ANEXOS MATERIAL SELECIONADO, EDITADO E INÉDITO, DO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO “ALEXANDRE EULÁLIO” (UNICAMP- CAMPINAS, SP).

Todo o material citado na primeira parte dos anexos [itens: A-B-C] foi extraído de imagens reproduzidas por meio fotográfico, no Fundo , espólio documental deixado pela autora e conservado no Centro de Documentação “Alexandre Eulálio” (CEDAE), arquivo pertencente ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em Campinas, no interior do Estado de São Paulo (Brasil). De facto, tive a oportunidade de ir ao Brasil e conduzir uma investigação nesta instituição, como em outras, graças ao incentivo e o apoio da Universidade Estadual de Campinas que me concedeu, durante 3 meses, a bolsa de estudo FAEPEX INTERNACIONAL 2016 para a realização deste trabalho. Os textos, consultados no arquivo, foram objeto de uma primeira leitura e seleção. Esta leitura foi complementada por uma reprodução fotográfica do material selecionado, que, por ser parcialmente inédito, precisou de um particular cuidado ao ser manipulado. De retorno a Portugal, as imagens recolhidas no computador foram transcritas e foram objeto de uma ulterior seleção, a fim de citar, de entre o material recolhido, apenas os textos considerados mais úteis para a fundamentação teórica e o suporte contextual da dissertação. Amiúde, uma parte do conteúdo dos textos foi rasurada por razões específicas. Nas cartas, foram omitidas algumas informações pessoais dos remetentes por questões de privacidade, enquanto na maioria dos textos datilografados foi alterada e sinalizada a divisão em parágrafos para melhorar a leitura e a divisão em páginas. Nos textos, foram, além disso, sublinhadas algumas das frases citadas ou consideradas mais pertinentes para o tema da dissertação. Alguns erros ortográficos dos autores, caso impedissem uma leitura harmoniosa dos textos, foram corrigidos com notas de rodapé. O mesmo procedimento foi aplicado em caso de erros conceptuais e interpretativos. A escolha de criar esta breve antologia, que recolhe principalmente críticas à última fase da produção literária hilstiana e algumas das respetivas respostas da autora, foi determinada essencialmente pelo valor documental e temático destes textos que, dada a extensão, não foi possível citar integralmente na dissertação. Por isso, amiúde, o trabalho remete diretamente para os presentes anexos, oportunamente citados, catalogados e divididos em seções numeradas.

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OUTRO MATERIAL SELECIONADO

Os itens [D-E] recolhem textos, já editados, que foram transcritos por serem considerados relevantes, a fim de proporcionar uma contextualização mais abrangente do tema da receção da obra hilstiana e por serem, na maior parte dos casos, inéditos em Portugal. O item [D], denominado CRÓNICAS HILSTIANAS, acolhe algumas das crónicas inseridas no livro Cascos & carícias1. Estes textos foram selecionados para enquadrar o discurso relativo à experiência de Hilda Hilst como cronista no jornal Correio popular. Apesar disso, nesse apartado, foram transcritas apenas as crónicas citadas ao longo da dissertação. A primeira, “A alma de volta”, foi anexada pelo facto de ter sido comentada e apreciada por uma leitora do jornal Correio popular, cuja carta foi transcrita no item [B-11]. As outras três crónicas [D-2-3-4], foram inseridas por terem sido mencionadas ao longo da dissertação. As últimas duas [D-5-6] foram selecionadas por terem sido citadas ao longo do trabalho e por representarem, de forma emblemática, a reação da autora em relação às críticas recebidas. O item [E], denominado FORTUNA CRÍTICA, recolhe alguns artigos, publicados, que comentam alguns dos aspetos da obra de Hilda Hilst úteis ao nosso tema de análise. O primeiro artigo, [E-1], o mais recente, anuncia a reedição da ‘Obra completa’ de Hilda Hilst e é por isso interessante na atualização do discurso, analisado durante a tese, da relação entre a escritora e o mundo editorial. O segundo anexo deste item, [E-2], editado em Portugal, é um ensaio crítico em que, Leo Gilson Ribeiro, em 1977, elogia e analisa brilhantemente a ficção hilstiana. Este ensaio foi selecionado, porque, como referido na dissertação, a relação entre o crítico e a autora complicou-se no período em que a autora publica, polemicamente, obras ficticiamente rotuladas de pornografia. Os outros quatro ensaios [E-3-4-5-6] foram selecionados com a intenção de mostrar algumas das vozes autorizadas da crítica hilstiana, que remetem para esta última fase. Assim, estes ensaios fazem parte do aparato crítico que acompanha o volume, editado apenas no Brasil, Pornô Chic2, coleção dos textos da tetralogia obscena de Hilda Hilst. O item [F] remete para uma imagem, nomeadamente para uma colagem, considerada particularmente evocativa de uma reflexão, inter-artes, sobre algumas questões centrais da obra hilstiana. O quadro,

1 Hilda Hilst,. Cascos & carícias & outras crônicas [1992-1995] Organização e plano de edição: Alcir Pécora (São Paulo: Globo, Col. Obras reunidas de Hilda Hilst, 20132). 2 HILST, Hilda. Pornô Chic. Ilustração: Millôr Fernandes, , Laura Teixeira, Veridiana Scarpelli. Fortuna Crítica: Jorge Coli, Humberto Werneck, Alcir Pécora, João Adolfo Hansen, Caio Fernando Abreu, Eliane Robert Moraes (São Paulo: Globo, 20141).

2 referente a um contexto sociocultural diferente, consubstancia, na nossa interpretação, alguns paradigmas essenciais, problematizados ao longo do tempo, na obra de Hilda Hilst, e que remetem de forma inspiradora para o tema da ‘Obscena Lucidez”. Por isso, a imagem foi acompanhada por uma breve análise subjetiva.

ÍNDICE ANEXOS

A] ARTIGOS ...... 7 1) Tarefa de criar num país sem letras e sem poesia ...... 7 2) Nossa mais sublime galáxia ...... 14 3) Fórmula para vender ...... 19 4) Hilda se despede da seriedade ...... 21 5) Hilda vira pornógrafa […] ...... 26 6) A Obscena Senhora Hilst ...... 28 7) Inocência escandalosa...... 31 8) O conflito entre a sociedade e o escritor ...... 34 9) Um caderninho picante ...... 36 10) Brincanagens de Hilda Hilst ...... 36 11) Uma obscena escritora de respeito ...... 40 12) Ouro para vocês: eu mesma ...... 42 13) A Sublime Hilda Hilst ...... 43 14) Lori Lamby o ato político de Hilst ...... 44 15) Inocentes revelaçoes de fantasias sexuais ...... 47 16) Hilst contrata a publicação de Lori Lamby na Itália ...... 48 17) Hilda em italiano começando pela trilogia obscena ...... 49 18) Atestado de mau gosto ou motivo de orgulho nacional? ...... 51

B] CARTAS PUBLICADAS NO CORREIO POPULAR ...... 55 1) O que é moralidade? ...... 55 2) Encontro com HH ...... 55 3) Estudante problematiza a liberdade de expressão ...... 56 4) Leitor indignado denuncia licenciosidade ...... 56 5) Leitor denuncia a censura puritana ...... 57 6) O retorno da deusa reflete-se nos puritanos...... 59

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7) Hilda escolheu o mal e pode ser censurada ...... 60 8) Leitor condena Godoy por defender Hilst ...... 61 9) Ilustrador estigmatiza Hilst ...... 61 10) Reflexão sobre o conceito de arte ...... 62 11) Parabéns pela crónica: a alma de volta ...... 63 12) Leitora parabeniza crónicas hilstianas ...... 63 13) Carta sobre a hipocrisia e os direitos das crianças ...... 64 14) As crianças aprendem a pichar ao lerem palavrões ...... 64 15) Leiam HH antes de julgar ...... 65 16) Hilda Hilst venceu ...... 66 17) Lembrem-se de Sodoma e Gomorra! ...... 67

C] CORRESPONDÊNCIA PESSOAL DE HILDA HILST ...... 69 1) Carta pessoal de Pedro Lúcio Ribeiro ...... 69 2) Carta de animalista ...... 70 3) Sonhei você como um anjo ...... 71 4) Carta de Nelly Novaes Coelho ...... 71 5) Penso o que você escreve ...... 74 6) Pornografia devora o karma ...... 75 7) CFA denuncia homofobia ...... 76 8) CFA deprimido por censura e ditadura ...... 78 9) Juvenal Neto comenta a sua crítica ...... 81 10) Carta de um admirador ...... 82 11) Bilhete anexo à Tese: a escritura delirante em HH ...... 83 12) Não me movo de ti ...... 84 13) Queria poder abraçar você ...... 85 14) Dificuldade de publicar poesia...... 90 15) La belle dame sans merci ...... 91 16) Carta de Ricardo Dicke ...... 93 17) Carta de Inês ...... 94 18) O caderno rosa de Hilda Hilst ...... 95 19) Carta de felicitação ...... 97 20) Gratificação dos artistas ...... 97 21) A salvação vem por meio da fé ...... 98 22) Visitei o Carmelo e entreguei-me à Deus ...... 100

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D] CRONICAS HILSTIANAS ...... 103 1) A alma de volta ...... 103 2) Berta-Isabô...... 104 3) (EGE) Esquadrão Geriátrico do Extermínio ...... 106 4) Mirta ...... 108 5) Negão sacana, isso sim! ...... 109 6) Bizarra, não? ...... 111

E] FORTUNA CRÍTICA ...... 113 1) Obra de Hilda Hilst deixa a Globo ...... 113 2) Apresentação por Leo Gilson Ribeiro ...... 114 3) Tu, minha anta, HH ...... 117 4) A festa erótica de HH ...... 120 5) A prosa degenerada ...... 126 6) Discrição e finura...... 130

F] IMAGEM ...... 135

G] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 139 Artigos [A] ...... 139 Cartas publicadas [B] ...... 141 Cartas pessoais [C] ...... 143 Celeção de crónicas [D] ...... 144 Fortuna crítica [E] ...... 145

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A] ARTIGOS

1) TAREFA DE CRIAR NUM PAÍS SEM LETRAS E SEM POESIA

Um dos maiores nomes vivos da literatura brasileira – segundo os principais críticos do País – Hilda Hilst tem mais de vinte obras publicadas mas ainda é desconhecida do grande público. Uns argumentam que sua obra é difícil, criativa, instigante; outros, que falta ao Brasil maior seriedade editorial. E agora, 38 anos depois da publicação de seu primeiro livro – Presságio, com ilustrações de Darcy Penteado – ela prepara sua despedida, mudando radicalmente de estilo. Com O Caderno Rosa de Lori Lamby, três estórias altamente eróticas, já nas mãos dos editores – Hilda Hilst, 58 anos, espera ganhar com este último livro muito mais do que recebeu de direitos autorais, durante toda a vida- menos de Cz$ 100 mil. Vivendo em seu sítio nas imediações do Solar das Andorinhas, desde 1963, Hilda dedica-se a um constante exercício de criação, a passeios matinais com seus cães, recebe os amigos para conversas sérias, ou descontraídas, ouve pouca música, mas diverte-se a valer com as novelas da TV, deliciando-se com as peripécias de Édipo e Jocasta. Arredia à Imprensa, abriu as portas de sua Casa do Sol ao Diário do Povo para falar de sua vida, de sua obra, de seus amigos e do Brasil.3

Entre tantos livros, qual o que mais lhe agrada? Foi com a Obscena Senhora D que consegui dizer, da maneira que eu sempre desejei. E fiquei muito contente, porque foi justamente com este livro que o Jorge Cole4, que trabalhava no Le Monde Literaire, escreveu um artigo, falando do trabalho do Massao Ono5, o editor, e disse justamente sobre a Obscena Senhora D, sem nunca tem me conhecido, que era o cume da escrita literária. Fiquei contentíssima. Mas aqui não aconteceu nada. Aqui ninguém lê o Le Monde. Agora, eu penso assim: num País onde há 30 milhões de famintos, 12 milhões de favelados, 9 milhões de crianças desamparadas, 4 milhões de crianças abandonadas, 5 milhões de bóias-frias, eu pergunto: literatura tem alguma importância diante desse quadro?

Mas não é a literatura que tem de puxar a cultura do povo para cima, para que as pessoas adquiram o senso crítico?

3 Diário do Povo, “A amarga tarefa de criar num país sem letras e sem poesia”, Campinas (27-03-1988) [grifo meu] CEDAE: II. IV.7. 2. 00033. 4 Jorge Coli. 5 Massao Ohno.

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Mas como é que a pessoa vai ler, como é que você pode acordar ideias na pessoa se ela está preocupada com o dia-a-dia, com a comida, com o leite das crianças. E ainda mais fazendo o tipo de literatura que eu faço. Eu acho que eu tive um acidente literário de ter nascido no Brasil, numa cidade pequena do interior, filha de um fazendeiro – um homem muito culto – mas eu nunca entendi como eu nasci em Jaú no País onde estou e escrever como eu escrevo. Não é culpa minha, nem do País, porque a literatura para mim é absolutamente essencial. Só acho que há desculpa para o fazer literário se você tem alguma coisa de essencial para transmitir e foi isso que eu quis fazer em 18 anos, prosa, 40 anos de poesia e teatro desde a época da repressão, porque foi uma coisa de urgência: eu queria transmitir urgente e imediatamente. Mas a maneira complexa como eu me expressei não deu certo. São 40 anos, zero, zero. É como se eu não tivesse existido.

A sua obra tem mais receptividade no exterior? Não. Nem isso. Muitas pessoas me escrevem das universidades dos Estados Unidos, do Canadá, mas as traduções que me mandam não sou eu, não dá certo. A dificuldade de encontrar aquele mesmo ritmo, as mesmas palavras, não dá certo. Falta a sintonia com meu trabalho durante anos para a pessoa me traduzir. Eu quero ser traduzida, mas não de qualquer maneira. É por isso que só fui traduzida em revistas literárias no Canadá, na França. É uma coisa meio esotérica escrever como eu escrevi, ter nascido aqui, as pessoas sempre falando que eu sou uma tábua etrusca. Mas eu faço uma coisa nova não por fazer, mas fruto de um movimento interior, que me leva a modificar a textura interior do meu discurso. E como nunca fui entendida, apesar de falar do comportamento do homem, das situações – limite, da ética política, eu não consegui leitores. Eu tenho meia dúzia de leitores apaixonados.

E esse acidente geográfico de que você fala não pode estar associado àquilo que aconteceu a outros gênios das artes, que só tiveram suas obras reconhecidas muito tempo depois de mortos? Se é que é assim, é muito triste. Mas tem muito a ver com o meu mapa astral. Eu tenho Saturno na Casa 12 e em Capricórnio, mas a Casa 12 é cármica, é onde você vai sofrer. Escrever é a única coisa que eu sei fazer e parece que escritor não serve para nada. Mas acredito nisso que você fala. A Astrologia vai ser a ciência do futuro e por isso acho que esses acontecimentos têm conotações cármicas. Não acredito que as pessoas continuam a dizer que o meu texto é extremamente difícil.

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De onde vem esse estigma de texto difícil? Agora eu estou em São Paulo com o Auto da Barca do Cariri6. A peça se chama Auto da Barca, eu fiz como um auto, onde a metáfora tem importância decisiva. E as pessoas acham difícil uma coisa tão simples e tranqüila. Não entendo o que é. Nessa peça, eu conto a estória de alguns juízes que chegam a uma cidade para resolverem se o homem que está lá, fazendo supostas modificações, existe. É para fazer toda uma metáfora com Che Guevara. Mas como eu escrevi esse texto na época da repressão, eu não queria ser fuzilada, torturada, mas não gostaram da montagem e fica o estigma de que eu sou difícil. Mas o homem é uma estrutura difícil, que não resolveu a si mesmo durante séculos, e a minha forma de expressão é complexa. Se as coisas fossem simpres, com erre mesmo, seria muito fácil eu ter escrito. Talvez apenas a santidade traga essa simplicidade que me cobram.

Apesar da pobreza do País, existe uma massa de intelectuais. Eles não lêem sua obra? Quem me lê são aquelas pessoas realmente ligadas à literatura, que têm aquele entusiasmo pela coisa nova da nossa língua, que na Língua Portuguesa eu fiz como a radiografia de um percurso das coisas mais essenciais, os sistemas, os limites do homem, a paixão, as emoções, a morte, que eu acho o maior problema do homem: a sua angústia de não ter se resolvido diante da morte.

Você tem essa angústia? Ah! Eu tenho. O Rabindranah Tagore, poeta indiano já falecido, tem uma frase muito bonita – a vida é uma idéia criativa – é por isso que o homem de morrer infinitas vezes. Desde menina eu sempre tive essa preocupação com a morte. Quando criança, vi uma menina morta e nunca compreendi aquilo. Hoje, eu acredito na reencarnação, mas tenho medo de enfrentar o instante da morte, porque a morte não é essencialmente terrível; ela pode ser uma passagem fulgurante para a quinta dimensão. O poeta tem muito a ver com as outras dimensões. Ele percebe as coisas muito antes de as outras pessoas perceberem. Não existe isso de qualquer um conceder a poesia. Primeiro, porque você já nasce com um conhecimento profundo a respeito das coisas; depois, os amigos da infância, o seu próprio caráter fazem com que você se aprofunde. E o que você vê de todos os lados já vê transformando numa outra coisa, mais além do que os outros. O escritor não é como

6 Auto da Barca do Camiri.

9 todo mundo. Isso é mentira. O escritor olha com olhos de ver, consegue transfigurar aquele instante, aquele momento, aquele objeto, aquela pessoa e colocar naquela dimensão onde ele está, em que ele faz a poesia. É um não sei quê você não sabe. É muito diferente de escrever prosa. Aí eu fico muito tempo com os meus personagens, convivendo. E um dia eu começo a escrever, faço disso uma disciplina, mas não posso me sentar e dizer: “Vou fazer um poema”. Muitas vezes demora dias para completar um ciclo poético e eu posso passar meses esperando por outro momento igual, a volta daquele fervor que não tem nada a ver com a emoção, é como contemplar a emoção.

É verdade que você vai parar de escrever? Estou me despedindo da literatura. Trabalhei 40 anos e não consegui fazer o que eu mais desejei: me comunicar. O D. W. Lawrence tem um personagem, em O Amante de Lady Chaterly, que desejava ser um escritor, que queria escrever, mas escritor é aquele que tem leitores. O escritor é como as pessoas, que ficam em determinado ponto esperando pelo ônibus e acabam por perdê-lo. Eu fiquei na fila do ônibus por 40 anos e perdi o ônibus. Não aconteceu nada no meu sentir, ninguém lê a minha obra. É difícil a pessoa pensar, pensar faz uma ferida. A futilidade toma conta do homem, é um estado violento e você não consegue tirar a pessoa desse estado. Embora eu tenha tentado fazer isso durante esses anos todos.

Como é que você se define? Outro dia eu estava lendo sobre as narrativas japonesas e encontrei a palavra monogatari, que quer dizer, e japonês, romance, conto lendário, e resolvi decompô-la. Ela tem mono, gata, rata, gama, ata, ira e gnomo. Quando eu li isso veio a pergunta: o que é um escritor? A partir dessa decomposição eu intui que o escritor, o intelectual, é um gnomo – pequena criatura grotesca, o homem; um gnomo com ira – porque segue em ansiedade; carregando a ata – o texto, o discurso; e atrás dele o mono, a gata, a rata e o gamo. Então o intelectual no mundo de hoje seria um monogatari, eu sou um monogatari, eu sou aquela pessoa grotesca, querendo passar o meu texto ao outro com uma certa ira, com uma certa ansiedade, e todo mundo vem pondo a corrente: a gata, a rata, o gamo, o mono, num país em que o escritor está totalmente desamparado.

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Você tem saudades da sua infância? Eu nasci em Jaú, mas depois morei em Santos. Eu não tenho muita ligação com as crianças, fui filha única e não tenho filhos. Fui uma criança muito solitária. Gostava muito de ficar sozinha, de olhar os bichos, não tinha a ansiedade da companhia de outras crianças. Minha mãe achava que estava triste, falava aquelas coisas de todas as mães. Depois tive um período de desejar todas as emoções, achava que era através do corpo que ia ter as emoções e dos 20 aos 35 anos me diverti muito, fui amada, amei e depois senti a fome de sentir esse fervor nas ideias. Hoje eu tenho medo de crianças.

E o lado social da Hilda Hilst? Meus amigos dizem que eu nunca falo sério. As pessoas me convidam para um jantar, para ir a um bar e querem falar sobre essas coisas que nós estamos falando agora, mas eu pergunto como eles vão, como estão os relacionamentos com as mulheres, com a vida. E se nesses lugares eu falar dessas coisas que nós estamos falando agora, elas não vão entender; é uma noção de profundidade das coisas do dia-a-dia. Eu não quero ser considerada bizarra. Então quando vou a um lugar onde as pessoas estão com a violência da futilidade não vou me mostrar para não ser benquista. Aí eles acham que eu sou arrogante, que eu desprezo os outros. Não é isso. Tenho muita vontade de ser amada, de me integrar ao mundo, mas a hostilização é que faz me mostrar assim e quando vou a esses lugares eu gosto de beber – eu gosto de beber whisky – e me mostro sempre alegre e elas não entendem como eu fui capaz de escrever A Obscena Senhora D.

Qual o seu trabalho na Unicamp? A Unicamp é a única universidade que me prestigia e me convidou para ser artista residente no Departamento de Artes. Quando eu sou chamada para palestras e debates eu me encho de energia, me preparo para transmitir alguma coisas de vital. Mas as coisas às vezes saem pela culatra. Uma vez uma senhora me perguntou, na Unicamp, porque escrevo de uma forma tão angustiada. Eu respondi que eu sou feita de carne, sou um corpo cheio de buracos e que se eu não me lavar todos os dias eu vou feder. Isso me angustia horrivelmente. Você já reparou que você não pode falar as palavras que definem os buracos abaixo da cintura? Eu falei, não há porque todo esse pudor.

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Fale de seu novo livro e dessa expectativa de fazer contos eróticos. O Caderno Rosa de Lori Lamby tem no subtítulo o caderno negro e o… do sapo liu- liu, mas eu não sei se o editor vai colocar essa palavra aí, embora a referência seja a um livro de contos infantis que a Lori Lamby escreve. E talvez essa palavra não saia na capa do livro devido ao pudor de se falar dos orifícios que temos abaixo da cintura. Mas eu acho que deveria ter começado a minha literatura por aí, com um percurso diferente. Essa é uma brincadeira, um livro pueril, a minha despedida da literatura brasileira, mas acho que é como deveria ter escrito a vida inteira porque tenho a impressão de que pela primeira vez vou ser lida. O livro terá desenhos de Wesley Duke Lee7, conotações politicas. É uma despedida sem ressentimentos.

Escritora famosa, trabalhando na Unicamp, morando num lugar que você adora, qual a paisagem, o lugar que mais lhe agrada? A vida. A vida para mim é uma experiência vigorosa a cada dia. Eu gosto muito de olhar as coisas, de andar com os meus bichos, de ficar olhando os pássaros, a noite, mas não há nada de lírico nisso. É uma coisa interiorizada, questionando que é essa dimensão da Terra, o que os homens estão fazendo no espaço. Se não tivesse feito isso a vida toda não teria escrito o que escrevi. Eu me sinto muito bem perto das plantas, dos animais, mas sinto muito medo perto das pessoas. Eu amei várias paisagens. Agora eu gostaria de fazer doutorado na Unicamp a partir de um livro de poemas, Amavice8, que significa em latim “ter amado um dia” e o que me vem é essa nostalgia de ter sentido um dia o primeiro toque do homem amado, a primeira descoberta de um animal, essas primeiras emoções que eu tive um dia, a nostalgia dos toques, da visão e da emoção. Eu gosto de estar aqui, no meu sitio, porque estou perto da terra, a minha energia vem da terra. Até penso que se um dia fosse presa pediria para ficar numa colônia agrícola, cigarros, whisky, um bicho e livros, muitos livros. Eu passo horas e horas lendo. É uma coisa que tem a ver com a busca.

A sua alimentação inclui carne? Não. Faz tempo que eu não como carne. Eu detesto carne com sangue. É essa coisa da vida e eu penso imediatamente que estou comendo um cadáver, o cadáver de um animal e isso me perturba muito. Eu adoro os animais, todos eles e procuro salvá-los sempre que posso. É instintivo, imediato. Eu respeito demais a vida.

7 Esta era a intenção inicial de Hilda Hilst, mas Wesley Duke Lee recusará o trabalho e o livro será ilustrado por Millôr Fernandes. 8 Amavisse.

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Como você passa o seu tempo? Adoro ver televisão à noite. Sento aqui no sofá, tomo meus whiskinquinhos, pego um livro para ler durante os comerciais e adoro novelas. Quanto mais idiotas forem, mais eu gosto. Estou me divertindo demais. O que estão fazendo com o Édipo é absolutamente original, uma distorção muito grande do elemento central da trama, que era o moço dormir com a mãe, que por sinal é lindíssima. Converso muito com o José Antônio de Almeida Prado, que é meu primo e com os amigos que aparecem. Mas tenho dificuldade com música. Eu gosto da música do Almeida Prado, que revolucionou a nossa música. Eu gosto do Mahler, da Billie Holiday, mas quase não ouço música. Não vou a teatro e de vez em quando ao cinema. Outro dia fui ver Wall Street e no outro Atração Fatal.

A criatividade, de onde vem? Da pressão exterior e interna. Sem conflitos não há como desenvolver ideias. Eu fiquei criativa porque eu tive conflitos: eu não tive pai, depois tive lembranças da sua beleza, dos seus escritos, da sua loucura. Sempre achei que a loucura tem tudo a ver com a aventura. O louco atravessa o mundo. Eu não tive a dor de ter um pai louco, a não ser quando o vi doente, acabado, nos hospitais, muitos anos depois.

Você nunca pensou em ter filhos? Eu tinha verdadeiro pavor em ter filhos. Quando um homem gostava de mim e dizia que queria um filho meu, na mesma hora eu acabava tudo. Eu sabia que se tivesse filhos nunca poderia fazer o que sempre quis, que é essa vontade de fazer, de escrever. E ao mesmo tempo eu não tive essas ilusões da continuidade. Seria muito bonito ter um filho imortal, mas isso é impossível, tudo leva para a morte. Tudo é uma ilusão. E as ilusões são, apesar de tudo, muito importantes.

E o casamento? Sempre fui avessa ao casamento. Sempre tive um comportamento extravagante, erótico, mas me desapaixono muito facilmente. Era muito ligada às coisas da beleza masculina. E eu acabei me casando com o Dante Cazarini9, escultor, que era um homem lindo, maravilhoso, que as pessoas pensavam estar sonhando quando o viam. Mas nós nos divorciamos. Hoje somos muito amigos aqui, juntos. Hoje eu não beijo nem santinho, de tanto medo que tenho da Aids.

9 Dante Casarini.

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Você tem muito medo da Aids? Tenho. Muito. É terrível. Você não sabe até onde vai a transmissão. Não se sabe exatamente até onde ela vai e não existe quase nenhuma possibilidade de cura. Apenas a Antroposofia está conseguindo alguma coisa, alguma recuperação, e logo eles vão divulgar alguma coisa sobre essas pesquisas que têm muito a ver com as coisas da natureza.

Quem você admira na literatura? Ah! Tem o Ricardo Guilherme Dicke, matogrossense. Ele escreveu Deus de Caim e Madonna dos Páramos. Ele tem uma linguagem impressionante. É um homem, um escritor deslumbrante. E ninguém fala dele no Brasil.

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2) NOSSA MAIS SUBLIME GALÁXIA

Esta semana, mais precisamente o dia 21 de abril, marcou a passagem do aniversário de 59 anos da maior escritora viva em língua portuguesa: Hilda Hilst, poeta/ dramaturga/ ficcionista, ignorada pela mídia, ignorada pela maioria dos críticos10, ignorada por 99% do público leitor: “As pessoas tratam o meu texto como se fosse uma tábua etrusca – diz a autora de Ficções: Fluxo – Floema e de Com meus olhos de cão. Quarenta dos 59 anos de Hilda Hilst foram dedicados a revelar o indizível, a fazer de escrita uma sonda metafísica devassadora dos mistérios gozosos e malditos do ser, em uma obra magnifica que só pode ser comparada a de e Guimarães Rosa. Exceções: críticos do calibre de Léo Gilson Ribeiro e Anatol Rosenfeld não economizaram elogios. / Lançada na França, a obra de Hilst recebeu estas palavras do crítico Jorge Colin11, do Le Monde: “A perfeição da escritura literária no mundo contemporâneo”. / Revoltada com o descaso, ela resolveu botar pra quebrar, lançando um livro pornô-erótico (contendo O Caderno Rosa de Lowri Lamb e Contos d’Escárneo: Textos Grotescos12) a sair em maio pela Editora Massao Ohno, juntamente com a coletânea de poemas Amavisse. E nesta entrevista ao Jornal de Brasília, concedida na “Casa do Sol”, uma chácara

10 Araújo C. & Francisco S. “Nossa mais sublime galáxia. Revoltada com o descaso, Hilda Hilst, a maior escritora viva em língua portuguesa, resolve botar pra quebrar e lança um livro porno- erótico. Só tem medo que levem a sério”, Jornal de Brasília (23-04-1989) [grifo do autor] CEDAE: HH.II.IV.7.2.00036. 11 Jorge Coli. 12 O caderno rosa de Lori Lamby e Contos d’escárnio: Textos grotescos.

14 belíssima (a 11 km de Campinas – São Paulo), onde reside há mais de 20 anos, fragmentos da fala incendiada de Hilda Hilst.

GÊNESES Certa manhã eu li qualquer coisa de impressionante sobre um editor que tinha pago dez milhões de dólares para aquela mulher da “Bicicleta Azul” (Regine Deforgues) fazer uma brincadeira em cima de “E o Vento Levou”. / Então eu falei: quer saber? Não vou escrever mais nada de importante. Ninguém me lê, falam sempre, aquelas coisas, que eu sou uma tábua etrusca, que sou um hieróglifo, que não sei o quê. Entrei para o quarto e falei, quer saber, vou escrever uma tremenda putaria C…, p…., b….! Todo mundo vai entender. Mostra pra minha empregada, mostra pro metalúrgico do ABC! E, agora entendeu?

CÓLERA Eu estava em cólera! Falei: vou começar com uma menininha de 8 anos falando sobre sexo. É a historinha de uma menininha que você pensa que ela faz tudo aquilo que ela conta, mas ela não faz. Acabou saindo uma historinha moralista, meninil, pueril. Mas o Caio Graco (da Editora Brasilianense) que é um editor que já publicou um monte de putaria, disse que não ia publicar porque era escabroso. No fim você descobre que a menina é filha de um escritor que está fazendo o possível para escrever uma história erótico/pornô que seria eu mesmo. A menina está apenas tentando ajudar o pai a escrever a história. Quantas vezes não ouvi de editores: por que você não escreve uma história de putaria, uma história de gigolô e prostituta?

SALVAÇÃO “Ninguém quis publicar. Mas aí Massao Ohno falou em público. Eu pedi ao Millôr Fernandes, que é meu amigo desde os tempos de rapazote, para fazer umas ilustrações. Mas como a edição estava demorando muito eu resolvi escrever uma putaria sofisticada, onde aparece o escritor Hans Heckel, que se leva a sério e se suicida. Este escritor sou eu. Eu sei que ri muito com toda a história. Muitos já escreveram que há vários tipos de salvação. Você se salva através do álcool que é um tipo de salvação que venho tentando há muito tempo e não dá certo. Você se salva pelo erotismo. Só se eu fosse para um bordel geriátrico a esta altura, o que não tem aqui também. E o que mais? Através do suicídio, o que não quero também. E a outra coisa é o risco. Alguns amigos dizem: é um lixo. Eu digo: sabe qual é o significado deste livro? Estou cagando pra vocês. Eu só tenho medo é de que as pessoas me levem a sério. Eu tenho um karma de hermética. Quando eu disser c… é possível que as pessoas interpretem como o buraco negro do quinteto de Pégaso”.

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COMPRENEZ – VOUS? “ Eu tinha um amigo, de quem gostava muito, o Gilson Amado, que esteve em um barco onde uma francesa não parava de dizer: comprenez-vous? Para tudo. Ele se encheu e disse: olha minha senhora, eu sou um homem que leu Kierkegaard, Kant, Espinosa, como não vou entender as idiotias que a senhora está falando? E a mulher lá falando as besteiras da xereca dela! Então é isto que está acontecendo. As pessoas querem que você trate de coisas infinitamente complexas de forma simples. Enquanto isto as coisas idiotas são ditas com a maior imponência. Parece que proibiram o brasileiro de pensar. O brasileiro não pode escrever como um escritor/pensador. Não sei se porque o homem está tão desesperado que quando você fala em alma, em Deus, as pessoas podem te dar um soco na cara!”

ROTEIROS “Para mim a problemática importante é a morte, as relações humanas, as relações eróticas, as situações extremas. Eu não tenho nada a ver com esta coisa do dia-a-dia, ainda que ela possa ser terrível. Eu tenho a ver com as situações extremadas, o homem em convulsão. Não sei se esta lucidez extrema pode afetar profundamente o outro, não sei se há licitude em fazer isto, quer dizer, o cara está vivendo uma vida idiota e você começa a perguntar: como está a sua vida? E o cara começa a perceber que aquilo tudo era irrelevante para ele. Tem gente que nunca pensou que um dia não vai ser mais. Sempre fui impressionadíssima com a morte. De repente não vamos mais ser neste espaço. Que coisa estranha! Eu fui um dia, não sou mais, e quem é que eu era quando eu não era? São os roteiros interiores que me interessam: o sutil, subterrâneo, o quase impossível de se dizer.

TRASEIROS “Adoro o como pessoa. As primeiras obras dele são muito interessantes. Mas depois ele virou foguetório. O brasileiro é o homem que gosta do traseiro, que come o c… das mulheres, que faz a festança da bunda. Os estrangeiros vêem o brasileiro assim. A bunda ficou sendo um monumento, um altar. No conto Tadeu da Proporção tem um bundeiro, seu Silva Brasileiro. Porque na verdade é o brasileiro que é o bundeiro, é ele que fica de quatro o tempo todo, é ele que toma no c… o tempo todo. No conto eu digo uma coisa que acho bonita: pobre macho, de joelhos, de quatro. É este Brasil, o tempo todo enrabado. É o ser político se manifestando no meu texto. Mas as pessoas não vêem isto. Acham que sou estratosférica”.

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DEUS I Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso. Isso era Deus. Ainda assim tentava agarrar-se àquele nada, deslizava geladas cambalhotas até encontrar o cordame grosso da âncora e descia, descia em direção àquele riso. Fragmento do conto Com Meus Olhos de Cão. “Deus é quase sempre esta noite incomensurável. Mas ele pode ser também um flamejante sorvete de cerejas”. Fragmento de uma entrevista de Hilda Hilst ao jornal Leia.

DEUS II Deus é o indizível, mas é também uma relação amorosa com o que você não sabe definir. Todos os meus personagens são atormentados por esta busca. Ninguém fala sensualmente como Matamoros (personagem de um conto de H.H.) se não tem esta coisa que não sabe explicar, eu só posso dizer isso escrevendo. É a minha maneira de existir. A literatura não é a escuridão e nem o sorvete. É a procura do centro. O homem contemporâneo é esvaziado de alma, espirito, de beleza. O escritor tem uma nostalgia da beleza, da luz perdida. Acho que o homem é esta caminhada para alguma coisa além do que ele deseja e compreende.

Kierkegaard dizia: viver é sentir-se perdido. Então isto seria chamado de Deus.

