oficiais que lideraram a sublevação tiveram que se valer das ordenanças. ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 27

É no papel desempenhado pelas ordenanças, que de algum modo consti- tuem o “povo armado”, que se estriba o mito do grande levantamento nacional contra o invasor.

E não é? É um grande levantamento contra os ocupantes, mas não existia então a ideia de nação. Esses mitos fundadores do passado histórico português, com os seus heróis e façanhas heróicas, só se divulgaram entre o povo muito depois, a partir de fins do século XIX, ao longo da República, Estado Novo…

Os camponeses não sentiam que estavam a defender a nação, mas sim o seu bocado de terra? Sim. Estavam defender as casas e as famílias das atrocidades do Exército francês, que pilhava, matava, incendiava, destruía tudo à sua passagem. Chegaram ainda aos nossos dias expressões como “roupa de franceses”, que significa coisas destruídas e “ir para o maneta”, aludindo ao general Loison, célebre pelas suas devastações.

Queria fazer-te uma pergunta. O Alentejo… O Alentejo é um mundo à parte.

Queria que me explicasses essa ideia, que referiste na conferência, de que o Alentejo era um bocado uma zona incontrolada. Sempre foi. O Alentejo sempre foi…

A ideia que eu tenho é que era uma zona de grande propriedade e que sempre foi assim. Não. Nesta altura existiam algumas grandes propriedades em zonas com bons solos, nas proximidades de Évora e Beja, e um número considerável de pequenos cultivadores directos. O resto era um imenso matagal, que se manteve até bem dentro do século XIX. Um território propício ao bandi- tismo, que aí vai constituir um fenómeno endémico.

Mas como e quando é que isso se modificou e surgiram os latifúndios no Alentejo e no Ribatejo? Sucedeu depois da vitória liberal de 1834.

Como? Então, terminada a guerra civil, com a Convenção de Évora-Monte, D. Miguel partiu para o exílio e os liberais assumiram o governo. É um novo mundo que começa. Há um Portugal diferente entre o antes e o depois de 34. 28 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Porquê? Porque na sequência da extinção das ordens religiosas masculinas, deter- minada em 30 de Maio de 1834, os bens dos conventos, juntamente com os domínios da Casa do Infantado, da Casa da Rainha e da Patriarcal, foram à praça, vendidos como “bens nacionais”. Ora, ao contrário da promessa de os dividir em porções, para facilitar a compra pelas “classes menos abastadas”, acabaram por ser adquiridos ao desbarato pelas princi- pais figuras do partido vencedor, a par de usurários e especuladores financeiros, que os arrebataram por baixo preço, grande parte do qual pagaram com títulos da dívida pública e outros passados por serviços prestados.

Foi um processo imenso de transferência de propriedade! Foi a primeira grande privatização. Assim se formaram grandes domí- nios, por exemplo, o duque de Palmela ficou com a serra da Arrábida, confiscada à Casa do Infantado, enquanto ao duque da Terceira coube o Sobralinho de Alverca. E não ficou por aqui. Ficou célebre pelo escân- dalo que causou a venda directa das lezírias do Tejo e do Sado a uma companhia de capitalistas formada à pressa, contra a lei que previa a arrematação e sem dar tempo a que outras se constituíssem. Uma boa parte do preço foi pago com títulos de dívida pública, que eram aceites pelo seu valor nominal.

Claro! Isso representou a acumulação primitiva. Os casos que te referi foram os de maior alcance, mas o mesmo se passou em todo o País, onde havia bens nacionais que foram adquiridos por indivíduos que os compraram graças aos títulos admissíveis na sua com- pra. Tive um antepassado que arrematou todos os bens de um convento que foi à praça. Ficou com todos!

Espantoso! Passou a habitar no convento, depois de dessacralizada a igreja, tal como o fizeram muitos outros compradores de conventos.

E para onde foram os frades expulsos desses conventos? Foram para casa das famílias e lá se integraram. Os que eram sacerdotes tinham mais facilidade, porque podiam ingressar no clero secular, tornan- do-se párocos. Mas ainda sobre os antigos conventos: muitos passaram, sobretudo nas cidades, a ser utilizados como quartéis, hospitais e outros edifícios públi- cos. ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 29

Deixa-me agora voltar ao assunto com que iniciámos esta conversa, o roteiro das movimentações populares no século XIX. Quais são os momentos mais importantes? Então, anos depois dos levantamentos populares de 1808-1809, vamos entrar na época da revolução liberal, iniciada no Porto em 1820. Trata-se de um pronunciamento militar, promovido pelo Sinédrio, sem participa- ção popular. Aliás, foi feito para evitar a eclosão da “anarquia” da plebe, que ocorrera no tempo dos franceses. Por isso, só organizaram a guarda nacional à beira da abolição do regime constitucional, com a Vila- -Francada, em 1823, à qual os liberais não ofereceram resistência.

Então em 1823 não eclodiu um envolvimento popular? Não. Mas o caso mudou de figura anos depois, quando da tomada do poder por D. Miguel em 1828. Para fazer face à revolta militar liberal que então eclodiu no Porto, os partidários de D. Miguel mobilizaram o povo, formando guerrilhas por todo o País, sob o comando de magistrados, eclesiásticos e membros da nobreza das províncias. Essa mobilização vai manter-se e aprofundar-se ao longo da guerra civil de 1832-1834.

E qual é a atitude popular nessa guerra? Essa é uma grande questão. Os miguelistas, ou seja, os partidários do “antigo regime”, mobilizaram um Exército de mais de 80 000 homens para derrotar os liberais que tinham desembarcado no continente. Além disso, contavam ainda com corpos de milícias, voluntários realistas e a nível local com as ordenanças.

Então a população apoiou a causa de D. Miguel? Essa é a ideia construída por muitos autores, que se torna dominante a partir da publicação em 1881 do Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, segundo a qual o povo português…

… era todo reaccionário. Ele diz que o povo fora tomado por uma adoração fanática por D. Miguel, da “paixão miguelista do País inteiro”. Era a tese do unanimismo migue- lista, que António Sérgio critica num artigo de 1955, mas não havia uma investigação histórica sobre a atitude da população naquele conflito. O número esmagador das forças mobilizadas na guerra civil pelos mi- guelistas, as exuberantes manifestações de apoio a D. Miguel evidencia- riam sem mais esse apoio de quase todo o País. Ora para começar, essas descrições omitiam o facto de ser fácil a quem detém o poder e os apare- lhos de coacção e propaganda mobilizar apoiantes. O Estado Novo, com as suas “manifestações espontâneas”, mostrou-nos bem como isso se faz. 30 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

E então qual achas que foi realmente a atitude popular? Para responder a isso, fui estudar o comportamento do povo da província de Trás-os-Montes durante a revolução liberal, talvez a província cuja população tem mais fama de miguelista.

E porquê? Porque saíram de lá alguns dirigentes contrarrevolucionários importantes, especialmente o conde de Amarante, que se opôs à revolução de 1820, e o filho, que será o marquês de Chaves, que se revolta contra o regime constitucional em 1823 e contra a Carta Constitucional em 1826-1827, altura em que invade o País vindo de Espanha, onde se exilara. Mas nestas contas esquece-se sempre que o chefe militar da revolta de 1820 e o principal sustentáculo do novo regime foi precisamente o bra- gançano Bernardo de Sepúlveda.

Mas isso foram as elites, quanto ao povo… A investigação que levei a cabo deu origem à minha tese de doutora- mento, que se chama precisamente “A Revolução Liberal em Trás-os- -Montes (1820-1834). O Povo e as Elites”.

E que concluíste? Depois de ter investigado as relações dos réus processados nas devassas ordenadas por D. Miguel, que contei um por um e agrupei por naturalida- des e profissões, e de ter lido os maços de correspondência entre as autoridades locais e a Intendência-Geral da Polícia, concluí que, ao contrário do estereótipo corrente, houve uma parte considerável da popu- lação transmontana que apoiou a causa liberal. Só na comarca de Vila Real foram processadas 903 pessoas, a maior parte pequenos viticultores e trabalhadores rurais da zona mais oriental do Douro (o baixo Corgo). Eram liberais porque se opunham à Companhia, que viam como um poder despótico que os desfavorecia. Mas isso é uma longa história…

Mas outros sectores rurais apoiavam D. Miguel… Obviamente. Além dos elementos do povo que projectaram em D. Miguel as suas esperanças de ter uma vida melhor, ajudados decerto por ideias difundidas por membros do clero, outros alinharam porque de contrário iam presos e viam as casas arruinadas. Ademais prometiam-se vantagens tentadoras aos partidários de D. Miguel. Estou a lembrar-me, por exem- plo, da formação do batalhão de voluntários realistas de Serpa. O coman- dante prometeu repartir os baldios de Aldeia Nova de S. Bento entre os que se inscrevessem e o batalhão ficou rapidamente preenchido. Pudera! ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 31

É delicioso! Depois esta mobilização e o armamento de muita gente teve consequên- cias semelhantes aos levantamentos de 1808. Uma vez de armas na mão, muita gente aproveitou para ajustar contas: “Viva D. Miguel” e toca a perseguir gente rica, que apanhavam a jeito ou até autoridades, acusando- -os de “malhados” (alcunha dos liberais) para lhes assaltarem as casas. O miguelismo no poder, entre 1828-1834, representou um período de tu- multos e de ataques a pessoas e propriedades, um quotidiano de “exces- sos” que as autoridades mal conseguem conter.

Espantoso! Pois, sob a capa do miguelismo, muitas tensões sociais tiveram oportuni- dade de se manifestar. Aliás, continuaram a manifestar-se nalgumas zonas, mesmo após a derrota e exílio de D. Miguel.

Em que zonas? Após a derrota apareceram guerrilhas miguelistas por quase todo o País, constituídas quase sempre por foragidos, que em regra pouco se aguenta- ram no terreno, à excepção de uma guerrilha que surgiu no Sul, tendo por base a serra do Algarve e abrangendo o Alentejo e que chegou a operar perto de Lisboa. Essa guerrilha constitui um caso inédito em Portugal, pois foi a única que se manteve em armas por um período longo (1836 até por volta de 1843). É difícil datar o fim com exactidão.

Como se chamava a guerrilha? Ficou conhecida como guerrilha do Remexido, nome pelo qual era co- nhecido o seu chefe, José Joaquim de Sousa Reis, um lavrador residente em S. Bartolomeu de Messines, que se tornou miguelista, tendo sido encarregado, como oficial de ordenanças, do comando de grandes massas da população pobre da serra do Algarve, quando esta em 1833 se lançou ao assalto das povoações do litoral algarvio para as saquear e assassinar os liberais, o que fizeram em Albufeira. Uma grande chacina. Por causa destes actos de extrema violência, o Remexido teve de se esconder na serra, que conhecia bem, e em 1836 reapareceu em armas, com outros foragidos, criando uma nova guerrilha. Claro que com muito menos gente.

Mas então a guerra civil foi muito violenta. Dentro da guerra civil há como que duas guerras. A guerra civil do cerco do Porto e depois de Lisboa foi uma guerra clássica de cerco e de algu- 32 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … mas batalhas, travada por exércitos regulares, obedecendo às leis da guerra. Quando a guerra se estendeu ao Sul foi diferente, porque os miguelistas, em desespero, organizaram forças irregulares de guerrilhas e a consequência foram assassinatos e massacres, como o do castelo de Estremoz, em que os presos liberais foram chacinados, e o de Algalé, perto de Alcácer do Sal.

Mas a guerrilha do Remexido, reaparecida em 1836, foi diferente, não? O Remexido procurou dar uma forma regular à guerrilha, para evitar a violência descontrolada. Todos usavam patentes militares conferidas por ele e reconhecidas por D. Miguel a partir do exílio, o que lhe deu um estatuto político que evitou que fossem considerados bandidos. Apesar de serem poucos, intitulavam-se como Exército Realista do Sul, tudo reco- nhecido por D. Miguel, que nomeou o Remexido brigadeiro e o condeco- rou com a Ordem da Torre e Espada.

Então era uma força disciplinada? Sim, aplicavam a disciplina militar com rigor, ou seja comportavam-se como se se tratasse de um verdadeiro exército. O que não impedia o Remexido de executar os espias e os liberais que encontrasse pelo cami- nho. Em resposta, o Governo liberal decretou a lei marcial, que permitia o fuzilamento célere dos guerrilheiros apanhados com armas na mão.

À parte esses casos, havia no Remexido alguma coisa do bom bandido, no sentido que lhe dá Hobsbawm? Não creio. A guerrilha não tinha qualquer prática ou objectivo redistribu- tivo, o que não a impediu de ter a duração que teve. O Remexido foi fuzilado em 1838 e a guerrilha continuou com o filho dele, que durou um ano, mas aquilo era de uma maneira que morria o chefe e avançava logo outro. O objectivo da guerrilha era ajudar a restaurar o trono e o altar, e todos seriam felizes.

Mas para se aguentarem tinham de contar com apoio popular… E tinham. Os habitantes da serra do Algarve prestam-lhe um grande apoio, em resultado do envolvimento que tinham tido com os miguelistas no final da guerra. É claro que por trás da causa de D. Miguel há aspira- ções à propriedade, patentes ainda hoje em lendas que dizem que deter- minada terra foi dada ao povo por D. Miguel, que a demarcou montado a cavalo. É claro que ele nunca esteve lá. ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 33

Há bocado disseste que a guerrilha se estendera ao Alentejo. Na verdade, no Alentejo actuam guerrilhas miguelistas com chefes pró- prios, que são os irmãos Baioa de Ervidel. Ficam subordinadas ao Reme- xido, mas com grande autonomia. A guerrilha dos Baioas vai exercer uma grande atracção sobre os jornaleiros alentejanos, que vêem nela uma forma de subsistência, porque o Remexido pagava o pré aos guerrilheiros. Grande número dos guerrilheiros presos e fuzilados são jornaleiros oriun- dos dos arredores de Beja: Baleizão, Quintos, Salvada, Cabeça Gorda e outras aldeias. Para eles a guerrilha era um recurso para quando não havia trabalhos agrícolas e para preencherem necessidades essenciais, como por exemplo, vestirem-se.

Curioso, esses sítios vão ser muito fortes na reforma agrária… Nessa altura já eram aldeias de proletários. Não com a dimensão poste- rior, mas que tinham bastantes assalariados agrícolas.

Mas como é que a guerrilha se financiava? O dinheiro vinha de Roma, onde D. Miguel se exilara. Era enviado para uma junta secreta em Lisboa, que o fazia chegar à guerrilha.

O dinheiro vinha do Vaticano? Não, não. O Vaticano não se metia nisso. O dinheiro era dado por alguns miguelistas ricos, que viviam em Roma, e nunca faltou, mas não era a única fonte. Desde o início, o Remexido, no Algarve, e os irmãos Baioa, no Alentejo, trataram de buscar dinheiro onde o havia. Sabes onde? Eles só podiam entrar e, de fugida, em pequenas povoações, mas em todas elas havia dinheiro no estanco do tabaco, de que eles tratavam de se apoderar. A imposição de contribuições aos mais abonados fazia o resto.

Como conseguiste estudar em pormenor essas guerrilhas? Para espanto meu e do meu colega António do Canto Machado, encon- trámos o espólio da guerrilha, até então desconhecido, no Arquivo Histó- rico Militar.

Bem, o melhor é retomarmos o nosso roteiro. O que se segue nos anos seguintes? Temos de falar da revolução de Setembro de 1836. É uma revolução feita por camadas intermédias, que representavam uma facção liberal mais avançada. Para começar, foi feita pelas guardas nacionais de Lisboa, que impuseram a queda do Governo à Rainha. 34 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Mas de onde vieram as guardas nacionais? Ao contrário dos miguelistas, que não hesitaram em mobilizar o povo, incluindo as suas camadas mais baixas, os liberais sempre se mostraram relutantes a fazê-lo. No entanto, as dificuldades da guerra civil levaram- -nos a criar guardas nacionais, que mantiveram depois da guerra, para assegurar o seu poder. Segundo a lei que as criou, só faziam parte dessas guardas cidadãos com um mínimo de rendimento, só que a necessidade obrigou-os a admitir muita gente, a que podemos chamar da pequena burguesia, lojistas, pequenos funcionários, homens de ofícios, etc. Mas o problema maior surgiu quando os arsenalistas, operários dos arsenais da Marinha e do Exército, formaram os seus batalhões…

Imagino! Reuniam sem autorização, só obedeciam aos chefes por eles eleitos e deliberavam sobre matérias políticas que procuravam impor ao Governo. Uma facção dos governantes saídos da revolução de Setembro, os cha- mados “ordeiros”, ordenou a dissolução dos batalhões dos arsenalistas, o que estes recusaram. Em 13 de Março de 1838, numa ocasião em que estavam reunidos no Rossio, foram espingardeados pelo Exército, o “massacre do Rossio”, que causou cerca de uma centena de mortos. Após estes acontecimentos, os governos foram-se tornando cada vez mais repressivos até à chegada ao poder de Costa Cabral.

Quer dizer que o movimento popular foi esmagado? Apenas por algum tempo, porque inesperadamente apareceu em Maio de 1846 um outro movimento, a revolta da Maria da Fonte, que ao contrário dos outros é bem conhecido, logo pelo nome, indicativo do papel que neles assumiram as mulheres.

Por que ficou tão conhecido? Talvez pela sua amplitude e por ter sido genuinamente popular, sem qualquer influência exterior. Terá sido a manifestação mais exemplar da “política popular”, de que te falei atrás. Basicamente tratou-se de um motim antifiscal contra o lançamento de novos tributos pelo Governo de Costa Cabral, que levou à queima dos arquivos para destruir as matrizes prediais, as “papeletas da roubalheira”, e à expulsão de autoridades. Paralelamente, registam-se tumultos de mulheres contra o enterramento fora das igrejas, as chamadas “leis da saúde”. Esta dupla face da rebelião tem permitido interpretações contrárias, que vão do louvor, enquanto resistência à tirania dos Cabrais, até à depreciação, enquanto movimento obscurantista e reaccionário por se ter oposto a essas leis. ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 35

E o que é que tu achas? Tratou-se, como disse, de uma manifestação de “política popular”, que eclode de modo imediatista, sem planos, nem programa, por isso pode combinar razões de descontentamento diversas e que podem parecer contraditórias. Quanto à questão dos cemitérios, se aprofundarmos en- contramos também aí razões antifiscais.

Como? Além de se prever uma licença sanitária para os enterros, que custava dinheiro, a lei punha a construção dos cemitérios a cargo das câmaras, as quais, por escassez de rendimentos, lançavam derramas e muitos eram construídos deficientemente.

O que são derramas? Eram um imposto municipal a que as câmaras recorriam para fazer face a despesas extraordinárias.

E qual foi o desfecho da Maria da Fonte? Um sucesso. O movimento, que durou dois meses, estendeu-se a Trás-os- -Montes e Costa Cabral teve que se demitir e exilar-se em Espanha para acalmar os ânimos.

E ficou tudo por ali? Não. Em Outubro de 1846, seguiu-se a Patuleia, que desembocou numa nova guerra civil, que durou 8 meses.

Mas qual era a diferença entre esses movimentos? Era muita. A Patuleia não foi um movimento popular espontâneo, mas sim uma luta política armada entre o Governo cartista e os partidos da oposição coligados, desde os setembristas até aos miguelistas, que se situavam no extremo oposto. É uma guerra civil de partidos e de grandes figuras políticas e militares, que mobilizam o Exército e na qual o povo desempenha um papel subordinado.

Vamos então acabar a questão do roteiro… O roteiro acaba brilhantemente com a Janeirinha, um movimento de protesto assim chamado por ter ocorrido em Janeiro de 1868, iniciado no Porto, Braga e Lisboa, desencadeado por uma lei de Fontes Pereira de Melo, que aumentava brutalmente a carga fiscal, o que ocasionou tumul- tos violentos, sobretudo no Porto. 36 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Como é que terminou a Janeirinha? Espalhou-se a todo o País? E de que maneira! Até Maio de 1868, ocorreram mais de trinta motins. No distrito de Bragança, um dos mais agitados, ocorreram tumultos nos concelhos de Freixo de Espada à Cinta, Valpaços, Macedo, Moncorvo, Alfândega da Fé, Mirandela, Vila Flor e Bragança. Em quase todos houve choques com a tropa e incendiaram-se câmaras. Terminou do modo habitual, o Governo demitiu-se, foi formado um novo Governo com outras caras e os impostos de Fontes foram suspensos. Mas que foi um grande susto, isso foi!

Mudando agora de assunto: quem era o “Zé Povinho” no meio disto tudo? Surgiu em 1875 num jornal, como uma caricatura humorística de Rafael Bordalo Pinheiro, que depois se popularizou, sob a forma de boneco, fabricado pela Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Representa a gente simples do povo esmagado pela corrupção e injustiça, sempre desconfiado, aparentemente conformado, mas pronto a levantar-se à primeira ocasião.

O que se opõe à ideia dos brandos costumes… O roteiro que fizemos, que peca por defeito, mostra bem o contrário.

Este Zé Povinho foi buscar alguma coisa ao Zé do Telhado? Não, não. O Zé do Telhado era uma figura real, que tem alguns aspectos do bandido social, pelo menos na imagem que ficou dele. Aliás, os ban- didos têm de ser sociais, se quiserem aguentar-se algum tempo no terreno.

E quantos mais bandidos havia? É impossível contabilizar. Enxameavam o País de Norte a Sul, princi- palmente no Minho e no Alentejo. Quase todas as terras tinham os seus bandidos, que apenas são recordados localmente ou nem isso. De resto, a memória só guarda aqueles que envolviam uma história mítica, constan- temente repetida. Os papéis vendidos pelos cegos e a literatura de cordel têm um papel importante nisso.

Mas há mais figuras conhecidas… Decerto. Mas que, em rigor, não são bandidos. São homens que parti- ciparam na guerra civil, uns do lado liberal, outros do lado miguelista, e que depois se envolveram em actos de bandoleirismo. Alguns dos primei- ros foram nomeados para a Guarda Nacional e tornaram-se autênticos déspotas locais, que roubavam e assassinavam impunemente. É o caso ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 37 dos Brandões, um grupo de irmãos, oriundo de Midões, hoje no concelho de Tábua, protegidos por políticos de Lisboa. Só quando lhes faltou o apoio é que o João Brandão foi julgado e degredado para Angola. Desse ficou-nos uma canção, que ouvíamos na infância, “Lá vai o João Bran- dão”. Deve estar na Net.

E mais? Ainda do lado liberal, temos os Marçais de Vila Nova de Foz Côa, que dominavam de armas na mão, de tal modo que em meados do século XIX, uma parte da população estava refugiada no concelho fronteiro de Moncorvo. Eram comandantes da Guarda Nacional e até há um daguer- reótipo onde aparecem todos fardadinhos. Isto da Guarda Nacional, se nas grandes cidades levou a revoltas progressistas, na província deu nisto. Uma espécie de coronéis do Brasil, que por acaso eram da Guarda Nacio- nal de lá.

E do lado miguelista? Temos o Remexido e os irmãos Baioa, estes últimos quase desconheci- dos, apesar da sua importância no Alentejo. Efectuavam assaltos e rou- bos, não em proveito próprio, mas como dirigentes miguelistas, autoriza- dos por D. Miguel a partir do exílio. Já agora é de assinalar nesta época a acção na política de grupos de irmãos, autênticas fratrias. Além dos que já referi, podemos acrescentar os Cabrais e os irmãos Passos.

Tu és um homem muito total, no bom sentido marxista. Quais são para ti os melhores romances sobre isto, sobre tudo o que nos contaste? Sobre isto, tem que ler, mas se não souberem história será difícil. Há um autor que exprime a alma do povo português – passe o espiritualismo – que terei até morrer à minha cabeceira: Camilo Castelo Branco. Na obra de Camilo, há retratos da sociedade desta época que são notáveis, aliás na senda de Balzac. Embora ele estivesse próximo dos realistas franceses, isso não impedia Engels de dizer, numa carta para Marx, que havia mais de economia e análise sociológica nos seus romances do que em muitos livros volumosos.

Era melhor que o Zola? Embora eu goste também imenso do Zola, a verdade é que quis fazer uma literatura científica, de acordo com o naturalismo que perfilhava, com todas aquelas ideias deterministas sobre a hereditariedade, em detrimento da análise social. 38 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

E eu digo que há mais em qualquer romance aparentemente delicodoce de Camilo do que em muitos manuais de história. E alguns autores neorrea- listas, uma corrente muito desprezada, também são bons.

E que livros do Camilo recomendas? Há uns que são mais directamente sobre essa mudança social, em que ele se centra muito nos “brasileiros”, isto é nos portugueses que regressam enriquecidos do Brasil, que foram uma parte importante da nova burgue- sia endinheirada. Eu destacaria o Eusébio Macário (história natural e social de uma família no tempo dos Cabrais) e sobretudo A Brasileira de Prazins, os livros que melhor retratam o quotidiano do mundo rural, nos anos que se seguem à vitória liberal de 1834. Está lá tudo, até aparece o Remexido e também um falso D. Miguel, que existiu mesmo. Para mim, a leitura destes livros é uma boa forma de conhecer esta época.

E tirando os do Camilo, há mais algum que recomendes? O Eça é um grande escritor, que retrata muito bem a vida da alta socieda- de nos meios urbanos, mas para entender o mundo rural, que é um mundo desconhecido, é fundamental ler Camilo. Depois há outro aliciante, que é a própria vida de Camilo, um homem que fez tudo, passou por tudo, esteve duas vezes preso na cadeia da Relação. Um nunca acabar que foi explorado por Aquilino Ribeiro na sua obra em três volumes O Romance de Camilo. De certo modo, Aquilino é um continuador de Camilo na atenção que dá ao mundo rural. Tem mesmo um livro que relata a luta de uma povoação contra a apropriação dos baldios em pleno Estado Novo.

Qual é o melhor romance para perceber isso? Quando os Lobos Uivam. Um romance que lhe valeu um processo judi- cial de grande repercussão, do qual acabou por ser absolvido.

E quanto aos escritores neorrealistas? Há várias correntes e autores, com o seu estilo próprio, bons escritores como Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira e outros. Ultimamente redescobri Alves Redol, um autor extraordinário que me deixou surpreendido.

Mas porquê? Para abreviar, que havia imenso para dizer, o seu livro Barranco de Cegos é o único romance que se debruça de um modo desenvolvido e sistemático sobre o gigantesco processo de acumulação de propriedade resultante da venda dos bens nacionais. E vai mais longe ao mostrar como ENTREVISTA COM ANTÓNIO MONTEIRO CARDOSO | 39 isso levou à formação do latifúndio do Sul do País, que data dessa altura e não de tempos remotos, como por vezes se julga. Esta acumulação de terra na mão dos latifundiários tem como contrapar- tida um processo de proletarização generalizada dos camponeses do Sul, que nem sequer têm trabalho todo o ano. Daí que, muitos anos mais tarde, muitos deles se tenham fixado na margem sul do Tejo, para trabalhar nas fábricas da CUF, na Siderurgia, na Lisnave, etc.

Mas havia massas imensas no Norte e no Centro que foi preciso proletarizar… As indústrias que se foram criando nessas zonas do Norte e Centro em- pregavam muitos semiproletários, ou seja camponeses pobres que se tornavam operários, mas que mantinham um pedaço de terra para com- plementar o rendimento.

Mas o fim dos baldios, os impostos sobre a propriedade, tudo isso eram formas de fabricar proletários, porque a terra deixava de poder sustentar a família toda. Só que esse processo de ruína dos pequenos lavradores auto-subsistentes do Norte vai avançar de modo muito lento e só ocorrerá com a emigração dos anos 60, como se vê pela emigração maciça, sobretudo para França.

Mas a emigração dos anos anteriores, apesar de mais pequena, não revelava já uma proletarização? Não era a mesma coisa. Desde há muito que as terras dos pequenos e médios lavradores do Norte não davam para o sustento da família, so- bretudo se fossem divididas por herança. Daí que seguissem a prática de passar a casa (de habitação e as terras) para um único herdeiro, geral- mente o filho mais velho, que ficava com os bens. Os restantes eram obrigados a procurar sustento fora de casa, como sacerdotes, militares, empregados do comércio ou a emigrar para o Brasil.

Mas depois há imensas massas. De onde vêm as massas dos anos 60? Vêm das Beiras, de todo o lado, para a França. Porque é que eles de repente largam as terras? Não me venham dizer que foi por vontade própria… Foi um imenso êxodo que atingiu todo o país rural, porque essas massas que partiram, mesmo que tivessem alguma terra, viviam na mais profun- da miséria e não tinham qualquer esperança de melhorar de condição. Perguntar-me-ás: mas sempre tinham vivido na miséria e não ocorreu uma emigração daquela dimensão? 40 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Sim. Porquê nos anos 60? Porque surgiu pela primeira vez uma oportunidade extraordinária, que foi a emergência de grandes mercados de trabalho, carenciados de mão-de- -obra de toda a ordem, como a França e em parte a Alemanha, situados não muito longe do País. Ao contrário das emigrações anteriores, não era preciso cruzar o Atlântico para o continente americano. Nem pagar as elevadas quantias nas passagens marítimas, apenas ao alcance dos que tinham alguns meios. A partir dos anos 60 a emigração, que começou “a salto”, implicou enor- mes sofrimentos, mas era bem mais fácil chegar aos Pirenéus do que pagar e arrostar com uma viagem transatlântica.

ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃO: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA DO CAPITALISMO PORTUGUÊS (SÉCULOS XIX-XX)*

Raquel Varela, Felipe Abranches Demier, Luísa Barbosa Pereira

Perguntei pra mim mesmo: que tipo de frieza baixou sobre esses desgraçados? Quem os levou à torpeza? Quem os fez baixar o nível? Vocês precisam ajudá-los, rápido, coitados. Se não, vai acontecer algo que vocês acham impossível... Bertold Brecht

As políticas de reação à crise em 2007-2008 foram uma espécie de he- catombe de um projeto que começou a falhar em, vamos ser otimistas, na 1.ª República. O projeto de desenvolvimento nacional que assentava na ideia de que a elevação dos salários e do bem-estar era compatível com o desenvolvimento capitalista e, portanto, poderia ser encontrado um equi- líbrio entre frações de classes sociais distintas, jamais logrou êxito em Portugal. No fundo, sempre mostrou ser falsa a ideia de que o impulso de criação de lucro era compatível com a criação de riqueza, ou seja, que a remuneração da propriedade (renda, juro e lucro) poderia dar-se a par da criação de bens de produção necessários, bens de uso, gestão equilibrada e estável da produção, progresso e bem-estar, e evitar-se-ia a pau- perização absoluta dos trabalhadores, na forma de baixos salários e desemprego massivo – o prognóstico marxista da pauperização absoluta1

* Este texto foi originalmente publicado, com algumas alterações, em O Que é Uma Revolução? (Lisboa, Colibri, 2015). 1 Karl Marx, “A Lei Geral da Acumulação Capitalista”, In O Capital, Livro I, São Paulo, 2013, pp. 689-785. 42 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … mostrou-se o modelo e a pauperização relativa a exceção, decorrente do apocalipse de destruição de capitais ímpar na história que foi a II Guerra Mundial. A tradução em termos de classes sociais e projetos políticos desta fantasia, a do desenvolvimento nacional sem conflito, dá forma aos sucessivos projetos de combinação entre classes sociais e frações de classe ao longo de todo o século XX, que assentaria na ideia de que a criação de uma burguesia industrial e do proletariado na República seria possível sem o confronto com os artesãos expropriados, proletarização dos camponeses e desemprego e miséria massiva. E terminará na quimera dominante na viragem do século XX para o século XXI de “salvação da economia nacional” recorrendo a injeções massivas de capitais europeus, que, argumentamos ao longo deste artigo, proporcionaram, pela reconver- são do mercado de trabalho, através do Fundo Social Europeu, desde o final dos anos 80 do século XX, um modelo de desenvolvimento cuja base é a regressão social, destruição de empresas, expulsão ou exaustão da força de trabalho formada e produtiva e erosão de serviços públicos. Um modelo de “progresso” assente no retrocesso2. Entre 1910 e hoje foram muitas as faces deste projeto falhado, da ali- ança entre o que seria uma burguesia progressista e honrada e o movi- mento operário, como a proposta por Álvaro Cunhal no Rumo à Vitória3; ou na aliança entre setores médios e a burguesia financeira/industrial, por Mário Soares na “Europa Connosco”4. There is no alternative (TINA), o slogan dos anos 80, surge agora nos últimos vinte anos oferecendo a ideologia de que ideologia só há uma, a de que não há nada que os ho- mens possam fazer para mudar a história. Esta ideologia não é liberal, é geral. Porque à direita e à esquerda, em Portugal olha-se para o povo como uma massa amorfa incapaz de ter um projeto político próprio e para os setores dominantes, nas grandes empresas e no Estado, implorando que “se portem bem” e assumam ser o que nunca foram – “torna-te aquilo que tu [não] és!”, numa espécie de Píndaro às avessas. Parece adequar-se aqui a grande parte da nossa esquerda, de linha conciliadora, a crítica feita por Trotsky aos mencheviques em 1907, no V Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), quando o teórico da revolu-

2 Raquel Varela, Para onde vai Portugal?, Bertrand, 2015. 3 Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória, As Tarefas do Partido na Revolução Democrática e Nacional, Lisboa, Edições Avante, 2009. 4 Dina Sebastião, Mário Soares e a Europa: pensamento e acção. Dissertação de mestrado em História Contemporânea: economia, sociedade e relações internacio- nais, especialidade em Construção Europeia e Relações Internacionais, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação do Professor Doutor António Martins da Silva, 2010. ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 43

ção permanente os acusou de quererem obrigar os estratos burgueses russos a “desempenhar um papel constitutivo que não querem e não podem desempenhar, nem desempenham, nem desempenharão nunca”.5 A morte das ideologias é a consagração pública, pela voz dos escassos que têm acesso aos media, da asfixiante ideologia totalitária, finalista, de que o homem não é ator da própria história. Para fazer vingar esta parali- sante ideologia tem sido construída não uma análise cuidadosa da história do País, mas um psicologismo de um povo “medroso” e “amorfo” que os intelectuais decadentistas abraçam para justificar a sua adesão aos proje- tos falhados de desenvolvimento nacional. Projeto que já tinha falhado na República. Começou a falhar aí, quando em 1910 a corajosa, ilustrada, “progressista” burguesia emergente, que fez do século XIX uma batalha, chegando à guerra civil, para eliminar privilé- gios e entraves ao desenvolvimento organizados pela Igreja e pela aristo- cracia decadente, percebeu que não podia mais apoiar-se no movimento operário para levar a bom porto o seu projeto de modernização capitalista de um país que já era capitalista mas ainda não era moderno, e o decapitou. Os riscos revelaram-se maiores do que os possíveis ganhos e a cobardia genética da nossa burguesia não pôde ser disfarçada. Até hoje não pode. Os países que, curiosamente, irão juntar-se nas forças do eixo na II Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, são aqueles que, por atraso no desen- volvimento (menos meios tecnológicos, materiais, como o nosso), ou por tardiamente unificados e modernizados (como Alemanha e Itália), quando iniciam os projetos de democratização o fazem já com um movimento operário com alguma força. Revoluções burguesas como as de 1848 na primavera dos povos na Europa ou a de 1910, em Portugal, são já realiza- das com um movimento operário que contém em si um projeto de revolu- ção social, ou seja, apoia a luta contra a aristocracia mas exige direitos sociais, 8 horas de trabalho, combate ao desemprego, proteção social. As burguesias periféricas, filhas mais novas e temporãs do capital, não lograram êxito em repetir a saga revolucionária das suas irmãs mais velhas. A explicação reside, precisamente, no enorme atraso com que surgiram historicamente. O já citado Trotsky assinalou que as burguesias europeias que somente a partir de meados do século XIX levaram a cabo a sua luta contra o domínio político das forças aristocráticas já se viram impedidas de adotar uma postura autenticamente revolucionária. O temor da repetição de uma experiência jacobina e, acima de tudo, a existência, já significativa, de um novo sujeito social, o proletariado, fizeram que essas burguesias buscassem, nos seus combates contra o antigo regime, saídas cada vez mais negociadas com as forças do passado.

5 León Trotsky, A revolução permanente. 2ª edição. São Paulo: Kairós, 1985, p. 86. 44 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Lembrava Trotsky que até a clássica burguesia francesa – a qual já havia realizado a sua revolução entre os últimos anos do século XVIII e os primeiros do século XIX – evitou que, desde então, tanto os seus conflitos políticos internos quanto os seus últimos ajustes de contas com os remanescentes estratos feudais viessem a reeditar o terror robespier- rista. Os desfechos políticos das revoluções de 1830 e de 1848 expressa- ram, inelutavelmente, o enorme receio burguês de fazer uso novamente de métodos democrático-radicais num momento em que as incontáveis massas plebeias já eram constituídas por uma parcela não desprezível de segmentos proletários organizados.6 Todavia, seriam as formas políticas relativas aos processos tardios de modernização capitalista em países como Alemanha, Itália e Japão as maiores expressões do encerramento da etapa histórica revolucionária da burguesia. Carentes de um Estado nacional unificado e incapazes de conduzir sob as suas bandeiras as classes dominadas, justamente em função de o proletariado já existir enquanto sujeito social (mesmo que ainda não politicamente independente), as burguesias tardias, como a italiana, alemã e japonesa, viram-se compelidas a buscar compromissos com as suas respetivas aristocracias a fim de evitar que o processo políti- co necessário à emergência de um moderno capitalismo industrial pudes- se colocar em risco, devido à participação das camadas populares, a própria existência da propriedade privada dos meios de produção. Dessa necessidade das burguesias alemã, italiana e japonesa de pactuar, respeti- vamente, com os junkers prussianos, os latifundiários meridionais e os antigos daimyos (senhores feudais) surgiram Estados nacionais estrutura- dos pelo compromisso burguês-aristocrático aos quais esteve destinada a tarefa de conduzir, “no lugar” das suas próprias burguesias, o processo de desenvolvimento do capitalismo. O atraso cobrava o seu preço. No caso português, claro, o atraso foi ainda maior, e as consequências um tanto ou quanto similares.7 No período entre guerras, esses Estados, sujeitos de modernizações retardatárias, tenderam a assumir formas ditatoriais em função do temor da ameaça (real ou potencial) do proletariado que rapidamente se desen- volvia na cena histórica. Nas sociedades de massas, nas quais o proleta- riado já se apresenta politicamente como uma força independente, a crise

6 León Trotsky, Resultados y perspectivas. Tres concepciones de la revolución russa. Buenos Aires: el Yunque editora, 1975. 7 León Trotsky, La teoría de la revolución permanente. Compilación. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León Trotsky], 2000; e Felipe Demier, O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomização relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operá- rio (tese de doutoramento). Niterói: PPGH/UFF, 2012. ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 45 do regime democrático-burguês ou mesmo a impossibilidade da sua cons- trução pode, em certo estágio da luta de classes, acarretar o surgimento de formas de dominação política não hegemónicas, as quais, recorrendo muito mais à coerção do que ao consenso, aparecem como uma solução temporá- ria e excecional para a incapacidade hegemónica que acomete os próprios grupos dominantes. Nesses casos de acirramento da luta de classes e “crise de hegemonia”, costuma ser a burguesia impelida a romper com a demo- cracia liberal, estabelecendo formas abertas de ditadura por intermédio das quais garanta a manutenção da dominação social. Segundo Trotsky, o fascismo e o bonapartismo seriam as formas clás- sicas desses regimes ditatoriais que se afirmam em oposição à democra- cia parlamentar. Para o revolucionário russo, a opção, por parte das classes dominantes, por um ou outro desses dois regimes de crise depen- deria, fundamentalmente, de quão próximo se encontra o rebentar amea- çador da revolução proletária – momento esse que é sempre condiciona- do, entre outros fatores, pela capacidade de organização, de iniciativa e de direção de cada uma das classes envolvidas na luta. Conquanto fossem ambos regimes políticos burgueses situados na etapa decadente do capi- talismo, bonapartismo e fascismo difeririam quanto às suas estruturas constitutivas em função de terem origem em conjunturas diferentes da luta de classes. Arregimentando ao serviço do grande capital massas pequeno-burguesas iradas e desesperadas, o fascismo expressaria a guer- ra civil declarada e total contra o proletariado, visando o esmagamento de todo e qualquer tipo de organização operária. De direção pequeno- -burguesa, o projeto fascista, por implicar um turbulento e incerto proces- so político-social, apareceria no cardápio de opções políticas do grande capital apenas como a última destas, a última cartada a ser lançada somente quando não há mais nenhum outro recurso que possa impedir a vitória da classe trabalhadora:

A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao fascismo co- mo arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais críticos. A burguesia, entretanto, não gosta da maneira “plebeia” de resolver os seus problemas. Manteve-se sempre em posição hostil em relação ao jacobinismo, que lavou com sangue o caminho para o desenvolvi- mento da sociedade burguesa. Os fascistas estão imensamente mais próximos da burguesia em decadência do que os jacobinos da burgue- sia ascendente. Entretanto, a burguesia, prudentemente, não vê com bons olhos a maneira fascista de resolver os seus problemas, pois os abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, são ao mesmo tempo perigosos. Daí a contradição entre o fascismo e os par- tidos burgueses tradicionais. 46 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente (...). E é quando a crise começa a adquirir uma intensidade insuportável que entra em ce- na um partido especial, cujo objetivo é trazer a pequena burguesia a um ponto candente e dirigir o seu ódio e o seu desespero contra o pro- letariado. Esta função histórica desempenha-a hoje na Alemanha o na- cional-socialismo, uma ampla corrente, cuja ideologia se compõe de todas as exalações pútridas da sociedade burguesa em decomposição (Trotsky, L. “O único caminho” (Burguesia, pequena-burguesia e pro- letariado)8.

Antes, contudo, de recorrer ao “partido do desespero contrarrevolu- cionário”, de fazer uso do mal necessário fascista, restaria ainda à bur- guesia a possibilidade de capitular e submeter-se aos ditames de uma máquina policial-burocrática que, investida de uma significativa autono- mia política, assumisse as funções de manutenção da ordem e de “pacifi- cação” da nação polarizada. Nesse caso, engendrar-se-ia um regime de tipo bonapartista, definido abaixo por Trotsky numa linguagem recheada de metáforas:

Logo que a luta entre dois campos sociais – os possuidores e os pro- letários, os exploradores e os explorados – atinge a mais alta tensão, estabelecem-se as condições para a dominação da burocracia, da polí- cia e dos militares. O governo torna-se “independente” da sociedade. Lembremos mais uma vez o seguinte: se espetarmos, simetricamente, dois garfos numa rolha, esta pode ficar de pé, mesmo sobre uma cabe- ça de alfinete. É precisamente o esquema do bonapartismo. Natural- mente, um tal governo não deixa de ser, por isso, o caixeiro dos pos- suidores. Mas o caixeiro está sentado sobre as costas do patrão, magoa-lhe a nuca e não faz cerimónia para esfregar-lhe, se for neces- sário, a bota na cara9.

Distintamente do fascismo, um “regime de guerra civil aberta contra o proletariado”, o bonapartismo seria essencialmente um “regime da ‘paz civil’” assente “numa ditadura policial-militar”. Tendo como missão última salvaguardar a propriedade capitalista diante da ameaça proletária – e nesse aspeto mais genérico equivale tanto ao fascismo como à demo- cracia burguesa –, o seu procedimento político seria o de, por intermédio de um aparelho de Estado encorpado e relativamente autónomo, impedir justamente a eclosão dessa cruenta guerra civil apregoada pelo fascismo,

8 Leon Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, pp. 290-293. 9 Leon Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, p. 282. ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 47 poupando a sociedade burguesa a fortes e perigosas convulsões internas. Em poucas palavras, pode dizer-se que a ascensão de um proletariado diante de burguesias temerosas e retardatárias se encontra entre as razões centrais que explicam o porquê de países como Alemanha, Itália, Japão, Espanha e Portugal terem tido regimes bonapartistas ou fascistas no século XX. Este incómodo novo sujeito histórico – o proletário, ou seja, aquele que nada tem para vender a não ser a sua força de trabalho, que pode ser um sapateiro no século XIX ou um médico no século XXI – cresce em número (hoje, aqueles que vivem do trabalho representam 90% da popu- lação empregada). Isso fez que, ao contrário de Inglaterra e França, onde as revoluções burguesas foram feitas com um operariado ainda muito incipiente, os mesmos processos em países como Alemanha, Itália, Japão, Espanha e Portugal tenham terminado de facto em movimentos de ditadura. Por outras palavras, a transformação das economias inglesa e francesa em economias de monopólio, imperiais, recorrendo à massiva proletari- zação dos seus camponeses, foi realizada em democracia, e no Sul da Europa, na Itália e na Alemanha foi feita sob as botas de ditaduras porque o movimento de modernização burguês não se fez apoiando-se no movi- mento operário, mas sim contra ele. Embora, naturalmente, a ditadura alemã tenha sido feita para derrotar o seu movimento operário e a ditadu- ra portuguesa para criar, em Portugal e nas colónias, a sua massa de trabalhadores, sem a resistência das suas vanguardas mais organizadas e dos seus artesãos, decapitados mal a República se torna vitoriosa e ao longo de 16 anos. A República decapitou a sua tropa, os artesãos da carbonária, os ope- rários de Alcântara10, para finalmente parte das suas frações se reorgani- zarem em torno do Estado Novo e, aí sim, criarem uma coisa e o seu contrário – os monopólios e o proletariado, que saiu das Beiras para a Lisnave, da aldeia nativa para a plantações da Cotonang em Angola. Em 1910 a agricultura ocupava 61% dos ativos e só 17% da população vivia em centros urbanos com mais de 5000 habitantes. Isto não obstante um salto qualitativo assinalável a partir de 1852 – o operariado fabril entre 1852 e 1910 aumentou 400%. Devido à expropriação de bens públicos, ao aumento dos impostos sobre terras e propriedade, à gradual privatização das propriedades comunais, ao fim de leis como a do morga- dio (que transmitia a herança exclusivamente ao primogénito), foi sendo criado um contingente de trabalhadores assalariados e um processo típico de acumulação primitiva estava assim em marcha – em marcha literal- mente, porque estes processos foram acompanhados de milícias e exérci-

10 António Simões do Paço, Entrevista com a República, Lisboa, Guerra e Paz, 2010. 48 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … tos na frente do título de propriedade, de baioneta e pique na mão. O século XIX decorre entre guerras civis, revoltas e mesmo guerrilhas – invasões francesas, a guerra civil entre liberais e miguelistas, a Maria da Fonte, a Patuleia, o Remexido, até à Janeirinha em 1868 – que, com direções distintas e complexas alianças, num processo que está longe de ser linear, ora dirigido por franceses e liberais, ora por ingleses, ora pela Igreja, ora pela Igreja com setembristas, frações de liberais e muitas mais fórmulas (e menos puras do que se chegou a pensar), consoante o equilí- brio de forças sociais, tinham sempre como eixo, por um lado, a concen- tração da propriedade e, por outro, a proletarização de setores significati- vos da população. A par destes movimentos cria-se, é sabido, a nação, o ser português, e a sua instituição-mor, o Estado, um administrador co- mum que procura estender o seu poder militar e fiscal a todo o território, gerir as diversas frações da classe dominante e disciplinar a força de trabalho, evitando um conflito social generalizado, isto é, assegurando a estabilidade política para a consolidação do novo modo de acumulação, cujo desenvolvimento será extremamente desigual. Os mecanismos de contenção postos em marcha para driblar a crise de finais de século XIX, como a emigração massiva, algumas obras públicas e início de uma incipiente exploração colonial, não vão evitar nem o confronto essencial entre frações distintas da burguesia e ainda da velha aristocracia (que aparece como um confronto de regime entre republica- nos e monárquicos) e depois destes setores, ou parte deles, com o movi- mento operário. A revolução republicana burguesa apoia-se no movi- mento operário, mas logo nas primeiras semanas começa a ajustar contas com ele, reprimindo duramente as greves. Um novo conflito, já não só entre burguesia ascendente e aristocracia decadente, mas entre estes e o movimento operário emerge numa longa situação pré-revolucionária de intermitente guerra civil – que terminará com um golpe a 28 de maio de 1926. A não resolução deste imbróglio, isto é, a incapacidade de estabilizar o País para a acumulação – a moder- nização capitalista – vai levar um setor importante da burguesia portu- guesa a jogar a sua mais forte “cartada”, a partir de 1926: abdicar do poder executivo para manter o poder económico, ensaiando um clássico regime bonapartista – uma ditadura – para disciplinar a força de trabalho, arbitrar a concentração de propriedade em poucos grupos económicos, limitando a concorrência (protegidos das lutas faccionais entre si e de si com o movimento operário) pelo Estado, e encetar um processo agora intensivo de exploração colonial, com traços típicos de acumulação primitiva, recorrendo, por exemplo, de forma maciça ao trabalho forçado. Não vai haver força política do movimento operário para resistir ao golpe de 28 de maio de 1926 que institui a ditadura militar, começando ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 49 em 1933 o Estado Novo de Salazar por fatores que outra vez combinam consenso e coerção, cedências e repressão. Este movimento operário estava exaurido por anos e anos de repressão na I República e consegue tornar a República ingovernável, mas não consegue governar. Por outro lado, para além da repressão ao movimento operário, a rutura deste com a República é lenta porque os setores mais audazes e formados das classes trabalhadoras estavam protegidos, sobretudo por associações mutualistas. Há, como em todas as bases sociais dos regimes, políticas de consenso e coerção – uma parte dos artesãos/setores médios estavam protegidos por um sistema corporativo. A disciplinação da força de trabalho, a concentração de riqueza prote- gida da concorrência e a exploração colonial baseada no trabalho forçado são a fórmula de sucesso e durabilidade do Estado Novo11, onde verda- deiramente se moderniza o capitalismo português. Já existia antes Portu- gal, já existia antes capitalismo, mas não modernização. Ela é filha direta do regime bonapartista, a ditadura, engenheiro político do processo de modernização, que combina isso com um arranjo político das forças sociais em que o Estado se coloca como árbitro nesse momento de giro económico. Os sucessivos regimes vão organizar, em resumo, a dissociação entre trabalhadores e meios de produção (transformar camponeses em proletá- rios), mas nenhum foi tão eficaz nisso como o salazarismo, sobretudo a partir da mecanização agrícola da década de 60 do século XX. O Estado Novo realiza a incorporação controlada do proletariado na vida pública, dando-lhe lentamente acesso à escola, saúde, etc. O proleta- riado cede por isso (consenso) mas também pela coerção (ditadura); o núcleo duro do movimento sindical, os melhores e mais aguerridos diri- gentes, tinha sido eliminado ou cooptado pela República. Este proletaria- do que se submete e “aceita” o Estado Novo está politicamente decapita- do e do outro lado há todo um mundo camponês com crença no Estado, sem organizações próprias. Assim se explica a incorporação do proleta- riado na ordem que vai garantir a sustentação social da modernidade da ordem capitalista. Junte-se a isto um processo de êxodo – e expulsão – rural e urbanização, a partir dos anos 50 e sobretudo 60, em que essa massa camponesa chega à cidade. Boa parte dela é miserável, por isso há aqui também uma combinação de mobilidade social, emprego e consumo, atuando como um elevador social, nesta passagem da cidade para o campo.

11 Raquel Varela, “A Eugenização da Força de Trabalho. Trabalho, Estado e Segu- rança Social em Portugal”, in Raquel Varela (org.), A Segurança Social é Susten- tável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal, Lisboa, Bertrand, 2013. 50 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Portugal foi o império que mais usou de forma sistemática e por mais tempo várias formas de trabalho forçado. Amplamente denunciado nos jornais e agências internacionais, o trabalho forçado trazia todo um rol a ele agregado: pobreza, inexistência de mobilidade social, afastamento da família e da agricultura de subsistência, extrema desigualdade salarial e uma polícia política racista, mas eficaz, porque com uma base social de apoio mais ampla nas colónias do que na metrópole. A característica fundamental do império português, escreveu o historiador Perry Ander- son, é o trabalho forçado. Por isso, o historiador britânico batizou-o de “ultracolonialismo”, este império onde os mais pessimistas falam em 2 milhões de trabalhadores forçados, lembrando que 60% do salário dos mineiros moçambicanos na África do Sul, por exemplo, muitos em regi- me forçado, era entregue em ouro ao Estado Português, sendo que os mesmos trabalhadores eram pagos em escudos locais. Esta polarização contribuiu para transformar a população, maioritariamente camponesa, em apoiante destemida dos movimentos de libertação, facto que vai estar na origem da força destes e na fraqueza do Exército Português, levando em última instância ao golpe de 25 de Abril de 1974. Foi das colónias e não do centro, foi da periferia para a metrópole que chegou a liberdade. A combinação rara de alguns fatores levou à ocorrência da maior crise num Estado europeu desde a II Guerra Mundial: a derrota na guerra colonial, a crise económica de 1973, uma sociedade desorganizada em que as classes trabalhadoras e populares não tinham um único veículo de diálogo com o Estado (sindicatos ou partidos fortes), uma população operária, jovem, fortemente concentrada em dois lugares chave do País: as margens do estuário do Tejo e o Porto. Aquilo que começou a 25 de Abril como um golpe de Estado foi a semente de uma revolução social (que imprime mudanças nas relações de produção), encetada como uma revolução política democrática (que muda o regime político). Esta revolução democrática não esperou sequer pelas eleições para a Constituinte: em poucos dias ou semanas, foi quase total- mente desmantelado o regime político da ditadura e substituído por um regime democrático. Foi a última revolução europeia a colocar em causa a propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferên- cia, segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o trabalho, o que permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodu- ção biológica (acima do “trabalhar para sobreviver”), acesso igualitário e universal à educação, à saúde e à Segurança Social. A tese de que a democracia começou a 25 de Abril de 1975, com as eleições para a Constituinte, ou pior ainda, com o golpe de 25 de novem- bro, não tem confirmação empírica. A democracia começou no dia 25 de Abril de 1974 e não no dia 25 de Abril de 1975. Começou com horas ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 51 infinitas de reuniões onde as pessoas comuns se inteiravam das questões de trabalho, produção, habitação e gestão e votavam de braço no ar, em comissões, com representantes, revogáveis a qualquer momento caso desrespeitassem os resultados dos plenários massivamente participados. Nunca tanta gente decidiu tanto na história de Portugal como em 1974 e 1975. As tentativas de controlo do aparelho de Estado por parte do PCP (IV Governo) e por parte do PS (VI Governo), que existiram efetiva- mente, não têm nenhuma ligação com a democracia que vigorava nas empresas e nas fábricas e que foi cada vez maior ao longo de 1975, colocando sucessivamente em causa medidas de governos não eleitos. Estado e revolução não andaram de mãos dadas. A revolução e as suas conquistas não dependiam do controlo do aparelho de Estado por parte do PCP ou do PS, mas da criação de um poder alternativo na base da socie- dade: trabalho, bairros de habitação e quartéis. A maior prova da existência de uma revolução em Portugal em 1974/75 está curiosamente no que fez a contrarrevolução12. Teve de aceitar aumentos salariais, saneamentos, férias e subsídios de férias, licenças de maternidade, saúde e educação universais. Teve de haver um acordo sólido entre o Partido Socialista, a Igreja, o MFA e toda a direita. Foram precisas transferências maciças de dinheiro da Comunidade Eco- nómica Europeia; foi precisa a ameaça de intervenção militar dos EUA; foi preciso a URSS e o PCP estarem de acordo que Portugal era da NA- TO, da Europa, do lado que nos acordos de Ialta tinha ficado sob a alçada de Washington. Foi indispensável a divisão de tarefas de controlar revo- luções levada a cabo pela URSS e pelos EUA. Foi preciso o PCP ter aceitado estar em todos os órgãos que reconstruíam o Estado em crise, canalizar a força das massas para os governos provisórios e o MFA. A famosa aliança Povo-MFA nunca foi mais do que dizer às massas: con- fiem na reconstrução do Estado burguês através da parte que está em crise, o MFA. Mesmo assim, foram precisos 19 meses para derrotar a revolução portuguesa. Hoje esse passado revolucionário – quando os mais pobres, mais frá- geis, quantas vezes analfabetos, ousaram agarrar a vida nas mãos – é uma espécie de pesadelo histórico das atuais classes dirigentes portuguesas. Tanto é assim que mantém-se a insistência de, nos 40 anos da revolução, celebrar-se apenas o 25 de Abril, esquecendo que esse dia foi o primeiro dos 19 meses historicamente mais surpreendentes da história de Portugal. E que Portugal foi, ao lado do Vietname, o país mais acompanhado pela imprensa internacional de então, porque as imagens das pessoas dos

12 Valério Arcary, “25 de abril, a revolução portuguesa faz trinta anos. Quando o futuro era agora, Revista Outubro, Edição 11, 02/2004, pp. 71-92. 52 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … bairros de barracas sorrindo de braços abertos ao lado de jovens militares barbudos e alegres encheu de esperança os povos de Espanha, Grécia, Brasil... E de júbilo a maioria dos que aqui viviam. Uma das característi- cas das fotos da revolução portuguesa é que nelas as pessoas estão quase sempre a sorrir. Não por acaso, Chico Buarque cantou: “Sei que estás em festa, pá.” Ela foi a última revolução do século XX, mas de certa forma a primei- ra revolução do século XXI na Europa porque deu-se já num processo de enfraquecimento do estalinismo, por um lado, e isso ver-se-á na força do controlo operário nas grandes metalomecânicas, não foi uma revolução camponesa, mas uma revolução numa metrópole, numa sociedade euro- peia, urbana, complexa. O que mais impressiona do ponto de vista dos movimentos sociais na revolução portuguesa não é o seu número, relevante, claro, mas também a sua dinâmica, esta dinâmica de subitamente questionar os alicerces da hierarquia da fábrica, ir além da aparência de liberdade na esfera de circulação do capital e arrastar os mecanismos produtivos do modo de produção capitalista. As greves que se registam são maioritariamente “selvagens”, decididas em assembleias democráticas de trabalhadores e dirigidas, na maior parte dos casos, pelas comissões de trabalhadores, que surgem de forma espontânea no vazio criado ao longo de 48 anos em que as organizações de trabalhadores foram proibidas. São convocadas à margem do Partido Comunista e do Partido Socialista – ambos faziam parte do Governo – e dos sindicatos, que estavam agora a formar-se na maioria dos casos. Paradoxalmente, o calvário do operariado português, que foi durante 48 anos a impossibilidade de se organizar livremente, veio a ser a sua força nos anos da revolução. Ao impedir os trabalhadores de se organiza- rem para permitir a modernização capitalista do País, sem a ameaça de revolução social que fez da República um regime essencialmente instá- vel, a burguesia portuguesa construiu o seu património mas também o seu próprio martírio em 1974. O golpe encontra uma situação de vazio orga- nizativo que vai dar um espaço enorme e raro na história à imediata constituição de organismos de base que surgem como cogumelos por todo o País, nas primeiras semanas a seguir ao golpe. Na primeira semana de maio os jornais têm páginas inteiras dedicadas a tomadas de posição de coletivos. Uma coisa e o seu contrário. A desorganização da classe trabalhadora, proibidos que estavam pela ditadura os organismos em que esta poderia confiar, foi um fator de enfraquecimento do Estado em 1974 e 1975 e de fortalecimento, concomitante, da dualidade de poderes. O vazio organizativo foi um fator disruptivo do Estado porque abriu espaço às CT. Por comparação com Espanha, onde as comisiones obreras ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 53

(CCOO) estavam já bastante implantadas quando se abre o processo de transição, Portugal tinha um pequeno embrião sindical, o que deixará espaço às comissões de trabalhadores. Mas a incapacidade destas para se organizarem com força numa estrutura de âmbito nacional, um “soviete” unificador, dificultou a resistência organizada por parte dos únicos que podiam fazê-lo ao golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro de 1975. Alguns historiadores, e certamente a maioria da população, conside- ram que o regime democrático-representativo tem origem na revolução portuguesa de 1974-1975. É o caso do historiador Fernando Rosas13. Esta visão confunde, cremos, dois momentos distintos de um mesmo processo histórico. Esta visão omite que existe um período de regime distinto entre o fim da ditadura – a 25 de Abril de 1974 – e o início do regime demo- crático representativo, cuja construção se inicia a 25 de Abril de 1975 (eleições para a Constituinte) e se consolida com o golpe militar de 25 de novembro de 1975. Trata-se de um período marcado por aquilo que se designa historicamente como formas de democracia direta ou como a existência de uma dualidade de poderes14, um poder paralelo ao Estado marcado pelo protagonismo dos trabalhadores, diversos setores/frações desta classe social15. Confesso que acho o equívoco, não para o senso comum, mas entre historiadores, pesado. Porque ele confunde formas de Estado, regime e governo. Durante a revolução, o Estado foi sempre, mesmo em crise, um Estado capitalista (nunca houve um Estado socialista em Portugal, mas um Estado em crise marcado pela existência de poderes paralelos, em 1974- -1975). Mas houve vários regimes: ditadura, os regimes que perduraram durante a revolução, o regime democrático-representativo. Reduzir a revolução de 1974-1975 a nada mais do que um grande mo- vimento democrático responsável pela condução do País ao chamado “Estado democrático de direito” é uma visão indisfarçadamente liberal e teleológica. Esse viés interpretativo concebe a complexa revolução portu- guesa apenas em função do seu resultado final ao nível político- -institucional, a democracia representativa, tratada laudatoriamente como a forma suprema de organização política da espécie humana. É necessário nadar contra a corrente. Ao fim e ao cabo, as buliçosas e dramáticas fases

13 Fernando Rosas, Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976), Editorial Notícias 2010. 14 Patriarca, Fátima. Controle Operário em Portugal (I). Análise Social, Vol. XII (3.º), 1976 (n.º 47), pp. 765-816. 15 Raquel Varela, História do Povo na Revolução Portuguesa, Lisboa, Bertrand, 2014. 54 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … da revolução desembocaram, é verdade, na consolidação de um insípido regime democrático-parlamentar, formatação preservada até aos dias de hoje pelo Estado burguês. Entretanto, não se pode esquecer que o proces- so revolucionário de 1974-1975 foi mais rico e amplo do que uma mera e inexorável transição do autoritarismo salazarista para a democracia liberal, como querem os historiadores da ordem. Em Portugal, em 1974/75, disputou-se muito mais do que a consolidação de um regime democrático por oposição a uma ditadura fascista. A revolução – como, aliás, toda a verdadeira revolução – trazia outras potencialidades e, por- tanto, outras possibilidades de desfecho. Entre estas estava a da revolução social, a da emancipação dos trabalhadores do jugo do capital. Em função de uma série de fatores, contudo, a revolução portuguesa, que se iniciara com o derrube da ditadura bonapartista de Salazar e Caetano, teve como resultado final não mais do que a instituição de uma democracia repre- sentativa nos marcos de uma formação social capitalista. Não foi além. Todavia, um olhar atento sobre o processo permite-nos cogitar que o seu desfecho terá sido muito mais resultado de uma revolução social derrota- da do que propriamente de uma vitória da democracia liberal sobre o “autoritarismo”. A nossa interpretação histórica assemelha-se, assim, às antigas reflexões de Trotsky sobre a Itália de Mussolini, quando o revolu- cionário russo considerou que a eventual implantação de um regime democrático pós-fascista no país não poderia ser obra de uma revolução “democrático-burguesa” vitoriosa encabeçada pela classe dominante, mas sim de uma revolução proletária “insuficientemente madura e prematura” que, abortada, permitiria à burguesia, após uma “profunda crise revolu- cionária”, restabelecer o seu domínio sobre bases “democráticas”.16 Historicamente existem várias formas de revoluções e várias de con- trarrevolução. Da mesma forma que uma revolução é um processo histó- rico que não se resume a um golpe militar, uma quartelada, a contrarre- volução não é um processo histórico que possa ser resumido a um golpe violento que instaura uma ditadura. Na verdade nasce a contrario do exemplo português e, seguindo o sucesso de Espanha desse ponto de vista, um laboratório de processos contrarrevolucionários que nada têm a ver com o modelo chileno (um golpe contrarrevolucionário feito sob as botas de uma ditadura militar). Este modelo “pacífico” de contrarrevolu- ção (hoje enquadrado pelo conceito teleológico de “transições para a democracia”) será adotado pelos EUA para a sua política externa, a cha- mada doutrina Carter, e aplicado depois às ditaduras latino-americanas.

