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Revista Brasileira fase ix

• ABRIL-MAIO-JUNHO 2020 •

ano iiI • n.° 103 Academia Brasileira Revista Brasileira de Letras 2020

D i r e t o r i a D i r e t o r Presidente: Marco Lucchesi Cicero Sandroni Secretário-Geral: C o n s e l h o E d i t o r i a l Primeiro-Secretário: Antônio Torres Segundo-Secretário: Edmar Bacha Merval Pereira Tesoureiro: José Murilo de Carvalho João Almino

C o m i s s ã o d e P u b l i c a ç õ e s M e m b r o s E f e t i v o s Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin , Alberto Venancio Filho, Alfredo Bosi, P r o d u ç ã o E d i t o r i a l , Antonio Carlos Secchin, Antonio Cicero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes Arnaldo Niskier, , Carlos R e v i s ã o Diegues, Candido Mendes de Almeida, Perla Serafim

Carlos Nejar, , Cicero Sandroni, P r o j e t o G r á f i c o Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton Domicio Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha, E d i t o r a ç ã o E l e t r ô n i c a Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante Estúdio Castellani Bechara, Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Academia Brasileira de Letras Cavalcanti, Ignácio de Loyola Brandão, Av. Presidente Wilson, 203 – 4.o andar João Almino, Joaquim Falcão, José Murilo de – RJ – CEP 20030-021 Carvalho, José Sarney, , Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500 Marco Lucchesi, , Marcos Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525 Vinicios Vilaça, Merval Pereira, Murilo Melo Fax: (0xx21) 2220-6695 Filho, Nélida Piñon, , Rosiska E-mail: [email protected] Darcy de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, site: http://www.academia.org.br Tarcísio Padilha, . ISSN 0103707-2

As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis pela exatidão das citações e das referências bibliográficas de seus textos. Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira. Sumário

Cicero Sandroni Apresentação 7 ENSAIO Celso Lafer Uma análise de percursos complementares: , Helio Jaguaribe e Rubens Ricupero 9 Glauber de Oliveira A Poesia de Geraldo Holanda Cavalcanti 21 Arnaldo Niskier Cecília Meireles e a Educação 25 Antonio Carlos Secchin O nome sob o nome 33 Marcos Estevão Gomes Pasche Raio sobre tela: crítica de arte na poesia de 37 Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa Fevereiro de 1957 – Notas para um ou dois poemas de Ferreira Gullar inéditos em livro 45 Andrea Almeida Campos Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX 59 Peron Rios Mário Faustino, Camões e o sopro da utopia 71 Paulo Franchetti Bandeira: vida & verso 79 Sérgio Alcides Um pouco de Grécia na literatura nacional 91 ENTREVISTA Alberto da Costa e Silva 103 Antônio Torres 113 João Almino 119 POESIA William Soares dos Santos 125 Leonardo Antunes 133 Mariana Ianelli 141 Emmanuel Santiago 159 CONTO Angelo Davila Ladrão roubado 169 Juan José Arreola O guarda-freios 177 Lewis Nkosi O preso 183 Marcos Konder Reis O menino de Copacabana 195

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.

Apresentação

Cicero Sandroni Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras.

esta edição n.o 103 da Revista Bra- cista, integrante do grupo da Escola Nova. sileira, publicamos ensaio de Celso que revolucionou o ensino no Brasil. N Lafer, Cadeira 14 da ABL, ex-minis- Antonio Carlos Secchin, Cadeira 19 da tro do Exterior, jurista e pensador, sobre os ABL, poeta, ensaísta e historiador literário, problemas brasileiros: “Uma análise de per- nos oferece seu discurso como recipien- cursos complementares”. Em texto límpido, dário na Academia de Ciências de Lisboa, Lafer estuda a obra de Antonio Candido, setor de Letras, em sessão sob a presidên- mestre fundamental da literatura brasileira, cia de Artur Anselmo, e que contou com ao lado de análises dos ensaios do pensador a presença de inúmeros acadêmicos portu- Hélio Jaguaribe, 9.o ocupante da Cadeira 11 gueses. Foi recebido por António Valdemar, da ABL, sociólogo que liderou uma geração que é Sócio Correspondente da Academia de intérpretes do Brasil, e de Rubens Ricu- Brasileira de Letras. pero, diplomata com vasta experiência nas No correr das páginas, Marcos Estevão lides da República e representante do Brasil Gomes Pasche escreve artigo em que lem- na cena internacional. bra outra face da personalidade múltipla do Segue-se texto de Glauber de Oliveira poeta Ferreira Gullar, que foi o 7.o ocupante sobre a obra do embaixador Geraldo Ho- da Cadeira 37 da ABL: a de crítico de arte, landa Cavalcanti, Cadeira 29 da ABL, tam- em “Raio sobre tela: crítica de arte na poe- bém poeta e ficcionista, autor de obra com sia de Ferreira Gullar”, que cai como um estudo e tradução do Cântico dos cânticos. raio iluminado sobre sua obra. No próximo texto, o acadêmico Arnal- Ainda sobre Ferreira Gullar, Luiz Guilher- do Niskier, Cadeira 18 da ABL, jornalista e me Ribeiro Barbosa escreve “Fevereiro de educador de destaque no cenário nacional, 1957 – Notas para um ou dois poemas iné- traça mosaico luminoso sobre a humanista ditos em livros”. Cecília Meireles, tendo por base sua atuação Andrea Almeida Campos assina o ensaio na educação, sem esquecer a Cecília poeta, “Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vito- artista plástica, cronista, jornalista, conferen- riana na primeira metade do século XX”. 8 • Cicero Sandroni

A seguir Peron Rios escreve sobre poeta Nas Entrevistas, depoimentos de: Alberto de alta cultura que nos deixou em plena da Costa e Silva (Cadeira 9 da ABL), Anto- juventude: “Mário Faustino, Camões e o so­ nio Torres (Cadeira 23 da ABL) e João Almi- pro da utopia”. no (Cadeira 22 da ABL). Paulo Franchetti, no artigo “Bandeira: vida Na Poesia: William Soares dos Santos, & verso”, aborda um poeta pedra de toque Leonardo Antunes, Mariana Ianelli e Emma- na cultura brasileira: nascido no , “na nuel Santiago. Rua da Ventura/ colegial na da Sole­dade”, Na Ficção: contos de Angelo Davila (La- na juventude veio para o Rio, mas queria ir drão roubado), Juan José Arreola (O guar- “pra Pasárgada”, onde era amigo do Rei. da-freios), Lewis Nkosi (O preso) e Marcos Sérgio Alcides contribuiu com o ensaio Konder Reis (O menino de Copacabana). “Um pouco de Grécia na literatura nacional”. Boa Leitura. ENSAIO Uma análise de percursos complementares: Antonio Candido, Helio Jaguaribe e Rubens Ricupero

Celso Lafer Ocupante da Cadeira 14 na Academia Brasileira de Letras.

I (1849-1910), que não só se dedicou como homem público à Abolição da escravatura, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763- como também identificou na superação do 1838), o patriarca de nossa Independência, legado da escravidão um problema funda- inaugurou uma linhagem de pensadores e mental, a ser superado para a efetiva retifi- homens de ação que na vida brasileira se cação dos desacertos da sociedade brasileira. dedicaram a refletir sobre os rumos do Bra- O papel próprio da palavra do intelec- sil. Em seus múltiplos ‘projetos’ para o país, tual público voltado para articular rumos José Bonifácio, com sua envergadura de es- e propiciar conhecimentos com o objeti- tadista, seus conhecimentos do Brasil e sua vo de efetivar diretrizes necessárias para a sólida formação teórica, adquirida no perío- gestão de sociedades secularizadas não é do em que viveu em e em centros uma peculiaridade brasileira. É uma tarefa europeus de relevo, elaborou uma visão de que usualmente emerge com a percepção futuro para a nova nação. Cumpriu assim, aguda das imperfeições de uma sociedade. com qualidade, uma tarefa de intelectual pú- É a preocupação com o destino de Portugal blico no momento inicial do nation-building que anima a geração de 70, no século XIX, do país. Foi, aliás, o que fizeram, na Argen- e Antonio Sergio, no século XX. tina do século XIX, em outro contexto e A mensagem de Oliveira Martins, como em circunstâncias diversas, Juan Bautista destaca Guilherme d’Oliveira Martins,1 se- Alberdi e Domingo Faustino Sarmiento, guidor de seu legado, foi, como pedagogo e também na América Latina, a partir do e homem público, abrir horizontes, afastar Chile, Andrés Bello. as ilusões do atraso e da ignorância, e pos- O andar da História revelou significativas sibilitar um apropriado e renovado lugar imperfeições da arquitetura do Brasil. É um no mundo para um país de grandeza his- dado que explica a continuidade da linhagem 1 inaugurada por José Bonifácio. Entre seus Cf. Martins, Guilherme d'Oliveira. O essencial sobre Oli­ veira Martins. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moe- muitos sucessores, lembro da, 2003. Conferência “Leituras do Brasil” realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, em 14 de janeiro de 2020. 10 • Celso Lafer tórica como Portugal, resgatando em novos Nesta conferência, vou tratar das lei- moldes “o olhar mundo” lusitano dos des- turas do Brasil de Antonio Candido, Helio cobrimentos de que fala Eduardo Lourenço. Jaguaribe e Rubens Ricupero, cuja impor- Faço estas considerações preliminares tância vou destacar, beneficiado pela me- para dar uma moldura geral de minha con- lhor familiaridade que tenho com seus per- ferência. Ortega y Gasset, em El tema de cursos, sobre os quais escrevi no correr do nuestro tiempo,2 apontou que toda gera- tempo, com um conhecimento instigado ção tem uma sensibilidade própria que a pela convergência de múltiplas afinidades e caracteriza, independentemente de suas pelos afetos da amizade. especificidades e diferenças. Ela se expressa em sua lida com ideias, valores e instituição que recebeu da geração que a antecedeu e II no subsequente desafio de ir elaborando as Antonio Candido (1918-2017) foi uma características próprias de seu percurso na das grandes referências intelectuais do Bra- sensibilidade de sua perspectiva. sil. Teve o reconhecimento de nosso mundo No Brasil da década de 1950, uma notá- luso-brasileiro ao receber, em 1998, o Prê- vel geração de intelectuais, com atuação no mio Camões. São de indiscutível enverga- debate público, dedicou-se a pensar o país dura suas contribuições para o entendimen- e seu futuro. Tiveram como ponto de par- tida o que escreveram na década de 1930, to do país, de sua literatura e do fenômeno a partir de distintos olhares, Gilberto Freyre, literário. Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Foi um notável professor de Teoria Lite- Jr., os ’clássicos’ das leituras do Brasil desse rária e de Literatura Comparada da Faculda- período. de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Trata-se de uma geração que, a partir do da USP. Suas aulas eram uma obra de arte, patamar do conhecimento recebido da que como posso dar o testemunho de antigo a antecedeu, procurou, à sua maneira, as aluno. Sua capacidade de discernimento de chaves para o entendimento e os caminhos matizes e sua “paixão pelo concreto” fize- da “ideia a realizar” das transformações da ram dele um crítico literário de vertentes, arquitetura imperfeita do país. Tem como sempre atento, em sua análise e juízos re- tema compartilhado o Brasil – sua formação flexivos, à especificidade de cada obra. e seu destino político, econômico e cultural. Transformou-se, no decorrer de sua Integram essa geração figuras eminentes existência, em uma grande presença na como , , Ray- vida brasileira, dotada de auctoritas. Sua mundo Faoro, , Florestan Fer- palavra, quando ele se manifestava – pois nandes, Antonio Candido, Helio Jaguaribe não tinha a vocação da militância política e também Rubens Ricupero, que é de uma ativa –, tinha peso em função da limpidez geração mais moça, mas cujo pensamento de sua conduta ética e de seu empenho em se vincula a figuras que acima indiquei. ser justo no trato com as pessoas e das si- tuações – uma faceta que subjaz à maneira 2 Ortega y Gasset, José. El tema de nuestro tiempo. 13. ed. Madri: Revista de Occidente, 1958. de proceder de seu “ser socialista”. Uma análise de percursos complementares: A. Candido, H. Jaguaribe e R. Ricupero • 11

Afonso Arinos, celebrando seus sessen- artísticas. Com sensibilidade ex parte popu- ta anos, qualificou-o como um grande mes- li, formula o direito erga omnes à literatura, tre, que amadureceu no exercício de sua embasando-o como indispensável à forma- maestria por “uma serenidade sem frieza, ção humana, pois arte e literatura são incom- uma tolerância sem concessões, uma firme- pressíveis e não se circunscrevem às necessi- za sem rusticidade”.3 dades materiais. Respondem às necessidades O estilo de sua prosa, em seu jogo entre profundas do ser. Literatura, afirma Antonio ordem e movimento, é uma expressão da Candido, é uma atividade sem sossego. Não qualidade de sua visão, assim como, em ou- corrompe nem edifica. Traz livremente o que tro registro, o coloquial de sua encantadora chamamos de bem e o que chamamos de conversa, sempre bem temperada de ’estó- mal. Humaniza em sentido profundo porque rias’ e reminiscências. Disso dá testemunho faz viver, no trato da complexidade contradi- nosso amigo Guilherme d’Oliveira Martins, tória de cada um de nós. em seu texto “Com Antonio Candido em Falando em Portugal, não posso deixar São Paulo”.4 de mencionar o último livro publicado de Este é um rápido esboço do perfil do Antonio Candido, O albatroz e o chinês autor de Formação da literatura brasileira: (2004),7 sobre o qual também escrevi como momentos decisivos 1750-1880 (1959).5 seu devotado admirador e amigo. Na se- O leitor português tem acesso mais fácil à gunda parte dele, dedica-se à análise da diversidade da obra de Antonio Candido com recepção das obras de Eça de Queiroz, Oli- a publicação por uma editora de Coimbra, veira Martins e Guerra Junqueiro no Brasil. em 2004, do livro O direito à literatura e ou- Estuda a relevante atuação cultural dos tros ensaios.6 O texto “O direito à literatura”, intelectuais portugueses que viveram em que examinei em mais de uma oportunidade terras brasileiras em função do salazarismo, seguindo o tema arendtiano do “direito a ter de muitos dos quais foi próximo, entre eles, direitos”, parte, em termos próprios, do prin- particularmente, Jorge de Sena. Na argú- cípio da igualdade e da não discriminação – cia de sua crítica de vertentes, avalia com ponto de partida do papel dos direitos huma- originalidade A ilustre casa de Ramires, de nos para a qualidade da convivência coletiva. Eça de Queiroz, e A brasileira de Prazins, de Destaca a liberdade como a autonomia do Camilo Castelo Branco. aperfeiçoamento do ser humano, nela fun- As limitações de tempo não me permi- damentando a liberdade das manifestações tem expandir minhas considerações sobre a abrangência da obra de Antonio Candido. 3 Franco, de Melo. “Depoimento”. In: Vou cingir-me, porque é o pertinente para Arinos, Afonso et al. Esboço de figura: homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Livraria Duas Cidades, esta conferência, à já mencionada Formação 1979, p. 37. da literatura brasileira, um livro de “sete fô- 4 In: Martins, Guilherme d'Oliveira. Portugal: identidade 8 e diferença – Aventuras da memória. Lisboa: Gradiva, legos”, como o qualifica Roberto Schwarz. 2007, pp. 215-219. 5 Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: 7 Idem. O albatroz e o chinês. 2. ed. ampl. Rio de Janei- momentos decisivos 1750-1880. 16. ed. Rio de Janeiro: ro: Ouro sobre Azul, 2010 [1. ed.: 2004]. Ouro sobre Azul, 2017 [1. ed.: 1959]. 8 Schwarz, Roberto. “Os sete fôlegos de um livro”. In: 6 Idem. O direito à literatura e outros ensaios. Coimbra: Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Le- Angelus Novus, 2004. tras, 1999, pp. 46-58. 12 • Celso Lafer

Octavio Paz considera que as literaturas fato cultural, de cariz político. Articula-se das Américas são literaturas de fundação. como um sistema que resulta da presença Nascem da expansão do universo econô- de autores mais ou menos conscientes de mico, cultural, linguístico, demográfico, in- seu papel fundacional; de diferentes tipos clusive nas vertentes utópicas, da Europa e de público, sem os quais uma obra não vive a ela se contrapõem para, na lida com as – é apenas uma “manifestação literária” realidades concretas do Novo Mundo, ir en- isolada –; e das obras que se ligam umas gendrando uma tradição própria, distinta às outras e, na variedade de seus estilos e das matrizes europeias, em nosso caso, a propostas, vão se interconectando por pro- matriz lusitana.9 cessos de adensamento recíprocos.12 Antonio Candido esclareceu uma face- Os momentos decisivos da formação do ta da adaptação dos padrões estéticos da sistema na periodização de Antonio Candi- Europa ao desafio das condições físicas e do começam em 1750 e se estendem até sociais do Novo Mundo, ao destacar que o 1880. Articulam-se como fruto da intera- enfrentamento da realidade nas manifesta- ção de obras com um público que começa ções literárias iniciais no Brasil teve como a se formar no século XVIII. Consiste em característica atribuir sentido alegórico à uma síntese das tendências particularistas e flora e de magia à fauna. Foi um meio de universalistas que ele examina com seu do- compensar a pobreza dos recursos e das mínio da literatura comparada. Daí o não realizações, transpondo-as para a escala provincianismo de Formação e a dialética do sonho ao dar transcendência a coisas, de complementaridade que Antonio Candi- fatos e pessoas. Daí a predileção da poesia do aponta entre o Iluminismo dos neoclás- pela prosopopeia, isto é, a humanização da sicos autores do Arcadismo (por exemplo, natureza que fala ao homem, cujo exemplo Cláudio Manuel da Costa) e os românticos inaugural é a obra Prosopopeia (1600), de (por exemplo, Gonçalves Dias, , Bento Teixeira Pinto. Em suas palavras: “É José de Alencar), os quais, tendo partido como se o gigantismo e a inospitalidade da dos árcades, se beneficiaram da vocação do terra se acomodassem aos desejos do colo- Romantismo para, ao afirmar as singulari- nizador, que deste modo a incorpora frater- dades, dar voz na poesia e na prosa à pro- nalmente ao universo dos seus sonhos”.10 posta de autonomia da literatura brasileira. A independência instigou a dimensão Em poucas palavras, um país independente fundacional da literatura brasileira. Expres- passou a possuir uma literatura indepen- sa, nesse sentido, como diz Antonio Candi- dente, com seus temas e visões do Brasil. do, uma “história dos brasileiros no seu de- A concepção de um sistema, que leva em conta a relação literatura e sociedade, sejo de ter uma literatura”.11 Trata-se de um um dos tópicos recorrentes do percurso de Antonio Candido, é a moldura de abran- 9 Paz, Octavio. “Literatura de fundación”. In: Obras completas. Barcelona: Círculo de Lectores; México: gência, erudição e acuidade com a qual Fondo de Cultura Económica, 1994, v. III, pp. 43-48. Formação estuda e analisa as obras e os 10 Candido, Antonio. “Literatura de dois gumes”. In: A educação pela noite. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre autores dos momentos decisivos de sua Azul, 2006, p. 205. 11 Idem. Formação da literatura brasileira, op. cit., p. 27. 12 Idem, ibid., p. 25. Uma análise de percursos complementares: A. Candido, H. Jaguaribe e R. Ricupero • 13 periodização. Decorridas tantas décadas de sa produção, existem, a partir do paradigma sua publicação, esse livro e suas interpreta- representado por Machado de Assis, picos ções retêm plena atualidade para apreender de excelência na poesia (por exemplo, Car- o Brasil e a especificidade de sua literatu- los Drummond de Andrade, João Cabral de ra. Cabe registrar que, no work in progress Melo Neto) e na prosa (por exemplo, Gra- posterior à Formação, Antonio Candido fez ciliano Ramos, João Guimarães Rosa), que instigantes e originais análises das obras e conferem à literatura brasileira do século autores que nela examinou. XX uma presença de destaque na literatu- Trata-se de uma grande interpretação ra universal, mais circunscrita, no entanto, do tema da formação do Brasil, uma das porque o português não é uma língua de grandes preocupações, como mencionei, circulação internacional, como no passado da geração de intelectuais públicos brasilei- foi o latim e é hoje o inglês. É, no entanto, ros que começaram a publicar na década de uma língua universal, como observou Fer- 1950. No entanto, em sua maioria, identifi- nando Pessoa, pois é capaz, em sua flexibi- caram na formação do Brasil as raízes dos lidade, de responder na íntegra a todas as desacertos da arquitetura do país. Antonio formas de expressão possíveis.15 Guilherme Candido compartilha com seus companhei- de Almeida esclarece a dicotomia universal/ ros de geração uma efetiva visão crítica internacional da língua comum que nos une em relação às injustiças e imperfeições da ao afirmar, com sensibilidade de poeta, o sociedade brasileira e a “ideia a realizar” repertório da “capacíssima língua nossa, de sua superação. Analisa, nesse sentido, de pequeno curso e grandes recursos, que como a consciência do subdesenvolvimento tão bem sabe dizer, e de que tanto mal do país, na literatura brasileira a partir do se diz”.16 decênio de 1930, expressa esteticamente múltiplos inconformismos com nossa arqui- tetura imperfeita.13 Isso, no entanto, não III afetou o campo do conhecimento de que Helio Jaguaribe (1923-2018) foi, em sua trata Formação da literatura brasileira, que trajetória, uma personalidade generosa, se tornou um fato cultural consolidado e de solar e republicana. Representou em nosso boa qualidade, dotado da especificidade de país uma encarnação específica da razão uma autonomia própria. vital ortegueana em sua dupla função de Iniciação à literatura brasileira (1997)14 orientar nossa vida no mundo e de orientar- é uma primorosa e atualizada síntese das -nos no entendimento do mundo em nossa ideias de Formação, complementada com vida, para recorrer à sua própria formulação uma análise do consolidado sistema literá- de leitor atento da obra de Ortega y Gas- rio brasileiro, que abrange a produção dos set. “Compreender o nosso tempo na pers- autores e obras até a década de 1950. Nes- pectiva do Brasil” e “compreender o Brasil 13 Cf. “Literatura e subdesenvolvimento”. In: A educa- ção pela noite, op. cit., pp. 169-191. 15 Cf. A língua portuguesa. Org. de Luiza Medeiros. São 14 Candido, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 149. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004 [1. ed.: 16 Almeida, Guilherme de. Flores das Flores do mal de 1997]. Baudelaire. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 98. 14 • Celso Lafer na perspectiva do nosso tempo” foi o lema A obra de Helio é a mais abrangente que formulou em 1953 para a revista Ca- de sua geração. Não cabe, nos limites des- dernos do Nosso Tempo, que fundou e di- ta exposição, examiná-la em sua amplitu- rigiu. Daí a dialética de complementaridade de, de que é um exemplo a coletânea de entre o nacional e o universal que permeia seus ensaios reunidos em Brasil, mundo e sua leitura do Brasil, como, aliás, a de For- homem na atualidade (2008).17 Vou limitar- mação. Tem como horizonte o conhecimen- -me a aspectos relevantes de sua leitura do to do país e a preocupação constante com a Brasil. Não quero deixar de mencionar, no “ideia a realizar” de seu futuro. entanto, que, no campo de suas incursões No cogito de Helio, associam-se, para de fôlego na Sociologia da História, insere- lembrar , o thinking do lo- -se Um estudo crítico da História (2001).18 gos, na abrangente busca do entendimento Nesse ambicioso livro, estuda dezesseis ci- das coisas, e a inquietação do willing, da vilizações principais no âmbito das quais se voluntas, no embate com a resistenciabili- empenha em elucidar as facetas que leva- dade da realidade. Logos e voluntas estão ram a sua emergência e que asseguraram balizados por compromissos éticos, cívicos e/ou comprometeram sua sustentabilidade. e republicanos, ou seja, há um ethos que Subjaz a esse livro o tema recorrente do pre- baliza sua reflexão. A vita activa de Helio, sente e do futuro do Brasil. como um intelectual público, esteve volta- Também, falando em Lisboa, não quero da com brio tanto para indicar rumos – no deixar de registrar, como escreveu Alvaro sentido de ‘direção’ – quanto para propi- Vasconcelos, o afetuoso apreço que Helio ciar conhecimentos – meios para sua efe- tinha pelas coisas portuguesas, de Camões tivação. Em sua obra, nas instituições que ao queijo da Serra, e a importância que criou, como o Instituto Superior de Estudos atribuiu à convergência cooperativa entre Brasileiros (ISEB), em seus artigos e interven- Portugal e Brasil no contexto renovado da ções, empenhou-se em explicar e clarificar redemocratização, da acessão lusitana à o porquê e como promover a racionalidade União Europeia, das perspectivas da luso- do desenvolvimento, tanto como processo fonia e do que isso pode oferecer para a quanto como projeto, destinado a ampliar ordem mundial.19 democraticamente, com liberdade e igual- Helio, no mundo das ideias, foi um dade, o poder do controle da sociedade pensador que, por aproximações sucessi- brasileira sobre seu destino. vas, com empenho de scholar, sistemati- O impacto de Helio na opinião pública zou e desenvolveu, numa densa obra, as teve muito a ver com o vigor e o entusiasmo percepções e intuições originárias de sua de sua razão vital, com a fulgurante inte- 17 ligência de seu poder de síntese e a origi- Jaguaribe, Helio. Brasil, mundo e homem na atualida- de. Brasília: FUNAG, 2008. nalidade contagiante de suas formulações. 18 Idem. Um estudo crítico da História. Rio de Janeiro: Em poucas palavras, com seu estilo afeito à Paz & Terra, 2001. 19 Cf. Vasconcelos, Álvaro. “Brasil, Portugal e a Euro- frequentação das boas letras e que, como pa – as raízes e o projeto”. In: Alberto Venancio; Israel todo estilo, como dizia Proust, expressa a Klabin; Vicente Barreto (Org.). Estudos em homenagem a Helio Jaguaribe. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2000, qualidade de uma visão. pp. 39-45. Uma análise de percursos complementares: A. Candido, H. Jaguaribe e R. Ricupero • 15 razão vital. É o que ocorre com suas leitu- peculiaridades nacionais. É um meio para ras do Brasil, que são um contínuo work in atingir um fim: o desenvolvimento.22 Na progress. dialética das ideias e das posições que pro- O nacionalismo é um dado da realidade põe, o nacional é o movimento dialógico da política dos países que retêm significado e diferença que há do ser crítico em sua inte- alcance que se prolongam no cenário con- ração com o universal, para não se petrificar temporâneo. Permanece, por isso mesmo, no imobilismo zelotista de um nacionalismo na pauta dos desafios da teoria política, de meios. A dicotomia nacionalismo de aguçado pelos impactos da era da globa- fins/nacionalismo de meios deu à reflexão lização, que internalizou o mundo na vida de Helio uma abertura intelectualmente­ dos países.20 heurística em suas análises subsequentes Helio enfrentou o tema em O naciona- dos desafios do desenvolvimento e dos ca- lismo na atualidade brasileira (1958),21 seu minhos da inserção internacional do Brasil, primeiro livro de fôlego, que teve grande como sublinhei em um texto sobre a visada repercussão no Brasil. Elaborou-o na pers- de sua obra.23 pectiva do país no mundo, muito atento ao Seu livro subsequente é Desenvolvimen- papel do nacionalismo no debate político to econômico e desenvolvimento político brasileiro da década de 1950, um debate (1962).24 Na primeira parte, Helio discute que, em novos moldes, está presente na como se imbricam desenvolvimento econô- sociedade brasileira e que expressa as aspi- mico e organização política, identificando, rações das condições de autonomia do país. no incremento da racionalidade pública, o Esse é um tema recorrente em sua leitura nexo entre a vertente econômica e a políti- do Brasil. ca de desenvolvimento. Na segunda parte, A primeira parte do livro está dedicada à procede a uma sintética avaliação histórica análise teórica do nacionalismo como fenô- do Estado e da economia brasileira para meno histórico e social e o alcance de sua vis apontar a relevância de um nacionalismo directiva como rumo para o desenvolvimen- desenvolvimentista. to do país. A segunda parte examina os pro- O inóspito clima político implantado blemas concretos que suscitava esse rumo, pelo regime autoritário de 1964 para a livre em relação à questão do petróleo, do capital discussão das ideias levou um “intelectual estrangeiro, e conclui com uma análise da público” como Helio a um auto­exílio nos policy de visada estratégica, sobre os melho- Estados Unidos. Foi um período em que le- res caminhos da política exterior brasileira. cionou em grandes universidades america- Nesse livro, Helio formula sua perspecti- nas (Harvard, MIT, Stanford). Da experiência va própria do nacionalismo, à qual foi dan- do prosseguimento no correr de sua obra. 22 Idem, ibid., pp. 52-53. É um nacionalismo de fins e não de meios. 23 Cf. Lafer, Celso. “Zelotismo/Herodianismo na refle- xão de Helio Jaguaribe”. In: Lima, Sérgio Eduardo Mo- Não é uma afirmação autocentrada de reira. (Org.). Visões da obra de Helio Jaguaribe. Brasília: FUNAG, 2015, pp. 27-43. 20 Cf. Canovan, Margaret. Nationalism and Political 24 Jaguaribe, Helio. Desenvolvimento econômico e de- Theory. Cheltenham: Edward Elgar, 1996. senvolvimento político: uma abordagem teórica e um 21 Jaguaribe, Helio. O nacionalismo na atualidade brasi- estudo do caso brasileiro. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Paz leira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958. & Terra, 1969 [1. ed.: 1962]. 16 • Celso Lafer intelectual dessa época, provêm Political Um dado da maior importância para a Development (1973) e, subsequentemen- aspiração da autonomia de um país é seu te, Introdução ao desenvolvimento social potencial de viabilidade.27 Viabilidade na- (1978).25 cional é assim uma das categorias que, Nesses dois livros, estão presentes o co- como condição do desenvolvimento po- nhecimento da História brasileira; a política lítico, ele examina em suas múltiplas dis- comparada; o uso sincrônico e diacrônico cussões relacionadas à “nossa arquitetura da experiência de outros países na análise imperfeita”, ao traçar rumos e apontar das perspectivas brasileiras; as contribui- conhecimentos-meio, necessários para re- ções da ciência política norte-americana; o tificá-la. Corresponde ao que os ’realistas’ diálogo com os clássicos; os grandes pen- qualificam, conforme observa Gelson Fon- sadores europeus e os estudiosos latino- seca Jr., como um adensamento dos “fun- -americanos e brasileiros. Disso resulta, no damentos do poder nacional”.28 Diz respei- trato das mudanças, necessárias para lidar to a um mínimo crítico de recursos naturais com nossa arquitetura imperfeita, uma ela- e humanos, condicionados pelas exigências borada concepção funcional-dialética das científico-tecnológicas de cada época, por sociedades, das variáveis de participação e lideranças e pelas circunstâncias históricas. institucionalização de seus sistemas políti- É o alargamento desses fundamentos que cos, do papel das lideranças e das congru- está ao alcance do Brasil que caracteriza a ências ou incongruências entre o social, o visão de Helio como “intelectual público” e econômico, o cultural e o político. seu nacionalismo de fins. Daí, no contínuo work in progress da O Brasil está inserido no mundo e não é reflexão de Helio, o papel que teve o alar- uma grande potência. Por isso, o comple- gamento pluralista do mapa do saber da mento da categoria de viabilidade nacional teoria e da ciência política. Daí igualmente a é a categoria da “permissibilidade interna- base de sustentação teórica das prescrições cional”, ou seja, o que está ao alcance ou da “ideia a realizar” de seu nacionalismo de não está ao alcance da atuação de um país fins, que norteiam em distintas conjunturas nas distintas conjunturas históricas. Foi o suas inúmeras e subsequentes obras dedi- que tornou Helio, a partir do texto pioneiro cadas ao desenvolvimento brasileiro, nas sobre política externa de O nacionalismo na quais se mesclam thinking e willing. É o que atualidade brasileira, o patrono inaugural dele faz, como “intelectual público” de sua do estudo acadêmico das relações interna- geração, com rigor e vigor, um profeta da cionais em nosso país. lucidez, como escrevi, analisando uma de O tema da permissibilidade subjaz ao suas obras da década de 1980.26 conjunto de seus estudos reunidos em

25 Jaguaribe, Helio. Political Development: A General Theory and a Latin American Case Study. Nova York: 27 Cf. Jaguaribe, Helio. Political Development, op. cit., Harper & Row, 1973; Jaguaribe, Helio. Introdução ao pp. 337 e ss. desenvolvimento social: as perspectivas liberal e marxis- 28 Cf. Fonseca Jr., Gelson. “Relendo um conceito de ta e os problemas da sociedade não repressiva. Rio de Jaguaribe: a permissibilidade no sistema internacio- Janeiro: Paz & Terra, 1978. nal”. In: Venancio, A.; Klabin, I.; Barreto, V. (Org.). 26 Lafer, Celso. “Helio Jaguaribe: o profeta da lucidez”. In: Estudos em homenagem a Helio Jaguaribe, op. cit., Ensaios liberais. São Paulo: Siciliano, 1991, pp. 163-168. pp. 93 e ss. Uma análise de percursos complementares: A. Candido, H. Jaguaribe e R. Ricupero • 17

Novo cenário internacional (1986)29 e tra- internacionais. Integra, como Antonio Can- balhos posteriores. Estão voltados para as dido, o panteão de minha admiração. condições de acesso à autonomia do Brasil, Bluteau, em seu pioneiro Vocabulário que consiste em conciliar, em distintas con- português e latino (1728), consigna que junturas, uma margem significativa de au- “Repúblico é o zeloso do bem da Repúbli- todeterminação na condução dos assuntos ca, o amigo do bem público”. Helio, em sua internos com uma apreciável capacidade de trajetória de grande intelectual público, foi atuação internacional. paradigma de um repúblico. No diálogo universal/nacional, os estu- dos de Helio se dedicam a refletir sobre a or- dem mundial, ou seja, sobre a dinâmica do IV funcionamento do sistema internacional, as Rubens Ricupero (1937) está mais próxi- transformações das hegemonias e o escopo mo de minha geração do que da de Antonio da atuação dos Estados Unidos durante e Candido e Helio Jaguaribe. Tem, no entanto, após a Guerra Fria. Dedicam-se igualmen- vínculos com a geração que o antecedeu. te aos rumos da Diplomacia brasileira e Basta lembrar que seu grande e recente livro suas opções estratégicas. Daí a relevância que comentarei nesta conferência, A diplo- que atribui ao nosso entorno regional e o macia na construção do Brasil: 1750-2016 consequente papel da integração latino- (2017),30 traça explicitamente uma analogia -americana, e, nesse contexto, o significa- com a obra de Antonio Candido. O autor do do aprofundamento do relacionamento aponta que, parafraseando-o, escreveu um -Brasil. Helio também atribui a livro sobre o desejo dos brasileiros de ter uma devida importância à agenda ambiental e à política externa.31 O ano de 1750 é também, capacitação científico-tecnológica do Brasil. como em Antonio Candido, o ponto de par- Nesse sentido, não foi por acaso que as- tida da formação diplomática do Brasil, mas sumiu a pasta da Ciência e Tecnologia no por razões distintas. Constitui-se na data do “Ministério dos notáveis” do Presidente Tratado de Madri, celebrado entre a Coroa , que também in- Portuguesa e a Espanha. Foi concebido pelo tegrei como chanceler, contando com seu secretário do rei D. João V, o brasileiro Ale- apoio na condução da Rio-92, a grande xandre de Gusmão, qualificado como o avô conferência da ONU sobre Meio Ambiente da Diplomacia brasileira e nascido em San- e Desenvolvimento. tos, como José Bonifácio. O Tratado de Ma- Conheci e admirei Helio desde meus dri deu o contorno da escala continental de tempos de estudante. Tive o privilégio de nosso país, que é um dos elementos identifi- ter sido seu amigo e com ele convivido e cadores de nossa presença no mundo. compartilhado muitas de suas iniciativas de Rubens tem o dom da clareza da pa- intelectual público. Foi uma referência per- lavra, escrita ou falada, que elucida, sem manente e um patrono de meu percurso simplificações, a complexidade das coisas. nas áreas de ciência política e das relações 30 Ricupero, Rubens. A diplomacia na construção do 29 Jaguaribe, Helio. Novo cenário internacional. Rio de Brasil. Rio de Janeiro: Versal, 2017. Janeiro: Guanabara, 1986. 31 Idem, ibid., p. 27. 18 • Celso Lafer

Seu estilo dá ordem e movimento ao seu modo que o diálogo nacional/universal – a pensamento, como ensinava Buffon. A His- visão do Brasil e a visão do mundo – ope- tória, para Rubens, caracteriza, nos tempos ra na reflexão de Rubens, à semelhança do longos braudelianos ou curtos das conjun- que em seus respectivos campos de conhe- turas, o teor da sensibilidade diplomática de cimento fizeram Antonio Candido e Helio suas percepções e avaliações, como desta- Jaguaribe, como sublinhei anteriormente cou Gelson Fonseca Jr. no prefácio ao seu nesta conferência. livro Visões do Brasil (1995),32 sobre o qual San Tiago Dantas foi uma grande figu- também escrevi na época. Daí a relevância ra de intelectual e homem público do Brasil, que atribuiu à História no trato das relações pela qual tanto Rubens quanto Helio têm internacionais. Aos seres humanos compete compartilhada admiração e afinidades, inclu- dar à História um sentido por meio da razão sive porque, como chanceler, ele foi o gran- e da ação, como observa na conclusão des- de clarificador do recorrente alcance de uma se livro, evocando Vico.33 Foi o que fez em política externa voltada para a autonomia A diplomacia na construção do Brasil, que é e o desenvolvimento, que se imbricou com uma grande leitura de nosso país e de sua seu projeto nacional, com o foco no destino arquitetura, elaborada na perspectiva orga- coletivo do país. San Tiago afirmou que “a nizadora da política externa. tarefa da inteligência humana é tirar o valor Trata-se de uma obra única na biblio- das coisas da obscuridade para a luz”.34 É o grafia brasileira. Transcende o circunscrito que faz Rubens em A diplomacia na constru- tradicional da história diplomática, e não ção do Brasil, que é um livro de fôlego. Foi o apenas em nosso país. Oferece uma abali- elaborado resultado de uma reflexão de dé- zada interpretação do sentido de direção da cadas. Lastreia-se num conhecimento abran- política externa do Brasil e de seu efetivo gente e multidisciplinar. Beneficia-se, no papel na construção do país. Avalia com correr da interação de suas partes, das lições discernimento o movimento da pauta di- da experiência de quem viveu, como diplo- plomática na trama da agenda da história mata brasileiro de relevo, as possibilidades política e econômica nacional. Analisa suas e os limites da atuação da política externa respectivas transformações no âmbito mais brasileira – uma experiência alargada tanto amplo das grandes mudanças da “máquina pelo exercício de funções públicas como a de do mundo”, configuradoras do espaço de ministro do Meio Ambiente e da Amazônia inserção internacional do Brasil desde o pe- Legal e de ministro da Fazenda, quanto pelo ríodo colonial. conhecimento das especificidades do fun- A reflexão de Rubens apura-se com a cionamento de organizações internacionais, perspectiva propiciada pela análise compa- como secretário-geral da Conferência das rativa da experiência histórica da inserção Nações Unidas sobre Comércio e Desenvol- internacional de países que apresentam vimento (UNCTAD). analogias e afinidades com o nosso. É desse A sensibilidade em relação aos movi- 32 Cf. Fonseca Jr., Gelson. “Prefácio”. In: Ricupero, Ru- mentos da História nacional e internacional bens. Visões do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 10. 33 Ricupero, Rubens. A diplomacia na construção do 34 Dantas, San Tiago. D. Quixote: um apólogo da alma Brasil, op. cit., p. 738. ocidental. Rio de Janeiro: Agir, 1948, p. 16. Uma análise de percursos complementares: A. Candido, H. Jaguaribe e R. Ricupero • 19 confere ao livro renovada substância para O grande modelo da Diplomacia do a esclarecedora distinção que, há muitos conhecimento e do preparo, como explica anos, Rubens elaborou dos tradicionais ei- Rubens Ricupero, na linha de seus traba- xos de ação diplomática brasileira: o das re- lhos anteriores, foi o Barão do Rio Branco, lações de simetria ou de relativa igualdade o admirável institution-builder do Itama­raty com os países de poder em situações inter- e o arquiteto de sua autoridade. Na Re- nacionais comparáveis à do Brasil, como os pública, equacionou, por meios pacíficos, da América Latina, e, em seu âmbito, o con- com talento e originalidade, os problemas texto da vizinhança que é a circunstância de pendentes das fronteiras do país, liberando nosso eu diplomático, e o das relações de o caminho para o que veio a ser a Diplo- assimetria ou desigualdade com as nações macia do desenvolvimento. Concebeu, nas das quais nos separa uma diferenciação circunstâncias da época, um válido modo apreciável de poderio político e econômico, de atuar do Brasil nos eixos da simetria e como foram, no século XIX, a Grã-Bretanha da assimetria. Além do mais, contribuiu de e, no século XX, os Estados Unidos. maneira decisiva para articular uma ideia do Esta distinção entre os dois eixos e seus Brasil no mundo: a de um país sem ambi- desdobramentos é uma de suas contribui- ções territoriais, em paz com seus vizinhos, ções à teoria das relações internacionais confiante no Direito e no valor das soluções e aos desafios da estratificação da ordem negociadas, empenhado em ser reconheci- mundial, a partir de uma perspectiva brasi- do como uma força de moderação a serviço leira. Ela é enriquecida no livro pela análise da criação de um sistema internacional mais das múltiplas dimensões do poder, inclusive equilibrado e pacífico. Essa ideia do Brasil o que positivamente representou, em distin- no mundo veio a ser, em distintas conjuntu- tas fases da História brasileira, a Diplomacia ras e com variadas ênfases, uma das notas do conhecimento e do preparo intelectual. do estilo diplomático brasileiro. Nessa linha, no Império, a política externa Gelson Fonseca Jr., no já mencionado traduziu-se, no dizer do Conselho do Estado, prefácio ao livro de 1995 de Rubens Ricupe- numa “Diplomacia inteligente, sem vaidade; ro – Visões do Brasil –, observa que o interlo- franca sem indiscrição; enérgica sem arro- cutor subjacente dos ensaios que o integram gância”, muito ajustada às necessidades de é o próprio pensamento diplomático brasi- construção da unidade do Estado nacional leiro, que ele, como autor, exprime, revela, na lida com a Grã-Bretanha e no trato com muitas vezes adota e outras, sutilmente, criti- os problemas da Questão do Prata. ca. Em A diplomacia na construção do Brasil, Essa postura caracterizou os estadistas a interlocução com o pensamento diplomá- do Império que tiveram relevante papel di- tico é explícita. Daí o interesse e o sabor de plomático, como o Visconde do Uruguai e que se reveste a análise dos agentes da polí- o Visconde do Rio Branco, e profissionais da tica exterior no correr dos tempos e a avalia- Diplomacia, como Duarte da Ponte Ribeiro, ção do que lograram em circunstâncias mais que, nos 52 anos de sua carreira no Minis- ou menos difíceis da vida brasileira. Nessas tério, foi decisivo na formulação da qualifi- avaliações, o empenho de objetividade do cada política de limites do Império. autor não exclui a apreciação, por vezes 20 • Celso Lafer crítica, do encaminhamento que deram à é seu – clássico critério de justiça desde os agenda da política exterior brasileira, emba- romanos –, merece reconhecimento e ad- sada numa larga experiência, ’de dentro’ e miração. Ela percorre as páginas de A diplo- não ’de fora’, do que é a especificidade do macia na construção do Brasil (1750-2016), fazer e do operar diplomático. Da qualidade que é um livro de dedicado afeto, destituído dessa experiência, dou meu testemunho nas de demagogia, pelo Brasil, e de estima pelo inúmeras oportunidades que tive de com ele Itamaraty – instituição a que serviu como compartilhar desafios diplomáticos de nosso qualificadíssimo profissional, sabendo nela país. Entre eles, na condução da Rio-92, sua identificar, sem deslumbramentos, o que competência na negociação do capítulo fi- tem de positivo seu estilo de ser e de atuar. nanceiro da Agenda 21. No período que se estende até 1960, as considerações têm o lastro de seu do- V mínio de questões complexas – das tradi- Antonio Candido, Helio Jaguaribe, Rubens cionais, como fronteiras, reconhecimento Ricupero são grandes intelectuais que se internacional do país, tráfico internacional dedicaram, cada um ao seu modo, a pensar de escravos, conflitos no Prata, guerra do o Brasil e sua formação e analisar seus ca- Paraguai, às contemporâneas, como globa- minhos a partir de uma larga visão de seus lização, comércio internacional, multilatera- campos de conhecimento: cultura/literatu- lismo, armas nucleares, direitos humanos, ra; teoria política e relações internacionais; meio ambiente – e de como se imbricam na diplomacia e política externa. Todos têm pauta nacional e internacional. No período a dimensão de intelectuais públicos e há, subsequente, que se estende até o fim do como espero ter esclarecido, complementa- governo Dilma Rousseff, elas têm a dimen- riedade em suas leituras do Brasil. são própria de quem viveu como testemu- A visão crítica que compartilham sobre nha ou agente o que se passou. Destaco as imperfeições de nossa arquitetura está o empenho de objetividade com o qual o permeada, no entanto, sem demagogias autor analisou e avaliou as circunstâncias cívicas, pela dedicação ao país. É o que nos internas e externas, os momentos de fragili- anima, num momento de mais trevas do dade e os mais favoráveis que enfrentaram que luz no Brasil e no mundo, a seguir a ad- os que conduziram a política externa e a Di- moestação de Tocqueville, em A democra- plomacia brasileiras, tanto aqueles com os cia na América:35 “Ayons donc de l’avenir quais tem maior afinidade, quanto aqueles cette crainte salutaire qui fait veiller et com- com os quais sua sintonia é menor. Nisso battre, et non cette terreur molle et oisive incluo a serenidade com que analisou os qui abat les coeurs et les énerve”, ou seja, tempos recentes das presidências Fernando “É preciso ter em relação ao futuro o receio Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Sil- salutar que faz velar e combater”. va, e os debates que suscitaram na agenda da opinião pública nacional. 35 Essa postura, que atribui, tanto positiva Tocqueville, Alexis de. De la Démocratie en Améri- que/ Souvenirs/ L’Ancien Régime et la Révolution. Paris: quanto negativamente, a cada um o que Robert Laffont, 1986, v. II, p. 655 (IV parte, cap. VII). A Poesia de Geraldo Holanda Cavalcanti

Glauber de Oliveira Formado em Ciências Sociais e Filosofia (Bacharelado/Licenciatura) na Universidade Federal de (UFPE).

omo faz bem a leitura de uma obra Já se falou um pouco da obra, mas é inteiramente. Ou, se não isso, deve- muito pouco, perto de tudo que ela con- C mos ler o máximo que seja possível tém. Deve-se lamentar não ter feito um de um autor. Acha-se que isso fica ratifica- pinçar na obra dos textos mais representati- do com a leitura da obra poética de Geraldo vos, mas talvez isso não tenha sido de todo Holanda Cavalcanti. Corroborando o poeta ruim, afinal de contas é como se ao invés de e escritor colombiano Álvaro Mutis, a poe- uma fatia de guloseima, se tivesse a mesma sia de Geraldo Holanda Cavalcanti é varada inteira. Ou seja: fartura. Logo se fica justi- do sentimento feminino-amoroso, notada- ficado pelos exageros ou faltas cometidos mente no início. durante a feitura do ensaio. Passemos a uma primeira observação Falar da obra poética que está sendo importante: a presença da terra natal do discutida é um verdadeiro mosaico de pos- poeta, especialmente (até por causa de sibilidades. O autor é vário. Vário nas for- quem escreve este ensaio), a presença da mas, vário nos ritmos, vário nas estéticas. cidade de Olinda, mas também Recife, Ti- Talvez seja engraçado, mas justamente por jipió... e já que estamos falando em cida- ser um autor variegado, menos temos para des, cosmopolitizemos a questão, afinal de falar dele. Folheia-se a sua obra (na verdade contas o poeta é um diplomata e por isso se lê a mesma, toda) e o que se percebe é o que mais temos citados em sua obra são que se pode fazer um tumultuoso trabalho. espaços geográficos diversos. Cidades es- Seja em pequeno ou grande tamanho. O pecialmente – pode lembrar-se delas com fazedor destas linhas coloca-se este com- certeza. promisso: leitor e admirador da obra deste Foram estabelecidos três tópicos para membro da Academia Brasileira de Letras, observação da obra do autor, mas que na a solução que encontrou foi uma solução verdade são dois (apesar de que agora se romântica. Espera-se que possa ser de agra- ocorre de pensar na questão do conteúdo, dável leitura. sem dúvida menos importante, mas que 22 • Glauber de Oliveira para autor da estirpe de quem se está fa- ligado à Rússia, antes chamada União Sovi- lando, falar sobre conteúdo cai como uma ética), além disso, demonstrando erudição, mão à luva). Que seja permitido fazer uma o usufruto de poetas como tema, poetas digressão sobre o que é estética. Estética na orientais e ocidentais, sua dívida a Jorge verdade é tudo, inclusive o ritmo, que há de Luis Borges... enfim muito pode falar-se, o ser considerado aqui. O intuito maior da di- medo de quem escreve estas linhas é de se gressão é desfazer uma confusão que ficou estar sendo enfadonho. acima estabelecida entre estética e forma. Passa-se agora para a forma propriamen- Na verdade são a mesma coisa. Reafirman- te dita, a estética do poeta comentado. Dir- do agora os blocos a serem observados na -se-ia que o autor escreve majoritariamente obra do autor, destacar-se-ia o ritmo, a for- um texto descritivo, ele gosta de montar ma (que também é o ritmo) e o conteúdo. imagens, paisagens poéticas como se fossem É uma discussão muito interessante. É im- quadros, de certa forma um poeta-pintor, possível deixar de pensar naqueles nossos também procura fazer contrastes psicoló- críticos literários da primeira metade do sé- gicos dentro dos poemas e, o que é muito culo XX (Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Eduardo significativo, não se furta às metáforas, por Frieiro, , Alceu Amoro- sinal, de lembrança, há de se destacar que so Lima, Agrippino Grieco – este um pou- talvez mais de um livro seu frequente a me- co mais antigo, ou até mesmo os críticos taforização de forma contínua. Acha-se que iniciais: Sílvio Romero, José Veríssimo, Ara- se pode falar até em surrealismo. ripe Júnior, João Ribeiro... enfim a própria Nome referendado pelas figuras mais im- nata do estudo literário brasileiro). Diga-se portantes do Brasil e até além de nossa na- inclusive que é difícil deixar de pensar neles ção, muitos destes já falecidos, mas que só por causa do escrever “ao correr da pena”. fazem dar autoridade de lápide a tudo que Quantos tartamudeares não são cometidos faz o nosso poeta e escritor (diplomata sem por causa do ato de escrever ao sabor da in- dúvida, não nos esqueçamos nunca)... é in- tuição? Se existem corruptelas, elas podem crível: o fluxo de ideias corre como um rio e vir a ser ruminadas e o texto que inicialmen- coisas que não foram ditas tomam a licença te era só uma avaliação de uma obra, pode de serem citadas. Quem pervaga a obra de até ganhar caráter quase de tratado. Geraldo Holanda Cavalcanti entusiasma-se Falando do ritmo na obra de Geraldo com a citação dos mais diversos autores, Holanda Cavalcanti, este autor é muito ver- poetas e não poetas, estrangeiros. E bem sátil. Usa do soneto, usa das quadras, usa que se poderia apresentar aqui outra faceta do verso livre, usa de rimas, usa de formas do autor, que é a do tradutor, mas isso fica não tão comuns (há de se lembrar de um para outra ocasião. O que se quis agora foi poema seu feito em dísticos com métrica falar do genuíno poeta. Valoroso, infenso a bem peculiar). qualquer contrariedade e dignificando nosso Quanto ao conteúdo se fale no amor, país como enorme fazedor poético. nas lembranças internacionais (faça-se re- cordação à China), questões militares, polí- P.S. (1): uma coisa que não foi dita, não ticas (a ligação ao socialismo, especialmente pode deixar de ter menção. Já comentada A Poesia de Geraldo Holanda Cavalcanti • 23 por Álvaro Mutis na introdução à Poesia surpreendidos. Apesar disso se resolve fazer reunida (Ed. Bertrand Brasil, 1998), fala o mais uma consideração. É quanto à manei- autor colombiano da necessidade da leitura ra que o autor apresenta o seu texto. Há a do Fausto para destrinchar o temário femi- forma pessoal, confessional, como há a for- nino-amoroso, já discutido no ensaio, mas ma impessoal, indireta, na terceira pessoa quis lembrar o Fausto e seu autor, Johann do singular. Acha-se importante fazer esse Wolfgang von Goethe, para ressaltar a tipo de comentário porque muito se fala na imagem convenientíssima para o poeta condição superior da forma impessoal sobre contemporâneo, que é a do poeta culto, a confessional. Daí, por exemplo, o moti- internacional, que nos apresenta, desde o vo de, no embate entre dois grandes líricos princípio, o senhor Geraldo Holanda Ca- brasileiros, e Carlos Drum- valcanti. Dir-se-ia que esse é o lema para o mond de Andrade, dar-se a primazia ao últi- jovem poeta: seja culto, seja internacional. mo sobre o primeiro. Discussão, no mínimo, Coisa que, por sinal, Geraldo Holanda Ca- terrificante. Pelo menos neste ponto o au- valcanti já era desde cedo por sua condição tor resenhado trafega pelas duas margens de diplomata. da dicção pessoal e impessoal. E Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade P.S. (2): pós-escrito de última hora. Quan- também! Que discussão terrível esta de dic- do ousamos falar de alguma coisa quere- ção! Não parece ser a mais importante para mos ser completos por mais que sejamos a verdadeira poesia.

Cecília Meireles e a Educação

Arnaldo Niskier Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras. Formado em Matemática e Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de janeiro. É Doutor em Educação. Foi membro do Conselho Nacional de Educação. Autor de mais de cem livros. Membro da Academia Brasileira de Educação.

