A CONSTRUÇÃO DA NORMA-PADRÃO DA LÍNGUA CATALÃ: UMA ANÁLISE DOS SEUS PERCALÇOS E ÊXITOS1 Miguel Afonso Linhares (PUC Minas) [email protected]
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ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA A CONSTRUÇÃO DA NORMA-PADRÃO DA LÍNGUA CATALÃ: UMA ANÁLISE DOS SEUS PERCALÇOS E ÊXITOS1 Miguel Afonso Linhares (PUC_Minas) [email protected] Són les llengües semblants a les aigües del mar, perquè, com estes, estan subjectes al moviment dels vents que les combaten. Així, les llengües estan exposades a la mutació, segons la varietat de les na- cions que s’entrevenen dins dels reines i províncies en les quals se parlen. Per això, a la manera que l’Autor de la naturalesa donà precepte a les aigües perquè no traspassessen sos prefígids límits, encara que de vàrios modos contrastades, han procurat també ingeniosos los hòmens cenyir les llengües ab assentats preceptes i regles i mantenir-les i millorar- les, per medi d’elles, dins los límits de sa pàtria. (Josep Ullastre, Gramàtica catalana, 1753) 1. Introdução O catalão é uma língua românica, falada hoje por quase dez mi- lhões de pessoas em territórios de quatro estados europeus (Andorra, Es- panha, França e Itália), com um patrimônio literário que em nada deixa a desejar, nem em quantidade nem em qualidade, por exemplo, à literatura portuguesa, e que poucos brasileiros conhecem, como prova o fato de que ainda não há nenhum leitorado desta língua em nossas universidades. Ligado à língua e à cultura catalãs há alguns anos, inclusive como membro de uma comunidade catalã do exterior, o Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio2, com sede em São Paulo, escolhe- mos analisar a padronização da língua catalã em uma perspectiva históri- ca, não só com o intuito de ensejar o conhecimento da história desta lín- gua aos romanistas brasileiros e aficionados, mas também por considerar que tal história apresenta particularidades que podem alargar a compre- 1 A primeira versão deste trabalho foi apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso de Espe- cialização em Filologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em outubro de 2011, sob a orientação do Prof. Dr. José Pereira da Silva. 2 Para mais informações, vide http://www.ramonllull.net p. 1115 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA ensão da própria história da língua portuguesa, nomeadamente da cons- trução da norma-padrão da nossa língua. De fato, surpreende que uma língua irmã que não possuía sequer a condição de oficial tenha tido a sua ortografia estabelecida apenas dois anos após a reforma ortográfica que o governo da recém-instaurada Re- pública Portuguesa promoveu em 1911, e, mais ainda, que catalães e va- lencianos se tenham posto de acordo sobre a ortografia em 1932, enquan- to portugueses e brasileiros demoraram um século, considerando que o governo português adotou o Acordo Ortográfico de 1990 e começou a implementá-lo em setembro de 2011. Este trabalho tem, pois, o objetivo de descrever e explicar a cons- trução da norma-padrão da língua catalã em uma perspectiva histórica. Para tanto, revisam-se, no primeiro capítulo, conceitos fundamentais, como norma-padrão e padronização, e estuda-se também que dimensões tem a padronização de uma língua, por que critérios se constrói e que fe- nômenos sociais lhe estão ligados. Esse capítulo encerra-se com uma ti- pologia do fenômeno da individuação de uma língua e outra da padroni- zação. A seguir, no segundo capítulo, faz-se um percurso pela história da língua catalã. Gostaríamos de ter elaborado um percurso mais breve, mas dois elementos impingiram-nos a aprofundá-lo ao nível que atingimos. Primeiro, a nossa concepção metodológica de fazer história da língua (Cf. NADAL, 1995, p. 39-75); de fato, o leitor encontra nessa seção menções relativas a fatos políticos, o que reflete o nosso desejo de traçar um resumo sócio-histórico, isto é, um apanhado da história da língua em que se evidencia como a história política interfere na história linguística, o que se avém especialmente com o objeto deste trabalho, dado que pa- dronizar uma língua é, em última instância, politizá-la. Segundo, consi- deramos que a profundidade que alcançamos é necessária à compreensão de um brasileiro que não se tenha dedicado a estudar a história da Cata- lunha e da Espanha. Enfim, no terceiro capítulo combinam-se os conteúdos do primei- ro e do segundo em uma análise da norma-padrão do catalão, pela qual se constata a sua notável coerência, tanto diacrônica como sincrônica, per- feita modernização de uma língua que expressara uma cultura pujante na Idade Média, mas teve os laços com este passado afrouxados durante a Idade Moderna, fruto do trabalho genial de um filólogo que era engenhei- ro químico de formação: Pompeu Fabra. Esta religação com o