16 León Trotsky, “Problemas de la revolución italiana” in ____. La teoría de la revolución permanente. Compilación. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investi- gaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León Trotsky], 2000, pp. 552-553. ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 55

Um modelo que se centra na ideia de pôr fim às revoluções ou evitá-las criando uma base social eleitoral, no quadro do regime democrático- -representativo, isto é, uma transição para uma democracia liberal que evite a rutura revolucionária. Em 25 de novembro de 1975 não começou um país mítico de sonho, de igualdade e justiça, alicerçado num pacto social duradouro. Começou o fim de um sonho, de gentes pobres, quantas analfabetas, estudantes, intelectuais, trabalhadores de diversos setores que não acreditavam só utopicamente numa sociedade mais igual, acreditavam, e essa é a história da Revolução de Abril, que podiam ser eles a fazê-la, a construí-la, em vez de delegar nos outros esse poder. O fim desse sonho levou cerca de duas décadas para começar a tornar- -se pesadelo. O pacto social termina na segunda metade de década de 80, com o nascimento da concertação social – muitos chamam à concertação social o pacto social, porque esse é o seu nome formal, mas nome e coisa não são a mesma coisa. A concertação social foi criada para pôr fim ao pacto social, foi no seio desta que se negociou, com um papel central do Fundo Social Europeu, a grande precarização da força de trabalho em Portugal, numa fórmula que sintetizei numa metáfora dura: “os pais de abril venderam os filhos”. Mantiveram os seus direitos a troco da preca- riedade das gerações vindouras, pagando o preço de uma infantilização histórica desta geração, em que o conflito se transferiu do seio da empre- sa para a família, que sustenta a parte do salário não paga pelo patrão. Mas nestes 40 anos um movimento complexo de reconversão do mercado de trabalho manteve conquistas de abril até 2008 para uma parte da população, sendo que uma grande parte dela foi afastada desse equilíbrio de direitos sociais logo no final dos anos 80. Entre 1975 e 1986, vigora um pacto social no País, na forma da Cons- tituição de 1976, sedimentado em ganhos significativos para o trabalho conquistados em 1974-1975, em troca da desistência, por parte das orga- nizações sindicais e políticas representantes dos trabalhadores, da luta estratégica pelo poder, alterando a forma de propriedade. Os pactos sociais surgem normalmente em épocas de conjunturas eco- nómicas de crise, embora a crise não seja variável suficiente para deter- minar um pacto social. Devem existir outras, entre elas, cremos, a real capacidade de cedência, neste caso, do elo mais forte, os empresá- rios/patrões, ou seja, a capacidade de reformas dentro do sistema capita- lista que signifiquem algum tipo de ganhos para o elo economicamente mais fraco desta relação, o trabalho. Muitas das “conquistas de abril” só foram legalizadas nos anos vindouros, como referimos. É certo que depois do golpe de 25 de novembro de 1975, que põe fim à dualidade de poderes nas forças armadas, introduzem-se paulatinamente leis que são 56 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … um recuo face à situação de facto do biénio 1974-1975, mas, traumatiza- das por uma explosão social sem precedentes, um movimento operário forte, extremamente organizado, as classes dirigentes vão de facto criar as condições legais para a institucionalização de muitos daqueles direitos. Não há, a contrario do veiculado pelo senso comum, um decréscimo linear dos conflitos sociais com a institucionalização e estabilização do regime democrático representativo, mas estes vão adquirir, gradualmente, um caráter diferente, sobretudo no que toca às reivindicações, organiza- ção e suas direções. O número de greves, segundo dados oficiais, por exemplo, mantém-se muito elevado. A situação social estava longe de estar estabilizada política e socialmente. Entre 1976 e 1983 o País vai ter nada mais, nada menos do que dez governos, dois dos quais interinos e três de iniciativa presidencial. Era o resultado institucional de um País fortemente radicalizado (recordemos os quase 800 mil votos em Otelo Saraiva de Carvalho em 1976!), saído de uma revolução parcialmente vitoriosa que fazia entrar agora no vocabulário as “conquistas de abril”, “os direitos adquiridos”, em referência aos direitos conquistados. De tal forma que a tentativa de impor a concertação social em 1977 – cujos princípios estavam contra o pacto social porque estabeleceu por decreto- -lei o limite de 15% para os aumentos salariais e a fixação de um cabaz de compras, entre outras medidas – é um desaire e o I Governo Constitu- cional cai. O pacto social nascido em 1975 e consagrado na Constituição de 1976 tinha-se mantido por causa desta intensa conflituosidade herdada da revolução e não por causa de um pacto ou por ausência de conflitos. O pacto social só se manteve, num aparente paradoxo, quando não existiu pacto, isto é durante a revolução e a instabilidade dos dez anos seguintes, e a existência jurídica do pacto – plasmada na concertação social – foi significando o fim desse mesmo pacto social. Ou seja, pactos sociais não dependem de acordos, mas da inexistência deles: mantêm-se enquanto há conflitualidade social. As reformas nascem elas mesmas de conflitos agudos e não de negociações. E o pacto vai terminar entre 1984 e 1986 justamente pela ausência de conflitos em resposta à grande crise econó- mica de 1982 e 1984 a que os trabalhadores não contrapõem uma situa- ção semelhante à de 1974 e 1975, mas escassa resistência à erosão dos salários comidos pela inflação, dos despedimentos coletivos e dos salá- rios em atraso. O pacto terminou aí, nos anos 80, porque:

1) Foi derrotado o setor mais importante do movimento operário orga- nizado como exemplo para todos os outros setores das classes tra- balhadoras e setores médios – três anos de salários em atraso na Lisnave levaram à derrota destes trabalhadores que assinaram o ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 57

primeiro compromisso de empresa alguma vez feito em Portugal naqueles termos (de “paz social”), e que teve um efeito de arrasta- mento simbólico sobre os outros setores, à semelhança do que acon- tece com a derrota dos mineiros com Margaret Thatcher, em Ingla- terra, dos controladores aéreos nos EUA, dos operários da Fiat em 17 Turim, e, mais tarde, dos trabalhadores do petróleo no Brasil . 2) Ligação estreita entre um sindicalismo fortemente apoiado na nego- ciação e não no confronto – embora mais ou menos pactuante con- soante seja protagonizado pela UGT ou pela CGTP – e tendo este sindicalismo fortes ligações ao regime democrático, feitas a partir do elemento Estado, visto não como um opositor, mas como um ár- bitro para o qual as propostas eram direcionadas, em vez de para as empresas, como foi característico do período da revolução. Os prin- cipais sindicatos de então, aceitando a necessidade de sair da crise mantendo o mesmo modelo de acumulação, aceitaram que a “saída da crise” fosse feita por ajudas diretas maciças às empresas, por um lado, e por outro, por ajudas indiretas pela via da transferência para o Estado de parte dos custos da força de trabalho (casos das refor- mas antecipadas ou das isenções de contribuições para a Segurança Social). O papel do Estado, como moderador, em sede de concerta- ção social, foi visto como uma forma de corporativismo, rejeitado pela CGTP, mas só durante um ano, findo o qual esta aderiu tam- bém ao Conselho, embora não tenha assinado todos os acordos. 3) Melhoria de vida e dos níveis de consumo das classes médias e tra- balhadoras. Esta melhoria deu-se e foi efetivamente como tal senti- da, embora consideremos que não se dá por aumentos reais de salá- rios mas, entre outras razões, pelo aumento do crédito a juros baixos para compra de habitação (que hoje é um pesadelo e um gar- rote sobre os salários, que entretanto desceram vertiginosamente) e pelo embaratecimento de produtos básicos, com a entrada maciça da China e da Índia na produção para o mercado global. Este facto foi associado então à entrada na CEE e à promessa de mobilidade e prosperidade social. 4) Mudanças no sistema internacional de Estados, na sequência da queda do Muro de Berlim e do fim da URSS. Não é, cremos, o fim da URSS que determina a erosão dos direitos sociais – argumento usado frequentemente – porque essa erosão passou por difíceis ne- gociações sindicais a montante. Mas parece ser um argumento com

17 Bo Strath, The Politics of De-Industrialization (London-NY-Sydney, Croom Helm, 1987). 58 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

rigor que o fim da URSS foi visto com desesperança por quem, so- bretudo em países como Portugal onde havia fortes partidos comu- nistas, acreditava que havia “algures a leste” uma sociedade mais igualitária. Não era, como sabemos, uma sociedade igualitária e, num aparente paradoxo, porque se prende com a política de coe- xistência pacífica, a gestão da precariedade foi negociada também com os mesmos sindicatos – de inspiração comunista – que tinham na URSS um exemplo e que advogaram, numa construção de me- mória que não tem sido alvo de uma visão crítica, que o fim da URSS tinha significado o fim das “conquistas adquiridas” no Oci- dente. 5) A utilização do fundo da Segurança Social para gerir a precariedade e o desemprego18, criando um colchão social, seguindo as orienta- ções do Banco Mundial19, que evite disrupções sociais fruto da ex- trema pobreza, desigualdade ou regressão social. Essa utilização foi negociada caso a caso e na maioria dos casos aceite pelos sindi- catos, sob a forma de reformas antecipadas – banca, grandes empre- sas metalomecânicas (só na Lisnave quase 5000 trabalhadores vão até dez anos para a reforma antecipada com a totalidade dos salá- rios), estivadores e trabalhadores portuários (o número é reduzido de 7000 para os atuais 700 em todo o País), setor das empresas de telecomunicações, para citar alguns exemplos. Em troca conser- vam-se os “direitos adquiridos” para os que já os tinham e ou não entram novos trabalhadores, ou os que entram ficam já sob um re- gime de precariedade, o que implica uma redução substancial das contribuições para a Segurança Social. O que se verifica é uma es- treita ligação entre gestão da força de trabalho empregada, os fun- dos da Segurança Social e a criação crescente de medidas assis- tencialistas para atenuar os efeitos da conflitualidade social decor- rentes de uma situação de desemprego que se afirma cíclica mas crescente (subsídios de desemprego, apoio a lay-offs, formação pro- fissional, rendimento mínimo, rendimento social de inserção, subsí- dio social de desemprego, subsídio parcial de desemprego).

A geração de homens e mulheres que mantiveram os “direitos adqui-

18 Raquel Varela, “A Eugenização da Força de Trabalho. Trabalho, Estado e Segu- rança Social em Portugal”, in Raquel Varela (org.), A Segurança Social é Susten- tável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal, Lisboa, Bertrand, 2013. 19 Elsa Pereira Reis, Simon Schwartzman, Pobreza e exclusão social: aspectos sócio políticos. Trabalho preparado por solicitação do Banco Mundial, como contri- buição para um estudo sobre a exclusão social no Brasil, 2000. ACUMULAÇÃO, REGIME E REVOLUÇÃ O: CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA… | 59 ridos” de Abril no setor público, nas camadas mais formadas dos traba- lhadores e nas pequenas empresas familiares foram plenamente proletari- zadas com a crise de 2008, não tendo hoje mais dinheiro para sustentar ou evitar a regressão social dos filhos precários, expulsos para a imigração ou a vegetar em casa. Ao mesmo tempo, setores desqualificados dos trabalhadores, como a população com menos do 6.º ano e mais de 45 anos, ou a construção civil, por exemplo, são expulsos, sem bilhete de retorno, do mercado de trabalho. Há 47% de pobres em Portugal. As exportações crescem na medida exata em que os salários baixam e o consumo interno está paralisado. Vendem-se dedos e anéis, todas as empresas estratégicas. A dívida pública é uma bola de neve a descer de uma montanha, quanto mais desce mais cresce, aproximando-se do momento em que nos esmagaria. Só nos anos de 2013 e 2014 Portugal criou 28% dos seus milionários, segundo o Crédit Suisse. Os 10% mais ricos são detentores de 58,3% da riqueza do País. Existem atualmente 75 903 milionários em Portugal, mais 10 777 do que no ano anterior. Em seis casos o seu património está avaliado entre 500 milhões e mil milhões de dólares e três portugueses, três, têm mais de mil milhões de dólares de património líquido. As medidas de recuperação dos capitais falidos de 2007 deixaram este cenário apocalíptico no País. Esta erosão dos setores médios criou um alerta máximo no seio dos partidos do rotativismo parlamentar, profundamente clientelares – são agências de “emprego” – que é a face cobarde e histérica de uma questão de fundo, a crise do próprio regime democrático-representativo, avisando que estamos numa encruzilhada histórica. O paralelo com a crise de 1929 é inevitável. Tom Joad, a personagem central do magnífico As Vinhas da Ira, chega a um cruzamento quando sai da prisão e decide para onde ir. É um jovem camponês que a despos- sessão de terras transforma em proletário (subempregado ou desemprega- do). Ao longo da viagem pela mítica estrada 66 nos EUA, em plena crise de 1929, ele transforma-se de – nome depreciativo para os campone- ses do – em imigrante na Califórnia, de criminoso comum em preso político, de camponês em assalariado, as crenças desaparecem, as dúvidas acordam. Expropriação, desemprego, desumanização. Cada dia a família Joad vive a marcha capitalista e dela toma consciência, devagarinho. Uma das peças fundamentais deste caminho rumo à consciência de classe é o papel do Estado ao longo desta viagem. A família Joad, no limiar da miséria, expropriada por banqueiros, enganada por angariadores, explorada por patrões, humilhada, encontra o Estado, exclusivamente, na figura da polícia: a fiscalizar a migração da mão de obra, a infiltrar acampamentos de trabalhadores, a prender “agitadores”, a provocar motins para depois 60 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … ter direito a intervir “sem mandato” e finalmente a tentar prender Joad porque ele matou um polícia que tinha, à sua frente, acabado de matar um ex-pastor sindicalista que dirigia uma greve. No final do livro abandona o campo keynesiano do welfare sate, uma ilha de um mundo miserável, e diz: “Andarei por aí no escuro. Estarei em toda a parte. Para onde quer que olhem. Onde houver uma luta para que os famintos possam comer, estarei lá. Onde houver um polícia a espancar uma pessoa, estarei lá. Estarei nos gritos das pessoas que enlouquecem. Estarei nos risos das crianças quando têm fome e as chamam para jantar. E quando as pessoas comerem aquilo que cultivam e viverem nas casas que constroem, tam- bém lá estarei.”

DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORTUGAL: 1951-2013

O DIREITO AO TRABALHO CONSTITUCIONALMENTE GARANTIDO E CONCEPTUALIZADO COMO UM DIREITO HUMANO AO TRABALHO DIGNO NUNCA FOI ASSISTIDO DE CONDIÇÕES PLENAS DE EFECTIVAÇÃO, CONDIÇÕES ESTAS QUE HOJE, NO ESSENCIAL, DEIXARAM DE EXISTIR.

Eduardo Petersen

I. Nos termos do artigo 58.º da Constituição da República Portuguesa, todos têm direito ao trabalho. Para assegurar este direito, incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas de pleno emprego; b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em fun- ção do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos tra- balhadores.

A disposição inicia o Capítulo I – Direitos e Deveres Económicos – do Título III da Parte I da Constituição: Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais. Na parte final do título anterior – Direitos, Liber- dades e Garantias – encontra-se o artigo 53.º, subordinado à epígrafe Di- reitos, Liberdades e Garantias dos Trabalhadores, segundo o qual “É ga- rantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”.

Hoje textualmente apresentados como diversos1, o direito ao trabalho

1 A versão original da Constituição de 1976 estabelecia o direito ao trabalho no seu artigo 51.º, e no artigo 52.º, sob a epígrafe “Obrigações do Estado quanto ao direito ao trabalho”, elencava também a segurança no emprego, ao lado da promoção do pleno emprego e da assistência material aos desempregados, e da igualdade de oportunidades e da formação cultural, técnica e profissional dos trabalhadores. 62 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … e a garantia de segurança no emprego são interligáveis por via da respec- tiva fonte: a dignidade da pessoa humana enquanto fundamento essencial da República (artigo 1.º) com a inerente protecção da vida, e no respeito pelo tempo de evolução desta (artigos 24.º e 36.º), e a inserção do cidadão numa organização económica assente no direito de livre escolha de profissão ou género de trabalho (artigo 47.º), na iniciativa privada (artigo 61.º) e na propriedade privada (artigo 62.º), direitos que operam no qua- dro duma economia de mercado. A conclusão é a de que, seja por via da propriedade privada, seja pela via do trabalho, o cidadão há-de poder adquirir no sistema os recursos necessários à manutenção da sua vida e à satisfação das necessidades de evolução desta em condições dignas. O tempo e ritmo da vida a exigirem estabilidade justificam a garantia de segurança no emprego, aplicando-se ao emprego existente, que não deixa de ser uma espécie de direito ao trabalho bem-sucedido, efectivo ou realizado, e obriga do mesmo modo à concepção do direito ao trabalho como um direito realizável de forma duradoura. O artigo 23.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, consagra o direito de toda a pessoa ao trabalho, à livre escolha deste, a condições justas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego, assim como a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe permita a si e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, prevendo ainda a possibilidade de outros meios de protecção social. O enquadramento desta Declaração assenta na afirmação da dignidade e igualdade enquanto garantia de liberdade, visando a afirmação duma nova ordem de paz e bem-estar, e procede, quanto ao direito ao trabalho, da constatação da fertilidade do terreno do desemprego e da miséria para o surgimento das forças políticas que haviam levado à guerra. Em Portugal, embora o artigo 21.º do Estatuto do Trabalho Nacional de 1933 se referisse ao direito ao trabalho e ao salário humanamente suficiente e à garantia destes sem prejuízo da ordem económica, jurídica e moral da sociedade, o mesmo preceito começava por estabelecer que o trabalho era um dever de solidariedade social. Assim, em última análise, o direito ao trabalho era o direito a cumprir um dever. A Constituição de 1933 foi revista em 1951 pela Lei 2048, de 11 de Junho, e consagrou no artigo 8.º, n.º 1-A, “o direito ao trabalho nos termos que a lei prescrever”. Acolheu-se pois a consagração de 1948 do direito ao trabalho, mas com uma fórmula sucinta e que remetia o con- teúdo do direito constitucional para a esfera da lei ordinária.

DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 63

Direito ao trabalho – uma mudança de paradigma

A dificuldade na aceitação dos direitos económicos e sociais por parte dos Estados-membros da ONU explica que só em Dezembro de 1966 tenha sido aprovado o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e que o mesmo só tenha entrado em vigor na ordem internacional em Janeiro de 1976. Neste Pacto, e depois de cada Estado se comprometer, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos, prevê-se (artigo 6.º) “o direito ao trabalho, que compreende o direito que têm todas as pessoas de assegurar a possibilidade de ganhar a vida por meio de um trabalho livremente escolhido ou aceite”, para o qual os Estados tomarão as medidas apro- priadas, que devem incluir “programas de orientação técnica e profissio- nal, a elaboração de políticas e técnicas capazes de garantir um desenvol- vimento económico, social e cultural constante e um pleno emprego produtivo em condições que garantam o gozo das liberdades políticas e económicas fundamentais de cada indivíduo”. No artigo 7.º, os Estados- -partes no Pacto reconhecem o direito de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem, em especial, uma remuneração que proporcione a todos os trabalhadores, no mínimo, uma existência decente para eles próprios e suas famílias. Embora pareça encontrar-se apoio na versão do artigo 6.º citado para uma defesa do direito a trabalhar ou, noutra perspectiva, do direito à empregabilidade, o referido artigo não permite esta interpretação restriti- va, pois o direito ao trabalho tem de ser mais do que o direito nele com- preendido e à empregabilidade corresponderá o pleno emprego, por via das medidas apropriadas de desenvolvimento económico, social e cultural constante, donde a empregabilidade acabará por se resolver em empre- go/trabalho efectivo e não meramente potencial. A versão constitucional portuguesa também o salienta: a primeira in- cumbência do Estado para cumprir o direito ao trabalho é a execução de políticas de pleno emprego. No mesmo sentido, a Carta Social Europeia adoptada em 1961 e en- trada em vigor em 1965, revista em 1996, estabelece que toda a pessoa deve ter a possibilidade de ganhar a sua vida por um trabalho livremente empreendido, e que, com vista a assegurar o direito ao trabalho, as partes se comprometem a reconhecer como um dos seus principais objectivos e responsabilidades a realização e a manutenção do nível mais elevado e mais estável possível de emprego, com vista à realização do pleno em- prego (artigo 1.º, Parte II). Assiste-se, porém, a uma inversão de paradigma, porventura facilitada pela persistente concepção do direito ao trabalho como um direito mera- 64 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … mente programático, ou seja, como uma afirmação de princípio realizá- vel, se e na medida possível, que consiste na assunção de responsabilida- de essencialmente no sentido da plena empregabilidade e apenas residu- almente no sentido da criação de emprego. Assim, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000 (identicamente na versão de 2007), acolhendo as Cartas Sociais mas apenas segundo o princípio da subsidiariedade, ao epigrafar e consignar no artigo 15.º o direito de trabalhar, assistindo-o do direito de acesso gratuito a serviços de emprego – artigo 29.º.

Não há, porém, que questionar se o direito ao trabalho na versão da Constituição Portuguesa permanece em vigor face ao direito a trabalhar, provindo da União Europeia, na medida em que apesar do primado deste, a norma daquele sempre seria garantida pela compatibilidade essencial ao nível de direitos fundamentais.

Direito ao trabalho, direito à vida

II. O direito ao trabalho, enquanto direito fundamental, não deixa de se integrar numa arquitectura de direitos fundamentais assente no pilar basilar do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, podendo por isso conceber-se o direito ao trabalho como instrumental à consecução do direito à vida e à dignidade da pessoa humana e em consequência como coberto pelo maior valor destes – ao menos enquanto se mantiver a estrutura económica e social que assenta sobre o trabalho. Independentemente de se ver no emprego o direito ao trabalho efecti- vado, a durabilidade tendencial do emprego é uma exigência conceptual: de que serve um direito ao trabalho, mesmo enquanto simples afirmação de princípio, se o trabalho que por via dele se consegue alcançar não tem nenhuma garantia de se manter? A defesa de que a este trabalho se sucedem infinitamente outros, em situação de pleno emprego, e que por isso para o cumprimento do direito ao trabalho não se exige que o seu titular tenha direito à manutenção do seu emprego, ignora a condição humana, a condição de vida, sobre a qual e apenas sobre a qual se pode assentar o conceito de dignidade. As normas sobre segurança no emprego, em sentido amplo, integram a política de emprego e por esta via relevam também para a análise do cumprimento do direito ao trabalho. Não desconhecendo a relevância duma análise da política macroeco- nómica para o apuramento do grau de regulação volitiva teleologicamente dirigida ao cumprimento do direito ao trabalho, nem ignorando a relevân- cia da análise das políticas activas e passivas de emprego, o presente DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 65 texto centrar-se-á sobretudo na análise da evolução jurídica dos modos de contratação e de cessação laborais enquanto determinantes da estabilida- de do emprego.

O direito ao trabalho segundo a Constituição de 1933

III. No período em que foi consagrado na Constituição de 1933 o di- reito ao trabalho, estava em vigor – e era esta, portanto, a lei ordinária a que o artigo 8.º, n.º 1 – A se referia – a Lei 1952, aprovada em 1937, segundo a qual o contrato de trabalho era aquele pelo qual alguém se obriga a prestar a sua actividade profissional a outrem, sob a autoridade e direcção ou fiscalização deste, mediante remuneração. Porém, as normas previstas na referida lei não se aplicavam apenas aos que tivessem cele- brado contrato de trabalho, mas também, directamente, ao trabalho à peça ou à tarefa, no domicílio ou em estabelecimento próprio do prestador, e na transformação de matérias-primas fornecidas pelo comprador do produto transformado, ou seja, tipos subsumíveis ao contrato de prestação de serviço. Em matéria de contratação, o contrato podia ser celebrado a prazo, por qualquer prazo, sem quaisquer limites ou requisitos. Como a consequên- cia jurídica do esgotamento do prazo é a caducidade do contrato, a lei permitia, pois, a criação livre de trabalho não duradouro. Mesmo para os contratos de trabalho celebrados sem prazo, a lei previa a possibilidade de denúncia unilateral pelo empregador, a qualquer altura, desde que observado um prazo de pré-aviso calculado em função da anti- guidade, numa proporção fixa que no máximo determinava um pré-aviso de seis meses para trabalhadores com quinze ou mais anos de antiguidade. Finalmente, a definição de justa causa de despedimento como qualquer facto de tal modo grave que comprometesse de imediato a possibilidade da relação de trabalho, não a ligando à culpa do trabalhador, e exemplificando como constitutivas situações relacionadas com vícios e mau procedimento, ou inaptidão, entre outras, e sendo a justa causa apreciada segundo a subor- dinação ao princípio da mútua colaboração e pelo espírito do tempo, permi- tiam grande facilidade de despedimento, quer por justa causa subjectiva, quer objectiva, e sem garantias procedimentais. Nenhuma garantia praticamente, do ponto de vista jurídico, de durabi- lidade do trabalho. No período de 1966 (DL 47 032) a 1969 (DL 49 408), o legislador empreende um enorme esforço de regulamentação unitária da generalida- de das questões levantadas pelas relações de trabalho, em resultado, além do mais, da influência da experiência e evolução em matéria social de legislações estrangeiras – naturalmente também em tributo à consagração 66 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … dos direitos económicos e sociais a nível internacional, como resulta das menções à garantia duma “existência e subsistência digna do trabalhador” e à valia da política social no desenvolvimento económico, como “factor de elevação do nível de vida da população” e à acção da política social sobre as estruturas produtivas, “levando-as a um constante esforço de adaptação e progresso em ordem à satisfação das mais legítimas aspira- ções sociais” (preâmbulo do DL 49 408). Mas desde logo se inicia a exclusão da aplicação directa da lei laboral a qualquer tipo de prestação de serviço, e a matéria da contratação laboral apenas determina uma equiparação do regime de cessação dos contratos a prazo de longa duração (4 anos) aos contratos sem prazo, mantendo-se, porém, a não previsão de qualquer requisito de necessidade temporária como condição de validade da celebração de contratos a prazo. Manteve-se a possibilidade de denúncia unilateral pelo empregador dos contratos de longo prazo e sem prazo, agora contra o pagamento de indemnização correspondente a metade do pré-aviso, e o cálculo deste passou a obedecer a uma proporção directa à antiguidade, à razão de um mês por cada ano, no que representou um agravamento muito considerá- vel do custo de uma denúncia unilateral do contrato pelo empregador. Em matéria de despedimentos manteve-se a formulação da justa cau- sa, continuaram a ser exemplificados comportamentos constituintes de justa causa que melhor quadravam ao controlo político, ideológico e reivindicativo dos trabalhadores, mas reforçou-se a protecção dos traba- lhadores através da obrigatoriedade de procedimento disciplinar com direito de defesa. O volume de direitos que então se reconheciam aos trabalhadores, combinado com o agravamento da dificuldade do empregador pôr termo unilateralmente ao contrato, suscitou no legislador a apreensão do fenó- meno de incumprimento da lei mediante fuga aos seus pressupostos de aplicação, o que levou a que o artigo 10.º n.º 3 do DL 47 302 estabeleces- se a regra, de vigência renovada até hoje, de que a estipulação do prazo num contrato de trabalho é nula, se tiver por fim iludir as disposições que regulam o contrato sem prazo. Por outro lado, se conjugarmos estas normas com a proibição da gre- ve, com a dominação e instrumentalização dos sindicatos pelo Estado e com o baixo nível salarial que explica também o fenómeno da emigração neste período, pode bem afirmar-se que o direito ao trabalho consagrado constitucionalmente em 1951 não corresponde ao direito humano ao trabalho digno que resulta da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. O único ponto de conexão ao direito ao trabalho previsto na Carta So- cial de 1961 encontra-se na criação, em 1962 (DL 44 506, de 10-8), do DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 67

Fundo de Desenvolvimento da Mão de Obra, visando combater o desem- prego resultante da reorganização industrial e da inovação tecnológica, adaptando e formando mão-de-obra qualificada correspondentemente necessária, e em 1966, na criação do Serviço Nacional de Emprego (Dec. 42 731, de 9-12), com missão de estudo e organização do funcionamento do mercado de emprego, colocação e orientação profissional e agencia- mento da procura e da oferta, agilizando o reencaminhamento dos de- sempregados. Porém, como se viu, sempre em direcção a um emprego potencialmente não estável e relativamente ao qual, e às condições remu- neratórias do qual, o trabalhador não tinha qualquer poder reivindicativo.

O direito humano ao trabalho digno e a revolução de 1974

Novo marco, do ponto de vista da consecução de um direito humano ao trabalho digno, constitui a Revolução de 1974. Do ponto de vista jurídico, o período que se segue à Revolução vai atacar, desde logo, os despedimentos, blindando a porta de saída dos trabalhadores do mercado de trabalho e assegurando-lhes esta via de estabilização do trabalho. Ainda em 1974, o DL 660/74, de 25-11, regulou a intervenção do Es- tado nas empresas, entre outros, nos casos em que se previssem despe- dimentos totais ou dos trabalhadores de várias secções, e em 31-12, o DL 783/74 veio regular a matéria do despedimento colectivo, instituindo mecanismos de fiscalização extremamente apertados e prevendo nova- mente a possibilidade de intervenção do Estado nas empresas, numa verdadeira necessidade de autorização estatal do despedimento, subordi- nado não aos interesses da empresa, mas aos interesses da economia nacional. Em 16 de Julho de 1975 foi publicado o DL 372-A/75, que regulou de modo imperativo a matéria da cessação do contrato de trabalho, revogan- do a disciplina da LCT e estabelecendo desde logo como critério para a sua própria interpretação o de que visava proteger o direito ao trabalho e o de que “O despedimento de um trabalhador numa sociedade a caminho do socialismo só pode concretizar-se se aquele, pela sua conduta culposa, mostrar não estar em condições de poder permanecer no seu posto de trabalho, ou se, por circunstâncias objectivas, a manutenção da relação de trabalho for incompatível com os interesses globais da economia”2. Foram proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos po- líticos ou ideológicos, e o conceito de justa causa foi extirpado de quais- quer circunstâncias objectivas e limitado à possibilidade de imputação ao

2 Artigo 2.º do DL 372-A/75, revogado pelo artigo 3.º do DL 84/76, de 28-1. 68 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … trabalhador, a título de culpa, de um comportamento violador de deveres laborais. O DL 84/76, de 28-1, veio revogar a matéria do despedimento por motivo atendível prevista inicialmente nos artigos 13.º a 23.º do DL 372-A/75, excluindo a possibilidade de extinção do posto de trabalho individual, a inaptidão do trabalhador e impossibilidade de adaptação às alterações tecnológicas como fundamentos da cessação contratual3. Foi revogada a possibilidade de denúncia unilateral do contrato de tra- balho pelo empregador, mediante aviso prévio e pagamento de indemni- zação. A partir de Janeiro de 1976 era, pois, proibido qualquer despedimento individual que não tivesse por fundamento um comportamento culposo com requisitos de gravidade bastante, aliás sujeito a um procedimento disciplinar, com garantia de intervenção da comissão de trabalhadores com parecer não vinculativo, e prevendo-se ainda uma providência cau- telar de suspensão do despedimento4 e a impugnação judicial perante um tribunal independente, o qual apreciaria a justa causa de acordo com o espírito do tempo e tendo em conta o grau de lesão dos interesses da economia nacional ou da empresa5, ou seja, com uma razoável margem de impossibilidade, para um empregador, de conseguir despedir um trabalhador por esta via de invocação de justa causa. De resto, passou a prever-se a reintegração como consequência da insubsistência de justa causa e também a aplicação de multas à entidade patronal, cujo produto reverteria para o Fundo de Desemprego. Quanto ao despedimento colectivo, mantendo-se o regime altamente restritivo do DL 783/74, por via do DL 84/76, um trabalhador indivi- dualmente considerado nunca podia ser despedido pelos motivos que legitimariam o despedimento colectivo. Da conjugação destes dispositivos resultou que, no período de 1975 até ao chamado primeiro pacote laboral de 1989, durante quase quinze anos, a lei determinava uma quase impossibilidade de despedimento individual de trabalhadores com contrato de trabalho sem prazo. Porém, a legislação sobre contrato a prazo que o DL 372-A/75 anun- ciava vir a ser publicada no prazo de três meses só veio a sê-lo após o período revolucionário, através da chamada Lei do Contrato a Prazo (DL 781/76, de 28 de Outubro), sendo pois que o regime anterior sobre a contratação a prazo se manteve durante o período revolucionário.

3 Artigo 14.º, n.º 1 e n.º 3. 4 O DL 372-A/75, de 16-7, veio a sofrer as alterações introduzidas pelo DL 84/76, de 28-1, pelo DL 841-C/76, de 7-12, pela Lei 48/77, de 11-7, e Lei 68/79, de 4-10. 5 Artigo 12.º n.º 5 do DL 372-A/75. DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 69

Os requisitos que a Lei do Contrato a Prazo introduziu à validade des- te limitaram-se à duração certa do prazo, no máximo de três anos, inclu- indo renovações, estipulada por escrito, sem correlação com uma neces- sidade temporária de trabalho, salvo no caso de contratos celebrados por prazo inferior a seis meses. Conforme resulta do respectivo preâmbulo, a justificação do novo re- gime dos contratos a prazo é precisamente a perspectiva de aumento, a curto prazo, do emprego. Uma medida de política de emprego, portanto. Nos termos legais, os contratos cessavam por caducidade no fim do prazo, sem qualquer direito a compensação ou indemnização. Na prática, e de facto como política de emprego, o que se fez foi auto- rizar a utilização do contrato a prazo como forma de contornar a quase impossibilidade de despedimento dos trabalhadores com contratos sem prazo, assim flexibilizando e controlando a força de trabalho e a gestão dos custos com o trabalho. Criação de emprego desejada, mas com possi- bilidade de destruição de emprego a curto prazo. Colocamos a hipótese de que, com este instrumento jurídico, se verifi- cou efectivamente um aumento exponencial da contratação a prazo. Não tendo tido acesso a dados anteriores a 1983, os dados dos restantes anos da década6 evidenciam sensivelmente, na comparação com os contratos permanentes, entre 1/6 e 1/5 da força de trabalho contratada a prazo, o que dificilmente se compagina com a efectiva necessidade temporária de força de trabalho por parte das empresas e sem que reflicta essa mesma percentagem de criação de emprego, sendo aliás que a taxa de desempre- go se apresentou em crescendo nas décadas de 70 e 80. Antes de prosseguir, uma referência ao enquadramento constitucional. A Constituição da República Portuguesa de 1976, na sua versão origi- nal, declarava, nos artigos 1.º e 2.º, que “Portugal é uma República sobe- rana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes” e que “A República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democrática, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes traba- lhadoras”. O artigo 9.º definia como tarefa fundamental do Estado “c) Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas às características do presente período histórico, criar as condições que permitam promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, especial- mente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do

6 INE – Inquérito ao Emprego, PORDATA, Última actualização: 2016-02-11. 70 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … homem pelo homem” e o artigo 10.º determinava que “2. O desenvolvi- mento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apro- priação colectiva dos principais meios de produção”. A Constituição previu a liberdade sindical e o direito à greve, entre os direitos fundamentais, e definia as regras de organização económica cujo fundamento “assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e o exercício do poder democrático das classes trabalhadoras” (artigo 80.º), declarando generi- camente conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras todas as nacio- nalizações ocorridas desde 25 de Abril de 1974, e remetendo a iniciativa privada ao quadro da sua conformidade com os limites estabelecidos pela Constituição, pela lei e pelo Plano, relegando à lei ordinária a definição dos sectores em que a mesma é proibida. Nestes termos, e ao menos enquanto necessidade jurídica transitória, o direito humano ao trabalho digno cumprir-se-ia, além do mais, no con- texto económico gerado a partir duma determinação económica que, socializando os meios de produção e a riqueza, apropriando colectiva- mente os principais meios de produção, solos e recursos naturais, produ- ziria uma redistribuição da riqueza e do rendimento, ou seja, o direito ao trabalho não resultaria essencialmente duma operação de valorização profissional dos trabalhadores em vista das necessidades da procura determinadas pelos agentes económicos, detentores da capacidade de criar emprego, em mercado livre, sem quase nenhuma responsabilização destes, não sobrecarregaria os titulares do direito, não resultaria duma afectação de recursos do Estado baseada em impostos com grande inci- dência sobre os rendimentos do trabalho, mas duma afectação ao colecti- vo da essencialidade dos meios de produção e da gestão do desenvolvi- mento económico, em detrimento claro da propriedade privada e da iniciativa privada.

A “integração europeia” e a regressão do direito ao trabalho

Este quadro declarativo da Constituição nunca chegou a realizar-se: não só, como vimos, o legislador laboral ordinário forneceu aos agentes económicos uma válvula de escape dos rigores da estabilidade de empre- go, como em termos gerais as opções políticas iniciadas pelos governos constitucionais que se lhe seguiram, e mais especificamente a candidatura de adesão às Comunidades Europeias iniciaram um percurso em direcção completamente oposta à declarada, cujo progresso levou à primeira revisão constitucional de 1982. Esta desde logo expurgou a maior carga ideológica, substituindo a expressão “criação de condições para o exercí- DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 71 cio democrático do poder pelas classes trabalhadoras”, constante do artigo 2.º, pela expressão “realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”, e reorganizou os direitos e deveres económicos e sociais, autorizando a iniciativa priva- da enquanto condição de progresso, no quadro da Constituição e da Lei. A consolidação do percurso revela-se em 1989 na 2.ª revisão constitucio- nal, que completa a expurga ideológica, mesmo ao nível dos conceitos, e abole a garantia geral de irreversibilidade das nacionalizações e abre o caminho das privatizações. Apesar da previsão da subordinação do poder económico ao político, da previsão da incumbência prioritária do Estado em corrigir desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, abriu-se o caminho do restabelecimento das condições, desde logo ao nível da propriedade, para a geral e preferencial condução económica privada e para a dependência do direito ao trabalho da dependência do Estado em relação a tal condução. Entre 1989 e 1991 ocorre o período a que se chamou primeiro pacote laboral. Em 1989 é publicado o DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, sobre despe- dimentos e contratos a prazo, revogando o DL 372-A/75 e o DL 781/76, referindo-se expressamente no seu preâmbulo a necessidade de alteração de estruturas rígidas incompatíveis com o desafio de uma expansão para um mercado europeu. A contratação a prazo passou a designar-se “a termo” e obteve o reco- nhecimento de que o anterior regime frustrava a segurança de emprego (o preâmbulo refere-se expressamente à precariedade) e pretendeu-se agora permitir o contrato a termo apenas nos casos em que a necessidade de trabalho fosse realmente temporária ou residualmente, como regime excepcional de possibilitação de criação de empresas ou de renovação da sua actividade e finalmente como instrumento de política de emprego, mas com enumeração taxativa destes fundamentos. Em termos formais, o contrato tinha de ser celebrado por escrito, além do mais, com a menção do motivo justificativo do termo, sendo que a ausência desta menção implicava que o contrato se considerasse celebra- do sem termo. Mantendo-se o limite máximo de duração do contrato, incluídas as duas renovações possíveis, inovou-se ao prever que a cessação do con- trato por caducidade, no fim do prazo, gerava o direito do trabalhador a ser compensado – pela frustração do seu emprego ou da sua expectativa de vir a ser contratado sem prazo – com dois dias de retribuição por cada mês completo de duração do contrato, factor que veio a ser aumentado para três dias (por via da Lei 18/2001). Por outro lado, previu-se que se o trabalhador tivesse estado contratado a termo por mais de doze meses e 72 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … tivesse visto o seu contrato cessar por caducidade, não podia ser readmi- tido a termo para o mesmo posto de trabalho antes de três meses (au- mentado para seis, por via da Lei 18/2001). Determinou-se a contagem da antiguidade do trabalhador desde o início da contratação, no caso de conversão em contrato por tempo indeterminado por ultrapassagem do prazo máximo de duração do contrato a termo. Verificou-se, pois, por via de acção legislativa, uma restrição substan- cial da possibilidade de utilização do contrato a termo fora dos casos em que se justificasse e um combate a práticas fraudulentas, como era o caso das contratações sucessivas. A restrição foi-se endurecendo pelas medidas adicionais da Lei 38/96, de 31 de Agosto (menção concreta no contrato dos factos que justifica- vam a celebração do prazo; mesmos requisitos de celebração inicial para as renovações do contrato em que o prazo fosse diferente), e da Lei 18/2001, de 3 de Julho (da menção dos factos concretos justificativos do termo tem de poder objectivamente estabelecer-se a relação entre o motivo e o termo; celebração sucessiva ou intervalada de contratos a termo, entre as mesmas partes, para o exercício das mesmas funções ou satisfação das mesmas necessidades do empregador, determina a conver- são automática do contrato em sem termo; nulo e de nenhum efeito o contrato a termo que viesse a ser celebrado entre as mesmas partes com trabalhador que já tivesse adquirido a qualidade de trabalhador perma- nente). No período 1989-1991, legalizaram-se as empresas de trabalho tempo- rário7 e regulamentou-se o contrato de trabalho temporário – DL 358/89 de 17 de Outubro – e em 1991, o DL 404/91, de 16 de Outubro, veio regulamentar o exercício de determinados cargos de confiança (adminis- tração, direcção e secretariado pessoal destes) em regime de comissão de serviço, com previsão da possibilidade de contratação inicial de trabalha- dores externos à empresa, relativamente aos quais a perda de confiança determinava a cessação imediata do contrato, embora contra o pagamento de uma indemnização. Entre outras alterações, o DL 64-A/89 criou uma nova forma de des- pedimento, a extinção do posto de trabalho, pelos motivos que permitiam o despedimento colectivo, agora dirigidos a um trabalhador/posto indivi- dualmente considerado. Apesar de o preâmbulo do decreto-lei ressalvar as garantias do traba- lhador nesta nova forma de despedimento, a verdade é que, em matéria de

7 A actividade das empresas de trabalho temporário consiste na cedência temporária a terceiros, utilizadores, da utilização de trabalhadores que a empresa de trabalho temporário contrata para esse efeito e que ela mesma remunera. DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 73 procedimento, a intervenção estatal, a cargo da Inspecção Geral do Tra- balho, só ocorreria se fosse solicitada pela estrutura representativa dos trabalhadores. Por outro lado, ficava aberta a possibilidade de despedir colectivamente através de despedimentos por extinção de posto de traba- lho individual, desde que entre os despedimentos dos trabalhadores abrangidos mediassem mais do que três meses. Finalmente, não só a capacidade de resistência de um trabalhador individual à invocação de motivos económicos por parte da empresa é menor que a de um colectivo de trabalhadores, como nada impedia nem impede que iniciado o proce- dimento de extinção do posto de trabalho, o empregador não chegue a acordo com o trabalhador visado quanto à revogação do contrato de trabalho, o que permite um processo negocial com possibilidade de pressão – até na forma de assédio moral. Em 1991, regulou-se nova forma de despedimento – DL 400/91, de 16 de Outubro, com fundamento primeiro na inadaptação do trabalhador, após concessão de formação, às alterações resultantes de novos processos de fabrico, novas tecnologias ou equipamentos, inadaptação que se resol- ve em redução reiterada da produtividade ou qualidade, mas prevendo-se também a sua utilização no caso de trabalhadores em cargos de comple- xidade técnica ou direcção, que acordem formalmente com o empregador o cumprimento de objectivos e não o alcancem. Porém, do despedimento por inadaptação não pode resultar diminuição do volume de emprego permanente, num cuidado legislativo de prevenção da utilização desta nova forma de despedimento como modo de substituição de trabalhadores efectivos por contratados a termo. Finalmente, o DL 403/91, de 16 de Outubro, aumentou o período ex- perimental, no decurso do qual a cessação do contrato é livre e imotivada, para ambas as partes. Embora os dados disponíveis não permitam uma interpretação fiável, e sem prejuízo da existência de verdadeiros prestadores de serviço, for- mulamos a hipótese de que, face ao agravamento das restrições legais na contratação a termo, iniciada em 1989 e completada até 2001, se banali- zou alternativamente o recurso a falsos contratos de prestação de servi- ços, quer na vertente individual, quer numa vertente de externalização da empresa8.

8 Os dados disponíveis na estatística do INE (PORDATA, 12-2-2016) revelam percentagens anuais de trabalhadores por conta própria individuais, nos quais estão abrangidos, por definição jurídica, os falsos prestadores de serviços, que se situam, na década de 90, no valor mais baixo, em 17,6, e na década seguinte no valor mais baixo de 17,5. 74 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

O Código do Trabalho de 2003 e a dependência do direito em relação à economia

O Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, em coerência com o pensamento da excessiva rigidez das leis laborais e do prejuízo que causam ao desenvolvimento económico, afirma pela primeira vez a dependência do direito em relação à economia, esta- belecendo a si mesmo um prazo de revisão. No seu artigo 12.º, estabeleceu uma presunção de laboralidade, facili- tando teoricamente ao trabalhador a prova da existência de um contrato de trabalho, mas exigindo a prova cumulativa de cinco características ou indícios do contrato de trabalho, o que levou na prática a uma enorme dificuldade de combate à prática fraudulenta de celebração com trabalha- dores de contratos de prestação de serviços, assim se excluindo os mes- mos de qualquer protecção laboral. Em matéria de contratação a termo permitiu-se a não observância de intervalo na celebração de contratos quando o motivo fosse o acréscimo excepcional da actividade da empresa, motivo que, de resto, é um dos mais invocados. Por outro lado, foi aumentado o prazo máximo de dura- ção do contrato, por via de mais uma renovação, o que permitiu que a duração máxima se situasse em seis anos9. Em matéria de despedimentos, admitiu-se a oposição à reintegração no caso de despedimento ilícito por micro-empregadores ou em caso de trabalhadores com cargos de direcção. Quanto ao despedimento colectivo e por extinção do posto de trabalho, a simples restruturação da organiza- ção produtiva, mesmo sem dependência duma necessidade de saneamento económico-financeiro da empresa, passou a ser admitida como motivo fundamentador da licitude do despedimento, sendo que os tribunais entendem não ter legitimidade e competência para sindicar decisões de gestão empresarial. A revisão do Código do Trabalho – conhecida por Código do Traba- lho de 2009 (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro) –, na sequência da identifi- cação e discussão dos problemas das relações laborais na perspectiva da economia e do direito que logrou compilação nos Livros Verde (2006) e Branco (2007) sobre as relações laborais, reformulou a presunção de laboralidade, em sentido verdadeiramente favorável aos trabalhadores, pois que lhes permitiu a prova de alguns – no limite, apenas dois – dos factos integrantes da presunção de que existe um contrato de trabalho. Porém, tratando-se duma presunção ilidível, o beneficiário da prestação

9 Artigo 139.º n.º 2. DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 75 de trabalho por regra tentará provar o contrário e o manancial adquirido de jurisprudência e doutrina sobre a distinção entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço, em cuja base se reafirma o princípio da igualdade formal das partes e por isso da sua liberdade para celebra- rem os contratos que quiserem, em grande parte anula a nova visão do legislador. Consciente, aliás, de que o mercado recorria abusivamente à celebração de contratos de prestação de serviço como forma de contornar a lei laboral, o Código de 2009 criou ainda um tipo contra-ordenacional, muito grave, para combater essa prática, cuja eficácia depende natural- mente da capacidade de trabalho da Autoridade para as Condições do Trabalho. De resto, na mesma senda de combate, o Código de 2009 estabeleceu a regra de que na contagem da duração total da contratação a termo se incluem os contratos de trabalho temporário e os contratos de prestação de serviços que tiverem sido cumpridos no mesmo posto de trabalho. A insuficiência das medidas adoptadas em 2009 demonstra-se pela aprovação, em 2013, do texto de substituição da proposta legislativa cidadã contra a precariedade, que virá a constituir a Lei 63/2013, de 27 de Agosto, que instituiu uma acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, reforçando as funções da ACT ao nível da fisca- lização e cometendo-lhe a primeira fase de instrução dum procedimento voluntário de regularização e, na falta dela, duma nova forma de processo judicial, urgente, independente da vontade e do sentido de oportunidade do trabalhador, sob o patrocínio do Ministério Público junto dos Tribu- nais do Trabalho, e que pretende, por um processo simplificado, até ao nível da prova, obter do tribunal o julgamento complexo cujo resultado supostamente será a declaração de que o trabalhador está a trabalhar ao abrigo dum contrato de trabalho e desde quando. As deficiências estrutu- rais desta lei comprometem fortemente a sua eficácia no combate a esta prática fraudulenta. Em matéria de contratação a termo, o legislador de 2009 retomou a duração máxima de três anos, suprimindo o regime de renovação adicio- nal, o qual, porém, veio a ser reposto com o limite de 18 meses pela Lei 3/2012 e, com o limite de 12 meses e em todo o caso com termo final, em Dezembro de 2016, pela Lei 76/2013. Foi previsto o contrato de trabalho a termo de muito curta duração. Por outro lado, regularam-se as modalidades de contrato de trabalho: a termo, a tempo parcial, intermitente, comissão de serviço, teletrabalho e trabalho temporário. Em matéria de cessação, as alterações de 2009 saldaram-se na dimi- nuição do prazo de impugnação do despedimento escrito (justa causa, extinção do posto de trabalho e despedimento por inadaptação) de um ano 76 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … para 60 dias e na criação de uma acção judicial urgente, cuja não resolução, em primeira instância, no prazo de um ano, determina que seja a Segurança Social a pagar, a partir desse ano, as retribuições intercalares anteriormente a cargo do empregador que procedera a um despedimento ilícito. Mais relevantemente, em matéria de despedimento objectivo, foi esta- belecido que a compensação que é paga ao trabalhador contemporanea- mente à comunicação da decisão de despedimento, enquanto condição de licitude deste, tem de ser devolvida imediatamente (leia-se, no próprio dia ou no primeiro dia seguinte em que seja possível fazê-lo), sob pena de se presumir que o trabalhador aceita o despedimento e de lhe ser impossível impugná-lo em juízo. O preceito inviabiliza grandemente, na prática, não só por ignorância como por necessidade económica, que os trabalhadores despedidos por razões objectivas impugnem judicialmente os seus despe- dimentos. Uma consequência possível é o aligeiramento dos motivos invocados para o despedimento ou mesmo a simples invocação de moti- vos falsos, na previsão de que o despedimento não será impugnado em tribunal. Situação equiparável à contratação por falsa prestação de serviço pode ter ocorrido no recurso a estágios privados. A Lei 66/2011 veio regular os contratos de estágio, de financiamento exclusivo das empresas que os concedem, instituindo mecanismos de garantia de que o recurso a tais contratos visa efectiva aprendizagem e não constitui uma forma de fraude à lei laboral. No período presente, iniciado na sequência dos Memorandos de En- tendimento de 17-5-2011, sobre as Condicionalidades de Política Econó- mica e sobre Políticas Económica e Financeira, a nota mais essencial, quanto a trabalho estável, resulta das alterações realizadas pelas Leis 53/2011, 23/2012 e 69/2013, na medida da flexibilização que gradual- mente provocaram das compensações devidas aos trabalhadores por cessação do contrato e despedimento objectivo10, tendo-se eliminado a compensação mínima de três anos, mesmo em caso de antiguidade infe- rior, e sendo a compensação correspondente, em regra, a 12 dias de salário base e diuturnidades por cada ano ou fracção (contada proporcio- nalmente) de antiguidade, sem relevar a antiguidade superior a 12 anos.

10 Cessação de contrato de trabalho em regime de comissão de serviço (art.º 164.º n.º 1 als. b) e c), resolução do contrato pelo trabalhador com justa causa em caso de transferência definitiva do local de trabalho que lhe cause prejuízo sério (art.º 194.º n.º 5), cessação por caducidade do contrato de trabalho a termo certo ou in- certo (artigos 344.º n.º 3 e 345.º n.º 4), cessação por caducidade do contrato de trabalho em caso de morte do empregador, extinção da pessoa colectiva ou encer- ramento de empresa (art.º 346.º n.º 6), despedimento por extinção do posto de trabalho (art.º 372.º) e despedimento por inadaptação (art.º 379.º). DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORT UGAL: 1951-2013 | 77

Aboliu-se assim o método de cálculo que vigorava desde o DL 372- -A/75 e alinharam-se as compensações por valores inferiores aos devidos no caso de denúncia unilateral na legislação de 1969. Pela primeira vez, em 2014, o relatório da OCDE deixou de fazer reco- mendação no sentido do abaixamento do custo do despedimento e passou a incidir sobre a segmentação do mercado de trabalho. Ficou, portanto, claro que a rigidez dos direitos laborais em Portugal, a rigidez máxima que era constituída pela segurança no emprego e que determinava a aplicação de toda a demais protecção laboral que pudesse ser considerada rígida, tinha deixado de ser um problema para o funcionamento liberal do mercado e consequentemente para o desenvolvimento da economia.

Uma lógica invertida do direito

IV. A conclusão de todo este percurso é a de que sempre foi possível recorrer a formas de contratação de trabalhadores que produzem vínculos instáveis e não duradouros, deliberadamente assim criadas como forma de potenciar o emprego – lei do contrato a prazo de 1976, operando justamente no período 1976-1989 em que a segurança no emprego foi mais garantida ao nível da dificuldade de despedimento – e que a restri- ção destas formas ou o combate à fraude foi contemporaneamente con- trabalançado por outras vias de liberalização: novas modalidades de contrato com menor segurança, aumento das possibilidades de despedi- mento objectivo. Finalmente, com o período iniciado em 2011, pode afirmar-se a legalidade e a facilidade da destruição de emprego seguro ou, dito de outro modo, a legalidade dum trabalho que é insusceptível de estabilizar um modo de vida digno por parte daquele que o tem e daquele que o pretende alcançar. Neste último aspecto se evidencia, a nosso ver, a ineficácia presente e futura de quaisquer políticas activas de emprego para realizarem o direito ao trabalho. Um direito ao trabalho que pode acabar dum momento para o outro é, no máximo e em situação de pleno emprego, um direito a uma rotação rápida entre empregos, um direito a trabalhar, o direito a trabalhar que é a versão reformulada do direito ao trabalho acolhida pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia no seu artigo 15.º, integrando- -se a essencialidade das políticas activas de emprego no quadro do direito de acesso gratuito a serviços de emprego previsto no artigo 29.º da mes- ma Carta. No presente, a lógica do direito ao trabalho assenta na aceitação in- contestada da eficácia do mercado livre – aliás patentemente desmentida desde a crise de 2008 –, competindo ao Estado o fornecimento de instru- mentos de adequação da força de trabalho por aquele reputada como 78 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO … necessária, instrumentos parcialmente financiados pelos impostos sobre o trabalho, pagos também por aqueles trabalhadores que passaram à condi- ção de desempregados. Trata-se, pois, maioritariamente de potenciar a empregabilidade, actu- ando sobre o lado do trabalho, co-responsabilizando individualmente o titular do direito ao trabalho, numa lógica invertida do direito, e não de potenciar o emprego, actuando sobre o lado dos detentores da capacidade de criação de emprego, limitando a plenitude dos direitos destes. Porém, as políticas activas de emprego com maior sucesso imediato e aliás menor custo11 nem sequer são as que incidem sobre a formação, valorização e adequação do desempregado às exigências do mercado de trabalho, sobre o fomento da empregabilidade do titular do direito ao trabalho, mas os apoios directos à criação de emprego, seja próprio, seja na versão do empreendedorismo (o que não deixa de ser um encaminha- mento do titular do direito à responsabilidade pela própria manutenção do direito no contexto duma economia de capital fortemente concentrado, ou seja, com grande possibilidade de insucesso), seja na subsidiação da contratação pelas empresas. A lógica da empregabilidade não tem qualquer potencial de satisfação de uma vida digna. Ela representa, salvo melhor opinião, a imposição de um padrão de comportamento que diminui a liberdade individual, ao forçar todos à competição segundo os ritmos, mais ou menos acelerados, determinados pelos operadores económicos. A dimensão humana do trabalhador é postergada. A conclusão final, entre nós, sobretudo centrada na análise da legisla- ção laboral, é a de que o direito ao trabalho constitucionalmente garantido e conceptualizado como um direito humano ao trabalho digno, nunca foi assistido de condições plenas de efectivação, condições estas que hoje, de modo essencial, deixaram de existir.

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11 6,5% da despesa total em políticas activas de emprego no ano de 2013. DIREITO AO TRABALHO E SEGURANÇA NO EMPREGO EM PORTUGAL: 1951-2013 | 79

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OS DOIS ANDAMENTOS DO MARCELISMO*

Fernando Rosas

Quando é chamado (e se faz chamar) à Presidência do Conselho para substituir Salazar, Marcelo Caetano enfrenta uma situação política e social de alto risco, marcada pela centralidade incontornável da questão colonial e da guerra que se prolongava há oito anos. Os dois andamentos do marcelismo são a história da falência do re- formismo chegado ao poder, a crónica da impossibilidade política de resolver a questão da guerra e, com isso, de levar por diante um processo de transição a partir do próprio regime. No primeiro andamento, tentar liberalizar sem abandono do esforço militar nas colónias; num segundo andamento, manter o esforço militar em África, sacrificando a liberaliza- ção e, com ela, o próprio regime. Marcelo Caetano nada tinha de democrata ou até, no rigor do termo, de liberal – as suas antigas convicções antipartidárias e autoritárias conti- nuavam basicamente incólumes. Defendia, sim, um maior respeito por parte das autoridades administrativas pelas leis, pelos direitos de cada um, e advogava um programa de descompressão política, de “liberdade possível”, que devolvesse alguma vida real ao sistema corporativo e um outro dinamismo à participação, que se queria ordeira e ponderada, dos cidadãos na coisa pública. Num primeiro momento de “primavera política”, como se lhe chamou, sensivelmente até 1970, o marcelismo tentou passar da teoria à prática, procurou executar o seu plano reformador: uma nova política económica desenvolvimentista, assente numa nova malha de industrialização, pró- -europeia, aberta ao investimento estrangeiro, que procurou liquidar o condicionalismo industrial, fez o acordo com a CEE em 1972, lançou, a

* Este artigo foi publicado originalmente em António Simões do Paço (coord.), Os Anos de Salazar, vol. 28, 1972. Conversa acabada, pp. 203-207. Ed. Planeta DeA- gostini, Lisboa, 2008. 82 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … pensar no petróleo angolano, o projecto de Sines, estimulou as cooperati- vas agrícolas e a grande empresa capitalista rural e gizou o projecto do Alqueva. Corolário dela foram as medidas de melhoria da assistência social (extensão da previdência aos rurais e criação da ADSE para os funcionários públicos) e a ousada reforma de democratização do acesso ao ensino e dos seus conteúdos lançada por Veiga Simão já em 1972. No plano colonial, vai onde nunca se ousara ir dentro do regime: em Setembro de 1970, perante as comissões distritais da Acção Nacional Popular, Caetano procede a uma verdadeira desmontagem do paradigma colonial salazarista, do ideário até aí legitimador da defesa das colónias e da guerra. Nem a “missão histórica”, nem a “defesa do Ocidente”, nem a “independência nacional”, nem os interesses económicos justificavam, só por si, a continuação do esforço militar no ultramar. O que impunha que se continuasse a lutar era a defesa dos interesses das populações brancas há muito aí instaladas: o Estado não as podia abandonar à sua sorte através da descolonização. A esse título Caetano entendia que era preciso prosseguir a guerra para ganhar tempo e espaço, de forma a ir-se prepa- rando uma evolução gradual para um futuro que se veria onde poderia chegar. É este princípio de “autonomia progressiva” que se consagra na revisão constitucional de 1971, seguida, em 1972, da nova Lei Orgânica do Ultramar e dos estatutos territoriais. Ainda que, na prática, com im- portantes limitações de carácter centralizador, Angola e Moçambique – a quem era concedido o “título honorífico” de estados – recebiam gover- nos, assembleias legislativas e tribunais próprios, sendo que a lógica básica de funcionamento de tais instituições tenderia, naturalmente, a privilegiar e perpetuar o sistema de domínio da população branca, quiçá de uma futura autonomia ou independência branca. O essencial, todavia, é que a política de “autonomia progressiva” exi- gia a continuação da guerra. E esse era o nó górdio da questão: Caetano, não só sob pressão dos integristas, mas por profunda convicção pessoal, entendia não ter outra saída que não fosse a de prosseguir o empenha- mento militar. O que, fatalmente, iria comprometer tudo o mais do seu programa de reformas. E seria o marcelismo a tirar as consequências práticas dessa realidade, quando, face à manutenção e agravamento da agitação política e social, procede, progressiva mas seguramente, a uma inversão da sua linha de actuação a partir de 1970. Constatada a inviabilidade de liberalizar man- tendo a guerra, e partindo da impossibilidade de lhe pôr termo, o regime vai manter a guerra, acabando com a liberalização. Em Outubro de 1970, publica-se nova legislação sindical permitindo a destituição pelo ministro das Corporações das direcções sindicais “sub- versivas”. Em resposta à crescente radicalização do movimento estudantil OS DOIS ANDAMENTOS DO MA RCELISMO | 83

– fulcro de um intenso activismo contra a guerra colonial, contra a repres- são policial e, particularmente em Lisboa, contra o conteúdo e o signifi- cado da “reforma do ensino” anunciada pelo marcelismo –, serão encer- radas pela polícia política, uma a uma, praticamente todas as associações de estudantes do País, sucedem-se as invasões policiais das instalações universitárias, dezenas de estudantes são presos ou incorporados coerci- vamente no Exército. A polícia política reganha o seu papel após um período inicial de alguma contenção: a curva das prisões volta a aumentar a partir de 1970-71, não só tendo como alvo o PCP, mas também os grupos maoístas e marxistas-leninistas, católicos progressistas e persona- lidades socialistas. Todos os projectos apresentados pela «ala liberal» na Assembleia Nacional – revisão constitucional, amnistia, liberdade de associação, lei de imprensa – são derrotados pela maioria afecta ao Go- verno e aos ultradireitistas. E finalmente, a eleição presidencial: ao de- sautorizar todas as tentativas de avançar com um candidato alternativo a Américo Tomás (Spínola chega a ser abordado nesse sentido), Caetano dá um inequívoco e definitivo sinal de que, para manter a guerra, estava disposto a sacrificar a liberalização.

ANOS DE BRASA: UMA VISÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA DE 70

Miguel Ángel Pérez Suárez

Em 1933, dentro do processo de institucionalização do Estado Novo, foi promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional, que impunha a criação de “sindicatos nacionais” organizados por distritos e ofícios, sob o con- trolo do Estado. A corporativização foi contestada pelas organizações sindicais de classe com uma greve insurrecional em janeiro de 1934. A derrota desse movimento pôs fim ao pujante movimento operário desen- volvido durante a I República (1910-1926), hegemonizado pela ideologia anarquista1. O próprio Partido Socialista, fundado em 1875, e que tivera um papel de relevo no nascimento do movimento sindical, dissolveu-se oficialmente em 1933. Os sindicatos nacionais serão um objetivo e um terreno fundamentais para a ação clandestina do PCP, que desde meados da década de 40 se tornara na principal (se não única) força realmente organizada contra a ditadura. O PCP aplicava uma linha de entrismo nas organizações de massas do regime, inspirada nas teses do VII Congresso da Internacional Comunista, de 1935. Os militantes e simpatizantes comunistas participa- ram nos processos eleitorais sindicais conseguindo alguns sucessos ao longo do tempo, apesar da repressão e da flagrante ilegalidade praticada pelo poder. Se bem que este seja um capítulo que ainda carece de investi- gações rigorosas, podemos afirmar que os esforços de uma oposição sindical alcançaram os seus frutos nos anos finais da década de 60.