“Brasil melhor só pode ser um Brasil novo, Voltando à nossa poeta, Cecília Benevi- refeito, reconstruído de baixo para cima, des de Carvalho Meireles nasceu no bairro – porque, em cima, como verificaram os Rio Comprido, no Rio de Janeiro, no dia 7 revolucionários, tudo está errado, corroído de novembro de 1901. Seu pai, Carlos Al- pela política, e não há jeito de fazer boa obra berto de Carvalho Meireles, era funcionário nova com material tão velho e condenado”. do Banco do Brasil, enquanto sua mãe, Ma- Cecília Meireles thilde Benevides Meireles, era professora do e o destino não me proporcionou a antigo ensino primário, na rede pública. Ela ventura de conviver com Cecília Mei- não conheceu o pai, que faleceu três meses S reles, uma das maiores poetas da li- antes do seu nascimento, e, aos três anos teratura brasileira, mais recentemente pude de idade, perdeu a mãe e foi morar com retornar à sua obra, graças a uma gentileza a avó materna, dona Jacinta Garcia Benevi- da querida amiga Nélida Piñon. Ela me pre- des, uma portuguesa da Ilha de São Miguel, senteou com a coleção, editada pela Global, nos Açores. em que são reproduzidas as crônicas da au- A fatalidade marcou profundamente a tora de Ou isso ou aquilo especificamente vida de Cecília Meireles, como registrou o sobre educação, setor ao qual se dedicou Acadêmico Murilo Melo Filho, em artigo por muitos anos, com inexcedível afinco. publicado na imprensa: Posso confidenciar desde logo que, se Desde criança, viu-se marcada pela morte: não tive maior contato pessoal com Cecí- seu pai morrera quando ela ainda estava no lia, o mesmo não pode ser dito em relação ventre materno. E perdera sua mãe três anos depois. Foi uma órfã praticamente completa, à sua filha, a atriz Maria Fernanda. Tive o íntima da morte desde a sua gestação, cujas ensejo de aplaudi-la no teatro, inúmeras histórias narradas talvez lhe tenham produzi- vezes, especialmente quando encenou a do o influxo ibérico, lusitano, espanhol, ilhéu conhecida peça “Um bonde chamado de- e oceânico. Sua infância foi perseguida pela sejo”, de Tennessee Williams. Sua interpre- orfandade, que influenciaria toda a sua obra tação foi inesquecível. poética. Seria escolhida por essa fatalidade até 26 • Arnaldo Niskier mesmo no casamento com o ilustrador por- de gato, Ou isto ou aquilo e Escolha o seu tuguês Correia Dias – pai de suas três filhas sonho. O saudoso Afrânio Coutinho assim Marias (Matilde, Elvira e Fernanda) –, que se celebrou a obra da poeta: suicidaria logo em seguida. Poucos poetas brasileiros terão sido coro- ados do êxito de Cecília Meireles, como prova Sua formação escolar foi bem simples, se haverem esgotados rapidamente todos os mas já denotava o futuro brilhante que teria. seus livros. Por outro lado, raros terão, como O antigo primário foi na Escola Municipal ela, tão unânime consagração por parte da Estácio de Sá, onde teve a honra de receber crítica. do poeta uma medalha de ouro pelo desempenho exemplar, por ocasião da Baseados nas suas primeiras obras, al- conclusão do curso, em 1910. Formou-se guns estudiosos tentaram classificar o seu em 1917 na Escola Normal do Distrito Fede- estilo como simbolismo, enquanto outros ral, no Rio de Janeiro, aos 16 anos de idade, definiram como modernismo, mais direta- sob os auspícios de professores renomados, mente ligado à segunda fase do movimen- como o poeta Osório Duque Estrada, o his- to. Há especialistas que enxergam romantis- toriador Basílio de Magalhães e a escritora mo e até parnasianismo. Digamos que é até Alexina Magalhães Pinto. Em 1918, Cecília um pouco temeroso entrar nessa seara de Meireles começou a dar aula no antigo cur- definições, pois ela sempre foi avessa a es- so primário da Escola Pública Deodoro, na sas tentativas. Nos anos 1950, por exemplo, Glória, como professora adjunta. Depois, em entrevista ao jornal A Gazeta, ela dava o em 1920, fez parte da turma de desenho seguinte conselho aos jovens poetas: “Nun- da Escola Normal do Distrito Federal. ca se filiem a nenhuma escola literária: es- cola é uma prisão”. O surgimento da poeta Existe outro exemplo que confirma esse pensamento. Numa carta enviada a Augus- O mercado editorial saudou o apare- to Meyer, em 1930, Cecília Meireles afir- cimento da obra de Cecília Meireles com mou: alegria e entusiasmo. Aos 18 anos, lan- Eu vivo muito afastada de todos os gru- çou o primeiro livro de poemas, Espectros pos literários porque no Rio, em geral, não há (1919). O segundo, Nunca mais, saiu em nada mais em desacordo com uma alma de 1923, logo após a Semana de Arte mo- artista que a alma dos artistas. derna de 1922. Depois, vieram dezenas de livros, que se tornaram clássicos da literatu- Certa vez, o poeta mineiro Carlos Drum- ra brasileira, dos quais podemos citar: Mar mond de Andrade assim definiu a persona- absoluto, Problemas de literatura infantil, lidade de Cecília Meireles: Há uma graça fluida nos comentários que Doze noturnos de Holanda e o Aeronauta, ela vai tecendo à margem da confusão, dos ti- Romanceiro da Inconfidência, Poemas es- ques, dos equívocos, dos absurdos da vida co- critos na Índia, Batuque, Canções, Giroflê, tidiana. Em vez de censura, o sorriso reticente, Giroflá, Romance de Santa Cecília, A rosa, mas suave, de ironia sem amargor. Sorriso de Obra poética, Metal Rosicler, Poemas de pena pelos que não sabem ver e conviver, per- Israel, Antologia poética, Solombra, Olhinhos turbando a vida geral. Cecília Meireles e a Educação • 27

Em 1938, seu livro Viagem foi o vence- Escola Normal do Distrito Federal, quando dor do Prêmio Olavo Bilac de poesias, da preconizou a liberdade individual e a mo- Academia Brasileira de Letras. O escritor dernização do ensino no Brasil. Ela acabou , que presidiu a comissão desclassificada (ficou em segundo lugar), julgadora, e foi o autor do parecer que indi- perdendo para o concorrente que defendia cou, dentre as 29 inscritas, a obra vencedo- a manutenção da concepção pedagógica ra, assim definiu a autora: reinante naquele período. Faziam parte da Cecília Meireles não se limita a ser um banca de examinadores, Alceu Amoroso poeta, mas um pensador também, não só um Lima, Antenor Nascentes, e poeta, mas um artista compenetrado dos mais Nestor Victor. sutis valores que soube criar e que nem todos Entre 1930 e 1933, Cecília Meireles terão a agudeza de espírito e de sensibilidade passou a assinar, no jornal Diário de No- para compreender. (…) Cecília Meireles reali- tícias, a “Página de Educação”, e também za dois passeios, um às fontes puras e tradi- uma coluna, “Comentários”. O Brasil co- cionais do sentimento no momento em que todos fazem no intelectualismo, e outro, ao meçou a conhecer, naquele momento, o clássico, na desordem do mundo atual. O re- outro lado da poeta. Nesse espaço con- sultado desses dois passeios é um brinde ao quistado na imprensa, passou a lutar pela leitor. reforma educacional, aproveitando sua ligação com Fernando de Azevedo. As crô- Numa segunda oportunidade, Cecília nicas defendiam os ideais da Escola Nova, Meireles foi homenageada pela Academia um movimento que reivindicava a renova- Brasileira de Letras. Em setembro de 1964, ção do ensino, e que tinha a inspiração nos ela foi contemplada com o Prêmio Macha- pensamentos do filósofo norte-americano do de Assis pelo conjunto da obra. Mas não John Dewey e do psicólogo suíço Édouard teve tempo de receber a principal láurea da Claparède. ABL, porque faleceu no dia 9 de dezembro As opiniões dos educadores Fernando de 1964, aos 63 anos. Diante da fatalidade, de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Tei- a premiação foi feita post mortem. xeira, pregando principalmente a universa- lização da escola pública, laica e gratuita, Cecília e a Escola Nova haviam sido responsáveis pelas reformas educacionais ocorridas nos estados e no en- Embora tenha ficado famosa pela gran- tão Distrito Federal (Rio de Janeiro), na dé- de obra na área de poesia, a ligação de Ce- cada anterior e no início dos anos 1930. Ce- cília Meireles com a educação é uma das cília Meireles assumia no jornal o papel de histórias mais bonitas da literatura brasilei- porta-voz do movimento. Além de divulgar ra. Afinal, ela sempre foi a favor da auto- as obras de Dewey e Claparède, ela fazia nomia dos estudantes e também do direito entrevistas com personalidades e publicava de todos a uma educação de qualidade. pensamentos dos ingleses William Kilpatrick Tudo começou em 1929, por ocasião da e Pierre Bovet, dos suíços Jean Piaget, Jean defesa de sua tese, “O Espírito Vitorioso”, Jacques Rousseau, Adolphe Ferrière e Johann para a cátedra de literatura brasileira da Pestalozzi, dos franceses Gustave Flaubert, 28 • Arnaldo Niskier

Émile Durkheim e Michel de Montaigne, dos à educação integral da criança; e escreveu alemães Friedrich Fröbel, Johann Friedrich vibrantes crônicas em defesa da renovação Herbart e Georg Kerschensteiner, do belga da escola brasileira, em todos os níveis e em Ovide Decroly, da italiana Maria Montessori, todos os graus. No seu ideário pedagógico, como peças de um jogo de xadrez estrutural- da sueca Ellen Key e do indiano Mahatma mente dispostas, de modo claro e inequívoco Gandhi, entre outros. se nos deparam as linhas mestras do seu pen- Teve grande repercussão, em 1930, a samento, a partir do respeito à personalidade entrevista feita com o psicólogo suíço Édou- do aluno, em todas as fases de sua formação ard Claparède, famoso por seus estudos nas e em todas as idades do seu crescimento e áreas da psicologia infantil, pedagogia e desenvolvimento. formação da memória, quando o especialis- Os temas abordados por Cecília Meire- ta esteve no Brasil, a convite da Associação les eram variados, e todos tinham a mesma Brasileira de Educação (ABE). Outro assunto importância para ela, pois, no final, rela- que mereceu grande destaque ocorreu em cionavam-se com a questão educacional. 1931, quando Cecília Meireles conversou Destacamos alguns dos assuntos que mere- com a pintora suíça Louise Artus-Perrelet, ceram sua preocupação: conceitos de vida, autora do livro O desenho a serviço da liberdade, cooperação, valor educativo das educação, baseado nas concepções de viagens, amor à natureza, valorização do John Dewey. Na época, a artista estava tra- trabalho, leitura dos jornais, universalismo, balhando no Brasil, para o governo de Mi- história da educação, cinema e educação, nas Gerais. Escola Normal, Escola Nova, escola pública, educação urbana, educação rural, teatro e O sucesso das crônicas educação, educação e turismo, atividades Na efervescência dos anos 1930 e 1940, culturais, educação artística, desenhos in- Cecília Meireles captou todos os problemas fantis, e outros. Nada melhor do que uma que afetavam os sistemas de ensino no Bra- declaração da própria Cecília Meireles para sil e procurou apontar possíveis soluções, definir o seu trabalho na imprensa: baseadas na Escola Nova. Para Leodegário A Nova Educação tem, principalmente, essa vantagem: de não se dirigir apenas à es- A. de Azevedo Filho, que organizou o livro cola, à criança e ao professor. Ela atua sobre a Cecília Meireles – Crônicas de educação, família, a sociedade, o povo, a administração. em cinco volumes, para a Editora Global, Ela está onde está a vida humana, defenden- a poeta brasileira assumiu de fato a defe- do-a, justamente, dos agravos que sobre ela sa da educação e da cultura brasileiras, e deixam cair os homens que se converteram em nenhum momento poupou críticas aos em fantoches, movidos por interesses infe- poderosos: riores, esquecidos das altas qualidades e dos Em síntese, na raiz do pensamento de nobres desígnios que definem a humanidade, Cecília Meireles pode-se depreender a sua na sua expressão total. convicção humanística, sempre preocupada com a formação (não apenas a informação) Uma das crônicas mais comentadas, do educando. Escreveu maravilhosos livros de “Professores e pais”, foi publicada em 16 literatura infantil, em prosa e verso, visando de setembro de 1930, quando afirmou: Cecília Meireles e a Educação • 29

“A educação moderna, para ser uma rea- conta que estávamos vivendo naquele pe- lidade viva, depende do entendimento de ríodo o caos da Segunda Guerra Mundial: professores e pais, de modo que a obra da Um país novo, mas de intensa capacidade escola e do lar se unifique numa comum in- evolutiva, como o Brasil, não pode deixar de tenção”. se instruir com as experiências já verificadas em outros pontos da terra – para aproveitar Uma década depois da primeira expe- com os bons exemplos de umas, e acautelar- riência, no jornal Diário de Notícias, Cecília -se dos desastres de outras. (…) Como os Meireles retornou ao seu ofício de jornalis- ideais são as forças inspiradoras da educação, ta especializada em educação. De 1941 a resulta que o mundo se encontra em pleno 1942 assinou a coluna “Professores e es- caos, nessa matéria. tudantes”, publicada no jornal A Manhã, dirigido por Cassiano Ricardo e Menotti Manifesto dos Pioneiros del Picchia, cuja linha editorial era simpá- tica ao Estado Novo, implantado em 1937. Deve-se dar destaque especial a um Na redação do diário havia uma constela- momento do país em que se reuniram es- ção de mestres da literatura. Além dos três pecialistas para elaborar o famoso “Mani- já citados, também trabalhavam no local festo dos Pioneiros da Educação Nova”, em Múcio Leão e Ribeiro Couto, com apoio dos 1932, com a participação de Cecília Mei- colaboradores Gilberto Freyre, José Lins do reles. Redigido por Fernando de Azevedo, Rego, Manuel Bandeira, Oliveira Vianna e contou com a assinatura de 26 especialis- . tas, entre os quais o pai do acadêmico Al- Dessa vez, os tempos mudaram e a berto Venancio Filho, criando uma base filo- orientação era outra. A polêmica que levou sófica que se estendeu ao longo do tempo. à criação do Manifesto dos Pioneiros não O manifesto denunciou, em plena Era Var- mais existia, e havia a recomendação de gas, que a oportunidade de acesso à edu- que não escrevesse nada sobre política em cação era privilégio de poucos. Foi um mo- sua coluna. Cecília Meireles, então, privile- vimento renovador, que abordou questões giou, nessa nova fase, algumas temáticas como laicidade, gratuidade, obrigatorieda- diferentes, como literatura infantil, turismo, de e coeducação, tentando colocar todos poesia, questões relacionadas à infância e no mesmo pé de igualdade, como direitos principalmente folclore. Apesar de o Estado do indivíduo, considerando o que já ocor- Novo ser um regime de exceção, com cer- ria em nações mais desenvolvidas. teza, a poeta enxergou na nova tarefa uma A educação nova deveria ter como fun- oportunidade para lutar e divulgar as suas damento a descentralização administrativa, ideias na defesa de políticas públicas foca- levando a todos uma educação espontâ- das na educação e na cultura. É claro que, nea, alegre e fecunda, em íntima conexão a todo momento, os assuntos abordados com a região e a comunidade. O objetivo por ela teriam alguma ligação com a ques- só poderia ser alcançado se houvesse uma tão da educação. Na sua primeira coluna, mudança radical e profunda. Isso tudo deve por exemplo, tocou na questão diretamen- ser pensado à luz dos quase 90 anos de- te, mas de forma universal, levando-se em corridos desde a divulgação do Manifesto. 30 • Arnaldo Niskier

Seria um apelo à criatividade do aluno, des- O sucesso foi tão grande que os especialis- de o jardim de infância até a Universidade, tas consideram que a biblioteca funcionou, esta então voltada exclusivamente para as na verdade, como um centro de cultura profissões liberais (engenharia, medicina e infantil, por disponibilizar para o público direito), quando era necessário alargar hori- diversas atividades paralelas, como jogos, zontes científicos e culturais, como se pede música, cinema, cartografia, pintura, de- ainda hoje. senho e outras. Em uma de suas crônicas, Criticou-se a falta de preparação profis- Cecília Meireles afirmava: sional dos professores, apelando-se para a A criança não é um boneco, cujas habi- verticalidade e a cultura, o que só seria pos- lidades ou inabilidades se exploram. É uma sível obter se os estudos fossem feitos em criatura humana com todas as forças e fra- quezas, todas as possibilidades de evolução e nível superior. Os primeiros frutos das ideias involução inerentes à condição humana. Por pregadas no manifesto surgiriam, logo a isso mesmo são condenáveis todas as atitudes seguir, sobretudo nas reformas do ensino que a rebaixem, ou que lhe estorvem o seu no Distrito Federal durante a administração normal desenvolvimento. de Pedro Ernesto Batista, que contou com o precioso auxílio de Anísio Teixeira e, em Durante essa experiência, a poeta edu- 1934 e 1935, na fundação das Universida- cadora pôs em prática muitas mensagens des de São Paulo e do Distrito Federal, res- contidas em sua produção poética, onde o pectivamente. lúdico e as brincadeiras predominam. Quem Além de Cecília Meireles e de Fernan- não se emociona com os poemas “Ou isto do de Azevedo, também assinaram o do- ou aquilo”, “O menino azul”, “A chácara cumento outros 24 educadores, dos quais do Chico Bolacha”, “Colar de Carolina”, destacamos: Afrânio Peixoto, Sampaio Dó- “A bailarina”, “Leilão de jardim” ou “Jogo ria, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Roquete de bola”? Com certeza, a inspiração de Ce- Pinto, Almeida Júnior, Hermes Lima, Fran- cília Meireles veio das referências que tinha cisco Venancio Filho, Edgar Sussekind de em relação às formas de divertimento das Mendonça, Pascoal Leme e Raul Gomes. crianças, destacando a força do imaginário infantil para enfrentar as situações do coti- Biblioteca infantil diano. Ela sempre deixou bem claro o seu desejo de potencializar as qualidades das Outra marca da trajetória como poe­ crianças: ta educadora foi a inauguração, em 15 de Quando nos aproximamos do mundo in- agosto de 1934, da Biblioteca Infantil do fantil, o primeiro cuidado que devemos ter Pavilhão Mourisco, em Botafogo, a primeira é o de agir de tal modo, que entre nós e as biblioteca pública infantil brasileira. Duran- crianças se estabeleça uma ponte de abso- luta confiança, por onde possamos ir até te a gestão de Anísio Teixeira à frente da elas, e elas, por sua vez, sejam capazes de vir Diretoria Geral de Instrução Pública do Dis- até nós. trito Federal, Cecília Meireles coordenou a criação do espaço, que era muito frequen- Depois de quatro anos de existência, tado por estudantes de escolas públicas. a biblioteca fechou as portas, em 19 de Cecília Meireles e a Educação • 31 outubro de 1937, durante a vigência do Es- vontade política. Ainda temos milhões de tado Novo. O motivo? Seria cômico se não analfabetos. fosse trágico: houve uma denúncia de que As ideias sobre educação de Cecília Mei- havia no acervo da biblioteca um livro de reles, com destaque para as suas Crônicas conotações comunistas. Simplesmente, o li- de educação, proporcionam a mesma emo- vro em questão era As aventuras de Tom Sa- ção que sentimos ao ler a sua obra poética. wyer, de Mark Twain. Cecília Meireles ainda Defensora permanente dos ideais de uma argumentou que a obra era um clássico da nova educação e pelos direitos das crianças literatura infantil mundial, usado em mui- e dos jovens a uma educação de qualidade, tos países, inclusive nos Estados Unidos, In- ela sempre lutou pelo futuro dos nossos es- glaterra, Itália e França. Mesmo assim, não tudantes, criticou, de forma contundente, teve jeito e a biblioteca foi fechada. Dizem os políticos e especialistas que se perdiam que os livros foram levados para a Escola em leis e teorias, sem traçarem, efetivamen- , na Urca. O endereço passou te, um plano nacional de educação. Desta- a abrigar uma repartição ligada à cobrança camos, ainda, que uma de suas maiores de impostos. Posteriormente, ficou aban- preocupações era com a formação dos pro- donado, até, finalmente, ser demolido, em fessores. Segundo ela, a vocação, os sonhos 1952, durante a construção do Túnel do e os ideais eram colocados de lado, diante Pasmado. Apesar da breve duração, o em- da dura realidade que teriam que enfrentar, preendimento foi pioneiro e é considerado sem uma base sólida de conhecimentos e, a semente da criação das bibliotecas públi- ainda, praticando uma educação desvincu- cas e, também, das infantis, que surgiram a lada da realidade dos alunos e da sociedade partir daquele período. como um todo. Cecília Meireles discorreu sobre todos Conclusão os temas educacionais possíveis: métodos, especialistas, professores, livros, arte, leis, Cecília Meireles, em sua época, sempre reformas, crianças, adolescentes, política, valorizou o magistério, o qual considerava liberdade, escola, literatura infantil, educa- um sacerdócio. Infelizmente, por falta de ção comparada (com as suas viagens) e a estímulos, a profissão segue numa nítida importância da família. Como sempre di- tendência decrescente, sem nenhuma pers- zia: “Tudo, em suma, é sempre uma ques- pectiva oficial de estancar este processo, tão de educação”. Colocar as crianças em consequentemente revertê-lo o mais breve destaque, como o centro de todo o pro- possível. Ela admirava os professores de- cesso educativo, é um outro ponto enfa- dicados, que colocavam como objetivo o tizado em sua obra. Poeticamente, como atendimento a seus alunos. Hoje, o exer- educadora, afirmava que elas deveriam ser cício do magistério é considerado uma o foco das atenções, do estudo dos profes- profissão como outra qualquer, e temos o sores, que deveriam compreendê-las inte- grande desafio de levar educação de quali- gralmente: “Escola não é um edifício, não dade para regiões pouco assistidas. O gran- é um corpo docente. Escola é um conjunto de obstáculo é a falta de mentalidade, de de crianças”. 32 • Arnaldo Niskier

Referências FILHO, Murilo Melo. “Cecília Meireles – Deusa e poeta”. Jornal do Brasil, 17/08/2005. FILHO, Leodegário A. de Azevedo (Org.). Cecília Meireles NISKIER, Arnaldo. “Cecília Meireles – A Educadora”. Revis- – Crônicas de educação. Vol. 1 a 5, Rio de Janeiro: ta Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, número Editora Global, 2017. 32, fase VII, julho-agosto-setembro de 2002, ano VIII. FILHO, Leodegário A. de Azevedo. “No centenário de Cecí- TELLES, Lygia Fagundes. “Cecília Meireles da minha juven- lia Meireles”. Revista Brasileira, da Academia Brasileira tude”. Ciclo de conferências. Centenário do Nasci- de Letras, número 28, fase VII, julho-agosto-setembro mento de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Academia de 2001, ano VII. Brasileira de Letras, 21 de agosto de 2001 (mimeo). O nome sob o nome

Antonio Carlos Secchin Ocupante da Cadeira 19 na Academia Brasileira de Letras. É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux (1975-1979), Roma (1985), Rennes (1991), Mérida (1999), Paris III-Sorbonne Nouvelle (2009) e da Faculdade de Letras da UFRJ.

alegria de ingressar na Academia Seria impossível, nos limites de um bre- das Ciências de Lisboa só não su- ve discurso, esgotar a rememoração dos nu- A pera a honra que sinto por ter sido merosos laços que me ligam a Portugal, a eleito para esta bicentenária instituição. começar pelos de sangue: no lado materno, Agradeço aos senhores Acadêmicos o minha ascendência é integralmente lusa, acolhimento unânime a meu nome; ao Pre- pelo avô, José Fuzeira, natural de Redondo, sidente Artur Anselmo, a António Valdemar, no distrito de Évora, e pela avó, Átala de pela proposição da candidatura e pelo gene- Lemos Fuzeira, filha de portugueses. Graças roso discurso de recepção, ao Embaixador do a essa ascendência, está em curso, nas tra- Brasil em Portugal, Senhor Luís Alberto Figuei- mitações finais, meu processo de obtenção redo Machado; a Joaquim Falcão, confrade da cidadania portuguesa. eleito, em representação da Academia Brasi- Meu avô era homem intensamente es- leira de Letras (ABL), e sua esposa Vivianne piritualizado. Em 1969, quando eu sequer Falcão; ao escritor Fabio Coutinho, presiden- iniciara os estudos universitários, meu pai, te da ANE, Associação Nacional de Escrito- Sives Secchin, revelou-me anedota familiar. res, aqui presente no esteio de uma amiza- Contou que, ao visitar-me recém-nascido, de quase cinquentenária; aos romancistas José Fuzeira saiu do quarto aos prantos. Meu Teolinda Gersão e Jorge Reis-Sá, responsável pai, preocupado, indagou-lhe o que ocorre- pelo lançamento, em Portugal, da edição de ra. Respondeu que se emocionara porque, minha poesia reunida; ao historiador Rui Lou- num átimo, visionara toda minha existência. rido, coordenador cultural da UCCLA, União Sives quis saber o que José antevira, e o avô das Cidades Capitais de Língua Portuguesa. comentou: “Vi tudo. Fique tranquilo. Ele será Agradeço a todos os demais amigos que vie- escritor”. Portanto, até hoje não sei se sou es- ram abrilhantar, com seu prestígio e presen- critor por vocação ou apenas para obedecer à ça, esta cerimônia, que simboliza, também, o sinalização persuasiva de meu ancestral. prestígio da cultura e da língua portuguesa, José também foi poeta, autor de singe- da qual somos fiéis servidores. lo livrinho, Trovas de sombra e luz, o que, Discurso de posse na Academia das Ciências de Lisboa proferido em 10 de maio de 2018 (Lisboa, Portugal). 34 • Antonio Carlos Secchin em meus arroubos afetivos da adolescên- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), outro fato cia, era motivo suficiente para equipará-lo a aproximou-me ainda mais do mundo portu- Camões, figura, aliás, de sua extremada ve- guês. Fui convidado pela professora Cleonice neração. Não era afeito ao Modernismo, e Berardinelli para atuar como monitor de lite- por isso desconfio de que, no episódio com ratura portuguesa. Meu trabalho consistia em o recém-nascido, algumas de suas lágrimas auxiliar os professores em levantamentos bi- possam ter sido vertidas pelo conhecimen- bliográficos e demais pesquisas para o prepa- to premonitório da literatura que viria a ser ro de aulas e, eventualmente, até ministrá-las, praticada pelo neto. sob a orientação de um docente. Tratava-se, Aos 14 anos, ouvi de um primo pouco a rigor, de uma espécie de estágio prepara- mais velho ardilosa pergunta: “Sabe quem tório para o exercício efetivo do magistério são os três maiores poetas portugueses?”. superior. A bolsa de monitoria era reservada Ele próprio respondeu: “Camões, Antero de a contingente bem restrito de estudantes. Quental e...”. Na sequência, para compor o Tudo levava a crer, portanto, que eu de- triunvirato, eu aguardava, claro, o nome de senvolveria carreira universitária no campo José Fuzeira, nosso comum avô. Mas, para das letras lusas, não fosse o convite, dois anos minha surpresa e decepção, eis que o primo depois, do prof. Afrânio Coutinho, para que arrematou: “Fernando Pessoa”. Quem seria eu substituísse uma professora de literatura esse intruso, esse usurpador da láurea que brasileira, que solicitara licença por motivo eu julgava de direito pertencente ao querido médico. Esse inesperado convite reorientou Fuzeira? meu caminho profissional. A partir daí, então, Em pouco tempo, descobri a obra do tal consolidou-se o vínculo efetivo com as letras terceiro poeta, e minhas manifestações ini- brasileiras, sem, todavia, jamais esgarçar-se o ciais de sanguíneo ciúme logo transforma- vínculo afetivo com as letras lusitanas. ram-se em gestos de permanente devoção. Já no mestrado, eu, que tivera o privilé- De meu livro de estreia, Ária de estação, gio de assistir ao derradeiro curso de Cleo- que publiquei aos 21 anos, consta o poema nice em nível de graduação, fui novamen- “A Fernando Pessoa”, que transcrevo: te seu aluno, apresentando trabalho final Ser é corrigir o que se foi, sobre a “Dobrada à moda do Porto”, de e pensar o passado na garganta do amanhã. Álvaro de Campos. Elaborei um ensaio que É crispar o sono dos infantes, acabou sendo estampado em publicação com seus braços de inventar as buscas italiana dedicada ao escritor. em caminhos doidos e distantes. Em fins de 1975, comecei a trabalhar É caminhar entre o porto e a lenda como leitor na Universidade de Bordeaux, de um tempo arremessado contra o mar. onde permaneci por quase quatro anos. Res- Domar o leme das nuvens, onde mora ponsável pela área de cultura, história e lite- o mito, a glória, de um deus a naufragar.1 ratura brasileiras, frustrava-me o fato de eu Em 1973, no meu último ano de gradua- não poder divulgar Fernando Pessoa, ainda ção na Faculdade de Letras da Universidade mais porque, na França, à época, seu nome ainda padecia de escassa circulação. Recorri, 1 A Fernando Pessoa. In: SECCHIN, Antonio Carlos. Des- dizer. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2017. p. 17. então, a um estratagema: consegui incluir O nome sob o nome • 35 em minhas aulas a poesia de Pessoa, sob a Capitais de Língua Portuguesa, “Novos ta- alegação de que, como Ricardo Reis passa- lentos, novas obras em língua portuguesa”, ra bastante tempo no Brasil, o poeta, assim, que arregimenta centenas de concorrentes não deixava de ser parcialmente “brasileiro”. de toda a lusofonia. Efetuei mais de duas De volta ao Rio de Janeiro, tornei-me pro- dezenas de palestras sobre temas de língua fessor titular de literatura brasileira, em 1993. e literatura portuguesas, ou sobre as relações Entre os cinco membros da banca examina- culturais entre Portugal e o Brasil. Entre elas, dora, dois eram renomados catedráticos de cito “O enigma M. de A.”, que proferi nesta literatura portuguesa: Massaud Moisés, da Casa há um decênio; o discurso de recepção Universidade de São Paulo (USP), e, em novo na ABL, em 2009, ao sócio correspondente encontro, . Ao cabo do Arnaldo Saraiva; e ainda “João Cabral: a lite- concurso, ofertei à mestra a fotocópia de uma ratura brasileira e algum Portugal”, na Univer- prova que eu fizera num exame de gradua- sidade de Coimbra, em 2011. ção, no longínquo ano de 1971. Além de en- Também sou grato ao Instituto Camões e tão haver-me concedido nota elevada, Cleo­ à Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, nice profetizara, em comentário manuscrito à que, em 1995, receberam-me na condição margem do texto, uma frutífera carreira nas de professor convidado. Grato igualmente à Letras para aquele jovem estudante. Fundação Calouste Gulbenkian, pelo apoio a Como veem, não posso me queixar de um magnífico projeto de coedição celebrado profecias portuguesas, desde o berço, com entre a Glaciar e a ABL, e ao Jornal de Letras, meu avô Fuzeira, até a juventude, com a pro- na pessoa de seu diretor, o intimorato poeta fessora Cleonice. Hoje, de bom grado aco- e jornalista José Carlos de Vasconcelos, que, lho quaisquer palavras benfazejas que algum em 2015, publicou nesse periódico minha amigo queira emitir a respeito de meu futu- “Autobiografia desautorizada”. ro, desde que esse amigo seja português ou No início deste discurso, apresentei os vinculado a Portugal, porque, nesses casos, versos que, aos 20 anos, escrevera em ho- já percebi que as profecias se concretizam. menagem a Pessoa. Gostaria de concluir a Para não entediar-vos além do mínimo elocução com a leitura de poema recente, protocolar, cuido agora de sintetizar outras em que o vate também é citado, unindo marcas da forte presença portuguesa em mi­ assim, através de Pessoa, os laços de mi- nha trajetória. Integro três conselhos editoriais nha existência e de meus versos. Aliás, do lusitanos ou luso-brasileiros, dois deles nos livro Desdizer, poesia reunida, a ser lançado Estados Unidos, um no Brasil. Participei dez amanhã, dia 11 de maio, na Biblioteca da vezes do júri do Prêmio Portugal Telecom de Imprensa Nacional-Casa da Moeda, cons- Literatura, e cinco vezes do júri do Prêmio Ca- tam dois textos que se reportam a grandes mões, nas ocasiões em que saíram vencedores autores portugueses. Um dialoga com Eu- Lygia Fagundes Telles, Ferreira Gullar, Manuel génio de Andrade, a quem visitei no Porto. António Pina, Alberto da Costa e Silva e Hélia O outro convoca Pessoa (Pessoa não cessa Correia. Há três anos faço parte, como repre- de ser um outro), cujo nome comparece na sentante de meu país, da comissão julgado- primeira estrofe do primeiro poema do novo ra do Prêmio Literário da União das Cidades livro. A peça se intitula “Na antessala”, e 36 • Antonio Carlos Secchin aspira a ser um cartão de visitas da obra em É, pois, com modéstia, entrelaçada a sua totalidade. Leio-a: júbilo e emoção, que passo a integrar o Espalhei dezoito heterônimos quadro da Academia das Ciências de Lis- em ruas do Rio e Lisboa. boa. Junta-se a tantos confrades ilustres Todos eles, se reunidos, alguém que às vezes consegue ser Antonio não valem um só de Pessoa. Secchin. Trancafiei-me num mosteiro, Na tradição da Itália, como se sabe, os esperando de Deus um dom. filhos homens portam apenas o apelido (o O que Ele me deu foi pastiche sobrenome) paterno. Assim, a descendên- da poesia de Drummond. cia italiana masculina indica simultanea- Ressoa na minha gaveta mente uma presença e uma ausência, a um comício de versos reles. da linhagem materna. Não ignoramos que Em coro parecem dizer: uma ausência, às vezes, pode pesar tanto Não somos Cecília Meireles. ou mais do que uma presença. O desavisado leitor Por sob o nome escrito em meu regis- espere bem pouco de mim. tro civil, pulsa um outro, não expresso, mas O máximo, que mal consigo, indelevelmente inscrito em minha vida. Por- é chegar a Antonio Secchin.2 tanto, aceitai que eu aqui o desvele, e, ao despedir-me de vós, afetuosamente decla- 2 “Na antessala”. In: SECCHIN, Antonio Carlos. Des­dizer. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2017. p. 178. re-me António Fuzeira. Raio sobre tela: crítica de arte na poesia de Ferreira Gullar

Marcos Estevão Gomes Pasche Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e crítico literário, autor de De pedra e de carne (Confraria do Vento, 2012) e de Cláudio Manuel da Costa, Série Essencial (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2014).

Para Nathália Augusto Se convierem dois contrapontos hipotéti- cos dessa natureza, imaginemos um poema m entrevista publicada no primeiro discursivo, de baixa densidade imagética e volume de Papos contemporâneos, metafórica, contentado em descrever qual- E organizado por Dau Bastos, Ferreira quer quadro ou escultura. Imaginemos um Gullar assim respondeu a uma pergunta outro texto, agora devotado à experimen- acerca das diferenças entre a crítica e a poe- tação, no qual eventuais informações artís- sia de sua lavra: ticas apareçam apenas soltamente. Outro Ensaio é mais reflexão, teoria, tentativa de é o perfil dos poemas críticos (conforme compreender, demonstrar. A poesia, não, é chamarei aqui) de Ferreira Gullar. No poe- muito especial, é essa coisa que falei de inven- ta que pondera e delira, crítica de arte e tar a vida. Quando escrevo sobre arte, procu- poesia se aproximam até se fundirem, num ro coerência no que digo em relação ao que amálgama do teórico e do artístico, daí sur- escrevi antes; quando faço poesia, não tenho gindo um outro dizer, ponto novo em sua essa preocupação. Essa é uma diferença impor- escrita. A novidade surpreende por dupla tante entre a poesia e o pensamento teórico. A poesia também é um tipo de reflexão, mas não originalidade: configura um motivo recente busca coerência alguma (2007, p. 85). da poesia enquanto consolida juízos que, em âmbito teórico, remontam aos anos de A distinção tem procedência conceitual. 1950 – à origem da obra geral do poeta- Porém, os dois últimos livros poemáticos de -crítico, portanto. O exercício não é inédito Gullar aproximam as atividades em que ele no curso histórico da poesia brasileira, mas mais se notabilizou – a poesia e a crítica de com Gullar ele alcança um patamar distinto, arte. Isso já se notava em livros anteriores, pela alta voltagem do inteligível e do sen- mas Muitas vozes (1999) e Em alguma parte sível nos poemas em si; e, em termos de alguma (2010) exibem com solidez grada- trajetória, pelo resgate que o poeta propicia tiva textos pautados pelas artes plásticas e ao crítico, quando este se encontrava numa plasmados por linguagem transfiguradora. fase de certo esgotamento. 38 • Marcos Estevão Gomes Pasche

Na vertigem do dia, de 1980, é o livro um amarelo arde/ me queimaria nele/ ou em que tal fusão se estampa pela primei- teria manchado para sempre de delírio/ a ra vez na poesia do maranhense, ainda de ponta dos dedos” (p. 401). maneira discreta. “Lições da arquitetura”, Avançada no tempo, a nuance de es- referente e reverente à obra de Oscar Nie- crita é adensada, aparentemente de for- meyer, não se restringe ao encômio, tam- ma parca. Em Muitas vozes, de 1999, são pouco à mimetização em versos de algum dois os poemas que corporificam o dizer da projeto arquitetônico. O texto suscita um crítica de arte: “Méditation Sans Bras, de estilo que o poeta passaria a desenvolver Rodin” e “Poema para ”. jungindo dicção espantosa e olhar analítico: Dentro do volume, a quantidade é pouca, “No ombro do planeta/ (em Caracas)/ Oscar afinal são dois textos em meio a um total depositou/ para sempre/ uma ave uma flor/ de cinquenta e quatro. Mas se se considerar (ele não faz de pedra/ nossas casas:/ faz de que os poemas críticos haviam aparecido asa)”.1 Motivadas pelas afinidades ideológi- com apenas um exemplo em cada um dos cas que aproximavam o poeta e o arquiteto, dois livros anteriores, Muitas vozes já com- as estrofes seguintes prosseguem cantando porta o dobro. Só que o quantitativo é fator a solidariedade e a esperança, integrando secundário por enquanto. O típico discurso termos da técnica e palavras da cosmovi- do crítico, que interpreta a composição e são – “traço futuro”, “o ferro o cimento a avalia a fatura de trabalhos, molda-se pelo fome”, “humana arquitetura”, “açúcar da dinamismo da poesia, seja na observação pedra”, “argila da aurora” – e rematando- de uma peça em sua unidade – -se entre o crítico e o político: “Oscar nos O corpo vem ensina/ que a beleza é leve” (Ibidem). do metal da treva Em Barulhos, de 1987, manteve-se a porejando luz na parte leprosa da figura quantidade desse tipo de escrito: “Pintura” onde falta o braço figura isoladamente no volume que registra arrancado a despedida do autor de seus vínculos gru- (sem nunca ter estado ali) pais, fossem de partido ou de vanguarda. O com fúria texto não toma alguma produção unitária deixando a chaga para dela anotar referências, como se lhe a arder satisfizesse a estrita identificação de um ob- fervente de ausência e junto ao rosto jeto. Antes e além, afirma-se a contamina- de tal modo que ção mútua de obra e espectador, quando o ilumina pele e pasta se imbricam e o texto se infla- em laivos e lascas de luz ma como textura: “Eu sei que se tocasse/ as quais com a mão aquele canto do quadro/ onde se vertem 1 In: GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 21.ª edição, revista no pulsante cofre do púbis e ampliada. Curadoria de Augusto Sérgio Bastos. Rio Ela medita de Janeiro: José Olympio, 2015. p. 372. As próximas ci- tações de poemas de Ferreira Gullar serão extraídas da relâmpagos mesma fonte, pelo que informarei apenas o número da sobre despojos página. Agradeço ao curador pela referência da atuação e Gullar na revista Continente, mencionada adiante. (“Méditation Sans Bras, de Rodin”, p. 530). Raio sobre tela: crítica de arte na poesia de Ferreira Gullar • 39

–, seja na concepção de uma poética em Centradas em Franz Weissman, invenção sua amplitude: e reflexão coerem: o escultor se contrapõe a antecessores e sua escultura não é do re- Ao contrário do escultor de antes pleto, e sim do vazado. E se o poema revela que aquilo de que fala valendo-se de um enig- para dissipar a noite ma – o espaço não é falta de massa, e sim (mítica) modalidade transparente de existência –, que habita a matéria a resenha, que oferece entendimento, não imprimia à superfície prescinde da ruptura com a lógica para di- da massa zer o que diz: nela, afinal, a escultura não velocidades de luz, é objeto, e sim “um ser do espaço e de es- Weissmann paço”. Diferentes em suas especificidades, escultor de hoje arte e ensaio se conjuntam para se afirma- abre a matéria rem um dizer outro e afim. Catalogado na e mostra que dentro dela esfera da crítica de arte, o livro Relâmpagos, não há noite mas de 2003, confirma o improvável encontro: espaço de seus quarenta e nove textos, onze se dispõem em verso, dentre os quais “Médi- puro espaço tation Sans Bras, de Rodin”, “Poema para modalidade transparente Franz Weissmann”, “Lições da arquitetura” de existência e “Pintura”. (“Poema para Franz Weissmann”, p. 531). Em Ferreira Gullar, essa modalidade de escrita atinge culminância em seu último Nesses lances, a escrita de Ferreira livro de poemas – Em alguma parte algu- Gullar forja-se por uma dicção híbrida, do- ma, de 2010. Neste, são seis os textos te- tada de postura contemplativa, própria do matizados pelas artes plásticas, a ponto de estudo, e de espírito alterante, que convida constituírem uma seção exclusiva dentre o objeto estudado a habitar a casa aberta as quatro do volume. Aqui a quantidade da confusão. Embora o autor tenha distin- tem inegável relevo, e pode ser especu- guido ensaio e poesia, ligando o primeiro lada em duas direções: uma é pela parte à explicação e desobrigando a segunda da imperscrutável da subjetividade do autor, coerência, a conjugação do poema anterior que por razões nem sempre claras leva-se a uma passagem de “VII Salão Nacional ou é levado a temas e formas. A outra dire- de Arte Moderna”, resenha publicada em ção congrega fato e hipótese: de atuação 1958, acende um imprevisto: “Em Weiss- frequente e destacada no debate estético man, por exemplo, nada verá quem busque em períodos anteriores e posteriores ao as qualidades tradicionais do volume, de de seu exílio (ocorrido de 1969 a 1977), massa, de peso de matéria. Sua escultura a partir da década de 1990 Gullar começa é um ser do espaço e de espaço, e é das a perder espaço crítico em veículos de tensões e virtualidades do espaço que ela se grande prestígio. Vejo nisso uma conse- constrói” (2015, p. 306). quência da adesão – ao longo de suas três 40 • Marcos Estevão Gomes Pasche

últimas décadas de vida, aproximadamen- pelos cofres públicos, claro!) nos corredores te – a um conservadorismo incompatível e salas da Bienal. Vai cair gente de montão! com o engajamento vanguardista e com Bem, depois decido... Estou aberto a suges- a militância de esquerda que tanto marca- tões extravagantes. Cartas para a redação (2003, p. 39). ram sua biografia. Seus derradeiros traba- lhos críticos regulares se deram nas revistas Os poemas críticos de Em alguma parte Continente, de 1999 a 2009, e Arte & in- alguma atestam o domínio de uma vertente formação, entre 2000 e 2001, ambas sem trabalhada por poetas outros e que Gullar a mesma influência e visibilidade do Suple- passou a experimentar quando já estava mento Dominicial do Jornal do Brasil, de poeticamente consagrado e quando suas que o maranhense foi articulista e editor indagações culturais se encontravam num entre 1956 e 1961, e das revistas Veja e limite reflexivo e de recepção pública. Em Isto É, com as quais colaborou ao voltar do meio a isso, ele revisitou temas frequentes, exílio.2 Nesse segmento, seu último livro deu à sua longínqua trajetória poética um com abordagens e posicionamentos novos traço novo e revivificou seu fazer crítico, é Argumentação contra a morte da arte, inscrevendo-o substantivamente em sua bi- de 1993, cuja procedência contestatória é bliografia poética – parte de sua obra man- dissolvida por manifestações grosseiras: tida em prestígio. Pois se é assim, também vou me candida- Uma importante diretriz do Romantis- tar à próxima Bienal. Solicitarei à instituição mo alemão reivindicava unir crítica e cria- que providencie, para minha performance, ção, e, no Brasil, uma tendência que vai de uma tropa de dois mil burros montados por anões! É uma ideia chocante ou estarei sendo a Alberto Pucheu recla- tímido? Talvez seja mais instigante despejar ma a indisciplina da ciência pelo contato vários milhões de bolinhas de gude (pagos subversivo com a arte. Ao mesmo tempo em que reforçam tal orientação, os poe- 2 A Continente, publicação da Companhia Editora de Pernambuco, de circulação mensal, segue vigente nos mas críticos de Ferreira Gullar colocam-na formatos impresso e virtual, acessível no endereço noutro movimento, pois, além de receber https://www.revistacontinente.com.br/. Os setenta e três textos publicados pelo crítico naquele periódico poeticidade, a crítica leva com ênfase sua podem ser acessados diretamente a partir de https:// coerência à poesia, retraduzindo uma par- www.revistacontinente.com.br/secoes/1034-colunas/ te na outra parte. Os poemas efetivam o traduzir-se.html. A Arte & Informação, da editora Ar de Paris, teve apenas cinco números impressos. Inicialmen- analítico e expressivo, indo mais fundo te, as publicações eram trimestrais, mas os dois últimos que o mero discurso acerca de objetos números saíram depois do previsto, e por isso a circu- lação se deu entre maio de 2000 e dezembro de 2001. culturais e adiante da linguagem poética Cada um dos cinco números trazia um dossiê de algum pura, isenta de comunicabilidade, caso de movimento de vanguarda, cuja análise ficava a cargo de Gullar. Pela ordem, os dossiês versaram sobre Cubismo, “Escultura”, parte do poema “Definições”, Futurismo, Expressionismo, Dadaísmo e Vanguardas de O vil metal (1957): “trapézio de can- Russas. Após o quinto número, a revista faliu, e dela não encontrei arquivos na internet. Sobre a atuação cros/ Saturno e Marte/ SVUCROS/ copos de Gullar no SDJB, ver MONTEIRO, Bruno Melo; SILVA, de pus/ das álgebras” (p. 120). Os poemas Renato Rodrigues (Org.). Antologia crítica: Suplemento Dominical do Jornal do Brasil/ Ferreira Gullar. Rio de Ja- críticos identificam artistas e obras, mas de neiro: Contra Capa, 2015. A atuação na Veja e na Isto modo a expô-los como dicção ou processo, É resultou em GULLAR, Ferreira. Arte contemporânea brasileira. São Paulo: Lazuli, 2012. estourado no pano negro da noite – Raio sobre tela: crítica de arte na poesia de Ferreira Gullar • 41

É mesmo que nada “Os fios de Weissmann”, que mostram tra- evocá-lo pintado balhos escultóricos de e Franz (na tela) Weissmann, respectivamente), ora ela é evi- daí porque denciada pela dedicatória (“Mínimo voo”, só restou a Siron a Amílcar de Castro; “Desenvolvimento imprimir as marcas da morte ausente do quadrado em cubo”, a Mary Vieira; e e vil no leito de concreto “Quadro-corpo”, a Iberê Camargo). Conju- metáfora brutal gados textos e oferecimentos, cada um dos da vida que explodiu poemas pensa inventivamente o fazer dos (“Vestígios”, p. 625) evocados. Se considerarmos que em toda a bibliografia poética de Gullar anterior a –, ou na claridade matutina do nada: 2010 houve apenas seis dedicatórias con- tudo de que ela vencionais (inscrições apostas entre o título dispunha e o corpo do texto), as deste caso ganham era um quadrado significado determinante, por assinalarem de metal o procedimento central da crítica: falar do ionizado fazer de alguém. “Figura-fundo” é o único mas o sonha poema da seção que não registra o nome de cúbico qualquer artista. Iniciador da seção, coube a e o traduz ele a insígnia das concepções estéticas do de quadrado autor: uma arte-poética das artes plásticas, em cubo subseguindo-lhe as poéticas particulares. de ar (e luz) a pintura, digamos, é mentira para isso corta-lhe isto é: a fímbria com uma pera lúcida certeza: pintada e a dobra não cheira na razão não se dilui exata da beleza (...) em xarope, (“Desenvolvimento do quadrado água rala e azeda, é em cubo”, p. 628). pintura e por isso dura A identificação parte daquilo, daquele mais do que qualquer pera verdadeira (p. 620). ou daquela que motiva cada um dos poe- mas: “Vestígios”, “Mínimo voo”, “Os fios Dos poemas que partem de poéticas, de Weissmann”, “Desenvolvimento do qua- destaco “Quadro-corpo”, centrado não drado em cubo” e “Quadro-corpo” apon- numa pintura específica, e sim numa ação tam direta ou indiretamente as obras con- de pintar – a de Iberê Camargo, insinua a templadas. Ora a referência ao artista faz-se oferta. Cada uma de suas três estrofes dá a ao correr do texto (o já citado “Vestígios” e ver um movimento, verbalizado por um tipo 42 • Marcos Estevão Gomes Pasche de discurso e pela alternância de pronomes. Assim na tela como no céu, um relâmpago Inicialmente, a fala faz pensar num crítico rasga e rabisca até consumar-se em parali- especulando perspectivas para a apreciação sia vibrante, num remate apoteótico. da pintura. A linguagem prefere o pedagó- e surpreenderá gico ao metafórico, e o movimento segue o na tela dúbio olhar do artista, criador e espectador o relâmpago de sua própria peça: (ali parado) da ação furiosa Há dois modos de ver da mão os seus quadros: de perto, que à pasta-noite como ele os via infundiu ao pintá-los esta convulsão de cósmica gestação e de longe da luz ou ou seja melhor dizendo da distância que tomava da humana combustão para avaliá-los (p. 630). ou melhor dizendo A segunda parte toma o receptor, deslo- da conversão do pintor cando-o da observação para aproximá-lo do de seu osso e organismo da obra. O mover, então, é de musculatura envolvimento, não restrito à contemplação de seu câncer distanciada. O vocabulário técnico entre os e sua desventura sexto e nono versos adensam a dicção es- enfim pecializada de quem conduz seu discurso a transubstanciação do pintor em pintura (pp. 630-1). e, no lugar de comentários frios, investe na orientação do corpo e do sentir: A exemplo do afirmado pela compara- ção dos textos pautados por Franz Weis- e neste ir e vir sman, em torno de Iberê Camargo Gullar você agora como ele antes escreve textos distintos em seus pontos de (mas ao revés) partida e muito convergentes nos pontos descobrirá o viés de chegada e nos percursos. Em resenha da tessitura de 1958, o maranhense diz que o gaúcho, da pasta luminosa e basta diante de certa moda pictórica, “recuou que lhe constitui (...) como para retomar contato com as for- a carnadura (Ibidem). mas autênticas de pintura” (2015, op. cit., O terceiro movimento é preponderante- p. 303). À frente, afirma-se que o gaúcho mente do fazer artístico. Se as primeira e “avança furiosamente”, que “sua pintura, segunda cenas dão ênfase ao pintor e ao em luta, se orienta” e que “é como pin- espectador, na terceira o protagonismo é tor que Iberê Camargo se entrega a uma assumido pela arte, num evento de aguda aventura dramática” (Ibidem, p. 304). Pu- excitação. Ao poeta-crítico soma-se agora blicado quarenta e cinco anos depois da re- um narrador, que ficcionaliza o desfecho senha, “Iberê: essa lama estelar”, capítulo em que pintura e pintor se incorporam. de Relâmpagos, em apenas quarenta linhas Raio sobre tela: crítica de arte na poesia de Ferreira Gullar • 43 retoma por três vezes a palavra “aventura”. uma nova aventura. Sem se ignorar que a Segundo o crítico, ao pintor gaúcho foi ne- experiência pode significar apuro e estímulo cessário recuar a um estágio primitivo da à autonomia, da resenha para o livro o autor pintura, “descida vertiginosa do desconhe- adensou sua prosa crítica adensando-lhe a cido ao conhecido” (2003, op. cit., p. 136), poeticidade. Não se veja nisso uma simples pela necessidade de fundar a linguagem injeção de vocabulário metafórico: “Iberê: fora de fórmulas e práticas convencionadas. essa lama estelar” formula um enredo ale- Essa aventura é uma aposta de vida, impri- górico para apresentar o pintor como ser da mida em “pasta escura e no entanto lumi- cultura e do mistério. E se ao pintor-pintura nosa, uma espécie de lama estelar, plena de foi necessário recuar à origem da expressão, energia, donde deve ressurgir a fala amea- o crítico-poeta alcançou sobrevida volvendo çada do homem que arriscou perder-se na à dimensão poética da linguagem, por ele matéria” (Ibidem, idem), e que, com paixão habitada antes de seus textos serem postos a e gravidade, significa a “busca dessa ilusão serviço de programas. Também grave e apai- que quer transcender a matéria, o instante, xonada, a aventura de Ferreira Gullar é plena a morte” (Ibidem, p. 137). de coerência – ilusão que quer transcender o Os dois textos se situam em fases bem esgotamento, o limite e o desapreço. diversas da produção de Gullar: o de 1958 Referências é assinado por quem se via no centro da “Não sou viciado em poesia” (entrevista de Ferreira Gullar). discussão estética; pelo requinte editorial e In: BASTOS, Dau (Org.). Papos contemporâneos. Rio pelo corpus definido pelo critério da admi- de Janeiro: UFRJ, 2007. pp. 77-88. GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. ração, o livro de 2003 decorre mais da força 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. _____. Relâmpagos: dizer o ver. São Paulo: Cosac & Naify, de um nome do que de uma nova investida 2003. sobre as artes plásticas. Tendo sido intérprete _____. Toda poesia. 21. ed. Curadoria de Augusto Sérgio Bastos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. de primeira hora e articulador de vanguar- MONTEIRO, Bruno Melo; SILVA, Renato Rodrigues (Org.). das nacionais, Ferreira Gullar encontrava-se Antologia crítica: Suplemento Dominical do Jornal do Brasil/ Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Contra Capa, num limite crítico. Lançou-se, portanto, a 2015.

Fevereiro de 1957 – Notas para um ou dois poemas de Ferreira Gullar inéditos em livro Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa Doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Professor de Português e Literaturas do Colégio Pedro II. Autor de A mão, o olho: Uma interpretação da poesia contemporânea (2014). Integra o grupo de pesquisa Litescola: Literatura e Ensino.

