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Processos De Construção E Corrupção Do Cânon Referente Às Obrigações De Monjas Budistas Iniciantes

Processos De Construção E Corrupção Do Cânon Referente Às Obrigações De Monjas Budistas Iniciantes

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

Diretoria de Pós-Graduação e Pesquisa

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

NIRVANA DE OLIVEIRA MORAES GALVÃO DE FRANÇA

GURUDHARMAS:

Processos de construção e corrupção do cânon referente às obrigações de monjas budistas iniciantes

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2020 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

Diretoria de Pós-Graduação e Pesquisa

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

NIRVANA DE OLIVEIRA MORAES GALVÃO DE FRANÇA

GURUDHARMAS:

Processos de construção e corrupção do cânon referente às obrigações de monjas budistas iniciantes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Área de concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Orientadora: Profª Drª Sandra Duarte de Souza.

SÃO BERNARDO DO CAMPO 2020

FICHA CATALOGRÁFICA

França, Nirvana de Oliveira Moraes Galvão de F844g Gurudharmas: processos de construção e corrupção do cânon referente às obrigações de monjas budistas iniciantes. / Nirvana de Oliveira Moraes Galvão de França -- São Bernardo do Campo, 2020. 149 p.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) --Diretoria de Pós- Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2020. Bibliografia Orientação de: Sandra Duarte de Souza.

1. Budismo 2. Monjas budistas 3. Gurudharmas 4. Cânon I. Título CDD 294.3

A dissertação de mestrado sob o título “GURUDHARMAS: Processos de construção e corrupção do cânon referente às obrigações de monjas budistas iniciantes”, elaborada por

Nirvana de Oliveira Moraes Galvão de França foi apresentada e aprovada em 19 de março de 2020, perante banca examinadora composta pelos/as professores/as Doutores/as

Sandra Duarte de Souza (Presidente/UMESP), Frank Usarski (PUC SP) e Jung Sung

(UMESP)

______Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (UMESP) Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

______Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Sócio-Culturais

Agradecimentos

Agradeço à Universidade Metodista de São Paulo, em especial ao Programa de Pós- graduação em Ciências da Religião, seu corpo docente, colaboradores e por todo suporte e estrutura. À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelo suporte financeiro da pesquisa. Ao IEPG – Instituto Ecumênico da Pós Graduação por nos abrigar quando em São Bernardo.

Agradeço especialmente à minha orientadora, Profª Drª Sandra Duarte de Souza, que acreditou no potencial da pesquisa, orientou, criticou, foi uma amiga nos momentos difíceis e uma inspiração na luta pela conquista dos direitos das mulheres.

Agradeço ao Professor Plínio Marcos Tsai, da Associação Buda, que me apresentou as primeiras linhas do e conduziu minha formação em Budologia, me inspirou a adentrar o caminho monástico, me encorajou na pesquisa, ouviu e debateu sobre as minhas descobertas.

À minha família, meus pais Luiz Otávio e Mirtes que me deram o suporte necessário, em especial com o Danielzinho para que eu pudesse ir tranquila a São Bernardo, e ao Daniel meu filho, que compreendeu os momentos que deixei de passear com ele para me dedicar ao “escreve-escreve”, como ele diz.

Às colegas do Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL, por todos os debates, pelas sugestões dadas e críticas feitas durante o desenvolvimento desta pesquisa.

Aos meus amigos e amigas da Associação Buda Darma, em especial às monjas Loyane e Estela por exaustivamente me ouvirem contar sobre a pesquisa. À Patrícia, Cibele e Ethel por estarem comigo nos momentos difíceis e pelas dicas de como desenvolver a pesquisa.

Por fim, mas não menos importante, aos meus Tios Sidney e Patrícia e à minha avó Elivir por me ajudarem financeiramente com esta pesquisa.

Que este trabalho possa inspirar outras mulheres a buscarem pela verdade, não aceitando um relato simplesmente porque ele se tornou canônico. Que sejamos capazes de perceber que independente da nossa identificação de gênero, somos presos e presas igualmente pelos quatro sofrimentos, o adoecimento, o envelhecimento, a morte e a reencarnação.

Assim como o clarão de um raio numa noite escura e nebulosa, ilumina tudo, um pensamento virtuoso que surja da plena iluminação, ainda que apareça apenas por um breve instante, tem o poder de iluminar tudo.

Bodhisattvacaryāvatā, capítulo I, verso 5 Resumo

A fundação da comunidade monástica budista feminina é descrita no cânon em diversos textos, dentre eles no Discurso para Gotamī e no Kullavagga. Em breve linhas, Mahāprajāpatī Gautamī, a madrasta do Buda, decide se tornar uma monja e pede ao Buda a permissão, e ele nega seu pedido por três vezes. Após a terceira negativa, Ananda, primo e atendente pessoal do Buda intervém e então é permitido às mulheres ingressarem na vida monástica, contudo para que isso fosse possível elas deveriam tomar para si oito “princípios a serem respeitados”, chamados de Gurudharmas (sânscrito) ou Garudhammas (pāli). A presente dissertação objetiva explorar e apresentar os indícios de corrupção do texto por meio de pesquisa bibliográfica e análise do Discurso para Gotamī e do Kullavagga, décimo Kandhaka, as obrigações das Bhikṣuṇī.

Inicialmente é apresentado um panorama da situação das pesquisas sobre mulheres e religião, a situação das mulheres no tempo do Buda e a fundação da comunidade monástica masculina. Em seguida, é abordada a luta das mulheres para a fundação da comunidade feminina, explorando os pontos principais do relato de como isso pode ter acontecido. Por fim, são trabalhados os “princípios a serem respeitados” os Gurudharmas, apresentando os indícios de corrupção e sua interpretação. Com isso, buscamos analisar os indícios de corrupção dos textos, evidenciando os pontos onde podem ter ocorrido supressões e possíveis adições

Palavras-chave: Gurudharmas; Monjas budistas; Construção e corrupção do cânon

Abstract

The founding of the female Buddhist monastic community is described in the canon in several texts, among them in the Speech to Gotamī and Kullavagga. In short lines, Mahāprajāpatī Gautamī, the Buddha's stepmother, decides to become a nun and asks the Buddha for permission, and he denies his request three times. After the third negative, Ananda, the Buddha's cousin and personal attendant intervenes and then women are allowed to enter the monastic life, however for this to be possible they should take for themselves eight “principles to be respected”, called Gurudharmas () or Garudhammas (pāli). This dissertation aims to explore and present the evidence of corruption of the text through bibliographic research and analysis of the Discourse for Gotamī and the Kullavagga, tenth Kandhaka, the obligations of the Bhikṣuṇī. Initially an overview of the state of research on women and religion, the situation of women in the time of the Buddha and the foundation of the male monastic community is presented. Then, the women's struggle for the foundation of the female community is addressed, exploring the main points of the account of how this may have happened. Finally, the “principles to be respected” are worked on by the Gurudharmas, presenting the signs of corruption and their interpretation. With this, we seek to analyze the evidence of corruption of the texts, highlighting the points where deletions and possible additions may have occurred

Keywords: Gurudharma; Buddhist nuns; Construction and corruption of the buddhist canon.

Sumário Introdução ...... 1

1. Os primeiros passos. Um contexto geral dos estudos sobre mulheres, a situação delas na sociedade indiana e a fundação da comunidade monástica budista masculina...... 6

1.1 Uma visão geral dos estudos sobre mulheres e religião. Encontros e desencontros entre o Ocidente e o Budismo...... 7

1.2 A sociedade indiana no tempo do Buda e a situação da mulher nesta sociedade. 18

1.3 A fundação da comunidade masculina...... 32

1.4 Resumindo os pontos fundamentais...... 35

2. A luta das mulheres para a fundação da comunidade monástica feminina...... 37

2.1 A busca da mulher pela libertação...... 38

2.3 O pedido para fundação da comunidade monástica feminina...... 44

2.4 As mulheres raspam seus cabelos e colocam as vestes cor de açafrão...... 54

2.5 A intervenção de Ānanda e seus argumentos...... 59

2.6 O potencial das mulheres de alcançar o despertar...... 69

2.8 O potencial em marcha...... 73

3. Os princípios a serem respeitados. A raiz da controvérsia...... 75

3.1 Deixando a casa...... 76

3.2 Um cânone em questão...... 81

3.3 Os Gurudharmas...... 88

3.3.1 Buscar a ordenação mais elevada na comunidade masculina...... 89

3.3.2 Buscar instrução a cada meio mês...... 94

3.3.3 Passar o retiro da estação chuvosa somente em local que existam monges. .. 95

3.3.4 Buscar instruções após o retiro das chuvas...... 97

3.3.5 Respeitar o monge que não deseja responder perguntas sobre os ensinamentos / Não insultar ou abusar de um monge...... 98

3.3.6 Não revelar as ofensas de um monge...... 101 3.3.7 Cumprir a penitência em ambas as assembleias (monges e monjas)...... 102

3.3.8 Prestar homenagens aos monges homens...... 103

3.4 Conclusão - A ambiguidade do universo feminino nos primórdios do budismo.104

Considerações finais...... 106

Referências ...... 110

Apêndice 1 ...... 120

1.Uma breve visão da história do budismo e seus pilares fundamentais...... 120

1.1 A vida do ...... 120

1.2 Dharma-chakra-vartana-sūtra. Sermão do Giro da Roda do Dharma ...... 125

Apêndice 2 ...... 134

O discurso para Gotamī ...... 134

Anexo 1 ...... 145

Décimo . Sobre as responsabilidades das Bhikkhunis ...... 145

Introdução

O ano é 2009, e eu havia ganhado uma tradução do , uma obra que compila os Sermões do Buda na tradição Theravāda. Era uma apostila com cerca de quinhentas páginas A4. Devorei aquelas palavras e isso me trouxe um sentido à vida, um propósito, uma esperança. Seis meses depois eu tinha tomado uma das mais importantes decisões da minha vida, me tornando uma renunciante, uma monja budista. Orgulhosa de pertencer a uma linhagem, cujos votos passam por importantes professores e chegam até o próprio Buda, o desejo por compreender a doutrina levou a anos de estudo e pesquisa com o apoio e suporte da Associação Buda Darma em Valinhos, interior do estado de São Paulo.

Nesta pesquisa eu encontrei um Sutta1 que conta a história da fundação da comunidade monástica feminina. Encontrar este texto canônico trouxe uma inquietação. Como poderia aquele que ensinava sobre a interdependência, que desconstruiu o sistema de castas, negou a essência divina, ter defendido obrigações misóginas tais como de impor às mulheres o dever de prestar reverência aos monges homens, simplesmente pelo fato deles serem homens? Ser nativa não nubla a capacidade de questionar a religião, apenas faz “sentir na carne as dores” e estimula a paixão pela pesquisa. Esse cuidado com a natividade foi bastante discutido pelas Ciências Sociais.

Para que fosse possível desenvolver o presente trabalho nós utilizamos de pesquisa documental e pesquisa bibliográfica. Na pesquisa documental dois textos foram selecionados. O primeiro deles, o Discurso para Gotamī (Mahaprajapati- bikkuni-sutta), foi traduzido com uma comparação do Chinês e do Pāli para o inglês pelo Anālayo e publicado no seu trabalho Mahāpajāpatī's Going Forth in the Madhyama-āgama (2011b). A íntegra do Sutta, em uma tradução livre, foi adicionada como Apêndice 2 ao presente trabalho. O outro texto canônico que conta a história da fundação da comunidade feminina encontra-se em uma compilação sobre o

1 Sūtra e Sutta são os Sermões do Buda. No caso Sutta é um indicativo que se trata de um texto da tradição Theravāda, escrito originalmente em Pāli, que foi traduzido para o inglês.

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monasticismo chamado Kullavagga 2 3, texto traduzido em sua íntegra do sânscrito para o inglês por Rhys Davis e publicado em 1885. Vigésimo livro da obra “Sacred Books of the East”, em seu décimo Kandhaka traz as “obrigações para as monjas”, e a tradução do referido excerto também foi incluída na íntegra como um anexo ao presente trabalho.

A pesquisa documental explorou autoras e autores que comentam e refletem sobre a mulher e sobre mulheres e religião; sobre a Índia no tempo do Buda, ou seja, a Índia de cerca de 2.500 anos atrás; sobre a corrupção dos textos canônicos e comentários a estes textos. Algumas etapas da pesquisa caminharam por um terreno lamacento e pouco explorado. Lamacento porque se caminha nele com dificuldade, pois muito do que se encontra são análises contaminadas por valores patriarcais embasadas em traduções colonialistas.

Dialogar com o budismo é trazer para a realidade brasileira um campo pouco explorado. Existe uma curiosidade pelo Oriente. As mídias sociais espalham “Budinhas da fortuna”, mas esta religião é praticada por apenas 0,13% da população brasileira segundo o Censo de 2010; além disso, conforme pesquisa realizada pelo IBOPE em 20064, ela é uma ilustre desconhecida dos brasileiros, o que apresenta uma dificuldade no momento de apresentar este trabalho. Isso porque é necessário lançar mão de conceitos que formam a base do budismo5.

A presente dissertação foi organizada em três capítulos.

No primeiro, denominado: “Os primeiros passos. Um contexto geral dos estudos sobre mulheres” apresento a situação das mulheres na sociedade indiana e a fundação da comunidade monástica budista masculina. O capítulo inicia com uma visão geral dos estudos sobre mulheres e religião apresentando os encontros e desencontros entre o Ocidente e o Budismo, mostrando a situação da pesquisa neste campo, uma linha

2 O Kullavagga é um conjunto de textos que inclui os relatos dos Primeiro e Segundo Concílios Budistas e o estabelecimento da comunidade de monjas budistas. Neste trabalho incluem-se as regras para lidar com falhas cometidas na comunidade. 3 A versão utilizada é uma tradução do sânscrito para o inglês, realizada por T. W. Rhys Davids e Hermann Oldenberg, na obra Sacred Books of the East, cujo conjunto completo corresponde aos volumes XIII, XVII e XX. Será utilizado somente o excerto do décimo kandhaka. Para tanto foi realizada uma tradução para o português por Felipe Donadon e incluído no presente trabalho como anexo 1, com autorização do tradutor. Atribui-se a elaboração do Mahavagga e do Kullavagga os dois primeiros concílios budistas (Harvey, 2019), as transcrições para o Pāli ocorreram somente no século V d.C quando ocorre a formalização do cânon Pāli. 4 IBOPE Opinião: Pesquisa de opinião pública sobre religião. 2006 5 Para melhor entendimento, caso a leitora ou o leitor desconheça termos e conceitos como: saṃgha, dharma, quatro nobres verdades, caminho óctuplo, verifique o Anexo 1 dessa dissertação.

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recente de diálogo, mas que conta com o crescente desenvolvimento promovido pelas conquistas femininas alcançadas nos últimos cem anos. Sem a luta destas pioneiras este trabalho não teria sido desenvolvido, pois não havia lugar de fala para a mulher. Depois dialogamos a respeito da sociedade indiana no tempo do Buda e a situação da mulher nesta sociedade. Um terreno lamacento e movediço de caminhada. Pouca pesquisa, escrita em inglês ou espanhol, retrata as mulheres na Índia antiga. Acredito que isto ocorra porque ainda hoje a situação das mulheres na Índia é desfavorável. O sistema de castas foi abolido no processo de independência do país, mas não deixou os costumes. A mulher indiana, por exemplo, raramente chega à universidade. Com sua presença escassa, a quem interessaria resgatar sua origem? Por fim, apresento a fundação da comunidade masculina de monges budistas. A comunidade masculina é formada logo no primeiro discurso público de Siddhārtha Gautama, o Buda. A ideia é apresentar suas características principais para que nos próximos capítulos seja possível comparar com a comunidade feminina que irá surgir cerca de cinco anos mais tarde. O segundo capítulo trata da luta das mulheres para a fundação da comunidade monástica feminina. Podemos dividir o relato da fundação da comunidade feminina em dois blocos: a luta para a fundação da comunidade e a autorização de fundação da comunidade. Para entender esta luta, primeiramente foi preciso investigar as razões que levavam as mulheres à busca pelo caminho, pela libertação das amarras do saṃsāra. Uma trajetória que começa com o pedido para a fundação da ordem de monjas. Desde o começo, a força e determinação de Mahāprajāpatī Gautamī está presente. Com a negativa do Buda em conceder a autorização para que as mulheres se tornassem renunciantes, elas raspam suas cabeças e seguem em peregrinação para alcançar seu objetivo. Os registros mostram que a fundação da ordem só foi possível quando o monge Ānanda interviu em favor das mulheres. A base da sua argumentação fundamenta-se no reconhecimento por parte do Buda de que elas possuíam o mesmo potencial que os homens para o completo despertar. Este potencial é colocado em marcha e a comunidade feminina é formada. A segunda parte do relato da fundação da comunidade feminina é tratada no terceiro capítulo, e corresponde à exposição das condições e obrigações para o seu estabelecimento. Segundo o cânone, para aceitar as mulheres o Buda teria imposto um

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conjunto de “oito princípios de peso a serem observados”, chamados de Gurudharmas6 na língua sânscrita ou Garudhammas na língua pāli. Para entender o peso destes princípios na comunidade feminina, primeiramente se resgata o que significava socialmente para a mulher deixar o lar. Depois, apresenta-se um panorama do que dizem as pesquisadoras e pesquisadores a respeito do potencial de corrupção do relato, colocando o cânon em questão. É razoável acreditar que a forma como foi registrada a história da fundação da comunidade feminina corresponde à realidade? Quais são os indícios de corrupção do referido texto? Fato é que corrompido ou não, os Gurudharmas estão presentes nos textos canônicos, com isso explora-se e busca-se apresentar a interpretação e indícios de corrupção analisando cada um dos oito princípios. Encerra-se o capítulo com breves palavras a respeito da ambiguidade do universo feminino budista.

Há cerca de cinquenta anos, movimentos de monjas budistas buscam restabelecer as linhagens de ordenamento pleno feminino7. Lutam para trazer as mulheres ao protagonismo dentro das tradições e questionam as ferramentas de subordinação e opressão. Elas vêm batalhando para receber a mesma formação e instrução da comunidade masculina. E essa pesquisa está alinhada com essa perspectiva.

Ao longo da dissertação, uma mesma palavra pode estar grafada de forma diferente. Isso acontece devido a diferenças na transliteração do sânscrito e do pāli. Nas traduções, foi respeitada a escolha da autora ou autor na forma de grafar os termos, e no corpo do texto foi utilizado como base o sânscrito híbrido budista romanizado.

66 Gurudharma, é a reunião das palavras guru e dharma. A palavra Guru por sua vez é a contração das palavras Guna (virtude) e rupa (pesado), ou seja, significa aquilo que é pesado em virtudes. A palavra dharma, por sua vez possui diversos significados que dependem do seu contexto. No presente caso, Dharma é derivado de Dharmam, que significa: o que está estabelecido, lei, dever, direito. Gurudharma não possui a letra “s” ao final, contudo pesquisadores e pesquisadoras como Bhikku Anālayo e Alice Collett em pregam “s” ao final para dar sonoridade ao plural quando empregado na transliteração para as línguas ocidentais. Desta forma, será utilizado com ou sem “s” dependendo do contexto. 7 De meados do século passado até o presente momento, o monasticismo feminino budista tem passado por uma mudança radical. Movimentos para ressuscitar as linhagens bhikṣuṇī aumentaram e ganharam mais força. Centenas de mulheres nas tradições Theravāda e tibetana obtiveram a ordenação completa, bhikṣuṇī em Taiwan, com preceptores e preceptoras chineses. No final dos anos 1990, um grupo de noviças do Sri Lanka foi ordenado na Índia, presidido por monges da Coréia e monjas de Taiwan. Desde então, centenas de monjas foram ordenadas no Sri Lanka, revivendo a ordem das bhikṣuṇī na ilha. Mesmo na Tailândia, um país cuja liderança eclesiástica se opõe resolutamente à ordenação de monjas, e onde a ordem feminina talvez nunca tenha existido, as mulheres começaram a receber votos mais altos de bhikṣuṇī. Maiores informações a respeito deste movimento podem ser obtidos em http://www.congress-on-buddhist-women.org (último acesso em janeiro de 2020)

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1. Os primeiros passos. Um contexto geral dos estudos sobre mulheres, a situação delas na sociedade indiana e a fundação da comunidade monástica budista masculina.

Sumanā Alegremente descanse, ó venerável senhora! Descansa-te, embrulha-te no manto que fizeste. Acalmada estão as paixões que se espalharam por dentro. Calma és tu agora, conhecedora da paz do Nibbāna. verso XVI

Este capítulo é composto por quatro partes: (1) A relevância de estudos sobre mulheres e religião no geral; (2) a sociedade indiana no tempo do Buda e a situação da mulher nesta sociedade; (3) a fundação da comunidade masculina; (4) um resumo dos pontos fundamentais.

A ideia é trazer um panorama geral para posterior discussão a respeito das monjas budistas no tempo do Buda, detalhes da fundação da sua comunidade e as controvérsias a respeito da corrupção do cânone que descreve esta fundação. Para que seja possível adentrar a tal questão, precisamos construir os alicerces para edificar os questionamentos, e por isso iniciamos com o debate da relevância destes estudos. Nós, mulheres, fomos esquecidas na história. Digo esquecidas para não dizer apagadas. Enfrentar as razões desta intencionalidade, como isso ocorreu no Ocidente e no Oriente budista e quais ferramentas possuímos para desconstruir paradigmas e reconstruir a história são os pontos abordados no primeiro bloco.

Em seguida, precisamos conhecer a situação da mulher na Índia no tempo do Buda; sem isso, não podemos buscar compreender os motivos que as levaram a tomar a decisão de enfrentar a sociedade de sua época e buscar adentrar a comunidade

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monástica budista. Por mais importante que seja debater sobre tal assunto, é um terreno movediço de difícil exploração. Isso porque a Índia atual, apesar de ter extinto formalmente o sistema de castas em sua independência, ainda preserva esta característica cultural, e são raras as mulheres indianas que conseguem adentrar a academia; essa pouca quantidade, por sua vez, raramente se envolve com um passado tão remoto, sendo escassas as informações a respeito de tal assunto. A dificuldade de encontrar informações apenas agrega mais elementos à reflexão.

Por fim, é apresentada de forma breve como se deu a fundação da comunidade monástica budista, que em seus primeiros anos era somente masculina, como os primeiros alunos se tornaram monges e como surgiram as regras monásticas, o código . Apresentando assim de forma simples como este código se estrutura e dando exemplos de como ele surgiu ao longo do tempo.

1.1 Uma visão geral dos estudos sobre mulheres e religião. Encontros e desencontros entre o Ocidente e o Budismo.

Na atualidade existem muitos trabalhos que retratam, ou mesmo recuperam, os papéis femininos na história. Mas isso não é suficiente para se opor a toda uma construção histórica de foco e valorização do protagonismo masculino, que promoveu uma história quase sem elas; isso impactou a produção de conhecimento a respeito das condições das mulheres, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Novos olhares ainda são necessários; Linda Woodhead (2013) aponta que não é possível olhar para os objetos das Ciências Sociais sem olhar para as questões de gênero.

Como um espelho do mundo secular, as relações de poder que nele ocorrem afetam diretamente as relações dentro das religiões, e isso por sua vez impacta as mulheres também nesta esfera. Woodhead enfatiza que o gênero afeta a produção de conhecimento sobre a religião. Ela não está sozinha neste pensamento: Mary Hunt nos aponta o dinamismo deste campo, e justamente atenta para a sua expansão, isso porque lançamos novos olhares ao que antes estava obscuro, e agora nós podemos nos munir de outros prismas para ver a realidade.

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O estudo feminista sobre religião é um campo dinâmico e em expansão. As mudanças na compreensão da identidade de gênero e da orientação sexual são apenas o início de novos insights para os quais as experiências de muitas pessoas em muitas partes do mundo são necessárias. (HUNT, 2015, p.78)

Reunindo esses insights, podemos possibilitar a reconstrução e recuperação dos registros do papel delas. Isso nos leva a outro questionamento, do por que isso ocorreu. Quais são as razões pelas quais as mulheres não participaram da história, ou melhor, por que há o interesse de transmitir esta impressão de que elas não participaram? Por isso, nos perguntamos a respeito de onde poderíamos encontrá-las. Perdidas, para não dizer obscurecidas, nos relatos históricos como se não existissem; são discursos que partem de uma “verdade” e isso se dá como uma forma de perpetuar as desigualdades que observamos no presente.

No âmbito dos estudos de religião, os Estudos Feministas permitiram o questionamento e a desconstrução dos discursos de verdade baseados na evocação de pressupostos religiosos para afirmar e perpetuar desigualdades de gênero. (SOUZA, 2015, p.15)

Ao desconstruir as verdades, os estudos feministas permitiram um questionamento que levou a críticas internas da religião, o que ocorreu primeiramente no campo da Teologia Cristã e posteriormente nas teologias não-cristãs (ROSADO NUNES, 2001). Quando nos referimos às teologias não-cristãs, incluímos o budismo como uma delas, onde a busca por esta reconstrução também está sendo feita. As autoras e os autores começam a mostrar um passado diferente do que conhecíamos. Cita-se como exemplo Jonathan S. Walters (1994), que escreve um artigo a respeito da “mãe”8 do Buda, no qual mostra a presença de textos que traziam a hagiografia das mulheres. Estas biografias foram registradas em diversos momentos históricos. No tempo do Buda foram relatadas no Therīgāthā9, e nos tempos pós-Aśoka (séc. II d.C.) no Theri-apadāna10, mas estas memórias foram sendo deixadas de lado pelas tradições; nelas era possível mostrar uma realidade diferente da experimentada pelas monjas na

8 Coloco mãe entre aspas porque o autor escreve mãe (mother) mas se refere à madrasta do Buda, que foi quem o criou depois da morte da sua mãe biológica. Mulher que por sua vez é a responsável pelos pedidos para fundação da comunidade monástica feminina. 9 O Therīgāthā é um conjunto de poemas em forma de cânticos que relatam a vida das monjas em sua comunidade no tempo do Buda 10 O consiste em cerca de 600 poemas, principalmente histórias biográficas de monges e monjas budistas seniores. O Apadāna está dividido em 4 partes, sendo que a terceira corresponde ao Thera-apadāna (poemas sobre os monges) com 55 capítulos de 10 apadānas num total 547 versos. O Therī-apadāna (poemas sobre as monjas), possui 4 capítulos com 10 apadānas com um total de 40 versos

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atualidade. Estes textos mostram as mulheres vivendo uma vida similar à dos homens em suas comunidades, inclusive retratam as conquistas delas, seu reconhecimento como professoras, e outros feitos notáveis dentro da história do budismo primitivo. Contudo, são tão poucos textos e trabalhos que é possível citar seus nomes. Segundo Rita Gross (1993), isso ocorre por diversas razões; no trecho a seguir, ela explicita a transição histórica que vivemos, que lança este novo olhar a respeito das mulheres:

Na discussão feminista budista, a transição da história para a análise e reconstrução envolve a passagem para um território quase completamente inexplorado, extremamente doloroso e estimulante. Embora tenha havido pouca ou nenhuma cultura histórica feminista sobre budismo, pelo menos tem havido discussões sobre a história das mulheres no budismo. (GROSS, 1993, p.125. Trad. nossa11. Grifo no original)

O processo é doloroso porque assistimos aos resultados presentes, mas estimulantes porque podemos recuperar suas histórias, possibilitando inspirar as mulheres. Para que ocorra a recuperação, são necessárias novas ferramentas, e dentre elas temos o gênero12. Linda Woodhead (2013) comenta que a falta dessa ferramenta de análise faz que as autoras e autores não percebam os detalhes que estão interligados nas religiões. Onde, por exemplo, a religião pode reforçar ou transformar as relações de gênero, pois se a ordem social é sexuada, a religião também é.

Ivone Gebara (2000), nos explica a importância desta ferramenta e como ela nos ajuda a compreender e demonstrar as relações das desigualdades entre homens e mulheres.

O GÊNERO é importante instrumento para mostrar a inadequação das diferentes teorias explicativas da desigualdade entre homens e mulheres por meio da natureza biológica. [...] As feministas são unânimes em afirmar que as análises a partir do GÊNERO nos ajudam a evitar dois grandes perigos: o primeiro é de considerar o masculino como normativo para a humanidade (androcentrismo) e o segundo é crer no assexualismo da atividade científica. (GEBARA, 2000, p.104. Grifo no original)

Por exemplo, a utilização do gênero masculino como forma de normatização linguística, onde o masculino inclui o feminino. Alice Collett e Bhikkhu Anālayo

11 In Buddhist feminist discussion, the transition from history into analysis and reconstruction involves moving into almost completely uncharted territory, which is both extremely painful and quite exhilarating. Though there has been little, if any, previous feminist historical scholarship on , at least there have been discussions of the history of . 12 O termo feminismo em muitos momentos do presente trabalho é utilizado como sinônimo de gênero. Os termos não são sinônimos. O feminismo corresponde ao movimento pela luta de direitos no qual emerge o gênero como uma categoria de análise.

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(2014) escreveram um trabalho onde demonstram e relatam esta questão do uso do masculino como normativo por parte dos tradutores budistas, e como nos fragmentos e textos antigos escritos na língua Pāli13 era diferente, pois o Buda em seus Sermões utilizava muitas vezes um gênero neutro, e que nestas traduções se empregou no lugar do vocativo neutro o masculino, mesmo existindo o vocativo neutro na língua de chegada da tradução, o que levou posteriormente a interpretações de que, por exemplo, a plateia de ouvintes do Sermão era composta exclusivamente por homens, ou que o discurso era voltado apenas à instrução dos homens.

Ao ser defrontada com a realidade deste obscurecimento, somos levadas e levados a questionar os fatos que tentaram-se esquecer, que por razões diversas foram obscurecidos, mas que com novas ferramentas podem ser recuperados. Para Maria José Rosado Nunes:

Para o Feminismo, o gênero, como construção social das diferenças sexuais, estas também socialmente construídas, atravessa e molda toda a realidade, inclusive a elaboração da ciência. Essa força de desconstrução do gênero pode ser, de fato, assustadora para a sociedade [...]. (ROSADO NUNES, 2017, p.68)

Agregando as definições e sua importância, Rita Gross nos traz uma outra definição de feminismo, uma definição budista de feminismo, que ela utiliza em seus trabalhos, reforçando o aspecto de como a religião influencia e é influenciada pelas questões de gênero, que não é baseada em opostos, masculino e feminino, mas em interdependência14, onde a relação entre os seres é priorizada, demonstrando como não somos indivíduos isolados mas em relação com o outro, formando uma definição que coloca o budismo e o feminismo lado a lado. De acordo com esta interpretação:

O feminismo envolve “a prática radical da co-humanidade de mulheres e homens”. Eu me concentro em cada palavra da definição. “Radical” significa simplesmente “ir à raiz das coisas”, uma abordagem muito budista das principais questões existenciais. No budismo, não se repousa na superfície das coisas, com aparências ou entendimentos convencionais. O feminismo

13 Existe uma discussão a respeito da datação dos textos, das línguas que eles foram falados e escritos bem como a atribuição de autoria e transcrição dos textos (BELUZZI, 2018). Segundo Wayman (1965) a linguagem “original” do budismo é uma forma do dialeto Prācya, talvez Māgadhī. Contudo, uma vez que o Buda instruiu que os monges deveriam aprender a doutrina em seus próprios dialetos, os Sermões podem ter sido repetidos por falantes de todos os três principais dialetos Arianos, falados em Udīcya (o Noroeste), Madhyadeśa (o País do Meio) além de Prācya. Possivelmente sob o patrocínio do Rei Asoka (III a.C.) os vários dialetos nos quais os discursos de Buda haviam sido preservados foram fundidos em uma Prakrit mais ou menos homogênea chamado Pāli, que, portanto, é dificilmente o dialeto ‘original’ falado pelo Buda, embora esteja razoavelmente perto. 14 Para aprofundar sobre a interdependência na visão do budismo, sugere-se a leitura do texto ANDRADE, Clodomir B. O caminho e suas etapas: as quatro nobres verdades (catvyāryasatiaṇi), o nobre caminho óctuplo (āryāṣṭāṇgikamarga) e os estágios dos buscadores. Kriterion, Belo Horizonte, nº 133. 2016. Disponível em www.scielo.br/pdf/kr/v57n133/0100-512X-kr-57-133-0105.pdf acesso em 02 de agosto de 2019.

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nos pede para questionar os arranjos convencionais de gênero e os estereótipos de maneira igualmente radical. (GROSS, 1993, p.127-128. Trad. nossa15)

Quando nos referimos às mulheres, não podemos esquecer que elas correspondem a 49,6% da população mundial16, e que têm participado de diversas formas da vida em sociedade, atuando, trabalhando e apoiando, ou seja, estão participando. Mas, como a vida pública pertence aos homens, a história delas foi obscurecida, renegada a segundo plano, de forma a dar a entender que elas não participaram dos fatos históricos, como se elas simplesmente não existissem.

No que diz respeito à história das mulheres, a reação da maioria dos(as) historiadores(as) não feministas foi o reconhecimento da história das mulheres para depois descartá-la ou colocá-la em um domínio separado (“as mulheres têm uma história separada da dos homens, portanto deixemos as feministas fazer a história das mulheres, que não nos concerne necessariamente” ou “a história das mulheres trata do sexo e da família e deveria ser feita separadamente da história política e econômica”). (SCOTT, 1990, p.5)

Esta questão da dificuldade de se obter as informações a respeito das mulheres citada por Joan Scott não é novidade também no universo budista. Rita Gross mostra que na sua experiência como pesquisadora isso também aconteceu. Ela explica que, às vezes, informações sobre mulheres não podem ser encontradas em contextos históricos particulares. Outras vezes, os problemas para recuperar a voz das mulheres são imensos, como ela descobriu ao fazer pesquisas históricas sobre as mulheres no budismo. Muitas vezes, apenas as informações coloridas androcentricamente sobre os papéis e imagens das mulheres, como dos homens, podem ser recuperadas. (GROSS, 1996,)

Jonathan S. Walters (1994) mostra a perda da hagiografia das mulheres, e como isso é um elemento contributivo do processo de obscurecimento. Isso ocorre porque a história foi escrita pelos homens; as mulheres chegaram tardiamente à academia, uma vez que existiram expressões de trabalhos femininos no passado, mas

15 Feminism involves “the radical practice of the co-humanity of women and men.” I focus on each word of the definition. “Radical” simply means “going to the root of things,” a very Buddhist approach to major existential questions. In Buddhism, one does not rest on the surface of things, with appearances or conventional understandings. Feminism asks us to question conventional gender arrangements and stereotypes in a similarly radical way. 16 Dados segundo The World Bank, referentes ao ano de 2017, disponível em https://data.worldbank.org/indicator/sp.pop.totl.fe.zs acesso em 06 de julho de 2019

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apenas no século XIX elas começaram a reclamar sua posição e direitos. Relatos de mulheres participando da história desta forma são uma exceção (LERNER, 1975).

A preocupação teórica com o gênero como uma categoria analítica só emergiu no fim do século XX. Ela está ausente das principais abordagens de teoria social formuladas desde o século XVIII até o começo do século XX. De fato, algumas destas teorias construíram sua lógica a partir das analogias com a oposição entre masculino/feminino, outras reconheceram uma “questão feminina”, outras ainda se preocuparam com a formulação da identidade sexual subjetiva, mas o gênero, como uma forma de falar sobre sistemas de relações sociais ou sexuais não tinha aparecido. (SCOTT, 1990, p.85)

Desta forma, para lançar novos olhares são necessárias novas lentes de leitura, indo além do pensamento binário, polar, de masculino e feminino, estanque ou que reconhecessem meramente uma questão feminina que necessitava ser abordada para passar a abarcar sistemas de relações sociais onde o sexo faz parte destas relações. Falando a respeito do não binarismo quando utilizamos a categoria gênero como elemento analítico, Ivone Gebara (2000) explica a questão de “ser no mundo” que transcende a questão biológica para mostrar que a cultura é o fator influenciador primeiro que deve ser levado em consideração, inclusive quebrando o paradigma binário e estanque, ao abordar a pluralidade do ser humano.

No budismo a questão de quando surgem estas pesquisas e como elas trazem tais questões são expostas por Rita Gross (1996):

Sei, de minha própria pesquisa, que o acadêmico que trabalha com um modelo andrógeno de humanidade, encontrará muitas informações sobre mulheres em estudos androcêntricos já existentes, mesmo sem novas traduções ou trabalhos de campo. Essa é uma informação que foi amplamente menosprezada ou interpretada como evidência de que as mulheres não são importantes, participantes menores em uma sociedade dominantemente masculina. (GROSS, 1996, p.66. Trad. nossa17. Grifo no original)

Assim, no budismo, também é necessário fazer uma nova leitura, numa nova lente de visão que possibilite que as mulheres sejam percebidas dentro do contexto da

17 I know from my own research that the scolar working with an androgenic model of humanity will find a much information about women in already existing androcentric scholarship, even without new translations or fieldwork. That information has been either largely overlooked or interpreted as evidence that women are unimportant, minor participants in a male-dominant society.

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comunidade. Contudo, se faz necessária cautela porque quando Rita Gross fala das traduções já existentes precisamos pensar nas agendas destes tradutores. Alice Collett e Bhikku Anālayo (2014) demonstram como a tradução foi uma ferramenta de obscurecimento das mulheres, e por isso precisamos reforçar a cautela na análise destas traduções, e de como elas são usadas como ferramentas para “demonstrar” a menor importância das mulheres no budismo primitivo.

Existe um problema no budismo que é o fato de, embora termos mais praticantes mulheres do que homens, isso não se refletir nas posições de liderança, ou seja, poucas se tornam professoras (GROSS, 2005). Segundo Rita Gross (1996) isso acontece de forma diferente do que nas religiões monoteístas, ocorrendo no caso do budismo por questões de institucionalização.

As feministas budistas enfrentam uma situação bastante diferente das feministas monoteístas, porque as manifestações mais problemáticas do patriarcado no budismo são suas formas institucionais, tais como regras monásticas que favorecem os homens sobre as mulheres e uma preferência pelos professores do sexo masculino, ao invés de seus símbolos e doutrinas. (GROSS, 1996, p.134. Trad. nossa18)

Sobre as regras monásticas que favorecem os homens, ela está se referindo aos Gurudharmas, que consistem em oito princípios adicionais que monjas iniciantes devem aceitar no momento de seu ordenamento19. A discussão a respeito dos Gurudharmas será detalhada no capítulo três do presente trabalho. Sobre a preferência dos professores homens, é um círculo vicioso que desprivilegia as mulheres, em resumo. Como as mulheres ao longo do tempo receberam menos educação, poucas alcançaram posição de destaque; por não alcançarem a posição de destaque elas atraíam menos alunos e com isso menos recursos eram destinados à sua educação, o que por sua vez provocava uma educação deficitária, fechando o círculo degenerativo.

Rita Gross continua a explicação a respeito dos pontos nos quais as mulheres estão subjugadas dentro do budismo, bem como isso ocorre.

18 Buddhist feminists face a rather diferente situation than monotheistic feminists, do because the most problematic manifestations of patriarchy in Buddhism are its institutional forms, such as monastic rules that favor men over women and a preference for male teachers, rather than their own. symbols and doctrines 19 Estes preceitos estão em adição aos treze preceitos básicos que homens e mulheres aceitam no momento de seu ordenamento (não matar; não tomar o que não lhe é dado; não mentir sobre as próprias realizações; não ingerir intoxicantes; abster-se de qualquer conduta sexual; não dançar e não usar joias, ornamentos ou maquiagem; não manusear ouro ou prata; não se sentar em assentos elevados; não comer depois do meio dia; respeitar e ouvir os conselhos do preceptor; abandonar as características de um leigo e cultivar as características e costumes de um monge). (TSONGKHAPA, 2017)

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A tarefa teológica desconstrutiva para uma feminista budista não é primariamente reconstruir símbolos básicos, mas demonstrar que os ensinamentos centrais do budismo não podem ser usados para justificar as formas dominantes masculinas do budismo. De fato, o budismo tradicional raramente justifica a dominação masculina ao invocar os ensinamentos budistas, mas baseia-se em crenças populares, muitas vezes não-budistas, retiradas da cultura circundante, como a crença, encontrada tanto no confucionismo quanto no hinduísmo, de que uma mulher deveria estar sempre sob o controle de um parente do sexo masculino, seja pai, marido ou filho. (GROSS, 1996, p.136. Trad. nossa20. Grifo nosso)

Por exemplo, no lugar de se apoiarem nas palavras do fundador, utilizando os Sermões, utiliza-se a crença popular de karma para justificar essa dominação masculina. Enquanto nos ensinamentos budistas a ideia de karma corresponde a uma tendência, cujo nascimento como homem ou mulher não está relacionado com as ações de vidas anteriores, as crenças populares acabam por utilizar um conceito pan-indiano de karma que é muito diferente.