passado Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 1116 ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA sociolinguisticamente normal é, precisamente, o fato diferencial da cons- trução da norma-padrão da língua catalã. Na verdade, este trabalho deriva de um projeto de pesquisa cujo objetivo era contrastar as elaborações das normas-padrão do catalão e do galego a partir da hipótese de que o co- nhecimento difuso do patrimônio literário medieval e a atitude de enlaçar a língua atual com ele foram decisivos para a legitimação do padrão cata- lão e para o conflito normativo galego entre “autonomistas”, defensores de um padrão que continua a escrita a partir do padrão castelhano, “rein- tegracionistas”, que almejam uma aproximação ao padrão português, e “lusistas”, que propugnam a adoção do padrão português (Cf. Sánchez, 2010). Tivemos de nos cingir ao catalão por limitação de espaço e tempo. Por último, nas considerações finais retomamos os momentos de- cisivos da análise sócio-histórica que levamos a cabo e pomos alguns problemas que a comunidade catalanófona ainda tem de enfrentar para acabar a padronização da língua catalã, dos quais o principal é, a nosso juízo, aquele que, precisamente, perturba a normalidade sociolinguística: a diglossia. O sucesso da padronização de uma língua não depende senão de o conjunto dos usuários normalizar a proposta de normatização. Como o público deste trabalho são romanistas e aficionados à ro- manística, dos quais se supõe que são capazes de ler nas línguas români- cas mais conhecidas, preferimos não traduzir as citações em catalão e em castelhano, o que aumentaria sobremaneira o volume do trabalho. De to- do modo, com o fim de facilitar a leitura destas citações, tomamos a li- berdade de atualizar a sua ortografia e pontuação, e, além disto, oferece- mos, em apêndice, um quadro em que se traça a correspondência entre a ortografia do catalão e a fonética do dialeto central. 2. Conceitos fundamentais 2.1. Padrão Em 1.º de janeiro de 2009 começou a cumprir-se o Decreto n.º 6.583, de 29 de setembro de 2008, que promulgou o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa em 16 de dezembro de 1990. Com a presteza que é própria das comunicações nos nossos dias, já na véspera o jornal Folha de S. Paulo, um dos mais lidos do país, noticiou o fato na sua versão virtual com a seguinte manchete: “Veja o que muda na língua portuguesa com a reforma ortográfica”. No dia seguinte uma das várias notícias que foram veiculadas nessa mesma versão intitula-se “Ins- p. 1117 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA tituições de ensino têm até 2012 para se adaptar às novas regras da língua portuguesa”. De certo, o leitor que entenda a língua como a entendia Saussure (2006 [1916], p. 23)1, isto é, como um sistema de signos, sabe que não houve nenhuma mudança na língua portuguesa após o dia 1.º de janeiro de 2009. De fato, os fonemas que compõem as palavras ideia, voo e cin- quenta, exemplos da mudança na primeira notícia citada (idéia, vôo e cinqüenta pelo Formulário Ortográfico de 1943), permanecem os mes- mos. Portanto, mudou apenas a escrita oficial dessas e de outras palavras, isto é, a sua ortografia. No entanto, a metáfora dos jornalistas, que representa a percepção do usuário não iniciado em linguística, nos é útil por poder ser o ponto de partida de uma reflexão sobre o poder simbólico da norma-padrão, de modo geral, e da ortografia, de modo específico. A língua, que é uma abstração, é reificada pela concretude do padrão, no âmbito da fonética- fonologia e da morfossintaxe pela gramática normativa e no âmbito do léxico pelo dicionário normativo. No seu esforço de revisão das ideias de Saussure, Coseriu (1979, p. 45-55) demonstra que a língua é mais do que um sistema de signos: é isto, mas também é tradição, cultura, história. Quando se fala da língua portuguesa, da língua espanhola ou da língua catalã, faz-se referência a objetos ideais, que conjugam vários sistemas linguísticos no tempo e no espaço e são reconhecidos como tais pelos seus usuários por amor de uma coesão estrutural e histórica. Como diz esse grande linguista, a lín- gua é um “advérbio substantivado”: falar português é reproduzir um con- junto de modos de expressão verbal que são identificados como língua portuguesa pela comunidade que se vale deles. Posto que a língua é uma das abstrações que conformam a identi- dade de uma comunidade, entende-se que uma mudança em um dos mo- dos de expressão verbal, que é a escrita oficial, seja encarada como uma mudança na própria língua, ainda que seja inteiramente exterior ao siste- ma funcional. 1 Coseriu (1973, p. 45-47) observa que do Curso de Linguística Geral se depreendem três conceitos de língua: acervo linguístico, instituição social e sistema funcional, sendo que Saussure se inclina pelo terceiro.