Luandino Por (Re)Conhecer
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LUANDINO POR (RE)CONHECER Uma entrevista, estórias dispersas, bibliografia Introdução, recolha e edição por Francisco Topa Capa de Helena Gaspar Depósito legal 382965/14 ISBN 978-989-96206-9-8 A conclusão deste trabalho beneficiou do apoio da agência brasileira CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior), através do Programa Professor Visitante do Exterior | 3 Índice No (novo) novo tempo 5 I. Uma entrevista de 1961 11 II. Estórias dispersas 23 1.ª canção do mar 25 Duas histórias de pequenos burgueses 30 Inglês à hora 31 O sábado, as raparigas e o gato 36 Cambuta 42 Os amores de Silva Chalado 49 Zé “Fintacai” Augusto 57 Meninos de musseque 68 Miúdo Camba 77 Os miúdos do Capitão Bento Abano 86 Meninos do musseque 109 Porquê o morcego come de noite 123 O usuku, kifumbe (fragmento) 125 Estória da baciazinha de quitaba 131 III. Bibliografia de José Luandino Vieira 143 | 5 No (novo) novo tempo […] quem que semeia vogais, colhe neologismos, é bem certo. Luandino Vieira Neste nosso tempo de cultura comemorativa, é impossível deixar de notar os vários aniversários que se assinalam em 2014: no domínio da literatura angolana, passam os 50 anos da publicação de Luuanda, de Luandino Vieira; no plano sociopolítico, no que respeita ao contexto afrolusobrasileiro, pas- sam duas datas de sinal contrário – os 50 anos do golpe militar no Brasil e os 40 da Revolução dos Cravos. A distância que nos separa desses acontecimen- tos já é considerável e, dado que são cada vez menos os que viveram em pleno o antes e o depois de cada um deles, o afastamento emocional vai-se acentuando também, o que tem vantagens (é um sinal de que as roturas estão consolidadas) e inconvenientes (a perda da memória acarreta quase sempre a repetição de erros). Uma forma possível de lidar com esta contradição – assi- nala-se, de forma mais ou menos festiva, aquilo que diz cada vez menos a um número progressivamente maior de pessoas – é encarar o período atual como um novo novo tempo: segundo cantava Ivan Lins em 1980, apesar de uma série de coisas, estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos. No caso concreto da literatura angolana, este novo tempo novo permi- te-nos ver hoje aquilo que em 1964, aquando da publicação de Luuanda, mal se entrevia e, dez anos depois, com o 25 de Abril, estava ainda diluído num conjunto indefinido a que se começaria a chamar literaturas africanas de expressão portuguesa, a saber: uma literatura nacional razoavelmente conso- lidada, com o seu cânone e as suas instituições, que deixou de necessitar do apoio militante e/ou paternalista de outros países. Isso significa que há hoje condições para fazer aquilo que há 40 anos não havia tempo (nem interesse) para fazer: a (re)leitura paciente do que foi ficando para trás, a investigação de pormenor, os levantamento bibliográficos, os estudos de receção. 6 | É a esse espírito que este volume procura corresponder. Constituindo uma das iniciativas do colóquio De ‘Luuanda’ (1964) a Luandino (2014): vere- das, a ter lugar na Faculdade de Letras do Porto, entre 10 e 11 de novembro, recolhe um conjunto de materiais importantes para o estudo da obra de Luandino Vieira que estavam dispersos e pouco acessíveis. O primeiro desses textos é uma entrevista publicada em março de 1961 no Jornal de Angola, conduzida por António Jacinto, que usa o pseudónimo de Orlando de Távora. Tomando como ponto de partida a edição de A cidade e a infância do ano anterior, a peça destaca-se pelo forte pendor autocrítico revelado pelo entrevistado, pelo balanço pouco otimista sobre o momento literário que se vivia em Angola e pelo desassombro com que são elencadas as medidas necessárias para corrigir a situação. Afirma Luandino: Enunciarei aquilo que penso ser essencial para um maior desenvolvimento literário, ainda que o saiba, no momento, utópico. Em primeiro lugar liberda- de de expressão e imprensa; em segundo lugar e como consequência, uma tri- buna livre onde se reunissem os trabalhos de todos os que por Angola fora, vêm criando isolados, obra literária; em terceiro lugar, reuniões periódicas (congressos ou o que lhe queiram chamar) para que todos os artistas pudes- sem, numa ampla e livre troca de impressões e experiências, assentar e definir as coordenadas válidas para uma literatura angolana; ainda, que os artistas não tivessem para o seu trabalho, de recorrer aos dias e noites de folga, sába- dos à tarde, etc., que lhes fossem postos à disposição os meios materiais para o reconhecimento directo da terra e dos seus problemas num útil alargamento do campo de experiência, isto é o reconhecimento da utilidade social do escri- tor. O segundo conjunto é constituído por treze contos – ou estórias, como lhes passará a chamar depois o seu autor –, escritos entre os finais da década de 50 e os primeiros anos da seguinte e publicados em jornais, cadernos ou antologias, de