1 Existe uma bibliografia variada sobre a história do movimento sindical. Referimos apenas os trabalhos pioneiros de César Oliveira, como O Operariado e a República Democrática, Lisboa, Seara Nova, 1975, e o mais recente de João Freire, Anarquis- tas e Operários. Ideologia, Ofício e Práticas sociais: o Anarquismo e o Operariado em Portugal, 1900-1940, Porto, Afrontamento, 1992. 86 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Efetivamente, é na fase final do regime que a oposição democrática (comunistas, católicos e uma nova esquerda, da qual uma parte acabará integrando o PS) conquista vitórias eleitorais num conjunto significativo de sindicatos, no calor da contestação social de 1968-69 e de uma fugaz e relativa abertura legal2. Em outubro de 1970 quatro desses sindicatos organizaram uma reunião intersindical tolerada pela ditadura, e que teve continuidade nos meses e anos seguintes com a participação de um núme- ro variável de sindicatos. Porém, desde 1971 a repressão endureceu, com a prisão de vários dirigentes sindicais (como Daniel Cabrita, do Sindicato dos Bancários de Lisboa) e suspensões de direções sindicais, como a dos Metalúrgicos de Lisboa. Os anos do consulado de Caetano3 aparecem, aos olhos do historiador, como a acalmia que precede a tormenta, pois aquele possui o privilégio da sabedoria posterior ao acontecimento. Desde 1960 o país assiste a um crescimento económico notável, à multiplicação do investimento externo e ao surgimento ex novo de setores industriais completos. Ao mesmo tempo, e de forma simultânea, vive-se um enorme êxodo de nacionais para os países europeus mais desenvolvidos, as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto viam crescer a sua população e nascer novos aglomerados e bairros, onde residiam novas camadas de trabalhadores industriais e de serviços. Entre 1950 e 1970 os ativos na indústria e serviços aumentaram em mais de meio milhão, enquanto o País sofreu aquela emigração maci- ça. São transformações que apenas podemos delinear neste texto, mas que mudam o aspeto de Portugal, aproximando-o dos modelos sociais do Ocidente. Por outro lado, as guerras de libertação nacional nas colónias africa- nas, que consumiam em três frentes o Exército português e os recursos financeiros do Estado, tiveram um efeito político formidável na sociedade portuguesa, em particular nos seus setores mais jovens. A convicção da injustiça do conflito e da impossibilidade de uma vitória militar radicali- zou uma geração inteira e esteve de facto no centro dos acontecimentos que puseram fim à ditadura estado-novista. O último ano da ditadura viu

2 Sobre a conflituosidade laboral no final da ditadura ver Fátima Patriarca “Estado Social: a caixa de Pandora”, in Rosas, Fernando e Oliveira, Pedro Aires, A transi- ção falhada – O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974) Lisboa, Notícias, 2004, pp. 171-212. 3 Em agosto de 1968 Oliveira Salazar sofreu um acidente doméstico que lhe provo- cou a invalidez, vindo a falecer em 1970. Foi substituído como primeiro-ministro por Marcelo Caetano, que despertou bastantes expectativas na opinião pública. Sobre o período marcelista, ver Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira, A tran- sição falhada – O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974) Lisboa, Notí- cias, 2004. ANOS DE BRASA : UMA VISÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA… | 87 uma extensão da conflituosidade social, com greves em numerosas em- presas (como a empresa de transportes aéreos, TAP, em julho de 1973) e uma movimentação generalizada da juventude estudantil. São abundantemente conhecidas as motivações de ordem corporativa que estão associadas ao nascimento do que irá ser o Movimento das Forças Armadas (MFA). O que pode resultar mais surpreendente é a rápida transformação desses objetivos profissionais numa crítica de conjunto do regime e da sua política africana, assim como a unidade que consegue dentro dos quadros do Exército. Quando no 25 de abril de 1974 os tanques saíram para a rua, a ditadura caiu como um fruto podre, abrin- do espaço a uma vasta e multifacetada explosão social surgida dessa nova classe trabalhadora que referimos acima. Nas semanas seguintes ao golpe militar desenvolveu-se uma onda de greves que atingiu todo o Portugal industrial: das grandes fábricas da margem sul do Tejo e Lisboa, numa situação de greve generalizada na região da capital no final de maio, e que até ao final de junho chegou às grandes unidades fabris do Porto e a todos os núcleos industriais de relevo. Os trabalhadores reivindicavam geralmente melhorias salariais, quase sempre num sentido igualitário, a diminuição do tempo de trabalho, com as 40 horas e férias pagas, e, de forma muito significativa, o sanea- mento de empresários e quadros das empresas relacionados com a repres- são da ditadura4. Os trabalhadores identificavam as práticas patronais repressivas com o fascismo deposto no 25 de abril, enquadrando a sua luta com os princípios definidos pelo MFA (como assinala R. Durán Muñoz no seu trabalho pioneiro, referido na bibliografia). “Fascista é objetivamente qualquer capitalista que vive à nossa custa e todos os seus lacaios imundos que recebem as migalhas maiores”, lemos num boletim dos trabalhadores de uma empresa em luta.5 As empresas foram o palco dessa luta, e as Comissões de Trabalhado- res (CT) o instrumento que encontrou um movimento operário radical e combativo. Na generalidade dos casos, os trabalhadores em luta elegiam, em assembleias muito dinâmicas, comissões representativas responsáveis perante o coletivo, revogáveis e autónomas, que adotaram a denominação

4 Sobre o movimento grevista de maio e junho de 1974 ver: Maria de Lurdes Lima Santos, Marinús Pires de Lima e Vítor Matias Ferreira, O 25 de Abril e as lutas soci- ais nas empresas. Porto, Afrontamento, 1977; e a minha tese de mestrado: Miguel Ángel Pérez Suárez, Contra a exploração capitalista: Comissões de Trabalhadores e luta operária na Revolução Portuguesa (1974-1975), dissertação de mestrado, FCSH- -UNL, Lisboa, 2008. Disponível na internet em: http://www.cd25a.uc.pt/media/ pdf/Textos%20jornalisticos/contraaexploracaocapitalista.pdf (18-11-2014). 5 “Jornal da Greve (suspensa) da Efacec/Inel Sul”. Citado em Revolução, n.º 16, 12- -10-1974. 88 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … de CT. A formação de comissões representativas não era, de facto, uma novidade, mas fazia parte da tradição histórica do movimento operário, e contava com antecedentes de importância no País: as chamadas “comis- sões de unidade” nas empresas e as “comissões de praça” ou “de jorna” na região do latifúndio eram formas através das quais os trabalhadores defendiam as suas reivindicações. Com a queda da ditadura e a proclamação dos objetivos democráticos do novo regime a Intersindical manifestou-se como a representante de um movimento sindical democrático e de classe, proclamando-se a central sindical única dos trabalhadores portugueses. A Intersindical organizou as grandiosas manifestações do 1.º de maio de 1974, que foram um autênti- co plebiscito popular ao MFA, e reuniu nas semanas seguintes dezenas de sindicatos que expulsaram as antigas direções corporativistas. No seio das estruturas que irão surgindo (plenários de sindicatos, uniões regionais, secretariado) a posição dirigente do PCP torna-se de imediato evidente. No quadro da onda grevista de maio e junho, a Intersindical assumiu plenamente o discurso de moderação difundido pelo PCP6. A 1 de junho de 1974 organiza uma manifestação em que participam alguns milhares contra as greves selvagens e sem sentido. Esta linha de atuação abriu um espaço político para as organizações da extrema esquerda e outras cor- rentes críticas. O caso dos estaleiros navais de Lisboa, a Lisnave, é exem- plar nesse sentido. Nesta grande empresa, os trabalhadores iniciaram uma luta em maio e, depois de uma paralisação com ocupação, conseguiram a satisfação de quase todas as suas reivindicações, como as salariais. Ficou por resolver o problema do saneamento de engenheiros e quadros envol- vidos no despedimento de dezenas de grevistas em 1969. Foi esse o motivo para que a CT organizasse uma manifestação em setembro de 1974, que unia essa exigência de saneamento à rejeição da muito restriti- va Lei da Greve que fora promulgada em agosto. A manifestação foi proibida pelo Governo e condenada pela direção do PCP, mas os traba- lhadores do estaleiro revalidaram maciçamente a sua decisão numa assembleia grandiosa que aprovou um manifesto de dimensão histórica7. Sem violência, os operários da Lisnave romperam o cordão militar for- mado para impedir a sua manifestação e marcharam de forma organizada e pacífica pelas ruas de Lisboa. A mobilização dos operários da Lisnave representou uma derrota polí- tica sem paliativos para o PCP, que se viu desautorizado numa das maio- res unidades fabris do País. A CT da empresa estava hegemonizada por

6 Sobre a linha política do PCP ver Raquel Varela, A história do PCP na Revolução dos Cravos. Lisboa, Bertrand, 2011. 7 Sobre o processo na Lisnave ver os artigos de Fátima Patriarca citados na bibliografia. ANOS DE BRASA : UMA VISÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA… | 89 várias organizações da extrema esquerda, como o PRP (Partido Revolu- cionário do Proletariado) e vários grupos marxistas-leninistas que, em dezembro de 1974, criaram a UDP (União Democrática Popular). Este último partido também influenciava outros coletivos de trabalhadores significativos. Ao lado destes grupos destacava-se o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), quiçá o movimento maoísta mais numeroso e hiperativo, que contava com uma influência operária relativamente importante8 e considerava o PCP como o inimigo principal da revolução. Da CT de Lisnave e de outras CT surgiu, no final de 1974, uma “Co- missão Interempresas” que agrupava várias dezenas de comissões de Lisboa e que organizou, em fevereiro de 1975, uma grande manifestação contra o desemprego e a presença de tropas da NATO em território português que contou com a participação de dezenas de milhares de trabalhadores, apesar das fortes críticas formuladas pelo PCP. Dias depois realizou-se no Porto uma iniciativa semelhante. Porém, estes projetos de coordenação e centralização não tiveram continuidade nos meses seguin- tes9. Este momento charneira do processo revolucionário – os meses finais de 1974 e o início de 1975 – está marcado por dois temas centrais do movimento operário: o debate unidade/unicidade sindical e a multiplica- ção de empresas em situação de autogestão. A Lei Sindical de 1975, chamada da “unicidade sindical”, estabelecia a existência de estruturas sindicais únicas e nomeadamente uma única central sindical: a Intersindical. O projeto foi apoiado pelo PCP e outros grupos da esquerda e vivamente rejeitado pelos socialistas. O PS organi- zou em janeiro de 1975 um importante comício com a participação de Mário Soares e Salgado Zenha, e nesses mesmos dias largos milhares de pessoas manifestaram-se em Lisboa pela unicidade e contra o divisionis- mo sindical. O texto legal foi finalmente aprovado em abril de 1975. A situação do movimento sindical foi sofrendo importantes modifica- ções a partir de maio de 1975, quando as chamadas “listas unitárias” de filiação comunista foram sucessivamente derrotadas em importantes sindicatos de serviços por “listas B” promovidas por socialistas em alian- ças muito heterogéneas (com os maoístas do MRPP, com os centristas do PPD-PSD). No final do verão desse ano o PCP não controlava os sindi- catos de seguros, escritórios e comércio de Lisboa (qualquer dos três com largos milhares de sócios), nem nenhum dos três da banca a nível nacio-

8 Demonstrada na organização de um “congresso nacional das CT” em outubro de 1975 em que participaram mais de uma centena de comissões. 9 Sobre a Interempresas ver a minha tese de mestrado citada em 4. 90 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … nal (o de Lisboa era um dos fundadores da Intersindical, em 1970). Estes resultados podem ser vistos como uma mobilização de camadas sociais médias e urbanas que manifestavam o seu receio pela influência comu- nista na vida social e política. A sangria sindical do PCP só parou em outubro com uma cómoda vitória “unitária” no Sindicato dos Metalúrgi- cos de Lisboa. Em agosto de 1975 a Intersindical realizou o seu primeiro congresso, em que foram aprovadas moções alinhadas com as análises do PCP. O primeiro-ministro general Vasco Gonçalves pronunciou o discur- so de encerramento (o ministro do Trabalho, capitão Costa Martins, dirigira-se aos congressistas na sessão de abertura). O congresso aprovou uma linha de rumo colada aos setores mais à esquerda do MFA e apoiou as medidas de nacionalização e a reforma agrária decididas pelo Governo de Gonçalves. O evento foi um ponto alto da estratégia do PCP para ocupar espaços de influência num suposto caminho para a tomada do poder e foi muito criticado pela falta de representatividade e democratici- dade. Desde o início de 1975 as ocupações de empresas generalizaram-se numa transgressão geral do direito de propriedade privada que caracteriza o processo revolucionário. No meio urbano casas e locais foram ocupados para dar satisfação às necessidades das populações (coletivas ou de habitação) e nos campos do Sul os trabalhadores agrícolas foram prota- gonistas de uma vasta revolução agrária que voltaremos a referir mais adiante. No que se refere às empresas, a ameaça da crise e do desemprego e as acusações de sabotagem económica e má gestão dos patrões conduziram a um importante movimento de ocupações que parece ter o seu momento mais forte no primeiro trimestre de 1975. Calculamos que no total terá havido, somando casos de intervenção do Estado e autogestão, não menos de 1200 casos. Uma norma legal – o Decreto 660//74, de 25 de novembro – permitia a intervenção do Estado nas empresas privadas que “não funcionem de acordo com o interesse da economia nacional” e estava orientado para determinados casos de gestão ruinosa de importantes companhias, mas nos meses seguintes serviu para dar cobertura oficial a muitas dezenas de ocupações e empresas em autogestão. As empresas que eram intervencio- nadas viam reconhecida a sua administração (nalguns casos a própria CT ou alguns membros representantes) e podiam agir legalmente, gerindo o património e recebendo, por vezes, apoio financeiro do Estado. Entre estas empresas, que pertenciam a todos os setores de atividade de Norte a Sul, podemos destacar importantes companhias industriais, grandes empresas de construção civil e imobiliárias, ou ainda a maior cadeia de supermercados do País. ANOS DE BRASA : UMA VISÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA… | 91

Segundo dados do Ministério do Trabalho, entre 25-4-1974 e 31-12- -1975 foram intervencionadas 261 empresas, com 154 000 trabalhadores, e nacionalizadas 227 com 157 000 trabalhadores10. Paralelamente verifi- cou-se um processo diferente de nacionalizações de setores estratégicos da economia nacional, muito ligado ao clima político e sob pressão dos trabalhadores. Depois do insucesso do golpe de 11-3-1975 os trabalhado- res da banca assumiram o controlo de toda a atividade do sector, por indicação da organização sindical. No dia 14 era decretada a nacionaliza- ção do setor, a que se seguiram dias mais tarde os seguros, e nas semanas e meses seguintes os setores fundamentais da indústria – siderurgia, petróleos, celulose, química – e todos os transportes. Na maioria destas empresas nacionalizadas assistiu-se a uma dinâmica de participação dos trabalhadores, com processos de controlo da produ- ção que tentavam democratizar a tomada de decisões dentro da empresa. Foram fenómenos não exclusivos das empresas na altura públicas, mas que existiram na generalidade da vida económica e social como um reflexo mais da crise social revolucionária que se abrira desde o 25 de abril. Em setembro de 1975 o I Congresso Têxtil, promovido pelo movi- mento sindical, discutiu a reestruturação e o controlo operário da produ- ção nesse setor fundamental da indústria portuguesa, que continuava nas mãos de privados. Para além das empresas nacionalizadas e intervencionadas existem inúmeros casos de pequenos locais de trabalho em que os trabalhadores entram em autogestão. Referimo-nos a situações em que, por determina- das circunstâncias (encerramento, fuga do patrão) um coletivo de traba- lhadores opta por ocupar a respetiva empresa com a intenção de pô-la a funcionar para garantir a continuidade da empresa e dos postos de traba- lho. O exemplo pioneiro é o da Sogantal (Montijo), pela sua repercussão mediática, mas a grande maioria das empresas intervencionadas citadas no início deste ponto entrariam nesta categoria. Na Sogantal as trabalha- doras entram em greve em maio de 1974 por melhores salários e condi- ções de trabalho. A entidade patronal não aceita o valor do salário míni- mo de 3300$00 e encerra a empresa. As trabalhadoras tomam conta da fábrica e continuam a produzir e vender durante cerca de dois anos, com a tentativa de retoma da empresa pelo proprietário em agosto de 1974, que é impedida pelas trabalhadoras e um forte movimento de solidarieda- de que mantém viva a esperança destas operárias de trabalhar sem pa- trões. As entidades estatais avaliam o número de empresas nesta situação en- tre 800 e 900. Vários ministérios e outras entidades credenciam as CT

10 Textos do MT, n.º 1, Intervenções do estado em empresas, MT, Lisboa, 1976. 92 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … dessas empresas para o funcionamento corrente e uma boa parte delas acabou por se transformar em cooperativas de produção nos anos se- guintes a 1975. Terão contado com cerca de duas a três dezenas de milha- res de trabalhadores. No decurso de 1975 a situação política portuguesa extremou-se à volta de dois projetos políticos que se definiram durante o próprio processo político, ambos com uma implantação social e geográfica bastante clara. Existia um campo revolucionário amplo, possivelmente maioritário na metade sul do País, que de forma confusa defendia um programa de tipo conselhista ou basista. Agrupava genericamente o PCP e os partidos à esquerda deste, a classe operária industrial e o proletariado rural alenteja- no. E havia um campo que chamaremos de democrático (não era contrar- revolucionário) que dominava claramente o Centro e Norte, agrupando as camadas médias da sociedade, as tradicionais e as novas, urbanas e rurais, o que poderíamos chamar o Portugal profundo. Defendia um modelo democrático-liberal ocidental. Os seus suportes políticos eram o PS e os partidos à sua direita, o PPD e o CDS, ainda que a extrema direita terro- rista do MDLP e do ELP e os maoístas do MRPP se situassem neste campo. E contava com a bênção da hierarquia da Igreja Católica, um poder com enorme influência e capacidade de mobilização no Centro e Norte e no âmbito rural. Os resultados das eleições de abril de 1975 deram a medida do apoio social de cada projeto. Os comunistas obtiveram uns magros 12,5% dos votos, muito concentrados no Sul, a que se juntavam os 4% do MDP. O PS teve uma enorme vitória. Com 38% dos votos era o único partido verdadeiramente nacional e ganhou em quase todos os núcleos urbanos do País. O PPD, com 26%, era o primeiro partido em quase todo o Norte (com exceção do distrito do Porto), mas no Sul era marginal. A participa- ção foi elevadíssima: mais de 92% dos recenseados. Com base no veredicto popular e com conflitos laborais como os do jornal República e da Rádio Renascença, o PS e os seus aliados desen- volveram uma campanha política tendo o primeiro-ministro Vasco Gon- çalves como alvo. Em junho os ministros socialistas e os do PPD demiti- ram-se e o primeiro-ministro formou um novo governo, o quinto provisório, sem figuras partidárias e com um apoio frio do PCP. Em meados de agosto as manifestações de rua, a favor e contra Vasco, quase diárias e multitudinárias, deram o tom da crise do Verão Quente, junto aos assaltos a sedes comunistas e de outras organizações no Centro e no Norte. Foi no meio desta crise política que se configurou o modelo de orga- nização da classe trabalhadora que se irá desenvolver nos anos seguintes, seguindo a estratégia política do PCP. Em junho apareceu publicamente ANOS DE BRASA : UMA VISÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA… | 93 uma estrutura de coordenação de CT da zona de Lisboa, o Secretariado Provisório das CT da Cintura Industrial de Lisboa (que usará a sigla CIL), a assunção plena por parte dos PCP do papel destas estruturas. No outo- no, no clima prévio ao golpe de novembro, verificaram-se dois conflitos laborais de dimensão nacional: as greves pelos contratos coletivos da metalurgia e da construção civil, em outubro e novembro, respetivamente. Ambos os conflitos, apesar do seu caráter setorial, adquirem uma di- mensão política inegável. Os metalúrgicos pressionavam para obter um contrato satisfatório e manifestaram-se maciçamente a 7 de outubro. Os trabalhadores da construção civil pararam a 12 de novembro e, depois de manifestações nas capitais de distrito, concentraram-se frente ao parla- mento na tarde desse dia, impedindo a entrada e saída de pessoas até a manhã de 14, quando o Governo atendeu às suas reivindicações. Ambas as mobilizações tiveram uma enorme dimensão e assumiram formas de luta radicais, que eram comuns no movimento operário à época. O pronunciamento de 25 de novembro de 1975 restabeleceu a disci- plina e a hierarquia militares, corroídas nesses últimos meses do processo revolucionário pela proliferação da auto-organização dos soldados em comissões e comités. Em pouco mais de 24 horas as tropas que apoiavam o Governo provisório e os oficiais moderados do “Grupo dos Nove” neutralizaram uma esquerda militar mais potente na capital, mas carente de um mando unificado. Não se tratará de um golpe sangrento (de facto, a ala mais radical do “novembrismo” rejeitará essa moderação). Lisboa foi colocada em estado de sitio e, sintomaticamente, uma das medidas ime- diatas do Governo foi o congelamento da contratação coletiva e a suspen- são de alguns contratos já acordados (como o da construção civil, assina- do a 14 de novembro, menos de duas semanas antes). A inflação será a arma mais usual do processo de contrarrevolução que se abria então. Os acontecimentos de 25 de novembro deixaram uma sensação de or- fandade junto das camadas militantes, do PCP e da esquerda revolucionária, e em geral do movimento operário e popular. Todos, o movimento social no seu conjunto, perderam um braço armado que nos 19 meses do PREC fora uma cartada determinante. Para o PCP, efectivamente, era o fim do avanço revolucionário, mas não a certidão de óbito da revolução: a dinâmica entre povo e forças armadas, teorizada pela cúpula do partido11, partia com o desaparecimento da ala progressista do MFA derrotada em novembro. No campo social, 1976 foi, em grande medida, um ano de aguardar para ver, no qual lentamente se afastava o temor de uma involução pro- funda e o movimento social, especificamente o sindical, pareceu “aguar-

11 Para uma formulação acabada ver Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa: o passado e o futuro Lisboa: Avante!, 1976, pp. 126-181. 94 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … dar para ver” num quadro de conflituosidade muito limitada. Em janeiro desse ano a Intersindical e a CIL organizaram uma grande concentração em Lisboa, realizada um dia depois de uma outra convocada por um Secretariado dos Órgãos da Vontade Popular de influência mais esquer- dista e que comparativamente resultou numa clara vitória do campo favorável ao PCP sobre os setores mais radicais. A jornada teve outra importante dimensão, já que a tendência comunista do movimento operá- rio conseguia fusionar, sem grandes dificuldades, o movimento sindical herdado da ditadura com as comissões eleitas em fábricas, as CT. Estas, que no início do PREC tinham sido criticadas pelos comunistas, assu- miam agora um papel subsidiário do movimento sindical como canal de representação paralelo. Uma parte importante da atividade sindical passou-se neste período na organização da central sindical e a realização de um congresso que desperta as expectativas de amplos setores de sindicalistas. As condições de realiza- ção do congresso sindical de 1975 e o seu resultado tinham sido objeto, já na altura da sua realização, de fortes controvérsias, e a própria direção da Intersindical manifestava em 1976 a necessidade de que fosse realizado um congresso democrático e com a participação de todos os sindicatos. Nesse quadro, em abril de 1976, uma reunião de direções sindicais, algumas das quais tinham dado baixa da Intersindical, publicava a “Carta Aberta”: um documento que manifestava abertura para o diálogo para manter a unidade sindical e defendia um modelo sindical democrático que permitisse a organização pública de tendências políticas nos sindica- tos. A questão do direito de tendência e a paridade nos órgãos organiza- dores do congresso foram os assuntos centrais de um grande debate político na sociedade portuguesa12. O movimento da Carta Aberta (CA) reunia sindicatos que tinham sido conquistados por listas conotadas com o PS nos meses anteriores, basi- camente os dos serviços como bancários, seguros, escritórios e comércio (neste último, a direção “democrática” entrou em crise em 1976 e foi substituída por uma partidária da Inter). Muitas destas vitórias basearam- -se em alianças entre o PS e o MRPP. O único sindicato da indústria com relevância presente era o dos metalúrgicos do distrito de Aveiro. Na CA participavam outras tendências mais à esquerda (sindicalistas da UDP e do MES) que, com a aproximação do “Congresso de todos os Sindicatos” (realizado finalmente em janeiro de 1977), afastaram-se da CA na direção da Intersindical.

12 Ficou popular uma canção do músico comunista José Barata Moura, O direito de tendência, na qual ironizava sobre tal direito e a tendência para a direita dos seus defensores. ANOS DE BRASA : UMA VISÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA… | 95

Ao longo de 1976 todo o movimento sindical se submeteu a um deba- te sobre importantes aspetos da organização e da política sindicais em todos os âmbitos. A segurança social, a assistência sanitária e a criação do SNS, a educação, o papel dos trabalhadores nas empresas, a estrutura sindical, o papel das CT foram discutidos em dezenas de encontros e seminários preparatórios do congresso em vista. No que se refere à orga- nização sindical dos trabalhadores destaca-se a opção pela dita “verticali- zação”13 do movimento sindical: a organização dos trabalhadores por setor de atividade e não por profissão, e a integração subordinada das CT dentro do movimento sindical. A tentativa de acordo entre a Intersindical e a CA para a organização do congresso terminou numa rutura pela negativa da Intersindical em aceitar a paridade na comissão organizadora. Na altura, em cerca de 360 sindicatos existentes no País aproximadamente 200 apoiavam a Inter contra umas dezenas da CA. Na reunião mais concorrida da CA participa- ram cerca de 60 sindicatos, mas normalmente não eram mais que uns trinta, e com alguns sindicatos em posições oscilantes. Finalmente, em janeiro de 1977 celebrou-se em Lisboa o “Congresso de todos os Sindicatos”, que oficialmente representava 1,7 milhões de trabalhadores. A unidade sindical mantinha-se, mas só momentaneamen- te. O PCP aparecia como força muito maioritária nos novos órgãos diri- gentes (Secretariado e Conselho Nacional), onde estavam presentes alguns representantes de outras tendências sindicais (PS, MES, UDP, grupos cristãos). A central passou a denominar-se Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN), tentando criar alguma ligação histórica com a tradição da CGT e do movimento operário da I República. Com este resultado no congresso dos sindicatos os socialistas lança- ram-se num debate sobre a política sindical, polarizado pelo documento “A questão sindical”, de Maldonado Gonelha14. Enquanto a esquerda do PS continuou a defender a intervenção na CGTP com vista a conquistar a maioria da central, a posição de Gonelha era criar uma “central sindical democrática”, colaborando para isso com a tendência sindical do PSD (antes PPD). No debate interno impôs-se a visão favorável a uma segunda central, que será criada em 1978: a União Geral de Trabalhadores (UGT)15.

13 No sentido de construir grandes sindicatos de indústria, uma aceção surpreendente pois na vizinha Espanha o movimento sindical de classe era exatamente “horizon- tal” contra o sindicato franquista, denominado “el vertical”. 14 Ministro de Trabalho nos primeiro e segundo governos de Mário Soares. 15 Sobre a criação e evolução da UGT ver José Maria Brandão de Brito e Cristina 96 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO …

Em fevereiro de 1977 o Governo de Mário Soares lançava um pacote de ajustamento face à crítica situação financeira do País. Desvalorizava- -se o escudo, com imediatos efeitos inflacionários que provocaram o aumento da conflitualidade social. Em novembro desse ano foi aprovado o “Pacote 2”, a continuação da austeridade com um topo salarial de 15%, muito inferior à taxa de inflação, próxima dos 30%. Outras medidas legislativas acompanhavam o pacote: a lei dos despedimentos, a de delimitação de setores, a de indemnizações pelas empresas nacionaliza- das, entre outras, e sobretudo a Lei 77/77, a Lei Barreto ou Lei da (con- tra) Reforma Agrária. Em novembro de 1977 a CGTP convocou uma maciça jornada de protesto, que segundo os cálculos da Intersindical reuniu meio milhão de pessoas nas ruas de Lisboa. Durante 1975 toda a metade sul do País protagonizou uma profunda transformação da propriedade agrária, com a ocupação de mais de um milhão de hectares de terra e a criação de cerca de quinhentas unidades coletivas de produção. Trata-se de um processo que apenas podemos esboçar aqui. No verão de 1974 os trabalhadores conquistaram os seus primeiros contratos coletivos, que foram renovados no outono e incluíam a garantia de trabalho, com a fixação de contingentes obrigatórios nas herdades. A falta de cumprimento dessas condições e outras situações foram consideradas sabotagem económica da parte dos proprietários e conduziram às primeiras ocupações, que depois recebem cobertura legal em meados de 1975 com a promulgação da Lei da Reforma Agrária. Nos campos do Alentejo e do Ribatejo surgiu uma realidade económica e social nova: explorações agrícolas geridas democraticamente e uma melhoria geral dos baixos níveis de vida e emprego. A reforma agrária recebeu um apoio decidido do PCP, que garantiu ao partido uma mar- cante implantação regional. O processo contra a Reforma Agrária teve um lugar de destaque na política de destruição das vitórias sociais da revolução, não tanto pelo seu peso específico próprio, mas pelo valor simbólico: a conquista da terra tinha uma dimensão que ia além do número de pessoas mobilizadas ou do valor económico, a imagem dos tratores carregados de trabalhadores entrando nas terras sem cultivar foi uma das gravuras mais memoráveis da revolução. E o temor de um ataque geral à propriedade privada da terra foi um elemento chave do discurso da direita durante e depois do processo revolucionário. Em junho de 1977 foi aprovada a lei 77/77, a nova lei da reforma agrária, conhecida pelo nome do ministro António Barreto, que sucedera

Rodrigues, A UGT na história do movimento sindical português (1970-1990). Lisboa, Tinta da China e UGT, 2013. ANOS DE BRASA : UMA VISÃO DO MOVIMENTO OPERÁRIO PORTUGUÊS NA DÉCADA… | 97 ao Eng.º Lopes Cardoso no Ministério da Agricultura. A entrega de reservas e outros bens, as dificuldades e os cortes no financiamento estatal e uma vasta repressão conduziram em poucos anos à destruição de boa parte das UCP e à entrega aos antigos proprietários das terras expro- priadas, em processos cheios de ilegalidades e de violência. No final de 1980 tinham sido devolvidos aos proprietários cerca de 600 000 hectares de terra, segundo números dos sindicatos. Entre 1977 e 1980 realizaram-se não menos de cinco greves gerais em defesa das UCP no Alentejo e uma jornada nacional de apoio à Reforma Agrária. As intervenções policiais foram quase quotidianas e muito duras, com uso de helicópteros, cães-polícia e armas de fogo contra manifes- tantes e trabalhadores. Os acontecimentos em Évora no verão de 1977, quando da aprovação da Lei Barreto – dois dias de confrontos generaliza- dos entre população e forças policiais – e a morte de dois trabalhadores em Montemor na entrega de uma reserva terão sido marcos relevantes duma violência que se estendeu durante vários anos. Durante uma década a região do Alentejo viveu um clima de repressão semelhante ao existente antes do 25 de abril. No mundo das empresas, do movimento sindical, aprofundou-se um processo que continuaria nos anos seguintes, marcado pela defesa palmo a palmo das conquistas alcançadas no processo revolucionário. Se 1976 aparece como um impasse de acalmia é assim pelo contraste com os anos prévios e posteriores. Há uma tendência global que aponta para o predo- mínio de conflitos de setor sobre os de empresa, o que nos parece normal dada a fixação legal de tetos para os aumentos salariais significativa- mente abaixo da inflação, em 1977, 1978 e 1979. Em 1978 quase dois milhões de trabalhadores entraram em luta pela renovação dos seus CCT, conseguindo por vezes romper os tetos. Nesse ano uma greve de 78 dias na marinha mercante levou à requisição civil de vários navios, enquanto se sucediam no Governo uma efémera coligação PS-CDS e gabinetes de iniciativa presidencial até às eleições intercalares de dezembro de 1979. Em 1978 foi assinado um protocolo de assistência financeira com o FMI que impôs um endurecimento das medidas de austeridade aplicadas desde 1977. Entre junho e setembro de 1977, e segundo números da CGTP, foram “desintervencionadas” 82 empresas (na sua grande maioria devoluções) – quando anteriormente houvera apenas 10 desintervenções. Em muitas dessas empresas desenvolveram-se conflitos muito duros e com recurso frequente à intervenção policial. Algumas das empresas devolvidas eram exemplos de verdadeira recuperação da saúde das empresas, caso de várias corticeiras, como a Pablos e a Mundet. Contra o regresso dos patrões a Copam está 5 meses paralisada, a L. P. Mendonça mais de dois. 98 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Na Duarte Ferreira, em importantes empresas da construção civil como a J. Pimenta, os trabalhadores lutam pelo emprego. Uma nova vaga de devoluções de empresas acontece em 1979, durante o Governo de Mota Pinto. O gabinete mais à direita desde o 25 de abril despachou dezenas de devoluções de terra e desintervenções, como a Corame, a Jacinto e nova- mente a Duarte Ferreira. Nas empresas públicas, onde os conflitos foram bastante limitados, os trabalhadores conduziram processos de luta dura e prolongada, assim como em empresas privadas onde os dirigentes sindi- cais e membros de CT e outros trabalhadores sofreram perseguições e agressões físicas frequentes. Em 1978 foi aprovada legislação sobre as empresas em autogestão, definindo-se vias que permitiam aos antigos patrões reclamar o seu património ocupado (os processos judiciais multi- plicar-se-ão…) e a criação de um Instituto Nacional das Empresas em Autogestão que, parece-nos, não terá saído nunca do texto legal. Não podemos apresentar dados globais sobre a conflituosidade laboral, mas a nossa leitura é a de um clima de combatividade sustentada do movi- mento operário que chega às greves gerais de 1982. Este recurso tardio a uma forma de luta elevada, mas recorrente nos países vizinhos condiciona o seu sucesso, e é precedida por uma longa e dura luta de mais de três meses no setor têxtil marcada pela divisão sindical entre CGTP e UGT. As paralisações gerais serão momentos de elevada tensão entre a Intersindical e uma UGT que é acusada de divisionista, nomeadamente a de 11 de maio, que é convocada depois da morte de dois trabalhadores da CGTP pela polícia na noite de 30 de abril para 1 de maio no Porto, quando militantes das duas centrais disputavam o espaço para a realização do 1.º de Maio. De qualquer forma, os resultados das duas datas não irão significar uma altera- ção de forças na sociedade e no movimento sindical. A CGTP consegue paralisar o aparelho produtivo e mobiliza uma base social limitada, que já sofreu derrotas pesadas e determinantes nos anos anteriores. A nova intervenção do FMI em 1983 e o cambiante quadro político nacional e internacional nos anos seguintes serão elementos novos que muito pesarão na evolução e na atividade do movimento sindical portu- guês. Mas isso fica de fora deste breve texto.

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O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE

Jorge Fontes

Introdução

O texto que aqui se apresenta tem por objeto a movimentação operária na empresa de construção e reparação naval Setenave, localizada na Mitrena, em Setúbal. Neste breve resumo, tentar-se-á demonstrar a sua importância na história das relações laborais em Portugal: do controlo operário aos “pactos sociais” e à reconversão industrial. A Setenave é fundada em 27 de Maio de 1971, tendo por principais acionistas a CUF e a Lisnave, bem como instituições bancárias. O cenário parecia promissor: existia forte procura de navios superpetroleiros, Portu- gal não tinha assinado o acordo da OCDE de 1969 que estabelecia a liberalização completa do setor, previa-se a entrada em funcionamento do porto de Sines, com capacidade para receber navios até 350 000 t de porte para abastecimento da refinaria, no chamado projeto dos “3 S” a armado- ra Soponata transportaria o petróleo de Cabinda para ser refinado em Sines, em navios construídos na Setenave. Em 6 de Abril de 1972 iniciam-se as dragagens no rio Sado, dando origem a uma ilha com a superfície de 1 000 000 m². As condições são favoráveis: o estuário do Sado atinge 10 km de comprimento e 1,5 km no seu ponto mais estreito. A península de Tróia e a serra da Arrábida são proteções naturais, deixando o estaleiro ao abrigo de ventos e marés. A profundidade média das águas varia entre 8 e 12 metros e as temperaturas oscilam entre os 10°C no inverno e os 25°C no verão, excelentes condi- ções para a atividade de construção e reparação naval1. Contudo, a nova empresa dava os primeiros passos sob o signo da cri- se mundial de 1973, que influenciará o seu destino: verificar-se-á um acelerado retraimento nas encomendas de novos navios (especialmente

1 “O estuário do Sado,” Informação Setenave, abril 6, 1978. 102 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … petroleiros), a descolonização ajuda a contrair a marinha mercante, os países do Sudoeste Asiático apostam na indústria naval como pilar do take off económico (com gigantescos apoios estatais e baixos custos de força de trabalho), a carteira de encomendas inicial é negociada numa moeda (escudo) que se desvaloriza. A inauguração oficial dá-se pouco tempo depois da Revolução dos Cravos, a 6 de Agosto de 1974, mas só começará a laborar a 16 de Junho de 1975 com a entrada nos estaleiros do navio Montemuro, da Soponata.

A Setenave na revolucão

O golpe de estado de 25 de Abril de 1974 encontra a Setenave em pe- ríodo de instalação. Nesse dia, a Administração emite um comunicado em que “apelava para o respeito às autoridades da nação”, não se referindo, “prudentemente”, quem era a “autoridade”. Só após o 1.º de Maio “se começou a sentir que algo estava a mudar”, aparecendo os primeiros cartazes e panfletos de esquerda2. Entre maio e junho, o País é atravessado por uma onda de greves. Nas empresas surgem comissões de trabalhadores (CTs), calcula-se que cerca de 4000 até outubro3, normalmente eleitas após plenários, abrangendo todos os trabalhadores da unidade (independentemente da profissão), sob o princípio da sua revogabilidade, mantendo-se sob forte controlo da assembleia de onde emanam. Na Mitrena, a primeira “confrontação” política com a Administração tem lugar a 13 de maio. Os trabalhadores concentram-se “espontanea- mente” em frente ao edifício da Escola de Formação, constituem uma comissão negociadora ad-hoc e entram em greve de duração ilimitada, com uma Assembleia Geral de Trabalhadores (AGT) a funcionar em permanência. Após confluírem as suas reivindicações com as dos trabalhadores da Lisnave, conseguem que passem a vigorar novas condições, nomeada- mente: tabela de vencimentos dos 6200$00 até 12 500$00 para pessoal técnico e administrativo; sendo o salário de 7000$00 o correspondente à categoria mais baixa para trabalhador adulto, nos contratos coletivos no setor da produção, eliminação de trabalho ao sábado para horário diurno e

2 Alberto Conceição, António Barros, e José Sardinha, Setenave, História de um estaleiro 1971-1989 (Lisboa: Colibri, 2016), 148. 3 Peter Robinson, “Workers’ Councils in Portugal, 1974-1975,” in Ours to Master and to Own: Worker’s Control from the Commune to the present, coord., Immanuel Ness e Dario Azzellini (Chicago: Haymarket Books, 2011), 264, tradução nossa. O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE | 103 do 3.º turno, 1 mês de férias com 1 mês de subsídio, 13.º mês, participa- ção nos resultados4. A 27 de Maio elege-se o primeiro Conselho de Trabalhadores da Se- tenave (CTS). Contudo, uma assembleia-geral realizada no Clube Naval Setubalense destitui este organismo, acusado de “conluio” com a Admi- nistração, e elege outro conselho, de cunho fortemente anticapitalista. O segundo CTS (de Julho de 1974 a Maio de 1975) bem como o ter- ceiro (de Maio a Dezembro de 1975) são dirigidos pela chamada “es- querda revolucionária”. Portanto, só após o 25 de Novembro de 1975 irá o PCP dirigir o CTS (bem como todos os restantes órgãos representativos dos trabalhadores), o que ocorrerá sem descontinuidades até ao término da empresa – ao contrário do sucedido na Lisnave, cuja CT é ganha pela UGT em 1986. Os CTS, durante a revolução portuguesa, centram as suas reivindica- ções em temáticas anticapitalistas e igualitárias, como a luta pela aproxi- mação das diversas categorias e redução do leque salarial, congelamento dos salários mais elevados, inclusão dos subempreiteiros, abolição dos contratos a prazo e do regime experimental, redução dos privilégios do pessoal superior. Procuram inserir a mobilização dos trabalhadores da Mitrena no contexto mais geral da dinâmica revolucionária, em articula- ção com outras comissões de trabalhadores, moradores e soldados, numa lógica de estabelecimento de um “poder popular” na projectada nova sociedade socialista. O PCP adquire cada vez mais força na Setenave durante o “Verão Quente”. Ferozmente crítico do papel da “esquerda revolucionária”, esta corrente afirma-se politicamente pela prioridade dada à exigência de nacionalização da empresa, o que ocorrerá em 1 de Setembro de 1975 pelas mãos do V Governo Provisório de Vasco Gonçalves – ao contrário do sucedido na Lisnave, isenta de intervenção estatal devido à sua eleva- da componente de capital estrangeiro. O controlo operário na empresa exprime-se em os trabalhadores pos- suírem níveis muito elevados de informação (por exemplo, sobre os salários), controle sem resistência de tarefas, reuniões, serviços, pessoal, produção, setor financeiro, chegando ao controlo da função comercial, vital na indústria de construção naval. Têm força para recusar as propos- tas da Administração e impor muitas das suas5.

4 O Administrador-Delegado, Ordem de Serviço nº 21, (Almada, 23 maio 1974), Centro de Documentação 25 de Abril. 5 Teresa Rosa et al, “Sistemas de Trabalho, Consciência e Ação Operária na Setena- ve”, (Tese de Dissertação de Licenciatura, ISCTE, 1983), 490. 104 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

A Administração é muito experimentada, tenta sempre comunicar di- retamente com os trabalhadores, manter canais institucionais de diálogo abertos, culpa o CTS pela “desorganização” do estaleiro e falta de enco- mendas, “cola-se” às medidas dos governos provisórios, vistos com simpatia por uma grande parte da força de trabalho, joga com as divisões entre os trabalhadores (extrema-esquerda versus PCP), apela ao “patrio- tismo” e à lógica “produtivista”. Durante 1974 a Administração preocupa-se sempre em realçar que os conflitos verificados acarretam “o grave inconveniente de poderem ser interpretados como traduzindo um clima de relações sociais extrema- mente deteriorado, o que efetivamente não acontece”6. Mas em abril de 1975, a Administração e o CTS encontram-se incompatibilizados e de- missionários. E em outubro, no estaleiro já nacionalizado, diretores, gestores, operativos e o delegado do Governo, demitiram-se ou apresenta- ram a demissão7. Paira o espectro da militarização da empresa, e os trabalhadores rejeitam uma proposta de “cogestão”. No decorrer do golpe do 25 de Novembro, realiza-se uma assembleia na Setenave e plenários por secções na Lisnave8. O Forte de Almada é cercado por trabalhadores da Lisnave e Setenave, reclamando armas9. Pela manhã de dia 27, num plenário na Lisnave com a presença de uma delegação da Setenave e de soldados do Forte de Almada, o PCP argu- menta contra qualquer demonstração de força dos trabalhadores. A “es- querda revolucionária” apela a uma greve, posição rejeitada pela maio- ria10.

A Setenave nacionalizada

Derrotada a “esquerda militar” com o golpe de 25 de Novembro de 1975, mas cristalizadas uma série de conquistas laborais, no quadro de uma economia fortemente nacionalizada, as eleições para a nova CTS, em Janeiro de 1976, oferecem a vitória à lista afecta ao PCP, à frente dos

6 O Administrador-Delegado adjunto, A Todos os Trabalhadores da Setenave, (Almada, 12 novembro 1974), Centro de Documentação 25 de Abril. 7 O Administrador por parte do Estado. Moura Vicente, Carta aos trabalhadores da Setenave, (s.l., 6 outubro 1975), Centro de Documentação 25 de Abril. 8 “Setúbal-25 de Novembro, Cronologia dos acontecimentos,” Revolução, dezembro 13, 1975, 6. 9 Rosado da Luz, entrevistado por Raquel Varela, julho 2012. 10 Phil Mailer, Portugal, The impossible revolution? (Londres: Solidarity, 1977), 338, tradução nossa. O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE | 105 programas apoiados pela UDP e PS. Os comunistas detinham também a maioria dos delegados sindicais e dirigiam o sindicato mais importante da empresa, o dos metalúrgicos. As prioridades da CTS passam a ser: a defesa da nacionalização da empresa no contexto do sector empresarial do Estado (“irreversível” de acordo com o artigo 83 da Constituição), os chamados “sectores não capitalistas” que serviriam de barreira ao avanço da reacção e permiti- riam, através de uma articulação racional do sector produtivo (nomeada- mente em conjugação com a reforma agrária), a independência e o desen- volvimento nacional; a elevação das condições de vida dos trabalhadores; e a viabilização económica e financeira do estaleiro num mercado mun- dial em contracção. Em 1980 laboram 6757 trabalhadores no estaleiro, o que constitui o pico máximo de ocupação da Mitrena. Os números tinham vindo sempre a crescer (1974: 2414; 1975: 4007; 1977: 6162; 1979: 6253) mas a partir desta data a descida será vertiginosa. Registam-se 6087 trabalhadores em 1982, 4841 em 1984, e 2650 em 1989. A nova legislação das CTs (Lei 46/79), que introduz o método de Hondt na eleição para este órgão, é contestada tanto pelo PCP como pela UDP, sendo apoiada pelo PS. Os “unitários” ultrapassam os “imbróglios” de articulação com as outras correntes, elegendo um secretariado da CT, que passa a dirigir directamente as negociações com a administração. Em Dezembro de 1980, a empresa é declarada em situação económica difícil pelo Governo AD, e em Janeiro de 1981 a estação de desgaseifica- ção (um dos sectores mais lucrativos) é entregue à Lisnave (privada, com participação dos Mello). Para agravar os problemas, o presidente do Conselho de Administração (tido como próximo do MDP/CDE) é afasta- do, deteriorando-se as relações da CT com a gestão. Com efeito, o ano de 1981 marca um ponto de inflexão nas relações laborais no estaleiro. Apesar de as reivindicações terem progressivamente passado de um carácter qualitativo durante o período revolucionário (controlo operário, compressão do leque salarial, etc.) para uma dimensão mais quantitativa (aumentos salariais, prémios, etc.) e de se ter assistido a uma degradação das conquistas laborais, verificou-se alguma estabilidade na empresa, possibilitada por um certo clima de optimismo acerca da sua viabilidade e pelo estabelecimento de canais de comunicação com a administração, considerados positivos pela CT, que dirigia as suas críticas mais para a componente externa (Governo) que para a dimensão interna.

106 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

O “Pacto Social” na Setenave

O contexto social é o mais “quente” desde o PREC. A revisão consti- tucional de 1982 é percebida pela esquerda como um ataque às “con- quistas de Abril”, a CGTP declara as primeiras duas greves gerais em Portugal desde 1934 (12 de Fevereiro e 11 de Maio de 1982), começa a registar-se o drama dos salários em atraso (e o seu cortejo sombrio de fome e suicídios), e uma carta de José de Mello ao primeiro-ministro propondo milhares de despedimentos na indústria naval e “a cessão de exploração da Setenave” inflama ao rubro os ânimos dos trabalhadores11. Na Setenave procura-se reagir à crise com a introdução de métodos inovadores, como o jumboizing (alongamento do navio), mas foi o caso do petroleiro Setebello (S-106) que iria marcar todo o período posterior. Devido a atrasos na sua entrega, o armador Thyssen queria denunciar o contrato. Em Janeiro de 1983, os trabalhadores encontravam-se à espera de receber o salário de Dezembro e o subsídio de férias, pairando sobre o estaleiro o espectro do encerramento, como chegou a ser noticiado na comunicação social. No fim do mês, chega-se a um acordo histórico nas relações de trabalho em Portugal. Pela primeira vez numa empresa públi- ca, os trabalhadores aceitavam perder direitos a troco da viabilização económica. Com efeito, na sequência de plenários sectoriais, a 21 de janeiro reali- za-se uma AGT na Setenave, com cerca de 5000 trabalhadores, na qual se aprova um acordo entre o Governo, a administração e os Orgãos Repre- sentativos dos Trabalhadores (ORTs). Segundo este, o Governo compro- metia-se a assegurar o funcionamento do estaleiro até ao acabamento do navio a 31 de agosto12. Em contrapartida, os trabalhadores comprometem-se a acabar o navio no prazo, sofrendo um corte de 6% no salário (valores devolvidos após data de acabamento), abstêm-se de reivindicações de ordem interna e greves (com exclusão das de âmbito nacional ou sectorial), abdicam de férias, salvo “casos excecionais”, as escalas de serviço passam a ser colocadas com uma semana de antecedência (em vez de um mês, embora em termos práticos tal já acontecesse) e os prémios, subsídios de turno e horas extras ficam subordinados ao completar de fases de trabalho, rece- bendo os trabalhadores um bónus caso cumpram antes do prazo13.

11 “AD/Mello querem despedir milhares de trabalhadores,” Pórtico, setembro 17, 1982. 12 “Pacto Social viabiliza construção do «S-106»,” Expresso, janeiro 29, 1983, 14. 13 Compilação extraída de recortes de imprensa dos meses de janeiro e fevereiro de 1983. O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE | 107

Uma resolução alternativa propõe o repúdio do acordo, pois como “o Governo afirma haver dinheiro (para tal bastando aprovar o pacote) então que paguem” e exige o pagamento de salários e desbloqueamento de verbas para o S-106, sendo largamente rejeitada14. Segundo a CTS, a “não inviabilização das medidas propostas” é “uma forma de empenhamento responsável e patriótico dos trabalhadores da Setenave”, bem como um “desafio consciente e decidido a viabilização futura da empresa”15. Para Baião Horta, ministro da Indústria, Energia e Exportação, trata-se de “uma prova que o diálogo é possível para conseguir o objetivo de dotar a indústria de capacidade de adaptação”16. Deve “ser tentado em outras empresas por ser uma forma positiva de abordagem dos seus problemas”17. A notícia do acordo na Mitrena ganha destaque na imprensa, salien- tando-se o ineditismo da solução, alimentando-se a ideia de um pacto social. Por exemplo, segundo o Diário Popular “pela primeira vez numa empresa pública, trabalhadores abdicam de direitos para viabilizar a Setenave”18, o Correio da Manhã refere tratar-se da “primeira vez que em Portugal se “estabelece um acordo entre Governo e trabalhadores com vista à viabilização de uma empresa”19, o Expresso escreve que o “Pacto Social viabiliza construção dos ‘S-106’”20, e para o Noticias da Tarde “pode ser exemplo para outras empresas”21. O S-106 é terminado antes do prazo previsto. Em conferência de im- prensa, os ORTs da Setenave asseguram tal só ter sido possível graças ao “esforço e dedicação dos trabalhadores”, que “pouparam ao país ‘alguns milhões de contos’”. O Avante! interroga: “Os trabalhadores cumpriram – e o Governo?”22.

14 “A proposta dos operários revolucionários,” Bandeira Vermelha, janeiro 27, 1983, 12. 15 “Governo e trabalhadores vão viabilizar Setenave,” Correio da Manhã, janeiro 28, 1983, 20. 16 “Pacto Social viabiliza construção do ‘S-106’”, Ibid. 17 “Setenave pode ser exemplo para outras empresas”, Noticias da Tarde, fevereiro 3, 1983, 7. 18 “Trabalhadores abdicam de direitos para viabilizar Setenave,” Diário Popular, janeiro 27, 1983, 36. 19 “Governo e trabalhadores vão viabilizar Setenave,” Ibid. 20 “Pacto Social viabiliza construção do ‘S-106’”, Ibid. 21 “Setenave pode ser exemplo para outras empresas”, Ibid. 22 “Setenave, Os trabalhadores cumpriram – e o Governo?,” Avante!, agosto 18, 1983, 7. 108 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

A Administração da Setenave escreve uma carta aos trabalhadores da empresa, a 29 de agosto, felicitando-os “pela vontade firme e pela sua ação unida no interesse comum, que levaram à estabilização social, a uma recuperação de confiança nas suas potencialidades, à melhoria da imagem externa”. Segundo esta, o acordo de janeiro “garantiu a indispensável paz laboral, permitiu à Empresa dispor dos recursos financeiros indispensá- veis à sua laboração”23. No dia seguinte à estipulada data limite de acabamento do navio, em reunião de Conselho de Ministros a 1 de setembro, aprova-se uma “reso- lução que aponta para a redução de boa parte do pessoal da Setenave”. O Fundo de Desemprego deve garantir os “apoios previstos na lei para os trabalhadores que venham a ser dispensados”. A empresa fica proibida de “aceitar encomendas que impliquem esforços financeiros adicionais por parte do Estado”. Elaborar-se-á um “esquema de dimensionamento da empresa, que pode eventualmente conduzir à sua desativação progressi- va”, garantindo-se “condições de operacionalidade” para “uma eventual retomada do mercado de construção naval”24. O Expresso faz um resumo: “a Setenave ainda não vai morrer, mas muita gente, que vive do seu trabalho nos estaleiros, vai passar pela suspensão forçada. Será certamente o primeiro exemplo de ‘despedi- mentos’ massivos”25. Com efeito, a resolução de Conselho de Ministros 42/83 de 10 setembro decreta que, num prazo de seis meses, a Setenave teria de reduzir em mil o número de efetivos, garantindo como indemni- zação o valor de um mês por cada ano de trabalho mais quatro meses26.

A concertação “permanente” Num contexto de aguda crise económica, e sob o espectro do regresso do FMI, começa a discutir-se com cada vez mais insistência na sociedade portuguesa a necessidade de um “diálogo social” capaz de institucionali- zar e regular as relações laborais, o pacto social. A palavra pacto tem origem no latim pactu, ou seja tratado, conven- ção, ajuste, contrato, combinação, acordo entre duas ou mais pessoas27.

23 “Carta aos Trabalhadores,” Informação Setenave, agosto 29, 1983. 24 “Projeto de Mota Pinto de ‛Serviço de Informações’ aprovado pelo governo, resolução sobre a Setenave vai reduzir pessoal,” Diário de Lisboa, setembro 2, 1983, 24. 25 “Setenave vai construir para a frota mercante nacional com menos 2 mil trabalha- dores,” Expresso, setembro 3, 1983, 15. 26 Resolução Conselho Ministros nº 42/83, 10 setembro. 27 Grande Dicionário da Língua Portuguesa, António de Morais Silva, Vol. VII (Lisboa: Editorial Confluência, 1954), “pacto”, 651. O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE | 109

Na definição de Barreto, um pacto social é um “acordo à escala nacional, negociado, periodicamente ou a título excecional, entre o movimento sindical, as organizações patronais e, eventualmente, o Governo, com o objetivo de assegurar, durante determinado espaço de tempo ou em permanência, as condições de uma relativa paz social”, significando a “aceitação pelas partes de determinada programação económica e social, a cujos supostos benefícios se sacrificam certos interesses imediatos ou, possivelmente, até estratégicos”28. Para Sousa Franco, num “período de grande instabilidade política” merece “menção uma importante medida inovadora no domínio social, que foi o acordo de viabilização da Setenave: pela primeira vez se contou com a participação dos trabalhadores, que se comprometiam aceitando alguma redução dos seus benefícios sociais em contrapartida da viabiliza- ção e da manutenção e valorização dos seus postos de trabalho”29, e segundo Medeiros Ferreira, a “renúncia à greve de empresa pelos traba- lhadores da Setenave será um símbolo das mutações ocorridas”30. O Decreto-Lei 74/84 cria o Conselho Permanente de Concertação So- cial, que toma posse a 20 de março, instituindo-se o primeiro órgão específico de concertação tripartida, dez anos após o fim da ditadura. Entre a UGT e os membros do Governo ficam simbolicamente vazias as três cadeiras da CGTP. Segundo Soares, “os lugares não ocupados ficarão em aberto” para o caso de a CGTP “se vir forçada a retificar o julgamento de agora para não ficar isolada e à margem dos debates fundamentais e das decisões que aqui terão lugar”. A UGT afirma “total disponibilidade para dialogar e concertar”, e a CIP advoga uma nova revisão da Consti- tuição, um calendário de desnacionalizações e a revisão das leis económi- cas e laborais.”31.

28 José Barreto, “Modalidades, condições e perspectivas de um pacto social,” Análise Social 53 (1978): 81. 29 Sousa Franco, “A Economia” in Portugal 20 anos de democracia, coord. António Reis (Lisboa: Temas & Debates, 1996), 234. 30 José Medeiros Ferreira, História de Portugal, vol. VIII, Portugal em Transe (1974- -1985) (Lisboa: Editorial Estampa, 1995), 125. 31 “CIP gostou de Ernâni Lopes e aplaudiu Torres Couto,” Diário de Lisboa, março 21, 1984, 20. 110 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

A reestruturação

A Setenave verá a sua gestão privatizada um ano depois, em 1989, três anos após a entrada de Portugal na CEE (que implicava significativos constrangimentos à indústria naval nacional) e durante a vigência da maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva. A Solisnor (um consórcio entre a Lisnave, a Soponata e noruegueses da Barber International, Wilhelmsen e Platou) passaria a explorar o estaleiro da Mitrena. Em 1998, os Mello compram a Setenave ao Estado por 5 milhões de contos32. No ano 2000 o estaleiro da Margueira é desativado, transferin- do-se a Lisnave para a Mitrena, e o Grupo José de Mello vende-a pelo valor simbólico de um dólar a dois quadros da empresa, operação com o apoio do parceiro estratégico Thyssen Krupp33. A “nova Lisnave” subsis- te com resultados financeiros positivos, sendo líder europeia na reparação naval e uma das maiores do mundo, empregando cerca de 340 trabalha- dores efetivos34, com um operário no topo de carreira a ganhar 965,10 euros mensais de salário-base bruto35 e um arquipélago de empresas subsidiárias empregando cerca de dois mil trabalhadores em regime de precariedade.

Conclusão

Em modo de conclusão, como esperamos ter deixado patente, o mo- vimento operário da indústria naval, e na Setenave em concreto, constitui um excelente exemplo para o estudo das relações laborais em Portugal. Assim, passada uma primeira fase em que o movimento operário de- monstra uma dinâmica ofensiva, com generalização do controlo operário, mas os seus organismos não se conseguem coordenar e unificar, verifica- -se uma situação de impasse saída do 25 de novembro e consagrada na Constituição de 1976: nasce o Estado Social português, um pacto social de facto. A Setenave, empresa nacionalizada, numa economia dita planificada e em “transição para o socialismo”, é testemunha exemplar dessa contradi- ção. Encontrando-se a banca, as armadoras e a maioria dos estaleiros nas mãos do Estado, apesar de sucessivamente anunciado, nunca se concreti-

32 “Mello compra Setenave,” Público, maio 14, 1998, 36. 33 Alberto Conceição, António Barros, e José Sardinha, 183. 34 Relatório de Gestão e Contas, Lisnave 2009, 29. 35 “Por dentro da Lisnave,” Correio da Manhã, acesso a setembro 2, 2015, http://www.cmjornal.xl.pt/domingo/detalhe/por-dentro-da-lisnave.html O MOVIMENTO OPERÁRIO NA SETENAVE | 111 zará nenhum plano, e o estaleiro viverá numa asfixia financeira perma- nente; processo acompanhado por uma recuperação do poder dos Mello, primeiro no Conselho de Administração da Lisnave, e depois na posse do setor mais rentável da Mitrena, a Estação de Desgaseificação. O acordo de viabilização da Setenave, em 1983, é a primeira peça da montagem do puzzle da concertação social em Portugal, traduzido na assinatura dos primeiros pactos sociais, que vingam após sérias derrotas do movimento operário, nomeadamente na indústria naval, que começa a ser desmantelada no contexto da adesão à CEE, da desnacionalização da economia e entrega aos privados do setor industrial e produtivo. Se foi central para a afirmação do neoliberalismo de Thatcher a derrota dos mineiros, ou para Reagan a vitória sobre os controladores aéreos, talvez possamos estabelecer a mesma hipótese para Portugal: os chamados “pactos sociais”, na verdade, são derrotas estratégicas do movimento operário que em Portugal conduzem ao estabelecimento de um novo quadro de relações laborais precarizadas.

A LEI GERAL DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E AS RELAÇÕES DE TRABALHO NA ATUALIDADE

Marcelo Badaró Mattos1

Este texto possui um duplo objetivo. Pretende-se discutir o quadro atual de crescimento e predomínio de um perfil “precário” da classe trabalhadora ao redor do mundo à luz da formulação da “lei geral da acumulação capita- lista” expressa por Marx em O Capital. Assim, procura-se ultrapassar a aparência superficial de um declínio da classe trabalhadora, frente ao crescimento do desemprego e do trabalho precário (em suas várias mani- festações), em direção a uma análise das especificidades do crescimento da “superpolução relativa” no capitalismo contemporâneo, tendo por referên- cia o texto de Marx e comentários nele inspirados por parte de autores mais recentes. Por outro lado, a discussão do Capítulo XXIII d’O Capital2 nos serve como uma excelente ilustração sobre o método de Marx. Iniciaremos com a discussão sobre o texto de Marx, procurando desta- car essa dupla dimensão dos objetivos do texto, ao que se seguirá uma recuperação de algumas informações sobre o perfil atual do trabalho no capitalismo contemporâneo. Ao fim, apresentaremos sumariamente algu- mas interpretações sobre o quadro contemporâneo, para concluir sobre a pertinência e atualidade da discussão apresentada por Marx em 1867.

1 Professor titular (catedrático) de História do Brasil da Universidade Federal Flumi- nense. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-MARX) da UFF. Este texto, em uma versão menos desenvolvida, foi apresentado durante o seminário “Marx e o Marxismo 2015”, promovido pelo NIEP-MARX. 2 Esclarecemos que a numeração dos capítulos de O Capital variou conforme as próprias edições em vida de Marx e Engels (responsável por duas reedições em alemão, pela edição em inglês, além da publicação dos Livros II e III). Assim, o Capítulo XXIII das edições brasileiras corresponde à discussão sobre a “Lei geral da acumulação capitalista”. 114 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

I. A “lei geral” e o método de Marx em sua crítica da economia política

O vigésimo terceiro capítulo de O Capital, “A lei geral da acumulação capitalista”, é um texto chave para a discussão levada adiante nas últimas décadas sobre a classe trabalhadora diante das (re)configurações recentes da economia capitalista. Mas é também um dos melhores momentos de O Capital para que compreendamos o método de análise marxista. Para os que conhecem bem o texto, peço desculpas pela recuperação de muitas passagens, procedimento que julguei não apenas necessário para os que não estão familiarizados com O Capital como também importante por explicitar os aspectos mais valorizados na leitura que aqui proponho.

1. A lei geral

Podemos começar pela própria enunciação daquela que Marx chama de “lei geral, absoluta, da acumulação capitalista”:

Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior será o exército industrial de reserva. A força de trabalho dispo- nível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do ca- pital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acom- panha, pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalha- dores, tanto maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maiores forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. Como todas as outras leis, ela é modificada, em sua aplicação, por múltiplas circuns- tâncias, cuja análise não cabe realizar aqui.3

Para chegar a essa formulação, Marx segue um determinado percurso expositivo. Na primeira parte do capítulo, demonstra a demanda crescente de força de trabalho para a acumulação de capital, explicando a questão da composição do capital:

3 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produ- ção do capital, São Paulo, Boitempo, 2013, pp. 719-720. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 115

A composição do capital deve ser considerada em dois sentidos. Sob o aspecto do valor, ela se determina pela proporção em que o capital se reparte em capital constante, ou valor dos meios de produção, e capital variável, ou valor da força de trabalho, a soma total dos salários. Sob o aspecto da matéria, isto é, do modo como esta funciona no processo de produção, todo capital se divide em meios de produção e força viva de trabalho; essa composição é determinada pela proporção entre a massa dos meios de produção empregados e a quantidade de trabalho exigida para seu emprego. Chamo a primeira de composição de valor e a se- gunda, de composição técnica do capital. Entre ambas existe uma es- treita correlação. Para expressá-la, chamo a composição de valor do capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e reflete suas modificações, de composição orgânica do capital. Onde se fala simplesmente de composição do capital, entenda-se sempre sua composição orgânica.4

Porém, se a necessidade de força de trabalho é crescente no processo de acumulação – “acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proleta- riado”5 –, essa tendência poderia levar a uma situação em que o crescimen- to da demanda por força de trabalho geraria uma melhoria progressiva das condições salariais dos trabalhadores e, portanto, de suas condições de existência sob o capitalismo. Para a maior parte das explicações da econo- mia política que critica, a regulação dessa tendência seria dada pela própria dinâmica populacional e a resultante de largo prazo levaria a um equilíbrio entre oferta e demanda de força de trabalho que garantiria os lucros do capitalista e um padrão de vida digno para o proletariado. Marx, no entan- to, explica que a demanda por força de trabalho é crescente quando a acumulação se dá sob uma composição orgânica do capital constante, condição que não corresponde à dinâmica real da acumulação capitalista. Nesta última prevalece a lógica da extração de mais valor, em que

a força de trabalho é comprada, […] não para satisfazer, mediante seu serviço ou produto, às necessidades pessoais do comprador. O objeti- vo perseguido por este último é a valorização de seu capital, a produ- ção de mercadorias que contenham mais trabalho do que o que ele pa- ga, ou seja, que contenham uma parcela de valor que nada custa ao comprador e que, ainda assim, realiza-se mediante a venda de merca- dorias. A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei ab- soluta desse modo de produção.6

4 Ibidem, Idem, p. 689. 5 Ibidem, p. 690. 6 Ibidem, p. 695. 116 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Por isso, a demanda crescente por força de trabalho é contrabalançada pelo fato de que a acumulação capitalista leva à concentração e centraliza- ção de capitais, como resultado de um processo de alteração da composição orgânica do capital, tema da segunda parte do capítulo. Assim, o capítulo XXIII é também o espaço privilegiado para a discussão dessa questão central na explicação marxista do processo de acumulação capitalista. No princípio da explicação de Marx está a discussão do aumento da produtivi- dade do trabalho – expressa no “volume relativo dos meios de produção que um trabalhador transforma em produto durante um tempo dado”7 –, que está relacionada à crescente incorporação de tecnologia ao processo de produção. Assim, “seja ele condição ou consequência, o volume crescente dos meios de produção em comparação com a força de trabalho neles incorporada expressa a produtividade crescente do trabalho”.8 Um reflexo desse processo é o aumento da fração de capital constante em relação à de capital variável na composição do capital. Marx segue sua exposição, explicando como, após o ponto de partida posto pelo processo de “acumulação primitiva” (detalhado no capítulo seguinte), a concorrência e o sistema de crédito impulsionam a concentração de capitais em volumes cada vez maiores. Explica também o processo que leva os detentores de capitais capazes de incrementar a produtividade do trabalho e obter maiores taxas de mais-valor a seguirem incorporando fatias de mercado ou propriedade de outras empresas, em um viés de centralização do capital. Em um parágrafo de síntese, Marx explica:

Essa fragmentação do capital social total em muitos capitais indivi- duais ou a repulsão mútua entre seus fragmentos é contraposta por sua atração. Essa já não é a concentração simples, idêntica à acumulação, de meios de produção e de comando sobre o trabalho. É concentração de capitais já constituídos, supressão [Aufhebung] de sua independên- cia individual, expropriação de capitalista por capitalista, conversão de muitos capitais menores em poucos capitais maiores. Esse processo se distingue do primeiro pelo fato de pressupor apenas a repartição alte- rada dos capitais já existentes e em funcionamento, sem que, portanto, seu terreno de ação esteja limitado pelo crescimento absoluto da ri- queza social ou pelos limites absolutos da acumulação. Se aqui o capi- tal cresce nas mãos de um homem até atingir grandes massas, é por- que acolá ele se perde nas mãos de muitos outros homens. Trata-se da centralização propriamente dita, que se distingue da acumulação e da concentração.9

7 Ibidem, p. 698. 8 Ibidem, p. 699. 9 Ibidem, pp. 701-702. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 117

Tendo em vista que a elevação da produtividade do trabalho é requisi- to e, cada vez mais, consequência desse processo, com a centralização “uma massa menor de trabalho basta para pôr em movimento uma massa maior de maquinaria e matérias-primas”.10 Uma decorrência necessária da centralização é, portanto, o decréscimo absoluto da demanda por trabalho. Esse é o contexto necessário para que Marx explore a seguir, na terceira parte do capítulo, a questão da “superpopulação relativa” ou “exército industrial de reserva”. Após explicar como com “o avanço da acumulação modifica-se […] a proporção entre as partes constante e variável do capital”, Marx chama a atenção para o fato de que, “como a demanda de trabalho não é determi- nada pelo volume do capital total, mas por seu componente variável, ela decresce progressivamente”. Mas, o próprio processo de acumulação capitalista acaba por produzir, expandindo-se por novos territórios – físicos e sociais – uma população trabalhadora adicional, “relativamente excedente”, “suplementar”, “supranumerária”.11 Essa “superpopulação relativa”, que é “produto necessário” da acumu- lação, também se constitui em “alavanca” da acumulação capitalista, por representar um “exército industrial de reserva”, disponível para ser explo- rado pelo capital, independentemente do aumento populacional.12 A cada novo setor desbravado pela expansão capitalista ela estará disponível para produzir mais-valor, na mesma medida que sua abundância garante ao capital a possibilidade de manter os salários dos efetivamente emprega- dos em um nível suficientemente baixo para que os processos cíclicos de variação da taxa de lucro não signifiquem um freio definitivo à acumula- ção. Ao cabo desse percurso explicativo, Marx estará pronto para avan- çar, demonstrando que “toda a forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada.”13 Nesse ponto do texto, Marx avança uma síntese, introduz o elemento da conscientização dos trabalhadores sobre a lógica desse processo de exploração intensificada a que se submetem, e apresenta mais uma crítica aos economistas políticos em sua incapacidade intrínseca para explicar a questão da superpopulação relativa. Dada a importância da sequência de argumentos, vale a pena uma citação mais longa:

10 Ibidem, p. 704. 11 Ibidem, pp. 705-706. 12 Ibidem, p. 707. 13 Ibidem, p. 708. 118 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

O capital age sobre os dois lados ao mesmo tempo. Se, por um lado, sua acumulação aumenta a demanda de trabalho, por outro, sua “libe- ração” aumenta a oferta de trabalhadores, ao mesmo tempo que a pressão dos desocupados obriga os ocupados a pôr mais trabalho em movimento, fazendo que, até certo ponto, a oferta de trabalho seja in- dependente da oferta de trabalhadores. O movimento da lei da deman- da e oferta de trabalho completa, sobre essa base, o despotismo do ca- pital. Tão logo os trabalhadores desvendam, portanto, o mistério de como é possível que, na mesma medida em que trabalham mais, pro- duzem mais riqueza alheia, de como a força produtiva de seu trabalho pode aumentar ao mesmo tempo que sua função como meio de valori- zação do capital se torna cada vez mais precária para eles; tão logo descobrem que o grau de intensidade da concorrência entre eles mes- mos depende inteiramente da pressão exercida pela superpopulação relativa; tão logo, portanto, procuram organizar, mediante trades unions etc., uma cooperação planificada entre empregados e os de- sempregados com o objetivo de eliminar ou amenizar as consequên- cias ruinosas que aquela lei natural da produção capitalista acarreta para sua classe, o capital e seu sicofanta, o economista político, cla- mam contra a violação da “eterna” e, por assim dizer, “sagrada” lei da oferta e demanda. Toda solidariedade entre os ocupados e os desocu- pados perturba, com efeito, a ação “livre” daquela lei.14

A conclusão do parágrafo é particularmente relevante para a discussão sobre a realidade dos países àquela altura coloniais ou recém-saídos da situação colonial:

Por outro lado, assim que, nas colônias, por exemplo, surgem cir- cunstâncias adversas que impedem a criação do exército industrial de reserva e, com ele, a dependência absoluta da classe trabalhadora em relação à classe capitalista, o capital, juntamente com seu Sancho Pança dos lugares-comuns [o economista político], rebela-se contra a lei “sa- grada” da oferta e demanda e tenta dominá-la por meios coercitivos.15

Ou seja, para o capital, se o suprimento de força de trabalho não pode ser continuamente abastecido por novas levas de trabalhadores expropria- dos e proletarizados, como aconteceu em diversas situações de expansão colonial, então impõe-se a garantia da oferta de braços pela via da coer- ção: escravidão; trabalho barato por longos anos garantido por contratos coercitivos; trabalho de condenados criminais, etc.