Agradeço a Renato Rezende e Sergio o poema fora anunciado como um “trailer” Cohn, parceiros na pesquisa sobre a poesia da exposição (JORNAL DO BRASIL, 1957, p. 8), neoconcreta, e a Marcos Pasche, parceiro e com a observação de que devia ser lido até leitor de longa data da obra de Gullar, pela o final antes de o leitor do jornal formular o colaboração durante a pesquisa. juízo. Embora não haja registro de que tenha sido exposto no MEC, o poema de m 1957, na mesma edição em que Gullar foi anunciado como exemplo repre- publica um poema de Ferreira Gullar, sentativo da exposição, funcionando, pelo E o Suplemento Dominical do Jornal do menos, como testemunho da situação da Brasil (SDJB) noticia a abertura da I Exposi- recente poesia concreta sob a perspectiva ção Nacional de Arte Concreta, na segun- de um de seus formuladores, na ocasião. da-feira, 4 de fevereiro, às 18h, no Salão de O poema é como um trailer, mas muito Exposições do prédio do Ministério da Edu- singular, pois, em lugar de passar em revista cação e Cultura (MEC), no Centro do Rio obras da exposição, pode-se dizer que pro- de Janeiro (SUPLEMENTO, 1957, p. 9). A põe uma experiência concreta das palavras exposição tinha ocupado o Museu de Arte na página do jornal, antecipando a mostra. Moderna de São Paulo (MASP) de 4 a 18 de Observando o poema na página à primei- dezembro de 1956, e chegava ao Rio sob ra vista, reconhecem-se seis partes textu- patrocínio do caderno de cultura que a no- ais organizadas em módulos retangulares, ticiava. Ferreira Gullar, que desde outubro dispostos em três colunas com dois módu- de 1956 editava, ao lado do amigo Oliveira los cada, preenchendo uma página inteira Bastos, a seção “Artes Plásticas” do Suple- do jornal no formato paisagem (Figura 1; mento, publicou seu poema “concreto” em GULLAR, 1957b, p. 3). A princípio, o movi- página inteira, disposto em seis retângulos mento de leitura do jornal, por hábito, con- distribuídos por três colunas, na edição de vida a ler o poema coluna a coluna, mas o domingo na véspera da abertura carioca da encadeamento semântico do texto apresen- mostra. Na quarta-feira da semana anterior, ta maior coerência numa leitura horizontal Figura 1 GULLAR, 1957b, p. 3 (cf. Anexo) Fevereiro de 1957 • 47 dos módulos. Assim, partindo das palavras 50 páginas que formam, após a leitura das no primeiro módulo, não está claro se a lei- 14 primeiras, de acordo com a montagem tura deve prosseguir para as palavras abaixo atenta do leitor, a sequência: “a formiga tra- desse módulo ou para as palavras ao seu balha na treva a terra cega traça o mapa do lado direito, de maneira que, como as par- ouro forno maldita urbe” – Gullar observa tes não estão numeradas, é possível con- que posteriormente eliminou a palavra “for- siderar a ambiguidade na ordenação. Há, no” do texto (GULLAR, 1991, s/p). Foi esse no entanto, uma indicação para a direção o trabalho exposto nas mostras de arte con- horizontal da leitura dos módulos em duas creta em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas partes textuais: os finais de linhas “ru” e apenas parcialmente: cinco das 50 páginas, “fa” se repetem num dos módulos como com 1,5m de altura e 0,5m de largura cada partes incompreensíveis do texto, mas são uma (GULLAR, 1991, s/p). O trabalho, por- completados pelos fragmentos iniciais das tanto, se impunha, ainda que fragmentado, linhas do módulo ao lado direito, dispostas e em grande medida pelos seus vazios. Ao na mesma direção de “ru” e “fa”: “ru” rememorá-lo, o poeta considera que a or- / “ina”, “fa” / “lha”, “ru” / “ga”, “fa” / ganização das palavras em páginas diferen- “la”. As margens de ambos os módulos tes, com as letras dispersas na página como estão apagadas na sua interseção, coinci- insetos, a serem remontadas pelo olhar do dindo com o movimento de completar as leitor, possibilitava “conciliar o discurso linear palavras de um módulo no outro. A expe- com a espacialização da palavra” (GULLAR, riência de leitura demanda a montagem do 2007, p. 23), problema que tinha sido aberto poema, seja no âmbito da organização dos pelo livro de 1954. O folhear das páginas era módulos retangulares, onde as partes tex- o gesto necessário para formar o discurso, tuais estão impressas, seja na recomposição que, no entanto, era simplificado pela esco- das palavras fragmentadas entre módulos. lha vocabular e desacelerado pela contem- Gullar oferecia, nesse momento, um cartão plação da visualidade das letras minúsculas de visitas à poesia concreta, embora, sob a dispostas na página grande. Segundo Gullar, perspectiva do que se narrou depois, o poe- no entanto, a busca da poesia concreta di- ma não apareça como exemplo das melho- vergia dessa realização, pois propunha a res realizações do movimento. eliminação da sintaxe verbal – das relações Nem mesmo aparece nas memórias do gramaticais entre as palavras – e a composi- poeta, e entre alguns motivos que podem ção das palavras de acordo com uma sintaxe ser considerados está a diferença formal des- visual, o que levou um dos poetas concretos se texto em relação àqueles publicados por de São Paulo, Décio Pignatari, a propor não Ferreira Gullar depois de 1954, quando lança se tratar O formigueiro de um poema con- A luta corporal. Ao rememorar a trajetória creto (GULLAR, 2007, p. 23). como poeta, o autor lembra, nos diversos Essa, porém, é uma leitura realizada por textos que publicou a respeito, que a primei- Gullar posteriormente. Os sentidos da poe- ra obra que produziu em diálogo com a poe- sia concreta estavam em disputa naquele sia concreta foi O formigueiro, poema data- momento, e não apenas a sua significação, do de 1955 e composto por uma série de como também o sentido da vanguarda. 48 • Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

Em março de 1957, no mês seguinte à ex- texto, desenvolve uma pesquisa formal em posição carioca, Ferreira Gullar publicou no diálogo com O formigueiro, tensionando a Suplemento Dominical um artigo denomi- direção linear da leitura do verso, em cri- nado “O poema concreto”, que inicia com se, mas preservando a seriação de páginas o seguinte parágrafo: ou módulos, e de palavras em cada página Não existe ainda – e espero que não venha a ou modo, em relação de continuidade. Sob existir – uma maneira rigorosa de definir o que é essa perspectiva, O formigueiro (1955), o um poema concreto. Essa falha pode perturbar “poema concreto” de fevereiro de 1957 e certos leitores mais curiosos ou mais desconfia- os poemas visuais para página única (Gullar dos; para o poeta, no entanto, tal imprecisão é compôs e publicou pelo menos 15 desses fecunda – e chego mesmo a dizer que, quando já for possível definir o poema concreto, é que a poemas) constituem o corpus da pesqui- experiência que hoje nos impulsiona já perdeu sa concreta de Gullar, desde o começo de sua força (GULLAR, 1957a, p. 2). 1955, quando se encontrou com na Cinelândia e passou a se As tensões discursivas entre Ferreira corresponder com o grupo da revista Noi- Gullar e os três poetas de São Paulo que gandres, até 1959, quando inaugurou a editavam a revista Noigandres parecem im- I Exposição Neoconcreta, no MAM do Rio, plícitas nesse trecho, tanto que em junho e apresentou os livros-poema (GULLAR, de 1957 a diferença de concepção teórica 2007, p. 21-40; GULLAR, 2015, p. 37-44). se torna clara na capa do Suplemento, com Nos depoimentos em que rememora a publicação lado a lado de um manifesto o período, Ferreira Gullar não menciona de Gullar, Oliveira Bastos e Reynaldo Jardim, o poema de fevereiro de 1957, propondo em resposta polêmica a uma intervenção de uma continuidade, no tempo, entre a expe- . O que, ainda assim, riência de O formigueiro, em 1955, e a dos interessa depreender é como o poema de “poemas puramente visuais, explorando as Gullar publicado em 3 de fevereiro daque- relações entre os valores semânticos e fonéti- le ano se insere na pesquisa “concreta” do cos” (GULLAR, 2015, p. 41). Pode ser exem- poeta, que assumiria outra denominação, plo desses poemas “puramente visuais” “neoconcreta”, apenas em 1959. Com aquele sem título em cuja primeira linha se isso, a leitura de que O formigueiro con- lê “mar azul”, publicado em 3 de março de sistia num “livro-poema” antes do termo, 1957 numa das páginas do SDJB. A mancha forma que será explorada por outros artis- gráfica do poema aumenta em largura linha tas do grupo neoconcreto, como Lygia Pape a linha, pois a cada vez que a linha se repete, (Livro da Criação, 1959), e terá sido referên- uma expressão é adicionada, até formar, na cia fundamental para a série Bichos (1960), quinta linha, a combinação de cinco expres- de , consiste numa leitura poste- sões equidistantes: “mar azul / marco azul rior da pesquisa estética desenvolvida por / barco azul / arco azul / ar azul” (GULLAR Gullar a partir da publicação de A luta cor- apud BASTOS, 1957, p. 5). Ao apresentar poral. Nesse sentido, o poema de fevereiro o poema, Oliveira Bastos considera-o com- de 1957, ao apresentar a série de módu- posto sob o princípio da “progressão arit- los retangulares que organiza as partes do mética”, compreendendo as expressões Fevereiro de 1957 • 49 linguísticas como “cápsulas sonoras” justa- p. 1). A enunciação da palavra num poema postas (BASTOS, 1957, p. 5). Embora Gullar visual “orgânico” representa, para o leitor, não destaque esse poema nos ensaios em uma “vivência”, então uma poética se ela- que relê a sua obra, talvez pela linearidade bora de acordo com a significação do voca- horizontal da leitura, que imita a tradicional bulário. A frequência de termos referentes a direção de leitura do verso, “mar azul” abre cores e a elementos naturais (“mar”, “árvo- a seção “Poemas concretos/neoconcretos” re”, “erva”, “mel” etc.) nos poemas visuais seja de Toda poesia (1950-1980), reunião da de Ferreira Gullar manifesta a dimensão “vi- obra poética organizada pelo poeta, seja de vencial” em textos muito curtos, embora Poesia completa, teatro e prosa, reunião da apenas a comparação entre esses poemas obra de Gullar preparada por Antônio Car- e os demais da obra de Gullar possa dar a los Secchin (GULLAR, 1981; GULLAR, 2008). dimensão poética desse trabalho. A relação Essa série de poemas inclui alguns que serão desencontrada entre expressão e recepção designados como “neoconcretos” nas pági- do poema, que a leitura de Spanudis parece nas do SDJB, graças às leituras desenvolvidas suscitar ao atribuir subjetividade à mera re- pelo poeta e psicanalista Theon Spanudis, petição vocabular, parece o cerne do proble- que integrou o movimento neoconcreto. ma para Gullar, a exemplo de quando, em Embora, portanto, os livros-poema sejam 2007, relembra aquele momento: uma forma, na obra de Gullar, associada Coloquei-me, então, a seguinte questão: com a poética neoconcreta, será sobre o tra- como realizar um poema que resulte numa es- balho com os “poemas puramente visuais” trutura visual expressiva e, ao mesmo tempo, obrigue à leitura palavra por palavra? A neces- que a compreensão “neoconcreta” será en- sidade de resolver este problema levou-me a gendrada inicialmente. inventar o livro-poema (GULLAR, 2007, p. 32). Spanudis procura interpretar poemas visuais de Gullar com base nas noções de O texto “mar azul”, publicado no SDJB “espaço orgânico” e “espaço vivencial”, um mês após o poema de fevereiro de 1957, em especial um poema que repete, for- inicia uma série de poemas visuais cuja pes- mando uma coluna vertical à esquerda da quisa proporcionará a criação, em 1959 e página, a palavra “árvore” cinco vezes, va- 1960, de livros-poema, poemas-objeto e o riando a distância entre as linhas (“árvore // poema enterrado, e a elaboração da teoria árvore / árvore / árvore ////// árvore”), com- do não objeto. Assim, é no âmbito da pes- pondo um ritmo visual (SPANUDIS, 1959, quisa dos poemas visuais que a diferença p. 1). Não são todos os poemas concretos em neoconcreta se enuncia, justificando, des- que se reconhece o silêncio como elemen- sa maneira, o emprego de uma barra com to de composição do texto, intercalando- valor ambíguo ou transitório para nomear a -se ritmicamente à ocorrência das palavras. seção “Poemas concretos/neoconcretos” da Quando acontece, a relação entre a palavra poesia reunida ou das obras completas de e o espaço da página torna-se “orgânica”, Gullar. Por isso, por exatidão devo retificar a segundo Theon Spanudis, propiciando uma afirmação de que esses poemas integram o experiência “regressiva” da palavra como conjunto de textos “concretos” do autor, já “coisa”, em vez de signo (SPANUDIS, 1959, que durante o processo de composição da 50 • Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa série receberam nomeação diferente. No visuais corrobora a noção de antecipação do entanto, também por isso se pode reler o livro-poema no trabalho de 1955, sugerindo valor estabelecido por Gullar para o primei- que a forma neoconcreta desdobrável pelo ro trabalho que realizou depois do livro de leitor opera uma síntese das pesquisas an- 1954. Considerar O formigueiro, criado em teriores. Quando narra, assim que encerra a 1955, como “precursor” (GULLAR, 2007, descrição de O formigueiro, o poeta lembra: p. 23) dos livros-poema, expostos em 1959, “Logo em seguida, escrevi poemas mais or- embora verdadeiro, representa escamotear todoxamente concretistas” (GULLAR, 2015, o sentido da pesquisa “concreta” de Gullar, p. 41). É possível que fosse logo em segui- e o poema publicado em fevereiro de 1957 da, mas, entre a exposição do seu trabalho parece ajudar na compreensão desse pro- mallarmeano na I Exposição Nacional de Arte blema. Pois, em primeiro lugar, a referência Concreta, em dezembro de 1956, e o início do livro ou da plaquete como suporte para da publicação dos poemas “ortodoxamente a composição de um poema remonta a um concretistas”, em março de 1957, Gullar pu- texto fundamental e conhecido desde o co- blica nas páginas do Jornal do Brasil o poema meço da pesquisa concreta. Seria possível de fevereiro de 1957. É possível também que considerar, pelo menos a título de hipótese, esse poema representasse um caminho de que O formigueiro consiste numa tradução trabalho vislumbrado pelo poeta e logo em para o lirismo de Ferreira Gullar – com as seguida abandonado. Afinal, do ponto de imagens dos jardins, do mato e da cidade vista da forma, o poema parecia resolver um de São Luís do Maranhão, presentes desde problema colocado pela exposição: O formi- A luta corporal – do poema Un coup de dés, gueiro se estendia por 50 páginas com 1,5m publicado em 1897 por Stéphane Mallarmé de altura, das quais apenas cinco puderam em Paris, França. A tomada de consciência ser expostas, ao passo que o poema de feve- da palavra como objeto gráfico e o trabalho reiro se estendia por seis módulos cuja orde- de indagação sobre o destino da composi- nação parece ambígua, funcionando como ção do poema na página são figurados pelas um texto que depende da exposição simul- formigas ou, a rigor, pelas letras que, reuni- tânea das partes para ser lido. Com isso, a das pela leitura, recompõem a palavra que as diferença entre o poema a ser folheado e nomeia e descreve o trabalho cego e infernal que não pode ser exposto integralmente, e na cidade subterrânea. Do mar para a terra, o poema a ser integralmente observado para do naufrágio para o formigueiro, o texto de ser montado pela leitura esclarece a diferen- Gullar considera a relação entre superfície e ça entre O formigueiro e o poema de feverei- asfixia, letra e experiência, leitura e expres- ro, e justifica em parte o esquecimento desse são poética, enfrentando a negatividade irra- trabalho, nem exposto, nem publicado em diada pela crise do verso, no impasse em que livro. Mesmo O formigueiro ficou inédito em se reconhece depois de 1954. livro até 1991. Nesse sentido, o livro-poema É sob essa perspectiva que o poema de funciona como síntese desses dois trabalhos, fevereiro de 1957 pode ser lido. A continui- O formigueiro e o “poema concreto” sem dade que Ferreira Gullar estabelece nas suas título publicado em fevereiro de 1957, pois memórias entre O formigueiro e os poemas consiste num objeto a ser exposto e a ser Fevereiro de 1957 • 51 folheado ou manipulado, assim como o Livro disposição na página sugere a forma do da criação, de Lygia Pape, o Livro infinito, de losango, se os termos forem considerados Reynaldo Jardim, os Bichos, de Lygia Clark, e vértices de um polígono, ou o movimento alguns outros “não objetos” produzidos du- de uma hélice, se forem considerados pon- rante o movimento neoconcreto. tas em torno de um eixo (GULLAR, 1959, Os poemas visuais “concretos/neocon- p. 7). Os termos descritivos, “campo” e cretos”, datados, em Toda poesia, em 1957 “verde”, estão ordenados, de acordo com e 1958, implicam a enunciação de cada a sequência de leitura sugerida, de maneira palavra pelo leitor como um procedimento intercalada aos termos metafóricos, “pano” da leitura necessário à produção de sentido e “vivo”, como num quiasmo, o que indica do texto. Essa consideração pode parecer diferença no procedimento de composição evidente por si mesma, mas é a esse pro- em relação aos poemas visuais concretos, blema que Gullar se refere quando narra que em geral propõem a abstração progres- a produção do livro-poema – o leitor, em siva da compreensão durante a leitura: da lugar de receber as palavras do texto, re- onomatopeia “VVVVVVVVVV” à palavra cria-o ao enunciar, ainda que em silêncio, “VELOCIDADE”, do termo “terra” às ex- pelo olhar, cada elemento que o compõe. pressões “ara terra”, “rara terra” ou “errar Diferentemente dos procedimentos de a terra”, do termo lógico “se nasce morre” fragmentação de palavras encontrados em à formulação neobarroca “re-desnasce des- “tensão” (1956), de Augusto de Campos, e morre”, da imagem “com som cantem” a “velocidade” (1957), de Ronaldo Azeredo, seu oposto complementar “sem som tom- ou de derivação e composição de palavras bem”, nos poemas concretos aqui lembra- encontrados em “terra” (1956), de Décio Pig- dos (BANDEIRA & BARROS, 2002). O cru- natari, e “nascemorre” (1958), de Haroldo zamento entre os quatro termos do poema de Campos, os poemas visuais de Ferreira de Gullar imanta o espaço branco da página Gullar apresentam nomes substantivos ou entre eles, sobre o qual se projeta o sentido adjetivos inteiros e, em geral, com signifi- e a vivência, para retomar o termo de Theon cação concreta e morfologia primitiva. Pelo Spanudis, do “campo verde” como um menos um desses poemas de Gullar restou “pano vivo”. A leitura palavra por palavra inédito tanto na reunião Toda poesia, de consiste num fenômeno de criação textual, 1980, quanto em Poesia completa, teatro pois altera a percepção do poema como e prosa, de 2008. Apesar disso, assim como objeto gráfico, atribuindo-lhe cor, textura e o poema-trailer de 1957, esse outro poe- significação distintas do que o olho revela. ma visual esteve na abertura da I Exposição Na página em que foi publicado no Neoconcreta, se não exposto, publicado SDJB, na edição especial para a I Exposi- tanto nas páginas do SDJB quanto no ca- ção Neoconcreta, a mesma edição em que tálogo da exposição (GULLAR, 1959, p. 7; se publica o Manifesto do grupo, o poema GULLAR, 2007). Combina quatro palavras, “pano” está impresso ao lado de um breve que, numa leitura de cima para baixo, da texto em que Gullar apresenta o conceito esquerda para a direita, formam a sequên- do “livro-poema” (Figura 2). As imagens cia “pano / verde / campo / vivo”, cuja das esculturas de Amilcar de Castro e Franz 52 • Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

Weissmann revelam se tratar de uma pá- Embora não tenha sido incluído nos li- gina dedicada à escultura (como as seções vros que reúnem a poesia de Gullar, o poe- nas páginas anteriores dessa edição do Su- ma “pano” participa de um tema da obra do plemento, que trataram de pintura e de poeta. A imagem do campo gramado apare- teatro e dança, e a seção na página poste- ce em outros três poemas visuais compostos rior, que trata de gravura), embora a pre- em 1957 e 1958, que ou combinam, dispon- sença de Ferreira Gullar, apresentando o do na página, as palavras “verde” e “erva”, livro-poema como objeto escultórico, indi- ou empregam apenas a palavra “erva”. que o aspecto transdisciplinar da arte neo- Um desses poemas, segundo narra Gullar, concreta, principalmente em relação ao pa- “vai gerar um problema novo em minha pel da poesia nesse grupo. No texto, Gullar experiência de poeta concreto” (GULLAR, atribui ao livro-poema ou “poema-livro” o 2007, p. 29). Publicado em 3 de novembro uso da página como “elemento interior” ao de 1957 na capa do SDJB, o poema sem tí- poema, integrando um ao outro, em diálo- tulo organiza em distribuição retangular 12 go inclusive com o formato e os cortes do repetições da palavra “verde”, em quatro suporte (GULLAR, 1959, p. 7). O efeito, em linhas e três colunas (GULLAR, 1957c, p. 1). lugar de conceber o poema como objeto Na última linha, depois da última repetição, gráfico, está em “submergir” a página na surge uma nova palavra, como excesso do dimensão temporal da linguagem, funcio- esquema: “erva”. Tendo recebido a notícia nando como elemento gramatical na rela- de um amigo que lera o poema, de que não ção entre as palavras (GULLAR, 1959, p. 7). precisou ler por 12 vezes a palavra “verde” Posteriormente, o termo “não objeto” será para perceber que se tratava da repetição convocado para a interpretação desse efei- da mesma palavra, pois via isso antes de ler, to. Nesse sentido, uma experiência como O Gullar então compreende que o poema vi- formigueiro, de 1955, embora considerada sual apresenta um problema de leitura, para por Gullar precursora do livro-poema, con- o qual o livro-poema foi elaborado como so- vida o leitor a reunir as letras espalhadas lução, na medida em que a página permite pela grande área do papel, de modo que o ao poeta organizar a leitura palavra por pa- espaço de página branca entre os grafemas lavra (GULLAR, 2007, p. 32). Apesar disso, o da palavra decomposta seja um obstáculo a poema que repete o termo “verde” 12 ve- ser superado pelo olhar do leitor. Diferente- zes, até concretizar a cor na coisa, na planta, mente do que acontece em “pano”, texto figurando ainda, com o retângulo de pala- que requer a contemplação do espaço da vras, o campo verde, foi publicado no final página entre as palavras, sem que esteja de 1957, ao passo que os livros-poema fo- claro, como nas esculturas de Weissmann, o ram expostos no começo de 1959. O poema contorno do poema. A página como “silên- “pano”, pela sua composição, bem como cio verbal”, proposta por Gullar acerca do pela data de publicação, parece ter sido livro-poema, acontece no poema publicado composto posteriormente ao final de 1959. ao lado da proposta conceitual, no entanto Em outros dois poemas, compostos pos- não parece o procedimento organizador de teriormente, reconhece-se um diálogo com O formigueiro (GULLAR, 1959, p. 7). o poema “pano”. Ainda sob perspectiva Figura 2 GULLAR, 1959, p. 7. 54 • Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa temática, Gullar esclarece a gênese, se não em 1987. Poema dos mais significativos do da série de poemas para o campo verde, da livro, atualiza a pesquisa estética na obra re- emoção que permitiu a elaboração desses e visitando questões atravessadas pelo poeta outros poemas: na década de 1950. O envelhecimento do Ele [o poema “verde verde verde”] nasceu corpo e a forma poética requerida pelo en- da evocação da praça central da cidade de Al- velhecimento dramatizam a recusa à “opa- cântara, no Maranhão, que visitara em 1950, ca matéria”, fuga viável graças à escuta quando quase ninguém morava lá; tive a sen- do desejo do poema, que “quer ser fala”, sação de que a erva que ocupava toda aque- “murmúrio”, muitas vozes, alarido, baru- la praça crescia ali para ninguém (GULLAR, 2007, p. 29-32). lhos, “rente à pulsão / estelar / chamada”... (Figura 3; GULLAR, 2008, p. 312-313). Essa cena retorna num poema do últi- mo livro publicado pelo poeta, Em alguma parte alguma, de 2010. No poema “Relva verde relva”, o poeta pergunta onde, den- tro de si, “fulge de repente um largo verde esquecido” (GULLAR, 2010, p. 42). O acon- Figura 3 GULLAR, 2008, p. 313 tecimento acaba por ser, na segunda estro- fe, localizado “em algum lugar nenhum” Também O formigueiro retorna aqui, – parafraseando o título do livro – e o largo em miniatura: nele, as letras de uma palavra “como se fosse um lago” inundado pela cor estão, como na Figura 3, dispersas na pági- verde, forrado pela “miúda algazarra da rel- na. Assim como A luta corporal, “um vento va”, acaba por ser figurado por imagem se- de 1953-1954...” (GULLAR, 2008, p. 313): melhante à do poema de 1959: “ah aquela nela, a matéria escura da linguagem emer- inesperada toalha verde viva” (GULLAR, ge no corpo a corpo com a criação. Embora 2010, p. 42). O “pano vivo” no catálogo no poema “pano” a forma sugerida em lo- da I Exposição Neoconcreta constitui me- sango figure o “campo” desenhado entre as mória do poema publicado 51 anos depois, palavras, e em “vida” a dispersão das quatro fomentando diálogos entre o poema visual letras figure algo como uma explosão e uma e o poema em versos, a arte neoconcreta e constelação, em ambos os casos a posição a crítica às vanguardas, a representação da dos termos e a ordenação cruzada ou em cidade e da natureza e o processo de mo- zigue-zague conversam de perto. “Feverei- dernização da cultura brasileira, a experiên- ro de 82” termina num lamento às avessas, cia lírica e o problema da composição etc. um “ai”, mas lúdico. Para Gullar, a poesia Não bastasse a relevância temática do concreta foi coisa séria, e em alguma medida poema “pano” na obra de Gullar, a forma nunca terminou. O poema de fevereiro de como as palavras do poema estão organi- 57 parece representar um momento grave zadas na página, única nos poemas visuais na pesquisa do poeta, assim como o poema do poeta, comparece no recurso gráfico enterrado ou o fim de A luta corporal. Im- empregado no desfecho do poema “Feve- passes, quando corpo, linguagem e morte, reiro de 82”, publicado no livro Barulhos, por instantes, parecem não se descolar. Fevereiro de 1957 • 55

ANEXO Um poema concreto de Ferreira Gullar I

FOGO osso DO CORPO furna DO OSSO urna DO oco ORCO fosso DO corpo

II (ou III)

o fogo a fera sem osso e o couro em chaga o fogo a lepra erma rufa nas flores o seu tambor

III (ou V) as flores hérnias celestes hienas cegas as flores os postes do vão rufam no luto

feito poeira 56 • Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

IV (ou II)

a poeira a desfeita coroa [exposta] rumor do facho em ru e fa

a falha o rastro a pira a ru fa

r u f a

V (ou IV)

ina árvore esparsa lha

ga do verso a puída la a poeira

no osso

VI

o rufo o osso da fala o fogo armado o h l o r u f o g o clarão carvão na boca o rufo o pelo da hiena osso da hérnia tambor do luto o culto troféu na fera Fevereiro de 1957 • 57

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Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX Andrea Almeida Campos Professora de Direito e Pesquisadora na área de Estudos de Gênero da Universidade Católica de Pernambuco. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Cátedra UNESCO/Dom Hélder Câmara de Direitos Humanos no biênio 2009/2011.

alma humana não é forjada ao sa- demitiram de seus desafios, coube tudo, in- bor de um dia, mas traz em si a for- clusive uma tradução distinta do que enten- A tuna e a miséria de várias estações. demos por coerência. Ao menos, no modo Complexidades, paradoxos e contradições, como aprendemos a pensar a coerência em aparentemente, imperscrutáveis desafiam tempos pós-modernos e pós-iluministas. os seus pretensos decifradores a penetra- E uma das personagens da cultura que rem no território do inesperado. E se o edifí- melhor personifica a complexidade desses cio humano é sempre polimorfo e mutante, mean­dros que atravessam os fins do século o que dizer daqueles que foram entregues à XIX e os meados do século XX foi uma mu- luz do mundo em zonas limítrofes, em tem- lher. E essa mulher foi a escritora, sufragista pos atravessados por mudanças radicais? e líder feminista, Edwiges de Sá Pereira. Daqueles que tiveram as suas subjetividades Edwiges de Sá Pereira nasceu em uma construídas na travessia entre dois séculos pequena cidade do interior do estado de diametralmente distintos? As transforma- Pernambuco, no Nordeste brasileiro, em 25 ções trazidas pelo século XX forjaram não de outubro de 1884. Em meados e finais do apenas um novo cotidiano existencial para século XIX, ter nascido no interior do país os seres humanos advindos do século XIX, não era sinônimo de desvantagem cultural e proporcionado pela feérica revolução in- econômica em face daqueles que viviam no dustrial, mas também e sobretudo, rupturas litoral. Muito ao contrário. No caso de Per- profundas, desmantelamentos dantes ini- nambuco, estado que já havia sido a capita- magináveis, transvalorações, novos modos nia mais próspera da antiga colônia, era na de pensar e acreditar a vida. Para aqueles aristocracia canavieira e nos seus integran- que nasceram nesse umbral, entre o naufrá- tes que residia a representação da elite eco- gio e o nascimento de verdades totalmente nômica e intelectual local. No Recife, o que outras, semeados em um solo de condições havia era uma burguesia emergente, os fi- tensamente conflitantes, que receberam lhos dos mascates. Edwiges era, então, uma em si, abertamente, esses eflúvios e não se das filhas dessa aristocracia latifundiária e 60 • Andrea Almeida Campos

“letrada”. O seu pai era o senhor proprietá- não no antropocentrismo moderno. A me- rio do Engenho Cipó e advogado formado tafísica foi um pensamento indissociável pela Faculdade de Direito no tempo em que a ela. a sua sede ainda era no Mosteiro de São Dos doze irmãos de Edwiges, destacaría- Bento em Olinda, o Dr. José Bonifácio de Sá mos o conhecido jurista Virgílio de Sá Perei- Pereira, tendo chegado a ser eleito Deputa- ra, um dos expoentes da chamada “Escola do Provincial. Sua mãe, Dona Maria Amélia do Recife” ao qual foi incumbida a elabora- Rocha de Sá Pereira também era filha de ção de um novo Código Criminal Brasileiro. um abastado senhor de engenho. Uma fa- Virgílio de Sá Pereira chegou a ser o que hoje mília letrada, mas longe de coadunar com seria um Ministro do Superior Tribunal de ideias liberais e iluministas. O que para nós Justiça com sede, à época, na capital do Bra- na contemporaneidade pode soar como um sil, Rio de Janeiro. A obra desse, ainda hoje, contrassenso, uma vez que no nosso modo renomado civilista e penalista (mais ainda ci- de pensar é descabido quaisquer avanços vilista) é atravessada por citações da literatu- sociais e humanos fora do espírito da ilus- ra, sendo a sua escrita, essencialmente, lite- tração, que estejam divorciados das revolu- rária. Citaria, ainda, Manoel Arthur, que era, ções burguesas dos finais do século XVIII. também, voltado às letras e conhecido lati- O filósofo francês Michel Foucault, por nista. Sendo conceituado juiz de direito, che- motivos outros, é um dos que colocaram o gou a alçar o cargo de desembargador do homem moderno e iluminista em questão. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Quanto Contingenciou a racionalidade antropo- a Eugênio, aquele que criou junto a Edwiges cêntrica a partir de seu livro As palavras e o jornal Echo Juvenil entre a infância e a ado- as coisas (1979). Mas não é a voz corrente. lescência de ambos, era ele, também, poeta E tudo o que coloque em questão o ilumi- e literato. Foi advogado de causas nacionais nismo e a ilustração é concebido como obs- importantes como aquela que pleiteava, pe- curantismo e reacionarismo. Pois: a família rante o Supremo Tribunal Federal, a demar- de Edwiges de Sá Pereira e ela própria eram cação dos limites do estado do Rio Grande pessoas cultas e bem-formadas, mas, em do Sul. Chegou a ser auditor de guerra e fa- vários aspectos, contrailuministas. Mas, tal- leceu, precocemente, aos 35 anos de idade, vez, aqui, já tenhamos a primeira chave para durante a maldita pandemia da gripe espa- sairmos de nosso desconforto ao conce- nhola em 1918 (imagino como essa perda bermos a possibilidade de cultura sem ilus- deve ter sido devastadora para Edwiges). Um tração: Edwiges não era de raiz burguesa, outro irmão, Eurico, era advogado militante, muito menos liberal. O seu pai era maçom tendo sido um dos mais reconhecidos advo- e integrava o Partido Conservador. A união gados empresariais de seu tempo, atuando entre os seus pais, José Bonifácio e Maria no foro do Rio de Janeiro. Em razão do sólido Amélia, teve como fruto uma prole brilhan- conceito que desfrutou no mundo jurídico, te, mentes emancipadas, mas não todos li- foi presidente nacional do Instituto dos Ad- berais, não todos iluministas em seu sentido vogados do Brasil (atual OAB). Uma de suas estrito. Edwiges foi forjada nas humanida- irmãs, Nanette de Sá Pereira, foi professora des, nas sensibilidades, mas não no laicismo, catedrática de língua portuguesa da Escola Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX • 61

Normal do Recife, além de exímia remadora A sua harmoniosa vida familiar, signo de (CAMPOS, 1987). boa aventurança, exala toda a sua doçura Mas voltemos à infância de Edwiges em no poema “No lar”: Barreiros. Foi vivendo em Barreiros que ela No lar editou, junto a seu irmão Eugênio, o jornal manuscrito Echo Juvenil. Em 1897 alguns de À minha irmã Margarida seus poemas antes publicados no Echo Juve- Ri-se na sala a trêfega criança, nil foram, também, publicados no jornal O Como a enxotar a mágoa que domina Paiz do Rio de Janeiro. Nessa mesma edição A natureza, quando o sol declina Para o ocaso feliz onde descansa… de O Paiz veio à estampa uma matéria do escritor Arthur de Azevedo, um dos escrito- Na estofada cadeira se embalança res fundadores da Academia Brasileira de Le- Uma jovem mulher, e a fronte inclina tras, apresentando, elogiosamente, ao Brasil, Para beijar a filha pequenina, a poetisa de 13 anos de idade que vivia no De sua vida a lúcida esperança. interior de Pernambuco (AMARAL, 2016). Reflete o espelho a serpentina acesa, Nesses poemas, cuja coletânea deu forma À luz da qual uma velhinha reza, ao seu primeiro livro de poemas editado na E eu vejo a fé impressa no seu rosto… capital, Recife, Campesinas (1901), lançando Basta em todas as casas esta cena, Edwiges, definitivamente, para a vida literá- Assim tão meiga, plácida e serena, ria aos 17 anos de idade, estava um franco Para alegrar as horas do sol posto. elogio à vida familiar e ao aconchego da vida Barreiros, 1898. doméstica. Um olhar lírico e sensível sobre o mundo, como podemos depreender, de ime- Mas a menina-moça, Edwiges, em sua diato, no poema que o inaugura: lírica já revelava ter experimentado os dila- ceramentos da alma: Meu livro Perdoa-me se um dia, Dor suprema Tuas nevadas folhas descerrando, Pranto supremo, pranto dolorido, Alguém, meu fraco mérito acusando, Companheiro da dor, pranto pungente De ti chasqueie e ria, Dize-me tu, que tornas comovente Não te escrevi, meu livro, para os sábios, O suspirar de um coração ferido. Para os sábios, bem sei que tu não prestas… Dize-me tu que já de toda a gente Tinha minh’alma em festas Ouviste o peito a soluçar dorido. E um riso alegre a me enfeitar os lábios, Sim! Tu que és sempre o intérprete escolhido E antes que me viessem vis ressábios De quem os golpes do infortúnio sente: A alegria turvar de minha vida, Eu quis cantar e essas canções modestas Dize-me tu se por acaso existe Fui tirando da lira estremecida. Dor tão cruenta, padecer tão triste Como de um’alma as duras aflições, Tudo quanto da vida eu penso, e via Nos meus sonhos gentis e soberanos, Ao ver cortando a vastidão imensa Tudo quanto me enleva a fantasia Da região sombria da descrença – Canto na lira azul dos verdes anos! O bando das primeiras ilusões. Barreiros,1900. Barreiros, 1900. 62 • Andrea Almeida Campos

E na experimentação dos primeiros ver- O livro Campesinas, publicado com 51 sos não poderia faltar o socorro incontrastá- poemas, teve prefácio de Antônio de Sou- vel da fé e o colo da religiosidade. Edwiges, za Pinto, figura intelectual proeminente da que em anos mais altos foi uma fervorosa sociedade pernambucana da época. Em seu militante feminista, ardorosa combatente texto, Souza Pinto coloca em questão temas contra os flagelos sociais e imersa na atua- que atravessariam, por toda a vida, tanto a ção política (foi candidata a deputada para a literatura como o pensamento de Edwiges: Assembleia Nacional Constituinte de 1934), a rejeição às expressões modernistas que se nunca deixou de ser uma cristã indeclinável, avizinhavam e o lugar da religião e da Igreja criticando com altivez todo e qualquer pen- Cristã na modernidade. Afirma Souza Pinto samento que desafiasse a Igreja Católica em em seu prefácio: seu lugar de esplendor e glória: Não se pode deduzir do que temos dito que a forma incorreta ou descuidada seja a Desolada mais apreciável, senão que todo produto artís- a meu Pai tico, digno desse nome, carece de mais alguma Beijando a cruz de rútilo rosário, coisa que a habilidade da expressão: precisa Clotilde reza uma oração, fitando da grandeza de sentimentos e da nobreza de O vulto de Maria no sacrário. intuitos. A arte, tomando esta palavra no seu Dos belos olhos seus vem deslisando sentido mais geral, foi primitivamente um auxi- Um rosário de lágrimas ardentes, liar do culto, e não deve esquecer esse grande Que se lhe vai no colo desmanchando. ofício, embora a transformação necessária do sentimento religioso que lhe deu a “Imitação de Na posição dos pobres penitentes Cristo”. (SOUZA PINTO in SÁ PEREIRA, 1901). – Joelhos em terra, mãos entrelaçadas – Envia à Virgem súplicas ferventes. Ainda vivendo em Barreiros, em atmos- fera rural e rodeada de livros e saberes, foi De pungente amargura repassadas Edwiges convidada, no ano de 1901, para ser São as frases que, triste, balbucia Com o fervor das almas desoladas. sócia correspondente da Academia Pernam- bucana de Letras (APL), função que exerceu Pede à clemente e divinal Maria até 1920 quando, então, foi eleita para uma – Testemunha da dor que a dilacera – das cadeiras dessa prestigiosa Academia (a O bálsamo que as mágoas alivia. primeira acadêmica brasileira). Portanto, Suplica, reza e, soluçando, espera a sua brilhante trajetória intelectual tem a – Fitando sempre o casto santuário – marca inicial da zona interiorana e agrária de A proteção da santa que venera. Barreiros. Logo, ao mudar-se para o Recife, Beijando a cruz de rútilo rosário, antes de ser uma neófita no mundo literário, Clotilde pensa que tardar não deve ela já era escritora com trabalhos publica- O remédio que abrande o seu fadário… dos fora do estado e sócia correspondente Beija a cruz do rosário, e não se atreve, da APL. No Recife, logo após a sua chegada Não faz o mesmo à cruz que lhe foi dada… acompanhando a sua família, foi cofundado- Acha a que tem na mão pequena e leve, ra, de forma original, de uma revista exclusi- E a que carrega por demais pesada! vamente destinada ao público feminino, ver- Barreiros, 1896. sando sobre temas como instrução feminina, Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX • 63 chamada de O Lyrio e que teve circulação de termo final do movimento, decapitada pelos 1902 a 1904 (AMARAL, 2016). “ilustrados” Jacobinos. Revolucionários ilu- Transportou da sua vida nos engenhos ministas que não toleravam os seus pleitos para a sua trajetória na capital uma forte por igualdade jurídica e política entre ho- sensibilidade para com as desigualdades so- mens e mulheres. De igual modo, a feminis- ciais no mundo do trabalho, uma vez que ta inglesa Mary Wollstonecraft contrapõe-se havia convivido com o regime escravocrata a Rousseau em seu projeto pedagógico tra- e era assumidamente, em suas futuras teses, duzido em sua obra Emílio ou da educação uma aguerrida defensora dos direitos sociais (1762), e que excluía as mulheres, através do e combatente de todas as formas de desi- livro A reivindicação dos direitos da mulher gualdade e opressão. Ainda assim, como já (1790). Do que se depreende que iluminis- o foi dito, não era uma iluminista. Desafian- mo não é sinônimo de feminismo, muito do a nossa ideia contemporânea de que não menos uma consequência natural deste. No há luta por liberdade e igualdade sem que a entanto, a crítica de Edwiges ao movimento mesma esteja amparada pela Ilustração. Não francês não repousava estritamente no que se encontrava Edwiges alinhada ao materia- diz respeito ao tratamento conferido pelos lismo de Voltaire (SÁ PEREIRA, 1945), cuja iluministas às questões referentes à igualda- crítica clerical a repugnava, nem mesmo ao de entre homens e mulheres e outras afins, que teria de contrailuminismo o pensamen- mas, fundamentalmente, por sua superação to de Rousseau, cujas teorias deram força ao da metafísica e pelos ataques à Igreja Cató- pensamento socialista. Edwiges sustentava lica. Sem fé e sem Deus, não haveria, para ideias contrailuministas por razões outras que Edwiges a possibilidade de emancipação não aquelas rousseaunianas que fulminavam humana de suas eventuais misérias originais, os males e os efeitos perversos do proces- como podemos observar neste poema escri- so civilizatório, os avanços tecnológicos e a to já em sua idade adulta e publicado no livro geração de riquezas em sua obra Discurso de poemas póstumo Horas inúteis (1960): sobre a origem e os fundamentos da desi- gualdade entre os homens (1755). Edwiges, Cântico por seu lado, nunca se colocou em oposição Para Emília Guerra à propriedade privada como o fez Rousseau. Anda o pecado na vida Este angariou simpatizantes dentre aqueles Como a serpente fatal que se colocavam no que a modernidade Seduzindo a alma dorida compreende como “à esquerda” no movi- Para as conquistas do mal mento revolucionário francês, os Jacobinos. Mas contra o ardil da serpente Lembrando que aquela que é tida como a Que para o mal nos seduz primeira das feministas, uma das mais ativas Faz-se reduto potente pensadoras e militantes durante a Revolução O Coração de Jesus. Francesa, uma figura exponencial feminina, Lírio celeste que encerra Olympe de Gouges, que bradou contra os O orvalho de todo bem, extremismos do novo regime, postos em De cada mágoa da terra marcha por Marat e por Robespierre foi, ao Faz nova estrela do Além. 64 • Andrea Almeida Campos

Para o contrito que sofre Normal, tendo sido também professora de E anseia um raio de luz, português do Curso Comercial do Colégio É de bênçãos áureo cofre Eucarístico e professora de história geral – O Coração de Jesus. e do Brasil do Instituto Nossa Senhora do Como é feliz...quem não teme Carmo. Ocupou o cargo de superinten- – Quem tem fé é sempre feliz! dente de ensino dos Grupos Escolares da Mão firme dirige o leme Capital e durante esse exercício formulou Toda a viagem bendiz. um projeto educacional para todo o Estado A Fé é a luz de minh’alma de Pernambuco, a pedido de seu governo, – Triste de quem não tem luz acerca da organização e funcionamento do Creio em Deus: a dor me acalma ensino técnico e profissional local (ROCHA, – O Coração de Jesus! 2019). As suas propostas integram o seu Mas voltemos ao desembarque de trabalho pedagógico Impressões e notas – Edwiges, acompanhando a sua família, ao Pedagogia, publicado em 1926. Como já Recife em fins de 1901. O seu pai, José foi dito, Edwiges não restringia o seu proje- Bonifácio de Sá Pereira, que havia vendido to educacional às mulheres das elites. A sua o seu engenho em Barreiros, era mais um franca preocupação estava na formação das integrante da aristocracia canavieira que mulheres das bases sociais, dos estratos experimentava da decadência da economia mais baixos. Para tanto, prestava entu- açucareira em finais do século XIX, tendo siasmado incentivo às Escolas Domésticas, a abolição dos escravos como maior fator. às Escolas Rurais e aos Institutos Profissio- Trocara o seu status de senhor de engenho nais (AZEVEDO, 2009). Para este grupo para o de ocupante de um cargo no Go- de mulheres de classes menos favorecidas verno do Estado. A menina-moça Edwiges, despertou, portanto, o interesse do então então, continuou os seus estudos na Es- Governador de Pernambuco, Sérgio Loreto cola Normal do Recife. Quando em 1902, (1922-1926). Era, então, eloquente o seu junto a colegas como Amélia Freitas Bevi- caráter de mulher, precipuamente, voltada láqua e Luíza Ramalho, criou a revista O ao mundo da educação, da formação de Lyrio, dirigida, exclusivamente, ao público gerações e do conhecimento, especialmen- feminino, muitos de seus artigos versavam te como arma de emancipação feminina. sobre a importância da educação feminina. Correspondendo-se com feministas A educação feminina como principal ins- de vários rincões do Brasil, Edwiges de Sá trumento de emancipação da mulher em Pereira escreveu para diversas revistas com uma sociedade sexista e que deveria ser esse viés, como no caso da revista gaúcha um direito de todas as mulheres, inobstan- Escrínio, cuja editora era a educadora e te a sua classe social. Uma vez concluído escritora feminista, Andradina de Oliveira, o seu curso, Edwiges vem a ser professora e dos periódicos Vida feminina e O rata- da Escola Normal, sendo alçada, posterior- zana. Desenvolveu, durante toda a vida, mente, à professora catedrática de prática intensa atividade jornalística, tendo sido a didática e de pedagogia. Mas a sua função primeira mulher a ser membro da Associa- de educadora não se esgotou na Escola ção de Imprensa de Pernambuco. Publicava Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX • 65 recorrentemente em jornais da estatura do Rio de Janeiro. Nessa tese, Edwiges divide Diário de Pernambuco e do Jornal do Com- as mulheres em três grupos categorizados mercio, tradicionais jornais pernambucanos por suas classes sociais e suas qualificações ainda hoje em circulação, e no extinto, mas, para o trabalho, sendo eles: o grupo das mu- em seu tempo, de muita credibilidade, Jor- lheres que não precisam trabalhar (as mulhe- nal Pequeno. Os seus temas de predileção res das elites); o grupo das mulheres que sempre foram a reforma do ensino público precisam trabalhar e que sabem trabalhar de Pernambuco e os direitos da mulher na (as mulheres das classes intermediárias) e o família e na sociedade (AZEVEDO, 2009). grupo das mulheres que não sabem traba- Durante suas viagens de visita a seus lhar e que precisam trabalhar (as das classes irmãos que moravam no então Distrito Fe- baixas). Apesar do cunho feminista e propo- deral, Rio de Janeiro, travou amizade com a sitivo de sua tese na inclusão das mulheres bióloga Bertha Lutz, presidente nacional da no mundo do trabalho, sendo essa a sua Federação Brasileira pelo Progresso Femi- preocupação primacial, Edwiges continuava nino, participando do I Congresso Interna- alinhada a uma concepção racial eugênica cional Feminista ocorrido em dezembro de e que era a preponderante nas elites inte- 1922 naquela cidade. Uma vez tendo con- lectuais de sua época. Leiamos os termos tinuado a troca de missivas com feministas iniciais de sua tese: do sul e do sudeste do país, em 1931 fun- ...somos (…) um povo velho, de civilização dou a seccional pernambucana da Federa- multissecular, com todos os característicos de ção Brasileira pelo Progresso Feminino, para sua estrutura étnica, dono de virtudes e vícios que se misturam e se entrechocam imprimin- a qual foi eleita presidente de 1931 a 1935. do-lhe o traço inconfundível destacado pelos Após o seu mandato, manteve-se como nossos historiadores; um povo selvagem, sem Presidente de Honra até 1937, quando do noção dessas duas entidades abstratas, viven- advento do Estado Novo varguista. do apenas do instinto; um povo semibárbaro Durante a sua direção na Federação Bra- e inferior, sem energias para reação e o pro- sileira pelo Progresso Feminino, privilegiou testo, sem intuição de direito ou justiça – eis o tema da educação feminina, e não ape- os elementos constitutivos da nossa naciona- nas na teoria, mas, sobretudo, na prática, lidade na sua origem biológica e social (SÁ PEREIRA, 1932). criando a Escola de Oportunidades cujo es- copo era o de oferecer cursos tais como os Nas primeiras décadas do século XX era de datilografia, de línguas e de correspon- corrente atribuir as mazelas sociais, eco- dência para as jovens mulheres provenien- nômicas e políticas brasileiras ao caráter tes de todas as classes sociais do estado de mestiço do seu povo. Este pensamento, Pernambuco. É também em 1931, ano da importado de países como os Estados Uni- fundação da seccional pernambucana da dos, Alemanha, Inglaterra e França, era o Federação Brasileira pelo Progresso Femini- que prevalecia dentre as vozes pensantes, no que Edwiges apresenta a sua tese Pela inclusive dentre aquelas que fundaram o mulher e para a mulher durante o II Con- Movimento Eugênico Brasileiro capitane- gresso Internacional Feminista na sede do ado pelo médico Renato Ferraz Kehl. Este Automóvel Clube na então capital federal, era denominado de “eugenismo negativo”. 66 • Andrea Almeida Campos

Recepcionando essa teoria como proceden- racial e biológico. Se Edwiges, junto a no- te, Edwiges se propunha a uma forte atua- mes como Oliveira Vianna, Euclides da ção com vistas à salvação dos filhos dessa Cunha e , ainda não estava a miscigenação, resgatando-os de seus gro- par de teses de “eugenia positiva” como as tões e incluindo-os socialmente através da de Roquette-Pinto, de Belisário Penna e do educação: sociólogo Gilberto Freyre, que viria em 1933 É para uma nacionalidade assim promís- a publicar a sua obra máxima Casa-grande cua, assim arbitrária que devemos elaborar um & senzala, revolucionando a antropologia processo educativo que a todos atinja, a todos brasileira, o fato é que, tanto os eugenistas aproveite, a todos interesse pela harmonia in- negativos quanto os eugenistas positivos re- dispensável entre a natureza do educando e a natureza da educação (SÁ PEREIRA, 1932). pudiavam a igualdade entre os sexos, o que hoje denominamos de igualdade de gê- E esses grotões estariam ocupados por nero. Para os primeiros, as mulheres eram mulheres de vida desregrada, desemprega- tidas como procriadoras e a eugenia era das, prostituídas, sem família ou cujos com- uma forma de “advertência do perigo que panheiros não conseguiam prover o lar a ameaça a raça com o feminismo” (MACIEL, contento. Inapetentes e incapazes de fazer 1999). Enquanto, muitos dos segundos, os as suas próprias revoluções, caberia às mu- eugenistas positivos como Gilberto Freyre, lheres brancas das classes superiores, atra- conterrâneo de Edwiges, também na déca- vés da educação, ajudá-las e transportá-las da de 30, afirmavam: para uma vida em civilização. Dois anos an- As novas gerações [década de 1920/30] de tes do II Congresso Internacional Feminista, moças já não sabem, entre nós, a não ser entre em 1929, também no Rio de Janeiro, reali- a gente mais modesta, fazer um doce ou gui- zava-se o I Congresso Brasileiro de Eugenia sado tradicional e regional. Já não têm gosto em comemoração do centenário da Acade- nem tempo para ler os velhos livros de receitas de família. Quando a verdade é que, depois mia Brasileira de Medicina e presidido por dos livros de missa, são os livros de receitas de Edgard Roquette-Pinto e Renato Ferraz Kehl doces e de guisados os que devem receber das (MACIEL, 1999). Foi então, em inícios da mulheres leitura mais atenta. O senso de de- década de 30, quando do calor das discus- voção e de obrigação devem completar-se nas sões acerca do controle eugênico das imi- mulheres do Brasil, tornando-as boas cristãs e, grações, casamentos e natalidade, que foi ao mesmo tempo, boas quituteiras, para as- criada a Comissão Central de Eugenia cujo sim criarem melhor os filhos e correrem para a escopo era assessorar os governos e auto- felicidade nacional. Não há povo feliz quando às suas mulheres falta a arte culinária. É uma ridades públicas no que dizia respeito ao falta quase tão grave como a da fé religiosa aperfeiçoamento eugênico da população. (FREYRE apud SILVA, 2015). O médico e antropólogo Edgard Roquette- -Pinto foi um dos que foram na contramão Percebe-se que, mais do que um elogio do que se entendia a miscigenação como às mulheres prendadas e religiosas, Freyre eugenia negativa, sustentando que os pro- ataca as novas letradas, as que não leem os blemas do Brasil não eram raciais, mas sim “velhos livros”, as que se esforçam por ocu- sociais com forte crítica ao determinismo par um lugar na vida pública e no espaço Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX • 67 intelectual, projeto esse que tinha por uma vez, vencedoras, Edwiges se candidatou à de suas líderes, Edwiges de Sá Pereira. Pois Deputada da Assembleia Nacional Consti- bem, intelectuais tão revolucionários em tuinte de 1934 pelo Partido Econômico, um seus escopos de ação e pensamento, mas partido liberal fundado por comerciantes e ainda tão refratários a abandonarem os industriais do estado do Rio de Janeiro. Não seus postos de senhores e monopolizado- era opositora do capitalismo, portanto, nem res da vida pública e das ideias. Sobre esse da liberdade de expressão, muito menos do contraditório estado de coisas versejava direito à associação. A sua intransigência na Edwiges: defesa aos valores da família e da religião, o seu amor à cultura italiana (falava fluente- Mulheres mente o italiano e recitava poemas de Ga- De ser não sei, na seriação dos seres, briele d’Annunzio de memória), a sua advo- Que mais preocupa e que se estuda tanto: cacia pelos direitos no mundo do trabalho e Alma, razão de agir, paixões, misteres, o seu conservadorismo nos costumes (não A essência do seu riso e do seu pranto! bebia, não fumava e nunca frequentou a Magos, poetas, filósofos, no entanto, boemia) não foram suficientes para aliá- Mergulhando-as na orgia dos prazeres, -la a grupos como aquele dos integralistas Ou elevando-as nas palmas como a um santo, aliados ao fascismo. Lembrando que a hie- – Controversos que são quanto às mulheres! rarquia eclesiástica apoiava o integralismo à Dessas vacilações, desses enganos época. Muito pelo contrário. A despeito dos Surge o dogma, imutável, transcendente avanços sociais propiciados pelo varguismo, Que ao homem sagra “senhor” entre os humanos… condenava veementemente o estado auto- ritário de Vargas, não lhe tendo qualquer E dono, e chefe, e rei – por que padeces, simpatia. Não transigia com quaisquer to- Ó forte, ó sábio e vives tão somente talitarismos, atacando com veemência em Na razão desse mal que mal conheces?! seus textos o que viria a ser o falangismo E liderando esse projeto emancipatório espanhol cuja uma das fortes característi- na década de 1930, Edwiges de Sá Perei- cas era o tradicionalismo católico. Quando ra combateu bravamente o antifeminismo, do Estado Novo, antes que Getúlio Vargas mais ainda no que diz respeito ao direito à baixasse decreto fulminando a liberdade de educação, à inserção no mundo do traba- associação e instituísse a censura, Edwiges lho e à vida profissional com a ocupação de Sá Pereira pôs termo e fechou as portas dos postos de trabalho, desde o trabalho da Federação para o Progresso Feminino em das operárias nas fábricas até seus cargos Pernambuco em 1937. de direção e, diversamente do que se es- Uma vida, por conseguinte, atravessada peraria de uma católica sem concessões, por momentos paroxísticos na vida nacio- advogava pelo direito ao divórcio. Na luta nal, de rupturas, tragédias e ebulição na pelos direitos políticos das mulheres, lide- história global. Edwiges era criança quando rou o movimento sufragista no estado de da Abolição da Escravatura e da Proclama- Pernambuco. Movimento cuja liderança ção da República. Mas já era uma mulher nacional era exercida por Bertha Lutz. Uma adulta quando atravessou a pandemia da 68 • Andrea Almeida Campos gripe espanhola e as duas Grandes Guer- Reafirmando a supremacia do pensa- ras Mundiais. Em fins dessa última proferiu mento religioso e teocêntrico e o seu de- uma conferência intitulada “A influência da sacordo com o movimento revolucionário mulher na educação pacifista do pós-guer- francês de fins do século XVIII, escreve ra” (1945). A conferência fora escrita para Edwiges no mesmo texto: uma série de vinte e oito conferências orga- E desde o princípio dos tempos que a mão nizadas pela Academia Pernambucana de de Deus vem polindo, desgastando, nivelando as arestas do instinto primitivo dos trogloditas, Letras, tendo sido publicada na Revista da no sentido de que o viajante de cada ciclo não Academia Brasileira de Letras em sua edição claudique no caminho, contrafazendo, desvir- de dezembro de 1946. Como não poderia tuando o seu destino na terra. É que o homem deixar de ser, já que inerente ao seu mo- briga por tudo e por nada. Helena e a Guerra dus operandi, Edwiges editou a conferên- de Troia; a filosofia dos enciclopedistas e a Re- cia em folhetos de modo a divulgar o seu volução Francesa (…) – tudo vem através dos conteúdo em institutos culturais, centros tempos atestando o temperamento belicoso do homem (SÁ PEREIRA, 1945). de atividades femininas no lar e nos meios de trabalho profissional. No texto da confe- E nesse mundo do pós-guerra, mes- rência, ainda é aguda a crítica de Edwiges mo proclamando “a necessidade de uma ao humanismo moderno e às suas concep- organização internacional pacifista para a ções evolucionistas, aos valores e propostas segurança da humanidade”, uma força ins- iluministas francesas no que diz respeito à titucional temporal, a paz tão almejada não educação e à metafísica. Leiamos Edwiges: será alcançada se não for pelas vias espiri- O insucesso da pedagogia inspirada nos tuais, pelas mãos de Deus; são essas mãos princípios da Revolução Francesa é um índice. que devem as mulheres segurar em seus O laicismo substituindo o sectarismo, a quem esforços de empreenderem uma educação se atribuía, entre outros, o grande mal de enti- pacifista: biar os espíritos e tolher a liberdade de pensa- A mulher há de colaborar com interesse, mento, produziu em sentido retroverso “uma e Deus queira que para esta colaboração ser geração indisciplinada, impatriótica e refratá- produtiva e elevada hajam os diretores da ria ao trabalho sistemático”. O agnosticismo nova ordem estabelecido leis e princípios que levou, nos domínios pedagógicos da França lhe harmonizem o trabalho autônomo e o fa- e dos países que lhe imitaram o sistema, a çam valer. Se tão bela, patriótica e altruística confusão de um traçado sem rumo confiado foi a sua atuação no esforço da guerra, maior ao livre-arbítrio. Isto porque os reformadores e melhor ainda deverá ser no esforço de paz. legislaram para o seu ponto de vista filosófi- E animando essa escalada para o alto, a essên- co, inspirado no materialismo de Voltaire. Não cia de um ideal comum ligado a um sentimen- decorre do cérebro efervescente, orientado to comum de amor universal: o ideal religioso. ou desorientado pelas revoluções, plasmar a Sem Deus não se poderão jamais soldar os seu talante o pensamento, a mentalidade das elos dessa corrente pacifista através das con- coletividades a educar. A tradição, a heredita- trovérsias dos homens (SÁ PEREIRA, 1945). riedade, as condições de meio e de raça são fatores decisivos que definem, acentuam, sin- Em sua produção literária, mesmo ten- gularizam a psicologia do povo a conduzir e a do vivido até as margens da década de 60 aparelhar (SÁ PEREIRA, 1945). do século XX, desconheceu o modernismo. Edwiges de Sá Pereira: Uma feminista vitoriana na primeira metade do século XX • 69