VIRUS DA PAIXÃO “Por que determinadas personalidades, por que determinados homens e mulheres tornaram-se tão fantásticos? Eu acho que assim como existem os vírus do corpo existem os vírus do espírito. Você se contamina pelas paixões Che Guevara, por exemplo, é uma figura que me fascina. Ele encarna a figura do santo. Todo mundo dizia que era imprudente ele partir para outra guerrilha, mas ele foi assim mesmo”.

IRMÃOS- CAMPOS “O único crítico que fala do meu trabalho é o Léo Gilson Ribeiro. Vocês me perguntam se os poetas concretos já escreveram sobre os meus textos? Tanto o Augusto, quanto o Haroldo, quando o Décio Pignatari foram meus contemporâneos nos tempos de Faculdade de Direito. Nunca escreveram. As pessoas estranham porque a minha literatura tem uma coisa com a linguagem, com a qual eles sempre estiveram preocupados. Eu acho que o Haroldo, o Augusto e o Décio são ótimos tradutores, mas não são criadores, não são poetas”.

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LIVROS “Sempre fui apaixonada pelos livros. Quando vou a algum lugar e não tenho um bom livro pra ler passo mal. O livro é um objeto sensual. O meu pai adorava livros. Quando ele enlouqueceu levou todos os livros para um bordel. Ele chamava as mulheres para ficar com ele, mas não queria transar com nenhuma. Só queria que fizessem companhia enquanto mexia com os livros”.

VOZES DO ALÉM “De 72 a 78, eu fiz experiências fantásticas gravando vozes de pessoas que já haviam morrido. Tudo era baseado nas experiências de um sueco, Jurgenson, do instituto Max Plank, de Munique. Aí as pessoas chegavam dizendo: eu também ouço vozes. Eu dizia, pô eu não ouço vozes, eu gravo vozes. Eu coloquei o meu sobrinho, o neto preferido de minha mãe para falar com ela. Ele disse: espero que você esteja bem por aí e que vele por nós. Ela respondeu: sim, de uma forma carregada de emoção. Ela era passional, dramática. As pessoas diziam: só isto. Ora, não era uma ligação Moji – Carapicuiba. Se ela só falasse c… não interessa pô, falou. A Unicamp está querendo fazer umas pesquisas. Na época eu era chamada de louca, de cretina, de não sei mais o quê. Mas está tudo gravado”.

O escritor e seus múltiplos vêm vos dizer adeus. Tentou na palavra o extremo- tudo E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura, A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito. Tempo- Nada na página. Depois, transgressor metalescente de percursos Colou-se à compaixão. Abismos e à sua própria sombra. Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar. A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo. O Caderno Rosa é apenas resíduo de um “Potlatch”. E hoje, repetindo Bataille: “Sinto-me livre para fracassar”. Hilda Hilst

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3) FÓRMULA PARA VENDER

CAMPINAS, SP13 –

Pode parecer estranho que uma escritora que se preocupou a vida toda em escrever sobre tema vitais agora enverede pela pornografia. Para Hilda Hilst, 57 anos, não.

E ela se justifica: - Só é escritor quem vende livros. E até hoje eu vendi muito pouco. Eu quero ser lida.

E nessa nova incursão literária Hilda Hilst começa com a pornografia de “O Caderno rosa de Lori Lamby”, uma sucessão de contos com ilustrações de Wesley Duke Lee14 que ela classifica de altamente excitantes.

Na estrutura do novo livro há uma história escrita pelo pai de Lori Lamby que ela chama de “O caderno negro”; depois, uma história infantil da própria Lori Lamby, sobre a qual ela não faz mistério e se diverte muito enquanto resume brevemente as peripécias do “sapo Liu-Liu”, para tomar sol numa parte do corpo que as pessoas têm vergonha de dizer. - O sapo procura socorro junto à coruja Fofina, que descobre num livro antigo citações de pessoas da India que fazem tudo para tomar sol. E tudo acontece num lugar que tem muito de Brasil, com conotações políticas inclusive.

Confiante no sucesso de “O Caderno rosa de Lori Lamby”, Hilda Hilst avisa: - Esta é uma brincadeira final. É um sorriso. Estou me despedindo da literatura com esse livro, que é pueril, mas é como eu deveria ter escrito a vida inteira. Pela primeira vez, acredito, eu vou ser lida.

Ainda não está definida a editora que publicará o livro pornográfico de Hilda Hilst; os originais foram mandados para vários livreiros e a autora espera resposta. As poucas pessoas que tiveram oportunidade de fazer o teste de mercado da nova obra de Hilda Hilst ficaram excitadas: um casal amigo disse que adorou a leitura dos originais. A partir de reações desse tipo, Hilda acredita que conseguirá aquilo que não obteve ao longo de 30 anos de um constante, criativo e instigante exercício literário, vender livros:

13Celso Farlaschi, “Fórmula para vender”, O Globo, Rio de Janeiro (16-04-1988) [Grifo do autor]. CEDAE: HH.II.IV.7.2.00034. 14 Na verdade, as ilustrações do livro serão de Millôr Fernandes.

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-Eu mesma não entendo por que é que tendo nascido no interior de São Paulo escrevo essas coisas, que as pessoas dizem não entender. Isso só pode ser um acidente geográfico absurdo.

Mesmo em tom de blague, Hilda Hilst deixa transparecer um misto de ressentimento e incompreensão por parte das pessoas que a acusam de ser um pouco angustiada. -Eu nada mais fiz do que retratar a angústia do ser humano a sua passividade diante da vida e da morte.

Ainda extremamente ligada ao pedaço de chão de um sítio nos arredores de Campinas, onde passeia descalça em companhia de seus pequenos cães, Hilda está rompendo definitivamente com o passado, e preocupada com o presente. - Nem santinho eu beijo mais. A Aids é uma doença desconhecida, surpreendente, morta e eu tenho muito medo dela.

Hilda Hilst publicou seu primeiro livro aos 18 anos de idade, e hoje já soma mais de 20 obras editadas, como “Com meus olhos de cão e outras novelas” (o único disponível atualmente em livrarias, editado pela Brasilianense), “Tu não te moves de ti”, “Fições”, “A obscena senhora D.”, e “Textos em fição”, em prosa; “Poemas malditos gozosos e devotos”, “Cantares de perda e predileção”, e “Ode Fragmentária”, em poesia; “O verdugo” e “O alto da barca Cariri”15, para teatro. Enquanto aguarda a edição de “Lori Lamby”, Hilda Hilst, às voltas com as dificuldades financeiras da maioria dos brasileiros, guarda um outro sonho: fazer doutorado na Universidade Estadual de Campinas com uma abrangente pesquisa sobre escritores e a arte de fazer poesia.

15 Auto da Barca do Camiri.

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4) HILDA SE DESPEDE DA SERIEDADE

AO LANÇAR SEU 28º LIVRO, A ESCRITORA HILDA HILST SE CANSA DE ESPERAR PELO RECONHECIMENTO E ANUNCIA A “BANDALHEIRA”16

Desde a sua estréia em livro, há 40 anos, Hilda Hilst viu cristalizar-se em torno de si a legenda de uma autora de livros herméticos, impenetráveis. Muito a contragosto, viu-se transformada num desses escritores “difíceis” de quem, aqui e ali, se fala elogiosamente, mas que pouquíssimos atravessam de ponta a ponta. Enfurnada num sítio nas vizinhanças de Campinas, a 100 quilômetros de São Paulo, onde vive desde meados da década de 60, Hilda Hilst, paulista de Jaú, arrastou estoicamente essa imagem ao longo de 28 livros de poesia, ficção e teatro. Até que um dia, algum tempo atrás, cansada de não ser reconhecida, ela explodiu – e, para o pasmo de seu esquálido círculo de admiradores, anunciou sua conversão à pornografia. “Eu não vou escrever mais nada, a não ser grandes e, espero, adoráveis bandalheiras”, proclamou. / Não era, sabe-se agora, um desabafo de momento: o editor Massao Ohno promete jogar nas livrarias, no mês que vem, um petardo intitulado O caderno rosa de Lori Lamby, no qual a escritora, à beira dos 60 anos, solta os cachorros, toda uma assanhada matilha, se sua imaginação e de seu vocabulário pornográfico. Ilustrado a cores por Millôr Fernandes, o livro faz sair histórias escabrosas da boca de uma garotinha. Na contracapa Hilda pensa estampar uma foto sua aos seis anos de idade, com a legenda “ela foi uma boa menina”. E é só o começo, a escritora avisa; talvez pela mesma editora, em abril, ou maio virão os Contos d’escárnio - Textos grotescos, recheados de cenas incandescentes e apimentados com palavrões mais crus. “Finalmente eu meu tornarei consumível”, já dissera Hilda Hilst ao comunicar a sua surpreendente guinada literária. Amavisse, a belíssima coletânea de poemas que ela acaba de lançar, fica sendo, assim, pelo menos por ora, a sua despedida da literatura “séria”. / Se o objetivo era chocar, foi alcançado em cheio, a julgar pela reação das pessoas a quem mostrou os originais. Um amigo, ela conta, o pintor Wesley Duke Lee, achou O caderno rosa “um lixo absoluto”. Outro, o médico José Aristodemo Pinotti, ex-secretário da Saúde do estado de São Paulo, considerou que “uma poetisa tão boa nunca deveria enveredar pelo pornô”. A escritora , com que, troca confidências e produção literária desde os anos 50, admite que ficou “meio assustada, aturdida”. O editor Caio

16 Humberto Werneck, “Hilda se despede da seriedade”, Jornal do Brasil (17-02-1990) [grifo do autor] CEDAE: HH.II.IV.7.2.00037.

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Graco Prado, da Brasilianense, gostou do que leu, mas, temendo um escândalo, não se aventurou a publicar. “Não tive coragem”, confessa. Mesmo o crítico Leo Gilson Ribeiro, há longos anos uma voz praticamente solitária na defesa da obra de Hilda, não pareceu entusiasmado com a mudança de rumos. “Será que o que eu estou escrevendo não é suficientemente pornô?”, indaga Hilda Hilst com um sorriso de menina travessa. / Ela quer fazer crer que a guinada se deveu “ao negócio do dinheiro”. Conta que certa manhã, lendo o jornal, ficou indignada ao saber que “aquela idiota, como é mesmo o nome dela?”, a escritora francesa Régine Deforges, autora do best seller A bicicleta azul, havia embolsado US$ 10 milhões. “Dez milhões de dólares!”, escandaliza-se até hoje Hilda Hilst. “Não é possível que eu, com esta cabeça esplendorosa, não possa me sustentar. Se não tivesse recebido uma herança, não teria podido escrever o que escrevi”. Ela afirma que, ao apelar para a pornografia, não está em busca do reconhecimento em larga escala que nunca teve – e, depois de declarar que “a questão é o dinheiro mesmo”, dispara, como de hábito sem meias palavra: “Estou cagando para o reconhecimento”. Será? Lygia Fagundes Telles acha que o que pesou de fato na decisão da amiga foi “um sentimento de ódio pelo não reconhecimento da importância de sua obra, algo que pode transformar um escritor numa esponja de fel”. No caso, diz Lygia, não chegou a haver essa transformação, mas Hilda ficou amarga. “James Joyce dizia que queria ser famoso em vida”, lembra a romancista de As horas nuas. A própria Hilda, em mais de uma ocasião, citou um verso desesperado da americana Edna Saint Vincent Millay: “Read me, do not let me die” (leia- me, não me deixe morrer). Ela diz estar segura de que um dia será lida, mas essa certeza não lhe vale como consolo. Queixa-se de viver “quase num leprosário” e de carregar “um carimbo de coisa inacessível e severa”. / “Parece que sou mesmo indigesta”, comenta com ironia. Refere-se com visível satisfação a seu minguado time de leitores, entre os quais meia dúzia de autores de teses universitárias sobre sua obra, mas em seguida observa que esse time, de tão difuso, é quase uma seita, “é como o KGB”, a policia política da União Soviética. Hilda não esconde uma ponta de ressentimento quando menciona os críticos literários mais ilustres do país, como Antonio Candido e , que jamais lhe concederam uma linha. “Em segredo, Antonio Candido me diz que gosta muito do que eu faço, mas não escreve”, protesta. Garante que “adoraria” levar algumas pancadas da crítica, pois isso seria mais suportável que o silêncio. “Agora, com O caderno rosa e Contos d’escárnio, eu queria ser cuspida”, ela declara, enfática. / Embora não faça o gênero lastimoso – ao contrário, é uma pessoa extremamente bem-humorada –, Hilda Hilst observa que só por exceção tem sido bem tratada como escritora. No começo, conta,

22 ninguém levava a sério a moça bonita, estudante de Direito, filha de família quatrocentona – o pai, filho de francês, herdou da mãe o prestigioso sobrenome Almeida Prado –, que em 1950 publicou por conta própria seu primeiro livro de versos, Presságio, ilustrado por Darcy Penteado. “Era uma gozação geral”, rememora, “achavam que não era eu que escrevia aquilo”. /Segundo Lygia Fagundes Telles, a Hilda de então, “um tipo magrinho, esgalgado, parecendo uma folha de avenca”, chamava atenção e escandalizava a recatada São Paulo, e não apenas por fumar de piteira e esbanjar palavrões: muitos anos antes das feministas, lembra Lygia, ela era emancipada, adorava épater le bourgeois e, ao contrário da imensa maioria das mulheres da época, “ia em frente, não esperava ser colhida pelos homens”. Era uma espécie de musa da roda dos jovens literatos que frequentavam a Jaraguá, a livraria da moda, na rua Marconi, no centro de São Paulo. / Sua pasta de recortes, amorosamente organizada por uma jovem amiga, registra palavras simpáticas de alguns pesos pesados da crítica de então como Geraldo Ferraz (“A poesia de Hilda Hilst vale a leitura”) ou Sérgio Milliet (… uma escritora que “tão delicadamente é capaz de exprimir as coisas mais simples e mais essenciais”). O primeiro grande empurrão, no entanto, só veio em 1969, com os elogios de Anatol Rosenfeld a suas peças, das quais a maior parte nunca subiu ao palco. “A dramaturgia de Hilda Hilst acrescenta uma nova dimensão ao teatro brasileiro”, afirmou o respeitado crítico. Mais adiante, nos anos 70, Leo Gilson Ribeiro não hesitaria em considera-la “a mais perfeita escritora em língua portuguesa viva”, alguém que escrevia “há vários anos a mais abissal e deslumbrante prosa poética do Brasil posterior à genialidade de Guimarães Rosa”. /Julgamentos como este, no entanto, mesmo encorpados por uma fieira de prêmios literários, não conseguiram, nestes 40 anos, dar ressonância ao nome de Hilda Hilst. Ela segue publicando seus livros em editoras miúdas, sobretudo a paulistana Massao Ohno, com tiragens que geralmente não ultrapassam os mil exemplares e as fronteiras de São Paulo e Rio. No final de 1986, excepcionalmente, uma coletânea de novelas suas, Com os meus olhos de cão, saiu pela Brasilianense com 3.000 cópias, das quais, esta semana, restavam 42 nos depósitos da editora. / “Para um livro do gênero”, avalia o editor Caio Graco Prado, “foi uma vendagem muito boa”. Mas dinheiro, mesmo, um dinheirinho que não fosse apenas simbólico, Hilda não se lembra de ter recebido por qualquer de suas 28 obras. A não ser em uma inesquecível ocasião, jamais se viu entrando numa loja para gastar uns cobres literários: em setembro último, quando o livro Alcoólicas, com nove poemas, lhe rendeu inesperados NCZ$ 7 mil, ela foi a um shopping center em Piracicaba, no interior de São Paulo, e comprou uma linda bolsa de prata. “Já vendi”, Hilda conta com uma

23 gargalhada. / A escritora admite que poderia ser mais bem sucedida, em termos de venda e até crítica, se aceitasse embarcar em alguns esquemas promocionais disponíveis, como os chamados circuitos universitários, que têm feito a felicidade de vários de seus colegas. Mas seria demais para ela. “Eu sei que, falando para um auditório, vou ser amada, porque tenho algum magnetismo, mas sei também que é um engodo”, explica. O máximo a que chegou foi participar do Programa do Artista Residente da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, que na verdade consiste em parolagens informais com os estudantes. / Gostaria mesmo é de ser conhecida e amada através de seus livros. “Estou escrevendo bem há 20 anos, e escrevi o suficiente para ser considerada uma grande autora”, desabafa Hilda Hilst, compreender exatamente as razões da permanente névoa que encobre seu nome e sua obra. Basta como explicação o fato de estar vivendo há 25 anos à margem do circo literário que em São Paulo consumia seu tempo, suas energias, sua juventude. (às vezes, conta, chegando em casa para jantar, topava com duas dezenas de novos visitantes). / Um dia pedia à mãe três alqueires da Fazenda São José, a 11 quilômetros de Campinas, decidida a se isolar para escrever. “Todo mundo riu, ninguém acreditou”, lembra, “Mas fui, e para não retomar o ritmo de antes comecei a me enfeiar – puxei os cabelos para trás, comecei a usar batas”. Pôs no papel o esboço de uma casa, a Casa do Sol, e pediu a um arquiteto que lhe desse forma. Nessa construção espanholada Hilda vive desde então, rodeada de uma dúzia de cachorros que recolhe nas ruas ou encontra em sua porta. Divorciou-se do marido, o escultor Dante Casarini, mas os dois continuam vivendo sob o mesmo teto como verdadeiros amigos. Depois das seis da tarde, diariamente, sentam-se nos sofás de couro da sala e tomam juntos o primeiro uísque da noite. Não poucos casamentos gostariam de ser bem sucedidos como essa separação. Hilda envelhece sem traumas. Está até ansiosa para que cheguem os 60, mas os 70 anos, que lhe permitirão enfim “um xale, uma corcunda”. Por enquanto, explica, ainda lhe cobram beleza. Quase não sai, mas a casa está permanentemente aberta aos amigos, que não raro passam ali compridas temporadas. O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, por exemplo, viveu um ano na Casa do Sol. Lá só não se vêem crianças – ou crionças, como Hilda costuma dizer –, “seres verdadeiros demais”./ Não estando nesse voluntário isolamento, onde estará a explicação para o silêncio em torno de Hilda Hilst? Ela suspeita de que parte dela pode estar numa observação da jornalista Heloneida Studart: “Se Hilda fosse homem já a teriam saudado como um dos nossos escritores mais criativos”. “Mulher não pode ter um texto forte” concorda a escritora. No seu caso, não se trata apenas da linguagem exigente, mas sobretudo dos obsessivos temas da morte e da loucura (a loucura

24 que se apossou para sempre de seu pai aos 34 anos), que ela, incomodativamente, não se cansa de escarafunchar em seus poemas, contos e peças de teatro. “Para mim, só o pensamento é vida”, Hilda diz, “e as pessoas não querem pensar. / Ela já disse, também, que “a literatura ou é essencial ou não é nada”. Há portanto razões para duvidar de que a escritora queira de fato levar às últimas consequências seu propósito de mudar de trilho, limitando-se daqui por diante à fabulação de “adoráveis bandalheiras”. Não há por que duvidar da sinceridade de Hilda Hilst quando ela fala do prazer que experimentou ao escrever O caderno rosa de Lori Lamby e Contos d’escárnio. Ao contrário de sua produção anterior, que gotejava lenta e penosamente no papel, palavra por palavra, essas histórias escorreram alegre e fluentemente da máquina de escrever. É mais tocante, em todo caso, a paixão com que ela mostra o último de seus textos “sérios”, as folhas amarrotadas e inconclusas de Rútilo nada, relato sobre o amor entre dois homens, interrompido há mais de ano e que não cessa de espicaçá-la. Há que ver a madura e ainda bela senhora desfiando em voz alta um trecho da novela e em seguida perguntando, por cima dos óculos, coberta de razão: “Não é lindo?”.

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5) HILDA VIRA PORNÓGRAFA […]

PARA SE TORNAR CONHECIDA E VENDER MAIS17

[…] Lori Lamby é uma menina de oito anos que escreve historinhas escabrosas. Lori Lamby é uma personagem inventada pela escritora Hilda Hilst, 60, para destilar todo seu ódio contra o mercado editorial. “O Caderno Rosa de Lory Lamby”, o livro, foi qualificado por editores como “horroroso” e “um lixo”. Mas Hilda Hilst acha que é disso que eles gostam. / Hilda decidiu escrever esse livro pornográfico para pôr pra fora um “ressentimento terrível”: “O mercado editorial deseja isso freneticamente”; “O país é bandalho, adora isso”; “O mercado não gosta do escritor que pensa”; “O que o editor quer mesmo é um escritor mediano, medíocre”. / “Muy conocida en su casa”, é assim que Hilda se refere a si mesma. Como todo escritor, ela quer ser lida e considera a pornografia o melhor caminho. “Que leiam nos banheiros, mas leiam”. Os amigos temem que “O Caderno Rosa de Lori Lamby” destrua seu prestígio. A escritora diz que a palavra “prestígio” vem do latim “praestigiare”, que significa ilusão. Ao longo de seus 40 anos de vida literária, pior do que ver a literatura se transformar em um negócio, foi constatar que não ganhou nada com isso. “Se eu recebi Cr$ 30 mil nesses últimos anos, pelo livro “Com os Meus Olhos de Cão” (Brasilianense, 1986), que vendeu 3 mil exemplares, foi muito.” Hilda vive de um salário que recebe da Unicamp e da herança que recebeu de sua mãe. “Se não tivesse essa sorte, estaria embaixo da ponte”. / “Escritor brasileiro vale menos que um gato morto” diz Hilda, que nunca recebeu adiantamento para escrever nenhum livro. Ela acredita que os editores deveriam fazer propaganda dos livros brasileiros como fazem com os estrangeiros, com a “literatura axilar, para carregar debaixo do braço”, na qual inclui Umberto Eco, “um chato”. / “Eu escrevi o melhor que eu podia escrever e sei que é muito bom porque não sou nenhuma idiota”, diz Hilda com muita mágoa e nenhuma modéstia. “Meus textos foram sempre considerados uma tábua etrusca, ninguém entende nada. Sempre que você tenta fazer um tipo de revolução, que foi o que eu fiz na prosa em língua portuguesa, demora anos para ser assimilada”. Para se livrar desse “carma” de não ser lida, “Saturno na casa 12”, ela explica, Hilda decidiu se tornar uma pornógrafa de primeira linha. Para o próximo semestre, está negociando o lançamento de “Contos d’Escárnio, Textos Grotescos”, “um livro já adulto”, porque “Lori Lamby”, o primeiro no gênero, “é só um aperitivo”. “Você sabe que a pornografia é difícil

17 Fernanda Scalzo, “Hilda Hilst vira pornógrafa para se tornar conhecida e vender mais”, Folha de São Paulo, São Paulo (11-05-1990) [grifo do autor] CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00038.

26 de escrever, ainda mais aos 60 quando você esqueceu praticamente tudo”. “Para mim foi ótimo, foi um programa de saúde escrever esse livro”. Ela diz que não poderia ter optado por escrever uma literatura fácil, que considera entediante. “Eu não poderia escrever a ‘Bicicleta Azul’, é uma droga. Sei que a autora é muito mais inteligente que eu porque ganhou US$ 10 milhões” diz referindo-se a Régine Deforges, autora do best-seller. Aos que ficaram chocados com as perversidades da menina Lori, Hilda pergunta: “O que é pornografia, o que é sujo, o que é imundo, porno para você?” Ela cita D. H. Lawrence, Henry Miller, Gustave Flaubert, Georges Bataille, Sade, Anais Nin e Shakespeare. Todos escreveram obras que foram em algum momento consideradas pornográficas. “As cartas de James Joyce para Nora (publicadas por Massao Ohno) são uma bandalheira. Ninguém queria falar das cartas, para não macular a imagem de Joyce. Imagine, o homem está morto!” Aos que dizem que ela ficou louca, ela responde: “Não é de hoje que me chamam de louca, mas uma louca não escreve tudo o que escrevi”. “Lori Lamby”, na verdade, tem um fundo de moral. A menina não vive as fantasias que relata. Ela escreve o livro para ajudar o pai, um escritor “genial” que se vê obrigado a escrever pornografia por seu editor, um crápula. É um auto-retrato. A linguagem, é aí que o livro “peca”, não é a de uma menina de oito anos, “com QI alto e que convive com escritores” ,como diz Hilda. É , talvez, a de uma menina que já escreveu muita literatura, que conhece sua língua como poucos e que tem uma grande dificuldade em escrever “bandalheiras”. / Junto com “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, Hilda lança também hoje seu último livro de poesia: “Amavisse”. “Não escrevo mais poesia, os editores só faltam te cuspir na cara”. Hilda diz que o poeta já não é mais o que era, “hoje poeta é sinônimo de idiota”, “A poesia é uma voz que você não sabe de onde vem. Não é verdade isso que o João Cabral fala, de que escreve a poesia sem emoção. Claro que é também um trabalho de anos. Hoje as pessoas juntam duas palavras difíceis e acham que é poesia”. / Diante disso, Hilda diz que não vai escrever mais nada, ou ao menos não vai publicar. É uma pena. Quem ler “Lori Lamby” poderá até se divertir com as perversidades da escritora, mas não vai conhecer o que ela fez de melhor. A não ser que a pornografia funcione como “um apelo à conversão, que faça as pessoas lerem”. “Se as pessoas estão dormindo, são sonâmbulas, têm que levar uma porrada na cara. As pessoas vão dizer: nossa, a mulher pirou. Quem é essa mulher? O que que ela escreveu?”. Lori Lamby poderá então apresentar aos leitores seus antecessores, como “Matamoros”, “Tadeu” e “A Obscena Senhora D”.

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6) A OBSCENA SENHORA HILST

Poemas eróticos disfarçam uma fina reflexão sobre a linguagem18.

Ao que tudo indica, o lançamento do último livro da escritora paulista Hilda Hilst, O caderno rosa de Lori Lamby, deixou seus leitores, colegas e críticos um pouco mais que surpresos. A perplexidade se fez silêncio. O que haveria para se dizer desta nova fase da autora que, após uma impecável e sofisticada obra ao longo das últimas quatro décadas, resolve lançar-se, tão incisiva, no gênero pornográfico? É bem verdade que o silêncio em torno deste tipo de literatura tem longa tradição sustentado sobretudo pelo pressuposto de qua a temática obscena por si só revela a qualidade de uma obra. Estaria Hilda Hilst a mercê desses preconceitos, que impedem o reconhecimento da “boa” e da “má” pornografia em termos estritamente literários? / Não tenhamos dúvidas: O caderno rosa de Lori Lamby é, sim, um livro obsceno e, como tal, passível de ser catalogado ao lado de textos afins. Seria, entretanto, um equívoco rotulá-lo como “mera pornografia” de apelo comercial, do tipo Adelaide Carraro ou Cassandra Rios; se o fosse, aliás, dificilmente teria sido publicado por uma editora refinada como a Massao Ohno, numa edição tão bem cuidada, com lindos desdenhos de Millôr Fernandes, e, ademais, com a tiragem de apenas 1 mil exemplares… O livro de Hilda Hilst está para a produção de Adelaide Carraro assim como as novelas de George Bataille estão para os best sellers de Régine Deforges. Entendamos, pois: O caderno rosa inscreve-se numa das mais nobres tradições de literatura erótica, aquela que, para citar apenas alguns autores do nosso século, passa pela obra de Guillaume Apollinaire, Pierre Louys e Henry Miller. / Vale destacar, nessa breve genealogia, a ficção de George Bataille, especialmente a História do olho, com a qual O caderno rosa parece ter afinidades. Com efeito, é justamente Bataille que a autora elege como passaporte da sua transição da “literatura séria” para a pornografia, o despedir-se do leitor, na contracapa de Amavisse, seu último livro de poemas (Massao Ohno, 1989), solicitando que lhe “poupem o desperdício de explicar o ato de brincar. / A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo. / O caderno rosa é apenas resíduos de Potlatch./ E hoje, repetindo Bataille: / “Sinto-me livre para fracassar”. / “Fracassar” significa, neste caso, a possibilidade de arriscar outras formas do dizer literário. Supõe liberdade – e também coragem – de excursionar por regiões ainda não

18 Um excerto deste artigo será escolhido como prefácio da primeira edição de O caderno rosa de Lori Lamby . Eliane Robert Moraes, “A obscena senhora Hilst. Poemas eróticos disfarçam uma fina reflexão sobre a linguagem”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro (12-05-1990) [grifo do autor], CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00039.

28 devassadas pelo gênio criador do artista, correr o risco do desconhecido. Em outras palavras: fracassar significa transgredir, moto perpetuo de Bataille. Ou, ainda, como a própria autora sugere, propondo o ato de escrever como atividade lúdica: brincar. E quando uma escritora do porte de Hilda Hilst brinca e arrisca, o leitor não deve se furtar ao prazer do jogo. Aceitamos o convite. / Lori é uma garotinha de oito anos, e, como toda menina de sua idade, gosta de caderninhos e outros diminutivos cor- de- rosa, é fã do He- Man, sonha com todo o aparato de consumo infantil anunciando pelo merchandising da Xuxa, e não dispensa bolo de chocolate. Ou seja, Lori tem a inocência própria de sua idade e seu sobrenome – “Lamby” – evoca inicialmente a excessiva puerilidade da canção infantil Mary has a little lamb, cheia de repetições, assim como se repetem um sem número de vezes as palavras em seu pequeno diário rosa. Na verdade, Lori Lamby é insuportavelmente pueril. / Insuportável inocência porque ela se introduz a nós, leitores, através do relato de experiências que julgamos bastante impróprias para uma garotinha da idade de Lori. Um dos homens que a visitam, um dos “tios” com quem ela brinca alegremente em troca de dinheiro, diz tratar-se de sua “educação sentimental”, fazendo- nos lembrar uma outra personagem da ficção erótica, a menina Eugénie de A filosofia na alcova do Marquês de Sade, educada para aa volúpias do vício, segundo os princípios lascivos da libertinagem. Mas tal aprendizado não poderia também recordar outra Lori, esta mais densa e madura, a de Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres? Pois o que está em jogo, para a personagem de Hilda Hilst – assim como para a de Sade ou a de Lispector – é fundamentalmente a experiência do prazer. Neste sentido, há algo mais para se dizer a respeito do sobrenome de Lori: “Lamby” evoca também a terceira pessoa do singular do verbo lamber, e as lambidas constituem o centro privilegiado das experiencias narradas pela menina, que se deleita em apreciar toda sorte de prazeres da boca. O campo erótico por onde circula O caderno rosa é, pois, o da oralidade. Vejamos. / As crianças escrevem como falam. Lori não foge à regra: seu relato é repleto de construções do tipo “e aí o tio disse que”, “e aí a mami falou que”, “e aí o papi pegou e disse que”, etc., etc. Narração automática e imediata, a escrita do Caderno rosa é quase toda organizada segundo a fala. No mundo infantil impera o registro oral. Tanto que Lori só interrompe seu relato para substituir o prazer de falar – narrar pelo de comer bolo ou biscoitos. Assim também expressa-se a curiosidade pueril da personagem pela língua, tratada simultaneamente como zona erógena e como vocabulário: Lori pergunta ao “tio” o que significa “predestinada”, e após ouvir a explicação concluiu que “a coisa de predestinada é mais ou menos assim: uns nascem pra ser lambidos e outros

29 pra lamberem e pagarem. Aí eu perguntei por que quem lambe é que paga, se o mais gostoso é ser lambido” (p. 31). Trata-se, para Lori Lamby, de conhecer o funcionamento da língua, no seu duplo registro: falar, narrar, fabular, assim como lamber, chupar e sugar exigem um aprendizado sutil e interminável, pois os prazeres da boca se desdobram em muitas modalidades, de tal forma que a oralidade pode se expandir ao infinito. A metáfora é soberana. Cabe ao escritor capturá-la, reescrevê-la. E não será por isso mesmo que este delicioso livro abre com uma singular dedicatória: “À memória da língua”? Escrever é vasculhar essa memória obscura, tanto na sua ancestralidade cultural (daí as referências a Flaubert, D. H. Lawrence, Henry Miller e outros autores que surgem inesperadamente no caderno de Lori), quanto na ancestralidade individual (recuperar a fala primitiva da infância). Memória que é também imediatamente erótica já que, poeta, Hilda conhece bem a materialidade da palavra, o corpo da língua. É aqui que a figura do escritor assume um papel central no Caderno rosa: Lori é filha de um escritor, que se consome com a tarefa de escrever um “livro de bandalheiras”, não por brincadeira mas sob encomenda de seu editor com objetivo puramente comercial. Porém, “trabalhar com a língua” (é o termo com que Lori define a atividade do pai) pode ou não dar certo, pode ou não render dinheiro; a profissão é arriscada, não há garantias. O autor – sobretudo o que se situa fora da tutela do mercado – sempre pode fracassar, tanto no sentido comercial quanto no literário. A menina se sai bem “trabalhando com a língua”, entretanto o pai fracassa. Moral da história: nem mesmo o mais completo escritor conhece a língua por inteiro, nas suas cavidades, nas suas reentrâncias. Cada texto é uma tentativa – Implicando brincadeira e risco – de se familiarizar com a língua misteriosa, que se metamorfoseia em metáforas, numa cadeia sem fim de ciladas para o autor. / O caderno rosa de Lori Lamby é, embora tente disfarçar, uma fina reflexão sobre o ato de escrever como possibilidade de jogar com os limites da língua. Resta-nos aguardar os Contos d’escárnio - Textos grotescos que Hilda Hilst promete para breve, esperando deles novos prazeres.

Eliane Robert Moraes19

19 Eliane Robert Moraes é mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese […] A felicidade libertina, sobre o Marquês de Sade, e co-autora de O que é pornografia […].

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7) INOCÊNCIA ESCANDALOSA

Hilda Hilst queria uma “banana que pudesse acordar o leitor”. Tirou o sono da crítica20.

A teófaga incestuosa da literatura desta vez foi além dos seus limites. A mais abissal e importante escritora brasileira viva acaba de lançar um pequeno romance que vem causando furor nos meios editoriais, acadêmicos e especialmente entre o público leitor do País. A paulista Hilda Hilst, 60 anos, só conseguiu imprimir mil exemplares de O Caderno Rosa de Lori Lamby porque o editor independente Massao Ohno apostou no livro, recusado por grandes editoras e agora motivo de escândalo para os que passam suas exíguas e perturbadoras 86 páginas. / Do sitio Casa do Sol, a 11 quilômetros de Campinas Hilda Hilst falou ontem por telefone ao Jornal de Brasília, depois de chegar de São Paulo, onde esteve lançando inicialmente o romance. E já enfrentando, segundo ela, a incompreensão da imprensa que abre manchetes para anunciar que a escritora optou pela pornografia para fazer sucesso e vender mais. / A própria Hilda, em sua cáustica visão da realidade cultural brasileira, não poupa palavras para apontar os descasos e descalabros a que se encontra destinado o escritor brasileiro. Foi como um gesto político, ela admite, que escreveu O Caderno Rosa de Lori Lamby: / “Eu não fiz isso pra ser mais vendida. Escrevo há 40 anos e nunca ganhei nada com o meu trabalho. Muito menos estou preocupada com a fama e a glória. Esse livro é uma banana para acordar o leitor que está dormindo. Eu quis mesmo dar essa porrada na cara. O editor brasileiro é esse nojo. Eles têm horror quando um livro tem profundidade. Quantas vezes só faltaram me cuspir na cara”. / Mesmo à distância, Hilda não faz pausas em sua fala agora desafogada, triunfante. O japonês Massao Ohno não tem uma distribuição ao alcance de todos os leitores. Um editor importante como Caio Graco, da Brasiliense, não “faz absolutamente nada” contra esse estado de coisas em que o escritor brasileiro é literalmente menosprezado. / “Eu sei que escrevi bem à beça. Não estou preocupada em ir para a lista dos mais vendidos. Você quer é ficar no coração do outro. O verdadeiro escritor escreve por compulsão. Ele quer sentir se atingiu alguma consciência. Mas poucos me compreenderam. A Playboy deu uma nota horrível. A Folha fez uma matéria escandalosa. O crítico Léo Gilson Ribeiro, que sempre acompanhou e falou do meu trabalho, ficou de mal comigo, “Hilda, isso é um lixo. Foi um suicídio intelectual. Ele mesmo não compreendeu a força desse meu gesto”. / Escritores medíocres distribuem sorrisos e assinaturas em noites de autógrafos. Só isso.