14 Ibidem, pp. 715-716. 15 Ibidem, p. 716. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 119

Na quarta parte do capítulo, antes de enunciar a “lei geral” com a qual iniciamos esta seção, Marx apresenta sua conhecida taxionomia das “diferentes formas de existência” da “superpopulação relativa”. São basicamente três formas: flutuante, latente e estagnada. A primeira forma corresponderia ao fluxo contínuo de atração e repulsão dos trabalhadores nos “centros da indústria moderna – fábricas, manufaturas, fundições e minas, etc.”16 A segunda forma, latente, corresponde à constante disponi- bilidade de trabalhadores do campo, “liberados” (proletarizados) pelo avanço da agricultura propriamente capitalista, gerando tanto uma super- população latente no próprio campo, cujo fluxo para os centros urbanos acaba por ser – quando possível – uma compulsão fortíssima diante dos baixíssimos salários e do pauperismo rurais. Por fim, a terceira categoria – estagnada – é composta pelo setor ativo da classe trabalhadora que ocupa as ocupações mais irregulares, como o trabalho domiciliar, por jornada, etc. Marx acrescenta a essas três formas um “sedimento mais baixo”, que habita o “pauperismo”. Também o pauperismo é por ele dividido em três categorias: aptos a trabalhar; órfãos e filhos de indigentes (candidatos ao exército industrial de reserva); e, em terceiro lugar, os “degradados, maltrapilhos, incapacitados para o trabalho”. Tais camadas de pauperis- mo são, entretanto, distintas do lumpemproletariado (categoria que Marx havia tratado politicamente em sua trilogia sobre a França pós-1848), aqui apresentado de uma forma mais “ocupacional” como os “vagabun- dos, delinquentes, prostitutas”.17 Os comentaristas em geral destacam essas taxionomias da “superpo- pulação relativa” e de seus sedimentos paupers e procuram relacioná-las a situações concretas do mercado de trabalho capitalista, o que é interes- sante (e de certa forma também o faremos na sequência deste texto). Cabe, entretanto, chamar a atenção que Marx não apresenta uma classifi- cação nem de extratos distintos da classe trabalhadora, nem tampouco de parcelas homogêneas e estáveis dessa classe. Pelo contrário, destaca que tais formas (ou experiências, poderíamos dizer) são parte constitutiva da “existência” – como ressalta no título da seção – da classe, uma existên- cia dinâmica, em que os trabalhadores individualmente podem viver várias dessas experiências ao longo de uma vida. Assim, mesmo a forma estagnada da superpopulação relativa vende a sua força de trabalho (Marx usa o exemplo do trabalho a domicílio), ainda que irregularmente e por remunerações muito baixas, e constitui “ao mesmo tempo, um elemento da classe trabalhadora que se reproduz e se perpetua a si mesmo e partici-

16 Ibidem, p. 716. 17 Ibidem, p. 719. 120 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … pa no crescimento total dessa classe numa proporção maior que os demais elementos”.18 É nesse ponto do capítulo que Marx expõe a “lei geral, absoluta, da acumulação” já citada e a explica também por uma outra formulação, plena da linguagem dialética que impregna a forma de exposição em O Capital:

A lei segundo a qual uma massa cada vez maior de meios de produ- ção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser posta em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente de força humana, é expressa no terreno capitalista – onde não é o tra- balhador quem emprega os meios de trabalho, mas estes o trabalhador – da seguinte maneira: quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre seus meios de ocupação, e tanto mais precária, portanto, a condição de existência do assalaria- do, que consiste na venda da própria força com vistas ao aumento da riqueza alheia ou à autovalorização do capital. Em sentido capitalista, portanto, o crescimento dos meios de produção e da produtividade do trabalho num ritmo mais acelerado do que o da população produtiva se expressa invertidamente no fato de que a população trabalhadora sempre cresce mais rapidamente do que a necessidade de valorização do capital.19

Em todo o texto, e particularmente nesse momento em que discute a fundo a superpopulação relativa, Marx afirma que os ajustes que o capital promove para adequar a força de trabalho a suas necessidades resultam na “miséria de camadas cada vez maiores do exército ativo de trabalhado- res”.20 E se a “miséria” ali discutida é, indiscutivelmente, uma miséria absoluta, ela não se anula nas situações em que os salários eventualmente se elevam, pois sua manifestação como miséria relativa (relacionada aqui diretamente ao mecanismo da alienação/fetichismo explicado no primeiro capítulo do livro e às formas de extração da mais valia desenvolvidas nos capítulos seguintes) é insuperável no interior da lógica da acumulação capitalista. Assim:

no interior do sistema capitalista, todos os métodos para aumentar a força produtiva social do trabalho aplicam-se à custa do trabalhador individual; todos os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de dominação e exploração do produtor, mutilam

18 Ibidem, p. 718. 19 Ibidem, p. 720. 20 Ibidem, p. 720. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 121

o trabalhador, fazendo dele um ser parcial, degradam-no à condição de um apêndice da máquina, aniquilam o conteúdo de seu trabalho ao transformá-lo num suplício, alienam ao trabalhador as potências espi- rituais do processo de trabalho na mesma medida em que a tal proces- so se incorpora a ciência como potência autônoma, desfiguram as condições nas quais ele trabalha, submetem-no, durante o processo de trabalho, ao despotismo mais mesquinho e odioso, transformam seu tempo de vida em tempo de trabalho […]. Mas todos os métodos de produção do mais-valor são, ao mesmo tempo, métodos de acumula- ção, e toda expansão da acumulação se torna, em contrapartida, um meio para o desenvolvimento desses métodos. Segue-se, portanto, que à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar.21

A última e mais longa seção do capítulo é dedicada a apresentar “ilus- trações” da lei geral, a partir da recuperação de um conjunto enorme de informações sobre a história (especialmente a mais recente, relativamente ao momento da escrita do livro) das relações de trabalho capitalistas na Grã-Bretanha. Abordando a Inglaterra, Marx mergulha fundo em relató- rios de comissões sanitárias, livros de contas do Estado e muitas outras fontes para demonstrar como os setores mais pauperizados (a superpopu- lação estagnada, se assim quisermos) da classe trabalhadora vivem em condições sub-humanas. Mas demonstra também como os setores mais bem remunerados da classe, em momentos de crise, como a vivida nos anos imediatamente anteriores à publicação de O Capital, podem também – perdendo seus empregos (como superpopulação flutuante) – cair na mais absoluta pobreza. Pobreza que é ainda mais dura entre os trabalha- dores agrícolas (sempre prontos a ocupar os postos mais mal remunera- dos do trabalho assalariado, como superpopulação latente). O ápice das “ilustrações” vem com a recuperação feita por Marx da situação irlandesa, após a grande fome, em meio aos constantes fluxos de imigração (especialmente para a Inglaterra e cada vez mais para os EUA) e diante de um pauperismo extremo da maioria da população. Um quadro criado e agravado pelo papel da Irlanda como área de expansão da agri- cultura capitalista sob o influxo dos interesses ingleses. Conforme Marx:

com a queda da massa populacional, subiram continuamente a renda da terra e os lucros dos arrendatários, embora estes não de maneira tão constante quanto aquela. A razão é facilmente compreensível. Por um lado, com a fusão dos arrendamentos e a transformação de lavouras em pastagens, uma parte maior do produto total se converteu em mais-

21 Ibidem, pp. 720-721. 122 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

-produto. O mais-produto cresceu, embora o produto total, do qual ele é uma fração, tenha diminuído. Por outro lado, o valor monetário des- se mais-produto cresceu ainda mais rapidamente do que sua massa, por causa do aumento que nos últimos vinte anos, e principalmente na última década, sofreram no mercado inglês os preços da carne, da lã, etc. […] Ainda que com a massa populacional também tenha diminuí- do a massa dos meios de produção empregados na agricultura, a massa de capital nela empregada aumentou, já que uma parte dos meios de produção antes dispersos foi transformada em capital.22

Como se vê, uma situação que desafia de forma definitiva qualquer tentativa de explicação/solução da questão irlandesa baseada em cálculos de crescimento/decréscimo da população, nos moldes dos economistas políticos. Afinal a Irlanda perdeu, desde os anos 1840, milhões de habi- tantes, pela fome e pela imigração, que aumentou daí em diante. Trata-se, nas palavras de Marx, de um “processo como a economia ortodoxa não o poderia desejar mais formoso para manter em pé seu dogma, segundo o qual a miséria deriva da superpopulação absoluta e o equilíbrio é restabe- lecido mediante o despovoamento”. Porém, a imigração, que sempre fez da Irlanda um acampamento avançado do exército industrial de reserva para o capitalismo britânico e que agora crescia exponencialmente em direção aos Estados Unidos, reduzindo significativamente a população residente no território irlandês, não representou nem prejuízo para o capital – demandando cada vez menos trabalhadores agrícolas –, nem para a riqueza do país de uma forma geral. Esteve longe, porém, de significar uma melhoria das condições de vida dos trabalhadores que lá permaneceram, estimulando continuamente a migração em massa. A explicação desenvolvida por Marx combina vários fatores:

Em 1846, a fome liquidou, na Irlanda, mais de um milhão de pessoas, mas só pobres-diabos. Não acarretou o menor prejuízo à riqueza do país. O êxodo ocorrido nas duas décadas seguintes, e que ainda conti- nua a aumentar, não dizimou, como foi o caso na Guerra dos Trinta Anos, junto com os homens, seus meios de produção. O gênio irlandês inventou um método totalmente novo para transportar, como por obra de encantamento, um povo pobre a uma distância de milhares de mi- lhas do cenário de sua miséria. A cada ano, os emigrantes assentados nos Estados Unidos enviam dinheiro para casa, meios que possibilitam a viagem dos que ficaram para trás. Cada tropa que emigra este ano atrai outra tropa, que emigrará no ano seguinte. Em vez de custar algo à Irlanda, a emigração constitui, assim, um dos ramos mais rentáveis

22 Ibidem, p. 775. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 123

de seus negócios de exportação. Ela é, por fim, um processo sis- temático, que não se limita a furar um buraco transitório na massa po- pulacional, mas que dela extrai anualmente um número maior de pes- soas do que aquele reposto pelos nascimentos, de modo que o nível populacional absoluto cai a cada ano.23

Marx concentrou a maior parte de seu esforço de análise empírica, ao longo de todo O Capital, sobre o caso inglês, escolhido justamente por ser o primeiro e, naquela época, mais avançado pólo da expansão capita- lista em seus moldes industriais. Ao abordar a Irlanda no Capítulo XXIII, entretanto, acaba por avançar algumas considerações fundamentais para o entendimento do caráter desigual do avanço do capitalismo em escala internacional. Uma temática que deveria ter sido objeto mais detido da escrita de Marx em escritos posteriores, como se observa em seus planos para escrever, entre outros, os volumes sobre o comércio internacional e sobre o mercado mundial e as crises.

2. O método de Marx

Cabe agora tomar o capítulo XXIII por outro ângulo e observar o quanto ele é rico para ilustrar o método de pesquisa e redação de Marx.24 Nele está contida exemplarmente a dinâmica de Marx ao construir sua análise em contraposição à economia política clássica, da qual partiu e a qual superou. Seu ponto de partida é o da crítica radical ao capitalismo, indissociavelmente combinada à crítica e superação da ciência econômica de sua época. Os economistas anteriores são citados para mostrar até onde avançaram (vide o tributo prestado a Bernard de Mandeville, “ho- mem honesto e cérebro lúcido”,25 quando analisa a relação entre a acumu- lação de capital e a multiplicação do proletariado). Mas também são constante alvo da ferina mordacidade de Marx, que não se cansa de apontar os limites de suas análises, neste capítulo particularmente no que tange à sua tentativa de aplicar uma “lei universal” da população, relacio- nando o crescimento/controle demográfico à produção e trabalho. Ao tentarem proceder dessa forma, são incapazes de perceber que não há “leis universais”, elas são históricas, e o capitalismo possui uma forma

23 Ibidem, pp. 775 e 776. 24 Para análises mais amplas do “método” de Marx, ver José Paulo Netto, Introdução ao estudo do método de Marx, São Paulo, Expressão Popular, 2011, e Eurelino Coelho, A dialética na oficina do historiador: ideias arriscadas sobre algumas questões de método, História e Luta de Classes, n.º 9, Junho de 2010. 25 Ibidem, p. 692. 124 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … própria de responder às oscilações demográficas, sempre em favor da acumulação e em detrimento dos trabalhadores. Os limites da economia política para perceber a historicidade do capitalismo seriam decorrentes especialmente, como Marx demonstra mais de uma vez nesse capítulo, de seu papel como “Sancho Pança dos lugares comuns” e “sicofanta” do capital. No prefácio à segunda edição alemã de O Capital, ao demonstrar a di- ferença entre seu método dialético e o de Hegel (apesar de assumir o uso proposital de uma linguagem hegeliana em partes do livro), Marx distin- gue “o modo de exposição segundo sua forma, do modo de investigação”. Segundo ele, “a investigação tem que se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real.”26 No capítulo XXIII isso fica muito evidente. A parte final é apresenta- da como “ilustração” da “lei geral, absoluta, da acumulação”, que como vimos não é em absoluto a-histórica e, como todas as demais leis apresen- tadas em O Capital, é uma lei de tendência (podendo, portanto, ser obsta- da por diversas contratendências). No entanto, o que na exposição apare- ce ao fim como ilustração por certo foi um ponto importante do percurso investigativo, que permitiu a Marx chegar a algumas de suas conclusões. Por isso, o capítulo revela que Marx não teria chegado a suas elabora- ções mais sofisticadas sem ter passado tantos anos na British Library, consultando compulsivamente não apenas a bibliografia econômica, mas também toda e qualquer fonte primária que lhe caísse nas mãos. Em carta a S. Meyer, datada de 30 de abril de 1867, quando havia acabado de entregar os originais do Livro I ao seu editor, Marx afirma (em implícita referência ao capítulo XXIII) que, “ao lado da exposição científica geral, eu descrevo em grande detalhe, a partir de fontes até agora não utilizadas, a condição do proletariado agrícola e industrial britânico durante os últimos 20 anos, do mesmo modo para as condições irlandesas.”27 Revela também porque foi tão importante para Marx postergar ainda mais a finalização de sua obra para observar melhor a dinâmica da crise capitalista iniciada em 1866 e mencionada no texto, especialmente por permitir-lhe desenvolver uma arguta análise (acompanhada de genuína indignação) a respeito dos efeitos da crise sobre os trabalhadores, inclusi- ve os de salários relativamente maiores.

26 Ibidem, p. 90. 27 Karl Marx & Frederick Engels, Selected Correspondence, Moscow, Progress, 1965, p. 185. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 125

O capítulo ajuda na compreensão do “método” de Marx também por outra razão. Vimos o quanto é importante a crítica de Marx à “lei univer- sal da população” típica da economia política. A população foi justamen- te o exemplo que Marx escolheu, alguns anos antes (1857-58), para introduzir a explicação sobre o método que acreditava ser necessário para entender a lógica do capital, na famosa Introdução dos manuscritos que viriam a ser conhecidos como Grundrisse. Na famosa passagem, ressalta:

Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressu- posto efetivo e, portanto, no caso da economia, por exemplo, come- çarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elemen- tos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital, etc. Es- tes supõem troca, divisão do trabalho, preço, etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc. Por isso se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí te- ria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e re- lações.28

Mais do que a coincidência do exemplo da população, que nos Grun- drisse também é utilizado para estabelecer a crítica ao método tradicional da economia política, o capítulo XXIII ilustra o método de Marx justa- mente por chegar (após a sua “viagem de retorno”) a uma síntese da realidade histórica concreta – nesse caso a situação da classe trabalhadora frente ao processo de acumulação capitalista. No caminho, Marx desen- volveu um conjunto de abstrações teórico-conceituais – os processos de concentração e centralização do capital, a lei geral da acumulação, as formas da superpopulação relativa, etc. – que permitiu-lhe explicar a dinâmica relacional de tal realidade material. A síntese intelectual, entre- tanto, não é o ponto de partida, mas a forma de representação intelectual da “rica totalidade de muitas determinações” que constitui a realidade

28 Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços de crítica da economia política, São Paulo, Boitempo/EdUFRJ, 2011, p. 54. 126 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … material. Assim, continuando a citação clássica: “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade na diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como pro- cesso da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstan- te seja o ponto de partida efetivo.”29

II. Trabalho e trabalhadores do mundo hoje, à luz de Marx

Em 1950, apenas 30% da população mundial habitava as cidades. Em 2014, 54% do total de habitantes do mundo vivia nos centros urbanos.30 Tal mudança, aceleradíssima para os padrões históricos da vida humana na Terra, indica uma intensificação absurda do processo de proletarização nos últimos anos. Afinal, embora a conversão ao assalariamento cresça também no campo, a principal razão da migração campo-cidade é a expropriação completa daqueles que ainda encontravam meios de sobre- viver principalmente do seu (e de sua família) trabalho agrícola, graças à propriedade ou posse de pequenos lotes de terra. A urbanização, como se sabe, é mais antiga e consolidada nos países que viveram mais cedo o processo de industrialização, no hemisfério norte, considerados mais “desenvolvidos”, e mais recente e “agressiva” nos países do hemisfério sul, em que a industrialização é relativamente tardia e a produção interna de riquezas é menor. Tal diferenciação é fun- damental para explicar determinados padrões demográficos que se refle- tem na composição da força de trabalho. No mundo como um todo, o per- centual da força de trabalho (entendida como os empregados, desempre- gados à procura de emprego e aqueles que procuram emprego pela pri- meira vez; e excluídos os trabalhadores não pagos, o trabalho familiar e os estudantes) no total da população, declinou de 52,1% em 1990 para 50,2% em 2011. Nos países que o Banco Mundial define como de “baixo rendimento”, entretanto, o percentual da força de trabalho na população é bem maior e houve um crescimento no mesmo período de 68,5% para 68,7%.31 Dados do Banco Mundial indicam que o número de pessoas emprega- das no mundo cresceu no período recente. Eram 2.290.000.000 os postos de trabalho ocupados em 2000 e 3.114.000.000 em 2013.32 Tal cresci-

29 Ibidem, p. 54. 30 Dados consultados em http://esa.un.org/unpd/wup/Highlights/WUP2014- Highlights. pdf. Último acesso, julho de 2015. 31 Informações disponíveis em http://datatopics.worldbank.org/jobs/topic/ employment. Último acesso, julho de 2015. 32 Ver http://datatopics.worldbank.org/jobs/, consultado em julho de 2015. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 127 mento, porém, é insuficiente para absorver todos os trabalhadores que chegam anualmente ao mercado de trabalho em busca do primeiro em- prego, 40 milhões por ano, segundo a Organização Internacional do Tra- balho (OIT),33 além daqueles que estão desempregados. Segundo o Banco Mundial, em 2013, como vimos, mais de 3 bilhões34 de pessoas eram empregadas, “mas a natureza de seus empregos varia fortemente.” Dessas, 1,65 bilhões recebiam salários regulares, outros 1,5 bilhões trabalhavam na agricultura e em pequenas empresas familiares. “A maioria dos trabalhadores nos países mais pobres estava vinculada a esses tipos de trabalho”. Além de cerca de 200 milhões de desemprega- dos, o relatório também aponta para o fato de que aproximadamente 2 bilhões de pessoas (uma parte desproporcional delas composta por jo- vens) não estão mais procurando emprego.35 De acordo com um relatório da Organização Internacional do Traba- lho, o total de desempregados no mundo, estimado em 201 milhões de pessoas em 2014,36 era superior em 30 milhões ao total no início da nova fase da crise capitalista em 2008. Mais revelador é o dado de que cerca de 50% do emprego no mundo é assalariado, mas em regiões como a África Sub-Sahariana e o Sul Asiático, esse percentual cai para 20%. Além disso, estimava-se em menos de 45% o total de assalariados regulares, sendo quase 60% contratados em empregos temporários ou de tempo parcial. Nem sempre são apresentadas muitas informações sobre a desi- gualdade de gênero, que existe atravessando todas as dimensões do mercado de trabalho, mas cabe ressaltar que entre esses trabalhadores “precários” localizados pela OIT, as mulheres são maioria significativa.37 Por um lado, o relatório afirma que: “em resumo, o modelo do empre- go padrão [estável e de tempo integral] é cada vez menos representativo do mundo do trabalho atual, pois menos de um em cada quatro trabalha- dores está empregado em condições correspondentes a esse modelo”. Por outro lado, no que concerne à “produtividade” do trabalho, o mesmo

33 OIT, World employment and social outlook 2015: The changing nature of jobs, Geneva: ILO, 2015, p. 13. 34 Bilhões = mil milhões segundo a norma portuguesa (bilião é um milhão de mi- lhões segundo a mesma norma). Nota do revisor. 35 http://data.worldbank.org/topic/labor-and-social-protection, consultado em julho de 2015. 36 Ver OIT, World employment and social outlook 2015: The changing nature of jobs, Geneva: ILO, 2015, p. 13. Segundo o Banco Mundial, a taxa de desemprego global em 2013 era de 6%. Ver http://data.worldbank.org/topic/labor-and-social- protection, consultado em julho de 2015. 37 OIT, World employment, p. 13. 128 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … documento constata uma “crescente divergência entre os ganhos do traba- lho e a produtividade, com a última crescendo mais rápido que os salários na maior parte do mundo”.38 Essa rápida e um tanto caótica recuperação de informações sobre o trabalho no mundo hoje pode ganhar maior riqueza de análise se sobre ela refletirmos à luz de algumas abstrações teóricas apresentadas por Marx, quem sabe apreendendo algumas das múltiplas determinações que com- põem a realidade concreta do mundo do trabalho atual. Algumas refle- xões desenvolvidas por outros autores a partir de Marx, podem também nos ser úteis. Em 2007 a população urbana do mundo ultrapassou a população rural e o ritmo de urbanização continua em aceleração vertiginosa. Isso se explica pelo contínuo processo de expropriações de trabalhadores agríco- las, transformados em superpopulação relativa “latente”. Refletindo sobre a configuração atual da lógica do capital – por ela tratada como “capital- -imperialismo” – Virgínia Fontes destacou a especificidade do peso das expropriações nessa configuração:

Menos, portanto, que um retorno a formas arcaicas, as novas expro- priações (somadas à permanência das expropriações primárias) de- monstram que, para a existência do capital e sua reprodução, é neces- sário lançar permanentemente a população em condições críticas, de intensa e exasperada disponibilidade ao mercado.39

Embora fazendo referência mais direta ao capítulo XXIV – sobre a “assim chamada acumulação primitiva” –, a análise de Fontes é coerente com todo a análise de O Capital, especialmente naqueles aspectos aqui destacados a partir do capítulo sobre a “lei geral da acumulação”, como a análise desenvolvida por Marx sobre a relação necessária entre acumula- ção capitalista e ampliação do processo de proletarização. A chave de leitura por ela apresentada, percebendo as novas massas de trabalhadoras e trabalhadores expropriados como resultado da própria reprodução am- pliada do capital, é distinta de outras perspectivas, que entendem como uma novidade recente a realidade de ampliação das expropriações e de generalização das modalidades de exploração do trabalho associadas à ideia de precarização. Diante de constatações, como a já citada da OIT, de que “o modelo do emprego padrão [estável e de tempo integral] é cada vez menos represen- tativo do mundo do trabalho atual”, diversas teses de larga circulação

38 Ibidem, p. 13 39 Virgínia Fontes, O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história, Rio de Janeiro, EdUFRJ/EPSJV, 2010, p. 47. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 129 foram formuladas, nas últimas décadas, em direção a uma reinterpretação do conceito e do papel da classe trabalhadora. Face às mudanças do “padrão” de emprego, a partir do final dos anos 1970 surgiram diferentes interpretações sobre um suposto declínio (ou mesmo fim) do trabalho assalariado “típico” e da própria classe trabalhadora. Não cabe aqui uma recuperação detalhada dessas teses, mas basta lembrar formulações como as de André Gorz que, diante dos processos de automação em larga esca- la, com declínio acentuado do emprego industrial em vários países de desenvolvimento capitalista avançado, anunciaram o “adeus ao proletari- ado”. Segundo Gorz, as novas tecnologias abririam a possibilidade de uma redução do tempo de trabalho e da construção de uma sociabilidade plena de significados fora do ambiente do trabalho. Os protagonistas de uma mudança deste tipo, no entanto, não seriam os trabalhadores, mas sim “a não classe dos não trabalhadores”.40 Com o passar do tempo foi ficando mais difícil sustentar expectativas positivas no alcance e nas consequências do processo de reestruturação da produção capitalista, de tal forma que perspectivas que associavam auto- mação à redução da jornada do trabalho, fim da centralidade do trabalho alienado na vida social e semelhantes caíram em descrédito. No entanto, a ideia de que o capitalismo contemporâneo superava econômico-social- mente a classe trabalhadora “tradicional” e soterrava qualquer expectativa em seu papel como sujeito político manteve-se viva em novas formulações. Como a que afirmou a centralidade de uma nova classe e/ou sujeito políti- co-social na contemporaneidade, definida como o “precariado”. Apesar de diferentes matrizes de uso do termo, um de seus mais influ- entes difusores é Guy Standing, cujo livro mais importante nessa direção é O precariado: a nova classe perigosa, publicado em 2011.41 Em sua análise, Standing caracteriza o precariado a partir de um conjunto de inse- guranças – em relação ao mercado de trabalho, emprego, carreira, condi- ções de trabalho, rendimentos, aprimoramento profissional e representa- ção coletiva – que o constituiriam como uma “classe em formação”, ainda

40 André Gorz, Adeus ao proletariado: para além do socialismo, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987, pp. 25-26. Apresentei de forma menos apressada e debati com autores como Gorz e outros que caminharam em direção semelhante (Robert Kurz e Clauss Offe, por exemplo) em diferentes textos. Destaco Marcelo Badaró Mattos, E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo his- tórico, Rio de Janeiro, Edufrj, 2012 (especialmente no segundo capítulo) e o capí- tulo “Trabalho, classe trabalhadora e o debate sobre o sujeito histórico ontem e hoje”, in Renake Neves (org.), Trabalho e emancipação, Rio de Janeiro, Conse- quência, 2015. (Coleção Niep-Marx, volume I). 41 Guy Standing, The precariat: the new dangerous class, London, Bloomsbury, 2011. 130 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … carente de uma consciência coletiva que a permitisse atuar como “classe para si”.42 O precariado é, por outro lado, definido fundamentalmente por uma perspectiva contrastiva, ou seja, pela diferenciação com o que Standing considera ser o proletariado/classe trabalhadora e com outras categorias de estratificação social empregadas pelo autor, como a de “salariado”, entendido como o setor mais estável e protegido por benefícios sociais entre os assalariados (apresentados por ele como privilégios). Em suas palavras:

O precariado tem características de classe. É constituído por pessoas que têm relações de confiança mínimas com o capital ou o Estado, tornando-o bastante diferente do salariado. E não tem nenhuma das relações de contrato social do proletariado, em que seguranças traba- lhistas foram fornecidos em troca de subordinação e lealdade contin- gente, o acordo não-escrito subjacente aos Estados de bem-estar. Sem um pacto de confiança ou segurança, em troca de subordinação, o pre- cariado é distinto em termos de classe. Ele também tem uma posição de status peculiar, ao não se encaixar perfeitamente nem nas posições de status mais elevado dos quadros profissionais, nem tampouco na- quelas das ocupações de classe média qualificada. Uma forma de ex- pressá-lo é dizer que o precariado tem um “status truncado”. E, como veremos, a sua estrutura de “rendimento social” não o aproxima per- feitamente das velhas noções de classe ou ocupação.43

Para além de eventuais críticas à forma como combina matrizes distin- tas de entendimento do conceito de classe social para apresentar sua “nova classe”, o problema maior com essa forma de apreensão do quadro atual me parece residir nas bases da comparação que permitem a Standing dizer que o precariado é uma “classe distinta” do proletariado.44 Ou seja, em sua análise, a definição de proletariado – ou classe trabalhadora – está diretamente associada à “relação de emprego padrão”: contrato estável, situação próxima ao pleno emprego e garantias de direitos sociais. Acon- tece que, embora Standing pareça reconhecer em algumas passagens que

42 Ibidem, idem, pp. 7 e 10. 43 Ibidem, idem, p. 8. 44 Para uma análise que faz uso da categoria “precariado”, mas não sustenta a ideia de que seja uma “classe distinta”, ver Ruy Braga, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, São Paulo, Boitempo, 2012. Para Braga, o precari- ado é “a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalha- dores agrícolas”, que se diferencia tanto dos “setores profissionais”, mais qualifi- cados e melhor remunerados da classe trabalhadora, quanto da população pauperizada e do lumpemproletariado. (p. 96) A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 131 esse modelo vigorou apenas na Europa do pós-guerra, sua análise tende a ignorar que a “relação de emprego padrão” sob condições capitalistas foi uma “anomalia histórica”, como define com propriedade Marcel van der Linden em uma análise que coloca o quadro atual em perspectiva históri- ca de longa duração e numa mirada não eurocêntrica.45 Uma “anomalia” restrita no tempo ao período das três décadas que se seguiram ao fim da 2.ª Guerra, confinada no espaço a um grupo de países que viveu o desen- volvimento capitalista avançado no Norte do Globo e, mesmo nessas áreas, restrita aos trabalhadores do sexo masculino.46 Vimos que, no século XIX, vivido e estudado por Marx, o emprego precário representava o padrão. A situação excepcional de alguns países de desenvolvimento capitalista avançado no pós-guerra decorreu de condições historicamente específicas da luta de classes, no período que se seguiu à revolução socialista de 1917 na Rússia. Não se generalizou jamais pelo mundo todo. Em alguma medida, aliás, só foi possível por conta das “trocas desiguais” características da dinâmica imperialista. E tão logo uma nova dinâmica de crise capitalista se instaurou nos anos 1970, tal excepcionalidade começou a ser erodida, processo que se acele- rou após a derrubada dos regimes do “socialismo realmente existente” do Leste europeu, a partir de 1989. Uma derrocada precedida, também é importante destacar, por derrotas importantes de movimentos de resistên- cia dos trabalhadores organizados do Norte ao ataque às suas conquistas no plano do “bem estar social” (como o ilustram as derrotas de várias greves paradigmáticas como as dos controladores aéreos nos EUA, em 1981, e dos mineiros de carvão na Grã-Bretanha, em 1984-1985). Em um ensaio crítico em relação ao trabalho de Standing e de outras análises do precariado como “nova classe”, Brian Palmer apresenta uma caracterização do proletariado que valoriza a expropriação/despossessão. Em diapasão semelhante ao de Fontes, Palmer apresenta a expropriação – mais que a condição no mercado de trabalho, a formalização e o setor econômico do emprego, a renda, ou mesmo a relação salarial – como o

45 Marcel van der Linden, “San Precario: a new inspiration for labor historians”, Labor: Studies in Working-Class History of the Americas, Volume 11, Issue 1, 2014, p. 19. 46 O predomínio da precariedade em relação à força de trabalho feminino, mesmo européia nos “anos gloriosos” do pós-guerra, é mencionado por Van der Linden no artigo citado, e é objeto do estudo de caso sobre as trabalhadoras italianas desen- volvido por Eloisa Betti, Gender and Precarious Labor in a Historical Perspective. Italian Women and Precarious Work Between Fordism and Post Fordism, in S. Mosoetsa, C. Tilly, J. Stillermann (eds.), Precarious Labor in Global Perspective, Special Issue, International Labor and Working Class History, 89, Spring 2016, pp. 64-83. 132 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … elemento constante de uma classe que foi desde sempre caracterizada pela heterogeneidade e precariedade. Segundo ele:

Classe sempre incorporou diferenciação, insegurança e precariedade. Assim como a precariedade é historicamente inseparável da formação da classe, existem, invariavelmente, diferenciações que aparentemente separam aqueles com acesso a empregos estáveis e pagamentos segu- ros daqueles que precisam se virar para conseguir trabalho e acesso ao salário. Expropriação, então, é uma experiência altamente heterogê- nea, já que nenhum indivíduo pode se tornar despossuído precisamen- te da mesma forma que outro, ou viver esse processo de alienação ma- terial exatamente como outro o faria. Ainda assim, a despossessão em geral define a proletarização. É a metafórica marca de Caim estampa- da em todos os trabalhadores, independentemente do nível de empre- go, frequência de pagamento, status, condição de assalariado ou grau de ausência de assalariamento47.

Palmer cita diretamente análises e passagens do capítulo XXIII para afirmar que a “despossessão, então, é a base de toda proletarização, a qual ordena a acumulação”.48 Uma outra análise recente sobre o capitalismo contemporâneo que procura explicar a dinâmica de precarização das relações laborais em escala planetária à luz das elaborações do mesmo capítulo, combinada a uma reflexão sobre o imperialismo, é a de John Foster e Robert McChesney. Em seu estudo sobre a crise capitalista, mais especificamente em um capítulo sobre “o exército global de reserva e o novo imperialismo”, procuram analisar a dinâmica atual da relação entre expansão do capital multinacional e a “grande mudança global do empre- go”, com a expansão do trabalho para o mercado no Sul do Globo, em comparação com a percepção de seu relativo encolhimento ao Norte.49 Segundo esses dois autores, a expansão da força de trabalho global disponível para o capital nas últimas décadas é resultado, principalmente, de dois processos:

(1) a descampezinação de uma larga porção da periferia global através do agronegócio – removendo camponeses da terra, com a consequente expansão da população das urbanas; e (2) a integração da força

47 Bryan Palmer, “Reconsiderations of class: precariousness as proletarianization”, in Leo Panitch, Greg Albo & Vivek Chibber (eds) Socialist Register 2014: register- ing class. London, Merlin Press, 2013, p. 49. 48 Ibidem, idem, p. 47. 49 John Foster & Robert McChesney, The endless crisis: how monopoly-finance capital produces stagnation and upheaval from the USA to China, New York, Monthly Review Press, 2012. A LEI GERAL DA ACUMULA ÇÃO CAPITALIST A E AS RELAÇÕES DE T RABALHO… | 133

de trabalho dos países do antigo “socialismo realmente existente” à economia mundial capitalista.50

Apresentando dados que mostram como a participação do Sul global no total do emprego industrial cresceu dramaticamente de 51% em 1980 para 73% em 2008, os autores tentam explicar a correlação entre a con- centração do controle corporativo do mercado e dos lucros pelo grande capital com os “salários abissalmente baixos e a crônica insuficiência de emprego produtivo” na base do sistema. Seu argumento central, que de- senvolvem através do arsenal conceitual disponibilizado por Marx – cha- mando atenção para as indicações de Marx de que sua análise ali desen- volvida para a Grã-Bretanha poderia ser expandida a um nível mundial, combinada à preocupação marxista com as trocas desiguais –, é o seguinte:

a chave para o entendimento dessas mudanças no sistema imperialista (para além da análise das corporações multinacionais em si (…) é en- contrada no crescimento do exército global de reserva (…). Não ape- nas o crescimento da força de trabalho capitalista global (incluindo o exército de reserva disponível) alterou radicalmente a posição do tra- balho do terceiro mundo, mas ele também teve um efeito no trabalho das economias mais ricas, onde os níveis salariais estão estagnados ou declinantes por essa e outras razões. Em todo lugar as corporações multinacionais foram capazes de aplicar uma política de dividir-e- -dominar, alterando as posições relativas do trabalho e do capital mundialmente.51

III. Considerações finais

Por certo que a análise de Foster e McChesney, tomando por base a chamada “lei geral da acumulação”, é um outro ponto de apoio excelente para avaliarmos os dados antes apresentados sobre a dinâmica global do emprego e desemprego. O recurso às observações de Marx no capítulo do capital aqui privilegiado também nos permite explicar de forma mais satisfatória o aparente descompasso apontado pela OIT através da consta- tação de uma “crescente divergência entre os ganhos do trabalho e a produtividade, com a última crescendo mais rápido que os salários na maior parte do mundo”. Mais que um descompasso, essa é a própria lógica sistêmica da acumulação capitalista que Marx explica naquele momento de sua obra.

50 Ibidem, p. 127. 51 Ibidem, p. 129. 134 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Afinal, conforme destacamos anteriormente, a análise de Marx no ca- pítulo XXIII permite discernir melhor a contraditória dinâmica através da qual a acumulação capitalista depende sempre de um processo de inces- sante transformação de grupos humanos em massas proletarizadas, embo- ra tenda a gerar uma superpolução relativa também crescente, assim como um pauperismo (absoluto e/ou relativo) que agrava a chamada “questão social”. Porém, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, muitas análises to- mam como regra na definição da classe trabalhadora aquilo que foi a exceção: as “relações de emprego padrão” vigentes para uma minoria de países e de trabalhadores (homens) no período dos trinta “anos gloriosos” do pós-guerra. Com base em definição tão restritiva, decretaram sua morte e planejaram sua substituição por outros sujeitos. Mais interessan- te, e este é um dos pontos centrais que estamos defendendo neste texto, é perceber que aquela “anomalia histórica” em sociedades capitalistas (retomando a expressão de Van der Linden) só foi possível pela ação das lutas sociais de altíssimo impacto da classe trabalhadora, operando como “contratendências” – “múltiplas circunstâncias” – político-sociais à “lei geral da acumulação”, para resgatar a expressão de Marx ao esclarecer o sentido histórico e o caráter contraditório dessa, como das demais, “lei” do capital. A rica demonstração de Marx para o fato de que as formas da superpopulação relativa não são exteriores à classe trabalhadora, mas sim parte constitutiva da sua própria “existência” como classe, não foi supera- da pelos caçadores de “novos sujeitos”. Poderíamos recorrer à análise da “lei geral” de Marx também para dis- cutir outros problemas da atual configuração das relações entre trabalho e capital, como por exemplo o das condições de vida dos trabalhadores. Por certo, os dados sobre pobreza, fome e favelização, entre tantos outros sobre as condições de existência do proletariado no mundo atual, desper- tam tanta revolta quanto despertaram em Marx os registros da sua época e podem ser, ainda hoje, iluminados pelas análises e “ilustrações” que ele apresentou a respeito da classe trabalhadora britânica nos anos 1840 a 1860. Tal exercício, entretanto, fugiria aos limites deste texto. Fica aqui como registro e, quem sabe, projeto.

ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA

Michael Roberts*

1.ª parte

Recentemente escrevi um texto1 sobre o novo livro de Paul Mason, Pós- -Capitalismo2, em que se defende que a Internet, a automação, os robôs e a inteligência artificial estão a criar uma nova economia, impossível de controlar pelos meandros do capitalismo. Segundo Mason, estão em campo novas forças, que, paulatinamente, substituem a velha luta de classes entre o capital e o proletariado, tal como Marx a descreveu, por um sistema de comunidades em rede. Em conjunto, tecnologia e rede conduzir-nos-ão a uma sociedade pós-capitalista (socialista?), sem freio à vista. Discordei da premissa de que as novas tecnologias acabariam por substituir as “velhas formas” de luta de classes. Mas também, já agora, da ideia de que as crises económicas regulares e recorrentes no capitalismo acabarão por dissipar-se num cenário de alta produtividade e horários de trabalho reduzidos, num contexto de “definhamento” do capitalismo. Mas o debate incentivou-me a olhar para algo que já há algum tempo queria abordar. Nomeadamente, quais as implicações de facto destas

* Michael Roberts é economista, autor de The Next Recession. Marxism and the Global Crisis of Capitalism (Haymarket books, 2016), autor do blogue https:// thenextrecession.wordpress.com/. Tradução: Mariana Avelãs para Projecto “Histó- ria, Saúde e Organização Política e Sindical do Trabalho Portuário em Portugal na época contemporânea” (Coord: Raquel Varela), FCSH/UNL – Observatório para as Condições de Vida/Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Confe- rentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal. http://www.fcsh.unl.pt/ocv/. 1 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/07/21/paul-mason-and-postcapitalism- utopian-or-scientific/ 2 Foi traduzido: https://www.wook.pt/livro/pos-capitalismo-paul-mason/17436032. 136 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … novas tecnologias para o capitalismo. Mais concretamente, estão os robôs e a inteligência artificial destinados a tomar de assalto o mundo do traba- lho, e, por conseguinte, a economia, nas próximas gerações, e o que é que isso significa em termos de empregos e qualidade de vida para as pes- soas? Será uma utopia socialista (o fim da labuta humana e uma socieda- de harmoniosa e superabundante) ou uma distopia capitalista (crises mais intensas e mais conflitos de classe)? É uma questão importante. Comecemos por apresentar algumas defi- nições. Por robôs, entendo máquinas que possam substituir a mão-de-obra humana através de programas informáticos que dirigem o movimento de partes da máquina de forma a executar tarefas, das mais simples às mais complexas. A Federação Internacional de Robótica (FIR) considera robô industrial qualquer máquina que possa ser programada para executar tarefas físicas relacionadas com a produção sem necessidade de um controlador huma- no. Os robôs industriais aumentam drasticamente o campo em que é possível substituir o trabalho humano, em comparação com as máquinas mais antigas, uma vez que reduzem a necessidade da intervenção humana nos processos automatizados. As aplicações mais típicas de robôs indus- triais incluem a montagem, dosagem, processamento (por exemplo, cortes) e soldadura – todos predominantes na indústria transformadora –, para além das colheitas (na agricultura) e da inspeção de equipamento e estruturas (habitual em centrais elétricas). A robótica industrial tem o potencial de mudar a transformação, pelo aumento da precisão e da produtividade, sem assumir custos mais eleva- dos. A impressão em 3D pode dar origem a um novo ecossistema de empresas de objetos que possam ser impressos, tornando os produtos do quotidiano infinitamente personalizáveis. A chamada “Internet das Coi- sas” oferece a possibilidade de ligar máquinas e equipamento entre e a várias redes, permitindo que as instâncias de transformação sejam plena- mente monitorizadas e accionadas remotamente. Nos cuidados de saúde e ciências da vida, as decisões baseadas em dados – que permitem a anga- riação e análise de grandes conjuntos de dados – já estão a produzir alterações em termos de I&D, cuidados clínicos, prognósticos e marke- ting. A utilização de grandes volumes de dados na saúde tornou possíveis novos tratamentos e medicamentos altamente personalizados. O ramo das infraestruturas, que não registou qualquer avanço ao nível da produtivi- dade laboral nos últimos vinte anos, poderia conhecer francos progressos, graças, por exemplo, à criação de Sistemas de Transporte Inteligentes3,

3 https://bankunderground.co.uk/2015/06/19/driverless-cars-insurers-cannot-be- -asleep-atthe-wheel/ ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 137 que aumentariam substancialmente a utilização dos recursos; à introdução de redes inteligentes, úteis para ajudar a poupar nos custos associados às infraestruturas elétricas e reduzir a incidência de interrupções de forneci- mento, sempre tão dispendiosas; e a uma gestão eficiente da procura, que poderia reduzir drasticamente a utilização energética per capita. Entre as tecnologias emergentes, onde é que é expectável que se regis- tem os maiores avanços em termos de contribuição para o aumento de produtividade? Para o McKinsey Global Institute (MGI) (2013)4, as “tecnologias que importam” são as que têm maior potencial para produ- zir impacto e rupturas económicas na próxima década. Fazem parte desta lista as que progridem mais rapidamente (por exemplo, as ligadas à sequenciação dos genes); as que têm um amplo alcance (por exemplo, a Internet móvel); as que têm o potencial para gerar impacto económico (por exemplo, a robótica avançada) e produzir alterações ao nível do status quo (por exemplo, a tecnologia de armazenamento de energia). O MGI calcula que o impacto económico destas tecnologias – causado por quedas nos preços, difusão generalizada e uma maior eficácia – rondará um valor entre os 14 e os 33 triliões de dólares por ano em 2025. No topo da lista estão a Internet móvel, a automação do trabalho intelectual, a Internet das Coisas e a tecnologia cloud. Num ensaio brilhante5, John Lanchester resumiu assim a questão:

os computadores tornaram-se incrivelmente mais poderosos, e tão ba- ratos que, na prática, são ubíquos, e o mesmo pode dizer-se dos sen- sores que utilizam para monitorizar o mundo físico. O software que correm também conheceu desenvolvimentos espantosos. Brynjolfsson e McAfee sustentam que estamos à beira de uma nova revolução in- dustrial, cujo impacto no mundo igualará o da primeira. Categorias de trabalho inteiras serão transformadas pelo poder da computação, e, em particular, pelo impacto dos robôs.

Quando falamos de inteligência artificial (IA), referimo-nos a máqui- nas que não se limitam a executar instruções pré-programadas, mas que aprendem novos programas e instruções pela experiência e exposição a novas situações. Na prática, a IA implica que os robôs que aprendem aumentam a sua própria inteligência – ao ponto de poderem ser os pró- prios robôs a produzir mais robôs, cada vez mais inteligentes. Aliás, há quem diga que, não tarda, a IA vai suplantar a inteligência dos seres humanos. A isto chama-se “singularidade” – o momento em que os seres

4 http://www.mckinsey.com/business-functions/business-technology/our-insights/ disruptive-technologies 5 http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming 138 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … humanos deixam de ser os entes mais inteligentes no planeta. Além do mais, é possível que os robôs acabem por desenvolver a forma e os senti- dos dos seres humanos, tornando-se, desse modo, “sencientes”. Mas antes de entrar na ciência (ou será ficção científica?), vamos co- meçar pelo princípio. Se os robôs e a IA vão longe, e depressa, significará isso uma imensa destruição de empregos ou, em alternativa, novos seto- res de empregabilidade e a necessidade de trabalhar menos horas? Num trabalho recente, Graetz e Michaels6 analisaram 14 indústrias (sobretudo transformadoras, mas também nos ramos da agricultura e dos serviços públicos) em 17 países desenvolvidos (incluindo países euro- peus, a Austrália, a Coreia do Sul e os EUA). Concluíram que os robôs industriais aumentam a produtividade laboral, a produtividade total dos fatores e os salários; no entanto, embora não tenham registado qualquer efeito significativo no total de horas trabalhadas, existem provas de que o emprego dos trabalhadores com qualificações mais baixas seria negativa- mente afetado, assim como, ainda que em menor escala, os dos trabalha- dores com qualificações médias. O artigo está disponível para leitura na íntegra7. Em suma, os robôs não reduziram a labuta (as horas de trabalho) de quem tinha trabalho – antes pelo contrário. Mas levaram, de facto, a uma redução de empregos entre os menos qualificados, afetando até mesmo quem tinha algumas qualificações. Ou seja: mais horas de trabalho, em vez de menos horas de trabalho, e mais desemprego. Dois economistas de Oxford, Carl Benedikt e Michael Osborne8, olha- ram para o impacto expectável das alterações tecnológicas numa gama abrangente de 702 atividades profissionais, desde podólogos a guias turísticos, passando por treinadores de animais, conselheiros económicos individuais e envernizadores. Chegaram a conclusões assustadoras:

Segundo as nossas previsões, cerca de 47 por cento do emprego nos EUA está em risco. Apresentaremos provas de como os salários e os graus de instrução estabelecem uma forte relação negativa com a pro- babilidade de informatização de uma dada profissão… Em vez de re- duzir a procura de ocupações de média remuneração – que tem sido o padrão das últimas décadas –, o nosso modelo estima que, num futuro próximo, a informatização tenderá a substituir principalmente em- pregos que requerem poucas qualificações e pagam salários baixos.

6 http://voxeu.org/article/robôs-productivity-and-jobs 7 http://cepr.org/active/publications/discussion_papers/dp.php?dpno=10477 8 http://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/The_Future_of_ Employment.pdf ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 139

Em contraste, as profissões que exigem mais qualificações e oferecem melhores salários são as menos vulneráveis ao capital informático. Lanchester resume assim as conclusões a que chegaram: “ou seja, os pobres serão afetados, os do meio terão uma vida ligeiramente melhor, em comparação com a presente, e os ricos – surpresa! – continuam fe- lizes da vida”.

No mesmo ensaio, Lanchester chama a atenção para o facto de o mundo robótico poder dar origem, não a uma utopia “pós-capitalista”, mas antes a um “mundo de Piketty”, “em que o capital acentua cada vez mais o triunfo sobre o trabalho”. E cita, a propósito, os lucros tremendos obtidos pelas grandes empresas tecnológicas:

Em 1960, a empresa mais rentável na maior economia do mundo era a General Motors. Em valores atuais, a GM ganhou 7,6 biliões de dóla- res nesse ano. Além disso, empregava 600 mil pessoas. Hoje, a em- presa mais rentável emprega 92 600. Ou seja: outrora, 600 mil traba- lhadores geravam 7,6 biliões de dólares, ao passo que, hoje em dia, 92,600 trabalhadores geram 89,9 biliões. Estamos a falar de um au- mento de produtividade na casa de 76,65 vezes mais por cada tra- balhador. Convém não esquecer que tudo isto é lucro puro para os do- nos da empresa, já depois de os pagamentos aos trabalhadores terem sido processados. Não se trata apenas de o capital estar a ganhar ao trabalho: a questão é que já não há sequer disputa. Se fosse um com- bate de boxe, o árbitro já tinha mandado parar a luta.

Porém, olhar para o lucro das empresas que se apoderam do valor cri- ado pelo trabalho nos novos setores não é necessariamente um indicador para a saúde integral do capital. Estará o capitalismo, no seu todo, a ter um novo sopro de vida? Ao fim e ao cabo, o aumento global do investi- mento é muito baixo no atual cenário de depressão de longa duração, assim como o concomitante aumento da produtividade. A propósito, podem ler os meus artigos sobre produtividade e investimento9. Os robôs não resolvem as contradições inerentes à acumulação capita- lista, cuja essência se resume assim: para aumentar os lucros e acumular mais capital, os capitalistas desejam introduzir máquinas que possam au- mentar a produtividade de cada trabalhador e reduzir os custos em compara- ção com a competição. É este o grande papel revolucionário do capitalismo no desenvolvimento das forças de produção ativas na sociedade. Mas existe aqui uma contradição. Ao tentar aumentar a produtividade laboral através da introdução de tecnologia, gera-se um processo de

9 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/08/the-great-productivity- slowdown/ 140 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … redução de postos de trabalho, ou seja, as novas tecnologias substituem o trabalho. E mais produtividade pode gerar mais produção e abrir novos setores de empregabilidade, o que poderia compensar essa diminuição. Mas ao longo do tempo, a perspetiva capitalista da redução de postos de trabalho é que se cria menos valor novo (já que o trabalho é a única forma de valor) em relação ao custo do capital investido. Existe, portanto, uma tendência para que a rentabilidade decaia com o aumento da produtivida- de. Por outro lado, essa situação poderá mesmo levar a uma crise de produção suficientemente grande para neutralizar – ou mesmo inverter – os ganhos de produção gerados pelas novas tecnologias. E isto simples- mente porque, no nosso modo moderno de produção, o investimento e a produção dependem da rentabilidade do capital. Portanto, uma economia capitalista cada vez mais dominada pela In- ternet das Coisas e por robôs implicará crises mais intensas e mais desi- gualdades, e não qualquer tipo de superabundância ou prosperidade. No meu próximo artigo, discutirei se um mundo em que robôs constroem robôs cada vez mais inteligentes – talvez sem qualquer intervenção laboral humana – significa o fim da lei do valor e das crises recorrentes do capitalismo.

2.ª parte

No meu primeiro artigo10 sobre robôs e IA abordei o impacto destas novas tecnologias no futuro do emprego e da produtividade. Chamei a atenção para a contradição que se gera no seio do modo de produção capitalista entre o aumento da produtividade alcançado graças às novas tecnologias e a diminuição da rentabilidade. Nesta segunda parte proponho olhar para o impacto dos robôs e da IA pelo prisma da lei do valor no capitalismo, enunciada por Marx. Marx assume duas premissas-chave para explicar as leis de movimento no âmbito do capitalismo: 1) que apenas o trabalho humano gera valor e 2) que, ao longo do tempo, o investimento dos capitalistas em tecnologia e meios de produção suplantará o investimento em força de trabalho huma- na. Recorrendo à terminologia de Marx, registar-se-á um aumento na composição orgânica do capital ao longo dos tempos. Não temos aqui espaço para apresentar as provas empíricas da última afirmação, mas podem encontrá-las no livro Crises and Marx Law, de G. Carchedi11. Em O Capital, Marx explica detalhadamente que a crescente

10 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/23/robôs-and-ai-utopia-or- dystopia-part-one/ 11 (crisis and the law for BOOK1-1) ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 141 composição orgânica do capital é uma das principais caraterísticas da acumulação capitalista. No sistema capitalista, o investimento tem como único propósito o lucro, e não propriamente aumentar a produção ou a produtividade. Se não for possível obter lucro suficiente através de mais horas de trabalho (i.e., mais trabalhadores a trabalhar mais tempo) ou pelas tentativas de intensificação (velocidade e eficiência – tempo e movimento), então a produtividade do trabalho (mais valor por hora de trabalho) só pode ser alcançada através de melhor tecnologia. Por outras palavras, na terminologia marxista, a composição orgânica do capital (a quantidade de máquinas e fábricas relativamente ao número de trabalha- dores) vai aumentar secularmente. Os trabalhadores podem lutar por ficar com a maior parcela possível do novo valor que criaram, como parte da sua “compensação”, mas o capitalismo só vai investir no crescimento se essa componente salarial não crescer ao ponto de causar um declínio na rentabilidade. Ou seja, a acumulação capitalista implica uma quebra da parcela laboral ao longo do tempo, ou o que Marx denominaria de uma taxa crescente de exploração (ou mais-valia). O “pendor capitalista” da tecnologia é algo continuamente ignorado pela economia tradicional. Mas, como Branco Milanovic12 assinalou, até a teoria económica mais ortodoxa incluiria este processo secular na acumulação capitalista. Nas suas próprias palavras:

Em Marx, a premissa é a de que os processos com mais capital inten- sivo são sempre mais produtivos. Por isso, os capitalistas tendem, simplesmente, a acumular mais e mais capital e a substituir o trabalho (…) o que, num quadro marxista, significa que existem cada vez me- nos trabalhadores que, obviamente, produzem cada vez menos mais- -valia (absoluta) e este menor valor acrescentado sobre uma massa maior de capital significa que a taxa de lucro cai. (…) O resultado é idêntico se colocarmos este processo marxista num con- texto neoclássico e assumirmos que a elasticidade da substituição é inferior a 1. O que acontece é, simplesmente, que r cai a pique a cada ronda sucessiva de investimento em capital intensivo, até chegar prati- camente a zero. Como escreve Marx, todos os capitalistas individuais têm interesse em investir em mais processos de capital intensivo, de modo a conseguir preços inferiores aos dos outros capitalistas; porém, quando todos fazem a mesma coisa, a taxa de lucro também desce universalmente. Ou seja, em última análise, todos se dedicam a invia- bilizar a sua própria atividade (mais rigorosamente, dedicam-se a prosseguir uma taxa de lucro nula)

12 http://glineq.blogspot.pt/2015/04/the-rule-of-robôs-in-stiglitz-and-marx.html 142 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Em seguida, Milanovic aborda a tecnologia da robótica:

A receita líquida, no equilíbrio marxista, será baixa, porque apenas o trabalho gera “novo valor” e, uma vez que serão empregues muito poucos trabalhadores, esse “novo valor” será baixo (independente- mente de quão intensos os esforços dos capitalistas para acrescentar mais-valias). Para visualizar o equilíbrio marxista, imaginem milhares de robôs a trabalhar numa grande fábrica, com apenas um trabalhador a controlá-los; assumamos um ano como duração da vida útil dos robôs, o que faz que seja preciso substituí-los continuamente, incor- rendo em enormes custos anuais de depreciação e reinvestimento. A composição do PIB seria deveras interessante: se o total do PIB fosse 100, teríamos consumo = 5, investimento líquido = 5, e depreciação = 90. Seria possível viver num país com um PIB per capita de 500 mil dólares, dos quais 450 mil corresponderiam a uma depreciação.

É esta a principal contradição inerente à produção capitalista: aumen- tos de produtividade causam quedas na rentabilidade, que, periodicamen- te, interrompem o crescimento da produção e da produtividade. Mas o que é que isso implica, se pensarmos num futuro extremo (ficção científi- ca?), em que, graças à tecnologia robótica e à IA, são os robôs a fazer robôs? E a extrair matérias-primas e a fazer tudo e mais alguma coisa? E a executar todos os serviços, públicos e pessoais, de modo a que o traba- lho humano deixe de ser necessário em qualquer tipo de produção? Imaginemos um processo completamente automatizado, em cuja pro- dução não existem humanos. Foi acrescentado valor, uma vez que as matérias-primas foram convertidas em mercadorias sem envolvimento humano, certo? E isso refuta a tese de Marx de que apenas o trabalho humano pode criar valor, certo? Há aqui uma grande confusão em torno da dupla natureza do valor no capitalismo, ou seja, o valor de uso e o valor de troca. Existe valor de uso (coisas e serviços de que as pessoas necessitam) e valor de troca (o valor medido em tempo de trabalho humano, apropriado pelos detentores do capital e concretizado através da venda nos mercados). No modo de produ- ção capitalista, qualquer mercadoria contém um valor de uso e um valor de troca, e é impossível ter um sem o outro. Mas é o último que regula os processos de investimento e produção capitalistas, não o primeiro. O valor (tal como já foi definido) é específico do capitalismo. Claro está, o trabalho vivo pode criar coisas e prestar serviços (valores de uso); mas o valor é a essência do modo capitalista de produção. O capital (ou os donos dele) controla os meios de produção criados pelo trabalho e só os colocará a uso para apropriar-se do valor criado por mais trabalho. O capital, em si mesmo, não produz valor. ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 143

Porém, no nosso hipotético e abrangente mundo de robôs e IA, a pro- dutividade (de valores de uso) tenderia para o infinito e a rentabilidade (valor acrescentado ao valor do capital) para zero. O trabalho humano já não seria utilizado e explorado pelo capital (os seus donos). Em vez disso, seriam os robôs a fazer tudo. Já não estamos a falar de capitalismo. Acho que a analogia mais próxima seria com a economia esclavagista da Roma antiga. Na Roma antiga, ao longo de centenas de anos, a economia anterior- mente dominada pelo pequeno campesinato foi sendo substituída por escravos na extração mineira, na agricultura, e em todo o tipo de tarefas. Tal só foi possível porque os espólios das guerras vitoriosas conduzidas pela república e pelo império romano incluíam um fornecimento maciço de mão-de-obra escrava. O custo desses escravos para os donos era incrivel- mente baixo (para começar), quando comparado com os associados a contratar trabalho livre. Os donos de escravos forçavam os agricultores a abandonar as suas terras, através de um misto de exigências relacionadas com dívidas, requisições para a guerra e violência pura. Os antigos campo- neses, e as respetivas famílias, viam-se obrigados a tornar-se, eles mesmos, escravos, ou a emigrar para as cidades, onde mal conseguiam sobreviver à custa de trabalhos e tarefas menores ou da mendicidade. A luta de classes não acabou – passou a ser entre os aristocratas donos de escravos e os escravos e entre os aristocratas e a plebe atomizada nas cidades. Há um filme recente que aborda esta ficção científica moderna – o Elysium. No filme, os donos dos robôs e da tecnologia moderna construí- ram para si todo um planeta no espaço, separado da Terra, onde vivem uma vida de luxo à custa das coisas e serviços disponibilizados pelos robôs, e defendem esta vida segregada através de exércitos de robôs. O resto da raça humana continua a viver na Terra, numa pobreza extrema, rodeados por doença e abjecção – a redução à miséria da classe operária, que já não trabalha para subsistir. No mundo do Elysium, a questão mantém-se: quem detém os meios de produção? Num planeta completamente automatizado, como seriam os bens e serviços produzidos pelos robôs distribuídos para serem consumi- dos? Tal dependeria de quem fosse o dono dos robôs – os meios de produ- ção. Imaginem que, no tal planeta mantido pelos robôs, há 100 sortudos, e um deles é dono dos melhores robôs e consegue apropriar-se de toda a produção. Porque haveria de partilhá-la com os outros 99? Esses acabarão por ser recambiados para a Terra. Ou podem não estar pelos ajustes e lutar pela apropriação de alguns dos robôs. E assim, como chegou a dizer Marx, é a mesma merda toda de novo, mas com uma diferença. Ao fim e ao cabo, tudo dependeria do modo como a humanidade pas- sasse a ser uma sociedade completamente automatizada. No contexto de 144 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … uma revolução socialista e propriedade comum, a distribuição do resulta- do da produção dos robôs pode ser controlada – a cada um/a, de acordo com as suas necessidades. Mas se a sociedade funcionar na base da continuação da propriedade privada dos robôs, nesse caso, a luta de classes pelo controlo das mais-valias mantém-se. A questão que muita vez se levanta nesta altura é: a quem é que os do- nos dos robôs vão vender os seus produtos e serviços para obter lucro? Se os trabalhadores não trabalham nem recebem qualquer rendimento, então é garantido que existirá sobreprodução e subconsumo a grande escala, certo? Ou seja, em última análise, será o subconsumo das massas a derru- bar o capitalismo? Mais uma vez, acho que se trata de um mal-entendido. Uma sociedade robótica deste tipo já não é capitalista; é mais como uma economia escla- vagista. Os donos dos meios de produção (os robôs) detêm agora uma economia superabundante em coisas e serviços a custo zero (robôs que fazem robôs que fazem robôs). E podem limitar-se a consumir. Não precisam de “fazer lucro”, tal como os aristocratas donos de escravos de Roma se limitavam a consumir, e não orientavam os seus negócios para o lucro. Não estaríamos perante uma crise de sobreprodução no sentido capitalista (relacionado com os lucros), nem de “subconsumo” (falta de poder de compra ou de procura efetiva de bens nos mercados), exceto no sentido físico da pobreza. A economia tradicional continua a olhar para o crescimento dos robôs no sistema capitalista como a génese de uma crise de subconsumo. Jeffrey Sachs13 enquadra assim a questão: “Onde é que eu vejo o problema genérico para toda a sociedade se os seres humanos forem despedidos a uma escala industrial (fala-se de 47 por cento nos EUA)? Aqui: onde é que está o mercado para os bens?” Por seu lado, Martin Ford14 afirma que “não há maneira de prever como poderá o setor privado resolver este problema. Pura e simplesmente, não há alternativa exceto o Governo garantir algum mecanismo que garanta rendimento aos consumidores.” Ford não propõe o socialismo, claro está, mas apenas um mecanismo para redirecionar os salários perdidos de volta para os “consumidores”; só que tal esquema acabaria por ameaçar a propriedade e a rentabilidade privadas. Uma economia robótica poderia significar um mundo de superabun- dância para todos (é o que Paul Mason sugere em Pós-Capitalismo15). Ou

13 http://prospect.org/article/how-live-happily-robôs 14 http://www.npr.org/sections/alltechconsidered/2015/05/18/407648886/attention- white-collar-workers-the-robôs-are-coming-for-your-jobs. 15 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/07/21/paul-mason-and-postcapitalism- utopian-or-scientific/ ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 145 apenas um Elysium. O colunista do Financial Times Martin Wolf16 colo- cou a coisa nestes termos:

A ascensão das máquinas inteligentes é um momento histórico. Impli- cará muitas mudanças, incluindo ao nível económico. Mas o potencial é claro: tornarão possível aos seres humanos viver vidas muito melho- res. Se acabará por ser assim ou não depende do modo como os ga- nhos são produzidos e distribuídos. É possível que o resultado final seja uma pequena minoria de grandes vencedores e uma grande quan- tidade de perdedores. Mas tal desfecho seria uma escolha, não um fa- do. Não é necessária uma forma de tecnofeudalismo; bem vistas as coisas, a tecnologia em si não dita destino algum – ao contrário das instituições económicas e políticas. Se as que temos não produzem os resultados que desejamos, temos de mudá-las.

É uma “escolha” social, ou, para sermos mais rigorosos, depende do resultado da luta de classes no capitalismo. John Lanchester17 vai muito mais direto ao assunto:

Também vale a pena referir o que não está a ser dito acerca deste futu- ro robotizado. O cenário que estão a descrever-nos – aquele que é su- posto aceitarmos como inevitável – é o de uma distopia hipercapita- lista. Há o capital, a sair-se melhor do que nunca; os robôs, a fazer o trabalho todo; e a grande massa da humanidade, que não faz grande coisa, mas diverte-se a brincar com as geringonças… Existe uma al- ternativa plausível, em que a posse e o controlo dos robôs estão desli- gados do capital, na sua forma atual. Os robôs libertam a maioria da humanidade do trabalho, e toda a gente beneficia com o resultado: não temos de trabalhar em fábricas ou descer às minas ou limpar casas de banho ou conduzir camiões de longa distância, mas podemos fazer co- reografias, dedicar-nos à costura ou à jardinagem e contar histórias e inventar coisas e pensar em como criar um novo universo de desejos. Este seria o mundo de desejos ilimitados descrito pela economia, mas distinguindo os desejos satisfeitos pelos humanos do trabalho feito pe- las nossas máquinas. Parece-me que a única maneira de esse mundo funcionar é com formas alternativas de propriedade. O motivo, o úni- co motivo para pensar que este mundo melhor é possível é que o futu-

16 http://www.ft.com/cms/s/e1046e2e-8aae-11e3-9465-00144feab7de,Authorised= false.html?siteedition=intl&_i_location=http%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms% 2Fs%2F0%2Fe1046e2e-8aae-11e3-9465-00144feab7de.html%3Fsiteedition%3 Dintl&_i_referer=&classification=conditional_standard&iab=barrier- -app#axzz4J20Hpzsd 17 http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming 146 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

ro distópico do capitalismo-mais-robôs pode acabar por revelar-se demasiado sinistro para ser politicamente viável. Este futuro alternati- vo seria o tipo de mundo sonhado por William Morris, cheio de seres humanos empenhados em trabalhos com significado e com remunera- ções sãs. Só que com robôs. Não deixa de ser significativo em relação ao atual momento que, quando estamos perante um futuro que tanto pode vir a assemelhar-se a uma distopia hipercapitalista ou a um para- íso socialista, a segunda opção não seja sequer mencionada.

Mas regressemos ao aqui e agora. Se o mundo inteiro da tecnologia, produtos de consumo e serviços pudesse reproduzir-se sem a força de trabalho viva ter de trabalhar e pudesse fazê-lo através de robôs, então as coisas e os serviços continuariam a ser produzidos, mas sem criação de valor (nomeadamente, o lucro ou mais-valias). Segundo Martin Ford, “quanto mais as máquinas se gerirem a elas mesmas, mais entra em declínio o valor que o trabalhador médio acrescenta”. Assim sendo, a acumulação capitalista deixaria de existir muito antes de os robôs toma- rem conta de tudo, porque a rentabilidade desapareceria sob o peso do “pendor capitalista”. A mais importante lei do movimento no capitalismo, como Marx lhe chamou, entraria em ação: a tendência para a queda da taxa de lucro. Com o aumento da tecnologia “de pendor capitalista”, a composição orgânica do capital também aumenta, pelo que o trabalho acaba, por fim, por gerar um valor insuficiente para garantir a rentabilidade (ie., as mais- -valias relativas aos custos do capital). Jamais chegaríamos a uma socie- dade robótica; jamais chegaríamos a uma sociedade sem trabalho, pelo menos no capitalismo. Haveria crises e explosões sociais muito antes. E esse é que é o ponto fulcral. Vamos lá ter calma com a economia dos robôs. No próximo (e último) artigo sobre o assunto, abordarei a realidade do futuro dos robôs e da IA sob a égide do capitalismo.