[...] os budistas tentam explicar e justificar a hierarquia de gênero e a dominação masculina por outros meios. Eles apelam para o conceito pan- indiano de karma, a lei de causa e efeito e seu corolário, a crença no renascimento. Antes de prosseguir com uma discussão sobre esse conceito no contexto da análise feminista, pode ser útil discutir o conceito de maneira mais completa. É importante entender que a chamada “lei do karma” é sobre causa e efeito. Não é uma teoria de recompensa e punição, embora às vezes seja discutida quase como se fosse. Não é uma teoria de recompensas e punições porque não há recompensador ou punidor, e porque os efeitos são considerados completamente não arbitrários, o que nem sempre é o caso com recompensas e punições. (GROSS, 1993, p.142. Trad. nossa21)

Assim, é por meio desta teoria pan-indiana que o renascimento como uma mulher seria um renascimento desfavorável, porque ele não traria as condições necessárias para o pleno desenvolvimento do treinamento budista; mas essa ideia

20 The deconstructive theological task for a Buddhist feminist is not primarily to reconstruct basic symbols, but to demonstrate that the core teachings of Buddhism cannot be used to justify the Buddhism’s male dominant forms. In fact, traditional Buddhism rarely,if ever, justifies male domination by calling upon Buddhist teachings, but instead relies on popular beliefs, often non-Buddhist, drawn from the surrounding culture, such as the belief found in both Confucianism and Hinduism, that a woman should always be under the control of a male relative, whether father, husband or sun. 21 As we have already seen, Buddhists attempt to explain and justify gender hierarchy and male dominance by other means. They appeal to the pan-Indian concept of karma, the law of cause and effect and its corollary, belief in . Before going on to a discussion of this concept in the context of feminist analysis, it may be useful to discuss the concept more fully. It is important to understand that the so-called "law of karma" is about cause and effect. It is not a theory of reward and punishment, though sometimes it is discussed almost as if it were. It is not a theory of rewards and punishments because there is no rewarder or punisher, and because effects are said to be completely non-arbitrary, which is not always the case with rewards and punishments

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deriva da cultura indiana e não dos ensinamentos sobre interdependência budista. Assim, a teoria do kamma22 é

frequentemente usada na justificação da discriminação contra as mulheres e na formação de atitudes tanto dos opressores como das oprimidas nas sociedades tradicionais. Essa justificativa também não se limita apenas às mulheres, mas também aos pobres, despossuídos, fora dos grupos étnicos e castas tradicionais. (SIRIMANNE, 2016, p.279. Trad. nossa.23)

Segundo Walters (2014), o Buda quando ensinava não fazia distinção entre classe social e gênero. Ao ensinar sobre a interdependência em substituição à noção de karma como destino, ele provoca o rompimento com a justificação do sistema de castas sociais e opressão contra as mulheres. Rita Gross apresenta estas questões positivas do budismo em suas análises:

Uma das principais características positivas do budismo no que diz respeito à igualdade de gênero é a ausência de um Deus Criador onipotente, tradicionalmente retratado como um homem no seu centro, que confere legitimidade à supremacia masculina. Assim, também não há código divino de conduta que dê autoridade aos homens, como em outras grandes religiões. Em vez de um Deus Criador, é o kamma e a origem dependente (paticca samuppāda) que moldam o nascimento de cada ser que abrem a possibilidade, de fato, a alta probabilidade de nascer como qualquer gênero no ciclo samsárico. (SIRIMANNE, 2016, p.280. Trad. nossa24. Grifo no original)

Em teoria, o completo despertar budista não depende do sexo (GROSS, 1995), mas as comunidades monásticas femininas e masculinas são separadas, e esta separação possibilita que o investimento seja diferenciado entre os grupos, e novamente o círculo vicioso se forma, porque o elemento justificante de investimento diferencial reside no potencial masculino de se formar professor, mas sem investimentos elas não conseguem alcançar esta posição, que por não alçarem, justifica-se o menor investimento. Deixando de lado a visão da interdependência e adotando o conceito pan-indiano de karma ocorre a dominação masculina, que se inicia pelo princípio da visão social, onde a diferença anatômica dos corpos masculino

22 Kamma e karma são sinônimos. Sendo o primeiro (kamma) escrito na língua pāli, e o segundo (karma) em sânscrito. 23 The theory of kamma is thus often used in the justification of discrimination towards women and in shaping attitudes of both the oppressors and the oppressed in traditional societies. This justification is also not limited just to women but also to the poor, dispossessed, those outside mainstream ethnic groups and castes 24 A core positive characteristic of Buddhism with regard to gender equality is the absence of an omnipotent Creator God traditionally portrayed as a male at its centre providing legitimacy to male supremacy. Thus, there is also no divine code of conduct that gives authority to males as in other major religions. Instead of a Creator God it is one’s kamma and dependent origination (paticca samuppāda) that shape the birth of every being opening up the possibility or indeed high probability of being born as any gender in the samsariccycle

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e feminino é vista como consequência natural das diferenças sociais, e por serem consideradas tão óbvias são então facilmente naturalizadas como expressão justificante:

Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o pensamento na evidência de que relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade, sob forma de divisões objetivas, e na subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que, organizados segundo essas divisões, organizam a percepção das divisões objetivas. (BOURDIEU, 2002, p.18)

No caso do budismo a naturalização acontece com o uso da lei do karma, na verdade de uma distorção, pois como já explicado, se usa o conceito pan-indiano, outra forma de ver o karma é a forma como explicado por Rita Gross:

Podemos agora rever a aplicação tradicional desses conceitos ao fato de ser mulher. Tradicionalmente, diria se que as mulheres estão em situação difícil devido ao seu karma, devido a comportamentos passados. As mulheres têm uma posição inferior nas sociedades patriarcais e, além disso, são consideradas por muitos com valores sexistas deficientes e talvez repugnantes biologicamente, intelectualmente e espiritualmente. Mas elas estão apenas colhendo os efeitos do karma passado. Em certo sentido, elas “merecem” o que recebem. Seus sofrimentos presentes esgotam ou exaurem o karma negativo do passado; lidar bem com a situação atual cria uma “conta bancária” de karma positivo para conduzir situações futuras. Renascimento masculino foi o eventual resultado positivo prometido. (GROSS, 1993, p.143. Trad. nossa25)

Assim, segundo esta visão, as mulheres, ou melhor aquelas que nasceram como mulher, estão colhendo o resultado de suas ações, ou de suas más ações, uma vez que o efeito de nascer como mulher seria inferior. Seja qual for a explicação empregada, o objetivo é o mesmo das demais sociedades patriarcais, o de segregar, obscurecer, limitar, controlar as mulheres, encontrando justificativas para fundamentar tais ações. Sobre isso, Pierre Bourdieu prossegue nas explicações, mostrando o impacto destas diferenças nos corpos masculinos e femininos, e como a existência ou ausência do falo

25 We may now review the traditional application of these concepts to the fact of being female. Traditionally, it would be said that women are in their present difficult situation because of their karma, due to past behaviors. Women have an inferior position in patriarchal societies, and furthermore, are thought by many with sexista values to be deficient and perhaps disgusting, biologically, intellectually, and spiritually. But they are only reaping the effects of past karma. In a certain sense, they “desserve” what they get. Their present sufferings burn out or exhaust the negative karma from the past; coping well with the present situation creates a “bank account” of positive karma to drive future situations. Male rebirth was the promised eventual positive outcome.

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é o elemento fundamental desta visão do mundo, criando a diferenciação e a divisão por gêneros como símbolos relacionais:

As diferenças visíveis entre o corpo feminino e o corpo masculino que, sendo percebidas e construídas segundo esquemas práticos da visão androcêntrica, tornam-se penhor mais perfeitamente indiscutível de significações e valores que estão de acordo com os princípios desta visão: não é o falo (ou falta de) que é o fundamento dessa visão de mundo, e sim essa visão de mundo que, estando organizada segundo a divisão em gêneros relacionais, masculino e feminino, pode instituir o falo, constituído em símbolo da virilidade. (BORDIEU, 2002, p.32. Grifo no original)

A linguagem também se transforma em ferramenta utilizada para obscurecer as mulheres, pois em diversos idiomas, como é o caso do português, não existe um gênero neutro. O masculino, englobando o feminino e o representando, é a forma “inclusiva” que na prática nada inclui, apenas obscurece:

Ao extremo, poder-se-ia até mesmo objetar, como fazem alguns, que na linguagem o masculino inclui o feminino; mas esta linguagem se torna então por si mesmo, reveladora da norma estabelecida. Trata-se de um inclusivo que oculta o outro lado, o feminino. Ora, deveria ser acentuado um inclusivo que revela a mulher, que a mostra e a faz parecer em sua originalidade e com sua dignidade própria. (GEBARA, 2000, p.116)

Mas lembrando o que já foi citado, esta incorporação às vezes é proposital, pois muitas vezes o idioma possui o gênero neutro, mas nas traduções o gênero masculino é utilizado de forma que abarque o feminino, obscurecendo-o.

Neste sentido, corrobora Rita Gross:

[...] o aspecto mais problemático do androcentrismo é sua tentativa de lidar com o fato de que, uma vez que homens e mulheres são ensinados a serem diferentes em todas as culturas, os gêneros masculinos simplesmente não cobrem a feminilidade. O homem genérico só deveria atuar em religiões ou culturas que não tivessem papéis sexuais, mas não existe tal cultura. Portanto, as mulheres devem às vezes ser mencionadas em relatos de religião. Nesse ponto, os adeptos da humanidade androcêntrica alcançam um impasse lógico. Sua solução para esse impasse é o componente mais devastador da perspectiva androcêntrica. Porque as mulheres inevitavelmente se derivam dos modelos masculinos, androcêntricos, o pensamento lida com elas apenas como objetos exteriores à “humanidade”; precisando se debruçar sobre isso e alocar em algum lugar, e assim tendo o mesmo status epistemológico e ontológico de árvores, unicórnios, divindades [...] (GROSS, 1996, p.19. Trad. nossa26)

26 [...] the most problematic aspect of androcentrism is its attempt to deal with the fact that, since men and women are taught to be different in all cultures, generic masculine simply do not cover feminine. The generic man should would work only in religions or cultures that do not have sex roles, but there is no such culture exists. Therefore, women must sometimes be mentioned in reports of religion. At this point, adherents of androcentric humanity reach

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Complementando esta questão, Rita Gross em outra obra de sua autoria aponta:

Ao fazer afirmações sobre as implicações feministas de certos conceitos budistas fundamentais e ao sugerir reconstruções de instituições e conceitos budistas, a profundidade histórica fortalece os insights e argumentos de alguém. Sem esse conhecimento histórico, que frequentemente falta aos comentaristas sobre questões relativas às mulheres e ao budismo, a discussão é unidimensional, limitada à experiência budista de um grupo razoavelmente pequeno, e talvez atípico, de budistas contemporâneos. No entanto, as discussões feministas das tradições religiosas estão mais preocupadas com o presente e o futuro do que com o passado. Informações sobre o passado da tradição são usadas para fomentar a análise feminista e a reconstrução da tradição, em vez de ser um fim em si mesmo. (GROSS, 1993, p.125. Trad. nossa27)

Desta forma, é de grande importância nos familiarizarmos com esta questão, refletirmos sobre o obscurecimento feminino, a necessidade de construção de novos valores e ferramentas que abarquem e abracem as necessidades pungentes. Para se construir um novo futuro deve-se recuperar o passado e utilizá-lo como ferramental para edificação. Podemos perceber que guardadas as diferenças o budismo e o Ocidente possuem pontos de contato e pontos de distanciamento. Usar de maneira hábil estas qualidades e diferenças permitirá a construção destes valores transformadores.

1.2 A sociedade indiana no tempo do Buda e a situação da mulher nesta sociedade.

a logical impasse. Their solution to this impasse is the most devastating component of the androcentric outlook. Because women inevitably derive from man norms, androcentric thinking deals with them only as objects exterior “ to mankind”; needing to be explained and fitted in somewhere, and thus having the same epistemological and ontological status as trees, unicorns, deities [...] 27 When making claims about the feminist implications of certain key Buddhist concepts and when suggesting reconstructions of Buddhist institutions and concepts, historical depth strengthens one's insights and arguments. Without such historical knowledge, which commentators on issues pertaining to women and Buddhism often lack, the discussion is one-dimensional, limited to the Buddhist experience of a fairly small, and perhaps atypical, group of contemporary Buddhists. However, feminist discussions of religious traditions are more concerned with the present and the future than with the past. Information about the past of the tradition is used to foster feminist analysis and reconstruction of the tradition, rather than being an end in itself.

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Sétimo país em área territorial, a Índia possui dimensões continentais; ela não é uma unidade, nem em termos de relevo e clima, muito menos em termos de constituição de seu povo, dada a grande extensão de terras. Sobre o contexto da Índia no período do Buda:

A Índia é uma península ao sul da Ásia e sua geografia e clima possuem diferenças óbvias em relação às terras de outras regiões. O sul da Índia se estende até os trópicos enquanto o norte está próximo das montanhas do Himalaia e a Índia central possui clima temperado. Na Índia antiga, o ciclo anual climático era dividido em três estações de quatro meses cada. Devido à sua localização entre as zonas temperada e tropical, as atividades física e mental do povo indiano, e de modo geral, seu modo de pensar, eram muito animadas. Isto se aplica especialmente às regiões do sul, que chegavam a ser até mais ricas em imaginação mística. Desde os tempos antigos até o presente, as culturas e línguas da Índia não foram unificadas. Na Índia antiga havia mais de cinquenta ou sessenta sistemas de escrita, que costumavam se aglomerar sob o termo único “sânscrito”, mas na verdade o sânscrito é apenas um deles. [...] Embora tenha sido sempre considerada um país, na verdade a Índia ainda se encontra dividida em vários grupos étnicos, cada um ocupando sua própria área. Assim sendo a cultura indiana nunca foi unificada de fato” (HUAI-CHIN, 2002, p.2)

Nos interessa apresentar uma breve visão da história da Índia, mas não um resumo qualquer, queremos ir além dos dados básicos da história deste país continental, colocando uma lente a respeito da mulher nesta época antiga, com foco especial ao período em que o Buda estava vivo e ensinando. Mas esta é uma história que começa a ser traçada antes, na idade do bronze onde se acredita que o papel das mulheres e homens possa ter sido igual, mas que com o avanço da agricultura foi moldando a sociedade e a modificando. A capacidade laboral dos homens e sua força física acabaram por subjugar as mulheres e as dominar, que a cada momento perdiam seus direitos. Os indícios da equiparação entre os sexos estão nas evidências arqueológicas de cultos a deusas.

Índia antiga abrange um vasto período de 2.500-250 a.C.. A arqueologia, textos antigos e artefatos estão sendo usados para reconstruir a vida das mulheres. “Os materiais mais antigos encontrados por escavações arqueológicas sugerem o culto de deusas. Os primeiros textos religiosos registrados (1.500 a.C.) mostram apelo ao poder vivificante de deusas para dar vida e nutrir e sustentar.” (ROUT, 2016, p.43. Trad. nossa28)

28 Ancient India spans a vast period 2500B.C-250 B.C... Archaeology, ancient texts, andartifacts are being used to reconstruct the lives ofwomen. “The earliest materials found byarchaeological excavations suggest the worshipof goddesses. The earliest recorded religious texts(1500 B.C.) call on the life-giving power ofgoddesses to give life and to nurture and sustainit.”

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Habitava aquela área nos tempos remotos um povo denominado Dravidianos. Tendo se estabelecido no local algo entre 2500 e 1500 a.C., dominavam o cobre, e estabeleciam cidades organizadas; eles construíram o sistema de crenças e organização social que incluíam a religião védica antiga e seu politeísmo sacrificial e o sistema de varnyas flexível. Surgem nesta época o sistema de crenças, com Devas (deuses masculinos) e Devanis (deusas femininas) em árvores, rios, animais, fogo, raios e assim por diante. Os sacrifícios que eram oferecidos traziam prosperidade, boas colheitas e vida longa, isso se fossem conduzidos de forma adequada nas cerimônias (FERREIRA, 2018). Nesta época as mulheres eram educadas, não existia o casamento antes da puberdade de meninas, nem a prática de que consiste em queimar as viúvas vivas na pira funerária do marido.

Durante o período da antiguidade da Índia, as mulheres desempenharam um papel significativo. A mulher Rig-Veda gozava de status elevado na sociedade. Sua condição era boa. Às mulheres eram fornecidas oportunidades para atingir alto padrão intelectual e espiritual. Havia muitas mulheres Rishis29 durante este período. Apesar de a monogamia ser mais comum, os mais ricos da sociedade se entregavam à poligamia. Não havia sistema sati ou casamento precoce. Mas de ser possível desfrutar de posições livres e estimadas na Sociedade Rig-Veda, as mulheres passaram a ser discriminadas desde o período Védico tardio em sua educação e outros direitos e facilidades. Casamento de criança, viúva sendo queimada, o purdah, e a poligamia piorou ainda mais a posição das mulheres. (ROUT, 2016, p.42. Trad. nossa30. Grifo no original)

Por volta de 1.000 a.C. a região foi invadida por Arianos, um povo de pele clara, que mesmo em menor número subjugou os nativos; acredita-se que isso foi possível porque desastres climáticos enfraqueceram a população local. Isso afetou o sistema anterior dos Dravidianos que se modificou formando o Bramanismo (ROUT, 2016). Os escravos provenientes destas batalhas seriam os escravos depois no sistema de castas fixas.31

29 A tradição pós-védica do hinduísmo considera os rishis como “grandes sadhus” ou “sábios” que, após intensa meditação, perceberam a verdade suprema e o conhecimento eterno, que compunham em hinos. 30 During ancientperiod of India, women played a significant role.The Rig Vedic Women in India enjoyed high status in society. Their condition was good. The women were provided opportunity to attain high intellectual and spiritual standard. There weremany women Rishis during this period. Though monogamy was mostly common, the richer section of the society indulged in polygamy. There was no sati system or early marriage. Butfrom enjoying free and esteemed positions in the Rig-Vedic society, women started being discriminated against since the Later- Vedic periodin education and other rights and facilities. Childmarriage, widow burning, the purdah and polygamy further worsened the women’s position. 31 Há divergências entre o uso dos termos Hinduísmo e Bramanismo. Aqui será adotada a nomenclatura usada por Huai-Chin (2002) e Tsai (2017), para quem o Bramanismo era a religião védica antiga, buscando diferenciar a religião e suas peculiaridades que ocorreram no movimento de reação às invasões islâmicas no século XI d.C. na Índia. As transformações provocadas por este movimento é o que se tem como religião majoritária na Índia hoje, chamada de Hinduísmo.

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Aparentemente, esta civilização sucumbiu devido a grandes desastres naturais que mudaram o curso do Rio Indus. Até o momento, pensava-se que os arianos invasores conquistaram esses indígenas, mas a Civilização Indus já estava em um estado de declínio quando esses nômades entraram em Hindu Kush. Estes arianos eram de pele clara em comparação com os nativos e ao longo do tempo os escravizou, resultando no sistema de castas. A sociedade altamente hierárquica dos Arianos foi liderada pelos Sacerdotes brâmanes, que impuseram políticas e poder religioso sobre os demais. Os brâmanes compuseram a literatura sagrada, os Vedas, que postulou as crenças que continuam a ser reverenciadas até hoje pelos hindus. (ROUT, 2016, p.43. Trad. nossa32)

Contudo, não é consenso entre os estudiosos da Índia a possibilidade de a mulher ter gozado em algum momento de certo reconhecimento e respeito na sociedade indiana antiga. Bhattacharji explica que numa leitura atenta de vários textos antigos é possível indicar que nunca houve uma época em que o trabalho das mulheres em casa, por mais pesado que fosse, tenha sido considerado produtivo. O valor exclusivo das mulheres residia no seu papel reprodutivo e mesmo lá ela foi vista como um campo onde a colheita pertencia ao proprietário da semente. (BHATTACHARJI, 1991)

Neste sentido o Upanishad, texto védico datado de algo entre os séculos XVI a VII a.C.33 mostra a mulher como sendo este campo onde a semente é depositada.

Aitareya Upanishad. Segundo Adhyaya. A semente se torna uma com a mulher, como se fosse um membro do corpo dela mesma. E é por isso que ela não se machuca. Ela nutre esse atman vindo dele, que veio para dentro dela. Ela, sendo a nutridora da criança, deve também ser nutrida. A mulher nutre o embrião. Imediatamente, depois do seu nascimento o pai nutre a criança. Nutrindo a criança a partir do seu nascimento em diante, ele então nutre a si mesmo pela continuação desses mundos. Por meio disso esses mundos são perpetuados. Esse é o segundo nascimento. (TSAI, 2016, p.5. Grifo no original)

Como se trata de uma sociedade em transição de predominantemente agrícola para uma sociedade com artesãos e comerciantes, as metáforas com respeito a sementes e agricultura são frequentes. O que chama atenção é a delimitação do papel

32 Apparently this civilization succumbed to major natural disasters that changed the courseof the Indus River. Hitherto it was thought thatthe invading conquered these indigenouspeople, but the Indus Civilization was already ina state of decline when these nomads came infrom the Hindu Kush. These Aryans were lightskinned compared to the natives and over timeenslaved them, resulting in the caste system.’s highly hierarchical society was led by the Brahmin priests, who imposed political andreligious power over the rest. The Brahmins composed sacred literature, the Vedas that postulated the beliefs that continue to be revered today by the Hindus. 33 Não há consenso entre os historiadores sobre a data exata destes textos, mesmo porque trata-se de uma composição que foi sofrendo acréscimos e modificações ao longo do tempo até se consolidar na forma escrita.

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da mulher, que consiste em apenas nutrir o ser, ou seja, a interpretação da cultura é que o pai deposita esta semente no útero da mulher. Sua posição é tão inferiorizada que ela não é nem coparticipante na concepção do filho. Corroborando com esta interpretação, Plínio Tsai aponta ao analisar o excerto do Upanishad.

A menos que exista uma leitura mais simbólica ou espiritual, da leitura do Upanishad, vemos que a mulher nutre o ser individual, atman, e é usada por ele como fonte de nutrição. Por sua vez, a mulher deve ser nutrida, e essa é a função do homem, enquanto ela, a mulher, estiver gestando a criança, e depois também, até que o ser individual esteja plenamente desenvolvido para adentrar as suas obrigações, e assim por diante, na cultura indiana. O pai nutre a criança dando-lhe proteção, abrigo, alimentos, e assim por diante. O trabalho da mulher está terminado no que diz respeito à geração do atman, que é a continuação do ser do pai. E assim sucessivamente, o atman do pai vai sendo passado de geração em geração. (TSAI, 2016, p.5. Grifo no original)

Justamente por esta visão do papel da mulher que a religião da época via o renascimento feminino como problemático, fruto de más ações. Como cabe aos homens a transmissão da essência divina do ser, o ātman34,

Os brâmanes categoricamente chamam um filho de bênção, uma menina de maldição; assim, exceto os pais afetuosos, os outros considerariam a filha como um incômodo, para dizer o mínimo, sobre o sofrimento em casa até que ela seja dada em casamento. (BHATTACHARJI, 1991, p.507. Trad. nossa35)

Essa forma de ver o renascimento feminino acarreta que as filhas são vistas de forma tão menor que o Upanishad fala sobre o temor de perder um filho e o gado, mas a perda de uma filha não é temida. O deus demônio do reino dos desejos, , oferece atrativos para os homens, que são filhos, netos, gados, elefantes, mas ele se silencia quando se refere a filhas. O Upanishad é frio quanto ao nascimento de mulheres (SHARMILA, 2013). Esta é a realidade experimentada por elas.

Mesmo nos textos védicos, notamos a preferência pronunciada da sociedade por uma criança do sexo masculino. Uma mulher estéril poderia ser expulsa- (parivrtti ou parivrkti) porque estava possuída por Nirrti. A ênfase suprema na fertilidade produziu essa ideia de uma mulher possuída por Nirrti, um conceito negativo de espírito que é extremamente feio, e totalmente perverso,

34 é uma palavra sânscrita que significa eu interior, espírito ou alma. Especialmente na escola de hinduísmo do Vedanta, antman é o primeiro princípio, o verdadeiro eu de um indivíduo, além da identificação com os fenômenos, a essência de um indivíduo. Para alcançar a liberação (moksha), um ser humano deve adquirir autoconhecimento (atma ), que consiste em perceber que o verdadeiro eu (ātman) é idêntico ao eu transcendente Brahman. 35 The Brahmanas categorically calls a son a blessing, a girl child a curse; so except affectionate parents, others would look upon the daughter as a nuisance, to put it mildly, on sufferance at home until she is given away at marriage.

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mas cuja função especial é destruir tudo que é bom. Embora uma mulher estéril possa ser descartada após dez anos, uma mulher que dá à luz apenas filhas pode ser descartada depois de doze anos e uma mãe de filhos natimorto depois de quinze anos. O marido de uma esposa sem filhos deve se casar novamente. A definição de uma boa mulher é “aquela que agrada ao marido, dá à luz filhos do sexo masculino e nunca mais responde ao marido”. (BHATTACHARJI, 1990, p.51. Trad. nossa36. Grifo no original)

Mesmo existindo a possibilidade de divórcio, é possível notar que a mulher é completamente desprivilegiada no caso de que isso ocorresse. Como visto nas Leis de Manu, a tutela da mulher era de responsabilidade primeiro do pai, depois dos irmãos ou dos filhos, uma sucessão masculina. No caso da separação, a mulher se tornaria um “transtorno” para a família, porque não fica claro o que acontecia com a mulher caso isso acontecesse, porque quando ela se casa, ocorre um novo nascimento, ela passa a pertencer à família do marido, e depois da separação ela voltaria à casa do pai? São questões que ficam em aberto com relação à situação da mulher naquela época. Esta posição sobre o divórcio reforça a condição feminina.

Sobre a organização política e social da Índia, por volta de 500 a.C., ela era dividida em pequenos principados, acredita-se que algo entre 200 e 300 estados, onde cada um ocupava um território e mantinha um dirigente. Neste aglomerado, fervilhavam as escolas que afirmavam sobre “a verdade”. Mas esta diversidade filosófica/religiosa escondia uma rigorosa divisão do povo, as divisões de classes eram bastante rigorosas e os nobres e humildes eram nitidamente separados em castas, recebendo assim tratamento diferente (HUAI-CHIN, 2002; FERREIRA, 2018). O uso da mão de obra escrava acaba por colocar a mulher em uma posição inferior; uma vez que sua contribuição deixa de ser necessária nos diversos extratos sociais, ela é renegada ao lar.

O sistema de varnyas37 (varna, cores) cria quatro classes de segregação de pessoas:

36 Even in vedic texts, we are notice society preference by for a male child. “A barren woman could be cast away (parivrtti or parivrkti) because she was possessed by Nirrti. A supreme emphasis on fertility produced this idea of a woman possessed by Nirrti, a negative concept of spirit that is extremely ugly. and wholly evil, but whose special function to destroy all that is good. Although a barren woman could be discarded after ten years, a woman who gives birth only to daughters, after twelve years and a mother of still-born children after fifteen years. The husband of a sunless wife should marry gain. The definition of a good woman is “one who pleases her husband, gives birth to male children and never speaks back to her husband”. 37 O uso dos termos varnya e casta, mesmo não sendo sinônimos, são utilizados pelos autores citados na bibliografia como se fossem. Desta forma, o presente trabalho utilizará os termos como sinônimos. Peter Harvey explica que o sistema mais antigo é de varnyas e possuía relativa mobilidade e o sistema posterior que perdura até a atualidade é o de castas, determinado pelo nascimento e sendo fixo.

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Brahmans, os sacerdotes, especialistas nos rituais e sacrifícios. Eram o centro da instrução religiosa e cultural.

Kshatriyas, os guerreiros. Detentores do poder militar, eram também os responsáveis pelas administrações. Rajas, Maharajas e outros governantes que costumamos chamar de reis e príncipes por seu poder e luxo.

Vaisyas, os comerciantes. Controladores do comércio, eram a terceira classe de pessoas.

Sudras, camponeses. responsáveis pela agricultura e pastoreio.

O ideal de vida indiano védico era dividido em quatro períodos. O primeiro era a educação do jovem, conhecido como período de conduta pura, cujo tempo variava dependendo da casta. Tratava-se da fase em que o jovem deixava a casa paterna e ia estudar. O segundo período era o de vida como chefe de família, quando o jovem então se casava, tinha filhos e assumia as obrigações de cuidar de uma família. O terceiro período era o de vida na floresta, quando se retiravam para as florestas com objetivo de refletir e buscar pela verdade. No quarto e último período - a velhice - a vida chegava à conclusão, com o corpo e a mente purificados. Este ideal de vida védico era seguido pelos brahmans e era permitido que os kshatriyas e vaisyas participassem, estando os sudras e escravos excluídos. (HUAI-CHIN, 2002; FERREIRA, 2018)

Isso gerou grande revolta à casta guerreira, porque os brâmanes eram privilegiados nas formas de alcançarem a salvação; assim a casta que detinha o controle militar toma o poder, levando a uma inversão no domínio de classes no tempo do nascimento de Siddhāṛtha. Contudo, o pensamento bramânico havia penetrado profundamente. Os textos chamados de Upanishads surgem nesta época em resposta aos Vedas antigos. (AKIRA, 2007)

Este é um tempo que a condição da mulher, que já não era boa, piora mais. Mesmo as mulheres de castas superiores são obrigadas a aceitar condições terríveis de vida, como o sacrifício de viúvas na pira funerária de seus maridos (sati). A poligamia toma força resultando em mais obstáculos e depreciação da condição feminina.

Senhoras de casta superior tiveram que aceitar o purdah. Durante esse período, os homens eram polígamos e a queima de viúvas era uma norma

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aceita. Arthashastra38 impôs mais estigmas às mulheres como Kautilya39 que rejeitou a libertação das mulheres e elas não estavam livres nem para ir a outro lugar sem a permissão do marido. (ROUT, 2016, p.42. Trad. nossa. 40 Grifo no original)

O Sati era um costume em que uma viúva se queimaria até a morte na pira do marido, era inicialmente um ato voluntário que era considerado bastante corajoso e heroico, mas depois se tornou uma prática forçada. “Sati” originalmente significava uma mulher que se imolava após a morte do marido. A palavra é derivada da palavra sânscrita “asti”, que significa “ela é pura ou verdadeira”.

Em termos mitológicos, Sati era o nome da esposa do deus Shiva. Seu pai nunca respeitou Shiva e frequentemente o desprezava. Para protestar contra o ódio que seu pai mantinha pelo marido, ela se queimou. Enquanto ela estava queimando, rezou para renascer como esposa de Shiva novamente. Isso aconteceu, e sua nova encarnação foi chamada Parvati. As pessoas costumavam justificar a prática com base nesse conto. Sati simbolizava o fechamento de um casamento. Um ato voluntário no qual, como sinal de ser uma esposa obediente, uma mulher segue o marido para a vida após a morte. Era, portanto, considerada a maior forma de devoção de uma esposa ao marido.

Com o tempo, tornou-se uma prática forçada. Mulheres que não desejavam morrer assim eram forçadas a fazê-lo de maneiras diferentes. Tradicionalmente, uma viúva não tinha nenhum papel a desempenhar na sociedade e era considerada um fardo. Portanto, se uma mulher não tivesse filhos sobreviventes que pudessem sustentá-la, ela seria pressionada a aceitar o sati (GILMARTIN, 1997; OBERHAUSER et all 2018).

Sobre o casamento, em teoria, ele deveria acontecer após a puberdade, o que era considerado para as mulheres após os treze anos de idade. Além disso as “leis” recomendavam uma diferença de três anos entre os noivos, contudo esta não era a realidade experimentada, sendo comum o casamento antes da puberdade da mulher com homens muito mais velhos. (HETTIARACHI, 1974)

38 Arthashastra é um antigo tratado indiano sobre política, política econômica e estratégia militar, escrito em sânscrito. 39 Kautilya era um antigo professor indiano, filósofo, economista, jurista e conselheiro real. 40 Upper caste ladies had to accept the purdah.During this period men were polygamous and widow burning was an accepted norm. Arthashastra imposed more stigmas on women as Kautilya dismissed women’s liberation and they were not free even to go else where without husband’s permission.

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Quando é feita uma análise nos textos normativos da época, tem-se a impressão de uma relativa posição e respeito às mulheres. De acordo com Manusmriti41, após a morte de uma mulher inocente, seus parentes têm o direito de conseguir sua Sridhana (Propriedade Especial Feminina). Se o casamento foi realizado sob a forma42 de Brahma, Daiva, Gandharba ou Prajapatya, o marido da mulher falecida não tem direito a receber a Sridhana. Mas no caso da forma de casamento , Rakhyasa e Paisacha, a Sridhana da mulher morta será dada ao seu pai ou mãe. Ou seja, a propriedade da mulher não é para ela, mas é um direito sucessório para seus pais, irmãos e filhos. A Sridhana é parte de um conjunto normativo denominado lei de doadores que

reconheceram as reivindicações da esposa para a Sridhana (Propriedade Especial Feminina), que consistia no preço da noiva e presentes dados pelo marido, mesmo depois do casamento. Mais tarde, a propriedade da terra passou a ser incluída na Sridhana. A lei relativa à herança da Sridhana variou de região para região. Contudo se uma mulher morreu sem filhos ou se seu casamento não estava de acordo com fórmulas aprovadas, a Sridhana era delegada ao seu pai ou irmão; caso contrário, era herdada por seus filhos. (NANDAL e RAJNISH, 2014, p.22. Trad. nossa43)

Estas mudanças sociais que ocorreram no passado indiano (cerca de 500 a.C.) foram fruto das mudanças que estavam acontecendo no seio da organização das famílias. Isso se deu de maneira muito intensa no controle dos corpos femininos, seus direitos e liberdades.

As mudanças políticas, econômicas e sociais de nível macro da época estavam ligadas a desenvolvimentos no nível da família e do lar. Mudar os tempos exigiu nova ética. O controle rigoroso sobre a sexualidade e o potencial reprodutivo das mulheres era essencial para a transmissão patrilinear da propriedade e para a manutenção e perpetuação da estrutura endógama de castas. O fortalecimento da autoridade patriarcal dentro do lar e a ênfase em certas normas relacionadas ao casamento e à castidade das mulheres eram os meios para efetuar tal controle. (SINGH, 2008, p.485. Trad. nossa44)

41 Lei de Manu, um dos códigos normativos dos Vedas, sendo o mais restritivo às mulheres. 42 Os tipos de casamento serão abordados mais à frente no texto. 43 [...] recognized the claims of wife to Sridhana(Women’s Special Property) which consisted of the bride-price, gifts given by the husband even subsequent to the marriages. Later landed property came to be included in the Sridhana. The law relating to the inheritance of Sridhana varied from region to region. If a women died childless and if her marriage was not according to approved forms, the Sridhana devolved on her parents or brother; otherwise it was inherited by her children. 44 The macro-level political, economic, and social changes of the time were connected to developments at the level of the family and the household. Changing times demanded new ethics.Strict control over women’s sexuality and reproductive potential was essential for the patrilineal transmission of property and for the maintenance and perpetuation of the endogamous caste structure. The strengthening of patriarchal authority within the household and the emphasis on certain norms related to marriage and the chastity of women were the means of effecting such control.

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O status das mulheres na Índia está fortemente ligado às relações familiares, onde esta unidade é vista como de importância crucial e patrilinear. São grupos geralmente são multi-geracionais, com a mulher se mudando para viver com os sogros. As famílias são hierárquicas, com os idosos tendo autoridade sobre as gerações mais jovens e os homens sobre as mulheres. Para que isto acontecesse era preciso um modelo de mulher a ser seguido; histórias, mitos e lendas eram usados para justificar a necessidade de determinado comportamento feminino. Um breve resumo deste ideal seria a família feliz arquetípica de Shiva, Parvati, Ganesha, uma tríade de deidades indianas que formam uma família, com a adição posterior de Laksmi e Sarasvati, outras duas deidades. No preâmbulo da história da união de Shiva e Parvati, ela foi informada de que o demônio Taraka estava incomodando deuses e deusas; eles se reuniram para falar com Brahman em busca de um remédio. Brahman disse a eles que apenas um filho de Shiva e Parvati seria um general adequado dos deuses contra o demônio; depois de algumas maquinações divinas, a união dos poderosos Shiva e Parvati foi criada, tendo nascido Ganesha (BHATTACHARJI, 1990).

O papel da mulher que em tempos remotos pode até ter sido igual ao do homem no campo do trabalho, agora estava restrito ao lar – como o de manter a chama do fogo sagrado dentro da residência aceso de forma permanente. Contudo, ainda assim, o altar que reverenciava os deuses era preparado pelos membros masculinos do grupo.

O papel de uma mulher como descrito no hinduísmo neste momento [após a invasão Ariana] era ser uma boa esposa para que os deuses e deusas respondessem aos pedidos e necessidades do casal. Um altar preparado principalmente pelo pai/marido era supervisionado pela esposa/mãe quando ele saía de casa. Seu trabalho era manter a chama sagrada queimando 24/7. Também era responsabilidade da mulher recitar e cantar hinos para as divindades, um dever atribuído às mulheres na maioria das outras culturas. (ROUT, 2016, p.44. Trad. nossa45)

45 A woman’s role as outlined in Hinduis mat this time was to be a good wife so that the gods and goddesses would respond to the couple’s requests and needs. An altar tended mainly by the father/husband, was overseen bythe wife/mother when he was gone from the home.Her job was to keep the sacred flame burning24/7. It was also the woman’s responsibility to recite and sing hymns to the deities, a duty a scribed to women in most all other cultures

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Desta forma, preservado dentro do cânone budista (Vinaya Pitaka46), temos a descrição das formas pelas quais o matrimônio é contraído pela mulher. Podemos ter uma leitura atenta destas formas:

O Vinaya Pitaka menciona 10 tipos de uniões entre um homem e uma mulher: (1) Quando uma mulher é comprada por dinheiro (dhanakkhita); (2) quando ela fica por conta própria com um homem (chhandavasini); (3) quando um homem lhe dá dinheiro (bhogavasin); (4) quando um homem lhe dá roupa (patavasini); (5) quando uma ablução de água é realizada (odapattakani); (6), quando ela tira o adorno de cabeça (obhatachumbata); (7) quando ela é uma escrava (dasinama); (8) quando ela é uma serva (kammakari); (9) quando ela está temporariamente com um homem (muhuttika); e (10) quando ela é capturada em um ataque (dhajahata). Exceto para a união chhandavasini, todos os outros envolvem quer algum tipo de troca econômica ou a posição já subordinada da mulher. As referências a uniões onde a ablução de água se processa e onde a mulher remove seu adorno de cabeça sugerem o desempenho de alguma cerimônia. (SINGH, 2008, p.485. Trad. nossa47. Grifo no original)

Vemos aqui que a mulher ocupa na grande maioria das formas de casamento uma posição inferior, pois ela já inicia o enlace numa situação de dependência. Agora um dos pontos mais simbólicos quando se fala da situação da mulher na Índia se refere às leis de Manu (Manusrmith): elas colocam um ponto importante sobre a liberdade das mulheres, que literalmente era nula segundo esta lei, pois quando solteira ela deveria responder ao pai ou ao irmão mais velho, quando casada ao marido e quando viúva (considerando que ela não tenha sido queimada viva ao ter se tornado viúva) ela deveria obedecer ao filho mais velho. A questão do pouco valor dado à mulher era tão grande que ao se casar ela tinha um novo nascimento, ou seja, pertencia, era propriedade de outra família. Versam sobre a organização jurídica na Índia no tempo do Buda o Código de Manu48, que são

46 O Vinaya Pitaka não consiste em um único texto, mas em uma classe de textos que versam sobre a Ética Normativa e a organização social. Estes textos são voltados a comunidade budista, mas como era recorrente nas escrituras, os fatores culturais e normas vigentes “extra comunidade” eram registrados nos textos budistas. 47 The Vinaya Pitaka mentions 10 kinds of unions between a man and woman: (1) When a woman is bought by money (dhanakkhita); (2) when she stays of her own accord with a man (chhandavasini); (3) when a man gives her Money (bhogavasin); (4) when a man gives her clothes (patavasini); (5) when an ablution of water is performed (odapattakani); (6) when she removes her headgear (obhatachumbata); (7) when she is also a female slave (dasinama); (8) when she is also a servant (kammakari); (9) when she is temporarily with a man (muhuttika); and (10) when she is captured in a raid (dhajahata). Except for the chhandavasini union, all the others involve either some sort of economic exchange or the already subordinate position of the woman. The references to unions where the ablution of water is performed and where the woman removes her headgear suggest the performance of some ceremony 48 “No caso da sociedade indiana do período em que Buddha Śākayanuni viveu, por força da cultura e religião védicas, é atribuído a uma divindade, , conhecida como Manu, que seria filho de Brahman, a criação dos Manu- ou Manu-smrti (leis de Manu), Dharmasutras (texto de leis), que poderiam ainda ser chamados de Manava-dharma-shastras (comentários das leis humanas), que seria a codificação legal, ou código das normas a serem obedecidas pelo povo, vinda diretamente do filho da principal deidade cultuada pelos indianos (Brahman).

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os códigos de leis no antigo Oriente Próximo, [onde] pode se alcançar insights sobre o status legal das mulheres, mas não necessariamente o que foi realmente praticado. Lei códigos são quase sempre prescritivos não constam em literatura descritiva. Como em outras sociedades antigas, as mulheres estavam sob a guarda dos homens: pai, marido e filho. Quando uma mulher se casava era considerado como seu segundo nascimento, com um novo nome. Nos rituais religiosos bem-sucedidos, a esposa devia estar presente para utilizar seus poderes de fertilidade. O adultério não era punido tão severamente como em outras culturas antigas. O divórcio era possível para a mulher também, mas apenas se ele fosse impotente ou insano. (ROUT, 2016, p.44. Trad. nossa49)

Essas mudanças na organização social e estruturação das famílias também sofreu alterações, corroborando com o que já foi dito a respeito da Lei de Manu:

O declínio na educação das mulheres, a prática do casamento pré-puberdade e muitas outras influências institucionais e conceituais do período estabeleceram cumulativamente a supremacia do homem sobre a mulher e empurraram as mulheres indianas para a dependência e subjugação. O ponto culminante deste grande declínio é a Lei de Manu, que afirma claramente: “Na infância, uma mulher deve estar sujeita a seu pai, na juventude ao marido e quando seu senhor está morto, a seus filhos. Uma mulher nunca deve ser independente”. De acordo com o código de Manu, o negócio de uma mulher é cuidar do marido e adorá-lo como deus. (THARAKAN e THARAKAN, 1975, p.119. Trad. nossa50)

Mesmo os que consideram que em algum momento da história indiana a mulher gozou de equivalência de condições e prestígio com relação aos homens são unânimes em afirmar que na época em que o Buda estava ensinando a situação da mulher era degradante. Renegadas à tarefa de gerar filhos, e filhos homens, ela perdeu sua autonomia, não era educada, restando a elas uma existência marginal e dependente. Os homens, por sua vez, governavam a sociedade, controlavam a economia e atribuíam papéis aos diversos constituintes da sociedade. Quando a tarefa principal das mulheres tornou-se infantil, elas estavam fadadas ao sofrimento e receberam pouca honra ou compensação em troca. A maternidade envolveu sofrimento e privação para a maioria

Alguns estudiosos apontam que Manu representaria a humanidade, uma vez que da palavra manu é que surge manava, que por tradução se refere ao homem.” (TSAI, 2018, p.84. Grifo no original) 49 Like earlierlaw codes in the Ancient Near East, we can gaininsights into the legal status of women, but notnecessarily what was actually practiced. Lawcodes are nearly always prescriptive not descriptive literature. As in other ancient societies, women were under the guardianship of males: father, husband and son. When a woman married,it was regarded as her second birth, with a newname. In successful religious rituals, the wife wasto be present to utilize her fertility powers. Adulterywas not punished as severely as in other ancientcultures. Divorce was possible for the woman too,but only if he was impotent or insane. 50 The decline in women's education, practice ofpre-puberty marriage and a whole lot of other institutional and conceptual influences of the period cumulatively established the supremacy of the male over the female and pushed Indian women into dependency and subjugation. The crown- ing point of this great decline is the Law of Manu which clearly states: “In childhood a woman must be subject to her father, in youth to her husband and when her lord is dead, to her sons. A woman must never be independente”. According to the code of Manu a woman's business is to tend her husband and to worship him as god.

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das mulheres sob o patriarcado. Sobre a maternidade ela era uma pedra angular do mais diversificado sistema social e político de controle masculino. Não era, somente, o fato da escravidão das mulheres, mas o modo pelo qual esse fato se tornara realidade no sistema de poder político e econômico masculino sobre as mulheres (BHATTACARJI, 1990).

O fortalecimento das castas também trouxe mudanças para as mulheres, pois o pertencimento a um estrato social dependia do homem, de tal forma que até era possível para um homem de casta superior casar-se com uma mulher de casta inferior; isso ocorre pois a essência divina, o ātman, é masculino e a mulher, como já dito, apenas o nutre em seu útero, como a terra nutre a semente sem ser parte dela. Mas as mulheres não podiam se casar com um homem de casta inferior porque isso seria uma desonra para a família dela. Ser uma mulher é o resultado do acúmulo de mau karma, resultado retributivo das ações, e no caso de más ações ou de falta de ações positivas que possibilitassem um renascimento afortunado, ou seja, como um homem.

O hinduísmo se desenvolveu e certas facetas se tornaram dominantes: o sistema de castas, karma, dharma e reencarnação. Originalmente havia quatro castas principais e as mulheres foram representadas em todas elas. A casta determinava a quem você estava associada, com quem você poderia se casar e viver. Em certos casos, um homem podia se casar uma mulher de casta inferior, mas uma mulher não poderia sem desonrar sua família e profanar ela própria. Por causa do status inferior relativo das mulheres na Índia, se você não fez o seu próprio dever ou dharma, então você não acumulou bom karma suficiente para reencarnar em uma casta superior ou uma forma de vida superior, incluindo renascer como mulher, que era inferior a um homem. (ROUT, 2016, p.44. Trad. nossa51. Grifo no original)

Esta era a condição de vida das mulheres. Os textos não falam a respeito de questões tais como violência ou condições de vida delas, mas podemos inferir que em uma sociedade onde se vê com pesar a morte do gado, mas não das filhas, que isso simplesmente não era digno de nota. Esta realidade era vivida por mulheres independente de castas. E, provavelmente, isso foi um dos fatores que levaram as mulheres a deixarem o “conforto” do lar para se tornarem sem teto, renunciando à vida de família para poder seguir ao Buda e adentrar a sua comunidade.

51 As Hinduism developed, certain facetsbecame dominant: the caste system, karma,dharma, and reincarnation. There were originallyfour main castes, and women were representedin all of them. Caste determined whom youassociated with, who you could marry, and yourdiet. In certain cases a man was allowed to marrya woman of a lower caste, but a woman couldnot without disgracing her family and defilingherself. Because of the relative lower status ofwomen in India, if you did not do your properduty or dharma, then you did not accrue goodenough karma to be reincarnated in a higher casteor life form, including being reborn as a woman,who was inferior to a man.