20 Celso Araújo, “Inocência Escandalosa”, Jornal de Brasília, Distrito Federal, Caderno 2 (24-05-1990) [grifo do autor] CEDAE: HH.II.IV.7.2.00040.

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Hilda Hilst faz uma literatura universal, em que a linguagem avança sobre o pântano das ilusões e escancara as grandes depressões, as perplexidades mais secretas. Ela cita um pequeno grupo de autores que é sistematicamente ignorado pelo leitor e, no entanto, está produzindo os melhores livros da atualidade, como João Silvério Trevisan, Mora Fuentes e Ricardo Guilherme Dicke. / “Em 70, quando lancei o Fluxo Floema, um editor me perguntava: Porque você faz isso, esses livros? Faça uma história sobre um gigolô sobre uma puta. É isso que o público brasileiro que ler. Esse não é um tempo de gênios” – Hilda ouviu essas advertências, fechou-se em silêncio, afastada da badalação inútil continuou produzindo texto viscerais, sólidos, convulsivos. Textos armadilhas, que reinventam a narrativa, consagram uma poética de escandalosa sensualidade, à deriva dos programas comuns de banalização geral. “Mas o que os editores querem é um escritor como esse Paulo Coelho, que só escreve besteiradas e recebe 60 mil dólares de adiantamento ou coisa que o valha, da Editora Rocco. Pra mim, a literatura é essencial ou não é nada, como também dizia Bataille. Pela primeira vez na vida estou recebendo telefonemas do Brasil inteiro, me convidando para lançar o livro. Por quê?” / Hilda não quer chamar a atenção sobre sua pessoa. Quer ser lida. Quer entregar suas histórias e parábolas em que a prosa de língua portuguesa atinge intensidades inéditas, inefáveis e (o que nos universaliza para sempre) intraduzíveis. O Caderno Rosa de Lori Lamby é apenas um aperitivo, um preâmbulo. O leitor que prepare as pestanas para desaforos mais gloriosos ainda./ “Eu assumo totalmente esse livro. Nunca me arrependi de publicar nada. Esse ainda é pueril. O segundo, o Contos d’Escárnio – Textos Grotescos, é para adultos, uma pornografia de primeira qualidade. Espero com esses livros aguçar a curiosidade do leitor para outros textos meus como Matamoros, A Obscena Senhora D. ou Qadós”./ Em sua prosa, em sua poesia e em seu teatro, Hilda Hilst sempre jogou a verdade em termos definitivo, oscilando entre a mais sublime respiração do ser e obscenidade mais corpórea. Vômitos e fluxos sagrados cruzam-se em sua literatura complexa, em que as palavras são o enigma onipresente. / “A pornografia não existe. Porco, sujo, indecente, imundo, ninguém sabe o que é isso. Até a Liga das Nações Unidas teve dificuldade pra definir o que é pornografia. Para escritores como Henry Miller ou D. H. Lawrence a pornografia só, existe na cabeça de quem a lê ou aprecia. Precisamos redefinir esses conceitos. Hamlet foi considerado pornografia no tempo de Cromwell. Um livro como o Amante de Lady Chatterley é de uma delicadeza espantosa”. / N’ O Caderno Rosa de Lori Lamby, uma garota de oito- nove anos escreve histórias (não, não são escabrosas) singelas de crua sexualidade. Hilda Hilst desce aos infernos da moralidade, escreve numa língua chula propositalmente, quase

32 como uma Adelaide Carraro que de repente descobrisse o prazer do texto. Hilda não tensiona o texto. O desejo liberto, a fantasia legítima, a escrita sem artefactos. Sua entonação foge dos subterfúgios. / “Acho essa fantasia infantil perfeitamente respeitável numa menina que ouve todas as conversas de adultos, sendo filha de um escritor, vivendo entre escritores. Eu fiz a sátira do conto infantil. Hoje, a literatura infantil exige que você estude dez anos de Psicologia para escrever um livro seguindo as normas de uma editora. Ora, o Mora Fuentes escreveu um conto infantil maravilhoso, A Ilha Vazia, e não encontra editor porque entra em conflitos fundamentais”. / O escritor é esse sujeito deteriorável, ferido, que quer deixar a sua marca, cercado de solidão, naufragando num tempo de “homens cinzentos”, hipócritas, máscaras mentirosas, miséria estabelecida. Hilda encontrou no riso um caminho de salvação. O leitor que não se deixa enganar facilmente e já percorreu os passos dolorosos e redentores de sua busca, vai encontrar motivos de sobra para o rogozijo. Neste pequeno romance, ela lança algumas sementes aos sujeitos dessexualizados e infantilizados de hoje qua já nasceram sem inocência. / Quanto ao escândalo, há indecência maior e mais aberta que a nossa programação de televisão nos seus horários infantil, infanto – juvenil e adulto? Ou essa apontada por Hilda em que os verdadeiros escritores são tratados como gatos mortos? / Hilda, que se diz “muy conocida en su casa”, cita Oscar Wilde antes de iniciar o seu caderno de desejos explícitos. “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. Mas quem olha as estrelas, vai divisar também uma constelação de maldições atordoantes. É preciso estar atento e forte. Por isso, há escritores que são um bálsamo por séculos e séculos. / Ela, que dificilmente deixa o seu sítio em Campinas, pode, em breve, vir a Brasília, a Brasília, atendendo a um convite do livreiro Ivan Silva, da Presença, Hilda não conhece Brasília. E poucos na cidade sabem ou leram esta autora indispensável, que não tem papas na língua e vem decifrando as nossas modernas obsessões. Obs: as ilustrações de Millôr Fernandes não captaram o “espírito do livro, são obvias, repetitivas e dispensáveis”.

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8) O CONFLITO ENTRE A SOCIEDADE E O ESCRITOR

Mais que erótico ou pornográfico. O Caderno Rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, é paradoxal. Reações de estranheza de alguns leitores talvez se devam a essa natureza paradoxal e não tanto ao desempenho da protagonista21. A personagem – titulo é uma menina que pratica sucessivas façanhas sexuais e, não contente em fazê-lo, as pões no papel, apropriando-se ainda de outros textos, igualmente descritivos e explícitos, incorporando-os a seu “caderno”. Sua intenção seria publicar um livro que compensasse o fracasso do pai, escritor culto e intelectualizado. Este, em crise, está disposto a apelar para a pornografia, para obter algum sucesso de vendas. Há um editor, que o estimula a seguir por esse caminho. / Tudo isso parece uma narrativa à la clef, cifrada, porém calcada em fatos reais. Em certa medida, uma paródia da relação da própria Hilda Hilst com o mercado editorial. Como se não bastasse, Hilda efetuou uma simulação, ou mascaramento, ao insistir, em entrevistas, que estava encerrando a parte “séria” de sua produção literária, passando a escrever obras supostamente pornográficas para ganhar dinheiro. Na medida em que tais declarações chegaram a ser levadas a sério, encenou-se uma comédia de erros, suscitada pelo texto e pelo discurso da autora a respeito. / Semelhante enredo tem características de metáfora, ou alegoria. Demostra-se, por redução do absurdo, que o mercado editorial, a indústria cultural, o relacionamento com a sociedade de massas etc., equivalem à prostituição, atividade à qual se entrega Lori Lamby, transformando um argumento literário (cujo autor originário é seu pai) em realidade, assim invertendo-o, alegre e inocentemente. / É claro que ninguém – nem Lori Lamby, nem seu pai, nem a própria Hilda – irá enriquecer narrando cenas de sexo, por mais que se divirtam ao escrevê-las. Há, aqui, uma segunda demonstração negativa, por absurdo, mostrando a derrota inevitável associada a toda criação literária. O conjunto – o livro, declarações da autora, respostas atribuídas a leitores- compõe um discurso sobre o caráter problemático da literatura e sua relação contraditória com o real, com destaque para o conflito entre escritor e sociedade. / Para eliminar suspeitas de delírio interpretativo, basta mencionar que Lori Lamby, além de invadir o imaginário do pai, também invade sua biblioteca, apropriando-se, entre outros, de Georges Bataille (candidamente designado como “o Batalha”). Este é um autor cuja obra se divide em dois planos. Um de narrativas perversas e escabrosas, como Minha Mãe e O Olho. Outro, da

21 Cláudio Willer, “O conflito entre a sociedade e o escritor”, Folha de São Paulo, São Paulo, Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, Biblioteca (26-05-1990) [grifo do autor] CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00041, p. 55.

34 produção ensaística, com destaque para A Literatura e o Mal (lançado há pouco em edição brasileira), onde fala (no ensaio sobre Baudelaire) da impossibilidade inerente à própria criação literária e da derrota inevitável do escritor perante o mundo e a sociedade. Os relatos “pornográficos” de Bataille são argumentações a serviço de ideias, utilizando categorias como transgressão e interdição, que se aplicam perfeitamente à análise deste O Caderno Rosa de Lori Lamby e de boa parte do que Hilda Hilst já escreveu. Mais que divergente, o lançamento mais recente da autora A Obscena Sra D. é coerente, retomando, com outro tratamento, ideias, temas e obsessões já presentes em sua obra. / É interessante observar que o comportamento da personagem Lory Lamby é, ao mesmo tempo, perverso, permitindo-se toda a sorte de liberdades, e inocente em sua espontaneidade, desconsiderando as ideias de culpa ou pecado. Esse paradoxo sustenta a narrativa, ao formular uma equação na qual a perversidade é igual à inocência. Freud já havia contruído esse enunciado, ao dizer que a criança é um “perverso polimorfo”. A identidade de opostos é acentuada pelo estilo da narrativa, na primeira pessoa, como o depoimento de uma criança. Algo como uma história infantil virada ao avesso. Ou um Levis Carroll explícito, cujos conteúdos simbólicos emergissem na superfície do texto. / Roland Barthes, ao escrever sobre o Marquês de Sade (em Sade, Fourier e Loyola, que acaba de sair em edição brasileira), adverte quanto aos equívocos decorrentes de uma leitura ingênua, literal, do grande libertino. Orgias e cenas de devassidão, tais como narradas, são impossíveis na realidade. Elas existem no plano da linguagem, que é uma negação do real e uma celebração do imaginário. Nessas obras, insiste Barthes, “a libertinagem aparece como um fato da linguagem”. Reações de espanto ou desprezo (complementadas em outros tempos pela ação da censura) diante do que é relato ignoram uma característica fundamental da obra literária: que ela é capaz de outro universo, o dos signos. A liberdade questionada (e muitas vezes perseguida) nesses casos não é a do comportamento humano, porém da imaginação. Ao somar-se à linhagem dos autores libertinos, Hilda Hilst promove a identificação dos contrários (por exemplo, de categorias como inocência e perversão) e afirma a imaginação criadora, contraposta à miséria do real. O Caderno Rosa de Lori Lamby não é uma exceção, um desvio de rota da autora, mas sim, uma chave para se entender melhor o alcance de sua obra.

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9) UM CADERNINHO PICANTE

O primeiro chegou e a fez abrir as roliças perninhas, entre as quais o segundo instalou uma pequena bola amarela, de modo que o brinquedo roçasse sua genitália infantil. Mas o terceiro a queria lânguida para observá-la de longe, mirando fixo os olhos no seu corpo de apenas 8 anos sob o sol. Foram assim os três primeiros contatos de Lori Lamby com a vida. E é assim que ela descreve os acontecimentos em seu caderninho rosa, todo ilustrado por Millôr Fernandes. O Caderno Rosa de Lori Lamby (Massao Ohno Editor) é uma fábula às avessas ou, melhor dizendo, um falsete literário. Numa espécie de obra de entressafra, a poetisa parodia a condição do escritor, que, no Brasil, muitas vezes, precisa apelar para conseguir vender. Na verdade, Hilda Hilst, uma poetisa essencial, não queria que o livro fosse publicado, mas quando se arrependeu já era tarde demais. Lori Lamby é filha de um casal de classe média: o pai é, aparentemente, um bom escritor mas seus livros não vendem. Por isso, seu agente pede a ele que escreva algo picante. Numa atitude à la médico-monstro, o pai diz à filha Lori que escreva um relato das experiências sexuais que lhe são impostas por ele e pela mãe. Quer dizer, Lori entra precocemente na prostituição para contribuir com a carreira literária do pai. Sua inocência estabelece, ao longo da narrativa, o contraponto da perversão de homens infelizes e cheios de taras. O resultado é um livro assustador e infernal. Será preciso lê-lo pelas entrelinhas, nas quais a pornografia cede lugar ao erotismo inquietante, não do corpo, mas da alma.22 ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

10) BRINCANAGENS DE HILDA HILST

A escritora Hilda Hilst, autora de 28 livros e que já ganhou vários prêmios literários, está magoada com os editores. Segundo ela, eles não publicam livros sérios. Por isso, partiu para a literatura pornográfica. (Marisa Raja Gabaglia)23

Amabilíssima, cult, hermética, genial, ela é considerada, como Clarice Lispector, uma das maiores, melhores e mais respeitadas escritoras da língua portuguesa. Em 40 anos, escreveu 28 livros, ganhou todos os prêmios literários a que tinha direito e agora, aos 60 anos, em protesto contra o frágil marketing até hoje feito pelos editores com suas obras- primas, resolveu fazer uma rebelião no meio intelectual de elite e dar calafrios nos amigos: Hilda Hilst partiu para a literatura pornô. Seus dois últimos livros: O Caderno

22 Hamilton dos Santos, “Um caderninho picante”, Playboy, [s.l.] Prazeres Culturais (maio 1990) [grifo do autor] CEDAE: HH. II.IV.7.2.00042, p.55. 23 Marisa Raja Gabaglia, “Brincanagens de Hilda Hilst”, Diário Popular, São Paulo, Revista (20 out. 1990) [grifo do autor] CEDAE: HH.II.IV.72.00046.

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Rosa de Lori Lamby, e Contos D’Escárnio são como ela diz “bandalha de primeira categoria”. Nem poderia ser diferente. Sobre Hilda Hilst e sua obra anterior, escreveu um articulista do Le Monde: “A novela A Obscena Senhora D é o ápice da escrita literária contemporânea”. / Cansada de ser indignamente tratada pelos editores, Hilda, travessa, moleca, terrível, escreveu pornografias vertiginosas. / Estouraram. Ela soube jogar o jogo. Breve terá toda sua obra reeditada. Sua obscenidade talentosíssima foi uma grande brincanagem.

FANTASIAS SEXUAIS Hilda não mora, se esconde. Nos milhares de metros de terra que herdou da sua avó, Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado, vive numa casa colonial cheia de livros e esculturas feitas pelo ex-marido, Dante Casarino24, com quem foi casada sete anos. Moraram juntos durante 28 anos e agora, com a nova mulher de Dante, continuarão próximos, já que o casal vai morar no terreno de Hilda, numa casa, também cor-de- rosa. O local é labiríntico, cheio de árvores e plantas, e para se chegar lá (a 12 km de Campinas) só mesmo com um mapa. E mesmo assim levamos quase três horas. / Hilda já não nos esperava mais. Ela é assim; amável mas imprevisível, colérica e doce, brilhante quando usa a palavra no diálogo, mesmo que ela seja pontilhada de palavrões que, ditos por ela, no tom e na hora exatos, soam hilários e a redimem, sobretudo quando ela define o termo: - O palavrão é o solecismo da alma. (E arremata, com seus olhos amarelos.) Quem disse isso foi um juiz. A senhora Hilda Hilst anda indignada e indignando. Léo Gilson Ribeiro, seu amigo e seu melhor crítico, quer morrer de pânico com essa fase pornô que Hilda inventou. Chega a achar que é uma provocação contra ele. A autora dos melhores poemas atuais da literatura brasileira (Prêmio Jabuti, 1984), acha graça. Ela quer é ser editada, lida e ter a divulgação que seus livros merecem. Pelo vernáculo ou pelo pornô.

- Hilda, precisava partir para uma postura tão radical literariamente? Lori Lamby, no fundo, não são suas fantasias sexuais de menininha, já que até a sua foto está na contracapa? Hilda concorda, com ressalvas. Ela não entrega o jogo assim tão facilmente. No seu jeans, magrinha, cabelos ruivos, ela responde arregalando olhos inocentes, como se Lori Lamby não fosse a supremacia da pornografia: - Lori Lamby é

24 Dante Casarini.

37 uma obra moralista, porque no final a menininha não fez nada daquilo. O livro é tudo uma mentira dela. Ela é filha de escritores que ouve tudo o que o pai e a mãe falam, então ela compõe o roteiro. No final, é tudo um engodo. É um livro meninil, pueril.

- Qual foi a reação dos seus editores? - O Caio Graco, da Brasiliense, achou que era escabroso. E recusou todos os dois. O Luiz Schwarcz, da Cia. Das Letras, abriu um bocão, dizendo que quer qualidade. Quando dei a ele todo o meu trabalho, ele não quis. No entanto, à Bruna Lombardi, que é uma griffe, ele paga 25 mil dólares pelo próximo livro dela. Ora, eu acho a Bruna uma ótima atriz em Grande Sertão Veredas, mas ele não vai dizer que, depois de 12 livros de poesia, a maioria premiados, oito peças de teatro e sete obras de ficção que eu levei 40 anos escrevendo, a Bruna Lombardi é melhor escritora do que eu. Isso é pisar no escritor. O Massao Ohno é um amor, mas ele não paga nunca. Ele me ama loucamente, só que ele lança meus livros e guarda todos no quarto dele, não põe na livraria, não me dá um tostão. Ele deve ter uma tara qualquer com o livro.

- A que você atribui o fato disso acontecer com alguém da sua qualidade literária? - Isso é o Brasil. Uma pornocracia. Ou você escreve bandalheira, ou você tem que aparecer. Há 20 anos que leio e há 40 que escrevo sem parar, porque escrever exige isolamento. Eu fiz uma proposição de vida interna, não posso estar andando, nem aparecendo por aí, de seca em meca para fazer divulgação de livros. O livro bom deve ser bem divulgado porque o escritor escrever para ser lido. O problema aqui no Brasil é que não se pode transgredir. Aqui no Brasil não se pode falar de morte nem de sofrimento. Aqui no Brasil ninguém morre. Eles querem a bandalha, e quando não entendem o que eu escrevo, acham que eu sou uma tábua etrusca.

- Vamos reconhecer que você ousou, porque é uma das raras pessoas neste país que podem fazer isso em literatura, um artificio bastante bem-sucedido… - Pornografia foi escrita pelos melhores autores do mundo, de Henry Miller a George Bataille. O que eu não podia escrever era: “O sol está nascendo, as folhas estão farfalhando, os pássaros estão piando”, enfim a besteirada, aí eles gostam. Na hora em que você toda fundo, é mulher, e teu texto é pensante, eles só faltam te matar, não te aceitam. Eu me recuso a aceitar isso. Se eles querem o bandalho, eu não dou um livro, eu dou uma banana para o editor.

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- Você está amarga, Hilda? - Eu não estou amarga, eu estou colérica. Eu estava triste mas quando escrevi Lori Lamby, eu me diverti muitíssimo, foi adorável. Meus amigos me telefonam do Brasil inteiro e dizem que o livro é delicioso e imundo.

Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930 em Jaú (SP), filha do fazendeiro e poeta Apolônio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso, filha de portugueses. Confessa que teve uma paixão edipiana pelo pai, um homem belíssimo. Ficou louco aos 34 anos. Hilda foi internada no Colégio Santa Marcelina e estudou Direito, na Universidade de São Paulo. Já casada em 1969, ganhou o Prêmio Anchieta por sua peça teatral Verdugo. Essa paixão pelo pai, que nunca mais viu, se tornou uma obsessão que exorcizou fazendo uma literatura conhecida, por sua qualidade, no mundo inteiro. Perguntei com doçura, à Hilda:

- Você algum dia teve medo de ficar louca? - Eu já tive, Marisa. Mas isso já passou.

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11) UMA OBSCENA ESCRITORA DE RESPEITO

É em meio à Praça do Amor Celestial – palco da chacina dos sonhos de liberdade que há um ano abalou o mundo – uma jovem estudante chinesa, de 17 anos, ateia fogo às vestes e se deixa queimar, gesto de quem, não tendo mais esperança, usa a própria vida para chamar a atenção sobre seus direitos de liberdade e respeito. O ato, em si, não é original: já foi repetido algumas vezes em várias partes do mundo onde a atitude extrema de dar fim à própria vida pareceu o único meio capaz de expressar a impotência contra o estabelecido25. / Ao lançar, no mês passado, “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, a escritora paulista Hilda Hilst repete, a seu modo, o suicídio literário já tentado, com sucesso, por Bocage, Henry Miller ou Anais Nin e até D.H. Lawrence que, depois de tentarem ganhar a vida escarafunchando os mais recônditos sentimentos humanos imortalizaram-se por suas obras mais obscenas. / Declaradamente obsceno, “O Caderno Rosa de Lori Lamby” é, para Hilda Hilst, mais que um meio de ganhar dinheiro (o que dificilmente conseguirá, dada a tiragem reduzidíssima de mil exemplares): é um grito de revolta, um tapa na cara do editor brasileiro, que acha que o escritor não precisa comer nem viver com dignidade. Hilda denuncia que “enquanto o autor americano recebe adiantamento para escrever, durante meses de isolamento, qualquer porcaria fartamente divulgada pelas editoras em todo o mundo e vendendo milhões de exemplares, o escritor brasileiro vive à mingua. Ele trabalha nos seus livros nas horas vagas e recebe 10% do preço de capa, com seis meses de atraso e sem correção monetária. Sem divulgação, os livros acabam mofando nas prateleiras”. / Como poeta e ficcionista, Hilda Hilst é considerada uma das maiores escritoras brasileiras contemporâneas. Desde que publicou, há 40 anos, “Presságio”, ao longo de mais de 30 livros Hilda se mostrou uma renovadora de língua. Embora premiadíssima, festejadíssima, respeitadíssima nos meios intelectuais, continua a ser um nome obscuro para o grande público leitor. A exemplo do que acontece com a maioria dos autores nacionais, seus livros não ultrapassam tiragens de 2 ou 3 mil exemplares. O que ganhou com seu trabalho – entre eles “A Obscena Senhora D”, que mereceu artigo de página inteira no jornal francês Le Monde, onde o autor o classifica como “o ápice da escrita literária” – nos últimos quatro anos, não chegou a 30 mil cruzeiros. “Se tivesse que viver de literatura estava debaixo da terra – diz. / Hilda Hilst só pode levar adiante a impossível tarefa de viver de escrever graças à herança deixada por sua mãe: uma fazenda em Campinas, que acabou dividida em lotes quase perdidos em péssimos negócios “não sei lidar com números” – desculpa-se. Antes de se desfazer

25 Uma Obscena Escritora de Respeito [grifo meu] CEDAE: HH. II. 7. 2. 00048, p. 55.

40 do último quinhão de terra, Hilda acabou contratada pela Unicamp. Com salário mensal que lhe garante a sobrevivência, ela fica à disposição da Universidade para palestras e consultas sobre literatura. / “Dei excesso de beleza, fiz prosa da melhor qualidade. Não sou modesta, escrevo bem mesmo. Mas, aos 60 anos, não espero mais nada Clarice Lispector morreu horrivelmente, paupérrima, foi roubada descaradamente pelos editores, que hoje ganham fortunas reeditando seus livros. Achei que era hora de dizer um basta, admitir que não deu certo, e resolvi recomeçar. Existem algumas alternativas para o fracasso: o álcool, o suicídio e o riso, por exemplo. Optei pelo ultimo, através do obsceno. Se não der certo, talvez eu escreva qualquer porcaria como “A Bicicleta Azul” – sugere, referindo-se ao livro de Régine Deforges, que encabeça há meses a lista dos mais vendidos em todo o mundo e já rendeu à autora francesa 10 milhões de dólares.

“A mulher enlouqueceu” Mais que pornográfico, “O Caderno Rosa” é, a seu modo, autobiográfico. Lori Lamby é uma menina que quer salvar o pai, um escritor obrigado a escrever um livro de bandalheira com o único objetivo de ganhar dinheiro. Diante das crises desespero do pai na tentativa de ser medíocre, Lori decide, ela mesma, escrever toda a sorte de bandalheiras baseada na “experiência” que adquire nas fitas e livros de sacanagem guardados na prateleira mais alta da biblioteca de casa. / Com o livro, Hilda esperava conquistar a atenção da imprensa, que denunciaria suicídio intelectual como divulgou a auto- flagelação da chinezinha. Para sua surpresa, no entanto, os críticos preferiram silenciar, numa atitude de respeito pelo seu passado literário para poupá-la e manter seu prestigio. Hilda sorri agradece a preocupação, mas rechaça qualquer tentativa de proteção: “Prestigio vem do latim praestigiu que significa ilusão. Para acordar um sonâmbulo, é preciso dar-lhe um murro na cara. Só assim ele vai perceber que a casa está caindo” – explica. Hilda esclarece que ao escrever “O Caderno Rosa” consegui me safar da amargura, e sai dando porradas com um mínimo de perversidade e grosseria”. Mas não nega que seja obsceno […]26

26 Não consegui prosseguir a transcrição enquanto o texto encontra-se rasurado e danificado.

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12) OURO PARA VOCÊS: EU MESMA

(…) E assim podei notar que this town is full of nobles here and there, que apenas eu caminho pela casa sem ter certeza de nada, vasculho os cantos, demoro-me sob os arcos, farejo os buracos, que… há muito tempo ando querendo usar o punhal contra mim mesmo, pegar esse rosado intenso que se agita quando amas além de uma certa medida e colocá-lo sobre a mesa frente a frente: coração de Qadós, soturno e tumultuado, que percurso é o teu, que nome dás às coisas, que asacoisa te faz mais manso, mais viçoso? És tu que procuras o Sem-nome, o Muso Sempre, o Tríplice Acrobata? Grande pena de ti, de mim também porque és meu mas não cabes em mim, e porque é tão necessário que eu te coloque dentro de outro peito, de um que seja extremo e descampado e livre, e não dentro do meu, porque até agora persigo a quem não vejo, persigo apenas a idéia que tenho de um grande perseguido e suspeito que ele pode estar em cada canto, que ele por alguma razão, em algum momento será submissão a Um Instante, e eu devo estar lá quando esse, tempo de mim colado ao Sem-Nome, tempo torvelinho. Coração de Qadós, às vezes digo a esse perseguido que não sei: se fosses todo perfeito eu não seria indigno de ti, se fosses equilíbrio, esplêndida balança, há muito tempo que seríamos um etc. etc. Lamúria. Basta. Indecências. Devo voltar ao de cada dia, nabos cenouras beterrabas, os ministros depois da festa, arrotos caganeiras, a missão especial foi adiada, até quando devo conviver com tantos? O da Agricultura me pergunta: devo plantar cana ou bocas de leão ou tílias ou goiabas australianas, ou caneleiras ou cerejas das antilhas? E eu, Qadós, devo dizer ao povo que a educação é o berço? Devo dar cama ao indigente, ao louco, e afixar normas de bem procriar? Que direção queres dar ao teu governo, Qadós? Devemos dizer que és manso ou atrabiliário? Que procuras um possível contorno, um alguém dissimulado, astuto, um corpo sem carne, que vives te queixando do Sem-Nome, ou queres dar a impressão de guerreiro indomável, de homem como alguns, sólido objetivo consoante? Que lês Plotino ou Lady Chatterley? Por falar nisso está aí a última das tuas. Trouxe o filho. Tem cabelos vermelhos e é babão. Deixamo-la no vestíbulo algumas horas ou queres a pontapés os dois pra fora? Qadós, os cofres esvaziam-se, o ouro vai sendo distribuído conforme ordenaste, a praça é um mar de gente, vou abrir a janela e verás com o teu olho que afora o Grande Obscuro nada vê, mas que talvez veja num átimo de lucidez o erro de dar bens a quem não os tem.

Bom Candomblé27.

27 Hilda Hilst, “Ouro para vocês: eu mesma”, Correio Popular, Campinas, Caderno C (21-06-1995) [grifo do autor] CEDAE: HH. II. V. 2. 00173.

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13) A SUBLIME HILDA HILST

A idéia, em princípio, era entrevistar Hilda. Algumas perguntas meio que inseridas, tipo coisas atuais, a posição dela a respeito28. Mas ela logo cortou. Devi ter me tocado que não se tratava, eu que tanto a li e tanto a preservo num lugar especial do coração, de uma mulher comum, muito menos de uma escritora comum. Ela de casa me desarmou, e eu penetrei aquele caminho sinuoso que foi ouvi-la por vários minutos ao telefone. / São quarenta anos de literatura, mais de vinte livros publicados entre poesia e ficção, várias peças de teatro escritas e encenadas – e uma paixão pela literatura que rompe as paredes do mundo, claro. Só que agora ela cansou. E não quer mais “escrever para não ser lida”. Cansou de esperar pelos editores, tendo uma fortuna crítica considerável; cansou de esperar pelos leitores, apesar de tudo. A edição de O Caderno Rosa de Lori Lamby, por Massao Ohno Editor, com ilustrações de Millôr Fernandes e na contracapa uma Hilda (divina, mil vezes, divina!) aos seis anos, é um rompimento escandaloso com a literatura. Cansada de escrever para ninguém, ela escancara, e reclama justiça para com um vida, uma obra, porque acha que tudo não pode ter sido assim, em vão. Quem duvidar, que procure o que existe por aí dos seus livros antigos e depois, só depois, leia esta recente Lori Lamby, que, cá, para nós, só o Millôr poderia ter ilustrado). Mas se quiser, poderá também começar por ele, talvez o desejo da autora seja esse. Quem sabe não foi por isso, para caçar um novo – e inusitado – leitor, que Hilda o tenha escrito, e publicado? Os amigos mais chegados não gostaram do livro, os críticos ficaram perplexos. Eu, pelo tanto amar, já nem sei: “o que é uma coisa bela?” – com sua licença, . Impossível não sensibilizar-se por esta escritora, das maiores do nosso tempo, que agora resolveu escarnecer. / E pergunta, feroz: “O que é pornografia? O que hoje, pode ser considerado pornográfico? – Henry Miller, Bataille, participam dessa história toda, aparecem, por sinal, no livro. Tecendo uma “sátira da pornografia” ou “uma sátira da literatura infantil”, como diz a autora, de O Caderno Rosa de Lori Lamby, mudou, sim de rumo. Em Amavisse, publicado ano passado, onde ainda se pode ler sua poesia de ânimo encantatório, com um pé no sagrado – embora deplorando, já anunciava ela: O Caderno Rosa é apenas resíduo de um “Potlatch. E hoje, repetindo Bataille: “Sinto-me livre para fracassar”. “Quem leu Amavisse, leu um dos dois ou três melhores livros de poesia que a década passada produziu. Passou quase despercebido, todavia. Massao Ohno, editor de Hilda desde os anos cinqüenta, com suas tiragens de mil, dois mil exemplares, e apesar

28André Seffrin, “A sublime Hilda Hilst”, D. O. Leitura, São Paulo (1990) [grifo do autor] CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00047, p. 55.

43 de seu amor (louco amor) pelos livros, do carinho com que se realiza cada um deles, não é editor que possa alçar um escritor ao patamar do best- seller. Hilda teve uma edição de suas novelas, Com Os Meus Olhos de Cão talvez a mais “comercial” até agora, editada pela Brasiliense, de São Paulo. Mas mesmo assim não alcançou uma segunda tiragem. Dos escritores brasileiros de real importância, quem sabe seja um dos poucos que não tenha livro senão estacionado em primeira edição, excetuando-se as reuniões – duas vezes de suas novelas, duas outras de sua poesia. A escritora Nélida Piñon, em entrevista quase recente, teria declarado que sentia-se bem por estar no Brasil e escrever em português. Hilda abomina a idéia. Nada pior que viver no Brasil e escrever em português, essa língua maldita. Por isso resolveu mudar e em outubro próximo virão os Contos d’Escárnio- Textos Grotescos, onde dará por encerrada a façanha de ter optado, um dia pela literatura. Será? Seus “poucos” leitores ficarão consternados, com certeza. Então, O Caderno Rosa de Lori Lamby vem para chamar atenção sobre uma obra. Uma obra das mais importantes, mas ignorada, mas esquecida em pleno florescer. Apelando para o escatológico, o pornográfico, Hilda, ainda, como sempre, consegue o sublime. O sublime por vias tão avessas. Esta, uma das marcas do gênio.

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14) LORI LAMBY O ATO POLÍTICO DE HILST

Pornográfico, O Caderno Rosa de Lori Lamby, mais recente livro de Hilda Hilst, escandalizou até seu reduzido público, definido pela poetisa como uma espécie de KGB cultural29. (Lúis André do Prado – Especial para o Estado)

Ao longo de quase quatro décadas de trabalho, o número de leitores fiéis à escritora paulista Hilda Hilst tem constituído um grupo tão reduzido que ela própria cuidou de defini-lo como “uma espécie de KGB”. Para estes iniciados, Hilda sempre foi uma radical inovadora da prosa, poesia e teatro – as três áreas em que investiu – fadada, no entanto, ao descaso do grande público. Mas a própria Hilda jamais se conformou com essa situação e decidiu dar um basta. Há um mês publicou pela pequena editora Massao Ohno o escandaloso Caderno Rosa de Lori Lamby, 87 páginas da mais devassa infanto – pornografia com ilustrações de Millôr Fernandes. Neste curto período de tempo, a

29 Luis André Prado, “Lori Lamby, o ato político de Hilst”, O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno 2, Erotismo, Polêmica, p. 4 (14-06-1990) [grifo do autor] CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00043, p. 55.