Melhor ainda: rejeitou-o, como podemos sim descontínuo, disruptivo, aleatório. Em constatar em sua própria letra – “A lei do seu conservadorismo aliado ao progressis- menor esforço tem proporcionado frutos mo desafiam-se os intricamentos cartesia- bem pecos, haja vista o menosprezo pelo nos e as fáceis categorizações, inclusive no idioma, a dissonância e a incoerência na alinhamento político. poesia e na pintura modernistas”. Em sua Isabel Edwiges de Sá Pereira faleceu a 14 prosa não se detecta quaisquer referências de agosto de 1958 aos 73 anos de idade em a obras nem a escritores realistas, muito sua casa no bairro do Espinheiro, no Recife. menos naturalistas. Ler a sua poesia é mer- Morava sozinha. Nunca se casou nem teve gulhar em um universo vitoriano, em um filhos. Embora, a certa altura de sua vida, mundo do século XIX, incorruptível e in- lamentasse não ter sido uma mãe solteira.1 transponível. O parnasianismo e o simbolis- mo são por ela perpetuados. Para Edwiges Referências de Sá Pereira não há poesia fora da métrica Amaral, Walter Valdevino do. “Edwiges de Sá Pereira: uma voz pernambucana no Segundo Congresso Internacio- e da rima: nal Feminista” (Rio de Janeiro, 1931). Temporalidades – Revista de História, v. 8, n. 3, 2016. Rimas Azevedo, Ferdinand. “Cristãs feministas em Pernambuco 1930-1950: a atuação de Edwiges de Sá Pereira, Dul- Rimas para o meu verso… tenho tantas! ce Chacon e Nair de Andrade”. Revista de Teologia e E que bonitas são todas as rimas… Ciências da Religião da UNICAP, v. 8, n. 2, pp. 167-190, 2009. – Verso, é rimado que melhor tu cantas, Campos, Virgílio. Um pensador da escola do Recife: Sá Pe- E assim, cantante, é que melhor animas. reira e o seu tempo. Recife: FUNDARPE, 1987. Foucault, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Versos sem rimas, versos brancos. Flores, Fontes, 1979. Maciel, Maria Eunice de “A eugenia no Brasil”. Revista Não vos basta o perfume que deleita: Anos 90, n. 11, Porto Alegre, 1999. Ostentai toda a gala em vossas cores, Rocha, Sidney. Cronologia de Edwiges de Sá Pereira. Revista Hexágono, CEPE Editora, v. 2, n. 5, p. 38-39, 2019. Túnica iriante que a campina enfeita. Sá Pereira, Edwiges. Campesinas. Recife: Officinas Graphi- cas da Associação da Bôa Imprensa, 1901. Versos sem rimas, versos brancos… Almas, _____. Pela mulher, para a mulher. Recife: Officinas Graphi- De que vos serve este viver assim: cas da Associação da Bôa Imprensa, 1932. Horas vazias de emoção tão calmas _____. Um passado que não morre – No centenário do Dr. João Baptista Regueira Costa, 1845-1945. Recife: Im- Como o riso ideal de um querubim. prensa Industrial, 1945. _____. A influência da mulher na educação pacifista do (…) pós-guerra. Recife: Imprensa Industrial, 1947. _____. Horas inúteis. Recife: Imprensa Oficial, 1960. Rimas para o meu verso… tenho tantas… Silva, Marcelo Melo da. Antifeminismos e feminismos no E que bonitas são todas as rimas! Recife dos anos de 1930. In: Lugares dos historiado- res: velhos e novos desafios, Anais do XXVIII Simpósio – Verso, é rimado que melhor tu cantas. Nacional de História, Florianópolis, 2015. E assim o foi Edwiges de Sá Pereira, uma Para saber mais Campos, Zuleica Dantas Pereira. Pela mulher, para a mu- líder feminista à frente de seu tempo no sé- lher: Uma voz feminista no Recife dos anos 30. Dis- culo XX e, a uma só vez, uma poetisa oito- ponível em: http://www.unicap.br/neal/artigos/Texto- 6ProfZuleica.pdf Acesso em 03 de agosto de 2020. centista e uma religiosa e pensadora agos- Fagundes, Emelly Sueny Fekete. “Uma das faces do feminismo tiniana. Paradoxos e anacronismos que nos em Pernambuco: Transgressões e permanências na traje- tória da Federação Pernambucana pelo Progresso Femini- levam a pensar não apenas o feminismo, no (1931-1937)”. Dissertação de Mestrado no Programa mas a nossa história e o caráter humano de 1 Sá Pereira, Hebe. Hebe de Sá Pereira: Depoimento (ou- modo nunca linear, sistemático, causal, mas tubro de 2010). 70 • Andrea Almeida Campos

de pós-graduação em História da UFRPE. 2018. Dispo- Silva, Maria Angélica Pedrosa de Lima et al. “Entre versos e nível em: http://www.tede2.ufrpe.br:8080/tede2/bits- manifestos: as contribuições de Edwiges de Sá Pereira tream/tede2/7811/2/Emelly%20Sueny%20Fekete%20 para a emancipação social e política da mulher em Re- Facundes.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2020. cife (1920-1932)”. Anais do IV Colóquio de História da Nascimento, Alcileide Cabral do. “O bonde do desejo: o UNICAP, Recife, 2010. movimento feminista no Recife e o debate em torno do sexismo (1927-1931).” Revista de Estudos Feminis- Obras de Edwiges de Sá Pereira tas, v. 21, n. 1, Florianópolis, 2013. Campesinas.1901 (Poesia) _____. “Por uma igualdade emancipadora da mulher: Edwi- Impressões e notas. 1926 (Assunto pedagógico) ges de Sá Pereira e Martha de Hollanda, feministas em Pela mulher, para a mulher. 1931 (Tese) luta pela cidadania política em Pernambuco dos anos Um passado que não morre – No centenário do Dr. João de 1930”. Anais do XV Encontro Regional de História Baptista Regueira Costa, 1845-1945. 1945 (Ensaio) da ANPUH-RIO, Rio de Janeiro, 2012. A influência da mulher na educação pacifista do pós-guer- Pedrosa, Cida. “A Eva militante e todas as horas úteis para ra. 1947 (Conferência) a mulher e pela mulher”. Revista Hexágono, CEPE Edi- Horas inúteis. 1960 (Poesia) tora, v. 2, n. 5, p. 5-23, 2019. Silva, Marcelo Melo da. “Cuidar do lar… e da pátria: o voto Inéditos feminino em Pernambuco nas eleições de 1933”. Bil- Eva militante (Ensaios) ros – Revista de História, v. 5, n. 8, Fortaleza, 2017. Joia turca (Ensaios) Mário Faustino, Camões e o sopro da utopia Peron Rios Professor de Língua Portuguesa do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco. Publicou, pela Editora da UFPE, a premiada tese “A Viagem Infinita: um estudo sobre Terra Sonâmbula, de ”, e proferiu palestras sobre as literaturas brasileira, moçambicana e francesa em várias universidades do Brasil e do exterior. É membro do Grupo de Estudos em Crítica Cultural e Artes (GECCA).

1. As teses pós-utópicas de “A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade da arte, cuja outra Haroldo de Campos metade é o eterno e o imutável” (CAMPOS, O ensaio de Haroldo de Campos “Poesia 1997, p. 248). e modernidade: da morte da arte à cons- A visão moderna de Haroldo sempre se telação. O poema pós-utópico”, presente muniu de certo pragmatismo, de uma se- na coletânea O arco-íris branco (CAMPOS, leção orgânica da tradição. Para o autor de 1997), pode nos dar, de saída, uma visão Galáxias, o vezo puramente historiográfico antiflusseriana da elaboração poética. Se, interessaria apenas aos “eruditos”, no senti- em meados do século XX, Vilém Flusser de- do pouco apreciável que o termo acolhe. No sejava uma fabricação verbal elaborada pelo fim das contas, o que subjaz a essa crença é som absoluto, significante pleno, Haroldo a formação de base poundiana, são os ecos advogaria, no lugar de uma “poesia pura”, das lições do poeta norte-americano, cons- uma “poesia para”, em que certo engaja- tantes sobremaneira do livro – hoje clássico mento ganharia vez. Isso ocorreria, porém, – ABC of reading, traduzido por Augusto de numa perspectiva contingente, guardando Campos e José Paulo Paes como ABC da lite- a consciência do transitório e compondo- ratura. Ezra Pound ali defende um conceito -se de um nacionalismo aberto, conectado, de tradição atualizada (os poetas que devem não atomizado. A provisoriedade é atestada formar o paideuma de um crítico são aque- pelo próprio Campos, quando se refere ao les que, em boa medida, contribuem para pensamento estético baudelairiano: a época da recepção) e uma prática forte- Baudelaire, na culminação desse proces- mente axiológica de leitura – lastreada, por so (um processo que retoma a oposição de sua vez, num método comparativo típico das “belo universal”/“belo relativo” para acentu- ar, nessa relativização do belo, um ideal de experiências científicas dos biólogos e suas novidade em constante mutação), acaba por lâminas de amostragem. encontrar no “transitório” (cujo paradigma é Tal compreensão desembocará no exer- a moda) o critério distintivo da modernidade: cício tradutório de todo o grupo concretista 72 • Peron Rios conhecido por Noigandres: as escolhas ver- provisória do credo estético individual para o bais para o texto de chegada, numa tradu- afloramento das plataformas coletivistas típi- ção, deveriam favorecer o impacto estético cas dos decálogos vanguardistas – não passou do leitor contemporâneo (e não exatamen- de utopia. A transformação da poesia de alto te um leitorado abstrato, pertencente ao nível em pão diário (a “poesia universal pro- momento de produção): “A tradução – vis- gressiva”), portanto, revelou-se uma esperan- ta como prática de leitura reflexiva da tradi- ça estiolada, uma promessa não cumprida, o ção – permite recombinar a pluralidade dos que invibializou, segundo Campos, a própria passados possíveis e presentificá-la, como identidade da experiência de vanguarda: diferença [...]” (CAMPOS, 1997, p. 269). A Sem perspectiva utópica, o movimento coerência teórica, nesse caso, é absoluta: de vanguarda perde o seu sentido. Nessa dar primazia à sensibilidade estética de uma acepção, a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja recepção do século XVII de John Donne, por pós-moderna ou antimoderna, mas porque é exemplo, é não apenas habitar uma realida- pós-utópica (CAMPOS, 1997, p. 268). de primordialmente hipotética como tam- bém constitui uma abordagem historicista Alguns dos elementos acima elencados do texto literário – algo fora das intenções convergem para a linhagem reflexiva do dos escritores concretos. Acompanhando o poeta-crítico Mário Faustino. Em depoi- próprio Haroldo, lemos: mento sobre o piauiense (“Mário Faustino A urgência em se outorgar uma “tradição ou a impaciência órfica”), Campos lembra viável” (em identificar “aquela parte da tradi- que se tratava de um “crítico de formação ção literária que permanece vital ou foi revivi- poundiana” (CAMPOS, 2006, p. 189). Por da” para uma determinada época, como diz exemplo, o exercício do “make it new” – di- Roman Jakobson a propósito do ponto de visa metodológica de Pound –, tão presente vista sincrônico nos estudos literários) solicita antes o escritor que o historiador da literatura nos ensaios faustinianos do Poesia-experi- (CAMPOS, 1997, p. 252). ência, nada mais é do que a supramencio- nada atualização dos “passados possíveis” Um valor mais alto se alevanta, porém, no terreno escarpado da “transcriação”. nas teses de um primeiro Haroldo de Cam- As preocupações de Haroldo a respeito pos: a expectativa oswaldiana de, pelo do papel social da poesia são igualmen- viés da vanguarda, disseminar a literatura te uma tônica do pensamento poético de “exigente” (para usarmos o termo de Leyla Faustino. Num “diálogo de oficina”, este Perrone-Moisés). Fazer o público degustar indaga verticalmente: “Em que o poema esse biscoito fino. Ao mesmo tempo, e ‘ativo’ ajudaria a mudar uma sociedade?” quase como uma necessidade correlata, (FAUSTINO, 1977, p. 35). Mas recusa, ve- o poeta pretendia sofisticar os parâmetros ementemente, o utilitarismo que não põe de cultura e de leitura desse mesmo públi- em primeiro plano a fatura esteticamente co burguês. bem realizada de um poema (na verdade, Semelhante nivelamento técnico, po- outra lição do autor de The cantos): rém, não se confirmou na educação dos lei- Há, por exemplo, os pobres de espírito tores e a prática socialista da poesia – elisão que confundem ética e estética, somente por Mário Faustino, Camões e o sopro da utopia • 73 superficialmente exprimir as condições sociais ruptura, mostrou-se sempre generosamente reinantes, ou apenas por fazer-se, aparente- sensível aos experimentos mais radicais da mente, porta-voz das aspirações populares, poesia concreta, embora, na sua produção possa ser um bom poema, pouco importando pessoal, conservasse ainda certos elos com a suas qualidades intrínsecas. Quanto a mim, tradição discursiva (CAMPOS, 2006, p. 190). nego terminantemente que um mau poema possa servir seja lá ao que for (FAUSTINO, Em Faustino, tal afinidade com a tradi- 1977, p. 38). ção do verso ocidental agirá como resistên- cia – embora, insistimos, estimulasse as pes- Estes são alguns dos principais pontos quisas poéticas dos concretos – à implosão de consonância entre o autor de O homem radical que o grupo de São Paulo pratica- e sua hora e o grupo de São Paulo. Todavia, mente impunha, em sua fase heroica. Uma assoma agora uma linha divergente entre amostra do vínculo de Mário com a poesia Mário Faustino e os escritores paulistas. que secularmente o antecedeu se expôs de Em balanço sobre a poesia brasileira na modo exemplar em sua “atualização” de década de 50, informa-nos Faustino que Luís de Camões, no saboreio sincrônico do o “verso”, no sentido em que a palavra tem poeta português, que vislumbraremos na sido empregada até agora, se encontra, no sequência. momento, em crise, em todos os países do Ocidente e que [...] a experiência “concretis- ta”, na melhor das hipóteses, poderá salvar 2. Temas e formas: a poesia brasileira do marasmo discursivo- intercâmbios -sentimental em que se encontra (apesar dos esforços de João Cabral e de alguns outros), O desejo de inscrever sua criação no diâ- provendo nossa linguagem poética de novos metro da literatura épica pôs o poeta Mário campos de ação perceptivos e expressivos Faustino, incontornavelmente, em diálogo (FAUSTINO, 2003, p. 480-481). visceral com Luís de Camões, e aproximar o autor de O homem e sua hora de Os lu- Entretanto, alertava antes o poeta-editor: síadas é tão necessário quanto previsível. O É para esses poemas [de Décio Pignata- que frequentemente se perde de vista, no ri, Haroldo e Augusto de Campos, Ferreira Gullar e alguns outros menos importantes] entanto, é o vínculo que a obra faustiniana que vimos pedir a atenção do leitor honesto estabelece com a lírica do poeta português, desta página, cujo orientador – que escreve localizada em mais de um aspecto. estas palavras – deixa esclarecido não ser, pelo O piauiense Mário migra de Belém do menos até hoje, “concretista”, não tendo inte- Pará para o Rio de Janeiro em 1956, e sua resse pessoal na experiência tentada por seus atuação como crítico e poeta se desenvol- colegas de São Paulo e pelo sr. Ferreira Gullar ve em plena efervescência do Concretismo. (FAUSTINO, 2003, p. 479). Recordemos que, dentre as inúmeras ban- Haroldo de Campos também tinha cons­ deiras hasteadas pelos concretistas, ganha ciência dessa refração: destaque a de que o verso tradicional mor- Como poeta, aberto ao novo, dotado de rera: já não fazia sentido escrever poesia um manuseio dúctil e sutil das técnicas do continuando a discursividade ocidental e va- poema em verso, capaz do fragmento e da lia mais, portanto, explorar a fragmentação 74 • Peron Rios verbal e os amplos espaços de uma página. contamina com seus desacertos, sua trágica Aqui é que assoma a relevância de Faustino imparidade. Na verdade, a lírica de Faustino na cena literária de então: emular modelos retoma, nesse particular, a convulsão emoti- como os de Camões contribuiu para a re- va de Camões, o qual – por apresentá-la em sistência que ele impôs às decretações apo- larga medida – tornou-se, em suas éclogas, calípticas enunciadas pelos paulistas. (Aliás, o poeta de um “bucolismo intranquilo” (Cf. este o papel da tradição: servir de bala e FRAGA, 1989). baliza. O conhecimento do que a humani- A pulverização do mundo no moinho dade pôde elaborar oferece cautela a quem do tempo é tópica de Faustino, calcada se propõe instaurar uma novidade absoluta. nessa tradição que Luís de Camões conso- Não é outra coisa o que nos diz Antonio lidou: “Inês, Inês, quem sobrevive, quem,/ Candido, em palestra sobre Sérgio Buarque Nos filhos que fabrica?”, indaga um eu- de Holanda: o Modernismo de 1922 en- -lírico do vate brasileiro (FAUSTINO, 1985, controu em São Paulo uma liberdade que o p. 56), em poema não finalizado e de pre- Rio, por ter sido corte e resguardar tesouro clara referência a Os lusíadas. Vale subli- cultural, não propiciava – a de não ter culti- nhar: aqui, a repetição verbal sinaliza certa vado uma tradição1). incompreensão, alguma perplexidade. Em Inúmeros são esses modelos emulados outro poema longo e memorável, escreve- e podemos iniciar destacando o enunciar -nos o autor: de um desconcerto do mundo – tônica de [...] paz de sentinela/ maravilhada à vista/ Camões e da poesia europeia dos séculos de si mesma nas algas/ do tumultuoso ven- XVI e XVII. Os versos de “Correm turvas to,/ de seus restos na mágoa/ do tumulário as águas deste rio” são um vivo exemplo tempo,/ de seu pranto nas águas do mar justo –/ maravilha de estar assimilado/ pelo vento desse desnorteio existencial: “Tem o tem- repleto/ e pelo mar completo – juventude po sua ordem já sabida;/ O mundo, não; (FAUSTINO, 1985, p. 59-60). mas anda tão confuso,/ Que parece que dele Deus se esquece” (CAMÕES, 2008, p. Novamente a imagem da água vem 528), e não por acaso essa instabilidade se refletir o tempo como tumulário contra a materializa na imagem heraclítica do rio. A juventude. Camões, por sua vez, mostran- poesia de Faustino, de teor conflituoso e do a metamorfose de tudo, expunha, em agônico, não raro denuncia, como em “Ba- “De vós me aparto, ó vida! Em tal mudan- lada”, semelhante incongruência. O dístico ça”, a alegria enquanto véspera da dor: de abertura desse texto é um claro exem- “Não sei para que é ter contentamento/ plo de beleza estilística e da cosmovisão se mais há de perder quem mais alcança” da ruína: “Não conseguiu firmar o nobre (CAMÕES, 2008, p. 276). pacto/ Entre o cosmos sangrento e a alma As metamorfoses que desembocam na pura” (FAUSTINO, 1985, p. 115). Note-se o finitude geram a angústia do renascentista que expressam os decassílabos expostos: a Camões, mas antecipando a contrição tipi- personalidade é impoluta, mas o mundo a camente barroca de um Gregório de Matos (para ficarmos na língua portuguesa). Não 1 Cf. https://m.youtube.com/watch?v=wXgG0GR7CYg (acesso em 09/08/2020). é por acaso que o célebre “Mudam-se os Mário Faustino, Camões e o sopro da utopia • 75 tempos, mudam-se as vontades” será recu- expressas em elementos substantivos. É o perado, em seu espírito, no conhecidíssimo caso, aqui, de “inferno”, “inverno”, “outo- “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia”, no”, “purgatório”, “estio”. Já não são coi- do Boca do Inferno. Temos, então, o Ca- sas ou eventos; antes, aparecem adjetivais mões de verve maneirista. (a metáfora semântica gera uma translação O poeta português antecipa o Roman- de categorias). Mas é exatamente isto que tismo apresentando a morte como solução Saraiva e Lopes apontam como inovador para o sofrimento terreno e, em sua cos- em Luís de Camões: movisão, vida é vetor hermenêutico (mar- Com imagens-símbolos formulares, conse- ca tipicamente romântica): “E sabei que, gue impor por momentos ao espírito do lei- segundo o amor tiverdes,/ tereis o enten- tor um senso do real bem diferente do senso dimento de meus versos” (“Enquanto quis comum: certas qualidades tornam-se coisas substantivas, se não mesmo elementos ou Fortuna que tivesse”). Mário Faustino, por essências, tais o verde, a luz, dos olhos ama- sua vez – e para usar as palavras de Artur dos; ou, pelo contrário, como que descobre Ataíde (2010) –, guarda um “romantismo as qualidades neve, fogo, água – dizemos resistente” (cf. “Alma minha gentil, que te qualidades e não coisas, porque tais palavras partiste”). Similar a Camões e suas amadas trazem apenas à poesia o matiz afectivo des- platônicas, Dante e sua Beatriz ou Petrarca pertado por certas associações de ideias ou e Laura, Faustino vê a presença do ser ama- impressões (LOPES; SARAIVA, 2010, p. 314). do como entrada no paraíso. É o que nos Ponto de contato: o barroquismo, que revela “Inferno, eterno inverno, quero dar”: se vislumbra no jogo de antíteses e é típico Inferno, eterno inverno, quero dar do soneto camoniano, reaparece aqui em Teu nome à dor sem nome deste dia todo vigor: lar frio, praia sem mar. E, toda- Sem sol, céu sem furo, praia sem mar, via, com a “concentração emocional” que Escuma de alma à beira da agonia, Camões emprestou a tal forma fixa. Nessa Inferno, eterno inverno, quero olhar De frente a gorja em fogo da elegia, chave barroquizante, o precioso amor e o Outono e purgatório, clima e lar mundo emergem como antítese. Para que De silente quimera, quieta e fria. um se faça viável, o outro deve ser derrota- Inverno, teu inferno a mim não traz do. Em medida considerável, já em Camões Mais do que a dura imagem do juízo se verificava uma tal cosmovisão: o abando- Final com que me aturde essa falaz no da vida objetiva se compensava, afinal Beleza de teus verbos de granizo: de contas, com a cristalização mental da Carátula celeste, onde o fugaz Estio de teu riso – paraíso? pessoa amada. Veja-se o poema, de Fausti- (FAUSTINO, 1985, p. 173). no, que merece comparecer na íntegra:

Note-se, primeiramente: a escolha lexi- O mundo que venci deu-me um amor, Um troféu perigoso, este cavalo cal mais culta semelha a do Camões dos so- Carregado de infantes couraçados. netos; além disso: assim como um texto in- O mundo que venci deu-me um amor teiro pode ganhar um valor adjetivo – como Alado galopando em céus irados, a Canção do exílio lida por José Guilherme Por cima de qualquer muro de credo, Merquior) – também qualidades podem ser Por cima de qualquer fosso de sexo. 76 • Peron Rios

O mundo que venci deu-me um amor sucedem). Mais curioso, porém, é que, indo Amor feito de insulto e pranto e riso, aos projetos inconclusos de Mário Faustino, Amor que força as portas dos infernos, lá flagramos os desideratos de escritura que Amor que galga o cume ao paraíso. ele alimentava: a poesia camoniana é ab- Amor que dorme e treme. Que desperta solutamente central naquela que seria sua E torna contra mim, e me devora E me rumina em cantos de vitória... vertente épica – a contramão da cartilha li- (FAUSTINO, 1985, p. 171). terária dos anos 50, no Brasil. Dizendo de outra forma, a presença de Camões na obra Entre Faustino e Camões, portanto, ou- de Faustino é muito mais densa e constante tra interseção se detecta: a possibilidade de do que a mera menção noticiosa que faz se experimentar o amor sem o saborear em Mendonça Teles ao poeta “aeromorto”, em sua seiva carnal: reabilitação do idealismo seu Camões e a poesia brasileira (cf. TELES, platônico (não é outra coisa que dizem os 2001, p. 252). versos “Por cima de qualquer muro de cre- O poema inacabado, intitulado “A re- do,/ Por cima de qualquer fosso de sexo”). construção” (FAUSTINO, 1985, p. 99), seria Por fim, a perversidade do pior dos deuses composto de oito partes perfazendo longa – Eros – se notabiliza como outro camonia- narrativa e, de acordo com os documentos no remake: “Amor que dorme e treme. Que que se tem, apenas a primeira seção estaria desperta/ E torna contra mim, e me devora/ concluída. Reaparecem, ali, os versos decas- E me rumina em cantos de vitória...”. sílabos e brancos – dessa vez a relatarem uma tragédia velada, a iminência da ruína 2.1. Um Camões menos casual descrita numa atmosfera fantasmática (“O do que previsto céu, de incendiar-se ameaçado,/ Recolhe Comparações guardam sempre o risco suas nuvens. E demora/ Em reinos mais pa- da proximidade fortuita: interseções casuais, cíficos o sol,/ Temente desta aurora. [...] Não contingentes, intercâmbios que alargam falo/ A língua destes cânticos, não danço/ pouco a leitura dos textos pareados. De A dança destes ritos. [...] Faz sempre noite/ fato, cada qualidade elencada poderia, iso- Neste país [...]”). No cenário agônico des- ladamente, servir de cotejo a inúmeros poe- crito, a fauna se inscreve num imaginário tas de filiação diversa. Todavia, a proximi- macabro e romântico (“[...] De rapina/ São dade entre os autores em todos os pontos todas estas aves, o morcego/ Geme no ar enumerados já nos daria elementos para enquanto nos monturos/ O rato ri dos ho- um servir de lente estética para o outro, in- mens [...]”) e a imagem táctil do frio é uma dependente das noções de influência e de constante no poema, constituindo o seu intencionalidade (importa se Faustino, por leitmotiv; a baixa temperatura traduz a re- exemplo, pretendeu retomar Camões ou se duzida, ou rarefeita, ventura. Justificando o o poeta português deságua na sensibilidade título, porém, vislumbra-se nos versos um do brasileiro. Mas também importa – e so- fio de esperança e o eu-lírico, herói épico, bretudo – que as poéticas dialogam e que, seria o arauto de novos e auspiciosos tem- borgianamente, os poetas anteriores tam- pos: “Enfim todo um clamor de riso e can- bém são influenciados por aqueles que os to/ Em língua nova e minha. Esta cidade/ Mário Faustino, Camões e o sopro da utopia • 77

Aberta não me opõe fossos nem muros a chama do legado épico em suas canôni- [...]”. Todas as partes estão previstas no pla- cas modalidades: ambas as coisas vinham no de Faustino, em que também se conhe- acrescidas da escolha em tornar central, cem as leituras que dariam lastro aos blocos no processo criativo, uma personalidade poéticos. representativa da própria tradição em lín- Das oito divisões mencionadas, nada gua portuguesa. Claro: também Faustino menos do que cinco preveem, de algum cultivava o fragmento; entretanto, ele ser- modo, a presença do autor d’Os lusíadas via como célula poética, matéria-prima de como suporte criativo. Na quinta parte, Má- um tecido mais coeso: rio Faustino parafrasearia, metalinguistica- Na última fase de sua poesia, Mário Faus- mente, o incontornável “Sôbolos rios que tino projetava reunir os poemas-fragmentos vão”; já no excerto seguinte, o escritor lusi- que escrevia, em longos poemas que seriam publicados de cinco em cinco anos. Morreu tano assumiria o posto que Virgílio ocupou dois anos depois da decisão desse projeto na Divina comédia: “Camões acompanha (CHAVES, 2004, p. 51). o poeta nos infernos” (FAUSTINO, 1985, p. 106); na sequência, o vate quinhentista É notório, portanto, que semelhante estabeleceria um diálogo com o eu-lírico de propósito o distinguia decisivamente do “A reconstrução”; num “Pequeno roteiro” credo literário hegemônico de então. Di- final, lemos enfim textualmente: ríamos mais: Faustino, emitindo a plenos Luís de Camões será o Virgílio de minha pulmões o sopro da utopia, ainda não sa- peregrinação. Fica a meu lado, Luís de Ca- boreara o desencanto de um Haroldo tar- mões, agora. (Tomo as armas que ele pendu- dio, em seu clássico ensaio de O arco-íris rou nos salgueiros e que nunca mais ninguém branco. usou, bem como a lira que ele abandonou para chorar sôbolos rios...) (FAUSTINO, 1985, p. 108). Referências ATAÍDE, Artur Almeida de. O Romantismo resistente e o Em uma palavra: o timbre camonia- Classicismo possível. Recife: Bagaço, 2010. CAMÕES, Luís Vaz de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova no na composição poética do escritor de Aguilar, 2008. O homem e sua hora está longe de figu- CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997. rar um acidente. Trata-se, antes, de uma _____. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspec- tiva, 2006. presença premeditada, de um epicentro CHAVES, Lília Silvestre. Mário Faustino: uma biografia. Belém: a gerar sismos, um dueto de coloraturas. Secult; IAP; APL, 2004. FAUSTINO, Mário. Poesia-experiência. São Paulo: Perspec- E, à maneira de ritornello, a coda volta ao tiva, 1977. _____. De Anchieta aos Concretos (org. Maria Eugênia Boa- introito: numa cena literária em que a fra- ventura). São Paulo: Companhia das Letras, 2003. tura do verso se converteu em status quo e _____. Poesia completa, poesia traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985. em que certa discursividade ganhou ates- FRAGA, Maria do Céu. Camões: um bucolismo intranquilo. tado de óbito, a poética de Mário Faustino Lisboa: Almedina, 1989. LOPES, Óscar; SARAIVA, António José. História da literatura significou desvio e atrito. Não apenas o portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 2010. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século verso tradicional estava, embora redimen- XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. sionado, presente em sua escritura, e não TELES, Gilberto Mendonça. Camões e a poesia brasileira e o mito camoniano em língua portuguesa. 4. ed. Lisboa: somente a composição literária reacendia Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001.

Bandeira: vida & verso

Paulo Franchetti Professor titular aposentado da Unicamp e autor, entre outros, de Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (Editora da Unicamp, 2012), Nostagia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha (Edusp, 2001) e Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa (Ateliê Editorial, 2007).

um artigo de 1940, Sérgio Buar- que há nelas mais importância, maior interes- que de Holanda escreveu que foi se poético.3 Manuel Bandeira “quem primeiro N Quando, muitos anos depois, em 1958, entre nós empregou o verdadeiro verso li- retomou esse texto e o ampliou para ser- vre”. A afirmação tem impacto, mas vale a vir de introdução à obra reunida do poeta, pena notar também que, nesse texto, inte- suprimiu essa formulação, junto com um gra uma concessiva, pois o ponto a afirmar trecho de crônica do poeta que parecia é que, para o poeta modernista (“iniciador apoiá-la: “falamos de certas coisas brasi- do movimento modernista”, tinha escri- leiras como se as estivéssemos vendo pela 1 to Sérgio na Fon-fon, em 1922 ), “não se primeira vez, de sorte que em vez de expri- tornou necessário o abandono dos ritmos mirmos o que há nelas de mais profundo, 2 tradicionais”. isto é, de mais quotidiano, ficamos nas ex- No mesmo artigo, o crítico apontava o terioridades puramente sensuais”. que lhe parecia uma característica marcante Logo mais será interessante retomar da poesia de Bandeira: essa passagem. Mas, antes, registre-se um As imagens raramente obedecem em seus dado de época. O texto de 1940 era uma poemas a uma escolha. As coisas triviais, quo- resenha das Poesias completas. Nesse volu- tidianas, podem valer mais para ele do que as realidades vistosas. E isso não por simplismo me, em que veio a Lira dos cinquent’anos, voluntário, mas certamente pela convicção de já era sensível a diminuição da prevalên- cia do verso livre (essa pedra de toque do 4 1 “Manuel Bandeira”. In: Holanda, Sérgio Buarque de. O Modernismo) no conjunto da obra. Junto espírito e a letra – estudos de crítica literária, vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 144. 3 Id., Ibid., p. 281. 2 “Poesias completas de Manuel Bandeira”. Ibid., p. 277. 4 No que diz respeito ao equilíbrio entre verso livre e ver- A frase é: “... pois apesar de ter sido ele quem primeiro so medido tradicional, a evolução de Bandeira é clara: entre nós empregou o verdadeiro verso livre, não se tor- se em Libertinagem só havia 3 poemas em versos me- nou necessário o abandono dos ritmos tradicionais para didos, contra 35 em versos livres, em Estrela da manhã que nos desse algumas das suas criações poéticas mais há um perfeito equilíbrio, que será rompido em Lira dos audaciosas”. cinquent’anos, em que praticamente dois terços dos 80 • Paulo Franchetti com o lançamento do livro, aconteceu tam- ultrapassar-se a si mesmo pode ser carac- bém a candidatura de Bandeira à Academia terística de vários poetas de estilos e perso- Brasileira de Letras. Nesse contexto, Sérgio nalidades diferentes. Ou seja, esse ultrapas- parecia empenhado em rebater algum hi- sar-se, para ser reconhecido como próprio potético “censor superficial e desatento” desse poeta, deve ser um ultrapassar-se que verberaria como defeito a versatilida- específico, com uma marca pessoal. O que de dessa poesia de metro e de tom vário, Sérgio não explica. reafirmando “a unidade profunda que no A questão que subsiste é que no mesmo entanto subsiste em tudo quanto escreveu texto ele afirma que o verso livre “foi um Manuel Bandeira”. Para fazer frente a esse instrumento bem adequado à sua expressão desafio, buscou – por meio de uma com- lírica” (p. CLXII), e que: paração rápida e algo cruel com Ronald de Quando procura ajustar-se às medidas Carvalho, tomado como exemplo de acade- dos velhos cancioneiros e mesmo às formas micismo poético – indicar a singularidade quinhentistas, o que sucede numerosas vezes, do autor de Libertinagem. Por fim, sem tra- desde seu livro de estreia [...], é como se a ex- zer mais elementos, concluiu: “unidade na pressão lírica de Manuel Bandeira tivesse de súbito encontrado um instrumento congenial variedade: é essa realmente uma das fortes (p. CLIX). impressões que confirma em nós a leitura do volume de Poesias completas”.5 É claro, portanto, que é preciso buscar, Já em 1958, a “unidade superior de além da questão formal, a unidade da obra: toda a sua obra” não parece mais um pro- na particularidade desse impulso lírico que ao blema a exigir demonstração, embora o mesmo tempo encontra no verso livre um ins- aproveitamento da primeira parte do artigo trumento adequado e reconhece nas formas de 1940 ainda traga Ronald como sparring quinhentistas um instrumento congenial. dos verdadeiros modernistas. Mas nem por Aliás, a noção mesma de “obra” termi- não parecer deixa de ser uma questão, para na por ser de alguma maneira relativizada, a qual Sérgio aventa respostas. A primeira quando lemos: delas é que a unidade se daria pelo cons- Ao oposto de certos artífices de nossos tante esforço do autor em “ultrapassar-se a dias, ele [M.B.] não tem e jamais teve a ambi- si mesmo”.6 Esforço esse plenamente rea- ção de objetivar as efusões líricas em alguma lizado e que “nenhum leitor familiarizado construção totalmente independente e bem- -equilibrada. Sua poesia não quer ser um ar- com seus diferentes aspectos deixará de tefato. Exige a presença viva e permanente do reconhecer logo ao primeiro contato”. Mas autor, não apenas à sombra de uma inteligên- isso, é claro, não basta, pois o esforço de cia eficaz; nisso denuncia bem sua qualidade 7 poemas usam o verso tradicional. Apenas como curiosi- lírica, no sentido pleno da palavra dade: na sequência da obra, em Belo belo e Opus 10, a distribuição volta a ser rigorosamente equilibrada; já em Sérgio não desenvolve essa postulação, Estrela da tarde, há amplo predomínio do verso e das formas tradicionais, sendo três quartos das peças em ver- mas talvez aí resida o traço de singularidade so medido, contando entre elas 11 sonetos e 1 sonetilho. dessa poesia, que atravessaria e se sobrepo- 5 Id., Ibid., p. 282. 6 Holanda, Sérgio Buarque de. “Trajetória de uma poe- ria à sua diversidade de registros formais. sia”. In: Bandeira, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2009, p. CLIX. 7 Id., Ibid., CLXI. Bandeira: vida & verso • 81

De fato, se há um ponto de força a partir [...]” (p. CLXIV). E como efeito de leitura do qual toda a poesia de Bandeira se ilumina anotam: “a nossa atenção é despertada é este: a presença viva e permanente do autor. inicialmente pela voz lírica deste Eu, que, A propósito, Sérgio registrou, no texto de ao construir os poemas, nos acompanha a 1958, que: cada passo, dando a cada verso o seu tim- Essa absorção dos acidentes da vida ex- bre e a sua vida” (p. CLXIV). terior no próprio mundo íntimo exprime-se Na sequência, ressaltam “a adesão fer- reiteradamente em toda a obra poética de vorosa à realidade material do mundo” e Manuel Bandeira, mas é sobretudo típica do nela radicam a impressão de “espontânea primeiro livro. naturalidade da sua poesia, que tem a Fiquemos com a primeira parte – “ex- simplicidade do requinte” (p. CLXV), bem prime-se reiteradamente em toda a obra” como a capacidade de “aproximar-se do – e agora juntemos-lhe aquela afirmação de leitor, fornecendo-lhe um acervo tão am- 1940 – a de que as coisas triviais podiam va- plo de informes pessoais desataviados, que ler mais para esse poeta do que as realidades entretanto não parecem bisbilhotice, mas vistosas, e que não são “escolhidas”, no sen- fatos poeticamente expressivos” (p. CLXVI). tido de selecionadas por sua carga poética Esses mesmos pontos tinham merecido a ou seu apelo pitoresco. Por fim, se acrescen- atenção, em 1940, de Álvaro Lins, num bre- tarmos a equivalência que o próprio Bandei- ve artigo que traz algumas das observações ra estabelece entre “o mais profundo” e “o mais agudas que podemos ler sobre a com- mais cotidiano”, podemos pensar que para pleição da poesia de Manuel Bandeira.9 Do Sérgio – e para quase toda a crítica posterior ponto de vista de Lins, a conquista da voz – é isso que permite ao leitor reconhecer a mais pessoal do poeta resulta “da harmonia marca de Bandeira. que ele realizou entre as forças inconscien- O mais profundo no mais quotidiano, tes da inspiração e a força disciplinadora da aliás, talvez não seja a melhor maneira de razão”. Mas o ponto mais importante não é definir o tom predominante nessa poesia. essa tensão, mas o resultado do seu equilí- O mais pessoal no mais cotidiano, a trans- brio: o poeta seria capaz de “uma disciplina formação do mais cotidiano no mais íntimo que atinge o ascetismo e que dá constante- talvez fossem formulações mais adequadas. mente a impressão de uma pobreza francis- De fato, é nessa direção que vai o estudo cana”. “Tem o gosto da pobreza, da solidão, assinado por Gilda de Mello e Souza e An- da simplicidade”. Na sequência, o crítico tonio Candido, em 1966.8 Falam eles ali de propõe que essa pobreza é, na verdade, um dois modos poéticos – adesão ao real e sub- anseio de profundidade, pureza e perfeição. versão dele por deformação voluntária – e Portanto, uma abdicação do supérfluo. Um afirmam: “entre os dois modos poéticos, ou derivativo dessa atitude seria a capacidade os dois polos da criação, corre como unifi- de “exprimir um máximo de poesia num mí- cador um Eu que se revela incessantemente nimo de palavras”.10

8 Souza, Gilda de Mello e Candido, Antonio. “Estrela da 9 Lins, Álvaro. “Crítica literária – Poesia”. In: Bandeira, vida inteira”. Repr. in Bandeira, Manuel. Poesia comple- Manuel. Poesia completa e prosa. Cit., p. CXLV e ss. ta e prosa. Cit., pp. CLXIV e ss. 10 Id., Ibid., p. CXLVII. 82 • Paulo Franchetti

Numa direção contrária ao que propo- Onestaldo de Pennaforte, já em 1936, rão Gilda e Antonio Candido de Mello e incumbiu-se de demonstrar como Bandei- Souza, Lins vai dizer que Bandeira: ra foi, desde os primeiros livros, um expe- É um solitário que exige o nosso esforço, a rimentador de novas soluções para o verso nossa vontade, o nosso despojamento. Só ex- tradicional.12 Na verdade, um experimenta- prime os homens na medida em que esses ho- dor que não raras vezes produzia experiên- mens procurem colocar-se dentro dele. Para cias de acentuado sabor cultista – que no sentir a sua poesia será preciso subir até ao poeta e identificar-se com ele, porque nunca vocabulário de combate modernista pode- descerá para se identificar conosco.11 riam ser classificadas como parnasianas. E o próprio Bandeira discorreu amplamente so- Entretanto, apesar de opostas, creio que bre o seu conhecimento e exercício exausti- são formulações complementares, pois am- vo do verso medido. bas enfatizam a demanda de identificação, Mas é nas suas reflexões sobre o verso li- pelo leitor, do lugar de onde fala o poeta. vre, assim como no seu embate a esse respeito A oposição do ponto de vista, no caso, jus- com Mário de Andrade, que se encontra uma tifica-se porque Álvaro Lins escrevia ainda pista para compreender melhor a construção quando a obra de Bandeira estava em pro- da figura poética de Bandeira e a obtenção do gresso. Os Souzas, escrevendo já 12 anos tom pessoal inconfundível, que lhe permitirá, após a publicação de Itinerário de Pasárga- todo o tempo, manter ao lado da versificação da, representam o momento de leitura em modernista a tradicional – que, com o tempo, que a forma específica de ser da poesia de como já se viu, vai inclusive predominar. Bandeira está solidificada. Ou seja, aquela No Itinerário de Pasárgada (1954), Ban- demanda de identificação da voz pessoal, deira nos diz que: do contorno biográfico que dinamiza a es- O verso verdadeiramente livre foi para tética da pobreza e a escolha dos temas, era mim uma conquista difícil. O hábito do ritmo sentida em 1940 como dificuldade ofereci- metrificado, da construção redonda foi-se-me da ao leitor, gesto aristocrático (para usar corrigindo lentamente a força de estranhos dessensibilizantes.13 a expressão de Lins), mas já na década de 1960 – realizado o milagre da transubs- E também: tanciação – era lida como fait accompli, ou Ora, no verso livre autêntico o metro deve seja, como facilitador da leitura, aproxima- estar de tal modo esquecido que o alexandri- ção ao leitor. no mais ortodoxo funcione dentro dele sem 14 Outro ponto que parece assente na me- virtude de verso medido (p. 39). lhor crítica é a importância do verso livre 12 Pennafort, Onestaldo de. “Marginália à poética de Manuel Bandeira”. In: Bandeira, Manuel. Poesia com- para a libertação do melhor do poeta. Na pleta e prosa. Cit, pp. XCIII e ss. verdade, parece já um lugar-comum afirmar 13 Bandeira, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Ja- neiro: Editora do Autor, 1966, p. 38. que o momento decisivo para a obtenção 14 Retoma aqui Bandeira um ponto de debate com do tom mais característico da poesia de Mário de Andrade, nos primeiros tempos modernistas, quando censura ao poeta paulista o uso de versos de Bandeira seja Libertinagem. cadência tradicional de entremeio com versos livres. Para a compreensão do sentido do verso livre para Ban- deira, são de especial interesse as cartas, de outubro 11 Id., Ibid., p. CXLVI. de 1922, identificadas com os números 5, 6 e 7 neste Bandeira: vida & verso • 83

O ponto a ressaltar é que, nas duas fra- poderíamos acrescentar), há uma conquista ses, o verso medido surge como uma forma de objetividade: de sensibilidade. Ou talvez possamos dizer, A realidade [...] só se deixa captar, por sua para maior clareza, um condicionante da vez, de modo pleno, mediante um recurso à forma de sentir ou apreender a realidade deliberada dissolução dos compassos e medi- das tradicionais, à ruptura de todas as conven- (pelo poeta) e um filtro a moldar a percep- ções formais e estéticas.16 ção do leitor. Sérgio Buarque já havia apresentado Portanto, para Sérgio, a liberdade não é essa questão de modo bastante incisivo. No evidentemente uma conquista ou um obje- seu texto de 1940, quando atribui a Bandei- tivo em si, mas uma condição de acesso à ra o “verdadeiro” verso livre, o que tem em realidade, sem o filtro da sensibilidade im- mente é que ele permite “abandonar uma posto pelas formas tradicionais: “Liberdade forma impessoal já amaciada pela usura”. E e objetividade tornaram-se termos rigoro- isso, para Sérgio, vale tanto para a impes- samente correlatos”. Esse é um ponto im- soalidade das formas tradicionais quanto portante para Sérgio. Tanto que, em outro para a impessoalidade das inovações, como contexto, num artigo de 1950, usando uma o verso livre generalizado a partir do Mo- passagem de I. A. Richards, condena os dernismo – em contraste com o qual o de poemas que não conseguem violentar as ex- Bandeira seria tão “verdadeiro” quanto, pectativas comuns do tempo: “examinados concomitantemente ou depois, a sua poe- nos seus pormenores, revelam uma imper- sia medida. De fato, num artigo de 1950, o sonalidade extrema, uma absoluta ausência crítico escreve: de caráter individual, seja no ritmo, seja no Os poemas que não nos oferecem a menor fraseado” (p. 248). E por fim, citando o au- aspereza, a mínima resistência, porque evocam, tor americano, aponta para pior efeito de através de palavras-chave, do timbre e até do sentido: “Poderiam ter sido elaborados por ritmo, a imagem do já visto, sentido, assimilado uma comissão de escritores”.17 Bandeira, e geralmente aprovado, tendem sem dúvida a encontrar, de parte dos críticos indolentes, uma nesse caso, é sempre o contraexemplo re- aceitação mais pronta [...] Pode-se dizer que se ferido: o poeta, ao longo da sua carreira, trata, aqui, de uma aceitação adquirida, pree- faria o esforço de proteger e manter a sua xistente e originada em sugestões estranhas ao individualidade contra “a perspectiva des- poema. O resultado é que uma interpretação sas reações” (p. 248). automática vem a tomar a dianteira sobre o Na sua difícil conquista do verso livre, exato valor do contexto...15 um dos faróis de Manuel Bandeira foi um Daí a sua postulação, em 1958, de que texto que ele refere várias vezes: “Em bus- ao eliminar o filtro do ritmo tradicional ca do verso puro”, de Pedro Henriquez- 18 (e da disposição anímica a ele vinculada, -Ureña.