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[...] a discórdia doméstica, a desarmonia conjugal e o puro desgosto com a vida familiar parecem ter transformado os pensamentos de algumas mulheres em direção à vida de uma monja [budista]. E tendo se tornado bhikkhunis52, algumas delas passaram a celebrar sua emancipação da servidão doméstica. (SHARMA, 1977, p.245. Trad. nossa53. Grifo no original)

Este era o panorama geral de organização da sociedade indiana e do papel da mulher. Esta situação degradante é uma das forças motrizes pelas quais as mulheres buscavam adentrar a comunidade budista. Ao instituir o monasticismo feminino, o Buda promoveu a emancipação da mulher destas condições. O detalhamento das motivações das mulheres será retomado no próximo capítulo.

Foram poucas as referências encontradas para refletir a respeito da situação delas no período citado, e isso não se deve apenas à antiguidade do período. A questão é avaliar o status destas mulheres, que eram consideradas menos importantes que propriedade materiais. Pouco ou nenhum interesse há em escrever sobre elas. Mesmo porque, na Índia de hoje, ainda ecoam os sons destes tempos e mesmo tendo sido abolido o sistema de castas na atual constituição indiana, este sistema pode ser visto pelas ruas e avenidas das grandes cidades e é marcante nas zonas rurais. Assim, a proporção de mulheres educadas na Índia é baixa, pois é uma sociedade que vive seus tabus de forma particularmente intensa para as mulheres, onde muitas por exemplo deixam a escola quando atingem a puberdade, porque a menstruação as torna impuras; com isso poucas tem acesso à educação, e é escasso o interesse a respeito da situação delas no presente para que sejam promovidas mudanças. Sem que elas cheguem a pesquisadoras, este passado não será investigado, mas olhando a situação atual somos capazes de pensar naquelas mulheres imaginando um passado longínquo onde direitos humanos não figuravam nem nos sonhos mais distantes.

52 Bhikkhuni. Monja budista com ordenamento pleno 53 Thus domestic discord, conjugal disharmony and sheer disgust with home life seem to have turned the thoughts of some women towards the life of a nun. And having become bhikkhunis some of them went on to celebrate their emancipation from domesticth ralldom.

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1.3 A fundação da comunidade masculina.

Após ter realizado o completo despertar, o Buda dedica um tempo às meditações na quais ele estrutura suas descobertas. Ele então decide ensinar, e as primeiras pessoas nas quais ele pensa são seus professores do tempo de ascetismo, Ārāḍa Kālāpa e Udraka Rāmaputra, mas ele acaba por descobrir que eles haviam falecido. Em seguida, ele pensa no grupo de cinco ascetas que o acompanharam durante o período de ascetismo. Segundo o Cânone Pāli, a Comunidade monástica foi estabelecida pela primeira vez na cidade de Benares, após o primeiro discurso do Buda aos cinco ascetas, Kondanna, Vappa, Bhaddiya, Mahanama e (ŚĀKAYAMUNI, 2019; WIJAYARATNA, 1990). Este discurso é conhecido como o Primeiro Giro da Roda do Dharma, onde o Buda expôs os princípios de sua doutrina. Estes cinco ascetas haviam acompanhado o Buda durante seu período de ascetismo.

Alguns dias depois, um jovem rico chamado resolve procurar o Buda para ouvir seus ensinamentos. Após entender a doutrina proposta pelo Siddhārtha ele toma a decisão de se unir à recém-formada comunidade. Sua mãe, no entanto, não aprova que seu filho deixe a vida em família para se tornar um monge budista, e resolve ela também ir conversar com o Buda, que explica para ela as quatro nobres verdades, o caminho óctuplo e a importância dos benfeitores para a comunidade; ela então permite que seu filho se junte à ordem e se torna a primeira discípula leiga, e em seguida o pai de Yasa também se converte, tornando-se discípulo leigo. (WIJAYARATNA, 1990; ŚĀKAYAMUNI, s/d)

O ingresso de Yasa à ordem é feito de forma simples: depois que seus pais deixam o local após terem falado com o Buda, ele faz a solicitação para se tornar um renunciante, solicitando que lhe seja autorizado receber as ordenações chamadas de pabbaggā e upasampadā:

E Yasâ, o jovem nobre, logo depois que o Setthi, o chefe de família, se foi, disse ao Abençoado: ‘Senhor, deixe-me receber as ordenações pabbaggâ e upasampadâ do Abençoado.' ‘Venha, ó Bhikkhu’, disse o Abençoado, ‘bem ensinada é a doutrina; levar uma vida santa em prol da completa extinção do sofrimento.

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Assim, essa pessoa venerável recebeu a ordenação upasampadâ. Naquela época, havia sete Arahats no mundo. (ŚĀKAYAMUNI, s/d, 7 cap. §15. Trad. nossa54)

O Buda então consente com o ingresso dele, utilizando uma fórmula simples, que será repetida nos próximos ordenamentos dos demais discípulos: “Venha, ó bhikṣu”.

O próximo evento relata a entrada dos amigos de Yasas para a comunidade. Novamente eles seguem o mesmo procedimento de ordenação: eles ouvem sobre a doutrina, geram no desejo de entrar no caminho, raspam seus cabelos, vestem-se como monges e pedem ao Buda para entrar na comunidade. O Buda então profere a fórmula: Venha, ó bhikṣu (WIJAYARATNA, 1990; ŚĀKAYAMUNI, s/d).

Assim, no final do primeiro ano, a Comunidade contava com várias centenas de membros. Muitos deles, como os cinco ascetas, já haviam sido membros de outro grupo religioso, mas deixaram suas ordens para se tornarem discípulos do Buda. Grandes líderes ascetas como Uruvela-Kassapa, Gaya-Kassapa e Nadi-Kassapa, juntamente com seus discípulos, abandonaram sua prática de sacrifício de fogo para se juntar ao movimento. Isso elevou a milhares o número de pessoas que se juntaram à ordem (WIJAYARATNA, 1990).

O movimento então cresce, e os problemas na comunidade começam a surgir. Desta forma, torna-se necessário que sejam implantadas regulamentações. Um dos primeiros problemas que aparece diz respeito ao comportamento dos monges com pouco tempo de ordenação, alguns deles não possuíam um preceptor, alguém que os instruísse nos costumes, e por conta disso eles se comportavam de maneira inapropriada – isso é relatado no Mahavagga55 no capítulo 25 – Os deveres para com um upagghāya. Nestes eventos, os monges iam à cidade pedir por alimentos sem estarem corretamente vestidos, alguns colocavam suas vestes na ordem errada, colocando as roupas de baixo por cima. Quando estavam na cidade, pediam por alimentos especiais, faziam escolhas, misturavam alimentos que não deveriam ser

54 And Vasâ, the noble youth, soon after the setthi, the , was gone, said to the Blessed One: 'Lord, let me receive the pabbaggâ and upasampadâ ordinations from the Blessed One.' “Come, O Bhikkhu,' said the Blessed One, 'well taught is the doctrine; lead a holy life for the sake of the complete extinction of suffering.’ Thus this venerable person received the upasampadâ ordination. At that time there were seven Arahats in the world. 55 O Mahāvagga inclui os relatos do despertar do Buda e dos seus dez principais discípulos, bem como regras para os dias de e ordenação monástica masculina.

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misturados. No momento de se reunirem no refeitório para a refeição, faziam muito barulho, não se concentravam na comida. Isso chegou ao Buda, que viu a necessidade de normatizar tal questão. Para que isso ocorresse, ele reuniu a comunidade, explicou a conduta correta, as razões da importância de tal conduta e estabeleceu que cada monge com pouco tempo de ordenação deveria ter um monge mais velho que o acompanhasse e lhe ensinasse os costumes.

O estabelecimento da norma deu-se segundo o Mahavagga da seguinte forma:

E o Abençoado repreendeu aqueles de muitas maneiras, falou contra a falta de frugalidade, a má natureza, a imoderação, a insatisfação, o deleite na sociedade e a indolência; falou de muitas maneiras em louvor à frugalidade, à boa natureza, aos moderados, contentes, que erradicaram (conduta errônea), que se livraram (conduta errônea), dos graciosos, dos reverentes e dos enérgicos. E tendo entregue aos Bhikkhus um discurso religioso de acordo e em conformidade com esses assuntos, ele abordou os Bhikkhus: ‘Eu prescrevo, ó Bhikkhus, (que aquele jovem bhikkhus escolha) um upagghâya (ou preceptor). ‘O upagghâya, ó Bhikkhus, deve considerar o saddhivihârika (isto é, aluno) como um filho; o saddhivihârika deve considerar o upagghāya como pai. Assim, esses dois, unidos pela reverência mútua, confiança e comunhão de vida, progredirão, avançarão e alcançarão um estágio elevado nessa doutrina e disciplina. (ŚĀKAYAMUNI, s/d, 25. cap §6 Trad. nossa56)

Com o passar do tempo diversos fatos foram ocorrendo, com gravidades diferentes, e começou a ser construído o código monástico. O estabelecimento das normas em suas diversas gradações foi um processo que levou tempo. Como foram se estabelecendo comunidades em locais distantes, em regiões onde os costumes mudavam, estes códigos acabaram por se tornar levemente diferentes uns dos outros, contudo os preceitos principais e a estrutura geral é exatamente a mesma.

O primeiro bloco de preceitos são as Parajikas, que correspondem às ações cuja penalidade é a expulsão da comunidade. As ofensas chamadas Sanghavasesa são consideradas graves, implicam punição, mas permitem a reabilitação; elas devem ser julgadas e tratadas formalmente pela reunião da Comunidade para esse fim em três

56 And the Blessed One rebuked those Bhikkhus in many ways, spoke against unfrugality, ill-nature, immoderation, insatiableness, delighting in society, and indolence; spoke in many ways in praise of frugality, good-nature, of the moderate, contented, who have eradicated (sin), who have shaken off (sin), of the gracious, of the reverent, and of the energetic. And having delivered beforethe Bhikkhus a religious discourse in accordance to, and in conformity with these subjects, he thus addressed the Bhikkhus: ‘I prescribe, O Bhikkhus, (that young Bhikkhus choose) an upagghâya (or preceptor). ‘The upagghâya, O Bhikkhus, ought to consider the saddhivihârika (i.e. pupil) as a son; the saddhivihârika ought to consider the upagghâya as a father. Thus these two, united by mutual reverence, confidence, and communion of life, will progress, advance, and reach a high stage in this doctrine and discipline.

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ocasiões: no início do julgamento, no início da punição e no final, para reabilitar o culpado. As ofensas nessa categoria incluem tocar uma mulher, acusar outro monge sem fundamento, construir uma habitação maior do que a prescrita nos regulamentos e outras (WIJAYARATNA, 1990; TSAI 2019).

As regras chamadas Patayantika de maior gravidade dizem respeito a ofensas que exigissem confissão e confisco do que havia sido obtido ou aceito de forma inadequada; as regras de Patayantika de menor gravidade tratam de ofensas que exigem apenas confissão, tratam de diversos assuntos de comportamento, tais como: comer depois do meio dia, assistir a um desfile militar e assim por diante. O Vinaya também contém setenta e cinco preceitos relativos ao bom comportamento de monges e monjas na vida cotidiana; eles são chamados Saiksas e prescrevem as maneiras corretas de vestir, comer, andar e conversar. A intenção por trás desses preceitos era treinar os indivíduos para que eles fossem bem-comportados e modelos de bom comportamento para a sociedade. (WIJAYARATNA, 1990; TSAI 2019)

Esta estrutura geral há cerca de 2.500 anos é recitada a cada 15 dias nas comunidades, em uma cerimônia de chamada de uposatha.

1.4 Resumindo os pontos fundamentais.

Mesmo movediço o terreno, com esforço nos foi possível atravessar. A construção do ferramental de análise apresentado no primeiro tópico do presente capítulo será de grande importância nas reflexões que se seguirão, pois é sob este prisma feminista que iremos olhar os registros existentes, buscando muitas vezes em palavras não ditas nossas respostas, estabelecendo desta forma uma identidade a estas vozes caladas pela história.

Depois nos foi possível, mesmo com as escassas fontes, apresentar a situação em que vivia a mulher na sociedade do tempo do Buda. Compreender sua situação é fundamental para que possamos buscar pelas razões que as levaram a enfrentar os paradigmas de sua época e insistirem e lutarem para adentrarem a ordem monástica budista. Havia, por um lado, um Buda que ensinava sem discriminação de cor, casta

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ou gênero; e havia também, por outro lado, uma sociedade que subjugava a mulher, chorava o pesar do seu nascimento, e a tratava como propriedade. Fator este que certamente foi mola propulsora para os insistentes pedidos para a formação da comunidade feminina.

Por fim, não menos importante, foi possível ter uma breve visão em poucas linhas de descrição da fundação da comunidade masculina nos mostram que o código monástico não foi uma revelação, mas uma construção ao longo do tempo de existência da comunidade, cuja finalidade era buscar e manter a harmonia da comunidade.

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2. A luta das mulheres para a fundação da comunidade monástica feminina.

Tissā. O Tissā! Treine-se nos três treinos. Veja a grande conjuntura agora à mão Não passes! Desaperta todos os outros jugos, E saia expurgada das drogas mortais. Therīgāthā verso IV

Viva no seio das tradições, a história da fundação da comunidade das monjas budistas foi registrada em vários Sermões. Para a presente análise serão utilizadas prioritariamente duas versões: O Discurso para Gotamī57, um Sermão longo que conta de forma tradicional e com repetições o que os Suttas clássicos apresentam; e o Kullavagga, que junto com o Mahavagga, reúnem os textos que registram e descrevem as normas e compromissos monásticos, do qual será utilizado o décimo Kandaka, o excerto em que é registrada a história da fundação da comunidade monástica feminina. Comparando estes textos, podemos ter um panorama de como foi contada esta história, que nestes, e em outros textos, seguem essencialmente o mesmo fluxo.

A história começa com o pedido da madrasta do Buda, Mahāpajāpatī, que vai até o encontro de seu enteado, determinada a conseguir a autorização para o estabelecimento de uma ordem de monjas budistas. Esta determinação é envolta de simbolismo, e seu pedido precisa ser analisado, tanto no que os textos dizem quanto no que eles não dizem, trazendo entendimentos e possibilidades que traçam o ocorrido,

57 Os ensinamentos do Buda são tradicionalmente agrupados em três blocos, chamados cestas (Pitaka). Estes cestos correspondem aos Sermões (Sutta/Sūtra), os textos que versam sobre os códigos monásticos (Vinaya) e os textos que tratam sobre ontologia (Abhidhamma/). O Discurso para Gotamī faz parte do conjunto de Sermões. Este texto foi traduzido do chinês comparado com o pāli por Bhikkhu Anālayo, em seu trabalho Mahāpajāpatī’s Going Forth in the Madhyama-āgama, disponível em https://www.buddhismuskunde.uni-hamburg.de/pdf/5- personen/analayo/mahapajapati.pdf. Último acesso em dezembro de 2019. Esta tradução corresponde ao MĀ 116 até T I 605a8 até T I 607b16. O Sermão foi traduzido para o português com autorização e consta do apêndice 2.

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inclusive comparando com trechos de outros textos. O pedido não foi aceito, mas no lugar de explicar as razões, o Buda tenta demover sua madrasta de fazer tal solicitação. Ainda assim, ela insiste e luta pelo estabelecimento da ordem. Junto a quinhentas mulheres58, elas raspam seus cabelos, vestem-se como monges e o seguem a pé, numa peregrinação de duzentos quilômetros para demonstrar sua força e convicção. Ānanda, ao ver sua tia cansada e exausta da viagem, na entrada do local onde o Buda se encontrava, se compadece e decide interceder pelas mulheres, argumentando sobre o potencial das mulheres de alcançarem o despertar e sobre a bondade que a madrasta teve ao criar o Buda. Com estes argumentos, ele consegue que a ordem seja fundada.

2.1 A busca da mulher pela libertação.

A condição da mulher na Índia era degradada e problemática. Contudo, rapidamente elas perceberam que o caminho proposto por Gautama era uma opção de libertação; assim, desde cedo os registros marcam as mulheres como patronas59 desta religião e adentrando como leigas neste caminho (SPONBERG, 1992). Uma inovadora proposta emergia com uma nova visão de mundo. A forma como o Buda ensinava e o que ele ensinava trazia uma revolução nos valores da época, em especial, rejeitando as castas e a discriminação de gênero. Sponberg explica que, para entender melhor a complexidade desse espírito inclusivo em relação às mulheres no início do budismo, devemos demonstrar sua relação com a rejeição do Buda às distinções de casta ou classe. Ambas as visões sociais são derivadas dos princípios filosóficos em que ele se baseou. Assim como o objetivo budista não se limita aos que nascem em um grupo social, também não se limita aos que nascem homens ou mulheres. Estas visões eram

58 O Número 500 possui um simbolismo dentro do budismo. O cinco indica as quatro direções cardeais mais o centro, é uma forma de dizer “em todas as direções”. O zero por outro lado é um desenvolvimento indiano datado de mais de 500 a.C. que simboliza o vazio e a vacuidade. Dentro da filosofia budista isto simboliza a interdependência. Desta forma, o número quinhentos é uma metáfora para todas as mulheres. Para maiores informações a respeito deste assunto, indica-se a leitura do artigo: DATTA, Bibhutibuhusan. Early Literary Evidence of the Use of the Zero in India, The American Mathematical Monthly, 1926, disponível em DOI:10.1080/00029890.1926.11986618 acesso em 19 de janeiro de 2020. 59 São consideradas patronas da religião porque defendiam a causa budista. Como discipulas leigas davam suporte as comunidades. Algumas provendo condições de sustento, outras alugando parques para que as comunidades pudessem se estabelecer. Foi previamente explicado que a condição da mulher naquela época era desprivilegiada, contudo algumas convenciam seus maridos a patrocinar a causa, e por esta razão elas eram consideradas as patronas. Outras eram importantes cortesãs, sendo que neste caso, elas possuíam recursos próprios,

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incomuns para a época; de fato, eram percebidas como radicais e perigosas por críticos mais ortodoxos do Dharma do Buda. Ambas as afirmações refletem uma tentativa de localizar a virtude e o potencial espiritual além das convencionais distinções sociais e de gênero, o que pode ser visto como evidência de um sentimento emergente de individualidade que começou a ter precedência sobre restrições biológicas e sociais mais estreitas durante a Era dos Andarilhos. (SPONBERG, 1992)

O sistema religioso predominante da época, como já detalhado no capítulo anterior, era baseado nos textos dos Vedas. Neste sistema, o Ser é uma partícula divina, ātman, que foi emanada do deus gerador de tudo, que emana estas partículas para conhecer o mundo. A tarefa destas partículas é, durante este processo de conhecimento, ir evoluindo de tal forma que elas se tornem puras e possam retornar a Brahman. Esta evolução (ou involução) é determinada pelas ações que elas praticam durante a vida, estas ações são chamadas de karma. Um dos resultados do karma é o tipo de renascimento. Disto deriva o conceito de castas; as classes sociais onde as pessoas nascem, o sexo com que a pessoa nasce também são resultado do karma que ela acumulou, sendo considerado um mau karma nascer como mulher, chegando ao ponto, como foi visto, de se considerar que a mulher não possuía nem mesmo a essência divina, ātman. Por esta razão, ela era tida como propriedade na época em que o Buda estava vivo. O rompimento do Buda é com a noção do ātman; ao substituir essa essência divina por interdependência, e por substituir a noção de karma como uma forma de destino imutável por uma noção de tendência flexível e que era possível de ser trabalhada, ele desconstrói o sistema de castas e de discriminação de gênero (SPONBERG, 1992). Estes pilares revolucionaram a sociedade, trazendo um novo horizonte às mulheres, que rapidamente começaram a apoiar a comunidade budista como patronas.

Entretanto, elas não queriam se limitar apenas a ser benfeitoras dando suporte econômico à saṃgha. Os relatos mostram as mulheres leigas alcançando posições e realizações espirituais similares às dos homens, como é o caso da esposa do rei de Magadha, Khemā, que conseguia ensinar e explicar o dharma (SPONBERG, 1992). As mulheres desejavam ir além, desejavam renunciar ao mundo assim como os homens fizeram e adentrar profundamente no caminho. Porém, vivendo em uma sociedade patriarcal, esta não seria uma tarefa simples de ser trilhada.

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Ele próprio [o Buda] estava convencido de que as mulheres são capazes, como os homens, de alcançar o estado de , mas havia o peso morto da opinião pública a convencer. A tradição do passado [Vedas] lutou contra a equidade, a justiça e o senso comum, como ela via os dados no presente, todos exigindo a realização da reforma, convocada nos últimos dias e em diferentes melodias “A emancipação das mulheres” (HORNER, 1930, p.109- 110. Trad. nossa60)

Era um terreno movediço para o Buda a questão das mulheres, uma vez que nos primeiros anos de ensino sua comunidade de mendicantes não contava com apoio estatal. Com isso, não possuía também a proteção dos reis, e questionar o sistema poderia provocar a ira da religião dominante, que por sua vez contava com este apoio, de tal forma que a comunidade poderia vir a sofrer com ataques que levariam à sua extinção. Portanto, as mulheres começariam na comunidade como leigas e patrocinadoras, e somente cerca de cinco anos após o primeiro Sermão e a fundação da comunidade masculina é que ocorre a fundação da comunidade feminina.

Boucher explica que enquanto o Buda estabeleceu uma ordem de monges homens no início, a ordem das monjas surgiu cerca de cinco anos depois. Durante os primeiros anos, as mulheres leigas começaram a seguir o Buda, a praticar seus ensinamentos e a dar comida, roupas e abrigo aos monges. Por estarem praticando diligentemente, era de se esperar que, em algum momento, algumas delas quisessem deixar suas vidas domésticas e entrar plenamente na vida religiosa. (BOUCHER, 1997)

Contudo esta lógica de esperar que as mulheres que praticavam diligentemente desejassem também adentrar ao monasticismo, aprofundando-se no caminho espiritual, não se reflete em parte considerável dos textos e dos relatos. Isso deve ser visto com cuidado. Existem características na forma como estes relatos foram preservados que nos suscitam um olhar crítico aos mesmos, conforme discutido no primeiro capítulo, a respeito da relevância dos estudos feministas. Existe um mecanismo de obscurecimento do feminino, e este mecanismo atinge também o Budismo, que surge em uma sociedade patriarcal, desenvolve-se numa sociedade com o mesmo perfil e tem em sua posteridade poucas alterações em termos do papel da

60 He himself was convinced that women are as capable as men of attaining arahanship, but there was the dead-weight of public opimon to persuade. The tradition of the past strove against fairness and justice and common sense as he saw them given in the present, all demanding to effect the reform, called in later days in different chimes “The Emancipation of Woman”

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mulher e do patriarcalismo existente na sociedade. Aqueles que deram prosseguimento ao projeto do Buda falharam em dar continuidade na proposta de equiparar homens e mulheres, como será demonstrado no final do presente capítulo. Assim, é preciso lançar um olhar feminista sobre os relatos, sobre a forma de registrar e preservá-los, observando quais intenções podemos rastrear por detrás destes processos aos quais estas histórias foram sujeitas e sujeitadas.

Estudos feministas sobre o retrato e a história das mulheres budistas, em particular das monjas, em atividades canônicas e pós-canônicas, revelam a natureza tendenciosa dos textos sendo que as palavras e experiências das mulheres não foram suficientemente gravadas. Estudiosos quase unanimamente concordam que as escrituras budistas foram editadas, codificadas e traduzidas por homens. Além disso, todos os textos canônicos são atribuídos a uma composição masculina, ou seja, o Buda é o autor implícito. Portanto, a possibilidade de vieses androcêntricos e falocêntricos nos textos deve ser evocada continuamente. Consequentemente, é preciso questionar se os textos refletem uma perspectiva masculina ou do homem revelando apenas metade do “espectro (sexual)” de perspectivas, conhecimentos e experiências. (OWEN, 1998, p.10. Trad. Nossa61. Grifo nosso)

As histórias dos feitos dos homens são passadas de geração em geração como fonte de inspiração para os praticantes; encontramos incontáveis textos falando de seus feitos. As histórias das mulheres se concentram em apenas dois conjuntos, o Therīgāthā 62 e o Theri-apadana63, isso indica a marginalidade destes registros. Nestes poucos textos, encontramos relatos que mostram a mulher que busca o refúgio na comunidade (saṃgha) como uma alternativa da sua situação. Decerto como foi apresentado, a realidade da mulher indiana naquele tempo era vulnerável, e sua vida estava em risco constante. As situações às quais ela se sujeitava eram degradantes e seu status de propriedade as colocava em condições que são inadmissíveis para os dias atuais. Mas simplesmente reduzir a luta destas mulheres a uma fuga é desmerecer seu

61 Feminist scholarship on the portrayal and history of Buddhist women, particularly nuns, in canonical and postcanonical texts, reveals the biased nature of the texts themselves, namely, that the words and experiences of women have not been sufficiendy recorded. Scholars almost uniformly agree that the Buddhist scriptures were redacted, codified, and translated by men. Further, all canonical texts are attributed to male composition, i.e., the Buddha is the implied author. Thus, the possibility of androcentric and phallocentric biases in the texts must continually be evoked. Consequently, one must question whether the texts reflect a male or masculine perspective, thus revealing only one-half of the “(sexual) spectrum” of perspectives, knowledges, and experiences. 62 O Therīgāthā é uma composição em versos. Ele traz o relato do modo de vida das primeiras monjas. Atribui-se a composição do texto a saṃgha budista originária, contudo estudos demostram que os textos demonstram que esta composição percorre cerca de três séculos da existência da comunidade, desde sua origem. A versão pāli é uma composição datada do século III d.C. (HULLISEY, 2015) 63 O Theri-apadana é uma hagiografia das monjas, composto no reinado do rei Asoka (273 a.C. a 232 a.C) (HULLISEY, 2015).

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poder revolucionário. Reconhecer isso não é tarefa simples, e alguns autores, muitas vezes desconhecendo os princípios budistas, escrevem erroneamente sobre esta luta.

O fato de uma mulher ter ficado com um homem a vida toda, algumas vezes sem o menor reconhecimento, foi ressentido por algumas mulheres para quem a representava uma medida de liberdade. Outras parecem ter procurado ajuda em tempos de angústia. De fato, os princípios básicos do budismo: que o mundo é transitório e cheio de tristeza atingiram claramente um tom mais sensível nas mulheres que, por sua própria natureza, sentiam profundamente a dor da doença e da morte. (CHAKRAVARTI, 1996, p.34. Trad. nossa64. Grifo no original)

Em uma sociedade patriarcal como a indiana, a saṃgha como alternativa ao casamento indesejado é um ato revolucionário, a mulher não vinculada a uma figura masculina era um problema. Nota-se no comentarista um retorno a uma essência (natureza) da mulher, fator combatido pelo Buda. Qualquer ser, masculino ou feminino, ressente-se das perdas, mas a intensidade com que se ressente de uma perda está mais relacionada ao quanto geramos de apego àquilo de que nós somos forçados a nos separar. Contudo, devido às pressões sociais do momento histórico em que se vive, podemos experimentar o desenvolvimento de um apego diferente, ou da externalização dele de forma diferente. Por exemplo, na Índia no tempo do Buda, onde a função primordial da mulher era de gerar filhos, preferencialmente que fossem homens, se ocorresse a perda deste ela seria submetida à pressão social de não estar sendo capaz de cumprir seu papel.

Não é de surpreender que as primeiras mulheres budistas, vivendo numa cultura androcêntrica e patriarcal, são registradas como “viúvas”, “matronas”, “esposas deslocadas” e “mães de filhos mortos”. A mensagem aqui é clara: somente aquelas mulheres que não estão mais ligadas a pai, marido ou filho podem desconsiderar as convenções da sociedade indiana e renunciar ao papel tradicional da mulher em favor da vida monástica. Ao identificar essas mulheres renunciantes em relação aos homens e aos seus antigos papéis “tradicionais” como esposas e mães, o registro budista falha em conceder a essas mulheres total independência e agência. Em um registro androcêntrico e patriarcal contaminado, essas mulheres revolucionárias são retratadas como ingressando na comunidade monástica porque não havia outra alternativa, e essa era sua última esperança. (OWEN, 1998, p.27. Trad. nossa65)

64 The fact that a w an had to wait on aman all her life, so metim es with ou t the slightest recognition, was resented by some women for whom the sangha represented a measure of freedom. Others seem to have turned to it for succour in times of distress. In fact, the basic tenets of B uddhism: that the w orld is transitory and full of sorrow, clearly struck a more responsive chord in w om en who, by their very nature, felt deeply the pain of illness and o f death. 65 It is not surprising that the f:irst Buddhist women, living in an androcentric and patriarchal culture, are recorded as being “widows,” “matrons,” “displaced wives,” and mothers of deceased children. The message here is clear: only those women who are no longer bound to a father, husband, or son can pennissibly disregard the conventions

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As mulheres que desejavam seguir no caminho, assim como os homens o fizeram, decidiram buscar a fundação da comunidade monástica feminina, história que foi registrada em Sermões e textos. Esta história é uma memória viva nas comunidades monásticas, e ela não é contada sem contratempos. Inconsistências são levantadas nesta “memória”, e estudos críticos têm sido realizados por pesquisadores e pesquisadoras tais como Bhikkhu Anālayo, Bhikkhu Sujato, Rita Gross e Alice Collett, dentre outras.

A história tradicional da primeira bhikkhuni, Mahāpajāpatī, é encontrada em um conto popular da vida do Buda, e está gravada inesquecivelmente na consciência dos budistas tradicionais. Uma abundância de estudos críticos mostrou, repetidas vezes, as falhas e as linhas de fratura no texto, mas que ainda assim se apresenta viva no quadro emocional de perpetuação das instituições monásticas do budismo moderno, que nas tradições Theravāda e na Ásia Central significou uma Sangha somente masculina. (SUJATO, 2012, p.14. Trad. nossa66)

Mesmo presente em vários Sermões, contada de diferentes formas, a história da fundação da comunidade monástica budista feminina possui linhas gerais comuns. Seguiremos a ordem mais recorrente dos fatos para contarmos a fundação da comunidade até o estabelecimento dos “princípios a serem respeitados”, um conjunto de oito normas que, segundo estes textos, o Buda teria imposto às mulheres como condição para a fundação da sua comunidade67.

of Indian society and renounce the traditional role of women in favor of the monastic life. By identifying these renunciant women in relation to men and to their former "traditional" roles as wives and mothers, the Buddhist record fails to grant these women full independence and agency. In a tainted androcentric and patriarcal record, these revolutionary women are portrayed as joining the monastic community because there was no other alternative, and this was their last hope. 66 The traditional story of the first bhikkhuni, Mahāpajāpatī, is foundi nevery popular account of the Buddha’s life,and is seared unforgettably in the consciousness of traditional Buddhists. An abundance of text-critical studies has shown, again and again, the flaws and fracture lines in the text, yet still it breathes life into the emotional case for perpetuating the monastic institutions of modern Buddhism, which in Theravādin andCentral Asian traditions means a male-only Sangha. 67 O detalhamento dos princípios dar-se-á no próximo capítulo, enquanto as demais partes da história serão abordadas no presente capítulo. No apêndice 2, é apresentada uma tradução para o português, feita a partir da tradução do inglês realizada por Bhikkhu Anālayo, em seu trabalho Mahāpajāpatī’s Going Forth in the Madhyama- āgama correspondendo ao MĀ 116, T I 605a8 ao T I 607b16. No anexo 2 está inserida a tradução de um fragmento do décimo Khandaka do Khullavagga, na tradução do Pāli para o Inglês feita por Rhis Davis e publicada em 1820. Estes dois textos serão utilizados de base para apresentação da comparação de texto proposta, contudo devido a ambos não estarem disponíveis para consulta em português, a tradução está disponível nos anexos da presente dissertação.

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2.3 O pedido para fundação da comunidade monástica feminina.

A primeira linha do Sermão (Discurso para Gotamī), “Assim escutei certa vez”, indica, segundo a Tradição Pāli, que ele foi recitado no Primeiro Concílio Budista, que ocorreu após a morte do Buda. Foram convidados quinhentos monges68 homens para transcrever os textos que haviam sido memorizados (HUAI-CHIN, 1999). Após a apresentação do lugar e tempo do fato no qual se passam os eventos, segue o pedido de Mahāpajāpatī:

Naquela época, Mahāpajāpatī Gotamī aproximou-se do Buda, prestou homenagens com a cabeça aos pés dele e, permanecendo ao seu lado, disse: “Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do caminho do recluso? Por essa razão, podem as mulheres neste correto ensinamento e disciplina deixar a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho?” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a. §2)

O caminho budista para o despertar é composto de quatro estágios. Estes estágios são: Srotapanna69, Sakṛdāgāmin70, Anāgāmin71 e Arhat72. Questionar se as mulheres podem alcançar o quarto fruto, significa perguntar a respeito da capacidade das mulheres de realizarem o despertar. Esta capacidade das mulheres é detalhada no tópico 2.6, o potencial das mulheres de alcançar o despertar.

A forma como ela se aproxima e presta homenagens corresponde à forma como outras pessoas, inclusive homens de renome como reis, se dirigem ao Buda. No Sūtra do Medo e da Hesitação (Bhayabheravasutta), por exemplo, um sábio pede para se sentar antes de iniciar uma conversa com o Buda. No mesmo sentido, no Sūtra da Exposição Pequena Sobre a Ação (Culakammavibhangasutta) o brâmane saúda educadamente o Buda e se senta antes de iniciar a conversa (ŚĀKAYAMUNI, 2017).

68 Da mesma forma como Gotamī foi seguida por quinhentas mulheres, e esta é uma metáfora para todas as mulheres. No caso quinhentos monges visa passar a informação da totalidade da comunidade. 69 Srotapanna, significa aquele que entra no rio. É uma pessoa que erradicou as primeiras três amarras do saṃsāra. Srotapanna significa literalmente “aquele que entra (āpadyate) o rio (sota)”, o termo é baseado em uma matáfora que compara a obtenção da Iluminação com o cruzar um rio e alcançar a outra margem. 70 Sakṛdāgāmin, “retornar uma vez” é uma pessoa parcialmente desperta. É um estágio intermediário entre o Srotapanna, que ainda têm desejo sexual e de conforto comparativamente fortes, e o Anagami, que está completamente livre destes desejos. A mente de um Sakṛdāgāmin é bastante pura. Pensamentos relacionados à ganância, ódio e ilusão não surgem com frequência e, quando o fazem, não se tornam obsessivos. 71 O anāgāmin não reencarna no mundo humano após a morte segundo a mitologia, mas nas terras puras, que são locais, onde apenas os anāgāmins residem. Lá eles alcançam a iluminação completa (arhat). 72 Arhat significa “aquele digno de homenagens”. No budismo, um arhat é aquele que ganhou conhecimento da verdadeira natureza da existência e alcançou o nirvana. As tradições budistas usaram o termo para pessoas muito avançadas ao longo do caminho da Iluminação, mas que talvez não tenham atingido o estado de Buda completamente desperto.

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A posição com que ela permanece é digna de nota, pois não há referência de que ela se senta ao lado do Buda, mas ela permanece ao seu lado, adotando a postura em pé.

Contextualizando a instância atual da coleção Majjhima-nikāya mostra que, na esmagadora maioria dos casos, quando monges ou discípulos leigos se aproximam do Buda, eles se sentam. Em alguns discursos do Majjhima- nikāya, a postura de pé é adotada por aqueles que passaram uma mensagem curta. Em vários outros casos, a postura de pé é adotada por pessoas de fora que não se consideram discípulos do Buda, muitas vezes por aqueles que vieram com a intenção de desafiá-lo. (ANĀLAYO, 2016, p19. Trad. nossa73. Grifo no original)

O (MN), consiste no segundo conjunto de coleções de Sermões (nikāyas) correspondendo aos “Sermões com Extensão Média” contemplando um total de 152 textos.

O Lalitavistara e o Buddhacarita indicam que o Buda havia visitado seus pais em outras ocasiões anteriores e explicado o dharma a eles. Sua madrasta havia se tornado uma discipula leiga junto de seu pai. Por isso, a posição em que ela faz o pedido é um detalhe que pode passar despercebido; contudo, permanecendo em pé, perante ele, é uma postura que indica a intenção de desafiar o Buda. É também uma forma de mostrar que ela da mesma forma estava desafiando a sociedade em que estava inserida, contestando os padrões de seu contexto social. Podemos citar alguns exemplos de Sermões onde a postura em pé é adotada como forma de desafiar o Buda: no MN 18 em MN I 108,24 (Madhupiṇḍika Sutta) e MN 51 (With Kandaraka) em MN I 339,8 há algo particularmente notável, a descrição de um andarilho não-budista que permanece em pé, mesmo que um discípulo leigo do Buda que chegou junto com ele já tenha sentado; MN 54 (Potaliya Sutta) em MN I 359,17; MN 56 (Upāli Sutta) em MN I 372,2; MN 74 (Dīghanakha Sutta) em MN I 497,24 e MN 80 (Vekhanasa Sutta) em MN II 40,5 (ANĀLAYO, 2016).

Este é o primeiro questionamento que se dirige às razões do pedido. Uma das possibilidades é que ela tenha feito o pedido no tempo em que ocorreu o falecimento de seu esposo, e as mulheres que a seguiam haviam ficado “viúvas” devido ao

73 Contextualizingthe present instance within the Majjhima-nikāya collection shows that in the overwhelming majority of cases when monastics or lay disciples approach the Buddha, they sit down. In a few Majjhima-nikāya discourses the standing posture is taken by those who have just come to deliver a short message. In several other cases, the standing posture is adopted by outsiders who do not consider them-selves to be disciples of the Buddha, often by those who have come with the intention to challenge him.

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ordenamento de seus maridos74 (OHMUNA, 2006; HORNER, 1930). Como já explicado, as viúvas tinham uma posição problemática na cultura da época, sendo que em muitos casos elas eram queimadas nas piras funerárias de seus maridos. Quando isso não ocorria, ficavam sob a tutela do filho ou de um homem responsável por elas na linhagem. Contudo, a interpretação de que Mahāpajāpatī queria escapar da viuvez não é consenso entre os estudiosos, e Bhikkhu Anālayo apresenta uma ordem temporal diferente dos fatos, o que afeta a motivação por detrás do pedido e por consequência a força do movimento que Mahāprajāpatī encabeça junto com as quinhentas mulheres que a seguiam:

Outro ponto digno de nota na descrição dos eventos [da tradição] Mahīśāsaka é que Mahāprajāpatī Gautamī faz seu pedido quando seu marido Śuddhodana ainda está vivo. Mostra que nesta versão [Mahīśāsaka] seu desejo de ir adiante não é motivado pelo desejo de escapar à viuvez. (ANĀLAYO, 2016, p.45. Trad. nossa)75

A menção de Bhikkhu Anālayo à interpretação da Tradição Mahīśāsaka sobre o momento do pedido na vida de Mahāprajāpatī Gautamī mostra que há a possibilidade de variação de narrativas. Ele indica isso, ao comentar também outra Tradição, chamada Mūlasarvāstivāda, cuja narrativa aborda a alegria de Mahāprajāpatī Gautamī ao ter a oportunidade de aprender, e como isso se relacionou ao seu pedido:

A versão do Mūlasarvāstivāda indica adicionalmente que Mahāprajāpatī Gautamī, que havia visitado o Buda e recebido ensinamentos dele, estava “profundamente cheia de alegria por ter ouvido o Dharma” quando ela fez seu pedido. A solicitação real de Mahāprajāpatī Gautamī assume formato diferentes nas versões. (ANĀLAYO, 2016, p.46. Trad. nossa76. Grifo no original)

Desta forma, considerando que um volume significativo de textos budistas foi escrito e preservado por homens, a existência de registros que trazem visão distinta dos fatos deve ser vista de maneira muito atenta, porque nos fornece o benefício de duvidar da versão do Discurso para Gotamī e do Kullavagga, fazendo leituras

74 Os registros não precisam a data, mas quando da conversão para o budismo do rei Śuddhodana, seu exército foi obrigado a se converter também e muitos deles se tornaram monges. Quando alguém adentra ao monasticismo ele deixa a vida em família e adota um novo modo de vida, livre destas obrigações familiares. Desta forma, as mulheres que eram suas esposas ficaram “viúvas” porque não tinham mais seus maridos como figura masculina à qual elas estavam vinculadas. 75 Another point worth noting in the Mahīśāsaka depiction of events is that Mahāprajāpatī Gautamī makes her request when her husband Śuddhodana is still alive. This shows that in this version her wish to goforth is not motivated by the desire to escape widowhood. 76 The Mūlasarvāstivāda version additionally indicates that Mahāprajāpatī Gautamī, who had visited the Buddha and received teachings from him, was “deeply filled with joy on having heard the Dharma” when she made her request. Mahāprajāpatī Gautamī’s actual request then takes the following form in the different versions.

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diferentes e mais enriquecedoras dos fatos. Existe um esforço do patriarcado para suprimir as conquistas das mulheres, reduzindo a força de seu pedido.

Bhikkhu Anālayo, apresenta ainda outras duas coleções de textos onde o desejo por progredir no caminho é apresentado, refutando a tese da motivação para escapar da viuvez.

Um tema digno de nota em várias versões da busca de Mahāprajāpatī Gautamī é sua relação explícita com o desejo de progredir no caminho do despertar. A versão Mahāsāṃghika-Lokottaravāda é mais detalhada a esse respeito, destacando a preciosa oportunidade de viver em uma época em que um Buda surgiu no mundo e ensina o caminho para Nirvāṇa. O relato é menos explícito, mas também relaciona o desejo de passar à intenção de “cultivar o caminho”. As versões do Mūlasarvāstivāda e Sarvāstivāda abordam esse tópico, de forma que Mahāprajāpatī Gautamī pergunta se as mulheres podem alcançar o quarto fruto do recluso, ou seja, se elas podem se tornar . (ANĀLAYO, 2016, p.48. Trad. nossa77. Grifo no original)

As linhas gerais da história da fundação da comunidade feminina são similares nas diversas tradições, contudo, os detalhes nos trazem indícios diferentes nas motivações do pedido. Isso porque ao se exortar a oportunidade de se viver em uma época em que um Buda esteja vivo, entende-se que ela já era uma discipula leiga. Ser ou não discípula interfere na interpretação da postura em pé dela para realizar o pedido. Outro ponto vem do questionamento sobre se as mulheres podem alcançar o despertar. Ao colocar esta pergunta na voz de Gotamī, reduzimos o papel de Ānanda. Segundo o Discurso para Gotamī e o Kullavagga, este é o argumento que ele usa para persuadir o Buda. Ela ter feito o questionamento tira o protagonismo inovador dos argumentos.

Contudo, se levarmos em consideração a motivação da viuvez, ela também estava lutando contra a situação à qual seria submetida. Conforme abordado no primeiro capítulo, a situação da mulher era bastante desprivilegiada na Índia: quando a mulher não era queimada na pira funerária de seu marido, ela ficava subordinada ao seu filho mais velho, na ausência deste, ao homem seguinte na linhagem. Ocorre, porém, uma situação difícil para Mahāpajāpatī, pois seu filho havia se ordenado monge e não poderia cuidar dela, seu filho adotivo tornara-se o Buda, que também não

77 A note worthy theme in several versions of Mahāprajāpatī Gautamī’s request is its explicit relation to the wish to progress on the path to awakening. The Mahāsāṃghika-Lokottaravāda version is most detailed in this respect, highlighting the precious opportunity of living at a time when a Buddha has arisen in the world and teaches the path to Nirvāṇa. The Dharmaguptaka accountis less explicit, but also relatesthe wish to goforth to the intention “to cultivate the path”. The Mūlasarvāstivāda and the Sarvāstivāda versions foreground this topic, as here Mahāprajāpatī Gautamī asks if women can reach the fourth fruit of recluseship,that is, if they can become arhats.

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poderia cuidar dela conforme os costumes védicos, e seu neto havia também se ordenado monge, ou seja, ela não possuía mais na sociedade quem a mantivesse. Esta situação de abandono frente à sociedade pode ter sido, dentre outros motivos, a razão para que ela viesse a fazer e insistir no pedido para que pudesse adentrar a ordem de renunciantes do Buda. O que é reiterado pela postura desafiadora dela (em pé) ao fazer o pedido, mostrando sua força e coragem ao desafiar a sociedade da época e os padrões vigentes, não se conformando com sua situação.