44 primeira tiragem, de mil exemplares – antes considerada de bom tamanho para um livro de Hilda – se esgotou. Uma nova remessa está sendo preparada enquanto- surpresa- o telefone toca muitas vezes na casa da escritora, um sítio localizado nas proximidades de Campinas, com convites para lançamento de Lori em várias cidades do País. “A santa tirou a saia. Estou conseguindo o que pretendi, ou seja, chamar a atenção para o meu trabalho. Encaro isso como um ato político de um tipo diferente, Ato político não é só sair com bandeiras ou com uma metralhadora”, ela diz. Lori Lamby conseguiu a atenção dos principais cadernos de cultura do País, provocou os conservadores que enviam cartas desaforadas à autora e a ira de muitos dos seus antigos admiradores. Agora, como verdadeira KGB, eles patrulham Hilda. “Dizem que vou abalar meu prestígio; isso é hipocrisia. Rompem comigo mas continuam admirando Henry Miller, a Anaís Nin, que escreveram também pornografia. Eles podem, autor brasileiro não pode. Isso é provincianismo”, ela rebate. Entre os admiradores em recesso está, por exemplo, o crítico literário Leo Gilson Ribeiro, que não gostou de Lori Lamby e ameaçou Hilda com “um silêncio absoluto sobre o livro”. O editor Caio Graco da Brasiliense leu e não quis publicar, porque considerou o livro “escabroso”, segundo Hilda. A colega escritora Lygia Fagundes Telles diz que “Hilda cometeu uma agressão contra si mesma”. Mas Hilda parece determinada e não se confunde com essas “vinganças” promovidas pela KGB. “O fato é que no Brasil escritor vale menos que um gato morto. Os editores querem é um escritor mediano, se não idiota. Se eles fizessem com meus livros como fazem com os do Umberto Eco, também venderiam”, diz. /Cansada e um tanto amarga por chegar às vésperas dos 60 anos com 28 títulos publicados sem conseguir superar as edições reduzidas (a Brasiliense demorou quatro anos para vender três mil exemplares de se Com Meus Olhos de Cão), Hilda decidiu fazer seu próprio merchandising e parece que deu certo. E seu Caderno Rosa não é só palavrão. Choca particularmente porque o personagem central é uma garotinha de oito anos narrando em seu diário a prostituição prematura induzida pelo próprio pai. /Para a escritora, toda a história não passa de uma “sátira à própria pornografia, ao relato bem-comportado e à literatura infantil”. Além disso, ela garante que existe tudo o que escreveu na vida real. “Li ensaios americanos sobre homens de classe média alta que fazem coisas com suas próprias filhas.” Mais ainda, Lori acaba sendo uma metáfora da situação em que a editora se debate. Lori escreve seu Caderno Rosa, completamente imaginário, para tentar ajudar o pai, como Hilda, um escritor que não consegue escrever um livro popular. Está lá a figura, um tanto grotesca, do editor algoz de Hilda, na personagem de Lalau. Ele tenta induzir o pai de Lori a

45 escrever pornografia para vender mais. “Quando fiz minha primeira prosa, o Fluxo- floema (70), os editores me perguntavam se estava escrevendo drogada para sair daquele jeito e me recomendavam falar sobre gigolôs e prostitutas, que daria melhores vendas. Eles odeiam excesso de beleza, ela contra- ataca. / A seu modo, Hilda acabou seguindo o conselho e já tem pronto outro texto pornográfico, Contos de Escárnio, a sair pela Siciliano em outubro. “É um trabalho mais acabado, com uma linguagem fervorosa; Lory, era para crianças, este é para adultos”, ironiza. E não se arrepende do que faz. Diverti-me muito escrevendo esses livros: foi uma salvação física e se acontecer de vender bem é porque é carma. Posso continuar e fazer uma pornografia fantástica brilhante.”

ESTIGMA “Já me chamaram até de bruxa” Com O Caderno Rosa de Lori Lamby, o que pode acontecer mais uma vez com Hilda Hilst é que ela fique estigmatizada, como ocorreu anos atrás quando ela acabou no Fantástico, da Rede Globo, por causa de suas experiências com fenômenos paranormais. Durante quatro anos, Hilda repetiu experiências realizadas pelo físico Cesar Lattes, seu amigo, e conseguiu gravar vozes e gemidos “de uma outra dimensão”, incluindo um “sim” dito pela voz de sua mãe, então já morta. A experiência lhe valeu a pecha de “vidente” e muitas piadinhas. “Foi horrível, diziam que eu era bruxa, que levito”. / Ainda não traduzida em outros países a não ser por uma coletânea de escritoras latinas lançada recentemente nos EUA, onde seu nome figura ao lado do de Clarice Lispector e Nélida Piñon, Hilda alega que não pretende com tudo isso apenas ganhar dinheiro e fama, mas primordialmente “ser lida”. O escritor escreve, ela diz “para tirar uma angústia de dentro dele e quer chegar a alguém. Os editores querem que eu morra para depois laçar meus livros”. / Inconformista, Hilda ameaça promover muito barulho antes disso e sem sair de seu semiclaustro no sítio de Campinas. E, numa situação no mínimo curiosa por uma escritora agora pornô, ela está concorrendo para o prêmio de Intelectual do Ano de 1990, oferecido pela União Brasileira dos Escritores (UBE). E disputa justamente com o cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns. Ironias do destino…

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15) INOCENTES REVELAÇOES DE FANTASIAS SEXUAIS

Se a algumas crianças fossem dados, com frequência, lápis e papel; e se a elas se pedisse que anotassem livremente suas impressões do dia-a-dia, um novo tipo de literatura infantil poderia surgir. Afinal, a literatura destinada ao público infantil é escrita por pessoas maduras, que julgam saber o que mais atraí os petizes em matéria de leitura30. Liberados estes jovens escribas é provável que, em muitas histórias, não mais aparecessem coelhos falantes, cães, fidelíssimos e macaquinhos espirituosos. Poderia ficar – quem sabe – um sumo da vida real, com sua poesia e suas tragédias cotidianas, registradas a partir da imaginação e da pureza não censurada de escritoras infantis. Esta é, talvez, uma das indicações que Hilda Hilst pretende fornecer em seu instigante livro, que pode ser, numa primeira apreciação, julgado como literatura pornográfica, envolvendo crianças inocentes e adultos perversos. A autora, com forte apoio das ilustrações de Millôr Fernandes, conta a história de Lori, uma menina de 8 anos. Na verdade, é Lori quem relata, em sua inocência, as aproximações sexuais que vais experimentando com adultos, sem se dar conta do que tais contatos significam para os mais velhos. Lori descreve com muita graça as situações vividas e ressalta o prazer e a alegria que algumas delas lhe proporcionaram. A atenta personagem-mirim discorre sobre prazer, sexo – e sua correlação com dinheiro – e o fetichismo dos adultos. Todas as impressões de Lori Lamby são anotadas num caderno rosa, além das cartas que ela recebe de um certo Tio Abel, seu primeiro parceiro e corruptor sexual. Hilda Hilst não fez qualquer encaminhamento literário de sua obra. Pelo contrário – e provavelmente para não orientar conclusões – ela deixa os leitores em completo abandono. Ao caderno rosa de Lori Lamby junta-se um caderno negro de um menino de 15 anos. Mais histórias de sexo, desta vez entre adolescentes da mesma idade. Sexo é o tema dominante do livro, mas ele contém algumas lições sobre o comportamento dos pais e dos parentes em geral e as maneiras pelas quais as crianças constroem suas fantasias sexuais, no mais das vezes recolhendo informações desordenadas e incorporando frases que ouvem entre os adultos. Descobertos os escritos de Lori por seus pais, estes vão parar numa casa de repouso. Só então tudo se explica. Todo o material da pequenina narradora foi colhido em escritos do próprio pai e inspirado em hábitos amorosos do casal. E a criança acumulou informações com a preocupação de escrever um livro de sucesso, feito que o pai, escritor frustrado, jamais conseguiu.

30 Wagner Teixeira, “Inocentes revelações de fantasias sexuais”, O Globo, Segundo caderno, Rio de Janeiro , (15-07-1990). CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00044, p. 55.

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16) HILST CONTRATA A PUBLICAÇÃO DE LORI LAMBY NA ITÁLIA

A escritora Hilda Hilst assinou contrato de publicação de seu livro “O Caderno Rosa de Lori Lamby” com a Editoriale Fabri, Bompiani, Sonzogno – uma das maiores editoras italianas, sediada em Milão. Está prevista uma tiragem inicial de 5 mil exemplares em pocket-book (livro de bolso), numa coleção de obras eróticas com best-sellers como Harold Robbins e Stephen King. As conversações tiveram início com uma carta da editora propondo a edição, em junho último. Hilda afirma que ficou surpreendida, já que o livro foi publicado pelo Massao Ohno Editor, de pequeno porte e praticamente sem distribuição. “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, apesar do problema, foi muito bem- recebido pelos meios de comunicação. A grande notícia foi a de uma autora com estrada de 41 anos em prosa, poesia e teatro de primeira qualidade, segundo os principais críticos do País, lançar-se audaciosamente no erótico31. / “Foi por intermédio de uma amiga brasileira que tive acesso ao Lori Lamby”, segundo a tradutora italiana Adelina Aletti, a mesma que introduziu Clarice Lispector em seu país. Após o fascínio com a obra, buscou informações sobre a autora junto a outros amigos e críticos brasileiros, comprovando “o alto nível de seu trabalho”.

Órfãos do comunismo A tradutora não perdeu tempo e logo transpôs o livro para o italiano e o apresentou para a Fabbri, Bompiani, Sonzogno. “Eles logo deram resposta positiva de publicação”, destacou Aletti. O que, segundo ela, é raro no mercado editorial italiano quanto à prosa brasileira. “Aqui (na Itália) apenas conhecemos Jorge Amado e se tem aquela visão de Brasil do futebol, favela, carnaval e mulatas”, declara. Ela explica que não foi fácil convencer os editores sobre a qualidade e importância de Clarice Lispector. / Ela acredita que a literatura erótica de Hilda Hilst chega no momento certo. “Caiu o muro de Berlim, ninguém fala contra o capitalismo e os italianos estão mais abertos à literatura”, avalia. Principalmente na Itália, onde o Partido Comunista Italiano (PCI) dominou o palco político durante toda a década de 70 e parte da de 80. / “Vivemos uma espécie de auge da literatura erótica no país”, garante Aletti. Mas não acredita que ainda seja o momento de veicular uma literatura que se poderia chamar de “mais séria”. Contudo, conforme a reação do mercado, admite a possibilidade de que, com esta porta aberta, seja possível veicular o restante da obra de Hilda Hilst. Que ela mesma, admite nem conhece. A sua prioridade é ter acesso à produção e conversar pessoalmente com a escritora.

31 Gutemberg Medeiros, “Hilda Hilst contrata a publicação do erótico “Lori Lamby” na Itália”, Diário do Povo, Viver, Campinas (14-11-1991) [grifo do autor] CEDAE: HH. II. IV.7. 2. 00051.

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Síndrome Bocage “Só espero que não seja mais um caso da síndrome Bocage”, brinca Hilda. Pelo fato de o poeta português Bocage ter sido reconhecido todos estes anos apenas pelos seus poemas eróticos, sendo apenas na última década divulgada a maioria de sua produção literária descompromissada com este estilo. / Isto porque Hilda Hilst contabiliza 41 anos de escritura do mais alto nível. É consenso na crítica especializada que ela é o maior autor vivo em português, com seus 30 livros editados, entre prosa e poesia. A própria autora garante que, até “Lori Lamby”, lançado o ano passado, vivia o que chama de “síndrome Franz Kafka”, a de ser lida apenas após sua morte. / A fase erótica conseguiu quebrar o tabu de “tábua estrusca”, como era chamada no meio editorial, considerada ilegível. Após o fenômeno de mídia provocado por “Lori Lamby”, teve as portas abertas da Editora Siciliano para publicar “Contos D’Escárnio-Textos Grotescos”, em setembro de 90 e “Cartas de um Sedutor”, pela Paulicéia, lançado em agosto deste ano. / Com o lançamento na Itália, previsto para março de 92, Hilda Hilst pode melhorar ainda mais seu cacifo no mercado editorial brasileiro e abrir o europeu. Mesmo porque não são raros os casos em que a indústria cultural tupiniquim só valoriza quem acontece lá fora. Fenómeno que Adelina Aletti garante que acontece na Itália, citando um ditado genovês: “Ninguém é profeta em sua pátria”32.

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17) HILDA EM ITALIANO COMEÇANDO PELA TRILOGIA OBSCENA

Aos 61 anos, depois de 28 obras publicadas e com oito das principais premiações literárias brasileiras conquistadas nos últimos 25 anos, a escritora Hilda Hilst terá agora, pela primeira vez, um livro traduzido em língua estrangeira. Representantes de um dos mais importantes grupos editoriais da Itália, o Fabri, Bompiani e Sonzogno Editoriali, de Milão, estiveram ontem na casa da escritora em Campinas, para acertar detalhes da publicação de O Caderno Rosa de Lory Lamb33 na Europa. A obra é a primeira de uma trilogia obscena que compreende também Contos de Escárnio e Cartas de um Sedutor. A intenção da poeta, ficcionista e dramaturga, ao partir há três anos para um novo estilo literário, era atrair a atenção do público e das editoras para seu trabalho anterior.

32 Não é um proverbio genovês mas uma citação do Evangelho: «nemo propheta acceptus est in pátria sua»- Treccani, enciclopédia online. (http://www.treccani.it/vocabolario/nemo-propheta-in-patria/) 33 O caderno rosa de Lori Lamby

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“Alcancei meu objetivo. Até então, nunca tinha vendido tanto ou tido espaço tão generoso na mídia. Não tenho síndrome de Van Gogh, quero ser lida e reconhecida enquanto viva”, brinca. Os direitos de comercialização das traduções para o italiano – já concluídas – ficarão com a Fabri, Bompiani e Sonzogno durante a próxima década. Na primeira fase serão publicados de cinco a dez mil exemplares. Hilda prefere não revelar quanto irá receber pelo contrato. “O mais importante é que meu trabalho será lido em outros países e a publicação do primeiro livro da trilogia abre possibilidades de tradução de outras obras”, ressalta, lembrando que no Brasil não recebeu mais de Cr$ 40 mil pelas vendas de quase três mil cópias do Caderno Rosa. “O momento é propício para o lançamento de livros de escritores brasileiros no exterior: a Europa nunca se interessou tanto pela arte latino-americana como agora”, avalia Adelina Aletti, responsável pelas traduções da editora italiana, que trabalhou com toda a obra de Clarice Lispector publicada na Itália. O primeiro livro de Hilda Hilst, além da trilogia, com possibilidades de ser negociado é Tu não te moves de Ti, editado em 82, por iniciativa própria. O Caderno Rosa de Lory Lamb reúne as impressões e confidências picantes de uma menininha de oito anos, preocupara com as pressões que seu pai – um escritor – sofre por parte de seu editor. Contos do Escárnio apresenta as tentativas erótico- literárias de um homem obcecado pela idéia de escrever e pela morte de um amigo, escritor consagrado. Em Cartas de um Sedutor, Hilda Hilst trabalha com contrastes de vida e morte extremos de angústia e euforia enquanto apresenta um personagem de personalidade complexa e profunda. Mais do que a obscenidade, o comportamento e a solidão dos escritores são sempre os pontos altos dos livros. “Os conceitos são relativos e, como dizia Henry Miller, a pornografia está muito mais nos olhos do observador que na obra em si”, defende Hilda.34

34 “Hilda Hilst em italiano. Começando pela trilogia obscena”, Jornal da Tarde, São Paulo (8-01-1992) CEDAE: HH. II. IV.7. 2.00053.

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18) ATESTADO DE MAU GOSTO OU MOTIVO DE ORGULHO NACIONAL?

Um passeio pela nossa cultura pop mostra que, entre emoções baratas e excesso de brilho, um certo charme até existe35.

Era uma noite de Natal no final dos anos 80, quando estávamos todos acostumados, antes da ceia, a degustar o inevitável especial televisivo de Roberto Carlos. Só que naquele ano a Rede Globo empurrou o “rei” para perto do réveillon – onde está até hoje – e serviu, junto com o peru e o panetone, a cantoria dos então emergentes Chitãozinho e Xororó. Lembro-me da expressão de espanto e revolta no rosto de uma amiga que, impiedosa, disparou: “Chitãozinho e Xororó? A que ponto chegamos!” Na ocasião ache muito engraçada aquela indignação toda, principalmente porque a citada amiga não só era ardorosa fã do “rei”, mas também alérgica à música sertaneja – na época ainda muito distante do atual status pop. Vários anos depois, voltando de um auto-exílio nas Ilhas Britânicas. […] / A historinha acima serve para ilustrar o fato que nós insistimos em não ver ou desprezamos solenemente: vivemos cercados de breguice. Na rua, na chuva, na fazenda, na casinha de sapê…/Mas calma, nem tudo está perdido. Antes de torcer o nariz e parar de ler este artigo porque você está acima destas manifestações populares lembre- se de que nosso único movimento cultural realmente importante depois da Bossa Nova, nos últimos 30 anos, chamou-se Tropicália. Foi quando Gil, Caetano & cia. Mergulharam fundo no inconsciente coletivo nacional, resgatando e reabilitando personagens, gêneros, obras e outros artigos considerados irremediavelmente cafonas (o termo brega inda não estava em voga) e de absoluta segunda categoria pela elite cultural. Assim, e seus balangandãs, as chanchadas da Atlântida, o humor escrachado de Dercy Gonçalves, os programas de auditório com suas “macacas” (as tietes pré-históricas), o terror mambembe de Zé do Caixão, tudo isso passou a ser visto e analisado como importantes manifestações de comunicação de massa. O apresentador de TV , com seu visual surrealista ( de Tio Sam, terno de palhaço, disco de telefone pendurado no pescoço), encarnava a mais perfeita tradução da efervescente cultura carnavalesca, rodando e avisando: “Quem não se comunica se trumbica”. Toda uma geração de intelectuais se debruçou sobre o fenômeno Velho Guerreiro. Segundo esses estudiosos, tinha tudo a ver com as teorias do sociólogo canadense Marshall Mac Luhan, autor dos conceitos “o meio é a mensagem” e “aldeia global”.

35 Mario Mendes, “Brega até a alma”, Revista Elle, Ano 11, nº 128, Cultural Piece, São Paulo (janeiro de 1999) CEDAE: HH. II. IV.7. 2. 00055.

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Brega X chique

Com a atual avalanche de vulgaridade nos meios de comunicação, o excesso de produtos culturais de gosto duvidoso e assombrações estéticas variadas, não seria inoportuno perguntar: o que, no meio disso tudo, tem a ver com nossa identidade e com nossa alma latina? Brega também é cultura. E sem essa de brega-chique. Um não tem nada a ver com o outro. O chique sussurra, o brega grita. Chique chega, brega aparece. Chique debate, brega bota pra quebrar. Colocados lado a lado, a diferença fica evidente. O que existe, e muito, é brega rico. / O que nos leva direto a uma consulta ao doutor em Letras Deonísio da Silva – titular da coluna sobre Etimologia da revista Caras –, a respeito das origens do termo. “Dizem que no Rio de Janeiro existia o Bar do Nóbrega”, informa o autor de De Onde Vêm as Palavras. “Quando caiu o N-O do letreiro, ficou só ‘brega’. Mas pode vir também de ‘bregado’, que significa ‘pão amanhecido, inadequado para o uso’”, conclui Deonisio. /Com a palavra, o apresentador Carlos Massa, vulgo Ratinho: “Brasil é sinonimo de breguice”, decreta. E entorna de vez o café do bule: “No dia em que esses intelectuais metidos a besta passarem a valorizar as coisas da nossa terra, deixaremos de ser brega, na concepção deles, para entrarmos na era do desenvolvimento”. Demagogia, patriotada e equívocos à parte, o campeão de audiência do SBT até tem um pouco de razão. Afinal, não fosse o ouvido apurado do Caetano Veloso e Sonhos, de Peninha (cantor e compositor safra 70), ainda estaria esquecida na vala comum da programação das rádios AM, junto com outros favoritos do repertório popular, à espera de uma releitura de peso. Vide , que gravou Amor em Marte, do antológico Waldick Soriano. […] A questão é bem mais complexa. / Pense em Pedro Almodóvar. O cineasta espanhol sabe explorar, sem paternalismo e com muito talento, a breguice de seu país. Uma das características que o levaram ao sucesso internacional desde seus dias como diretor underground até a recente obra prima Carne Trêmula, Almodóvar não tem medo da ingenuidade nem dos excessos estéticos bregas, para criar não apenas comédia, mas também drama. Em De Salto Alto, a atriz Marisa Paredes, no papel de uma cantante, interpreta Penso em ti, beija o chão do palco e derrama uma lágrima. Apesar dos travestis na plateia, imitando cada gesto, o efeito não é cômico. / Na temporada primavera- verão 95/96, o estilista paulistano Alexandre Herchcovitch incluiu em sua coleção camisetas com estampas do grupo Menudo e outros ícones bregas. Também não era piada. Era o streetwear do terceiro mundo em uma leitura fashion. Brega também é estilo.

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Crise de identidade

A rua é de mão dupla e é comum ver artistas fazendo o caminho inverso, trocando os ambientes da elite cultural por um bem sacudido bailão de periferia. Está aí Fafá de Belém, que não deixa de mentir. Revelação da MPB no final dos anos 70, Fafá atravessou fase de fervor político na década passada e entrou no 90 vendendo discos como nunca ao adotar repertório com sotaque sertanejo. E o sex symbol rock dos anos 80, Paulo Ricardo, reiventou-se em carreira solo e está de olho no eleitorado de Fábio Jr. O desejo de atingir um público maior – e engordar a conta bancária – não é privilégio do mercado fonográfico. Na literatura, a escritora paulista Hilda Hilst cansou-se de ser considerada hermética, contabilizando elogios demais e exemplares de menos no balanço das vendas de suas obras. Decidiu popularizar e partir para a pornografia. Apareceram então O Caderno Rosa de Lori Lamb e Contos de Escárnio36, para chocar geral e render nota preta. Mas, mesmo escrevendo tramas vulgares, debochadas e bregas, Hilda não deixou de lado sua erudição, seu humor refinado, suas observações filosóficas. Resultado: a crítica amou e o público passou longe. Diante do painel brega da cultura pop nacional, Hilda declara: “Choro o tempo todo”. E protesta; “Imagina! Chamaram a Carla Perez de Vênus Calipígia! Tudo está sendo nivelado pelo fator bunda”. Ampliando o cenário, cita o affair Lewinsky-Clinton e conclui: “O mundo está brega!” / Já o jornalista e crítico de música José Ramos Tinhorão adverte: “Existem bregas e bregas”. E cita uma pérola: “Quando recebi aquele CD do em que ele canta ‘Aqui é o meu paíííís!’ ouvi a martelação em cima do piano e pensei: ‘Ivan Lins é o Benito di Paula dos universitários’”. Para quem não sabe, Benito di Paula é aquele do Meu Amigo Charlie Brown e outros hits bregas dos anos 70. Diante desse quadro, só resta concluir: gostando ou não dele, o brega é antes de tudo um forte. […]

36 O caderno rosa de Lori Lamby e Contos d’escárnio- Textos grotescos.

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B] CARTAS PUBLICADAS NO CORREIO POPULAR

1) O QUE É MORALIDADE?

Moralidade: o que isso significa? Sexo, palavrões, meninos de rua… Sexo: classifico como uma necessidade de homem. Mas, é coisa de animal (…)37. O homem, que existe, pensa. Ou pensa que pensa. E se pensa, não é animal. Uáuuu!!! Palavrões: classifico como uma necessidade do homem. Mas não é coisa de animal (…) Meninos de rua: classifico como uma… (…) imoralidade! E explico: sexo é amoral; palavrão é amoral; e meninos de rua é (é mesmo!) – imoralidade! Não ficou claro? (…). Viva o Caderno C!

Pedro Lúcio Ribeiro – Campinas38

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2) ENCONTRO COM HH

Rodeada por cães, na varanda da casa, estava uma figura humana bonita e exótica. Começamos a conversar e mais cães iam acomodando-se pela sala, ao nosso redor. Móveis antigos e uma atmosfera mística caracterizavam o ambiente; na parede, um quadro em especial chamou-me a atenção; era ela quando jovem, incrivelmente bela. Intelectualizada e sensível, Hilda falou-nos de sua vida, de espiritualidade e sobre seus animais, seres amigos e amados. Alguns abandonados à sua porta, outros encontrados pelo caminho e outros que certamente virão; mas todos chegando para ocupar, em definitivo, um lugar em sua morada e em seu coração. Duque, um cão que destilava alegria, sobressaía entre os demais; não era por acaso tanta felicidade… Personagem de um passado triste e de um futuro de sorte, foi encontrado por ela, preso dentro de um saco, jogado numa dessas estradas da vida. A tarde ia-se esvaindo e não dava vontade de irmos embora. Acho que é porque faz bem esses raros momentos em que se pode falar apenas do que se gosta. Despedimo-nos dela, deixando ali uma mulher dotada de sensibilidade à flor da pele; capaz de remexer valores, desacomodar conceitos e incomodar consciências. Um desses seres humanos que se encontram em extinção…

Liliam Carmela S. Elias de Almeida – Campinas39.

37 Os parênteses curvos constam no original. 38 Pedro Lúcio Ribeiro, “Hilda Hilst” – Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (9-01-1993) CEDAE: HH. II. V. 2. 00146. 39 Liliam Carmela S. Elias de Almeida, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (janeiro de 1993) CEDAE: HH. II. V. 2. 00157.

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3) ESTUDANTE PROBLEMATIZA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Sou estudante de Direito na Puccamp40 e como leitor do Correio Popular tenho observado a polêmica levantada em torno da escritora Hilda Hilst. Causa-me estranheza e revolta a atitude deste jornal que, cinicamente, evoca a liberdade de expressão e o “moderno” para defender o direito que a escritora tem de publicar suas obras. No entanto, e paradoxalmente, permite que pessoas como o senhor Roberto Godoy ofendam os leitores de maneira deselegante e pouco civilizada, atingindo a moral de pessoas de respeito só porque usaram sua liberdade de expressão para manifestar sua opinião sobre Hilst. O senhor Godoy se engana profundamente ao avaliar os leitores. Não há críticos mais autorizados e capacitados que estes, já que o jornal é feito para eles e não para embrulhar a carne nos açougues. Se o Correio quer ser grande, não pode menosprezar a opinião de seus leitores, de suma importância nos grandes jornais.

Caio Márcio B. Chaves – Campinas41.

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4) LEITOR INDIGNADO DENUNCIA LICENCIOSIDADE

Os defensores da pornografia de Hilda Hilst no jornal confundem as estações, 42. liberdade com licenciosidade E partem para a agressão aos que lhes são contrários, chamando-os de moralistas e puritanos, como se isto fosse demérito, opróbrio. Para tais pessoas, o respeito ao próximo e à sociedade é coisa de pudico, excessivamente pudorado, imbecil. Para esclarecer jovens e adolescentes, tanto quanto adultos, não é preciso usar de linguagem chula e nem será com os escritos de Hilda Hilst, com seu palavreado rasteiro, de prostíbulo, que se irá resolver o problema da Aids. O correto está exatamente na linguagem simples e nos folhetos distribuídos pelo pessoal devidamente credenciado e preparado para essa divulgação, científica e sucintamente. O dicionário do Aurélio traz o verbo defecar. Nem por isso o defensor da Hilda Hilst terá o direito e a coragem de vivenciar o verbo no salão da Rodoviária e ainda por cima dispensando o papel higiênico em favor do dedo. O referido dicionário, tanto quanto o Caldas Aulette e outros, existe exatamente para conter o maior número de palavras e verbetes para consulta de quem

40 Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 41 Caio Márcio Chaves, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (9-01-1993) CEDAE: HH. II. V. 2. 00145. 42 José Luís P. Wutke, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (19-01- 1993). CEDAE: HH. II. V. 2. 00152.

56 precisa. Todavia quando a palavra é de baixo nível, registra-a como chula. Por outro lado, que autoridade tem o Jô Soares para falar em moral? Para se combates a miséria e a desgraça dos meninos de rua é preciso coragem, vontade e inteligência; jamais, com programas humorísticos. É um trabalho que exige perseverança e conhecimento da origem do mal e as possibilidades de solução. Ninguém, em sã consciência, gosta de ver criança faminta e abandonada e não será com artigos em linguagem chinfrim, pura pornografia, que se vai resolver o problema. Em que a pornografia ajuda na solução da Aids, da fome e da violência? A menos que todos os grandes pensadores estejam errados, o homem tende a evoluir, aprimorar-se, deixando de ser uma besta para se tornar um civilizado; e isto incluindo a maneira de se expressar. O leitor, em especial o assinante do jornal, em sua grande maioria, procura o jornal pelo que apresenta de informações e não para ter uma masturbação mental com o palavreado de Hilda Hilst, no caso, mais uma compensação de alguma deficiência física e mental. Respeitar os outros e querer respeito não é ser “careta”, é ser normal. De minha parte, graças a Deus, estudei no velho Culto à Ciência, com o saudoso Chico Sampaio, com textos desde os quinhentistas de Portugal até os nossos Machado de Assis, José de Alencar, etc., não vendo, em função disto, necessidade de descer à sarjeta no linguajar, por falta de recursos. E como conheci de perto as normas do Correio Popular, que também aprendi a amar, revolto-me com a pornografia que nada acrescenta à formação de nossa juventude e muito menos à leitura dos mais velhos. Se ter uma boa formação moral e educação, respeitando os outros e a sociedade, é ser “careta”, quero ser chamado de “careta”. Melhor do que ser chamado de outra coisa. Não discuto o gosto dos outros, pois gosto não se discute. Henrique VIII, da Inglaterra, excitava-se sexualmente com o cheiro de ovo podre e com gases intestinais. José Luiz P. Wutke – Campinas :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

5) LEITOR DENUNCIA A CENSURA “PURITANA”

[…] Lendo o Caderno C, mais uma “coisinha” eu começo a entender: muito se tem falado sobre a ineficácia das propagandas das campanhas que têm por objetivo a informação do problema do Aids. Aqueles que lutam para esclarecer o maior número possível de pessoas sempre se manifestam insatisfeitos por terem que lutar contra certas “barreiras” 43. E eu

43 Pedro Lúcio Ribeiro, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (14-01-1993). CEDAE: HH.II.V.2.00148.

57 não entendia isso. Agora, com o Caderno C, estou entendendo: pessoas pudicas, excessivamente pudoradas preferem ouvir falar sobre Papai Noel, coelhinho da Páscoa, cegonha… e eu sempre acreditei que essas “três maiores mentiras do mundo” deixavam de existir a partir da adolescência. Sobre Aids, o educador necessita de cautela para não ferir os princípios morais da sociedade puritana (que eu julgava ser uma coisa de 20 anos atrás). Assim, lá vão eles (os educadores), em sua árdua tarefa de “esclarecimento”: “É possível a contaminação através de…” E “dá-lhe jogo de cintura”: “Pega-se Aids através do sexo oral se…” Por que é proibido falar a palavra certa? Sexo oral, por exemplo, para mim, é o tal de “sexo por telefone”. Falar a palavra certa é mais esclarecedor. Mesmo porque “sexo oral” não é definição. As definições, os termos populares são chulos? Ferem as pessoas moralistas? … Mas, há no Aurélio: cunilíngua, felação… O Caderno C tem razão. Temos que lutar pela informação, pois, tendo ciência dos fatos, podemos nos esforçar para, pelo menos, diminuir a Aids, a fome, a violência…. Existe pornografia no Caderno C? No dicionário do Aurélio? E no programa do Jô Soares? E no vestibular (da Unicamp)? O que é bate-coxa? E o verbete seguinte, no Aurélio? E quanto aos termos borra- botas, berdamerda, cunilíngua?... Então o dicionário do Aurélio é pornográfico? Merece, também, a mesma censura dos leitores indignados com a escritora e articulista Hilda Hilst no Caderno C? Claro que não! No dia 29 de junho de 1992, Jô Soares questionava uma proposta absurda de “envelopar” as edições do jornal Notícias Populares da capital paulista. Jornal pornográfico, segundo os moralistas. E para combater os moralistas, o grande Jô foi felicíssimo com estas frases: “(…) e acho que essa preocupação que se tem tanto com a criança devia ser dirigida para as que tão morrendo de fome no País inteiro! Inclusive em São Paulo! … morrendo de fome numa cidade que tem esse potencial de dinheiro! Então dizer que a criança olha… (as manchetes); e fica excitada… e não sei o quê… olha: eu prefiro uma criança excitada, de barriga cheia, de pinto duro, do que uma criança passando fome, sem ver manchete nenhuma”. […] Papais, mamães e filhinhos, puritanos. Eu, que fui adolescente na década de 70, jamais imaginei, naquela época, que na década de 90 eu escreveria ao Correio Popular para protestar contra o preconceito e a censura! Aliás, uma carta assim, na década de 70, já era, “meio careta”! Ou, não?

Pedro Lúcio Ribeiro – Campinas

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6) “O RETORNO DA DEUSA” REFLETE-SE NOS “PURITANOS”

Edward Whitmont em O Retorno da Deusa fala-nos da violência que trazemos dentro de nós, que se manifesta coletivamente em tantos episódios. Diz ele que a nossa rejeição à violência é insincera, que visa apenas ao controle de sua força destruidora e que elaboramos incontáveis justificativa corretas para aquelas violências que nós mesmos cometemos. Nós as consideramos más apenas quando elas nos ameaçam. Para o autor, a ânsia de destruir a forma e infligir lesões corporais e morte continua exercendo poderosa atração mobilizadora e revigorante sobre o ego; vêmo-la cada vez mais perpetrada, sem qualquer discriminação ou causa, contra crianças, jovens e velhos em situações cotidianas habituais, detonada provavelmente por uma sádica ânsia de poder; vêmo-la nos filmes, no boxe, no rúgbi, nas touradas, nos acidentes, nas execuções, espetáculos que fascinam o cidadão médio, considerado normal44. O que chamamos de perversão é uma questão de grau ou de incapacidade de lidar com essa ânsia, dentro dos limites socialmente aceitáveis. Para o autor, a repressão das duas forças primordiais de atração e repulsão, dois pólos opostos que vivem em nós, e a desvalorização moralista desses impulsos, semelhantemente à atitude vitoriana de repressão à sexualidade, apenas têm vindo favorecer a satanização desses impulsos. Assim, vemos esses deuses interiores comercializados e cada vez mais demoníacos. As divindades perdidas continuam presentes: no cinismo, na brutalidade, na obscenidade: este o preço que pagamos. Imputar ao social essa nossa culpa é reação inútil e uma redução: as conseqüencias não podem atuar sobre a causa. Para o autor, o caminho é esclarecer e canalizar esses impulsos a fim de abrandar o seu veneno. Há uma história infantil, de Philip Ressner, que esclarece: Gerome é escolhido para matar o dragão que assola com múltiplos males a cidade. Gerome contata com ele e (…) estabelece o seguinte pacto: o dragão queimaria o lixo da cidade às terças e às sextas e, no resto do tempo, ficaria contando histórias mentirosas. Assim, conseguiu Gerome canalizar aquelas tendências malignas para um trabalho útil. Isso tudo vem a propósito do controvertido episódio das publicações de Hilda Hilst no Caderno C. Hilda recebeu um dom, a graça de falar com os anjos; mas, não estará ela atualmente se deixando permear por uma forma de violência, violência essa absolutamente incompatível com sua sensibilidade de poeta? Não estaria transformando Eros, o deus do amor e do desejo, em seu irmão gêmeo, Áres, o deus da guerra? Não

44 Nise Silva, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (15-01-1993) CEDAE: HH.II.V.2.00150.

59 deveria ela utilizar as suas excepcionais qualidades para estabelecer entre esses deuses opostos uma ligação de harmonia? Certamente esse seria um desafio válido e à altura de sua capacidade. Pois eis a suprema tarefa do artista: depois de buscar a sua completude e de conjugar a sua vida com a arte, servir a humanidade, profetizando e indicando-lhe os rumos. Nise Silva - São Paulo. :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

7) HILDA ESCOLHEU O MAL E PODE SER CENSURADA

[…]45 O mundo não é mais o mesmo, como todos sabemos através da tevê, dos jornais e das revistas, e pelo que vemos diariamente olhando ao nosso redor. Mas fiquei muito surpresa em perceber que ainda acontecem coisas que chocam: coisas inesperadas, decepcionantes! /Uns dez anos atrás tive oportunidade de visitar Hilda Hilst na sua linda Casa do Sol: escondida no meio do mato, de árvores e flores. Uma casa decorada com extremo bom gosto, que inspirava paz e tranquilidade de espírito. Tive inveja da Hilda, morando num lugar como este, onde teve toda a oportunidade de meditar, ler e escrever. Algo que sempre sonhei em fazer, mas não consegui por falta de silêncio e de tranquilidade de espírito. Vi em Hilda uma pessoa realizada, mística, quase santa! Qual o meu espanto ao ler o que ela anda escrevendo e publicando ultimamente. Deve ter acontecido algo muito triste na vida dela que a fez mudar tanto. Que a fez se alistar no exército dos escritores sádicos, amargos, pornográficos, que escrevem para vender, para sobreviver. Não tenho mais inveja de Hilda agora que não é mais aquela pessoa excepcional que conheci naquela época: “Só sinto pena dela. E também não concordo com o senhor J. Toledo que diz “ser uma obrigação do jornal ter um texto pelo menos semanal de uma escritora do porte da Hilda”. Concordaria se ela ainda escrevesse como antes: como a pessoa terna, lúcida, sensível, austera, como ela mesma se qualificou. Não para “alegrar o meu desesperado café da manhã”, mas para me sentir feliz que ainda existem pessoas boas neste mundo-cão de hoje. Pessoas que mandam raios de sol para aquecer os corações dos seres humanos que ainda não pertencem aos maníacos. Que ainda acreditam nas coisas boas da vida. Que ainda sabem sonhar!