Angola ou de Portugal, quase todos no início de 60. De um modo geral, situam-se naquela que será a linha dominante na obra do autor: apresentam-nos os pequenos dramas do quotidiano de personagens que sobrevivem – às vezes com um vitalismo que tem alguma coisa de pícaro – num mundo colonial marcado pela desigualdade e pela segregação racial e social. Essas personagens – em que dominam as crianças e as mulheres, mas em que surge também um ex-futebolista, um futuro ex-futebolista, um apren- diz de sapateiro e outras figuras de condição menos favorecida – estão quase sempre marcadas pela ameaça de uma agressão que, mesmo nos casos em que tem rosto, é antes de mais a ameaça de uma estrutura que as ultrapassa e que nem sempre veem. Nesse mundo difícil em que vivem, as fortes relações | 7 comunitárias são elemento essencial para ultrapassar as dificuldades. Ainda que a brevidade do conto não permita aprofundar a análise social, Luandino Vieira tem o cuidado de sugerir que a violência sofrida pelas personagens é uma violência em cadeia: em «Miúdo Camba», a agressividade de sô Maga- lhães contra o jovem cauteleiro branco é a reação confusa à hostilidade de um mundo que o condenou a ser taberneiro num bairro periférico em que os maximbombos tardam demasiado. Deste conjunto principal de contos se afastam um pouco dois que foram publicados mais tarde, já depois da independência de Angola: «O usuku, kifumbe» e «Estória da baciazianha de quitaba». Ambos são dominados pelo motivo da resistência e da luta contra o colonizador, transmitindo através dos seus protagonistas uma mensagem de esperança. Um grupo à parte é formado pelas Duas histórias de pequenos burgueses, publicadas em 1961 nos «Cadernos Imbondeiro». Na nota introdutória, o autor faz uma espécie de autocrítica, literária e sociopolítica: Embora escritos aos 19 anos de idade e ressentindo-se, por isso, das defi- ciências impostas pela falta de experiência e maturidade no trabalho literário, não quis deixar passar esta oportunidade de os publicar. Eles representam para mim a expressão dum momento que atravessei e atravessaram os adoles- centes da minha geração – melhor, da minha idade – perdidos nos quadros duma classe social cujas perspectivas já pressentiam ou sentiam ultrapassa- das. No primeiro conto, «Inglês à hora», é-nos apresentado um protagonista que aprende inglês e alemão com uma professora particular estrangeira cujo jogo de aparente sedução tenta acompanhar, ao mesmo tempo que sonha com a felicidade que encontrará noutro país. Significativamente, o texto que a explicadora lhe manda ler para a próxima sessão é «The Devil and Daniel Webster», um conto de 1936 de Stephen Vincent Bénet que recria o mito de Fausto e o tema da venda da alma ao diabo. O segundo texto «O sábado, as raparigas e o gato» dá conta do desencontro e da indecisão de dois jovens que pretendiam encontrar-se com duas moças numa noite de sábado: como o gato branco que deles se aproxima e que se esconde quando sente a presença de cães, também eles são marcados por uma espécie de inação que sentem como cobardia. Este mundo branco, apresentado em estruturas narrativas que não são completamente convincentes, constitui uma possibilidade que Luan- dino Vieira não voltará a experimentar. 8 | Outro caso isolado, e bem mais interessante, é a versão do conto popular «Porquê o morcego come de noite», publicado duas vezes em 1964: num registo linguístico que incorpora a vivacidade do português popular de Luan- da, o autor faz da fábula um retrato da sociedade em que vive, apresentando o morcego como um exemplo do herói que consegue escapar à prepotência graças à esperteza e à manha. Em forma de balanço, talvez possamos dizer que este Luandino por (re)conhecer não é ainda o melhor Luandino, o de Luuanda e João Vêncio, o de Macamdumba e dos mais recentes O livro dos rios e O livro dos guerri- lheiros. Mais cronista do que ficcionista, vai fazendo experiências no domí- nio linguístico, mas não parece ainda preparado para fazer roturas nos mode- los narrativos. Seja como for, creio que se justifica o conhecimento e a releitura destes treze contos, que são aqui apresentados pela ordem em que foram publicados (a qual nem sempre coincide com a ordem de redação) e na forma em que foram dados ao prelo. Mantive a ortografia e a pontuação originais, evitando corrigir os aparentes lapsos. Alterei apenas a grafia muceque que surge num dos textos, convertendo-a na forma já à época mais corrente e preferida pelo autor. Qualquer outra intervenção será assinalada: tratar-se-á sempre de acréscimos, que estarão sinalizados por parêntesis retos. Eventuais lapsos do texto vão assinalados em nota de rodapé. Três dos contos aqui reunidos apresentam uma particularidade curiosa que justifica também uma edição um pouco diferente: «Meninos de musse- que», «Os miúdos do Capitão Bento Abano» e «Meninos do musseque» foram recuperados mais tarde, em 2003, no romance Nosso musseque.