No Discurso para Gotamī, no início do seu pedido Mahāpajāpatī questiona se as mulheres poderiam alcançar o quarto fruto do caminho do recluso, e depois questiona a possibilidade delas deixarem seus lares e adentrarem a comunidade. Esta passagem é diferente da encontrada no décimo Kandhaka do Kullavagga, na qual se lê: “Seria bom, Senhor, se as mulheres fossem autorizadas a renunciar seus lares e entrar no estado de sem teto sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Tathagata.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019b. §2). Nesta passagem vemos que ela não questiona a respeito da possibilidade de as mulheres atingirem os níveis de desenvolvimento espiritual e alcançarem a libertação completa do sofrimento.

Ocorre uma supressão do questionamento a respeito da capacidade das mulheres de alcançar o despertar, expressa pela frase “Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do caminho do recluso78?”, presente no Sermão (Discurso para Gotamī). Ela está questionando-o sobre a capacidade das mulheres de se tornarem Budas. Efetivamente, ela não está apenas pedindo para adentrar a ordem quando faz o questionamento. A supressão dessa passagem oculta uma informação importante da demanda apresentada por Mahāpajāpatī, que é a igualdade de gênero na religião.

Nas diversas versões, o pedido principal é para que ela possa se juntar à ordem tornando-se uma sem-teto, e a resposta do Buda é muito similar em ambos os textos. No “Discurso para Gotamī” o Buda responde:

“Espere, espere, Gotamī, não tenha esse pensamento, que neste caminho de ensino e disciplina, as mulheres deixam a vida de família, tornando-se sem- teto para treinar no caminho. Gotamī, você teria de cortar seu cabelo, vestir- se de tecidos ocre para praticar a vida pura e santa.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a. §3).

78 Recluso no caso tem o mesmo significado de renunciante. A comunidade monástica budista não é reclusa, isolada da sociedade, contudo a tradução do sânscrito feita por Rhys Davis recebe críticas devido a colonialidade da escolha de termos empregados nela.

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No outro texto analisado, o excerto do Kullavagga, temos: “Basta, ó Gotami! Não deixe que isso te agrade, que as mulheres fossem permitidas disto.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019. §3). Esta negativa deve ser analisada e os autores apresentam diversos pontos de vista para fundamentar tal negativa.

Primeiramente devemos questionar a respeito da capacidade da mulher de alcançar o completo despertar, porque a recusa do Buda poderia estar fundamentada, antes de tudo, numa crença na falta da capacidade da mulher de seguir no caminho budista. Contudo este não parece ser o caso uma vez que o Buda diz o contrário disto.

É relatado que Buda Śākayamuni afirma ter explicitamente afirmado o potencial para as mulheres alcançarem o objetivo espiritual mais alto, mas, apesar da retórica da igualdade espiritual nos textos budistas, as mulheres, na prática real, continuam enfrentando muitos obstáculos nos seus esforços para obter acesso aos ensinamentos budistas. (TSOMO, 2004, p.2. Trad. nossa79)

A incógnita das razões da recusa inicial do Buda em abrir as portas da saṃgha para as mulheres é cercada por especulações. A doutrina proposta pelo Buda provocou uma quebra nos paradigmas sociais, exterminando dentro da comunidade o sistema de castas, o que representou uma revolução. Isso faz com que fosse um movimento esperado que ele também aceitasse a entrada e igualdade das mulheres.

Boucher explica que existe muita especulação sobre as razões da recusa inicial do Buda em ordenar monjas. Ele já havia desafiado as restrições da sociedade em que vivia, aceitando pessoas de baixa casta em suas fileiras, por isso, fazia sentido que ele permitisse que as mulheres assumissem um papel religioso. Seja por preconceito cultural profundamente arraigado ou por outras influências, o Buda hesitou no que dizia respeito às mulheres. (BOUCHER, 1997)

Uma das possibilidades também reflete a forma e o momento do pedido. Uma vez que aceitar as mulheres seria uma revolução e traria consequências à comunidade, ele pode ter negado em primeira instância o pedido porque precisava refletir a respeito do pedido. Se fizermos uma análise rigorosa, o Buda nega que ela faça o pedido, dizendo para que ela não tenha pensamentos deste tipo. Ele não nega dizendo que não permitirá a fundação da ordem.

79 Buddha Sākyamuni is recorded as having explicitly affirmed the potential for women to achieve the highest spiritual goal yet despite the rhetoric of spiritual equality in the , women, in actual practice, continue to face many obstacles intheir efforts to gain access to Buddhist education and full ordination.

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Gotama não teria dado seu consentimento, de maneira alguma, ao estabelecimento de uma instituição que, apesar de não ser uma inovação, por causa dos jainistas, era ainda assim considerada avançada e incomum, mas deve ter criado um escrutínio minucioso para analisar todos os lados do problema antes de finalmente pronunciar sua decisão. (HORNER, 1930, p.106. Trad. nossa80)

O jainismo é uma religião cujo surgimento é contemporâneo ao budismo e seu fundador foi um homem de nome Mahavira. O jainismo é uma religião não-teísta que tem como princípio fundamental a não violência para com todos os seres. Contudo, mesmo a existência desta religião que também se organizava em comunidades teria recebido as mulheres como religiosas. Não há precisão nas datas de quando Mahavira e Gotama aceitam mulheres em suas ordens, por isso afirmar que Mahavira tenha feito antes é uma questão complexa81. Isto leva mais dúvidas às razões do Buda para a aparente recusa. Dentre as possíveis razões para a negativa inicial do Buda para fundação da comunidade monástica feminina, podem estar relacionadas as ocorrências na comunidade jainista. Anteriormente citamos o exemplo de que justamente por causa dos estupros, Mahavira aconselhava que uma mulher ficasse de guarda na porta do local em que as outras estivessem descansando. Uma possibilidade é que o Buda, temendo que isso (estupro) acontecesse com as mulheres que deixassem a segurança de seus lares, hesita porque precisa organizar condições.

Enquanto muitos estudiosos budistas veem a aparente relutância do Buda em ordenar mulheres como uma indicação de sua discriminação contra mulheres, outros encaram esse cenário de maneira muito mais positiva. Tendo em conta as circunstâncias de um status altamente discriminado e subjugado na sociedade indiana antiga, muitos estudiosos consideram a admissão de mulheres por Buda na sangha masculina recém-formada como algo bastante radical. (OWEN, 1998, p.18. Trad. nossa82. Grifo no original)

Esta recusa é vista de forma dúbia. Conforme abordado no tópico 2.2, não podemos descartar o interesse patriarcal em colocar nos textos ou nas traduções uma

80 Gotama would not have given his consent in any litght vein to the establishment of an instruction which, although not an inovation, because of the Jains, was yet considered advanced and unusual, but must have brought a searching scrutiny to bear on ali sides of the problem before he finally pronounced his decision. 81 Para compreender a questão da mulher no jainismo, recomenda-se a leitura do artigo: PARSHWANATH, Prathibha; K., Dr. Ramachandra. Socio-economic status of women in Jainism: Then and now. International jounal of Humanities and Social Research. Volume 3, issue 9, Setember 2017 disponível em: http://www.socialsciencejournal.in/download/393/3-9-11-242.pdf acesso em 05 de Setembro de 2019 82 While tnany Buddhist scholars see the Buddha's apparent reluctance to ordain women as an indication of his discrimination against women, others envision this scenario in a much more positive light. Taking into account women's highly circumscribed and subjugated status in ancient Indian society, many scholars consider the Huddha's admission of women into the newly formed male sangha as something quite radical.

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recusa como sinal de um suposto desejo do Buda de não formar a comunidade feminina. Contudo, se a opção pela interpretação da recusa fosse por uma preocupação com a segurança das mulheres, as tradições precisariam dar a mesma ênfase nesta preocupação e teriam de encarar que as mulheres têm a mesma capacidade para o despertar que os homens.

A discrepância entre a convicção de Buda de que as mulheres são tão capazes quanto os homens de alcançar a iluminação e sua adesão a códigos e normas culturais sobre o adequado funcionamento do lugar das mulheres na sociedade, torna-se aparente no exame de acesso parcial e desigual das mulheres à ordem monástica. A ideia de uma comunidade de mulheres, independente dos homens, vivendo uma vida religiosa fora das obrigações familiares e mundanas era considerada uma ameaça à estabilidade social. O caminho da monja budista forneceu uma alternativa positiva para mulheres consideradas virtualmente não independentes dentro da sociedade indiana antiga. (OWEN, 1998, p.27. Trad. nossa83)

Esta leitura diferencial, onde primeiramente temos de assumir que as mulheres são tão capazes quanto os homens de trilhar o caminho religioso e alcançar as realizações, coloca, como dito, esta recusa sob suspeita. Precisamos refletir a respeito de como interpretar a recusa inicial do Buda, relembrando, como abordado no primeiro capítulo, das condições da mulher na época e em especial de qual era sua posição social, seus direitos e deveres, e como eram vistas suas capacidades; que em resumo eram relegadas às tarefas do lar, para gerar filhos homens, cujos direitos se resumiam a disputas de partilha de suas poucas propriedades quando ela vinha a falecer, numa sociedade onde se chorava mais pela perda de uma vaca do que de uma filha (SHARMILA, 2013). Esta, não podemos esquecer, era a realidade vivida por elas e que pesava sobre a decisão que o Buda precisava tomar.

Neste caminho de uma leitura diferencial, Bhikkhu Anālayo apresenta uma alternativa a esta recusa, que se refere às condições para as mulheres naquela época. Quando Mahāpajāpatī Gotamī solicitou permissão para que as mulheres saíssem, o Buda teria recursado porque as condições ainda não eram adequadas para tal movimento; pois viver a vida santa no celibato poderia não durar muito se ela se tornasse uma andarilha sem-teto. (ANĀLAYO, 2011a)

83 The discrepancy between the Buddha's conviction that women are as capable as men of attaining enlightenment and his adherence to cultural codes and norms about women's proper place in society, becomes apparent in the examination of women's partial and unequal access to the monastic order. The idea of a community of women, independent of men, living a religious life outside of familial and worldly obligations was considered a threat to social stability. The path of the Buddhist nun provided a positive alternative for women who were considered to have virtually no independente status within ancit:nt Indian society.

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Sair, primeiramente, tem o significado de deixar as obrigações de família e dedicar-se ao caminho. Também significa peregrinar, ser uma andarilha sem abrigo, estar vulnerável aos perigos deste estilo de vida. Sem suporte estatal, as comunidades dependiam de benfeitores para se manterem. Uma possível interpretação das razões para o receio do Buda em permitir que as mulheres adentrassem ao monasticismo reside na segurança delas; o risco forte de estupro e outras violências contra as mulheres pode ter sido um fator determinante para esta negativa.

Para termos uma ideia de como era a situação das mulheres, podemos ler a apresentação de Bhikkhu Sujato sobre isso.

Em alguns países, como a Índia, as monjas foram estupradas e, posteriormente, foram forçadas a despir-se [deixar as vestes e a vida monástica], sob o argumento de que elas têm o preceito básico para a vida celibatária (pārājika)e não podem mais continuar vivendo como monjas. Isso causou um tremendo grau de angústia e trauma e, além disso, criou um clima em que as monjas temem relatar ataques, o que pode incentivar ainda mais os possíveis estupradores. Mas o Vinaya não é tão cruel e lida com o estupro de maneira compassiva, permitindo que a monja, que é a vítima e não o autor, continue seu caminho espiritual. (SUJATO, 2012, p129. Trad. nossa84 Grifo no original)

Sobre os estupros, os relatos são escassos, mas permeiam a história da comunidade. Aqueles que entram na ordem de renunciantes, sejam homens ou mulheres, aderem ao celibato. Romper este preceito voluntariamente consiste em uma das causas de expulsão da comunidade monástica. A pessoa pode continuar a praticar o dharma mas na comunidade leiga. Os relatos aparecem nos motivos de estabelecimento de preceitos monásticos e podem ser encontrados no Kullavagga. Contudo, conforme dito por Sujato, o Vinaya é compassivo com relação àquela que sofre a violência do estupro. Por outro lado, a vergonha e medo de que não acreditassem na versão dela do ocorrido pode estar entre as razões da subnotificação dos casos.

É importante notar que o Buda estabeleceu votos que visavam proteger as mulheres, de maneira que se buscasse prevenir as ocorrências de estupros. Isso pode ser visto, por exemplo, no voto que proíbe as mulheres de passarem os retiros das

84 In some countries, such as India, nuns have been raped and subsequently forced or encouraged to disrobe, being told that they have broken the basic precept for their celibate life (pārājika), and can no longer continue to live as a nun. This has caused a tremendous degree of distress and trauma, and moreover creates a climate where nuns fear to report any attacks, which can further encourage would-be rapists. But the Vinaya is not so cruel, and deals with rape in a compassionate way, allowing the nun, who is the victim not the perpetrator, to continue her spiritual path.

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estações chuvosas sozinhas. No retiro das chuvas, monges e monjas deixam o convívio dos leigos e se retiram para práticas de meditação, ficando isolados durante este período. O isolamento é um fator que pode favorecer ataques. O detalhamento da interpretação deste princípio será abordado no capítulo 3.

Mahāpajāpatī faz seu pedido novamente, o que ocorre por três vezes no total. O “Discurso para Gotamī” e o Kullavagga trazem diferenças também aqui: no Discurso, o pedido é feito novamente em momentos separados, mas no excerto do Kullavagga é feito logo em seguida do primeiro pedido. Contudo, independentemente do tempo em que é refeito o pedido, a resposta do Buda é a mesma: ele nega a fundação da ordem feminina sem justificar suas razões.

Vemos, pelos especialistas em Sermões, e conforme Anālayo, que fazer o pedido por três vezes, em momentos distintos ou não, tem a função de mostrar o interesse pelo pedido; e em especial a marcação de questionar por três vezes segundo a tradição mostra uma resposta definitiva:

Fazer um pedido três vezes nos primeiros discursos funciona como um marcador de grande interesse. O padrão usual é que, depois de recusar a primeira e a segunda instância, quando solicitado pela terceira vez, o Buda aceita o pedido. O presente caso difere na medida em que Mahāprajāpatī Gautamī faz seu pedido uma só vez, sem recusas intermediárias do Buda, de modo que o uso de três expressões para solicitar o mesmo é uma maneira mais formal de expressar interesse e não uma instância completa de fazer três pedidos separados. (ANĀLAYO, 2016, p.20. Trad. nossa85)

Inicialmente poderia ser interpretado que o triplo pedido e a tripla recusa são uma forma de mostrar, no desenvolver da história, que o Buda não tinha intenção de fundar a comunidade feminina; tema controverso, porque quando ele, após atingir o completo despertar, toma a decisão de ensinar, isso é feito para benefício de todos os seres. Além disso, em outros momentos ele faz comentários sobre a necessidade de a comunidade ser quádrupla para ser completa, ou seja, uma comunidade composta por monges, monjas, leigos e leigas, acrescentando uma controvérsia à negativa. Chama atenção, como afirmado, que segundo estes relatos o Buda nega a fundação da

85 Making a request three times in the early discourses functions as a marker of keen interest. The usual pattern is that, after declining the first and second instance, when requested a third time the Buddha will acede to the request. The present case differs in so far as Mahāprajāpatī Gautamī makes her requestin one go, without intervening refusals by the Buddha, so that the use of three expressions to request the same is more of a formulaic way of expressing keen interest and not a full instance of making three separate requests.

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comunidade monástica feminina mas não apresenta razões; ele limita-se apenas a refrear Mahāpajāpatī.

2.4 As mulheres raspam seus cabelos e colocam as vestes cor de açafrão.

Nesta passagem, após a negativa do Buda as mulheres decidem seguir em marcha, determinadas a alcançarem seu objetivo de fundarem sua própria ordem de renunciantes. Para conseguir isso, elas tomam para si as características de um renunciante, raspando suas cabeças e vestindo-se como tal. Quando observamos as duas versões apresentadas, o Discurso para Gotamī e o Kullavagga, percebemos que o Buda faz uma negativa, sem contudo oferecer uma alternativa às mulheres. A ação delas não é imediata, passado um tempo, estimado em três meses, o que é marcado pelo fim do retiro das chuvas, o Buda parte em peregrinação. Neste momento, Mahāpajāpatī Gotamī decide continuar sua busca, conforme podemos continuar lendo no Sermão:

Mahāpajāpatī Gotamī ouviu que o Abençoado, tendo completado o retiro da estação chuvosa entre os Śākya, que os três meses haviam terminado, que as vestes estavam remendadas e completas, que ele havia pegado as vestes e tigela, ele saia em viagem entre as pessoas. Mahāpajāpatī Gotamī, juntamente com algumas mulheres idosas Śākya, seguiram atrás do Buda, que pela ribalta se aproximou de Nādika, onde permaneceu no corredor de tijolos em Nādika. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, § 11)

Podemos perceber que no Discurso para Gotamī, é suprimida a quantidade de mulheres que seguem Mahāpajāpatī em sua peregrinação para o próximo local onde o Buda estaria ensinando. Contudo, consta que foram quinhentas mulheres (HEIKKILA- HORN, 2003). Conforme já explicitado anteriormente, há tentativa de colocar as mulheres como sem um tutor homem, ou seja, como viúvas, fugindo das consequências desta condição. Atribuir a elas a condição de idosas é uma forma de reafirmar uma desqualificação do grupo, porque mulheres jovens, no vigor da vida, não estariam interessadas em trilhar o caminho budista, porque não havia a

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necessidade de fuga da realidade (COLLETT, 2013). No excerto do Kullavagga, temos esta jornada descrita como:

2. Agora quando o Abençoado havia permanecido em Kapilavatthu, pelo tempo que julgou conveniente, ele partiu em sua jornada em direção a Vesali e viajando sempre em frente ele no devido tempo chegou lá. E lá em Vesali o Abençoado ficou, no Mahavana, no salão Kutagara. E Maha-pagapati a Gotami cortou o seu cabelo, e colocou as vestes de cor alaranjada, e partiu, com uma série de mulheres do clã , em direção a Vesali; e no devido tempo ela chegou em Vesali, no Mahavana, no salão Kutagara. E Maha-pagapati a Gotami, com pés inchados, cobertos de poeira, triste e angustiada, chorando e em lágrimas, colocou-se na frente da sacada de entrada. (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §7)

Nota-se que no excerto do Kullavagga a apresentação difere em alguns pontos em relação ao Discurso para Gotami, mas é similar em outros. Por exemplo, também é suprimido o número de mulheres que seguem o Buda nesta peregrinação, na busca para que se fosse fundada a comunidade feminina monástica. Não é feito referência ao retiro das chuvas, de tal forma que se suprime o tempo que se passa, no qual se persiste na busca para a fundação da ordem. Este é mais um elemento que, da forma como apresentado, desmerece a luta daquelas mulheres, porque remove a persistência delas na busca pelo Caminho. A distância entre as cidades que elas percorreram foi cerca de 200 quilômetros. Uma jornada a pé de mendicância, sem locais adequados para pouso, mostrando sua persistência, capacidade de suportar as intempéries e dificuldades e firme intenção de entrar no Caminho, fundando a ordem monástica para as mulheres (KURIHARA, s/d). Segundo Boucher, Buda foi para outra cidade. Mahāprajāpatī e suas seguidoras, temporariamente impedidas, mas ainda determinadas a se tornar monjas, cortaram seus cabelos, sinalizando assim sua renúncia à vida mundana. Elas vestiram as vestes alaranjadas usadas pelos monges e partiram na longa jornada para a cidade onde o Buda estava fazendo um discurso. Penso nisso como a primeira marcha da libertação das mulheres na história. Essas eram mulheres nobres não acostumadas a esforço ou trabalho; a longa caminhada foi dura para elas, deixando-as sujas, com os pés inchados, desgastadas e exaustas (BOUCHER, 1997).

Esta forma de pensar, no que seria o significado desta marcha, seria uma leitura alternativa ao apresentado nos excertos e nas visões predominantes. Uma marcha de mulheres, desejando seu direito a se igualarem aos homens, para receberem a devida instrução e com isso alcançarem as realizações, demonstrava que assim como os homens elas são persistentes e fortes. Quando Boucher afirma que elas não estavam

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acostumadas às situações que se submeteram por terem uma origem nobre, precisamos nos lembrar que a origem nobre não foi impeditivo para que as pessoas que desejavam entrar no Caminho utilizassem as adversidades como forma de se fortalecerem, isso porque temos os relatos de que muitos dos homens também vinham de uma origem nobre, e que o próprio Buda vinha desta condição, tendo renunciado ao palácio, esposa e filho para poder trilhar o caminho para o despertar, e enfrentado tais dificuldades. Assim, as mulheres estavam demonstrando que elas também eram capazes de renunciar ao conforto pela busca espiritual, reforçando a noção de marcha das mulheres.

É importante relembrar que as mulheres nesta jornada raspam seus cabelos, vestem-se como monges e seguem na peregrinação. Tomar tal atitude o que poderia significar? Precisamos pensar que Mahāprajāpatī estava determinada a ter seu pedido aceito, um indício é que ela adota a postura em pé para fazer seu pedido, pois uma vez que ela já era uma discípula, esta é uma postura desafiadora; mas ela antes de tudo demonstra seu respeito pelo Buda porque ela presta as reverências ao se aproximar, prostrando-se aos pés dele. Isso mostra que ela reconhece em seu enteado uma pessoa de respeito em sua posição. Assim, é razoável supor que o Buda tenha oferecido uma opção à sua madrasta no lugar de simplesmente tentar dissuadi-la do pedido. Vestir as vestes e raspar os cabelos sem que isso venha de uma autorização prévia seria uma afronta não condizente com o respeito que ela mostra ao iniciar as conversas. Tal interpretação pode ser vista, segundo Anālayo, na versão Sarvāstivāda da história, que relata também outras versões por outras tradições:

A versão Sarvāstivāda relata similarmente o Buda concedendo a Mahāprajāpatī Gautamī a permissão de cortar o cabelo e usar vestes monásticas. No relato Mūlasarvāstivāda preservado na tradução chinesa, a passagem correspondente fala [da opção] de usar roupas de túnicas brancas. Em uma seção subsequente da versão do Mūlasarvāstivāda, quando Mahāprajāpatī Gautamī repete seu pedido depois de ter seguido o Buda em suas viagens, a permissão do Buda fala de ela usar “Roupões de retalhos remedados”. Essa parte também foi preservada na versão em sânscrito, segundo a qual o Buda realmente deu permissão para raspar seus cabelos e usar um saṃghāṭī, o manto monástico externo. (ANĀLAYO, 2016, p.51. Trad. nossa86. Grifo no original)

86 The Sarvāstivāda version similarly reports the Buddha granting Mahāprajāpatī Gautamī permission to shave off herhair andput onmonastic robes. In the Mūlasarvāstivāda account preserved in Chinese translation, the corresponding passage speaks instead of wearing white robes or clothes. In a subsequent section of the Mūlasarvāstivāda version, when Mahāprajāpatī Gautamī repeats her request after having followed the Buddha on his travels,the Buddha’s permission speaks rather of her wearing “patchwork robes”. This part has also been preserved in the Sanskrit fragment version, according to which the Buddha indeed gave her permission to shave off her hair and wear a saṃghāṭī, the outer monastic robe.

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A versão do Discurso para Gotamī prossegue após ela ter seguido o Buda e então repete seu pedido pela terceira vez. Isso ocorre exatamente da mesma forma que as anteriores. Aqui, ela inclusive questiona, pela terceira vez, a capacidade das mulheres de alcançar o Despertar.

Então, Mahāpajāpatī Gotamī aproximou-se do Buda, homenageou-o com a sua cabeça aos pés dele e, permanecendo ao seu lado, disse: “Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do recluso? Por essa razão, podem as mulheres, neste caminho, serem ensinadas e disciplinadas para deixar a vida de família, tornar-se uma sem-teto para treinar no caminho?” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §12)

E, da mesma forma que ocorreu nas duas vezes anteriores, ela recebe a mesma resposta, e é dissuadida pelo Buda a fazer este tipo de questão: a de solicitar a fundação da comunidade monástica feminina. Todavia, deve-se observar que o Buda não faz comentários a respeito da aparência dela, ou seja, não questiona a respeito dela ter raspado sua cabeça e tomado as vestes açafrão, o que nos leva a entender que não é um comportamento que ele tenha proibido e que seja digno de nota ou repreensão.

Uma terceira vez, o Abençoado respondeu: “Espere, espere, Gotamī, não tenha esse pensamento, que neste caminho de instrução e disciplina, as mulheres deixam a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho. Gotamī, você teria de cortar seu cabelo, vestir-se de vestes ocre e por toda a vida praticar a pura vida santa.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, § 13)

Curiosamente o texto apresenta a mesma resposta: você teria de cortar seu cabelo, vestir-se de vestes ocre e por toda a vida praticar a pura vida santa. Não obstante, ela já se encontrava com os cabelos cortados e estava vestindo as roupas de monge. Desta forma a referência não deve ser tomada como raspar os cabelos e vestir- se como monge fisicamente, mas de adotar a renúncia, um simbolismo de que elas deveriam permanecer praticando em suas casas naquele momento.

A discussão proposta pelo Bhikkhu Anālayo é que o Buda oferece uma alternativa às mulheres para que estas possam viver o que ele chama de “vida santa”, sem se colocarem em risco como aconteceria numa vida de peregrinação, como andarilhas, expostas e sem proteção. Desta forma, a próxima passagem é significativa, pois as mulheres raspam seus cabelos, vestem-se como os monges, fato não destacado ou comentado, e seguem por centenas de quilômetros a pé para seguir o Buda, o que é

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de fato uma questão a ser observada por Ānanda (OHNUMA, 2006). Essa visão também é retratada por Bhikkhu Anālayo.

Além das diferentes nuances narrativas na representação do encontro entre Mahāprajāpatī Gautamī e Ānanda, outro aspecto que vale a pena ressaltar é que a maioria das versões retrata Ānanda nem mesmo mencionando o fato de que ela tem a cabeça raspada e está usando roupões [de monge], ele apenas percebe que Mahāprajāpatī Gautamī está triste e exausta de viajar. Isso apoia a impressão de que o ato de raspar a cabeça e usar o traje deve ser visto como seguindo algum tipo de concessão do Buda a esse respeito. Se ela e suas seguidoras tivessem feito isso sem nenhuma permissão ou sugestão prévia do Buda, certamente seria esperado que a narrativa continuasse com esse aspecto de sua aparência externa, merecendo um comentário de Ānanda, se não de críticas. (ANĀLAYO, 2016, p.65-66. Trad. nossa87)

Esta atitude das mulheres precisa ser avaliada. Numa leitura rápida podemos pensar que se trata de uma afronta, um movimento de resistência das mulheres. É razoável esta interpretação se pensarmos que Mahāpajāpatī e suas seguidoras ficaram viúvas e o que isso significava na Índia de seu tempo, sem ter quem se responsabilizasse por elas. Mesmo com o renome que o Buda já gozava, esta afronta seria menor se comparada ao futuro que as esperava. Mas se este fosse o caso, isso seria digno de nota quando Mahāpajāpatī encontra Ānanda na porta de onde o Buda se encontrava, estando ela cansada, de pés inchados e coberta de poeira. Contudo se levarmos em conta o argumento de distorção da cronologia dos acontecimentos, na qual se entende que estes acontecimentos têm lugar enquanto o marido dela ainda estava vivo, as motivações por detrás do seu pedido se intensificam, bem como o peso da marcha das mulheres.

Isso oferece uma perspectiva alternativa significativa sobre os fundamentos da ordem das monjas. A perspectiva alternativa resultante muda a recusa do Buda de conceder a ordenação, desde a simples negação de qualquer papel para as mulheres em sua instituição monástica, até a permissão para viver uma forma de renúncia, presumivelmente em casa. Em vista do que as condições especialmente exigentes que acometiam aqueles que vagam livremente no ambiente indiano antigo iria representar para as mulheres, o ponto dessa opção alternativa parece ser que elas viveriam melhor uma vida celibatária em um ambiente mais protegido em casa. No desenlace narrativo, a recusa do Buda funcionaria como uma expressão de preocupação de que, em um momento em que a ordem budista ainda estava em seus estágios iniciais, a falta de moradias apropriadas e as outras condições de vida de uma

87 Besides the different narrative nuances in the depiction of the meeting between Mahāprajāpatī Gautamī and Ānanda, another aspect worth not ing is that the majority ofversions depict Ānanda asnot even mentioningthe fact that she has ashaven head and is wearing robes. Instead he just notices that Mahāprajāpatī Gautamī is sad and exhausted from travelling. This supports the impression that heract of shaving off herhair and donning robes should be seen as following some kind of concession by the Buddha in this respect. Had she and her followers done this without any previous permission or suggestion by the Buddha, it could certainly be expected that the narrative would continue with this aspect of their outer appearance meritinga comment by Ānanda, if not criticism.

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vida sem casa poderiam ser muito desafiadoras para as mulheres Śākya. (ANĀLAYO, 2016, p.67. Trad. nossa88)

A questão da simples negativa e da opção trouxeram consequências depois no estabelecimento das ordens monásticas femininas ao longo do tempo, porque ao suprimir a alternativa dada pelo Buda, a simples negativa foi usada como meio de justificar a opressão que elas sofreram depois. Contudo, se percebermos os indícios desta opção de viver a vida monástica na proteção do lar, porque as condições na época não eram propícias, isso nos leva ao compromisso, nas gerações contemporâneas e futuras, de conseguir condições propícias porque era intenção do Buda estabelecer a ordem das monjas.

O pedido e as negativas são uma questão complexa, existem muitos indícios que mostram supressões nos textos e formas diferentes de interpretação, principalmente no tocante às palavras do Buda, o que gera consequências para o futuro das comunidades monásticas femininas. Tentou-se diminuir o significado da primeira marcha das mulheres, contudo, ela não foi obscurecida completamente pelo patriarcado e é possível recuperar os indícios da interpretação diferencial dos fatos. O próximo evento na história da fundação da comunidade monástica feminina é o evento da intervenção de Ānanda, no qual o primo e atendente pessoal do Buda irá conversar com ele para buscar a fundação da comunidade monástica feminina.

2.5 A intervenção de Ānanda e seus argumentos.

Ānanda era um monge, primo do Buda e seu atendente pessoal. Iremos explorar os argumentos e o procedimento pelo qual, mediante intervenção dele, a comunidade feminina é criada. Ou seja, não foi pela força feminina descrita pelos insistentes

88 This offers a significant alternative perspective on the foundation history of the order of nuns. The resulting alternative perspective changes the Buddha’s refusal to grant ordination from a flat denial of any role for women in his monastic institution to a permission to live out a form of renunciation, presumably at home. In of the especially demanding conditions that going forth and wandering around freely in the ancient Indian setting would represent for women, the point of this alternative option appears to be that they would better live a celibate life in amore protected environment at home. Within the narrative denouement, the Buddha’s refusal then would function as an expression of concern that, at a time when the Buddhist order was still in its early stages, lack of proper dwelling-places and the other living conditions of a homeless life might be too challenging for the Śākyan women.

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pedidos, pela marcha, pela determinação de Mahāpajāpatī, que o Discurso para Gotamī e o Kullavagga registram que a comunidade foi formada pela intervenção de Ānanda.

Estes dois textos, o Discurso para Gotamī e o Kullavagga, apresentam diferenças no tocante a Mahāpajāpatī ter ido novamente falar com o Buda a respeito da fundação da comunidade monástica feminina, mas ambas as versões do acontecido concordam a respeito do que ocorreu após a jornada: ela se encontrava cansada, suja da viagem, parada na entrada da porta de onde o Buda se encontrava. Neste momento, encontra o atendente pessoal do Buda, Ānanda. Segue entre ela e Ānanda o seguinte diálogo:

O venerável Ānanda viu Mahāpajāpatī Gotamī parada de pé ao lado da entrada, com os pés descalços sujos e o corpo coberto de poeira, cansada e chorando de tristeza. Ao vê-la, ele perguntou: “Gotamī, por que razão você está do lado de fora da entrada, seus pés estão descalços e sujos e seu corpo coberto de poeira, você está cansada e chorando de tristeza?” Mahāpajāpatī Gotamī respondeu: “Ó venerável Ānanda, neste caminho de estudo e disciplina, as mulheres não obtêm a autorização para deixar a casa, tornando-se sem-teto para treinar no caminho.” O venerável Ānanda disse: “Gotamī, você apenas espere aqui, vou me aproximar do Buda e falar com ele sobre esse assunto.” Mahāpajāpatī Gotamī disse: “Que então seja, venerável Ānanda.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §15-18)

A versão do Kullavagga é mais sintética, mas traz essencialmente os mesmos elementos:

E o venerável Ananda a viu de pé ali, e ao vê-la assim disse para Maha- pagapati: ‘Por que ficas tu aí, do lado de fora da varanda, com pés inchados e cobertos de poeira, triste e angustiada, chorando, em lágrimas?’ ‘Em resumo, ó Ananda, o Senhor, o Abençoado, não permite que as mulheres renunciem suas casas e adentrem o estado de sem-teto sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Tathagata.’ 3. Então o venerável Ananda subiu até onde o Abençoado estava, curvou-se diante do Abençoado, e sentou-se ao lado. E, ao sentar-se, o venerável Ananda disse ao Abençoado: (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §8-10)

A primeira questão a ser abordada corresponde à aparência de Mahāpajāpatī. Não que se espere que após fazer a pé uma viagem longa como a que fez, sem condições adequadas de repouso, vivendo de esmolas que conseguia no caminho, ela não se apresentasse cansada. Mas, quando os textos dizem especificamente que está

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coberta de poeira, o que se deseja comunicar é que ela não tem condições para se tornar uma monja, que não irá persistir no Caminho.

A razão da poeira também aparece regularmente na descrição padrão de seguir adiante, segundo a qual viver em casa é um caminho de poeira. Outra ocorrência de poeira faz parte da descrição usual da entrada na corrente. O “olho do Dharma” que surge nesta ocasião é qualificado como livre de poeira, expressão que, de acordo com o comentário Pāli, deve ser entendida como referência ao pó da luxúria sensual, rāga, etc. (ANĀLAYO, 2016, p.62-63. Trad. nossa89. Grifo no original)

Em vários momentos o Buda utiliza a metáfora da poeira para descrever a respeito das faltas dos seres e da propensão para alcançarem o completo despertar; o primeiro exemplo é de quando ele, após ter alcançado o despertar, é convencido a ensinar porque “havia pessoas com pouca poeira nos olhos”. Em outra ocasião, a imagem da poeira é utilizada por ele para explicar com um exemplo sobre as faltas que um monge pode ter.

É o caso do monge que, ao ver uma nuvem de poeira, vacila, desmaia, não se fortalece, não pode continuar na vida santa. Declarando sua fraqueza no treinamento, ele deixa o treinamento e volta à vida inferior. Qual é a nuvem de poeira para ele? É o caso do monge que ouve: ‘Naquela aldeia ou cidade ali, há uma mulher ou menina que é bem torneada, bonita, encantadora, dotada da mais complexa aparência de lótus.’ Ao ouvir isso, ele vacila, desmaia, não se fortalece, não pode continuar na vida santa. Declarando sua fraqueza no treinamento, ele deixa o treinamento e volta à vida inferior. Essa, para ele, é a nuvem de poeira. (ŚĀKAYAMUNI, 1998, s/p. Trad. nossa)

Como vemos, descrever Mahāprajāpatī como coberta de poeira não é uma imagem de menor importância. A informação que se deseja passar é de sua falta de capacidade para entrar no caminho, não só ela, mas as quinhentas que a seguem, pois todas estavam cobertas de poeira. A forma de desmerecer a marcha das mulheres continua, pois, além disso, adiciona-se ao fato de estar coberta de poeira, ela se encontrar chorando. Um dos possíveis argumentos para o não estabelecimento da ordem monástica feminina é que as condições na Índia seriam duras demais para que as mulheres Śakyā suportassem, então parar e ficar chorando seria outra forma de afirmar que a vida de renunciante não seria adequada à madrasta do Buda, sendo mais

89 The motif of dust also comes up regularly in the standard description of going forth, according to which living at home is a path of dust. Another occurrence of dust forms part of the usual description of stream-entry. The “eye of the Dharma” that arises on this occasionis qualified as being free from dust, an expression that according to the Pāli commentary should be understood as referring to freedom from the dust of sensual lust, rāga, etc

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um elemento para compor a descrição de que esta “vida santa” não é própria para as mulheres.

Desnecessário dizer que chorar é exatamente o oposto da compostura esperada de um monge bem comportado. [...] Assim, Mahāprajāpatī Gautamī é descrita como chorando copiosamente, o retrato negativo evidente na descrição de sua aparência suja. Em suma, sua condição física empoeirada e seu choro combinam-se em mostrar que pertencem à vida doméstica, em vez [de pertencer] aos que saíram. (ANĀLAYO, 2016, p.63-64. Trad. nossa90)

Após desqualificar Mahāprajāpatī, há ainda a forma como ela solicitou a ajuda de Ānanda. Colocando de forma passiva o pedido, onde ela apenas relata o que aconteceu, ou seja, dizendo que veio pedir ao Buda a formação da comunidade monástica feminina, mas que recebeu uma negativa em resposta, partindo do atendente do Buda a ideia de intervir em nome das mulheres para a fundação da comunidade feminina. Contudo, não é em todas as versões que isso é colocado desta forma: nas versões Mahāsāṃghika-Lokottaravāda e Mahīśāsaka parte da madrasta o pedido para que ele intervenha em prol das mulheres, mostrando o desejo e persistência dela em ter seu pedido atendido.

Essas duas versões [Mahāsāṃghika-Lokottaravāda e Mahīśāsaka] retratam Mahāprajāpatī Gautamī com mais agilidade, na medida em que ela mesma é a pessoa que concebe a ideia de que Ānanda poderia atuar como intermediário. (ANĀLAYO, 2016, p.65. Trad. nossa91)

No primeiro texto o Mahāsāṃghika-Lokottaravāda, Mahāprajāpatī não permanece na posição passiva chorando na porta. Ela solicita ao atendente do Buda para que ele intervenha, inclusive detalha seu desejo:

Mahāsāṃghika-Lokottaravāda: [Mahāprajāpatī Gautamī disse]: “Nobre Ananda, seria bom se você pudesse fazer um pedido ao Abençoado para que as mulheres pudessem obter a saída e a ordenação mais alta, o estado de ser monja, no ensino e na disciplina declarados pelo Tathagata.” (ANĀLAYO, 2016, p.65. Trad. nossa92)

90 Needless to say, crying is quite the opposite of the composure to beexpectedfrom a well-behaved monastic.[...] Thus for Mahāprajāpatī Gautamī to be described as crying completes the negative portrayalevident in the description of her dirty appearance.In short, her dusty physical condi-tionand her crying combine in showingher as belonging to the house-hold life,instead of amongthose who have gone forth. 91 Whereas in these versions Ānanda conceives of the idea to intervene on his own, in the remaining two versions he instead does so at the suggestion of Mahāprajāpatī Gautamī 92 Mahāsāṃghika-Lokottaravāda:[Mahāprajāpatī Gautamī said]: “Noble Ānanda, it would be good if youcould make a requesttothe Blessed One so that women could obtain the going forth andthe higher ordination, the state of being a nun, in the teaching and discipline declared by the Tathāgata.”

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O pedido Mahīśāsaka é mais simples, contudo não menos importante, principalmente porque, neste caso, o pedido não é feito apenas pela madrasta do Buda, mas pelo grupo que a seguia.

Mahīśāsaka: [Mahāprajāpatī Gautamī e suas seguidoras disseram]: “Desejamos que você relate isso em nosso nome, para que nossa aspiração seja obtida.” (ANĀLAYO, 2016, p.65. Trad. nossa93)

Atuando como intermediário, portanto, ao entrar para conversar com o Buda, Ānanda segue o protocolo de se aproximar, e questiona a respeito das mulheres entrarem no Caminho. Na versão do Discurso para Gotamī, o atendente repete a fórmula que a madrasta havia feito, questionando inclusive a respeito da capacidade das mulheres de alcançarem realizações. E da mesma forma como acontece com Mahāprajāpatī, o Buda nega a entrada das mulheres na comunidade.

Então, o venerável Ānanda se aproximou do Buda, homenageou com a cabeça aos pés dele e, segurando as mãos unidas, disse: “Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do recluso? Por essa razão, podem as mulheres, neste caminho, serem ensinadas e disciplinadas para deixar a vida de família, tornar-se uma sem-teto para treinar no caminho?” O Abençoado respondeu: “Espere, espere, Ānanda, não tenha esse pensamento, que neste caminho de instrução e disciplina, as mulheres deixam a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §19-20)

No excerto do Kullavagga, é dado ênfase na situação de Mahāprajāpatī, de tal forma a reforçar que a vida de renunciante sem-teto não é para ela. Como ela, nesta versão, já havia feito o pedido por três vezes, Ānanda descreve esta situação da madrasta ao Buda e faz o pedido três vezes, e por três vezes é refreado.

‘Veja, Senhor, Maha-pagapati a Gotami, está em pé lá fora, na sacada da entrada, com pés inchados, cobertos de poeira, triste, angustiada, chorando, em lágrimas, por conta de o Abençoado não permitir que mulheres renunciem suas casas e adentrem o estado de sem-teto sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Abençoado. Seria sensato, Senhor, se as mulheres tivessem permissão para fazer como ela deseja.' ‘Basta, Ananda! Não deixe que isso te agrade, que as mulheres fossem permitidas disto.' [E uma segunda e terceira vez Ananda fez o mesmo pedido com as mesmas palavras e recebeu a mesma resposta.] (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §11-13)

93 Mahīśāsaka:[Mahāprajāpatī Gautamī and her followers said]: “We wish you to report this on our behalf, so that our aspiration will be obtained.”

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A questão de repetir o pedido por três vezes conforme explicado anteriormente é uma forma que a tradição coloca para um desejo ardente por algo e a formação de uma resposta definitiva. Esta seria uma forma de mostrar que o Buda não tinha a intenção de formar a comunidade feminina.

Da mesma forma como o costume ao solicitar ensinamentos religiosos de um é fazer a solicitação três vezes, do mesmo modo, quando Pajapati e Ananda estão solicitando o endosso da ordem das monjas, o costume de fazer o pedido três vezes prevalece. Assim, o pedido feito por três vezes por Pajapati e Ananda é apenas uma convenção, de acordo com a tradição, esse é o único caso no qual o Buda é persuadido por argumentos É altamente duvidoso afirmar que o Buda mudou de ideia dessa vez, embora ele não tenha realmente querido ou aprovado um pedido para [que as mulheres se tornassem] pedintes de esmolas. (OWEN, 1998, p16. Trad. nossa94)

Um Lama é alguém que, pelo reconhecido saber, explica sobre a doutrina do Buda. O costume de pedir por três vezes aparece já nos primeiros textos canônicos e persiste até os tempos atuais. Sobre as palavras de Owen, ele nos leva à questão de que precisamos duvidar desta interpretação das negativas do Buda, porque se ele tivesse realmente negado o pedido por seis vezes seria, conforme colocado pela tradição, impossível que ele mudasse de ideia.