Elisabeth Kuhne – Campinas

45 Elisabeth Kuhne, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor Campinas (17-01-1993) CEDAE: HH.II.V.2.00151

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8) LEITOR CONDENA GODOY POR DEFENDER HILST

Profundamente lamentável a crônica do senhor Roberto Godoy publicada dia 31 de dezembro, no Caderno C. Na ânsia de defender a escritora Hilda Hilst, o articulista vocifera de forma chula o bastante para escandalizar os próprios travestis aos quais faz menção. Imagino que ao vomitar aquelas grosseiras, o senhor Godoy deve se referir, por exemplo, à leitora Bárbara Pereira de Abreu e a tantos outros que, no exercício da sua liberdade de expressão, vêm opinar sobre o conteúdo do jornal que compram. O senhor Godoy demonstra, a partir do que lemos, uma notável tendência totalitária, reagindo às críticas de maneira tão agressiva. Senhores como este de nada contribuirão para fazer do Correio Popular um grande jornal. / Luciano Luporini Menegaldo – Campinas46.

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9) ILUSTRADOR ESTIGMATIZA HILST

Fui caricaturista e ilustrador do Correio Popular por duas décadas e jamais desci à pornografia para ter sucesso (e nem me deixariam que o fizesse, caso pretendesse). E duas décadas não representam fracasso47. Os grandes cronistas, como Plínio Marcos, Antônio Contente, Eustáquio Gomes, Cecílio Elias Netto, Moacyr Castro, Otto Lara, etc. jamais usaram de pornografia para retratar o mundo cão. Foram realistas vigorosos sempre sem descurar da limpeza do linguajar. Não há menor lógica em comparar o Domingão do Faustão com o Correio Popular. Quem procura a Globo o faz exatamente buscando até mesmo a linguagem chula do apresentador e a pornografia colocada no ar. Já quem assina o jornal pretende ter, todos os dias, um retrato do mundo, os grandes acontecimentos, o aumento do custo da vida, os fatos policiais, a relação de falecimentos, etc. e, também, crônicas inteligentes. Quem pretende pornografia, em linguagem escatológica, compra revistas especializadas, que as há aos montes, com fotos e todo que há relativo ao assunto. O assinante do jornal jamais se interessa pelas fantasias imorais de Hilda Hilst, com rabanetes, nabos ou abobrinhas, com seus respectivos calibres, verdadeira apelação, pura baixaria. O lugar para as extravagâncias ou arrojos literários é o livro, que compra quem quer e porque o quer exatamente pelo seu conteúdo chinfrim. Se Hilda Hilst usa vibrador, ou não, é problema dela. / José Luís P. Wutke – Campinas

46 Luciano L. Menegaldo, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Campinas, Correio do Leitor (8-01-1993) CEDAE: HH. II. V. 2. 00143. 47 José Luís P. Wutke, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Campinas, Correio do Leitor (8-01-1993), CEDAE: HH. II. V. 2. 00144.

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10) REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE ARTE

Além da tese oportuna e bem colocada por Elias Netto, em “sem meter o bebelho”, dia 19, no tocante à polêmica levantada por alguns artigos de Hilda Hilst, neste mesmo caderno, há que se discutir a questão, arte e não-arte, admitida a hipótese de que escrever é uma arte, sobre o que não há dúvida. Ora, para Aristóteles, arte é tudo o que não seja produzido pela natureza. Daí, artesão é aquele capaz de produzir engenhos rudimentares, contrariamente a artista, aquele capaz de produzir coisas com certo refinamento de ideias e elaboração técnica. Este é o conceito de arte e artista hoje. No entanto, o artista, por mais renomado que seja, jamais será um senhor absoluto. Por sinal, quem o é? Para Aristóteles, só Deus; para Einstein, este é a velocidade da luz no vácuo. Além disso, o artista só se priva deste status enquanto assim reconhecido pela crítica e pelo público, (…). Ainda de acordo com Aristóteles, no público encontram-se pessoas incultas e despreparadas; em conjunto julgam melhor do que um só. De fato, “vox populi, vox Dei”, Sêneca, no caso em questão, as críticas desabonadoras, não poucas, têm vindo de leitores, que se acredita, de sensibilidade e bom gosto. Ignorá-los como? Se Fellini, então já renomado cineasta, após a apresentação de um novo filme em Roma, a primeira coisa que perguntou à plateia foi: comuniquei? Hilda Hilst, no mínimo, não conseguiu comunicar- se ou fê-lo de forma equívoca. Eu mesmo li alguma coisa e, em alguns momentos, ela se mostrou infeliz e deixou-se resvalar ao rés do chão com insinuações malévolas e grotescas. A arte, sim, é a imitação da vida, mas não pode, como ela, em determinadas situações, mostrar-se asquerosa e nauseabunda. Senão, como se iria distinguir o artista de um indivíduo qualquer? Na arte, o contexto tem que colocar o grotesco de forma amena e digerível, aos olhos e aos sentidos. Como exemplo, o filme O Salário do Medo, quando os caminhoneiros, após superarem momentos de reais perigos, partilhados pela plateia, descem do carro para urinar aliviadamente.

Waldemar Paulo Rosa - Campinas48.

48 Waldemar Paulo Rosa, “Hilda Hilst” Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (25-01-1993) CEDAE: HH. II. V. 2. 00155.

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11) PARABÉNS PELA CRÓNICA “A ALMA DE VOLTA”

Excelente a crônica “A alma de volta”, de Hilda Hilst, no Caderno C, de 18/12/92. Ainda bem que felizmente… a verdade, os conceitos, as interpretações , que cada indivíduo faz do mundo que o cerca, dependem de sua cultura, de seus sonhos, de suas experiências cotidianas, da leitura e de seu posicionamento perante os fatos ocorridos: quer circunscritos à sua realidade próxima quer em nível mundial. Muito sábia a colocação em xeque do conceito “Homo sapiens” em decorrência do que temos presenciado. É certamente leviana esta conceituação de “agente” das crises sociais que se avolumam. O surgimento do neonazismo, do separatismo, da violência, da fome hedionda das crianças nordestinas, dos delírios do menos abandonado, cheirando cola, do arrastão, do massacre na Casa de Detenção, do sequestro… embasam a incorreção da conceituação. Estamos, há muito, assistindo, impassíveis, ao crescimento deste novo ser que você tão bem conceituou de “Homo maniacus”. Frio, calculista, individualista e concentrador de riqueza. O apelo dramático da devolução da alma a este ser é mais que preciso. É tarefa desafiadora e quase impossível de ser cumprida. Mas esse apelo você soube fazer com maestria! Creia que sensibilizou muitos de nós. Nada tão salutar à nossa sociedade quanto àquele que consegue caminhar fora de trajetórias já pré-delimitadas e definidas. É preciso ousar diferir do senso comum. Para propiciar mudanças! / Marisa Lemos- Campinas49

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12) LEITORA PARABENIZA CRÓNICAS HILSTIANAS

Nós, os leitores, não tão indignados assim, queremos deixar aqui registrado o nosso protesto quanto ao preconceito e ao falso puritanismo “daqueles” leitores. As crônicas da escritora, ao contrário de indecentes ou imorais como querem rotulá-las, são gostosamente bem-humoradas e sarcásticas, na medida certa, para nos questionar justamente sobre nossos velhos conceitos moralistas aprendidos e ensinados de geração a geração, sem graça nem sabor… meu Deus! Até quando? Parabéns a Hilda Hilst por quebrar, embora com resistências, os velhos padrões das crônicas açucaradas e bem- comportadas. Que possamos, ao menos às segundas-feiras, ser presenteados com um espaço de bom humor e irreverência. / Olga Maria V. Oliveira – Campinas50.

49 Marisa Lemos, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (13-01-1993) CEDAE: HH. II. V. 2. 00147. 50 Olga Maria V. Oliveira, “Hilda Hilst”. Correio Popular, Campinas (15-01-1993), Correio do Leitor CEDAE: HH. II. V. 2. 00149.

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13) CARTA SOBRE A HIPOCRISIA E OS DIREITOS DAS CRIANÇAS

É chegada a hora de acabar com a hipocrisia e com os falsos padrões de moralidade tão em moda hoje em dia. Eu fiquei chocada com uma reportagem na televisão sobre a miséria extrema que vive a população do Nordeste, com o falecimento da menina Poliana (…)51. Essas pessoas que se dizem chocadas com as crônicas de Hilda Hilst doaram dinheiro para a menina? Fazem algo para amenizar os sofrimentos dos menores abandonados? Contribuíram, mesmo que uma vez para o Centro Infantil Dr. Boldrini? Existem coisas e fatos, no dia-a-dia, que muitos de nós preferimos ignorar porque, para lutar contra, implica sairmos dos nossos mundinhos que julgamos tão certinhos; portanto criticar é muito mais fácil. Para as crônicas existe uma solução: é só não ler. Virem a página. Porém, se for para questionar a moral e os bons costumes, terão que fazer pior: deixar de ler todos os jornais do Brasil, porque só assim estarão a salvo das inúmeras imoralidades contidas em cada notícia, isto é, dependendo do grau de entendimento de cada um! / Maria Josemi – Campinas.52 :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

14) AS CRIANÇAS APRENDEM A PICHAR AO LEREM PALAVRÕES

Venho comunicar que estou decepcionada com a coluna do Caderno C publicada nesta segunda-feira escrita por Hilda Hilst. Sou assinante deste jornal há quase dois anos, antes eu assinava a Folha de S. Paulo; deixei a Folha para assinar o Correio Popular porque em minha casa todos gostavam mais do Correio. Na minha casa as crianças com idade de 11 anos pegam o jornal para ler e vão encontrar uma coluna com estas coisas escritas por Hilda Hilst, você não acha que é uma baixaria? Para mim, um jornal é um meio de comunicação e cultura e de bons exemplos, imagine um jovem lendo estas coisas. Por isso que os jovens vivem pichando todas as cidades; depois de um jornal publicar estas asneiras, eles devem sentir o direito de escrever em qualquer lugar não acha? Se vocês acham que isto é uma brincadeirinha, eu não gostei, acho que tem algo mais útil para preencher uma coluna de jornal do que estes palavrões. Gostaria de ter a resposta desta carta no mesmo espaço desta coluna (…) 53/ Bárbara Pereira de Abreu54

51 O parêntese curvo consta no original. 52 Maria Josemi, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (8-01-1993) CEDAE: HH.II.V.2.00142. 53 Nota do Editor – Sobre o assunto, há diferentes pontos de vista. Como escritora, Hilda Hilst tem liberdade de expressão, que o jornal não cerceia. 54 Barbara Pereira de Abreu, “Caderno C”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (janeiro de 1993) CEDAE: HH.II.V.2.00156.

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15) LEIAM HH ANTES DE JULGAR

[…] Como toda criancinha, primeiro eu disse dadá, gugu, papá e mamã. Mas minha quinta palavra, creio eu, já foi um palavrão. Meu avô Nicolau, calabrês de alma limpa e boca suja, teria sido o criador de Pasquim, se não fosse um marceneiro pobre e iletrado. Palavrões eu digo até hoje, a torto e direito, porém nunca os escrevo. Em compensação, também nunca digo às minhas filhas algo do tipo “tome o leite, todavia não o café”. E no entanto, na escrita, mesmo quando se trata apenas de um bilhete familiar, fico à vontade para usar o todavia, o contudo, o porém, o entretanto, e outros recursos mais. Há uma diferença de situações, entre o falar e o escrever. Não basta que uma coisa seja natural, necessária ou corriqueira para que a exponhamos indiscriminadamente. Nossas fezes têm todas essas qualidades – são necessárias, naturais e corriqueiras – sem que isto nos leve a defecar em público. Mas eu entendo Hilda Hilst, e quero mais é que ela lave a alma diante de um público que merece isso. Porque essa mulher, antes de começar a escrever “pornografia”, escrevia coisas belíssimas, capazes de enternecer um poste de concreto, sem que ninguém lhe desse a mínima atenção. Todos, por mais que estejamos conscientes do nosso próprio valor, precisamos do reconhecimento alheio. Disso não escapam a cozinheira, o músico, o carteiro ou o escritor. Quem nunca ouviu falar da mulher que cozinhava para 20 caubóis, e que um dia botou um punhado de feno no prato de cada um? Diante do espanto deles, ela explicou: “Cada dia da minha vida tenho cozinhado pra vocês com capricho, com arte, com amor, e vocês se comportavam como se estivessem diante de um prato de feno. Agora, comam feno.” Não acredito que o que esteja em jogo seja a questão da hipocrisia ou da sinceridade. A humanidade é hipócrita, e por muito tempo o será. Quem, senão um louco, se atreveria a sair pelado na rua, só porque está sentindo calor? E contudo, que tem uma criatura humana para mostrar, senão aquilo que Deus instalou nela com tanta simplicidade? E viva o verão!

Ana França Suzuki – escritora55.

Campinas.

55 Ana França Suzuki, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas (23-01-1993), CEDAE: HH. II. V. 2. 00154.

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16) HILDA HILST VENCEU

Hilda Hilst venceu. E o Correio Popular também. Hilda revela sua arte com uma autoridade que dispensa maiores comentários. Com a erudição dos grandes escritores, ela provoca o fascinante movimento da arte-comunicação como processo, haja vista as discussões em torno do seu espaço no Caderno C.O Correio confirma seu potencial de meio de estímulo. Hilda Hilst é sem dúvida uma das maiores artistas do País e por isso mesmo merece o respeito e até a paixão dos leitores. Pobre e bem pobre é aquele que perdeu até então a oportunidade de ler a obra dessa grande mulher. Pessoa alguma negaria méritos a Hilda ao ler obras-primas como os poemas Do Desejo, o intrigante Tu não te moves de ti e ainda mais recentemente o divertido, metafórico e inteligente Bufólicas. O Correio sabe de Hilda e dá oportunidade ao leitor sabê-la. Não me irrita nem sequer magoa perceber críticas e até excessos de ira por parte de alguns leitores que insistem em não enxergar a verdadeira arte de Hilda. Mesmo porque ela deve ser discutida e pensada. É a colocação dos pontos de vista diversos que move um bom jornal e também um artista criativo e acima de tudo ativo. Hilda é toda expressão. Hilda é atual. Hilda é suprema, pois em sua arte nos faz enxergar a nós. Ela cumpre, como os grandes mestres, o papel de mensageira, onde nós enviamos a mensagem a nós mesmos. Hilda nos entende. Somos, Hilda nos revela. Além e muito além fica a literatura. Hilda Hilst a enriquece. Ela sabe escrever como quem vive em 1993. Eu sei de Hilda Hilst e me vejo fascinado diante da verdadeira, rica e bela literatura dessa mulher atual e vibrante. O Correio se firma numa linguagem dos anos 90.

Fábio Anderson Dias – Campinas56.

56 Fábio Anderson Dias, “Hilda Hilst”, Correio Popular, Correio do Leitor, Campinas, (janeiro de 1993). CEDAE: HH.II.V.2.00158.

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17) LEMBREM-SE DE SODOMA E GOMORRA!

É lamentável que esse jornal, cuja diretoria é constituída de pessoas idôneas e responsáveis, esteja sendo transformado em veículo de divulgação de pornografia e imoralidades. Fiquei perplexo e cheguei a pensar que tudo está perdido neste querido País, quando li a publicação de uma carta assinada pelo responsável senhor Pedro Lúcio Ribeiro, na seção Correio do Leitor do dia 14. Esse indivíduo pensa que todas as pessoas do mundo têm as mentes pervertidas como a dele. Toma ele como exemplo o dicionário do ilustre professor Aurélio para justificar os absurdos que são publicados nos jornais, mas se esquece de que tal livro fica guardado nas estantes, para consultas específicas, e que os meios de comunicação expõem os fatos para conhecimento de toda a população. De outro lado, esse missivista reporta-se à década de 70 para falar em “sociedade puritana”, demostrando desconhecer a História da Humanidade: Sodoma e Gomorra […] estavam mergulhadas na imoralidade e na promiscuidade. As duas primeiras foram, inclusive, destruídas em virtude de castigo divino. Pompéia, nos domínios de Roma, desapareceu sob a lava do vulcão Vesúvio, quando seu povo vivia o auge da devassidão sexual. Foi o nosso Salvador, Jesus, quem inaugurou uma nova era neste maravilhoso planeta, ao banir as sujeiras imorais advindas dos povos antigos. Como os demais “pornográficos”, o senhor Pedro (infelizmente tem o nome do nosso primeiro Papa) cita menores abandonados, fome, etc. Saiba ele que, antes do surgimento de elementos como os da sua espécie, tais problemas não existiam (ou havia muito poucos) no Brasil. Dessa forma, para o bem geral, e a fim de que nossas preciosas e imprescindíveis famílias não sejam desmoronadas, rogo à direção desse honrado órgão de imprensa para que não permita mais a inserção de matéria tão terrível em suas páginas.

José Salomão Fernandes – Campinas57.

57 José Salomão Fernandes, “Pornografia”, Correio popular, Correio do Leitor, Campinas (21-01-1993) CEDAE: HH. II. V. 2. 00153.

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C] CORRESPONDÊNCIA PESSOAL DE HILDA HILST

1) CARTA PESSOAL DE PEDRO LÚCIO RIBEIRO

Campinas, 03 de janeiro de 199358. Prezada Sra. Hilda Hilst: O povo tem se mostrado despreparado para entender os seus pensamentos. Mas, de quem é a culpa? Uma ideia sua, “uma mesinha de centro, na qual nada pára”, para mim, por exemplo, tanto pode ser uma tele-novela, como literatura de Marcelo Rubens Paiva. É o que eu penso sobre o “Bleacaute”. / Aliás, o escritor em questão, vem se notabilizando como apresentador de tevê, mas para mim, está parecendo uma outra “mesinha” que tem pouca serventia. Outro dia em seu programa (Fanzine), ele até ridicularizou uma garota que afirmou praticar “sexo-oral” com o seu namorado através do telefone… sei lá! no “Aurélio”, a explicação do verbete “felação” é dito “coito bucal”. Muitos autores se mostram despreparados para escrever por não conhecerem filosofia, jurisprudência… não conhecem a “Teoria Geral do Estado” (e querem opinar sobre o parlamentarismo, sem saber o significado de Chefe de Estado!), não sabem o que significa, por exemplo, Juízo de Valor; Juízo de realidade; amoralidade; dialética; escatologia… Julgo-os, segundo o seu artigo “por quê, hein?”, “mesinhas de centro” imprestáveis! / O povo está indignado com a sua “obscenidade” no Caderno C. Mas, isso é passageiro. Quando essa indignação popular for superada, eu escreverei ao Correio do Leitor para contar um fato em minha infância. Mas terei que alertar para que as palavras sejam “conferidas” no Aurélio (ou num outro dicionário), pois, aparentemente obsceno, ele é fato verídico. E cândido. Todavia, se não for bem entendido, será um “escândalo”. / Mas, faço questão de aproveitar para contar a história […]59 Uma carta assim no Correio do Leitor do Correio Popular receberia vários protestos, se publicada hoje. E muitos dos protestos viriam de pessoas que não tiveram, sequer, o capricho de olhar o final da história, nem de ver o significado das palavras. Como uma pessoa assim iria sentir os “sentimentos” através de um texto de Hilda Hilst? Continue “na sua”, nobre escritora. Não se dê por vencida. “Aos vencedores, as batatas”! – E viva o Caderno C! Pedro Lúcio Ribeiro Um simples leitor e admirador do Correio Popular de Campinas – SP. Em tempo: para que serve “boceta-de-mula”? (no Aurélio).

58 Pedro Lúcio Ribeiro, Campinas (3-01-93) CEDAE: HH.II.V.1 .00130. 59 Vista a privacidade da correspondência a história não será divulgada.

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2) CARTA DE ANIMALISTA

Campinas, 18 de abril de 199360.

Grande senhora:

Claro está que só poderia vir de uma pessoa que coloca suas verdades nas crônicas semanais e que faz poesias, tamanha bondade, compadecimento e apelo, em beneficio dos animais. / Não é de hoje minha vontade em conhece-la. Havia programado ir ao lançamento do seu último livro, fortemente publicado pela imprensa local, pois além de ter a oportunidade de vê-la pessoalmente, ainda estaria prestigiando a mostra de telas de meu primo – também escritor e pintor – Aécio Flávio Consolin, especializado, por força das circunstâncias, em pinturas de cavalos. Entretanto, por aqueles acasos que só a natureza nos impõe, não me foi possível ir à esta grande noite. Agora, ao ler sua crônica- apelo de hoje não pude me conter. Disse a mim mesma: tenho de colocar no papel minha admiração por esta ilustre criatura. Solução para o “nosso” problema, realmente não a tenho, pois não disponho de um pedaço de terra, sequer para morrer. Mas, estive pensando que poderíamos ir a uma sessão da Câmara, exigir de nossos “nobres edis”, a aprovação de uma área pública para levarmos os bichinhos que, porventura venhamos a socorrer. Já colaboro, na medida em que posso, com a Associação dos Animais de Campinas, de onde, minha prima, Ruth Massarenti, é fervorosa batalhadora, juntamente com outras bondosas pessoas. Recolhemos jornais velhos, roupas usadas e tudo o que de dispensável há numa casa, para posterior venda e, com o dinheiro arrecado, a Ruth compra remédios e comida para os animais. A situação dessa associação é crítica, pois a Cargil cortou a ração que oferecia e, desde o ano passado, quando isto ocorreu, os bichinhos tem “quase” passado fome, não fosse a luta da Ruth e das demais pessoas, que não se omitem diante das dificuldades apresentadas. Lá existem cerca de 800 cães e 1.300 gatos. / Em relação aos cavalos, caso a senhora queira ir à mencionada sessão da Câmara com uma pessoa que briga pelos animais, é só me ligar, para marcar dia e hora. Se necessário, arrumo um batalhão de pessoas para nos acompanhar. Peço licença para convidá-la a conhecer a 1ª maravilha do reino animal, meu cachorro. Se assim o quiser, aguardo sua visita à minha casa,(…)61 / Temos uma Pick up Fiat! Não cabe um cavalo, mas outra coisa que couber e precisar, não hesite em pedir. / Com admiração. Margarette.

60 Margarette, Campinas (18-04-1993) CEDAE: HH. II.V.1.00131. 61 Foram omitidos os dados pessoais da remetente.

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3) SONHEI VOCÊ COMO UM ANJO

Campinas, 1º de Novembro de 199362 Prezada Hilda Hilst:

Bem, não sei por onde começar, mas já que comecei, irei terminar.

Certo dia, há bem mais de 2 meses, tive uma visão estranha: nela via Hilda Hilst, com asas de anjo, grandes e brancas, voando entre as nuvens, brincando no ar, voltando a ser poeta, e não essa pessoa meio amarga – mas extremamente coerente e de grande visão – que se vê nas crônicas do Correio Popular, todas Segunda (de Domingo, agora). Você tinha aprendido a voar – de novo – como você havia feito antes, antes de suas decepções com os outros, inclusive os campineiros, a quem você tanto critica, e que nunca entendem o que você diz. / Escrevo também para pedir desculpas por um crime de minha parte: copiei um livro seu, linha a linha, transcrito num computador, e depois imprimi, e dei a uma pessoa que entende de poesia, arte para poucos, embora não o devesse ser. Para me redimir de meu erro, lhe envio uma cópia, igual a que eu dei a essa outra pessoa, já que esse livro “Roteiro do Silêncio”, não se encontra mais à venda em nenhum lugar, e que mereciam ser reeditadas. Eu o fiz, não paguei direitos autorais, e espero que isso pague meu pecado…. /Alfredo P. Jara, Campinas.

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4) CARTA DE NELLY NOVAES COELHO

São Paulo, 15 de junho de 1990 (Dia de Corpus Christi)

Querida Amiga,63

Acabei de ler no Caderno 2 a nova entrevista que você deu sobre sua última publicação, e de repente me dei conta de que até agora, arrastada pelo turbilhão (sem nenhum exagero!) que me tem tomado literalmente todo o tempo disponível (fora as 5 horas de sono que consigo preservar) não tinha ainda me comunicado com você, para lhe explicar minha ausência no dia do lançamento do LORI LAMBY aqui. Na verdade, meus compromissos acadêmicos, neste semestre que está chegando ao fim, foram de amargar: organizei um Simpósio de Literatura Infantil e outro de Literatura “adulta”, na USP, que envolvia convidados do Exterior e de todo o Brasil… fora isso que é de deixar qualquer

62 Alfredo P. Jara, Campinas (1-11-1993), CEDAE: HH.II.V.1.00133. 63 Nelly Novaes Coelho, São Paulo (15-06-1990), CEDAE: HH.II.IV.7.1.00014.

71 pessoa doida, estive em 8 Bancas de arguição de teses (já pensou a carga de leitura atenta que isso exigiu, sendo que cada tese tinha por volta de 300 páginas?) dei cursos extra- curriculares, fiz três viagens para cursos ou congressos, etc., etc. sendo que no ambiente familiar estou com o Carlos doente (o enfizema pulmonar está evoluindo como é natural), uma criança de 6 anos pendurada em mim e uma adolescente de 30 anos que termina agora a Faculdade de Psicologia… Pode? Pois é, querida… tudo isso fez com que os amigos ficassem marginalizados de minhas atividades. Não tenho ido a nenhum lançamento, nem homenagens, nem almoços ou jantares… Nesse rolo todo, surge o seu livro e numa noite, em que eu terminei com o bendito compromisso com arguição de tese às 19,30 e… totalmente “podre” de cansaço. Queria ter-lhe escrito logo, mas o rolo compressor dos compromissos não permitiu […] Tudo isso aí em cima, numa salgalhada só, para lhe dizer que não estou deliberadamente entre os que silenciaram criticamente porque não estão de acordo com o caminho que você escolheu em total liberdade. Confesso que quando a Claudia Pacce me deu o volume (você não me mandou o livro…) comecei a lê-lo mais ou menos às 2 horas da manhã, depois de um dia estafadíssimo e só fui mais ou menos até a página 18 ou 20… Claro está que o seu talento criador enfrenta qualquer desafio e sua palavra é extremamente aliciante. Apenas fiquei triste, profundamente triste… não pelo que você escreveu, mas por saber que essas relações (excluída a transfiguração literária que lhes dá beleza tensa e chocante) serão, sem dúvida, muito mais frequentes do que pode imaginar “nossa vã fantasia” de gente bem- comportada. Foi isso que me chocou em sua leitura: a terrível experiência ou violência sexual a que são submetidas milhões de meninas e meninos por este mundo a fora. Isso é doloroso… muito doloroso, pois esse tipo de experiência, bem sabemos, é corrosivo, destrói a beleza ou grandeza interior do ser ou provoca a sua deterioração humana. / Não poderei agora ler o seu livro por inteiro… estou com dois livros para entregar com urgência para as editoras… mas vou lê-lo em tempo oportuno, para completar o estudo que estou escrevendo sobre sua obra, tendo em vista a publicação de um livro de crítica, ESCRITORAS BRASILEIRAS, que reunirá artigos ou ensaios sobre mulheres escritoras, e que publiquei ao longo destes 30 anos de crítica literária. / Vou selecionar ensaios sobre umas 30 escritoras, entre poetas e ficcionistas e terei um volume de umas 300 páginas. Talvez depois desse livro e outro, também selecionado entre o que foi publicado desde 1961, de ESCRITORES BRASILEIROS, eu possa ser incluída entre os “críticos de peso” mencionados por você em entrevista dada ao Jornal da Tarde - Caderno de Sábado em 4/3/89 (Anatol Rosenfeld, Antônio Cândido, Benedito Nunes, Léo Gilson Ribeiro).

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Menciono essa particularidade pessoal, só para você ter idéia de como nosso trabalho pode ser julgado de maneira deficiente (aos nossos olhos!). Com 30 anos de crítica literária, emprenhada em um conhecimento o mais possível profundo acerca do que os escritores contemporâneos vêm produzindo e como estão dando continuidade à literatura em língua portuguesa, ainda não pertenço, oficialmente, ao rol dos “críticos de peso”… nem por uma amiga querida que, sei que respeita o meu trabalho, mas “oficialmente” segundo o que foi dito na entrevista acima, o considera “bonito”. Ou textualmente, “ No Brasil a Nelly Novaes Coelho fez uma abordagem bonita sobre o meu livro Qadós, mas dos críticos de peso, tirando o Anatol Rosenfeld e você (Léo), quem mais, cultíssimo, de peso, escreveu sobre mim?” / Ai, a luta com as palavras! Como dizem o que por vezes não estávamos pensando quando o dissemos… Mas já há muitos anos deixei de me sentir atingida por tais comparações… pode crer. Naquele momento, quando li tua declaração apenas fiquei triste e um pouco desalentada, por ter sido rotulado de “bonito” o que escrevi sobre tua obra que é, já o disse mil vezes, das coisas mais importantes que já foram feitas dentro da Literatura Brasileira. Agora, é evidente que não tenho o peso dos citados… / A matéria densa e fecunda com que amalgamas tua escritura só com o tempo vai ser realmente desvendada… para seres agora vendida como qualquer best-seller, só por obra de algum investimento de peso, com milhões de cruzeiros e uma verdadeira máquina de propaganda, como a que sustenta todos esses livros de sucesso que se tornam presença obrigatória nas mãos das pessoas de bem, que não querem passar por analfabetas… compram, mas não lêm… ou se lêm, não entendem… / É isso aí, querida Hilda. Meu silêncio tem sido por total sobrecarga de trabalho e responsabilidades mil… quero mudar o ritmo de minha vida, mas está difícil. Às vezes tenho vontade de pegar a mala e me mandar para qualquer das Universidades que na Europa e nos Estados Unidos me têm convidado para ir lecionar… mas há a família! / Aí, meu Deus… quando poderei dispor livremente de minha vontade? É curioso, rodeada de tanta gente, sinto que meu trabalho está se realizando em absoluta solidão… não tenho com quem dialogar acerca de minhas paixões literárias ou minhas idiossincrasias… você tem-se queixado dessa solidão, mas cheguei à conclusão de que ela é o fator irredutível de todo processo criador autêntico. Você é um dos elos fortes dessa misteriosa corrente de energia criadora que desde o princípio dos tempos vem dando grandeza, significação e beleza à vida que todos estamos condenados a viver, sem realmente sabermos porque. Mas um dia o saberemos, tenho certeza! Se não fosse a Arte e principalmente a Literatura, não passaríamos de pobre “cadáveres adiados” como disse o genial Fernando Pessoa, aquele que viveu em solidão

73 e teve a genialidade de saber esperar pela posterioridade que o iria consagrar. E realmente incrível essa faceta de FP… como podia ter tanta certeza do futuro? A ponto de ter deixado tudo organizado para as publicações que começariam após sua morte? Só mesmo um gênio… E você o é também… gênios não são para convívio sereno com os demais mortais… Que tudo seja luz dentro de você.

Da admiradora e amiga.

Nelly Novaes Coelho

Em tempo: Já votei em você para “Intelectual do ano” / Vamos Torcer!

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5) PENSO O QUE VOCÊ ESCREVE

Campinas, 29 abril de 1994

Querida amiga Hilda64:

Sim, tomo a liberdade de chamá-la de amiga pelo que você pensa e escreve e acredito eu, a maioria de todos nós pensamos. Sou uma dona de casa comum, mãe de duas filhas casadas, um filho solteiro e avó de três meninos. Eu como você estou estarrecida, meu coração está prestes a sair pela boca e me sufocar, ao ver o meu País tão aviltado e nosso povo tão atrozmente sendo esquartejado. / Amiga, eu queria ser iluminada por Deus para ter uma idéia, fazer alguma coisa, que direta ou indiretamente, ajudasse a mudar este cáos que fora nos faz saltar os olhos da cara. / Hilda, pelo que li a seu respeito, eu, afortunadamente sou sua conterrânea, isto é nascemos na cidade de Jaú, isto me faz lisonjeada. Este parágrafo acho eu, deveria ser o 3º não repare nem na falta de acentos e excesso de vírgulas. /Acho você fantástica, não me canso de ler sua entrevista em nov’93 na revista…, que por acaso no cabeleireiro comecei a desfolhar, e até trouxe a revista comigo. Hilda, talvez ainda a gente se cruze por aí, aceite meu respeito, minha admiração e meu abraço amigo. / de Carmen Joana Pestana

64 Carmen Joana Pestana, Campinas (29-04-1994), CEDAE: HH.II.V.1. 00136.

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6) “PORNOGRAFIA” DEVORA O KARMA

Ribeirão Preto, 21 de março de 8965

Prezada Hilda Hilst, saúde e paz.

Sou pai de Zula, esposa do Joel Salles Giglio. Mas também ela se orgulha de ser minha filha. Fomos apresentados pelo casal, na UNICAMP, quando daqueles encontros sobre criatividade. O motivo da apresentação, se não houvessem outros, foi a história da gravação de “vozes”, etc. lembra-se?... Depois, “brigamos” porque você insistiu, no encontro seguinte, em que para haver criatividade é preciso haver conflitos, e etc. Pois bem, pela boa impressão que tive de você como material humano, pelas referências tão calorosas de Zula sobre a sua poesia, – enfim, pelo seu talento inegável, animo-me a esta carta. / Li, estarrecido, em “O Diário”, desta cidade, que Hilda Hilst vai se dedicar agora a escrever pornografia. Tive que ler de novo. Mas estava ali, escrito e gritante. Então me contive até aqui para escrever-lhe sem outro calor que não seja o da cooperação e de um relacionamento tão bem começado. Escrever-lhe para um apelo sentido: não faça isso. / Reiteram os Espíritos, entre eles o querido e sábio Emmanuel, que somos responsáveis pelas imagens que criarmos na mente alheia. Responsáveis, que dizer compulsoriamente responsabilizados, se me entende. Humberto de Campos, nos últimos anos, nas dores da sua trincheira de sacos de água quente, teve que lançar dois contos-galantes (um eufemismo?) para conseguir o pão da família. E muito posteriormente, já no grande além, em vários lances contou-nos da vergonha que passou ante as autoridades do Plano Espiritual e do quanto aquilo tudo estava pesando no seu “karma”. Emmanuel desce a detalhes: pede-nos que, mesmo escrevendo arte salutar ou páginas edificantes, preservemos pelo menos o que ele chama de “asseio verbal”. Hilda Hilst, poetisa de rara sensibilidade, mulher inteligente, criatura de bem,– não faça isso. Não faça da sua pena de ouro mais um terminal de esgoto emporcalhando a mente humana, já de si tão vilipendiada. Posso fazer-lhe este apelo?... Jesus ilumine o seu espírito.