3.ª parte

Este é o terceiro e último texto sobre a questão dos robôs e da inteli- gência artificial (IA). No primeiro texto18 argumentei que, embora os robôs e a IA sejam, de facto, um passo em frente em termos de mecani- zação e automatização, não vão resolver a contradição básica inerente ao modo de produção capitalista, nomeadamente a que existe entre os impul- sos para aumentar, por um lado, a produção e, por outro, a rentabilidade do trabalho. Tal como afirmei,

18 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/23/robôs-and-ai-utopia-or- dystopia-part-one/ ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 147

ao longo do tempo, a perspetiva capitalista da redução de postos de trabalho é que se cria menos valor novo (já que o trabalho é a única forma de valor) em relação ao custo do capital investido. Existe, por- tanto, uma tendência para que a rentabilidade decaia com o aumento da produtividade. Por outro lado, essa situação poderá mesmo levar a uma crise de produção suficientemente grande para neutralizar – ou mesmo inverter – os ganhos de produção gerados pelas novas tecnolo- gias. E isto simplesmente porque, no nosso modo moderno de produ- ção, o investimento e a produção dependem da rentabilidade do capital.

No segundo texto19 olhei com mais atenção para o modo como a lei do valor, que domina o modo de produção capitalista – orientado para o lucro – seria afetada pela possibilidade hipotética (ou real) de uma econo- mia totalmente automatizada, sem qualquer recurso a força de trabalho humana.

No nosso hipotético e abrangente mundo de robôs e IA, a produtivida- de (de valores de uso) tenderia para o infinito e a rentabilidade (valor acrescentado ao valor do capital) para zero. O trabalho humano já não seria utilizado e explorado pelo capital (os seus donos). Em vez disso, seriam os robôs a fazer tudo. Já não estamos a falar de capitalismo.

Mas acrescentei que, antes de este estado de exceção (como é denomi- nado) ser atingido, o capitalismo, enquanto sistema, já teria ruído.

Jamais chegaríamos a uma sociedade robótica; jamais chegaríamos a uma sociedade sem trabalho – pelo menos no capitalismo. Haveria crises e explosões sociais muito antes (…) a acumulação capitalista deixaria de existir muito antes de os robôs tomarem conta de tudo, porque a rentabilidade desapareceria sob o peso do “pendor capitalista”.

Nesta terceira parte quero abordar a questão da plausibilidade de um mundo laboral (e talvez o mundo em si) dominado por robôs altamente inteligentes, num futuro próximo. Sou da opinião de que, malgrado todo o otimismo dos impulsionadores dos robôs e da IA, tal não vai acontecer tão cedo. Mas não deixa de ser verdade, ainda assim, que o mundo dos robôs está a crescer, e muito depressa. Na última década, o nível de utilização da robótica praticamente duplicou nas economias capitalistas de topo. O Japão e a Coreia são quem tem mais robôs por operário – mais de trezen- tos para 10 mil trabalhadores. Segue-se a Alemanha, com mais de 250

19 https://thenextrecession.wordpress.com/2015/08/29/robôs-and-ai-utopia-or- dystopia-part-two/ 148 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … por cada dez mil trabalhadores. Os Estados Unidos dispõem de metade dos robôs por dez mil trabalhadores em comparação com o Japão e a República da Coreia. Neste período, a taxa de adoção de robôs aumentou 40% no Brasil, 210% na China, 11% na Alemanha, 57% na República da Coreia, e 41% nos EUA. Tamanha evolução até já foi descrita como uma “segunda vaga de au- tomação” – centrada na cognição artificial, sensores baratos, aprendiza- gem de máquinas, inteligência distribuída. Esta automação profunda irá atingir todos os setores, desde o trabalho manual ao do conhecimento. E já está a afetar negativamente o emprego, tal como a mecanização nas revoluções industriais anteriores. Andrew McAfee, co-autor, com o seu colega do MIT Erik Brynjolfsson, de The Second Machine Age, foi uma das personalidades mais destacadas a descrever a possibilidade de uma “economia de ficção científica”, em que a proliferação de máquinas inteligentes elimina a necessidade de muitos postos de trabalho (ver a “Carta Aberta sobre a Economia Digi- tal”20, na qual McAfee, Brynjolfsson e outros propõem uma nova aborda- gem para a adaptação às mudanças tecnológicas). Tal transformação traria imensos benefícios sociais e económicos, afirma, mas também poderia implicar uma economia de “trabalho ligeiro”. Por sua vez, Hod Lipson21 afirma que “Há cada vez mais automação guiada por computador a infiltrar-se em tudo e mais alguma coisa, desde a produção à tomada de decisões”. O destacado economista da Universi- dade de Columbia Jeffrey Sachs previu recentemente que a Starbucks seria em breve tomada por robôs e pela automação.22 Mas existem bons motivos para acreditar que Sachs e os outros possam estar enganados. O sucesso da Starbucks nunca teve a ver com servir café de forma mais barata ou eficiente; e, geralmente, os consumidores preferem as pessoas e os serviços prestados por humanos. Olhemos para as tão populares lojas da Apple, sugere Tim O’Reilly, fundador da O’Reilly Media: recheadas de inúmeros funcionários munidos de Ipads e iPhones, são uma alternati- va credível a um futuro de retalho robotizado. Afinal, talvez os serviços automatizados não sejam, necessariamente, o fim do caminho para a tecnologia dos nossos dias. “É verdade que a tecnologia acabará por destruir alguns tipos de emprego”, reconhece O’Reilly. “Mas podemos sempre fazer escolhas em relação ao modo como a usamos.” E quão próximos estamos, na verdade, de uma situação em que são robôs dotados de inteligência artificial a fazer o trabalho humano? Os

20 https://www.technologyreview.com/s/538091/open-letter-on-the-digital-economy/ 21 http://www.hodlipson.com 22 https://www.youtube.com/watch?v=w8pEgvzJ7p4 ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 149 investigadores da área salientam que as tarefas mais simples para os humanos, tais como meter a mão no bolso para tirar uma moeda, são as mais difíceis para as máquinas. Por exemplo, o robô Roomba23, da iRobot, é autónomo, mas a tarefa de aspiração que efetua enquanto se desloca entre divisões é extraordinariamente simples. Pelo contrário, o Packbot24, da mesma empresa, é mais caro, foi concebido para desativar bombas, mas tem de ser teleoperado, ou controlado através de sistemas wireless, por seres humanos. A Defense Advanced Research Projects Agency25 [Agência para Pro- jetos de Investigação Avançada na Defesa], um instituto de investigação do Pentágono, organizou a competição Robotics Challenge, em Pomona, na Califórnia, com um prémio de dois milhões de dólares em dinheiro para o robô que se saísse melhor numa série de tarefas ligadas ao salva- mento em menos de uma hora. No concurso anterior26, realizado na Florida em dezembro de 2013, os robôs, que só se aguentavam em pé graças a correntes, foram insuportavelmente lentos a terminar tarefas como abrir portas e entrar em divisões, limpar lixo, subir escadas e con- duzir em pistas de obstáculos (e tiveram de ser instalados nos veículos por supervisores humanos). Os jornalistas que cobriram o evento recorre- ram a analogias como “ver a tinta a secar” ou “assistir à erva a crescer”. Desta vez, os robôs tinham uma hora para completar um conjunto de oito tarefas, que provavelmente levariam a um humano menos de dez minutos. E, mesmo assim, falharam em muitas delas. Alguns eram bípe- des, outros tinham quatro pernas, rodas, ou ambos, mas nenhum era autónomo. Controlados por operadores humanos, através de redes sem fios, demonstraram ser completamente incapazes sem a ajuda dos super- visores humanos. Na verdade, poucos foram os avanços na área da “cog- nição”, os processos mais “humanos” de alto nível necessários para que um robô consiga planificar e ter verdadeira autonomia. Por conseguinte, muitos investigadores começaram a pensar numa alternativa: criar con- juntos formados por humanos e robôs, numa abordagem que descrevem como de co-robôs ou “robótica em nuvem27“.

23 http://www.nytimes.com/video/technology/personaltech/100000002663490/ roomba-880-a-clean-sweep.html 24 http://www.nytimes.com/2015/05/07/technology/robotica-navy-tests-limits- autonomy.html?_r=0 25 http://www.darpa.mil/default.aspx 26 http://www.nytimes.com/2013/12/23/science/japanese-team-dominates- competition-to-create-rescue-robôs.html?ref=topics 27 http://bits.blogs.nytimes.com/2014/10/25/the-robot-in-the-cloud-a-conversation- with-ken-goldberg/ 150 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Portanto, ainda há muito caminho pela frente. David Graeber enumerou outros obstáculos à adoção célere de robôs dotados de inteligência artifici- al, autónomos e completamente automatizados, nomeadamente o próprio sistema capitalista.28 O financiamento de novas tecnologias não tem o propósito de suprir as necessidades das pessoas ou reduzir o trabalho árduo dos seres humanos: limita-se a incidir no que aumenta a rentabilidade. “Há muito, muito tempo”, afirmou, “quando as pessoas imaginavam o futuro, pensavam em carros voadores, dispositivos de teletransporte e robôs que as libertassem da necessidade de trabalhar. Porém, por estranho que pareça, nenhuma destas coisas se tornou realidade.” O que aconteceu, de facto, foi que os industriais não aplicaram os fun- dos de investigação na criação das fábricas robotizadas que toda a gente antecipava nos anos 60, mas na deslocalização das fábricas para instala- ções de trabalho intensivo de baixa tecnologia, na China ou no mundo globalizado. E os governos desviaram fundos para a investigação militar, projetos de armamento, investigação nas tecnologias de comunicação e vigilância, ou outras questões do mesmo tipo, sempre relacionadas com a segurança.

Um dos motivos para ainda não termos fábricas de robôs é o facto de 95% dos fundos de investigação em robótica terem sido canalizados através do Pentágono, que está mais interessado em desenvolver dro- nes não tripulados do que em automatizar fábricas de papel.

William Nordhaus, do Departamento de Economia da Universidade de Yale, tentou calcular o futuro impacto económico da inteligência artificial e dos robôs (SSRN-id265825929). E considera que o “estado de exceção” e o respetivo impacto ainda estão muito longe. Os consumidores podem adorar os seus iPhones, mais não conseguem comer um produto electróni- co. Do mesmo modo, pelo menos com as tecnologias de hoje em dia, a produção requer matéria-prima (“coisas”) escassa, na forma de trabalho, energia e recursos naturais (assim como informação para a maioria dos bens e serviços). Nordhaus afirma que, de acordo com projeções baseadas nas tendências da última década, ou mais, levaria cerca de um século até que as variáveis de crescimento atingissem os níveis associados a um estado de excepção causado pelo crescimento. Nordhaus aborda ainda a questão dos robôs fora de controlo – isto é, controlando o mundo inteiro, incluindo nós.

28 http://thebaffler.com/salvos/of-flying-cars-and-the-declining-rate-of-profit 29 https://thenextrecession.files.wordpress.com/2015/09/ssrn-id2658259.pdf ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 151

O desenvolvimento da superinteligência levanta uma nova preocupa- ção, nunca antes contemplada quando do desenvolvimento da espio- nagem e armamento militares. Deveremos preocupar-nos porque à lista de adversários serão acrescentadas as próprias máquinas superinteli- gentes (…) e as superinteligências vão fazer-nos o que os meninos travessos fazem às moscas?

Ou seja, há uma categoria laboral de humanos que não será facilmente eliminada: a que se ocupa da defesa dos nossos interesses perante o poder global da IA:

Gastamos, sistematicamente, cinco por cento da nossa produção na defesa, e este número pode aumentar em grande escala se formos con- frontados com inimigos mais potentes, como máquinas superinteli- gentes. Portanto, há pelo menos uma profissão que sobrevirá na Era da Exceção.

Tentemos não atirar o bebé pela janela com a água do banho. O que queremos são avanços tecnológicos que vão ao encontro das necessidades das pessoas, para ajudar a combater a pobreza e criar uma sociedade de superabundância sem prejudicar o ambiente e a ecologia do planeta. Se a IA e a tecnologia robótica nos deixarem mais próximos desse objetivo, ótimo. Mas o principal obstáculo a uma sociedade de superabundância e har- monia, assente em robôs que reduzem o trabalho humano ao mínimo, é o capital. No relatório Future of Work30 [O Futuro do Trabalho] do ano passado, a UKCES propôs uma série de cenários, que incluíam tanto a possibilidade de um longo período de estagnação como um salto produti- vo impulsionado pela tecnologia. Porém, todos os cenários tinham algo em comum: para aqueles que não têm altas qualificações, conhecimentos bem colocados ou riqueza herdada, o futuro prevê-se extremamente sombrio. O Economist conclui, no final de uma peça de grandes dimen- sões31 sobre tecnologia e trabalho, publicada no ano passado:

A sociedade pode dar por si a enfrentar um duro teste, se, como parece plausível, o conhecimento e a inovação trouxerem imensos benefícios para os mais qualificados, restando aos outros apenas a hipótese de agarrar as oportunidades, cada vez mais escassas, de emprego a troco de salários estagnados.

30 https://www.gov.uk/government/publications/jobs-and-skills-in-2030 31 http://www.economist.com/news/briefing/21594264-previous-technological- innovation-has-always-delivered-more-long-run-employment-not-less?fsrc= scn/tw/te/pe/ed/ 152 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Ou, na formulação de John Naughton32, “uma economia de conveniên- cia, [com] legiões de servos coordenados em rede”. Enquanto os meios de produção (que incluirão robôs) estiverem na posse de uns quantos, os benefícios de uma sociedade de robôs estarão confinados a esses poucos. Quem quer que sejam os donos do capital, serão eles os beneficiados, quando os robôs e a IA, inevitavelmente, substituírem muitos empregos. E se se mantiver a tendência das últimas décadas, e as vantagens das novas tecnologias só forem sentidas pelos mais ricos, então as visões mais distópicas tornar-se-ão realidade. Volto a citar John Lanchester33:

Parece-me que a única maneira de esse mundo funcionar é com for- mas alternativas de propriedade. O motivo, o único motivo para pen- sar que este mundo melhor é possível é que o futuro distópico do capi- talismo-mais-robôs pode acabar por revelar-se demasiado sinistro para ser politicamente viável. Este futuro alternativo seria o tipo de mundo sonhado por William Morris, cheio de seres humanos empenhados em trabalhos com significado e com remunerações sãs. Só que com robôs. Não deixa de ser significativo em relação ao atual momento que, quando estamos perante um futuro que tanto pode vir a assemelhar-se a uma distopia hipercapitalista ou a um paraíso socialista, a segunda opção não seja sequer mencionada.

Resta-me, então, resumir as conclusões dos meus artigos sobre robôs e IA.

• As novas tecnologias dos robôs e da IA aproximam-se a passos lar- gos. Como toda a tecnologia no capitalismo, tem um “pendor capita- lista”, e substituirá trabalho humano. Mas, sob o capitalismo, esse pendor capitalista é aplicado para reduzir custos e aumentar a renta- bilidade, e não para suprir as necessidades das pessoas. • Os robôs e a IA intensificarão a contradição no seio do capitalismo entre o impulso dos capitalistas para aumentar a produtividade do trabalho através da “mecanização” (robôs) e a tendência subsequen- te para que a rentabilidade deste investimento para donos do capital diminua. Esta é a mais importante lei de Marx na economia política – e torna-se ainda mais relevante no mundo dos robôs. De facto, o maior obstáculo à existência de um mundo de superabundância é o próprio capital. Muito antes de chegarmos à “exceção” (se é que al-

32 https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/dec/28/uber-amazon-tech- concierge-economy 33 http://www.lrb.co.uk/v37/n05/john-lanchester/the-robôs-are-coming ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UTOPIA OU DISTOPIA | 153

guma vez lá chegaremos) e o trabalho humano ser completamente substituído, o capitalismo atravessará uma série de crises económi- cas causadas por mão humana, cada vez mais profundas. • A tecnologia robótica irá reduzir muitos dos empregos existentes (e criar alguns novos). É o que já está a acontecer. Mas o estado de ex- ceção e o mundo dos robôs ainda estão muito, muito longe. E isto porque a tecnologia da IA não está a ser direcionada pelo capital pa- ra as áreas mais produtivas, mas para as mais rentáveis (são coisas diferentes). E os custos associados a “controlar” robôs dotados de IA aumentarão. • Uma sociedade superabundante, em que o trabalho humano esteja reduzido ao mínimo e a pobreza eliminada, não acontecerá a menos que a posse dos meios de produção deixe de estar sob controlo pri- vado (oligarquia capitalista) e passe a ser comum (socialismo demo- crático). É, no fundo, a escolha entre a utopia e a distopia.

CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA

Maria Augusta Tavares*

Este artigo tem como objeto o aburguesamento do proletariado. Podia ter sido publicado há pelo menos duas décadas, quando as transformações decorrentes da última reestruturação produtiva do capital, ao invés de fomentar a luta dos trabalhadores por direitos, deixaram-nos impactados, defensivos e amedrontados em face do poder da microeletrônica, cuja aplicação aos processos produtivos e à gestão do trabalho não deixavam dúvidas sobre o desemprego. Do desemprego à generalização do trabalho precário – manual ou inte- lectual –, a sociedade caminhou a passos largos. Seria plausível que os trabalhadores estivessem a lutar, no mínimo, pela manutenção dos direi- tos conquistados. Contudo, o discurso liberal advogado pelo Estado e materializado nas relações capitalistas tem sido assumido pela maioria dos trabalhadores1. Não fosse assim, a legitimidade do capitalismo estaria em risco. Mas não é o que a realidade demonstra. Neste trabalho, tentaremos compreender por que, embora as formas de existência na sociedade capitalista sejam tão desumanas para o trabalha- dor, este, em vez de agir de forma proletária, assume – não raro – o método de luta burguês. A crise do taylorismo-fordismo acentuou de forma perversa a existên- cia e a oposição entre as classes sociais. O mundo do trabalho é vítima

* Professora reformada da Universidade Federal da Paraíba, investigadora integrada ao Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa. 1 Todos os indivíduos que, conforme o pensamento marxista, são trabalhadores produtivos, trabalhadores improdutivos e também aqueles cujo trabalho não está diretamente vinculado à dinâmica da acumulação, mas são subordinados às deter- minações do mercado. 156 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … em todos os aspectos: na intensificação do trabalho, na redução dos salários diretos e indiretos, na diminuição do emprego, nos trabalhos de tempo parcial e temporários, nas jornadas de trabalho desregulamentadas, nos trabalhos sem vínculo empregatício que se traduzem em novos mo- dos de informalidade, no desemprego e nas diferentes formas de trabalho precarizado. Entretanto, por um lado, os defensores do capital preferem interpretar esse quadro caótico como o fim da sociedade do trabalho e o consequente desaparecimento das classes sociais, e, por outro, os neo-social-democra- tas encorajam o proletariado a apoiar a realização de um projeto que configura um compromisso entre capital e trabalho, minimamente capaz de obter alguns objetivos parciais e imediatos, mas que põe em risco o movimento operário, porquanto retarda ainda mais a revolução. Para ser breve, sugerem alternativas à ordem burguesa dentro dos seus próprios limites. A esse respeito, a análise de Marx permanece válida:

O caráter peculiar da social-democracia consiste em exigir instituições democrático-republicanas, não como meio para abolir ao mesmo tem- po os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas para atenuar o seu antagonismo e convertê-lo em harmonia (Marx, 1984, p. 55).

É preocupante que os partidos social-democratas, para onde conver- gem tantas representações dos trabalhadores, estejam há décadas iludindo a si próprios e aos seus eleitores no sentido de fazer crer que são capazes de “no devido tempo” instituir uma reforma estrutural do capital, através de legislação parlamentar. Ora, não é difícil perceber que as mudanças tecnológicas não apenas intensificam a oposição capital/trabalho, como também a competição intraclasse, uma vez que a luta por emprego contribui para um individua- lismo exacerbado – perfeitamente compreensível se observado como decorrente da imediata necessidade de sobrevivência do trabalhador. Entretanto, os problemas aos quais o trabalhador é submetido obscurecem a totalidade e o conduzem a negar parte do sistema, sem, no entanto, conseguir ultrapassá-lo. As objetivações das suas relações sociais afetam a tal ponto a sua sub- jetividade, que ele não consegue vislumbrar a verdadeira saída para além do que lhe parece ser conhecido. A experiência tende a constatar que as “mudanças” vivenciadas só têm penalizado cada vez mais o trabalhador, contribuindo para que o desconhecido seja amedrontador. Logo, em lugar de agir de forma proletária, ele é conduzido a lutar para se manter en- quanto mercadoria. Em outras palavras, luta para não ser excluído da sociabilidade capitalista, realizada tão somente através da troca. Não lhe CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA | 157 ocorre que as estruturas econômicas capitalistas, embora modificadas, não modificam seu conteúdo, sua essência, seu objetivo.

O sistema de capital é um modo de controle sociometabólico incon- trolavelmente voltado para a expansão. Dada a determinação mais in- terna de sua natureza, as funções políticas e reprodutivas devem estar radicalmente separadas (gerando assim o Estado moderno como a es- trutura de alienação por excelência), exatamente como a produção e o controle devem estar radicalmente isolados (Mészáros, 2002, p. 131).

Dada essa natureza, de nada adiantam as reformas. O capitalismo só pode ser substituído por uma alternativa social metabólica igualmente universalizante, segundo o mesmo autor. No que nos interessa, aqui e agora, importa perceber essa permanente tensão entre o interesse imediato e o objetivo final, entre o momento isolado e a totalidade, a dificuldade que tem o sujeito de situar-se na sua classe social, de fazer a passagem da classe-em-si até a classe-para-si.

“Proletários de todos os países, uni-vos!”

É indiscutível a atualidade deste chamamento marxista. Trazê-lo para o século XXI implica mediações que revelem os reais significados dos novos contextos econômicos e políticos da sociedade burguesa. Antes disso, porém, vale explicar por que fazer essa discussão à luz do Mani- festo Comunista. Afinal, não seria falso dizer que se trata apenas de um programa político e é comum que tais documentos expressem um conteú- do utópico, sem possibilidade de realização. Mas esse não é o caso. No Manifesto “há três níveis constitutivos, distintos ainda que imbricados: a perspectiva de classe, a análise teórica e a proposta política” (Netto, 1998, p. XLVI). As medidas políticas propostas por Marx e Engels deri- varam de uma análise teórico-social que continha a possibilidade de realização. Embora não fossem operários, sua perspectiva sócio-histórica expressa o ponto de vista da classe operária. O Manifesto “apresenta pela primeira vez, um projeto sócio-político explícita e organicamente inte- grado a uma perspectiva de classe e nela embasado” (Idem, p. XX). Tal perspectiva promove uma ruptura:

A ruptura marx-engelsiana se opera porque, para além daquela adesão, a sua elaboração teórica reproduzia idealmente os processos constitu- tivos e constituintes da situação de classe do proletariado: a teoria cu- jos fundamentos estavam lançando era a expressão ideal do movi- mento social real – a posição de classe do proletariado que refigurava teoricamente apenas condensava as tendências estruturais da dinâmica 158 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

social. A adesão de Marx e Engels ao movimento operário, assim, era mais que uma opção política: era um imperativo da sua concepção teórica (Marx; Engels, 1998, pp. XXVII-XXVIII). Claro que a elaboração da perspectiva de classe não resulta simples- mente da sua existência histórico-concreta, mas de uma correta com- preensão das condições da produção material e da posição consciente do proletário enquanto sujeito revolucionário. Netto (1998) atenta para propostas socialistas utópicas que antecederam o Manifesto, das quais não se podia inferir o protagonismo da classe proletária. Com isso, demonstra que possibilidades não implicam necessariamente realiza- ção, que é preciso vontade política para dirigir as tendências que estão no movimento histórico. Nas suas palavras, “a passagem de uma pos- sibilidade à efetividade demanda a complexa intervenção da atividade organizada dos homens” (Idem, ibidem, p. XXXVI).

O Manifesto, ainda segundo Netto (Idem), é responsável pela elabora- ção e explicitação dessa autoconsciência e dessa consciente perspectiva de classe, constituindo-se no documento fundador do projeto comunista. Nesse sentido, sem a pretensão de que “ele responda às nossas questões, tais como a nossa contemporaneidade as formula” (Idem, ibidem, p. LXVI), cabe, inicialmente, verificar como se constitui o proletariado da atualidade, tendo em vista as profundas mudanças em curso no mundo do trabalho. O sujeito revolucionário contemporâneo não se restringe mais ao ope- rariado industrial – em permanente redução. Tal sujeito, hoje, é tão diver- sificado e complexificado, que se torna quase impossível defini-lo numa palavra ou numa única expressão. São empregados, terceirizados, subem- pregados, precarizados, desempregados, conjunto disforme constitutivo do proletariado pós-fordista, que levou Antunes (1998) a identificá-los como classe-dos-que-vivem-do-trabalho. As estratégias flexibilizadoras – alternativa burguesa à rigidez fordista – , além de promoverem o desemprego em massa, provocam o surgimento de diferentes modalidades de exploração do trabalho. Entre essas, chama atenção uma tendência à informalidade com características novas2, cujas

2 A informalidade, sob o regime de acumulação flexível, assume formas que tornam analiticamente insuficientes as teorias existentes: a) não tem mais o caráter de clandestinidade; b) não se restringe às atividades que são desdenhadas pelo capital por não serem bastante lucrativas; c) não ocupa apenas interstícios. Na verdade, o que antes era permitido agora é incentivado, estimulado, liberando, assim, empresá- rios da relação de assalariamento e, consequentemente, dos custos sociais decorren- tes do vínculo empregatício; d) tais atividades são cada vez mais integradas, mais subordinadas e mais funcionais ao capital; e) certamente, contribuem – não sabe- mos em que medida – para a expansão e a acumulação do capital (Tavares, 2004). CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA | 159 formas tentam obscurecer os nexos da produção com o processo de acumulação capitalista, movimento que é central à nossa produção aca- dêmica. Não podemos perder de vista que esse momento particular – antecedi- do pelo fordismo – é parte de uma totalidade. “Ser e continuidade são indissociáveis, nada é sem que exiba dimensões mais ou menos comple- xas de continuidade” (Lessa, 1995, p. 37). O compromisso fordista já havia transformado profundamente a condição proletária, mediante a cisão da antiga classe operária. De um lado, ficaram os operários qualifi- cados, devidamente representados e defendidos pelas organizações sindi- cais; do outro, os operários desqualificados, cuja competência foi reduzi- da a gestos elementares, que lhes permitissem sustentar o trabalho rotinei- ro das fábricas. Estes não contaram com a mesma integração que tiveram os herdeiros dos operários de ofício, beneficiando-se muito pouco das vantagens do compromisso fordista. Tal divisão foi ainda mais agravada quando combinou diferenças de sexo, idade, nacionalidade e raça. Nesse contexto em que o operário profissional só subsistiu marginal- mente, os métodos capitalistas de trabalho (parcelização e mecanização) foram introduzidos também no setor serviços e, assim, as fronteiras do proletariado foram ampliadas. Segundo Bihr,

O conjunto desse processo levou a um enfraquecimento da função so- cioeconômica do proletariado, uma vez que sua força social de agente imediato do processo de trabalho, até então baseada em sua função produtiva, foi recolocada em questão. Ainda mais que esse mesmo processo tendia a dissolver as antigas identidades profissionais: os ofícios, constitutivos de redes de socialização e de solidariedade em que se apoiavam a organização e a combatividade do conjunto da classe durante a fase anterior (Bihr, 1999, p. 52).

Porém, ainda conforme o mesmo autor, mais que pelas mudanças no processo de trabalho, a condição proletária foi afetada pela integração total do processo de consumo do proletariado à relação salarial. Com isso, “a afirmação do proletariado como produtor coletivo foi progressiva- mente eliminada pelo aumento em seu seio de uma consciência de con- sumidor individual” (Idem, ibidem, p. 52). Bihr (1999) mostra como as transformações decorrentes do fordismo promoveram uma atomização do proletariado e como essa relativa privatização do seu modo de vida, mais familiar que individual, influenciou negativamente em sua luta e em sua consciência de classe. Esse recuo para a vida privada “cria um relaxa- mento da solidariedade de classe inteiramente prejudicial à sua organiza- ção e à sua luta de classe” (Idem, ibidem, p. 53). 160 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Outro aspecto levantado por Bihr (idem), no contexto do período for- dista, diz respeito à ausência de precisão das classes, ficando cada vez mais problemático o pertencimento a uma classe em geral. Isso se deve tanto à ampliação das fronteiras do proletariado como à integração de novos agentes à classe dominante, os quais personificam o comando do capital, embora não sejam proprietários. Estes últimos constituem o que Marx definiu como “uma classe de transição, na qual os interesses das duas classes se embotam uns contra os outros, julga-se estar acima da oposição das classes em geral” (Marx, 1984, p. 58). Finalmente, o sociólogo francês destaca o aumento da dependência, tanto prática quanto ideológica, em relação ao Estado, que o período fordista significou para o proletariado, graças à forma do Estado de bem- -estar. A seu ver, todas essas transformações fizeram emergir uma nova figura hegemônica: a do operário-massa3, que substituiria a antiga figura do operário de ofício. Aparentemente, a perda de identidade de profissão e de lugar que uni- formiza esse operário-massa lhe é totalmente desfavorável, mas, na visão de Bihr, “A massificação lança assim as bases de uma nova identidade, de uma subjetividade mais radical, baseada na recusa da expropriação generalizada, pelo fordismo, em relação ao domínio de suas condições de existência” (Bihr, 1999, p. 57). Em outras palavras, reafirma que,

(...) se o operário-massa se encontra privado, pelo fordismo, de suas antigas redes de solidariedade e de suas antigas referências ideológi- cas, isso lhe permite inversamente reconstituir-se de novo, melhor adaptado à compreensão crítica e à luta contra o novo universo capi- talista (Bihr, 1999, p. 59).

Essa compreensão teria feito que a segunda geração do operário- -massa já não se prestasse “a trocar um trabalho e uma existência despro- vidos de sentido pelo simples crescimento do seu ‘poder de compra’, a privação de ser por um excedente de ter” (Bihr, 1999, p. 60). A partir dessa recusa, para o mesmo autor, entre outras motivações, nasce, em meados da década de 1960, a chamada crise do trabalho, que entendemos como resultante da crise do capital. Contrapondo-se à ofensiva proletária, as direções capitalistas promo- vem a reestruturação produtiva do capital, garantindo a este um poder quase absoluto sobre o trabalho e, com isso, compelindo o movimento operário a renunciar – ainda que momentaneamente – aos seus objetivos revolucionários.

3 O autor assinala que o termo é de A. Negri e M. Tronti. CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA | 161

Para Antunes (1998), o brutal resultado das transformações do mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo pode ser sintetizado como

(...) uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o opera- riado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o traba- lho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o tra- balho feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto, um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexifi- cação da classe trabalhadora (Antunes, 1998, pp. 41-42).

Se a cada modelo de desenvolvimento do capitalismo corresponde um tipo de proletariado, que desempenha um papel central na luta de classes, o que uniformizaria essa classe heterogênea, fragmentada e complexificada? Conforme Netto (1998), na sociedade burguesa contemporânea “o su- jeito revolucionário, tal como posto no Manifesto, requer novas apro- ximações e determinações amplas” (Netto, 1998, p. LXVI). Ele sugere um sujeito revolucionário plural. Nas suas palavras:

(...) sujeitos revolucionários, num processo real de coletivização que demandará a elaboração de novos parâmetros teóricos e analíticos, ca- pazes de sugerir as suas formas de articulação em blocos históricos onde se possa afirmar a hegemonia de um segmento apto a, nos con- frontos de classes, representar sempre o interesse do trabalho na sua totalidade (Netto, 1998, p. LXVI).

A nós parece que a favor da classe trabalhadora há a certeza de que a diminuição do trabalho vivo acabará por ser insuportável ao próprio capital. Pois, mesmo que o capital prescinda do trabalhador enquanto produtor, continuará precisando dele enquanto consumidor. Sobre isso, a atualidade do pensamento marxista assim se expressa no Manifesto:

(...) para oprimir uma classe, é necessário assegurar-lhe ao menos as condições mínimas em que possa ir arrastando a sua existência servil. O servo da gleba, sem deixar de ser servo, chegou a membro da co- muna, da mesma forma que o pequeno-burguês, sob o absolutismo feudal, chegou a grande burguês. O operário moderno, ao contrário, longe de elevar-se com o desenvolvimento da indústria, afunda-se ca- da vez mais, indo abaixo das condições de sua própria classe (Marx; Engels, 1998, p. 19).

É evidente que, hoje, grande parte da classe trabalhadora se encontra debilitada, politicamente derrotada, o que, sem dúvida, fragiliza o movi- mento operário e favorece o utopismo. Mas isso não significa que desapa- 162 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … receram as possibilidades de emancipação para o trabalho e, por conse- guinte, a simultânea libertação do conjunto da humanidade. Historica- mente as condições existem. E é a partir dessa possibilidade histórica que Marx e Engels afirmam a necessidade política de se pôr fim à proprie- dade privada, abolindo também o modo de apropriação a ela correspon- dente. Contraditoriamente, as próprias condições materiais e sociais engen- dradas pelo capitalismo criam as possibilidades para que o movimento proletário possa se desenvolver dentro, mas também contra esse perverso modo de produção, embora seja inquestionável o poder que o capital ainda tem para extrair trabalho excedente, ao mesmo tempo que atua no deslocamento das contradições, o que dificulta uma elaboração fidedigna da realidade por parte do proletariado. Suas condições de existência revelam a nocividade do sistema, mas não lhe permitem avançar no sentido de globalizar a luta de classe. Suas ideias, paradoxalmente, são as ideias dominantes. “Os mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com a sua produtividade material produzem também os princípios, as idéias, as categorias de acordo com as suas relações sociais” (Marx, 1985, p. 106). Assim, os movimentos para onde converge a classe trabalhadora tendem, quando muito, a perpetuar o modelo social-democrata, no sentido do retarda- mento da revolução. Mas, como se pode verificar, o pensamento marxista é seminal para pensarmos o mundo contemporâneo:

As idéias dominantes não são mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, das relações que precisamente tornam domi- nante uma classe, portanto as idéias do seu domínio (Marx; Engels, 1984, p. 56). A classe que dispõe dos meios para a produção material também regu- la a produção e a distribuição de suas ideias. Nesse sentido, é palpável a firme dominação da ideologia capitalista, tendo em vista transformar o trabalhador num militante da ordem do capital. No mundo contem- porâneo, onde o poder capitalista aprofundou a práxis social inteira- mente, seus defensores tentam obscurecer o real através dos mais di- versos mecanismos, até mesmo suprimindo da ciência social termos como “burguesia”, “capitalismo”, “proletariado”, etc., considerados “obsoletos” e “ideologicamente tendenciosos” (Mészáros, 1993, p. 89). Em contrapartida, são cunhados novos termos, que traduzem flexibilidade e espontaneidade – como “parceria” e “cooperação”, por exemplo –, para nominar velhas relações. Assim, tem-se a pretensão de eliminar semanticamente a divisão da sociedade em classes. Se- gundo Mészáros: “Neste mundo de convergência semântica (...) o úni- CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA | 163

co uso legítimo para os supostos ‘conceitos do século XIX’ consistiu na produção de um número infinito de livros e ‘projetos de pesquisa científica’ sobre o ‘aburguesamento’ do ‘proletariado’” (Mészáros, 1993, p. 89).

Portanto, a subordinação estrutural do trabalho ao capital não deixa dúvida quanto à contradição entre o “ser” e a “existência” do proletaria- do, cuja tarefa em direção à consciência de classe, mesmo sendo uma tendência objetiva do desenvolvimento histórico, jamais será “direta” e “espontânea”. É imperativo que os trabalhadores transponham o senso comum. Mas, para isso, precisam compreender e vislumbrar a possibili- dade de superar as determinações econômico-corporativas imputadas pelo capital. A partir dessa problematização, pretende-se entender por que é tão di- fícil o proletariado transcender o limite da imediatidade que lhe é imposto pelas ideias dominantes, para situar-se como sujeito revolucionário capaz de uma consciência global de seu ser social.

O difícil trânsito da imediatidade à genericidade para-si

O trânsito entre as formas dadas pela imediatidade do ser-social-que- -vive-do trabalho e aquelas mais identificadas com a genericidade para si é uma mediação bastante complexa. Segundo Antunes, “é central partir do universo da vida cotidiana quando se quer avançar do âmbito e das ações próprias da consciência espontânea, imediata, contingente, para as formas de consciência emancipada, autêntica, livre e universal” (1996, Idem, p. 100). Para ele, “sem a percepção e a apreensão da dimensão (ampliada) do trabalho e da vida cotidiana, o entendimento da temática da consciência de classe ‘é um verdadeiro milagre idealista’ ou o resultado de alguma forma de ‘messianismo partidário’” (Idem, p. 101). Como se pode constatar, não é possível contemplar a abrangência de tantas categorias neste artigo, que tem espaço limitado. Entretanto, para não incorrer nos equívocos acima mencionados, serão tecidas algumas considerações sobre a categoria da reprodução, dada a sua peculiaridade de, mediante experiências acumuladas, reproduzir continuamente o novo – continuidade somente possível pela mediação da consciência. A categoria da reprodução, segundo Lessa, “é concernente às formas concretas historicamente determinadas, através das quais as categorias ontológicas universais do ser social, postas a existir pelo trabalho, têm existência real a cada momento e em cada lugar” (1995, p. 8). O trabalho, ao mesmo tempo que é a ineliminável base de ser da processualidade reprodutiva, apenas nesta tem existência efetiva. Há, pois, entre essas 164 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … duas categorias “uma nítida diferença e uma insuperável conexão” (Les- sa, 1999, p. 7). Respeitada a função metodológica da mediação, cabe registrar a dis- tinção feita por Lukács (apud Lessa, 1999, p. 22) – embora em traços bastante esquemáticos –, segundo a qual o ser possui três graus, que correspondem a substancialidades ontologicamente distintas: a esfera inorgânica, a natureza biológica e o mundo dos homens. Tudo que existe está agrupado nesses três níveis. Mas essa distinção não suprime a sua unidade. O ser social não deixa de ser animal e, enquanto tal, produz e se reproduz numa constante troca com os seres inorgânicos. Em síntese, trata-se de um ser cuja unidade é a unidade de diferenças. Para conhecer esses níveis, deve-se levar em conta que o grau individual de complexi- dade exige tratamento específico para cada um. Esta abordagem remete especificamente ao ser social, mas não se po- de esquecer que ele só é pensável nessa relação com a natureza. Sua produção e sua reprodução dependem do ser orgânico e do ser inorgâni- co. Portanto, as estruturas orgânica e inorgânica são imprescindíveis à sociedade. Entretanto, a relação do ser social com a natureza não é uma relação direta, é uma relação mediatizada, que começa pelo trabalho enquanto atividade teleológica. Este ser que se realiza na vida social, sem eliminar sua base natural, vai se afastando das barreiras naturais e depen- dendo cada vez menos da natureza. Embasado em Lukács, Lessa assim se expressa sobre o desenvolvi- mento do ser social:

(...) a reprodução do ser social é o processo de elevação do mundo dos homens a patamares superiores de sociabilidade, de modo que o seu desdobramento concreto é cada vez menos influenciado por categorias oriundas das esferas ontologicamente inferiores, e cada vez mais in- tensamente determinado por categorias puramente sociais (Lessa, 1995, p. 21).

Esse processo se opera em dois níveis: o momento da individualidade e o momento da universalidade. A inter-relação e a determinação recípro- ca entre esses dois polos configuram um único complexo: o mundo dos homens. Nesse contexto, a conexão da singularidade com a universalida- de liga o presente ao passado, permitindo a generalização de tudo que foi produzido, ou seja, a continuidade social – somente possível pela media- ção da consciência. Concebida como “produto e expressão realizada da reprodução social”, a consciência é um produto histórico, plasmado no dinamismo dos fatores histórico-sociais. A consciência de uma classe, por sua vez, é, para Antunes (1998), uma complexa articulação que comporta identidades e heterogeneidades CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA | 165 entre singularidades que vivem uma situação particular. É algo em mo- vimento, com avanços e recuos. Nas suas palavras,

Neste longo, complexo, tortuoso percurso, com idas e vindas, encon- tra-se ora mais próximo da imediatidade, do seu ser-em-si-mesmo, da consciência contingente, ora mais próximo da consciência auto- -emancipadora, do seu ser-para-si-mesmo que vive como gênero, que busca a omnilateralidade, momento por certo mais difícil, mais com- plexo, da universalidade autoconstituinte (Antunes, 1998, p. 117).

Essa dimensão do ser social é fundamental para a apreensão do objeto deste artigo, na medida em que explicita o papel ativo da consciência na processualidade social, contendo, pois, a possibilidade de elevar o indiví- duo singular e o gênero humano do em-si ao para-si. Mas, como não há desenvolvimento genérico sem o desenvolvimento do indivíduo, é proce- dente retomar aquela recomendação de Antunes (1998), segundo a qual é central partir da vida cotidiana para entender a temática da consciência de classe. Pois é na vida cotidiana, na qual inúmeras questões são postas, que a consciência se origina. Uma perspectiva crítica à vida cotidiana nada tem a ver com as abor- dagens que se esgotam na faticidade. O tratamento consequente da vida cotidiana só pode ser feito a partir da perspectiva crítico-dialética, inau- gurada por Marx, cujo método não é alienável da teoria, nem indepen- dente do objeto pesquisado. Essa perspectiva de totalidade – e somente ela – permite apreender as complexas relações entre objetividade e subje- tividade, entre materialidade e consciência de classe. Tal postura teórico- -metodológica

(...) implica a construção de uma imagem rigorosa do homem como ser prático e social, produzindo-se a si mesmo através de suas objeti- vações (a práxis, de que o processo de trabalho é o método privilegia- do) e organizando suas relações com os outros homens e com a natu- reza conforme o nível de desenvolvimento pelos quais se mantém e se reproduz enquanto homem (Netto, 1994, p. 75).

Na ordem capitalista, ao contrário do mundo antigo, onde homem e sociedade eram inseparáveis e as relações apareciam como naturais, a bipolaridade da reprodução social adquire uma nítida explicitação. Medi- ante relações sociais puras, torna-se consciente a distinção indiví- duo/sociedade. Nessa organização social, as relações deixam de ser naturais para serem contratuais; deixam de ser coercitivas para serem interativas. Sem dúvida, no capitalismo as relações sociais põem o ser social no patamar mais alto da sua história. 166 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Todavia – postula Lessa –, a forma fenomênica, historicamente con- creta, que assumiu essa primeira explicitação da bipolaridade da re- produção social se refletiu “na nova estrutura de consciência dos ho- mens”, como “dualismo entre citoyen e homme (bourgeois) presente em cada membro da nova sociedade” (...) num fracionamento do ser- -indivíduo-humano entre uma existência pública e uma existência pri- vada (1995, p. 76).

Por um lado, foi conferida uma grande importância à individualidade, e, por outro, ela foi suprimida, mediante as condições econômicas oriun- das da própria natureza da mercadoria. A burguesia é a forma social que fez aparecer pela primeira vez a luta de classes em seu estado puro. A constituição de uma sociedade articulada economicamente faz a cons- ciência de classe aceder a um estado em que pode tornar-se consciente. Em face dessa possibilidade, a mesma burguesia é constrangida a tudo tentar teórica e praticamente para fazer desaparecer da consciência social o movimento do real. Estabelece-se, então, uma luta ideológica pela dissimulação do caráter de classe. Por conseguinte, embora os homens tenham a possibilidade de elevar a consciência e superar a cisão burgue- sa, são, ao contrário, movidos por interesses privados. Suas ações são orientadas pelos imperativos de expansão e acumulação que regem a propriedade privada. Sobretudo no mundo do trabalho, verifica-se uma desidentidade entre indivíduo e gênero humano. A produção generalizada de mercadorias, que por um lado oferece as possibilidades para a mul- tilateralidade humana, por outro, provoca o estranhamento do homem em relação ao gênero humano. Embora o constante crescimento das forças produtivas evidencie a possibilidade de satisfação das necessidades humanas, o caráter irracional da propriedade privada aponta na direção oposta. No marco da alienação capitalista, o trabalho que deveria ser uma propriedade interna e ativa do homem torna-se a ele exterior; o que deveria ser uma atividade espontâ- nea transforma-se em trabalho forçado. Para Mészáros,

A objetivação em condições nas quais o trabalho se torna exterior ao homem assume a forma de um poder estranho que enfrenta o homem de uma maneira hostil. Esse poder exterior, a propriedade privada, é o produto, o resultado, a conseqüência necessária, do trabalho alienado, da relação exterior entre o trabalhador e a natureza, entre o trabalhador e ele próprio. Assim, se o resultado desse tipo de objetivação é a pro- dução de um poder hostil, então o homem não pode realmente “con- templar-se num mundo por ele criado”, mas, sujeitado a um poder ex- terior e privado do sentido de sua própria atividade, ele inventa um CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA | 167

mundo irreal, submete-se a ele, e com isso restringe ainda mais a sua própria liberdade (Mészáros, 1981, p. 141).

Segundo Lessa, “Lukács distingue, no plano ontológico, entre ser e valor e, assim fazendo, encontra a gênese do valor na processualidade específica de um grau do ser: o ser social” (1995, p. 24). Essa dimensão do valor supõe que o ser social tem alternativas, que tem a possibilidade de escolha – só existente nele. Mas o fenômeno da escolha evidencia uma outra categoria também importante: a liberdade. Esta, entretanto, ante o poder hostil da propriedade privada é extremamente restringida. O acesso às objetivações existentes – resultado do trabalho – é determinado pela condição de classe. Se a subjetividade humana depende do acesso a tais objetivações, como se reflete na consciência do proletariado a conexão dos seus atos singulares com a reprodução global? Será possível, mesmo sob os imperativos da propriedade privada, distinguir entre as necessida- des humano-genéricas e os interesses particulares? Pressupondo que essa distinção desencadeia conflitos, estes tornariam mais visíveis as necessi- dades genéricas, ao ponto de elas serem conscientemente priorizadas? Por que é tão difícil a passagem do singular ao genérico? Por que embora a história ponha possibilidades, a escolha não expressa a perspectiva do proletariado? Não temos a pretensão de responder a todas essas questões. Nem mesmo sabemos se somos capazes. A única certeza é que qualquer res- posta só têm legitimidade se calcada no movimento do real. Está claro que, nessa sociedade marcada pela divisão social do trabalho e pelo trabalho assalariado, o que deveria ser a criação do homem, na verdade o escraviza. O trabalhador, na sociedade capitalista, não tem a decisão de produzir nem pode apropriar-se do produto de seu trabalho. Disso decorre que o trabalho, ao invés de permitir ao homem que, em se objetivando, construa uma rica subjetividade, mutila-o, aliena-o. Por conseguinte, são os mecanismos de alienação que vão responder pela não realização do sentido revolucionário da classe operária. Na ordem burguesa, todas as formas de objetividade e as suas corres- pondentes subjetividades explicitam-se na relação mercantil. A partir dessa premissa, “o operário só pode tomar consciência do seu ser social se tomar consciência de si próprio como mercadoria” (Lukács, 1989, p. 188). Para isso, é preciso ir além da realidade imediata e dada; é neces- sário compreender que o seu trabalho não produz apenas objetos, produz sobretudo capital; produz o valor que continua comandando o seu traba- lho, enquanto perdurar a ordem capitalista. Mas, dado o fetiche teórico e prático, em que fatos isolados e cristali- zados são tratados como verdades absolutas, os antagonismos de classe são enfaticamente simplificados, impedindo o posicionamento consciente 168 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … do proletário como sujeito revolucionário. Certamente não é uma tarefa fácil superar a subalternidade na ordem burguesa, embora não haja dúvi- da quanto à possibilidade histórica. “A atualidade do projeto comunista resulta (...) de sua concordância com certas tendências e potencialidades objetivas que o capitalismo desenvolve contraditoriamente a si mesmo” (Bihr, 1999, p. 280). Todavia, essas possibilidades desenvolvidas pelo próprio capitalismo não implicam necessariamente realização. Para Netto, “A liberdade de escolha na indicação de objetivos políticos está na razão direta do conhecimento dos processos em curso; quanto mais conhece os processos em que está inserido, mais livre é o sujeito para circunscrever os fins a que visa” (Netto, 1998, p. XLVIII). Mas,

(...) nem a sociedade nem o seu processo de evolução se apresentam como unidade à consciência do homem, nomeadamente à consciência do homem nascido no seio da reificação capitalista das relações como num meio natural; são-lhe dados, pelo contrário, como uma multipli- cidade de coisas e de forças independentes umas das outras (Lukács, 1989, p. 85-86).

Isso não acontece por acaso. As consequências práticas de uma elabo- ração teórica equivocada estão inscritas nos interesses capitalistas de classe. Para Lukács, “a ‘falsa consciência’ da burguesia, através da qual ela se engana a si própria [e tenta enganar aos outros] está, pelo menos, de acordo com a sua situação de classe, apesar de todas as contradições dialécticas e da sua falsidade objectiva” (Lukács, 1989, p. 84). Desse modo, ela vai tentando se manter enquanto classe dominante pelo maior tempo possível. O proletariado, por sua vez, tem a sua situação agravada, porque além de uma consciência contaminada pelas contradições burgue- sas, a situação econômica o impele a necessidades de ações também contraditórias. Sob tais condições, o caminho correto não é percebido, e a luta de classes – quando ocorre – tende a perpetuar a hegemonia do modelo social-democrata. A esse respeito, o Manifesto é atualíssimo: “O executivo do Estado moderno não é mais do que um comitê para admi- nistrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa” (Marx; Engels, 1998, p. 7). Convém lembrar que O Manifesto não garante a vitória do proletaria- do. Ao invés da emancipação pode ocorrer a barbárie. Todavia, as condi- ções objetivas demonstram que “a existência da burguesia já não é mais compatível com a sociedade” (Marx; Engels, 1998, p. 19). E a vitória revolucionária do proletariado será diferente de outras conquistas ocorri- das no passado: será a vitória da imensa maioria no interesse da imensa maioria. Marx e Engels formulam assim essa diferença: CONSCIÊNCIA OPERÁRIA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA | 169

Todas as classes que, no passado, conquistaram o poder procuraram conservar a situação alcançada submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários só podem apoderar-se das forças produtivas sociais abolindo o modo de apropriação a elas cor- respondente e, com ele, todo modo de apropriação até hoje existente (1998, p. 18).

Essa diferença expressa a superioridade do proletariado sobre a bur- guesia: para a sua consciência de classe, teoria e práxis são coincidentes. A perspectiva do proletariado não compartimenta a sociedade, não separa a luta econômica da luta política. Ao contrário, considera a sociedade como um todo coerente e, a partir daí, age de forma central, modificando a realidade de forma totalizante. Para Lukács, “como a História coloca o proletariado perante a tarefa de uma transformação consciente da socie- dade na sua consciência de classe, teria de surgir a contradição dialéctica entre o interesse imediato e o objectivo final, entre o momento isolado e a totalidade” (Lukács, 1998, p. 86). Isso implica integrar-se na visão de conjunto do processo, priorizando o objetivo final, única forma de cami- nhar concreta e conscientemente para além do capital. Lukács já se perguntava sobre a possibilidade objetiva de a consciên- cia de classe realizar-se efetivamente. Para ele, a questão real e atual para toda a classe é “a transformação interna do proletariado, do seu movi- mento para se elevar ao nível objectivo da sua própria missão histórica, crise ideológica cuja solução tornará enfim possível a solução prática da crise econômica mundial” (Idem, ibidem, p. 95). Para finalizar, saímos do âmbito das perguntas e esboçamos uma con- vicção: a crise econômica mundial só terá solução quando o proletariado, suprimindo-se, instaurar a sociedade sem classes.

Referências

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A ESQUERDA MARXISTA E AS QUESTÕES DO REGIME POLÍTICO. MARX E A DITADURA DO PROLETARIADO*

António Simões do Paço**

O conceito de ditadura do proletariado, após a experiência dos regi- mes alegadamente nele fundados ao longo do século XX, como a URSS ou a China pós 1949, é como um fantasma que assombra a herança teóri- ca de Marx. Neste texto investigamos, a partir dos escritos do próprio Karl Marx e dos seus críticos coevos ou contemporâneos, o significado deste conceito, a sua génese e a sua relação com os acontecimentos históricos do período em que foi formulado. A partir do momento em que a Rússia saída da revolução de 1917 se declarou como uma “ditadura do proletariado”, o conceito passou a ser discutido por todos os sectores que se reclamavam do socialismo ou do comunismo, de Bernstein a Kautsky, de Martov a Lenine, de Trotsky a Rosa Luxemburgo. As questões essenciais em discussão incidiam sobre o conteúdo desta “ditadura do proletariado”: teria um significado apenas sociológico, em que ditadura era sinónimo de exercício do poder por uma classe sobre as outras (a ditadura da burguesia era a dominação da burguesia, indepen- dentemente das formas políticas que assumisse), ou um conteúdo mais específico, designando a forma de exercer o poder político: pelo conjunto da classe ou por um directório determinado (como em Blanqui), uma vanguarda cuja legitimidade derivava do triunfo na acção?

* Texto fixado com base numa comunicação oral ao II Congresso Internacional Karl Marx (24, 25 e 26 de Outubro de 2013), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. ** Investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH da UNL. 172 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Num artigo de 1906, de polémica com Plekhanov, que acusava a frac- ção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia de ‘blanquismo’1, Rosa Luxemburgo aborda estas questões. Dizia Rosa que

“se os camaradas bolcheviques falam hoje de ditadura do proletariado, eles nunca lhe deram o velho significado blanquista (…). Pelo contrá- rio, afirmaram que a presente revolução triunfará quando o proletaria- do – toda a classe revolucionária – se apoderar da máquina do Estado. O proletariado, como elemento mais revolucionário, talvez assuma o papel de liquidador do antigo regime ‘tomando o poder para si mes- mo’ a fim de derrotar a contra-revolução e impedir que a revolução seja desviada por uma burguesia que é reaccionária na sua própria na- tureza. Nenhuma revolução pode ter sucesso senão pela ditadura de uma classe, e todos os sinais indicam que o proletariado pode tornar- -se este liquidador no momento presente”.

Porém, Rosa prossegue dizendo que “nenhum social-democrata tem a ilusão de que o proletariado se poderia manter no poder”. Isto porque continuava a ser uma minoria no Império Russo. E “a conquista do socia- lismo por uma minoria está absolutamente excluída, já que a própria ideia de socialismo exclui a dominação de uma minoria”. Assim, o proleta- riado, uma vez assegurado o triunfo da revolução contra a reacção cza- rista, acabaria por entregar o poder a uma Constituinte, isto é “aos parti- dos democráticos camponeses e pequeno-burgueses”, que nela teriam a maioria. “Podemos lamentar este facto, mas não podemos alterá-lo”, conclui Rosa. Mais tarde, no livro A Revolução Russa, escrito em 19182, retomará estas questões de forma muito crítica para os bolcheviques no poder:

“A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os mem- bros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade. Liberdade é sempre e exclusivamente liberdade para quem pensa de forma diferente (…).

E prossegue:

“A vida pública dos países com liberdade limitada é tão pobre, tão mi- serável, tão rígida, tão infrutífera, precisamente porque, através da ex- clusão da democracia, corta as fontes vivas de toda a riqueza espiritual

1 Rosa Luxemburgo, ‘Blanquismo e social-democracia’, in Czerwony Sztandar, N.º 86, Junho de 1906. In Marxists’ Internet Archive. 2 Rosa Luxemburgo, The Russian Revolution, Workers Age Publishers (New York), © 1940. In Marxists’ Internet Archive. A ESQUERDA MARXISTA E AS QUESTÕES DO REGIME POLÍTICO | 173

e progresso. (…) Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de im- prensa e de reunião, sem liberdade de opinião, a vida morre em todas as instituições públicas, torna-se uma mera aparência de vida, em que só a burocracia permanece como o elemento activo. A vida pública adormece gradualmente, algumas dezenas de líderes partidários de energia inesgotável e experiência ilimitada dirigem e governam. Entre eles, na realidade, apenas uma dúzia de cabeças mais destacadas diri- gem e uma elite da classe trabalhadora é convidada de vez em quando a reuniões onde irão aplaudir os discursos dos líderes e aprovar por unanimidade resoluções propostas – no fundo, uma questão de cliques – uma ditadura, certamente, não a ditadura do proletariado, mas ape- nas a ditadura de um punhado de políticos, ou seja uma ditadura no sentido burguês, no sentido do regime dos jacobinos (…).”

Palavras proféticas. Porém, Rosa não condena os bolcheviques por terem feito o que po- diam e sabiam. Adverte-os, no entanto, contra transformarem aquilo que era produto da necessidade em receita programática:

“Pela sua determinação revolucionária, a sua força exemplar na acção e a sua fidelidade inquebrantável ao socialismo internacional, contri- buíram o que poderiam ter contribuído em condições tão diabolica- mente difíceis. O perigo só começa quando fazem da necessidade vir- tude e pretendem congelar num sistema teórico completo todas as tácticas que lhes foram impostas por essas circunstâncias fatais, e que- rem recomendá-las ao proletariado internacional como um modelo de táctica socialista. Quando se apresentam desta forma e escondem o seu verdadeiro e inquestionável serviço histórico sob os passos em fal- so forçados pela necessidade, prestam um mau serviço ao socialismo internacional, a causa por que lutaram e sofreram, já que pretendem colocar no seu património como novas descobertas todas as distorções forçadas na Rússia por necessidade e compulsão – em última análise, apenas subprodutos da falência do socialismo internacional na presen- te guerra mundial.”

Estas advertências não resolviam a questão essencial: conquistado o poder, defendido à custa de tantas vidas, de tanto sangue vertido, deve- riam os revolucionários cedê-lo aos seus inimigos se essa fosse a vontade temporária de um povo exausto? E se o não fizessem, não tenderia um regime de excepção, um estado de sítio prolongado, a tornar-se a regra, excluindo a democracia, soviética ou de qualquer outro tipo? Isso são perguntas para muitos artigos e muitos congressos. Mas para já obriga-nos a ir às origens do conceito de ditadura do proletariado, para avaliar se há nele, e nos que dele assumiram a paternidade, Marx e En- 174 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … gels, uma teorização que permita concluir que os regimes que surgiram na URSS e depois na Europa de Leste e na China nos anos 30 e 40 do século passado se filiam de alguma forma nesse conceito.

Marx, Engels e a ditadura do proletariado

A expressão “ditadura de classe do proletariado” apareceu pela pri- meira vez durante a revolução de 1848. Anteriormente, Marx e Engels só falavam de “proletariado organizado como classe dominante”. No Mani- festo Comunista (1848), Marx e Engels referem-se à “conquista do poder político pelo proletariado”, mas não à ditadura do proletariado. Marx e Engels falam aí de “erguer o proletariado à posição de classe dominante”. E para quê? “Para vencer a batalha da democracia.” Em 1 de Janeiro de 1852, Joseph Weydemeyer publicou um artigo in- titulado “Ditadura do Proletariado” no jornal Turn-Zeitung, de Nova Iorque, dirigido à emigração alemã. Nesse mesmo ano, Karl Marx escre- veu-lhe dizendo:

“Quanto a mim, não reclamo o crédito pela descoberta da existência de classes na sociedade moderna, nem a luta entre elas. Antes de mim, historiadores burgueses já tinham exposto a evolução histórica dessa luta de classes e economistas burgueses tinham descrito a sua anato- mia económica. O meu próprio contributo foi: 1) demonstrar que a existência de classes está ligada a determinadas fases históricas do de- senvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz neces- sariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta ditadura em si re- presenta apenas uma transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes.”

O artigo de Weydemayer “é provavelmente o único artigo com um tí- tulo destes até pelo menos 1918”, escreveu Hal Draper3. Nos vinte anos seguintes, o termo “ditadura do proletariado” não aparece em nenhum texto, público ou privado, de Marx ou Engels. Nem de mais ninguém4. Depois de 1848, Marx e Engels tiveram a sorte de presenciar e reflec- tir sobre uma outra revolução: a da Comuna de Paris de 1871. Se quiser- mos saber que conteúdo davam Marx e Engels ao conceito de ditadura do proletariado, talvez possamos confiar nas palavras deste último em 1891:

3 Draper, Hal, Marx and the Dictatorship of the Proletariat. From New Politics, Vol. 1, No. 4, Summer 1962, pp. 93 ff. Marxists’ Internet Archive (MIA). 4 Draper, ibidem. A ESQUERDA MARXISTA E AS QUESTÕES DO REGIME POLÍTICO | 175

“Querem saber o que é a ditadura do proletariado? Olhem para a Comuna de Paris. Aí tendes a ditadura do proletariado.”5 Como viram então Marx e Engels a Comuna de Paris, ou seja, a dita- dura do proletariado? Para Marx, era “essencialmente um governo da classe trabalhadora, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, sob a qual trabalhar para a emancipação económica do trabalho”6. Em A Guerra Civil em França, Marx acentua o carácter profundamente democrático da Comu- na, o sufrágio universal, o facto de todos os funcionários e juízes serem eleitos e revogáveis, a supressão do exército permanente, o fim de todas as ‘investiduras hierárquicas’, a retirada de funções políticas à polícia, a democracia municipal a partir de baixo substituindo o Estado centraliza- do, etc. Marx resumiu-o dizendo que a Comuna “deu à República a base de instituições verdadeiramente democráticas (...) as medidas especiais só podiam indicar a tendência para um governo do povo pelo povo”. Em 1872, em A Questão da Habitação, em polémica com o proudho- niano Mülberger, Engels refere-se também à questão da ditadura do proletariado:

“O amigo Mülberger, portanto, defende os seguintes pontos: ‘Nós’ não prosseguimos nenhuma ‘política de classe’ e não lutamos pela ‘dominação de classe’. Mas o Partido Social-Democrata Alemão, precisamente porque é um partido da classe operária, segue inevita- velmente uma ‘política de classe’, a política da classe trabalhadora. Uma vez que cada partido político procura ganhar o domínio do Esta- do, também o Partido Social-Democrata Alemão luta necessariamente pelo seu domínio, o da classe trabalhadora, portanto, uma ‘dominação de classe’. Além disso, todos os verdadeiros partidos proletários, dos cartistas ingleses em diante, defenderam uma política de classe, a or- ganização do proletariado como um partido político independente, como condição primária da sua luta, e a ditadura do proletariado como o objectivo imediato da luta. Ao declarar que isto é ‘um absurdo’, Mülberger coloca-se de fora do movimento proletário e no campo do socialismo pequeno-burguês”7.

5 Friedrich Engels, Introdução à edição inglesa de 1891 de A Guerra Civil em Fran- ça, de Karl Marx. 6 Karl Marx, The Civil War in France, English Edition of 1871, Zodiac & Brian Baggins, MIA. 7 Engels, Frederick, The Housing Question. Published (and re-published) as a pam- phlet. Reprinted by the Co-operative Publishing Society of Foreign Workers. MIA. 176 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Como bem assinala Hal Draper8, o que se nota aqui é que a ‘ditadura do proletariado’ “não tem nenhum significado especial a não ser a tomada do poder do Estado pelo movimento dos trabalhadores socialistas. Apare- ce aqui como um de três ou quatro termos usados indiscriminadamente: ‘dominação de classe’, ‘domínio da classe trabalhadora’, etc”. Também nos é dito que cada partido verdadeiramente proletário o defende, in- cluindo até os cartistas – algo que não pode fazer sentido para quem acredite que há alguma teoria especial da ditadura do proletariado além da ideia básica da necessidade e do objectivo de conquistar o poder político pela classe trabalhadora. Ao mesmo tempo que não há uma teoria da ditadura do proletariado, que é identificada com o governo da classe trabalhadora, sendo que o exemplo apontado da forma de exercer esse poder é o da Comuna de Paris, onde são realçados os aspectos democráticos, de uma democracia pela base, tão pouco é descurado o carácter conflitual que assume a luta da classe trabalhadora pelo poder. Apenas um ano mais tarde, num artigo sobre a autoridade publicado no Almanacco republicano, em Dezembro de 1873, defende Engels:

Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que existe, é o acto pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio de espingardas, baionetas e canhões, meios autoritários por excelência; e o partido vitorioso, se não quer ter lutado em vão, deve continuar a dominar pelo terror que as suas armas inspiram aos reac- cionários. Poderia a Comuna de Paris ter-se mantido um único dia, se não tivesse usado a autoridade do povo em armas contra a burguesia? Não deveríamos, pelo contrário, criticá-la por ter feito demasiado pouco uso da sua autoridade?9

Termino com a última referência de Marx à ditadura do proletariado. É feita no opúsculo “Glosas marginais ao Programa do Partido Operário Alemão” (mais conhecido como Crítica dos Programas Socialistas de Gotha e de Erfurt). Data de 1875, oito anos antes da sua morte:

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período de transformação revolucionária daquela nesta. Ao que corresponde um período de transição política em que o Estado não pode ser outra coisa que não a ditadura revolucionária do proletariado10.

8 Draper, ob. cit. 9 Engels, Friedrich, “Sobre a autoridade”, in Almanacco republicano, Dezembro de 1873. MIA. 10 Marx, Karl; Engels, Friedrich, Crítica dos Programas Socialistas de Gotha e de Erfurt, Textos Exemplares, Porto, 1974, p. 30. A ESQUERDA MARXISTA E AS QUESTÕES DO REGIME POLÍTICO | 177

Existem mais algumas citações de Marx e de Engels sobre a ditadura do proletariado. Nenhuma delas acrescenta algo mais de substancial às aqui evocadas. O conceito surgiu associado a duas importantes revolu- ções: as de 1848 e de 1871. Voltará ao centro dos debates nas próximas grandes revoluções, as russas de 1905 e 1917. Mas aí os protagonistas serão já outros. Parafraseando o título de um livro de Garcia Márquez, a história da ‘di- tadura do proletariado’ no século XX foi uma incrível e por vezes muito triste história. Mas Marx não foi certamente “a sua avó desalmada”.

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HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA

Camilo Domingues*

Este trabalho compreende uma revisão bibliográfica sobre o romance As Vinhas da Ira, do escritor norte-americano John Steinbeck, e a discus- são ao redor da obra, de seu escritor e a partir dos fatos históricos retrata- dos, bem como a partir de suas abordagens literárias. Partindo da história e da literatura, pretende-se analisar não apenas os âmbitos específicos dessas duas áreas como, principalmente, a relação entre elas na concep- ção e elaboração do romance.