Isso [a negativa por seis vezes do pedido, sendo três de Mahāprajāpatī e três de Ānanda] contrasta com o relato em todas as versões que o Buda finalmente aderiu ao pedido de Mahāprajāpatī Gautamī. Esse resultado final faz com que uma rejeição total no início seja uma apresentação menos provável, tornando provável que as primeiras versões da narrativa tenham apenas uma única recusa, como ainda é o caso das versões de Dharmaguptaka e Haimavata. Nessa suposição, o aumento de solicitações nas outras versões refletiria uma tendência evidente em várias formas em todas as histórias de fundação, ou seja, apresentar Mahāprajāpatī Gautamī e sua missão sob uma luz negativa. (ANĀLAYO, 2016, p.53-54. Trad. nossa95)

Se unirmos estas negativas com o fato de ela estar de cabeça raspada e vestindo as vestes monásticas, percebemos que, o Discurso para Gotamī e o Kullavagga

94 Just as the custom when requesting religious teachings from a lama is to make the request three times, so when Pajapati and Ananda are requesting the Buddha's endorsement of the nuns' order, the custom to make the request three times prevails. Thus, Pajapati's and Ananda's thrice-enacted request is merely a convention, in accordance with tradition, this is the only instance of the Buddha's being over-persuaded in argumen. It is highly dubious to assert that the Buddha changed his mind this once even though he did not actually want or approve of an order for almswomen. 95 This contrasts with the report in all versions that the Buddha eventually did accede to Mahāprajāpatī Gautamī’s request. This final outcome makes a total rejection at the outset a less probable presentation, making it likely that earlier versions of the narrative had only a single refusal, as is still the case for the Dharmaguptaka and Haimavata versions. On this assumption, the increase of requests in the other versions would reflect a tendency evident in a number of ways in all foundation histories, namely to present Mahāprajāpatī Gautamī and her mission in a decidedly negative light.

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reforçam a impressão de que o Buda nega o pedido e não tem a intenção de não permitir a formação da comunidade feminina. Contudo, se nos atentarmos às “partes não ditas”, podemos considerar como fortes as evidências de que o Buda não meramente negou à Mahāprajāpatī que esta renunciasse à vida de família, mas sim que ele tenha instruído que ela praticasse sem deixar o lar, porque as condições não eram seguras. Prosseguindo na tentativa de obter a autorização para fundação da comunidade feminina, Ānanda aparece. Na versão do Kullavagga, ele pergunta diretamente se as mulheres são capazes de alcançar o completo despertar. Porém, na versão do Discurso para Gotamī, o Buda explica a Ānanda as razões para sua recusa, afirmando a não durabilidade deste caminho para elas e trazendo algumas metáforas nesta explicação. Desta forma no Discurso temos:

“Ānanda, se nesse caminho de instrução e disciplina as mulheres deixarem a vida em família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então, esta vida santa, por conseguinte, não durará muito. Ānanda, assim como uma casa com muitas mulheres e poucos homens, essa casa pode se desenvolver e florescer?” O venerável Ānanda respondeu: “Não, Abençoado.” O Buda disse: “Da mesma forma, Ānanda, se nesse caminho de instrução e disciplina as mulheres deixarem a vida em família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então essa vida santa não durará muito. “Ānanda, exatamente como um campo de arroz ou um campo de trigo em que as ervas daninhas crescem, esse campo certamente caminhará para a ruína. Da mesma forma, Ānanda, se nesse caminho de instrução e disciplina as mulheres deixarem a vida em família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então essa vida santa, não durará muito.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, § 21-25)

Quando nos deparamos com estas metáforas, temos duas interpretações possíveis. A primeira é a que coloca a mulher numa situação onde ela se torna um obstáculo. Na outra, são as condições de vida que são os obstáculos. Por isso que, na primeira metáfora na primeira forma de interpretação, pode-se entender que se trata de um impedimento para as mulheres, porque assim como uma casa em uma sociedade onde somente os homens trabalham, tendo muitas mulheres e poucos homens tal casa passará por necessidade e não conseguirá se desenvolver, da mesma maneira as mulheres não conseguiriam se desenvolver no caminho sozinhas. Na segunda metáfora, sobre a erva daninha, podemos pensar nas mulheres como sendo estas pragas das plantações, comprometendo o florescimento do dharma.

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É possível uma outra visão do que está dito. Como já demonstrado, a situação da mulher na Índia era problemática e manter a segurança delas seria um problema, porque ao se agrupar, sem a devida proteção, elas corriam o risco de ataques e estupros. Nesse sentido, na metáfora do campo, o estupro é a erva daninha que impede o florescimento do dharma na mulher, porque o estupro é uma violência que prejudica e se torna um obstáculo.

Anālayo explica que para Mahāpajāpatā Gotamī e suas seguidoras saírem para o estado de renunciante seria de fato comparável a uma casa com muitas mulheres e poucos homens, que pode ser facilmente atacada por ladrões. A possibilidade de ser estuprada seria de fato semelhante à colheita madura de arroz ou cana-de-açúcar que é subitamente atacada por uma doença. (ANĀLAYO, s/d)

Mesmo com a negativa, e com a explicação do Buda de sua negativa para Ānanda, ele não desiste e tenta fazer o pedido de outra forma. Neste caso ele tenta questionar primeiramente a respeito da capacidade das mulheres de alcançarem o completo despertar. Neste caso o Buda responde de forma simples e direta, afirmando que elas são capazes de alcançar o completo despertar. Depois, Ānanda lembra o Buda dos débitos que ele possui com sua madrasta, uma vez que a mãe do Buda faleceu quando este ainda era um recém-nascido, e foi Mahāpajāpatī que o alimentou, criou e educou. Mas a narrativa traz uma resposta que denota que o Buda não precisava ser lembrado da capacidade das mulheres de alcançar o despertar nem muito menos da bondade da sua madrasta (MOHR & TSEDROEN, 2010).

Da mesma forma que a apresentação no Dakkhiṇāvibhaṅga-sutta e seus paralelos, Ananda ressalta que Mahāprajāpatī Gautamī criou o Buda com seu próprio leite quando sua mãe faleceu. Em resposta, o Buda esclarece que ele já pagou sua dívida de gratidão por ela. (ANĀLAYO, 2016, p73. Trad. nossa96)

O Buda não apenas afirma não precisar ser lembrado, mas também indica que já retribuiu a bondade. No discurso para Gotami ele explica o pagamento da bondade que ele teve para com ela:

“Ānanda, por minha causa, Mahāpajāpatī Gotamī obteve o refúgio no Buda, o refúgio no Dharma e o refúgio na comunidade dos monges; ela é livre de

96 Similarly to the presentation in the Dakkhiṇāvibhaṅga-sutta and its parallels, Ānanda points out that Mahāprajāpatī Gautamī raised the Buddha with her own milk when his mother had passed away. In reply, the Buddha clarifies that he hasalreadysettled his debt of gratitude to her.

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dúvidas no que diz respeito a considerar os quatro tipos de discípulos, que podem ser monges ou leigos, masculinos ou femininos. “Ānanda, se porque uma pessoa pode tomar refúgio no Buda, refúgio no Dharma e refúgio na comunidade dos monges, tornando-se livre de dúvidas em relação às Três Joias e em relação a Dukkha, seu surgimento, sua cessação e o caminho para sua cessação; ela se torna realizada nos ensinamentos, mantendo os preceitos morais, desenvolvendo amplamente o aprendizado, sendo realizada na generosidade e alcançando a sabedoria; ela se abstém de matar, abandonando o matar, se abstém de tomar o que não é dado, abandona o tomar o que não é dado, se abstém de má conduta sexual, abandona a má conduta sexual, se abstém de falar mentira, abandona o discurso falso e se abstém de bebidas intoxicantes, abandona os intoxicantes; então, Ānanda, é impossível retribuir a bondade de tal pessoa, mesmo que, para a vida inteira, alguém o ajudasse com vestes e cobertores, bebidas e alimentos, camas, medicamentos e todos os outros requisitos. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, § 27- 28)

Neste parágrafo a dúvida a respeito de que Gotamī era ou não uma discipula é pacificada. É pelo refúgio que leigos e leigas, monges e monjas se tornam adeptos do budismo. A forma como foi construído o relato indica uma praticante que não é iniciante. O parágrafo começa com o refúgio nas Três Joias, depois são descritas as Quatro Verdades Superiores apontadas na relação com Dukka, em seguida é descrito como “realizada nos ensinamentos”, o que é um passo posterior que requer que a pessoa estude, reflita e pratique os princípios de tal forma que a habitualidade seja invertida, sendo uma forma breve de descrever o caminho óctuplo. Por fim, são apresentados os preceitos de refúgio, não matar, não tomar o que não lhe foi dado, não ter má conduta sexual, não falar mentiras e não ingerir intoxicantes. Estes princípios são apresentados no dueto de abstenção e abandono. A abstenção é o primeiro passo, quando o praticante faz um esforço para se afastar das condutas, mas ele sente desejo por elas. Abster-se é um próximo passo, no qual após compreender, refletir e meditar, estas condutas são abandonadas, se o desejo por elas surgir, ele não durará muito.

Outro ponto a ser ressaltado no parágrafo refere-se à explicação sobre o Buda já ter pago sua dívida de gratidão por Mahāpajāpatī, que é utilizada no Sermão Dakkhiṇāvibhaṅgasuttaṁ (MN 142), onde ele (o Buda) explica como fazer oferendas e detalha que a tomada de refúgio é uma ação impagável com ações.

Acerca disso, Anālayo continua, nas explicações a respeito do papel da madrasta do Buda.

Em contraste com as versões pesquisadas até agora, no discurso de Theravāda, o Buda não esclarece de que maneira ele pagou sua dívida de gratidão. Dessa maneira, o tópico da bondade de Mahāprajāpatī Gautamī em

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relação ao Buda permanece sem resposta. Não é difícil reconciliar o fato de que Ānanda traz esse tópico com o Dakkhiṇāvibhaṅga-sutta da mesma tradição , uma vez que aqui é o próprio Ānanda que reconhece que o Buda já havia liquidado sua dívida de gratidão por ela. (ANĀLAYO, 2016, p.74. Trad. nossa97)

Ou seja, no Sutta citado por Anālayo, o Buda esclarece que alguém que tenha tomado refúgio no Buda, no Dharma e na Saṃgha, o que deixa subentendido que Gotamī tenha feito isso antes do pedido para formar a comunidade feminina, fez uma ação que conduz ao Caminho e que, por este motivo, é uma ação que não é fácil de ser paga com serviços, uma vez que a dívida que ela toma pela pessoa que a leva a tomar este refúgio é imensurável. (ŚĀKAYAMUNI, 2013)

Este é o único argumento levantado por Ananda que é comum nas diferentes versões [a capacidade das mulheres de alcançarem a iluminação]. É também um argumento que faz sentido no contexto atual, conforme destacado pela formulação no relato Mahīśāsaka. Se as mulheres que saíram são capazes de alcançar o despertar, por que o Buda não permite que elas saiam? Em contraste, a ideia de que o Buda deveria formar uma ordem de monjas com um senso de gratidão à mãe adotiva, um débito de gratidão que ele já quitou, é uma apresentação narrativa consideravelmente fraca. (ANĀLAYO, 2016, p.79. trad. nossa98)

MM. Não sem um custo para o atendente do Buda, que dentre outras questões, é punido no primeiro Concílio budista. Segundo Chakravarti, a defesa da causa das mulheres por Ānanda

foi uma das acusações contra ele no Primeiro Concílio realizado em Rajagaha. Com toda humildade, Ananda respondeu que não via nada de errado em fazê-lo, mas, mesmo assim, se o Conselho o considerasse culpado, ele aceitaria sua censura. (CHAKRAVARTI, 1996, p.128. Trad. nossa99)

Desta forma, mesmo com os indícios apresentados de que o Buda tinha permitido a formação da comunidade feminina, a questão versava apenas sobre a saída

97 In contrast to the versions surveyed so far, in the Theravāda discourse the Buddha does not clarify in which way he has settled his debt of gratitude. In this way the topic of Mahāprajāpatī Gautamī’s kindness towards the Buddha remains without a reply. That Ānanda brings up this topic at all is difficult to reconcile with the Dakkhiṇāvibhaṅga- sutta of the same Theravāda tradition, as here it is Ānanda himself who acknowledges that the Buddha had already settled his debt of gratitude to her. 98 This is the only argument raised by Ānanda that is common to the different versions. It is also an argument that makes sense in the present context, as highlighted by the formulation in the Mahīśāsaka account. If women who have gone forth are able to reach awakening, why does the Buddha not allow them to go forth? In contrast, the idea that the Buddha should found an order of nuns out of a sense of gratitude to his foster mother, a debt of gratitude he has anyway already settled,isa considerably less straight for ward narrative presentation. 99 Subsequently his championing o f the cause o f women was one of the charges against him at the First Council held at Rajagaha. In all humility Ananda replied that he saw no wrong in duing so, but nevertheless if the Council held him guilty he would accept its censure.

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dessas mulheres do lar para a vida de andarilhas, que estava em questão. Ānanda intervém e consegue que a ordem feminina se iguale à ordem masculina, renunciando inclusive aos lares e à segurança deste para adentrarem no caminho, enfrentando a realidade de sua época, na primeira marcha das mulheres. Isso afirma o potencial para o seu Despertar, tema que será abordado a seguir.

2.6 O potencial das mulheres de alcançar o despertar.

A questão abordada no tópico anterior corresponde a uma abertura para discussão a respeito da capacidade das mulheres de atingirem o completo despertar. Capacidade esta que teve no silêncio a resposta do Buda quando arguido por Gotamī, mas que tem uma resposta quando questionado por Ānanda. Contudo, a história das monjas, registrada no Therīgāthā e no Teri-apadana, preservaram para a posteridade os feitos destas guerreiras, que venceram os preconceitos, treinaram arduamente e alcançaram o completo despertar, inspirando e ensinando outras mulheres.

Boucher ressalta que algumas das mulheres que viveram durante a vida do Buda alcançaram a libertação ou iluminação; seus nomes e realizações foram registrados. Várias delas se tornaram professoras poderosas, liderando grandes grupos de renunciantes quando seus atos de compaixão e eloquência atraíram mais mulheres à ordem. (BOUCHER, 1997)

A dúvida a respeito deste potencial das mulheres se choca com a intenção do Buda em formar uma comunidade monástica feminina desde o início. Os textos Pāli são categóricos em afirmar a necessidade da comunidade quádrupla na dispensação dos ensinamentos do Buda. Ou seja, para que uma tradição possa permanecer viva, os quatro tipos de seguidores, monges, monjas, leigos e leigas, precisam estar atuantes.

De acordo com o Lakkhana-Sutta, também encontrado no Dīgha-nikāya, as marcas das rodas nas solas dos pés do Buda prediziam o destino de ser cercado por essas quatro assembleias [monges, monjas, leigos e leigas]. (DN III 148). Isso torna a posse de quatro assembleias um aspecto integrante, de fato indispensável, do ministério do Buda. Um discurso no Aguttaranikaya destaca a condição bastante infeliz de renascer em um “país de fronteira”, que é um país onde as quatro assembleias de discípulos budistas não podem

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ser encontradas (AN IV 226). (ANĀLAYO, s/d, p.13. Trad. nossa100Grifo no original)

Descrever como uma condição infeliz é uma forma de mostrar que aquele que nasce nestas condições não pode se desenvolver plenamente no caminho porque lhe faltam condições. O é o quarto dos cinco Nikāya da coleção do Sutta Pitaka, no texto citado por Anālayo. Esta falta de condição também é apresentada no LamRim ChenMo, Grande Tratado dos Estágios do Caminho, do Lama tibetano Lobsang Dragpa, muitos séculos depois, ao descrever as condições para o pleno desenvolvimento no caminho. Em seu texto, Tsongkhapa apresenta de forma similar essa questão: nascer em uma região sem os quatro grupos de seguidores é considerado um nascimento num país de fronteira, algo desafortunado. Daí se compreende que na tradição budista é interpretado que sem as quatro assembleias não podemos nos desenvolver plenamente.

Em suma, pode haver pouca dúvida de que os discursos em Pāli consideram as quatro assembleias de fundamental importância para a prosperidade da dispensação do Buda, sāsana. Sua criação é vista como um aspecto integral da missão do Buda e forma uma marca distintiva da tradição budista. Isso, por sua vez, implica que qualquer tradição budista viva que se oriente nos valores consagrados no cânone Pāli precisa garantir que essas quatro assembleias existam e que cada uma dessas assembleias tenha a oportunidade de desenvolver sabedoria, treinar-se bem e desta forma, se tornar autoconfiante. (ANĀLAYO, s/d, p.14. Trad. nossa101. Grifo no original)

Consequentemente, não há dúvidas sobre o reconhecimento do potencial das mulheres por parte do Buda, desde o início. E o pleno reconhecimento dessa capacidade foi também registrado em versos:

Alguém que tem esse veículo [dharma]- Seja uma mulher ou um homem - Possui, por meio deste instrumento, Atração para perto do Nibbāna. (ŚKAKYAMUNI, 2009, s.p.)

100 According to the Lakkhana-sutta, also founq in the Digha-nikaya, the wheel-marks on the soles of the Buddha's feet foretold hjs destiny of being surronded by these four assemblies. (DN III 148). This makes possession of four assemblies an integral, in fact indispensable, aspect of the Buddha's ministry. A discourse in the Anguttara•nikaya highlights the rather unfortunate condition of being reborn in a “border country”, which is a country where the four assemblies of Buddhist disciples cannot be found (AN IV 226). 101 In sum, there can be little doubt that the discourses consider the four assemblies to be of fundamental importance for the thriving of the Buddha's dispensation, the sāsana. Their coming into being is seen as an integral aspect of the Buddha's mission and forms a distinctive mark of the Buddhist tradition. This in turn implies that any living Buddhist tradition that orients itself on the values enshrined in the Pali canon needs to ensure that these four assemblies are in existence, and that each of these assemblies has the opportunity to develop wisdom, to train themselves well, and in this way to become self-confident.

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Cantando assim a capacidade das mulheres como igual à dos homens, o Buda expõe sobre o potencial de ambos, homens e mulheres, de atingirem o completo despertar. Os exemplos são vastos – o Buda também descreveu e expôs a capacidade das monjas, e não de uma ou duas, não de cem nem de duzentas, mas registrando que foi uma quantidade realmente grande de mulheres que alcançou as realizações descritas no Mahā-Vacchagotta Suttaṃ (MN 73):

[Vacchagotta, falando sobre os discípulos do Buda] “[...] Mas tem a excelente Gotama, mesmo uma monja que é discípula e que, pela destruição das corrupções, tendo percebido o aqui e agora por seu próprio conhecimento superior, a liberdade da mente e a liberdade através da sabedoria intuitiva, que não têm corrupções, entrando na tolerância que está nelas?” [Buda responde] “Não apenas cem Vaccha, nem duzentas, trezentas, quatrocentas ou quinhentas, mas muito mais são aquelas monjas, discípulas minhas, que pela destruição das corrupções, tendo o aqui e agora realizado por seu próprio conhecimento superior, a liberdade da mente e a liberdade através da sabedoria intuitiva, que é impenetrável, entrando nelas, permanecem nelas.” (ŚĀKAYAMUNI, 2017, s.p. Trad. nossa102)

Face às questões levantadas podemos concluir os pontos pelos quais a capacidade das mulheres foram colocada em questão, uma vez que os indícios mostram supressão nos relatos de que o Buda tenha criado a ordem feminina, mas recusado que elas se tornassem sem-teto devido às condições que teriam de enfrentar. Outras questões são levantadas como forma de resumir a aparente relutância do Buda.

Considerando a singular mudança de coração do Buda, por que ele inicialmente hesitou em permitir que as mulheres entrassem na ordem monástica? Os estudiosos destacaram vários fatores para interpretar e elucidar essa relutância inicial e condicional aceitação. Por exemplo, Horner103 estabelece quatro distintas especulações para explicar porque o Buda “se conteve”. Estes são: 1) a aparência de hesitação estava nas mãos dos monges-editores dos textos; 2) o Buda, um produto de seu próprio tempo e cultura, retido por conta de sua própria visão tendenciosa de mulheres; 3) o Buda hesitou em considerar como essa nova ordem bhikkhuni e, portanto, a religião budista em geral, seria recebida pelo público; e 4) ele hesitou por contemplar potencial queda da ordem, temendo que a “constante intercomunicação entre as duas ordens exporia ambos pedintes masculinos e pedintes femininos a sofrerem mais tentações”. Além disso, Yuichi Kaiyama104 especula: “Gautama hesitou em permitir a admissão de mulheres na Ordem, não porque as mulheres não

102 “Let be the good Gotama. Has the good Gotama even one monk who is a disciple and who, by the destruction of the cankers, having realised here and now by his own super-knowledge the freedom of mind and the freedom through intuitive wisdom that are cankerless, entering on them is abiding in them?” “Not merely a hundred, Vaccha, nor two hundred, three hundred, four hundred nor five hundred, but far more are those monks, disciples of mine, who, by the destruction of the cankers, having realised here and now by their own super-knowledge the freedom of mind and the freedom through intuitive wisdom that are cankerless, entering on them are abiding in them.” 103 HORNER, I. B.. Women Under Primitive Buddhism: Laywomen and almswomen, New York: E. P. Dutton and Company. 1930 104 KAJIAMA, Yuichi. Women in Buddhism, Eastern Buddhist XV: 2: p53-70. 1982

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poderiam alcançar a iluminação, mas porque ele teve que deliberar sobre problemas que poderiam surgir entre a ordem dos monges e das monjas, e entre a ordem monástica e a sociedade leiga” (OWEN, 1998, p17. Trad. nossa105)

A respeito das especulações apontadas por Owen. A primeira, que se refere aos monges editores, foi amplamente debatida no primeiro capítulo do presente trabalho, detalhando o interesse em obscurecer as mulheres. No presente capítulo, suspeitamos destes interesses nos indícios de supressão de partes do texto. Esta questão tornar-se- á mais evidente no capítulo três, onde são apontadas as inconsistências nos Gurudharmas. A segunda, na qual o Buda seria um produto do seu tempo, é um argumento frágil, uma vez que ele questionou as bases de sustentação da organização social que justificava o sistema de castas. O Buda reformulou conceitos basilares da sociedade, por isso resumir suas ações como um “produto do seu tempo” é negligenciar este histórico. O terceiro argumento, da hesitação ser devido à forma como o budismo seria recebido pelo público, é uma questão que pode ter ocorrido. Como dito previamente, as disputas eram resolvidas ao fio da espada. Questionar as bases da organização social de castas era um grande passo, igualar homens e mulheres era outro passo importante. Por isso que o Buda precisava estruturar a comunidade de tal forma que esta decisão não colocasse a doutrina em risco. Por fim, o quarto argumento, que seria de contemplar a potencial queda da ordem devido às tentações106, também é um argumento frágil. Como pedintes, a comunidade monástica masculina não estava isolada e constantemente estava em contato com mulheres leigas, ou seja, sujeitos a tentações. Quando da fundação da comunidade feminina ela ficou ao mesmo tempo

105 Considering the Buddha's singular change of heart, why did he initially hesitate to permit women entrance into the monastic order? Scholars have highlighted several factors to interpret and elucidate this initial reluctance and conditional acceptance. For example, Horner sets forth four distinct speculations to account for why the Buddha “held back.” These are: 1) the appearance of hesitation lay in the hands of monkeditors of the texts; 2) the Buddha, a product of his own time and culture, held back on account of his own biased view of women; 3) the Buddha hesitated to consider how this new bhikkhuni order, and thus the Buddhist religion at large, would be received by the public; and 4) he hesitated in contemplation of the potential downfall of the order, fearing that the “constant intercommunication between the two orders would expose both almsmen and almswomcn to greater temptations”. Further, Yuichi Kajiyama speculates, “Gautama hesitated to permit admission of women in the Order, not because women could not attain enlightenment, but because he had to deliberate on problems which might arise betwfen the order of monks and that of nuns, and between the Buddhist Order and the lay society” 106 A tentação, que é um impulso para uma prática de alguma coisa censurável ou não recomendável, refere-se especificamente ao desejo sexual. Importante ressaltar que o celibato no budismo não é mantido por uma mera imposição, uma luta contra a força de vontade porque o sexo seria maléfico. Monges e monjas são celibatários porque compreendem que nascemos em um mundo onde somos escravos do desejo sexual, que embora sexo seja muitas vezes é prazeroso, é um prazer transitório, e que rapidamente a alegria do ato sexual é substituída pelo desejo de realizar um novo ato. Percebendo isso, o monge e a monja treinam para ter controle sobre o desejo, para não ser mais escravo dele. Por saber quão intenso é este desejo no nosso mundo, o monge sabe que se ele for capaz de controlar este impulso ele será capaz de lutar contra as demais amarras do saṃsāra.

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junta e separada. Junta porque recebia instruções e ensinamentos ao lado dos homens ou eram instruídas por professores, mas separadas porque não coabitavam, as tarefas do cotidiano não eram realizadas em conjunto, por isso não colocava a comunidade sujeita a “mais tentações”.

Foram levantados vários fatores das possíveis razões de porquê o Buda teria negado a fundação da comunidade monástica feminina. A possibilidade de que ele tenha permitido a fundação da ordem, mas determinado que elas praticassem protegidas nos lares é uma realidade plausível, principalmente em face do não questionamento das mulheres que seguiram em marcha atrás do Buda estarem vestidas como monges com suas cabeças raspadas, além de questões relativas ao interesse em desqualificar a ordem das monjas, colocando-as em posição inferior.

2.8 O potencial em marcha.

A primeira marcha das mulheres da história teve seus registros suprimidos de parte considerável dos textos canônicos, numa tentativa de diminuir a sua luta e justificar as opressões posteriores a que foram submetidas as monjas. Isso se deu minimizando o pedido de Mahāprajāpatī, maximizando a negativa do Buda e por fim, colocando a fundação da comunidade feminina na dependência da interferência do atendente pessoal do Buda, Ānanda, como fundamental, ou seja, colocando a fundação na mão de um homem e não na força das mulheres. Também foi possível vermos na forma tradicional de contar a história a retirada do protagonismo das mulheres, que efetivamente vestiram as vestes cor de açafrão, seguiram o Buddha a pé por duzentos quilômetros, suportaram as adversidades para mostrar a sua força e com isso conseguir estabelecer uma comunidade feminina monástica e o direito de adentrar o caminho como os homens o fizeram.

O capítulo abordou estas passagens principais ao discutir a respeito da busca das mulheres pela libertação, descrevendo e refletindo a respeito das visões androcêntricas e patriarcais às quais os textos foram submetidos. Depois foi detalhado o pedido de Mahāprajāpatī, incluindo os detalhes deste pedido e os indícios de

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supressão de partes no texto. As mulheres seguiram em sua luta tendo raspado seus cabelos e demonstrado sua força, e com a intervenção de Ānanda, fundaram a ordem. Tudo isso culmina com uma breve discussão a respeito do potencial para o completo despertar das mulheres.

O próximo capítulo irá abordar e pormenorizar os Gurudharmas, os princípios a serem respeitados, que segundo as versões que estamos utilizando no estudo e fundamentam a tradição Pāli, teriam sido proclamados pelo Buda, como forma de permitir a fundação da comunidade feminina.

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3. Os princípios a serem respeitados. A raiz da controvérsia.

Uttarā. Bem, eu me disciplinei de fato, Em fala e também em pensamento, extasiada e intencional. O desejo com a raiz do desejo foi superado; Serena sou eu agora; Eu conheço a paz do Nibbana. Therīgāthā Verso XV

O que são estes princípios a serem respeitados, cujos estudiosos são unânimes em afirmar como ferramenta de opressão das mulheres dentro do budismo? Para responder a esse questionamento, precisamos começar retomando as razões que despertam o interesse delas em deixar suas vidas domésticas. Pensemos na primeira monja, Mahāprajāpatī Gautamī, madrasta do Buda, casada com o Raja Śuddhodana, vivendo em um pequeno palácio, com conforto, serviçais, comida farta e bem preparada, um local abrigado dos perigos, protegido do clima. Mas todo este suposto bem-estar guarda a marca do outro lado da questão, o do papel da mulher nesta sociedade. Uma vida que deveria ser vivida a serviço do homem ao qual ela estivesse vinculada, seja seu pai, seu marido ou, na ausência desses, seu filho mais velho. Uma vida condenada a ser tratada como propriedade, sem direitos, sem perspectiva.

Quando o Buda professa sua doutrina e mostra um horizonte onde o sofrimento deixa de ser justificado para ser combatido, fornecendo ferramentas para isso, desconstruindo o sistema de opressão, o interesse é despertado em muitos – e por que não o seria nas mulheres? Assim, elas buscam formas de deixar o lar e adentrar ao caminho, uma conquista que passou por estradas tortuosas, onde elas precisaram demonstrar sua força de vontade e capacidade para deixarem o conforto em busca deste ideal.

Os registros canônicos marcaram uma opressão, registraram e enfatizaram a recusa inicial do Buda, guardam indícios de supressão e adição de partes colocando o cânone em questão. Questões que somente contemporaneamente estão sendo levantadas.

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Vamos explorar os oito princípios a serem respeitados, os Gurudharmas, comparando duas versões dos mesmos: a presente no Discurso para Gotamī e a presente no Excerto do Kullavagga. Nosso objetivo é dialogar sobre suas diferenças e formas de interpretação, sem esquecer de apresentar os indícios de corrupção dos mesmos.

Concluímos o presente capítulo com uma reflexão a respeito das ambiguidades que o Budismo enfrenta no universo feminino. Não exaurindo o tema, mas apresentando uma breve reflexão a respeito dos desafios e incoerências que os Gurudharmas são e representam para a história da comunidade dos pedintes.

3.1 Deixando a casa.

Havia interesse das mulheres de deixarem a vida em família. Isso ocorre devido à existência de uma mulher ser descrita como centrada em torno dos homens, que deveria ser adornada por um filho e sem uma rival. Esperava-se idealmente que as mulheres fossem como escravas, por isso deveriam ser obedientes a seus maridos. Elas estavam sob o controle de vários organismos como o rei, o seni (guilda) ou puga (companhia). As mulheres que levaram suas vidas como filhas, esposas e mães foram, portanto, claramente sujeitas à autoridade dos homens (CHACRAVARTI, 1996).

Sendo propriedade do homem ao qual ela estava vinculada, seja pai, marido ou filho, o dever de obediência não só limitava as ações, como impunha condições severas de vida a muitas delas. Direitos hoje assegurados como de não ser estuprada, não ter seus bens confiscados e poder controlar a natalidade eram uma realidade que nem era cogitada na época. Quando analisamos as leis da época a respeito da propriedade da mulher, percebemos que estes direitos se referem ao espólio dela, não sendo um direito que ela poderia exercer. Esta condição de vida está entre as razões que levavam as mulheres a desejarem deixar a vida da casa para adentrarem a vida monástica. Boucher (1997) explica a respeito disso. Nem todas as mulheres eram capazes de seguir este caminho religioso, contudo isso não era empecilho para que elas buscassem a iluminação.

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Fugindo da domesticidade. As primeiras [monjas] eram as mulheres que lutavam para escapar de suas vidas domésticas, que desejavam seguir um caminho religioso, [e várias delas] foram impedidas pelos pais ou maridos. Geralmente, essas mulheres ficavam em casa, aceitando sua servidão e seguindo suas práticas espirituais sozinhas. Muitas vezes, enquanto preparava comida, buscava água ou fazia outras tarefas domésticas, a mulher procurava a iluminação. (BOUCHER, 1997, p77. Trad. nossa. Grifo no original)

Existia nas mulheres a convicção de uma igualdade, um potencial que foi exposto pelo Buda quando de sua afirmação na resposta de Ānanda a respeito do potencial das mulheres alcançarem o completo despertar; ou, como formulado no excerto do Kullavagga, elas podem alcançar o estado de Arhat assim como os homens:

[...] o venerável Ananda disse ao Abençoado: ‘São as mulheres, Senhor, capazes - quando elas tiverem ido para além da vida doméstica e entrado no estado de sem teto, sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Abençoado - são elas capazes de perceber o fruto da conversão, ou do segundo Caminho, ou do terceiro Caminho, ou o estado de Arahat?’ ‘Elas são capazes, Ananda.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §14-16)

Ao admitir esta capacidade das mulheres, permitir seu ingresso na ordem tornou-se inevitável. O Buda havia desconstruído o sistema de castas, com esta ação ele abalava o sistema de organização da sociedade, e despertava nas mulheres a esperança de se libertar do sistema opressor ao qual elas estavam condenadas. Por mais dura que fosse a situação de um (uma) pedinte de esmolas, era uma opção de libertação. Budistas das diversas escolas concordam no potencial das mulheres de realizar o completo despertar. Isso aconteceu no budismo primitivo, e torna-se evidente também no desenvolvimento posterior das escolas.

Do ponto de vista budista Mahāyāna, deve ser complementado aqui que nos Sūtras da Perfeição da Sabedoria (sânscrito Prajñāpāramitāsūtra), um gênero de escrituras budistas Mahāyāna, a sabedoria é chamada de “mãe de todos os Budas”. Iconograficamente, a bodhisattva feminina Prajñāpāramitā incorpora a conclusão da mais alta sabedoria e conhecimento. Já no início do budismo, o Buda ensinou o mesmo caminho para o nirvāṇa para as mulheres e homens. Com o advento do início Mahāyāna no século I a.C., diz-se que todos os seres possuem igualmente “natureza de Buda” (Skt. tathāgathagarba), o potencial para se tornar um Buda. Nesse sentido, todos os seres humanos são iguais, sejam mulheres ou homens. Budistas de todas as tradições concordam que a natureza da mente é a mesma para todos, independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, ideologia política, nacionalidade, origens sociais, propriedade, status de nascimento ou outras distinções. Às vezes, seres sencientes nascem femininos e às vezes masculinos. O conceito de evolução de uma forma inferior como mulher para uma forma superior como homem não existe. Em suma, do ponto de vista

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filosófico budista, a diferença de gênero não é uma questão da mente, mas do corpo e, como todos os outros atributos naturais, o gênero não é uma realidade inerente. (ROLOFF, 2017, p.196. trad nossa107. Grifo no original)

Ter a declaração do potencial feminino para o completo despertar como igual ao potencial masculino foi um marco. Fato tão importante que ficou gravado no cânone e é citado pelos comentadores. A importância deste reconhecimento é tão grande que também é citado o feito de várias mulheres alcançando a libertação.

[...] o Buda reconheceu explicitamente o potencial das mulheres para a iluminação. “Do ponto de vista dos primeiros textos budistas, as mulheres, da mesma maneira que os homens, podem alcançar o objetivo final”. Quando o monge Ananda perguntou ao Buda se as mulheres podem alcançar o caminho do arhat, a quarta e última etapa do desenvolvimento religioso, equivalente a nirvāṇa ou mokṣa (libertação), o Buda declarou claramente: “Elas podem alcançá-lo”. O cânone budista está cheio de histórias de mulheres que durante a vida de Buda se tornaram arhats femininas. (ROLOFF, 2017, p.198, trad nossa108. Grifo no original)

Estes registros encontram-se no Therīgāthā, uma obra de cânticos escritos em versos que relatam a vida que elas levavam, o cotidiano e seus feitos. É possível comparar estes versos com sua contraparte masculina, o Theragāthā, que retratam a vida dos homens, e percebe-se neles uma similaridade, um modo de vida bastante parecido, alcançando feitos similares.

O cânone registra, no entanto, direitos e deveres diferentes para homens e mulheres. Roloff (2017) alerta para as questões culturais envolvidas, e que estas diferenças não devem desmerecer as reformas proporcionadas pelo Buda às suas

107 From a Buddhist Mahāyāna point of view, it should be supplemented here that in the Perfection of Wisdom Sūtras (Skt. Prajñāpāramitāsūtra), a genre of Mahāyāna Buddhist scriptures, wisdom is called the “mother of all Buddhas.” Iconographically, the female bodhisattva Prajñāpāramitā embodies the completion of highest wisdom and knowledge. Already in , the Buddha taught the same path to nirvāṇa for women and men. With the advent of early Mahāyāna in the 1st century BCE all beings are said to equally possess “Buddha nature” (Skt.tathāgathagarba), the potential to become a Buddha. In this regard, all human beings are equal, whether female or male. Buddhists of all traditions agree that the nature of the mind is the same for all, regardless of race, color, sex, language, religion, political ideology, nationality, social origins, property, birth status, or other distinctions. Sometimes sentient beings are born female and sometimes male. The concept of evolution from a lower form as a woman to a higher form as a man does not exist. In short, from a Buddhist philosophical point of view, gender difference is not a question of mind but of body, and, like all other natural attributes, gender lacks inherent reality. 108 [...] the Buddha explicitly acknowledged women’s potential for enlightenment. “From the viewpoint of , women just as well as men can reach the nal goal”. When the monk Ānanda asked the Buddha whether women can attain arhatship, the fourth and last stage in religious development, equivalent to nirvāṇa or mokṣa (liberation), the Buddha clearly stated: “They can attain it”. The Buddhist canon is full of stories of women who, during the lifetime of the Buddha, became female arhats. But what about the value of men and women? Are they equal or of equal value? This leads us to the question of the role of women and the question of women’s human rights violations in contemporary Buddhist societies.

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seguidoras. Tendo enfrentado a sociedade da sua época, ele conseguiu uma igualdade relativa entre homens e mulheres. Contudo, subordinou as mulheres aos homens.

[...] o Buda, como representado no [registro do] Vinaya, subordinou as mulheres aos homens, mas isso deve ser entendido no contexto dos costumes vigentes e tradições nas sociedades indianas antigas. Em termos de sistema de castas, ele nadou contra a correnteza, mas as mulheres eram de classe cruzada, ou seja, em cada casta subordinada aos homens. Isso significava que elas estavam sob a proteção de seu pai, irmão ou filho, a menos que fossem prostitutas. Consequentemente, a ordem de monjas foi finalmente colocada sob a “proteção” da ordem dos monges. Um revolucionário para o seu tempo, o Buda realmente fundou uma ordem de monjas. Mas mesmo essa ordem, embora reconhecida canonicamente, é de forma controversa interpretada. (ROLOFF, 2017, p.199, trad nossa109. Grifo no original)

Essa “proteção” é foco de debates, pois as mulheres eram vítimas de estupros com frequência; ao estabelecer uma ordem de mulheres, tirando-as do sistema de castas e das obrigações, ele também as tirou da proteção que a vida de família oferecia. Havia um custo para a mulher no lar por esta proteção, os deveres de obediência à linhagem masculina. Ao romper com esta hierarquia, as mulheres perderam esta proteção, e portanto era necessário garantir que elas tivessem a segurança e as condições necessárias para progredirem no caminho.

A preocupação do Buda a respeito dos riscos para as mulheres é representada pela metáfora do campo de arroz, existente no Discurso para Gotamī.

“Ānanda, exatamente como um campo de arroz ou um campo de trigo em que as ervas daninhas crescem, esse campo certamente caminhará para a ruína. Da mesma forma, Ānanda, se nesse caminho de instrução e disciplina as mulheres deixarem a vida em família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então essa vida santa, não durará muito.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §24)

A metáfora do campo de arroz é explicada por Anālayo (2011). Ele explica que existe uma parcela de comentadores da tradição que entendem que a mulher é a erva daninha do campo de arroz e que devido à sua presença a vida santa, citada no Sūtra, que corresponde à vida do pedinte, a vida monástica, não durará muito,

109 [...] the Buddha, as depicted in the Vinaya, did subordinate women to men, but this has to be understood in the context of the prevailing customs and traditions in ancient Indian societies. In terms of caste system, he swam against the stream, but women were cross-class, i.e., in each caste subordinated to men. This meant they were under the protection of their father, brother, or son, unless they were prostitutes. Accordingly, the order of nuns was nally put under the “protection” of the order of monks. A revolutionary for his time, the Buddha did found an order of nuns. But even this order, although acknowledged canonically, is controversially interpreted

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comprometendo o futuro da comunidade. Contudo, temos que lembrar que o Buda havia reconhecido que as mulheres tinham o potencial para o despertar, então por que se elas têm este potencial elas seriam as ervas daninhas? Esta forma de interpretar demonstra o caráter misógino dos comentadores, que resultaram na opressão das monjas. Assim, ele apresenta outra interpretação, equiparando a violência que as mulheres poderiam sofrer com a erva daninha que impede de frutificar. Em vários outros textos canônicos as sementes são colocadas como sendo uma metáfora no potencial de amadurecimento das ações dos seres. Estas sementes podem ser positivas, como é o caso das boas sementes como os grãos de arroz ou trigo, ou podem dar maus frutos, como é o caso das ervas daninhas. Chung (1999) refere-se às ervas daninhas como as violências que as mulheres poderiam sofrer, impedindo que sua potencialidade frutifique.

Embora a maioria dos estudiosos e escritores budistas afirmem que as bhiksunis estavam subordinadas aos bhiksus por terem tantas regras adicionais e as Oito Regras impostas a elas, eu discordo. Em vez disso, um exame próximo e comparativo das regras monásticas budistas para os bhiksunis e bhiksus revela uma regulamentação prática e compassiva da vida monástica diária de homens e mulheres, com base nas realidades da vida no momento em que as regras foram formuladas. Isso é visto no cuidado meticuloso e na compreensão compassiva da vida da mulher no Vinaya. Talvez seja um erro depender apenas da existência de regras monásticas adicionais para as bhiksunıs, sem examinar sua origem ou contexto social, para formar uma visão budista generalizada das mulheres. (CHUNG, 1999, p31-32. Trad. nossa110. Grifo no original)

Assim, uma vez declarado seu potencial, elas começaram a trilhar o caminho do despertar, reivindicando suas realizações, destacando-se e registrando suas conquistas. Mas a tradição não deve esquivar-se de fazer uma autocrítica ao questionar a veracidade dos preceitos, que se foram uma forma de proteção no budismo primitivo, tornaram-se ferramenta de opressão nos séculos que se passaram.

110 Although most Buddhist scholars and writers contend that bhiksunis were subordinated to bhiksus by having so many additional rules and the Eight Rules imposed upon them, I disagree. Rather, a close and comparative examination of the Buddhist monastic rules for both bhiksunis and bhiksus reveals a compassionate and practical regulation of the daily monastic life of both men and women, based on the realities of life at the time the rules were formulated. This is seen in the meticulous care and compassionate understanding of women’s “alms life” in the Vinaya. It is perhaps a mistake to depend solely on the existence of the additional monastic rules for bhiksunis, without examining their origin or social context, to form a generalized Buddhist view of women

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3.2 Um cânone em questão.

É ampla a discussão a respeito de se o Buda teria ou não proferido os Gurudharmas quando autorizou a formação da comunidade feminina ou se seria uma construção posterior. É fato que esta passagem e os princípios existem nos textos canônicos. Avançando na discussão a respeito da veracidade do relato, temos uma segunda passagem, também, contida no Kullavagga, seção do Vinaya Pāli, que merece uma atenção especial. Esta é a passagem que trata da famosa “censura de Ānanda”, que teria ocorrido durante o Primeiro Concílio, quando quinhentos dos principais discípulos, todos homens, se reuniram logo após a morte do Buda, com o objetivo codificar o Sūtra e o Vinaya. Uma vez codificadas as duas coleções de textos canônicos, Ānanda informou à assembleia que pouco antes de morrer, o Buda havia lhe dito que as “regras menores da disciplina monástica” poderiam ser abolidas após sua morte. No entanto, Ānanda, em seu descuido, falha em especificar exatamente o que é “menor e maior em disciplina” e desta forma, todas as regras tiveram que ser mantidas (OHNUMA, 2013).

Mas o debate não se encerra na questão de se deveriam ter sido abolidas ou não as regras menores, elas perpassam também o debate sobre a veracidade e a autenticidade de tais regras.

Hoje existe um debate considerável sobre se esses oito [princípios] foram realmente pronunciados pelo Buda ou posteriormente inseridos por monges. Eles são excessivamente chauvinistas, e é difícil imaginar o Buda, tendo concordado com o possível estado de Arahant das mulheres, dando voz a algumas delas. Mas eles [os gurudharmas] desempenharam e continuam até hoje a desempenhar um papel importante nos costumes das bhiksuni em relação aos bhiksus. (BANCROFT, 1987, p.83. Trad. nossa 111. Grifo no original)

Este questionamento da possibilidade de ter ocorrido a inserção posterior dos Gurudharmas no cânon enfrenta um obstáculo que, como citado por Roloff, corresponde ao fato dele existir em todas as tradições.

[os oito princípios a serem respeitados (gurudharmas)] o dilema colocado por essa diretriz é que, de um ponto de vista histórico, a autenticidade dos oito gurudharmas é altamente questionável. De acordo com as tradições,

111 There is considerable debate today whether these eight were actually pronounced by the Buddha or were later inserted by monks. They are excessively chauvinistic, and it is difficult to imagine the Buddha, having agreed to the possible Arahant ship of women, giving voice to some of them. But they have played and continue even today to play a major role in the customs of bhiksunıs towards bhiksus.