Ex- corde

J.B. Garcia

65 J. B. Garcia, “sem título” s.d., CEDAE: HH. II. IV. 7. 1. 00010, p. 54.

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7) CFA DENUNCIA HOMOFOBIA

P. Alegre, 13 de dezembro66. Querida Hilda, sei que vais ficar surpreendida ao ver o “Pôrto Alegre”. Pois é, voltei. […] Minha vida ficou muito complicada […] Decidi aceitar meu ser nômade, até segunda ordem. Estou bem, queria te escrever há várias semanas, mas no Rio não havia mesmo tempo […]. É difícil te escrever depois do que aconteceu. Acho que a gente não pode fingir que não aconteceu nada. Seria besteira. Precisávamos falar lentamente a respeito de tudo o que aconteceu, por carta é muito difícil, e eu não voltarei mais à fazenda- portanto fica quase impossível dizer tudo como eu queria dizer. Depois das nossas brigas, compreendi uma porção de coisas. Compreendi, por exemplo, que eu estava mitificando e mistificando você; que estava também me anulando perto de você; que estava aceitando tudo o que vinha de você somente por achar você bacana. Longe de você, pensei por mim, analisei por mim, concluí por mim. Nós não estávamos nos comunicando mais. Um pouco por culpa minha, é certo, mas só um pouco. Tu não estavas me respeitando, humanamente. Não é agressão, Hildinha, é verdade. Tu não estavas me vendo como aquilo que sou, mas como aquilo que querias que eu fôsse. Ora, a versão idealizada do Caio vezenquando se rompia e deixava escapar coisas que eram do Caio mesmo, o Caio-gente, o Caio- confuso, o Caio- angustiado que sempre fui e que continuarei sendo até não sei quando. E não aceitavas essa segunda face (que na verdade era a primeira, a única). Daí, os choques. […] Eu estou me confundindo e não-dizendo aquilo que queria dizer. O importante, o irreversível, o definitivo, o claro nessa estória toda é que eu gosto muito de ti. Muito mesmo. Não adoro nem venero, mas gosto na medida sadia e humana em que uma pessoa pode gostar de outra. O resto é detalhe. Ainda que tu não me escrevas nunca mais, e que a gente nunca mais se encontre, eu continuarei gostando, sabes? / O que eu queria que entendesses é que sou uma pessoa. Com certa inteligência, certa cultura, certa sensibilidade. E certas idéias (que não te agradam). Mudei muito, e não preciso que acreditem na minha mudança para que eu tenha mudado. Essa modificação vinha se processando sem que eu mesmo percebesse e, com determinadas leituras e determinadas vivências, ela se consumou. / Depois de um paroxismo de compreensão, entre duas pessoas só pode começar uma lenta incompreensão, não é mesmo? Foi o que aconteceu conosco [sic]. Regredimos em comunicabilidade, porque não era mais possível avançar.

66 Caio Fernando Abreu, Porto Alegre (13-12-1969), CEDAE: HH. I. 2. 00050.

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Quando a gente se abre demais, o outro vê o fundo. E o fundo é quase sempre escuro e assusta. / Gozando. Pela primeira vez, sinto que estou escrevendo para uma amiga, uma pessoa no mesmo plano que eu – e não um monstro sagrado. É bom. Para mim, pelo menos. / Como estou falando claro, Hildinha, vou falar mais claro ainda: tu me pediste que eu escrevesse uma carta muito terna para o Dante. Eu não posso fazer isso. Não que sinta raiva dêle, não que o despreze, absolutamente, não se trata disso. Desculpo as coisas (horríveis) que êle me disse aquela noite, desculpo nêle, entende? O que não desculpo é que, dizendo aquilo, o Dante de repente revelou-se um puro exemplar de uma sociedade sórdida e intolerante, moralista e decadente. Preste atenção: eu não estou chamando o Dante de sórdido, intolerante, moralista e decadente. Estou chamando a sociedade disso. A sociedade em que eu fui criado, em que tu foste criada, em que êle e todo mundo foi criado. Apenas, Hilda, eu (e tu também) tive a coragem, o peito […] de romper com essas podridões e aceitar em mim um tipo de amor, um tipo de necessidade e de afeto, e mesmo de vida, contrários às normas usuais. Eu estou consciente dos porquês disso, das responsabilidades disso, de tudo. Eu estou SOBRE a sociedade; o Dante, dizendo aquilo, revelou-se DENTRO dessa coisa nojenta, dominado por preconceitos, por tabus. Mas compreendo: êle não tem condições de libertar-se, êle não sabe o que significa isso. Êle é simples, sem angústias, sem neuroses. Deve ser bom ser como êle. Mas no momento em que êle me chamava de veado e de doente, quem estava tentando me agredir não era êle, mas uma sociedade burguesa e nauseante que não tem o direito de me fazer críticas porque sou superior a ela, porque ela não tem condições de me julgar, nem condições nem direito, nem nada. Foi uma violência absurda, grossa e grotesca, deplorável, ridícula, nojenta. Eu estou contra isso. E não estou sózinho. Eu aceito e gosto imensamente do Dante como ser humano; mas detesto como ser social – compreendes? Escrever para êle seria curvar-me para essa coisa que eu e um punhado de gente estamos tentando derrubar. Não esqueças que José Vicente é homossexual, que Antônio Bivar, Isabel Câmara, Samuel Rawet, Nélida Piñon – que todas essas pessoas que estão tentando fazer alguma coisa na merda dêsse país são homossexuais. Não é apologia, é a verdade. /A única pessoas a quem devo dar satisfações é a mim próprio e, dentro de certas limitações, eu me sinto relativamente cumprido com o que fiz de mim mesmo. Entenda isso. E me escreva, se achar que vale à pena. Entenda principalmente o que o Dante não entenderia. Um abraço a êle. Teu,

Caio

PS. Feliz 1970

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8) CFA DEPRIMIDO POR CENSURA E DITADURA

Pôrto Alegre, 4 de março67.

Hildinha, acabo de receber a tua carta. A demora não me surpreendeu: eu sabia que devias estar muito abatida com a morte de Lupe. Eu próprio fiquei muito chocado, não sabia que ela estava doente. Aliás, aconteceu uma coisa mais ou menos estranha antes de eu saber que ela havia morrido: uma noite, conversando com um amigo meu, sem motivo aparente, comecei a falar sôbre ela, que era muito amiga tua e de Lygia, bom poeta, muito bonita, etc. Fiquei horas falando, quando voltava para casa comprei o jornal e lá estava a notícia. Senti como nunca a precariedade da existência humana. Ela estava aí, escrevendo, ganhando prêmios – e de repente já não está mais. Não consigo aceitar nem compreender isso; não consigo sobretudo deixar de pensar que a mesma coisa pode acontecer daqui a pouco comigo ou contigo. /As coisas não andam boas. Parece que quando tudo começa a degringolar, não há nada o que segure. Primeiro no plano político: porcaria do Ministério sobre censura de livros me deixou besta. Não pensei que chegássemos a tanto, é a degradação completa, o medievalismo e a inquisição reinstaurados. A seguir, a perseguição dos hippies, como se fôssem criminosos ou cães hidrófobos. Cada dia, quando abro o jornal, tenho um nôvo choque e uma revolta que se acumula e, logo após, uma terrível sensação de inutilidade. […] Pôrto Alegre sempre foi uma cidade nazista, cheia de grupos de defesa familiar e coisas no gênero: tudo isso repercute aqui da maneira mais alvissareira (do ponto de vista dêles) possível. Os lugares onde eu costumo ir, bares onde se reúne gente de teatro e outros desgraçados, estão cheios de espiões – não se tem a menor segurança para falar sobre qualquer assunto menos “familiar”. […]. Quanto ao livro, não soube nada. Creio que vou ter mesmo que pagar a edição – mas me revolta a idéia de ter que submeter os originais à censura, obviamente grossa e sem condições para julgar sequer J.G. de Araújo Jorge. Para aproveitar os dias de cama, tenho lido bastante. […]. Recebi uma cartinha da Myriam Campello, escrita em Teresópolis, da casa da Nélida. Estão ambas revoltadas com a censura, embora eu ache que a Nélida não tem nada a temer. Pergunta por ti na carta, gosta muito de ti. […]. Sabe, não quero te desanimar nem nada, mas acho que as tuas novelas não passarão na censura – pelo menos o “Osmo”. Nas outras novelas, as coisas tôdas são menos evidentes e a censura-teresinha não é inteligente ao ponto de descobrir essa outra dimensão. No “Osmo” as intenções agressivas

67 Caio Fernando Abreu (4-03-1970), CEDAE: HH.I. 2. 00066.

78 e desmistificadoras se expressam a partir da própria linguagem, isto é, qualquer um percebe. Até a censura. Se isso que estou prevendo acontecer, por favor, Hildinha, não te abaixa, não faz correções no texto, não corta os palavrões. Espera que tudo mude, ainda que isso não aconteça antes de 20 anos. Eu estou confuso, achando que submeter originais à censura é compactuar com ela. Fico pensando se não seria melhor todo mundo desistir de publicar coisas, guardar os seus calamaçozinhos nas gavetas. Acho que qualquer publicação “liberada pela censura” será, apriori, considerada como a favor do regime. Horrível, não? Não seria esta a hora exata dos escritores se reunirem e tomarem uma posição rígida e irreversível? O problema é que não existe classe mais calhorda, mais desunida – dêsse ponto de vista, a pessoa de teatro é bem melhor, talvez porque o próprio teatro seja coisa de equipe, não sei. À nossa antologia, que sairia em março, não sei como está: será doloroso se fôr trancada, pois a gráfica está quase concluindo o serviço; por outro lado, será igualmente horrendo se fôr liberada – o que pressupõe que será inócua e não – pervertedora dos costumes e da moral da tradicional família. Por aí tu vês como estou confuso, o meu consolo (nem tanto) é que suponho que todo mundo deve estar na mesma. […]. Com essa maré tôda contra, não tenho escrito absolutamente nada. É terrível. Tu sabes como é, a gente fica pensando aquela porção de coisas destrutivas, que nunca mais vai conseguir, que secou completamente, etc. Tenho algumas idéias, várias anotações, tudo meio caótico e super- desorganizado – mas acho tudo pálido, tudo insuficiente e inútil nêsse momento que a gente está vivendo. Ando me sentindo ex- escritor, ex- amigo de qualquer pessoa, ex- gente- me lembro sempre daqueles teus versos (teu livro está sempre na minha cabeceira, sempre leio coisas antes de dormir, às vezes gravo, outro dia eu e um amigo fizemos um recital inteiro dos teus poemas, a boneca terminou em prantos): “Iniciei mil vêzes o diálogo. Não há jeito. Tenho me fatigado tanto todos os dias vestindo, despindo e arrastando amor, infância, sóis e sombras”. A verdade é que não me sinto capaz de nada. Não é fossa. Fossa dá idéia de uma coisa subjetiva e narcisista. São motivos bem concretos, que inclusive transcendem o plano pessoal. E tudo tão insolúvel que a gente só pode fugir, porque ficar não adianta nada. A minha maneira de fugir, tu sabes, é dormindo. Andei dormindo até quinze horas por dia, durante quase duas semanas. Nos contatos que tenho com gente da minha geração ou de outras, mas unidos pela mesma lucidez percebo de maneira intensa a mesma sensação de abandono e inutilidade. Sobretudo de impotência. O consumo de drogas como meio (ótimo) de alienação e como meio (falso) de libertação é uma coisa incrível, assustadora mesmo. A maconha rola em Pôrto Alegre, as “picadas” também, agora descobriram mescalina em

79

Sta. Catarina e uns conhecidos meus, pintores, estão fazendo tráficos e vendendo para tôda a “classe artística” de PA. E o mais assustador nessa estória de drogas é que são consumidas justamente pela parte mais esclarecida da população, pelos que poderiam fazer alguma coisa. Os outros, as camadas mais baixas, têm a televisão, as novelas, as revistinhas de amor. Eu tenho o sono, talvez a fuga mais saudável, se bem que igualmente desesperadora. / Sei que vais te preocupar com esta carta, mas eu não poderia escrevê-la de outra maneira. Se essas coisas não são boas de serem lidas, não são também boas de serem escritas. A verdade é que tudo está muito duro para todos nós. E a verdade ainda mais insuportável é que somos justamente nós os culpados: a situação não teria ficado assim se esse rebotalho humano oficialmente conhecido como “povo brasileiro” não tivesse permitido, desde o inicio. Sabes qual é a imagem que me vem à mente quanto penso nisso tudo? É assim: O Fascismo, um sujeito enorme, peludão, gênero estivador, botando na bunda do Povo Brasileiro, um sujeito magro, pálido, subdesenvolvido preguiçoso como Macunaíma. No começo o Povo Brasileiro deixa, por preguiça, só um pouquinho não faz mal, por mêdo de levar porrada e, mesmo, no começo não dói muto. Mas acontece que o Fascismo tem um SENHOR pau, e não se contenta em botar um pouquinho, quer empurrar tudo. E vai empurrando cada vez mais. O Povo Brasileiro começa a se sentir incomodado, pensa vagamente em reclamar, mas conclui que, afinal, homossexualismo é uma coisa válida e se tanto suportam (pensa rapidamente no seu amigo Povo Espanhol, que virou bicha louca) êle pode também suportar. Aí, de repente, o Fascismo empurrou tanto que não é mais possível tirar. Ficou entalado. E goza trezentas e quarenta e cinco vêzes seguidas enquanto o Povo Brasileiro morre de hemorragia anal.

The end.

É só, Hildinha, não sei quando mandarei (a carta) porque não posso sair de casa. Carinhos mil para o Dante, para Edina e A casa, para todos os cachorrelhos, Papéti, Maria prêta e demais dependentes. Todo o carinho do sempre teu.

Caio

80

9) JUVENAL NETO COMENTA A SUA CRÍTICA

SP, 3 de Março de 198168

Prezada Hilda

Com pretensão de escrever um artigo sobre sua obra para complementar a excelente entrevista que aos poucos estamos dando forma escrita definitiva, reli quase toda sua ficção nestes últimos dias: além da antologia de poemas, reli “Fluxo- Floema”, “Qadós”, “Tu Não Te Moves De Ti” e “Pequenos Discursos. E Um Grande”. / Uma coisa é escrever um ensaio sobre sua poesia que, apesar de toda força e complexidade não escapa de certas formas tradicionais e que, apesar de também ser um desafio à crítica, não transcende a própria crítica e que, embora a torne difícil, ainda chega a ser viável, digo, a crítica no sentido tradicional: serena, historiografada, ponderada. Outra coisa, bém diferente, desafio muito maior e tarefa infinitamente mais difícil é tentar criticar sua obra “em prosa” (já que se tem que definir). Isto porque ela transcende não só o espaço da crítica, como obriga a transfigurá-la enquanto função impossível fazer juz a tão ousada obra em linguagem pausada, didática ou cordata. Sem ímpeto de transcender a palavra e sem armar-se de intensidade é diminuir o impacto e, mesmo, o sentido de sua obra “em prosa”. Uma crítica impetuosa e quase embriagada, creio, é a única que correrá o risco de cometer equívocos menores e menor número de equívocos em aceitar o desafio de criticá-la. Já tentei, o menor número de equívocos em aceirar o desafio de criticá-la. Já tentei, e está difícil. Começo a escrever o ensaio, depois releio e vejo que não atinge, que está muito devagar. Começo de novo, por outros meios, e a coisa de repete. Confesso que só não desisto por teimosia. Talvez ela não comporte critica, eu a única critica pertinente seja a que apenas divulga a própria obra, só ela mesma poderá dizer de si com coerência e sem trair o impacto. Claro que é possível dizer o que outros ótimos críticos já disseram, no timbro em que disseram, mas seria repetir o já dito, pouco acrescentaria e talvez não fosse útil. No entanto, continuo tentando até atingir um ponto que não diste muito de pertinente. Agora entendo com muita mais clareza porque sua obra intimida e aterroriza tanto os acadêmicos. É um verdadeiro “xeque-mate” na crítica, na mesma crítica tradicional. E não é bajulação não. Não sou disso. Pelo contrário. Os acadêmicos que o digam… […] Um forte abraço do seu admirador

Juvenal Neto […]69

68 Juvenal Neto, São Paulo (3-03-1981), CEDAE: HH. II. I. 2. 0006. 69 Seguidamente, o autor apresenta a sua última produção poética.

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10) CARTA DE UM ADMIRADOR

Caríssima, venho procurando-te há mais ou menos dois anos desde a Obscena Senhora D., 70 onde é genial a idéia de uma mulher derrelir da própria vida para procurar a essência, o centro, como voce [sic] o disse em entrevista ao jornal Leia n. 99. Daí em diante não cessei de procurar-te, em Fluxo- Floema, Quadós, Poemas Malditos Gozosos e Devotos, Da Morte: Odes Mínimas e Sobre a Tua Grande Face, sempre rondando as espirais em busca de um centro quase imperceptível, quase inexistente para nós humanos, que ainda trazemos certos resquícios de irracionalidade. Às vezes penso se não seria melhor sermos como os vegetais, levando vida límpida, sem vaidades, sem excessos, sem procura, porque me parece, eles já encontraram. / Através de sua prosa especulativa usando cenas do cotidiano pequeno e medíocre, do nosso não pensar, do levar a vida pelo que se ouviu dizer, voce[sic] coloca em xeque toda a nossa moral, nossa ética e sentimentos religiosos. Fazendo-nos ver o quanto poderíamos pensar, o quanto poderíamos produzir para melhor vibrarmos esta matéria agregada que chamamos de corpo. Sua leitura me abriu o caminho a idéia claras e técnicas sobre a vida e suas frequências. Como já te disse, você [sic] escreve as verdadeiras orações, despe este Deus a que cultuamos de sua capa supersticiosa, de sua capa de todo poderoso protetor da vida aqui na terra. / Pelos poucos contatos que já tive com voce[sic], através de duas entrevistas, a do jornal Leia e uma longínqua dada a uma revista feminina na década de 70, e também pelos livros que já li teus, Qadós principalmente (aliás voce[sic] mesma me disse ser Qadós, escrito de uma outra maneira, o nome de um iniciado), acho-te uma mulher que pensa sobre cabala, exoterismo, alquimia, filosofia. Às vezes fico imprecionado[sic] com certos sígnos usados por vós e intuo sobre este aspécto científico de sua vida. Se toco nestes assuntos, sobre estas ciências, é porque muito me interessam. Tenho grande vontade de conhece- los profundamente, pois o que chega até mim, são idéias vagas, quase sempre crendices; somente uma vez peguei um livro sobre cabala e ele continha matemática pura. Sei também que voce[sic] tem receios quanto as idéias qua as pessoas fazem a respeito destes assuntos. Mas as idéias em geral, do povo, são apenas de superstições, bruxarias, etc. Me é muito difícil encontrar boas leituras, mesmo pessoas que tragam boas informações. […] Me parece também, que estas suas preocupações são devido à sua procura nas raízes das ciências, da filosofia e da história, através da leitura de filósofos antigos, de publicações científicas feitas durante a Idade Média (primeiros astrônomos), etc. E de repente

70 Alfredo Ricardo Abdalla, Novo Horizonte, SP (27-02-1987), CEDAE: HH. II. I. 2. 00010.

82 voce[sic] salta para a cibernética e outras ciências mais futuras que presentes, Ler o que voce[sic] escreve é um grande desafio, é um grande mergulho profundo no que é realmente ser e estar neste mundo. Desculpe-me se ainda não me apresentei, é que tinha grande necessidade e ansiedade de dizer-te o que já escrevi, por tanto esta carta não poderia sair de outra maneira. Desculpe-te também se pensei algo errado sobre sua vida ou se muito procurei saber sobre o que não é da minha conta, mas são idéias concebidas a partir do que voce[sic] escreve ou se muito fantasiei. Há dias que venho procurando uma forma exata, um linguajar perfeito, que mostrasse o quanto levo a sério tua obra e que ela me faz pensar sobre as coisas deste mundo. Me chamo Alfredo Ricardo Abdalla, tenho 22 anos, e tranquei minha matrícula na PUC de São Paulo, no curso de administração. Não suporto os administradores. Esto te escrevendo esta, da região centro- oeste do estado de São paulo[sic]. Mais precisamente da cidade de Novo Horizonte, onde resido […]71 rua São Sebastião n. 313. Também tenho residência em São Paulo. Sou aquele que te abordou na noite em que voce[sic] autografava com Meus Olhos de Cão e Outras Novelas e que lhe telefonou e mês passado. Trabalho também, o que me impede de ser assíduo em minhas leituras e estudos.

Na mais inibição espontaneidade, mas tentei…

Ricardo / Novo Horizonte 27/2/1987

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11) BILHETE ANEXO À TESE: A ESCRITURA DELIRANTE EM HH

Querida Hilda72

Espero que o produto de 5 anos de estudo seja merecedor de uma leitura e avaliação sua as quais aguardarei com ansiedade. Peço o devido sigilo, visto que só farei a defesa da tese no dia 17/11/93. Ficaria muito contente se me telefonasse (pode ser a cobrar); acho que seu telefone deve ter mudado, pois liguei algumas vezes e não consegui. Sou aquela professora do Renascença, onde você deu uma palestra em 1986, na ocasião […] da Senhora D. […]73

Um beijo Clara.

71 Omite-se morada por razões de privacidade. 72 Clara Silveira Machado, s.d.., CEDAE: HH. II. I. 2. 00015. 73 Dados pessoais e contactos.

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12) NÃO ME MOVO DE TI

Aplaco a saudade de ti. Por onde? 74

Pelo resgate. Da memória e da fundura. De tua fundura. Perdões se eu for mundano ou simplista. Devasso ou incauto. Mas delicio-me em tua catarse. Nas obscenidades vívidas de Senhora D. Hillé Hilda. Não distinguo personna [sic] e pessoa. Inclusive a personna [sic] aceptiva de Hille. É você. No seu mais exposto ser. Tua palavra. A vertigem da palavra. Que nos provoca a febre insana do nos sentir. Humanos. E o Outro. Ele no céu e nós imersos em nossa miséria. “que amor é esse que empurra a cabeça do outro na privada e deixa a salvo pela eternidade sua própria cabeça?” Por vezes nem sei se leio ou reouço. Rutilância. Tens carinho por esta palavra. Porque esta remete à tua obra. O outro sabia. Temor e Tremor. E é isto que provocas com teus chafurdos lúcidos. Tu unes os laços. Pontas da gestalt do etéreo. “causa mortis? acúmulo de perguntas de sua mulher Hillé.” Unes perfeita harmonia, sinonímia, causa mortis e causa viventis. Síntese plena de nosso “eu Nada, eu nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa”. E eu tantas vezes parvo. Tantas vezes iníquo. Na torpeza cotidiana. Preocupado com minimezas álgidas. Diagramação enche o saco. Ainda vou bombar. Preciso comê-la. Trepar com essa. Não, aquela. Comi, e daí? Heis a outra que passa. Dinheiro. Quero tomar aquele uísque. Aquele disco com Brecht e Well. Mário Covas. Lula lá. Antes esquerda equivocada do que direita reacionária. Mas heis que me lembro de ti. E volto a visitá-la. Hillé Hilda. E esqueço estas mundanidades. Tu és a coiteira da essência. Em ti esqueço- me do sem rumo nem prumo. Transcendo-me da aparência para a essência.

E não me movo de ti.

Pois em ti meu Ser voa liberto de sua miséria humana.

Com Amor – Ruth

74 Ruth, Uni Santos - Faculdade de Comunicação, s.d., CEDAE: HH.II.I.2.00011, p. 25.B.

84

13) QUERIA PODER ABRAÇAR VOCÊ

Santos, 21/04/9375

Hilda,

Hoje pensei tão forte em você… esse pensar que se faz no sentir, esse sentir que se transpõe no viver. E precisei rabiscar essa carta, mesmo sem um motivo certo. É só uma vontade de dentro… eu queria poder abraçar você, Hilda, aquele abraço abraçado de olhares que refletem as essências… /Agora é madrugada, estou com sono e as palavras se misturam enquanto as sinto e rabisco, rabisco… por isso sei que o momento para escrever é AGORA, enquanto SOU criança e minhas palavras livres… / Lê, Hilda, essas coisas que “pensei” sobre você” Pensei, com toda essa minha pretensão… É verdade, que às vezes, quase sempre eu sou muito pretensiosa. E também imatura, infantil e covarde (e outras coisas que você pode perceber ao ler). E hoje, quis contar a você essas coisas sobre mim, a você, Hilda, que tanto conhece do Humano que existe em nós (coitada de você). / Lembro, Hilda, a primeira vez que ouvi o seu nome. Minha mãe me mostrou uma foto sua: – Veja só essa escritora, parece tão inteligente e a gente nunca leu nada dela! / Era uma reportagem da Isto é… nem li a reportagem, a Foto foi suficiente para aumentar a confusão que já fazia de mim em mim.

…. É que eu vi você…

__Hilda__

sensibilidade exacerbada

lucidez exacerbada

refugiada de si em si

compreendendo as coisas

que não se compreendem

Vi, um alguém tão GRANDE

que tive medo, tanto medo

MEDO DE MIM

75 Letícia Paula, Santos, SP (21-04-1993), CEDAE: HH. II. 1. 2. 00014.

85

Medo de ser assim como Hilda

cansada, de olhos tão tristes

de tanto ver

vivendo a vida à EXAUSTÃO.

Pensei nos seus olhos cansados, tão tristes. Eles me perseguiam… Escrevi um poema, o meu primeiro (vai anexo, o poema, porque ele é seu) e nunca mais pensei em HH; de medo que ela viesse Hildear a minha vida e COMPLICAR O MEU COTIDIANO já tão complicado. Pois apesar de tão distante, só ao “existir-poeta” se fazia tão perto… / E passou um tempo em minha vida tão curta, ou será tão pequena? Pouco tempo, mas que na minha idade parece tanto. Queria andar, e por mais que andasse, não me movia… e quanto mais entendesse, menos entendia e tinha uma sede insaciável de vida!/ Ano passado entre em crise. Dessas, onde você se pensa tanto, se desmonta e REconstrói tantas vezes, uma após a outra, acabando Pior (ou será melhor?) do que nunca. Antes da crise, eu viajei, viagem longa… E lá fora, durante todo um ano, fui ao fundo de mim mesma e compreendi a minha vida TÃO estranha. Não, Hilda, a estranheza de minha vida eu sempre soube (antes mesmo de saber o que era saber)… acho que lá fora eu ASSUMI minha vida tão estranha. E uma necessidade se fez em mim, a de escrever… escrevendo assim como se respira – ato essencial de vivavidavivida – sem “pensar” na coisa escrita… um escrito assim sem forma… ESCRITO ESSÊNCIA… grito tão forte que só uns poucos conseguem ouvir. / […] Daí a crise… a escolha entre o SER e o Ter… que eu pensava já ter feito antes e descobri que teria que refazer muitas vezes, pois existia o ANTAGONISMO em mim e esse mesmo ANTAGONISMO me impelia… para frente, querendo sempre mais, mais dessa CONFUSÃO difícil que era eu mesmo e as pessoas, o mundo, a vida. Querendo sempre mais… e se escolhesse o TER, não seria assim tão complexo… seria SIMPLES – apenas “morreria sem saber que estava morrendo”. E joguei tudo o que já havia escrito fora, ao vento, Só sobram esse poema que estou enviando, e uns outros porque foram publicados numa coletânea de uma escola onde estudei. E achei que eu era uma droga…como o que eu escrevi. Morri uma morte sofrida. E nunca mais consegui brincar com as palavras… Fiquei assim tão triste, essa tristeza das entranhas de que é morto-vivo, sobrevivente…

Foi então, que eu ganhei um livro amarelinho, na contra capa

a FOTO

86

___H H___

os olhos cansados

tão tristes

me perseguindo novamente

VI

__HILDA__

Difícil

Complexa

Louca de tanta lucidez

Vendo – ouvindo – sentindo

! SENDO !

Amei você, Hilda. Amei – um amor tão forte – Hilda… complexa, Hilda… essência, me fazendo VIVA – sentindo – você me trouxe de volta… eu LETÌCIA que estava morta, adormecida… e me fez mais forte, pois de SER, não tenho mais medo. O indizível se fez em mim! / E quis ler mais. E saber mais sobre você. Procurei outros livros seus… não é fácil encontra-los. Na Biblioteca da Fac. de Letras, os poucos livros estão desaparecidos… faz um mês que eu vou lá todos os dia… Achei alguns poemas… Presságio, da Hilda ainda nova e um outro livro de 74 (Jubilo Memoria e Noviciado da Paixão). / Sei lá…

Não quero ficar rabiscando, rabiscando

Um aglomerado de elogios

aos seus poemas

eu os senti em mim

E só

Descobri que precisava de você

muito, muito…

da sua VOLÚPIA de viver

87

Sua loucura – curando minha sanidade

Sua solidão – diluindo a minha

Ah, sentimento egoísta esse meu, Hilda.

E quis ler mais. Achei o “Caderno Rosa de Lori Lamb”.

Quando comecei a ler, fiquei decepcionada. Que ridículo, pensei, uma pessoa tão inteligente, tão “MATURA” querendo “APARECER”, se tornar popular – Será que a Hilda cansou de ser Hilda? O que será que ela está tentando, tramando?

Depois, achei que todos os seus livros eram um desabafo. E aquele mais do que todos. Um desabafo, uma crítica, uma DESFORRA…

Então,

“Tristemente pensei nêsses teus olhos tão tristes

Os homens não mais te compreendem

A vida, tu mesma compreendeste muito”

Chorei, chorei bastante meu choro criança

Vi uma Hilda solitária

em crise, procurando aceitação

o que ela escrevia, vinha das suas entranhas

e não era reconhecido

porque era TÃO REAL

tão difícil de ser ACEITO

Vi uma Hilda Trancada

em seu refúgio

incompreendida

frágil – de tanto lutar

mas ainda assim forte

E vi também as pessoas

88

chamando-a

LOUCA

Mais LOUCA do que nunca

e Ela

querendo reverter a situação

Se expondo ao ridículo

SE MUTILANDO.

TU NÃO TE MOVES DE TI, Hilda, tu TAMBÉM nãotemovesdeti,

NÃO TE MOVES...

Acho, que “poucos” devem ter entendido alguma coisa de qualquer coisa que você escreveu. As pessoas tem medo do que é PROFUNDO.

O mundo de hoje, é um mundo de teleguiados - “Xoxetes” e Cia.

Até mesmo as suas tentativas de popularização, talvez principalmente elas não foram entendidas. E os homens sempre tiveram medo DO ENXERGAR, porque se sabem feios. E por isso eles morrem, Hilda. A toda hora morrem. Mas eu também acho que:

“Enquanto vive um poeta

O Homem está vivo.”

Ainda bem, que não deu certo essa sua tentativa de popularização. Eu sei, que você escreveu mais dois livros nessa fase, só que não li. Já pensou você BEST SELLER? Não seria mais você! E o pior, é que mesmo que lessem e vendesse muito, no fundo não entenderiam, e você ficaria MAIS FRUSTRADA ainda. NÃO É??? FRUSTRADA, apesar da desforra. / Fiquei com vontade de conhecer você, Hilda. De verdade, não só ficar imaginando o que eu ACHO que você sente, ficar tendo essa pretensão de entender um pouquinho, só um pouquinho do que você escreve. Só queria olhar nos seus olhos e conversar sobre a vida, o mundo, as coisas todas… porque eu tenho essa sede de PESSOAS – GENTE, vivas, que sentem… e elas são tão raras, tão raras… e eu sinto que você é uma delas. Você é RARA, Hilda! ÚNICA e por isso mesmo tão igual… Eu queria abraçar você como se abraça aos irmãos… e por isso, enquanto embriagada de sono,

89 rabisquei essa carta e nem vou relê-la, pois minha auto-crítica me impediria de enviá-la. Fico aqui, perplexa sempre, FELIZ porque você EXISTE!

Com carinho

muito… muito, Letícia

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14) DIFICULDADE DE PUBLICAR POESIA

Cara Hilda Hilst:76

Para quem gosta de poesia, foi desalentador ler a matéria que o Leo Gilson fez com você? Outro dia, li uma entrevista em Leia da Orides Fontella em que ela se confessa pobre, desiludida, sem um teto para morar. O estado dela, pela entrevista, é desesperador. / O seu caso, evidentemente, é diferente. Pois você é uma mulher com força, forte. Mas não deixa de ter razão em todas as suas críticas. Por que será que os brasileiros maltratam tanto seus inovadores? Lembra-se da Clarice Lispector só, doente, e isolada em seu próprio país no fim de vida? Uma Clarice roubada pelos editores […] Por que o Rosa encontrou logo seu prestigio enquanto a Clarice não teve o merecido respeito? Você fala da palavra mulher. Mas acho que há um outro lado: escritor no Brasil que tenha preocupações metafisicas/espirituais nunca é levado em conta. O que importa é a cor local, os regionalismos e três pomelos. / Pode ter certeza que admiro de coração a sua corajosa atitude de se isolar no mundo para se dedicar à criação. É um desejo que ainda não pude colocar em prática. Evidentemente, nós pretendemos (nós que escrevemos poesia) vendermos como um Rubem Fonseca ou Jorge Amado. Mas é a repercussão, o retorno, que ganhamos. / Veja você. Lancei um livro de poesia no ano passado (até lhe enviei um exemplar). Foi premiado pela APCA graças ao empenho de Nelly Novaes Coelho, e do Leo Gilson. Fora isso, não recebi uma linha de crítica dos grandes jornais. Estou eu mesmo tentando colocar o livro nas livrarias e quando falo que é poesia, os livreiros ficam arrepiados. Poesia não vende. Acho até que eles têm razão, porque com exceção de Bandeira, Drummond […]77 os livros de poesia embalaram nas prateleiras. / Desculpe estas divagações deselegantes, mas tudo isto é para dizer que para alguns, como eu, seus livros são luminosos. Iluminam-nos feito brasa quando lemos. Dão rasteira.

76 Donizete Galvão, Brasilia, s.d., CEDAE: HH.II.VII.1.00273, p.73. 77 É mencionado outro autor do qual não é legível o nome.

90

Fazem com que tenhamos vertigem. Você realmente merecia uma divulgação maior, merecia ter suas obras completas publicadas etc. Mas pense em escritores que como eu estão no primeiro livro. Precisamos de gente iluminando nossos escuros caminhos. Não sou um conhecedor profundo de sua obra, mas vejo nela uma parte enorme, um universo não imaginado. Saiba, portanto, que para algumas pessoas você tem muita importância. E seus 30 anos de refúgio não foram em vão. Onde que acadêmicos e outros não queiram nenhum, nós que amamos seu trabalho sabemos o valor que ele tem. Pena que admiradores como eu não podem ser de grande ajuda, pois não tenho bagagem cultural para analisar seu trabalho. Mas acho que você ainda vai encontrar seu grande crítico. / E já que você vai explorar o […] erótico, trabalho na revista Playboy, que publica contos. Quem sabe você não fature um pouco mais nesta linha. Outra coisa: procurei Amavisse na cultura e já não tinham mais. Bom sinal! Quem sabe as matérias sobre você não deem uma sacudida nas pessoas? / Perdoe meu atrevimento, meu estilo “pobre”, mas é uma carta isente de um impulso.