16 Idem. “Roteiro de uma poesia”, cit., p. CLVI. volume: Moraes, Marcos Antonio de (Org.). Correspon- 17 O espírito e a letra – estudos de crítica literária, vol. dência – Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São 2. Cit., p. 248. Paulo: Edusp, 2001. 18 Reproduzido em UREÑA, Pedro Henriquez-. Estudios 15 Holanda, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra – es- métricos. Obras completas, Tomo III. Santo Domingo: tudos de crítica literária, vol. 2. Cit. 247-8. Secretaria de Estado de Cultura/Editora Nacional, s/d. 84 • Paulo Franchetti

A radicalidade do ensaio de Ureña resi- esse o único traço distintivo do “verso puro”, de na sua identificação do ritmo como pura seria o discurso corrido, cuja divisão em li- repetição, mas não porque no seu interior nhas não busca a marcação de pausas capa- se repita este ou aquele elemento, nesta ou zes de definir uma série rítmica.21 naquela ordem ou posição, como o acen- Outro ponto que deve ter encontrado to ou a duração. Isso, para ele, são atua- ressonância em Bandeira, embora ele não lizações históricas de uma fórmula ideal. o refira diretamente, é que, para Ureña, no O verso, em sua pureza, se define como tal primeiro pós-guerra, o ideal do verso puro por ser uma unidade rítmica dentro de uma caminhava junto com outros ideais de pure- série. Uma unidade rítmica, portanto, que za e reconstrução por meio da radicalidade, não só integra uma série, mas é definida da recuperação da simplicidade: por ela. Uma unidade rítmica que, apesar Si es verdad que nuestro tiempo cava has- de definida como tal, não tem identidade ta llegar a la semilla de las cosas para echarlas rítmica quando isoladamente considerada, a que germinen de nuevo y crezcan libres; si el empeño de simplificación y de claridad toca “não aceita apoios rítmicos exteriores; se a los fundamentos de los valores espirituales, contenta com o impulso íntimo de seu voo y del valor económico, y de la actividad polí- 19 espiritual”. tica, y de la vida familiar, ¿por qué no ha de Manuel Bandeira fez um bom resumo tocar a las formas de expresión? Reducido a su desse ensaio de Ureña na conferência “Poe- esencia pura, sin apoyos rítmicos accesorios, el sia e verso”,20 e interpretou corretamente o verso conserva intacto su poder de expresar, seu anseio e conceito de “verso puro”, ao su razón de existir. (p. 463) escrever no Itinerário de Pasárgada aquela Além de Ureña, outro escritor, hoje reivindicação de que mesmo o verso medi- pouco lembrado entre nós, teve marcante do eventualmente inserido num conjunto presença na reflexão de Bandeira sobre a de versos livres não deveria ser percebido questão do verso: Carlos Vaz Ferreira. O tí- como tal, mas sim como um fragmento tulo de seu trabalho mais conhecido (Sobre de fala comum ou como elemento que só la percepción métrica22) será retomado pelo significa pela posição na série e não pela poeta numa crônica de 1942: Percepção associação a uma disposição de espírito métrica.23 O que Bandeira encontra nesse “poética”. Rigorosamente falando, nos termos de 21 A propósito, para Ureña a prosa não se confunde Ureña adotados por Bandeira, o verso re- com a linguagem falada. Aliás, para ele, a última proe­ za do desenvolvimento da prosa é justamente a sua almente “puro”, cujo ritmo é determinado imitação convincente da linguagem falada. A prosa, tal exclusivamente pelas pausas de fim de ver- como a entende, é uma derivação do verso. Ou seja, um discurso que perdeu ou negou a segmentação por so, sem qualquer outro apoio de recorrên- meio de pausas “arbitrárias” para compor séries rítmi- cia, poderia ser entendido (uma vez que é cas (Ureña, Op. cit., p. 465-7). 22 Ferreira, Carlos Vaz. Sobre la percepción métrica. determinado apenas por essas pausas) como Barcelona: Imprensa Elzeviriana, 1920. A publicação discurso dividido em linhas. Já a prosa, sendo em livro, na verdade, é apenas a republicação isolada em volume, com correção de gralhas, do texto que saiu originalmente em outro livro do autor, Ideas y observa- 19 Ibidem, p. 464. ciones, de 1905. 20 Bandeira, Manuel. Poesia completa e prosa. Cit., 23 Bandeira, Manuel. Crônicas inéditas, vol. 2. São Pau- p. 1.184 e ss. lo: Cosac Naify, 2009, p. 352. Bandeira: vida & verso • 85 trabalho de 1920 é algo em que ele mesmo Mas o que de fato interessa aqui é que Ban- se reconheceu: deira, na sua crônica, afirma dois pontos: o Aquele espírito de compreensão que se primeiro é a proposição de que: funda no conhecimento da boa tradição alia- Assim como se pode falar de uma sintaxe do à curiosidade de novas formas, desejadas ideo­lógica, se poderia também falar de uma não para destruição das velhas mas para am- métrica ideológica, que, levando em conta pliá-las e completá-las. certos movimentos da alma, ousa quebrar num verso o ritmo geral do poema para o con- O ponto central do livro de Vaz Ferreira formar ao ritmo interior que o inspira (p. 353). é a afirmação de que a percepção métri- ca pelo ouvinte ou leitor é uma disposição O segundo é, por meio da citação que ativa. Que há uma forma de ouvir versos e encerra a crônica, afirmar que o verso total- uma forma de ouvir prosa. E que a forma mente livre: de ouvir versos permite, por exemplo, que Es tendência buena, natural, legitima um mesmo verso pronunciado em segmen- (siempre que sea además, no em lugar, de la versificación reglada, y en los casos en que tos por 3 atores (e interrompido ainda por responda más a necesidad espontánea que a um toque de clarim) seja organizado, pelo deliberado propósito)”.27 ouvinte, como um perfeito decassílabo.24 E é também essa forma de ouvir que permi- Num texto notável dos anos de 1960, te, segundo Vaz Ferreira, que numa dada Wilson Martins desenvolve a tese de que estrofe as sinalefas não se façam na leitura, Bandeira, “o maior poeta brasileiro contem- mas que o ouvinte as processe como tais, porâneo”: “se tem ouvido poético”, para recompor Jamais esteve, na verdade, no centro das versos harmoniosos.25 revoluções literárias, nem mesmo nas suas linhas de força predominantes. Ele sempre Para Bandeira, na inflexão já observada foi um poeta ‘paralelo’ e, em termos de pura para a predominância do verso medido e apreciação estética, eliminando tanto quanto das formas tradicionais a partir de Lira dos possível do nosso espírito as considerações, cinquent’anos, o ensaio do autor uruguaio mesmo inconscientes, de história literária, po- tem agora a mesma importância que teve de-se pensar que uma das suas singularidades o do dominicano na época do verso livre.26 foi a condição necessária da outra: ele pôde ser sucessivamente ‘o maior poeta contempo- 24 O verso em questão é este, de Zorrilla, com a devida râneo’ na medida mesmo em que não era o marcação teatral: ‘poeta mais típico’ ou mais representativo de Garcia – No puede más mi corazón de fiera. cada momento.28 sálvese, sí... (Don García va a salir de la tienda, en cuyo objetivista e mecânico dos legisladores do Parnaso”, em momento suena la señal de un agudo clarín. Don 1942 – no período, portanto, do que depois se conven- García se detiene.) cionaria denominar Geração de 45. Porque a verdade é Arjona – el clarín! que o livro de Vaz Ferreira, após as postulações iniciais Pueblo – Um caballero! que são de fato estimulantes, perde-se numa minuciosa 25 Ibidem, pp.14-5. e algo preciosa análise da versificação francesa, sem le- 26 “O ensaio de Carlos Vaz Ferreira pode colocar-se entre var muito adiante aquilo que tão enfaticamente propõe os mais notáveis do gênero e ao lado do de Pedro Hen- como ponto de partida da sua reflexão. riquez Ureña ‘En busca del verso puro’” (p. 352). Essa 27 Bandeira, Manuel. Crônicas inéditas, vol. 2. São Pau- afirmação, aliás, permite ver como a questão do retorno lo: Cosac Naify, 2009, p. 356. à metrificação tradicional era importante para Bandeira, 28 Martins, Wilson. “Poeta contemporâneo”. In: Ban- e como ele sentia ser necessário confrontar “o contexto deira, Manuel. Poesia completa e prosa, cit. p. CLXXXIII. 86 • Paulo Franchetti

O que Martins surpreende nessa formu- do poeta termina quase sempre definida a lação é justamente a nota mais pessoal de partir dos seus poemas em verso “verdadei- Bandeira, que se realiza de várias maneiras. ramente livre”, de Libertinagem em diante. Pela inserção da sua biografia como ele- Ao mesmo tempo, nosso vocabulário mento mítico a organizar não só as imagens crítico parece ter tido alguma dificuldade principais da sua poesia, mas ainda a moti- de lidar – especialmente nos tempos pós- var as escolhas estilísticas; pela sua recusa -new criticism – com aquilo mesmo que em ceder às tendências dominantes, mas caracterizaria o tom próprio de Bandeira, sempre a elas respondendo com simpatia especialmente nos poemas de recorte mais ou curiosidade (a recusa ao automatismo pessoal, ou melhor, mais vinculados à ima- seja do verso medido, seja do verso livre po- gem de “poeta menor”, tísico profissional, limétrico modernista; o retorno às formas o menino da vida que poderia ter sido e que clássicas a partir dos anos 40; a prática de não foi. poemas concretos na década seguinte). Apenas como exercício de deslocamen- Desses fatores, entretanto, o que pare- to de perspectiva, poderíamos trazer aqui ce mais relevante é a vinculação obra/vida, um outro referencial teórico e crítico, que no sentido de fazer de cada escolha e de não era desconhecido de Bandeira. Trata-se cada momento literário uma resposta a da poesia de haicai. um anseio de realização ou a uma reação O haicai, de uma forma ou outra, esteve a uma fatalidade. Essa vinculação, que é presente ao longo do Modernismo. E mes- lentamente construída ao longo da poesia mo antes. Na apresentação do Pau-Brasil, e da prosa publicada – estrategicamente como se sabe, Paulo Prado cita um terceto exposta como as vicissitudes de um “poeta de um poeta francês, tomando-o por haicai menor”, isto é, que não se ergue acima dos japonês, para em seguida falar da poética limites da própria individualidade –, tem capaz de “obter, em comprimidos, minu- o momento de esplendor em Itinerário de tos de poesia”.29 Luis Aranha, por sua vez, Pasárgada, obra sem semelhante em nossa tem haicais embutidos nos longos e ousa- literatura, pelo que realiza de fusão vida-e- dos poemas, tão maltratados por Mário de -obra, demonstração de competência téc- Andrade. E , em que nica e potencialização do arsenal imagético pese seu contato com a colônia japonesa, de origem particular. difundiu no país um tipo de haicai acrescido Para toda a crítica posterior à publicação de um adorno precioso de títulos e rimas, desse livro (1954), será ele referência inelu- uma das quais interna.30 Mas outros culto- dível e guia preferencial na incursão no uni- res houve da forma, um dos quais foi Olde- verso poético de Bandeira. E talvez por isso gar Vieira.31 mesmo, dado o peso que nesse depoimen- 29 A propósito, ver: Franchetti, Paulo. “Um certo poeta to se dá à libertação pelo verso livre, seja japonês”. In: Estudos de literatura brasileira e portu- um pouco sensível em toda parte um certo guesa. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. 30 Sobre o haicai guilhermino, ver: “Guilherme de Al- apagar das luzes sobre a produção posterior meida e a história do haicai no Brasil”. In: Franchetti, de Bandeira, especialmente sobre a última Paulo, Op. cit. 31 Vieira, Oldegar. Folhas de chá. São Paulo: Cadernos coletânea, Estrela da tarde. A “maneira” da Hora Presente, 1940. O livro traz ilustrações de Anita Bandeira: vida & verso • 87

Numa crônica de maio de 1943, intitu- para produzir o efeito de sabi, “o essencial lada “Hai-Kais”, Bandeira discorre breve- é a atitude filosófica do poeta, que pode mente sobre o haicai japonês, elogia o livro apreciar a beleza da simplicidade natural, Folhas de chá, de Vieira, por conta de dois nascida da experiência da vida humana”. Já haicais que transcreve e, por fim, apresen- shiori seria a expressão harmoniosa de con- ta sua tradução de cinco haicais de Bashô, junto, enquanto hosomi significaria “sutile- quatro dos quais depois incluiria em livro.32 za refinada do pensamento do poeta que A fonte desse primeiro contato documen- chegou àquele estado de espírito cheio de tado de Bandeira com o haicai japonês é o fineza e quietude”. livro Matsuo Bashô et disciples – haïkaï, de Kuni Matsuo apresenta, nesse texto in- Kuni Matsuo e Émile Steinilber-Oberlin, de trodutório, uma visão muito moderna, tri- 1936.33 E pode-se imaginar com que pra- butária do restaurador do haicai, Masaoka zer terá lido na apresentação de Steinilber- Shiki. Nos tratados da escola de Bashô, po- -Oberlin trechos como este, sobre Bashô: rém, encontramos esses termos – e outros E a pobreza – como em São Francisco – é igualmente importantes – definidos de uma um tesouro para ele, o único que permite, ao forma que parece mais abrangente. No que Poeta, os contatos íntimos com a natureza, a mais diretamente interessa à caracterização riqueza das confidências profundas e o segre- do haicai, mas não só – pois também se do de uma vida depurada. aplicam a outras artes – são dois: wabi e o Nesse volume, Kuni Matsuo, além dos já referido sabi. comentários interpretativos (dos quais um Sabi, segundo os tratados, é a qualida- é reproduzido na crônica), apresenta um de de poemas caracterizados pelo clima de resumo dos termos-chave na caracteriza- solidão e de tranquilidade: um texto tem ção da arte do haicai, segundo Bashô: sabi, sabi quando exprime a calma, a resignada shiori e hosomi. Embora simplifique bastan- solidão do homem no meio da beleza bri- te o sentido de sabi, que dá como sinôni- lhante, da grandeza do universo, como nes- mo de sobriedade, ainda assim explica que, te haicai de Kobayashi Issa: Em solidão, Malfatti e uma introdução em que o autor apresenta as Como a minha comida – características do haicai. Na época, teve grande difu- 34 são. Talvez também porque tenha sido objeto de algu- E sopra o vento do outono. ma publicidade, pois concorreu, junto com Viagem, de Cecília Meireles, ao prêmio da Academia Brasileira de Wabi também conota solidão, mas des- Letras, em 1938. Um depoimento do autor, recolhido ta vez com referência ao estado emocional por Carlos Verçosa, vale a pena ser lembrado: quando Vieira visitou Bandeira, ainda na década de 40, este lhe da vida do eremita, do asceta. Designa um mostrou uma estante e disse: “É nessa estante que eu calmo saboreio dos aspectos agradáveis da guardo os livros de minha preferência, que eu estou lendo e gosto de reler sempre. O seu livro tá aí.” (Oku: pobreza, do despojamento que liberta o es- viajando com Bashô. Salvador: Secretaria de Cultura e pírito dos desejos que o prendem ao mun- Turismo, 1996, p. 383). 32 Bandeira, Manuel. Crônicas inéditas 2, cit., p. 384-8. do. É portadora de wabi a arte que, com 33 O livro se encontra disponível em https://docplayer. fr/50438051-Matsuo-basho-et-disciples-haikai-traduc- tion-de-kuni-matsuo-et-emile-steinilber-oberlin-1936. 34 Tradução de Elza Taeko Doi e Paulo Franchetti. In: html e também é oferecido gratuitamente na Amazon, Franchetti, Paulo (Org.) Haikai – antologia e história. para Kindle. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. 88 • Paulo Franchetti o mínimo de elementos, significa apenas o subordina todo o resto, é a sua capacida- suficiente para que se realize o momento de de de realizar as qualidades indicadas pelos integração entre o homem e o que o rodeia, termos que vimos expondo. como nestes versos: Ora, isso tem implicações diretas na forma específica de recepção do haicai. E Àqueles que só se interessam também, por consequência, na forma de Pelas flores de cerejeira Eu gostaria de mostrar a primavera: sua produção, porque, quando lemos os No capim, no meio da neve, comentários tradicionais japoneses (como Num vilarejo de montanha.35 aquele que Bandeira leu e transcreveu na sua crônica), o que vem para primeiro pla- Essa maneira de perceber e avaliar um no não são as qualidades técnicas do hai- texto não é, por certo, congenial à nossa cai, mas o contexto (real ou imaginário) da tradição. Mas o sentimento que produz e as sua produção. Alguém já definiu o poema cordas emotivas que toca existem, é claro, tradicional japonês, o tanka, de uma ma- entre nós e formam como um continuum neira que serve perfeitamente ao haicai. em tom menor (para glosar o tema) ao lon- Aquele seria “cinco linhas em busca de um go da literatura ocidental, como em todos contexto”;38 este, três – portanto talvez os seus livros mostrou, com muitos exem- ainda mais necessitado de contexto. plos, R. H. Blyth.36 O que impressiona em muitos comen- A avaliação de um bom haicai ou de tários é não só a profusão dos detalhes co- uma boa obra de arte (para forçar um pou- nhecidos ou imaginados para o momento co o uso deste termo para designar uma em que o poema é feito, mas também o sessão de haicai ou de chá) não se restrin- que parece mais relevante: a relação entre ge, portanto, ou não privilegia o aspecto de o que o poema diz ou faz e o que se espe- realização técnica. A autonomia do objeto raria, como reação banal, automatizada, de estético é algo que parece muito distante alguém naquela situação. do haicai de Bashô. Não que a técnica e seu E agora, depois dessa breve incursão no domínio não sejam importantes. São, e há universo do haicai, podemos regressar a Ma- todo um longo treinamento para o domínio nuel Bandeira: a questão que este paralelo dos passos essenciais de cada arte.37 Mas buscou destacar é a da leitura contextuali- o distintivo do haicai, o objetivo a que se zada a partir de uma situação específica de produção do texto poético. Porque é essa 35 O poema é de Fujiwara Ietaka (1158-1237) e foi ci- tado por Sen no Rikyú (1521-1591) – o maior mestre situação que permite, do nosso ponto de do Cha no yú – como exemplo do espírito do wabi-cha vista, o maior rendimento da poesia de Ban- (tipo de cerimônia do chá em que se utilizam objetos vulgares, porém escolhidos cuidadosa e significativa- deira, especialmente aquela em que, para mente pelo mestre da cerimônia). A tradução é de Elza retomar a formulação de Sérgio Buarque de Taeko Doi e Paulo Franchetti. 36 A propósito, ver Blyth, R. H. A history of haiku; Haiku Holanda, “liberdade e objetividade torna- (4 vol.) e especialmente Zen in English literature and ram-se termos rigorosamente correlatos”. oriental classics. Tokyo: The Hokuseido Press, 1942. 37 Entretanto, embora não possamos aqui discutir o Ou, para falar com Bandeira, aquela em que seu alcance e implicações, é também célebre a frase de o mais profundo é o mais cotidiano. Bashô, na qual o mestre afirma que uma criança de dez anos tem mais possibilidade de fazer um bom haicai à 38 Miner, Earl R. An introduction to Japanese court poe­ sua maneira do que qualquer letrado muito instruído. try. Stanford: Stanford University Press, 1968, p. 28. Bandeira: vida & verso • 89

Nesse sentido, parece muito precisa a de feição clássica, sejam aqueles, por fim, percepção de Álvaro Lins, já referida: Ban- em que o poeta se aproxima das tendên- deira exige do seu leitor (e cria, ao longo cias dominantes no tempo, como a poesia da obra, as condições para isso) uma lei- neomodernista dos anos 1940 ou a poesia tura contextualizada, uma leitura na qual concreta na década seguinte. os fragmentos do quotidiano, o grito de Para a construção desse lugar especial desespero ou a expressão crua do desejo na literatura e no imaginário brasileiro, o sejam vistos não em si mesmos, mas a par- verso livre foi de importância central, pelo tir de um ponto de vista, de um contexto que implicou de conquista do coloquial, pessoal. O que não quer dizer, de forma do prosaico, do corriqueiro – daquilo en- alguma, diminuição da potência estética fim que foi potencializado ao máximo na ou emotiva. Pelo contrário, é essa pode- definição da figura autoral. Mas quando rosa configuração da figura autoral que consideramos em conjunto a obra poética impede que, como o porquinho-da-índia, de Bandeira, recusando-nos a recortá-la de o leitor possa fazer nenhum caso das suas modo a obtermos um S. João Batista do 39 ternurinhas. E é ela que redimensiona, no Modernismo, ou, pior, um modernista aos conjunto da obra – por meio de uma con- poucos mitigado, que no final da vida per- tinuidade reafirmada até mesmo pela práti- deu o pique e o pulso, talvez tenhamos a ca que o poeta manteve de sempre incluir tentação – no que toca ao vulto inteiro do nos livros publicados poemas pertencentes poeta – de concordar mais uma vez com a outras fases, ou mais condizentes com Álvaro Lins: “só aparentemente é que o os que vieram no livro anterior –, sejam os Sr. Manuel Bandeira é um poeta ‘fácil’. Na poemas de extração simbolista, sejam os realidade, muito mais difícil do que o mais 39 De fato, se não surgissem vinculados a essa forte hermético dos nossos grandes poetas”. Tão figura autoral que os dinamiza e contextualiza num amplo universo afetivo e cultural, poemas como “Por- difícil, poderíamos dizer, e quase sempre quinho-da-índia”, “Andorinha” e alguns outros do tipo tão transparente, quanto um bom mestre provavelmente só teriam a oferecer ao leitor uma singu- lar dose de pieguice. de haicai.

Um pouco de Grécia na literatura nacional

Sérgio Alcides Professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Armadilha para Ana Cristina e outros textos sobre poesia contemporânea (Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2016).

ra uma vez o identitarismo da nação. O império da identidade – do latim iden- Foi há muito, muito tempo. Ele tam- titas, no sentido de “mesmitude” – um dia E bém se espalhou como um fenômeno conquistou até a própria Grécia, que segun- global – internacional, aliás. E também pre- do o lugar-comum seria o “berço da civili- tendeu determinar o que podia e o que não zação” e a sede simbólica de um pretenso podia ser considerado “nacional” na litera- universalismo. Ironicamente, era um exem- tura. Em várias partes do mundo, sobretudo plo de “país novo” – mais novo que o Brasil. em ex-colônias e ex-possessões das potên- Emergira em 1832, depois de uma guerra cias da Europa e do Oriente Próximo, sábios de independência, com a qual se libertara e doutores se esforçaram para chamar a de três séculos de domínio turco-otomano. atenção do público para a poesia “de auto- Guardadas as baionetas, viria a vez das ca- ria nacional”, o romance como expressão netas. Caberia a estas esgrimir o que cons- do “lugar” da nacionalidade. Muitas con- tituiria a nova “helenicidade”, usando a ferências, artigos e teses dedicaram-se, em mesma tinta importada usada bem longe academias ao redor do globo, a investigar o da Acrópole pelos poetas da “brasilidade” não-sei-quê da identidade que se levantava – ainda que esses termos só fossem inven- contra os abusos da literatura estrangeira. tados cerca de um século depois.2 Admirava-se Goethe, o genial intérprete do No Brasil, nem mesmo a integridade ter- espírito alemão. Mas não muita gente dava ritorial estava assegurada, quando a ideia ouvidos a Goethe, o idealizador dessa qui- Humanism and Democratic Criticism. Nova York: Co- mera, a Weltliteratur (algo como “literatura lumbia UP, 2004, pp. 85-118. mundial”, ou antes, “literatura-mundo”).1 2 Em grego, hellenikótita (“helenicidade”) é um neolo- gismo da década de 1920; cf. Bruneau, Michel. “Hellé- nisme, hellinismós: nation sans territoire ou idéologie?” 1 Ver: Auerbach, Erich. “The Philology of World Lite- Géocarrefour 77, n. 4: 2002, p. 322; quanto à “brasi- rature”. In: Auerbach, Erich. Time, History and Litera- lidade”, o Houaiss data o termo de 1927; Houaiss, An- ture. Selected Essays of… Edição e prefácio de James tonio & Villar, Mauro (Orgs.). Grande dicionário Houaiss I. Porter. Tradução de Jane O. Newman. Princeton NJ: da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Antonio Princeton UP, 2014, pp. 253-65; e Said, Edward. W. “In- Houaiss e Objetiva, 2001; disponível em https://houaiss. troduction to Erich Auerbach’s ‘Mimesis’”. In: Said, E. uol.com.br – acesso em 31 de agosto de 2020. 92 • Sérgio Alcides romântica da nação se estabeleceu em cír- massacre dos gregos anatolianos pela Tur- culos dominantes, durante a Regência. Lite- quia, e depois o drama dos refugiados que ratos da Corte aprendiam com sumidades se salvaram atravessando o mar Egeu.4 Es- francesas o valor das palmeiras e a essência tes viveriam a experiência paradoxal de um das cascatas. A visão dos pastores da Arcá- exílio grego dentro da Grécia – como “uns dia era uma apropriação ilegítima: os neo- desterrados” em sua terra, mais ainda que gregos que se ocupassem do bucolismo an- os brasileiros pressupostos na famosa frase tigo. E eles ainda tinham seus hoplitas, no de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes bojo de tantas ânforas desenterradas. Nós do Brasil.5 – isto é: os brasileiros – deveríamos buscar Os dois casos exemplificam bem as difi- o espelho dos “nossos” próprios aboríge- culdades de fixação do local da identidade, nes, os arqueiros infalíveis, em suas pirogas. que seria um requisito importante, hoje, Pouco importava que, nas cidades de todo para a teoria pós-colonial.6 Embora um de o país, a população escravizada fosse muito seus formuladores frise bem que “precisar mais visível, negra e parda, levando nas cos- o lugar de onde se fala não implica exclu- tas o fardo da má-consciência dos senhores. sivamente uma determinação geográfico- O “nacional” não era isso: ocultava-se nas -cultural”,7 mesmo a situação do sujeito se matas, fugira para os sertões. Além disso, o apresenta incerta, quando se supõe que ele genocídio dos povos nativos podia ser con- é uma coletividade (e não um indivíduo), na venientemente atribuído aos ex-colonizado- falta de uma coesão segura, seja no espaço, res portugueses. Já expulsos de suas terras, seja na cultura. Quanto à enunciação, sobre- os índios sofreriam agora o esbulho de sua vém a suspeita: trata-se de uma coletividade imagem, convertidos em símbolo dos atuais que fala através de um representante, ou an- sitiantes, que a partir do Sete de Setembro tes de um indivíduo que se arvora falar por seriam informados do seu pertencimento a outros, impondo a todos suas convicções? uma nação brasileira (e não portuguesa). Rompidas as “grandes narrativas” da Já o território grego alcançado em 1832 modernidade, inclusive a da formação nacio- não dava conta de abrigar toda a nação nal, outras pautas identitárias se sucederam, imaginada, que uma antiga diáspora espa- lhara bem além dos Bálcãs, pelo Norte da 4 Ver: Doulis, Thomas. Disaster and Fiction. Modern Greek Fiction and the Asia Minor Disaster of 1922. África, na península Anatólia e ao redor Berkeley CA: University of California Press, 1977. do Mar Negro.3 O cultivo da identidade 5 “(...) somos ainda hoje uns desterrados em nossa ter- ra”. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São nacional praticamente impunha o projeto Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31; ver também: político de uma expansão, mas o sonho Clark, Bruce. Twice a Stranger. The Mass Expulsions that Forged Modern Greece and Turkey. Cambridge MA: de uma “Grande Grécia” não demoraria Harvard UP, 2006. a se tornar um pesadelo, em 1922, com o 6 Ver, por exemplo, o conceito de locus of enunciation em Walter D. Mignolo. The Darker Side of Renaissan- ce. Literacy, Territoriality and Colonization. Ann Arbor 3 “Havia mesmo uma nação grega em 1832?”, pergun- MI: University of Michigan Press, 2003, pp. 1-25; além ta um historiador; Gallant, Thomas W. The Edinburgh de Homi K. Bhabha. The Location of Culture. London: History of the Greeks, 1768-1913. Edimburgo: Edin- Routledge, 1994. burgh UP, 2015, ebook. Ver: Beaton, Roderick. Greece. 7 Achugar, Hugo. La biblioteca en ruinas. Reflexiones Biography of a Modern Nation. Chicago: Chicago UP, culturales desde la periferia. Montevidéu: Trilce, 1994, 2019, pp. 1-14. p. 26. Um pouco de Grécia na literatura nacional • 93 seguindo roteiros parecidos. A crítica foi se- exemplo, o crítico mexicano Antonio Ala- vera com o essencialismo atribuído à nacio- torre, especialista na poesia da época mo- nalidade, mas nem sempre atentou para o derna, inclusive a chamada “novohispana”, mecanismo dessa atribuição, em si mesmo. escrita em contexto colonial. Diz ele: Um crítico pós-moderno da “grecocidade” Nunca me preocupou a maneira como o chegou a descrever o problema de modo enorme e generalíssimo substantivo literatura mais abrangente: sofre delimitação ou especificação por obra do adjetivo nacional.10 Como qualquer outra noção de identida- de, trata-se da ideia de fronteiras fixas e de Para Alatorre, em princípio, a própria lite- encerramento: exclui o que não for autêntico ratura já era por si só um lugar de enuncia- e verdadeiro, o não grego, e retrata como uni- dade autotélica o que é original e eternamen- ção, “enorme e generalíssimo”. Aliás, mais te helênico.8 que um lugar (um tópos), ela era toda uma tópica, um continente de lugares-comuns Se é verdade que nunca o lugar da enun- transmitidos por uma tradição que trans- ciação se mostra neutro, fica implicada nele bordava da Europa para o Oriente e o Novo uma disputa. Mas nem sempre os contendo- Mundo, ou reclamados dessa tradição por res a explicitam, sobretudo quando se sentem letrados de todas as nacionalidades, aonde certos demais do chão que têm debaixo dos quer que ela chegasse. Por isso Alatorre dizia pés. E assim podem ter uma surpresa ao li- que as implicações identitárias nacionais: darem com a ficção moderna, cuja especiali- Podem significar muito desde pontos de dade (em prosa e verso) é justamente “puxar vista que não são o da literatura, mas do pon- o tapete”, desestabilizar as certezas, repropor to de vista da literatura não significam pratica- mente nada.11 a consideração do mundo e da experiência.9 A marca de nascença da questão da “li- Ocorre que, como Alatorre bem sabia, teratura nacional” é o pressuposto pouco ninguém fala simplesmente desde um só ou nada problematizado de que o lugar de lugar – pelo menos não em nenhuma par- onde se escreve é a nacionalidade – dentro te onde os tempos modernos tenham de- ou fora de seu território geográfico-político. sembarcado. Assim, escrever um poema em O conceito é muito recente, de procedên- Roma ou na Cidade do México não consti- cia romântica: só começou a ser esboçado tui exatamente a mesma experiência – ain- na segunda metade do século XVIII, junto da que isso nos séculos XVII ou XVIII não com a própria concepção de “literatura” da tivesse tanto a ver com a nacionalidade, e modernidade. Não estranha que essa ideia sim com a diferença colonial. E, ao lugar pareça embaraçosa para quem hoje se dedi- de enunciação metropolitano ou periférico, ca a manifestações literárias anteriores. Por juntava-se um outro, mais abstrato: a pró-

8 Lambropoulos, Vassilis. Literature as National Institu- pria tradição da cultura letrada. Esta abar- tion. Studies in the Politics of Modern Greek Criticism. cava a ambos, com a cidadania espiritual Princeton NJ: Princeton UP, 1988, p. 100. 9 Ver: Iser, Wolfgang. The Fictive and the Imaginary. Charting Literary Anthropology. Baltimore: The Johns 10 Alatorre, Antonio. “En torno al concepto de literatu- Hopkins UP, 1993, p. 4: “(…) uma característica básica ra nacional”. Diálogos: Artes, Letras, Ciencias humanas de cada ato [de ficcionalização] é que ele cruza algum 19, n. 2, México, mar.–abr. 1983, p. 6. tipo de fronteira”. 11 Idem. 94 • Sérgio Alcides

(por assim dizer) de uma “república das se acolher à sombra do projeto imperial, rei- letras”, um lugar-comum, idealizado como vindicando precisamente o critério de uma uma espécie de meritocracia cosmopolita.12 nação brasileira. O autoencerramento da Portanto, são pelo menos dois lugares de identidade ocultava de seus proponentes o fala: um chão de terra, um chão de letras provincianismo que regressava pela porta – nenhum tão firme quanto seria desejável. dos fundos: escrevendo em Paris, onde era A sobreposição era tensa, contraditória, estudante, o jovem poeta brasileiro Gonçal- movediça. Em todas as partes. Porém, mais ves de Magalhães criticava o recurso à am- ainda nas periferias coloniais dessa repúbli- bientação “grega” na poesia luso-brasileira ca imaginária, onde a precariedade de suas – mas nada sabia sobre a recente revolução instituições se mostrava ainda maior. balcânica que transcorria na mesma época, No século XIX o critério nacional se ex- na qual perdera a vida um dos ícones literá- pandiu e formou seu próprio império, no rios de seu tempo, certamente metropolita- qual o aparelho político do Estado-nação no: Lorde Byron. era apenas uma espécie de pretensa me- Para o futuro Visconde do Araguaia, o trópole, com sua aspiração à soberania, problema parecia simples: se a nação é inde- nem sempre concedida pelas realidades pendente, e se a literatura é da nação, então objetivas. Mas seria arriscado afirmar que a literatura também deve ser independente, nessa expansão ele realmente conquistou como coisa nacional. Uma concepção meta- também a literatura entre seus territórios, física da nacionalidade inspira seu manifesto junto com a economia, as finanças, o sis- romântico de 1836, com a tentativa não pro- tema tributário, o direito, a educação e o blematizada de reduzir o lugar de enuncia- monopólio da força. Os exemplos de Lorde ção literária a um único plano fatal: a pátria, Byron, Baudelaire e Flaubert denotam uma identificada com o território do Império, a despeito das ameaças de desmembramento resistência tenaz. O de Whitman, por outro ainda por serem debeladas. lado, leva a pensar que às vezes é a litera- Para Gonçalves de Magalhães, se um tura que conquista a nação: entre capa e povo um dia desaparecer da face da histó- contracapa, num livro que vai crescendo a ria, então sua literatura dará testemunho à cada edição, o leitor abre um país. posteridade de seu caráter, dizendo aos in- Em outras partes do Novo Mundo, po- teressados: “se pretendeis também conhe- rém, muitos literatos viram no expansionis- cê-lo, consultai-me, porque eu sou o espíri- mo nacional uma oportunidade para supe- to desse povo, e uma sombra viva do que rar aquela condição dual, por meio de um ele foi”.13 Tribos ameríndias estariam entre empenho político mais direto. No Brasil, a as testemunhas por ele convocadas, den- eclosão de movimentos separatistas de nor- tro dessa concepção, por exemplo em seu te a sul, com a crise do Primeiro Reinado e poema heroico “A Confederação dos Ta- durante a Regência, não impediu uma pri- moios”, de 1856. Porém a mera descrição meira geração de ideólogos românticos de 13 Magalhães, Domingos José Gonçalves de. “Ensaio so- 12 Ver: Ferrone, Vincenzo. Lezioni illuministiche. Roma, bre a história da literatura do Brasil”. Nitheroy. Revista Bari: Laterza, 2010; e Fumaroli, Marc. La République Brasiliense. Ciencias, Letras e Artes 1, n. 1, Paris, 1836, des lettres. Paris: Gallimard, 2015. p. 132. Um pouco de Grécia na literatura nacional • 95 da paisagem bastaria para caracterizar a Era necessário, portanto, que essa “ra- identidade do país, como se a essência da zão oculta” da história arrastasse os vates à nacionalidade se inscrevesse fatalmente até contemplação da natureza brasileira (como mesmo no mundo natural – ou antes de se ela fosse uniforme) e dos costumes na- tudo nele, sendo a nação um valor autócto- cionais (como se houvesse um consenso a ne, essencialmente indígena. respeito de quais deles seriam aceitáveis). Nisso, Gonçalves de Magalhães e outros Os efeitos da ênfase inaugural nas ex- literatos de seu círculo, como João Manuel terioridades identitárias da “cor local” fo- Pereira da Silva e Joaquim Norberto de Sou- ram determinantes e duradouros. Reinavam sa Silva, seguiam a doutrina de autores eu- soberanos quase quatro décadas depois, ropeus, como o francês Ferdinand Denis, na época do cinquentenário da Indepen- o alemão Friedrich Bouterwek e o suíço dência do Brasil, quando Machado de Assis Simonde de Sismondi.14 Estes, ao tratarem publicou, em 1873, seu conhecido balanço da poesia luso-brasileira, queixavam-se da da literatura brasileira até então. O traço mesma coisa: faltava índio e sobrava pastor principal, dizia o escritor, era “certo instin- da Arcádia. Foi com essa orientação que o to de nacionalidade”. “Poesia, romance, manifesto romântico de 1836 atacou a gre- todas as formas literárias do pensamento cocidade luso-brasileira: buscam vestir-se com as cores do país”, e A poesia do Brasil não é uma indígena ci- há na opinião pública “um instinto que a vilizada; é uma grega vestida à francesa e à leva a aplaudir principalmente as obras que portuguesa, e climatizada no Brasil (...). En- cantados por esse nume sedutor, por essa bela trazem os toques nacionais”, instinto que estrangeira, os poetas brasileiros se deixaram se manifesta como “o geral desejo de criar levar por seus cânticos, e olvidaram as simples uma literatura mais independente”.17 imagens que uma natureza virgem com tanta Já se escreveu bastante sobre esse artigo profusão lhes oferecia.15 de Machado de Assis, mas – salvo engano Mas, se a poética clássica parecia um – ainda não se observou que ele dialoga empecilho à expressão literária da naciona- surdamente com o manifesto romântico de lidade, sua superação era uma questão de Gonçalves de Magalhães, que introduzira o tempo. A fatalidade da nação logo se encar- tema de um instinto nacional como “razão regaria de corrigi-la. Porque, segundo Gon- oculta” da história e instrumento para a çalves de Magalhães: realização progressiva, no tempo, do desti- Existe no homem um instinto oculto que, no reservado para a literatura na apoteose a despeito dos cálculos da educação, o dirige; identitária da nação. Nesse diálogo, a argu- e de tal modo esse instinto aguilhoa o homem mentação de Machado é como um banho que em seus atos imprime um caráter de ne- de água fria. Diz ele: cessidade.16 (...) manifesta-se às vezes uma opinião que

14 Ver: César, Guilhermino (Org.). Historiadores e críti- tenho por errônea; é a que só reconhece espí- cos do romantismo. São Paulo: Edusp, 1978; e Roua- rito nacional nas obras que tratam de assunto net, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido. A fundação de uma literatura nacional. São Paulo: 17 Assis, Joaquim Maria Machado de. “Notícia da atual Siciliano, 1991. literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”. In: Assis, 15 Magalhães, Gonçalves de, op. cit., p. 146. J. M. M. de. Crítica literária e textos diversos. São Paulo: 16 Idem, p. 147. Unesp, 2013, p. 430. 96 • Sérgio Alcides local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito com a prudência habitual de um cético. Usa os cabedais da nossa literatura.18 o adjetivo no lugar de uma especificação que, uma vez esboçada, já se converteria Um punhado de exemplos brasileiros e em restrição, planificação, empobrecimen- estrangeiros bastaria para a refutação, cul- to em termos absolutos e ideais de algo minando com a menção a obras de Shakes- que atua na relatividade dos movimentos peare ambientadas na Itália ou na Dinamar- da história, encarnado no real cambiante, ca, que não impediram o autor de ser “além em processo. Discutir essa indeterminação de um gênio universal, um poeta essencial- em face de suas manifestações literárias se- mente inglês”.19 Machado até reconhece ria a própria alçada da crítica, da crítica que a importância dos assuntos locais numa Machado chama de “doutrinária, ampla, “literatura nascente”, mas adverte: “não elevada”, cuja falta no Brasil – só no Brasil estabeleçamos doutrinas tão absolutas que de então? – “é um dos maiores males de a empobreçam”.20 E empobrecimento é o que padece a nossa literatura”.24 que o articulista aponta, sutilmente, ao co- Mas não seria essa ausência da crítica mentar seja o romance, que “busca sem- um sinal persistente da precariedade daque- pre a cor local” e raramente é “puramente le outro lugar de enunciação literária, mais de análise”, com seu “grande amor a esse propriamente público do que nacional? Não 21 recurso da descrição”, seja a poesia, tão faltaria no império um espaço mais amplo e confiante de ser nacional “só porque insere mais arejado para aquela república letrada, nos seus versos muitos nomes de flores ou mesmo ao preço de uma dualidade contra- aves do país”, com sua “nacionalidade de ditória? 22 vocabulário e nada mais”. Em aberto: assim Machado prefere dei- “O que se deve exigir do escritor”, diz xar o problema. E ele não voltaria a traba- a célebre conclusão de Machado, “é cer- lhar nesse artigo, que só foi republicado to sentimento íntimo, que o torne homem postumamente, em livro. Essa certa incer- do seu tempo e do seu país, ainda quando teza facilita a frequente confusão entre trate de assuntos remotos no tempo e no “instinto de nacionalidade” e “sentimento 23 espaço”. íntimo”, a qual convém desfazer. A primei- “Certo sentimento íntimo”, escreve ele, ra expressão, usada no próprio título, está em paralelo a “certo instinto de nacionalida- ligada ao anseio pela emancipação de uma de”. No entanto, “certo” quer dizer “incer- literatura nacional, anseio que se apressou to” – porque é uma certeza a incidência des- em estabelecer as “doutrinas tão absolu- ses pontos, mas é incerta a possibilidade de tas” que seria melhor frear. Trata-se, para determiná-los, descrevê-los, fomentá-los. Machado, de um fenômeno compreensível Machado se abstém de qualquer tentativa, e até louvável como “sintoma de vitalidade e abono de futuro”.25 Mas é dele que o arti- 18 Idem, p. 432. culista deriva as duras objeções que faz – no 19 Ibidem. 20 Ibidem. que nitidamente se contrapõe a Gonçalves 21 Idem, p. 434. 22 Idem, p. 438. 24 Idem, p. 433. 23 Idem, pp. 432-3. 25 Idem, p. 429. Um pouco de Grécia na literatura nacional • 97 de Magalhães. Este apostava todas as espe- antigos, formando toda uma coluna do câ- ranças justamente na fatalidade do instinto none literário do Ocidente. Mas não é difícil nacional. perceber como esse passado, para os gre- Mas, na segunda expressão de Macha- gos modernos, ameaçava tornar-se antes do, o indivíduo aparece na frente da nação: uma opressão do que um esteio. Não só é o seu “sentimento íntimo” o que impor- pela dificuldade de ombrear com tamanhos ta, aquela verdade certa de incerto contor- gigantes e se tornar contemporâneo deles no, que sem cores externas nem doutrina na hora de escrever, mas sobretudo pela prévia o situa no tempo e no espaço. Tal brutal solução de continuidade – imposta verdade interior também sabe “precisar o por quase dois milênios de história. lugar de onde se fala”: é um lugar em aber- A chamada “literatura grega” agora to, dinâmico, que não se reduz a nenhum não seria exatamente a possível “literatura determinismo, nenhuma teleologia, nenhu- nacional” grega, inclusive por ser ampla- ma filosofia da história. Seria justo indagar mente vista como um patrimônio da Europa se essa abertura não reclamaria para si um e propagada como paradigma de universa- lugar-comum, na esfera diversificada e con- lidade. Certamente, era um paradigma et- flituosa do público, dificilmente redutível a nocêntrico, mas de um etnocentrismo que restrições identitaristas. sequer era dos gregos, como nação, e sim Problemas semelhantes foram enfrenta- das potências europeias que assistiram im- dos por outros escritores latino-americanos, passíveis à rebelião dos romiói (os cristãos em diferentes momentos. Por exemplo: Al- ortodoxos que falavam grego) contra o Im- fonso Reyes, em 1932; Jorge Luis Borges, pério turco-otomano. A “literatura grega” em 1955. Ambos escreveram sob a pressão tinha sido tão expropriada da Grécia quanto do essencialismo descritivo reclamado pela os famosos relevos de mármore do Parthe- identidade nacional, contra o qual reagiram. non levados para a Inglaterra pelo Conde Um pouco de Grécia pode ajudar a en- de Elgin no início do século XIX (hoje no tender melhor a situação do escritor latino- acervo do Museu Britânico). -americano. Mas não me refiro à Grécia da Se foram viajantes e críticos estrangeiros Antiguidade, que foi uma das maiores fasci- que sugestionaram para os românticos bra- nações de Alfonso Reyes, aquela Grécia de sileiros a ênfase na descrição exterior, para Homero, o poeta imemorial que Borges não os gregos da mesma época havia todo um cessava de evocar. Falo da Grécia moder- helenismo europeu determinando o mo- na, pós-colonial, bem menos arquetípica. delo marmóreo a seguir, com exclusão de A questão da literatura nacional ali era mil tudo de helênico escrito ou cantado entre vezes mais complicada do que na América a Antiguidade e a modernidade, ou no pe- Latina. Evidentemente, ninguém poderia ríodo bizantino na Idade Média ou sob o duvidar da existência de uma literatura gre- domínio turco-otomano na Era Moderna. ga. Em meio a tantas ruínas antigas espa- Onde os brasileiros tinham palmeiras, os lhadas pelo país, estavam as sombras escri- gregos teriam colunas dóricas. tas de Homero, Hesíodo, Teócrito, Píndaro, Para os gregos, tudo se complicava ain- Safo, Anacreonte e muitos outros autores da mais porque o cânone “estrangeirado” 98 • Sérgio Alcides tinha sido composto oralmente ou por es- vida na sua cidade, que era Alexandria, no crito em diferentes estágios arcaicos ou an- Egito. Níkos Kazantzákis era de Creta, que tigos da língua deles, que não permanecera permaneceu otomana até 1898. Yórgos estática ao longo de tantos séculos. Agora, Theotokás nasceu em Constantinopla – a para ser grego a sério, com toda a marmo- Istambul da Turquia. Como reduzir a um rização da cor local, seria preciso reinventar padrão idêntico tanta diversidade de ori- o idioma dos clássicos, numa versão depu- gens e cruzamentos?27 E, principalmente, rada da língua real falada pelo povo cotidia- para quê? namente. Surgiu assim o enorme problema Essas irregularidades são o que pode da diglossia: de um lado, a katharévoussa servir de esclarecimento mútuo entre a Gré- purista, a expressão por escrito do Estado e cia e os países da América Latina, no que da elite letrada; de outro, o idioma demóti- tange à literatura. Do lado de cá, herdamos co, popular, falado em casa e nas ruas pela as línguas de extintos impérios, o espanhol nação em geral, inclusive pelos letrados, para a maioria, o português para o Brasil, dentro e fora do território estatal. Qual se- o francês e o inglês no Caribe. Do lado de ria então a língua da “literatura nacional”? lá, a língua própria teve que ser excluída A resposta não era nada fácil de encontrar, em benefício de suas formas extintas, a por depender da disputa entre diferentes serem restauradas artificialmente. Nos dois concepções literárias. A língua do “senti- casos, impôs-se o projeto de corresponder mento íntimo” de que falava Machado – ou a noções preconcebidas, de procedência seja: aquela com a qual o sujeito fala con- europeia, acerca de critérios metafísicos tais sigo mesmo – só poderia ser a falada no como o “espírito do povo” e o “espírito do dia a dia. Mas talvez a outra, supostamente tempo” – por meio de um “geral desejo”, mais elevada, cuidasse melhor da aspiração para citar Machado, desejo que, por mais exaltada a valores ideais como a beleza e a instintivo que fosse (segundo Gonçalves de identidade ou da busca do efeito do subli- Magalhães), pertencia apenas a uma ca- me. Desse modo, a superação do purismo mada letrada e comprometida, ciosa por na literatura neogrega só terminou com a instinto de seus privilégios, entre os quais emergência do modernismo, no início da o de determinar o caráter da nação, deci- década de 1930.26 dindo, por exemplo, como no caso do Bra- Um problema adicional era a diáspora: sil, se esse caráter podia ou não incluir o a língua em seus diferentes registros evo- negro onipresente, enquanto se espelhava luíra de modo diverso em diferentes partes no índio ausente por já ter sido expulso ou habitadas por comunidades gregas. Vários dizimado. dos principais escritores da Grécia moder- Às vezes, da cor local, nem todos os na nasceram em outras terras. Constantino tons são convenientes. Sempre seletiva, a Caváfis, por exemplo, passou quase toda a descrição identitarista contribuía também

26 Ver: Beaton, Roderick. An Introduction to Modern 27 Ver: Dyck, Karen van. “The Language Question and Greek Literature. Oxford: The Clarendon Press, 1994; the Diaspora”. In: Beaton, Roderick & Ricks, David e Tziovás, Dmitri. The Nationism of the Demoticists (Orgs.). The Making of Modern Greece. Nationalism, and its Impact on Their Literary Theory (1888-1930). Romanticism & the Uses of the Past. Farnham UK: Amsterdam: Hakkert, 1986. Ashgate, 2009, pp. 189-98. Um pouco de Grécia na literatura nacional • 99 para uma cilada pitoresca que comprimia uma situação cultural muito mais intricada, a multiplicidade própria de nações moder- em perspectivas bem menos otimistas.29 nas em estereótipos sempre dóceis ao ape- Na Grécia, essa virada se deu três déca- tite europeu por exotismo, tropicalismo, das antes, em 1922, com a já mencionada orientalismo, helenismo etc. – apetite com “catástrofe da Ásia Menor”. À derrota mi- o qual a “literatura nacional” sem perce- litar diante da Turquia, seguira-se um dos ber se solidarizava, pagando a conta, nos massacres mais hediondos do século XX, melhores moldes coloniais. Nos manuais que dera fim a milênios de presença helêni- de história da literatura grega moderna, ca na Anatólia. Duas consequências imedia- por exemplo, o final do século XIX é cober- tas se impuseram, uma social e outra moral. to pela chamada ethographía, ou “realis- A primeira é que em questão de poucas se- mo folclórico”, que explora a descrição de manas a população de um país já empobre- costumes e tipos rurais que dominou a fic- cido quase dobrou, com a chegada de dois ção grega do período, enquanto o país se milhões de refugiados anatólios. A segunda modernizava e se urbanizava lentamente, é que finalmente a elite política e a letrada à margem das letras.28 Isto, nos anos em tiveram que enterrar, à força, os sonhos de que o grande romance europeu chegava grandeza acalentados desde a Independên- ao ápice, justamente quebrando as tipolo- cia, a chamada Megale Idéa expansionista; gias, rompendo o estereotípico, lançando de repente ficou claro que o Estado grego o leitor na incerteza e na indeterminação não poderia estender-se até onde a nação de seus próprios lugares presumivelmente chegasse, porque o contrário é que ocor- estáveis. rera: a nação expulsa de outras partes viera 30 Assim, um problema semelhante ao en- refugiar-se no território nacional estreito. frentado por Machado desafiaria também Essa tragédia moderna teve um impac- to cultural profundo, e condicionou vários os escritores neogregos, como desafiava aspectos do modernismo grego, marcando outros latino-americanos. Mas as tempora- sobretudo a chamada Geração de 1930. Era lidades são relativas, nem sempre coeren- um grupo heterogêneo de escritores, em tes entre si. Antonio Candido fala de dois geral alinhados na opção pelo idioma de- momentos da cultura brasileira em face de mótico, popular, e alguns dos quais inclina- suas limitações condicionantes: a “cons- dos a uma maior abertura à Europa e a ou- ciência amena de atraso”, ligada à ideo- tras influências estrangeiras. Na busca por logia de “país novo” e à correspondente um lugar de enunciação próprio, a catástro- convicção de que a expansão da instrução fe do modelo autocentrado levou alguns a por si só sanaria o problema; e a “cons- concluírem que a autenticidade desse local ciência catastrófica de atraso”, ligada à não impunha que ele estivesse encerrado constatação do subdesenvolvimento, que para o grande crítico só se afirmou depois 29 Candido, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimen- da Segunda Guerra Mundial, revelando to”. In: A. Candido. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p. 142. 30 A estimativa de gregos mortos na Anatólia em 1922 28 Beaton. An Introduction to Modern Greek Literature, é vaga: teriam sido centenas de milhares; cf. Beaton. pp. 68-72. Greece. Biography of a Modern Nation, pp. 223-6. 100 • Sérgio Alcides em si mesmo, onde o ressentimento pode- europeu”, que depois tentaram importar ria devorá-lo, agora que o antigo devaneio para a Grécia moderna, de maneira que o da grandeza se esfumara. Propôs-se então ideal de “helenicidade” se arriscava a con- um movimento duplo, em direções que só trabandear para o país, como se fossem au- um olhar esquemático demais julgaria con- tênticos, valores de fato estrangeiros, como traditórias: de um lado, a decisão pela lín- o estilo neoclássico da sede da Academia gua viva do cotidiano, dentro de um plano de Atenas.32 De fato, o imponente edifí- particular de expressão literária; de outro, a cio era obra de um arquiteto holandês, o escolha de não excluir de antemão a aspira- Barão Teophil Hansen, construído a partir ção a um plano universal. de 1859 sob a supervisão de Ernst Ziller, que Um dos expoentes desse grupo foi o era alemão.33 Erguia-se na rua Panepistimí- poeta e ensaísta Yórgos Seféris, que viria a ou como poderia estar na Ilha dos Museus, ganhar o prêmio Nobel em 1963. Não por em Berlim, ou na Cinelândia, no Rio. acaso, era natural de Esmirna, principal ci- Assim como Machado questionava a dade grega da Anatólia, destruída pelas própria consolidação da literatura brasi- tropas turcas. E foi no contexto de uma leira, que para ele estava apenas “alvore- polêmica sobre a “helenicidade” (hellenikó- cendo” e continuava sem uma “fisionomia tita) da literatura grega moderna que seus própria”,34 Seféris argumentou com a mes- argumentos se aproximaram, em 1938, da ma palavra-chave: ainda não se formara a posição tomada por Machado em 1873. O fisionomia de um “helenismo helênico”, adversário do poeta atacava a poesia gre- enquanto permaneciam incertos os contor- ga de vanguarda e alegava que as “obras nos da própria Grécia moderna. E esses tra- poéticas genuínas” deviam refletir “a des- ços fisionômicos, diz Seféris, “serão precisa- coberta de novos aspectos da vida helêni- mente a síntese de todas as características ca”, livres de qualquer influxo estrangeiro, de todas as obras de arte verdadeiras que porque a única “vida genuína” era aquela tiverem sido criadas por gregos”.35 “enraizada na terra e no espírito ctônicos”. Frisemos: “verdadeiras” – lembrando Nisto consistiria a “helenicidade” da litera- que a discussão desse juízo, permanecen- tura grega.31 do incerta, só poderia caber à crítica, ao Em sua refutação, Seféris argumen- lugar-comum da esfera pública, em aber- tou que os gregos pouco haviam contri- to, não ao critério fechado da identidade buído para a formação de um “helenismo nacional. Para Seféris, a adoção da língua

31 Para uma reconstrução da polêmica entre Seféris e 32 Seféris, Yórgos. “A Dialogue on Poetry”. In: Seferis, Constantino Tsátsos, ver: Doulis, Thomas. “The Strate- G. On the Greek Style. Selected Essays in Poetry and gy of George Seferis: The Individual Poet and the Greek Hellenism. Tradução de Rex Warner & Th. D. Frango- Tradition”. The Texas Quarterly 11, n. 2, Austin TX, ou- poulos. Londres: The Bodley Head, 1967, p. 95. tono de 1968, pp. 72-88; e Leontis, Artemis. Topogra- 33 Cf. Biris, Manos & Kardamitsi-Adami, Maro. Neo- phies of Hellenism. Mapping the Homeland. Londres, classical Architecture in Greece. Los Angeles: The J. Ithaca NY: Cornell UP, 1995, pp. 135-9. Ver também: Paul Getty Museum, 2004, pp. 138-52. Ver também: Jurado, José Antonio Moreno. “Reflexiones em torno a Calotychos, Vangelis. Modern Greece. A Cultural Poe- ‘Diálogo sobre la poesía’”. In: I. M. García Galvez (Org.). tics. Oxford, Nova York: Berg, 2003, pp. 30-35. Giorgos Seferis: 100 años de su nacimiento. Granada: 34 Assis, Machado de, “Notícia da atual literatura bra- Centro de Estudios Bizantinos, Neogriegos y Cipriotas, sileira”, p. 429. 2002, pp. 53-9. 35 Seféris. “A Dialogue on Poetry”, p. 95. Um pouco de Grécia na literatura nacional • 101 popular foi um primeiro passo “na direção Tudo o que nós, os escritores argentinos, da verdade”:36 o abandono da expressão fizermos com felicidade pertencerá à tradição artificial, restrita à elite e atrelada ao projeto argentina, de igual modo como a abordagem de temas italianos pertence à tradição da In- expansionista do Estado. Seria então possí- glaterra por obra de Chaucer e Shakespeare.40 vel a elaboração literária de um “sentimen- to íntimo” que contribuísse para delinear E, antes de todos, Machado, em 1873, uma fisionomia helênica ainda indefinida, sobre a emancipação de uma literatura bra- desde um lugar de enunciação mais aberto sileira: e múltiplo, nem por isso menos preciso. Essa outra independência não tem Sete Décadas depois, a crítica pós-moderna de Setembro nem campo de Ipiranga; não se grega atacaria o nacionalismo da Geração fará num dia, mas pausadamente, para sair de 1930.37 Sem entrar no mérito da ques- mais duradoura; não será obra de uma gera- ção nem duas; muitas trabalharão para ela até tão, valeria a pena verificar como a orienta- perfazê-la de todo.41 ção nacionalista pode prescindir da redução identitária para se afirmar: a militância co- Em todos esses casos, nota-se uma preo- letiva não é necessariamente essencialista, cupação em via de mão dupla, entre o par- nem está na dependência da mera descrição ticular e o universal, com a aposta de não de atributos exteriores. Para Seféris, quanto haver contradição entre esses termos, e sim ao problema da “helenicidade”, seria pre- certa interdependência, como quer Candi- ferível não antepor uma solução postiça ao do, ao falar em “assimilação recíproca”.42 O seu desenrolar histórico; daí o conselho que ponto crucial, onde o particular e o universal dá a seus confrades, para que buscassem a podem cruzar-se, é precisamente a esfera do sua verdade particular, “não perguntando- público, lugar de enunciação, de recepção, -se como podem ser gregos, mas confiando de crítica, de conflito e livre debate – enfim, no fato de que, por serem gregos, as obras da “aberturidade”, segundo a palavra alemã nascidas de sua alma não poderão ser se- que a designa, Öffentlichkeit.43 Daí a gravi- não gregas”.38 dade do protesto de Machado sobre a falta Poucos anos antes, Alfonso Reyes es- da crítica no Brasil, onde a opinião pública crevera, também em contexto polêmico, vol. 8, 1996, p. 439. Reyes está nesse artigo respon- sob ataque identitarista: “A literatura me- dendo a comentários negativos que recebeu do crítico xicana é a soma das obras dos literatos nacionalista Héctor Pérez Martínez. 40 Borges, Jorge Luis. “El escritor argentino y la tradi­ 39 mexicanos”. E Borges, em 1955: ción”. In: Borges, J. L. Obras completas, 1923-1972. : Emecé, 1974, p. 273. 41 36 Idem, ibidem. Assis, Machado de. “Notícia da atual literatura bra- 37 Ver, por exemplo: Lambropoulos. Literature as Na- sileira”, p. 429. 42 tional Institution, pp. 44-65; Leontis. Topographies of Candido. “Literatura e subdesenvolvimento”, p. 155. 43 Hellenism, pp. 132-71; e Calotychos, Vangelis. “The Art Ver: Habermas, Jürgen, The Structural Transforma- of Making Claques: Politics of Tradition in the Critical tion of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Essays of T. S. Eliot and George Seferis”. In: Layoun, M. Bourgeois Society, tradução de Thomas Burger & Frede- N. Modernism in Greece? Essays on the Critical and Li- rick Lawrence. Cambridge MA: Polity, 1989; Koselleck, terary Margins of a Movement. Nova York: Pella, 1990, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogêne- pp. 81-136. se do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas Bôas. 38 Seféris. “A Dialogue on Poetry”, p. 95. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999; e Taylor, Charles. 39 Reyes, Alfonso. “A vuelta de correo”. In: Reyes, A. Modernity and the Rise of the Public Sphere. Stanford Obras completas. México: Fondo de Cultura Económico, CA: Stanford UP, 1992. 102 • Sérgio Alcides era “malformada ainda, restrita em extremo, lugar, ora secando-o, ora dissolvendo-o no pouco solícita”.44 Tão indeterminada quanto vazio”.45 Eis aí uma sensação inassimilável o “sentimento íntimo” de que falava Ma- à identidade da nação, que não pode sa- chado é a “verdade” almejada por Seféris: ná-la por si só, com nenhuma pintura da a abertura é seu lugar e sua paisagem. Por cor local. meio dela, o íntimo se abre para o público, Esse amargor é também uma parte do transfigurado. lugar da enunciação, para Seféris. Lugar não Também se relaciona a esse horizonte comum, decerto, onde talvez o poeta gre- o amargor que Seféris manifesta – na sua go se encontre junto de Machado, Reyes, “consciência catastrófica do subdesenvol- Borges e tantos outros escritores do Novo vimento”, ao constatar a incompletude da Mundo e de outros mundos novos como a fisionomia espiritual da Grécia, cujos “pou- Grécia moderna. Sem “razão oculta”, sem cos marcos discerníveis” aparecem rodea- filosofia da história e sem nenhum instinto dos por “uma grande extensão” indistinta. nem nenhuma certeza de que alguma fisio- “Essa extensão”, diz ele, “por vezes isola nomia possa definir-se além daquela que cruelmente o artista que deseja viver nesse eles próprios forem desenhando.