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porém, eles são canônicos e aparecem em todos os . (ROLOFF, 2016, p.177, trad. nossa.112Grifo no original)

A aplicabilidade dos Gurudharmas varia e variou de tradição para tradição, seus efeitos foram sentidos de forma diferente e produziram efeitos diferentes. Quando analisamos as escolas antigas que ainda existem na atualidade, vemos como o resultado foi sentido de forma diversas. Por exemplo, temos três escolas que permanecem desde os tempos primitivos até a atualidade, Dharmaguptaka, Mūlasarvāstivāda e Theravāda; destas, ocorreu a extinção do ordenamento pleno feminino nas tradições Mūlasarvāstivāda e Theravāda.

Outra discussão tem a ver com o que podemos chamar de perspectiva finalística, pois quando Mahāprajāpatī aceita os princípios a serem respeitados (isso considerando a hipótese deles serem verdadeiros) ela os fez, segundo Murcott (1991), porque tinha em mente um objetivo maior, que era o de conseguir o estabelecimento da ordem das monjas e a respectiva autorização para que elas deixassem a vida em família. Aceitar tais preceitos seria um “problema” menor se comparado com os enfrentados pela domesticidade que era imposta a elas. Ao aceitar, o objetivo de poderem trilhar o caminho para libertação foi alcançado.

Talvez as Oito Regras Especiais, cuja aceitação fosse um pré-requisito para a ordenação de mulheres, fossem um baluarte contra qualquer possível ousadia futura. Embora as Oito Regras Especiais tenham relegado claramente as mulheres a um status secundário, Pajapati as aceitou para atingir seu objetivo principal de estabelecer uma ordem de monjas. (MURCOTT, 1991, p.17. Trad nossa113)

Como dito, não é consenso que o Buda teria proferido os princípios a serem respeitados; há quem demonstre as incoerências da formulação temporal dos preceitos, como é o caso de Chung (1999), que cita as regras que seriam temporalmente impossíveis de serem proferidas.

[...] as Oito Regras revelam inconciliação com a história da fundação da Bhiksunı sangha e a penalidade por violação das regras nos Bhiksunı Payantika Dharmas. Roykan Nagasaki argumenta que, embora as Oito Regras sejam as regras mais importantes para as mulheres que desejam ser

112 [...] the dilemma posed by that guideline is that from a historical point of view the authenticity of the eight gurudharma is highly questionable. According to the traditions, however, they are canonical and appear in all Vinayas 113 Perhaps the Eight Special Rules, the acceptance of which was a prerequisite to women's ordination, were a bulwark against any possible future boldness. Though the Eight Special Rules clearly relegated women to a secondary status, Pajapati accepted them in order to achieve her primary goal of establishing an order of nuns.227

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ordenadas e devam ser observadas, é duvidoso que elas tenham sido estabelecidas pelo Buda Gautama quando foi ordenada. Naquela época, não havia Bhiksunı sangha, e as regras de treinamento por dois anos sob as seis regras para uma siksamana (estagiária) ainda não haviam sido instituídas. No entanto, esses assuntos são mencionados em quatro das Oito Regras (nº 4, 5, 6, 8). Parece provável que as Oito Regras possam ter sido anexadas após o estabelecimento das duas . (CHUNG, 1999, p.88 Trad. nossa114 grifo no original)

Para melhor entendimento das regras em questão, as regras citadas por Chung estão na mesma ordem das apresentadas no Discurso para Gotamī, cuja íntegra encontra-se no Apêndice 1 do presente trabalho. Um exemplo que se cita é a necessidade de uma comunidade feminina para a cerimônia do pleno ordenamento de outras monjas, gerando uma impossibilidade, pois como poderiam as primeiras monjas serem ordenadas com uma assembleia com monjas de testemunhas se elas seriam as pioneiras? Esta é uma das incoerências citadas por Chung (1999).

Assim, as regras existem nos códigos monásticos femininos, contudo sua formulação varia, e também varia a ordem em que são apresentadas nos diversos Vinayas. Tsedroen e Anālayo apresentam um resumo destes princípios.

Enquanto os diferentes Vinayas concordam em mencionar um conjunto de oito desses gurudharmas, a sequência na qual esses princípios são listados varia consideravelmente, assim como sua formulação real. Os temas abordados por esses oito princípios a serem respeitados dizem respeito à etiqueta monástica, como estipular que uma bhikṣuṇī deve se comportar respeitosamente, mesmo em relação a um bhikṣu júnior (monge), e a realização de atos legais. Um ato legal mencionado em todas as listas Vinaya dos oito gurudharmas é o procedimento para conduzir a ordenação bhikṣuṇī. (TSEDROEN e ANALAYO, 2013, p744. Trad nossa 115. Grifo no original)

Desta forma, comparamos duas versões da história da formação da comunidade feminina. O primeiro é o Discurso para Gotamī e o segundo um Excerto do Kullavagga. Vamos seguir a ordem do Discurso e promover a comparação do mesmo.

114 [...] the Eight Rules reveal irreconcilability with the story of the founding of the Bhiksunı sangha and the penalty for violation of rules in the Bhiksunı Payantika Dharmas. Roykan Nagasaki argues that although the Eight Rules are the most important rules for women who want to be ordained and must be observed, it is doubtful that they were laid down by when Mahapajapati Gotami was ordained. At that time there was no Bhiksunı sangha, and training rules for two years under the six rules for a siksamana (probationer) had not yet been instituted. However, these matters are mentioned in four of the Eight Rules (#4, 5, 6, 8). It seems likely that the Eight Rules might have been appended after the establishment of both sanghas. 115 While the different Vinayas agree in mentioning a set of eight such gurudharmas, the sequence in which these principles are listed varies considerably, as does their actual formulation. The themes broached by these eight principles to be respected concern matters of monastic etiquette, such as stipulating that a bhikṣuṇī should behave respectfully even towards a junior bhikṣu (monk), and the carrying out of legal acts. One legal act mentioned in all Vinaya lists of the eight gurudharmas is the procedure for conducting bhikṣuṇī ordination.

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É importante compreender os princípios, posto que é pacífica a existência dos preceitos nas diversas tradições com conteúdo similar.

Não se pode dizer que as regras especiais que se aplicam apenas às bhiksuni compreendem uma categoria formal própria, como discutirei. Elas são conhecidas como “Oito Regras” (sânscrito Gurudharmas). O conteúdo das Oito Regras é quase o mesmo nos Vinaya chineses e nos Pali, embora sejam numerados de maneira diferente. O Gotami Sutta [Skt. ] e os Cullavagga no cânon Pali contêm a história da ordenação de Mahapajapati Gotami, a mãe adotiva do Buda e sua tia, e a formulação das Oito Regras Importantes (Pali: Garudhamma). (CHUNG, 1999, p.84. Trad. nossa116 Grifo no original)

Desta forma, antes de adentrar os princípios, no Discurso para Gotamī o Buda faz uma introdução, exaltando a importância desta instrução para as mulheres:

“Ānanda, assim como um pescador ou seu aprendiz faz um dique em águas profundas para conservar a água para que não flua, Ānanda, da mesma forma que eu declararei para as mulheres oito princípios que devem ser honrados, os quais as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender por toda a vida. Quais são os oito? (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §30)

No Kullavagga, não acontece desta forma e os preceitos são proferidos sem uma exaltação de sua importância.

Para que possamos analisar os princípios vamos seguir a ordem constante no Discurso para Gotamī, apresentando o respectivo princípio do Kullavagga. O primeiro princípio diz respeito à necessidade da ordenação dupla feminina:

Ānanda, uma monja deve procurar a ordenação mais elevada dos monges. Ānanda, estabeleci para as mulheres este primeiro princípio de peso à ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §31)

O Kullavagga detalha a respeito desta necessidade da ordenação dupla, pela comunidade masculina e pela feminina. Inclusive apresenta e detalha requisitos tais como preceitos a serem respeitados e o tempo mínimo de observância. Ele corresponde ao sexto princípio:

(6) ‘Quando uma Bhikkhuni, enquanto noviça, tiver treinado por dois anos nas seis regras, ela deve pedir a iniciação upasampada para ambas as

116 The special rules which apply only to bhiksunıs cannot be said to comprise a formal category of their own, as I will discuss. They are known as the "Eight Rules" (Skt. Gurudharmas). The contents of the Eight Rules are almost the same in the Chinese and the Pali Vinayas, although they are numbered differently. The Gotami Sutta [Skt. Sutra] and the Cullavagga in the Pàli canon both contain the story of the ordination of Mahapajapati Gotami, the Buddha's foster mother and his aunt, and the formulation of the Eight Important Rules (Pàli: Garudhamma).

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Samghas (tanto a dos Bhikkhus quanto das Bhikkhunis). Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §24)

A segunda regra do Discurso para Gotamī diz respeito à obrigação das mulheres de buscarem por instrução a cada meio mês, ou seja, nos encontros do uposatha:

“Ānanda, uma monja deve se aproximar todo meio mês dos monges para receber instrução. Ānanda, estabeleci para as mulheres este segundo princípio de peso à ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §32)

No Kullavagga esta corresponde à terceira regra, que detalha quando é este período de quinze dias. A exortação é a ocasião onde são dados ensinamentos:

(3) ‘Quinzenalmente uma Bhikkhuni deve esperar da Samgha-Bhikkhu duas coisas, a solicitação da cerimônia do Uposatha, e o (tempo quando o Bhikkhu) chegará para dar a Exortação. Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §15)

A terceira regra do Discurso para Gotamī corresponde à obrigação de realizar o retiro das estações das chuvas somente em lugares onde também estejam monges homens.

“Ānanda, numa habitação onde não se encontram monges, uma monja não pode passar o retiro da estação chuvosa. Ānanda, estabeleci para as mulheres este terceiro princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §33)

No Kullavagga corresponde à segunda regra e é descrita de forma similar:

(2) ‘Uma Bhikkuni não deve permanecer em uma estação chuvosa (do Was) em um distrito em que não houver nenhum Bhikkhu. Essa é uma regra ... Que nunca deve ser transgredida.' (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §20)

Continuando a respeito do retiro das chuvas, a quarta regra contida no Discurso para Gotamī versa a respeito das obrigações após a realização deste retiro:

Ānanda, uma monja que completou o retiro da estação chuvosa, deve perguntar em ambas as assembleias sobre três assuntos: buscando convite (pavāraṇā) em relação ao que foi visto, ouvido ou conjecturado. Ānanda, estabeleci para as mulheres este quarto princípio de peso à ser honrado, que

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as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §34)

No Kullavagga o princípio também é o quarto:

(4) ‘Depois de passar a estação chuvosa (do Was), a Bhikkhuni deve realizar Pavarana (indagar se qualquer falta pode ser colocada a seu custo) diante de ambas as Samghas - tanto dos Bhikkhus quanto das Bhikkhunis - com respeito a três questões, nomeadamente, o que foi visto, e o que foi escutado, e o que foi suspeitado. Essa é uma regra.... que nunca deve ser transgredida.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §22)

A quinta regra difere no Discurso em relação ao Kullavagga. No Discurso ela versa sobre os monges homens que não desejam responder a perguntas.

Ānanda, se um monge não permite perguntas de uma monja, a monja não pode solicitar ao monge sobre os Suttas, o Vinaya ou o Abhidhamma. Se ele permite perguntas, a monja pode perguntar sobre os Suttas, o Vinaya ou o Abhidhamma. Ānanda, estabeleci para as mulheres este quinto princípio de peso à ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender para toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §35)

Esta regra não possui correspondente no Kullavagga, que por sua vez também possui um princípio sem correspondente, o sétimo princípio que versa sobre o comportamento das bhikṣuṇī que não devem, sob pretexto algum, insultar ou cometer abusos contra os bhikṣus.

(7) ‘Uma Bhikkhuni não possui desculpa para insultar ou abusar de um Bhikkhu. Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §25)

A sexta regra apresentada no Discurso para Gotamī, diz respeito a um procedimento disciplinar da comunidade, no qual as monjas não podem revelar as ofensas dos monges enquanto os homens podem fazê-lo:

Ānanda, uma monja não pode revelar a ofensa de um monge; um monge pode expor a ofensa de uma monja. Ānanda, estabeleci para as mulheres este sexto princípio de peso à ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §36)

No Kullavagga este é o último princípio, o oitavo, cuja redação é similar:

(8) ‘Daqui em diante, a admoestação oficial por Bhikkhunis para Bhikkhus está proibida, enquanto que a admoestação oficial de Bhikkhunis por

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Bhikkhus não está proibida. Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §26)

O sétimo princípio do Discurso estabelecido diz respeito à obrigação das mulheres a cumprirem as penitências (sanções) em ambas as assembleias.

Ānanda, uma monja que cometeu uma ofensa que exige suspensão (saṅghādisesa) deve sofrer penitência (mānatta) em ambas as assembleias por quinze dias. Ānanda, estabeleci para as mulheres este sétimo princípio de peso à ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §37)

No Kullavagga este é quinto princípio, cuja redação se aproxima:

(5) ‘Uma Bhikkhuni que foi culpada de uma ofensa séria deverá passar pela disciplina Manatta diante de ambas as Samghas (dos Bhikkhus e das Bhikkhunis). Essa é uma regra.... que nunca deve ser transgredida.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §23)

O último princípio do Discurso corresponde à obrigação das mulheres em prestar homenagem aos monges homens. Isso deve ser realizado sem considerar a senioridade dele ou dela:

Ānanda, embora uma monja tenha sido totalmente ordenada por até cem anos, ela ainda deve mostrar a máxima humildade em relação a um monge recém-ordenado, homenageando com sua cabeça aos pés dele, sendo respeitosa e reverente, falando com ele com as mãos mantidas juntas em homenagem. Ānanda, estabeleci para as mulheres este oitavo princípio de peso à ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §38)

A este princípio de homenagens, corresponde o primeiro do Kullavagga:

(1) 'Uma Bhikkuni, mesmo se estiver de pé por uma centena de anos, deve fazer uma saudação, deve levantar-se na presença de, deve curvar-se diante de, e deve realizar todos os deveres apropriados para com um Bhikkhu, mesmo que este tenha sido recentemente ordenado. Essa é uma regra e deve ser venerada e reverenciada, honrada e observada e em sua longa vida nunca ser transgredida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, §19)

Encerra-se o Discurso com a explicação de que obedecer aos oito princípios é o início da vida monástica para as mulheres:

“Ānanda, estabeleci para as mulheres esses oito princípios de peso a serem honrados, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. Ānanda, se Mahāpajāpatī Gotamī sustenta estes

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oito princípios de peso para serem honrados, este é o seu início na instrução e disciplina correta para treinar no caminho, recebendo a ordenação superior e se tornando uma monja.” (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §39)

Este é o conjunto de princípios que as monjas deveriam manter. Por isso são conhecidos como preceitos de peso. Contudo sua historicidade é questionada, em especial no que se refere a terem sido ou não proclamados pelo Buda, na ocasião da fundação da comunidade feminina.

A historicidade dos gurudharmas é uma questão bastante duvidosa. No entanto, o momento em que os gurudharmas surgiram ainda devia ser bastante cedo, pois eles são encontrados em todos os Vinayas. Quando avaliadas do ponto de vista de seu contexto narrativo, parece claro que as formulações dos gurudharmas relativos à ordenação bhikṣuṇī encontradas no Mūlasarvāstivāda, Sarvāstivāda e Saṃmitīya Vinayas refletem uma versão anterior. Esta versão anterior ainda não estipulava a necessidade de treinamento como sikṣamāna e prescrevia a ordenação dada apenas pelos bhikṣus, não pelas duas comunidades. (TSEDROEN & ANALAYO, 2013, p752. Trad nossa117. Grifo no original)

O próximo passo é compreender o significado de cada princípio, as contradições, interpretações e efeitos na comunidade feminina. A ordem de análise será a mesma da apresentação que se seguiu.

3.3 Os Gurudharmas.

Canonicamente os “princípios a serem respeitados” adentraram os diversos ordenamentos monásticos. Conforme demonstrado, sua proclamação pelo Buda na época da formação da comunidade feminina é controverso; as razões são múltiplas e podem ser encontradas inconsistências técnicas temporais, tais como a necessidade de uma comunidade feminina para constituição de uma comunidade feminina.

Contudo a corrente majoritária coloca os Gurudharmas como uma construção e que mesmo cedo, adentrou ao ordenamento, e por isso se consolidou. Fica o

117 The historicity of the gurudharmas is a rather doubtful matter. Nevertheless, the point in time when the gurudharmas came into being must still be fairly early, since they are found in all Vinayas. When evaluated from the viewpoint of their narrative context, it seems clear that the formulations of the gurudharma concerning bhikṣuṇī ordination found in the Mūlasarvāstivāda, Sarvāstivāda, and Saṃmitīya Vinayas reflect an earlier version. This earlier version did not yet stipulate the necessity of training as a sikṣamāna and it prescribed ordination given by bhikṣus only, not by both communities

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questionamento de que poderiam ser “normas de transição” que deveriam ser abolidas posteriormente, mas que Ānanda haveria esquecido quais preceitos deveriam ser mantidos e quais deveriam ser abolidos. Desta forma, todos permaneceram.

Assim, estando presentes no ordenamento, é interessante que nós compreendamos cada um destes preceitos, verificando sua interpretação.

3.3.1 Buscar a ordenação mais elevada na comunidade masculina.

Nos primórdios da comunidade, os monges eram ordenados com a fórmula, eri bhikṣu (sânscrito), numa tradução livre “venha monge”, e com este rito simples adentrava-se a saṃgha. Com o crescimento desta, os problemas na condução do grupo foram surgindo, e com isso os preceitos Vinaya foram sendo criados. A formação destes preceitos impôs a necessidade de que os novos integrantes os conhecessem surgindo desta forma duas classes de monges. Os iniciantes, ou monge probatórios, e monges plenos, que conheciam os preceitos e tinham a responsabilidade de ensinar aos novos. (ANĀLAYO, 2011a)

O passar do tempo determinou um período probatório mínimo, e no caso das mulheres isso tomou uma importância maior. A comunidade de renunciantes é formada por pessoas que adentram o celibato estrito e muita dúvida paira sobre as mulheres. Lembremos que a cultura da época nem ao menos as considerava como seres humanos. A opressão e situação que viviam faziam com que procurassem na dura vida monástica a liberdade. Ocorre que a sustentação do celibato por parte das mulheres foi colocada em dúvida, e a desconfiança surgiu com o ordenamento de mulheres grávidas.

A narração que precede essa regra [sobre o período de treinamento probatório] relata que as bhikṣuṇīs realmente haviam ordenado uma mulher grávida. As repercussões que sua condição causou aos leigos ocasionou a criação de um regulamento para impedir que isso acontecesse novamente no futuro. Agora, o problema causado pela ordenação de uma mulher grávida não teria surgido em primeiro lugar se tivesse sido estabelecido o procedimento de que qualquer candidata a uma ordenação superior precisaria ter completado um período de treinamento de dois anos como śikṣamāṇā. Os mesmos três Vinayas indicam explicitamente que esse treinamento compreende a observação do celibato; portanto, seria impossível concluir o período com sucesso e estar grávida, se esse treinamento realmente existisse desde o momento em que a ordem dos bhikṣuṇīs foi criada.

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Assim, a formulação dos gurudharmas referente à ordenação de bhikṣuṇī no Dharmaguptaka, Mahīśāsaka e Theravāda Vinayas resulta em uma inconsistência interna, pois implica que o treinamento probatório foi promulgado pelo Buda no momento em que a ordem das bhikṣuṇīs começou. Isso torna seguro concluir que a formulação usada nesses Vinayas é o resultado de um desenvolvimento posterior. (TSEDROEN & ANALAYO, 2013, p750. Trad nossa118. Grifo no original)

Conforme apontado por Tsedroen e Anālayo, as inconsistências na formulação dos Gurudharmas sustentam a hipótese de que eles não foram promulgados exatamente como consta no Discurso para Gotamī, ou no excerto do Kullavagga. Os registros dos eventos nos primórdios da comunidade, que resultaram na criação dos preceitos monásticos do Vinaya, foram registrados particularmente em dois conjuntos de textos, o Mahavagga e o Kullavagga.

Adentrar o ordenamento pleno é um momento importante para a comunidade budista, é uma grande alegria. Nesta ocasião reúne-se a saṃgha para a cerimônia que tem um papel importante não apenas para aquela ou aquele que recebe os votos completos, mas é uma ocasião onde a união do grupo é reafirmada. Quando o Buda criou sua comunidade, primeiro com os cinco ascetas, depois com as pessoas que foram se reunindo, ele extinguiu o sistema social vigente de segregação de pessoas em castas, ele igualou ex-sacerdotes e escravos, assim, para a harmonia da comunidade, diversas ocasiões celebram esta igualdade e coíbem o favoritismo.

A tendência aqui [na cerimônia de ordenação], como na regulação da Cerimônia de Exortação, era manter o mundo dos monges reunido e ordenado, desencorajar o favoritismo, impedir que qualquer grupo se tornasse dominante ou problemático e impedir o crescimento de facções. (HORNER, 1930, p.140. Trad. nossa.119)

118 The narration that precedes this rule reports that the bhikṣuṇīs had indeed ordained a pregnant woman. The repercussions that her condition caused among the laity occasioned the laying down of a regulation to prevent this from happening again in the future. Now the problem caused by ordaining a pregnant woman would not have arisen in the first place if it had been established procedure that any female candidate for higher ordination needs to have completed a two year training period as a śikṣamāṇā. The same three Vinayas explicitly indicate that such training comprises the observing of celibacy, hence it would have been impossible to complete the period successfully and be pregnant, if such training had indeed be in existence right from the time the order of bhikṣuṇīs came into existence. Thus the formulation of the gurudharma concerning bhikṣuṇī ordination in the Dharmaguptaka, Mahīśāsaka, and Theravāda Vinayas results in an internal inconsistency, as it implies that the probationary training was promulgated by the Buddha at the time when the order of bhikṣuṇīs began. This makes it safe to conclude that the formulation used in these Vinayas is the result of a later development. 119 The tendency here, as the regularisation of the Exhortation Ceremony, was to keep the monk-world combined and orderly, to discourage favountism, to prevent any section from becommg dominant or troublesome, and to deter the growth of factions.

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A existência de diversos códigos monásticos, Vinaya, não deve ser entendida como facções, mas como adaptações que cada grupo realizou para que o Dharma florescesse nas diversas regiões; os preceitos mais importantes como os que são causa de expulsão da comunidade ou de afastamento temporário das atividades são iguais, as diferenças surgem nos preceitos de gestão social, tais como ser ou não vegetariano, utilizar ou não sapatos de couro. Criar uma facção, ou como o ordenamento coloca tecnicamente, criar uma cisão na saṃgha, foi o que o meio irmão do Buda, Devadata, tentou fazer. Ele (Devadata) reuniu um grupo de monges dissidentes e criou um novo ordenamento monástico, alterando o modo de vida. Ele feriu preceitos básicos, tais como o de não matar, ao se unir com o príncipe Ajatashatru para arquitetar a morte do Rei e com isso tomar o trono. Por isso, o Buda, ao reunir a comunidade nas cerimônias de ordenação, eram fortalecidos os vínculos e era coibido o favoritismo, trazendo harmonia nas relações.

A cerimônia de ordenação (Upasampadā) possui peculiaridades que nos chamam a atenção, voltando-nos aos indícios de que o Buda era contra a discriminação das mulheres, e que os Gurudharmas foram uma adição posterior. Isso pode ser evidenciado nas perguntas feitas à candidata. Como visto, um instrutor (ou instrutora) é designado para ensinar e acompanhar a monja noviça durante seu probatório. Na cerimônia é questionado quem foi a pessoa responsável por tal instrução, e a palavra usada refere-se a uma instrutora, mostrando que cabia às mulheres gerirem e ordenarem sua própria comunidade.

O nome do instrutor é a última das perguntas feitas na Cerimônia Upasampada. Na ocasião em que Gotama estava prescrevendo as perguntas, a palavra usada era pavattini, uma instrutora, ao se referir aos pedintes masculinos a palavra usada é upajjhaya. Esta é a única ocasião, quando Gotama estava tentando colocar as coisas em ordem, que a palavra masculina é usada em conexão com as pedintes. (HORNER, 1930, p.141. Trad. nossa.120 grifo no original)

A respeito das questões feitas às mulheres antes do seu ordenamento, cabe ressaltar que também são feitas questões aos homens na mesma situação. Uma leitura desatenta pode levar à interpretação que a existência de tais questões possa ter servido

120 The name of the instructor is the last of the questions put at the Upasampada Ceremony on the occasion when Gotama was prescribing the quetions the word used was pavattini, a female instructor, refering to the almsmen the word used is upajjhaya This is the only occasion, when Gotama was full trying to get matters into order, that the masculine word is used in connection with the almswomen.

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de mecanismo para dificultar ou mesmo impedir o acesso das mulheres ao ordenamento pleno, como o que acabou por acontecer com algumas tradições que resistiram ao tempo e existem no presente. Contudo, isso não foi o caso naquele período. Os registros daquela época não indicam que tenha sido negado o ordenamento de uma candidata que tenha sido aprovada pelo Conselho das monjas.

A partir da evidência documental que possuímos, não parece que um pedinte jamais tenha negado uma candidata que foi aprovada pelo Conselho das pedintes. De fato, um cuidado escrupuloso em exercer suas responsabilidades e um controle restrito e restritivo deve ter sido exercido pelas pedintes. Elas não gostariam de ferir a sensibilidade e a dignidade dos pedintes, ou de se abrirem à repreensão ao oferecer candidatas mal preparadas ou inadequadas. As pioneiras do movimento se sentiriam compelidas a nunca exceder as expectativas, mas nomear apenas suas melhores e mais firmes [candidatas]. (HORNER, 1930, p.143-144. Trad. nossa.121)

Muita dúvida pairava sobre as mulheres. Sua “humanidade” nascia dentro da saṃgha e é muito provável que isso não tenha sido bem recebido por todos os participantes da comunidade masculina, obrigando-as a provarem sua capacidade e vencerem obstáculos de preconceito. Assim, também é plausível pensar que esta preocupação em demonstrar sua capacidade tenha permeado o Conselho, que enviava somente as mais preparadas candidatas ao ordenamento pleno.

Pode ocorrer uma romantização da situação da mulher casada, pois na teoria o homem proveria condições, conforto, segurança e sustento. Contudo um preço era imposto, pois mesmo nas castas mais elevadas era cobrada uma servidão da mulher similar à dos escravos. Liberdade era uma palavra impensada e as punições físicas eram aceitas, afinal, uma mulher não era um “ser humano” mas uma propriedade, um receptáculo para servir e gerar descendência, a essência divina do homem. Essa falta de perspectiva foi um dos fatores que levava as mulheres, mesmo de castas mais elevadas, a buscarem se libertar do ciclo de sofrimentos existenciais. Mas a vida dentro da comunidade budista também não era fácil, vivendo em condições muito simples, onde abria-se mão do conforto, os pedintes e as pedintes viviam com o mínimo, dependendo de doações para sobreviverem, esmolando alimentos e dedicando-se à

121 From the documentary evidence which we possess, it does not appear that an almsman ever blackballed a woman candidate who had been passed by the Chapter of Almswomen. Indeed scrupulous care in wielding their responsibilittes and a restrained and restraning control must have been exercised by the almswomen. They would not have wished to wound the sensibilities and dignity of the almsmen, or to have laid themselves open to rebuke by proffering ill-prepared or unsuitable candidates The pioneers of the move•ment would have felt conftrained never to overftep expectations, but to nominate only of their very best and steadiest.

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vida religiosa, que compreendia estudos e meditações. Ser capaz de suportar as intempéries desta nova vida também era uma condição que deveria ser provada pela candidata ao ordenamento pleno, pois o desenvolver da vida monástica traz provações que precisam ser vencidas.

Se a vida de uma pedinte era rigorosa em comparação com a de uma leiga, ela deveria ser e permanecer saudável, esperava-se que ela fosse autossuficiente e espiritualmente competente, que ela não olhasse para trás, para o mundo que ela havia deixado, e se ela fosse desapegada de todas as alegações que poderia ter sobre ela, o exame que levaria à admissão seria necessariamente difícil e abrangente, e o treinamento que levaria ao exame seria longo e árduo e arranjado de modo a fornecer uma antecipação das demandas mais pesadas a serem seguidas. (HORNER, 1930, p.145. Trad. nossa.122)

Decerto que a necessidade de as mulheres terem de pedir à comunidade masculina para lhes conferir o ordenamento pleno é uma questão que aos olhos da sociedade atual consiste num preceito discriminatório e que tira autonomia da comunidade feminina de se autogerir. Contudo, à luz da situação da época, era uma forma de proporcionar proteção às mulheres. O Buda havia realizado um rompimento na maneira como a mulher era vista, a elevando ao status de ser humano, mas a situação feminina era complexa e sua segurança e manutenção são pontos que precisam ser gerenciados (CHUNG 1999).

Quando alguém, seja homem ou mulher, concede os votos a outro, gera-se um vínculo entre ambos e com isso um dever de dar o suporte mínimo para a pessoa, bem como de instruir e acompanhar seu desenvolvimento dentro do caminho123. (ŚĀKAYAMUNI, s/d) Ao colocar para os homens a obrigação de conceder os votos às mulheres, este vínculo era gerado, impedindo que a comunidade masculina deixasse a comunidade feminina à sua própria sorte.

122 If the life of an almswoman were to be rigorous as compared with that of a laywoman, if she were to be and to remain healthy, if she were to be self-reliant and spiritually competent, if she were to cast no longing backward glances at the world which she had left, and if she were to be disengaged from all the claims which it might have had over her the examination leading to the admission would necessanly be hard and comprehensive, and the training leading to the examination would be long and arduous and arranged so as to give a foretaste of the heavier demands to follow. 123 Os deveres do upagghâya (preceptor) para com o saddhivihârika (aluno) estão registrados no Mahavagga, 26 Capítulo § 1-11, dentre estas obrigações está a de fornecer as condições básicas, instruções e de cuidar em caso de doenças. O Mahavagga está disponível em https://www.sacred- texts.com/bud/sbe13/sbe1312.htm último acesso em janeiro de 2020

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3.3.2 Buscar instrução a cada meio mês.

A cada meio mês, ambas as comunidades, masculinas e femininas, reúnem-se para realização de uma cerimônia na qual é feita a leitura dos preceitos monásticos. Esta cerimônia recebe o nome de uposatha. Inicialmente nesta ocasião também era realizada a confissão das faltas. O monge ou monja mais velho, ao final da leitura de cada bloco de preceitos questiona a assembleia: Vocês são puros nesta matéria? Aqueles que mantiveram os votos no período se mantêm em silêncio, aqueles que não o fizeram levantam suas mãos e confessam suas faltas. Com o tempo esta prática da confissão pública das faltas se modificou e a confissão passou a ocorrer entre o preceptor dos votos ou orientador (orientadora) antes da cerimônia, mas a leitura dos preceitos é uma prática realizada até os dias atuais.

Este princípio de buscar a instrução a cada quinze dias tem a função de prevenir o isolamento e garantir a instrução mínima para as monjas, que após a cerimônia participam de ensinamentos e debates. Mas nem sempre isso ocorre de forma harmônica. Como já demonstrado anteriormente, a aceitação das mulheres na comunidade não foi amplamente consensual e muitos as consideravam inferiores, chegando ao ponto de que os homens não permitiam a leitura dos votos dos seus compromissos (patimokkha – pāli; prātimokṣa – sânscrito). Também, mais para frente veremos que havia aqueles que se recusavam a dar instruções para as mulheres.

Aparentemente, os pedintes se sentiam tão superiores às pedintes que seu Patimokkha não deveria ser recitado diante delas ou diante de uma mulher em probatório. No entanto, um certo crédito é acumulado por impedir que um abusador das pedintes participe da recitação. Isso sugere que elas achavam que um homem era errado e indigno, mas que também deveriam pensar que qualquer pessoa que pudesse se comportar tão mal deveria ser impedida de participar de uma das cerimônias mais importantes dos pedintes pelo grau de desaprovação que detinham. (HORNER, 1930, p.126. Trad. nossa.124 grifo no original)

Desta forma, este princípio tem um lado positivo; ele garantia a instrução mínima e impedia o isolamento, e também servia para que homens que abusavam das

124 Apparently the almsmen felt themselves so superior to the almswomen that their Patimokkha was not to be held before them or before a woman probationer. Yet a certun amount of credit accrues to them for preventmg an abuser of the almswomen from heanng the recitation. This suggests that they thought such a man wrong and unworthy, but that they should also think that anyone who could behave so badly should be precluded frorn taking part in one of the rnost important ceremonics mendicates the degree of ill-favour m which they held him.

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mulheres fossem bloqueados de dar instruções, garantindo segurança e harmonia na comunidade feminina.

3.3.3 Passar o retiro da estação chuvosa somente em local que existam monges.

A comunidade masculina havia se formado anteriormente à feminina. Os homens estavam treinando no caminho anos antes das mulheres. Isso lhes dava, no início, uma condição de mais instrução dos que das mulheres, por esta razão eles se tornaram professores antes delas. Contudo, esta diferença foi superada pelas mulheres conforme registrado no Therīgāthā, pois elas se tornaram professoras e alcançaram as mesmas realizações que os homens, sendo plenamente capazes de instruir umas às outras; desta forma, a apresentação de Horner deve ser lida com cautela.

Lembramos que grande parte do cânone foi registrado e mantido exclusivamente por homens, e que eles vieram de culturas patriarcais, que no caso da Índia chega a desconsiderar a humanidade das mulheres. Assim, é duvidoso basear-se nestes registros para afirmar a incapacidade feminina de se auto gerir. É possível perceber o interesse em registrar a dependência da comunidade feminina em relação à masculina de forma a manter o desequilíbrio entre homens e mulheres da sociedade indiana.

Contudo, não seria contraditório para aquele que nega a essência divina dos seres, o ātman, que afirma a interdependência, que reconhece o potencial de plena iluminação das mulheres de forma idêntica à dos homens, colocá-las em posição inferior? Resta-nos questionar se esta era a intenção do Buda, o fundador, ou se são interesses que prevalecem posteriormente.

“Uma pedinte não deve passar a estação chuvosa () em um local onde não há pedintes [masculino].” Os pedintes [masculinos] naturalmente podiam passar a estação das chuvas em lugares onde não havia pedintes [femininas], pois não era necessária sua presença nas cerimônias de confissões dos pedintes e afins, enquanto a presença dos pedintes era necessária para que as pedintes realizassem plenamente esses deveres. Esta regra é o quinquagésimo sexto Bhikkhuni- Pacittiya. Diz-se que isso foi formulado na ocasião em que algumas pedintes voltaram para Savatthi, depois de passarem o Vassa na região. As pedintes de Savatthi perguntaram aos que chegavam se a Exortação ou ensino (ovada) havia sido eficaz (iddha) no local onde foi o Vassa. Elas responderam:

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“Como poderia ter sido eficaz, pois não havia pedintes [masculinos]” (HORNER, 1930, p.122. trad nossa. 125 grifo no original)

O código monástico, Vinaya, tanto masculino como feminino se organiza em blocos dependendo da sanção aplicável a cada bloco de faltas (TSAI, 2918). Os códigos começam com um bloco denominado Parajikas que correspondem aos votos que, se quebrados, resultam em expulsão da comunidade. Neste bloco está a obrigatoriedade do celibato, dentre outros votos, tais como de não matar seres humanos. A pacittiya126 corresponde a um bloco de votos menores, cuja penalidade é uma admoestação, ou seja, uma instrução por parte do preceptor dos votos.

Por outro lado, mesmo reconhecendo o potencial para o despertar feminino, a realidade indiana era um desafio para as mulheres, estupros e abusos faziam parte da realidade e a proteção era necessária. A analogia da semente é muito utilizada no budismo, porque ela ilustra numa sociedade eminentemente rural que o potencial de desenvolvimento floresce quando encontra condições adequadas. Uma semente irá se tornar uma árvore quando encontra um solo fértil, água e iluminação adequada. Quando a semente cai sobre uma pedra, por exemplo, o sol a resseca e mata, e ela não produz frutos. Assim, no Discurso para Gotamī, o Buda faz a analogia das sementes, falando do surgimento de ervas daninhas em um campo de alimentos. Uma semente pode ser boa ou ruim, pode ser alimento ou praga, ambas irão crescer e frutificar se encontrarem condições adequadas. Por isso a preocupação do Buda com as mulheres. A violência e as marcas psicológicas que um estupro causa em uma mulher podem comprometer o desenvolvimento dela no caminho. A mente, o solo onde se desenvolve a semente, se torna infértil, sementes de ódio podem surgir com facilidade e elas irão ser um obstáculo ao caminho.

Desta forma, o melhor a ser feito é prevenir. Protegendo a comunidade feminina ela poderia alcançar seu desenvolvimento. Quando reunidas em retiro as

125 "An almswoman is not to spend the Rainy Season (Vassa) in a district where there is no almsman." Almsmen naturally were allowed to spend the Rainy Season im places where there were no almswomen, for there presence was not needed at the almsmen's ceremonies of confession and the like, whereas the almsmen's presence was needed for the almswomen true and full performance of these duties. This rule is the sarne as the fifty-sixth Bhikkhuni-Pacittiya. This is said to have been formulated on the occasion when some almswomen returned to Savatthi, having spent Vassa in the country The Savatthi almswomen asked the incoming ones if the Exhortation or teaching (ovada) had been effective (iddha) at the place where they had been for Vassa. They replied "How could it have been effective, for there was no almsman there" 126 No Vinaya Mūlasarvāstivāda, Pacittiya equivale as Saikas.

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mulheres ficam vulneráveis a ataques. Desta forma, este preceito de proteção tem por trás a dura realidade enfrentada por elas sua fundamentação.

Precauções como essas [de limitação a locais de frequência ou proibição de estar em solidão] eram necessárias para a segurança do sexo mais fraco. Mas, de outro modo, nunca houve qualquer indício ou sugestão de que a mulher seja muito frágil para enfrentar as atrações e tentações do mundo, ou que a pureza de sua reputação só possa ser preservada se ela não puder sair das áreas do Vihara. Nenhum tratamento especial foi concedido às mulheres por [acreditarem que elas] serem menos capazes do que os homens de se controlar e se conter. O importante não era fugir, mas se reunir ao ar livre, onde os serviços eram necessários. Portanto, o claustro nunca se tornou parte da organização religiosa budista, e a preocupação e a fúria que ele pode criar eram desconhecidas para as pedintes. (HORNER, 1930, p.157. Trad. nossa.127 grifo no original)

Não podemos deixar de registrar que a escolha de palavras de Horner para se referir à mulher já demonstra por parte do autor um olhar tendencioso. Ele inicia com o conceito de sexo frágil, mas em seguida traz afirmações que mostram que nada desabonava as pedintes em sua busca pela iluminação.

Importante ressaltar que nos primórdios a comunidade budista não se isolava. Normalmente ela se estabelecia em parques ou outras áreas compradas, cedidas ou doadas, mas a comunidade não fica presa, enclausurada na propriedade; ela tinha uma relação próxima com a comunidade de leigos e leigas, em especial porque saía diariamente para esmolar alimentos.

3.3.4 Buscar instruções após o retiro das chuvas.

Da mesma forma que os princípios anteriores, a ideia por detrás dele é de impedir o isolamento e coibir a formação de facções. Após se recolher por três meses para intensificar a prática de meditação, é importante que ocorra a troca de informações, debates e busca por novos ensinamentos de maneira a possibilitar o aprimoramento constante.

127 Precautions such as these were necessary for the safety of the weaker sex. But otherwise there is never any hint or suggestion that woman was too frail to run the gauntlet of the world's attractions and temptations, or that the purity of her reputation could only be preserved if she were not allowed to go out of the Vihara precints. No special treatment was accorded to the women on the score of their being less able than the men to control and restrain themselves. The important thing was not to run away, but to square up in the open, where one's services were needed. Hence claustration never became a part of the Buddhist religious organisation, and the fret and fury that it may create were unknown to the almswomen

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O caminho budista não é sobre fuga da realidade, mas sim sobre compreender a interdependência e romper as amarras do saṃsāra, o ciclo aprisionador, no qual todos os seres são submetidos aos quatro sofrimentos, o adoecimento, o envelhecimento, a morte e a reencarnação; é necessário compreender a realidade dual que vivemos, e isso não é conseguido em isolamento. Decerto que em diversas tradições, monges e monjas, retiram-se da sociedade para meditar por longos períodos. Contudo o que é pouco comentado é a preparação prévia que acontece, onde o meditador estuda intensamente para que durante o retiro ele consiga colocar em prática. Desta forma, deve-se buscar após os períodos de retiro por mais instruções e ensinamentos, tirando as dúvidas que surgirem durante o tempo de meditação intensa.

3.3.5 Respeitar o monge que não deseja responder perguntas sobre os ensinamentos / Não insultar ou abusar de um monge.

Autores como Anālayo (2011) e Collett (2013) defendem que não existem diferenças significativas entre os princípios dos Gurudharmas, que ocorrem variações de tradução e na ordem com que as mesmas são apresentadas. Contudo, se compararmos as versões dos princípios apresentados no Discurso para Gotamī e no Kullavagga, percebemos que um dos princípios é diferente entre essas versões. Sendo assim, como a proposta da presente análise é apresentar uma leitura interpretativa dos mesmos, iremos fazê-lo com cada interpretação. Começando pela apresentada no Discurso, onde uma monja deve respeitar um monge que não deseja responder perguntas.

Por um lado, temos a obrigação de buscar por ensinamentos em diversos momentos do desenvolvimento do caminho monástico; seja após as cerimônias de uposatha, seja após os retiros, a troca de conhecimento era estimulada e o isolamento coibido. Como dito, o caminho não é uma fuga da realidade, mas a compreensão dela. Contudo, para quem direcionar os questionamentos e quem eram as pessoas aptas a ensinar?

Adentrar o celibato não faz com que o desejo sexual magicamente desapareça. Esta é uma luta que a monja e o monge assumem por perceber que a paz que ele busca é superior à felicidade passageira que o ato sexual promove. A intensidade com que

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este desejo sexual surge em cada indivíduo é diferente; para alguns o celibato é mais tranquilo, para outros é um treinamento mais intenso. Conviver com o objeto de atração sexual pode tornar mais difícil a manutenção do preceito. Esse desejo, se estimulado, irá comprometer a prática da meditação, prejudicando o caminho. Esta é uma das razões para que alguém negue dar ensinamentos a outra pessoa.

Outra questão sobre dar os ensinamentos vem da autorização que a comunidade concede para tal atividade. Qualquer pessoa suspensa, que esteja passando por uma ação disciplinar, não pode dar ensinamentos. Neste caso, não se refere ao controle da pessoa sobre seus desejos, mas faz parte do cumprimento de uma sanção imposta pela comunidade.

Ambos os casos precisam ser respeitados por aqueles e aquelas que pedem pelos ensinamentos.

Na parte inicial do Cullavagga, aparece a decisão de que um pedinte contra quem o tajjamya kamma havia sido executado não deveria aceitar o ofício de dar a exortação às pedintes, e se ele aceitasse, não deveria cumpri-lo. Um pedinte também teria sido desqualificado se tivesse sofrido a penalidade do tassapapzy-yaszka-kamma, a punição por brigas habituais, por estupidez excessiva que levava a violações da disciplina. (HORNER, 1930, p.127. Trad. nossa.128 grifo no original)

Tajjamya kamma, é um processo disciplinar; ele é similar ao processo penal moderno brasileiro, no qual os fatos são averiguados, são ouvidas testemunhas de defesa e acusação e um Conselho de Monges (no caso das monjas quem vota é o Conselho das Monjas) determina se há culpa, e estabelece a penalidade e sua forma de cumprimento.

Desta forma, é importante que haja o respeito entre aquele ou aquela que busca o ensinamento e aquele ou aquela que ensina. A harmonia desta relação deve ser preservada para que seja protegida a comunidade como um todo. Decerto que distorções são passíveis de acontecer, de homens negando instrução a mulheres por preconceitos diversos, utilizando como desculpa esta obrigação. Temos que lembrar que a comunidade é formada por pessoas em diversos estágios de treinamento.

