A Poesia De Guilherme De Almeida: De Tradição E Silêncio
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AGÁLIA nº 103 | 1º Semestre (2011): 77-101 | ISSN 1130-3557 | URL http://www.agalia.net A poesia de Guilherme de Almeida: de tradição e silêncio Ulisses Infante Universidade Tecnológica Federal do Paraná Resumo Este trabalho busca demonstrar como a poesia de Guilherme de Almeida percorre a tradição lírica galego-portuguesa — Guilherme reutilizou e reatualizou fôrmas poéticas trovadorescas, humanistas, quinhentistas, românticas; também praticou poesia moderna e pós-moderna — convergindo em direção a uma concisão cada vez mais intensa, que valoriza cada vez mais as elipses e o silêncio como forma expressiva. Para tanto, num percurso diacrônico, são analisa- dos poemas de vários momentos da carreira do poeta, até se chegar a seu último livro, Mar- gem, datado de 1969 e inédito até 2010, todo ele escrito formado por micropoemas em que a condensação significante demonstra a concepção de poesia que Guilherme adotara em sua maturidade artística. Palavras chave: Lírica — Tradição — Silêncio — Concisão. The Poetry ofGuilherme de Almeida: About Tradition and Silence Abstract This paper seeks to demonstrate how the poetry of Guilherme de Almeida traverses the Galician-Portuguese lyric tradition — Guilherme reused and actualized poetic molds of the troubadours, of the humanist, sixteenth century and romantic periods; besides, he also wrote modern and postmodern poetry — converging towards a very intense brevity, which increasingly values the ellipses and silence as expressive forms. To reach this aim, poems from various moments in the poet’s career are analyzed in a diachronic route that ends up with his latest book, Margem, dated 1969 and unpublished until 2010. This whole work is written in the form of condensed micropoems, in a demonstration that the conception of poetry that Guilherme adopted in his artistic maturity unites terseness and concentration of meaning. Key words: Lyrical poetry — Tradition — Silence — Concision. Receção: 28-11-2011 | Admissão: 03-04-2012 | Publicação: 30-11-2012 INFANTE, Ulisses: “A poesia de Guilherme de Almeida: de tradição e silêncio”. Agália. Revista de Estudos na Cultura. 103 (2011): 77-101. 77 Ulisses Infante 1. Proposta de percurso Guilherme de Almeida sempre se permitiu incorporar a seu trabalho poéti- co o que considerava válido nas correntes literárias que se desenvolveram ao longo de sua vida. É o que expressa Marcelo Tápias na apresentação de Margem, livro de poemas de Guilherme que se mantinha inédito desde 1969 e que veio à luz em 2010: Contrariando aqueles que lhe têm atribuído o rótulo estático de conser- vador e de apegado a um passadismo insuperado, de autor de obra tardi- amente parnasiana e apenas episodicamente inserida no modernismo, Guilherme mostra, neste pequeno volume ainda inédito de poemas — legado em forma de um “boneco” de livro, datilografado, com esboço da capa, terminado pouco antes de sua morte, em 1969 —, que prosseguia, ao final de sua fertilíssima vida produtiva, antenado com as diversas poé- ticas entrevistas em sua relativamente longa jornada. (Tápias, 2010: 7) Tentar mapear de maneira breve esse percurso julgado “estático”, mas mo- vente em sua inquietude de constantes incorporações e reincorporações, é o objetivo deste trabalho. 2. Nel mezzo del camin... 2.1. O poema da língua portuguesa Quando tomou posse da Cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras, em 21 de junho de 1930, Guilherme de Almeida estava a ponto de completar quarenta anos de idade. Era o momento intermediário de sua vida, pois nascera em 1890 e viria a falecer em 1969. No discurso feito na ocasião, em prosa fortemente ritmada, claramente concebida para a leitura em voz alta — para a declamação, pode-se considerar, — partiu das origens da po- esia de língua portuguesa — feliz encontro da “gaye science” provençal com os elementos autóctones da Galiza medieval, segundo o poeta — para chegar à contemporaneidade. Guilherme fez soar em seu texto um vocabu- lário precioso e vozes antigas da língua: 78 A poesia de Guilherme de Almeida: de tradição e silêncio Desceu daí, dessa Provença capitosa, do cheiro de amor das suas flores de laranjeira, do sabor aperitivo das suas olivas, do beijo de boca pintada das suas amoras quentes, do mosto fresco das suas uvas acres pisadas nas tinas...; desceu daí uma fina e perfurante raiz da árvore sonora e alas- trou-se, estirou-se, subterrânea, longa, verrumante, furando a rocha funda dos Pireneus, varando as terras eriçadas de Espanha, para rebentar o solo simples e laborioso da Galiza e aí respirar, tomar fôlego e subir no ar em planta nova e forte. […] Ora, um lirismo próprio, independente, original, já aí cantava pelo rit- mo mais velho dessa língua, pela monotonia plangente e repetida do verso “paralelístico”, que em Espanha se chamou “cossante”: cantava “solo ramo