Um grande abraço

Donizete Galvão

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15) LA BELLE DAME SANS MERCI

São Paulo, maio de 9778

Muita amada Hilda:

Durante muito tempo tive vontade de conhecê-la. Lia seus livros em estado de absoluta perplexidade e devotamento. Conversando com o Leo Gilson Ribeiro ele me contava coisas absurdas sobre você e sua Casa do Sol. Cheguei a lhe escrever algumas cartas para prestar vassalagem, mas você, uma belle dame sans merci, jamais deu uma palavra de retorno. Uma pessoa com seu carisma deve atrair toda sorte de doidos. / Agora, tenho falado muito com o Fábio Weintraub, um amigo extraordinário e uma inteligência ímpar. É um achado encontrar pessoas como ele que juntam qualidade de afeto e brilho intelectual. Ele falou-me muito de você e acompanhei toda a edição do seu livro. Quando falei com ele do meu entusiasmo por María Zambrano, havia comprado um livro dela em sua mesa. / Fico contente que você tenha merecido primeira página na Ilustrada, resenha

78 Donizete Galvão, São Paulo (maio de 1997), CEDAE: HH. II. VII. I. 00442.

91 na Isto é, agora página dupla em Veja. Meu amigo, Floriano Martins, está fazendo resenha do seu livro para o jornal O povo em Fortaleza. Além de talentosa e chique, você continua bonita como se pode ver na foto publicada em Veja. / Acho que hoje já acalmei um pouco minha vontade de conhecê-la. Os mitos existem para isso mesmo. Para ficarem distantes de nós, enviando sua luz. Pensei muitas vezes em encontrar a Maria Bethânia e, hoje, se a encontrasse não saberia o que dizer. / Li seu último livro. Gostei sobretudo das oscilações entre o divino e o patético. O humor dá um tempero, uma pausa para a respiração. Os poemas são lindos e você nos dá um coice no coração. Espero que você venha no dia de sua apoteótica leitura. Deixe que as pessoas a homenageiem e estendam tapetes vermelhos. Você merece todas essas honrarias. /Como também sou um burro teimoso, volto a insistir e enviar mais um livro para você. Confie no Fábio que ele promete ser um editor excelente, Meu próximo livro A carne e o tempo, nome que tirei de Herberto Helder, deve sair pela Nankin. Começar com você é uma bela forma de abrir uma editora. Se eu não fosse um pé-rapado, que como dizia meu pai “vive cortando o cu na foice” devido a falta de grana, comprava uma fazendola ao seu lado e a lotaria de gatos que brigariam com seus cachorros e trocaríamos desaforos como bons vizinhos.

Abraços

Donizete Galvão […]79.

79 Seguem dados pessoais.

92

16) CARTA DE RICARDO DICKE

Cuiabá, 24 de outubro de 199080

Sacratíssima Hilda Hilst

Continuo com minhas cartas a que não respondereis. Li teu livro de Rose Lamby [sic] e gostei, me deu vontade de vingar-me também dos editores escrevendo algo tão estupefaciente como esse. Mas minhas safras são outras, minha coleção de escarneos, minha saga de espadas, minha saturnália de risos, meu arsenal de farpas. Estive todo essa tempo curvado sobre “O Salario dos Poetas”, que também pode ser chamado de “Toada do esquecido” ou “Quase sempre é de Tarde”, sei lá como vai se chamar esse riso avassalador contra os generais que confabulam a guerra e o Mal em todos os países da Terra. É a história de um general exilado aqui em Mato Grosso, que leva um tiro e fica agonizante, sem nunca morrer, para toda a Eternidade, conversando com os torturados e assassinados por ele mesmo em 40 anos de ditadura, seja no Paraguai, no Chile ou no Brasil, onde for. Estou com pressa de ler seus contos de escarneo [sic], devem ser contundentes. Li o seu conto no Nicolau, gostei tremendamente, acho que de agora em diante estou me influenciando por você. Antes era de Guimarães Rosa, mas depois me enjoiei dele. O Brasil atualmente está impraticável não? Não aguento mais escrever em português, esta língua horrível, esquecida pelo resto do mundo. […] Estou guardando dinheiro para me mandar para a Europa, onde pretendo não voltar nunca mais, escrever em espanhol ou em francês, sei lá, o que for, ou mesmo alemão, já que sou cidadão binatural de duas pátrias: a Alemanha e o Brasil. Imagine: um escritor em Cuiabá, perseguido pelas tropas do PDS daqui, eu que sou do AUR (Anarquismo Universal Religioso). Louco, rouco e mouco de tanto escrever neste idioma que me deixa louco rouco mouco, e que ninguém lê, a que nenhum editor paga, e afinal já tenho 30 anos de Literatura, não crês, querida Hilda? E depois pensar que havendo tantos astros por aí vim cair justamente neste ninho de baratas medíocres, eu com todo o que sou, deixar-me enganar pelos demiurgos que protelam minha viagem pelos outros mundos muito mais interessantes. Obrigado a ficar neste até que a morte nos enovele, obrigado a aguentar esta idiotice continua e gigante e gritante e medíocre, fundamentalmente medíocre para toda a Eternidade. Não, deve haver um jeito de safar-se daqui. E que editor corajoso o bastante para publicar esse libelo contra os generais me publicará e me pagará os direitos

80 Ricardo Guilherme Dicke, Cuiabá (24-10-1990), CEDAE: HH.II.VII.1.00297. p. 73.

93 autorais nesta terra de Herege Cruz? Todos me mostram o caminho contrário: no entanto só eu sei qual o meu caminho. Obrigado Hilda por tudo o que escreveste sobre mim. Digo no número especial de Veja, numa entrevista que fizeram comigo que és a maior poeta do Brasil, talvez do mundo. E espero as boas graças tuas, de Caio Fernando de Abreu e de Leo Gilson Ribeiro para publicar minhas coisinhas no Nicolau. Já me publicaram uma vez, mas agora diz o Wilson Bueno que vai ser se passarei por um tal crivo de jurados, será que sou tão decadente assim e sujeito a todos os jurados do mundo?

Um abraço formidando e cordialmente beijos

Ricardo Dicke :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

17) CARTA DE INÊS

Hilda Amiga Querida, Bom Dia!81

Aqui vão algumas cópias dos artigos fantásticos sobre Você e o “Estar sendo…” Fiquei com uma de cada para mim porque Adorei Todas! Seu humor é Precioso, sagaz, Brilhante e Divertidíssimo. O bordel geriátrico está uma delícia! /Quanto ao Eric Horet [sic.] e sua ladradura sobre a “sra D.” e “com meus olhos de cão”, me ocorreu que ele não entendeu nada e “descarregou” o grotesco, o raivoso e o odiento dele mesmo nas duas obras, certamente porque foi atingidíssimo com a imagem “espelhada” DELE, suína; e tem nada nada a ver com Você. A parte belíssima da Dor, da Derrelição, das Reflexões sobre as questões pungentes da Existência, o conteúdo profundo dos sentimento das personagens, ele nem percebeu. Há de ter pensado no “vão da escada” como um lugar físico mesmo, e não entendendo, se enraiveceu… Talvez que fosse bom ele ser vacinado com uma anti- rábica, descoberta pelo maravilhoso conterrâneo dêle, avêsso dele, [sic.] que saneava e curava ao invés de destruir e contaminar… Então Hilda, acho que se confirma aquilo que diz: a pessoa só vê o que ela é… O azar é dele mesmo. / O outro artigo, sobre o suicídio da Isabel Marie é trágico porque é uma tragédia terrível. Acho que há uns momentos na Vida, quando a DOR fica tão insuportável que a pessoa se suicida por não poder suportá- la, e não porque “busca” uma vida melhor. Eu penso que, se a morte acontecerá irremediavelmente um dia, porque iria eu apressar o que é definitivo. Então, aprendo a suportar a Dor Enlouquecedora que a vida tantas vezes é e me preparo para “cuspir-lhe na cara” … quando for mesmo irremediável! / Te amo muito / Beijos Inês.

81 Inês (?), s.d.,, CEDAE: HH.II.VII.1. 00447, p. 76

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18) O CADERNO ROSA DE HILDA HILST

DE: Jose Luís MORA FUENTES (…)82 / PARA: LENISE PINHEIRO Lenise, Eis a matéria sobre a Lori. Me pareceu importante tentar resguardar nossa querida criança dos possíveis ataques histérico- moralistas. […] Estou tentando contato com Jaguar, para ver possível publicação[…]. Abraços do Mora Fuentes.

O Caderno Rosa de Hilda Hilst Num Universo que sonha em se expandir infinitamente, ameaçando terminar, quiçá, num hediondo buraco negro, é surpreendente que um dos nossos maiores desconfortos ainda seja nossa própria Sexualidade. Pouco estamos distantes do mundo vitoriano que, em 1905, estremeceu diante das revelações de Freud, entre elas a perturbadora existência da sexualidade infantil. / Com “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, a poeta, dramaturga e ficcionista Hilda Hilst não apenas nos confronta com a evidência embaraçosa da realidade sexual, mas nos faz transitar por esse desconhecido espaço com a naturalidade e humor que caracterizam os grandes autores. / Na montagem teatral (que inaugurou o novo espaço cenográfico de São Paulo, N. Ex. T.- Núcleo Experimental de Teatro), a feliz junção da tríade Bete Coelho, Daniela Thomas e Iara Jamra transforma “O Caderno Rosa de Lori Lamby” num dos mais deliciosos, divertidos e importantes eventos cênicos da temporada paulista, O texto, cuja autora já descreveu como “uma divertida bandalheira”, é o volume inicial da sua Trilogia Erótica (os outros são “Contos d’Escárnio/Textos Grotescos” e “Cartas de um Sedutor”) e marca momento singular na sua ficção, que a partir daí abrangerá pungência maior, unindo o coloquial mais chulo com a poesia mais plena, para retratar com enorme fidelidade os descalabros e desassossegos da nossa condição humana. / Aos desatentos ou afoitos, ávidos por leituras superficiais, convém avisar possíveis sobressaltos no espetáculo. Afinal, Lori é uma menina de apenas oito anos (encarnada brilhantemente por Iara Jamra) dissertando fartamente, e muito à vontade, sobre aventuras sexuais. Que pese, a seu favor, tratarem-se apenas de fantasias, histórias que redige no seu caderninho rosa, na tentativa secreta de auxiliar o pai, escritor apicaçado pelas exigências editoriais, famintas dos textos fáceis e com apelo erótico evidente. / Mas, semelhante à criança da fábula que grita “O Rei está Nu”, Lori investe principalmente contra o engodo. Da sua ingenuidade nasce o poder de desmascarar a hipocrisia que

82 José Luís Mora Fuentes, “mail”,s.d., CEDAE: HH.II.IV.7.1.00029.

95 insiste em afastar da consciência nossa intrínseca realidade animal (leia-se pureza), o que inclui sexo. Querendo-nos à imagem e semelhança D’Aquele, jamais poderíamos ter tanta lascívia. E o mais escabroso, embora não tão evidente: sexo implica, biologicamente, na existência de uma organização celular. E células se desgastam, envelhecem e morrem. O desconforto sexual, sem dúvida, está arraigado à consciência de finitude. Isso talvez explique a tentativa inclemente de banalizar nossa sexualidade com danças da garrafa e afins. É uma idéia mais aterradora que tentamos ocultar. / Levar “Lori Lamby” ao palco exigiu, sem dúvida, grande disciplina de direção. Não era pouco o risco de invadir o grotesco ou o chocante. Bete Coelho consegue, muy dignamente e com maestria, conduzir o espetáculo, sabendo preservar o humor e a singeleza. / Da mesma forma, o despojamento criado por Daniela Thomas para o cenário (uma cama de grandes proporções, que algumas vezes sugere uma cela) permite a Iara Jamra o espaço e a desenvoltura necessários para a elaboração da personagem, distanciando-a léguas-luz dos fáceis estereótipos. / Se, na nossa espécie, sexo carrega também a estranha função de Identidade (Revelação) e, portanto, de Diferenciação, Lori Lamby simboliza um início. Sem medo de nós mesmos, das realidades naturais e características que carregamos também no nosso próprio corpo, talvez possamos iniciar um caminho de benéfico auto- conhecimento. / Resta-nos desejar vida longa ao espetáculo. E é claro, aos moralistas de plantão, deixar como lembrete o comentário de Multatuli, escritor holandês contemporâneo de Freud: É bom manter pura a fantasia das crianças. Mas, a pureza delas não será preservada pela ignorância.”

Entenda-se por criança o futuro adulto. E estamos conversados. MORA FUENTES

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19) CARTA DE FELICITAÇÃO

Campinas 03.12.92

Hilda Hilst! ADOREI a sua crônica no Correio Popular dia 30.12.92 no Caderno C! Dei umas boas gargalhadas. Quantas vezes não somos tentadas a fazer a mesma coisa, especialmente em companhia de esnobes? Um sonho meu é convidar um esnobe convencido para almoçar comigo – e levá-lo ao restaurante Municipal. / Uma semana atrás tentei achar seu telefone na lista, mas não consegui. Liguei para um “Hilst”, mas uma voz muito fria me informou que não sabia o seu número. Queria parabeniza-la pelo sucesso depois que começou a escrever pornografia. / GENTE ESQUISITA? / Tudo bem, confesso, não li seus livros, mas vou à Pontes agora e compro TODOS eles para ajudar a engordar a sua conta bancária mais um pouquinho.

Grande abraço e BOA SORTE!83

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20) GRATIFICAÇÃO DOS ARTISTAS

Hilda Hilst (Senhora)84

Obrigada por “Paixões e Mascaras”. / Ganhei o meu domingo. / Artistas são “Porta Vozes” do que sentimos e não conseguimos definir. São como a natureza que oferece pronto, flores, frutos para todos, inclusive para os que não se dão conta de tanta generosidade. São seres a quem coube uma tarefa “maior”. / Traduzir sentimentos. / A árvore não pode saborear o fruto que produz e o poeta talvez não possa se deliciar com o que escreveu. Mas sou tão feliz por poder ler. A leitura entra pelos meus olhos, sobe para minha cabeça, ativa memórias vividas, sabidas, invade meu coração e se esparrama pela minha barriga e me faz entrar em contato comigo mesma. Me transporta a todos os lugares e a descobrir que o que sinto e penso também é sentido por outros da minha espécie. Diminui a minha solidão, faz com que a chama da esperança me aqueça. Minha gratidão eterna aos poetas, músicos, pintores, escultores, etc. que dividem com os “comuns” os seus “bens”, e deixam de lado uma parte de suas vidas.

Ana Helena

83 Iris E. Dahlstrom, Campinas (03-12-1992), CEDAE: HH. II. V. 1 .00129. 84 Ana Helena, Campinas (23-01-1994), manuscrita, CEDAE: HH. II.V.1.00134.

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21) A SALVAÇÃO VEM POR MEIO DA FÉ

A Salvação vem por meio da Fé85

Algumas pessoas pensam que, para serem salvas, precisam fazer grandes sacrifícios físicos e espirituais. Mas a Bíblia nos afirma, através de muitos ensinamentos, que só uma coisa é necessária: a fé. Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu único Filho, para que todo aquele que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna. Deus aceita as pessoas por meio da fé que elas têm em Jesus Cristo. Ele faz isso a todos os que crêem, pois não há nenhuma diferença entre as pessoas. Pois todos pecaram e estão afastados da presença gloriosa de Deus. Mas Deus, pela sua graça e sem exigir nada, os aceita por meio de Cristo Jesus, que os salva. Deus ofereceu Cristo como sacrifício para que, pela sua morte na cruz, Cristo se tornasse o meio de as pessoas receberem o perdão dos pecados, pela fé nele. Deus fez isso para mostrar que ele é justo. No passado ele teve paciência e não levou em conta os pecados das pessoas; mas agora, para mostrar que é justo, ele ofereceu Cristo. Assim Deus é justo e aceita os que crêem em Jesus.

Jaão 3.16/ Romanos 3.22-26 - 2ª Igreja Batista de Sumaré86.

Cara escritora Hilda Hilst, foi com muita atenção que li várias vezes seu artigo no Correio Popular do dia 16-04-95, li, reli e não entendi, como uma pessoa inteligente esclarecida como a senhora, pode colocar em dúvida a veracidade da Bíblia que é a Palavra de Deus, se não fosse assim como a senhora explica que a Bíblia foi escrita a mais de 2.000 anos, foi o livro mais perseguido da face da terra, em vários lugares do mundo foram queimadas muitas vezes, milhares de Bíblias, e até hoje é o livro mais vendido, o mais lido no mundo inteiro. / O maior erro do homem é que ele acredita em tudo que ele vê na T.V., nos jornais, nas revistas, nos autores de livros e não acredita na Bíblia, que foi escrita por homens, mais homens inspirados por Deus, porque se Deus não usasse homens para fazer a sua obra aqui na terra, quem ele iria usar?

Por mais que os homens sábios da terra, queiram colocar em dúvida a divindade do Jesus Cristo, todos os dias eles admitem isso, por que a história da terra se divide em duas partes, antes e depois de Cristo, se Jesus não fais87 diferença.

85 Igreja Evangélica, “A salvação vem por meio da fé”, Sumaré (19-04-1995), CEDAE: HH. II. V. 1.00138. 86 Texto de um folheto de proselitismo evangélico. 87 Faz.

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A Bíblia diz que há dois caminhos o céu e o inferno e só há uma maneira de ir para o céu, e através de Jesus Cristo, aceitando o sacrifício que ele fez por nós, a diferença que Jesus fais é a seguinte, se a senhora foi ao túmulo de Buda, lá está escrito assim: aqui jaz buda, no túmulo de Alan Kardeck, de Maomé e tantos outros fundadores de religiões morreram, mas no túmulo de Jesus Cristo está escrito assim: ele não esta aqui, ele ressuscitou nossa fé esta baseada na ressurreição de Jesus nos milagres que ele feis, e continua fazendo no meio de quem crê. Temos casos de lares desfeitos, que Jesus restaurou, casos de cancer que Jesus curou e Jesus continua transformando vidas e curando até hoje.

A senhora com certeza deve ter uma Bíblia em sua casa, vou lhe dar alguns versículos bíblicos para a senhora conferir e meditar. Leia S. João 3: versículo 16- S. João capitulo 3 versículo 36, S. João 3: versículo 27- S. João 6 versículo 47. […]88

Poderia escrever vários, mas estão alguns, que poderão te ajudar a esclarecer, a dúvida que há na senhora uma coisa a senhora pode ter certeza, a Bíblia é a Palavra de Deus e ela nos garante há dois caminhos, o céu e o inferno, a decisão é nossa nós é que escolhemos, e para chegarmos até o céu, só há um caminho. Só Jesus Cristo sabe.

Que Deus à abençoe e abra sua mente, para entender a palavra de Deus

Procure uma igreja evangélica.

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88 Foram omitidos os muitos versículos elencados.

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22) VISITEI O CARMELO E ENTREGUEI-ME À DEUS

Santos - 12/11/66

Hilda89

Como fiquei contente com a sua carta! Puxa, nunca esperava receber assim de repente uma notícia tão boa […] como a de você escrever por mim! Achei linda mesmo sua morada. Branca, calma, cheia de amplitudes verdes e azuis, um lugar privilegiado. Quando soube que você havia se mudado para aí, imaginei que você sentia necessidade de encontrar o “lugar”, o sitio, a morada onde poderia iniciar a espera d’Aquele que gosta do silêncio, da espera na solidão. / Êle [sic] verdadeiramente chegou para mim, quando fui visitar em janeiro de 64, o Carmelo S. José aqui em Santos. Nunca Hilda, eu havia estado num Carmelo. Quando entrei, me vi num lugar que estava no mundo, em Santos, mas não pertencia ao mundo. / Êle [sic] me esperava por entre aquelas árvores suaves, o silêncio total, a mansidão da carmelita que me atendeu, a Irmã sua Matilde. Fiquei algumas horas, ou menos. Mas quando sai, senti que eu precisava me entregar inteiramente a Êle [sic], sem reservas, confiar na infinita Misericórdia e me lavar nas águas do perdão, e vestir a veste limpa do batismo, restaurada, purificada. Desde aquele dia, Hilda, eu permaneço como Êle [sic]. / Nunca mais, deixei a sua Face. Minha vida tem sido um grande grito de Amor, de adoração, de repovoação(?), de ascensão contínua!

Cada respiração, cada pensamento meu, tudo, tudo, tudo é para Deus.

Eu pertenço a Êle [sic] agora, e quero cada dia mais amá-lo, mais viver deste Amor que nunca acaba, que é Amor Eterno, simples, suave e que me deixa pleno da mais profunda alegria! / Eu precisava comunicar isto a você Hilda que na sua carta me perguntou sobre a minha espiritualidade. Eu nunca pensei que minha existência fosse transformada deste jeito. Uma tal vivência eu possuo, que só me interesso pelo que me leva a Deus. O resto eu não aceito, e separo o joio do Trigo. / Minhas leituras tem sido, a vida de S. Teresa D’Avila escrita por ela mesma, S.ta Teresinha (manuscritos biográficos e cartas), Thomas Mestore, que foi o que me guiou nos primeiros passos na “noite escura” O Santo Evangelho que leio e medito, e a vida interior bem consciente e o exercício de Presença de Deus, que Frei Luis, carmelita Santa que me guia, me aconselhou a praticar, tendo em

89 José Adelino de Almeida Prado, “Visitei o Carmelo e entreguei-me à Deus”, Santos (12-11-1966), CEDAE: HH.I. 2.00034

100 vista a presença amorosa do Pai que nos ajuda, do Pastor que nos conduz pelos vales mais verdes e nos da a água pura da fonte.

Hilda eu estou feliz em lhe comunicar a minha vida, as maravilhas que o Senhor operou na minha alma. Você caminha também.

Tenho comungado diariamente, pois não sei ficar sem receber Jesus na Santa Eucaristia.

É maravilhoso ter a vida cheia de Deus. Não deixar escapar nenhuma oportunidade de amá-lo, verdadeiramente ser fiel às suas palavras. O próprio Senhor me leva pelo deserto. O caminhar é seguro, apesar de ser noite e nada, nada se apresenta a meus olhos, a não ser pela fé. / A casa que você construiu, é a morada que está preparada para que o Senhor venha, bata à sua porta e diga- Eu hoje cearei contigo! – Prepare a mesa, a toalha de linho branco, o pão e o vinho, pois não tarda a vir o Senhor! / Enquanto você espera, sua alma “desfacela suspirando pelos atos do Senhor”! Hilda eu faço como numa poesia estas palavras, pois são tão reais, mas que não sei dize-las de outra maneira. No Evangelho, há uma passagem em que Jesus encontrando a Samaritana lhe diz: / “Se conhecemos o Dom de Deus, e Aquêle que te diz: Dá-me de beber, talvez tu lhe fizesses esse mesmo pedido e Êle [sic] te daria a água viva”. / Hilda, Jesus me deu desta água, e eu sinto verdadeiramente que ela “transformou-se em fonte de água viva e que brotará até a eternidade”. / Eu precisava lhe contar todas estas coisas, pois quero que você possua a alegria e a felicidade que vem do Senhor. Eu tenho pedido em minhas orações, que você receba grande paz e serenidade, que você encontre cada vez mais a Deus e que em breve Êle [sic] irá criar com você, e você com Êle! Um grande, grande abraço do amigo que tem a maior felicidade do mundo!

José

PS: Continue o seu trabalho de Poeta. Você tem a missão de gritar ao mundo, as coisas que os homens às vezes não veem, você tem a missão de mostrar os campos, as pedras, os eucaliptos, os peixes, o céu, as nuvens, as dores, as angustias, a solidão e a sua ânsia de Deus!

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D] CRONICAS HILSTIANAS

1) A ALMA DE VOLTA

Às vezes, me perguntam o porquê de eu ter optado pelo riso depois de ter escrito as minhas ficções, meu teatro, minha poesia, com grandes e constantes pinceladas de austeridade90. Optei pela minha própria salvação. E disse-o num poema:

…porque mora na morte / Aquele que procura Deus na austeridade91.* Vários articulistas têm escrito, a sério, nos mais importantes jornais, a respeito da fome hedionda de grande parte da humanidade e da fartura resplandecente do restante. Os outros temas são o neonazismo, a violência, a crueldade. Pois bem, meus amigos, eu, a sério, sou bastante pessimista. Não creio que haja salvação para o homem. O “Homo maniacus”. Quando penso que o conceito de muitos é o de “Homo sapiens”, começo a sorrir. Quando leio o que doutores, economistas políticos, professores escrevem com alguma esperança, tenho delicadas expansões de riso. Sim. Delicadas, porque sempre par delicatesse j’ai perdu ma vie. Meu Deus. O homem! “O verme no cerne”, como disse um prodigioso. Claro que há notáveis exceções. Mas alguém também notável disse: se repetires três vezes alguma coisa notável a um tolo, corres o risco de te tornares um deles. Alguns homens geniais sugeriram que o problema do homem é o de encontrar alguma substância química que o imunize da barbárie. E digo simplesmente que é preciso devolver a alma ao homem. Digo-o novamente, leitores:

Que te devolvam a alma Homem do nosso tempo. Pede isso a Deus Ou às coisas em que acreditas À terra, às águas, à noite Desmedida. Uiva se quiseres Ao teu próprio ventre Se é ele quem comanda A tua vida, não importa.

90 HH, “A alma de volta”. In: C&C, pp. 29-31. 91 “Via espessa”, parte IX, in HH, Amavisse (São Paulo, Massao Ohno, 1989).

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Pede à mulher Àquela que foi noiva À que se fez amiga, Abre a tua boca, ulula Pede à chuva Ruge Como se tivesses no peito Uma enorme ferida. Escancara a tua boca Regouga: A ALMA, A ALMA DE VOLTA92

Vocês me preferem terna, lúcida, sensível, austera, ou naquele desopilante escracho de antes, tornando alegre a teu às vezes desesperado café da manhã?

(segunda-feira, 28 de dezembro 1992)

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2) BERTA-ISABÔ

Fragmento pornogeriátrico rural93

Isabô94: Ai, Berta, tô mar…. tive uns presságio… Vi uma veia tão veia coçando oiti na esquina. Berta: Iii, Isabô, essas coisa de coçá o oiti se chama prurido senir… daqui pra poco nóis tá iguarzinha. Te lembra do tio Ledisberto? Mandava a Eufrosina fica fazendo cafuné nos cabinho do cu dele. Isabô: Credo, Vige Maria, Berta! Meu tio, hein… imagine… gente de bem. Tu é que coçava os bago dos menininho e tirava os ranho dos buraco do nariz e enfiava na boca da Dita, coitadinha, aquela neguinha fedida que era tua prima. Berta: Iii, Isabô, tu tá tão porca que tá parecendo aquela veinha curta da Hirda, como é que é mesmo? a Hirste. Isabô: Iii, essa veia é safada. Porca, porca, mesmo curta. Imagine só que gente mora neste país

92 “Poema aos homens do nosso tempo”, parte VII. In: HH, Júbilo memoria, noviciado da paixão (São Paulo, Globo, 2001). 93 Publicado em Jandira-Revista de Literatura, n. 1, Juiz de Fora (2004) pp. 92-93, apud, HH, “Berta- Isabô”, C&C, pp. 383-385. 94 [grifo meu].

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Berta: Até o presidente, que tem curtura mesmo, dá dedo, assim ó, e diz que tem os cuião roxo. Isabô: Berta, eu adoro roxo. Te lembra do Zequinha? Menina, que home. Quando ele metia eu via tudo roxo, lilás, bordô, Isabô: Bordô o que qui é, hein, Berta? É cor de jaboticaba, é? Berta: Tu é ignorante, imagine, bordô é… Ah, num sei explicá, é uma cor muito bonita. Isabô: É cor de xereca de vaca? Berta: Ih…, boba, xereca de vaca é vermeia. Isabô: Tá mais pra cu de boi? Berta: Tu só pensa nas parte de baixo. Bordô é a cor dos oio da Zezé Cabrita. Isabô: … num me fala nela, ela me tirô o Tonho de mim. Berta: Bordô é cor bonita. Tudo que é bonito é bordô.

Batem na porta. É seo Quietinho

Berta: Quem é, meu deus? (Olha pela janela) Ai, Vige Maria, é o Quietinho, tá loco pra fazê aquelas coisa com a gente. Isabô: Que coisa tu qué dizê, hein? Berta: Aquilo que tu fazia com o Tonho. Isabô: Mardita! Num faço isso há mais de trinta ano.

Batem outra vez.

Seo Quietinho: Ô de casa! Tu tá aí, Berta? Tu tá aí, Isabô? Berta: Tamo não, Quieitinho. Hoje num é dia. Num é dia de nada. Seo Quietinho: Por quê? Isabô: É dia de Santa Apolônia que protege os dente. Seo Quietinho: Mas eu vim aqui pra isso mesmo, pois vocês num têm dente… é pra chupá mió. Berta: Aiiii, num fala assim nas porta da rua! Isabô: Abre logo, que a vila inteira vai sabê dessas luxúria.

Abrem. Entra Quietinho.

Seo Quietinho: Oia cumé qui eu já tô. Berta: Hoje num quero. Acabei de bochecha. Isabô: Ah… eu quero. Oia como eu tô arripiada.

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3) (EGE) ESQUADRÃO GERIÁTRICO DO EXTERMÍNIO

O poeta pode ser violento95. A maior parte das vezes contra si mesmo. Um tiro no peito, gás, veneno, um tiro na boca, como fez Hemingway, que também foi poeta em O Velho e o Mar; Maiakóvski, um tiro no peito; Sylvia Plath, gás de cozinha; Ana Cristina César, um salto pelos ares; etc. etc. etc. "Os delicados preferem morrer", dizia Drummond. Mas esta modesta articulista, sobretudo poeta, diante das denúncias feitas pela revista Veja, todos aqueles poços perfurados em prol de uma única pessoa ou em prol de amiguelhos de sua excelência, presidente da Câmara, senhor Inocêncio (a indústria da seca), e o outro com seu lindo carro às custas de gaze e esparadrapo... Credo, gente, quando você vê televisão ou in loco o povão famélico, desdentado, mirrado... Um amigo meu foi para o Ceará e passou os dias chorando! As crianças todas tortas, todos pedindo comida sem parar... e 500 toneladas de farinha apodrecendo... e montes de feijão desviados para uma só pessoa... (um parêntese, porque meu coração de poeta pede a forca, o fuzilamento, cadeia, cadeia para aqueles que se locupletam à custa da miséria absoluta, da dor, da doença). Gente, eu já estou uma fúria e para ficar mais calma proponho algumas coisas mais sutis, por exemplo: o Esquadrão Geriátrico de Extermínio, a sigla óbvia seria EGE. Arregimentaríamos várias senhoras da terceira idade, eu inclusive, lógico, e com nossas bengalinhas em ponta, uma ponta-estilete besuntada de curare (alguns jovens recrutas amigos viajariam até os Txucarramãe ou os Kranhacarore para consegui-lo) nos comícios, nos palanques, nas Câmaras, no Senado, espetaríamos as perniciosas nádegas ou o distinto buraco malcheiroso desses vilões, nós, velhinhas misturadas às massas, e assim ninguém nos notaria, como ninguém nunca nota a velhice. Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que beleza espetar bundões assassinos, nós faceiras matadoras de monstros! / O curare é altamente eficiente, provoca rapidinho a paralisia completa de todos os músculos transversais (bunda é transversal?) e em seguidinha sobrevém a morte por parada respiratória. Ficaríamos todas ao redor do coitadinho, abanando: óóóó, morreu é? Um pedido ao presidente Itamar: severidade, excelência, é ignominioso, indigno, insultante para todos nós, deste pobre Brasil tão saqueado, que essas terríveis denúncias terminem no vazio, no nada, na impunidade. É sobretudo perigoso porque:

de cima do palanque de cima da alta poltrona estofada de cima da rampa olhar de cima

95 HH, “(EGE) Esquadrão Geriátrico do Extermínio” (1993). In: C&C, pp. 74-77.

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LÍDERES, o povo Não é paisagem Nem mansa geografia Para a voragem Do vosso olho. POVO, POLVO UM DIA.

O povo não é o rio De mínimas águas Sempre iguais. Mais fundo, mais além E por onde navegais Uma nova canção De um novo mundo.

E sem sorrir Vos digo: O povo não é Esse pretenso ovo Que fingis alisar, Essa superfície Que jamais castiga Vossos dedos furtivos. POVO. POLVO. LÚCIDA VIGÍLIA. UM DIA96. (segunda – feira, 3 de maio de 1993)

96 “Poemas aos homens do nosso tempo”, parte V, in Júbilo, memória, noviciado da paixão. 2. ed. São Paulo, Globo, 2001.

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4) MIRTA

Quero ficar, quero ficar Ainda que

No teu olhar97.

Era brancona, leitosa, loira e pequenina. Dava quase pra levar no bolso. Parecia um biscoito. A boca em bico. Olhinhos de raposa. Morava em Saco de Cima, nos confins do bairro do Fundó. Um homem apareceu por lá. O semblante severo, a cara triste. Comprou a casa da praça. Quem é? Quem é? Mirta perguntava. Só mexe com papel o cara, fica lá escrevendo, não tá vendo ele de costas, a caneta na mão? À noite às vezes grita: preciso de uma estória, preciso de uma estória. Só isso que ele grita? e tu acha pouco? quem é que tem uma estória? tu, por acaso, tem uma? e a chacota descia sobre Mirta, a prostituta loira do bairro do Fundó. Ele é lindo, ele é lindo, ela suspirava. mas ninguém vê o cara, Mirta, só de costas que nada, a Etelvina viu vem cá Etelvina, conta da cara do homem

é triste à beça, tem olhinho caído… verde a Delci diz que ele parece o Cristo o Cristo?! de olho verde?! nunca vi

Mirta foi ficando encolhida. Vinha o Joca, o Nilo, o Zé do Fogo, o Cara- ruim e ela dizia não pra todo mundo, davam a paçoca que ela amava, um real por bimbada, deram até um porco recheado de ovo e nada.

o que é tu qué com o homem, Mirta?

quero ser a estória dele, cara, quero ficar no papel, no livro, no jornal

pobrezinha, quer ficar estampada

Foi definhando a prostituta loira do bairro do Fundó. Uns até achavam que ela havia sim diminuído. O Zé do Fogo fiz que tentou abrasá-la até com pinga do porto e ela

97 HH, “Mirta”, In: C&C (1994), pp. 262- 264.

108 só chorava. O Cara- ruim diz que lhe sorveu as tetas até ficar com a boca de chupa-ovo e ela nem piu. O Nilo fez melhor, dedicou-lhe um poema

a Mirta do Fundó

é a mina mais bonita

desse quiproquó

e o que é quiproquó, Nilo?

e eu sei? foi a rima que me deu o tal doutor na lei

e o que ela fez?

olhou e chorou

Mirta matou-se diante da casa da praça do cara triste. Tomou veneno pra rato e deixou um bilhete na barriga: “eu quero ser sua estória”. Todo mundo chamou o cara triste pra ver. Ele disse: que pena, até podia ser, mas ela é tão pequena… Só se for uma estória infantil. E pela primeira vez sorriu.

(domingo, 4 de setembro de 1994)

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5) NEGÃO SACANA, ISSO SIM!98

Um daqueles líderes alemães Hess, Goering, Himmler, um deles (fico inteiramente gelada quando penso que existiram) dizia mais ou menos o seguinte: “Não me falem em cultura, pois a primeira coisa que faço quando ouço esta palavra é puxar no revolver”. O inacreditável foi que, àquela época, a Alemanha, os alemães, o povo mais culto do mundo, foi capaz de tudo aquilo medonho que vocês já sabem. Pois bem, o Brasil, um dos povos mais incultos do mundo, também tem no seu cerne (“o verme no cerne”) certa Imprensa que odeia cultura e faz possível para achincalhar pessoas que ao longo de anos se tornaram ilustres pela qualidade de seu trabalho.