128 ln the early part of the Cullavagga there appears the ruling that an almsman against whom the tajjamya• kamma had been carned out was not to accept the office of giving the Exhortation to the almswomen, and if he had accept it he ought not to fulfil it. An almsman was also said to have become disqualified if he had incurred the penalty of the tassapapzy-yaszka-kamma, the punishment for habitual quarrellmg, for excessive stupidity leading to breaches of discipline.

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Como dito, há uma diferença entre o princípio em sua versão do Discurso e na sua versão do Kullavagga. No excerto do Kullavagga se afirma:

(7) ‘Uma Bhikkhuni não possui desculpa para insultar ou abusar de um Bhikkhu. Essa é uma regra... que nunca deve ser transgredida.’ (ŚĀKAYAMUNI, 2019b, § 25)

Horner explica e comenta o fato gerador do princípio, tendo como base uma versão similar à do excerto do Kullavagga:

“Uma pedinte não tem pretexto de ofender ou abusar de um pedinte” É o mesmo que a quinquagésima segunda Bhikkhuni Pacittiya, aparentemente foi formulada quando as seis pedintes (Chabbaggtya bhikkhuniyo) descobriram que Upali havia revelado a Kappitaka, sua professora (quem tinha quebrado voluntariamente uma estupa que havia acabado de ser montada para uma grande pedinte, recentemente falecida), sua conspiração para matá-lo. Elas censuraram e abusaram de Upali, e depois que a notícia dessa conduta chegou aos ouvidos de Gotama, como é relatado na maneira estereotipada de ter sido feito, foi cometida uma ofensa pacittiya para as pedintes que abusaram do pedinte Upali. Mais tarde ele, se tornou um homem eminente da Ordem, mas ele era apenas um aluno na época em que a regra foi dita. É possível que tenha sido realmente formulada mais tarde, quando ele se tornou famoso e o comportamento indecente e egoísta de Kappitaka foi sintomático do estado extremamente baixo em que o monge poderia cair naquele momento. A complacência das modestas pedintes (bhikkhuniyo Apprccha) da retaliação raivosa dos chocados e a ausência de simpatia pelo horror que sentiram por essas desonras feitas pelos falecidos mostram o quão importante elas consideravam não irritar e aborrecer os pedintes. (HORNER, 1930, p.158. Trad. nossa.129 grifo no original)

Upāli foi um escravo que se juntou à comunidade e se tornou monge; na ocasião de sua entrada houve um princípio de descontentamento, porque um grupo de sacerdotes se converteu em seguida e eles inicialmente se recusaram a prestar homenagens ao Upāli, que era mais antigo, porque acreditavam que ele era inferior. O Buda na ocasião explicou sobre a interdependência e negou a essência divina, mostrando que escravos e sacerdotes estavam sujeitos aos quatro sofrimentos, do adoecimento, do envelhecimento, da morte e da reencarnação, portanto que todos eram

129 “An almswoman is on no pretext to revile or abuse an almsman” This is the same as the fifty-second Bhikkhuni Pacittiya, which was apparently formulated when the six almswomen (chabbaggtya bhikkhuniyo) discovered that Upali had revealed to Kappitaka, his teacher (Who had wantonly broken up a they had just erected to a great almswoman, recently dead), their plot to kill him. They upbraided and abused Upali, and after the news of this conduct had come to the ears of Gotama, as it is reported in the stereotyped way to have done, it was made in to a pacittiya offence for almswomen to abuse almsmen Upali. Later became an eminent man in the Order, but he was only a pupil at the time that the rule was said to have been made. It is possible that it was really formulated later, when he had become famous Kappitaka's indecent and selfish behaviour is symptomatic of the extremely low state to which monkdom could fall at that time. The complantis of the modest almswomen (bhikkhuniyo Apprccha) of the angry retaliation of the shocked ones, and their absence of sympathy with the horror felt by these at the dishonour done to their dead, show how important they felt it to be not to incense and annoy the almsmen.

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iguais. O Buda estava demonstrando que dentro da sua comunidade não havia diferença, que ele havia extinguido o sistema de castas. Upāli foi um monge de grande esforço e determinação, superou as adversidades e sua proeminência foi tal que no Primeiro Concílio ele foi o responsável pela organização do Vinaya.

Quando observamos registros canônicos, não só budistas como de diversas outras correntes religiosas, devemos questionar e sermos críticos com respeito a eles, pois tendem a mostrar uma realidade romantizada de alegria e pacificação que não condiz com a realidade humana. Aqueles que registram, transcrevem, copiam, o fazem por interesses que se refletem no texto. O ser humano de forma geral, permeado por suas aflições, não é neutro quando faz os registros. Sobre Upāli, sabe-se que ele sofreu diversos tipos de preconceitos, inclusive da comunidade feminina, conforme descrito por Horner (1930). Inclusive chama a atenção que Upāli tinha uma professora com quem ele se aconselhava, ou seja, vemos o registro de uma mulher ensinando a um homem.

3.3.6 Não revelar as ofensas de um monge.

Relembrando o apresentado no Discurso para Gotamī, o princípio foi registrado na passagem:

Ānanda, uma monja não pode revelar a ofensa de um monge; um monge pode expor a ofensa de uma monja. Ānanda, estabeleci para as mulheres este sexto princípio de peso à ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. (ŚĀKAYAMUNI, 2019a, §36)

Aqui foi registrada notória diferenciação no processo disciplinar entre homens e mulheres, onde temos outro indício de corrupção, pois o código monástico possui o preceito de que os pares não podem acobertar as falhas dos outros sob pena de arcarem com a mesma penalidade disciplinar daquele que erra. Este preceito foi uma forma que o Buda colocou para que a saṃgha vivesse em harmonia; não com o objetivo de criar descontentamento porque alguém poderia se sentir prejudicado por ter sua falta apontada, mas para que trocas de favores, divisões e ações que não estivessem de

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acordo com o treinamento não florescessem, para que não quebrassem a harmonia da comunidade.

Segundo a tradição Dharmaguptaka, um leigo ou leiga pode levantar a suspeita de conduta de um monge ou uma monja, denunciando ao Conselho da respectiva comunidade; com isso, não é plausível a diferenciação de que uma mulher não poderia expor a falta de um homem, enquanto ele poderia fazê-lo. Esta forma de apresentar o princípio é mais uma das marcas que sustenta a posição de que houve um interesse em colocar as mulheres numa posição desprivilegiada, à mercê da comunidade masculina, de tal forma que elas não pudessem denunciar eventuais abusos.

3.3.7 Cumprir a penitência em ambas as assembleias (monges e monjas).

Após o processo disciplinar que apura a ocorrência de uma falta, avaliando a veracidade da denúncia, a sua gravidade e estabelecendo a sanção cabível, a monja deve então cumprir a penitência em ambas as assembleias.

Existe uma preocupação da comunidade em contribuir para que a pessoa corrija o comportamento que levou à medida disciplinar, não sendo o propósito meramente punir o indivíduo. A medida recorrente é a suspensão das atividades e entrada em retiro. Neste período, a monja ou monge é supervisionado por um conselheiro e realiza práticas de meditação e estudo visando corrigir o comportamento.

Se considerarmos o exposto anteriormente, que Upāli possuía uma Professora, temos o registro de mulheres capacitadas para ensinar, temos monjas capacitadas para orientarem e supervisionarem o retiro. Cumprir penitência em outra assembleia seria necessário somente no caso de não haver pessoa capacitada para a supervisão. Este princípio é uma marca do desejo de subordinação da comunidade feminina pela masculina, uma vez que os homens, quando cometem falhas e precisam passar pelas penitências, não têm a obrigação de fazê-lo em outra comunidade que não a sua.

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3.3.8 Prestar homenagens aos monges homens.

Este princípio é citado por Rita Gross (1992), Alice Collett (2013) e outros autores como exemplo da discriminação que o budismo impõe às mulheres. Isso porque as monjas, segundo este princípio, devem prestar homenagens aos monges simplesmente pelo fato deles serem homens, desconsiderando o tempo de ordenação.

Retomando o abordado no capítulo anterior, considerar o renascimento como mulher como resultado de um mau karma é a incorporação do conceito pan-indiano de karma, não fazendo parte dos princípios ensinados pelo Buda. A desconstrução do ātman proclamada pelo Buda e sua respectiva substituição pela interdependência perde seu valor quando se determina um princípio baseado no gênero do indivíduo.

Chung (1999) defende que o Buda pode ter proclamado os princípios, e que estes seriam normas transitórias para apaziguar a sociedade da época - uma sociedade patriarcal, que desconsiderava a humanidade feminina a tal extremo que a considerava como posse e bem do homem ao qual ela estava vinculada, seja ele pai, marido ou, na ausência destes, o seu filho mais velho. Neste caso, entende-se que face a esta sociedade, era necessária uma norma de transição, que possibilitasse que as mulheres adentrassem ao caminho do renunciante, adquirindo status de ser humano.

O Buda não foi um reformador social, as mudanças implementadas eram praticadas intra-comunidade. O Buda não promoveu levantes sociais e questionamento da ordem. A comunidade dos pedintes dependia do bom convívio com os leigos, uma vez que sua manutenção se dava por meio das doações que recebia destes. O budismo primitivo era de mendicantes. Naquele tempo, houve reis, como Bimbinsara, que se converteram ao budismo e deram apoio estatal, mas na colcha de retalhos de pequenos reinos que formava a Índia, muitos reinos tomaram atitudes neutras em relação ao movimento e outros foram hostis a ele.

Naquele tempo, as revoltas e desavenças eram resolvidas ao fio da espada, com o emprego de exércitos; por isso, quem defende o emprego de normas transitórias o faz através do argumento de que esta seria a forma de viabilizar a fundação da ordem feminina.

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3.4 Conclusão - A ambiguidade do universo feminino nos primórdios do budismo.

Nos registros das suas primeiras manifestações, o budismo tem sido retratado de forma ambígua e tensa no que diz respeito ao tratamento das mulheres e da modalidade monástica feminina. A perspectiva budista sobre o papel, status e capacidade espiritual delas representa um elemento fundamental do cisma entre, por um lado, o androcentrismo histórico e institucional e o tratamento negativo das mulheres e, por outro lado, sua filosofia igualitária e doutrina do Dhamma. A relutância inicial do Buda ordenar mulheres e estabelecer uma ordem bhikṣuṇī é exemplo fundamental dessa discórdia. (OWEN, 2016)

O movimento do Buda começa convertendo as cinco pessoas que acompanharam Siddhārtha durante seu tempo de śaramana. Eles eram homens, depois outros foram se juntando ao movimento; com a conversão dos líderes do movimento dos seguidores do fogo o grupo atinge a escala de milhares de pessoas (WIJAYARATNA, 1990). O movimento com isso começa a ganhar reconhecimento, ao ponto que o Buda finalmente consegue apoio estatal. De mendicantes peregrinos o grupo passa a se estabelecer em parques. Os primeiros relatos mostram o apoio feminino à ordem, elas se tornaram patronas e praticantes leigas.

Quando a madrasta do Buda, Mahāprajāpatī, solicita ao seu enteado que lhe conceda a permissão para que ela se torne uma renunciante, ela faz um pedido revolucionário. O Buda vinha ensinando que a visão do karma deveria ser reinterpretada. Ele negou a essência divina, e com isso derrubou a fundamentação do sistema de castas. No lugar, ele ensinou sobre a interdependência.

De fato o Buda nega em um primeiro momento a fundação da comunidade monástica feminina, mas como já discutido é provável que ele tenha oferecido uma opção às mulheres, porque seria uma afronta muito grande que elas raspassem seus cabelos e o seguissem em peregrinação sem alguma forma de consentimento; além

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disso, nota-se que Ānanda ao ver as mulheres tomando tal posição não expressa nenhuma estranheza.

Na intervenção de Ānanda, o primeiro questionamento é se as mulheres são capazes de alcançar as realizações assim como os homens. O Buda então responde que as mulheres são tão capazes quanto os homens de alcançar o estado de arhat. Ao analisar a renúncia feminina no início do budismo indiano, é criticado o próprio conceito do que significa ser mulher. Além disso, através do registro dos obstáculos enfrentados e superados pelas pioneiras bhikṣuṇī, é demonstrado que a opressão de sexo / gênero não é aliviada por modelos andróginos, nem combatida, sem desafiar as ideologias, suposições e práticas dos androcêntricos, falocêntricos e a estrutura institucional heterosexista. (OWEN, 2016). Estrutura esta que merece especial atenção, pois os responsáveis pelos registros e posterior manutenção destes foram os homens. O pouco registrado na hagiografia feminina retrata um modo de vida independente, forte, determinado e que atingiu os objetivos pleiteados. Mulheres alcançaram os elevados estados do caminho e se tornaram também professoras, mas não conseguiram vencer a discriminação e o preconceito de seus pares masculinos.

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Considerações finais.

Quando olhamos pela perspectiva do sofrimento, percebemos que todos os seres são iguais; todos, independentemente do gênero, estamos sujeitos aos quatro sofrimentos, todos nós adoecemos, envelhecemos, morremos e reencarnamos. Ou seja, nosso sofrimento nos une de tal forma que a cor da pele, linhagem familiar e condição social simplesmente não fazem diferença. Frente a isso, o que temos a falar da questão de gênero à luz dos quatro sofrimentos?

O Buda negou a emanação divina do ser, o ātman, reformou o conceito de karma, e explicou à luz da interdependência de nossa humanidade e o que nos une no sofrimento. Contudo, as ideias e ideais do fundador foram transmitidos ao passar dos séculos com omissões e inclusões, muitas vezes propositais, na doutrina. Especialmente quando uma religião alcança o poder estatal, como aconteceu com o Budismo e o rei Aśoka (séc. III d.C.), os textos precisam refletir os ideais que solidifiquem e pacifiquem o poder social; com isso, dobra-se a diversos interesses, chegando a um ponto em que não mais conseguimos resgatar a essência do ensinamento.

Por isso a importância dessa pesquisa: uma vez que não é possível resgatar o fato real, é possível questionar a autenticidade do cânone. Para que isso seja possível, no primeiro capítulo buscou-se fundamentar as bases desse questionamento, mapeando a situação das pesquisas sobre mulheres e religião, com foco especial no nosso objeto. Muito caminhamos no último século, mas se olharmos para a situação das mulheres, vemos que temos uma longa jornada pela frente. No Ocidente e no Oriente, no passado e no presente, uma mulher sabe o que é viver na marginalidade. As religiões, como formadoras da moral, têm sua parcela de responsabilidade nesta situação.

A seguir passamos a buscar informações a respeito da situação das mulheres no tempo do Buda, ou seja, há cerca de 2.500 anos. Este resgate é importante para responder à questão sobre o que motivou estas mulheres a lutarem pela fundação da comunidade monástica feminina. A mulher naquela sociedade era apenas uma

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ferramenta para transmissão da essência divina que habitava no homem, ātman. Quando um filho nascia era uma grande alegria, pois a linhagem estava transmitida, mas quando uma filha vinha à vida o oposto acontecia, porque ela seria apenas a ferramenta para outro homem. Chega-se ao ponto de que as famílias sentiam mais pesar pela perda de uma vaca do que de uma menina. As mulheres estavam vinculadas à obediência aos homens: quando nasciam estavam subordinadas ao pai, quando se casavam, ao marido e se enviuvassem e não fossem queimadas na pira funerária do marido, estavam sujeitas ao filho mais velho. Sua “alegria” estava em servir e ser uma esposa obediente. Muito ainda há por ser investigado neste campo, são raras e poucas as informações a respeito da realidade vivida por elas. Essa história ecoa ainda nos dias de hoje, pois o sistema de castas foi abolido pela constituição indiana, mas está muito vivo na organização da sociedade atual daquele país.

Além disso, o budismo é desconhecido pelos brasileiros, as bases da comunidade feminina foi a estrutura implementada pelos seus pares homens. Disso a importância de, mesmo que brevemente, conhecer a fundação desta comunidade.

No segundo capítulo, adentrou-se a fundação da comunidade feminina, iniciando por retomar as bases que motivaram aquelas mulheres a perseguirem o ideal, não desistindo mesmo face à negação e às dificuldades. Em seguida, utilizando-se dois textos canônicos, O Discurso para Gotamī e o Kullavagga, caminhamos pelo processo de fundação da comunidade feminina. Muito mais do que resgatar esta história de superação e determinação, foi importante apontar as inconsistências nos relatos, mostrando que mesmo canônicos, os textos podem ter sofrido corrupções, sejam por supressão ou adição. Foi possível mostrar estes pontos, que já vêm sendo explorados por outros pesquisadores e pesquisadoras.

O Buda instruiu no seu último Sermão, Mahāparanirvana Sūtra, que seus alunos deveriam acreditar no que ele havia dito após análise e experimentação e não simplesmente porque ele havia dito. Esta exortação é fundamental quando se questiona um texto canônico, porque ele incentiva a análise crítica. Se mesmo quando temos a certeza da autoria das palavras devemos colocá-las à prova, o que deveríamos dizer a respeito de quando percebemos inconsistências nele?

Apontar os indícios de corrupção do texto desde a história da fundação da comunidade feminina é fornecer ferramentas para dessacralizar a opressão que essa

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comunidade sofre ainda hoje. As mulheres precisam conviver com a acusação de que, devido à formação da comunidade das monjas, o tempo de dispensação dos ensinamentos do Buda seria drasticamente reduzido, durando apenas cinco séculos. Mesmo tendo se passado vinte e cinco séculos, esta é uma marca que persiste.

Por fim, os Gurudharmas são pormenorizados no terceiro capítulo. Estes princípios são unanimemente citados como ferramenta de subordinação e opressão da comunidade feminina. A vasta maioria dos autores e autoras quando falam da desigualdade dentro do budismo citam a obrigação da monja de prestar homenagens ao monge independentemente da quantidade de votos e tempo de ordenação entre ambos. Isso é tão marcante que o cânone diz que uma monja, mesmo que tenha sido ordenada há mais de cem anos, deve prestar homenagens a um monge homem, mesmo que ele seja recém ordenado. Contudo, quando analisamos cada um dos preceitos, podemos apontar as inconsistências deles.

A importância de pesquisar aquele tempo antigo traz um reflexo no presente. Sobreviveram à passagem do tempo três ordens monásticas primitivas, são elas: Theravāda, Mūlasarvāstivāda e Dharmaguptaka. Nestas, somente na tradição Dharmagupta a linhagem feminina plena ainda existe, nas demais ela se perdeu com o tempo. Contudo, nos últimos cinquenta anos tem ocorrido um movimento por parte das mulheres para promover o resgate destas linhagem. Os Gurudharmas são um dos obstáculos a serem superados. A existência do princípio que impõe a necessidade da dupla saṃgha para a ordenação das mulheres cria um obstáculo intransponível. As mulheres, para chegarem ao ordenamento pleno, precisam passar pela cerimônia em AMBAS as assembleias. Isso leva a um dilema circular: se não há uma comunidade feminina para ordenar monjas, como monjas podem ser ordenadas?

Disso decorrem dois outros questionamentos. O primeiro é que se as três linhagens vieram do Buda e os códigos são essencialmente iguais, o ordenamento poderia ser obtido na outra comunidade. Ou seja, uma monja Mūlasarvāstivāda, quando cumprisse os pré-requisitos para o ordenamento, solicitaria à comunidade Dharmaguptaka para que isso fosse feito. Este é um movimento que vem acontecendo, diversas monjas ao redor do planeta estão trilhando este caminho e alcançando o pleno ordenamento. Contudo, existem comunidades resistentes ao empoderamento das ordens femininas que não reconhecem este processo.

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O segundo questionamento passa pelo questionamento da validade dos Gurudharmas. O argumento é precioso em sua simplicidade. Quando Buda fundou a ordem monástica feminina, ordenando Mahāprajāpatī, ele o fez sem a existência de uma comunidade feminina, simplesmente pelo fato que tal grupo ainda não existia. Ela era a primeira a ser ordenada. Com isso, contesta-se a validade do referido princípio, de tal forma que as mulheres poderiam ser ordenadas por seus pares homens, sem empecilho. Este caminho também tem sido realizado e muitas mulheres têm alcançado o pleno ordenamento por esta via.

O coração desta contribuição está na desconstrução das amarras de subordinação da comunidade feminina à masculina, apresentando os indícios de corrupção do cânone, explorando as razões apresentadas pelas pesquisadoras e pesquisadores desta área e adentrando as inconsistências do próprio texto. Esta pesquisa não é a solução para o empoderamento feminino budista, contudo, mesmo a mais longa jornada começa com um primeiro passo, o qual se espera que seja dado com o presente trabalho, inspirando pesquisadoras e pesquisadores, professoras e professores, alunas e alunos a seguirem as palavras do Buda em seu último discurso, o Mahāparinirvāṇa Sūtra, no qual Siddhārtha Gautama exorta o senso crítico de seus alunos e alunas para que não aceitassem suas palavras apenas porque ele as havia dito, mas que aplicassem e fossem críticos e críticas a respeito delas. Por isso, questionar a veracidade e a corrupção do cânone é ferramenta importante neste desenvolvimento. Esta pesquisa não encerra o assunto. Ela apenas abre as portas a um horizonte de questionamentos e possibilidades que caminha junto com a busca por restabelecer o papel da mulher dentro do budismo, um papel que se perdeu pela corrupção do cânone. O Buda reconheceu que o potencial para o completo despertar das mulheres é igual ao dos homens; tendo em vista este fato, não há fundamento sólido o suficiente para oprimir as mulheres, por isso trazer à luz do conhecimento estes interesses obscuros que subjugam as monjas é uma tarefa que está se iniciando. Que esta pesquisa sirva de inspiração para que outras se levantem contra as situações de desigualdade.

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Apêndice 1

1.Uma breve visão da história do budismo e seus pilares fundamentais.

A abordagem deste tópico se dará em duas etapas. Primeiramente, de forma muito sintética, apenas com objetivo de situar a leitora e o leitor, será apresentada a história de vida de Siddhāṛtha Gautama antes dele se tornar o Buda. Depois, apresentaremos o Dharma-chakra-vartana-sūtra130. Este foi o primeiro Sermão do Buda, proferido semanas após ter realizado o completo despertar. Neste texto são apresentados os pilares fundamentais do Budismo e ocorre a fundação da comunidade monástica masculina. Em seguida à sua apresentação, serão feitas considerações a respeito do Sermão, buscando apresentar ferramentas para o entendimento do referido texto.

1.1 A vida do bodhisattva

A ideia de abandonar o mundo e buscar por elevação e realização pessoal era uma prática presente na cultura indiana, cujo sistema apenas reforçava a rígida estrutura de castas. Akira (2007) explica que Siddhāṛtha nasce num momento importante do contexto indiano, onde a classe sacerdotal vinha perdendo força e a casta mais importante era a dos guerreiros, sendo este movimento particularmente forte no centro da Índia. Além disso, sobre a organização daqueles que deixavam a vida em família, ele explica que na época em que o Buda era jovem existiam duas classes principais de praticantes religiosos: os brâmanes e os śramanas.

130 Em português, a tradução do título do sânscrito seria Sermão do Giro da Roda do Dharma (ensinamento/doutrina), contudo diversos tradutores preferem traduzir como Sutra das Quatro Nobres Verdades, ou Quatro Verdades Superiores. Superiores porque são superiores ao sofrimento. A tradução apresentada foi feita por Plínio Marcos Tsai e utilizada com a autorização do mesmo.

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Os brâmanes eram os representantes das religiões tradicionais, sendo os responsáveis por oficiarem os sacrifícios. Ao mesmo tempo, eles se mobilizavam buscando o Absoluto através do estudo de uma filosofia que identificou ātman com Brahman. Huai-Chin (2002) concorda com Akira (2007), e ambos explicam que a vida de um brâmane era idealmente dividida em quatro etapas. Quando jovem, ele deveria ser aceito como discípulo por um professor e devotar-se ao estudo dos Vedas. Quando seus estudos estivessem concluídos, ele retornaria para casa de origem para se casar e tornar-se um chefe de família. Ao envelhecer, ele deixaria seu filho assumir o lar e se retiraria para a floresta para viver e realizar práticas religiosas. Finalmente, ele abandonaria até mesmo sua morada na floresta para viver uma vida de peregrinação e morrer enquanto vagava.

Akira apresenta outra corrente religiosa da época, os śaramana, que significa “aquele que se esforça”, que era uma nova forma de viver não mencionada nos Upanishads131 mais antigos. Neste sistema, o praticante abandona sua casa para levar uma vida de vagar e mendigar. Muitas vezes ele entra nesse modo de vida ainda quando jovem, não havendo exigência de que ele passasse pelos outros estágios da vida antes de se tornar um śramana. Nessa doutrina o praticante se dedica a controlar e limitar seus desejos exercitando yoga e realizando severas austeridades religiosas na floresta para experimentar o Absoluto ou escapar da morte.

Outro ponto que não pode ser negligenciado quando se fala a respeito da história de um fundador são os elementos que os fiéis possuem, não expressam a grandiosidade que querem transmitir, desta forma são agregados à história mitos e lendas, tornando o relato fantástico, o que em nosso tempo é inadmissível (HUAI- CHIN, 2002). Outro ponto sobre os relatos é a questão da memória fotográfica atribuída àqueles encarregados de narrar estes eventos. Acreditar que alguém tenha memorizado tudo, simplesmente pelo ato de ouvir uma única vez, que a transmissão dos Sermões (Sūtra) seja exclusivamente oral e que somente foram compilados depois do falecimento do Buda, é, nas palavras de Tsai, “Um salto de fé” (TSAI, 2017a, p 20). Assim sendo, para compor a presente apresentação, os relatos fantásticos foram excluídos.

131 Textos védicos antigos.

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É na realidade da luta pelo estabelecimento dos guerreiros como casta dominante, nos ideais védicos e śaramanas de renúncia que Siddhāṛtha nasce, por isso ele irá deixar a vida em família; contudo, tendo se aplicado aos sistemas da época em busca da verdade, ele percebe as falhas desses sistemas, e chega à conclusão que eles não conduzem a uma cessação definitiva do sofrimento. Desta forma, ele, tendo realizado a verdade132, estrutura um novo sistema.

“Shakyamuni Buda surgiu em resposta a essas condições. Fundou a religião budista com seu voto de compaixão, equilibrando as desigualdades, mantendo os pontos positivos da cultura preexistente e eliminando suas deficiências. Ele ensinava em resposta ao que era bom e belo no espírito humano, resumindo uma centena de gerações de tradição cultural. Refutou o conceito de que a humanidade era dividida em classes por natureza e indicou o modo de elevar, refinar e aperfeiçoar a natureza humana.” (HUAI-CHIN, 2002, pg5)

Quem foi Siddhāṛtha, qual foi sua trajetória de vida, como ele atingiu o completo despertar133 e como fundou as comunidades pode ser conhecido por uma composição entre mais antigo relato budista que se tem conhecimento, o Buddhacarita de Ashavagosha, e o Lalitavistara Sūtra (FOWLER, 2005), tendo consciência que estes são relatos Mahayana e que existem diferenças entre tais relatos e os registros Theravāda (SWEARER, 1996). Desta forma, os eventos principais são descritos a seguir.

O relato de seu nascimento é envolto em mitos e lendas, onde a criança que viria ser o Buda já possuiria os sinais daquele capaz de percorrer tal caminho, e isso foi predito pelos grandes místicos de seu tempo.

Na sua infância, torna-se digno de nota a grande proteção que o pai colocava ao seu redor, contudo isso não impediu que em um festival da colheita ele fosse esquecido por suas cuidadoras sob uma árvore no calor indiano. Lá, ele teve sua primeira experiência de transe meditativo.

132 Realizado a verdade sobre a existência do sofrimento, sua origem, sua cessação e o caminho para a cessação do sofrimento. 133 Alguns autores utilizam o termo iluminação. O completo despertar ocorre quando o ser é capaz de perceber a dualidade das coisas, abandona a percepção da existência como inerente e passa a perceber a interdependência. Ao se tornar um Buda, o ser remove a ignorância fundamental, libertando-se do ciclo de renascimentos descontrolados, o saṃsāra.

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O príncipe é educado e aprendeu as principais artes, entre elas luta, medicina, gramática e matemática, tendo sido considerado o mais hábil em todas elas. Quando atinge a idade, casa-se com sua prima Yaśodharā.

Consta destes relatos que Siddhāṛtha foi protegido e que no palácio não se via o sofrimento do envelhecimento, adoecimento e morte. Quando as pessoas ficavam doentes, velhas ou estavam para morrer eram levadas para um local distante. Um dia o Bodhisattva134 decide conhecer o lado de fora do palácio, que fora preparado para este passeio; assim como ocorria no interior do palácio, haviam sido removidos os vestígios do sofrimento, mas, mesmo assim, ele vem a ver uma pessoa velha. Questionando seu cocheiro sobre quem era tal pessoa, ele recebe uma explicação sobre o fato de que todos nós chegamos à velhice, sobre como o corpo decai e sobre os sofrimentos que dela decorrem. Siddhāṛtha retorna pensativo para o palácio. Numa segunda oportunidade, ele sai e tudo havia sido novamente preparado, mas ainda assim ele vê uma pessoa gravemente doente. Retornando ao palácio, tal fato levou-o a refletir a respeito. Na terceira saída, mesmo com todos os preparativos do pai, ele defronta-se com um funeral e encara a morte. Mais uma vez, ele retorna reflexivo. Na quarta saída ele encontra um renunciante, um śramana. Ao questionar sobre quem era a figura, descobre que é alguém que está inquieto pelas mesmas questões que ele e que deixa a vida em sociedade para buscar pelas respostas.

Na noite em que sua esposa deu à luz o seu filho, ele o chama de Rahula135 e toma a decisão de deixar o palácio, o que acontece na mesma noite. Na floresta, ele recebe instruções de alguns ascetas que viviam próximos (poucos dias a cavalo). Deixa seus adornos reais, corta seu cabelo e então parte em busca de professores para alcançar seu objetivo de vencer o envelhecimento, o adoecimento e a morte. O primeiro professor que ele procurou foi Ārāḍa Kālāpa e, após dominar plenamente as técnicas e ser considerado como um professor também, despede-se dele porque mesmo tendo se tornado hábil nas práticas elas não trouxeram a resposta buscada. Então, o bōdhisattva procura Udraka Rāmaputra, com quem estuda, treina e se esforça, alcançando também o nível de ser considerado por seu professor um igual a ele, mas igualmente não encontra a resposta esperada. Pratica então austeridades, com a ideia

134 Bodhisattva significa ser para o despertar, um epíteto usado para aquele que virá a se tornar um Buda mas ainda não se tornou. 135 Rahula (sânscrito) significa aquele que amarra.

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de que se ele não fizesse absolutamente nada ele então cessaria todo karma136. Neste processo alimentava-se com menos de um grão por dia (alguns textos e relatos descrevem que seu estômago encostou na coluna, seu corpo tornou-se cadavérico e ele não se levantava da posição). O acompanhavam neste tempo cinco ascetas.

Um dia, próximo da morte por inanição, ele escuta um tocador de cítara em um barco no qual ouve a instrução: se você apertar demais as cordas elas não emitem som porque estouram, mas se você as deixar muito frouxas elas também não vão emitir som. Ao ouvir isso ele tem uma epifania e percebe que se morresse naquele momento seu esforço teria sido em vão porque ele não havia alcançado as respostas que buscava. Então com grande dificuldade ele se levanta e vai até o córrego próximo tomar água. Devido à sua grande fraqueza quase morre afogado, mas é socorrido por uma menina chamada Sujata que o alimenta com arroz cozido com leite até que ele recupere suas forças. Nestas práticas de ascetismo ele permaneceu por sete anos.

Tendo se recuperado das práticas ascéticas, ele então vai aos pés da Árvore Bodhi (Figueira do tipo ficus religiosa), constrói um assento de grama e se determina a somente sair dali quando alcançasse a libertação. E assim ele o faz, permanecendo em meditação por sete dias. Neste processo ele atinge o completo despertar, vencendo os grandes demônios do ódio, do apego e da ignorância fundamental, tornando-se um Buda137. Após atingir o estado de um ser completamente liberto, ele medita por mais 49 dias para estruturar sua descoberta e parte para ensiná-la.

Pensa nos seus professores Ārāḍa e Udraka como possíveis pessoas para ouvir sobre suas descobertas, mas descobre que eles haviam falecido. Então, vai atrás dos ascetas que o acompanharam e profere o Sūtra138 do Giro da Roda do Dharma, Dharma-chakra-vartana-sūtra, na qual ele resume o caminho budista.

136 Karma (sânscrito) Kamma (Pāli): neste contexto significa ação, trabalho ou destino. Também se refere ao princípio de causa e efeito onde a intenção e as ações de um indivíduo afetam o futuro desse indivíduo. Neste sentido, boas intenções e boas ações constroem um bom karma e, portanto, renascimentos mais felizes, enquanto más intenções e más ações geram um karma ruim tendo como consequência maus renascimentos. A filosofia do karma está intimamente associada à ideia de renascimento em muitas escolas de religiões indianas (particularmente hinduísmo). No caso, o conceito por detrás das práticas ascéticas é que se nenhum karma fosse gerado, não haveria base para um novo renascimento e isso provocaria a libertação. 137 Para o budismo, um Buda é um ser totalmente iluminado que alcançou perfeito conhecimento da verdade e, assim, é liberto de toda a existência condicionada. 138 Sutta e Sūtra, (Sermão) são sinônimos, o primeiro está escrito em Pāli e o segundo em Sânscrito. Os discursos do Buda foram registrados nos dois idiomas, naquela época o povo falava uma língua que depois se tornou o Pāli e que para os eruditos será o sânscrito. Uma das formas de sabermos a qual público foi direcionado determinado sūtra é verificando a língua em que ele foi registrado. Aqui eu não adotei uma única forma, preservando tal característica do budismo indiano.

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1.2 Dharma-chakra-vartana-sūtra. Sermão do Giro da Roda do Dharma

Representando o primeiro Sermão, que inaugura os ensinamentos do Buda após ter realizado o completo despertar, este texto traz dois pontos fundamentais da doutrina budista que são as Quatro Nobres Verdades e o Caminho Óctuplo; além disso, após proferir o discurso, ocorre a fundação da comunidade monástica masculina. Existem versões deste Sermão nas diversas Tradições e Escolas Budistas, como na Tradição Theravāda, uma outra versão Mahayana presente no Lalitavistara Sūtra e ainda uma versão no Sūtra do Lótus. Isso para exemplificar. Contudo, os pontos principais citados estão presentes em todas as versões.

Desta forma, segue o Sermão:

§ 1. Assim eu escutei certa vez. O Buddha chegara em Benares, em Isipatana. Lá ele se dirigiu aos cinco ascetas que praticavam um caminho sem resultado, assim: § 2. “Ascetas, há dois extremos, aos quais aquele que renunciou às obrigações sociais e que segue a vida que busca sair dos sofrimentos não deve se entregar. Quais dois? O primeiro extremo é a busca da felicidade pelo cultivo-e-aumento-dos-prazeres-sensoriais, por meio da aquisição constante de bens materiais e experiências-sensoriais e do desfrute delas, pois não desenvolvem a felicidade que permanece, não levam para uma satisfação que não se desfaz, não levam para uma realização definitiva da paz e não trazem o benefício último que é a cessação definitiva dos sofrimentos. E o segundo extremo é a busca da felicidade pela mortificação-de-todos-os-desejos, pois isso não leva para uma realização definitiva da paz, não traz o benefício da cessação definitiva dos sofrimentos. Evitando esses dois extremos, o Buddha despertou para o Caminho do Meio, que faz surgir o entendimento, que faz surgir o conhecimento, que resulta na paz, na experiência direta da felicidade que permanece, na iluminação, na completa cessação dos sofrimentos. § 3. E qual, ascetas, é o caminho do meio que levou o Buddha para o mais elevado e completo despertar? Que caminho é esse que faz surgir o entendimento, que faz surgir o conhecimento, que resulta na paz, na experiência direta da felicidade que permanece, na iluminação, na completa cessação dos sofrimentos? É este Caminho de Oito Partes Superiores: § 4. O (1) entendimento correto, o (2) pensamento correto – que resultam na renúncia ao egoísmo, na bondade, e na não-violência. § 5. A (3) linguagem correta, a (4) ação correta, e o (5) modo de vida correto – que resultam na conduta moral e ética corretas. § 6. O (6) esforço correto – que resulta na permanência das causas da felicidade e bem-estar.

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§ 7. A (7) atenção plena correta, e a (8) meditação correta, que resultam na cessação definitiva dos sofrimentos. § 8. Esse, ascetas, é o Caminho do Meio para o qual o Buddha despertou, que faz surgir o entendimento, que faz surgir o conhecimento, que resulta na paz, na experiência direta da felicidade que permanece, na iluminação, na completa cessação dos sofrimentos. § 9. Agora, esta é a Verdade do Sofrimento: (1) o nascimento aflitivo é sofrimento, (2) o envelhecimento aflitivo é sofrimento, (3) a enfermidade aflitiva é sofrimento, (4) a morte aflitiva é sofrimento; (5) tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero são sofrimentos; (6) a união com aquilo que é desprazeroso é sofrimento; (7) a separação daquilo que é prazeroso é sofrimento; (8) não obter o que se deseja é sofrimento; em resumo, (9) os cinco agregados condicionados pelo apego aflitivo são sofrimentos. § 10. Agora, esta é a Verdade da Causa do Sofrimento: é este desejo fixado, que conduz a uma renovada existência, acompanhado pela cobiça e pelo prazer, buscando o prazer aqui e ali; isto é, (1) o desejo fixado pelos prazeres sensoriais; (2) o desejo fixado na expectativa – que leva para a visão do eternalismo; e (3) o desejo fixado em nenhuma expectativa – que leva para o aniquilacionismo. § 11. Agora, esta é a Verdade da Cessação do Sofrimento: é o desaparecimento e cessação, sem deixar vestígios daquele mesmo desejo, abrir mão, descartar, libertar-se, desapegar-se desse mesmo desejo. § 12. Agora, esta é a Verdade do Caminho da Cessação do Sofrimento: é este Caminho de Oito Partes Superiores ao Sofrimento: § 13. O (1) entendimento correto, o (2) pensamento correto – que resultam na renúncia ao egoísmo, na bondade, e na não-violência. § 14. A (3) linguagem correta, a (4) ação correta, e o (5) modo de vida correto – que resultam na conduta moral e ética corretas. § 15. O (6) esforço correto – que resulta na permanência das causas da felicidade e bem-estar. § 16. A (7) atenção plena correta, e a (8) meditação correta, que resultam na cessação definitiva dos sofrimentos. § 17. Pela Verdade do Sofrimento, o sofrimento deve ser investigado para que seja compreendido, até que ele seja completamente compreendido. Assim, praticantes, com relação a coisas não ouvidas antes, surgiram em mim a correta visão dos fenômenos, o conhecimento não-dual, o conhecimento investigativo, o conhecimento sem distorções, e a iluminação. § 18. Pela Verdade da Causa do Sofrimento, as causas devem ser investigadas para serem abandonadas, até que elas sejam completamente abandonadas. Assim, praticantes, com relação a coisas não ouvidas antes, surgiram em mim a correta visão dos fenômenos, o conhecimento não-dual, o conhecimento investigativo, o conhecimento sem distorções, e a iluminação. § 19. Pela Verdade da Cessação do Sofrimento, essa cessação deve ser cultivada para ser realizada, até que ela seja completamente realizada. Assim, praticantes, com relação a coisas não ouvidas antes, surgiram em mim a correta visão dos fenômenos, o conhecimento não-dual, o conhecimento investigativo, o conhecimento sem distorções e a iluminação. § 20. Pela Verdade do Caminho da Cessação do Sofrimento, esse caminho deve ser desenvolvido, até que ele seja completamente desenvolvido. Assim, praticantes, com relação a coisas não ouvidas antes, surgiram em mim a correta visão dos fenômenos, o conhecimento não-dual, o conhecimento investigativo, o conhecimento sem distorções e a iluminação.

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§ 21. Enquanto meu conhecimento e entendimento, dessas Quatro Verdades Superiores ao Sofrimento como na verdade elas são, nas suas três partes e doze aspectos, não estavam completamente estruturados desse modo, não reivindiquei ter despertado para o insuperável-completo-perfeito-despertar, neste mundo e suas relações existenciais. § 22. Mas quando meu conhecimento e entendimento das Quatro Verdades Superiores como elas realmente são constituídas, nas suas três fases de construção – o conhecimento de cada verdade, o conhecimento das ações que devem ser realizadas em cada verdade, o conhecimento da realização direta de cada verdade – e suas doze características de construção – a aplicação das três fases a cada uma das Quatro Verdades Superiores, estava completamente estruturada então, eu obtive a certeza de ter despertado para a insuperável e perfeita iluminação, neste mundo com suas relações existenciais. § 23. O conhecimento e o entendimento surgiram em mim: ‘A realização que levou para a libertação da minha mente é inabalável. Encerrada está a minha vida nos ciclos de sofrimentos. Não há mais vir a ser na natureza do sofrimento’. § 24. Isto foi o que o Buddha disse. Os cinco ascetas ficaram satisfeitos e contentes com as palavras do Buddha, deixaram o caminho do ascetismo outrora praticado, e adotaram as Quatro Verdades Superiores, o Caminho de Oito Partes Superiores, e formaram a primeira comunidade dos praticantes pedintes de esmolas de alimentos. (ŚĀKAYAMUNI, 2016)

Tradicionalmente, uma explicação a respeito de um texto canônico nas Escolas Budistas é feito dentro dos recortes e interpretação da escola à qual o comentador pertence. Isto ocorre desta forma porque o budismo não é uma unidade e não estabeleceu uma ortodoxia.

[sobre o budismo] É importante enfatizar essa falta de unanimidade desde o início. Estamos lidando com uma religião com cerca de 2.500 anos de desenvolvimento doutrinário em um ambiente em que a precisão e a sutileza escolástica eram muito importantes. Não há papas budistas, credos e, embora houvesse concílios nos primeiros anos, [não houve] nenhuma tentativa de impor uniformidade de doutrina sobre todo o estabelecimento monástico e muito menos o leigo. (WILLIANS, 2009, p.1. Trad. nossa139)

Contudo, o Sermão do Giro da Roda do Dharma possui diversas versões, pervadindo as Tradições e Escolas devido à sua importância, por isso, é possível fazer uma apresentação do mesmo que não se limite a um ponto de vista específico. A apresentação que segue de forma alguma pretende exaurir o tema, mesmo porque este seria um trabalho extenso e fugiria do propósito principal deste trabalho. Assim sendo,

139 It is important to emphasize this lack of unanimity at the outset. We are dealing with a religion with some 2,500 years of doctrinal development in an environment where scholastic precision and subtlety was at a premium. There are no Buddhist popes, no creeds, and, although there were councils in the early years, no attempts to impose uniformity of doctrine over the entire monastic, let alone lay, establishment.

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a apresentação que segue tentará explicar os pontos principais do Sermão, utilizando fontes seculares e religiosas de diversas tradições.

Este trabalho de explicar utilizando fontes diversas é possível porque considera-se que as “Quatro Nobres Verdades” são pilares fundamentais do budismo como um todo, pois este foi o primeiro discurso público realizado pelo Buda. Este reconhecimento do compartilhamento do ensinamento pelas tradições foi evidenciado por Je Tsongkhapa:

(...) as quatro verdades são ensinadas repetitivamente através do Mahayana e do Hinayana140. Uma vez que o Sugata141 incluiu nas quatro verdades os pontos vitais que dizem respeito ao processo da existência cíclica e sua cessação, esse ensinamento é crucial para se atingir a liberdade. (TSONGKHAPA, 2012, p.11)

Esta posição a respeito da importância deste sermão também é detalhada por Tenzin Gyatso:

Fundamental a todas as escolas do Budismo é a doutrina das Quatro Nobres Verdades: a verdade de que a existência imperfeita está enredada no sofrimento; de que o sofrimento tem uma causa; de que existe um estado onde há a cessação do sofrimento e de que existe um caminho espiritual que leva ao estado além de todo sofrimento. Elas devem ser entendidas também em sua ordem seqüencial: a partir da causa do sofrimento surge a realidade do sofrimento; a partir da causa da prática surge a realidade onde existe a cessação do sofrimento. Desse modo, as duas primeiras verdades descrevem o samsara e como vagamos nele; as duas últimas referem-se à paz absoluta e como a obtemos. (GYATSO, 2013, p.73)

Outros autores como Peter Harvey (2019), Ajhan Summedo (1992), Bhikkhu Ānandajoti (2016), dentre outros fazem a mesma exortação a respeito da importância desta passagem nos textos canônicos, inclusive citam esta passagem em outros discursos, tanto mais longos como mais curtos no cânone e sua importância.