A crise de 1929, a seca dos anos 1930, o e a “Era das mi- grações de massa”

O clima da região centro-sul das Grandes Planícies norte-americanas é caracterizado historicamente por grandes flutuações de temperatura num mesmo dia e, entre o verão e o inverno, por chuvas esparsas e irregulares, e por ocorrência de ventos de velocidade até duas vezes superior àqueles mais a leste (Stephens, 1937). Tais flutuações e alterações no regime de chuvas e na ocorrência dos ventos não seguem um padrão cíclico ou claramente observável meteorologicamente, podendo ocorrer longos períodos de seca (até mais de uma década) dentro dos quais ocorre um ano com chuvas acima da média, assim como o contrário. Normalmente, as secas na região são formadas pela combinação de três fenômenos climáticos, concomitantes ou não: a fase La Niña da Oscilação Sul-El Niño (Osen), responsável por diminuir a temperatura do Pacífico Norte, na Costa Oeste dos Estados Unidos; o aumento da temperatura da superfície oceânica no Atlântico subtropical; a perda de

* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sob orientação do Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho. 180 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … força de uma corrente de jato oriunda do golfo do México que, em condi- ções normais, penetra o continente e produz chuvas nas Grandes Planícies (Cordova; Porter, 2015; Cook; Miller; Seager, 2009). Estima-se que tal padrão climático de “produção natural de seca” na região Centro-Sul das Grandes Planícies exista ao menos desde o século XVI. De fato, os perío- dos longos de seca na região são observáveis quando o fenômeno La Niña é mais intenso e prolongado, deixando as águas do Pacífico mais frias. Especialmente na grande seca dos anos 1930, somou-se a isso o enfraquecimento e mudança de direção da corrente de jato oriunda do golfo do México, produzindo chuva apenas na região mais ao sul das Grandes Planícies. No entanto, os climatologistas Benjamin Cook, Ron Miller e Richard Seager (2009) concluíram que os fenômenos ambientais por si só, quais- quer que fossem as alterações nas temperaturas oceânicas do período, não eram suficientes para produzir uma seca da mesma dimensão da que atingiu as Grandes Planícies naquela década. Apenas incluindo duas outras variáveis antropogênicas em suas projeções, os pesquisadores conseguiram reprojetar a extensão e a severidade da seca tal qual a que ocorreu: a devastação da cobertura vegetal e o lançamento de aerossóis de poeira na atmosfera. Para eles, o povoamento acelerado de regiões áridas e a posterior exploração agrícola contribuíram como elementos amplifi- cadores da grande seca da década de 1930. A severidade da seca dos anos 1930 ainda traria consigo gigantescas tempestades de poeira. A seca prolongada e a exposição do solo despro- tegido à ação dos fortes ventos da região mobilizava grandes quantidades de sedimentos, criando nuvens de poeira, que viriam a se tornar grandes tempestades (Cordova; Porter, 2015). O fenômeno também não era desconhecido pelos agricultores locais, tendo sido registrado desde a segunda metade do século XIX (Cunfer, 2008); no entanto, a gravidade daquele era uma novidade. As regiões mais atingidas pelas tempestades de poeira, o epicentro da chamada Dust Bowl (Bacia de Poeira), seriam a panhandle (frigideira) de Oklahoma1, a região Noroeste do Texas, Nor- deste do Novo México, Sudeste do Colorado e Sudoeste do . A região total cobria mais de 40 milhões de hectares, numa faixa de 800 km norte-sul e 480 km leste-oeste, de acordo com o Soil Conservation Service. Os períodos mais severos foram os anos de 1935 (com 40 tempestades) e 1938 (com 61).2

1 Estreita faixa territorial no extremo-oeste de Oklahoma, que compreende três distritos: Cimarron, Texas e Beaver. A região é a mais árida do estado e foi a que mais sofreu com a seca da década de 1930, estando localizada no epicentro do Dust Bowl. 2 Exceto menção em contrário, os dados deste parágrafo foram extraídos de Donald Worster, Dust Bowl: the southern plains in the thirties, 2004. HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 181

Mas quais teriam sido as formas e os motivos através dos quais se de- senvolveu aquele padrão de povoamento e de exploração agrícola na região das Grandes Planícies que comprometeu sobremaneira a cobertura vegetal original do solo? O período conhecido como “Era das migrações de massa”, da segunda metade do século XIX ao início do século XX (1850-1913, do fim da Guerra Civil norte-americana à Primeira Guerra Mundial), está entre aqueles de maior influxo migratório para os Estados Unidos. Durante o período, estima-se que 30 milhões de imigrantes desembarcaram no país (Abramitzky et al., 2012), o que, em 1910, representava 38% da mão de obra não escrava nos Estados Unidos (Parker, 2014). Se, no início do século XIX, os imigrantes provinham especialmente do Norte e Centro- -Oeste da Europa, com destaque para alemães, ingleses e irlandeses, nas migrações de massa da virada do século, além desses, grandes con- tingentes de imigrantes do Sul e do Leste europeu, como italianos, polo- neses e eslavos, chegariam ao país. As causas históricas, econômicas e sociais da migração europeia para os Estados Unidos na “Era de migrações de massa” podem ser divididas em dois grandes grupos principais: os fatores norte-americanos de “atra- ção” e os fatores europeus de “expulsão”. Entre os fatores de atração, destacavam-se o barateamento dos meios de transporte intercontinental tanto na Europa, como nos Estados Unidos, com a implementação de novas ferrovias e do transporte transoceânico a vapor. Além desses, o baixo custo da terra nos Estados Unidos e a crescente necessidade de mão de obra de sua indústria alavancaram a nova onda de imigração. Do outro lado, os fatores de expulsão dos imigrantes da Europa abrangeram um amplo espectro, desde a superpopulação, escassez de terras, as grandes fomes, pobreza e catástofres ambientais até às perseguições políticas e religiosas (Glynn, 2011). No Estado de Oklahoma, a “Era das migrações de massa” coincidiu com o processo de abertura legal (e ilegal) de terras do Território Indíge- na a partir de 1889 (com a ocupação das Unassigned Lands).3 Ao lado dos imigrantes históricos, britânicos e alemães, grandes contingentes dos “novos migrantes”, como judeus e eslavos, ingressaram no estado. Entre os imigrantes em Oklahoma, a maioria era de origem alemã, seguidos por

3 Em 8 de fevereiro de 1887, o Ato de Loteamento Geral (Dawes Act) alterou o sistema de propriedade comum de terras do Território Indígena em Oklahoma, dividindo-as em pequenas propriedades individuais. Feita a divisão e repartição das terras, o Governo contou com um excedente não atribuído, as Unassigned Lands, que foram abertas para ocupação por populações brancas e afro-americanas recém- -libertas através de corridas, sorteios e leilões. 182 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … russos e irlandeses, além de austríacos, ingleses, canadenses, italianos, mexicanos e escoceses. Algumas décadas após o início da “Era das migrações de massa”, os novos agricultores, americanos e estrangeiros, passaram a influenciar a pauta das discussões políticas e econômicas dos Estados Unidos. No início do século XX, muitos agricultores ressentiam-se da escassez de crédito agrícola, especialmente para a região das Grandes Planícies, o que travava a expansão do setor, e passaram a reclamar reformas no sistema financeiro norte-americano que garantissem o financiamento do campo. O Congresso dos EUA passaria, então, a ceder a pressões políticas de grandes e pequenos agricultores no intuito de também reformar, centrali- zar e estimular os mecanismos de crédito agrícola. Em apenas um ano, através do Federal Farm Loan Act (1916), o Go- verno norte-americano injetou 30 milhões de dólares na agricultura e agroindústria do país. A expansão sem precedentes da acreagem cultivada e a consolidação do corn belt no Centro-Oeste norte-americano durante a década de 1910 passariam a ser conhecidas como The Great Plow-up (em tradução literal, “A Grande Lavra”). Diversas regiões semiáridas e áridas das Grandes Planícies rapidamente foram aradas, devastando a cobertura vegetal original, e tornaram-se áreas de plantio de grãos. Ao lado da imigração estrangeira e da ampliação do mercado de crédi- to agrícola nos Estados Unidos durante as duas primeiras décadas do século XX, destaca-se uma terceira e importante variável que concorreu para a Great Plow-up: o período excepcionalmente chuvoso entre os anos de 1905 e 1928 em regiões das Grandes Planícies, o Early Twentieth Century Pluvial. O fenômeno teria sido responsável pelo período de maior umidade nos Estados Unidos nos últimos 500 anos, particular- mente no Norte e no Centro-Oeste. O período excepcionalmente chuvoso, interrompido apenas por breves períodos de seca em 1910 e 1914, asseve- raram aos agricultores a possibilidade de contraírem e renovarem em- préstimos, aumentarem as áreas de cultivo e adquirirem equipamentos, uma vez que tanto os céus quanto os bancos e o Governo federal pare- ciam fornecer-lhes segurança e os insumos básicos para a lavoura: terra, chuva e financiamento. Por fim, entre e por sobre as condições climáticas, políticas e econômicas favoráveis naquele período, havia importantes propulsores filosóficos e religiosos que formavam o arcabouço moral da sociedade norte-americana de então e impulsionavam a ocupação e a exploração agrícola da fronteira oeste do território norte-americano: o ideal agrário e democrático jeffersoniano, o transcendentalismo místico do ex-pastor e filósofo Ralph Waldo Emerson (1803-1882), a democracia de massas do poeta Walt Whitman (1819-1892) e o instrumentalismo pragmático do HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 183 filósofo e psicólogo William James (1842-1910) e do pedagogo John Dewey (1859-1952). Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da nação americana e prin- cipal elaborador da Declaração da Independência de 1776, foi o seu terceiro presidente, entre 1801 e 1809. Apesar de filho de um grande proprietário de terras da Virgínia, Jefferson defendia que a pequena propriedade rural e o pequeno agricultor, o yeoman farmer, deveriam formar o cerne do Estado republicano e democrático. Ao yeoman farmer deveria ser garantida a inviolabilidade dos direitos individuais, pois apenas o livre domínio e exploração da sua propriedade permitiriam a sua autossuficiência, o autogoverno e a responsabilidade individual, caracte- rísticas fundamentais na constituição de um Estado democrático. A apologia do homem comum, das suas individualidade e liberdade, da sua relação “ontológica” com a natureza e da constituição da unidade humana apenas nessa relação também estavam na base do pensamento de Emerson e Whitman. A alma transcendental de Emerson era a sublimação do seu humanismo individualista, assim como a democracia de massa de Whitman era o agregado dos homens individuais (o “povo” indiferencia- do). A ação humana privada, voltada a satisfazer as necessidades indivi- duais sem – em tese – obliterar a satisfação alheia, constituía por seu lado o fundamento do pragmatismo filosófico de James, o elo bastante para justificar a vida humana em sociedade. Mais explicitamente em Emerson, ex-pastor evangélico, a ética religiosa protestante forneceria os elementos fundadores de seu pensamento filosófico. A fé guiaria o homem contra as injustiças e o autoritarismo, através da crença nos instintos do homem comum, na inevitabilidade do progresso social e na democracia (Carpen- ter, 1941, p. 318). Tem-se, portanto, as quatro variáveis socioambientais que estariam pre- sentes no processo de ocupação e exploração agrícola da fronteira oeste norte-americana na virada do século XIX ao XX: ambientalmente, um período excepcional de chuvas; demograficamente, a “Era das migrações de massa” e a forte campanha de migração interna no próprio país; política e economicamente, os incentivos financeiros oferecidos pelo Governo federal e a vaga no mercado europeu surgida com a Primeira Guerra Mun- dial; ética e moralmente, um arcabouço filosófico que chancelava e, até mesmo, naturalizava a ocupação e exploração da região, como “direito manifesto” do indivíduo livre norte-americano, do “povo escolhido”. Ao final do período entre a segunda metade do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos tinham recebido cerca de 30 milhões de imigrantes, que, somados às centenas de milhares de migrantes internos, ocuparam as regiões Norte e Centro-Oeste do país (sem contar a Costa Oeste). No final do período, os Estados Unidos já 184 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … não contavam com tamanho excedente de terras que pudesse absorver a população e a mão de obra excedente de seu próprio país, nem mesmo da Europa. Concomitantemente, boa parte dos novos agricultores, com a ajuda do Governo federal, contraíram dívidas e hipotecaram suas pro- priedades, numa escalada que levaria o endividamento agrícola a saltar de US$3,3 bilhões para US$7,9 bilhões entre 1910 e 1920 (Gregg, 2015). A intensificação da atividade agrícola gerou enormes excedentes que só poderiam ser absorvidos por uma Europa com o setor primário paralisado por conta da Primeira Guerra Mundial. A mesma intensificação da ativi- dade agrícola em regiões de ecossistema frágil, como as regiões áridas e semiáridas do Centro-Oeste do país, expôs não apenas o solo, mas popu- lações inteiras a intempéries climáticas que poderiam se tornar verdadei- ras catástrofes socioambientais. Os anos 1930 surpreenderiam o relativo entusiasmo social e econômi- co norte-americano do período anterior, especialmente dos agricultores das Grandes Planícies. A primeira grande novidade, ou primeiro grande choque econômico sobre a região, cairia ainda no final da década de 1910, com o fim da Primeira Guerra Mundial. O grande aumento da área de plantio dos Estados Unidos entre 1910 e 1920, de quase 20%, levou à produção de um excedente agrícola que não encontrou mais a Europa em guerra para ser escoado (Gregg, 2015, p. 153). Como se não bastasse, o período de chuvas acima da média até 1928 foi sucedido pela maior seca da história dos Estados Unidos, que durou praticamente toda a década de 1930 e atingiu todo o Norte e Centro-Oeste do país. A intensificação do fenômeno La Niña e o aquecimento das temperaturas oceânicas do Atlântico concorreram para a ocorrência da seca, que foi intensificada devido à superexploração agrícola do período anterior. Logo, a região Centro-Sul das Grandes Planícies passaria a ser palco de imensas tempestades de poeira, o Dust Bowl, que trouxe ainda mais prejuízos e devastações à região. A reversão das condições climáti- cas antes favoráveis ao plantio fez que milhares de agricultores perdes- sem suas plantações e sua principal fonte de renda e subsistência. Por último, o crack da Bolsa de Nova York, em 1929, inaugurou uma experiência de crise econômica nunca antes vivida em tal dimensão pela sociedade norte-americana. A maior crise histórica mundial de superpro- dução, que teria o seu epicentro na economia daquele país e atingiria todo o planeta, estancou mercados, causou desemprego, fome e miséria.4 Os

4 De acordo com Roger Hudson (2015), devido à crise de 1929, havia 34 milhões de norte-americanos sem renda alguma em 1932 e, apenas naquele ano, 273 000 famí- lias foram expulsas de suas terras por execução de dívidas e hipotecas. Entre 1928 e 1932, o PIB dos Estados Unidos passaria de US$104 bilhões para US$41 bilhões (Hudson, 2015). HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 185 agricultores das Grandes Planícies, devastados duplamente pela crise econômica e socioambiental, encontraram-se endividados, desprovidos de recursos e da própria terra,5 muitos deles optando por migrar para centros urbanos, para outros estados norte-americanos ou simplesmente por esperar por auxílio governamental. Expulsos pela crise econômica e pela seca, entre 300 000 e 440 000 habitantes de Oklahoma deixaram o estado nos anos 1930, a maioria em direção à Costa Oeste. Os migrantes vinham das mais diversas regiões do estado, não apenas do Oeste árido. Além de agricultores provenientes do Centro-Oeste e das regiões mais afetadas pelo Dust Bowl, partiam de Oklahoma trabalhadores do setor industrial e de serviços, particularmente do leste do estado, fugindo da crise econômica e atraídos pela propaganda e promessas de grandes oportunidades na Califórnia. Normalmente, os migrantes de Oklahoma reuniam todos os seus últi- mos pertences em uma velha caminhonete, as jalopies, e rumavam em direção ao Oeste através da Highway 66. Cerca de 38% dos migrantes de Oklahoma partiam para as cidades californianas para buscarem empregos na indústria ou no setor de serviços. Uma parte do restante, principalmente agricultores, partiam para os promissores vales férteis, especialmente o San Joaquin Valley, na região central da Califórnia (Gregory, 2004). Com os salários extremamente baixos, e tendo que se mover frequen- temente de uma lavoura a outra em busca de novos períodos de colheitas, os migrantes estabeleciam-se em acampamentos improvisados à beira de estradas e nos arredores das grandes propriedades. Estes estabelecimentos eram chamados pelos californianos de squatter camps, “acampamentos precários” ou “acampamentos ilegais”, ou shanty towns, “favelas”, e caracterizavam-se pela superpopulação, pela precariedade das instalações e pela falta de esgotamento sanitário. Entre os norte-americanos em geral também seriam conhecidos como Hoovervilles. E os seus habitantes seriam conhecidos como , numa menção ao estado de origem de uma parcela deles, Oklahoma. As precárias condições de trabalho e de vida dos trabalhadores rurais nos vales da Califórnia levaram à realização de greves, como a greve nos campos de algodão, em 1933, organizada pela CAIWU – Cannery and Agricultural Workers Industrial Union, e à organização de sindicatos rurais, como a UCAPAWA – United Cannery, Agricultural, Packing, and

5 Na verdade, grande parte dos pequenos agricultores do estado de Oklahoma, especialmente da margem leste do estado, eram arrendatários e não possuíam terras próprias. Tendo em vista a inalienabilidade das terras do antigo Território Indígena, grande parte dos imigrantes brancos e afro-americanos recém-libertos trabalhariam em regime de arrendamento. De acordo com Encyclopedia of Oklahoma History and Culture, 2016. 186 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Allied Workers of America, formada em 1937 (ambos os sindicatos eram ligados ao Partido Comunista dos Estados Unidos). A reação dos grandes agricultores seria imediata. Em 1934, seria formada a Associated Farmers, associação de grandes proprietários de terra com o objetivo de conter o processo de sindicalização dos trabalhadores rurais, fosse através da repressão direta no campo e do controle da imprensa, fosse através de lobby político. Por outro lado, a crise socioambiental dos anos 1930 nos Estados Uni- dos, principalmente a partir da eleição do presidente Franklin Roosevelt, em 1932, levou a uma ainda maior intervenção federal na economia em geral, e na agricultura em particular: o New Deal. As medidas visavam oferecer apoio técnico e financeiro direto, além de subsídios diversos aos agricultores das regiões mais afetadas pela seca e pelo Dust Bowl. Para os trabalhadores empobrecidos, as agências federais ofereciam empregos em obras públicas, assistência médica e financeira, além de moradia. Dessa maneira, a crise econômica de 1929 aproximaria as histórias dos estados de Oklahoma e da Califórnia, mas cada um desempenhando papéis diferentes, talvez opostos. A severidade da crise econômica associada à seca e ao Dust Bowl acentuou a vulnerabilidade econômica de Oklahoma e fez a toda a região Centro-Sul das Grandes Planícies padecer duplamente nos anos 1930. Centenas de milhares de trabalhadores – agrícolas ou urbanos – migraram do campo para a cidade ou para outros estados, espe- cialmente aqueles da Costa Leste, de onde chegavam notícias alvissareiras. A Califórnia seria o destino predileto daqueles que deixaram o estado, assim como de mais de um milhão de migrantes de outros estados norte- -americanos. No entanto, ao chegarem ao Golden State, os migrantes deparavam-se com condições frustrantes de vida e trabalho. Antes da chegada dos Okies aos vales férteis da Califórnia, eram me- xicanos e filipinos que ali trabalhavam, em condições semelhantes ou ainda mais degradantes, sendo muitas vezes obrigados a retornar ao seu país de origem após o período de colheita. Mas havia elementos novos que concorreriam para que os norte-americanos em geral se sensibilizas- sem massivamente e diferenciadamente com a situação dos Okies. Em primeiro lugar, a Grande Depressão atingiu toda a sociedade norte- -americana, em especial a classe média e as camadas proletarizadas, que se descobriram severamente empobrecidas, tanto no campo, como nas cidades. Em segundo lugar, aquela seria a primeira grande crise econômi- ca em escala mundial que teria ampla cobertura da imprensa (diferente da crise de 1870, por exemplo), o que favoreceria a difusão de relatos e imagens que poderiam não apenas sensibilizar, mas identificar o público com as mais diversas e difíceis situações enfrentadas por trabalhadores no país e no mundo (Cunfer, 2008). Ao lado da imprensa, havia a nascente HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 187 cultura de massa, que já era responsável por disseminar um grande espec- tro de obras literárias, da literatura romântica mais prosaica, aos novos e temidos romances proletários. Em terceiro e último lugar, estava em risco a moral norte-americana. Desta vez, não eram índios, latinos ou asiáticos que estavam sendo dizi- mados ou superexplorados e obrigados a conviver com condições degra- dantes de vida. Ao contrário, eram americanos brancos, “o povo escolhi- do”, em busca de nada mais do que o prometido sonho promovido pelo ideal jeffersoniano: the pursuit of happiness, a “busca da felicidade”, na forma da pequena propriedade privada. O perigo que corria o yeoman farmer simbolizou, por derivação, o perigo que corria a autonomia e a liberdade do indivíduo norte-americano, a democracia e a própria repú- blica nele fundamentadas. A tradição e os princípios éticos, filosóficos e religiosos daquela nação estavam postos em cheque, o que fez grande parte da sociedade levantar-se na defesa de seus alicerces. Uma parcela da classe média e operária terminaria por se aproximar de uma compreensão ainda mais radical das contradições da sociedade norte-americana, chegando inclusive a se aproximar de correntes ideoló- gicas e políticas socialistas, como o Partido Comunista. Os anos 1930, desse modo, também seriam marcados por uma onda contestatória no movimento operário e na cultura norte-americana, vindo à tona não apenas greves e novas organizações sindicais, como intelectuais, escrito- res, compositores, cantores, pintores, fotógrafos e cineastas6 que expres- sariam das mais diversas maneiras e a partir dos mais variados e enreda- dos pontos de vista, entre a tradição e a contestação, as contradições daquele momento histórico.

John Steinbeck7

John Steinbeck (1902-1968) nasceu em Salinas, distrito de Monterey, nos arredores de um dos vales férteis da região central da Califórnia (Salinas Valley). Steinbeck passou a infância e a juventude naquela pequena cidade, além de ter vivido grande parte da vida no estado da

6 Merecem destaque os trabalhos acadêmicos do advogado Carey McWilliams e do economista Paul Taylor, assim como trabalhos artísticos da fotógrafa , do pintor Alexandre Hogue, do cineasta Parel Lorentz, do cantor e composi- tor Woody Guthrie, além do escritor John Steinbeck. 7 Exceto menção em contrário, as informações biográficas sobre John Steinbeck estão de acordo com Cyrus Ernesto Zirakzadeh, John Steinbeck on the Political Capacities of Everyday Folk: Moms, Reds, and Ma Joad’s Revolt, 2004; e Susan Shillinglaw, John Steinbeck, American Writer, 2016. 188 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Califórnia. Não seria um aluno destacado durante o colegial e, em 1919, seguindo o seu desejo precoce de tornar-se escritor, entrou para a Univer- sidade de Stanford para estudar Literatura Inglesa, de onde saiu em 1925, sem se formar (Demott, 2006). Durante o período de colégio e faculdade, Steinbeck costumava passar as férias trabalhando nas fazendas da com- panhia de produção de açúcar Spreckles, junto aos trabalhadores migran- tes mexicanos, filipinos, japoneses e chineses, o que lhe forneceu um primeiro contato com as condições de vida e trabalho daqueles que seri- am retratados em seus futuros romances. Após a saída de Stanford, meio a alguns trabalhos temporários e em- preendimentos fracassados, Steinbeck iniciaria a sua carreira literária, contando inicialmente com o suporte financeiro de sua família e, em seguida, de sua primeira esposa, Carol Henning. Os dois encontraram-se em 1928, casaram-se em 1930, ficando juntos até 1943 (Laws, 2013). Henning encarnava uma atitude vigorosa e rebelde, sendo mais próxima de movimentos esquerdistas e mesmo socialistas, além de defensora das causas feminista e sindicalista. Teria sido ela quem apresentou Steinbeck a simpatizantes e militantes socialistas, bem como o teria levado a fre- quentar grupos de estudo e círculos de discussão política nos quais ele “alternadamente se enfadava ou se esgueirava pelos cantos” (Zirakzadeh, 2004, p. 603). Na Califórnia, em 1930, Steinbeck também conheceria o biólogo ma- rinho, ecologista e filósofo Edward Flanders Ricketts (1897-1948), de quem seria grande amigo e que sobre ele exerceria grande influência. De acordo com Shillinglaw (2016), Ricketts – em importância só comparada à sua primeira esposa, Carol Henning – seria o mentor, alterego e “alma gêmea” intelectual de Steinbeck (Shillinglaw, 2016). Seria Ricketts quem reforçaria e sedimentaria o humanismo ecológico de Steinbeck. E este de tal maneira assimilaria o pensamento de seu amigo biólogo que lhe dedicaria personagens em diversas de suas obras, como Jim Casy, em As Vinhas da Ira. Nos Pacific Biological Laboratories, fundados por Ricketts, em Mon- terey, reunia-se um grupo de intelectuais, artistas e cientistas para discutir os mais diversos assuntos e teorias. Nos registros que deixou dessas reuniões em suas correspondências, Steinbeck revelaria que, graças a elas, pôde refletir e desenvolver as suas teorias sociais do “homem-grupo”, group-man theory, assim como a sua “teoria da falange”, phalanx theory, baseadas em suas discussões sobre a relação entre a biologia e o com- portamento humano (numa compreensão particular do darwinismo apli- cado à sociedade), sobre a psicologia moderna (principalmente a psica- nálise de Carl Jung) e sobre a nova “antropologia cultural”, a partir da qual elaboraria o seu pensamento sobre a diversidade normativa e sobre a moral não-teleológica. HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 189

A partir de 1935, Steinbeck, sob a iniciativa de Carol Henning, pas- saria a frequentar os encontros do John Reed Club, órgão do Partido Comunista, na cidade costeira de Carmel (Shillinglaw, 2016). Lá, Steinbeck conheceria e ficaria amigo de Francis Whitaker (1906-1999), artista ferreiro e líder do clube local, organizador do Cannery and Agri- cultural Workers’ Industrial Union (CAIWU), que o apresentaria a diversos outros ativistas e militantes envolvidos na organização sindical (Benson; Loftis, 1980, p. 47). Steinbeck passaria, portanto, a escrever artigos e aproximar-se de revistas e associações simpáticas ao Partido Comunista, na medida em que fazia parte daquele círculo local de ativistas sociais, sindicalistas e militantes políticos identificados com ideias socialistas. Em 1936, Steinbeck iniciaria a sua “trilogia do trabalhador”, com a publicação do romance Batalha Incerta. O romance trataria de uma greve de trabalhadores numa plantação de maçãs, na qual o autor apresentou os trabalhadores enredados e mesmo manipulados tanto pelos grandes produtores, quanto pelo sindicato e militantes. Em sequência, Steinbeck publicaria Ratos e Homens (1937), um romance sobre a amizade entre dois trabalhadores migrantes, assim como sobre as suas dificuldades e desventuras na Califórnia. Por último, publicaria As Vinhas da Ira (1939), a história de uma família de migrantes de Oklahoma que parte à procura de trabalho e melhores condições de vida na Califórnia. As Vinhas da Ira seria lançado em 14 de abril de 1939. A obra seria um best-seller instantâneo, vendendo 428 900 exemplares apenas no ano de seu lançamento e permanecendo o livro mais vendido durante todo o ano de 1940. Naquele ano, Steinbeck receberia o Prêmio Pulitzer de Literatura e o romance seria filmado por John Ford (1894-1973), tornan- do-se também um sucesso de bilheteria. Apesar de ter se aproximado e assimilado fragmentos do pensamento po- lítico tanto dos socialistas quantos dos reformistas do New Deal, Steinbeck registrava também em sua obra fragmentos de outras correntes do pensa- mento, como a psicologia moderna, a antropologia cultural, o humanismo biológico de Ricketts, além de certa nostalgia do pioneirismo norte-ame- ricano. Ele tentava, na verdade, reunir as suas diversas referências soci- ais, culturais e políticas no que vislumbrava ser o “novo mundo”, que se infiltraria silenciosamente sob o mundo contemporâneo através da arte de seus poetas, num jogo de “ordem e desordem”. Em 1950, após o divórcio de Carol Henning (1943) e breve casamento com a cantora Gwyndolyn Conger (1917-1975), casou-se novamente com a atriz Elaine Scott (1914-2003), com quem permaneceria até o fim de sua vida. Em 1952, lançou o seu romance autobiográfico, , no qual retrataria não apenas a sua vida e a história de Salinas Valley, 190 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … como a traição e a conturbada relação com a sua segunda esposa, Gwyn- dolyn Conger. Para Steinbeck, esta seria a sua grande obra literária e, para os críticos, dividiria com As Vinhas da Ira o maior êxito da carreira do escritor. Em 1961, publicou a sua última obra de ficção, The Winter of Our Discontent, na qual já estavam patentes a sua desilusão com o “povo americano”, para ele, uma sociedade cada vez mais gananciosa e moral- mente doente. Ironicamente, após ter recebido o Prêmio Nobel de Litera- tura, em 1962, Steinbeck não mais se dedicaria ao romance de ficção. A notícia de sua premiação veio acompanhada por severas críticas de norte- -americanos e mesmo de membros da academia sueca à fragilidade e inconsistência do conjunto de sua obra, o que teria desiludido ainda mais o já descontente John Steinbeck.8 Não obstante a sua combinação bastante original de elementos filosó- ficos, morais e políticos contraditórios em sua obra, Steinbeck preservaria uma sensibilidade e uma sagacidade crítica capaz de identificar a maneira como a transformação econômica da sociedade norte-americana envolvia também, e dialeticamente, a sua transformação social e moral. De modo que, com a diversidade de experiências e influências às quais se expôs – e foi exposto –, John Steinbeck revela não apenas aparentes contradições, mas uma rica e complexa dinâmica entre o escritor e o seu tempo. Os acontecimentos históricos passados e contemporâneos, bem como as diversas formulações teóricas sobre aqueles, interagiram com a sua indi- vidualidade de uma maneira que o olhar retrospectivo pode – e deve – apenas indicar possibilidades de articulação e influência, uma vez que o oceano dialético da relação entre o indivíduo e a história é tal que não permite asseverar a necessidade de ocorrência de um elemento ou fator em consequência direta de outro.

Na trilha para As Vinhas da Ira: The Harvest Gypsies e a enchente de Visalia

Segundo Robert DeMott (1990), entre os anos de 1936, quando tomou conhecimento dos “refugiados do Dust Bowl”, e 1939, quando publicou o seu romance As Vinhas da Ira, John Steinbeck estaria envolvido no “problema dos migrantes” (Demott, 1990, p. 3). Para DeMott, naquele período, o escritor viveria três etapas literárias que precederiam a redação do romance: a elaboração de uma série de artigos publicados em outubro de 1936 no jornal San Francisco News sobre a situação dos migrantes nos vales agrícolas da Califórnia; um romance inacabado, The Oklahomans,

8 Em 1966, ainda publicaria o seu “livro de estrada”, Travel with Charley in Search of America, e o seu último livro de artigos e resenhas, . HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 191 escrito entre 1937 e 1938; e uma sátira contra os grandes proprietários de terra de Salinas, L’Affaire Lettuceberg, escrita entre fevereiro e maio de 1938 e destruída poucos dias após a sua finalização. Em agosto de 1936, sob convite de George West, Steinbeck começou a trabalhar numa série de artigos sobre os trabalhadores migrantes (Schultz; Li, 2005). Ele realizou diversas viagens pelos campos de mi- grantes nos vales centrais da Califórnia e foi apresentado a Thomas Collins (1897-1961), que trabalhava para a Resettlement Administration. Thomas Collins foi o primeiro administrador do Arvin Camp, posterior- mente Weedpatch Camp, um dos dois primeiros acampamentos federais do New Deal construídos na Califórnia, que seria retratado por Steinbeck em As Vinhas da Ira (Nealand, 2008). Steinbeck viajaria outras vezes com Collins para os acampamentos e teve acesso às suas anotações e relatórios, que forneceriam informações para os seus artigos e os ele- mentos não ficcionais de seu futuro romance.9 Collins seria retratado em As Vinhas da Ira como o personagem Jim Rawley, administrador do Weedpatch Camp e, ao lado de Carol Henning, o romance também seria dedicado para ele, who lived it, “que o viveu”. Entre 5 e 12 de outubro de 1936, dois meses depois de sua primeira viagem aos campos de migrantes e do seu primeiro encontro com Collins, Steinbeck publicaria sete artigos no San Francisco News, sob o título de The Harvest Gypsies, sobre a situação dos agricultores migrantes. Em The Harvest Gypsies, estão expostos os elementos históricos, políticos, filosóficos e morais que John Steinbeck de seguida trataria em seu mais conhecido romance, de modo que a sua série de artigos para o San Fran- cisco News pode ser compreendida como o principal ponto de partida para a concepção e elaboração de As Vinhas da Ira. Todo o conteúdo histórico e teórico de The Harvest Gypsies estaria presente, na forma de ficção ou na forma de comentários críticos, em seu romance: o contexto social, histórico e econômico dos migrantes; a diferenciação entre a condição social – e racial – dos imigrantes estrangeiros e a dos migrantes americanos; a defesa dos valores democráticos e populares do “antigo modo de vida americano”, baseado na pequena propriedade e no pequeno agricultor; a descrição e comparação entre os campos de migrantes im- provisados (Hoovervilles), aqueles mantidos pelos grandes proprietários e aqueles construídos pelo Governo federal através da Resettlement Admi-

9 Através dos relatórios de Collins, Steinbeck teria acesso a documentações e fontes sobre os Okies e conheceria os seus costumes e até mesmo a sua maneira de falar (Starr, 1996, p. 253). Outra importante fonte de informação para Steinbeck seriam os registros de Sanora Babb (1907-2005), funcionária da Farm Security Administra- tion, que trabalhava com Collins. Babb também publicaria um romance ambientado nos campos de migrantes, Whose names are unknown (2004). 192 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … nistration; e, por último, a dependência histórica da grande produção agrícola da Califórnia do trabalho sazonal e migrante, e os métodos de controle e coerção da mão de obra desenvolvidos pelos grandes proprietá- rios. Obviamente, não apenas as contribuições históricas e críticas de The Harvest Gypsies, como também as suas limitações, seriam transplantadas para o romance. Ao contextualizar a situação dos Okies, tratando-os como “refugiados do Dust Bowl e da seca” e como um grupo de america- nos distinto socialmente dos imigrantes estrangeiros e anteriormente habituados à pequena produção agrícola e à democracia popular, Steinbeck realiza um “recorte literário” que deixa de lado diversos antecedentes his- tóricos e políticos importantes para a compreensão da onda migratória para a Califórnia nos anos 1930. Em primeiro lugar, é importante lembrar que aqueles agricultores do Centro-Oeste norte-americano não eram pequenos proprietários de terra alguma, vivendo na sua maioria como arrendatários ou meeiros que se deslocavam continuamente de propriedade em propriedade sempre que venciam os seus curtos contratos de arrendamento. Em segundo lugar, os agricultores perfaziam apenas uma parcela dos trabalhadores oriundos do Centro-Oeste no período, de um terço a metade dos migrantes, sendo a outra parte deles trabalhadores industriais e do setor de serviços que se dirigiam às cidades e não ao campo. Em terceiro lugar, os agricultores migrantes do Centro-Oeste convi- viam com as intempéries climáticas da região há muito tempo, incluindo longos períodos de seca e tempestades de poeira. Apesar destas terem sido mais prolongadas e intensas nos anos 1930, não poderiam ser trata- das como principais causadoras daquela onda migratória, especialmente porque a região mais afetada pelo Dust Bowl, a panhandle de Oklahoma, era pouco povoada e contribuiu pouco para a migração. Além disso, a maioria dos migrantes viriam do Leste de Oklahoma, região menos afetada por aqueles fenômenos. O principal deflagrador da nova onda migratória era a grave crise econômica, que atingia severamente tanto o campo quanto a cidade. Caso fosse um acontecimento ligado apenas ao campo, como a seca e as tempestades de poeira, a maioria maciça dos migrantes seria proveniente da população rural, o que não ocorreu. Em quarto lugar, o idealizado “antigo – e peculiar – modo de vida americano” baseado na pequena propriedade privada foi, ele mesmo, um dos principais elementos econômicos e políticos deflagradores tanto da crise econômica, quanto socioambiental na década de 1930. A democra- cia popular e agrária de Thomas Jefferson, sedimentada na Declaração da Independência dos Estados Unidos, seria a grande propulsora e legitima- dora da expansão territorial, populacional e econômica do país rumo ao HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 193 oeste. A compra da Louisiana em 1803, a Guerra Mexicano-Americana de 1846, o povoamento acelerado e desordenado daquelas regiões e a exploração mineral e agrícola intensiva, apesar de ter tido resultados diferentes em Oklahoma e na Califórnia, seriam alguns dos motivos históricos para as crises acumuladas nos anos 1930 e até mesmo para a amplificação da seca e do Dust Bowl. Steinbeck compreendia, a partir de um olhar nostálgico idealizado, a pequena propriedade privada apenas como solução, não como causa. Em quinto lugar, a diferenciação social entre os imigrantes estrangei- ros e os migrantes americanos não encontra respaldo histórico que não seja o preconceito fortemente enraizado na sociedade norte-americana e, em especial, na californiana. Quando Steinbeck chegou aos campos de migrantes nos vales centrais da Califórnia, havia tanto estrangeiros quan- to nativos e, de modo algum, já se havia dado a substituição dos primei- ros pelos últimos (Cunningham, 2002). Os imigrantes estrangeiros ruma- vam à Califórnia em busca de trabalho e melhores condições de vida, assim como os Okies. Apesar das questões abordadas acima, o fato foi que, desde que publi- cara The Harvest Gypsies, Steinbeck havia pensado em dar continuidade àquele trabalho. Inicialmente, pretendeu expandir a série de artigos e dar- -lhe o formato de um livro documentário. Após nova e longa viagem aos campos de migrantes em outubro de 1937, o escritor definiu que escreve- ria não um documentário, mas uma ficção a partir de The Harvest Gypsies, e que ela se intitularia The Oklahomans (Starr, 1996). Steinbeck dedicar- -se-ia ao romance do outono de 1937 até a primavera de 1938. Nesse período, segundo David Peeler (2008), reuniu material para o seu roman- ce sobre os agricultores migrantes e, embora nunca tivesse acompanhado os Okies na viagem rumo à Califórnia, ele havia trabalhado com alguns deles nos campos e realizado entrevistas, além de dispor dos registros de Thomas Collins (Peeler, 2008, p. 161-162). Em meados de fevereiro de 1938, Steinbeck partiria para uma nova viagem de dez dias, novamente com Collins, para a cidade de Visalia, região de San Joaquin Valley (Schultz; Li, 2005). Além dos problemas recorrentes dos trabalhadores migrantes, Visalia estava devastada por fortes temporais, e Steinbeck visitaria as áreas inundadas, onde “quatro mil famílias alagadas em suas barracas estavam morrendo de fome” (Steinbeck apud Bloom, 2007, p. 151). Segundo Shillinglaw (2014), a visita a Visalia e a visão ainda mais catastrófica que teve da situação dos migrantes determinariam uma nova virada de rumo nos planos de seu romance. Deixou de lado The Oklahomans ainda em fevereiro de 1938 e, até maio daquele ano, escreveria uma sátira ácida, feroz e burlesca sobre a greve nas plantações de alface em Salinas, sua cidade natal, que contou 194 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … com dura repressão por parte dos agentes dos fazendeiros, lançando mão de táticas antigreve, como perseguição a lideranças e vigilância (Shillin- glaw, 2014). O livro intitular-se-ia L’Affaire Lettuceberg. No entanto, Carol Henning seria uma das únicas pessoas a ler o seu manuscrito, achan- do-o difícil, vulgar e tedioso (Starr, 1996). Assim, Steinbeck o destruiria poucos dias depois de concluído. A profunda impressão que as enchentes de Visalia lhe deixou faria Steinbeck abdicar da concepção original de The Oklahomans e, infeliz com o resultado do L’Affaire Lettuceberg, passaria a dedicar-se a um novo romance. Entre 15 e 25 de maio de 1938, seria concebido As Vinhas da Ira (Demott, 1990). Tendo em vista as tentativas anteriores de retratar a saga e a dura condição de vida dos trabalhadores migrantes, Steinbeck já tinha à sua disposição bastante material para o futuro romance. Em apenas cem dias de trabalho, entre o final de maio e o final de outubro de 1938, Steinbeck escreveria o volumoso livro.

Aspectos literários de As Vinhas da Ira

As Vinhas da Ira retrata a história de uma família de Oklahoma que parte para o oeste dos Estados Unidos em busca de melhores condições de vida e de trabalho. A trama passa-se durante os anos 1930 e o seu autor apresenta ao leitor as possíveis relações entre a história daquela família (os Joads) e as conjunturas social, histórica, econômica e am- biental daquele momento, focando principalmente nas grandes secas dos anos 1930 dos EUA e no Dust Bowl, no processo de mecanização tecno- lógica da agricultura no país, na avançada financeirização da economia agrícola na Costa Oeste e nos efeitos da grande crise econômica do final da década de 1920. A trama histórica apresenta as mais diversas situações – individuais, familiares, coletivas, conjunturais, econômicas, governamentais, am- bientais –, que se entrelaçam diante dos olhos do leitor, ora formando, ora desatando nós complexos, dos quais não se pode entrar ou sair de maneira apenas superficial. Estruturalmente, As Vinhas da Ira é contado em trinta capítulos, nem todos eles narrativos. Por vezes, o autor vale-se de alguns capítulos para fazer digressões, apresentar situações que ainda estão por vir, esboçar cenários históricos para a familiarização do leitor, ou tecer comentários sobre as situações que narra, deixando à mostra alguns traços de seu perfil político e ideológico. Os capítulos não ficcionais são denominados “intercapítulos”. Como a própria designação sugere, há no romance uma alternância entre interca- pítulos não narrativos (discursivos) e capítulos narrativos. De acordo com Cyrus Zirakzadeh (2004), num total de trinta, os capítulos narrativos são HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 195 os de número par, exceto o 12 e o 14, e incluindo o 13, e os intercapítulos são os de número ímpar, exceto o 13, e incluindo o 12 e o 14 (Zirakzadeh, 2004, p. 19). Os intercapítulos precedem os capítulos narrativos e, nor- malmente, oferecem uma dimensão geral, sinóptica, do que será narrado a seguir. Apesar de compartilharem o mesmo tema, os dois tipos de capítulos são independentes entre si, podendo ser lidos individualmente sem prejuízo para a compreensão tanto do texto dissertativo, quanto do narrativo. No entanto, Steinbeck deixa “referências cruzadas”, ou “ves- tígios” temáticos semelhantes em ambos, de maneira a promover sua integração estética, o encontro entre os dois estilos em uma obra única (Lisca, 1957). A sucessão entre intercapítulos e capítulos também proporciona uma estrutura rítmica para o romance baseada na alternância entre os tempos distintos da dissertação e da narração/descrição. Tal forma contrapontual atribuiria a As Vinhas da Ira a característica de um romance sinfônico. De fato, durante o período de concepção e redação do romance, Steinbeck dividia o tempo da escrita ouvindo sinfonias e sonatas de Beethoven, Tchaikóvski e Stravínski (Demott, 1990). Numa carta a Merle Armitage em 17 de fevereiro de 1939, enquanto ainda concebia o romance, Stein- beck revelaria o seu método de composição: “Eu tenho trabalhado em uma técnica musical (…) e tenho tentado usar as formas e a matemática da música ao invés daquelas da prosa (…). Em sua composição, movi- mento, tom e abrangência, [o romance] é sinfônico” (Steinbeck apud Demott, 1990, p. 14. Tradução nossa). Paralelamente, a estrutura contrapontual do romance também teria su- as fontes na própria literatura. Segundo Peter Lisca (1957), a concepção e os materiais que dispunha para elaboração de As Vinhas da Ira coloca- vam Steinbeck diante da mesma questão estrutural posta a Liev Tolstói (1828-1910) ao escrever Guerra e Paz (1869), tendo como material factual as guerras napoleônicas. Tolstói teria resolvido o seu desafio literário dispondo narrativas ficcionais de dramas familiares ao lado de “intercapítulos” filosóficos. Do mesmo modo, o escritor norte-americano John dos Passos (1896-1970), ao conceber e elaborar a sua “trilogia americana” (1930-1936), teria lançado mão de expedientes literários semelhantes, alternando a narração ficcional até mesmo com notícias de jornal. Numa dimensão mais abrangente de composição, As Vinhas da Ira também pode ser dividida em três grandes blocos de ação baseados em seus três sucessivos movimentos ficcionais: a seca, a viagem e a Califór- nia. Segundo Peter Lisca (1957), a seção da “seca” iria do início do romance até o capítulo 10, seguida pela “viagem”, até o capítulo 18 e, daí até o final, a última seção, “Califórnia”. Para Lisca, estes três grandes 196 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … movimentos atuariam como verdadeiros personagens na trama, tendo em vista as suas ações e repercussões na jornada da família Joad: a crueldade da seca e a força das tempestades de poeira, a extensão interminável e angustiante da Highway 66 e as falsas promessas da Califórnia (Lisca, 1957, pp. 301-302). Para o autor, a composição ternária do romance teria raízes na estrutura do Antigo Testamento (o próprio Steinbeck teria dito à época que estava trabalhando em três romances interrelacionados), de modo que à “seca” corresponderia a opressão do povo hebreu no Egito, à “viagem”, o êxodo, e à Califórnia corresponderia a terra prometida, Canaã. Lisca (1957) ainda sustenta que a estrutura bíblica de As Vinhas da Ira se estende para além da sua forma, possuindo o romance diversas passa- gens simbólicas e alusivas ao texto bíblico. Por exemplo, o próprio título do romance seria extraído da canção The Battle Hymn of the Republic que, por sua vez, fazia referência ao Apocalipse e à justiça divina; assim como o povo hebreu, a Mãe Joad (Ma Joad) referia-se aos seus como “Nós somos o povo” (Steinbeck, 2012, p. 339); o personagem de Rosa- sharn – o seu próprio nome remete a Cristo, a rosa de Sharon, o lírio dos vales (Cântico dos Cânticos, 2:1), que oferece o seu próprio corpo, assim como Rosasharn oferece o seu seio – dá a luz a um bebê morto que, colocado num caixote de maçãs por Tio John (Uncle John), é deixado no leito de um riacho para que pudesse “dizer para eles o que aconteceu” (Steinbeck, 2012, 548), assim como Moisés foi deixado no Nilo para que pudesse sobreviver e salvar os seus. Finalmente, o maior símbolo cristão em As Vinhas da Ira seria o per- sonagem Jim Casy, que, além de trazer as mesmas iniciais de Jesus Cristo, possuía na família Joad doze discípulos (Trodd, 2008), havia estado “nas colinas, cismando, tal qual Jesus devia ter cismado quando se meteu deserto adentro para encontrar uma solução para as suas aflições” (Steinbeck, 2012, p. 95-96) e, tornando-se sindicalista e emboscado por capangas, diria “Vocês não sabem o que estão fazendo” (Steinbeck, 2012, p. 420), as mesmas últimas palavras de Jesus Cristo crucificado (Lucas, 23:34). No entanto, como diz Zoe Trodd (2008), Steinbeck valia-se do simbo- lismo bíblico e cristão não apenas por sua eficácia comunicativa, uma vez que permitira uma familiaridade maior com o leitor, como também se valia do seu reverso (Trodd, 2008). A aproximação do leitor através do simbolismo bíblico era posta ao lado da ironia e da crítica religiosa. Para Trodd, tal movimento dava forma a algo além do simbolismo, o que denominou de “ação simbólica”, pois propulsionaria o leitor à reflexão através do pareamento entre as analogias bíblicas e a sua contestação (Trodd, 2008, p. 25). Assim, Jim Casy, antigo pastor e encarnação do próprio Jesus Cristo, era acometido por pensamentos pecaminosos e HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 197 entregava-se ao prazer com as beatas de sua igreja, e ainda blasfemava, questionando a Sua existência. Ao colocar em questão a existência divina, negá-la e descobrir a di- vindidade na humanidade, Casy não apenas se afastava dos princípios bíblicos elementares que também trazia consigo, como apresentava – também simbolicamente – os princípios seculares da sociedade norte- -americana. Para Frederic Carpenter (1941), Jim Casy “traduz a filosofia americana em palavras” (Carpenter, 1941, p. 316). Se Jim Casy encarna Jesus Cristo, ele também encarna Ralph Waldo Emerson, que, assim como ele, largou o ministério religioso em nome de ideias não ortodoxas. Para Emerson, o homem e a natureza deviam formar uma unidade, o Ser Superior (The Oversoul), que abrigava a divindade, baseava-se no amor entre os seres humanos e era o cerne de seu misticismo transcendental. Assim, Casy larga o ministério religioso para exercer um amor terreno, e o Espírito Santo tomaria forma no próprio espírito humano. Na passagem do amor à humanidade em geral, ao amor ao “povo” em particular, Casy também passaria de Emerson a Walt Whitman. O personagem gosta do povo “a ponto de rebentar”. O povo, enquanto grupo social geral, era um agregado natural para Whitman, praticante de uma democracia instintiva e distinta do socialismo abstrato e “imposto de cima para baixo” (Carpen- ter, 1941, p. 319). Seria este comunitarismo instintivo, baseado no agre- gado natural – e místico – de indivíduos, que também estaria presente nas últimas palavras de Tom Joad, ao despedir-se de sua mãe, decidido a deixar definitivamente a família e a unir-se espiritualmente à humanidade em geral. Os diversos elementos literários articulados por Steinbeck em As Vi- nhas da Ira constituiriam em seu conjunto uma resposta para a histórica e polêmica dicotomia no campo da estética entre o “conteúdo” e a “forma” da obra de arte. Segundo Zoe Trodd (2008), As Vinhas da Ira era um exemplar característico da literatura de protesto e, como tal, solucionava aquela dicotomia através de uma “política da forma”, que reunia e entre- laçava os elementos do conteúdo e da forma, fazendo que a existência de um não significasse o ofuscamento da outra (Trodd, 2008). Dessa maneira, as variáveis estéticas do romance de Steinbeck esta- riam plenamente integradas ao seu conteúdo, fosse ele de ordem subjeti- va, social, política ou filosófica. Para Trodd (2008), a política da forma fazia-se presente no romance através da empatia (a promoção da identifi- cação ativa do leitor com a trama e seus personagens, capaz de gerar não simplesmente a simpatia, como também o compromisso); o poder de choque (a capacidade de “acordar” o leitor para as situações representa- das e de levá-lo à ação); a ação simbólica (a passagem do simbolismo imediato à abertura do romance à interpretação do leitor, através da 198 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … dualidade, da sucessão entre aproximação e distanciamento); e da evoca- ção da memória popular (a comunicação do romance com a tradição literária e histórica).

Considerações finais

Este trabalho pretendeu abordar a interação entre os fatos históricos ao redor de John Steinbeck e a sua atividade artístico-literária. O indíviduo, a arte e a história articularam-se de tal forma em sua vida, que a separa- ção dessas dimensões só pode ser feita correndo-se o risco de compro- meter o entendimento da complexidade e simultaneidade daquela relação. Nesta análise específica do escritor, percebe-se como a sua obra em questão, As Vinhas da Ira, oferece um privilegiado portal para compreen- são do homem e do seu tempo. Tanto o conteúdo quanto a forma de seu romance têm raízes mais profundas do que se pode imaginar à primeira vista: através de um, temos acesso à história norte-americana, de sua independência até à primeira metade do século XX, e também descobri- mos como a constituição dos Estados Unidos esteve atrelada às histórias de tantos outros povos e sociedades, e até mesmo como a dinâmica (física) do clima interagiu com a sua economia, com a sua geografia e com a sua população (humanas); através da outra, percorremos os mais variados estilos literários, desde as escrituras bíblicas até a literatura moderna, passando por Tolstói e John dos Passos, e incluindo a música sinfônica. E, ao final, através do encontro promovido pela obra de arte entre o conteúdo e a forma, percebemos o quanto entrelaçam-se história e literatura, uma dispondo materiais, outra forjando-os à sua maneira, filtrando e remodelando aqueles através das mãos e mentes dos artistas. A miríade de acontecimentos históricos e de estilos artísticos disponí- veis concorreu para a formação do homem e do artista Steinbeck na medida que se expunha – conscientemente ou não, propositadamente ou não – aos fatos e pensamentos contemporâneos, e na medida em que agia dialeticamente em relação àqueles, escolhendo, opinando e produzindo. Sem dúvida, Steinbeck, posto em relação com a história e com a arte, revela diversas contribuições e limitações, algumas das quais demonstra- das ao longo deste trabalho. Vimos que, tanto da filosofia quanto da política, Steinbeck assimilou ensinamentos sem, no entanto, se compro- meter definitivamente com nenhum deles. O seu elo mais intenso de relação com as diversas teorias, com os demais seres humanos e aconte- cimentos, era a sua intensa e imediata sensibilidade, que poderia tanto o animar em direção à denúncia social da dura situação dos migrantes americanos nos anos 1930, quanto o animar em direção a sua própria subjetividade, como o faria no último período de sua carreira. HISTÓRIA E LITERATURA EM AS VINHAS DA IRA | 199

Estando, como ele próprio colocara, disponível para sorver tudo o que dele se aproximasse e transformá-lo em seguida em literatura, não se pode queixar que assim não o tenha feito. Paradoxalmente, se o seu ecletismo político e literário é o que dificulta tomá-lo por inteiro, ao mesmo tempo, é o que garante a riqueza e a complexidade de sua vida e obra.

Referências

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O CAPITAL, CAPÍTULO XXIV, LIVRO I

A CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA*

Karl Marx

1. O segredo da acumulação primitiva

Viu-se como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzida mais-valia e da mais-valia mais capital. A acumulação do capital, porém, pressupõe a mais-valia, a mais-valia, a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos sair supondo [unterstellen] uma “acumula- ção primitiva” [previous accumulation, em Adam Smith], precedente à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida. Essa acumulação primitiva desempenha na economia política um pa- pel análogo ao pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e deste modo o pecado desceu sobre o género humano. Explica-se a sua origem contando-a como episódio ocorrido no passado. Em tempos muito remo-

* Texto fixado por António Simões do Paço (Janeiro de 2017), tomando por base a edição brasileira da Abril Cultural (São Paulo, 1984) de O Capital, de Karl Marx, Livro I, Tomo 2, capítulo XXIV, compulsada com a tradução (do alemão) de José Barata-Moura e Álvaro Pina (publicada segundo o texto da 4.ª edição alemã de 1890) para a Editorial Avante! (in www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital /cap24/#tr1) e com a tradução inglesa de Samuel Moore e Edward Aveling, editada por Friedrich Engels, Karl Marx. Capital Volume One, Part VIII: Primitive Accu- mulation. Versão online: Marx/Engels Internet Archive (marxists.org) 1995, 1999. In www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/index.htm. Consultada em 6 de janeiro de 2017. 202 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … tos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro lado, uma ralé preguiçosa que dissipava tudo o que tinha e mais que houvesse. A lenda do pecado original teológico conta-nos, certamente, como o homem foi condenado a ganhar o seu pão com o suor do seu rosto; no entanto, a história do pecado original econó- mico revela-nos por que há gente que não tem necessidade disso. Tanto faz. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para vender a não ser a sua própria pele. E desse pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. Esta trivial história para crianças conta-a ainda, por exem- plo, o senhor Thiers, com o ar sério das solenidades de Estado, aos Fran- ceses outrora de espírito tão vivo, em defesa da propriété.1 Mas assim que a questão da propriedade está em jogo, torna-se dever sagrado manter o ponto de vista da cartilha infantil como o único justo para todas as classes etárias e etapas de desenvolvimento. Na história real, como se sabe, a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência, desempenham o principal papel. Na suave economia política reinou desde sempre o idílio. Desde sempre, o direito e o “trabalho” têm sido os únicos meios de enriquecimento, exceptuando-se de cada vez, naturalmente, “este ano”. Na realidade, os métodos da acumulação pri- mitiva são tudo menos idílicos. Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles requerem a sua transforma- ção em capital. Mas essa transformação só pode realizar-se em determi- nadas circunstâncias, que se resumem ao seguinte: duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em contacto; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem valorizar a soma de valor que possuem por meio da compra de força de trabalho alheia; do outro, tra- balhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres num duplo sentido, porque não pertencem directamente aos meios de produção, como os escravos, os servos, etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como, por exem- plo, o camponês economicamente autónomo, etc., antes estão livres deles, livres e sem responsabilidades. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação de capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Assim que a produção capitalista se

1 Propriedade. Em francês no texto. A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 203 apoia nos seus próprios pés, não só conserva aquela separação, como a reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a relação de capital não pode ser outra coisa que o processo de separação do trabalhador da propriedade das condições do seu trabalho, um proces- so que transforma, por um lado, os meios de subsistência e de produção em capital, e por outro, os produtores directos em trabalhadores assala- riados. A chamada acumulação primitiva não é mais, portanto, que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como “primitivo” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde. A estrutura económica da sociedade capitalista proveio da estrutura económica da sociedade feudal. A decomposição desta libertou os ele- mentos daquela. O produtor imediato, o trabalhador, somente pôde dispor da sua pes- soa depois de deixar de estar vinculado à gleba e de ser servo ou depen- dente de outra pessoa. Para tornar-se vendedor livre de força de trabalho, que leva a sua mercadoria a qualquer lugar onde houver mercado para ela, ele precisava ainda de ter escapado ao domínio das corporações, dos seus regulamentos para aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Assim, o movimento histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a sua liberta- ção da servidão e da coacção corporativa; e esse aspecto é o único que existe para os nossos escribas burgueses da história. Por outro lado, porém, esses recém-libertos só se tornam vendedores de si mesmos depois de todos os seus meios de produção e todas as garantias da sua existência oferecidas pelas velhas instituições feudais lhes terem sido roubados. E a história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo. Os capitalistas industriais, estes novos potentados, tiveram de desalo- jar, por sua vez, não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas tam- bém os senhores feudais, possuidores das fontes de riquezas. Sob este aspecto, a sua ascensão apresenta-se como fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e os seus privilégios revoltantes, assim como contra as corporações e os entraves que estas opunham ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas os cavalei- ros da indústria só conseguiram desalojar os cavaleiros da espada explo- rando acontecimentos em que não tiveram a menor culpa. Eles elevaram- -se por meios tão vis como aqueles por meio dos quais o liberto romano se fez outrora senhor do seu patronus.2

2 Senhor, amo, patrão (por extensão). Em latim no texto. 204 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

O ponto de partida do desenvolvimento que produziu tanto o trabalha- dor assalariado como o capitalista foi a servidão do trabalhador. A conti- nuação consistiu numa mudança de forma dessa sujeição, na transforma- ção da exploração feudal em capitalista. Para compreender o seu curso não precisamos de recuar muito. Ainda que os primórdios da produção capitalista já se nos apresentem esporadicamente nalgumas cidades mediterrânicas nos séculos XIV e XV, a era capitalista só data do século XVI. Onde ela surge, a servidão já está abolida há muito tempo e o ponto mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há muito começou a empalidecer. O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os re- volucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em forma- ção, sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massas hu- manas são arrancadas súbita e violentamente aos seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres como passarinhos.3 A expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o processo. A sua história assume coloração diferente nos diversos países e percorre as várias fases em sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, que, por isso, tomamos como exemplo, assume a sua forma clássica.4

3 Vogelfrei, no original alemão. 4 Na Itália, onde a produção capitalista se desenvolveu mais cedo, ocorre também mais cedo a dissolução das relações de servidão. O servo é emancipado aqui antes de ter assegurado, por prescrição, qualquer direito à base fundiária. A sua emanci- pação transforma-o, pois, imediatamente num proletário livre como os pássaros, que, porém, já encontra os novos senhores nas cidades, na sua maioria originárias da época de Roma. Quando a revolução do mercado mundial,ª no final do século XV, destruiu a supremacia comercial do Norte da Itália, surgiu um movimento em sentido contrário. Os trabalhadores das cidades foram expulsos em massa para o campo e lá deram à pequena agricultura, exercida sob a forma de jardinagem, um impulso nunca visto. ª Marx fala aqui das consequências económicas dos grandes descobrimentos geográficos do final do século XV. Devido ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia, ao descobrimento das ilhas das Índias Ocidentais e ao do continente americano chegou-se a um extenso deslocamento das rotas do tráfego comercial. As cidades comerciais do Norte de Itália (Génova e Veneza, entre outras) perderam a sua predominância. Em contrapartida, Portugal, Países Baixos, Espanha e Inglaterra começaram a desempenhar o papel principal no comércio mundial, favorecidos pela sua posição em relação ao oceano Atlântico (nota da edição alemã). A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 205

2. Expropriação do povo do campo da sua base fundiária

Em Inglaterra, a servidão tinha de facto desaparecido na parte final do século XIV. A grande maioria da população5 consistia naquela época, e mais ainda no século XV, de camponeses livres, economicamente autó- nomos, fosse qual fosse o título feudal atrás do qual se escondia a sua propriedade. Nos domínios senhoriais maiores, o bailiff [bailio, feitor], outrora ele mesmo servo, foi desalojado pelo arrendatário livre. Os tra- balhadores assalariados da agricultura consistiam, em parte, em campo- neses, que aproveitavam o seu tempo livre trabalhando para os grandes proprietários, em parte numa classe independente, relativa e absoluta- mente pouco numerosa, de trabalhadores assalariados propriamente ditos. Também estes eram, ao mesmo tempo, de facto camponeses economica- mente autónomos, pois recebiam, além do seu salário, um terreno arável de 4 ou mais acres além das cottages.6 Além disso, junto com os campo- neses propriamente ditos, gozavam o usufruto das terras comunais, em que pastava o seu gado e que lhes forneciam ao mesmo tempo com- bustíveis, como lenha, turfa, etc.7 Em todos os países da Europa, a produ- ção feudal é caracterizada pela partilha do solo entre o maior número possível de súbditos. O poder de um senhor feudal, como o de qualquer

5 “Os pequenos proprietários fundiários, que cultivavam as suas terras com as pró- prias mãos e usufruíam de um modesto bem-estar (...) constituíam então uma parte muito importante da nação em relação aos tempos actuais. (...) Nada menos que 160 mil proprietários, que com as suas famílias deviam ter representado mais de 1/7 da população total, viviam da exploração das suas pequenas parcelas freehold” [freehold é propriedade plenamente livre]. “O rendimento médio desses pequenos proprietários fundiários (...) é avaliado como sendo de 60 a 70 libras esterlinas. Calculou-se que o número daqueles que cultivavam a sua própria terra era maior que o dos rendeiros que lavravam terra alheia” (Macaulay. Hist. Of England, 10ª ed., Londres, 1854, I pp. 333-334). Ainda no último terço do século XVII, 4/5 da massa popular inglesa eram agricultores (Op.cit. p. 413) – Cito Macaulay porque, como falsário sistemático da história, ele “poda” tanto quanto possível tais factos (nota de Marx). 6 Em inglês no texto: pequenas casas rurais, cabanas. 7 Não se deve esquecer jamais que o próprio servo não era apenas proprietário, ainda que proprietário sujeito a tributos, da parcela de terra pertencente à sua casa, mas também co-proprietário das terras comunais. “O camponês é lá” (na Silésia) “ser- vo”. Não obstante, possuem esses serfs bens comunais. “Não se conseguiu até agora induzir os silesianos à partilha das terras comunais, enquanto na Neumark não existe quase nenhuma aldeia em que essa partilha não tenha sido efetuada com grande sucesso.” (Mirabeau. De la Monarchie Prussienne. Londres, 1788. T.II, p. 125-126). (Nota de Marx). 206 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … soberano, não se baseava no montante da sua renda, mas no número dos seus súbditos, e este dependia do número de camponeses economica- mente autónomos.8 Embora o solo inglês, depois da conquista normanda, tenha sido dividido em baronias gigantescas, das quais uma única muitas vezes abrangia a extensão de 900 antigos senhorios anglo-saxónicos, ele estava salpicado de pequenas explorações camponesas, interrompidas apenas aqui e ali por domínios senhoriais maiores. Tais condições, com o florescimento simultâneo das cidades, característico do século XV, per- mitiam aquela riqueza do povo de que o chanceler Fortescue tanto fala em seus Laudibus Legum Angiliae, mas excluíam a riqueza de capital. O prelúdio do revolucionamento que criou a base do modo de produ- ção capitalista ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI. Uma massa de proletários livres como passari- nhos foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos feudais, que, como observa acertadamente Sir James Steuart, “por toda a parte enchiam inutilmente casa e castelo”.9 Embora o poder real, ele próprio um produto do desenvolvimento burguês, na sua luta pela sobera- nia absoluta tenha acelerado violentamente a dissolução desses séquitos, não foi, de modo algum, a sua única causa. Foi muito mais, em oposição mais teimosa à realeza e ao Parlamento, o grande senhor feudal quem criou um proletariado incomparavelmente maior mediante a expulsão violenta do campesinato da base fundiária, sobre a qual possuía o mesmo título jurídico feudal que ele, e usurpação da sua terra comunal. O impul- so imediato para isso foi dado, na Inglaterra, nomeadamente pelo flores- cimento da manufactura flamenga de lã e o correspondente aumento dos preços da lã. As grandes guerras feudais tinham devorado a velha nobreza feudal, e a nova era filha do seu tempo, sendo para ela o dinheiro o poder de todos os poderes. Por isso, a transformação de terras de lavoura em pastagens para ovelhas tornou-se a sua divisa. Harrison, na sua Description of England. Prefixed to Holinshed’s Chronicles, descreve como a expro- priação dos pequenos camponeses arruína o pais. What care our great incroachers! (Mas o que importa isso aos nossos grandes usurpadores!) As habitações dos camponeses e as cottages dos trabalhadores foram violentamente demolidas ou entregues à ruína.

8 O Japão, com o seu sistema puramente feudal de propriedade fundiária e a sua economia desenvolvida de pequena agricultura, oferece um quadro muito mais fiel da Idade Média europeia que todos os nossos livros de história, ditados na sua maioria por preconceitos burgueses. É fácil demais ser “liberal” à custa da Idade Média (Nota de Marx.) 9 Steuart, James. An Inquiry into the Principles of Political Economy. Dublin, 1770, v. I, p. 52. (N. da Ed. Alemã.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 207

“Consultando”, diz Harrison, “os inventários mais antigos de cada domínio senhorial, ver-se-á que desapareceram inúmeras casas e pe- quenas explorações camponesas, que o campo alimenta muito menos gente, que muitas cidades decaíram, ainda que algumas novas flores- çam. (...) De cidades e aldeias, que foram destruídas para dar lugar a pastagens de ovelhas e onde ficaram apenas as casas senhoriais, eu poderia dizer algo.”