44 Assis, Machado de. “Notícia da atual literatura bra- 45 Seféris. “A Dialogue on Poetry”, p. 97. sileira”, p. 429. ENTREVISTA Alberto da Costa e Silva

Entrevista concedida à Revista Revestrés Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Salgado Maranhão (escritor, convidado), Samária Andrade e Wellington Soares

apartamento na rua das Laranjei- tempo com aparência frágil e firme, era o ras, no bairro de mesmo nome, senhor de seus domínios. O no Rio de Janeiro, tem um amplo Após as apresentações de praxe e o pedi- espaço, dividido em duas salas. Em uma do dele por alguns minutos de espera antes delas, uma grande biblioteca ocupa toda de iniciarmos a entrevista, por ter amanhe- a parede, tendo por companhia mesa, um cido com algum desconforto físico, Alberto abajur aceso, muitos livros nas prateleiras e da Costa e Silva, recuperado, pediu que lês- documentos empilhados. Na outra área, as semos em voz alta todas as perguntas, em paredes estão cobertas por obras de arte, sequência: queria saber quais eram para or- que passeiam por estilos diversos. Ali, tam- ganizar o pensamento e ir respondendo em bém, grandes sofás e várias cadeiras e pol- seguida. Assim o fizemos. A cada pergunta, tronas revelam – ou deixam imaginar – que, ele: “a próxima”. Uma das perguntas fazia por aquele ambiente, circularam e circulam referência ao atual momento da diplomacia muitas pessoas, ideias, conhecimento: é um brasileira. Ao ouvi-la, antecipou a resposta: local acolhedor e aparentemente preparado “um diplomata não comenta o trabalho para sediar longos encontros. Em diversas de outros diplomatas”, pedindo que fosse mesas e prateleiras, várias esculturas. De excluída. Após ouvir todas as questões, de- variados tamanhos e arrumadas e expostas terminou: “vamos lá, vou começar pela pri- com visível cuidado, têm temática africana – meira”. E seguiu respondendo uma a uma e, ou remetendo à África e suas personagens aqui e ali, nos cobrando por algum esque- e tradições. cimento: “você pulou uma”. O desconforto Quando chegamos para a entrevista, passou e a voz, em alguns momentos bai- Alberto da Costa e Silva já nos aguardava. xa e entrecortada, se tornou firme. Alberto, Sentado em um dos sofás, tinha uma pintu- bem-humorado, disse: “vocês perguntaram ra quase abstrata com uma figura de Cris- sobre meu pai, e isso me fez ficar bem”. to a quase abençoá-lo por trás. Silencioso, Alberto Vasconcellos da Costa e Silva é com postura ereta e elegante, ao mesmo filho de Antônio Francisco da Costa e Silva Entrevista publicada na Revista Revestrés, Edição Padre Florêncio, N.o 45, Março-Abril/2020. 104 • Entrevista concedida à Revista Revestrés e de Creusa Fontenelle de Vasconcellos da Egito, Costa do Marfim, entre outros. Tem Costa e Silva. Seu pai, mais conhecido como mais de 35 obras publicadas, entre ensaios, Da Costa e Silva, é, para muitos, o grande poemas, antologias, livros sobre História e poeta do Piauí, e inclusive autor da letra do literatura infanto-juvenil, além de três livros hino piauiense. onde escreve sobre suas memórias. Alberto, o filho, também se tornou poe- Nesta entrevista, são flagrantes a in- ta, além de ensaísta, historiador, memoria- fluência e o carinho de Alberto da Costa lista e diplomata. Recebeu em 2014, pelo e Silva pelo pai. Como revela ainda o do- conjunto de sua obra, o Prêmio Camões, cumentário O retorno do filho, de Douglas um dos mais importantes prêmios literários Machado, que explora a relação afetiva e em português e instituído pelos governos poética entre pai e filho, e também seus li- do Brasil e Portugal para laurear autores vros de memórias e o discurso de posse na que contribuíram para o enriquecimento do ABL, no qual Alberto escreveu: “Ponho a patrimônio literário e cultural da nossa lín- mão nessa mão que a saudade deixou para gua. Em julho de 2000 foi eleito para a Ca- sempre no meu ombro… Só isto quis e que- deira de número 9 da Academia Brasileira ro: cumprir esse vaticínio, ser o que o meu de Letras, a qual presidiu nos anos de 2002 pai sonhou ser”. e 2003. Nascido em 1931 e formado pelo Perguntado como preferia ser chamado, Instituto Rio Branco em 1957, foi diplomata se poeta, embaixador, comendador, respon- em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e deu: “Chamem-me como quiserem. Isso Roma. Foi também embaixador na Nigéria, não importa”. no Benim, em Portugal, na Colômbia e no Então, aí está nossa conversa com Al- Paraguai, e é acadêmico correspondente da berto da Costa e Silva. O homem. O filho. Academia de Ciências de Lisboa. Costuma O poeta, filho do poeta. repetir que, ao se tornar diplomata, realizou um sonho que era do pai: “Mas ele era mui- Entrevista to feio, e naquela época isso era importante Salgado Maranhão Dentre as tantas con- e não conseguiu. Hoje isso não existe mais, tribuições que as culturas africanas nos de- senão ninguém seria diplomata”. ram, quais nos caracterizam e sequer nos Seus estudos o converteram em um damos conta? dos mais importantes intelectuais brasilei- ros. É especialista na cultura e na história Alberto da Costa e Silva O africano não da África, com título de Doutor Honoris deu contribuições para o Brasil: o africano Causa em Letras pela Universidade Obafe- ajudou a formar o Brasil! (fala com ênfase) mi Awolowo (ex-Universidade de Ifé), da Não são apenas contribuições, não deixou Nigéria (1986), e em História pela Universi- aqui lembranças, ele realmente ajudou a dade Federal Fluminense (2009) e pela Uni- criar o país. Esse país foi criado com o es- versidade Federal da Bahia (2012). Recebeu forço de vários povos, decerto, mas com a aproximadamente 40 condecorações no presença muito forte das várias vertentes Brasil e em países como Portugal, Colôm- africanas. Não foi só um grupo africano que bia, Paraguai, Peru, Togo, Espanha, Itália, influenciou o Brasil, foram muitos, e com Alberto da Costa e Silva • 105 culturas completamente diferentes, mas não traz com ele para o Brasil. Chega ao que marcaram a nossa vida. Eu diria que a Brasil e não traz mais Oxum no rio, mas maneira de andar do brasileiro, a maneira na alma. De certa maneira ele altera o que de sentar, a maneira de conversar, as pala- trouxe com ele. O que era dele continua vras que ele usa, o ritmo das frases, tudo aqui, mas em outro plano. Você tem coi- lembra a África, mas não é igual à África. O sas curiosíssimas. Você tem Iemanjá, que é Brasil não repete a África, o Brasil reinven- uma ameríndia, e que aparece em muitas ta a África. Temos tendência a procurar a imagens no Brasil como branca, e até loi- contribuição que a África deu à música bra- ra! São processos de enriquecimento único sileira; a África não deu, a África foi um dos que são formadores, e são formadores por- componentes da música brasileira. A músi- que também aí entra o papel dos artistas, ca popular tem uma raiz africana, não tem dos intelectuais. Por que você quando fala raiz portuguesa. Não tem raiz no século 19 em religiões de matriz africana lembra ime- francês. Entre a África e o Brasil tem uma diatamente de orixás, dos iorubás? Porque permanente troca, de maneira de viver, de houve um sujeito chamado , maneira de sentir, pensar e atuar, de falar, outro chamado Caribé, , dizer, criar. É muito mais profundo do que, outro chamado Pierre Verger, e vai por aí. simplesmente, contribuir. Essas pessoas fizeram, dos orixás, deuses, divindades nacionais. Deram a eles o prestí- gio que tinham os deuses gregos. É a soma André Gonçalves E o que podemos ver de de tudo isso que faz quase impossível você mais evidente nessa construção? distinguir o que vem da África, o que vem ACS Há pontos semelhantes, idênticos, de Portugal, o que vem da Itália, o que vem nos quais se pode rastrear a presença ne- da Alemanha, o que pertence ao índio. Por gra. Por exemplo, veja a parte religiosa. Há exemplo: o Curupira. O que é o Curupira? uma tendência por parte de muitos histo- É um anãozinho cabeludo, que tem os pés riadores de considerar que religiões de ver- voltados para trás para iludir os caçadores, tentes africanas são todas ligadas à venera- para impedir que os caçadores destruam os ção dos orixás. Mas os orixás só existem, na animais da floresta. Eu, quando era meni- África, em uma região muito pequena, que no, soube que isso era uma lenda tupi, até é no sul, sudoeste da Nigéria, e no sudeste que, quando comecei a estudar a África, da República do Benim. Só nesse pedaço, descobri que os anõezinhos cabeludos com nesse pedacinho, é que se conhece os ori- os pés para trás para enganar os caçadores xás. O que aconteceu? Quando vieram para e que falam por assovio tinham vários no- o Brasil, sobretudo, no fim do século 18 e mes e diferentes formas. Existem também início do século 19, eram povos africanos na África. Então lhe pergunto: o que é afri- acostumados a grandes cidades, urbanos, cano nesse personagem brasileiro e o que é puderam manter seus cultos quase como ameríndio, e o que é ameríndio e africano eram na África. Digo “quase como eram” em outras coisas mais? O que mais me cha- porque, na África, Oxum era a deusa de de- mou atenção quando cheguei pela primei- terminado rio, mas esse rio o escravizado ra vez na África, além das roupas, a beleza 106 • Entrevista concedida à Revista Revestrés das roupas, foi a maneira como as pessoas organização social, de onde é que vieram andavam e se sentavam. Era inteiramente aquelas paliçadas, porque elas eram dife- diferente na África ocidental do que havia rentes das paliçadas indígenas. Posterior- visto em Portugal. Eu estava morando em mente me interessei pelo estudo da África Portugal, nessa época. pela África, não apenas pelo que havia de África no Brasil. Mas pela África em si, pela África que estava lá, pela África que foi, Samária Andrade O senhor foi um dos pela África que é. Para ter também orgu- primeiros intelectuais brancos a estudar so- lho das raízes do outro lado do oceano. Se bre a negritude… nós temos orgulho de nossa herança grega ACS Não sou, não sou… Muitos antes de também temos de ter orgulho de nossa he- mim já estudavam, não vou citar nomes rança cabinda, mandinga, iorubá, fon, fan- porque vou esquecer algum… ti, alufá e vai por aí, diferentes culturas que ajudaram a formar o Brasil. Interessei-me pela África pelo que eles nos deram, uma Samária Andrade E o que seus estudos história artística extraordinária, que não era traziam de novo em relação aos que eram estudada nas escolas, o que poderia au- desenvolvidos até então? mentar a autoestima dos brasileiros. ACS A única novidade que eu trouxe para os estudos foi que dediquei a minha aten- Wellington Soares O senhor tem um en- ção para a África. Em geral se estudava, se saio sobre Castro Alves, o poeta baiano co- preocupava com o africano no Brasil. Eu nhecido como “o poeta dos escravos”. Esse achei que precisávamos estudar o africano título é um título merecido? O perfil do ne- na África, estudar a história da África. Os gro nos poemas de Castro Alves é realista? costumes africanos, as lendas africanas, para entendermos o Brasil. Não que o Brasil ACS Não, não é realista, mas ele merece o seja igual à África, nem parecido, o Brasil é título. Castro Alves foi vital na luta pela abo- diferente das várias Áfricas, são vários Bra- lição, foi um personagem importantíssimo. sis. Os descendentes de africanos deram Ele fez poesia social da maior qualidade. Ele grande contribuição aos estudos. Teodoro não recolheu as paisagens africanas da boca Sampaio, por exemplo, que era negro, es- dos escravizados, ele foi buscá-las no orien- creveu sobre a contribuição do tupi na ge- talismo francês, europeu. Então os escravos ografia nacional. Vários deles se dedicaram falam das palmeiras do deserto, poucos es- aos estudos dos indígenas, da antropologia cravos vieram do deserto. A maioria veio das urbana. Então era isso que realmente me savanas ou das florestas. Então ele estava, interessava: os africanos na África. Quando por assim dizer, contaminado pela estética descobri a África, aos 16, 17 anos, me inte- de seu tempo, mas isso não faz com que ressei pela sua história porque achava que deixe de ser um grande poeta, um escritor ela ajudava a conhecer a história do Brasil. de paisagens extraordinárias, e que não te- Comecei a estudar Zumbi dos Palmares, so- nha sido também o grande poeta da abo- bretudo, para entender de onde veio aquela lição. Algumas pessoas dizem que quando Alberto da Costa e Silva • 107 ele escreveu O navio negreiro já não havia de escravos. Você não tem adesão a ele, navios negreiros operando. As pessoas leem mas você tem de olhar, pelo menos, com mal o Castro Alves. O navio negreiro a que um olhar caridoso, porque ele foi um gran- ele se refere é o Brasil! (fala com ênfase). O de homem de seu tempo. Para Chachá era Brasil era o navio negreiro! O impacto que perfeitamente natural escravizar um seme- esse poema teve sobre a vida brasileira foi lhante. Porque, veja bem, até o fim do sécu­ enorme. Também é um pouco difícil nós fa- lo 18, início do século 19, a maioria das pes- zermos ideia de quem era aquele rapaz que soas e dos homens públicos defendeu em morreu aos 24 anos, moreno, com cabelo certa medida a escravidão. No mundo todo ondulado, bonito, todos diziam que era um muita gente defendeu a escravidão. Os ilu- rapaz bonito, com a voz maravilhosa, com ministas, em geral, achavam a escravidão um sentimento de palco que poucos atores um mal necessário. E argumentavam que tiveram. Devia ser uma emoção extraordi- se Sófocles não tivesse escravos não teria nária o que ele provocava. escrito suas tragédias, para escrever a Enei- da Virgílio precisava ter escravos. Mas a vin- culação da História com a literatura é muito André Gonçalves Antônio Carlos Secchin forte. Há determinados textos literários que disse que o senhor é um escritor que estu- são parte da História. As páginas que Marcel da História. Que relação o senhor poderia Proust dedica ao affair Dreyfus valem tanto fazer entre a escrita literária e a escrita do quanto as que Zola escreveu. Na prática do historiador? historiador não deve haver falsidade, mas ACS Secchin está certo. Não sou um his- deve haver imaginação. A partir dos dados toriador: sou um poeta que escreve sobre que lhe são fornecidos ele precisa imaginar História. Sobre a História da África, sobre a um pouco qual é a atmosfera do tempo que História das relações entre a África e o Bra- ele está tentando ressaltar. Minha paixão sil. Eu escrevo sobre História naquela con- pela África, que não deixou de ter o ampa- cepção antiga, como escrevia Capistrano de ro da influência do Brasil, deriva do fato de Abreu. A História, para mim, sempre esteve que era, e é, ainda, uma história em que há ligada à arte literária. Os grandes historia- muito lugar para a imaginação, porque, a dores são grandes escritores. Se você não partir dos objetos, da arqueologia, da his- for um bom escritor o seu livro de História tória tradicional, das lendas, dos poemas não fica, a não ser para citações eruditas locais, das músicas, você vai tentando com- de pé de página. O historiador tem que es- preender como eram essas pessoas. Em úl- crever com paixão, com imaginação e com tima análise, o que me interessa na História entrega. Escrevi um livro sobre Castro Alves é me reencontrar com aquele homem que e escrevi outra biografia, sobre Francisco existiu antes de mim que eu não conheci, e Félix de Souza, o Chachá, que foi o maior que, provavelmente, não teria conhecido se negreiro de seu tempo. É fácil escrever so- tivesse vivido na mesma época dele. Reco- bre Castro Alves, mas é difícil escrever sobre nhecê-lo e procurar refazê-lo, pô-lo diante Chachá. Para escrever sobre Chachá você de mim, reconstruí-lo, senti-lo como pessoa precisa ter até certa simpatia pelo traficante humana. Ver o que é que, dele, está em 108 • Entrevista concedida à Revista Revestrés mim, ou o que é meu que está nele. É con- Wellington Soares O senhor tem um en- templar o passado, o homem que se foi e saio também sobre Guimarães Rosa, em não está mais aqui. Nesse sentido é que eu que o chama de poeta, quando a obra dele diria que a História é sempre uma história é mais em prosa. de homens, e não de fatos. Não é o enredo ACS Mas ele se considerava um poeta. o que mais me interessa: o que mais me in- Tanto é que no livro Corpo de baile, aquele teressa é a personalidade das personagens. livro de novelas, são poemas, poemas em prosa. Os poemas do Rosa, naquele livro Salgado Maranhão Considerando suas enor­ dele, Magma, são muito ruins. Ele não o mes atividades como pesquisador, que tem- queria publicado, a família publicou de- po você dedica à sua poética? pois que ele morreu. Ele não queria. Ago- ra, Campo geral, a história de Miguilim, é ACS O Ferreira Gullar me disse uma vez um texto mais fino, mais generoso, mais que, depois dos sessenta anos, ele só se re- sofrido. É uma maravilha de texto! Tenho petiu. O que não era verdade. Mas ele sen- para mim que é a coisa mais importante tia que não tinha mais, como ele me disse, que o Rosa escreveu. E ele sabia disso, por- o vigor da surpresa, que isso tinha passa- que em uma carta ele me disse: “Alberto, do. Que ele conseguia escrever prosa muito o Miguilim é o que eu tenho de mais meu”. bem e que só conseguia escrever versos que A linguagem do Rosa era a linguagem da lembravam outros versos dele. Veja o caso poesia. E esse ensaiozinho meu sobre o Gui- do Carlos Drummond de Andrade: os últi- marães Rosa poeta tem o seu interesse, por- mos livros de poemas dele têm lembranças que nele descrevo como foi a posse do Rosa do poeta que ele foi. Quer dizer que ele se na Academia Brasileira de Letras. Durante tornou um mau poeta? Não, mas não tem três anos ele não foi tomar posse, porque mais a grandeza que se espera dele. Eu achava que quem tomava posse morria. E sempre escrevi poucos poemas. Três, quatro foi o que realmente aconteceu. Três dias por ano. E às vezes destruía a metade, sem- antes de tomar posse ele me telefona na pre fui muito exigente comigo mesmo. Não Secretaria Geral do Itamaraty e diz: “Alber- quer dizer com isso que eu melhorei minha to, você está muito ocupado? Então venha produção, devo continuar a ser ruim como aqui à minha sala”. Eu fui à sala dele, ele era antes. Mas o fato é que fui diminuindo, fechou a porta para não ser interrompido e aos sessenta já escrevia menos, aos setenta pôs um bloco na minha mão, e um lápis. E escrevia um poema por ano, e agora não disse: “Eu vou ler o meu discurso, o que vou escrevo nenhum, só escrevo prosa. Agora, fazer na Academia, que é a coisa mais im- curiosamente, o poeta não se divorcia da portante, a última coisa importante que vou prosa. Porque em meus dois livros de me- fazer na vida. Você, por favor, tome nota mórias, O espelho do príncipe e Invenção de todos os erros, pausas de respiração, o do desenho, todos os críticos e leitores des- que tiver, mas não me interrompa para que tacam a linguagem poética com que eles eu possa ir até o fim, e me faça as obser- são escritos. De maneira que acho que o vações depois”. E começou a ler o discur- poeta continua lá dentro. so: estava perfeito. Dois dias depois fui à Alberto da Costa e Silva • 109 posse dele. Ele repetiu o discurso como tinha Que Lima Barreto era negro, Antenor Nas- lido para mim, ele sabia o discurso de cor, centes, todos eles mestres nas suas áreas, mas fingia que lia (risos). Essa é uma visão não há melhor geógrafo que Teodoro Sam- de poeta, não é verdade? Telefonei para ele paio, e numerosos outros. Tem aqueles que na véspera da morte perguntando se poderia hoje consideramos negros, mas eram con- vir ao Itamaraty para dizer umas palavras no siderados, na época deles, mulatos, como hasteamento da bandeira, cerimônia que se Machado de Assis, Nelson Carneiro, que foi faz todos os anos no Dia da Bandeira. Ele me senador pelo Rio de Janeiro e ninguém se disse: “Peça desculpas aos nossos colegas, lembra que era descendente de africanos; mas não vou porque estou muito gripado”. mas ele se lembrava, tinha isso presente o Morreu naquele dia. Morreu falando ao tele- tempo todo, porque o irmão dele, Edison fone com a secretária dele: “Estou morren- Carneiro, grande antropólogo, era estu- do, estou morrendo”, e ela “Rosa, desligue dioso dos negros da Bahia. Não basta que o telefone para eu chamar o médico”. E ele esses tenham atingido o reconhecimento respondeu: “Você está esquecendo que eu de seu tempo, porque essas foram pessoas sou médico!” (risos). O Rosa era um per- excepcionais, grandes homens, gênios, per- sonagem muito interessante. Era muito ele sonalidades sem competidores. É preciso, próprio, sem disfarce, sendo todo ele disfar- sobretudo, que nem todas as pessoas pre- ce, a começar pela gravatinha borboleta. cisem ser gênios excepcionais para serem notadas em seu tempo e exercerem fun- ções importantes na vida coletiva. À me- Salgado Maranhão Apesar da enorme dida que os negros não são incorporados luta dos negros para ocupar espaços de ex- na plenitude dos seus valores nós deixamos celência na sociedade brasileira, você é es- de ficar mais ricos, nos empobrecemos. perançoso para um futuro próximo? E veja bem: quando você anda pelas ruas ACS Eu sou esperançoso e confiante. Em- do Rio de Janeiro, ou de várias outras cida- bora reconheça que os avanços conquista- des brasileiras, você vê que essa presença, dos foram insuficientes. Que é preciso re- de descendentes de africanos, é marcante. almente que os descendentes de africanos, Mas não é sentida como tal, é como se eles mais caracteristicamente os descendentes passassem invisíveis nas ruas. Acho que os de africanos, cheguem a todos os pata- descendentes de africanos já estão no mo- mares da sociedade brasileira. Não vale só vimento para ocupar esses espaços, que são lembrar que Juliano Moreira era negro, que deles. Mas ainda falta muito. Nós não so- Teodoro Sampaio era negro, que Nilo Peça- mos uma democracia racial, nem nunca fo- nha era negro… mos. Isso foi invenção do Estado Novo. Mas nós aspiramos a ser uma democracia racial. O brasileiro aspira a ser parte de uma so- Wellington Soares Machado de Assis era ciedade sem discriminação por cor, origem negro… ou qualquer outro fator. Nós aspiramos, ACS Machado de Assis hoje é considerado mas não somos. Por enquanto nós somos negro, na época dele não consideravam… um povo que, pode-se dizer, em que nos 110 • Entrevista concedida à Revista Revestrés divertimos juntos, mas trabalhamos separa- vamos esconder a escravidão: é preciso lem- dos. Se você vai a uma torcida de futebol brá-la sempre como uma chaga terrível, a não vai saber quem é branco, quem é preto, mais infame das maneiras de se subjugar e se é mulato, você não discrimina. No car- conservar trabalho. O trabalho dos outros! naval também. No geral as pessoas discri- Devemos, acima de tudo, ensinar às crian- minam sem ter a consciência de que estão ças o quanto elas devem ao escravizado, o discriminando. Discriminam em gestos sim- quanto elas devem a quem ensinou a fazer ples. Por exemplo, ao entrar em um hotel, determinadas comidas, a quem ensinou a se você é atendido por um funcionário ne- batear ouro nos rios, a quem primeiro pro- gro pensa que ele é um subalterno, que ele duziu ferro no Brasil. É preciso que se veja o é carregador, não que ele é o atendente do negro não só como alguém que sofre, mas hotel. Ou se estranha que, em determinado alguém que sofre e constrói, que é cria- ambiente, haja pessoas, digamos, coreanas, dor, que é inventivo, é inteligente, e foi um descendentes de africanos. Muitas vezes há agente de mudança essencial nesse país. o sentimento de estranheza. Você corrige, mas já teve o sentimento. Você precisa es- Wellington Soares Uma cena que guardo tar em um estado de correção permanente na memória é do senhor, no relançamento para corrigir seus desvios de discrimina- do livro Zodíaco, em Teresina, recitando de ção. O brasileiro não quer ser racista, mas cor e bastante emocionado poemas de seu é racista. Mas é, e por quê? Porque, desde pai. De que modo Da Costa e Silva e obra criança, ele foi ensinado. marcam a sua vida? (a pergunta se refere a um dos relançamentos do livro de Da Costa Wellington Soares “Escravidão, e não cor- e Silva; Zodíaco foi publicado pela primeira rupção, define a sociedade brasileira”, diz vez em 1917). Jessé Souza. O senhor concorda com isso? ACS Meu pai foi a coisa mais marcante ACS Culpa-se a escravidão por tudo, mas da minha vida. Deu toda a orientação da ela já acabou há muitos anos. Somos nós os minha vida. Na minha vida fiz aquilo que responsáveis pelas injustiças no país. Nossos ele gostaria de ter feito, se tivesse podido. antepassados foram responsáveis pelas in- Ele, por exemplo, queria ser diplomata, e justiças no país na época deles! Não adianta não foi. Eu fui! Ele não conseguiu se can- ficar culpando nossos antepassados sem- didatar à Academia Brasileira de Letras, eu pre. A culpa é nossa. A minha geração, por me candidatei. Toda a minha vida foi uma exemplo, perdeu grandes oportunidades de perseguição de repetir o meu pai. Repetir mudanças sociais. Nós não aproveitamos. não, repetir não é a palavra. Fazer aquelas Eu tenho a impressão que, antes de mais coisas que ele teria gostado de fazer e não nada, é preciso mudar a maneira de ensi- fez. Meu pai foi uma presença constante na nar o Brasil às crianças. Que desde a escola minha vida desde menino. Ficou doente aos as crianças aprendem a estimar os colegas 45 anos de idade. Porque era um homem ditos “de cor” e a ter orgulho de sua histó- doente, tinha todo o tempo para o menino ria, da história de seus antepassados. Não que eu fui. E ele passava horas conversando Alberto da Costa e Silva • 111 comigo, lendo poemas em inglês, em fran- ACS Recentemente um colega meu de cês, em italiano, em português. Desenhan- Academia foi ao Piauí e, quando voltou, do, ele desenhava muito bem, tinha um me disse: “Fiquei estarrecido com o cari- traço muito bonito. Ele fazia os desenhos nho com que seu pai é lembrado no Piauí. que eu pedia que fizesse. Quando passeava Não havia pessoa que não perguntasse por comigo pelas ruas de Fortaleza, ia me di- você, por causa dele”. E eu acho que o povo zendo os nomes dos passarinhos que canta- piauiense tem dado todo o carinho ao seu vam, os nomes das plantas, ele sabia tudo. poeta. Porque Da Costa e Silva foi o poe- Para o menino que eu era, ele era o senhor ta do Piauí, toda a poesia dele ressoa Piauí. da palavra, o senhor da vida! Uma pessoa Da última vez que fui a Teresina fiquei um que marcou toda a minha existência. Quan- pouco perplexo com o abandono da praça- do ele se foi, quando ele morreu, foi um -monumento Da Costa e Silva. Aquela era baque, que me deixou desarvorado, sem uma praça-monumento que era um exem- saber o que fazer, uma casca vazia. Não ti- plo para outras cidades de como cultuar o nha nada dentro de mim. O que mais existia poeta pelos seus versos. Lembro que, quan- dentro de mim era a lembrança de meu pai. do foi inaugurada, ela não tinha o busto do É muito difícil explicar uma relação tão es- poeta: ela tinha os versos do poeta. E nem pecial. Ele me ensinou algumas das coisas isso sei se está preservado atualmente, e em mais importantes que consegui aprender. que condições está. Eu não vou ao Piauí já Com uma enorme paciência, ele tinha hor- há uns cinco ou seis anos, mas da última ror a quem maltratava uma criança. Ele sa- vez que fui me deu tristeza ver a praça se- bia, como poucos, o valor das palavras. Os miabandonada. últimos 15 anos, 20 anos de vida ele passou sentado em uma cadeira de braço, com um Wellington Soares A notícia boa é que livro aberto, lendo, ou fingindo que lia. E foi em Amarante há um espaço dedicado a Da pela voz dele que ouvi Mallarmé perguntar Costa e Silva (Amarante é a cidade natal de se era um sonho o que ele amou, “estas Da Costa e Silva). ninfas eu quero perpetuar”. Foi pela voz dele que ouvi Whitman pela primeira vez. ACS Esse eu vi. Da última vez que fui ao Foi um professor de belezas. A presença Piauí já vi a casa, e até fui chamado para ver dele é a coisa mais profunda que há na mi- a sala dedicada a meu pai. É difícil fazer um nha poesia. No primeiro volume de meu li- museu sobre Da Costa e Silva porque Da Costa e Silva não guardava nada. Não guar- vro de memórias, Espelho do príncipe, você dava papéis, não guardava provas de livros, vai encontrar toda essa presença marcante não guardava coisa nenhuma. Meia dúzia, dele em momentos importantes da minha uma dúzia de fotografias era o espólio da vida de menino e de adolescente. lembrança dele. Mas ele lembrava sempre do Piauí. Lembro de uma vez, quando eu Wellington Soares O Piauí tem dado ao era menino, em Fortaleza, que um grupo de longo desses anos e governos o reconheci- rapazes do Piauí foi visitar meu pai. Quando mento merecido ao poeta Da Costa e Silva? minha mãe os anunciou, meu pai: “rapazes 112 • Entrevista concedida à Revista Revestrés de minha terra!”, e correu para abraçá-los. minha vida em Fortaleza, depois no Rio Embora estivesse em um processo de de- de Janeiro. Depois fui por esse mundo de pressão enorme, que o vitimou, ele entre- Deus, em Portugal, na Venezuela, nos Es- gou a esses rapazes do Piauí o melhor de tados Unidos, na Itália, na Espanha, na Ni- sua ternura, o melhor de suas lembranças e géria, no Benim, em Portugal novamente, o melhor de seu benquerer. na Colômbia, no Paraguai. Em todos esses momentos eu me senti piauiense. Todas as vezes que fui ao Piauí senti uma espécie de André Gonçalves E Amarante está pre- perfume no ar. Isso a gente traz no sangue. sente na obra de Da Costa e Silva com A gente sabe que é dali, que ali é a fonte carinho… de tudo. ACS Na primeira vez que fui a Amarante, faz muitos anos, faz décadas, fiquei real- Wellington Soares O senhor quer ser mente deslumbrado com a beleza da par- lembrado como embaixador, como poeta, te antiga da cidade. Se fez muito claro em ensaísta, africanista… mim porque o poeta fez aqueles versos “A minha terra é um céu, se há um céu sobre ACS Eu não quero ser lembrado como a terra; É um céu sobre outro céu, tão lím- nada. Talvez eu seja lembrado pelos meus pido e tão brando”, porque é exatamente livros, como um velhote simpático que con- isso. Aquele casario, aquela rua de casas versava sobre assuntos a respeito dos quais antigas, é realmente um esplendor. Quando ninguém mais conversa. Como um avô que veio aqui o Douglas Machado, apresentar conversa sobre as cantatas de Bach com os o filme O retorno do filho, as pessoas que netos. Aquele velhote exótico, estranho, assistiram à sessão, eram cerca de trezen- que tinha umas manias curiosas, se interes- tas, disseram: “Amarante é bonita mas não sava por arte, se interessava por história, se está nos guias turísticos, é tão bonita quan- interessava por mitologia, que se interessa- to as cidades antigas de Minas Gerais”. E va, sobretudo, pelo bom uso das palavras. felizmente foi preservada e está viva, por- O uso preciso e claro das palavras. Mas se que não foi preservada com coisas mortas, alguém um dia quiser lembrar, lembrar que continua viva. E a presença do poeta está houve o filho de um poeta piauiense que ali, permanente. Nesta casa, quem está ali, também escreveu, que esse filho do poeta além de um poeta, é o meu pai. piauiense foi também poeta. O melhor que pôde foi ser poeta. Porque foi o destino que lhe deu seu pai, quando ele nasceu. Samária Andrade O senhor foi diploma- E que está cansado de esperar por um Brasil ta, embaixador, viveu em vários lugares di- que não chega. ferentes, no Brasil e mundo afora. Como o senhor se relaciona com o Piauí? Wellington Soares Muito obrigado pela ACS Eu me considero piauiense de co- entrevista, poeta. ração. Eu nasci em São Paulo, fui gerado no Rio Grande do Sul. Vivi muitos anos de ACS Serviu? Antônio Torres

Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa Escritor, jornalista, advogado, indigenista, ambientalista e ativista cultural.

“Quando olho para trás, o que vejo é o um dos galardoados com o Prêmio Jabuti de melhor lugar para um escritor ter nascido. ficção (2007), por melhor romance. Pois do meio agrário e ágrafo de onde Antônio Torres publicou Um cão uivan- vim o que não faltava era contador de do para a lua (1972); Os homens dos pés histórias ao pé de um fogão de lenha, redondos (1973); Essa terra (1976); Carta para espantar o medo em noites cheias de ao bispo (1979); Adeus, velho (1981); Ba- fantasmagorias. Era como se as carências lada da infância perdida (1986); Um táxi do nosso cotidiano nos levassem ao reino para Viena d’Áustria (1991); O centro das da fabulação.” nossas desatenções (1996); O cachorro e o lobo (1997); O circo no Brasil (1998); Meni- 13 de setembro de 1940, nascia o nos, eu conto (1999); Meu querido canibal romancista Antônio Torres na cida- (2000); O nobre sequestrador (2003); Pelo A de de Sátiro Dias, na Bahia. Neste fundo da agulha (2006); Sobre pessoas ano de 2020, comemoram-se os seus 80 (2007); Minu, o gato azul (2007) e Do pa- anos de vida, coroados pela apresentação lácio do Catete à venda de Josias Cardoso de um novo enredo ficcional, intitulado (2007). Querida cidade, que sairá nos próximos me- Seus livros estão traduzidos em diversos ses pela Record, casa editorial desse gaba- idiomas e espalhados por mais de vinte paí- ritado Escritor. ses do mundo, como Argentina, Alemanha, Com exclusividade para o Domingo com Bulgária, Croácia, Cuba, França, Estados Uni- Poesia, o poeta piauiense Diego Mendes dos, Inglaterra, Itália, Portugal, Espanha, Ho- Sousa dialoga com o universo literário de landa, Paquistão, Vietnã, Israel e Romênia. Antônio Torres, imortal da Academia Brasilei- Testemunha Antônio Torres, que sua ra de Letras (ABL), onde é o sétimo ocupante imaginação criativa flui do onírico. É através da emblemática Cadeira 23. Autor seminal, do sonho, que o enredo dos seus escritos e detentor do Prêmio Machado de Assis da o fio condutor dos seus temas afloram em ABL (2000), pelo conjunto da obra, além de simbologias ficcionais. Entrevista publicada no site www.domingocompoesia.com.br. 114 • Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa

Em uma conversa franca, aberta e di- suspenso, no qual tudo ficou imprevisível. reta, Antônio Torres abre o seu baú de Como a comemoração dos meus oitentões imagens, memórias, caminhos e esqueci- com o lançamento de um novo romance mentos, sem jamais se afastar do compro- chamado Querida cidade, que a Editora Re- misso com a realidade brasileira. Histórico e cord havia programado para agosto. Agora, humano, Antônio Torres reconta a sua in- “é a espera debaixo deste céu descampa- fância, faz retratos com os seus pares, fala do”, como está escrito em um romance de dos seus projetos, revela os seus sentimen- 1976, chamado Essa terra. tos, mas antes dispara: “Quer dizer, ia, até entrar nesse tempo em suspenso, no qual DMS Em 2013, você foi eleito para a Aca- tudo ficou imprevisível”. demia Brasileira de Letras. Qual o significa- do de estar na linhagem sucessória de Ma- Entrevista chado de Assis?

Diego Mendes Sousa Em setembro de AT Significa um legado histórico extraordi- 2020, será comemorado os 80 anos do seu nário. A Cadeira 23 da ABL, fundada pelo nascimento. Como é saber-se reconhecido Bruxo do Cosme Velho – que a ocupou de em um país de poucos leitores? 1897 a 1908 –, tem a seguinte linhagem Antônio Torres Pertenço a uma geração sucessória: 1 – Lafayette Rodrigues Pereira, bem-lida, bem-criticada, bem-estudada, o conselheiro de D. Pedro II e autor de tra- bem-traduzida, muito viajada. E que vai da balhos jurídicos notáveis, e que veio a dar Porto Alegre de à Manaus nome à cidade em que nasceu, em Minas de Márcio Souza, passando pelo Paraná Gerais, e a uma rua de Copacabana, na de Domingos Pellegrini Júnior, São Paulo qual morou o poeta Carlos Drummond de – com Ignácio de Loyola Brandão e João Andrade. 2 – Alfredo Pujol, que foi um bri- Antônio –, o Rio de Nélida Piñon, Ana Ma- lhante jornalista e advogado, o primeiro a ria Machado e Sérgio Sant’Anna, as Minas fornecer uma visão abrangente da obra de de Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Machado de Assis em 7 conferências publi- Roberto Drummond, Wander Piroli e Luiz cadas em livro, hoje uma referência neces- Vilela, a Bahia de João Ubaldo Ribeiro, só sária. 3 – Otávio Mangabeira, um homem para citar alguns casos exemplares – e de de letras que foi ministro do Exterior e go- ficcionistas –, e nesses não pode faltar ou- vernador da Bahia, tendo se destacado por tro gaúcho, nascido em Santana do Livra- sua eloquência, habilidade política, dignida- mento, o meu saudoso amigo Flávio Mo- de e honestidade. 4 – Jorge Amado, que reira da Costa. dispensa apresentação. 5 – Zélia Gattai, que Não me cabe dizer se estou ou não en- foi a companheira perfeita de Jorge, consa- tre os que tiveram o seu quinhão de reco- grada na literatura a partir da publicação de nhecimento. Ou melhor: entre os que ainda Anarquistas, graças a Deus. 6 – Luiz Paulo o têm. Aqui e ali cruzo com alguém que me Horta, o jornalista e escritor que viveu na acena simpaticamente, e vou em frente. música até morrer, encontrando nela as Quer dizer, ia, até entrar nesse tempo em portas da transcendência. Antônio Torres • 115

Pronto. Está dado o peso da responsabi- no passado. Como em uma noite de sexta- lidade que me coube. -feira, em São Paulo, para onde eu havia me transferido do Rio de Janeiro, já casado com a Sonia, que me pediu para lhe contar uma DMS O seu patrono é José de Alencar! história da minha infância. Enquanto pu- Que importância tem essa confluência do xava pelas minhas memórias, via sinais de destino para sua formação intelectual? enternecimento em seu rosto. No sábado, AT Agora você me leva de volta a um lugar logo ao acordar, comecei a escrever um con- esquecido nos confins do sertão baiano, to, intitulado Segundo Nego de Roseno – sem rádio e sem notícias das terras civili- hoje incluído no livro Meninos, eu conto –, zadas. Sem livros. Ali, em uma manhã en- e que viria a dar origem ao romance Essa solarada, uma professora chamada Teresa terra. Em outras vezes, meu inconsciente pôs os seus alunos em fila, para que cada trabalhou por mim enquanto eu dormia. um lesse em voz alta um trecho de uma Foi assim em Um táxi para Viena d’Áustria, Seleta escolar – que vinha a ser uma an- e no ainda inédito Querida cidade, que nas- tologia de contos, crônicas, poemas e pe- ceram de um sonho. quenos capítulos de romance. Um desses trechos inundou a sala, fez o sertão virar os DMS Aos 32 anos de idade, você estreou verdes mares bravios da terra natal de José com o livro “Um cão uivando para a lua” de Alencar, onde canta a jandaia, na fron- (1972). O que esse livro representa para a de da carnaúba. O efeito dessa leitura foi sua trajetória enquanto escritor? simplesmente fabuloso. À noite, viajei em águas, faunas e floras de sonho. Além de AT Lançado em uma quinta-feira em uma não fazer a menor ideia de como era o mar, livraria de Copacabana, na segunda-feira não conhecia a jandaia e a carnaúba, nem seguinte Um cão uivando para a lua viria de pluma, nem de folhagem, pois perten- a ser saudado por , no jor- ciam a outras paisagens, e distantes, como nal Opinião – um semanário de circulação a do Ceará. Foi esse o primeiro impacto nacional pra lá de bom – como “uma feliz que as linhas iniciais de um romance me estreia”. O entusiasmo do Aguinaldo aca- provocaram, instalando-se como o lugar da bou levando praticamente toda a crítica imaginação, e aqui se reinstalando como o a tomar conhecimento desse livro, o que da memória. Quem sabe aquela leitura em por sua vez puxou os leitores. Registre- voz gaguejante do começo de Iracema te- -se que eu não o conhecia. E de lá para cá nha sido o marco zero do meu destino de só o vi uma única vez, e de raspão, sem romancista? tempo para demonstrar a minha gratidão pela porta gigantesca que ele abriu a um ilustre desconhecido que adentrava a li- DMS Como nascem as histórias das suas teratura sem qualquer apadrinhamento. narrativas? A minha sensação é a de que Um cão ui- AT Às vezes, de alguma coisa no presen- vando para a lua foi lançado no dia, mês te que me remete a uma situação vivida e ano certos. Ou seja, deu sorte. O que, 116 • Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa como dizia Jorge Amado, todos precisa- jovem, de ser poeta! O que lhe desvirtuou mos. Portanto, muita sorte para os livros do caminho poético? e seus autores. AT Foi um professor do Ginásio de Alagoi- nhas, cidade a meio do caminho da capital, DMS Podemos considerar o romance Essa quem me fez mudar de rumo. – Você se ex- terra (1976) como a sua obra-prima? pressa melhor em prosa do que em verso – ele me disse, baseando-se em uns exercícios AT Há controvérsias. Ana Maria Machado, por exemplo, lhe diria, como já fez de pú- de escrita que eu vinha publicando em um blico, que esse pódio é de O cachorro e o jornalzinho feito pelos alunos que faziam lobo. Que dá sequência ao Essa terra, abrin- parte do Grêmio Lítero-Recreativo Castro do caminho para uma trilogia, fechada com Alves. Levei a sério aquela observação. Mas Pelo fundo da agulha. sem jamais perder o meu fascínio pela poe- sia. A falta de talento para ela acabou me empurrando para a ficção. DMS Conte-me sobre a sua vivência no Junco, o seu torrão natal no interior da Bahia, e a relação com as imagens oriundas DMS O jornalismo teve influência no seu da sua infância. processo criativo? Os romances históricos nasceram desse olhar investigativo? AT Quando nasci, o Junco já se chamava Sátiro Dias. Era um distrito de Inhambupe, AT Além de jornalista, fui redator publici- no semiárido da Bahia, a apenas 210 qui- tário, com passagens por grandes agências lômetros de Salvador, distância que parecia de São Paulo, do Rio e de Portugal, onde enorme devido à precariedade da estrada vivi três anos. E se o jornalismo me ensinou para a sede do município, dali a sete léguas, a ver o mundo, a publicidade me ensinou a e a ausência de qualquer meio de comuni- contar isso rapidinho. cação, a não ser o correio, que chegava de oito em oito dias, no lombo de um burro. DMS Gosto muito do cronista Antônio Tor- Hoje, é uma pequena cidade tão interligada ao mundo quanto qualquer outra de maior res. Sobre pessoas (2007) foi um livro que porte. Quando olho para trás, o que vejo é me marcou sobremaneira. Quem são essas o melhor lugar para um escritor ter nascido. pessoas? Pois do meio agrário e ágrafo de onde vim o AT São figuras célebres das letras, da mú- que não faltava era contador de histórias ao sica, do cinema, do esporte e da História: pé de um fogão de lenha, para espantar o , , Garrincha, medo em noites cheias de fantasmagorias. Monteiro Lobato, Jorge Amado, Faulkner, Era como se as carências do nosso cotidiano Jorge Luís Borges, , Tônia nos levassem ao reino da fabulação. Carrero, João Saldanha, Tom Jobim, Miles Davis (todos os trompetes havidos e a ha- DMS É sabida a sua admiração pelo poeta ver), Vinicius de Moraes, e muita gente baiano Castro Alves e a sua ambição, desde mais, lendária ou não. Antônio Torres • 117

DMS Meninos, eu conto (1999) é o seu “Agrégation”, concurso para professores único livro de contos. Por que os romances de língua portuguesa nas escolas francesas. predominaram no seu fazer literário? Quelle surprise!

AT Comecei escrevendo contos. O primei- ro foi publicado em uma revista, em São DMS Seus livros estão traduzidos em diver- Paulo, e o segundo em um jornal do Porto, sos idiomas. A que você atribui esse sucesso onde vivi um ano e meio. Perdi os dois. A editorial no exterior? ideia inicial de Um cão uivando para a lua AT Tenho romances e contos publicados era a de um conto centrado num louco a em mais de vinte países, o que não signifi- bater papo consigo mesmo. Mas a história ca sucesso editorial no exterior. Meu finado avançou e deu no que você sabe: uma dú- amigo definia à perfei- zia de romances, com apenas quatro contos ção o espaço conquistado pelos escritores pelo caminho. Três estão no livro Meninos, brasileiros lá fora: um sucesso de estima. O eu conto e o outro, que se intitula Atrás da que já é bom, diga-se. Pior seria se nem isso cerca, foi publicado na antologia Malditos tivéssemos. Só Jorge Amado, ao seu tempo, escritores!, organizada por João Antônio, e e Paulo Coelho, no presente, foram além também em Cuba, na revista da Casa de las disso. Muito além, reconheça-se. Américas, e, mais recentemente, em Portu- gal, numa edição da Editora Teodolito com DMS Se lhe fosse dada uma oportunidade a Fnac, para o Dia Mundial do Autor. Sem de um reinício literário, o caminhar seria o dúvida, minha produção de contos é pe- mesmo? quena. Mas é possível que no futuro eu ve- nha a ser lembrado apenas pelo conto Por AT Não dá para me ver reiniciando pela um pé de feijão, incluído por Ítalo Moriconi mesma trilha. Até porque ao longo da ca- entre os Cem melhores do século, e que minhada venho pegando atalhos variados, não para de sair em livro didático, além de ao passear por cenários urbanos, rurais e ter sido escolhido pelo Ministério de Edu- da História. O que virá daqui pra frente? cação da França, em 2015, como prova do Aguardemos o próximo capítulo.

João Almino

Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa Escritor, jornalista, advogado, indigenista, ambientalista e ativista cultural.

“(...) há duas razões principais para situar (1987), Samba-enredo (1994), As cinco es- histórias em Brasília, a primeira é que é uma tações do amor (2001), Livro das emoções cidade como nenhuma outra; a segunda (2008), Cidade livre (2010), Enigmas da pri- é que é uma cidade como qualquer outra, mavera (2015), Entre facas, algodão (2017). onde existem angústias, desesperos, tristezas, Seus romances ganharam versões em in- desgraças, ódios, tragédias, alegrias, glês, francês, italiano e espanhol. Dentre esperanças, êxtase, amor, enfim todas essas os diversos prêmios, foi galardoado com o emoções com que se constroem as ficções.” Casa de las Américas de Cuba. Cidadão do mundo, João Almino é um oão Almino de Souza Filho, o benja- cultuado ensaísta de literatura, além de um mim de uma família de sete irmãos e teórico da filosofia, da política e da história, J alfabetizado em casa, cujo genitor era com pensamentos sobre utopia, autoritaris- leitor de José Lins do Rego (1901-1957) e mo e democracia, tendo publicações semi- de José Américo de Almeida (1887-1980), nais nos temas, como em Os democratas chega aos seus setenta anos de vida neste autoritários (1980), Era uma vez uma cons- ano de 2020. tituinte (1985), 500 anos de utopia (2017) e Nascido em 1950, o escritor João Al- Dois ensaios sobre utopia (2017). mino, embaixador e imortal da Academia Morou em outros países, como Estados Brasileira de Letras (ABL), autor de sete fe- Unidos, México, França, Inglaterra, Portu- cundos romances, pioneiro na elevação de gal, Espanha e, atualmente, reside no Equa- Brasília, capital federal, como urbe literá- dor, onde exerce a função de Embaixador ria, conversa com o poeta piauiense Diego do Brasil. Mendes Sousa, em entrevista exclusiva para Andarilho, o seu olhar sobre a estética o Domingo com Poesia, sobre a sua história literária possui contornos singulares. É de- pessoal, intelectual e diplomática. tentor de um estilo próprio, que prima João Almino é autor das narrativas de pela formalidade estrutural do romance, a Ideias para onde passar o fim do mundo pontuar o tempo e as imagens de maneira Entrevista publicada no site www.domingocompoesia.com.br. 120 • Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa proustiana, com verossimilhança e com a onde eu e todos os sete filhos de Natália e força técnica das mais esmeradas palavras. João nascemos. O mais velho, José, mor- Sua linguagem é fotográfica, cinemato- reu antes de completar um ano. Sou o mais gráfica e tecnológica. Suas personagens são novo. Minha irmã de idade mais próxima, também ciganas e emblemáticas, transpor- Maria José, também já morreu. Os demais, tadas de um romance a outro, sempre com meu irmão mais velho, Pedro, e três irmãs, novas razões, a propósito de Paulo Antônio Salete, Fátima e Bernadete, vivem atualmen- Fernandes e de Berta. te em Fortaleza. Durante minha infância, a João Almino é um mestre da narrativa, rua era tranquila e, à exceção de um grupo apurado, brilhante e definitivo, o que torna escolar, inteiramente residencial. Eu brincava o seu universo ficcional encantador. nas calçadas ou nos terreiros das casas com Neste diálogo com João Almino, conhe- os amigos. Brincadeiras de bola de gude, de ceremos um escritor de inteligência privile- financistas trocando notas de carteira de ci- giada, que teve a oportunidade de ser ami- garro Continental ou Hollywood. No final da go dos excepcionais criadores Octavio Paz e tarde, as brincadeiras envolviam também as Álvaro Mutis, bem como de ser discípulo de meninas, cantigas de roda, berlinda. Com os Foucault, Barthes, Bourdieu e Claude Lefort. primos e primas, havia lutas de faroeste ou Professor visitante de literatura em uni- batizados de bonecas. O grupo escolar na- versidades importantes como Berkeley, Chi- quela nossa rua foi o primeiro em que es- cago e Stanford, João Almino ainda nos tudei. Uma escola pública. Resisti a ir para ensina que “a relação do homem com o a escola. Assim entrei já no segundo ano, e tempo é algo que perpassa todas as nar- minha primeira professora foi minha irmã rativas como uma obsessão, sob a forma mais velha, Salete, que já havia me ensinado das camadas de história, do presente ou do a ler e escrever em casa. Depois fui transferi- instante ou ainda do apagamento ou da re- do para uma escola particular, para onde eu cuperação da memória”. caminhava a pé. Uma única sala, onde Dona Maria Clotilde colocava todos os alunos do Entrevista primário, do primeiro ao quinto ano. Diego Mendes Sousa João Almino, nor- destino, um potiguar de Mossoró! Conte- DMS Aos doze anos de idade, você ficou -me um pouco da sua infância sob as bên- órfão de pai e a sua família migrou do Rio çãos de Santa Luzia, padroeira da sua casa Grande do Norte para o Ceará. Qual a re- natalícia. presentatividade da presença paterna em sua vida? João Almino Bem lembrada a festa de Santa Luzia, em dezembro. Em uma das pa- JA A meu pai, João Almino de Souza, devo redes de minha casa havia uma imagem da o meu nome e o amor pelos livros. Nunca santa segurando um prato no qual se viam frequentou escola, foi autodidata, mas lia dois olhos. Um tanto inquietante. muito, sobretudo histórias de santos e livros Morei em Mossoró, até os doze anos, de história do Brasil e universal. Tinha uma na Rua Dionísio Filgueiras e em uma casa pequena biblioteca na qual encontrei alguns João Almino • 121 romances de escritores regionalistas nordesti- JA Na época não havia concurso para o nos. Elogiava minhas primeiras tentativas de Instituto Rio Branco em Fortaleza. Então me escrever um livro, ou seja, os garranchos que aventurei. Decidi ir para o Rio com a ideia eu fazia em um caderno de escola. E assim de me submeter ao concurso para a carrei- foi quem primeiro me incentivou a escrever. ra diplomática. Não conhecia ninguém no Rio. Mas, como em Fortaleza era diretor de cursos e dava aulas de inglês no Instituto DMS A terra de José de Alencar é conside- de idiomas Yázigi, consegui chegar ao Rio rada berço de grandes escritores. Ter residi- com um emprego na sede da Avenida Rio do lá lhe inspirou a carreira literária? Branco daquele Instituto. Tinha também o JA Não diretamente, mas tudo que a gente dinheiro ganho em um concurso nacional vive de alguma forma pode se transformar sobre direito de autor e da venda de um sí- em experiência literária, no meu caso não tio, a Santa Maria, nos arredores de Mosso- através de uma transposição direta, porque ró e herdada de papai. continuo preferindo a ficção à autoficção. Em Fortaleza passei minha adolescência, período sempre muito marcante na vida de DMS Seu mestrado é em Sociologia, pela cada um. Morando e estudando no Ceará, Universidade de Brasília (UnB). A mudança e já que você cita José de Alencar, foi obri- do Rio de Janeiro para Brasília foi motivada gatório entre os treze e os dezesseis anos pela carreira diplomática? Conte-me sobre ler praticamente todos os seus romances. a sua pioneira visita ao Planalto Central e Eu fazia resumos e espécies de resenhas sobre as suas andanças pelo mundo. de cada um deles. Confesso que mais do JA Minha mudança para Brasília se deu que Iracema, cuja poesia vim a apreciar, ou depois que concluí o Rio Branco no Rio, já O guarani, me encantava a leitura do diver- para começar a trabalhar no Itamaraty. Mas tido A pata da gazela, de Senhora ou de havia estado em Brasília alguns anos antes. Lucíola. Mais até do que Fortaleza, o sertão Uma irmã, Salete, justamente a que foi mi- do Ceará me marcou muito. Ainda quando nha primeira professora, então morava lá, morávamos em Mossoró, os períodos de fé- com o marido, funcionário do Ministério da rias passávamos sempre no Benfica, fazen- Agricultura. Naquela breve passagem por da de meu avô onde mamãe tinha nascido Brasília escrevi dois contos, que nunca fo- e crescido. Ficava perto do Bom Jardim, de- ram publicados, porém inspiraram persona- pois Potiretama, de Ereré e de Iracema. É gens de meu primeiro romance. uma região sertaneja do Ceará próxima aos De Brasília segui para Paris, em uma limites do Rio Grande do Norte e da Paraí- época de intensa efervescência cultural. De- ba. Meu pai era potiguar, de Pau dos Ferros. pois Beirute em plena guerra civil. No Méxi- co tive o privilégio de manter contato com DMS Você se formou em Direito pela um círculo muito interessante de escritores Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Octavio Paz, Álvaro Mutis, Enrique Fierro, (UERJ). Como foi esse percurso de Fortale- Ida Vitale, Alberto Ruy Sanchez e tantos ou- za para o Rio? tros). Um capítulo do que viria a ser meu 122 • Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa primeiro romance foi publicado na revista rádio os discursos de sua inauguração. Mais Vuelta, antes, portanto, de que fosse publi- adiante, quando comecei a publicar ficção, cado no Brasil. A lista é longa: Washington, Brasília me atraiu como palco e persona- Lisboa, Londres, Miami, Chicago, Madri. gem por ser território relativamente pouco Em San Francisco fui quase vizinho do poe- explorado pela literatura (hoje em dia já ta Michael Palmer, com quem colaborei em não mais) e por uma série de razões simbó- alguns projetos. Destaco que me deu muita licas. Entre estas, o fato de que a ideia de satisfação ser professor visitante de literatu- Brasília havia acompanhado toda a história ra em Stanford, Berkeley e na Universidade do Brasil independente. Já José Bonifácio, de Chicago. antes mesmo da independência, em 1821, sugeria “Brasília” como um dos nomes pos- síveis da “cidade central no interior do Bra- DMS As suas primeiras dicções ficcionais sil para assento da Corte ou da Regência” frutificaram à beira do Sena. Como foi essa e Machado de Assis, nosso maior escritor, sua vivência nessa ambiência? comentava ainda no século dezenove a JA Foi um período rico em muitos aspectos. mudança da capital. Como era uma cidade Vinha escrevendo um romance, que tardou de cruzamentos, um Brasil de Brasis, eu po- a ser concluído, mas teve partes escritas em deria trazer para ali personagens de vários Paris. Também foi uma época de intensa ati- lugares, entre os quais do Nordeste onde vidade intelectual. Tive a oportunidade de nasci e cresci. Um contraste que sempre frequentar cursos de grandes mestres, como me fascinou e explorei na minha literatura Foucault, Barthes e Bourdieu. Mas sobretu- é aquele entre o projeto racional e a irracio- do me aproximei do filósofo Claude Lefort, nalidade espontânea, presente por exemplo que foi meu orientador de tese. E em Paris na proliferação de seitas místicas. Como conheci minha mulher, a artista plástica Bia morei em várias cidades no exterior (hoje Wouk, e com ela tenho duas filhas, Letícia somam doze), quis ter um único ponto de Wouk Almino, arquiteta, e Elisa Wouk Almi- referência espacial para meus romances e no, escritora, tradutora e editora. que ele fosse no Brasil. Até hoje há quem ache que Brasília se presta pouco para a li- teratura. Que é apenas a cidade do poder. DMS Em 1987, veio a lume o seu roman- Que uma história que se passe em Brasília ce de estreia Ideias para onde passar o fim se limita aos porões do Congresso ou ao do mundo, texto inovador e musical, que dia a dia da burocracia. Uma vez disse o se- inaugurou, historicamente, a fundação de guinte: há duas razões principais para situar Brasília através da ficção. Por que Brasília? histórias em Brasília, a primeira é que é uma JA De fato Brasília aparece em meus sete cidade como nenhuma outra; a segunda é romances, até mesmo no mais recente, En- que é uma cidade como qualquer outra, tre facas, algodão. Há muitas razões para onde existem angústias, desesperos, tris- isso. Foi a cidade onde morei por mais tem- tezas, desgraças, ódios, tragédias, alegrias, po. E criança, ainda em Mossoró, acompa- esperanças, êxtase, amor, enfim todas essas nhei a saga de sua construção e ouvi pelo emoções com que se constroem as ficções. João Almino • 123

DMS Depois de Ideias para onde passar o essa volta ao passado, mas esse passado vai fim do mundo, veio o quarteto de obras em sendo redescoberto ao longo da viagem. que a tônica literária Brasília é intensificada. Seu presente vai lhe trazendo surpresas, e Quais os retratos, os temas e o signos nar- seu futuro vai sendo reescrito. A viagem é rativos desses romances? sempre e só de ida.