Passando ao Sermão, ele começa com a descrição de onde ele foi proferido, sendo essa uma marca dos textos canônicos dos discursos do Buda, onde também é descrito no primeiro parágrafo quem era o público que participou do discurso. No caso,

140 Mahayana e são as duas grandes divisões das escolas budistas, algumas fontes colocam a divisão em três, incluindo a na divisão. 141 Sugata é um dos epítetos dados ao Buda. De acordo com Bhikkhu Khantipalo, o termo “sugato” pode ser traduzido como “auspicioso”, “afortunado” ou literalmente “bem-aventurado”, “alguém que foi para o bem”, “aquele que estava indo bem”. Isso se refere ao fato de que seu Nirvāṇa era bom e que seu despertar era bom para o mundo.

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estes cinco ascetas já conheciam o Buda, pois eles o acompanharam no tempo de ascetismo.

No segundo parágrafo o Buda começa o discurso propriamente dito, que é dedicado a explicar o caminho do meio. Primeiramente o Buda apresenta o caminho dos prazeres sensoriais, e depois o outro extremo que é o caminho da mortificação. No tempo do Buda existiam duas (outras) correntes filosóficas. Uma que pregava o ascetismo extremo como forma de parar o karma, isso porque na visão desta escola o karma era determinístico, uma espécie de destino, levando ao eternalismo. Outra forma era a negação completa da casualidade, negando as consequências das ações e a vida após a morte, levando apenas aos desfrutes dos prazeres e ao aniquilacionismo (HARVEY, 2019).

Buda então passa a explicar o Nobre Caminho Óctuplo; neste Sermão ele fará a explicação duas vezes, primeiro nos parágrafos quatro a oito e depois nos treze a dezesseis; as explicações são idênticas e visam reforçar a importância do ensinamento e fixar na mente do ouvinte. Apesar do discurso começar apresentando o Caminho Óctuplo, as explicações tradicionais começam com as quatro nobres verdades e fixam sua apresentação na repetição no discurso. Isso se deve porque o nobre caminho é a essência da Quarta Nobre Verdade. Para o budismo, este caminho de oito partes consiste no núcleo da prática, pois ele inclui dentro dele treinamentos populares no Ocidente como meditação e a investigação da realidade (vacuidade, śūnyatā), mas não se limita a isso.

Essas oito práticas informam o núcleo ortoprático do budismo, cada um dos estágios do caminho (bhūmikā) assinala a consubstanciação do método (sādhana) em termos de realização daquelas quatro verdades já discutidas. O caminho óctuplo proposto pelo Buda é, na verdade, um conceito central da tradição (“ortodoxia”) que se materializa na sua dimensão de práxis (“ortopraxia”); abraçar com confiança o caminho exige a prévia reflexão sobre sua fundamentação teórica, que somente pode ser efetivamente demonstrada na sua dinâmica de materialização. A eficácia do método repousa na tese, que só se demonstra no trilhar do caminho. O círculo se fecha e se funde naquela perspectiva bifronte cujo objetivo final é o pacificar das paixões, aqueles afetos que nublam as reais potencialidades humanas de sabedoria () e compaixão (karunā), duas das principais virtudes (parāmitā) sublinhadas por uma tradição que jamais perde de vista a interdependência de todos os seres e fenômenos que, não se deve esquecer, são também insubstanciais (anātman), fluidos (anitya) e vazios de substância (śūnyatā). (ANDRADE, 2016, p.111. Grifo no orginial)

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O Caminho Óctuplo é organizado em três grandes blocos; o primeiro bloco corresponde ao parágrafo quatro, o segundo ao parágrafo cinco e o terceiro bloco aos parágrafos seis e sete, e suas respectivas repetições. Esta organização em blocos corresponde aos entendimentos dos principais treinamentos que são desenvolvidos no budismo. Ajahn Sumedo (1992) explica que o Caminho Óctuplo é apresentado em uma sequência: começando com correto (ou perfeito) entendimento, samma ditthi, vai para intenção ou aspiração correta (ou perfeita), samma sankappa; esses dois primeiros elementos do caminho são agrupados como sabedoria (pañña). O compromisso moral (sila) flui de pañña; isso abrange a fala correta, a ação correta e o correto modo de vida - também conhecido como discurso correto, ação e modo de vida correto, samma vaca, samma kammanta e samma ajiva.

Correto ou perfeito porque entende-se que existe uma forma específica de realizar cada passo do caminho, isso precisa ser explorado pelo praticante e ser dominado por ele de forma que ele possa dominar o caminho. Caminho este que, apesar de ser apresentado em uma sequência, não acontece com seus fatores em ordem, mas simultaneamente. É uma explicação didática para o entendimento e estudo que possibilita orientar o praticante para que ele possa ter um ponto de partida para a prática de maneira a conseguir alcançar o que os budistas chamam de “outra margem”, que é a libertação do sofrimento e das causas do sofrimento (SUMEDHO, 1992).

O caminho óctuplo, então, configura-se como uma cartografia da busca, uma topografia do difícil terreno por sobre o qual a senda budista se desenvolve. Este terreno foi mapeado e cartografado pelo Desperto; neste sentido, o caminho, por vezes descrito como um caudaloso rio na primavera traduz, como metáfora, a própria vida: atravessá-la a contento, alcançar a ‘outra margem’, implica a confiança no barqueiro, sua experiência e habilidade na condução da travessia do saṁsāra ao nirvāṇa [...] (ANDRADE, 2016, p.111. Grifo no original)

O caminho começa sendo descrito no parágrafo quarto, e se inicia pelo entendimento de porque nossas ações começam com o pensamento; para corrigi-lo precisamos mudar a forma como entendemos a maneira como nos relacionamos, por isso parte do entendimento, que corresponde ao estudo, a busca por um novo caminho e um novo significado, isso irá trazer um pensamento correto, ou seja, alinhado a busca com o que se deseja que renuncia ao egoísmo pela bondade e a prática da não violência.

Prossegue com o quinto parágrafo, onde ao mudarmos a forma como nós pensamos, nós teremos a linguagem correta; aqui a linguagem não se refere ao

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processo de fala, mas ao processo de diálogo mental que possuímos e é a base para que iniciemos as ações que, tendo como base uma origem, uma linguagem correta será correta também. Nossas ações estando corretas, nosso modo de vida alinhado a estas ações será condizente e, portanto, correto; daí que se diz que a conduta ética e moral estará correta porque estaremos seguindo os preceitos de libertação.

O parágrafo seis refere-se ao esforço correto, que é um esforço inteligente, um esforço de longo prazo porque ele vem desenvolvido de um processo de construção que reflete e sabe que será necessário planejamento. Assim como um atleta de maratona não corre o primeiro trecho na velocidade de um atleta de 100 metros rasos porque sabe que precisa da energia para um longo percurso, o esforço correto planeja as ações sabendo que o completo despertar é alcançado ao longo de muito tempo, então ele observa cuidadosamente e tendo estudado e se preparado faz o que é necessário por este trabalho; mesmo que o senso comum de sua época diga que o caminho seria diferente ele confia no planejamento para a manutenção das causas da felicidade, porque sabe que ela é necessária ao caminho.

Por fim, conclui-se com parágrafo sete que traz os dois pontos finais, a atenção plena correta e a meditação correta, que resultam na cessação definitiva dos sofrimentos. Com este planejamento ele se mantém atento, não permitindo em si nem mesmo a menor das aflições, porque sabe que, da mesma forma que um copo se enche pelo acúmulo de pequenas gotas de água, as ações têm consequências e por isso se mantém vigilante, corrigindo suas falhas. Então desenvolve a meditação que libertará.

Considerando que a exposição sobre as quatro nobres verdades consiste no coração da prática, uma vez que o Nobre Caminho Óctuplo está inserido nela como parte da Quarta Nobre Verdade, passamos a explorar tal ponto. A forma como são apresentadas estas “verdades” é importante para o entendimento dentro da estrutura budista. Elas foram constituídas desta forma porque se baseiam na medicina védica da época do Buda. Esta forma de apresentação reflete uma estrutura de meditação que visa formar uma convicção no praticante para que ele adentre o caminho.

Uma vez que essa estrutura sinóptica do treinamento é importante, ela precisa ser ensinada aos estudantes nessa ordem. Por quê? A menos que você reflita sobre a verdade do sofrimento ao ponto de se tornar revoltado com a existência cíclica, seu desejo de atingir a libertação serão meras palavras, e o que quer que faça o levará a originar novos sofrimentos. A menos que você reflita sobre a origem do sofrimento até que você tenha um bom entendimento da raiz da existência cíclica, que é o karma e as aflições, você será como um arqueiro que não vê o alvo – você perderá os pontos essenciais

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do caminho. Você confundirá o que não é um caminho para se libertar da existência cíclica por outro caminho e, com isso, irá se exaurir sem resultado. Finalmente, se você falhar em reconhecer a necessidade de eliminar o sofrimento e sua origem, você também falhará em reconhecer a libertação que provê alívio do sofrimento e sua origem; assim então seu interesse na libertação será um mero conceito. (TSONGKHAPA, 2012, p.11)

Um dos pontos importantes a serem debatidos versa a respeito da tradução e interpretação da palavra dukkha. Émilie Durkhein (2014) entendeu de forma errada, colocando que a melhor tradução seria apenas “dor”, contudo insatisfação é uma tradução mais adequada.

A palavra Pali dukkha, significa “incapaz de satisfazer” ou “incapaz de suportar ou suportar qualquer coisa”: sempre mudando, incapaz de realmente nos satisfazer ou nos fazer felizes. O mundo sensual é assim, uma vibração na natureza. Seria, de fato, terrível se encontrássemos satisfação no mundo sensorial, porque então não procuraríamos além dele; nós apenas estaríamos ligados a ele. No entanto, ao acordarmos para essa dukkha, nós começamos a encontrar a saída para que não fiquemos mais constantemente presos na consciência sensorial. (SUMEDHO, 1992)

Resumindo, teríamos como as Quatro Nobres Verdades:

O ensinamento budista central das Quatro Nobres Verdades (Pali: cattāri ariya-saccāni) originalmente atribuídas ao Buda Gotama142 pode ser resumido como: (1) dukkha ou “insatisfação” na vida e na experiência; (2) a origem da dukkha (dukkha-samudaya), que é taṇhā-avijjā ou “desejo ligado à ignorância”; (3) a cessação da dukkha (dukkha-), que é nibbana ou libertação final do sofrimento; e (4) o caminho que conduz à cessação da dukkha (Pali: dukkha-nirodha-gamini-paṭipadā), isto é, o Nobre Caminho Óctuplo (ariya aṭṭhaṅgika magga). (KANG, 2011, p.308. Trad. nossa143. Grifo no original)

Para maiores explicações e detalhamento a respeito das quatro nobres verdades, recomenda-se a leitura do livro “A tradição do budismo. História, filosofia, literatura e prática” de Peter Harvey (2019); para entendimento dentro da tradição Geluk, do budismo tibetano, existe um vasto conjunto de obras escritas pelo Dalai Lama, Tenzin

142 Siddhāṛtha Gautama, ou Siddhattha Gotama em Pāli, também chamado de Gautama Buda, o Śākyamuni em Sânscrito. 143 The central Buddhist teaching of the Four NobleTruths (Pali: cattari ariya-saccani) originally attributed to Gotama Buddha can be summed up as: (1) dukkha or “unsatisfactoriness” in life and experience; (2) the origin of dukkha (dukkha-samudaya), which is tanha-avijja or “craving bound up in ignorance”; (3) the cessation of dukkha (dukkha-nirodha), which is nibbana or final deliverance from suffering; and (4) the path leading to the cessation of dukkha (Pali: dukkha-nirodha-gamini-patipada),namely the (ariya atthahgika magga)

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Gyatso, onde destacamos duas obras, “O mundo do budismo tibetano. Uma visão geral de sua filosofia e prática” (2001) e “Pacificando o espírito. Meditações nas Quatro Nobres Verdades” (2001).

Caminhando para o final do Sermão, temos os parágrafos vinte e um a vinte e três onde o Buda faz a declaração de que ele atingiu o completo despertar, inclusive descrevendo o que é este completo despertar. E no último parágrafo (parágrafo vinte e quatro) o Sermão então descreve a fundação da comunidade monástica.

Como resultado da sua exposição, compreendeu a inteireza do que estava sendo exposto, os demais receberam explicações detalhadas e então também compreenderam; desta forma, simples, originou-se a comunidade de pedintes de esmolas (HARVEY, 2019). Uma nota importante a respeito da fundação da comunidade é que o código de conduta monástico (Vinaya) não foi estabelecido. Ele é uma construção que foi sendo edificada com o tempo, uma vez que o convívio em grupo ia demandando normatividades para manutenção da harmonia (HARVEY, 2019).

O detalhamento da fundação da comunidade masculina é abordado no primeiro capítulo do presente trabalho em um tópico dedicado a esse assunto.

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Apêndice 2

O discurso para Gotamī

§ 1. Assim eu escutei certa vez. Naquele tempo, o Buda morava entre os Śākya em Kapilavatthu, no Parque Nigrodha, observando o retiro da estação chuvosa juntamente com um grande número de monges.

§ 2. Naquela época, Mahāpajāpatī Gotamī aproximou-se do Buda, prestou homenagens com a cabeça aos pés dele e, permanecendo ao seu lado, disse: “Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do caminho do recluso? Por essa razão, podem as mulheres neste correto ensinamento e disciplina deixar a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho?”

§ 3. O Abençoado respondeu: “Espere, espere, Gotamī, não tenha esse pensamento, que neste caminho de ensino e disciplina, as mulheres deixam a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho. Gotamī, você teria de cortar seu cabelo, vestir-se de tecidos ocre para praticar a vida pura e santa.”

§ 4. Então, sendo refreada pelo Buda, Mahāpajāpatī Gotamī o homenageou pondo a sua cabeça aos pés dele, o circumambulou três vezes e saiu.

§ 5. Naquele tempo, os monges estavam remendando as vestes do Buda, dizendo: “Logo o Abençoado, depois de completar o retiro da estação chuvosa, se retirará dentre os Śākya, os três meses estão terminando, suas vestes estão remendadas e completas, pegando suas vestes e tigela ele partirá para sua jornada entre as pessoas.”

§ 6. Mahāpajāpatī Gotamī ouviu que os monges estavam reparando as vestes do Buda e pensou: “Logo o Abençoado, depois de completar o retiro da estação chuvosa, deixará os Śākya, os três meses terão acabado, suas vestes estão remendadas e completas, pegando suas vestes e tigela, ele viajará entre as pessoas.”

§ 7. Refletindo sobre isso, Mahāpajāpatī Gotamī aproximou-se do Buda, homenageou colocando a sua cabeça nos pés dele e, em pé ao seu lado, disse:

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“Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do recluso? Por essa razão, podem as mulheres, neste caminho, serem ensinadas e disciplinadas para deixar a vida de família, tornar-se uma sem-teto para treinar no caminho?”

§ 8. O Abençoado respondeu novamente: “Espere, espere, Gotamī, não tenha esse pensamento, que neste caminho de instrução e disciplina, as mulheres deixam a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho. Gotamī, você teria de cortar seu cabelo, vestir-se de vestes ocre e por toda a vida praticar a pura vida santa.”

§ 9. Então, tendo sido refreada novamente pelo Buda, Mahāpajāpatī Gotamī o homenageou com a cabeça nos pés dele, o circumambulou três vezes e saiu.

§ 10. Naquele tempo, o Abençoado, havia completado o retiro da estação chuvosa entre os Śākya, uma vez que os três meses haviam terminado, e as vestes estavam remendadas e completas. Ele, tomando as vestes e a tigela, partiu para a jornada entre as pessoas.

§ 11. Mahāpajāpatī Gotamī ouviu que o Abençoado havia completado o retiro da estação chuvosa entre os Śākya, que os três meses haviam terminado, que as vestes estavam remendadas e completas, que ele havia pegado as vestes e tigela, que ele saía em viagem entre as pessoas. Mahāpajāpatī Gotamī, juntamente com algumas mulheres idosas Śākya, seguiram atrás do Buda, que pela ribalta se aproximou de Nādika, onde permaneceu no corredor de tijolos em Nādika.

§ 12. Então, Mahāpajāpatī Gotamī aproximou-se do Buda, o homenageou com a sua cabeça aos pés dele e, permanecendo ao seu lado, disse: “Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do recluso? Por essa razão, podem as mulheres, neste caminho, serem ensinadas e disciplinadas para deixar a vida de família, tornar-se uma sem-teto para treinar no caminho?”

§ 13. Uma terceira vez, o Abençoado respondeu: “Espere, espere, Gotamī, não tenha esse pensamento, que neste caminho de instrução e disciplina, as mulheres deixam a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho. Gotamī, você teria de cortar seu cabelo, vestir-se de vestes ocre e por toda a vida praticar a pura vida santa.”

§ 14. Então, tendo sido refreada pela terceira vez pelo Abençoado, Mahāpajāpatī Gotamī o homenageou com a sua cabeça aos pés dele, o circumambulou por três vezes e saiu. Então Mahāpajāpatī Gotamī parou do lado de fora da entrada, com os pés descalços sujos e o corpo coberto de poeira, cansada e chorando de tristeza.

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§ 15. O venerável Ānanda viu Mahāpajāpatī Gotamī parada de pé ao lado da entrada, com os pés descalços sujos e o corpo coberto de poeira, cansada e chorando de tristeza. Ao vê-la, ele perguntou: “Gotamī, por qual razão você está do lado de fora da entrada, seus pés estão descalços e sujos e seu corpo coberto de poeira, você está cansada e chorando de tristeza?”

§ 16. Mahāpajāpatī Gotamī respondeu: “Ó venerável Ānanda, neste caminho de estudo e disciplina, as mulheres não obtêm a autorização para deixar a casa, tornando- se sem-teto para treinar no caminho.”

§ 17. O venerável Ānanda disse: “Gotamī, você apenas espere aqui, vou me aproximar do Buda e falar com ele sobre esse assunto.”

§ 18. Mahāpajāpatī Gotamī disse: “Que então seja, venerável Ānanda.”

§ 19. Então, o venerável Ānanda se aproximou do Buda, homenageou com a cabeça aos pés dele e, segurando as mãos unidas, disse: “Abençoado, as mulheres podem alcançar o quarto fruto do recluso? Por essa razão, podem as mulheres, neste caminho, serem ensinadas e disciplinadas para deixar a vida de família, tornar-se uma sem-teto para treinar no caminho?”

§ 20. O Abençoado respondeu: “Espere, espere, Ānanda, não tenha esse pensamento, que neste caminho de instrução e disciplina, as mulheres deixam a vida de família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho.”

§ 21. “Ānanda, se nesse caminho de instrução e disciplina as mulheres deixarem a vida em família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então, esta vida santa, por conseguinte, não durará muito. Ānanda, assim como uma casa com muitas mulheres e poucos homens, essa casa pode se desenvolver e florescer?”

§ 22. O venerável Ānanda respondeu: “Não, Abençoado.”

§ 23. O Buda disse: “Da mesma forma, Ānanda, se nesse caminho de instrução e disciplina as mulheres deixarem a vida em família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então essa vida santa não durará muito.

§ 24. “Ānanda, exatamente como um campo de arroz ou um campo de trigo em que as ervas daninhas crescem, esse campo certamente caminhará para a ruína. Da mesma forma, Ānanda, se nesse caminho de instrução e disciplina as mulheres deixarem a

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vida em família, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então essa vida santa não durará muito.”

§ 25. O venerável Ānanda disse novamente: “Abençoado, Mahāpajāpatī Gotamī tem sido de muita ajuda para o Abençoado. Por que disso? Depois que a mãe do Abençoado faleceu, Mahāpajāpatī Gotamī criou o Abençoado.”

§ 26. O Abençoado respondeu: “De fato, Ānanda, de fato, Ānanda, Mahāpajāpatī Gotamī tem sido muito boa para mim, principalmente por me criar depois que minha mãe faleceu. Ānanda, também tenho sido muito bom para Mahāpajāpatī Gotamī. Por quê?

§ 27. “Ānanda, por minha causa, Mahāpajāpatī Gotamī obteve o refúgio no Buda, o refúgio no Dharma e o refúgio na comunidade dos monges; ela é livre de dúvidas no que diz respeito a considerar os quatro tipos de discípulos, que podem ser monges ou leigos, masculinos ou femininos.

§ 28. “Ānanda, se porque uma pessoa pode tomar refúgio no Buda, refúgio no Dharma e refúgio na comunidade dos monges, tornando-se livre de dúvidas em relação às Três Joias e em relação à Dukkha, seu surgimento, sua cessação e o caminho para sua cessação, ela se torna realizada nos ensinamentos, mantendo os preceitos morais, desenvolvendo amplamente o aprendizado, sendo realizada na generosidade e alcançando a sabedoria; ela se abstém de matar, abandonando o matar, se abstém de má conduta sexual, abandona a má conduta sexual, se abstém de falar mentira, abandona o discurso falso e se abstém de bebidas intoxicantes, abandona os intoxicantes; então, Ānanda, é impossível retribuir a bondade de tal pessoa, mesmo que, para a vida inteira, alguém a ajudasse com vestes e cobertores, bebidas e alimentos, camas, medicamentos e todos os outros requisitos.

§ 29. “Ānanda, agora vou apresentar às mulheres oito princípios que devem ser honrados para que sejam observados, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 30. “Ānanda, assim como um pescador ou seu aprendiz faz um dique em águas profundas para conservar a água para que não flua, Ānanda, da mesma forma eu declararei para as mulheres oito princípios que devem ser honrados, os quais as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender por toda a vida. Quais são os oito?

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§ 31. “Ānanda, uma monja deve procurar a ordenação mais elevada dos monges. Ānanda, estabeleci para as mulheres este primeiro princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 32. “Ānanda, uma monja deve se aproximar todo meio mês dos monges para receber instrução. Ānanda, estabeleci para as mulheres este segundo princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 33. “Ānanda, numa habitação onde não se encontram monges, uma monja não pode passar o retiro da estação chuvosa. Ānanda, estabeleci para as mulheres este terceiro princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 34. “Ānanda, uma monja que completou o retiro da estação chuvosa, deve perguntar em ambas as assembleias sobre três assuntos: buscando convite (pavāraṇā) em relação ao que foi visto, ouvido ou conjecturado. Ānanda, estabeleci para as mulheres este quarto princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 35. “Ānanda, se um monge não permite perguntas de uma monja, a monja não pode solicitar ao monge sobre os Suttas, o Vinaya ou o Abhidhamma. Se ele permite perguntas, a monja pode perguntar sobre os Suttas, o Vinaya ou o Abhidhamma. Ānanda, estabeleci para as mulheres este quinto princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender por toda a vida.

§ 36. “Ānanda, uma monja não pode revelar a ofensa de um monge; um monge pode expor a ofensa de uma monja. Ānanda, estabeleci para as mulheres este sexto princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 37. “Ānanda, uma monja que cometeu uma ofensa que exige suspensão (saṅghādisesa) deve sofrer penitência (mānatta) em ambas as assembleias por quinze dias. Ānanda, estabeleci para as mulheres este sétimo princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

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§ 38. “Ānanda, embora uma monja tenha sido totalmente ordenada por até cem anos, ela ainda deve mostrar a máxima humildade em relação a um monge recém-ordenado, homenageando com sua cabeça aos pés dele, sendo respeitosa e reverente, falando com ele com as mãos mantidas juntas em homenagem. Ānanda, estabeleci para as mulheres este oitavo princípio de peso a ser honrado, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 39. “Ānanda, estabeleci para as mulheres esses oito princípios de peso a serem honrados, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. Ānanda, se Mahāpajāpatī Gotamī sustenta estes oito princípios de peso para serem honrados, este é o seu início na instrução e disciplina correta para treinar no caminho, recebendo a ordenação superior e se tornando uma monja.”

§ 40. Então, tendo ouvido o que o Buda disse, tendo recebido bem e lembrado, o venerável Ānanda homenageou o Buda com a cabeça aos pés dele, o circumambulou três vezes e saiu. Ele se aproximou de Mahāpajāpatī Gotamī e disse-lhe:

§ 41. “Gotamī, as mulheres podem obter a saída da família para este ensino e disciplina corretos, tornando-se sem-teto para treinar no caminho. Mahāpajāpatī Gotamī, o Abençoado estabeleceu para as mulheres oito princípios de peso a serem honrados, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. Quais são os oito?

§ 42. “Gotamī, uma monja deve procurar a ordenação mais elevada dos monges. Gotamī, este é o primeiro princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 43. “Gotamī, uma monja deve se aproximar todo meio o mês dos monges para receber instrução. Gotamī, este é o segundo princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 44. “Gotamī, em uma habitação onde não há monges, uma monja não pode passar o retiro da estação chuvosa. Gotamī, este é o terceiro princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

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§ 45. “Gotamī, uma monja que completou o retiro da estação chuvosa, deve perguntar em ambas as assembleias sobre três questões: buscando convite (pavāraṇā) em relação ao que foi visto, ouvido ou suspeito. Gotamī, este é o quarto princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 46. “Gotamī, se um monge não permite perguntas de uma monja, a monja não pode pedir ao monge sobre os Suttas, o Vinaya ou o Abhidhamma. Se ele permite perguntas, a monja pode perguntar sobre os Suttas, o Vinaya ou o Abhidhamma. Gotamī, este é o quinto princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 47. “Gotamī, uma monja não pode expor a ofensa de um monge; um monge pode expor a ofensa de uma monja. Gotamī, este é o sexto princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 48. “Gotamī, uma monja que cometeu uma ofensa que requer suspensão (saṅghādisesa) deve sofrer penitência (mānatta) em ambas as assembleias por quinze dias. Gotamī, este é o sétimo princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 49. “Gotamī, embora uma monja tenha sido totalmente ordenada por até cem anos, ela ainda deve mostrar a máxima humildade em relação a um monge recém-ordenado, homenageando com sua cabeça aos pés dele, sendo respeitosa e reverente, falando com ele com as mãos juntas em homenagem. Gotamī, este é o oitavo princípio de peso a ser honrado que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida.

§ 50. “Gotamī, o Abençoado estabeleceu esses oito princípios de peso para serem honrados, que as mulheres não devem transgredir, que as mulheres devem defender durante toda a vida. Gotamī,” o Abençoado disse: “Se Mahāpajāpatī Gotamī sustenta esses oito princípios de peso para serem honrados, ela está saindo para este caminho de ensinamento e disciplina corretos para treinar no caminho, recebendo a ordenação superior e tornando-se uma monja.”

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§ 51. Então, Mahāpajāpatī Gotamī disse: “Venerável Ānanda, escute enquanto entrego um símile. Ao ouvir essa analogia, os sábios entenderão o seu significado. Venerável Ānanda, como se uma garota guerreira, ou uma brahminha menina, ou uma moça de família, ou uma garota da classe trabalhadora, linda, se banhasse de modo a ficar totalmente limpa, aplicasse perfume no seu corpo, colocasse roupas limpas e se vestisse com vários ornamentos.

§ 52. “Suponha que houvesse, além disso, alguém que pensasse nessa garota, que procurasse o seu benefício e bem-estar, que buscasse sua felicidade e conforto. Ele tomaria uma coroa de lótus, ou uma coroa de flores de champak ou uma coroa de flores de jasmim de flores grandes (sumanā), ou uma coroa de cabeça de jasmim árabe (vassikā), ou uma coroa de cabeça de rosas, e daria a essa garota. Essa garota, com grande alegria, aceitaria com as duas mãos e a colocaria em sua cabeça.

§ 53. “Da mesma forma, ó venerável Ānanda, esses oito princípios de peso a serem honrados, que o Abençoado estabeleceu para as mulheres, recebo na minha cabeça e sustentarei por toda a minha vida”.

§ 54. Naquela época, Mahāpajāpatī Gotamī partiu para esse caminho de ensinamento e disciplina corretos para treinar, ela recebeu a ordenação superior e tornou-se uma monja.

§ 55. [Então, em um momento posterior] Mahāpajāpatī Gotamī foi seguida e cercada por uma grande companhia de monjas talentosas, que eram todas as monjas mais velhas e seniores, conhecidas pelo rei e que viviam a vida santa por um longo tempo. Juntamente com elas, ela se aproximou do venerável Ānanda, o homenageou com a cabeça aos seus pés e, parada ao seu lado, disse:

§ 56. “Venerável Ānanda, saiba que todas as monjas idosas e seniores que são conhecidas pelo rei e que vivem a vida santa por um longo tempo. No que diz respeito aos jovens monges que acabaram de começar a treinar, que acabaram de sair não há muito tempo para este caminho de ensino e disciplina, desejam que se deixe que esses monges prestem homenagem com a cabeça aos pés dessas monjas de acordo com a antiguidade, sendo respeitosos e reverenciais, saudando-as com as mãos juntas em homenagem”.

§ 57. Então, o venerável Ānanda disse: “Gotamī, você apenas espere aqui, vou me aproximar do Buda e falar com ele sobre esse assunto”.

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§ 58. Mahāpajāpatī Gotamī disse: “Então seja, venerável Ānanda”.

§ 59. Então, o venerável Ānanda se aproximou do Buda, homenageou com sua cabeça aos pés dele e, permanecendo ao seu lado, segurando as mãos em homenagem ao Buda, ele disse:

§ 60. “Abençoado, hoje Mahāpajāpatī Gotamī, juntamente com uma companhia de monjas talentosas, todas monjas idosas e seniores, conhecidas pelo rei e que vivem a vida santa por muito tempo, se aproximaram, me homenagearam com a cabeça nos meus pés e, de pé permanecendo ao meu lado, segurando as mãos juntas em homenagem, disseram-me:

§ 61. “Venerável Ānanda, estas são todas as monjas idosas e seniores que são conhecidas pelo rei e vivem a vida santa por um longo tempo. No que diz respeito aos jovens monges que acabaram de começar a treinar, que acabaram de sair não há muito tempo para este caminho de ensino e disciplina, desejam que se deixe que esses monges prestem homenagem com a cabeça aos pés dessas monjas de acordo com a antiguidade, sendo respeitosos e reverenciais, saudando-as com as mãos juntas em homenagem”.

§ 62. O Abençoado respondeu: “Espere, espere, Ānanda, guarde suas palavras, tenha cuidado e não fale assim. Ānanda, se você soubesse o que eu sei, você perceberia que não é apropriado dizer uma única palavra, e muito menos falar assim.

§ 63. “Ānanda, se nesse caminho de ensino e disciplina as mulheres não tivessem obtido a saída da casa, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, os brâmanes e os chefes de família teriam espalhado suas roupas no chão e diriam o seguinte: ‘Reclusos diligentes, por favor caminhem sobre isso! Reclusos diligentes, pratiquem o que é difícil de praticar, para que possamos nos beneficiar e ser prósperos, por muito tempo, com muita felicidade e paz.’

§ 64. “Ānanda, se nesse caminho de ensino e disciplina as mulheres não tivessem obtido a saída de casa, tornando-se sem-teto para se treinar no caminho, os brâmanes e os chefes de família teriam espalhado os cabelos no chão e diriam o seguinte: ‘Diligentes reclusos, caminhem sobre isso! Reclusos diligentes, pratiquem o que é difícil de praticar, para que possamos nos beneficiar e ser prósperos, por muito tempo, com muita felicidade e paz.’

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§ 65. “Ānanda, se nesse caminho de ensino e disciplina, as mulheres não tivessem obtido a saída da casa, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então brâmanes e chefes de família, ao ver os reclusos, teriam respeitosamente tomado vários tipos de bebidas e alimentos, em suas mãos, ficariam à beira da estrada esperando e diriam o seguinte: ‘Veneráveis senhores, aceitem isso, comam isso, vocês podem levá-lo e ir, para usar como vocês desejarem, para que possamos nos beneficiar e ser prósperos, por muito tempo, com muita felicidade e paz.’

§ 66. “Ānanda, se nesse caminho de ensino e disciplina as mulheres não tivessem obtido a saída da casa, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então os fiéis brâmanes e os chefes de família, ao ver reclusos diligentes, os teriam respeitosamente levantado pelos braços para os levar para dentro de suas casas, segurando vários tipos de ofertas valiosas e dizendo a esses diligentes reclusos o seguinte: ‘Veneráveis senhores, aceitem isso, vocês podem levá-lo e ir, para usar como desejar, então para que possamos nos beneficiar e ser prósperos, por muito tempo, com muita felicidade e paz.’

§ 67. “Ānanda, se nesse caminho de ensino e disciplina as mulheres não tivesse obtido a saída da casa, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então mesmo este sol e lua, que são tão poderosos, de tão grande poder, de tão grande fortuna, de tão grande majestade, não teriam correspondido com a majestade e a virtude dos reclusos diligentes, o que dizer daqueles praticantes heterodoxos sem vida e magros?

§ 68. “Ānanda, se nesse caminho de ensino e disciplina as mulheres não tivessem obtido a saída da casa, tornando-se sem-teto para treinar no caminho, então esse ensino correto teria permanecido por mil anos. Agora foi reduzido em quinhentos anos e permanecerá por apenas quinhentos anos.

§ 69. “Ānanda, você deve saber que uma mulher não pode assumir cinco papéis. É impossível que uma mulher possa ser um Tathāgata, livre de amarras, devidamente desperto; ou um rei que gira a roda; ou o governante celestial Sakka; ou o rei Māra; ou o grande deus Brahmā. Você deve saber que um homem pode assumir esses cinco papéis. É certamente possível que um homem possa ser um Tathāgata, livre de amarras, devidamente desperto; ou um rei que gira a roda; ou o governante celestial Sakka; ou o rei Māra; ou o grande deus Brahmā.”

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§ 70. O Buda falou assim. O venerável Ānanda e os monges ouviram o que o Buda disse, tendo se deleitado e recebido respeitosamente.

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Anexo 1

Décimo Khandhaka.144 Sobre as responsabilidades das Bhikkhunis

§ 1. Naquele tempo o Abençoado Buda se encontrava entre os em Kapilavatthu, no . E Maha-pagapati, a Gotami, foi até o local onde o Abençoado estava, e chegando lá, curvou-se diante do Abençoado e permaneceu ali ao seu lado. E permanecendo ali ela assim falou ao Abençoado. § 2. ‘Seria bom, Senhor, se as mulheres fossem autorizadas a renunciar seus lares e entrar no estado de sem teto sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Tathagata. § 3. ‘Basta, ó Gotami! Não deixe que isso te agrade, que as mulheres fossem permitidas disto.’ § 4. [E uma segunda e terceira vez Maga-pagapati, a Gotami, fez o mesmo pedido com as mesmas palavras e recebeu a mesma resposta.] § 5. Então Maha-pagapati, a Gotami, triste e angustiada que o Abençoado não permitiria que as mulheres entrassem como sem tetos, curvou-se diante do Abençoado, e mantendo-o do lado da sua mão direita enquanto passava por ele, partiu dali chorando, em lágrimas. § 6. 2. Quando o Abençoado havia permanecido em Kapilavatthu, pelo tempo que julgou conveniente, ele partiu em sua jornada em direção a Vesali, e viajando sempre em frente, ele no devido tempo chegou lá. E lá em Vesali o Abençoado ficou, no Mahavana, no salão Kutagara. § 7. E Maha-pagapati, a Gotami, cortou seu cabelo, colocou as vestes de cor alaranjada e partiu, com uma série de mulheres do clã Sakya, em direção a Vesali; e no devido tempo ela chegou em Vesali, no Mahavana, no salão Kutagara. E Maha-pagapati a

144 Excerto do Décimo Khandaka do Kullavagga, traduzido do Pali para o Inglês por Rhys Davis e do inglês para o português por Felipe Donadon. Autorização para publicação e uso integral da tradução concedida em 20 de Agosto de 2019.

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Gotami, com pés inchados, cobertos de poeira, triste e angustiada, chorando e em lágrimas, colocou-se na frente da sacada de entrada. § 8. E o venerável Ananda a viu de pé ali, e ao vê-la assim disse para Maha-pagapati: 'Por que ficas tu aí, do lado de fora da varanda, com pés inchados e cobertos de poeira, triste e angustiada, chorando, em lágrimas?' § 9. 'Em resumo, ó Ananda, o Senhor, o Abençoado, não permite que as mulheres renunciem suas casas e adentrem o estado de sem teto sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Tathagata.' § 10. 3. Então, o venerável Ananda subiu até onde o Abençoado estava, curvou-se diante do Abençoado, e sentou-se ao lado. E, ao sentar-se, o venerável Ananda disse ao Abençoado: § 11. 'Veja, Senhor, Maha-pagapati a Gotami, está em pé lá fora, na sacada da entrada, com pés inchados, cobertos de poeira, triste, angustiada, chorando, em lágrimas, por conta do Abençoado não permitir que mulheres renunciem suas casas e adentrem o estado de sem teto sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Abençoado. Seria sensato, Senhor, se as mulheres tivessem permissão garantida para fazer como ela deseja.' § 12. 'Basta, Ananda! Não deixe que isso te agrade, que as mulheres fossem permitidas disto.' § 13. [E uma segunda e terceira vez Ananda fez o mesmo pedido com as mesmas palavras e recebeu a mesma resposta.] § 14. Então, o venerável Ananda pensou: 'O Abençoado não concede a sua permissão, deixe-me perguntar ao Abençoado de outra maneira.' E o venerável Ananda disse ao Abençoado: § 15. ‘São as mulheres, Senhor, capazes - quando elas tiverem ido para além da vida doméstica e entrado no estado de sem teto, sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Abençoado - são elas capazes de perceber o fruto da conversão, ou do segundo Caminho, ou do terceiro Caminho, ou o estado de Arahat?’ § 16. ‘Elas são capazes, Ananda.' § 17. ‘Se é assim, Senhor, que elas são capazes disto, já que Maha-pagapati, a Gotami, provou-se de grande serviço ao Abençoado, quando como tia e enfermeira ela o nutriu e deu-lhe leite, e na morte de sua mãe amamentou o Abençoado no seu próprio peito, seria sensato, Senhor, que as mulheres devessem receber permissão para ir além

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da vida doméstica e entrar no estado de sem teto, sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Abençoado.’ § 18. ‘Se for assim, Ananda, Maha-pagapati, a Gotami, tomar para ela as Oito Regras Centrais, deixe que isso seja reconhecido por ela como a sua iniciação.’ § 19. [São estas]: (1) 'Uma Bhikkuni, mesmo se estiver de pé por uma centena de anos, deve fazer uma saudação, deve levantar-se na presença de, deve curvar-se diante de, e deve realizar todos os deveres apropriados para com um Bhikkhu, mesmo que este tenha sido recentemente ordenado. Essa é uma regra e deve ser venerada e reverenciada, honrada e observada e em sua longa vida nunca ser transgredida. § 20. (2) ‘Uma Bhikkuni não deve permanecer em uma estação chuvosa (do Was) em um distrito em que não houver nenhum Bhikkhu. Essa é uma regra ... Que nunca deve ser transgredida.' § 21. (3) ‘Quinzenalmente uma Bhikkhuni deve esperar da Samgha-Bhikkhu duas coisas, a solicitação da cerimônia do Uposatha, e o (tempo quando o Bhikkhu) chegará para dar a Exortação. Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ § 22. (4) ‘Depois de passar a estação chuvosa (do Was), a Bhikkhuni deve realizar Pavarana (indagar se qualquer falta pode ser colocada a seu custo) diante de ambas as Samghas - tanto dos Bhikkhus quanto das Bhikkhunis - com respeito a três questões, nomeadamente, o que foi visto, e o que foi escutado, e o que foi suspeitado. Essa é uma regra....que nunca deve ser transgredida.’ § 23. (5) ‘Uma Bhikkhuni que foi culpada de uma ofensa séria deverá passar pela disciplina Manatta diante de ambas as Samghas (dos Bhikkhus e das Bhikkhunis). Essa é uma regra....que nunca deve ser transgredida.’ § 24. (6) ‘Quando uma Bhikkhuni, enquanto noviça, tiver treinado por dois anos nas seis regras, ela deve pedir para partir para a iniciação upasampada para ambas as Samghas (tanto a dos Bhikkhus quanto das Bhikkhunis). Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ § 25. (7) ‘Uma Bhikkhuni não possui desculpa para insultar ou abusar de um Bhikkhu. Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ § 26. (8) ‘Daqui em diante, a admoestação oficial por Bhikkhunis para Bhikkhus está proibida, enquanto que a admoestação oficial de Bhikkhunis por Bhikkhus não está proibida. Essa é uma regra...que nunca deve ser transgredida.’ § 27. ‘Se, Ananda, Maha-pagapati, a Gotami, tomar para si essas Oito Regras Centrais, deixe que isso seja reconhecido por ela como a sua iniciação.’

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§ 28. 5. Então, o venerável Ananda, quando tinha aprendido através do Abençoado essas Oito Regras Centrais, foi até Maha-pagapati, a Gotami, e [disse a ela tudo o que o Abençoado havia falado]. § 29. ‘Exatamente, Ananda, como um homem ou uma mulher, quando novos e em seus anos vindouros, acostumados a adornarem-se, iriam, quando ele tivesse lavado sua cabeça, receber com ambas as mãos uma guirlanda de flores de lótus, ou de flores de jasmim, ou de flores atimuttaka, e colocá-la no topo de sua cabeça; mesmo assim eu, Ananda, assumo essas Oito Regras Centrais, a nunca serem transgredidas em minha longa vida.’ § 30. 6. Então, o venerável Ananda retornou ao Abençoado, curvou-se diante dele e tomou lugar ao seu lado. E, sentando-se, o venerável Ananda disse ao Abençoado: 'Maha-pagapati, a Gotami, Senhor, tomou para si as Oito Regras Centrais, a tia do Abençoado recebeu a iniciação upasampada.' § 31. ‘Se, Ananda, mulheres não tivessem recebido permissão para sair de suas vidas domésticas e entrar no estado de sem teto, sob a doutrina e disciplina proclamada pelo Tathagata, então teria a religião pura, Ananda, durado muito, a boa lei teria se mantido forte por mil anos. Mas já que, Ananda, as mulheres agora receberam a permissão, a pura religião, Ananda, isso não vai durar muito, a boa lei se manterá forte por apenas quinhentos anos. Assim como, Ananda, as casas em que há muitas mulheres porém poucos homens é facilmente saqueada por bandidos; assim é, Ananda, sob qualquer doutrina e disciplina as mulheres são permitidas a sair da vida doméstica para o estado de sem teto, aquela religião não se manterá por muito tempo. E assim como, Ananda, quando a doença chamada mofo cai sobre o campo de arroz em fina condição, aquele campo de arroz não se mantém por muito tempo; assim é, Ananda, sob qualquer doutrina ou disciplina as mulheres estão permitidas de ir além da vida doméstica para o estado de sem teto, esta religião não permanecerá por muito. E do mesmo modo, Ananda, como quando a doença da praga cai sobre um campo de cana-de-açúcar em boa condição, aquele campo de cana-de-açúcar não se mantém por muito tempo; assim é, Ananda, sob qualquer doutrina ou disciplina as mulheres são permitidas partir da vida doméstica para o estado de sem teto, esta religião não permanece por muito. E só, Ananda, quando um homem poderia em antecipação construir um aterro para um grande reservatório, além do qual a água não deveria ultrapassar; até nisto, Ananda, tenho eu em antecipação estabelecido essas Oito Regras Centrais para as Bhikkunis, em suas longas vidas que não sejam transgredidas.'

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Aqui termina as Oito Regras Centrais para as Bhikkunis.

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