As queixas daquelas antigas crónicas são sempre exageradas, mas ilustram exactamente como a revolução nas condições de produção impressionou os próprios contemporâneos. Uma comparação dos escritos do chanceler Fortescue e de Thomas Morus torna visível o abismo entre os séculos XV e XVI. Da sua idade de ouro, a classe trabalhadora inglesa caiu sem transição, como Thornt diz acertadamente, à idade de ferro. A legislação aterrorizou-se com esse revolucionamento. Não tinha chegado àquele ápice da civilização em que wealth of the nation, isto é, a formação do capital e a exploração inescrupulosa e o empobrecimento da massa do povo é considerada o píncaro de toda a sabedoria de Estado. Na sua história de Henrique VII, diz Bacon:

“Naquele tempo” (1489) “aumentaram as queixas sobre a transforma- ção de terras de lavoura em pastagens” (para criação de ovelhas, etc.) “fáceis de cuidar por poucos pastores; e arrendamentos por tempo de- terminado, vitalícios ou anualmente revogáveis (dos quais vivia grande parte dos yeomen10 foram transformados em domínios senhoriais. Isso provocou uma decadência das cidades, igrejas, dízimos. (...) Na cura desse mal, a sabedoria do rei e do Parlamento naquela época foi admi- rável. (...) Tomaram medidas contra essa usurpação despovoadora das terras comunais (depopulating inclosures) e a exploração pastoril des- povoadora (depopulating pasture) que lhe seguia as pegadas”.

Um decreto de Henrique VII, 1489, c. 19, proibiu a destruição de to- das as casas camponesas às quais pertencessem pelo menos 20 acres de terra. Num decreto, 25, de Henrique VIII,11 a mesma lei é renovada. Diz- -se ali, entre outras coisas, que

“muitos arrendamentos e grandes rebanhos de gado, especialmente de ovelhas, acumulam-se em poucas mãos, por meio do que as rendas da terra tinham crescido muito, decaindo, ao mesmo tempo, a lavoura (tillage), sendo demolidas igrejas e casas e massas populares maravi- lhosas incapacitadas de sustentar a si mesmas e às suas famílias”.

10 Pequenos proprietários rurais. 11 Ou seja, um decreto emitido no 25.º ano do reinado de Henrique VIII. 208 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

A lei ordena, por isso, a reconstrução das propriedades camponesas decaídas, determina a proporção entre campos de cereais e pastagens, etc. Um decreto de 1533 lamenta que alguns proprietários possuíam 24 mil ovelhas e limita o seu número a duas mil.12 As queixas do povo e a legis- lação que, a partir de Henrique VII, continuamente, por 150 anos, se voltava contra a expropriação dos pequenos rendeiros e camponeses, foram igualmente infrutíferas. O segredo do seu fracasso é-nos revelado por Bacon, sem o saber.

“O decreto de Henrique VII” diz ele nos seus Essays, Civil and Moral, seção 29, “era profundo e digno de admiração ao criar explorações camponesas e casas rurais de determinado padrão, isto é, ao manter para os lavradores uma proporção de terra que os capacitava a trazer ao mundo súbditos com riqueza suficiente e sem posição servil, man- tendo o arado na mão de proprietários e não de trabalhadores alugados (to keep the plough in the hand of the owners and not hirelings).”13

Mas o que o sistema capitalista requeria era, pelo contrário, uma posi- ção servil da massa do povo, a sua transformação em trabalhadores para aluguer e a dos seus meios de trabalho em capital. Durante esse período de transição, a legislação procurou também conservar os 4 acres de terra junto à cottage do assalariado agrícola e proibiu-o de ter inquilinos na sua cottage. Ainda em 1627, no reinado de Carlos I, Roger Crocker de

12 Na sua Utopia, Thomas Morus fala de uns pais singular onde “os carneiros devo- ram os homens”. (Utopia. Tradução de Robinson. Ed. Arber, Londres, 1869, p. 41). (Nota de Marx.) 13 Bacon mostra a relação entre um campesinato abastado e livre e uma boa infantaria. “Era admiravelmente importante para o poder e manutenção do reino ter arrenda- mentos de áreas suficientes para sustentar homens capazes sem penúria e assegurar que grande parte do solo do reino ficasse na posse da yeomanry ou de pessoas em condições médias entre os nobres e os caseiros (cottagers) e servos camponeses. (...) Pois é a opinião geral dos mais competentes conhecedores da guerra (...) que a força principal de um exército consiste na infantaria ou nos combatentes a pé. Mas para constituir uma boa infantaria necessita-se de pessoas que se criaram não de modo servil ou na indigência, mas em liberdade e com certo bem-estar. Quando um Estado excede em pessoas nobres e senhores finos, enquanto os aldeões e lavradores não passam de meros trabalhadores ou servos agrícolas, ou ainda caseiros, isto é, mendi- gos alojados, pode-se ter uma boa cavalaria, mas nunca se terá uma infantaria boa e firme. (...) Isso é o que se vê na França e Itália e em algumas outras regiões estran- geiras, onde de facto todos são ou nobres ou camponeses miseráveis (...) até ao ponto em que são obrigados a empregar bandos mercenários de suíços ou semelhantes para os seus batalhões de infantaria: o que também faz que essas nações tenham muito povo e poucos soldados.”(The reign of Henry VII etc. Verbatim Reprint from Ken- net’s England, ed. 1719. Londres, 1870, p. 308.) (Nota de Marx.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 209

Fontmill foi condenado pela construção no domínio de Fontmill de uma cottage sem 4 acres de terra como anexo permanente; ainda em 1638, no reinado de Carlos I, foi nomeada uma comissão real para impor a execu- ção das velhas leis, nomeadamente sobre os 4 acres de terra; Cromwell também proibiu a construção de uma casa num raio de 4 milhas ao redor de Londres se não estivesse dotada de 4 acres de terra. Ainda na primeira metade do século XVIII fazem-se queixas quando a cottage do trabalha- dor agrícola não tem como complemento 1 ou 2 acres. Hoje ele fica feliz quando ela é dotada de um jardinzinho ou quando pode arrendar longe dela umas poucas varas de terra.

“Senhores da terra e rendeiros”, diz o Dr. Hunter, “agem, neste caso, de mãos dadas. Alguns acres junto com a cottage tornariam o traba- lhador demasiado independente.”14

O processo de expropriação violenta da massa do povo recebeu novo e terrível impulso no século XVI pela Reforma e, em consequência dela, pelo roubo colossal dos bens da Igreja. A Igreja católica era, ao tempo da Reforma, proprietária feudal de uma grande parte da terra inglesa. A supressão dos conventos, etc., lançou os seus moradores na proletariza- ção. Os próprios bens da Igreja foram, em grande parte, entregues a favoritos reais rapaces ou vendidos por um preço irrisório a rendeiros ou a citadinos especuladores, que expulsaram em massa os antigos súbditos hereditários, juntando as suas explorações. A propriedade legalmente garantida a camponeses empobrecidos de uma parte dos dízimos da Igreja foi facilmente confiscada.15 Pauper ubique jacet,16 exclamou a rainha Isabel após uma viagem pela Inglaterra. No 43.º ano de seu reinado, foi forçado finalmente o reconhecimento oficial do pauperismo, mediante a introdução do imposto para os pobres.

“Os autores dessa lei envergonhavam-se de enunciar as suas razões e por isso, contra toda a tradição, trouxeram-na ao mundo sem nenhum preâmbulo (exposição de motivos).17

14 Dr. Hunter. Op. cit., p. 134. – “A quantidade de terra que” (nas velhas leis) “era atribuída seria hoje considerada grande demais para trabalhadores e mais apropria- da para transformá-los em pequenos rendeiros.” (Roberts, George. The Social His- tory of the People of the Southern Counties of England in Post Centuries. Londres, 1856, p. 184.) (Nota de Marx.) 15 “O direito dos pobres a participar nos dízimos da Igreja é fixado por velhos estatutos.”(Tucket. Op cit., v. II, p. 804-805.) 16 “Em toda a parte os pobres são infortunados.” – Da obra de Ovídio Fasti. Livro Primeiro, verso 218. (N. da Ed. Alemã.) 17 Cobbet, William. A History of the Protestant Reformation. § 471. (Nota de Marx.) 210 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Essa lei foi declarada perpétua pela [lei] 4, do 16.° [ano do reinado] de Carlos I e de facto só em 1834 é que recebeu uma nova forma, mais dura.18 Esses efeitos imediatos da Reforma não foram os mais persistentes. A propriedade da Igreja constituía o baluarte religioso das antigas relações de propriedade. Ao cair aquela, estas não poderiam ser mantidas.19

18 Reconhece-se o «espírito» protestante, entre outras coisas, no seguinte. No Sul de Inglaterra vários proprietários fundiários e rendeiros abastados juntaram-se e redi- giram 10 questões sobre a correcta interpretação da lei dos pobres da [rainha] Isa- bel, questões essas que submeteram ao parecer de um jurista de nomeada daquele tempo, Sergeant Snigge (mais tarde juiz no reinado de Jaime I). “Questão 9 – Al- guns dos mais ricos rendeiros da paróquia inventaram um modo habilidoso pelo qual podia ser evitado todo o embaraço de executar esta Lei (no 43.° [ano do rei- nado] de Isabel). Propuseram que construamos uma prisão na paróquia e demos depois notícia à vizinhança de que se quaisquer pessoas estiverem dispostas a ar- rendar os pobres desta paróquia elas que entreguem propostas seladas, num certo dia, do preço mais baixo pelo qual no-los tirarão das mãos; e que estarão autoriza- dos a recusar assistência a qualquer pobre a menos que ele esteja encerrado na prisão acima dita. Os proponentes deste plano concebem que se encontrarão nos condados vizinhos pessoas que, não tendo vontade de trabalhar e não possuindo substância ou crédito para tomar uma quinta ou um navio, de modo a viverem sem trabalhar, poderão ser induzidas a fazer à paróquia uma oferta muito vantajosa. Se qualquer dos pobres perecer sob a protecção do contratante, a culpa ficar-lhe-á em casa uma vez que a paróquia terá feito o seu dever por eles. Estamos, no entanto, apreensivos pelo facto de a presente Lei (no 43.° [ano do reinado] de Isabel) não garantir uma medida prudencial deste tipo; mas, fica a saber que o resto dos pro- prietários livres do condado e do condado confinante de B muito prontamente se juntarão a dar instruções aos seus membros para que proponham uma lei que habi- lite a paróquia a contratar uma pessoa para prender os pobres e fazê-los trabalhar; e a declarar que se qualquer pessoa se recusar a ser deste modo presa e a trabalhar, não terá direito a qualquer assistência. Isto, espera-se, impedirá as pessoas em aflição de quererem assistência...» (R. Blakey, The History of Political Literature from the Earliest Times [A História da Literatura Política desde os Primeiros Tem- pos], Lond., 1855, vol. II, pp. 84-85.) – Na Escócia, a abolição da servidão teve lugar séculos mais tarde do que na Inglaterra. Ainda em 1698, Fletcher, de Sal- toun, declarava no Parlamento escocês: “O número de pedintes na Escócia está calculado em não menos de 200 000. O único remédio que eu, republicano por princípio, posso sugerir é que se restaure o antigo estado de servidão, para tornar escravos todos aqueles que são incapazes de prover à sua própria subsistência.” Deste modo, Eden, The State of the Poor [A Situação dos Pobres], London, 1797, Livro I, c. 1, pp. 60-61, diz: “O decréscimo da vilanagem parece necessariamente ter sido a era da origem dos pobres. As manufacturas e o comércio são os dois pais dos nossos pobres nacionais.” Eden, tal como aquele republicano escocês por princípio, erra apenas em que não é a supressão da servidão, mas a supressão da propriedade do agricultor sobre a terra que faz dele proletário, isto é, pobre. As leis dos pobres em Inglaterra correspondem, em França, em que a expropriação se executou de outra maneira, às ordenanças de Moulins de 1566 e ao Édito de 1656. (Nota de Marx.) 19 O Sr. Rogers, apesar de ser então professor de Economia Política na Universidade A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 211

Ainda nas últimas décadas do século XVII, a yeomanry, uma classe de camponeses independentes, era mais numerosa que a classe dos rendei- ros. Ela constituíra a força principal de Crowell e, conforme confessa o próprio Macaulay, contrastava vantajosamente com os fidalgos porca- lhões e beberrões e seus lacaios, os padres rurais, que tinham de conse- guir casamento para a “criada preferida” do senhor. Os assalariados rurais ainda participavam da propriedade comunal. Cerca de 1750, a yeomanry tinha desaparecido20 e, nas últimas décadas do século XVII, também o último vestígio de propriedade comunal dos lavradores. Abstraímos as forças motrizes puramente económicas da revolução agrícola. O que procuramos são as alavancas com que foi violentamente realizada. Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários impuseram legalmente uma usurpação, que em todo o continente se fez sem rodeios legais. Aboliram a organização feudal da terra, quer dizer: desembaraça- ram-se das suas obrigações para com o Estado, “indemnizaram” o Estado por meio de impostos sobre o campesinato e o resto da massa do povo, reivindicaram uma propriedade privada moderna sobre patrimónios de que apenas possuíam um título feudal e, finalmente, outorgaram aquelas leis de domiciliação (laws of settlement) que tiveram, mutatis mutandis, sobre os lavradores ingleses os mesmos efeitos que o édito do tártaro Boris Godunov sobre o campesinato russo.21 A Glorious Revolution (Revolução Gloriosa)22 trouxe, com Guilherme III

de Oxford, sede da ortodoxia protestante, acentua em seu prefácio à History of Agriculture a pauperização da massa do povo pela Reforma. (Nota de Marx.) 20 A Letter to Sir T. C. Bunbury, Brt.: On the High Price of Provisions. By a Sulfolk Gentleman, Ipswich, 1795. p. 4. Mesmo o fanático defensor do sistema de grandes arrendamentos, o autor [J. Arbuthnot] da Inquiry into the Connection of Large Farms etc. (Londres, 1773. p. 139) diz: “O que deploro mais é a perda da nossa yeomanry, aquele conjunto de homens que, na realidade, sustentou a independên- cia desta nação; e lamento ver as suas terras, agora nas mãos de lordes monopoli- zadores, serem arrendadas a pequenos rendeiros, que obtêm os seus arrendamentos sob tais condições que são pouco mais que vassalos que em todas as ocasiões ad- versas têm de atender a chamamentos”. 21 Sob o reinado de Fiodor Ivanovitch (1584-1598), quando o soberano de facto da Rússia era Boris Gudonov, foi decretado um édito, em 1597, segundo o qual os camponeses que tinham fugido do jugo insuportável e das chicanas dos proprietá- rios fundiários seriam procurados durante cinco anos e devolvidos à força aos seus antigos senhores. (N. da Ed. Alemã.) 22 Designação habitual, na historiografia burguesa da Inglaterra, para o golpe de Estado de 1688. O golpe de Estado consolidou a monarquia constitucional na In- glaterra, que se baseava num compromisso entre os nobres proprietários fundiários e a burguesia. (N. da Ed. Alemã.) 212 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … de Orange,23 extractores de mais-valia fundiários e capitalistas ao poder. Inauguraram a nova era praticando o roubo dos domínios do Estado, até então realizado em proporções apenas modestas, em escala colossal. Essas terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, mediante usurpação directa, anexadas a propriedades privadas.24 Tudo isso ocorreu sem nenhuma observância da etiqueta legal. O património do Estado apropriado tão fraudulentamente, junto com o roubo da Igreja, na medida em que não desapareceram durante a revolução republicana, formam a base dos actuais domínios principescos da oligarquia inglesa.25 Os capita- listas burgueses favoreceram a operação visando, entre outros motivos, transformar a base fundiária em puro artigo de comércio, expandir a área da grande exploração agrícola, multiplicar a sua oferta de proletários livres como passarinhos provenientes do campo, etc. Além disso, a nova aristocracia fundiária era aliada natural da bancocracia, da alta finança que acabava de sair da casca do ovo e dos grandes manufactureiros, que então se apoiavam sobre tarifas proteccionistas. A burguesia inglesa agiu assim, em defesa dos seus interesses, tão acertadamente como os burgue- ses suecos que, inversamente, junto com o seu baluarte económico, o campesinato, apoiaram os reis na recuperação violenta das terras da Coroa em mãos da oligarquia (desde 1604, mais tarde sob Carlos X e Carlos XI). A propriedade comunal – inteiramente diferente da propriedade do Es- tado considerada acima – era uma antiga instituição germânica, que continuou a viver sob a cobertura do feudalismo. Viu-se como a violenta usurpação da mesma, em geral acompanhada pela transformação da terra de lavoura em pastagem, começa no final do século XV e prossegue no

23 Sobre a moral privada desse herói burguês lê-se, entre outras coisas: “As grandes concessões de terras a Lady Orkney na Irlanda, no ano de 1695, são uma demons- tração pública da afeição do rei e da influência da lady. (...) Consta que os precio- sos serviços de Lady Orkney consistiram em (...) foeda labiorum ministeria” [su- jos serviços de lábios] (Na Sloane Manuscript Collection, no Museu Britânico, n.º 4224. O manuscrito é intitulado: “The charakter and behaviour of King William, Sunderland etc. as represented in Original Letters to the Duke of Shewsbury from Somers, Halifax, Oxford, Secretary Vernon etc.” Está cheio de coisas curiosas.) (Nota de Marx.) 24 “A alienação legal dos bens da Coroa, em parte por venda e em parte por doação, constitui um capítulo escandaloso na história inglesa (...) uma fraude gigantesca contra a nação (gigantic fraud on the nation)”. (Newman, F. W. Lectures on Poli- tical Econ. Londres, 1851, p. 129-130) – {Como os atuais latifundiários ingleses chegaram às suas terras, pode-se ver em pormenores em [Evans, N. H.] Our Old Noblesse Oblige. Londres, 1879. Nota de Engels.} 25 Leia-se, por exemplo, o panfleto de E. Bures sobre a casa ducal de Bedford, cujo fruto, Lord Russell é the tomtit of liberalism [O passarinho do liberalismo]. A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 213 século XVI. Mas então o processo efectivava-se como acto individual de violência contra o qual a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes rendeiros empre- guem também os seus pequenos métodos independentes privados.26 A forma parlamentar do roubo é a da Bills for Inclosures of Commons (leis para a vedação de terrenos comunais), por outras palavras, decretos pelos quais os senhores da terra oferecem a si próprios terra do povo como propriedade privada, decretos da expropriação do povo. Sir F. M. Eden refuta o seu pleitear manhoso de advogado em que procura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada dos grandes proprietários fundiários que tomaram o lugar dos feudais, uma vez que ele próprio reclama uma “lei geral do Parlamento para a vedação de terrenos comu- nais” e, portanto, admite que é preciso um golpe de Estado parlamentar para a sua transformação em propriedade privada, mas, por outro lado, reclama da legislatura uma “indemnização” para os pobres expropria- dos.27 Enquanto o lugar dos yeomen independentes foi tomado por tenants- -at-will, pequenos rendeiros sujeitos a renovação anual, um bando servil e dependente dos caprichos do senhor da terra, o roubo sistematicamente cometido, designadamente da propriedade comunal, juntamente com o roubo dos domínios do Estado, ajudou a engrossar aquelas grandes her- dades a que, no século XVIII, se chamava herdades de capital28 ou herda- des de mercador,29 e a “libertar” o povo rural como proletariado para a indústria. O século XVIII, entretanto, não chegou a compreender, na mesma medida que o século XIX, a identidade entre riqueza nacional e pobreza do povo. Daí, portanto, a mais violenta polémica na literatura económica

26 “Os rendeiros [farmers] proibiram os cottagers de manter quaisquer criaturas vivas, além deles próprios e dos filhos, sob o pretexto de que se eles mantivessem animais ou aves de capoeira roubariam os celeiros dos rendeiros para o sustento deles. Eles diziam também: mantenham os cottagers pobres e mantê-los-ão indus- triosos’ A realidade dos factos, porém, é que os rendeiros usurpam, assim, todos os direitos sobre as terras comunais.” (A political Enquiry into the Consequences of enclosing Waste Lands. Londres, 1785, p. 75.) (Nota de Marx.) 27 Eden. Op. cit. Preface [p. XVII, XIX]. (Nota de Marx.) 28 “Capital Farms.” (Two Letters on the Flour and the Deamess of Com. By a Person in Business. Londres, 1767, p. 19-20.) 29 “Merchant-Farms.” (An Inquiry into the Present High Prices of Provisions. Londres, 1767, p. 111, nota.) Esse bom escrito, que apareceu anonimamente, é de autoria do Rev. Nathanael Forster. 214 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … dessa época sobre a inclosure of commons30. Cito do volumoso material que tenho perante mim algumas passagens porque assim as circunstâncias serão visualizadas de modo mais vivo.

“Em muitas paróquias do Hertfordshire”, escreve uma pena indignada, “24 quintas com 50-150 acres em média foram fundidas em 3 quin- tas.” “Em Northamptonshire e Leicestershire a vedação de terras co- munais teve lugar numa escala muito grande, e a maior parte dos no- vos senhorios [lordships] resultantes da vedação foi transformada em pastagens; em consequência do que muitos senhorios em que ante- riormente eram lavrados 1500 acres não têm agora 50 acres lavrados anualmente. (...) Ruínas de antigas habitações, celeiros, estábulos, etc.” são os únicos vestígios dos antigos habitantes. “Cem casas e fa- mílias, em alguns lugares foram reduzidas (...) a 8 ou 10 (...) Os pro- prietários fundiários, na maioria das paróquias, onde a vedação se rea- lizou há apenas 15 ou 20 anos são muito poucos em comparação com o número dos que lavravam a terra quando na condição de campo aberto. Não é nada incomum ver 4 ou 5 ricos criadores de gado usur- parem senhorios recentemente cercados, que antes se encontravam nas mãos de 20 a 30 rendeiros e outros tantos pequenos proprietários e moradores. Todos eles e as suas famílias foram expulsos das suas pos- ses juntamente com muitas outras famílias que eram principalmente empregues e sustentadas por eles.”31

Não apenas terra em pousio, mas frequentemente terra cultivada, me- diante certo pagamento à comunidade ou em comum, sob o pretexto da vedação era anexada pelo senhor vizinho.

“Refiro-me aqui à vedação de campos abertos e terras que já são culti- vados. Mesmos os escritores que defendem os inclosures admitem que estes últimos aumentam o monopólio das grandes quintas, elevam os preços dos meios de subsistência e produzem despovoamento (...) e mesmo a vedação de terras desertas, como fazem agora, rouba aos po- bres parte dos seus meios de subsistência e apenas engrossa quintas que agora já são grandes demais.32 “Se”, diz o Dr. Price, “esta terra for parar às mãos de poucos grandes rendeiros, a consequência será que os pequenos rendeiros” (antes designados por ele como “uma multi-

30 Vedação de terrenos comunais. N.T. 31 Rev. Addington. Enquiry into the Reasons for Against Enclosing open Fields. Londres, 1772, pp. 37-43 passim. 32 Price, Dr. R. Op. cit., v. II, p. 155-156. Leia-se Forster, Addington, Kent, Price e James Anderson e compare-se com a miserável tagarelice sicofanta de MacCul- loch no seu catálogo The Literature of Political Economy, Londres, 1845. A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 215

dão de pequenos proprietários e rendeiros [tenants] que se mantêm a si próprios e às famílias com o produto da terra que ocupam, com car- neiros criados em comum, com aves de capoeira, porcos, etc., e que, por conseguinte, têm pouca ocasião de comprar qualquer dos meios de subsistência”) “serão convertidos num corpo de homens que ganham a sua subsistência trabalhando para outros e que estarão na necessidade de ir ao mercado para tudo o que quiserem. (...) Haverá, talvez, mais trabalho, porque há mais compulsão para isso. (...) Cidades e manu- facturas crescerão, pois mais pessoas que buscam emprego serão im- pelidas para elas. Essa é a forma como a concentração das quintas opera naturalmente e como, neste reino, há muitos anos tem realmente operado.”33

Ele resume assim o efeito global das enclosures:

“Em geral a situação das classes inferiores do povo tem piorado em quase todos os sentidos; os pequenos proprietários fundiários e rendei- ros são rebaixados à condição de jornaleiros e trabalhadores de alu- guer; e, ao mesmo tempo, tornou-se mais difícil ganhar a vida nessa condição.”34

33 Op. cit., p. 147-148. 34 Op. cit., p. 159-160. Recorda-se de Roma Antiga. “Os ricos tinham-se apoderado da maior parte das terras não partilhadas. Eles confiavam, nas circunstâncias da época, que elas não lhes seriam tomadas, e adquiriam por isso os lotes dos pobres situados nas proximidades, em parte com o consentimento destes, em parte com violência, de modo que lavravam exclusivamente vastos domínios em vez de cam- pos isolados. Empregavam, por isso, escravos para a agricultura e para a pecuária, pois as pessoas haviam sido retiradas do trabalho para prestar serviço militar. A posse de escravos trouxe-lhes, além disso, grandes lucros, pois estes, devido à sua libertação do serviço militar, podiam multiplicar-se sem perigo e tinham uma por- ção de crianças. Assim, os poderosos apoderaram-se de toda a riqueza e toda a região formigava de escravos. Os ítalos, pelo contrário, tornavam-se cada vez me- nos, dizimados pela pobreza, tributos e serviço militar. Mesmo em épocas de paz, porém, estavam condenados à completa inactividade, porque os ricos estavam de posse do solo e usavam escravos, em lugar de pessoas livres, para a lavoura.” (Apiano. Guerras Civis Romanas. 1, 7.) Esta passagem refere-se à época anterior à lei licínia.ª O serviço militar que tanto acelerou a ruína dos plebeus romanos, foi também o principal meio com o qual Carlos Magno promoveu artificialmente a conversão de camponeses alemães livres em dependentes e servos. ª Esta lei foi aprovada no ano de 367 a. C., na Roma Antiga, e determinava certa limitação de posse de terras comunais para uso pessoal, assim como uma série de medidas a favor dos devedores. Dirigia-se com isso contra o contínuo crescimento dos latifúndios e contra os privilégios dos patrícios, e demonstra certo fortaleci- mento das posições políticas e económicas dos plebeus. Segundo a tradição atri- 216 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Na realidade, a usurpação da terra comunal e a revolução da agricultu- ra que a acompanhou tiveram efeitos tão agudos sobre o trabalhador agrícola que, segundo o próprio Eden, entre 1765 e 1780, o seu salário começou a cair abaixo do mínimo e a ser complementado pela assistência oficial aos pobres. O seu salário, diz ele, “bastava apenas para as necessi- dades vitais absolutas”. Ouçamos, por um momento ainda, um defensor das enclosures e ad- versário do Dr. Price.

“Não é correcto concluir que haja despovoamento porque não se vê mais gente desperdiçando o seu trabalho em campo aberto. (...) Quan- do, depois da transformação dos pequenos camponeses em pessoas que têm de trabalhar para outros, é produzido mais trabalho, isso é uma vantagem que a nação” (à qual os transformados naturalmente não pertencem) “deve desejar. (...) porque sendo maior o produto quando os seus trabalhos conjuntos são empregues numa quinta, have- rá um excedente [surplus] para as manufacturas e, por este meio, as manufacturas, uma das minas da nação, aumentarão na proporção da quantidade de cereal produzido.”35

A estóica serenidade com que o economista político encara as viola- ções mais desavergonhadas do “sagrado direito de propriedade” e os actos de violência mais grosseiros contra as pessoas, na medida em que sejam necessários para estabelecer a base do modo de produção capita- lista, é-nos mostrada, entre outros, por Sir F. M. Eden, que, além do mais, apresenta um matiz tory e é “filantropo”. Toda a série de pilhagens, horrores e tormentos que acompanham a violenta expropriação do povo, do último terço do século XV até ao final do século XVIII, levam-no apenas à “confortável” reflexão final:

“A proporção correta (due) entre terras para lavoura e para criação de gado tinha de ser estabelecida. Ainda no decorrer do século XIV e na maior parte do século XV, havia 1 acre de pastagem para 2, 3 e mes- mo 4 acres de terra para lavoura. Em meados do século XVI, a pro- porção transformou-se em 2 acres de pastagem para 2 acres de lavou- ra, mais tarde 2 acres de pastagem para 1 acre de lavoura, até que

bui-se essa lei aos tribunos do povo C. Licínio Stolo e L. Sextio Laterando (N. da Ed. Alemã). 35 [Arbuthnot, J.] An inquiry into the Connection between the Present Prices of Provisions etc. p. 124, 129. Semelhante, mas de tendência oposta: “Os trabalhado- res são expulsos das suas cottages e obrigados a procurar trabalho nas cidades; – mas obtém-se então um excedente maior, e assim o capital é aumentado”. ([See- ley, R. B.] The Perils of the Nation. 2ª ed., Londres, 1843, p. XIV.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 217

finalmente se estabeleceu a proporção correta de 3 acres de pastagem para 1 acre de lavoura.”

No século XIX perdeu-se, naturalmente, mesmo a lembrança da cone- xão entre cultivador e propriedade comunal. Para já não falar de tempos mais tardios, que farthing36 de indemnização recebeu o povo do campo alguma vez pelos 3 511 770 acres de terra comunal que entre 1810 e 1881 lhe foram roubados e presenteados pelo parlamento aos landlords pelos landlords? O último grande processo de expropriação do cultivador da terra é fi- nalmente a chamada Clearing of Estates (limpeza de propriedades, de facto, limpá-las de seres humanos). Como se viu, pela descrição da situa- ção moderna, na parte anterior, trata-se agora, que já não há camponeses independentes para serem varridos, de “limpar” as cottages, de modo que os trabalhadores agrícolas já não encontram o espaço necessário para lá morar, nem mesmo sobre o solo que lavram. Porém, o verdadeiro signifi- cado do Clearing of Estates só o aprendemos na terra prometida da literatura romanesca moderna, nas Highlands [Terras Altas] da Escócia. Lá o processo distingue-se pelo seu carácter sistemático, pela grandeza da escala em que de um golpe ele é executado (na Irlanda, os senhores da terra levaram as coisas ao ponto de, ao mesmo tempo, varrerem do mapa várias aldeias; na Alta Escócia, trata-se de superfícies do tamanho de ducados alemães) e, finalmente, pela forma particular da propriedade fundiária subtraída. Os celtas das Terras Altas da Escócia organizavam-se em clãs, cada um deles proprietário do solo por ele ocupado. O representante do clã, o seu chefe ou “grande homem”, era apenas o proprietário titular dessa terra, tal como a rainha da Inglaterra é a proprietária titular de todo o solo nacional. Quando o Governo inglês conseguiu reprimir as guerras intesti- nas desses “grandes homens” e as suas contínuas incursões pelas planí- cies da Baixa Escócia, os chefes dos clãs não renunciaram, de modo algum, ao seu velho ofício de assaltantes; mudaram apenas a forma. Por conta própria, transformaram o seu direito de propriedade titular em direito de propriedade privada e como encontraram resistência por parte dos membros dos clãs, resolveram enxotá-los à força. “Um rei de Ingla- terra poderia, pelo mesmo direito, atirar os seus súbditos ao mar”, diz o Prof. Newman.37 Essa revolução, que começou na Escócia depois da

36 Em inglês no texto: moeda inglesa de cobre, no valor de 1/4 de dinheiro. (Nota da edição portuguesa da Editorial Avante!) 37 A king of England might as well claim to drive his subjects into the sea (Newman, F. W. Op. cit., p. 132.) 218 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

última revolta do pretendente,38 pode ser seguida nas suas primeiras fases em Sir James Steuart39 e James Anderson.40 No século XVIII, foi simulta- neamente proibida a emigração dos gaélicos expulsos da terra com o fim de impeli-los à força para Glasgow e outras cidades fabris.41 Como exem- plo do método dominante no século XIX,42 bastam aqui as “limpezas”

38 Os partidários dos Stuart esperavam, com a sua revolta de 1745-46, forçar a subida ao trono do chamado jovem pretendente, Charles Edward, como rei da Inglaterra. Ao mesmo tempo, a revolta reflectia o protesto da massa do povo da Escócia e da Inglaterra contra a sua exploração pelos senhores da terra e contra a expulsão em massa dos pequenos lavradores. A derrota da revolta teve por consequência a completa destruição do sistema de clãs na Escócia. A expulsão dos camponeses das suas terras prosseguiu ainda mais intensamente que antes (N. da Ed. Alemã.) 39 Steuart diz: “A renda destas terras” (ele transfere erroneamente essa categoria económica para o tributo dos taksmenª ao chefe do clã) “é de todo modo insignifi- cante em comparação com a sua extensão. Mas se se comparar com o número [de pessoas] alimentadas pela quinta, verificar-se-á que uma propriedade nas Hi- ghlands sustenta, talvez, dez vezes mais pessoas do que outra do mesmo valor numa província boa e fértil.” (An Inquiry into the Principies of Political Economy [Uma Investigação sobre os Princípios da Economia Política], London, 1767, vol. I, c. XVI, p. 104.) (Nota de Marx.) ª Taksmen foram denominados, no tempo do sistema de clãs, na Escócia, os mais velhos ou os vassalos que estavam diretamente subordinados ao chefe do clã ou laird (“grande homem”). O laird repartia as terras (tak), que permaneciam propri- edade de todo o clã, pelos taksmen. Um pequeno tributo era pago ao laird e com isso ficava reconhecida a sua soberania. Aos taksmen estavam subordinados funci- onários mais baixos que se colocavam à frente de cada uma das aldeias, e a estes estavam subordinados os camponeses. Com a desintegração do sistema de clãs, o laird transformou-se em senhor fundiário e os taksmen tornaram-se, de acordo com a sua essência, rendeiros capitalistas; em lugar do antigo tributo passou-se a pagar a renda da terra. Marx informa sobre a função dos taksmen dentro do siste- ma de clãs no seu artigo “Wahlen – Truebe Finanzlage – Die Herzog Von Suther- land und die Sklaverei”. (N. da Ed. Alemã.) 40 Anderson, James. Observations on the Means of Exciting a Spirit of National Industry etc. Edimburgo, 1777. 41 Em 1860, pessoas expropriadas violentamente foram exportadas para o Canadá com falsas promessas. Algumas fugiram para a montanha ou para as ilhas vizi- nhas. Foram perseguidas por polícias, entraram em choque com eles e escaparam. 42 “Nas Terras Altas”, diz Buchanan, o comentarista de Adam Smith, em 1814, “a antiga condição de propriedade é diariamente subvertida pela força. (...) O land- lord, sem consideração pelos rendeiros hereditários” (esta é também uma categoria empregada erroneamente), “oferece a terra ao melhor licitador, e se este é um ino- vador (improver), introduzirá imediatamente um novo sistema de cultura. O solo, antes coberto de pequenos camponeses, estava povoado em proporção ao seu pro- duto, mas com o novo sistema de cultura melhorada e rendas multiplicadas, ob- tém-se a maior produção possível ao menor custo possível, e para esse fim os bra- A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 219 levadas a cabo pela duquesa de Sutherland. Esta pessoa, economicamente instruída, decidiu, logo ao assumir o governo, empreender uma cura económica radical e transformar todo o condado – cuja população já anteriormente, por processos semelhantes, se tinha reduzido para 15 000 – em pastagens para ovelhas. De 1814 até 1820, esses 15 mil habitantes, cerca de 3 mil famílias, foram sistematicamente expulsos e exterminados. Todas as suas aldeias foram destruídas e arrasadas pelo fogo, todos os seus campos transformados em pastagens. Soldados britânicos foram encarregados da execução e entraram em choque com os nativos. Uma mulher de idade foi queimada nas chamas da cabana que se recusava a abandonar. Desta forma, esta madame apropriou-se de 794 mil acres de terras, que desde tempos imemoriais pertenciam ao clã. Aos nativos expulsos ela destinou aproximadamente 6 mil acres de terras, 2 acres por família, na orla marítima. Os 6 mil acres tinham até então estado desertos e não haviam proporcionado nenhuma renda aos proprietários. A duque- sa, no seu nobre sentimento, foi ao ponto de arrendar o acre, em média, por 2 xelins e 6 dinheiros de renda às gentes do clã que, desde há séculos, haviam vertido o seu sangue pela família. Repartiu toda a terra roubada ao clã por 29 grandes quintas para a criação de ovelhas, cada uma habita- da por uma única família, na maioria criados de quinta ingleses. No ano de 1825, os 15 mil gaélicos já tinham sido substituídos por 131 mil ove- lhas. Aquela parte dos aborígenes que foi atirada para a orla marítima procurou viver da pesca. Tornaram-se anfíbios e viviam, como um escri- tor inglês disse, metade na terra e metade na água e, com isso tudo, só viviam metade de ambas.43

ços tornados inúteis são afastados. (...) Os expulsos das suas terras buscam subsis- tência nas cidades fabris, etc.” (Buchanan, David. Observations on etc. A. Smith’s Wealth of Nations. Edimburgo, 1814, v. IV, p. 144.) “Os grandes da Escócia ex- propriaram famílias como se estivessem a exterminar ervas daninhas, trataram aldeias e suas populações como os índios à procura de vingança tratam as bestas selvagens nas suas covas. (...) O ser humano é trocado por uma pele de ovelha ou uma perna de carneiro, ou menos ainda. (...) Quando da invasão das províncias do Norte da China, foi proposto no Conselho dos Mongóis exterminar os habitantes e converter as suas terras em pastagens. Essa proposta foi posta em prática por mui- tos landlords escoceses no seu próprio país, contra os seus conterrâneos.” (Ensor, George. An Inquiry Concerning the Population of Nations. Londres, 1818, pp. 215-216.) 43 Quando a actual duquesa de Sutherland recebeu, com grande pompa, em Londres, a autora de A Cabana do Pai Tomás, Harriet Beecher Stowe, a fim de exibir a sua simpatia pelos escravos negros da República Americana – o que ela, ao lado dos demais aristocratas, sabiamente se absteve de fazer durante a guerra civil, quando cada “nobre” coração inglês pulsava a favor dos esclavagistas – expus, no New York Tribune, as condições dos escravos de Sutherland. (Em algumas passagens 220 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Mas os bravos gaélicos iriam expiar ainda mais amargamente a sua idolatria romântica montanhesa dos “grandes homens” do clã. O cheiro a peixe subiu ao nariz dos grandes homens. Farejaram algo lucrativo e arrendaram a orla marítima aos grandes comerciantes de peixe de Lon- dres. Os gaélicos foram expulsos pela segunda vez.44 Finalmente, porém, uma parte das pastagens para ovelhas foram re- transformadas em reserva de caça. Sabe-se que na Inglaterra não há florestas propriamente ditas. A caça nos parques dos grandes é constitu- cionalmente gado doméstico, gordo como aldemen [vereadores] londri- nos. A Escócia é, portanto, o último asilo da “nobre paixão”.

“Nas Terras Altas”, diz Somers em 1848, “estão a surgir novas florestas como cogumelos. Aqui, de um dos lados de Gaick, temos a nova flo- resta de Glenfeshie; e ali, do outro, temos a nova floresta de Ardverikie. Na mesma linha temos o Black Mount, uma imensa terra inculta, tam- bém lá posta recentemente. De leste para oeste – dos arredores de Aberdeen até aos penhascos de Oban –, temos agora uma linha contí- nua de florestas; enquanto noutras regiões das Terras Altas há as no- vas florestas de Loch Archaig, Glengarry, Glenmoriston, etc. Foram introduzidos carneiros em vales que tinham sido domicílio de comu- nidades de pequenos rendeiros; e estes últimos foram levados a procu- rar a subsistência em solos mais rudes e estéreis. Os veados estão ago- ra a suplantar as ovelhas; e estas estão, uma vez mais, a desalojar os pequenos rendeiros que, necessariamente, serão empurrados para terra ainda mais rude e para uma penúria mais tormentosa. As florestas de veados45 e as pessoas não podem coexistir. Umas ou outras têm de ce- der. Deixem as florestas aumentar em número e extensão durante o

aproveitado por Carey. The Slave Trade. Filadélfia, 1853, pp. 202-203.) O meu artigo foi reproduzido num jornal escocês e provocou uma bela polémica entre este último e os sicofantas dos Sutherland. 44 Encontram-se coisas interessantes sobre este comércio de peixe em Portfolio, New Series, do Sr. David Urquhart. Nassau W. Sénior, no seu escrito póstumo já atrás citado, caracteriza “o processo no Sutherlandshire [como] uma das mais benéficas limpezas de que há memória”. (Journals, Conversations and Essays relating to Ireland [Diários, Conversas e Ensaios Referentes à Irlanda], Londres, 1868.) (Nota de Marx.) 31ª As deer forests (florestas de veados) da Escócia não contêm uma única árvore. Impelem-se as ovelhas para fora e os servos para dentro das montanhas desnudas e denomina-se a isso uma deer Forest. Nem mesmo, portanto, silvicultura! 45 As deer-forests (florestas de veados) da Escócia não contêm uma única árvore. Empurram-se os carneiros para fora e os veados para dentro de montanhas nuas e chama-se a isso uma deer-forest. Portanto, nem sequer silvicultura! (Nota de Marx.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 221

próximo quarto de século como aumentaram no último e os Gaélicos perecerão no seu solo nativo... Este movimento entre os proprietários das Terras Altas é, para alguns, uma questão de ambição – para al- guns, amor ao desporto –, enquanto outros, de disposição mais prática, seguem o comércio dos veados com os olhos postos apenas no lucro. Porque é um facto que uma cadeia de montanhas arranjada como flo- resta é, em muitos casos, mais lucrativa para o proprietário do que quando deixada para pasto de carneiros... O caçador que quer uma flo- resta de veados não limita as suas ofertas por nenhum outro cálculo que não seja a extensão da sua bolsa... Foram infligidos sofrimentos às Terras Altas pouco menos severos do que os ocasionados pela política dos reis normandos. Os veados receberam extensas cordilheiras, en- quanto os homens foram caçados no interior de um círculo cada vez mais estreito... Uma após outra, as liberdades do povo foram despeda- çadas... E as opressões estão a crescer diariamente... A limpeza e dis- persão do povo é seguida pelos proprietários como um princípio esta- belecido, como uma necessidade agrícola, exactamente como as árvores e o mato são limpos das terras incultas da América ou Austrá- lia; e a operação prossegue de uma maneira silenciosa, à maneira dos negócios, etc.”46

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os passarinhos.

46 Somers, Robert. Letters from the Highlands; or, the Famine of 1847. Londres, 1848, p. 12-28 passim. Essas cartas apareceram originalmente no Times. Os eco- nomistas ingleses, naturalmente, atribuíram a epidemia da fome dos gaélicos, em 1847, à sua superpopulação. Em todo o caso, eles “exerciam pressão” sobre a dis- ponibilidade de alimentos. A Clearing of Estates ou, como se chamou na Alema- nha, Bauernlegen ocorreu aqui especialmente depois da Guerra dos Trinta Anos e provocou ainda em 1790 levantamentos camponeses em Kursachsen. Prevaleceu principalmente na Alemanha Oriental. Na maior parte das províncias da Prússia, apenas Frederico II assegurou aos camponeses o direito de propriedade. Depois da conquista da Silésia, ele obrigou os senhores da terra a reconstruir as choupanas, celeiros, etc., e a promover as explorações camponesas de gado e instrumentos.

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3. Legislação sanguinária contra os expropriados desde o final do século XV. Leis para o abaixamento dos salários

Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como os pássaros não podia ser absorvido pela manufactura nascente com a mes- ma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados ao seu modo de vida habitual não conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condi- ção. Converteram massivamente em mendigos, ladrões, vagabundos, em

Ele precisava de soldados para o seu exército e de contribuintes de impostos para o tesouro do Estado. Que vida agradável, de resto, levou o camponês sob as desor- dens financeiras e a mistura governamental de despotismo, burocracia e feudalis- mo de Frederico, podemos ver pelos trechos seguintes do seu admirador Mirabeau: “o linho representa pois uma das maiores riquezas do camponês do Norte da Ale- manha. Para infelicidade da espécie humana, isso é apenas um meio auxiliar contra a miséria e não um caminho para o bem-estar. Os impostos directos, as corveias e os serviços forçados de todos os tipos arruínam o camponês alemão, que ainda tem de pagar impostos indirectos sobre tudo o que compra (...) e para tornar completa a sua ruína, ele não ousa vender os seus produtos onde e como quer, e não ousa tam- bém comprar o que precisa a comerciantes que lho poderiam fornecer por preços mais baratos. Todas estas causas arruínam-no lenta mas seguramente; porém, e sem a fiação, ele não estaria em condições de pagar os impostos directos no dia do vencimento; esta oferece-lhes uma fonte auxiliar, que ocupa utilmente a sua mu- lher, os seus filhos, as suas criadas, os seus criados e ele mesmo. Entretanto, ape- sar desta fonte auxiliar, que vida penosa! No verão, trabalha como um condenado na lavra e na colheita; às 9 horas deita-se para dormir e levanta-se às 2 horas da manhã, para dar conta do seu trabalho; no inverno, ele precisaria de restaurar as forças mediante um descanso mais longo; mas faltar-lhe-iam cereais para o pão e para a semeadura, caso se desfizesse dos frutos da terra, que teria de vender para pagar os impostos. Para tapar esse buraco, precisa, portanto, de fiar (...) e com a maior persistência. Assim, o camponês, no inverno, vai descansar à meia-noite ou à 1 hora e levanta-se às 5 ou 6 horas; ou deita-se às 9 e levanta-se às 2, e assim todos os dias da sua vida, com excepção do domingo. Esse excesso de vigília e trabalho desgasta as pessoas, o que faz que no campo homens e mulheres envelhe- çam muito mais cedo que na cidade”. (Mirabeau. Op. cit., t. III, p. 212 e segs.) Adenda à 2.ª edição: Em março de 1866, 18 anos depois da publicação do escrito de Robert Somers, acima citado, o Prof. Leone Levi fez uma conferência na So- ciety of Artsª3 sobre a transformação das pastagens de ovelhas em florestas de caça, em que descreve o progresso da devastação nas Terras Altas da Escócia. Ele diz, entre outras coisas: “Despovoamento e transformação em simples pastagem de ovelhas ofereciam o meio mais cómodo para uma renda sem despesas. (...) Uma deer forest em lugar da pastagem de ovelhas tornou-se uma mudança comum nas Terras Altas. As ovelhas são expulsas por animais selvagens, assim como antes se expulsaram os seres humanos para dar lugar às ovelhas. (...) Pode-se marchar das A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 223 parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstân- cias. Daí ter surgido em toda a Europa Ocidental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabun- dagem. Os antepassados da actual classe trabalhadora foram imediata- mente punidos pela transformação que lhes foi imposta em vagabundos e paupers. A legislação tratava-os como criminosos “voluntários” e assu- mia que dependia da sua boa vontade continuarem a trabalhar nas antigas condições que já não existiam. Na Inglaterra, essa legislação começou com Henrique VII. Henrique VIII, em 1530: os mendigos velhos e incapazes de trabalhar recebem uma licença de mendigo. Em contrapartida, chicoteamento e encarceramento para os vagabundos robustos. Devem ser atados à parte de trás de uma carroça e fustigados até que o sangue corra do seu corpo, fazem depois um juramento de regressar ao seu lugar de nascimento ou onde moraram nos últimos três anos e de “se porem ao trabalho” (to put himself to labour). Que ironia cruel! No 27.° [ano do reinado] de Henri- que VIII o estatuto precedente é repetido, mas reforçado com novos

propriedades do Conde de Dalhouise em Forfarshire até John o’Groats sem sair das terras de florestas. Em muitas” (dessas florestas) “a raposa, o gato selvagem, a marta, a fuinha, a doninha e a lebre alpina estão instalados; enquanto o coelho, o esquilo e o rato encontraram há pouco tempo o caminho para lá. Enormes áreas de terra, que na estatística da Escócia figuravam como pastagens de excepcional ferti- lidade e extensão, estão agora excluídas de toda a cultura e melhoramento, sendo dedicadas exclusivamente ao prazer da caça para algumas pessoas – e isso dura apenas um curto período do ano”. O Economist de Londres, de 2 de junho de 1866, diz: “Um jornal escocês infor- mou, na semana passada, entre outras novidades: ‘Uma das melhores pastagens para ovelhas em Sutherlandshire, pela qual ao final do actual contrato de arrenda- mento se ofereceu recentemente uma renda anual de 1200 libras esterlinas, será transformada em deer forest!” Os instintos feudais manifestam-se (...) como na época em que o conquistador normando (...) destruiu 36 aldeias para criar a New Forest. (...) Dois milhões de acres, os quais incluíam algumas das terras mais fér- teis da Escócia, estão completamente devastados. A relva natural de Glen Tilt con- ta-se entre as mais nutritivas do condado de Perth; a deer forest de Ben Aulder era a melhor pastagem do amplo distrito de Badenoch; uma parte da Black Mount Forest era a melhor pastagem para ovelhas de focinho preto. Da ampliação da base fundiária devastada para a paixão da caça pode-se formar uma ideia a partir do facto de que ela abrange uma área muito maior que todo o condado de Perth. A perda da terra em fontes de produção, em consequência dessa desolação forçada, pode-se avaliar pelo facto de que o solo da forest de Ben Aulder podia alimentar 15 mil ovelhas e representa apenas 1/30 do conjunto das reservas de caça da Escó- cia. (...) Toda essa área de caça é totalmente improdutiva (...) poderia, do mesmo modo, estar submersa nas águas do mar do Norte. A mão forte da legislação deve- ria acabar com tais ermos ou desertos improvisados”. ª3 Ver Marx. O Capital, v. I, t. 1, p. 285, nota a. (N. do Ed.) 224 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … aditamentos. Ao ser apanhado pela segunda [vez] em vagabundagem, o chicoteamento deve ser repetido e metade da orelha cortada; à terceira vez, porém, o visado é executado como grande criminoso e inimigo da comunidade. Eduardo VI: um estatuto do primeiro ano do seu reinado, 1547, ordena que, se alguém se recusar a trabalhar, deve ser sentenciado como escravo da pessoa que o denunciou como desocupado. O dono deve alimentar o seu escravo com pão e água, bebida fraca e os restos de carne que achar convenientes. Tem o direito de obrigá-lo a qualquer trabalho ainda que repugnante por meio de chicoteamento e de agrilhoamento. Se o escravo se ausentar por 14 dias, é condenado à escravatura por toda a vida e deve ser marcado a fogo com a letra S [de slave, escravo] na fronte ou nas faces; se fugir pela terceira vez, é executado como traidor público. O dono pode vendê-lo, legá-lo, alugá-lo como escravo, inteiramente como outro bem móvel ou gado. Se os escravos empreenderem algo contra os donos, devem igualmente ser executados. Por informação os juízes de paz devem perseguir o malandro. Se se verificar que um vadio não fez nada durante três dias, deve ser levado para o seu lugar de nascimento, marca- do a fogo com um ferro ao rubro, no peito, com o sinal V [de vagabundo] e aí, com cadeias, deve ser utilizado nas ruas ou em qualquer outro servi- ço. Se o vagabundo der um lugar de nascimento falso, como castigo deve ficar escravo por toda a vida desse lugar, dos moradores ou da corporação e ser marcado a fogo com um S. Todas as pessoas têm o direito de tirar os filhos aos vagabundos e de os manter como aprendizes – os rapazes até aos 24 anos, as raparigas até aos 20. Se fugirem, deverão ficar escravos do dono até essa idade, o qual, consoante quiser, os poderá prender com cadeias, chicotear, etc. Cada dono pode pôr um anel de ferro à volta do pescoço, do braço ou da perna do seu escravo, para o conhecer melhor e estar seguro de que é seu.47 A última parte deste estatuto prevê que certos pobres devem ser empregados pelo lugar ou pelos indivíduos que lhes queiram dar de comer e de beber e encontrar trabalho para eles. Esta espécie de escravos paroquiais conservou-se, em Inglaterra, até bem dentro do século XIX, sob o nome de roundsmen (rondadores). Isabel, em 1572: mendigos sem licença e acima dos 14 anos de idade devem ser fortemente chicoteados e marcados a fogo na orelha esquerda, no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois anos; em

47 O autor do Essay on Trade etc., 1770, observa: “sob o reinado de Eduardo VI, os ingleses parecem, de facto, terem-se proposto, com toda a seriedade, o encoraja- mento das manufacturas e a ocupação dos pobres. Isso apreendemos de um notável estatuto no qual se diz que todos os vagabundos devem ser marcados a ferro”, etc. (Op. cit., p. 5.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 225 caso de reincidência, se estão acima dos 18 anos de idade, devem ser executados, no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois anos; à terceira reincidência, porém, são executados sem piedade como traidores públicos. Estatutos semelhantes: no 18.° [ano do reinado] de Isabel, c. 13, e em 1597.48 Jaime I: uma pessoa vadia e mendiga é declarada malandro e vaga- bundo. Os juízes de paz nas petty sessions49 têm o poder de os mandar chicotear em público e de os encarcerar, na primeira vez que forem

48 Thomas Morus diz na sua Utopia [tradução inglesa de Ralph Robinson, London, 1869, pp. 41, 42]: “Pelo facto de um glutão cobiçoso e insaciável – e verdadeira praga para a sua terra natal – poder circundar e vedar juntamente muitos milhares de acres de terra dentro de uma paliçada ou cerca, os lavradores podem ser empur- rados para fora do que é deles ou, seja por vigarice e fraude, seja por opressão violenta, podem ser postos fora dele ou podem ser tão atormentados por males e injúrias que sejam compelidos a vender tudo: por conseguinte, por um meio ou por outro, assim ou assado, forçosamente, têm de ir-se embora – pobres, inocentes, miseráveis almas, homens, mulheres, maridos, esposas, crianças sem pais, viúvas, mães aflitas com os seus bebés, e todos os seus haveres domésticos pequenos em substância, e muitos em número, uma vez que a lavoura requer muitos braços. Arrastam-se para longe, digo eu, para fora das casas conhecidas a que estavam acostumados, não encontrando qualquer lugar para descansar. Todos os seus have- res domésticos, que valem muito pouco, ainda poderiam suportar a venda: no en- tanto, sendo postos fora de repente, são constrangidos a vendê-los por quase nada. E quando eles vaguearem até isso ter sido gasto, que mais podem fazer então se- não roubar e serem, então, por deus!, justamente enforcados, ou então andar por aí a mendigar? E, então, contudo, são também postos na prisão como vagabundos, porque vagueiam e não trabalham: eles, a quem ninguém quer dar trabalho, apesar de nunca de tão boa vontade se disporem a isso.” Destes pobres fugitivos de quem Thomas Morus diz que eram compelidos ao roubo “72 000 grandes e pequenos ladrões foram executados» no reinado de Henrique VIII. (Holinshed, Description of England [Descrição da Inglaterra], vol. I, p. 186.) No tempo de Isabel, “os ma- landros eram enforcados apressadamente e, geralmente, não havia um ano em que trezentos ou quatrocentos não fossem devorados e comidos pelo patíbulo”. (Strype, Annals of the Reformation and Establishment of Religion, and other Vari- ous Occurrences in lhe Church of England during Queen Elisabeth’s Happy Reign [Anais da Reforma e Estabelecimento da Religião, e Outras Várias Ocorrências na Igreja de Inglaterra durante o Feliz Reinado da Rainha Isabel], 2nd ed., 1725, vol. II.) Segundo o mesmo Strype, no Somersetshire, num único ano, foram executadas 40 pessoas, 35 foram marcadas a fogo, 37 chicoteadas e 183 postas em liberdade como incorrigíveis vagabundos”. Todavia, diz ele, “este grande número de prisio- neiros não compreende sequer um quinto dos efectivos criminosos, graças à negli- gência dos juízes e à tola compaixão do povo”. E acrescenta: “Os outros condados da Inglaterra, a este respeito, não eram melhores do que o Somersetshire, enquanto alguns eram mesmo piores.” (Nota de Marx.) 49 Petty sessions (sessões pequenas): reuniões de juízes de paz, em Inglaterra, onde são examinados pequenos casos para simplificar o processo judicial. 226 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … apanhados, por 6 meses, na segunda, por 2 anos. Durante a prisão devem ser chicoteados tanto e tão frequentemente quanto os juízes de paz acha- rem por bem... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos devem ser mar- cados a fogo com um R [de rogue, vagabundo, malandro, vadio] no ombro esquerdo e postos a trabalhos forçados e, se forem de novo apa- nhados a mendigar, devem ser executados sem piedade. Estas ordena- ções, legalmente vinculativas até aos primeiros tempos do século XVIII, só foram revogadas por Ana no 12.° [ano do seu reinado], c. 23. Leis semelhantes vigoraram em França, onde em meados do século XVII se estabeleceu um reino de vagabundos (royaume des truands) em Paris. Ainda nos primeiros anos de reinado de Luís XVI (ordenança de 13 de julho de 1777) todo o homem de boa saúde dos 16 aos 60 anos, sem meios de existência e sem exercer uma profissão, devia ser mandado para as galés. Semelhantes são o estatuto de Carlos V para os Países Baixos, de outubro de 1537, o primeiro édito dos Estados e Cidades da Holanda, de 19 de março de 1614, e o das Províncias Unidas de 25 de julho de 1649, etc. Assim, o povo do campo, expropriado à força da terra, expulso e feito vagabundo, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa discipli- na necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura. Não basta que as condições de trabalho se coloquem, num pólo, como capital, e, no outro pólo, como homens que não têm nada que vender a não ser a sua força de trabalho. Também não basta forçá-los a venderem- -se de livre vontade. No decurso da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação, tradição, hábito, admite as exigências daquele modo de produção como evidentes leis da natureza. A organização do modo de produção capitalista, quando plenamente desen- volvido, quebra qualquer resistência; a constante criação de uma sobre- população relativa mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o trabalho assalariado numa via que corresponde às necessida- des de utilização do capital; a compulsão das relações económicas com- pleta a sujeição do trabalhador ao capitalista. O uso directo da força, as condições económicas exteriores, continuam, com efeito, a ser usadas, mas apenas excepcionalmente. No dia a dia, os trabalhadores podem ser abandonados às “leis naturais da produção”, isto é, à sua dependência do capital, decorrente das próprias condições da produção, por eles garantida e eternizada. Durante a génese histórica da produção capitalista foi de outra maneira. A burguesia ascendente precisa e emprega o poder do Estado para “regular” o trabalho assalariado, isto é, para comprimir os salários dentro dos limites que convêm à obtenção de mais-valia [Plus- macherei], para prolongar o dia de trabalho e para conservar o próprio A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 227 trabalhador num grau normal de dependência. Este é um elemento essen- cial da chamada acumulação primitiva. A classe dos trabalhadores assalariados, que surgiu na última metade do século XIV, constituía então e no século seguinte apenas uma parte mínima da população, bem protegida na sua posição pelo camponês autónomo no campo e pela organização corporativa na cidade. No campo e na cidade, mestres e trabalhadores estavam socialmente próximos. A subordinação do trabalho ao capital era apenas formal, isto é, o próprio modo de produção não possuía ainda um carácter especificamente capita- lista. O elemento variável do capital predominava fortemente sobre o constante. A procura de trabalho assalariado crescia, portanto, rapida- mente com toda a acumulação do capital, enquanto a oferta de trabalho assalariado a seguia, mas lentamente. Grande parte do produto nacional, convertida mais tarde em fundo de acumulação do capital, ainda entrava no fundo de consumo do trabalhador. A legislação sobre o trabalho assalariado, desde o início cunhada para a exploração do trabalhador e de seguida sempre hostil a ele,50 foi ini- ciada na Inglaterra pelo Statute of Labourers [Estatuto dos Trabalhado- res] de Eduardo III, em 1349. Correspondeu-lhe em França a Ordenança de 1350, promulgada em nome do rei João. A legislação inglesa e a francesa seguem paralelas, e quanto ao conteúdo são idênticas. Na medi- da em que os estatutos dos trabalhadores buscam forçar o prolongamento da jornada de trabalho, não voltarei a eles, pois esse ponto já foi tratado anteriormente (Capítulo VIII, 5).ª O Statute of Labourers foi promulgado em virtude das queixas insis- tentes da Câmara dos Comuns.

“Outrora”, diz ingenuamente um tory, “os pobres exigiam salários tão altos que ameaçavam a indústria e a riqueza. Agora, o seu salário está tão baixo que ameaça igualmente a indústria e a riqueza, mas de modo diferente e talvez mais perigoso que então.”51

Foi legalmente fixada uma tarifa de salários para a cidade e para o campo, para trabalho à peça e à jorna. Os trabalhadores rurais devem

50 “Sempre que a legislação procura regular as diferenças entre empresários e traba- lhadores, os seus conselheiros são sempre os empresários” diz A. Smith.ª “O espí- rito das leis é a propriedade”, diz Linguet.ª1 a Smith, A. Wealth of Nations. Edimburgo, 1814, p. 142 (N. da Ed. Alemã.) a1 Linguet, S. N. H. Op. cit., v. 1, p. 236. (N. da Ed. Alemã.) 51 Byles, J. B. Sophisms of Free Trade. By a Barrister. Londres, 1850, p. 206. Este acrescentava maliciosamente: “Estivemos sempre à disposição para intervir pelo empregador. Nada se pode fazer pelo empregado?” 228 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO … alugar-se ao ano, os citadinos no “mercado aberto”. Foi proibido, sob pena de prisão, pagar salários mais altos do que os estatutários, mas o recebimento de salário mais alto era mais fortemente castigado do que o seu pagamento. Assim, nas secções 18 e 19 do Estatuto do Aprendiz de Isabel, inflige-se uma pena de prisão de dez dias àquele que pagar um salário mais alto e, em contrapartida, uma pena de prisão de vinte e um dias àquele que o receber. Um Estatuto de 1360 agudiza as penas e dá mesmo aos mestres poder para, por compulsão corporal, extorquir traba- lho à tarifa de salário legal. Todas as combinações, contratos, juramentos, etc., pelos quais pedreiros e carpinteiros se ligaram reciprocamente foram declarados nulos e de nenhum efeito. A coalizão de trabalhadores foi tratada como crime grave, do século XIV até 1825, ano da abolição das leis anticoalizão.52 O espírito do Estatuto dos Trabalhadores de 1349 e dos que se lhe sucederam manifesta-se claramente em que, com efeito, foi ditado pelo Estado um máximo para o salário, mas de modo nenhum um mínimo. No século XVI, como se sabe, piorou muito a situação dos trabalhadores. O salário monetário subiu, mas não em proporção à depre- ciação do dinheiro e à correspondente elevação dos preços das mercado- rias. O salário, portanto, caiu de facto. Contudo, continuavam em vigor as leis destinadas ao seu abaixamento simultaneamente com os cortes de orelhas e a marcação a ferro daqueles “que ninguém tomar a seu serviço”. Pelo Estatuto dos Aprendizes do 5.° [ano do reinado] de Isabel, c. 3, os juízes de paz foram autorizados a fixar certos salários e a modificá-los segundo as épocas do ano e os preços das mercadorias. Jaime I estendeu essa regulação do trabalho também aos tecelões, fiandeiros e a todas as categorias possíveis de trabalhadores;53 Jorge II estendeu a lei anticoali- zão a todas as manufacturas.