JA São muito diferentes um do outro, mas existe um universo ficcional próprio que DMS Atualmente, você é Embaixador do tentei criar para esses romances. Alguns Brasil no Equador. Vive em Quito, cidade personagens migraram de um livro para o conhecida como la mitad del mundo e onde outro, sendo vistos de ângulos ou a partir João Cabral de Melo Neto também serviu. de momentos distintos. Em vários dos ro- O poeta pernambucano exerceu alguma in- mances, existe um diálogo entre a lingua- fluência sobre o homem e sobre o escritor gem literária e outras linguagens, a foto­ João Almino? grafia, o cinema, o computador, o blog. JA Desde adolescente sou leitor de João A relação do homem com o tempo é algo Cabral. Ele e Graciliano Ramos são os dois es- que perpassa todas as narrativas como uma critores nordestinos que mais li e reli, princi- obsessão, sob a forma das camadas de his- palmente porque sempre admirei a força das tória, do presente ou do instante ou ain- linguagens que empregaram, com economia da do apagamento ou da recuperação da de palavras. O estilo da secura. No ano 2000 memória. escrevi um longo ensaio sobre João Cabral, fazendo uma leitura de sua poética de “A DMS Seu estilo é sofisticado, fluente e pedra do sono” até “A educação pela pe- aberto. Enigmas da primavera (2015) pode dra.” Recentemente, quando vim para Qui- ser considerada a sua obra-prima? to, me interessei particularmente por seus poemas equatorianos. Em geral, quando se JA Deixo para os críticos decidir, se é que pensa em associar a obra de João Cabral a existe alguma. Isso foi dito a respeito de lugares, com razão vem à mente imediata- Cidade livre. E recentemente, pelo crítico mente Pernambuco, sobretudo Recife, e a Hans Gumbrecht, a respeito de Entre facas, Andaluzia, especialmente Sevilha. No entan- algodão. to, esses poemas equatorianos têm força e qualidade à altura de sua obra, contendo vá- DMS Em que contexto foi escrito Entre fa- rias de suas características essenciais, como cas, algodão (2017)? Há nele fragmentos são a ausência de retórica e a imagem con- de uma infância reencontrada? Você foge creta, mineral, da palavra. da autobiografia, mas sempre ficam as cen- telhas de algo perdido... DMS Aprecio o seu olhar fotográfico ante JA A ideia era não escrever a clássica histó- o mundo. A fotografia imprime visões sim- ria da volta às raízes. O personagem faz uma bólicas sobre os seus romances? De onde viagem no tempo e no espaço procurando vem o insight para a arte da fotografia? 124 • Entrevista concedida a Diego Mendes Sousa

JA Desde adolescente tenho me interessa- mais distintas tradições, sendo portanto do pela fotografia. Cheguei a fazer algumas plural, nunca sectária e sempre mantendo exposições e a publicar um livro de fotos. sua independência. Por essas razões tenho Talvez por essa razão exista uma visualidade muita satisfação em contribuir, na medida nítida em meus romances ou pelo menos de minha capacidade, com seu papel histó- em passagens deles. Um dos romances, rico e cultural. O livro das emoções, é escrito através da lembrança que um fotógrafo que ficou DMS Além de um brilhante romancista, cego tem de fotografias que para ele têm você é também um conceituado pensador uma alta carga emocional. O leitor, ao “ler” e ensaísta sobre utopia, autoritarismo e de- as fotografias, que nunca vê, poderá com- mocracia. O que ainda esperar do Brasil? por as peças do romance. JA O Brasil surpreende para o bem e para o mal. Uma vez, ao escrever sobre Machado DMS Você foi eleito em 2017 para a Aca- de Assis, discorri sobre o “pessimismo como demia Brasileira de Letras (ABL). O que sig- método”. Um pessimismo que não significa nifica ser um imortal em um país que pouca abdicar de toda a esperança, mas apenas em importância dá a sua cultura? ter capacidade de enxergar os lados mais JA Acredito na importância das institui- negros da realidade, os riscos, os possíveis ções. E a Casa de Machado de Assis é, no precipícios. Melhor não esperar nada e ten- âmbito da cultura, uma longeva e sólida tar contribuir para manter e aprofundar a instituição brasileira, tendo recolhido as democracia e para que o futuro seja melhor. POESIA William Soares dos Santos

illiam Soares dos Santos (1972) poesia e finalista do 3.o Prêmio Rio de Lite- é carioca, professor da UFRJ e ratura no mesmo ano. Seu mais recente livro W escritor. Realizou várias publica­ de poemas é Três sóis (Editora Patuá, 2019). ções. Dentre seus trabalhos literários, des- É finalista do prêmio Jabuti de 2020 com a taca-se o livro Poemas da meia-noite (e do sua tradução do romance A Cidade do Vento meio-dia) (Editora Moinhos, 2017), ganhador de Grazia Deledda. Página do autor: http:// do Prêmio PEN Clube do Brasil de 2017 para william­soaresdossantos.com.br/index.html 126 • William Soares dos Santos

andarilho

Do livro Rarefeito, de 2015.

ando pela tarde,

sob o sol que me transborda, sou jogado pelo vento que insiste em me desnudar,

mas nada pode

findar a minha marcha, nem a dor mais intensa,

nem o ronco rouco do mar. William Soares dos Santos • 127

o frio

Do livro Rarefeito, de 2015.

as vezes, quando chove, venta e a noite e rara, tenho de sair entre o vendaval, ate sentir prazer no frio que abraca o meu coraço. o frio me inunda. e, ao receber todo o orvalho em meu corpo, posso sentir que tenho um coraço quase meu. 128 • William Soares dos Santos

Os elefantes

Do livro Poemas da meia-noite (e do meio-dia), de 2017.

Quem defendera a vida dos elefantes

quando a Africa sangrar?

Quem, no meio da floresta adentro, enfrentara a tormenta das noites sem sono e dos dias sem lembranca? Quem preservara a memoria dos elefantes? Quem ouvira o seu canto inaudivel e fara revelar os antigos caminhos

pelos quais a matriarca da manada

guiaria seus filhos ao antigo e derradeiro lugar dos seus ancestrais?

Quem chorara, como choram os elefantes,

diante do corpo sagrado da matriarca

a repousar em meio a relva que,

pouco a pouco, a resguarda em seu irremediavel destino?

Quando seremos como os elefantes e arrancaremos de nos toda

a ganancia, todo o odio, toda a furia

que nos faz infimamente pequenos

diante da grandeza,

perene grandeza, dos elefantes? William Soares dos Santos • 129

Deseo & alma

Do livro Raro, de 2018.

Deste-me dois sachês de chá trazidos de seu país distante.

Em um deles estava escrito deseo e, no outro, alma.

Era como se tu me dissesses

“desejo a tua alma”, simples assim.

Tomei o deseo (ou fui tomado por ele, já não posso dizer) em uma tarde solitária, quando eu buscava abrigar alguma paz em meu coração, o que me lembrou de um poema de Leopoldo Lugones que fala da tarde que ilumina a paz de uma morada.

O chá me levou, com os perfumes que exalava, aos pampas por mim desconhecidos. 130 • William Soares dos Santos

Confesso, tive vontade de descortinar o teu corpo distante naquele dia.

Pena que nunca tivemos nem o tempo, nem a oportunidade do ocaso que nos embalasse na espuma de

Afrodite. William Soares dos Santos • 131

Boa Esperança

Do livro Três sóis, de 2019.

Estive em Boa Esperança e ali, em um dia no qual a cerração intensa da manhã cobria as copas das árvores, por algum destino não palpável, remotas reminiscências de uma infância perdida se renovaram. Vi ressurgirem imagens antigas de uma casa cheia de primos agora mortos, agora esquecidos, agora dispersos pelo mundo e que, no entanto, insistem em permanecer em minha lembrança atroz. Vi ressurgirem imagens de minha tia italiana, que tinha na boca um idioma distante que entrou (e não saiu mais) em meu coração, e que trazia, também, suas receitas antigas de polentas que espantavam o gosto da miséria daquele nosso pequeno mundo. 132 • William Soares dos Santos

Vi borbotarem imagens de minha tia cigana que embalava meus sonhos de conhecer países distantes e que me fazia previsões de um raro destino. Vi renascerem imagens de minha tia negra que evocava (sempre às escondidas) os espíritos de seus ancestrais, de uma África distante, apenas para me abençoar. Vi materializar-se a imagem mestiça de meu avô, com sua força negra e indígena, indecifrável para mim. Vi brilharem novamente os olhos azuis de minha avó portuguesa e a sua tez branca que se fundia com a luz da manhã. Sobreveio-me o carinho, agora distante, de minha mãe e o brilho apagado de seus olhos verdes em pele moura. Tudo isso em um pequeno canto do Brasil que nunca se quis, nem jamais quererá ser o país do futuro. Leonardo Antunes

eonardo Antunes (São Paulo, 1983) é UFRGS, tradutor do Édipo Tirano de Sófocles autor de Lícidas (2019, Zouk) e de João (2018, Todavia), atualmente dedica-se a uma L & Maria – Dúplice coroa de sonetos tradução da Ilíada de Homero em decassíla- fúnebres (2017, Patuá), que recebeu os prê- bos duplos e à composição de um poema mios: AGES (melhor livro de poesia) e Aço- épico de sua autoria, Miríade. Os poemas rianos (melhor livro de poesia e livro do ano). desta seleção pertencem ao livro Regressos, Professor de Língua e Literatura Grega na a ser lançado em breve pela Editora Martelo. 134 • Leonardo Antunes

Crer-se gênio malgrado todos os malgrados

Crer-se gênio malgrado todos os malgrados, de modo altivo, prepotente, presunçoso, porém discreto e extremamente elaborado, senão irônico e talvez obsequioso, com adereços afetados, circunlóquios, virtuosismos excessivos e excrescentes, eventuais depreciativos solilóquios, mas de humildade exposta artificiosamente, até que, seja por milagre ou competência, se faça enfim alguma coisa quase nova, alguma coisa grande, em autorreferência (que pela referência o gênio se comprova), para entender ao fim de tudo, resoluto, que a novidade dura apenas um minuto. Leonardo Antunes • 135

Amor fati

Criatura de carne, putrescível, plasmada nalgum ventre turvo e quente, a fim de que do ventre te alimentes de alheia criatura, deglutível, se acaso te desejo, é permissível chamar-te, à revelia do decente, por todos os vocábulos somente reservados ao mundo inteligível?

É fás que tua forma transitória, fadada, contra o gosto da memória, ao íntimo da terra e à sepultura, evoque-se em meu verso perdurável, do modo com que surge deleitável aos olhos hoje em dia, com ternura? 136 • Leonardo Antunes

A flor do campo

Não toques, filha, a flor do campo: conquanto bela, dura nela tão pouco tempo o seu encanto.

Ela amanhece assim, semelha à estrela d’alva, sem ressalva de ser inteiramente bela.

Mas ao cair da tarde é finda a tinta de Hebe em que se embebe, e como um sonho some, extinta. Leonardo Antunes • 137 vivendo aprendo coisas dolorosas

“vivendo aprendo coisas dolorosas” seria um bom final de um bom poema que há vários dias tento arquitetar, mas não consigo; falta força, falta fôlego, perspectiva, algum sentido – afundo-me em profundo descaminho.

talvez alguém pudesse, gentilmente, traduzir meu poema para o grego e perdê-lo nalgum papiro roto, quase todo ilegível à exceção de um único brilhante verso meu: “vivendo aprendo coisas dolorosas”. 138 • Leonardo Antunes

Meus fracassos se erigem como monumentos

Meus fracassos se erigem como monumentos, altivos, permanentes, sempre à vista. São feitos de matéria artificiosamente engendrada – conspícua e duradoura – e lançam densa sombra sobre as silhuetas incertas, fugidias, resignadas do que talvez um dia, sobre a areia, alguém houvesse registrado algum sucesso. Leonardo Antunes • 139

Décima de não ser gaúcho – poemeto de alteridade

Eu não nasci no Rio Grande. Jamais andei a cavalo. Por isso mesmo me calo sobre a glória de quem ande. Ver como o pampa se expande infinito na campanha dá uma vertigem estranha em alguém que foi criado, desde pequeno, amparado nas encostas da montanha.

Aqui, a terra é um destino. Se alguém puxa uma cadeira e te diz que é da fronteira, jamais duvides, menino, do grande orgulho uterino que nessa origem se imprime. (Mesmo que penses nos crimes com que esta terra foi feita, existe terra perfeita? Existem homens sem crime?)

Eu sou paulista de origem, paulistano de nascença, do tipo que não dispensa pizza, garoa e fuligem. Eis a causa da vertigem que me causam as planuras. Fui criado na lonjura de Embu das Artes, caipira lá das Chácaras Bartira. Origem não se rasura.

Mas não sei dizer ao certo a identidade que tenho. Às vezes triste eu me empenho a me olhar de peito aberto e quando mais chego perto de alguma definição é se afirmo, com razão, que ter nascido paulista me dá somente uma pista: a de eu não ser deste chão. 140 • Leonardo Antunes

Carlos

I quando eu nasci, minha mãe chamou-me Carlos: nome de poeta, ela dizia.

porém, à exceção de minha avó, que às vezes me chamava de Meu Carlos (não Carlos simplesmente nome, mas Carlos adjetivo, sinônimo suspeito de tesouro), em casa sempre fui Leonardo.

II no primeiro ano do Colégio – eterno trauma – a professora fez-nos plaquetinhas, cada uma com um nome.

peguei a de Leonardo, que logo me acusou à professora de ter-lhe arrebatado o nome.

já havia um Leonardo, comunicou-me a mestra. então, pelos próximos dez anos, seria Carlos.

III mas na verdade não fui Carlos. jamais fui Carlos, nome de poeta: fui Carlinhos, nome de sambista ou traficante, e fui Carlão, o borracheiro.

mas, nesses dias frios, inóspitos, acordando cedo para trabalhar, às vezes pensativo a mim me digo: vai, Leonardo, ser Carlos na vida! Mariana Ianelli

ariana Ianelli nasceu em São do Jabuti (2006, 2008, 2013, 2017). Tem Paulo em 1979. É autora de dez três livros de crônicas: Breves anotações M livros de poesia, entre eles Can- sobre um tigre (2013), Entre imagens para ções meninas (2019) e a antologia Manus- guardar (2017) e Dia de amar a casa (2020). crito do fogo (2019) que marca 20 anos de Possui dois livros infantis: Bichos da noite poesia. Em 2008, recebeu o prêmio Fun- (2018) e Dia no ateliê (2019). Escreve quin- dação Bunge de Literatura (antigo Moinho zenalmente, aos sábados, na revista digital Santista) na categoria Juventude, menção de crônicas Rubem. Desde agosto de 2018, honrosa no prêmio Casa de las Américas é editora da página Poesia Brasileira do jor- (Cuba) em 2011 e foi quatro vezes finalista nal Rascunho. 142 • Mariana Ianelli

Terra natal

Para minha mãe

Haverá sempre você Na substância do mistério desta casa Que cultiva sombras nos recantos certos Trepadeiras de domínio imparável Águas que marulham e entorpecem. A terra natal não morrerá por esperar. Será por isso que invisivelmente Todo o seu corpo treme, mal transpõe a entrada, E outra face sobre a sua se afigura, plácida fera De poderes não domados, mas adormecidos...será? Melhor que as portas não se abrissem, O relento lhe parisse asas. Mas a casa o abraça com uma ternura insuportável Lambe seus pés, fala em sinais às suas razões cegas Se faz seu álibi em desculpas e fantasmas. Então você não sabe? Não sabe Que haverá sempre você na substância Do mistério desta casa? Nessa terra em que as jabuticabas brilham túrgidas Sem pássaro que as devore, Aqui onde o lobo da montanha Adormece em cão de guarda, E a maciez que você toca, Fresca em suas idades sobrepostas, Parece humana, parece viva, e é de mármore. Mariana Ianelli • 143

Verão com vento e García Lorca

O verão deste ano trouxe um bater de asas À varanda. Vindo de onde? Vindo de antes. Dos cata-ventos nas campas de pequenos anjos. Do vazio de matas pasmas de haverem se tornado campo. Há janelas que relutam em se apagar na noite E não será impossível que uma hora Nossas mais inconfessas angústias se encontrem. Milhões de animais estão queimando. Milhões de pequenos olhos alucinados Estão cegando num fogo não muito longe. Um poeta que cantava com palavras que gemiam, Numa dessas janelas que há séculos amanhecem acesas, Pôs voz no que sentimos sem dizer: Há ossadas que ressoam. Assombros Que não se resolvem, nuvens carregadas de meninos, Calafrios que desovam no seio do verão um pranto azul. Há uma revoada insana esta noite na varanda. 144 • Mariana Ianelli

Dias felizes

Em seus melhores dias Você acredita Que se um coração subir à boca Outros virão à tona. Você se cansa do medo, Não lhe franqueia mais terreno, Suas mãos já não tremem. Mesmo o fracasso tem seus dons Como uma rara especiaria Que você também saboreia Em seus melhores dias. Continuam a avassalar Sua alma os olhos dos bichos Mas sua memória quer rever Os que viu uma vez e sorriam. Você se lembra da santa menina Que agradecia à ignorância Os males que lhe poupou E agradece à sorte a casa que tem E nela poder estar E morrer sem prejuízo E tudo isso ser apenas Uma das músicas do tempo. Há cartas para serem lidas com urgência, Outras escritas para daqui a três governos. Você perde a pressa, Engata um dia no outro, varando A madrugada só com a roupa do corpo, E não sobra um lamento. Mariana Ianelli • 145

Contrapeso

Esses, nos altos dos montes, Que zelam pelos que sofrem Até que os montes se cansem – Não há no mundo quem mais se ocupe Jamais sendo o bastante. 146 • Mariana Ianelli

De passagem

Seremos os que perderam terreno Só alargando o abrigo de seus mortos? Novos jovens tomam a cidade, Formam tsunamis, tudo lhes pertence, As ruas, a praça, a poesia no muro, Espetaculares explosões e seus pretextos. Passamos num perfume imperceptível Como livros fora de época. Só os gatos da nossa memória, que passeiam Transparentes, farejam esse nosso aroma De horas maceradas. Só os gatos da nossa memória. Ou será que numa ânsia de amnésia Um dia desabrigaremos também eles, nossos mortos? Mariana Ianelli • 147

Oração das mariposas

Agradecemos pelo esquecimento concedido Pelos dias que passamos iludidas Pelos olhos de coruja que se abrem em nossas asas Quando pousamos sobre um tronco para dormir Na forma de uma calma assimilada Sem que nos vejam olhos de caça ou de cobiça. Pelo indeterminado da nossa hora Por serem ainda remotos e escamoteáveis seus sinais Por sermos subtraídas de nós mesmas tão gentilmente Que ir morrendo ainda nos dói mais de beleza que de terror. Agradecemos pela trégua, embora falsa, Convincente para nós que permanecemos distraídas Em sérias fugas, penteando, penteando a areia No oco de um silêncio quase feito de bondade Como de uma mãe que se finge alheia e longe Só para ser cúmplice do nosso desejo de existir. 148 • Mariana Ianelli

Ainda

Ainda alguém não deixa que você desapareça Ainda existe em você uma Rússia desconhecida Páginas a desenterrar de uma segunda vida Das coisas ainda mal pensadas depois de acontecidas Ainda não foi dito o mais importante nem o mais simples Ainda de tocaia o grande tempo no tempo pequeno dos dias. Mariana Ianelli • 149

Escrevo para você

Ontem a chuva quis honrar velhos deuses E fez subir os córregos sobre as ruas, O dia virar noite dupla com as debandadas, E agora dentro da palavra penumbra Ressuscitada por estranhas circunstâncias, No silêncio de um dia seguinte Que não pôde se desgarrar da noite passada, Escrevo para você de próprio punho, e sonho Que uma chama muito fina mosqueia de luz Esta página, e que, com apenas um gesto, Meu ou seu, ela poderia lamber uma cidade. 150 • Mariana Ianelli

Ao menos isto

Para Adri Jong

Esta hora, esta hora fosse nossa, Iríamos abri-la com os dedos, Chupá-la igual a uma laranja E haveria tanto céu Quanto há na ilha de Páscoa, O céu e o som remoto de uma flauta, Uma ave essencial aerando as palavras, Esta hora fosse nem minha nem sua, Tal como os furacões de longo alcance Aos quais se dão nomes maravilhosos, Daríamos a uma brisa pequena O nome de Cecília E à tarde um átomo da branca luz do Taj Mahal, De espetacular apenas tudo de movediço, Inumeráveis seres de nuvem Se revezando, Um estivemos aqui desenhando-se no ar Em cristais de gelo, Esta hora, esta hora fosse outra. Mariana Ianelli • 151

Sobre a mesa

Estação telepática Lua cheia aureolada Meia lua morena O som de um sino E um sabiá Os ventos vindos do mar Tanto a noite já me deu. O luxo dos sobreviventes Um café quente Um copo d’água O choro indecoroso da gata O louco que passa Na vez do seu reinado Inseminando o sono do bairro Com suas maldições, Também isso a noite me deu. Uma barca para o limbo Ouvidos de morcego O amor já sem deslumbre O bendito esquecimento A arte da demora E não dizer mais o nome de Deus. Tudo isso a noite me deu. 152 • Mariana Ianelli

Os amantes de Wuhan

Até quando? É a pergunta que nubla Uma cidade na clausura Desolada pelo terror de um ar irrespirável. O comércio foi suspenso. Os abatedouros aquietaram-se. Os que ainda se arriscam pelas ruas Praticam a ciência dos fantasmas. A espera tem cachos de olhos nas janelas Mas, na casa dos amantes, Todos os olhos já se fecharam. Nunca foram tão obedientes Às exortações das autoridades. Ocupados feito monges Justificados pela peste Estão se percorrendo milimetricamente Pelos poros, por noites encadeadas Num único dia sem fim, eles estão se amando E não têm tempo a esperar que o tempo passe. Mariana Ianelli • 153

Agora

Para ver cindida a vida Me bastou uma menina A me tomar pela mão, Uma voz pequenina que não para E rodopiam os átomos da casa. Agora esqueço como se ri O riso dos hipócritas Agora descuro do medo Me envergonha a Via Sacra Nada pode ser mais decisivo Nem a morte Que translada, mas não mata Se é para queimar Será para falar com o alto céu Se é para doer Será por léguas submarinas Um canto de baleia Na memória da água. 154 • Mariana Ianelli

Mais tarde

Há um prazer de infringir que vem mais tarde Depois culpa e das desculpas consternadas Um paraíso de pequenos desacatos formidáveis Como sumir com vírgulas, questionar o cânone, Deixar uma criança pintar sobre uma imagem santa. Um infringir com perícia, com esmero, como uma arte. Mariana Ianelli • 155

Império do sol

A mãe reconhece ao primeiro olhar É seu filho perdido Reencontrado É dela essa dor que ainda mal sofreu, O filho tocando com os dedos Sua mão, seus lábios, Seus cabelos debaixo do chapéu A relembrança Num lento amanhecer Só então ele a abraça, fecha os olhos, Finalmente Pode descansar de ver E de esperar. 156 • Mariana Ianelli

O mesmo amor

Tantas vezes foi dito seu nome E agora que ele vem, real, doendo De beleza, a mesma palavra Parece outra. Nova. Clarificada Na sua noite intrínseca. O mesmo amor, como se agora Em baixo som, cingindo músculo E mente, se instalando para ficar. Vem numa madrugada chuvosa De fevereiro, a casa calma, ninguém ainda Em quem provar os seus poderes. Não parecem ridículos, agora, todos Os planos para lhe preparar a hora? Altares, cerimônias, dotes. Não parece Loucura, agora, a dúvida se irá durar? Mariana Ianelli • 157

Serviço silencioso

Nossa noite fora do mapa Nossa casa, nosso corpo De selvagens alegrias Nosso abrigo para refugiados Como magos socorridos por estrelas De um longo deserto até aqui, Nosso posto sem licença Nossa pupila de lobo Nosso trunfo, nosso tráfico De pequenas maravilhas Necessárias feito pão Nosso estado sanguíneo Nossa ética, nossa paixão Nosso trabalho impossível.

Emmanuel Santiago

mmanuel Santiago, nascido em São A Musa de espartilho: o erotismo na poesia Lourenço/MG em 1984, é formado parnasiana brasileira, ambos pela Univer- E em Letras pela Universidade Federal sidade de São Paulo. Além disso, é autor de Ouro Preto (UFOP), mestre em Teoria Li- dos livros de poesia A ave Lúcifer (Patuá, terária com a dissertação A narração dificul- 2020) e Pavão bizarro (Patuá, 2014), crítico tosa: “Cara-de-Bronze” de Guimarães Rosa literário, tradutor e professor de Literatura. e doutor em Literatura Brasileira com a tese Atualmente, reside em Jacareí/SP.

Seis poemas retirados do livro de poesia A ave Lúcifer (Patuá, 2020). 160 • Emmanuel Santiago

Negro neon, a lua nova não desvela a beleza lisérgica das nebulosas. Emmanuel Santiago • 161

Catástrofe a Adriano Scandolara

A madrugada escorre pelo horizonte, lenta e viscosa, feito lesma, e o céu, num atropelo de planetas e estrelas, avermelha-se feito prego enferrujado.

Tudo vibra sob o silêncio elétrico na luz da avenida (cadáver dissecado na mesa de autópsia) e o sorriso cariado da lua, escarninho, paira sobre a cidade; um acidente na estrada o entretém: alguém morre nas ferragens.

A cidade: monumental anfiteatro de concreto, onde astros exercem seu desprezo por nós; sem catarse possível, qualquer tragédia é inútil. 162 • Emmanuel Santiago

Mefistófeles

Numa curva da vertigem, encontrei minha sombra: tal espectro (aquele estranho em tudo simétrico a mim) revelou-me o segredo das noites, a chave do labirinto onde vagueia a lua nova, esse sol de cinzas, astro subterrâneo.

Nada me disse: mostrou-me mármores lunares, Saturno (absurdo dervixe) e estrelas girando incineradas no vazio.

Voamos, então, sobre a cidade e, em cada prédio, recitava-se o mistério das urnas funerárias; o céu fulgia qual pálida opala; os que dormiam compartilhavam sinistras histórias.

A noite era o fundo de um espelho, onde meus olhos me encontravam, mas não me viam: forma não cristalizada, corpo fora da memória.

Com milhares de patas, quimérica aranha, o delírio tecia uma galáxia que era também minha face vista ao contrário, indecifrável.

Era preciso recompor-me, juntar o pó de antigas estrelas em torno de meu nome, tudo aquilo que chamo de carne com a língua feita de chamas, futura matéria de câncer.

Mas a língua da carne, com seus signos sanguíneos, era outra; nela, não reconheci as palavras da tribo, nenhum som que não fosse o eco de vindouras ciências ancestrais. Emmanuel Santiago • 163

Mefistófeles de mim mesmo, coberto do manto fosforescente da madrugada, incendiei igrejas, arquitetei ruínas, liquidei estrelas que se par tiam como que rubins de cris tal.

E a noite se dilatava, ávida das palavras dos insones, mas não havia canto que me desencantasse, apenas oblíquos hieróglifos de constelações naufragando na madrugada, de s a g r e g a n d o - s e n a i m e n s i d ã o . . .

Sobre a cidade adormecida, a madrugada apodrecia, decompondo-se em cinzas na acidez da alvorada e sua furiosa fanfarra de arcanjos.

E eu, Mefistófeles, satisfeito, sorrio — está desfeito o feitiço. 164 • Emmanuel Santiago

Construindo a madrugada (soneto cabralino)

a Antonio Carlos Secchin

Não se constrói do dia para a noite a madrugada e seu frescor de sangue, como qualquer coisa que viva, cresça, hemorragia ou algo que se estanque; brotação espontânea, feito um fungo, a se espalhar num proceder de câncer e que venha entranhar-se no horizonte, remetendo ao que é pântano, mangue.

Constrói-se a madrugada por camadas que vão se sobrepondo nos andaimes e, sob o peso de milhões de estrelas, sedimentam-se num rigor constante, concentrando-se até chegar ao ponto da estrutura compacta d’um diamante. Emmanuel Santiago • 165

Havendo paz, eu me rebelo (falso sirventês)

Said my name is called Disturbance I’ll shout and scream I’ll kill the King I’ll rail at all his servants

Mick Jagger & Keith Richards, “Street fighting man”.

Havendo paz, eu me rebelo E, então, empunho minha espada, Terso dos pés até o cabelo, Que neste mundo não há nada De mais horrendo e de mais belo Do que uma liça encarniçada.

Fiz destas armas o meu selo: Manejo espada, escudo e lança, E meu cavalo de atropelo É bom corcel que não se cansa E mais ninguém pode contê-lo; Eis meu convite pra matança!

O jovem príncipe? Magrelo! As suas tropas? No abandono. E o velho rei, já amarelo, A bocejar sempre de sono... Pois meu dever, meu grande zelo, É derrubá-lo de seu trono!

Toda a nobreza, em seus castelos, Teme de mim que eu a machuque E que lhe sirva de flagelo, Mas esfolar um pobre duque, Se mais corcunda que um camelo, Não me requer nem um só muque.

Muito melhor, com um martelo, Esmigalhar um camponês, Então seus filhos, nus em pelo, Queimá-los vivos um por vez; Já a mulher, eu escalpelo, Depois de dar-lhe a viuvez. 166 • Emmanuel Santiago

Porém o meu maior anelo É mergulhá-los na chacina, Desde os senhores dos castelos Até os servos nas campinas, E todos eles envolvê-los Em minhas tramas assassinas.

Eu não me rendo nem protelo, E nem me fio pela sorte; Em se tratando de duelo, Sou o fanático da Morte, O rompedor de todo elo, O cavaleiro de Altaforte!

Havendo paz, eu me rebelo Contra o covarde no castelo! Emmanuel Santiago • 167

Balada do capitão

Capitão, os negros estão roendo as cordas do navio, estão esburacando a madeira, emporcalhando tudo, suas correntes fazem um barulho medonho, não deixam os homens dormir, eles estão com medo de que os negros escapem na calada da noite e cortem suas gargantas, e rasguem as velas, e atirem seus cadáveres ao mar, depois de violá-los, pois o chicote não consegue mais intimidá-los, capitão, esses negros estão ficando abusados, capitão, estão com um brilho nos olhos que parece coisa do Cão, cheios de ódio, trincando os dentes, esses negros estão armando alguma, capitão, são como ratos roendo o navio, emporcalhando tudo com o ódio viscoso que escorre deles, assustando os homens, que não dormem há dias, agora estão cantando, esses negros e suas bocarras cheias de dentes, vamos moer os dentes deles na porrada, capitão, vamos quebrar o que resta neles de gente, vamos pisar na gente dentro deles até sobrar só o rato assustado, vamos arrancar as unhas e furar esses olhos do Cão, de onde o ódio escorre, antes que esse ódio nos afogue a todos, capitão, capitão, agora é tarde, os negros escaparam e estão matando nossos homens, enforcando cada um no mastro, eles estão rindo, mas não tem alegria nenhuma: ódio só, um ódio salobro como espuma do mar, eles estão matando os oficiais à paulada, estão vindo para cá, o navio pegando fogo, muita fumaça, foge, capitão, agora o capitão despedaçado, estão me esfolando vivo, o navio naufragando em tanto sangue.

CONTO Ladrão roubado

Angelo Davila Escritor, jornalista e professor

oaquim entrou no boteco e acenou por contado e recontado, do serviço duro na uma pinga. Nem falou, acenou ape- roça, amargado no cabo do guatambu. J nas, tão fechado ele estava. Olhou o Cada tostão uma gota de suor, costumava povo de fora e não enxergou ninguém, que dizer para servir de exemplo aos filhos. havia muitos conhecidos e não os saudou. Bebeu a dose. Se fez careta, foi instinti- Sentou-se pesadamente no tamborete, os va, dada a acidez da pinga. cotovelos na mesa e a cara entre as mãos. Joaquim concentrado, pensando como O vendeiro logo acorreu com a dose, a chegaria em casa. A voz de João, o filho garrafa na mão, serviu-o na mesa. Olhou, mais velho, ainda escutava lhe dizendo, lhe analisou o Joaquim, esperou a reação dele, advertindo, lhe abrindo os olhos: ficou perto por instantes, nada. – Óia, pai! Goiás não presta. Lá tudo Joaquim nem se mexeu – não deu o ar é no pinguelo. Tem muito ladrão, muito da graça. Então botou a pinga no copo, aventureiro... gente que foge daqui mes- exclamou: mo, criminoso de toda a parte do mundo. – Uai, homem! Ocê não tinha ido para O senhor mesmo já cansou de avisar pra Goiás?!... gente, pra gente tomar cuidado, saber dis- Joaquim talvez nem tivesse escutado. so. Vamo’ ficar por cá mesmo, pai! Vamo’ Tinha ido sim, respondeu mentalmente. E ponhar este dinheiro a juro com o Sô Inhô. agora como justificaria sua volta tão já, se Sô Inhô é homem bom, homem honesto, o não fazia mais do que algumas horas que que é dele, é dele; mas o que não é, não é. dali mesmo despedira-se de todo o mundo, E isso, pai, até se vê o que pode aparecer por naquele boteco, onde era muito conheci- aí. Esperar oportunidade, mais dias, menos do. Propalara aos quatro ventos que estava dias, surge aí coisa no jeito, gente que tem indo para Goiás comprar gado, que leva- precisão de vender, vende barato. Toda essa va no bolso um pacotão de dinheiro, sua vida, a gente tem se dado muito bem com o economia de toda uma vida de trabalho e Sô Inhô. Vamo’ ponhar este dinheiro a juro segurança, tostão por tostão guardado, com ele, pai! É muito mais melhor. 170 • Angelo Davila

Não escutara o conselho do filho. Agora tiraria a metade do leite, o pojão ficava para fora roubado, voltava limpo feito buraco de os bezerros. Sô Inhô lhe arranjaria o pasto, tatu, sem vintém tal como começara a vida o homem tinha invernada que não acaba- há quarenta anos atrás. Lembrava-se bem va mais, tudo colossa, de terra massapé quando pusera no bolso sua primeira diária preta e jaraguá bem-formado, pastama de ganha com o suor do rosto, tinha doze anos primeira perdendo de vista. Gado seria até de idade e já desenvolvia trabalho de ho- bom para cortar o capim e não endurecer o mem, saía no eito junto com o pai puxando provisório. sua enxada de duas libras, novinha, estreia- Em Goiás havia muita falta de dinheiro. da naquela época, trazida pelo patrão. Lá se compraria gado pelas metades. Con- Com que cara chegaria em casa? Como tava mentalmente as notas de quinhentos iria se mostrar diante dos filhos, da mulher e trocava cada uma por uma vaca parida. que ajudara toda aquela luta? Melhor se o Marruás não precisaria comprar, Sô Inhô ladrão o tivesse morto lá no matinho onde emprestava, tinha de sobra, era só escolher fora assaltado, que assim não precisaria na garrotada antes da castração. explicar nada, explicar o quê? ... como iria Até os nomes das vacas Joaquim já es- entrar no assunto? Aquilo era coisa de uma colhera. Uma boa-de-leite se chamaria Ga- vida. O dinheiro na verdade lhe pertencia, meleira, tufa na cuia, leite que ia encher ninguém podia negar esse fato, era seu, uma gamela. Teria que conseguir uma vaca podia fazer dele o que quisesse. A econo- trouxada, dava sorte a todo fazendeiro que mia do sacrifício era sua, um direito líquido tinha uma vaca dessas no curral, era o que e certo que ninguém lhe tiraria. Mas acima diziam. Outra pintadona mestiça de gir, de de tudo, Joaquim queria mais bem era mes- muitas cores, manchetada de roxo, se cha- mo aos filhos, à família, do que o resto do maria Borboleta, e seria do Joaquinzinho, o mundo. Via isso, sentia isso agora bem no caçula, dali ele formaria o seu gado – era fundo... e sabia como todos iam sofrer. doido com vaca pintada. – Tenho dez e não há nenhum sobran- Mas que diabo!... estava tudo tão fá- do! – dizia com ênfase em suas conversas, cil!... o azar fora falar demais. Tinha sempre quando entrava assunto de filho, lembrava, essa mania, de contar as coisas, até mesmo e sentiu orgulho de si mesmo porque assim seus assuntos particulares como dissera, em dizia – orgulho como um consolo que nem conversa com o bandido antes do assalto. chegara a clarear de lampejo aquela sua “Boca fechada não entra mosquito” – fossa, sua noite escura de ideias. era o ensinamento do seu falecido pai, do Também se fora para Goiás, ora, toda a seu avô, do bisavô, tataravô... mas qual! vida desejou criar um gadinho para se ter seguira o exemplo? Fez foi o contrário, fez na hora um leite com fartura, um soro pra foi contar a Deus e a todo o mundo que leitoada, uns queijinhos até para vender, e estava levando dinheiro, e lá mesmo no uns merendeiros para o gasto. A bezerra- balcão mostrara o pacotão amarrado com dinha de pelo liso esparramada no campo, barbante, ali cheio de gente, e ainda saíra lumienta, bem-nutrida, porque cuia não, esparramando para todo o arraial de São não teria coragem de cuiar a bicharada. Só Simão... como fora bobo! Ladrão roubado • 171

Nem pensara que aquilo ali não era mais esparramasse, assim sentia-se até reanima- o ambiente de antigamente, estava agora do, já disposto a cortar a pé as duas léguas e infestado de gente estranha com a serviça- chegar logo em casa, dizer tudo, desabafar. ma da Usina nova. Gente de toda laia que Seu cavalo estava amarrado de fora de- por ali aparecia, ladrões, assassinos, fugiti- baixo da sucupira, com certeza já sofren- vos de toda parte, que o serviço era muito do de sede, exposto ao sol que virara com e aceitava-se qualquer um, nem se cogitava tempo bastante já passado no interior do de documento. A polícia nunca que dava boteco. Não pensava nele, pensava na bes- batida para não atrapalhar, começou a Usi- ta do ladrão, na saída – outra margem do na, a captura sumiu... rio, com certeza a roubara também, isso na Aventureiros dos quatro cantos do Brasil certa, pertencia a um conhecido seu. Como misturavam-se naquele movimentão. Todos fora ingênuo, não desconfiara de nada. que chegavam, serviam. Não se cogitava Seria bem recebido em casa? – tinha saber informação de ninguém, queriam era suas dúvidas. Era seu medo. Seria perdo- gente para trabalhar, apressar a obra. Oh! ado? Ficariam do seu lado? Ou o recrimi- como fora burro! Hoje aquilo ali, sua terra, nariam? Ou dariam graças a Deus por ter mais era um covil de foragidos, isso mesmo, se safado com vida? – queria acreditar que refugiados sob a escravidão do dinheiro, e sim. Naturalmente que levariam algum tem- muito agradecia a Deus por não estar com po para esquecer o prejuízo e recomeçar de a boca cheia de formiga uma hora dessa lá novo os antigos hábitos. Ah, sim! – Joaquim no mato onde fora roubado. suspirou. – Aquilo que era vida! – inclusive – Mais uma pinga? – era o vendeiro ele que precisava por sua vez, mais do que puxando conversa. Perguntava e enchia todos, de ser consolado, era o que pensava maquinalmente o copo, mesmo porque em consolar. Joaquim nada dizia, ia só virando a péssima E se lhe perdessem o respeito? – os fi- bebida. E gente chegando, fazendo roda, lhos. Ah, isso nunca! Jamais se tornaria um notícia cismando, outra dose, mais outra, traste, jamais! – desviava o pensamento. outra mais... ia virando de um trago e bo- Seus filhos não fariam tal, Mariazinha até tava a cabeça de novo entre as mãos. Os tinha leitura, escutava novela no rádio e en- lábios caídos parecendo beiços de porco, tendia toda aquela conversação difícil... ela tonto já, que aquilo ali só poderia ser bei- ia todas as noites lá pra casa do Sô Inhô, ços, assim lumientos, túmidos, sorvetentes. gostava de novelas. Joaquinzinho também, Às vezes algo lhe vinha à mente, de a irmã estava ensinando leitura para ele, era como iria pagar aquelas pingas se nos bolsos muito obediente. não tinha vintém, de como contaria o caso Joaquim quis se levantar do tamborete, para pedir a prazo... fiado pra pinga, isso fez menção, os filhos, a força da recordação nunca!... jamais teria coragem de tal pro- o animava, mas se lembrou que não tinha ceder. Ainda se fosse um pertence, coisa de dinheiro para pagar as doses – voltou, dei- necessidade, alimentação etc., vá lá, pedia. xou-se cair novamente no assento, acomo- Não, não contaria o caso. Falaria pri- dou-se e virou com mais sofreguidão outra meiro em casa, depois que a estória se talagada. Todos o olhavam, espreitavam-no, 172 • Angelo Davila seu abafamento não encorajava ninguém a O que lhe aconteceu... porém assim indagá-lo de mais coisa, mesmo o vendeiro com o álcool na cabeça, já tudo lhe parecia não lhe fizera mais perguntas. Aquilo ultra- natural. Ora-ora! simplesmente fora rouba- passava o limite de todos os amigos, ditos do, e daí? – essa era boa, o dinheiro não amigos, as amizades muitas falsas, não era de ninguém, dele mesmo. Tanta gente queria saber, havia perdido o interesse por não era roubada? Não fora o primeiro nem qualquer conversa. seria o último. Por isso continuaria bebendo enquanto Mas será que o chamariam de covarde? houvesse gente espreitando, gente curiosa – sim, de fato era franzino, nunca covarde que depois ia gozar o seu fracasso. Sabia que ou moloide, nem se considerava velho, usa- se contasse o fato, sairiam dali locupletados do – dizia. Enquanto existisse pinga e lida, o de achar bom, embora por fora no semblan- reumatismo não lhe pegaria as juntas como te fingissem sentimentos. O mundo era as- fizera com o Manuelzinho que deixara de sim – o povo, ninguém mudaria o povo. trabalhar e de beber, pronto – ficara entre- Ia era servir de mofa e fofocas, de co- vado. Com ele não – isso não ia acontecer. mentários maldosos, chamado de covarde, A pinga desembuchava as cordas do corpo moloide por não ter resistido o bandido. e desemperreava o sangue nas veias. Serviço Até o Larindo, poeta cantador, botaria seu era exercício, saúde, era-lhe a própria vida. nome em cantiga de esculacho. Era mestre O que lhe aconteceu... tornou a lucu- para fazer isso, fazia com gente que morria brar-se, pois que ainda lhe parecia escutar a afogado no rio. voz do bandido, agora até mais sonante e Aquela espiação era para saber novida- natural com os efeitos encorajadores do ál- des. Os que sabiam de sua ida para Goiás cool. Parecia-lhe coisa de brincadeira, crian- e agora seu estranho regresso, ali se plan- ça se fingindo de assaltante, não acreditava, tavam querendo o segredo, o vendeiro de nunca fizera mal a ninguém, aquela ordem novo com outros toques olhando ao mes- do homem, o homem dizendo... mo tempo de banda para os presentes, de Tinham saído juntos de viagem desde a maneira a querer arrancar a verdade sobre barranca do rio, encontraram lá. O bandido a volta tão brusca do Joaquim, e este seu simulando camaradagem, companheirismo, fechamento cada vez maior. – Pode ser até falava subserviente senhor pra cá, senhor um caso de polícia – dizia, como se ali hou- pra lá, dizia que ia perto, muito sujo desa- vesse polícia para resolver a situação... linhado, calça rasgada, chapéu cabanado, – Mais uma dose, Joaquim? Fala, Joa- camisa nova – só a camisa, e bem montado, quim, fala homem! A gente tá aqui pra te mula esperta, boa de sela, arreata firme. ajudar... – Mal pergunta, esta mula não é a do O vendeiro oferecia os préstimos, mas comprade Tiadora? pinga não precisava oferecer, era só ir derra- O desgraçado aproveitou a deixa: mando no copo e o Joaquim virava. – É, tou fazendo um mandado pra ele. – O que te aconteceu, homem? Engoliu Vou de trabanda, na dobrada do morro. a língua? Fala!... às vezes a gente pode te – Ah! lá mora um cunhado do com- ajudar deveras... padre... Ladrão roubado • 173

Estava tudo dando certo para o bandido: – Passa cá o dinheiro! Me dá tudinho, – É, vou lá... ou leva duas balas na cara. Pode escolher. E prosa vai, prosa vem, o homem en- Te deixo friinho agorinha mesmo aqui no trava com conversa palpadeira querendo chão, mode as formigas te comer. Tá que- confirmação do dinheiro, informando onde rendo ver, demora apear deste cavalo. tinha gado barato, passando o tempo para Joaquim não queria ver, apeou. se distanciarem do povoado. Tinha tudo – Dá cá ou morre. premeditado... e Joaquim acabou por con- Passou-lhe o pacote de dinheiro. Foi lá tar novamente toda a estória da sua econo- embaixo no bolso fundo da calça, assim fei- mia tostão por tostão guardado, contado e to para conduzir o dinheiro, e veio trazendo recontado, o tempo que gastara para ajun- devagarinho o volume das notas amarrado tá-lo, e agora das suas pretensões, soltara a com barbante. O remorso lhe pesava mais língua, até casos particulares de família con- do que o peso do próprio dinheiro. O ladrão tou. O homem caladinho, humilde, aceitan- pegou rápido o pacotão, meteu-o no bolso, do tudo bonzinho de escutar, apoiando, afastou-se e abaixou a garrucha. louvando, admirando, só dizendo sim-sior, Nisso Joaquim reagiu, quis reagir, falou sim-sior, sior Joaquim... alto, gritou ladrão sem vergonha, que ia dar – O amigo, mal pergunta, é nordestino? parte, bandido dos diabos, etc, mas teve logo ... pois vai ganhar dinheiro aqui na Usina que calar os bofes. Outra vez a bocuda voltou nova. Firma aqui, o amigo vai ficar bem de arregaçada bem no rumo dos seus olhos, e vida... ele fugia para sair da mira ou tirar a cara, mas Achava que o companheiro estava gos- qual, aqueles dois canos escuros acompanha- tando muito da sua prosa, porque na do- vam seus movimentos com precisão. brada, solícito esporeou a mula, correu para – Fala mais uma coisa só, seu besta! – abrir uma tranqueira de arame. Apeou, havia ameaçou o bandido – fala? Eu quero escu- um matinho, amarrou a mula, garrou nas ré- tar uma coisa só, repete! que te solto um deas do cavalo do Joaquim, nem pôs a mão tiro bem dentro da boca e outro no ouvido no esteio da tranqueira, o Joaquim escutou: mode acabar de matar. Não me custa na- – Vamo’pear, seu Joaquim, ligeiro! – o dinha, fala?... quero ouvir, tou esperando homem dizia em tom de ordem. Joaquim mode puxar o pinguelo. não entendera bem a situação. Insistiu de Joaquim não falou, nem boquejou, e se novo: o homem não relou o dedo, era porque fu- – Vamo’ entrar pro mato, seu Joaquim, gia do ponto, pensava agora. ligeiro e já! Tomou o bandido: Puxou seu cavalo pelas rédeas, obede- – E muito mais melhor eu te esfriar aqui ceu, entrou. Joaquim porém só compreen- agora, que depois você sair batendo boca deu o que estava acontecendo, quando viu por aí. Te mato, caboclo, à toa, à toa... a bocuda de dois-canos apontada para ele, Daí passou a mão no cabresto da mula, com os dois pinguelos arregaçados para ia montá-la, refletiu e voltou: trás como duas presas de cobra venenosa. – Sabe de uma coisa. Vira a cacunda pra Acrescentou o bandido: lá, anda ligeiro, bota as mãos na cabeça. 174 • Angelo Davila

Deu-lhe a ordem e mostrou a garrucha a calça... foi quando Joaquim se recordou ainda mais perto. Era uma bruta quarenta e e sentiu a mais terrível humilhação de sua quatro, cano longo. vida, a de ter de chegar em casa daquele Tais recordações surgiam, cresciam, de- jeito, e de ali, a de ser pixado de homem pois diminuíam e se perdiam entre o vozerio que não honrava as suas calças, isso La- do boteco. Joaquim deixava escapar o fio rindo botaria nos seus versos... isso sentiu da memória e se mergulhava na confusão apesar do adiantado estado de embriaguez alcoólica do pensamento. Desapareciam em que se achava... e mais os filhos? – o as recordações, e só aos poucos as ideias que iriam pensar dele? Iriam tê-lo como um vinham se reorganizando, reconstituindo o covarde? ... e fora naquela hora em que o fato desde o começo. O que lhe aconteceu? bandido ia montar na mula, não montou: ... indagavam os presentes, aventavam hi- – Passa cá sua calça nova, ligeiro! Tou póteses, seria bom chamar o delegado? – precisando de uma. Será que o Joaquim ficou fraco, uai! – seria De fato era novinha de brim cáqui du- bom chamar o farmacêutico? – Ainda há rável, confeccionada especialmente para a pouco esse homem estava bom e saiu da- viagem. qui para comprar gado em Goiás, atraves- – Toma a minha pra não passar descom- sou a ponte do rio, tinham visto... será que postura em família! o animal jogou ele no chão, mas o cavalo tá Jogou-lhe o trapo. Deu uma gargalha- aí fora amarrado!... olha a calça dele, suja, da, montou na mula e dobrou a galope. toda rasgada, grandona, nem parece dele, Vestiu depressa a calça jogada pelo ban- cabe dois Joaquins dentro... tá esquisito dido, afobado querendo arreparar a fuga esse homem, não responde a ninguém... dele, na esperança de que a mula desse um Aí que a ideia lhe reorganizou mais cla- refugão e jogasse o miserável no chão com ra. Lembrou-se que a calça não era sua. a cabeça quebrada, que assim nem precisa- Contaria como isso acontecera? – iriam rir ria matá-lo. dele, não contaria. Aquela gente ali queren- Nada acontecera. A danada picou o do alguma coisa sua, um infortúnio, uma chão, virou nos pés atendendo as esporas, desgraça. Gente má! – se pudesse vingaria banou o rabo, sibilou-o no ar nervosamen- todo o mundo. Mas e o bandido? – aquele te, e rompeu a galope parecendo compac- seria o primeiro, os outros não tinham nada tuar-se com o roubo. com o caso. Afinal era mesmo o ladrão, só Calça... calça... Joaquim teve raiva da ele a causa de toda aquela situação vexató- desgraçada. Era por isso que se chamava ria, humilhante. mula, besta etc., porque era isso mesmo – Ah, maldito! Cachorro dos Infernos! – uma burra. Teve raiva da falta de inteligên- tomara que Deus cuidasse dele direitinho cia dos animais, e por fim se lembrou do para entregá-lo bem vivo ao diabo. Desejou resto como as coisas se passaram, reviu-se um diabo enorme, perverso, capaz de toda na cena do roubo, tirou conclusões, então maldade inimaginável neste mundo. Olhas- que enfiou devagarzinho a mão no bolso se o que mais lhe fizera aquele desgraçado, – há muito aquele volume estava ali lhe in- não bastaria o dinheiro, e agora também comodando, mas pensara que fosse lenço Ladrão roubado • 175 sujo do bandido, ou outro pertence qual- tomar fôlego, e sempre com a mão enfiada quer dele, e nunca o que realmente era. no bolso, agora as duas mãos envolvendo Puxou lentamente a pontinha do volume o pacote, uma por fora, outra por dentro. que estava entre seus dedos, reconheceu Alguém aludiu: primeiro os barbantes, depois a fímbria das – Ele tá com acesso de riso, isso é peri- notas, tirou-o de vez para a fora, observou- goso. Joaquim endoidou... -o com os dois olhos, teve certeza absoluta, Lágrimas lhe rolavam nas faces. Dobra- viu que era o seu dinheiro... e assim, com a va mais e mais a gargalhada, tanto, tanto, pinga na cabeça e aquela gente ali asfixan- e não respirava, gargalhando sempre. Aliás; do, Joaquim começou a rir. Um riso manso já nesse ponto começou a perder as forças, a princípio para dentro de si, para ele mes- diminuía o riso, e foi parando de rir assim por mo, seu sofrimento, sua própria alma... mas meio de engasgos entrecortados, a cabeça se depois o riso foi se avolumando, saiu para debruçando sobre a mesa, a mão ainda en- fora, tornou-se em gargalhada feroz, louca, fiada no bolso, os peitos arquejantes, foi pa- espumante e gradativamente maior, sem rando, diminuindo, diminuindo até o silêncio.