verde florido, solo verde florido ramo”; e cantava as “ondas do mar salido” e as “ondas do mar levado”... Cantava... Era a Galiza. Era a Arcádia Católica: terra de romarias e lavras, com avelaneiras, estorni- nhos, pastoras louçanas, verdes pinos, ribeiras, bodas, hermanas, madres e amigos... Cantava... Ia cantando sozinha, planta agreste de serras, as suas serranilhas soluçadas de alalalas, quando pelo seu caule se enroscou a árvore moça e aclimada de Provença. E, juntas e trançadas, cresceram no céu pastoril. E, na voz e na sombra da árvore dupla, começou a bailar o ritmo novo, estrangeiro dos “troubadours” (Almeida, 1930). Dessa forma o poeta representa a origem da lírica da língua portuguesa: ao “lirismo próprio” da Galiza se acrescenta a “árvore moça e aclimada de Provença” para a criação de um “ritmo novo”. Não satisfeito com a menção do processo e a citação de vocábulos e versos, Guilherme, num procedi- mento em que se tornará experto, decide investigar “por dentro” a lingua- gem dessas épocas remotas da poesia, passando a compor “à maneira de”. Das cantigas medievais chega à Carta de Pero Vaz de Caminha: O lugar e a gente eram favoráveis, porque d’amores era a terra, e de ve- lidas e todalas de muy bon parecer... E porque havia por toda parte, pastor’s que cantan en as fontanas frias cantares que tuan, Deus mi per- dom, que queiman candeas en as romarias e van por amigo fazer ora- 79 Ulisses Infante çom... E porque se ouviu, um dia, en o leer, um cantar que das barcas vinha que iam para o mar. Cantar que chorava, poys que o partyr e o fi- car sam males de igual trestura, ca o coydar e o sospyrar sam dambos desaventura... E foi cantando... E eis senão quando as naves, qual se esse canto a voz dos ventos fosse, ou fosse a voz das ondas tão mudáveis, ou de enganosas ninfas a voz doce, asas abriram no ar quais alvas aves, e o mar sumisso ante elas ajoelhou-se. E de uma à rija proa alguém seguia, sobre as ondas curvado, que dizia: — A terra em tal maneira é graciosa e é toda a praia chã e tão formosa e o arvoredo é tão muito, tão diverso de fruito, e os homens e as mulheres, quartejados de cores, tão gentis e tão curados, com seus corpos apenas asetados de penas como São Sebastião; e as aves de tão vária casta são; tamanha é a terra e de muito bons ares, tantas as águas, tantos os manjares, tanta a gente, que para o bem contar fora mister usar mais palavras que as ondas têm de bolhas, de astros o céu, as árvores de folhas, de areias estas praias, de lamentos e ais o cantar guaiado destes ventos... (Almeida, 1930). Está nestes termos traçada e recriada a genealogia da poesia que chegou ao Brasil. A partir desse ponto, o discurso concentra-se nas figuras de Gonçal- ves Dias e Olavo Bilac, respectivamente patrono e fundador da Cadeira 15, e de Amadeu Amaral, que nela antecedera a Guilherme. O trabalho desses três brasileiros sobre aquela matéria poética proveniente da Europa confi- gura a “árvore encantada da poesia do Brasil”. Tal metáfora da “árvore en- cantada” revela muito sobre Guilherme de Almeida. Sua concepção de poesia é decursiva, considera sempre o desenrolar histórico das fôrmas, for- mas e temas: deve-se manter viva a consciência de que a origem, a raiz da lírica é o fundamento nutriz indispensável ao desenvolvimento e à manu- tenção desse patrimônio estético e cultural, moldado ao longo de sucessivas etapas, que formam círculos concêntricos e expansivos. Por isso, não sur- preende que os momentos primordiais da lírica de língua portuguesa este- jam sempre presentes em seu trabalho, seja como sugestão temática ou melódica, seja como modelo a recriar rítmica e linguisticamente. Já em seu primeiro livro de poemas, Simplicidade, cujos textos foram compostos en- 80 A poesia de Guilherme de Almeida: de tradição e silêncio tre 1912 e 1914, sente-se o eco das primeiras cantigas da língua num poe- ma como “Ondas do mar”, ONDAS DO MAR Ondas do mar, ondas do mar! Não deixam nunca de rolar... Dias sem sol de minha vida, de minha vida aborrecida, não deixam nunca de passar... Ondas do mar, ondas do mar! Ondas do mar, ondas do mar, Não deixarão de se quebrar? Têm o fragor triste que eu ouço quando se quebra um sonho moço que eu passo a vida a acalentar... Ondas do mar, ondas do mar! Ondas do mar, ondas do mar! que andam, de noite, a se mudar na renda fina das espumas! As minhas noites más, de brumas, dão-me cabelos cor de luar... Ondas do mar, ondas do mar! Ondas do mar, ondas do mar! Uma alva vela triangular é uma ilusão de todas elas... Pobre de mim! As minhas velas fazem vontade de chorar... Ondas do mar, ondas do mar! (Almeida, 1955, Vol. I: 45-47) 81 Ulisses Infante Num tal poema ouvem-se as cantigas de amigo do período galego-português, mas também se sentem fontes mais próximas no tempo, como a poesia ro- mântica, António Nobre, Guerra Junqueiro, o Saudosismo português (Bar- ros, 1982: 101), embalados todos na cadência dos octossílabos.