52 As leis contra as coalizões, proibindo a criação e actividade de qualquer organiza- ção operária, foram adoptadas pelo Parlamento britânico em 1799 e 1800. Em 1824, o Parlamento revogou estas leis, tendo confirmado a sua revogação em 1825. No entanto, mesmo depois disto, a actividade das organizações operárias continuou consideravelmente restringida. Mesmo a simples propaganda a favor a adesão dos operários a um sindicato e a favor da participação em greves era consi- derada como “coacção” e “violência” e punida como um delito de direito comum. 53 A partir de uma cláusula do Estatuto do 2.° [ano do reinado] de Jaime I, c. 6, vê-se que certos fabricantes de panos se permitiram, quais juízes de paz, ditar a tarifa de salários oficial nas suas próprias oficinas. Na Alemanha, nomeadamente depois da Guerra dos Trinta Anos, eram frequentes estatutos para manter os salários baixos. “A falta de criados e operários no campo despovoado era muito incómoda para os senhores da terra. Todos os aldeãos estavam proibidos de alugar quartos a homens e mulheres sós; todos estes deviam ser indicados às autoridades e postos na prisão, no caso de se não quererem tornar criados, mesmo que eles se mantivessem com uma outra actividade, semeassem à jorna para os camponeses ou mesmo comercias- A CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA | 229

No período da manufactura propriamente dito, o modo de produção capitalista tinha-se fortalecido suficientemente para tornar a regulamenta- ção legal do salário tão inexequível como supérflua, mas, em caso de necessidade, não se queria ficar privado das armas do velho arsenal. Jorge II, no 8.° [ano do seu reinado], ainda proibiu um salário diário superior a 2 xelins e 7,5 dinheiros para os oficiais alfaiates, em Londres e arredores, excepto nos casos de luto geral; Jorge III, no 13.° [ano do seu reinado], c. 68, ainda remeteu a regulamentação do salário dos tecelões de seda para os juízes de paz; em 1796, ainda eram precisas duas sentenças dos tribu- nais superiores para decidir se as ordens dos juízes de paz sobre o salário também eram válidas para operários não agrícolas; em 1799, uma lei do Parlamento ainda sancionava que o salário dos trabalhadores das minas da Escócia devia ser regulamentado por um Estatuto de Isabel e por duas leis escocesas de 1661 e 1671. Entretanto, o muito que as relações se revolucionaram prova-o uma ocorrência inaudita na Câmara Baixa. Aí, onde há mais de 400 anos se tinham fabricado leis sobre o máximo que o salário não podia absolutamente ultrapassar, Whitbread, em 1796, propôs um salário mínimo legal para as jornas na agricultura. Pitt opôs-se, mas acrescentou que a “condição dos pobres era cruel”. Finalmente, em 1813, as leis sobre a regulamentação dos salários foram abolidas. Eram uma anomalia ridícula, uma vez que o capitalista regia a fábrica por uma legis- lação privada sua e, pelo imposto dos pobres, podia completar o salário do trabalhador do campo até ao mínimo indispensável. As determinações dos Estatutos dos Trabalhadores54 acerca de contratos entre mestre e operário assalariado, acerca de notificações de prazos e coisas parecidas, que só permitiam uma acção civil contra o mestre que quebrasse o con- trato, mas [permitiam] uma acção criminal contra o trabalhador que quebrasse o contrato, estão, até à hora actual, em pleno vigor.

sem com dinheiro e em cereais.” (Kaiserliche Privilegien und Sanctiones fiir Schlesien [Privilégios e Sanções Imperiais para a Silésia], I, 125.) “Durante todo um século, nas ordenações dos soberanos figura sempre de novo uma queixa amarga acerca da canalha má e petulante, que não se acomoda às condições duras, que não se quer satisfazer com o salário legal; é proibido ao senhor da terra dar mais do que [aquilo] que a região fixou numa taxa. E, todavia, as condições do serviço, depois da guerra, são por vezes ainda melhores do que seriam 100 anos mais tarde; o criado, em 1652, na Silésia, ainda tinha carne duas vezes por sema- na; já no nosso século, nesse mesmo lugar, há distritos em que ele só a tem três vezes por ano. A jorna, depois da guerra, também era mais elevada do que nos séculos seguintes.” (G. Freytag [Neue Bilder aus dem Leben des deutschen Volkes (Novos Quadros da Vida do Povo Alemão), Leipzig, 1862, S. 35, 36].) (Nota de Marx.) 54 Nas 3.ª e 4.ª edições: Estatuto do Trabalho. 230 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

As leis cruéis contra as coalizões caíram, em 1825, ante a atitude ame- açadora do proletariado. Apesar disso, só caíram em parte. Alguns lindos restos dos velhos estatutos só desapareceram em 1859. Finalmente, um decreto do Parlamento de 29 de Junho de 1871 reclamou a eliminação dos últimos vestígios desta legislação de classe pelo reconhecimento legal das trades’ unions.55 Mas um decreto do Parlamento da mesma data (An act to amend the criminal law relating to violence, threats and molestation restabelecia, de facto, o estado anterior sob uma nova forma. Através deste escamoteamento parlamentar, os meios de que os operários se podiam servir por ocasião de uma greve ou lock-out (greve dos fabrican- tes coligados, mediante o encerramento simultâneo das suas fábricas) foram retirados do direito comum e postos sob uma legislação penal de excepção, cuja interpretação cabia aos próprios fabricantes, na sua quali- dade de juízes de paz. Dois anos antes, a mesma Câmara Baixa e o mes- mo senhor Gladstone, da maneira honesta conhecida, haviam apresentado um projecto de lei para a abolição de todas as leis penais de excepção contra a classe operária. Mas nunca se deixou que isso fosse mais longe do que a segunda leitura e arrastou-se, assim, a coisa para as calendas, até que, finalmente, o “grande partido liberal”, mediante uma aliança com os Tories, ganhou a coragem de se decidir a voltar-se contra o mesmo prole- tariado que o havia levado ao poder. Não contente com esta traição, o “grande partido liberal” autorizou os juízes ingleses, em todos os tempos uns bajuladores ao serviço das classes dominantes, a desenterrar de novo as leis prescritas sobre “conspirações” e a aplicá-las a coalizões de operá- rios. Vê-se que, só contra vontade e sob a pressão das massas, é que o Parlamento inglês renunciou às leis contra as greves e as trades’ unions, depois de ele próprio, durante cinco séculos, com desavergonhado egoís- mo, ter apoiado a posição de uma trades’ union permanente dos capitalis- tas contra os operários. Logo no início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou abolir de novo o direito de associação que os trabalhadores tinham acaba- do de conquistar. Pelo decreto de 14 de junho de 1791 ela declarou qual- quer coalizão de trabalhadores como um “atentado à liberdade e à decla- ração dos direitos humanos”, punível com a multa de 500 libras além da privação, por um ano, dos direitos de cidadão activo.56 Esta lei, que

55 Formulação que antecedeu a generalização da expressão trade union (sindicato). Versões da época noutras línguas: em francês sociétés ouvrières (sociedades ope- rárias), em alemão Gewerksgenossenschaften (associações de ofícios). (Nota da edição portuguesa da Editorial Avante!) 56 O artigo I dessa lei declara: “Visto que uma das bases fundamentais da Constitui- ção francesa consiste na supressão de todas as espécies de união de cidadãos da mesma condição e profissão, é proibido restabelecê-las sob qualquer pretexto ou A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 231 comprime a luta de concorrência entre o capital e o trabalho por meio da polícia do Estado nos limites convenientes ao capital, sobreviveu a revo- luções e mudanças dinásticas. Mesmo o Governo do Terror57 deixou-a intocada. Só recentemente foi ela riscada totalmente do Code Penal [Código Penal]. Nada é mais característico do que o pretexto deste golpe de estado burguês. “Ainda que”, diz Le Chapelier, o relator, “o salário do dia de trabalho devesse ser um pouco mais considerável do que é presen- temente... pois, numa nação livre, os salários devem ser suficientemente consideráveis para que aquele que os recebe esteja fora daquela depen- dência absoluta que a privação das carências de primeira necessidade produz, e que é quase a da escravatura”; todavia, os operários não podem entender-se sobre os seus interesses, agir em conjunto e, por esse facto, afrouxar a sua “dependência absoluta, que é quase escravatura”, porque, precisamente por isso, ofendem “a liberdade dos actuais empresários, dos ci-devant maîtres” (a liberdade de manter os operários na escravatura!) e porque uma coalizão contra o despotismo dos antigos mestres das corpo- rações – adivinhe-se! – é um restabelecimento das corporações, abolidas pela Constituição francesa.58

4. Génese dos rendeiros capitalistas

Depois de termos considerado a criação pela força do proletariado li- vre como os pássaros, a disciplina sanguinária que os transformou em trabalhadores assalariados, a sórdida acção do soberano e do Estado que usou a polícia para acelerar a acumulação do capital aumentando o grau de exploração do trabalho, pergunta-se: de onde vêm originalmente os capitalistas? Pois a expropriação do povo do campo cria, directamente, apenas grandes proprietários fundiários. No que concerne à génese do rendeiro, podemos, por assim dizer, tocá-la com as mãos, porque ela é um processo lento, que se arrasta por muitos séculos. Os próprios servos, ao

em qualquer forma”. O artigo IV declara que, se “cidadãos que pertencem à mes- ma profissão, arte ou ofício se consultarem mutuamente e conjuntamente tomarem deliberações que tenham por objectivo recusar o fornecimento dos serviços da sua arte ou do seu trabalho, ou concedê-los apenas a determinado preço, as ditas con- sultas e acordos deverão ser declarados como anticonstitucionais e como atentados contra a liberdade e os direitos humanos, etc.”, portanto como crimes contra o Estado, exactamente como nos velhos estatutos de trabalhadores. (Révolutions de Paris. Paris, 1791, t. III, p. 523.) 57 O governo da ditadura jacobina em França de Junho de 1793 a Junho de 1794 (N. da Ed. Alemã.). 58 Buchez e Roux. Histoire Parlamentaire, t. X, p. 193-195 passim. 232 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … lado dos quais houve também pequenos proprietários livres, encontra- vam-se em relações de propriedade bastante diferentes e foram, por isso, emancipados também sob condições económicas muito diferentes. Na Inglaterra, a primeira forma de arrendatário, é o bailiff, ele mesmo um servo. A sua posição é idêntica a do villicus da Roma Antiga, só que numa esfera de acção mais estreita. Durante a segunda metade do século XIV, ele é substituído por um rendeiro a quem o landlord fornece se- mentes, gado e instrumentos agrícolas. A sua situação não é muito dife- rente da do camponês. Apenas explora mais trabalho assalariado. Em breve, ele irá tornar-se metayer [meeiro], meio rendeiro. Ele avança uma parte do capital agrícola, o landlord a outra. Ambos dividem o produto global numa proporção contratualmente determinada. Esta forma desapa- rece rapidamente na Inglaterra, para dar lugar ao rendeiro propriamente dito, que valoriza o seu próprio capital pelo emprego de trabalhadores assalariados e paga uma parte do sobreproduto, em dinheiro ou in natura, ao landlord como renda da terra. Enquanto, durante o século XV, o camponês independente e o servo agrícola, que trabalha como assalariado e, ao mesmo tempo, para si mesmo, enriquecem mediante o seu trabalho, a situação do rendeiro e do seu campo de produção permaneciam igualmente medíocres. A revolução agrícola, no último terço do século XV, que prossegue por quase todo o século XVI (à excepção das suas últimas décadas) enriqueceu o rendeiro com a mesma rapidez com que empobreceu o povo do campo.59 A usur- pação das pastagens comunais, etc., permitiu-lhe um grande aumento do seu efectivo pecuário quase sem custos, enquanto o gado lhe fornecia maior quantidade de adubo para o cultivo do solo. No século XVI acresce ainda um momento decisivamente importante. Naquela época, os contratos de arrendamento eram longos, frequente- mente por 99 anos. A contínua queda em valor dos metais nobres, e, portanto, do dinheiro, foi para os rendeiros uma mina de ouro. Ele redu- ziu, abstraindo as demais circunstâncias anteriormente mencionadas, o salário. Uma fracção do mesmo foi acrescentada ao lucro do rendeiro. O constante aumento dos preços dos cereais, da lã, da carne, enfim de todos os produtos agrícolas, dilatou o capital monetário do rendeiro sem ele ter feito nada por isso, enquanto a renda da terra que ele tinha de pagar, sendo calculada em valores monetários ultrapassados, minguou.60 Assim,

59 “Rendeiros”, diz Harrison na sua Description of England, “para os quais antes era difícil pagar uma renda de 4 libras esterlinas, pagam agora 40, 50, 100 libras ester- linas e acreditam haver feito um mau negócio, se depois de terminar o seu contrato de arrendamento não puseram de parte 6 a 7 anos de rendas.” 60 Acerca da influência da depreciação da moeda no século XVI sobre as diversas classes da sociedade, veja-se: A Compendious or Briefe Examination of Certayne A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 233 ele enriquecia, ao mesmo tempo, à custa de seus trabalhadores assalaria- dos e de seu landlord. Não é de admirar, portanto, que a Inglaterra, nos fins do século XVI, possuísse uma classe de “rendeiros de capital” bas- tante ricos para a época.61

Ordinary Complaints of Divers of our Countrymen in these our Days. By W. S., Gentleman [Um Exame Compendioso ou Breve de Certas Queixas Correntes de Diversos Compatriotas Nossos Nestes Nossos Dias. Por W. S., fidalgo], (London, 1581.) A forma de diálogo deste escrito levou a que durante muito tempo fosse atribuído a Shakespeare e, ainda em 1751, ele foi novamente publicado com o seu nome. O seu autor é William Stafford. Numa passagem, o cavaleiro (knight) racio- cina como segue: “Knight: V., meu vizinho, lavrador. V., mestre negociante de tecidos, e V., compadre tanoeiro, juntamente com outros artífices, podeis salvar-vos bastante bem. Pois, por muito que todas as coisas estejam mais caras do que estavam, vós aumentais outro tanto o preço das vossas mercadorias e ocupações, que vendeis de novo. Mas nós não temos nada para vender cujo preço possamos subir, para con- trabalançar aquelas coisas que temos de comprar de novo.” Numa outra passagem, o knight pergunta ao doutor: “Rogo-vos que [me digais] quais são essas espécies [de pessoas] a que vos referis. E, em primeiro lugar, aquelas que pensais que, por esse facto, não terão qualquer perda? – Doutor: Refiro-me a todos aqueles que vivem comprando e vendendo, pois, como compram caro, vendem em conformi- dade. – Knight: Qual é a espécie seguinte que dizeis que ganharia com isso? – Doutor: Deveras, todos aqueles que têm tomadas quintas, amanhadas por eles, com a renda antiga, pois quando pagam pela taxa antiga vendem pela nova – isto é, pagam muito barato pela sua terra e vendem todas as coisas que nela crescem caro. – Knight: Qual é aquela espécie que haveis dito que teria, consequentemente, uma perda maior do que estes homens têm de lucro? – Doutor: São todos os nobres, fidalgos e todos os outros que ou vivem de uma renda fixa ou estipêndio, ou não amanham o solo ou não se ocupam a comprar e a vender.” (Nota de Marx.) 61 Em França, o régisseur, o intendente e recebedor de rendimentos para os senhores feudais, na Baixa Idade Média, torna-se rapidamente um homme d’affaires [ho- mem de negócios]que, por extorsão, intrujice, etc, trepa para capitalista. Estes ré- gisseurs eram, muitas vezes, eles próprios senhores nobres. Por exemplo: “É a conta que o senhor Jacques de Thoraine, cavaleiro castelão de Besançon, dá ao senhor que, em Dijon, tem as contas do senhor duque e conde de Borgonha das rendas pertencentes à dita castelania desde o XXV dia de Dezembro de MCCCLIX até ao XXVIII dia de Dezembro de MCCCLX, etc.” (Alexis Monteil, Traité des matériaux manuscrits, etc. [Tratado dos Materiais Manuscritos, etc], pp. 234, 235.) Verifica-se já aqui como em todas as esferas da vida social que a parte de leão cabe ao intermediário. No campo económico, por exemplo, financeiros, homens da bolsa, comerciantes, pequenos merceeiros, absorvem a nata do negócio; no direito civil, o advogado tosquia as partes; na política, o representante significa mais do que os eleitores, o ministro mais do que o soberano; na religião, deus é afastado para segundo plano pelo “mediador” e este é de novo repelido pelos padres que, novamente, são mediadores indispensáveis entre o bom pastor e as suas ovelhas. Tal como em Inglaterra, também em França os grandes territórios feudais estavam 234 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

5. Repercussão da revolução agrícola sobre a indústria. Criação do mercado interno para o capital industrial

A intermitente e sempre renovada expropriação e expulsão do povo do campo, como foi visto, forneceu à indústria urbana mais e mais massas de proletários, situados totalmente fora das relações corporativas, uma sábia circunstância que faz o velho A. Anderson (que não se deve confundir com James Anderson), na sua história do comércio, acreditar numa intervenção directa da Providência. Temos de nos deter ainda um mo- mento neste elemento da acumulação primitiva. À rarefacção do povo independente, economicamente autónomo, do campo correspondeu o adensamento do proletariado industrial, do mesmo modo que, segundo Geoffroy Saint-Hilaire, o adensamento da matéria do universo aqui se explica pela sua rarefacção ali.62 Apesar do número reduzido dos seus cultivadores, o solo proporcionava, depois como antes, tanta ou mais produção, porque a revolução nas relações de propriedade fundiária foi acompanhada por métodos melhorados de cultura, maior cooperação, concentração dos meios de produção, etc., e porque os assalariados agrícolas não apenas foram obrigados a trabalhar mais intensamente,63 mas também o campo de produção sobre o qual trabalhavam para si mesmos se contraía mais e mais. Com a libertação de parte do povo do campo, os alimentos que este consumia anteriormente também são liber- tados. Transformam-se agora em elemento material do capital variável. O camponês despojado tem de adquirir o valor deles ao seu novo senhor, o capitalista industrial, sob a forma de salário. Tal como os meios de sub- sistência, foram afectadas também as matérias-primas agrícolas nacionais da indústria. Transformaram-se em elemento do capital constante.

repartidos em infinitas pequenas explorações, mas em condições incomparavel- mente mais desfavoráveis para o povo do campo. Durante o século XIV, nasceram as quintas, fermes ou terriers. O seu número cresceu constantemente, muito acima de 100 000. Pagavam uma renda fundiária variável de 1/12 a 1/5 do produto, em dinheiro ou in natura. Os terriers eram feudos, subfeudos, etc. (fiefs, arrière-fiefs), segundo o valor e extensão dos domínios, em que muitos só contavam poucos arpents. Todos estes terriers possuíam jurisdição num grau qualquer sobre os ocu- pantes do solo; havia quatro graus. Conceber-se-á a opressão do povo do campo sob todos estes pequenos tiranos. Monteil diz que havia então, em França, 160 000 juízos, onde hoje 4000 tribunais (incluindo juízos de paz) bastam. (Nota de Marx.) 62 Nas suas Notions de Philosofie Naturelle, Paris, 1838. 63 Um ponto que Sir James Steuart ressalta.ª ª Steuart, James. An Inquiry into the Principles of Political Economy. Dublin, 1770, v. I. Livro Primeiro. Cap. 16 (N. da Ed. Alemã.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 235

Suponha-se, por exemplo, que parte dos camponeses da Vestefália, que no tempo de Frederico II fiavam todos linho, ainda que não seda, fosse expropriada à força e expulsa da terra, sendo a outra restante, po- rém, transformada em jornaleiros de grandes rendeiros. Ao mesmo tem- po, erguem-se grandes fiações e tecelagens de linho, nas quais os “liber- tos” trabalham agora por salários. O linho tem exactamente o mesmo aspecto que antes. Nenhuma das suas fibras foi mudada; mas uma nova alma social penetrou-lhe no corpo. Ele constitui agora parte do capital constante dos senhores da manufactura. Antes, repartido entre inumerá- veis pequenos produtores, que o cultivavam e fiavam em pequenas por- ções com as suas famílias, está agora concentrado nas mãos de um capita- lista, que faz outros fiar e tecer para ele. O trabalho extra despendido na fiação do linho realizava-se antes como receita extra de inumeráveis famílias camponesas ou, ao tempo de Frederico II, também em impostos pour le roi de Prousse.64 Ele realiza-se agora no lucro de alguns pouco capitalistas. Os fusos e teares, antes disseminados pelo interior, estão agora concentrados nalgumas grandes casernas de trabalho, tal como os trabalhadores e como a matéria-prima. E os fusos, os teares e a matéria- -prima, de meios de existência independente para fiandeiros e tecelões, transformam-se de ora em diante, em meios de comandá-los65 e de extrair deles trabalho não-pago. Nas grandes manufacturas, bem como nas grandes quintas, não se nota que se originam da reunião de muitos peque- nos centros de produção e que são formados pela expropriação de muitos pequenos produtores independentes. Entretanto, a observação imparcial não se deixa enganar. Ao tempo de Mirabeau, o leão da revolução, as grandes manufacturas chamavam-se ainda manufactures réunies, manu- facturas reunidas, tal como falamos de campos reunidos.

“Vê-se apenas”, diz Mirabeau, “as grandes manufacturas, onde cente- nas de pessoas trabalham sob as ordens de um diretor e a que costu- meiramente se chama manufacturas reunidas (manufactures réunies). Aquelas em que trabalha um número muito grande de trabalhadores dispersos e cada um por conta própria, quase não são consideradas dignas de um olhar. São postas a uma distância infinita das outras. É um erro muito grande, pois só elas constituem um componente real- mente importante da riqueza do povo. (...) A fábrica reunida (fabrique réunie) enriquecerá maravilhosamente um ou dois empresários, os

64 Para o rei da Prússia. Em francês no texto. 65 “Eu concederei”, diz o capitalista, “que vós tenhais a honra de servir-me, sob a condição de que vós me deis o pouco que vos resta pelo incómodo que tenho de vos comandar.” (Rousseau, J. J. Discours sur l’Economie Politique [Genève, 1760, p. 70].) 236 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

trabalhadores, porém, são apenas jornaleiros e em nada participam do bem-estar do empresário. Na fábrica separada (fabrique séparée), pelo contrário, ninguém se torna rico, mas muitos trabalhadores viverão desafogados. (...) os poupados e industriosos poderão reunir um pe- queno capital, arranjar algum recurso para o nascimento de um filho, para uma doença, para eles próprios ou para algum dos seus. O núme- ro dos operários poupados e industriosos aumentará, porque verão no bom comportamento, na actividade, um meio de melhorarem essen- cialmente a sua situação e não de obterem uma pequena elevação de soldo, que nunca pode ser um objecto importante para o futuro, e cujo único produto é pôr os homens em estado de viver um pouco melhor, mas só no dia-a-dia...”66“As manufacturas reunidas, as empresas de alguns particulares que pagam a operários dia a dia para trabalharem por sua conta, podem dar desafogo a esses particulares; mas nunca constituirão um objecto digno da atenção dos governos. As manufac- turas separadas individuais, na maioria dos casos, ligadas a um peque- no cultivo da terra, são as [únicas] livres.”

A expropriação e expulsão de uma parte do povo do campo não deixa apenas livres para o capital industrial, juntamente com os operários, os seus meios de vida e o seu material de trabalho; cria o mercado interno. De facto, os acontecimentos que transformam os pequenos campone- ses em operários assalariados e os seus meios de vida e de trabalho em elementos materiais [sachliche] do capital criam ao mesmo tempo para este último o seu mercado interno. Anteriormente, a família de campone- ses produzia e preparava os meios de vida e matérias-primas que, depois, ela própria consumia na maior parte. Estas matérias-primas e meios de vida tornaram-se agora mercadorias; o grande rendeiro vende-os, eles encontram o seu mercado nas manufacturas. Fio, tela, tecidos grosseiros de lã – coisas cujas matérias-primas se encontravam ao alcance de toda a família de camponeses e por ela eram fiadas e tecidas para o seu uso próprio – transformam-se agora em artigos de manufactura, para os quais, precisamente, os distritos rurais formam o mercado de escoamento. A numerosa clientela dispersa, até agora condicionada por um conjunto de pequenos produtores trabalhando por conta própria, concentra-se agora num grande mercado proporcionado pelo capital industrial.67 Deste modo,

66 Mirabeau, Op. cit., t. III, p. 20-109 passim. Se Mirabeau considera as oficinas dispersas mais económicas e produtivas que as “reunidas” e vê nestas últimas ape- nas plantas artificiais de estufa sob os cuidados do governo do Estado, isso expli- ca-se pela situação em que então se encontrava grande parte das manufacturas continentais. 67 “Vinte libras de lã convertidas discretamente no vestuário anual de uma família de camponeses por sua própria indústria, nos intervalos de outros trabalhos – isso não A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 237 de braço dado com a expropriação de camponeses que anteriormente trabalhavam para si próprios e com a separação deles dos seus meios de produção, vai o aniquilamento da indústria rural adjacente, o processo de separação da manufactura e da agricultura. E só o aniquilamento da indústria caseira rural pode dar ao mercado interno de um país a extensão e a consistência firme de que o modo de produção capitalista precisa. Entretanto, o período manufactureiro propriamente dito não leva a ne- nhuma reestruturação radical. Recordemos que a manufactura só se apodera da produção nacional de forma fragmentária e repousa sempre sobre a oficina da cidade e sobre a indústria caseira-rural adjacente, como amplo pano de fundo. Se ela aniquila as últimas sob uma forma, em ramos de negócio particulares, em certos pontos, apela de novo para elas em outros, porque precisa delas até um determinado grau para a prepara- ção da matéria-prima. Ela produz, portanto, uma nova classe de pequenos rurais que prosseguem o amanho do solo como ramo adjacente e o traba- lho industrial para venda do produto à manufactura – directamente, ou por intermédio do comerciante – como ocupação principal. Esta é uma causa, embora não a principal, de um fenómeno que confunde, inicial- mente, o investigador da história inglesa. A partir do último terço do século XV, ele encontra queixas contínuas, somente interrompidas em certos intervalos, sobre a crescente economia capitalista no campo e a destruição progressiva do campesinato. Por outro lado, ele encontra sempre de novo este campesinato, ainda que em número mais reduzido e sempre numa forma pior.68 A causa principal é: a Inglaterra é predomi- nantemente ora cultivadora de trigo, ora criadora de gado, em períodos alternados, e com eles flutua o volume da exploração camponesa. Somen- te a grande indústria fornece, com as máquinas, a base constante da agricultura capitalista, expropria radicalmente a imensa maioria do povo do campo e completa a separação entre a agricultura e a indústria rural doméstica, cujas raízes – fiação e tecelagem – ela arranca.69 Ela conquis-

faz sensação; mas leve-se isso para o mercado, envie-se para a fábrica, dali para o revendedor, e ter-se-ão grandes operações comerciais e envolvido um capital no- minal no montante de vinte vezes o seu valor... A classe operária é assim afundada para sustentar uma população fabril miserável, uma classe lojista parasita e um sistema comercial, monetário e financeiro fictício.» (David Urquhart, Familiar Words as Afecting England and the English [Palavras Informais Relativas à Ingla- terra e aos Ingleses], London, 1855, p. 120.) (Nota de Marx.) 68 O tempo de Cromwell constitui aqui uma excepção. Enquanto a República durou, a massa do povo inglês de todas as camadas ergueu-se da degradação em que se havia afundado com os Tudors. (Nota de Marx.) 69 Tuckett sabe que a grande indústria da lã surge das próprias manufacturas e da destruição da manufactura caseira ou rural, com a introdução da maquinaria. (Tuc- 238 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … ta, portanto, também pela primeira vez, todo o mercado interno para o capital industrial.70

6. Génese do capitalista industrial

A génese do capitalista industrial71 não decorreu da mesma maneira gradual do que a do rendeiro. Sem dúvida, muitos pequenos mestres de corporação e ainda mais pequenos artesãos autónomos ou também operá- rios assalariados transformaram-se em pequenos capitalistas e, pela exploração gradualmente estendida de trabalho assalariado e correspon- dente acumulação, em capitalistas sanas phrase.72 No período de infância da produção capitalista aconteceu muitas vezes como no período de infância da cidade medieval onde a questão [de saber] quem, de entre os servos evadidos, devia ser mestre e quem [devia ser] criado, em grande parte, foi resolvida pela data mais antiga ou mais tardia da sua fuga. No entanto, o passo de tartaruga deste método não correspondia de maneira nenhuma às necessidades comerciais do novo mercado mundial, que as grandes descobertas do fim do século XV tinham criado. A Idade Média,

kett, l. c., vol. I, pp. 139-144.) “A charrua, o jugo, foram ‘invenção dos deuses e ocupação de heróis’; o tear, o fuso, a roca, serão de ascendência menos nobre? Separais a roca e a charrua, o fuso e o jugo, e obtendes fábricas e asilos para po- bres, crédito e pânicos, duas nações hostis: a agrícola e a comercial.” (David Ur- quhart, /. c., p. 122.) Mas vem agora Carey e acusa a Inglaterra, seguramente não sem razão, por se esforçar por transformar todos os outros países num povo sim- plesmente de agricultura, de que a Inglaterra seria o fabricante. Ele pretende que a Turquia foi arruinada desta maneira, porque “aos donos e ocupantes da terra nunca foi permitido pela Inglaterra fortalecerem-se pela formação daquela aliança natural entre a charrua e o tear, o martelo e o ancinho”. (The Slave Trade [O Comércio de Escravos], p. 125.) Segundo ele, o próprio Urquhart é um dos principais agentes da ruína da Turquia, por ter feito propaganda do comércio livre no interesse inglês. O melhor é que Carey – a propósito: grande lacaio dos russos – quer impedir aquele processo de separação pelo sistema de proteccionismo que o acelera. (Nota de Marx.) 70 Economistas filantrópicos ingleses, como Mill, Rogers, Goldwin Smith, Fawcett, etc, e fabricantes liberais, como John Bright e consortes, perguntam aos aristocra- tas fundiários ingleses – tal como deus a Caim pelo seu irmão Abel – para onde foram os nossos milhares de freeholders? Mas então de onde é que vós vindes? Do aniquilamento daqueles freeholders. Por que é que não lhes perguntam, além dis- so, para onde foram os tecelões, fiandeiros, artesãos, independentes? (Nota de Marx.) 71 Industrial está aqui em oposição a agrícola. Em sentido “categórico”, o rendeiro é um capitalista industrial, tal como o fabricante. 72 Sem disfarce. A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 239 porém, havia transmitido duas formas diversas de capital, que amadurece- ram nas mais diversas formações económicas da sociedade e que, antes da era do modo de produção capitalista, quand même, valiam como capital – o capital usurário e o capital comercial.

“Actualmente, toda a riqueza da sociedade vai para as mãos do capi- talista (...) ele paga ao proprietário da terra a renda, ao trabalhador o salário, ao colector de imposto e dízimo os seus direitos e guarda grande parte, na realidade a maior parte, que aumenta cada dia, do produto anual do trabalho para si mesmo. O capitalista pode agora ser considerado o proprietário de toda a riqueza social em primeira mão, apesar de nenhuma lei lhe ter concedido o direito a essa propriedade. (...) essa mudança na propriedade foi efectivada pela cobrança de ju- ros sobre o capital (...) e não é menos notável que os legisladores de toda a Europa quisessem impedir isso mediante leis contra a usura. (...) O poder do capitalista sobre toda a riqueza do país é uma revolu- ção completa no direito de propriedade; e por que lei ou série de leis foi ela efectivada?”73

O autor deveria observar que as revoluções não são feitas por meio de leis. O capital monetário formado pela usura e pelo comércio foi impedido pela constituição feudal no campo e pela constituição corporativa nas cidades de se converter em capital industrial.74 Essas barreiras caíram com a dissolução dos séquitos feudais, com a expropriação e a expulsão parcial do povo do campo. A nova manufactura foi instalada nos portos marítimos de exportação ou em pontos no campo, fora do controle do velho sistema urbano e da sua constituição corporativa. Na Inglaterra verificou-se, por isso, amarga luta das corporate towns75 contra esses novos viveiros industriais. A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África numa coutada para a caça comercial de peles-negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fun- damentais da acumulação primitiva. Segue-se-lhes de perto a guerra

73 The Natural and Artifical Rights of Property Contrasted. Londres, 1832, p. 98-99. Autor do escrito anónimo: Th. Hodgskin. (Nota de Marx.) 74 Ainda em 1794, os pequenos confeccionadores de pano de Leeds enviaram uma deputação ao Parlamento com uma petição para que fosse elaborada uma lei que proibisse a todo comerciante tornar-se fabricante (Dr. Aikin. Op. cit.). 75 Cidades com organização corporativa. 240 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção gigantesca na Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas Guerras do Ópio contra a China, etc. Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se então, mais ou menos por ordem cronológica, a saber pela Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, em finais do século XVII, são resumidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida pública, no moderno sistema tributário e no sistema proteccionista. Estes métodos baseiam-se, em parte, na mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para activar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda a velha socie- dade que está prenhe de uma nova. Ela própria é uma potência económica. Sobre o sistema colonial cristão, um homem que faz da cristandade uma especialidade, W. Howitt, diz:

“As barbaridades e as atrozes crueldades das assim chamadas raças cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todos os povos que pu- deram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história universal, em nenhuma raça, por mais selvagem e ignorante, por mais despida de piedade e de vergonha que fosse”.76

A história da economia colonial holandesa – e a Holanda era a nação capitalista modelar do século XVII – “desenrola um insuperável quadro de traição, suborno, massacre e baixeza”.77 Nada é mais característico que o seu sistema de roubo de pessoas nas Celebes, a fim de obter escravos para Java. Os ladrões de pessoas eram adestrados para esse fim. O ladrão, o intérprete e o vendedor eram os agentes principais nesse comércio; os príncipes nativos, os principais vendedores. Os jovens sequestrados eram escondidos nas prisões secretas das Celebes até que estivessem maduros para o envio aos navios de escravos. Um relatório oficial diz:

76 Howitt, William. Colonization and Christianity. A Popular History of the Treat- ment of the Natives by the Euro peans in all their Colonies. Londres, 1838, p. 9. Sobre o tratamento dado aos escravos, encontra-se uma boa compilação em Com- te, Charles. Traité de Législation. 3ª Ed., Bruxelas, 1837. Deve-se estudar este assunto em detalhe, para ver o que o burguês faz de si mesmo e do trabalhador onde pode à vontade modelar o mundo à sua imagem. 77 Raffles, Thomas Stamford. Late lieut. Gov. of that island. The History of Java. Londres, 1817. [v. II, p. CXC-CXCI.] A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 241

“Esta cidade de Macassar, por exemplo, está cheia de prisões secretas, uma mais horrenda que a outra, entulhadas de miseráveis, vítimas da avidez e da tirania, presos a correntes, arrancados violentamente às suas famílias”.

Para se apoderarem de Malaca, os holandeses subornaram o governa- dor português. Em 1641, ele deixou-os entrar na cidade. Dirigiram-se imediatamente a sua casa e assassinaram-no a fim de se “absterem” do pagamento da soma do suborno de 21 875 libras esterlinas. Onde punham o pé seguia-se devastação e despovoamento. Banjuwangi, uma província de Java, contava em 1750 com mais de 80 mil habitantes, em 1811, apenas 8 mil. Eis o doux commerce!78 A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, como é sabido, para além da dominação política nas Índias Orientais, o monopólio exclusivo do comércio do chá, assim como do comércio chinês, em geral, e do transporte de bens de e para a Europa. Mas a navegação costeira da Índia e entre as ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, tornaram-se monopólio dos funcionários superiores da companhia. Os monopólios do sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riqueza. Os próprios funcionários fixavam os preços e esfolavam à vontade o infeliz hindu. O governador-geral tomava parte neste comércio privado. Os seus favoritos obtinham contratos em condições em que, mais espertos do que os alquimistas, conseguiam ouro a partir de nada. Num dia, brota- vam como cogumelos grandes fortunas; a acumulação primitiva avançava sem o dispêndio de um xelim. A demanda judicial de Warren Hastings regurgita de exemplos desses. Eis aqui um caso. Um contrato de ópio foi atribuído a um certo Sullivan, no momento da sua partida – em missão oficial – para uma parte da Índia totalmente afastada dos distritos do ópio. Sullivan vendeu o seu contrato por 40 mil libras esterlinas a um certo Binn, Binn vendeu-o no mesmo dia por 60 mil libras esterlinas e o último comprador e cumpridor do contrato declarou que, depois disso, ainda obteve um ganho enorme. Segundo uma das listas apresentadas ao Parla- mento, a Companhia e os seus funcionários, de 1757 até 1766, fizeram que os índios os presenteassem com 6 milhões de libras esterlinas! Entre 1769 e 1770, os ingleses fabricaram uma fome pela compra de todo o arroz e pela recusa da sua revenda a não ser por preços fabulosos.79

78 Doce comércio. 79 No ano de 1866, somente na província de Orissa, mais 1 milhão de indianos morreu de fome. Não obstante, procurou-se enriquecer o Tesouro estatal indiano com os preços pelos quais se cediam os alimentos aos famintos. 242 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

O tratamento dos nativos era naturalmente o mais terrível nas planta- ções destinadas apenas à exportação, como nas Índias Ocidentais, e nos países ricos e densamente povoados, entregues às matanças e à pilhagem, como o México e as Índias Orientais. No entanto, mesmo nas colónias propriamente ditas não se desmentia o carácter cristão da acumulação primitiva. Aqueles protestantes austeros e virtuosos, os puritanos da Nova Inglaterra, estabeleceram, em 1703, por resolução de sua assembly, um prémio de 40 libras esterlinas para cada escalpe indígena e para cada pele-vermelha aprisionado; em 1720, um prémio de 100 libras esterlinas para cada escalpe; em 1744, depois de Massachussetts-Bay ter declarado certa tribo como rebelde, os seguintes preços: para o escalpe masculino, de 12 anos para cima, 100 libras esterlinas da nova emissão; para prisio- neiros masculinos, 105 libras esterlinas, para mulheres e crianças aprisio- nadas, 50 libras esterlinas; para escalpes de mulheres e crianças, 50 libras esterlinas! Algumas décadas mais tarde, o sistema colonial vingou-se nos descendentes rebeldes dos piedosos pilgrim fathers.80 Com incentivo e pagamento inglês, eles foram tomahawked.81 O Parlamento britânico declarou que massacrar e escalpelar eram “meios que Deus e a Natureza tinham posto nas suas mãos”. O sistema colonial fez amadurecer como plantas de estufa o comércio e a navegação. As “sociedades monopolia” (Lutero) foram alavancas poderosas da concentração de capital. Às manufacturas em expansão, as colónias asseguravam mercado de escoamento e uma acumulação poten- ciada por meio do monopólio de mercado. O tesouro apresado fora da Europa directamente por pilhagem, escravização e assassínio refluía à metrópole e transformava-se em capital. A Holanda, que primeiro desen- volveu plenamente o sistema colonial, atingira já em 1648 o apogeu da sua grandeza comercial. Estava

“na posse quase exclusiva do comércio das Índias Orientais e do trá- fego entre o Sudoeste e o Nordeste europeu. A sua pesca, a marinha e as manufacturas sobrepujavam as de qualquer outro pais. Os capitais da República eram talvez mais importantes que os do resto da Europa em conjunto”.82

80 Pais ou patriarcas peregrinos. O primeiro grupo de puritanos que se estabeleceu em Plymouth (Massachusetts), em 1620. 81 Mortos à machadada por índios. 82 Guelich, G. Von. Geschichtliche Darstellung des Handels, der Gewerbe und des Ackerbaus der bedeutendsten handeltreibenden Stacten unserer Zeit [Exposição Histórica do Comércio, da Indústria e da Agricultura dos Estados Comerciantes mais Significativos do Nosso Tempo], Jena, 1830. v. 1, p. 371. A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 243

Guelich esquece-se de acrescentar: o povo holandês era já em 1648 mais sobrecarregado de trabalho, mais empobrecido e mais brutalmente oprimido que os povos do resto da Europa em conjunto. Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia co- mercial. No período manufactureiro propriamente dito, é, pelo contrário, a supremacia comercial que dá o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenhava então. Era o “deus estranho” que se colocava sobre o altar ao lado dos velhos ídolos da Europa e que, um belo dia, com um empurrão e um pontapé, os atirou conjuntamente pela borda fora. Proclamou a extracção de mais-valia como objectivo último e único da humanidade. O sistema de crédito público, isto é, da dívida do Estado, cujas origens encontramos em Génova e Veneza já na Idade Média, apoderou-se de toda a Europa durante o período manufactureiro. O sistema colonial, com o seu comércio marítimo e as suas guerras comerciais, serviu-lhe de estufa. Assim, ele consolidou-se primeiramente na Holanda. A dívida pública, isto é, a alienação [Veräusserung] do Estado – tanto despótico como constitucional ou republicano – marcou com o seu selo a era capi- talista. A única parte da chamada riqueza nacional que realmente entra na posse colectiva dos povos modernos é a sua dívida de Estado.83 Daí ser totalmente consequente a doutrina moderna de que um povo torna-se tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público torna-se o credo do capital. E, com o surgir do endividamento do Estado, vai para o lugar dos pecados contra o Espírito Santo – para os quais não há qualquer perdão – blasfemar contra a dívida do Estado. A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acu- mulação primitiva. Como com o toque da varinha mágica, reveste o dinhei- ro improdutivo de poder procriador e transforma-o assim em capital, sem que, para tal, tivesse precisão de se expor às canseiras e riscos inseparáveis da sua aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar nas suas mãos como se fossem dinheiro sonante. Porém, abstraindo da classe de rentistas ociosos assim criada e da riqueza improvisada dos financeiros que actuam como intermediários entre o governo e a nação – como também da dos arrendatários de impostos, mercadores, fabricantes privados, aos quais uma boa porção de cada empréstimo do Estado realiza o serviço de um capital caído do céu – a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por acções, o

83 William Cobbett observa que na Inglaterra todas as instituições públicas são denominadas “reais”, mas em compensação existe a dívida “nacional” (national debt). (Nota de Marx.) 244 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … comércio com títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, numa palavra: o jogo da bolsa e a moderna bancocracia. Desde o seu nascimento, os grandes bancos, adornados com títulos nacionais, eram apenas sociedades de especuladores privados que se colocavam ao lado dos governos e, graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de adiantar-lhes dinheiro. Por isso, a acumulação da dívida do Estado não tem medidor mais infalível que a subida sucessi- va das acções desses bancos, cujo completo desenvolvimento data da fundação do Banco de Inglaterra (1694). O Banco de Inglaterra começou a emprestar o seu dinheiro ao governo a 8%; ao mesmo tempo, foi autori- zado pelo Parlamento a cunhar dinheiro do mesmo capital, emprestando- -o ao público outra vez sob a forma de notas bancárias. Com essas notas, podia descontar letras de câmbio, fazer adiantamentos sobre mercadorias e comprar metais preciosos. Não tardou muito para que esse dinheiro de crédito, por ele mesmo fabricado, se tornasse a moeda com a qual o Banco de Inglaterra fazia empréstimos ao Estado e, por conta do Estado, pagava os juros da dívida pública. Não bastava que ele desse com uma mão, para com a outra receber de volta mais; ficou também, apesar de receber, eterno credor da nação até ao último centavo dado. Gradual- mente, tornou-se o inevitável depositário dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial. Pela mesma altura em que, em Inglaterra, se deixava de queimar bruxas, começava-se aí a enforcar falsificadores de notas de banco. Que efeito produziu sobre os contemporâneos o súbito emergir desta ninhada de bancocratas, financei- ros, rentiers,84corretores, stockjobbers85 e lobos da bolsa, mostram-no os escritos daquele tempo, por exemplo, de Bolingbroke.86 Com as dívidas do Estado surgiu um sistema internacional de crédito, que frequentemente oculta uma das fontes da acumulação primitiva neste ou naquele povo. Assim, as vilezas do sistema veneziano de rapina cons- tituem uma das tais bases ocultas da riqueza de capital da Holanda, à qual a decadente Veneza emprestou grandes somas em dinheiro. O mesmo se passou entre a Holanda e a Inglaterra. Já no início do século XVIII, as manufacturas da Holanda estavam bastante ultrapassadas e esta havia cessado de ser a nação dominante do comércio e da indústria. Um dos seus principais negócios de 1701 a 1776 torna-se, por isso, emprestar enormes capitais, especialmente ao seu poderoso concorrente, a Inglater-

84 Os que vivem de rendimentos. 85 Especuladores com acções. 86 Se os tártaros inundassem hoje a Europa, seria muito difícil fazê-los entender o que é entre nós um financeiro.” (Montesquieu. Esprit des Lois. Ed. Londres, 1769. t. IV, p. 33.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 245 ra. Uma relação análoga existe hoje entre a Inglaterra e os Estados Uni- dos. Muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra. Como a dívida do Estado assenta nas receitas do Estado, que têm de cobrir os pagamentos anuais por juros, etc, o moderno sistema tributário tornou-se um complemento necessário do sistema de empréstimos nacio- nais. Os empréstimos capacitam o governo a enfrentar despesas extraor- dinárias, sem que o contribuinte o sinta imediatamente, mas exigem, como consequência, a subida dos impostos. Por outro lado, o aumento de impostos causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente força o governo a contrair sempre novos empréstimos para fazer face a novos gastos extraordinários. O regime fiscal moderno, cujo eixo é cons- tituído pelos impostos sobre os meios de subsistência mais necessários (portanto, encarecendo-os), traz em si mesmo o germe da progressão automática. A sobretaxação não é um incidente, mas antes um princípio. Na Holanda, onde esse sistema foi primeiramente inaugurado, o grande patriota De Witt celebrou-o por isso nas suas máximas como o melhor sistema para manter o trabalhador assalariado submisso, frugal, diligente e (...) sobrecarregado de trabalho. A influência destruidora que exerce sobre a situação dos trabalhadores assalariados interessa-nos aqui, entre- tanto, menos que a violenta expropriação do camponês, do artesão, enfim, de todos os componentes da pequena classe média, que ele condiciona. Sobre isso não há opiniões divergentes, nem mesmo entre os economistas burgueses. A sua eficácia expropriadora é fortalecida ainda pelo sistema proteccionista, que constitui uma das suas partes integrantes. A grande parte que cabe à dívida pública e ao sistema fiscal que lhe cor- responde na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou um conjunto de escritores – como Cobbett, Doubleday e outros – a procu- rar aí, sem razão, a causa fundamental da miséria dos povos modernos. O sistema proteccionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de capitalizar os meios nacio- nais de produção e de subsistência, de encurtar violentamente a transição do antigo modo de produção para o moderno. Os Estados europeus dis- putaram entre si a patente desta invenção e, uma vez entrados ao serviço do realizador de mais-valia [Plusmacher], extorquiram para esse efeito, não só o próprio povo, indirectamente através de direitos proteccionistas, directamente através de prémios de exportação, etc. Nos países secundá- rios dependentes, toda a indústria foi violentamente extirpada, como, por exemplo, a manufactura de lã irlandesa, pela Inglaterra. No continente europeu, segundo o modelo de Colbert, o processo foi ainda mais simpli- ficado. O capital original do industrial flui aqui, em parte, directamente do tesouro do Estado. 246 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

“Porquê”, exclama Mirabeau, “ir tão longe buscar a causa do esplen- dor da manufactura da Saxónia antes da Guerra dos Sete Anos? Cento e oitenta milhões de dívidas contraídas pelos soberanos!87

Sistema colonial, dívidas do Estado, peso dos impostos, protecção, guerras comerciais, etc., esses rebentos do período manufactureiro pro- priamente dito agigantam-se durante a infância da grande indústria. O nascimento desta última é celebrado pelo grande rapto herodiano de crianças. Tal como a marinha real, as fábricas [também] faziam recruta- mento forçado. Por muito blasé que Sir F. M. Eden seja frente aos horro- res da expropriação do povo do campo da sua base fundiária, desde o último terço do século XV até à sua época, o fim do século XVIII, por muito que ele se congratule, satisfeito consigo, com este processo “neces- sário” para “estabelecer” a agricultura capitalista e a “devida proporção entre a terra arável e a terra para pastagem”, ele não demonstra, em contrapartida, a mesma compreensão económica da necessidade do roubo de crianças e da escravatura infantil para a transformação da empresa manufactureira na empresa fabril e para o estabelecimento da verdadeira relação entre capital e força de trabalho. Diz ele:

“Talvez mereça a consideração do público considerar se alguma ma- nufactura – que, para ser conduzida com sucesso, requer que cottages e workhouses tenham de ser saqueadas para [arranjar] crianças pobres; que elas tenham de ser empregues por turnos durante a maior parte da noite e roubadas daquele descanso que, apesar de indispensável a to- dos, é mais requerido pelos jovens; e que um grande número de [cri- anças] de ambos os sexos, de diferentes idades e aptidões, tenha de ser reunido de uma maneira tal que o contágio do exemplo não pode levar senão à depravação e ao deboche – contribuirá [com alguma coisa] para a soma da felicidade individual ou nacional?88 “Nos condados do Derbyshire, Nottinghamshire e, mais particularmente, no Lancashire”, diz Fielden, “a maquinaria recentemente inventada foi usada em grandes fábricas construídas nas margens de rios capazes de fazerem girar a roda hidráulica. Milhares de braços foram subitamente requeri- dos nesses lugares, remotos das cidades; e, sendo, em particular o Lancashire, até então, comparativamente, escassamente povoado e es- téril, do que agora precisava era de uma população. Sendo os dedos pequenos e ágeis das criancinhas, de muito longe, o que mais era pe-

87 “Pourquoi aller chercher si loin la cause de l’éclat manufacturier de la Saxe avant la guerre? Cent quatre-vingt millions de dettes faîtes par les souverains!” (Mira- beau. Op. cit., t. VI, p. 101.) 88 Eden. Op. cit., Livro Segundo. Cap. I, p. 421. A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 247

dido, surgiu instantaneamente o costume de arranjar aprendizes nas diferentes workhouses paroquiais de Londres, de Birmingham e de outros lados. Muitos, muitos milhares dessas pequenas, infelizes, cria- turas foram mandadas para o Norte, tendo desde a idade de 7 até à idade de 13 ou 14 anos. O costume era de que o mestre” (isto é, o la- drão de crianças) “vestisse os seus aprendizes e os alimentasse e alo- jasse numa ‘casa de aprendizes’ perto da fábrica; foram contratados supervisores para vigiarem as obras e o interesse deles era fazer tra- balhar as crianças ao máximo, porque a paga deles era em proporção à quantidade de trabalho que conseguissem extorquir. Claro que a con- sequência era a crueldade... Em muitos dos distritos manufactureiros, mas particularmente, receio, no condado cheio de culpas a que perten- ço [Lancashire], foram praticadas as crueldades mais de cortar o cora- ção sobre as criaturas inofensivas e desvalidas que estavam, assim, consignadas ao cuidado de mestres manufactureiros; eram fatigadas até à beira da morte por excesso de trabalho... eram açoitadas, agrilho- adas e torturadas com o requinte de crueldade mais apurado; ... em muitos casos, eram reduzidas pela fome até ao osso e açoitadas no seu trabalho e... mesmo nalgumas ocasiões... foram levadas a suicidarem- -se... Os vales belos e românticos do Derbyshire, Nottinghamshire e Lancashire, retirados do olhar público, tornaram-se as solidões som- brias da tortura e de muitos assassínios. Os lucros dos manufactureiros eram enormes; mas isso só aguçava o apetite que tinha de ser satisfeito e, por conseguinte, os manufactureiros recorreram a um expediente que parecia assegurar-lhes esses lucros sem qualquer possibilidade de limite; começaram com a prática daquilo que é denominado ‘trabalho nocturno’, isto é, tendo cansado um grupo de braços fazendo-os tra- balhar durante todo o dia, tinham outro grupo pronto para continuar a trabalhar durante toda a noite; indo o grupo diurno para as camas que o grupo nocturno tinha acabado de deixar e, por sua vez, de novo, indo o grupo nocturno, de manhã, para as camas que o grupo diurno deixa- ra. É tradição corrente, no Lancashire, que as camas nunca arrefe- çam.”89

89 Fielden, John. Op. cit., p. 5-6. Sobre as infâmias originárias do sistema fabril, comparar Dr. Aikin (1795). Op. cit., p. 219; e Gisborne. Enquiry into the Duties of Men. 1795. v. II. Visto que a máquina a vapor transplantou as fábricas das quedas d’água rurais para o centro das cidades, o extractor de mais-valia, sempre “pronto à renúncia”, encontrou à mão o material infantil, sem a oferta forçada de escravos das workhouses. – Quando Sir Peel (pai do “ministro da plausibilidade”) apresen- tou a sua bill em protecção das crianças, em 1815, F. Horner (luminária do Bulion- Committee e amigo íntimo de Ricardo) declarou na Câmara dos Comuns: “É notó- rio que junto com a massa falida, um bando, se me permitem essa expressão, de crianças de fábrica foi anunciado e arrematado, em leilão público, como parte da 248 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufactureiro, a opinião pública da Europa perdeu o que lhe restava de sentimentos de vergonha e consciência. As nações jactavam-se cinica- mente de cada infâmia que fosse um meio para acumular capital. Leiam- -se, por exemplo, os ingénuos anais do comércio do probo A. Anderson. Aí é trombeteado como triunfo da sabedoria política inglesa que a Ingla- terra, na paz de Utrecht, pelo tratado de Asiento,90 tenha extorquido aos espanhóis o privilégio de explorar o tráfico de negros, que até então explorava apenas entre a África e a América espanhola. A Inglaterra obteve o direito de fornecer à América espanhola, até 1743, 4800 negros por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, um manto oficial para o contrabando britânico. Liverpool engordou à base do comércio de escra- vos. Ele constituía o seu método de acumulação primitiva. E, até aos dias de hoje, a “honorabilidade” de Liverpool permanece o Píndaro do comér- cio de escravos, o qual – compare-se com o escrito citado do Dr. Aikin de 1795 – “coincidiu com aquele espírito de corajosa aventura que caracteri- zou o comércio de Liverpool e que rapidamente a levou ao seu presente estado de prosperidade; ocasionou um vasto emprego para embarcadiços e marinheiros, e aumentou grandemente a procura das manufacturas do país” [p. 339]. Em 1730, Liverpool empregava no comércio de escravos 15 navios; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e em 1792, 132. Enquanto introduzia a escravatura de crianças em Inglaterra, a indús- tria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da anterior economia esclavagista mais ou menos patriarcal dos Estados Unidos num sistema de exploração comercial. Em geral, a escravatura velada de operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da escravatura sans phrase no Novo Mundo.91

propriedade. Há dois anos” (em 1813) “chegou perante a King’s Benchª um caso horroroso. Tratava-se de certo número de garotos. Uma paróquia de Londres tinha- os consignado a um fabricante, que os transferiu de novo a outro. Eles foram fi- nalmente descobertos por alguns filantropos, num estado de completa inanição (absolute famine). Outro caso, ainda mais horroroso, chegou ao meu conhecimento como membro da comissão parlamentar de inquérito. Há não muitos anos, uma paróquia londrina e um fabricante de Lancashire concluíram um contrato pelo qual foi estipulado que este, para cada 20 crianças sadias teria de aceitar uma idiota”. 90 Denominação dos acordos pelos quais a Espanha concedia a Estados estrangeiros e pessoas privadas o direito de fornecer escravos negros para as suas colónias ameri- canas, do século XVI até ao século XVIII. (N. da Ed. Alemã.) 91 Em 1790, nas Índias Ocidentais inglesas havia 10 escravos para 1 homem livre, nas francesas, 14 para 1, nas holandesas, 23 para 1. (Brougham, Henry. An Inquiry into the Colonial Policy of the European Powers, Edimburgo, 1803. v. II, p. 74.) A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 249

Tantae molis erat92 destacar as “leis naturais eternas” do modo de pro- dução capitalista, completar o processo de separação entre operários e condições de trabalho, transformar, num pólo, os meios de vida e de produção sociais em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em operários assalariados, em “pobres trabalhadores” livres, esse produto artificial da história moderna.93 Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”,94 então o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e porcaria da cabeça aos pés.95

92 Tantae molis erat “Tanto esforço fazia-se necessário.” Marx utilisa aqui uma expressão de Virgílio. Eneida. Livro Primeiro, verso 33. Lê-se aí: Tantae molis erat Romanum condere gentem (Tanto esforço fazia-se necessário para fundamen- tar a estirpe romana). (N. da Ed. Alemã.) 93 A expressão labouring poorª encontra-se nas leis inglesas desde o momento em que a classe dos trabalhadores assalariados se torna digna de atenção. Os labou- ring poor estão em contraposição, por um lado, aos idle poor,ª1 mendigos etc., por outro, aos trabalhadores que ainda não se tornaram galinhas depenadas, mas conti- nuam proprietários dos seus meios de trabalho. Da lei, a expressão labouring poor transferiu-se para a economia política, de Culpeper, J. Child, etc. até A. Smith e Eden. Consequentemente, julgue-se a boa fé do execrable political cantmonger [execrável vendedor de hipocrisia política] Edmund Burke, quando qualifica a expressão labouring poor como execrable political cant [execrável hipocrisia polí- tica]. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa fez de romântico frente à Revolução Francesa, do mesmo modo que, a soldo das colónias norte-americanas, fez de liberal no início dos motins americanos frente à oligarquia inglesa, era sob todos os aspectos um burguês ordinário: “As leis do comércio são as leis da Natu- reza e consequentemente as leis de Deus”. (Burke, E. Op. cit., p. 31-32.) Não é de admirar que ele, fiel às leis de Deus e da Natureza, se vendesse sempre a si mesmo no melhor mercado! Encontra-se nos escritos do Rev. Tucker – Tucker era padre e tory, mas de resto um homem correto e competente economista político – uma boa caracterização desse Edmund Burke, durante a sua época liberal. Em face da infa- me falta de carácter, que predomina hoje, e da crença mais devota nas “leis do comércio”, é dever estigmatizar, sempre de novo, os Burkes, que se diferenciam dos seus sucessores apenas por uma coisa: Talento! 94 Augier, Marie. Du Crêdit Public. [Paris, 1842, p. 265.] 95 “O capital”, diz o Quarterly Reviewer, “foge da turbulência e da briga, e é tímido, o que é muito verdade; mas isto é tratar a questão muito incompletamente. O capi- tal tem horror à ausência de lucro ou a um lucro muito pequeno, do mesmo modo que anteriormente se dizia que a Natureza aborrecia o vácuo. Com o adequado lucro, o capital é muito audaz. Uns 10 por cento certos assegurarão a sua aplicação em qualquer parte; 20 por cento certos produzirão avidez; 50 por cento, positiva- mente, audácia; 100 por cento, pô-lo-ão pronto a espezinhar todas as leis humanas; 300 por cento, e não haverá crime perante o qual tenha escrúpulos, nem um risco que ele não corra, mesmo com a possibilidade de o seu dono ser enforcado. Se turbulência e briga proporcionarem lucro, encorajará francamente ambas. O con- 250 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO …

7. Tendência histórica da acumulação capitalista

Em que vem a dar a acumulação primitiva do capital, isto é, a sua gé- nese histórica? Enquanto não é transformação imediata de escravos e servos em operários assalariados e, portanto, uma simples mudança de forma, apenas significa a expropriação dos produtores imediatos, isto é, a dissolução da propriedade privada assente no trabalho próprio. A propriedade privada, como antítese da propriedade social, colectiva, existe apenas onde os meios de trabalho e as suas condições externas pertencem a pessoas privadas. Porém, consoante estas pessoas privadas sejam trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada assume também carácter diferente. Os infindáveis matizes que a propriedade privada exibe à primeira vista reflectem apenas as situações intermédias existentes entre estes dois extremos. A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é a base da pequena empresa, a pequena empresa uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador. Na verdade, esse modo de produção existe também durante a escravidão, a servidão e outras relações de dependência. Mas ela só floresce, só liberta toda a sua energia, só conquista a forma clássica adequada, onde o trabalhador é livre proprietário privado das condições de trabalho manipuladas por ele mesmo, o camponês da terra que cultiva, o artesão dos instrumentos que maneja como um virtuoso. Este modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos de- mais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos, exclui também a cooperação, divisão do trabalho dentro dos próprios processos de produção, dominação social e regulação da Natureza, livre desenvolvimento das forças sociais produtivas. Só é compatível com limites naturais estreitos da produção e da sociedade. Pretender eternizá- -lo significaria, como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade geral”.96 Em certo nível de desenvolvimento, produz os meios materiais da sua própria destruição. A partir desse momento agitam-se forças e

trabando e o comércio de escravos provaram amplamente tudo o que aqui é afir- mado.” (T. J. Dunning, Trades Unions and Strikes, London, 1860 pp. 35-36) (Nota de Marx.) 38 * “Tanto esforço fazia-se necessário.”Marx utilisa aqui uma expressão de Virgílio. Eneida. Livro Primeiro, verso 33. Lê-se aí: Tantae molis erat Romanum condere gentem (Tanto esforço fazia-se necessário para fundamentar a estirpe romana). (N. da Ed. Alemã.) 96 Pecqueur, C. Théorie Nouvelle d’Economie Sociale et Politique. Paris, 1842, p. 435. A CHAMADA ACUMULAÇÃO P RIMITIVA | 251 paixões no seio da sociedade, que se sentem manietadas por ele. Tem de ser destruído e é destruído. A sua destruição, a transformação dos meios de produção individuais e parcelados em socialmente concentrados, portanto da propriedade minúscula de muitos em propriedade gigantesca de poucos, portanto a expropriação da grande massa da população da sua terra, dos seus meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e difícil expropriação da massa do povo constitui a pré-história do capital. Ela abrange uma série de métodos violentos, dos quais nós só passámos em revista como métodos da acumulação primitiva do capital os que fizeram época. A expropriação dos produtores directos é realizada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais sujas, mais infames, mesquinhas e odiosas. A propriedade privada obtida com trabalho próprio, baseada, por assim dizer, na fusão do trabalhador individual isolado e independente com as suas condições de trabalho, é suplantada pela propriedade privada capitalista, a qual se baseia na explo- ração do trabalho alheio, mas formalmente livre.97 Logo que esse processo de transformação tenha decomposto suficien- temente, em profundidade e extensão, a antiga sociedade, logo que os trabalhadores tenham sido convertidos em proletários e as suas condições de trabalho em capital, logo que o modo de produção capitalista se sus- tente sobre os seus próprios pés, a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e de outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados, portanto, colectivos, a consequente expropriação ulterior dos proprietários privados ganha nova forma. O que está agora para ser expropriado já não é o trabalhador economicamente autónomo, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa expropriação faz-se por meio do jogo das leis imanentes da pró- pria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista mata muitos outros. Paralelamente a essa centralização ou à expropriação de muitos outros capitalistas por poucos desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala sempre crescente, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planeada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho utilizáveis apenas colectivamente, a economia de todos os meios de produção me- diante uso como meios de produção de um trabalho social combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o carácter internacional do regime capitalista. Com a diminuição constante do número dos magnatas do capital, os quais usurpam e mono-

97 “Nós encontramo-nos numa situação que é completamente nova para a sociedade (...) nós procuramos separar toda a espécie de propriedade de toda a espécie de trabalho.” (Sismondi. Nouveaux Príncipes de l’Écon. Polit. v. II, p. 434.) 252 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALIS TA E REGIME POLÍTICO … polizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da explo- ração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista. Os expropriado- res são expropriados. O modo de apropriação capitalista surgido do modo de produção capi- talista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho próprio. Mas a produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo natural, a sua própria negação. É a negação da negação. Esta não resta- belece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre o fundamento do conquistado na era capitalista: a cooperação e a proprie- dade comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho. A transformação da propriedade privada fragmentada, baseada no tra- balho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais longo, duro e difícil do que a transformação da propriedade capitalista, realmente já fundada numa organização social da produção, em propriedade social. Lá, tratou-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo.98

98 “O progresso da indústria, cujo portador involuntário e não-resistente é a burgue- sia, coloca no lugar do isolamento dos trabalhadores, pela concorrência, a sua uni- ão revolucionária, pela associação. Com o desenvolvimento da grande indústria, a burguesia vê, pois, desaparecer sob os seus pés o fundamento sobre o qual ela produz e se apropria dos produtos. Ela produz, pois, antes de mais nada, os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitá- veis. (...) De todas as classes que hoje se defrontam com a burguesia, apenas o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As demais classes degeneram e desaparecem com a grande indústria, o proletariado é o seu produto mais genuí- no. As camadas médias, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês, todos eles combatem a burguesia para evitar que a sua existência como camadas médias se extinga (...) eles são reaccionários, pois procuram fazer andar para trás a roda da história.” (Marx, Karl e Engels, F. Manifest der Kommunis- tischen Partei. Londres, 1848. p. 11, 9.)

BIOGRAFIAS DOS AUTORES

António Simões do Paço Investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni- versidade Nova de Lisboa. Tem diversos artigos e livros publicados sobre a história da I República, do Estado Novo, do Partido Socialista e do Partido Comu- nista Português e o processo de integração de Portugal e Espanha nas Comunidades Europeias. Foi editor, coordenador e co-autor de Os Anos de Salazar, uma história do Estado Novo em 30 volumes. É editor executivo da revista acadé- mica Workers of the World.

Camilo Domingues Graduado em Artes Cénicas pela Universidade Federal da Baía e mestre em História pelo Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Federal Flu- minense em Niterói, Rio de Janeiro. Realiza, no mes- mo programa, pesquisa de doutoramento intitulada “As relações estéticas da arte com a realidade: a inte- ração entre a história, a filosofia e a literatura na obra de N. G. Tchernychévski”, sob a orientação do Prof. Dr. Daniel Aarão Reis.

Eduardo Petersen Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (1984), ingressou no Centro de Estudos Judiciários (1985) e seguiu a carreira de magistrado judicial, na qual, desde 1996 e até 2016, se especializou na jurisdição laboral. Doutorando em História Contemporânea na FCSH sobre a evolução legal do trabalho em Portugal. 254 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO …

Felipe A. Demier Doutor em História pela Universidade Federal Flumi- nense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Editor do blogue Junho e membro da secreta- ria de redação da revista Outubro, é autor, entre outros artigos, livros e publicações, de O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): um ensaio de interpretação histórica (Rio de Janeiro: Mauad, 2013) e, ao lado de Raquel Varela e Valério Arcary, de O que é uma Revolução? Teoria, Histó- ria e Historiografia (Lisboa: Colibri, 2015). Recentemente, coordenou, em parceria com Rejane Hoeveler, o livro A Onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro: Mauad, 2016).

Fernando Rosas Nasceu em 1946, em Lisboa, tendo-se doutorado em História Económica e Social Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni- versidade Nova de Lisboa. Foi, desde 1996, professor agregado de História Portuguesa Contemporânea na mesma universidade, tendo-se jubilado em 2016. O seu interesse enquanto investigador voltou-se para a história do Estado Novo. É um dos maiores especialistas portu- gueses neste período, sendo consultor da Fundação Mário Soares e de várias estações de televisão e rádio. Da sua vasta produção podem destacar-se o volume 7 da conhecida História de Portugal dirigida por José Mattoso para o Círculo de Leitores (1993), O Estado Novo (1926-1974) (coord. e autoria), Portugal Entre a Paz e a Guerra 1939-1945 (Estampa, 1995), Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976) (Editorial Notícias, 2004), História da Primeira República Portuguesa (Tinta da China, 2009) com Maria Fernanda Rollo, Salazar e o Poder – A Arte de Saber Durar (Tinta da China, 2013) ou História e Memória. Última Lição (Tinta da China, 2016).

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Isabel Braga Nasceu em Coimbra em 1950, licenciou-se em Filoso- fia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Deu aulas no ensino secundário e foi tradutora antes de começar a trabalhar como jornalista. Fez parte dos quadros da agência ANOP, da Lusa e do Diário de Lisboa antes de integrar a equipa fundadora do Públi- co, em 1989. É autora de um livro de contos para crianças (Verbo) e co- -autora de um roteiro de Lisboa, baseado nas várias ocupações históricas da cidade (Assírio & Alvim).

Jorge Fontes É historiador com doutoramento pela FCSH/Univer- sidade Nova de Lisboa. Investigador do Instituto de História Contemporânea, participa no Grupo de Histó- ria Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais.

Luísa Barbosa Pereira Doutora em Sociologia pelo PPGSA da UFRJ-Brasil. Pesquisadora doutorada integrada vinculada ao Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais do IHC-UNL-Portugal e IISH-Holanda. Docente de Filo- sofia e Sociologia no CEJOB e CM Paulo Freire- -Armação dos Búzios-Brasil. Autora de Justa causa pro patrão (Multifoco, 2012) e Navegar é preciso (Multifoco, 2015).

256 | TRABALHO, ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E REGIME POLÍTICO …

Marcelo Badaró Mattos Professor titular (catedrático) de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (Niterói, Brasil). Atualmente é investigador associado/visitante no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. É bolsista de produtividade de pes- quisa do CNPq e cientista do Nosso Estado-Faperj. Investigador na área de História Social do Trabalho, é autor de diversos livros nesse campo, assim como de estudos sobre Teoria e Metodologia da História e Materialismo Histórico, como Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca (2008) e E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo históri- co (2012).

Maria Augusta Tavares Doutora em Serviço Social e pós-doutora em Eco- nomia e História Contemporânea. Líder do Grupo de Pesquisas sobre o Trabalho, UFPB-Brasil e membro integrado do Grupo de História Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais IHC/FCSH/UNL-Portugal. Autora de Os fios (in)visíveis da produção capitalista (SP. Cortez, 2004) e de diversos artigos sobre o traba- lho nas suas formas contemporâneas.

Michael Roberts Economista, tem trabalhado na City de Londres em várias instituições ao longo de mais de três décadas. Publicou numerosos artigos em várias revistas econó- micas. É autor de The Great Recession (Lulu, 2009) e The Long Depression (Haymarket, 2016). Publica no blogue thenextrecession.wordpress.com/

BIOGRAFIAS DOS AUTORES | 257

Miguel Pérez Miguel Ángel Pérez Suárez é investigador do IHC – Instituto de História Contemporânea, mestre e douto- rando em História Contemporânea na FCSH-UNL. Especialista na história do movimento operário portu- guês, tem publicado vários artigos em livros e revistas.

Raquel Varela Historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, onde coordena o Grupo de História Global do Tra- balho e dos Conflitos Sociais, e do Instituto Internaci- onal de História Social, onde coordena o projecto internacional In the Same Boat? Shipbuilding and ship repair workers around the World (1950-2010). É coor- denadora do projecto História das Relações Laborais no Mundo Lusófono. É doutora em História Política e Institucional (ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa). É neste momento presidente da Internatio- nal Association Strikes and Social Conflicts.

OBRAS (AGUARDA)