O guarda-freios

Juan José Arreola Escritor

forasteiro chegou quase sem fôle- – Mas eu não quero pousada, quero é go à estação deserta. A mala enor- tomar o trem. O me, que ninguém quis carregar, o – Alugue um quarto rapidamente – se deixara extremamente fatigado. Enxugou o é que ainda há algum vazio. Vá por mim. rosto com um lenço, e, com a mão em vi- No caso de que possa consegui-lo, alugue-o seira, observou os trilhos que se perdiam no por mês. Sairá mais barato e receberá maior horizonte. Desalentado e pensativo, consul- atenção. tou o relógio. Era a hora exata em que o – Você está louco? Eu preciso chegar a trem devia partir. T. amanhã mesmo. Alguém, saído não se sabe de onde, lhe – Francamente, eu deveria abandoná-lo deu uma palmada muito suave. Ao virar-se, à sua sorte. Contudo, vou lhe dar algumas o forasteiro se viu diante de um velhinho informações. com vago aspecto de ferroviário. Levava na – Faça o favor. mão uma lanterna vermelha, mas tão pe- – Este país é famoso por suas ferrovias, quena que mais parecia um brinquedo. como bem o sabe. Até agora não tem sido Observou sorridente o viajante, e este, possível organizá-las devidamente, mas ansioso, lhe perguntou: tem-se feito grandes coisas no setor de pu- – Me perdoe, o trem já saiu? blicação de itinerários, e na expedição de – O senhor está há pouco tempo neste boletins informativos. Os guias ferroviários país? compreendem e interligam todos os po- – Necessito partir imediatamente. Devo voados da nação; expedem-se boletins até estar em T. amanhã mesmo. para as menores e mais remotas aldeias. – Vê-se logo que ignora completamente Falta somente que os comboios cumpram o que ocorre. O que deve fazer, e já, é pro- as indicações contidas nos guias e que efe- curar alojamento na pensão para viajantes – tivamente passem pelas estações. Os habi- e apontou para o estranho edifício cinzento tantes do país assim o esperam; enquanto que mais parecia um presídio. isto, aceitam as irregularidades do serviço, e Tradução de Salim Miguel. 178 • Juan José Arreola o patriotismo os impede de qualquer mani- capital em passagens de ida e volta para um festação de desagrado. trajeto ferroviário cujo plano, que inclui ex- – Mas existe um trem que passa por esta tensos túneis e pontes, nem sequer foi ain- cidade? da aprovado pelos engenheiros da empresa. – Afirmá-lo, equivaleria a cometer uma – Mas o trem que passa por T. já se en- inexatidão. Mas como o senhor pode obser- contra em serviço? var, os trilhos existem, ainda que um tanto – Não só esse. Em verdade, existem avariados. Em algumas povoações eles es- muitíssimos trens na nação, e os viajantes tão simplesmente indicados no solo, através podem utilizá-los com relativa frequência, de riscos de giz. Dadas as condições atuais, porém tomando em conta que não se trata nenhum trem tem a obrigação de passar de um serviço formal e definitivo. Em outras por aqui, mas nada impede que isto pos- palavras, ao subir ao trem, ninguém espera sa acontecer. Eu tenho visto passar muitos ser conduzido ao local que deseja. trens em minha vida e até conheci alguns – O quê? passageiros que puderam tomá-los. Se es- – Em seu afã de servir aos cidadãos, a perar pacientemente, talvez eu mesmo te- empresa se vê na obrigação de tomar me- nha a honra de ajudá-lo a subir para um didas desesperadas. Faz circular trens por formoso e confortável vagão. lugares intransitáveis. Estes comboios pio- – E esse trem me levará até T.? neiros gastam às vezes anos em seu trajeto, – E por que se empenha em que há de e a vida dos viajantes passa por algumas ser precisamente a T.? Deveria se dar por transformações importantes. Em tais casos, satisfeito se pudesse tomá-lo. Uma vez no não são raras as mortes, mas a empresa, trem, sua vida tomará efetivamente algum que tudo prevê, adiciona a esses trens um rumo. Que importância tem se este rumo vagão com câmara ardente e outro vagão não for o de T.? cemitério. É motivo de orgulho para os con- – É que eu tenho bilhete em ordem para dutores depositar o cadáver de um viajante ir a T. Logicamente, devo ser conduzido a – luxuosamente embalsamado – no ponto este lugar, não é! de estação que está inscrito no bilhete. Em – Qualquer um diria que tem razão. muitas ocasiões, estes trens forçados per- Na bodega para viajantes o senhor poderá correm trechos em que falta um dos trilhos. conversar com pessoas que tomaram pre- Todo um lado dos vagões estremece violen- cauções, adquirindo grande quantidade de tamente com os golpes que dão as rodas passagens. Como regra geral, pessoas pre- sobre os dormentes. Os viajantes com bilhe- videntes compram passagens para todos os te de primeira – é outra sábia medida da pontos do país. Existe quem já tenha gasto empresa – se colocam do lado em que há em bilhetes verdadeiras fortunas... trilho. Os de segunda, padecem os golpes – Eu acreditei que para ir a T. me bastava com resignação. Mas há outros trechos em um. Veja bem... que, de ambos os lados, faltam trilhos. Ali, – O próximo trecho de ferrovia nacional os viajantes sofrem igualmente, até que o vai ser construído com o dinheiro de uma trem acaba totalmente destruído. só pessoa que acaba de gastar um imenso – Santo Deus! O guarda-freios • 179

– Veja o senhor! a aldeia de F. nasceu – Mas eu devo chegar a T. amanhã por causa de um destes acidentes. O trem mesmo! foi dar num terreno impraticável. Lixadas – Muito bem! Me agrada que o senhor pela areia, as rodas foram sendo comidas não abandone seu projeto. Vê-se logo que é até os eixos. Os viajantes passaram tanto um homem de convicções. Acomode-se na tempo juntos que, das contínuas conversa- bodega e tome o primeiro trem que passar. ções triviais surgiram íntimas amizades. Al- Trate de fazê-lo logo; mil pessoas tentarão gumas destas amizades se transformaram impedi-lo. Ao chegar um comboio, os pas- em idílio, e o resultado foi F., uma aldeia sageiros, exasperados por uma espera inter- progressista repleta de crianças travessas minável, saem da bodega em tumulto para que brincam com os vestígios do que foi invadir ruidosamente a estação. Frequente- um trem. mente provocam acidentes com sua incrível – Deus meu, eu não fui feito para tais falta de cortesia e prudência. Em lugar de aventuras! subirem ordenadamente, se põem a empur- – Mas necessita ir se preparando; talvez rar uns aos outros, quando não, impedem-se chegue a se converter num herói. Não pen- mutuamente a aproximação e o trem acaba se que vão faltar oportunidades para que indo, deixando-os amontoados nas escadas os viajantes demonstrem seu valor e sua ca- da estação. Esgotados e furiosos, os viajan- pacidade de sacrifício. Numa certa ocasião, tes maldizem a falta de educação e passam duzentos passageiros anônimos escreveram o resto do tempo se insultando e golpeando. uma das páginas mais gloriosas de nossos – E a polícia não intervém? anais ferroviários. Aconteceu que numa – Tentou-se organizar uma força policial viagem de teste, o maquinista percebeu em cada estação, mas a chegada impre- a tempo uma grave omissão dos constru- visível dos trens tornou tal serviço inútil e tores da rede. Na rota faltava uma ponte extremamente oneroso. Além do mais, os exatamente sobre um abismo. Pois bem, o membros desse corpo policial demonstra- maquinista, em lugar de colocar marcha a ram, logo, sua venalidade, dedicando-se a ré convocou os passageiros e obteve deles proteger a saída exclusiva dos passageiros o esforço necessário para seguir adiante. endinheirados que lhes davam, em troca Sob a sua enérgica orientação, o trem foi desse serviço, tudo o que tinham. Resolveu- desmontado peça por peça e carregado nos -se, então, pelo estabelecimento de um tipo ombros dos passageiros para o outro lado especial de escola, onde os futuros viajan- do abismo, que, além do mais, lhes reser- tes recebessem lições de urbanidade e um vava a desagradável surpresa de ter bem treinamento adequado, que os capacitaria no fundo um rio caudaloso. O resultado da a passar suas vidas nos trens, ou a esperá- façanha foi tão satisfatório que a empresa -los. Ali se lhes ensina a maneira correta de renunciou definitivamente à construção da tomar um comboio, ainda que em movi- ponte, conformando-se em conceder um mento e em grande velocidade. Também se atraente desconto nas tarifas dos passagei- lhes proporciona uma espécie de armadura ros que se atrevessem a afrontar este trans- para evitar que os demais passageiros lhes torno adicional. arrebentem as costelas. 180 • Juan José Arreola

– Mas, uma vez no trem, estamos a sal- desiludi-lo com suas histórias de viagens, e vo de novas dificuldades? até poderia se dar o caso de o denunciarem. – Relativamente. Só lhe recomendo que – Que está me dizendo? observe muito bem as estações. Pode se dar – Em virtude do estado atual das coisas, o caso de que o senhor creia haver chegado os trens viajam cheios de espiões. Tais espi- a T., e ser apenas uma ilusão. Para ordenar ões, voluntários na sua maior parte, dedicam a vida a bordo dos vagões demasiadamente suas vidas a fomentar o espírito construtivo repletos, a empresa se vê obrigada a lançar da empresa. Às vezes a gente não presta mão de alguns artifícios. Existem estações atenção no que diz, ou fala somente por que são pura aparência; são construídas em falar, sem segunda intenção. Mas eles logo plena selva e levam o nome de alguma ci- se dão conta de todos os sentidos que uma dade importante. Mas basta um pouquinho frase pode conter, por mais simples que seja. de atenção para se descobrir a burla. São Do comentário mais inocente podem extrair como os cenários de teatro, e as pessoas uma opinião culposa. Se o senhor chega a que participam delas sabem que é um jogo. cometer a menor imprudência, pode ser cha- Os bonecos revelam facilmente os estragos mado às falas; passará o resto de sua vida da intempérie, porém às vezes são uma em um vagão cárcere, no caso de que não o imagem perfeita da realidade; demonstram obriguem a descer numa falsa estação perdi- no rosto os sinais de um cansaço infinito. da na selva. Viaje confiante, consuma a me- – Por sorte, T. não se encontra muito nor quantidade possível de alimentos e não longe daqui. ponha os pés em terra antes que veja em T. – Mas, no momento, não dispomos de alguma cara conhecida. trens diretos. Contudo, bem se pode dar – Mas eu não conheço pessoa alguma o caso de chegar a T. amanhã mesmo, tal em T. como deseja. A organização das ferrovias, – Neste caso, redobre de precauções. ainda que deficiente, não exclui a possibili- Terá, asseguro-lhe, muitas tentações pelo dade de uma viagem sem escalas. Veja, há caminho. Se olha pelas janelas, está expos- pessoas que nem sequer percebem o que to a cair no engano dos espelhos. As janelas se passa. Compram um bilhete para ir a T. estão providas de um engenhoso dispositivo Passa um trem, sobem, e no dia seguinte que cria toda classe de ilusões no ânimo dos ouvem o condutor anunciar: “Chegamos passageiros. Nem é preciso ser-se fraco para a T.” Sem tomar qualquer precaução, os cair nelas. Certos aparelhos, manipulados viajantes descem e se encontram efetiva- desde a locomotiva, fazem crer, pelo ruído mente em T. e os movimentos, que o trem se encontra – Eu poderia fazer alguma coisa para em marcha. Contudo, o trem permanece chegar a este resultado? parado semanas inteiras, enquanto os via- – Claro que pode. O que não se sabe é jantes veem passar encantadoras paisagens se lhe servirá de algo. De todas as maneiras, através das vidraças. tente. Suba ao primeiro trem com a ideia – E isto que finalidade tem? fixa de que vai chegar a T. Não converse – Tudo isto a empresa faz com o são pro- com nenhum dos passageiros. Poderiam pósito de diminuir a ansiedade dos viajantes O guarda-freios • 181 e de anular por completo a possível sensa- fazem em lugares adequados, muito longe ção de mudança. Deseja-se que um dia se de toda a civilização e com riquezas naturais entreguem plenamente ao azar, nas mãos suficientes. Ali se abandonam lotes seletos de uma empresa onipotente e que já pouco de gente jovem, e acima de tudo com far- lhes importe saber para onde vão, nem de tura de mulheres. Não lhe agradaria acabar onde estão vindo. seus dias num destes lugares pitorescos e – E você, tem viajado muito nos trens? desconhecidos, na companhia de uma jo- – Eu, senhor, sou apenas um guarda- vem mulherzinha? -freios jubilado, e só apareço aqui de vez O velhinho fez uma careta e se calou ob- em quando para recordar os bons tempos. servando o viajante com picardia, sorrindo Nunca viajei, nem tenho vontade de fazê-lo. e transpirando bondade. Neste exato mo- Porém os viajantes me contam histórias. Sei mento ouviu-se um silvo longínquo. O guar- que os trens possibilitaram a criação de mui- da-freios deu um pulo, inquieto, e começou tas povoações, além da de F., cuja origem lhe a fazer sinais ridículos e desordenados com expliquei. Ocorre às vezes que os emprega- sua lanterna. dos de um trem recebem ordens misterio- – É o trem? – perguntou o forasteiro. sas. Convidam os passageiros a descer dos O ancião pôs-se a correr pela estrada, vagões, geralmente sob o pretexto de que desabaladamente. Quando se encontrava a devem admirar as belezas de um determina- uma certa distância, voltou-se e gritou: do lugar. Se lhes fala de grutas, de cataratas – O senhor tem sorte! Amanhã chegará ou de ruínas célebres: “Quinze minutos para à sua famosa estação. Como disse que se que vocês admirem a gruta tal ou qual” – chama? diz o amável condutor. Uma vez descidos os – X – retrucou o viajante. passageiros, e que se encontrem a uma certa Nesse momento o velhinho se dissolveu distância, o trem dispara a todo vapor. na manhã clara. Mas o ponto vermelho de – E os viajantes? sua lanterna continuou correndo e saltando – Vagueiam desconcertados de um sí- por entre os trilhos, imprudentemente, ao tio para outro durante algum tempo, aca- encontro do trem. bando por congregar-se, e se estabelecem Vinda do fundo da paisagem, a locomo- em colônia. Estas paradas intempestivas se tiva se aproximava ruidosamente.

O preso

Lewis Nkosi Escritor e jornalista

omo os seus carcereiros, todos os George costumava dizer aos estadistas de presos são basicamente iguais. Não visita, era a ‘mais dolorosa de todas as ci- C importa a cor da pele. Quando catrizes’. Mas mesmo assim, eu sentia um lhes falam, tendem a ganir ignobilmente; certo orgulho na sua voz ao dizer isto; apre- há qualquer coisa no timbre das suas vo- ciava muito ter-me como seu preso. De cer- zes que me perturba profundamente. Não to modo, estou convencido de que Geor- é fácil saber o que é. Se me pedissem uma ge se teria sentido limitado sem um preso definição, diria que se trata de uma mes- a quem pudesse beneficiar com o seu tipo cla de surpresa ofendida, uma mistura de especial de bondade; por isso, quando ele protesto e escusa, muito indigna de um ho- increpava o destino por tê-lo nomeado meu mem. É como se o preso amasse e odias- senhor, eu sabia o que devia pensar a esse se ao mesmo tempo o seu papel, como se respeito. respeitasse e desprezasse a um tempo seu Nessa altura era alto, forte e bronzeado carcereiro; no seu conjunto, surpreende-me como todos os sul-africanos ware. Eu costu- que o destino pusesse um ser humano em mava pensar então que o George emanava tal posição. uma força peculiar. Tinha, pelo menos, o ar Olho, por exemplo, para o George – de um homem nascido para comandar. Os esfarrapado, mal-lavado, mal-alimentado, seus gestos eram fáceis, a voz desdenho- com a pele um pouco pálida pela falta de sa, e havia um brilho de troça no seu olhar sol – e fico com vontade de chorar. No fim que era extremamente fascinante. Eu cos- de contas, o George foi em tempos meu se- tumava esconder-me na cozinha a inventar nhor e carcereiro, embora hoje ninguém o alguns dos melhores pratos e doces que ha- dissesse. Um branco com o destino de doze via de fazer para o George, tão persuasiva milhões de pretos a seu cargo, e desse nú- era a sua personalidade, tão fortes eram os mero George teve a infelicidade de me ter seus gestos; era verdadeiramente um pra- a mim como seu preso especial. Isso, como zer obedecer às suas ordens. Agora vê-se Tradução de Manuel de Seabra. 184 • Lewis Nkosi só a casca vazia do que costumava ser um para ele, Mulela?” pergunta ela, chegando- homem imbuído de um rígido espírito de -se muito a mim. É estranho, dormir ao lado comando. Aqueles olhos azuis estão agora da mulher do George enquanto ele está cor de poeira, as suas mãos e pernas estão deitado na cela coberto de trapos e piolhos, definhadas de modo irreconhecível. Bem, é torcendo-se na agonia de um desejo não o que o Destino faz aos homens de destino. realizado nos últimos doze anos. Às vezes, Pois eu costumava pensar que George era dói-me o coração só de pensar nisso. Tem um desses. havido ocasiões em que eu próprio acabo Bem vejo que faz uma careta. Suponho por chorar. O sofrimento de outro ser hu- que não acredita que o Destino tenha al- mano, quer seja branco, preto, ou amarelo, guma coisa que ver com isto. Talvez não não é uma coisa muito agradável de ver, acredite no Destino. Como queira, ninguém muito menos para uma pessoa que costu- é obrigado a acreditar em nada. No entan- mava ser seu criado, seu escravo, seu preso. to, às vezes pensamos: pode ser, mas, pela Mesmo a taça de mel de Francisca não che- graça de Deus, porque a qualquer momen- ga para mitigar o meu sentimento de triste- to os papéis podem trocar-se, não é difícil za. Digo-lhe que não chega (embora ajude) dar consigo a ferros, sem pão, sem vinho e para deter a grande onda de piedade. No sem o corpo de uma bela mulher. Como o entanto, não há necessidade de me sentir George! superior, não há necessidade de ter pena Devia ter visto a mulher do George de George; porque quem é capaz de ser quando se casaram. Ainda hoje me faz fer- suficientemente valoroso para se levantar ver o sangue vê-la entrar aqui. Meu Deus, aqui e declarar para toda a gente ouvir, que que vaca de concurso. Aos quarenta, ainda não precisa de piedade? Sim, pergunto-lhe é rija e roliça, com uma pele viva e cor-de- eu. Ninguém. Todos precisamos de pieda- -rosa. Nu, o seu estômago é uma taça de de – mesmo a Francisca, quente, de pernas ouro. Não me pergunte como é que eu sei suaves, uma autêntica vaca de concurso, estas coisas. Eu posso ser preto, mas mu- precisa de salvação. lheres são mulheres e elas gostam de ho- Sabe que atualmente se ama sem se sen- mens fortes. Para ser sincero, no entanto, tir amado? Temos a experiência da Graça às vezes tenho a sensação de que ela vem sem nos sentirmos salvos. Sentimos mes- cá menos para ver o George do que para mo um júbilo ocasional mas não conhece- me ver a mim. Temos um quarto nas trasei- mos a verdadeira felicidade. Temos toda a ras com paredes nuas caiadas e cobertores carne de que necessitamos, mas ficamos de malha. Posso falar-lhe das muitas noites sempre insatisfeitos e ansiamos por mais. que a Francisca e eu passámos ali deitados, É algum espanto que a filha durma com preocupados com a posição de George no o pai e a mãe com o filho? Na realidade, mundo. acho que estamos numa prisão pior do que Francisca, que tem uma voz como uma a do George. Em comparação, a prisão do cana ao vento, acaba sempre por choramin- George é um pequeno céu. Com um cor- gar: “Como pode o destino ser tão cruel po já murcho, o seu desejo sexual está em O preso • 185 vazante. Às vezes tenho a sensação de que, se deixa enganar por notícias injustificadas para George, exausto como está pela sua nos jornais. Todos nós sabemos como são angústia muito especial, um peito nu, sucu- os jornais – caixotes de lixo de boatos e es- lento, já não constitui problema. Nenhum cândalos, com um amor insaciável pela tra- lampejo incandescente de coxa lhe pertur- gédia e por tudo o que tenha um pouco ba o sono ou lhe rebenta os diques do cor- de mau gosto. Lendo os jornais, chega-se po à inundação da luxúria que sempre nos a pensar que aqueles que lá escrevem têm ameaça com a ruína. uma moral tão depravada que basta uma Vou contar-lhe uma coisa. Dantes pen- baforada de cu de mulher para ficarem em sava que a África era o melhor lugar que êxtase! havia para viver. Pensava que aqui se podia Seja como for, acho que lhe posso dizer ficar simplesmente sentado ao sol, a comer francamente, que além dumas ocasionais mangas e a comer uma mulher quando a chicotadas com uma correia de cabedal, necessidade vinha – uma espécie de Jardim que são permitidas pelo Código Prisio- do Éden, percebe? Mas isso já não chega. nal, George nunca foi torturado. É certo Agora, um corpo já não nos chega: o que que uma ou duas vezes me vi obrigado a nos interessa é o invólucro vistoso. Um ma- colocar-lhe o polegar num parafuso, quan- milo embrulhado em seda e apoiado por do se esquecia de me tratar, como é de- fios elásticos e gaze é mais excitante do que vido, por ‘senhor’. Nada de grave, como a mama suada e caída de uma vendedeira. digo. Por outro lado, no mundo moderno Do Cabo ao Cairo, de Madagascar a Mo- aprendemos já a viver com estas coisas e a çambique, fomos todos lixados, estamos considerá-las necessárias. George deu uns irremediavelmente depravados e desprovi- gritos horríveis, mas ele sempre foi muito dos de verdadeira plenitude espiritual. Por covarde. Enquanto era o mandão e carce- isso, eu pergunto: o que somos nós para reiro, protegido por uma pele branca, não termos pena de George, o preso? Embo- ra eu seja agora seu carcereiro, sou tam- se notava. Acho que também é preciso bém um preso de circunstância, enfureço- mencionar o fato de que, quando George -me na cela do meu corpo, mas quem me mandava aqui, era uma loucura esquecer- libertará? mo-nos de o tratar por ‘bwana,’ ‘baas,’ ou Bem sei que deve estar impaciente por qualquer outra forma dessa aborrecida no- vê-lo de perto. Quer examinar o seu esta- menclatura. Quando se tratava de formas do físico com o pormenor que lhe é devido. de tratamento, qualquer senso de humor Gosto disso. Também os Serviços de Saúde, que George possuísse abandonava-o to- não é assim?, estão preocupados com ele, talmente. Dava muita importância a essas com todos esses horríveis boatos de tortu- convenções sociais. Por isso, não podemos ras e outras brutalidades de que é melhor deixá-lo passar, temos de insistir em que não falar, embora eu deva dizer que estou observe as mesmas obrigações sociais. espantado pelo fato de haver gente nesses Houve momentos em que senti necessi­ Serviços (pessoas com a sua educação) que dade de lhe aplicar choques elétricos para 186 • Lewis Nkosi o despertar do que parecia ser um lapso de 2 memória fatal. Claro que coisas destas acontecem numa Ah, eu sabia! Claro que sabia que você prisão, não posso negá-lo. Na realidade, se a acabaria por chegar aí. Que havia de querer memória não me engana, uma coisa dessas, saber como é que George e eu trocamos muito desagradável, ocorreu o Natal passa- os papéis. Uma questão interessante. Muito do. A fim de comemorar o nascimento do interessante. Poderia escrever livros inteiros seu Senhor e Salvador, tivemos de manter sobre esta questão. No entanto, julgo que George bem fornecido de álcool, mas, para não é possível uma só resposta. nosso espanto, ficou terrivelmente embria- Há gente que, muito simplesmente, jul- gado; não tardou a transformar-se num ma- ga que tinha chegado o momento de uma níaco delirante. Estava, pode dizer-se, nas mudança, o que me parece um argumento garras de uma desagradável nostalgia pelos insustentável seja de que maneira for, pois velhos tempos em que era mestre e senhor. não há fatos que apoiem tal conclusão. Completamente fora de si de excitação, Outros acham que o êxito – riqueza, poder andava de um lado para o outro gritando e prestígio – provoca uma erosão do espí- rito. Sinto-me muito inclinado a não levar e espumando da boca; tinha o corpo todo em conta sentimentalismos absurdos como molhado de suor, os olhos saíam-lhe horri- este. De qualquer maneira, admitir uma coi- velmente, e as pernas emocionadas batiam sa destas seria confessar que visualizo um como paus no chão. Nunca tinha visto uma momento em que eu próprio deixarei de ser coisa daquelas. Esquecera-se completa- carcereiro – uma coisa que só posso consi- mente da posição humilde a que nos últi- derar uma especulação ociosa. mos anos o Destino o reduzira: agitava um No entanto, acho que as sementes da chicote, dava ordens (embora numa voz destruição de George estavam na sua pró- de cana rachada) e, de uma maneira geral, pria natureza, no próprio sistema que ele comportando-se de um modo bastante de- lutava para manter, nas próprias assunções sagradável. metafísicas que ele afirmava tão energica- Como deve compreender, foi tudo de mente. O edifício tinha de ruir mais tarde muito mau gosto. Eu próprio tive de agir ou mais cedo. Bem vê, no âmago da civili- rapidamente para fazer o George lembrar- zação de George havia uma loucura bem- -se de que a sua posição tinha mudado. -concebida. Uns quantos choques elétricos chegaram Toda a gente sabe que nós, Africanos, para lhe restaurar a memória. Além destes nunca criamos um sistema metafísico que pormenores insignificantes, nunca foi mal- separasse a Matéria do Espírito. Por isso, tratado. Na realidade, sinto um certo orgu- nunca acreditamos que o Corpo fosse in- lho no fato de sempre ter tratado George ferior à Alma, nunca detestamos os cha- com considerável brandura – especialmente mados ‘apetites sensuais’ como uma coisa levando em conta o fato de que ele fora em indigna de ser cultivada, o que suponho tempos meu carcereiro. ser a principal razão porque George e os O preso • 187 seus compatriotas se odeiam tanto – não, desejo subconsciente de ser preso e puni- se desprezam. Estão sempre a elevar o Es- do. Era a sua maneira de se vingar da Car- pírito ou o Intelecto acima do Corpo. Já ne a que não podia renunciar e que não os viu dançar? A maior parte das danças podia crucificar. Essa, como pode ver, foi deles são uma abstração dos movimentos a primeira vantagem que me deu sobre a do corpo numa linguagem simbólica. Ah, sua pessoa. Mozart, Wagner! Acho que o único cum- Poderá dizer que a armadilha que a Zázá primento que posso fazer a este tipo de e eu lhe armamos foi muito bem concebida música é dizer que é ‘sublime’. É criada por – mesmo brilhante – mas duvido. Foi tão gente que está já a abandonar os seus cor- fácil como esmagar uma casca de ovo. Por pos, que odeia o próprio cheiro tímido dos outro lado, a única outra vantagem que seus orifícios. estarei disposto a reconhecer foi a opor- Por exemplo, estou convencido de que o tunidade que o George e a sua gente me George perdeu toda a vontade de governar, ofereceram de os conhecer tão bem. Todo o de dirigir, até de ser senhor, logo que pôs sistema educativo que eles criaram destina- os olhos na Zázá, uma miúda africana. No -se a ensinar-me mais sobre o George do dia em que deu por si na cama de Zázá, nu que o George teria alguma vez possibili- ao lado da sua nudez, não mais o sublime dade de aprender sobre mim. Não admira senhor, mas já reduzido à condição de um nada, portanto, que eu acabasse por lhe inválido necessitando do cuidado e do calor conhecer todos os pontos fracos. George que só aquele corpo escuro e tempestuoso deixou de ser um livro fechado para mim, parecia poder dar, tornou-se inconsolável passou a ser como um volume velho para com uma dor falsa. Começou a desprezar- quem o folheou durante anos. -se e a desprezar tudo o que lhe fora caro O George caiu, pois, como é costume até então. Tornou-se extremamente insu- dizer, em sentido bíblico. Viu uma mulher portável e cruel para a Francisca, a mulher; negra que ele desejou. Em vez de manter começou a beber até ficar meio idiota; a necessária mas errada noção da sua raça, tornou-se zaragateiro, dominador, e julgo de que era superior, sucumbiu ultrajante- que procurava expor-se ao ridículo público mente à fraqueza da Carne. Isso foi a sua como uma maneira de se penitenciar pelos queda. seus pecados e punir a Carne que o desen- Poderá perguntar-me, onde é que eu caminhara. entro nisto? Como é que eu vim a ser pre- Só se esqueceu de uma coisa. Na Áfri- so de George foi muito simples. De fato, os ca do Sul, as leis contra a miscigenação pormenores, tais como são, pareceriam de racial são muito rígidas; perdoa-se tudo menor importância para muita gente. No menos enfraquecer aquilo que a imagina- entanto, eu conheço-o bem: uma geração ção popular concebe como a raça pura. criada e alimentada por Fatos. Essa, devo Por isso posso apenas chegar à conclusão avisá-lo, era também a paixão de George. de que a maneira como o George andava Fatos. Nem por isso me vejo menos obriga- publicamente com a Zázá se devia ao seu do a fornecer-lhe os fatos do caso. No ano 188 • Lewis Nkosi em que fui trabalhar para o George, fora audacioso. Alguns amigos brancos, que sa- preso por uma acusação de ‘vadiagem’. biam que eu era uma espécie de rato de bi- Nessa época, em vez de penas de prisão, blioteca com um apetite gargantuesco por costumavam contratar presos para casa de livros, (amigos esses, que usavam os seus pessoas no campo como ‘trabalho prisio- cartões para me trazer livros da Biblioteca nal barato’. Claro que era uma forma de de Joanesburgo ‘só para brancos’) achavam escravatura com outro nome. Seja como estranho o fato de eu não ter meios de vida for, em poucas palavras, foi assim que conhecidos. Ficavam geralmente deprimi- eu vim a ter o George por meu senhor e dos pelo fato de eu ter frequentemente guardião até ao repugnante momento da de fugir à Brigada de Controle, que muitas mudança. vezes prendia africanos desempregados nas Imagine-me como eu era então – uma ruas de Joanesburgo. figura viva, libertina, cultivada, possuída por Normalmente, ficava à porta da cerveja- uma mente feliz. Eu era o que no Depar- ria da rua Von Welligh à espera que apare- tamento de Controle de Entradas é conhe- cesse algum amigo bem-empregado e me cido como um ‘nativo sem residência fixa’. pagasse uma umqombothi. Ficava à espera A esta descrição pouco apropriada, acres- escondido à porta, com os bolsos do casa- centavam: que eu não tinha ‘meios de vida co de fora na esperança de os envergonhar conhecidos’. com a minha indigência. À noite, costuma- Eu sentia realmente um certo orgulho va ir à Tia Peggy, onde encontrava gente desta descrição oficial, dando a entender, mais importante: coristas caras, professo- como dava, uma vida de completa irrespon- res, políticos e comerciantes. sabilidade, muito diferente da vida bem-or- denada do George, evocando a imagem de um homem sem residência fixa, sem laços 3 filiais, um homem constantemente em mo- vimento, uma ave de arribação, por assim Muitas vezes, a Helene costumava dizer- dizer, como um marinheiro. Só precisava -me: “Mulela, diz-me cá, como é que tu de uma miúda em cada porto para a ima- desperdiças uma oportunidade tão grande gem ficar completa. Se a queda do George de ajudares o teu povo? Um homem com se deveu à fraqueza da Carne, a minha é a tua cabeça devia ser mais qualquer coisa provável que venha a dever-se a uma imagi- além de um palhaço nas festas dos Euro- nação inconstante e a um senso de humor peus – sim, porque o que tu fazes é repre- incerto. sentar – e excitar os egos da pequena-bur- Tive sorte, de certo modo, em ter uma guesia!” certa educação provisória. Acho que não Tenho vergonha de concordar que nes- é pouco uma passagem pelo Fort Have ses momentos só tinha tempo para reparar University College. Nessa época, eu tinha como o pescoço da Helene era fino e sua- uma grande reputação, era considerado ve. Os ossos da Helene eram os ossos mais uma espécie de ‘intelectual’ – um pensador finos que já tive o privilégio de ver numa O preso • 189 mulher, preta ou branca. Gostava que a festa em Lower Houghton, um homem boca dela fosse tão fina e trocista. Embora novo, endurecido, seguiu-me até à casa de os seus olhos pequenos, introspectivos, de banho para me murmurar envergonhado, um azul acinzentado, fossem o fascínio de ao ouvido. “Diga-me,” disse ele, “quantas todos os homens que a conheceram, tinha vezes é possível numa noite...” Depois pa- a tendência para os endurecer desnecessa- receu perder o alento ou a coragem – não riamente quando me dizia qualquer coisa. sei qual. Acho que a Helene queria salvar-me, se eu Pode crer que estas festas eram uma consentisse em ser salvo! As suas coxas cor chatice. As raparigas costumavam avistar- de leite eram firmemente decididas contra -me a falar com alguém de quem eu real- oportunidades perdidas. mente gostava; então cercavam-me, ofer- De uma maneira geral, eu odiava festas tando os seus corpos tímidos, desajeitados de brancos. Quando começavam a sério, como em sacrifício, embora fosse claro que era sempre muito tarde, quando todos es- ninguém se aproveitaria daquela generosi- tavam já bêbados demais para se poderem dade numa sala tão iluminada. Ainda pa- divertir. Para começar, essas festas pareciam rece que estou a ouvir as vozes delas, com serpear, pareciam tropeçar e cambalear em uma cantilena de sinos na noite alegre e conversas pretensiosas, bombásticas. Havia assombrada. raparigas de pé, encostadas à parede, mui- “Vá, Mulela,” e apertavam contra mim to direitas, tesas e segurando firmemente as suas barrigas flexíveis, “ensina-me o kwe- os copos contra ou entre os peitos estreitos, la! Oh, tu danças bestialmente bem!” orgulhosos, temerosamente constrangidos, Ou: “Mulela, para, por favor! Por amor falando com bocas trêmulas a rapazes an- de Deus, o que é que as pessoas vão pensar. siosos por as largarem e voltarem em triun- Claro que nos podem ver pela porta!” fo para as mães, para os berços. Essa era, Ou: “Mulela, espero que não penses na altura, a gente que desejava saber, como que isto tem qualquer coisa de pessoal. Ou eles diziam, o que acontecera às suas vidas seja, honestamente, se eu sentisse isso por gloriosamente jovens. ti diria está bem, vamos já para casa. Mas Lembro-me das solteironas descuidadas não sinto. Só gosto de conversar contigo.” de meia-idade, dos acadêmicos e das an- Ou: “Mulela! Mulela! Por que é que fitriãs melancolicamente inquirindo se era não me comes aqui mesmo, já? Violenta- verdade o que tinham lido sobre os “acon- -me! Eu sei que é isso que tu queres! Oh, és tecimentos excitantes nos bairros negros à tão bruto e cruel!” Isto acontecia normal- volta de Joanesburgo”. É estranho que te- mente pelas três da madrugada, quando o nham sempre assumido que eu sabia o que fim da festa estava a aproximar-se e o peso elas queriam dizer com “acontecimentos”. do branco era talvez pesado demais para os Sempre que eu perguntasse de que acon- seus ombros débeis. tecimentos se tratava, elas apenas sorriam, Não, eu preferia festas negras, na maior não acreditando no meu desconhecimento. parte cocktails ilegais, com os seus variega- Talvez não acredite, mas uma vez, numa dos habitués de tipos hi-fi, assaltantes de 190 • Lewis Nkosi bancos, raparigas alegres e políticos sem es- Em consequência de tudo isto, tornei- crúpulos. Nessa época, em que eu não fazia -me bastante popular entre os políticos e, ideia de onde havia de vir o próximo almo- ao mesmo tempo, ganhei algum dinheiro. ço, os políticos africanos eram uma grande Cheguei mesmo a pensar em estabelecer- bênção para mim. Para ganhar uns tostes, -me com um negócio de escrever discur- costumava escrever-lhes os discursos, que sos. Quantas mais leis de apartheid o go- eles depois liam no largo em frente da Câ- verno publicava, mais comícios de protesto mara, com centenas de cidadãos brancos havia e mais discursos eram precisos. Eu espantados ouvindo-os com grande admi- considerava-me uma espécie de artista, re- ração, embora eu me arrisque a dizer que almente um artesão da palavra, produzin- se eles tivessem tempo para pensarem para do o tipo de prosa que unia um autêntico além da linguagem bombástica ter-se-iam mérito literário com um apelo dramático às sentido muito infelizes quanto aos senti- massas. mentos expressos. Às vezes era quase divertido, porém, Tinha notado há muito tempo que os receber encomendas de escrever discursos políticos africanos preferiam uma sintaxe para comunistas africanos inexperientes embrulhada, longos períodos enrolados e assim como para comerciantes ‘piratas’ frases ornadas e melífluas a fim de arrasta- transformados em políticos. Às vezes tinha rem as massas. Desconfiavam dos discursos de os escrever ao mesmo tempo. Nessas que pareciam comunicar algo concreto e ocasiões, o problema era não deixar que prático. Acima de tudo, os políticos africa- a mão esquerda soubesse o que a direita nos não tinham confiança na ação; daí não estava a fazer. Para os comunistas, tinha lhes agradarem as frases concisas. No en- um bom estoque de frases ofensivas, já tanto, para ser justo, devo explicar também prontas, como ‘instrumentos das potên- que este amor pela linguagem florida deriva cias colonialistas,’ ‘imperialistas desenca- do tradicional amor dos Africanos pela poe- deadores de guerras,’ e ‘parasitas capita- sia. Os Africanos têm uma grande admira- listas’. Aos moderados negros ambíguos, ção pela linguagem. Por isso, os comícios temperava-lhes os discursos com um cer- das tardes de Sábado em frente da Câmara to absurdo inócuo, como ‘que os nossos satisfaziam a necessidade de desabafar so- descendentes possam afirmar...’ ou a mais bre o apartheid e ao mesmo tempo a fome segura: ‘para que todos, irrespectivamen- de poesia. te de raça, cor ou credo, possam viver Eu costumava ficar horas sentado a des- em paz!’ Esta provocava sempre muitos cobrir palavras que se enchessem de vento, aplausos. quanto mais coloridas melhor. Costumava Só uma vez fiz uma terrível confusão. empilhar orações subordinadas umas sobre Trabalhava ao mesmo tempo em dois dis- as outras até ao clímax de uma oração prin- cursos, um para Rabalala, o jovem comunis- cipal aniquiladora, onde o orador se deteria ta, e o outro para uma espécie moderada com um ar de dignidade aliviada, normal- de político africano que não queria gran- mente para receber os aplausos. des sarilhos com o governo pois isso podia O preso • 191 fazer-lhe perder importantes concessões impressão que devia ter feito num homem comerciais nas áreas brancas. Era o tipo de casado e feliz como o George, um homem homem para quem eu gostava de escre- com razoáveis solicitações e também uma ver discursos. Sentar-me à beira do abismo razoável repugnância por carne preta. Na numa situação revolucionária parecia-me realidade, não basta dizer que a Zázá che- uma coisa muito perigosa; mas, sendo uma gou. Não, ela tomou a casa de assalto. Uma pessoa moderna, aprecio muito a ironia e a mulher pequena, viva e escura, de vinte e ambiguidade. Como estes políticos africa- quatro anos, delicadamente musculada, nos tinham de ter muito cuidado em não delgada como um bambu, cheirava a uma ofender o governo, mas precisavam, ao vinha bem-cuidada, e, por baixo da saia mesmo tempo, de conservar a popularida- simples de ganga e do suéter, escondia um de junto das massas a fim de terem poder corpo que parecia escuro demais, quase de negociação com o Conselho Branco, eu azulado com ameaça sexual. tinha muitas vezes de escrever longos dis- Sim, lembro-me muito bem do dia em cursos ponderosos com o ar de serem gra- que a Zázá chegou. O George estava a ler ves e vagamente radicais, mas na verdade os jornais da tarde, sentado, como de cos- sem dentes. tume, na sua cadeira de braços favorita, Seja como for, enquanto estava a escre- falando para Francisca, que estava na cozi- ver este discurso, não sei bem por que nem nha, enquanto eu me entretinha a arranjar como, misturei-o com o de Rabalala, o jo- as flores à entrada. Era aquela hora suave vem, comunista, e animei-o com algumas de cocktail de âmbar, em que o mundo pa- frases marxistas muito ressonantes como: recia extremamente doce quando a Zázá ‘as inerentes contradições do sistema ca- entrou na sala de estar dos Hollingworth, pitalista que provocarão o seu colapso to- o seu corpo astuto, incauto, assolando o ar tal...” Isto declarou aquele mui digno po- parado, subtropical, a sua pequena boca lítico numa reunião de Diretores aturdidos, atormentada, quase avinagrada de desdém que se ergueram indignados e entregaram imerecido. praticamente o pobre homem à polícia de George levantou-se, arranjou as roupas Segurança de Joanesburgo. e voltou a sentar-se. “Por que é que não Este foi o meu último trabalho, pois fui bate antes de entrar?” gritou. “Mas quem preso pouco depois por “vadiagem e sus- é você? O que quer?” peitas,” e entregue a George Hollingwrth “Sou a Zázá”, disse a nossa Vênus escu- como ‘preso trabalhador’. ra. E a sua boca torceu-se com as preocupa- Bem, cá está o George Hollingworth, ções tortuosas do mundo. “Esta é a casa do um homem reduzido à poeira da infâmia e Sr. Hollingworth, não é?” da ignomínia. Nessa altura, era um homem Naquele momento, parecia que na casa asseado, trabalhador, empregado numa fá- havia demasiadas perguntas que só pode- brica eletrônica; se não era feliz disfarçava riam ser resolvidas mais tarde. “Sou a cria- muito bem. Isto é, até à chegada da Zázá. da,” disse a Zázá. “A Repartição mandou- Você devia ver a Zázá para fazer ideia da -me.” E aquilo, como já disse, foi o início de 192 • Lewis Nkosi todos os problemas que, como diz a can- masculinidade europeia, que a sua espécie ção, iriam cair sobre a cabeça do George considera investida com a mística da rique- como chuva. za, do poder e do prestígio. Nessa altura, a Zázá e eu tínhamos um plano – a arma- dilha – muito bem organizado. Era a altura 4 de eu sair da prisão e instalar lá o novo preso: George Hollingworth. Agora vou ver o George. Espero que Tenho pensado muitas vezes que a você não seja muito sensível. O corpo dele principal causa da queda de George – a ra­ não é muito agradável de ver. Sofreu mu- zão da rápida desintegração que tem lugar danças terríveis, que todos lamentamos quando os homens da sua raça querem muito. qualquer coisa e se sentem frustrados – foi Claro que você gostava de saber o fim a ilusão que eles têm de que, mesmo mal- da história. Já sabia que sim. Claro que tratado, o escravo não só os ama, como somos todos abutres, todos gostamos de os auxiliará a manter o seu poder para conhecer as desgraças alheias. Mas não sempre. Como crianças pequenas, querem há nada a perder. Em resumo, o George, ser amados porque se julgam inexprimivel- que sempre fora razoavelmente asseado e mente belos e irresistíveis. Não importa as trabalhador, levantando-se de madrugada injustiças que cometam, criam fantasias de para chegar a horas à fábrica, começou ficarem para sempre nos braços de mu- a sofrer umas mudanças perturbadoras. lheres escravizadas, neste caso a escura Os sintomas eram conhecidos: perda de e monótona ama, amante e mãe, todas apetite, mudanças cíclicas de uma extre- numa só, para sempre entoando canções ma depressão para uma extrema euforia, uma expressão sonhadora e sempre dis- de embalar ao rapazinho de olhos azuis traída. Começou a perder o interesse pelo sem idade. emprego; ficava muito tempo em casa, Antes da Zázá o deixar passar a noite talvez por não se sentir bem, embora isso com ela, tínhamos já preparado uma de- não o impedisse de andar sempre à volta claração, aguardando só a sua assinatura, da cozinha onde a Zázá trabalhava. Estava admitindo o crime, consentindo George em sempre a chamá-la por tudo e por nada, o nos entregar a casa com tudo o que con- que fazia a rapariga andar numa fona o dia tinha. A transferência foi feita através de todo a entrar e sair do quarto do George. uma firma de advogados africanos. Tivemos Como já esperávamos, não tardou a dar- o cuidado de que as fotografias ficassem ní- -lhe prendas: comprava-lhe vestidos, roupa tidas para que as provas fossem irrefutáveis. interior de seda, soutiens e meias de nylon. Um caso bem claro de chantagem, dirá o Comprou-lhe joias e todos os tipos de bu- senhor. Bem, mas o mundo não é um lu- gigangas. Era óbvio para mim que, com gar muito agradável para viver. Ou é? Foi o tempo, a oferta à feminilidade africana isso o que nós tivemos de aprender à custa seria o próprio George – esta esplêndida de muito sofrimento enquanto o George O preso • 193 alimentava a ilusão de que o mundo era Antes do senhor entrar para ver o Geor- para ser conquistado e amado. ge, queria fazer-lhe uma pergunta que O caso é que tive de manter o George sempre me preocupou. Quanto tempo acha aqui preso. Estou convencido de que ele que eu vou ficar como carcereiro dele? Ah, prefere as coisas assim. Não tem para onde não tem importância, por mim acho que ir. Para a sua gente, o seu crime seria im- a minha posição é impregnável. Sim, acho perdoável; os seus bens já não lhe perten- que sim: impregnável. Tomei todas as pre- cem; e a Francisca... bem, eu admiro muito cauções. Acho que consegui evitar qual- a Francisca. É mais uma prova de como as quer dos erros e armadilhas que fizeram cair mulheres são adaptáveis e férteis em expe- George Hollingworth! dientes. Estou convencido de que as mulhe- Ah, lá está a mulher dele, a Francisca! res sempre sobrevirão a todos os impérios. Veja bem aquelas pernas de gazela, o poder São salvas pelos seus instintos. daquelas coxas. Que vaca de concurso!

O menino de Copacabana

Marcos Konder Reis Poeta

primeira vez que fomos juntos a Avenida Atlântica. Quando você a vir, tal- Copacabana, logo à saída do Tú- vez compreenda­ porque Manuel Bandeira A nel Novo, e no momento em que chamou-a de Atlântica, e então terá com- sentimos entrar pelas janelas do lotação a preendido a metade de Copacabana. claridade marítima, percebendo a contra- – Onde estão as montanhas? pergun- ção de alegria na face do menino, como tou-me o menino. se o ar da praia houvesse despertado nele – Por trás dos edifícios, respondi, a gen- uma lembrança de amor, eu disse: o Leme te não as consegue ver. é para lá. – Por trás dos edifícios, repetiu. E como – Para lá? repetiu, como se não tivesse se chama o mar? compreendido. – Ora, mas isto, francamente, você não – Do lado do coração, insisti. pode deixar de saber. – Você disse que o Leme fica do lado do – Pergunto se ele se chama Oceano. coração? – Oceano Atlântico, retorqui irritado. Calei-me. A pergunta, confesso, me pa- – Mar Oceano, disse o menino. receu bastante tola. Dobramos na esquina – Ou Mar Atlântico, se você preferir. da Rua Barata Ribeiro, e tornei-me a virar – Prefiro, respondeu-me, como quem para ele, dizendo: isso é Copacabana, um constata pela primeira vez um sentimento bairro de cimento armado, entre o mar e as de alegria. montanhas. O tráfego intenso do feriado impedia o – Entre o mar e as montanhas, repetiu, movimento livre dos veículos, mas o menino permanecendo completamente sério. não parecia impacientar-se com a demora – A praia, prossegui, é uma curva ele- do percurso, nem se punha curioso a olhar gante, rara mesmo de tão elegante. Uma os lugares por onde íamos passando. Procu- curva de vagas, de areia clara, e uma pa- rei romper o silêncio: um baita esqueleto de rede vertical de arranha-céus. A faixa de cimento, como o de um monstro. asfalto ao pé dessa parede curva chama-se – De um peixe, disse o menino. 196 • Marcos Konder Reis

– Talvez, tão próximo da praia... co- amigos a afirmação de que era um bairro mentei. desumano, mas nunca me haviam tentado – De que peixe? perguntou-me o me- demonstrar a veracidade do teorema com nino. tanta força nem com tanta convicção. E – Ora de que peixe, fiz com raiva, de um quando atingimos a Avenida, bem defronte baita de um peixe, sem dúvida. aos cinemas, e nos misturamos aos tran- – De uma baleia, disse o menino. seuntes que passavam apressados pelos – Não creio que pudesse ser tão grande. passeios e que pareciam procurar uma di- – De uma baleia muito grande, disse o reção perdida ou perguntar por uma hora menino. de encontro ao mesmo tempo receosos de – Porque de uma baleia? Por causa... haverem perdido ambos ou de serem atro- – Sim, disse o menino, por causa de pelados por um carro ou por uma lambreta, Jonas. compreendi mais perfeitamente o que me Resolvi topar a parada e disse: e onde haviam afirmado, e disse-lhe: está o Profeta? Mas o menino não me deu – Você está achando-a desumana, não resposta. Saltamos. A essa altura eu não sa- é? bia mais o que dizer, nem o que me iria per- Mas o menino pareceu não me enten- guntar, mas estava certo de que tudo faria der, e ficou a olhar, pela primeira vez curio- para mantê-lo comigo até de madrugada. so, para meus olhos e os rostos dos que se A tarde se fizera mais linda, e o crepúsculo aglomeravam à porta dos cinemas. fluía, nas paredes, com brandura. São seis – Para que lado fica o cemitério? disse horas, disse, como se falasse apenas para o menino. mim. – Para lá, respondi, apontando com o – Não são seis horas, afirmou o menino. braço na direção de Botafogo. – Por quê? Você tem relógio? – Para lá, disse o menino. – Não. Mas seis horas é estarem tocan- – Se você quiser, um desses dias, pode- do levemente os sinos. remos tomar o lotação aqui mesmo. – São exatamente seis horas, disse-lhe – E todos os enterros já passaram? de novo, esfregando-lhe quase o meu reló- – Não passam por aqui, disse-lhe, me gio de pulso no nariz. dando conta, pela primeira vez, de que não – Ah, fez o menino com tristeza. E as vira nunca passar por aquela rua um carro torres? fúnebre, acompanhado de uma fila de au- – São muito baixas para que possamos tomóveis entre os quais os carregados de vê-las no meio de arranha-céus. coroas. – Copacabana é um lugar sem torres e – Por onde vão embora os que morre- onde não pode anoitecer, disse o menino, ram? disse o menino. como se afirmasse que um lugar sem ânge- – Não sei, respondi, mas não por esta lus e torres era um lugar sem tempo e sem rua nem a esta hora. Você já pensou? Tal- espaço; desumano. vez prefiram um caminho mais discreto ou Desumano, pensei comigo. Quantas não queiram sofrer o espetáculo da univer- e quantas vezes dissera e ouvira de meus sal indiferença que lhes dariam estes que se O menino de Copacabana • 197 atropelam nesta calçada. Você já pensou no – Pronuncie cinema, disse o menino. que aconteceria? – Cinema, pronunciei, clara e vagarosa- – Este lugar não tem memória, disse o mente, percebendo, mais uma vez, a ver- menino. dade do que vinha dizendo. Pareceu-me, – Ou não a queira possuir para tristezas. continuei, que seu rosto se transformava... O menino limitou-se a sorrir de um – Na palavra cinema, disse o menino. modo singular, como se começasse a cons- – No rosto de... tatar um grande equívoco. Mas, depois de – É a mesma coisa, atalhou, mas com uma pausa, falou: e desconhece a alegria. perfeita calma. – Um dos meus amigos me disse que o – Por quê? cinema é o ópio do século. – Estava me apaixonando pelos frequen- – Como se chama ele? disse o menino. tadores... – Rolando. Você vai conhecê-lo. – E transformou-se em cinema. – O ópio do século, disse o menino. – E em que acha você que eu me deveria – Você não concorda? transformar? – E como é o teu amigo? perguntou-me. – Em nada. – Como se tivesse uma corneta na boca e – Mas se de repente eu me estava apai- as veias do pescoço arrebentando de soprá-la. xonando e eles se acotovelavam para entrar – Já sei, disse o menino. num cinema? – Que é que você sabe? perguntei-lhe – Você é um monstro de vaidade! novamente um pouco irritado com o que – Diga um demônio e comece a se afas- principiava a me parecer uma atitude. tar de mim. Ande, por que não o faz ime- – Greta Garbo, disse o menino. diatamente? – A qual das minhas perguntas você pre- – Porque!! respondi, como num desafio. tende estar dando resposta?! – Porque sou um demônio, o seu demô- – A nenhuma, disse o menino. Mas, nesse nio. Mas, para retê-lo, basta que me trans- momento, reparei que seu rosto se transfor- forme... mava, ele jogara sua cabeça para trás, e um – Cale-se, gritei, não quero que se enga- sorriso de quem já estivesse morto, como se ne. Tudo que você me disse nesta tarde me ela tivesse, por um instante, se apossado dele pareceu de um certo modo tão carregado para renascer na força juvenil de sua carne. de sentido... Seria triste, neste momento... – Vamo-nos daqui, disse-lhe bruscamen- – Você tem medo, disse o menino, es- te. Creio que o movimento me está pondo tremecendo, mais pálido que a palavra tonto. cinema. – Você está pálido como a palavra do – E você não pode se transformar em cinema, disse o menino. coragem. – É que... penso que tive uma tontura; O menino não me respondeu. Afastou- mas não sabia que as palavras pudessem, -se, impassível e sério, e tomou o primeiro por exemplo, ser pálidas... lotação para a cidade. Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923. Sede da Academia Brasileira de Letras, Av. Presidente Wilson, 203 Castelo – Rio de Janeiro – RJ PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

(Fundada em 20 de julho de 1897) As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

C a d e i r a P at r o n o s F u n d a d o r e s M e m b r o s E f e t i v o s 01 Luís Murat Ana Maria Machado 02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha 03 Filinto de Almeida Joaquim Falcão 04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo 05 Bernardo Guimarães José Murilo de Carvalho 06 Cicero Sandroni 07 Castro Alves Valentim Magalhães 08 Cláudio Manuel da Costa Cleonice Serôa da Motta Berardinelli 09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo alberto da Costa e Silva 10 Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira 11 Lúcio de Mendonça ignácio de Loyola Brandão 12 frança Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi 13 Visconde de Taunay sergio Paulo Rouanet 14 franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer 15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi 16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles 17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco 18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier 19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara antonio Carlos Secchin 20 salvador de Mendonça Murilo Melo Filho 21 José do Patrocínio Paulo Coelho 22 José Bonifácio, o Moço João Almino 23 José de Alencar Machado de Assis antônio Torres 24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro 25 Barão de Loreto alberto Venancio Filho 26 Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça 27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco antonio Cicero 28 Manuel Antônio de Almeida inglês de Sousa Domicio Proença Filho 29 Geraldo Holanda Cavalcanti 30 Pedro Rabelo Nélida Piñon 31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira 32 araújo Porto-Alegre Zuenir Ventura 33 Domício da Gama 34 J.M. Pereira da Silva evaldo Cabral de Mello 35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida 36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso 37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling 38 Graça Aranha José Sarney 39 f.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel 40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha C o mp o s t o e m F r u t i g e r L i g h t 9,5/13,5 p t ; C i ta ç õ e s , 9/12 p t