98 HH, “Negão sacana, isso sim!”, In: C&C (1994), pp. 285-287.

109

A revista Interwiew deste mês publica uma entrevista sobre a minha modesta pessoa ilustre, entrevista essa muito simpática, divertida e bem escrita pela excelente jornalista Beatriz Cardoso. Mas na capa, a revista Interwiew me classifica de “poetisa pornô”, e no índice me rotula de “poetisa que só pensa naquilo”, distorcendo integralmente o texto. Os títulos não são de responsabilidade da jornalista. Os títulos são certamente de responsabilidade de algum “canalha”, “patife”, “sem caráter”, “malandro”, “sabido”, “espertalhão”, sinónimos esses referentes à palavra “sacana”. “Sacana” refere-se também a pessoas trocistas, brincalhonas, zombeteiras. Agora, “POETISA SACANA QUE SÓ PENSA NAQUILO” é certamente “a mami” de um dos editores, “mami” essa que deve rimar cu com bu e aí sim é, sem sombra de dúvida, uma moça prendada, “poetisa sacana”./ A quem possa interessar: ao longo dos meus quarenta anos de literatura, a crítica “me agraciou” com os prêmios mais prestigiosos: Prêmio Pen (poesia), Prêmio Anchieta (teatro), Prêmio Cassiano Ricardo (poesia), Prêmio Jabuti (poesia), Prêmio Jabuti (prosa), Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (Obra Completa), novamete APCA (pelo livro Ficções). /Outra coisa: recentemente o jornal francês Libération, um dos jornais mais importantes do mundo, veio ao Brasil me entrevistar pelo lançamento do meu livro na França, Contes sarcastiques – Fragments erotiques, pela Gallimard, a mais importante editora do mundo. E aqui, no meu país, eu sou tratada, depois de quarenta anos de trabalho, exatamente como era tratada aos olhos dos “hipócritas” quando eu tinha vinte anos: uma puta. Sim, porque eu era tão autêntica, tão livre, tão inteligente, tão bela e tão apaixonante! AHHHH! o ódio que toma conta das gentes quando o talento é muito acima da média! E como se agrava contra nós esse ódio quando se é mulher! E quando se fica uma velha-mulher, aí somos simplesmente velhas loucas, putas velhas, poetisas sacanas, asquerosas enfim! AHHHH! que lindo que seria ter nascido um homem só para dar porrada, um homem com um bíceps da grossura de um tronco, só para quebrar as mandíbulas jumentosas de “focas” presunçosos que se imaginam “focas” porretas porque achincalham os outros.

(Domingo, 13 de novembro de 1994)

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6) BIZARRA, NÃO?

Aí é assim: você resolve escrever, de verdade, faz toda uma opção de vida de caráter definitivo, rejeita frivolidades, vai morar no mato, sim porque antes era mata, gado, pastagem, há pouco é que virou “zona de expansão urbana” e com aquele IPTU que te aniquila, bem, mas continuando, você se entrega totalmente a essa absurda tarefa de escrever num país com milhões e milhões de analfabetos (sim, a opção foi sua, foda-se) […] Então continuando, aí, depois de trinta anos você consegue lá algum renome, aí as pessoas praticamente suplicam para te conhecer, você fica a princípio acanhada, receosa, depois fica encantada, nossa! não é mesmo que me querem bem? Aí eles vêm, os supostos amantes do teu trabalho, e você se delicia, conta aos poucos teus medos, que você também é de carne e osso, que muitas vezes chora muito, horrorizada com toda a crueldade da Terra, aí você alguns dias se descabela, fica bêbada, sim queridos, porque um escritor se é muito bom escritor, tem mesmo que beber, porque (é bom ser didática) se ele é muito bom, ele sente muito diferente do açougueiro da esquina, do príncipe boboca também, ele, esse bom escritor, sente fundo e dilatado, sofre de compaixão e impotência, vê todos os canalhas do Planeta cometendo atrocidades, conhece todos os métodos do Poder para aniquilar esperanças, métodos os mais ignóbeis (agora me lembrei de um cara que tinha um irmão que se chamava Nobel, eu disse: foi em homenagem ao Nobel do prêmio Nobel? ele respondeu: não, mamãe achou a palavra “ignóbil” e o apelido dele ficou Nobel quando a mãe soube o significado da palavra). Continuando: aí o escritor que se pensava amado, fica íntimo daqueles que amavam o texto dele, e então só faltam cuspir nele quando ele se descabela, bebe, chora, arrota, quando ele se mostra derrotado diante das grandes perguntas, perplexo diante do mistério da vida e da morte, diante da maldade, do simiesco fútil da maior parte da humanidade. Então, os amiguelhos que te amavam, a essa altura já te acham um lixo e dizem pros outros que ainda te amam: é, vai conviver com o gênio e aí você vai ver como ele é. “Bizarro?” “Põe bizarro nisso, bicho!” E como é que vocês queriam que fosse, esse que escreve coisas geniais? Certinho, arrumadinho, abstêmio, fino, dissimulado, pactuando com elegância com todos os ignó - beis donos da miséria e do Poder?

P.S. Consta que Shakespeare era “normal” (!!!)99

(Domingo, 2 de abril de 1995)

99 HH, “Bizarra, não?” (1995). In: C&C, p. 326-328.

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E] FORTUNA CRÍTICA

1) OBRA DE HILDA HILST DEIXA A GLOBO

E VAI PARA A COMPANHIA DAS LETRAS

Em 1994, Hilda Hilst contou em uma entrevista que enviaria um telegrama para Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras: "Ó poderoso, esquece rusgas e tretas, edita-me!, pois traças e cupins somam-se por livros e a mim, snif snif. Ó, sede generoso, publica- me para o teu e meu gozo/ beijos/ fofo/ liga-me".100

Mais de 20 anos depois, não é que Hilda conseguiu o que queria? A obra da autora acaba de ser comprada pela Companhia das Letras, deixando a Globo Livros, onde estava desde 2001.

Quatro editoras chegaram a fazer propostas para levar a obra, embora não tenha havido um leilão pelos direitos. A Companhia das Letras já começa a editá-la ano que vem, com um volume de sua poesia completa, e alguns títulos serão destacados para sair pela coleção Poesia de Bolso. Em 2018, será a vez da prosa completa da escritora.

Por contrato, a casa também se comprometeu a publicar três antologias nos moldes de "Pornô Chic", da Globo Livros, mas ainda estuda como elas serão feitas. Também está prevista a adaptação de alguma obra de Hilda para quadrinhos.

Tudo deve ser acompanhado de nova fortuna crítica.

100 Maurício Meireles, “Obra de Hilda Hilst deixa a Globo e vai para a Companhia das Letras”, Folha de São Paulo, Painel das letras, São Paulo (23-07-2016).

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2) APRESENTAÇÃO POR LEO GILSON RIBEIRO

Os textos em prosa de Hilda Hilst têm todos o ritmo vagaroso de sementes. Suas palavras, frases, conceitos germinam atemporalmente na retina e na percepção de quem os lê. Em todos há uma desapiedada visão do animalesco, do visceral agarrado como um molusco repelente a um altar incompreensível. Deus? Um sádico imperfeito que esboçou seres humanos para temê-Lo e adorá-Lo. A velhice que mineraliza aos poucos o corpo, dando à flacidez e às rugas o tom acobreado, metálico da lenta necrose orgânica101. A palavra para ela nada tem de “literário”, de bel-letristico, nem de um real aparente. A linguagem tem um papel encantatório, de aplacar a fúria de conhecer, de romper os limites do apreensível humano para chafurdar no Absoluto. A linguagem é o Tao, o caminho, um labirinto selvático, a linguagem é um ritual propiciatório, uma alquimia de instrumentos verbais para chegar à gnose. A literatura, o estilo, a atemporalidade dos textos são um subproduto quase acidental, inconsciente, de uma Busca mística, panteísta, de um Indevassável por isso mesmo instigante, ameaçador: decifra-me ou eu te devoro. Hilda Hilst como Sheherazade, conta para sobreviver mais um dia e nesse afã vital não há complacência: o leitor sente- se desafiado a imergir nesses ritos, recriando quase que corporeamente os enigmas e imagens que brotam. As suas são portanto, “ficções” como as “ficciones” de Borges ou capítulos de “More Kicks than Pricks” de Beckett. Formam um círculo, um fluxo diante dos quais não há meio-termo, – ou o leitor percorre a mesma indagação metafísica ou se cansa às primeiras páginas, incapaz de preencher os brancos deixados pela autora. Quem se adentrar por essa magia lúcida, no entanto, terá uma visão completamente inédita do relato em prosa. Cronologicamente depois de Guimarães Rosa mas com igual audácia de empreendimento, Hilda Hilst arma um espelho polifacetado, prismático, da nossa condição sobre a terra. Ela não se detém diante do excremento, do assassínio, do acoplamento com animais, das amarras do sentimentalismo nem da moral para pesquisar, freneticamente, a casca que recobre a ferida de se ser. Não promete ao final conciliações com uma divindade bárbara, a exigir sacrifícios inumanos para nunca ser compreendida, apenas esboçada no oco, no vazio, no informe. O deslumbramento com estas verdadeiras iluminações Zen ou rimbaudianas porém é inevitável. De cada ficção, por menor que seja, eclodem arestas cortantes e cintilantes de um dizer caudaloso e abissal: “sei muito dessa palha que se chama aparência”; “Que o pensar dos outros e o meu próprio pensar, que também se via, e

101 Hilda HILST, Ficções (São Paulo: Edições Quíron Limitada, 1977), pp. VII- XII.

114 sentimentos, atos, e o que me circundava, a mim, e aos outros, era apenas Esboço, foi a única nitidez que consegui expelir em toda a vida esboçada.” Seria difícil definir qual a suprema obra prima desta coletânea: “Teologia Natural” em que um filho indigente leva a mãe para vender no mercado “tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava”? Ou “Floema” em que um homem, Koyo, dialoga com um Deus inescrutável e impassível, Haydum? Os nomes exóticos – Haydum, Koyo, Kadek, Ruiska, Osmo, Mirtza, Kaysa – dão um ar ainda mais rarefeito a essas narrações já de si tão pesadas de da gravidade do caos, da alucinação, como se as palavras fossem o som de um numero cabalístico capaz de abrir a porta da compreensão ou da integração do ser humano no universo impenetrável. Não há nenhum elemento gratuito nem lúdico nesta profunda perscrutação teológica, neste “aut aut” kierkegaardiano em que a angústia do eu não postula nem a fé, nem a salvação, nem a graça mas unicamente um Deus tão sujeito às paixões humanas do ódio, da crueldade deliberada ou da omissão que a sua é uma prosa de uma densidade que atinge propositalmente o paroxismo do delírio, da vertigem, revolucionando a formulação de Dostoievsky: se há Deus é porque há a maldade indiscriminada contra inocentes e culpados. Escrever, mais do que nunca, é intransitivo como atividade social. Não será através de todas as palavras de uma língua que se exorcizará a Angústia. O dicionário inteiro não abolirá o Tempo, a Morte, o apodrecimento da carne. Hilda Hilst não está engajada no sentido politico do termo porque a sua escritura é uma subversão dentro do Infinito atemporal, que não se prende às contingências das mudanças do poder. Não que ela seja alheia à miséria, à fome, à bota na cara dos totalitarismos de todos os matizes, mas a privação da liberdade está encaixada numa realidade plural e maior: a do homem e sua solidão nos siderais espaços mudos. Talvez sem o saber ela escreve textos impregnados de uma visão budista ou hindu da existência humana como o produto de uma Ilusão, Maya, que as palavras talvez possam desmascarar. É uma constante a equiparação do prosaico e do banal com as mais transcendentes preocupações filosóficas do ser humano. Ela reúne as duas escatologias: a do Eskhatoloslogos, a doutrina final dos tempos e a do Skatoslogos, a doutrina que disserta sobre as fezes, Deus imanente no nojo, no expelido, na humilhação da arrogância fátua de meros mortais, Deus palpitando na boca escancarada de vermes ou no deserto de afetividade em que os homens se trucidam, se traem, se negam e terminam com sua altissonante pantomima do Nada: a vida. “Queres (que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo?” ou “perguntei porque as mulheres inventam sempre esse negócio de dançar e

115 o convite vem invariavelmente quando você está cansado e revolve pegar a sua metafísica e de repente ela telefona, angustiada, absurda: faz um favor pra mim, tá? O quê? Vamos dançar. De início dá aquele mal estar medonho, lógico, porque eu estou deitado na minha cama, estou tomando nota das coisas mais importantes e as coisas mais importantes são aquelas que falam de Deus, eu tenho mania de Deus, enfim, eu quero dizer que eu estou acomodado e muito bem acomodado”. Se a escritora de mantém num plano especulativo, não deixa porém de abordar de abordar freqüentemente as injustiças sociais, a exploração que os poderosos exercem sobre os fracos, as prisões, as torturas sádicas, o estupro da liberdade (“Vicioso Kadek” documenta isso nitidamente), mas não se limita a essa constatação sociológica. Nem a psicologia pode esgotar seu arsenal de palavras, fornecer a quadratura do circulo que Hilda Hilst escarniçadamente quer construir nesse consciente delírio verbal que visa a explodir todas as fronteiras do dizer. A dramaticidade se mistura ao cotidiano, a especulação pura à pratica mais chã e utilitarista, a erudição cientifica, teológica, literária se mescla com o falar popular mais inculto e espontâneo. Hilda Hilst carrega involuntariamente um estigma: o de nunca talvez vir a ser popular, agradável, acessível. Ela que ambiciona tanto ser discutida, focalizada, continuará por uma espécie de condenação intrínseca incompreensível para a maioria. Porque ela em português retratou um Malone agonizante no atoleiro da dúvida e das dimensões diminutas de quem não tem antenas para captar o que há ou que não há depois da Morte. E porque ela escreveu, em português, o equivalente a um “Finnegan’s Wake” de Joyce ou seja: escreveu um absurdo palimpsesto mesopotâmico. E poucos terão a imaginação recriadora, a profundeza de propósitos e o mesmo afã místico que ela para embrenhar-se nessa “selva oscura” da alma e do humano estar no mundo. Mas quem se aventurar, pacientemente, a percorrer com ela essas paisagens de uma desolação povoada de pequenas vitórias, cacos de vidro brilhantes através dos quais se contempla o sol, terá submergido num mundo intrépido, de terror e tremor, de beleza indescritível e de uma fascinante prospecção filosófica sobre o Tempo, a Morte, o Amor, o Medo, o Horror, a Busca. O espanto diante da criação de Hilda Hilst crescerá à medida que as gerações futuras consigam apreender a grandeza imune ao efêmero desta vivência escrita, deste arame esticado sobre o abismo da prosa resplandecente deste maior escritor vivo em língua portuguesa.

Leo Gilson Ribeiro.

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3) TU, MINHA ANTA, HH

Alcir Pécora e João Adolfo Hansen102

Enquanto deus diminui, sujeitinho metido no céu de um qualquer buraco cósmico do corpo, o gozo aumenta na língua (a Portuguesa). Cães fila ladram do lado de lá, vira-latas latem do lado de cá. Na briga que HH encena contra a obscenidade geral, em Estar sendo, ter sido, o sacrilégio é histriônico. Não há profanação possível num mundo em que o único sagrado é o troca-troca mercantil. Para que matar deus, se nunca existiu, e, morto, só insiste como fantasma, como dizia o outro, porque ainda se acredita na unidade do sexo e da gramática? / HH ri de deus contra o Deus metáfora da Regra. O sujeitinho é paranoico, tem um olho-terror tatuado nas criaturas como cu-caverna das Ideias essenciais. É dali que tudo se vê e se obra como consciência e limitação. Recusando hipostasiar-se como verdade sublime no rebaixamento ostensivo que evidencia a farsa, a canastrice de HH também recusa a tentação de heroísmo do próprio gesto, amplificando o baixo na incontinência verbivocossexual. Enquanto se dissolve, seu riso dissolve o lugar-comum autoritário e a referência a Deus aparece ao leitor como a ficção de uma busca impossível. A desmontagem obscena do sórdido lirismo cotidiano que afeta o sublime ainda tenta resistir contra o mediano, o bem pensante, o aparelho, o policial, o seguro de vida já velha ao nascer. Via negativa de atingir – o quê? – o bicho-ninguém, o ganso estropiado, o jeitão da lagartixa, o jeitinho sem frescura do vira-lata, o nada e o nenhum: na literatura de HH, o animal e a loucura figuram a utopia de uma vida fora da Lei.

Sua arte repõe a essência do horror, sem catarse e sublimação: a vida brasileira é mesmo obscena e, quanto a Zürich, a limpeza não existe sem a muita merda de cachorro. Joyce, caolho, não deixou de pisá-la. Tragicomédia: nesse mundinho, o baixo que se deseja só baixo é consciência intragável da morte, termo, limite, origem do que se diz: Vittorio sofre, tarado e intelectual, a dor da morte e o horror de Deus; Matias, tarado, planta picas e pitas. Bestalhão, o Júnior, um nada. Também adora água, linguado tarado, e nada. Hermínia, obsessiva, tarada aos cinquenta. E Alessandro, belíssimo e tarado. Mas, limite, e a dentadura? Dramatizando o vir-a-ser digno do Alto, ao mesmo tempo HH não quer vê-lo, pois sabe que seria apenas outra ilusão da idiotia generalizada como bruta democracia. O deus

102Alcir Pécora & João Adolfo Hansen, “Tu, minha anta, HH”. In: Hilda Hilst, Pornô Chic (São Paulo: Globo, 20141 ), pp. 252- 255.

117 que há na praça é esse aí, mentiroso, maneiros, canelinhas finas, espírito de porco pairando com exclusividade sobre o pântano, como síndico do condomínio da morte. No mundo obsceno, repor o baixo é um pouco como reencontrar o lugar onde o mito da liberdade antes se insinuava. Mas ainda é o mito, não a substância livre, indeterminada. Assim, a consciência utópica qua ainda vinha do futuro decai no pretérito, resíduo do gesto baixo: é tendencialmente consciência da destruição das formas cínicas do presente, mas não tem vez. O hemisfério da destruição reconstrói como sombra ou névoa amarelo-laranja, não como sol, o rigoroso da consciência. A perseguição desta faz proliferar a linguagem como falta de ser, ao mesmo tempo, como desejo do fim de Deus. A demanda do nome é demanda do incondicionado: as frases de HH são indícios de acumulação de sujeitos-de-enunciados já lidos, que mantém a semelhança entre si, como objetos longínquos empapados de uma memória que apodrece, por isso, mais sentidamente, são estranhos, mutilados, vomitivos: sua unidade é aporia e seus resíduos gravados na escrita dão a justa medida de uma arte que só se eleva afundando-se no lixo. / A magnifica HH mais uma vez simula, pois, vozes desejantes de liberação da morte e da vida porca. Com as do gagá Vittorio, apenas enunciam tempo e morte. Aqui, a linguagem que maltrata a carne triste é gozosa, e vai do deítico para a amplificatio: aqui, ó, cresce, aparece e mostra o pau. Enquanto o nome do Pai é achincalhado, multiplicam-se suas imagens: paus murchos brotam, beiçolas yuppies chupam ameaçantes, regos criam dentes, cuzinhos vêm a ser cuzaços, inúteis todos, estéreis de morte, crescendo e multiplicando-se na fábrica sintática da linguona portuguesa das partes sem pudendum. As imagens misturam-se com diluentes à base de dor, álcool, endotoxinas e muita literatura. As imagens de dois momentos brevíssimos cruzam-se num relance, sugerindo coincidirem na impermanência. O equivoco é a incongruência monstruosos são contradefinições cômicas e agudíssimas, que produzem o estranhamento contínuo dos objetos. Uma galinha ruiva dentro de um cubo de gelo. Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso. A literatura de HH, que no Brasil repõe radicais de Lispector e Rosa, é prodiga no ensinar desconhecimento, o verdadeiro oposto da ignorância. A obscena Senhora D já rezava pelo Livro de Vittorio: “Livrai-me, Senhor, dos abestados e dos atoleimados”. É obvio, porém, que nada vence a morte e suas formas cotidianas de estupidez. Assim, a consciência é o inferno, mas também a única poesia possível. Nela, há um sistema completo, verdadeiro método de estudar e fingir a inconsciência: o álcool, exercício cotidiano de desregramento em que se bebe como um

118 macaco raivoso, produz a petrificação que paralisa o tempo e adia a morte numa imagem de desprezo e ironia, delírio trêmulo de não-ser, bengaladas no ar! O sexo, feroz escavação do nada na imagem fingida do outro, funde-se na fala como sexo falante. Sem hedonismo, órgão escarninho da utopia da ausência de Regra, o sexo explora os buracos também do sentido, gozo insípido do significante na busca tonta do gozo máximo do insignificante. / A literatura, essa vaca, é o terceiro vértice desse triangulo. A obscenidade só tem existência num campo de normas e Vittorio pede à rábula ilustrada que se masturbe e ao mesmo tempo finja que lê. Obviamente, ela lerá o Código Penal. Se a Lei é Letra, pena máxima é o castigo mais extremo e, o crime, só ocasião da graça. Mas graça não há. Aqui, o abuso obsceno da escrita inverte a escritura do sexo enquanto as perversões do sexo transgridem a sexualidade da letra. Vieira sabido de cor, letra gozosa, sexo manuscrito no corpo. Lei. / Resulta que as penetrações de HH são literalmente utópicas: em vez de cruzar e fincar os corpos, desterritorializam-nos. Os alfabetos da morte se soletram nas manchas da pele, contudo, flores do sepulcro, e o fracasso é geral. Enquanto deus desaparece, a única coisa que realmente importa é a morte. Apenas do ponto de vista nenhum do seu nada, no nenhum além do pânico da anã visguenta, a liberdade é livre e a porcaria é harmonia. / Doutores, também quisemos diagnosticar sobre os escritos das personagens-pacientes, desfiados no precipício da hora da morte: mais um caso de teologia negativa, de ascese inversa, de noche oscura del alma, de apóphasis de delectatio morosa, de muero porque no muero, de não sou eu mas ele que vive em mim, de adynaton e petrarquismo às avessas, blá-blá-blá?

Tudo isso, sim, mas nada, agora que Deus aumentou tanto que já nem com invertida luneta aristotélica e arte de engenho se alcança ver a ametista utópica incrustada em seu cu de ouro puríssimo.

Cotia/Campinas, 2ª domingo de maio, Dia das Mães.

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4) A FESTA ERÓTICA DE HH

Caio Fernando Abreu103

Aos sessenta anos de idade, com mais de vinte livros publicados (o primeiro é de 1950) de poesia, ficção e teatro, formada em Direito sem nunca ter exercido a profissão, desde 1967 recolhida na Casa do Sol, um sítio próximo a Campinas-SP, depois de quarenta anos de literatura (e, segundo ela, de silêncio sobre seu trabalho), há três meses Hilda Hilst caiu como uma bomba nos meios literários brasileiros.

Com a publicação de O caderno rosa de Lori Lamby, Hilda renunciou publicamente à literatura “séria” – que lhe conferira, por parte do crítico Leo Gilson Ribeiro, o epíteto de “maior escritor vivo em língua portuguesa” – e decidiu publicar, daqui para frente, apenas histórias pornográficas. Bem-sucedidas, essas histórias, já em segunda edição por Massao Ohno Editor, serão seguidas por Contos d’escárnio e Cartas de um sedutor.

Passando alguns dias em São Paulo para realizar alguns exames no coração – nada grave, talvez o coração da poeta esteja apenas cansado –, Hilda Hilst falou com exclusividade para A-Z.

LUCIDEZ Quanto mais você fica lúcido, mais perigosa também fica a vida. Eu cheguei num determinado momento, depois de repensar, trabalhar e meditar sobre a finitude e o descontentamento do homem, em que tudo se tornou muito terrível, fatal e desesperado.

Depois de trabalhar muitos anos nesses temas, você chega num momento perigoso. Você pode enveredar por caminhos terríveis, e há momentos em que não há mais onde chegar, onde mexer, principalmente se existe uma busca muito avassaladora dentro de você. Depois de ter escrito tudo que eu escrevi, e eu sei que escrevi lindamente, que modifiquei a prosa narrativa, eu tenho plena consciência disso, não aconteceu nada. Fiz uma revolução na língua portuguesa, enfoquei os problemas mais importantes do homem, procurei fazer o possível para o outro se conhecer. Fiz um lindo trabalho. E não aconteceu absolutamente nada, não fui lida. Houve apenas dois homens que se detiveram em meu trabalho: Leo Gilson Ribeiro e Anatol Rosenfeld.

103 Caio Fernando Abreu, “A festa erótica de HH”. In: Pornô Chic, pp. 256-263.

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ENGODOS Não acho que eu tenha que sair pelas ruas falando sobre meu próprio trabalho. Um escritor não tem a obrigação de falar bem, e além disso eu teria que ser uma beleza, fisicamente, porque as pessoas dizem “ih, ela está velha, ih”, você viu. Nunca deu certo uma mulher medonha falar, só a Rosa Luxemburgo, que era medonha e fazia multidões ficarem vidradas diante dela. É um desgaste pessoal enorme: além do dom da palavra, você tem que ser agradável, charmosa, aparecer com uma boa roupa. Tudo isso custa dinheiro, esforço, energia; você tem que despender esta energia escrevendo, e não se mostrando. Tenho certeza de que, se eu aparecesse, daria certo. Mas eu acho isso um engodo.

PORNOGRAFIA Não foi a pornografia que me atraiu: foi a leveza. Achei que, para o meu músculo mental continuar ativo, eu devia optar pela leveza. Fiquei mais feliz assim. Eu só me divirto, não sei dar nome a esse riso, não sei se é pornográfico. Escrever livros como O caderno rosa de Lori Lamby modificou bastante a minha vida: está sendo uma festa para mim. Estou contente lá dentro, começo a escrever e rio muito. Claro que, se isso não me divertir mais, eu vou parar de fazer. Mas vou até onde o meu fôlego de humor permitir, porque tem sido delicioso, para mim, agora, escrever. Era uma grande dificuldade antes, eu tremia diante da página. Então enquanto for uma coisa feliz, eu vou continuar fazendo esse tipo de literatura.

NUDEZ Toda essa discussão sobre nudez na TV e coisas assim parecem coisa vitoriana. É completamente tolo. Penso sempre em Theodor Schroeder, que diz que não existe um quadro ou livro pornográfico, existe é um olhar diante daquilo. Hoje você morre de rir com O amante de Lady Chaterley, do Lawrence. Ninguém mais fala aquele tipo de coisa, que equivaleria a dizer “deixa-me oscular a tua rosa orquídea”. Todo mundo tem medo de nomear o corpo humano da cintura para baixo, isso é um absurdo.

IMPRENSA Aquela matéria da Folha de São Paulo foi desagradabilíssima. Nenhum verdadeiro escritor escreve por fama e dinheiro. O camarada escreve por compulsão interior; nós somos uns obsessivos. Mas, de repente, numa cólera enorme, você pode resolver fazer alguma coisa para chamar atenção – não para você, mas para seu trabalho. Por que as

121 grandes revistas não dão nada sobre literatura brasileira? Você pode ficar pelada amanhã na Barão de Itapetininga [rua do centro de São Paulo], com um gorro vermelho, que, se for escritor brasileiro, nem assim você sai na Veja. Outro dia saiu no Caderno 2 do Estadão uma porção de críticos falando sobre os melhores livros do mundo. Eles citaram basicamente autores estrangeiros – Joyce, Dostoiévski, Stendhal –, mas nenhum deles citou Clarice Lispector. Eu liguei para o Luiz Carlos Lisboa, no Jornal da Tarde, e falei: Por que o JT não deu nada sobre a Lori Lamby?”. Ele disse: “Hilda, São Paulo é uma cidade pudica”. Muito bem, mas, quando saiu a antologia de poemas eróticos organizados pelo José Paulo Paes, o Luiz Carlos Lisboa fez um artigo deste tamanho, contando a história do erotismo a partir de Brahma, na Índia, e tal. E a antologia do José Paulo, por favor… erotismo é outra coisa – aquilo é pura bandalheira. Bandalheira da grossa.

PACTO Parece que os críticos adoram escritor morto. Você tem que morrer pra ser lembrado. Eu até propus a Lygia Fagundes Telles: “Você atira em mim e eu atiro em você”. Pode ser que assim falem da gente.

ESCRITORA Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam. Você tem que ser mediano e, se for mulher, só faltam te cuspir na cara. Há anos a Heloneida Studart me disse: “Hilda, se você fosse um homem, escrevendo a prosa que você escreve, você seria conhecida no país inteiro”.

OBSCENIDADE Quando foi publicada a minha novela Kadosh, o Massao Ohno, que era o editor, mandou para uma gráfica que se chamava Santa Maria não sei do quê. Quando vieram as provas, sempre que aparecia a palavra cu, eles não punham. Aparecia co ou ca ou ci. Cu mesmo, nunca. O que é que há de errado com o cu, eu me perguntava. Eles achavam absurdo, deviam ser freirinhas ou noviços que manipulavam a gráfica, não sei. Obsceno não é o cu, mas as bombas de Napalm. As verdadeiras obscenidades, as politicas, ninguém toca nisso.

122

SIMPÓSIO Ano passado eu fui nuns debates, uma coisa para educadores, e uma senhora me perguntou por que eu escrevia assim, dessa forma tão angustiada. Eu respondi: “Minha senhora, nós temos basicamente sete orifícios. Se a senhora não os lava a cada dia, a senhora fede. Isso não a angustia?” Criou-se um problema horrível. Sim, a mim angustia profundamente ter de fazer essas coisas todo dia. Vem a história da finitude, da degradação do corpo. A carne acaba, e depois disso- depois disso, nada.

UNICAMP Tenho sobrevivido nos últimos anos graças à Unicamp. A Unicamp tem sido a minha mãe, com o projeto “Escritor Residente”. Não sei se é a única, mas sei que foi a primeira universidade brasileira que fez esse projeto. A universidade deveria ajudar mais o escritor brasileiro.

INTELECTUAL DO ANO Essa história foi muito engraçada. Acho que os membros da UBE (União Brasileira de Escritores) me escolheram pensando que não ia dar certo, claro que eu ia ter uns dois votos contra uns trezentos do bispo Dom Paulo. Mas eu fui dando certo, ninguém sabe por que, e eu achando um absurdo- meu Deus eu e o clero. Daí parece que houve alguma coisa terrível, parece que, pela Cúria, o Dom Paulo tinha de ganhar de qualquer jeito. Quando eu vi que não saía mais nada na imprensa, eu pensei: “Bom, acho que ganhei”, porque comigo é sempre assim, um silêncio absoluto. Mesmo tendo perdido, agradeço a homenagem e tal, mas dá um pouco a impressão que “intelectual do ano” é porque você ficou intelectual naquele ano, foi alfabetizada e ficou cultíssima…

ALEMÃES Não sei bem por que, mas eu vejo o humor imediatamente nos alemães. Numa das histórias que escrevi, uma das partes engraçadas é um diálogo entre uma mulher e um alemão chamado Otto. Ele diz assim: “Non gostar, senhorra Eulália, do jeito que senhorra chuparr meu pau”. E ela: “Mas por que, seu Otto?” E ele: “Porrque o senhorra fazer carra de nojo, non gostar”. E a mulher: “Bom, seu Otto, eu vou tentar fazer melhor e tal”. O alemão tem alguma coisa de hilário. Veja só vagina, em alemão, não lembro agora, mas é uma palavra deste tamanho, uma coisa absurda.

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ANTI-AIDS Eu acho que o livro pornográfico é uma coisa anti-Aids. Lendo literatura erótica, você pode voltar a esse hábito solitário que várias pessoas extraordinárias acharam extraordinário também. Porque tem essa coisa católica, desde criança você ouve a mãezinha falando para o filhinho: “não se masturbe, meu bem, você vai morrer”. É o contrário acho formidável hoje você ler um livro pornô e se masturbar. Não é melhor do que pegar Aids e morrer?

LITERATURA A literatura tem que refletir o cara que está escrevendo, como ele é diante do mundo. A única forma de você passar alguma coisa real para o outro é já ter vivenciado aquilo, realmente. Você não pode mentir quando escreve. A única coisa que não é permitida na literatura é mentir.

OUTROS ESCRITORES Existem ótimos escritores por aí. Existe, por exemplo, o João Silvério Trevisan, que é de primeira linha. Vagas notícias de Melinha Marchiotti é excelente. Esse ensaio dele, Devassos no paraíso, é o melhor ensaio que já li sobre a homossexualidade. Ele demorou oito anos trabalhando, e não aconteceu nada, ele é recusado pelas editoras. Por que essa moça, Ana Miranda, conseguiu ser editada? Todo mundo já falou lindamente sobre o Gregório de Mattos… O que acontece é que escritor brasileiro é um coitado. Os editores não aceitam o autor pensando, o autor brasileiro não pode pensar. Aqui está cheio de escritores bons para os editores investirem…

JECA-PORNÔ Adoro essas histórias que ando escrevendo com personagens rurais, ou que não sabem falar direito o português. É o que eu chamo de jeca-pornô, como a história daquele moço chamado Edernir, que está na Lori Lamby. Eu tenho um dicionário ótimo de palavrões, que o meu médico dermatologista me deu, dum cara chamado não sei o quê Souto Maior. É lindo, você precisa ver tudo que tem lá. Todos os sinônimos fantásticos de crica, vagina…

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PORNOGRAFIA II Ninguém chegou a uma conclusão sobre o que é pornografia. Me pergunto se seria o ultraje ao espirito do homem, seria uma coisa assim? Talvez o obsceno profundo, que seria um enfoque completamente diferente, seja aquele em que a lucidez do personagem é tão grande que a coisa fica obscena. Mas essas brincadeiras que tenho escrito, você não pode dizer que sejam obscenas ou pornográficas. E não entendo por que muita gente ficou ofendida com a Lori Lamby. Eu dei para o Wesley Duke Lee ler, que eu julgava um homem de mundo, aberto e tudo, e ele disse: “É horrível, Hilda, que coisa horrorosa, é um lixo o que você escreveu”. Tenho um amigo, articulista de um grande jornal, que leu o Contos d’escárnio e falou: “Não publique isso, porque é perigoso”. Não entendo. Aqueles contos da Anaȉs Nin, por exemplo, são finos demais, delicados. Não são para tempos de Aids. Para tempos de Aids, as coisas têm que ser mais pesadas, para você ter aquele prazer que, lendo Anaȉs Nin, você não tem.

LÍNGUA PORTUGUESA Eu sei que escrevo muito melhor que muitas mulheres europeias e americanas. Mas quem é que fala o português? Bem, milhões de pessoas falam, mas ninguém lê nessa língua. Lá em Goa, Guiné-Bissau, Moçambique, todo mundo deve falar na feira: quanto custa esse tomate? e essa alface? o abacate está bom? Não adianta milhões de pessoas falarem, se ninguém lê. E até no caso de você querer ler um livro erótico a dois pra se masturbar com o seu parceiro, vai ser dificílimo. Naturalmente, você teria que ir para a Europa ou para os Estados Unidos, porque com 70% de analfabetos por aqui vai ser dificílimo não só encontrar um parceiro, mas ainda por cima um parceiro que leia.

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5) A PROSA DEGENERADA

Eliane Robert Moraes104

“É metafisica ou putaria das grossas?” – a questão do personagem de Contos d’escárnio – Textos grotescos excede o contexto em que é formulada para oferecer uma chave de leitura desse livro que, inclassificável em todos os níveis, soma à desordem narrativa uma total anarquia de referencias. Não se trata, portanto, de responder a pergunta, mas antes de atentar para a ostensiva aproximação que ela realiza ao confrontar um termo filosófico com uma expressão das mais chulas. Aproximação que perpassa todo o texto, já que Hilda Hilst insiste nesse expediente do começo ao fim da narrativa, colocando inúmeras citações da alta cultura à prova da mais deslavada pornografia.

Com efeito, esse livro escandaloso – que faz parte da trilogia obscena publicada pela autora no início dos anos 1990 – propõe um contato inesperado entre polos opostos, associando o exercício do conhecimento à atividade sexual. Yates, Kierkegaard, Pound, Lucrécio, Byron ou Catulo são citados ao lado de outros nomes célebres – incluindo figuras brasileiras como Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, – enquanto os personagens se entregam a praticas eróticas perversas, às quais não faltam o incesto ou o sexo com animais. Da mesma forma, obras como Hamlet, Anna Kariênina ou Morte em Veneza são convocadas pelo narrador para figurar em um contexto que, sem dúvida, guardaria maiores afinidades com os escritos de Rabelais, de Sade ou de Jarry.

Com tantas alusões literárias, não é de estranhar que os principais protagonistas da história sejam todos relacionados à atividade artística. Crasso, o narrador, é um sexagenário que resolve escrever seu primeiro livro, motivado pela baixa qualidade dos textos que lê: “ao longo de minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu”. Ao narrar suas memórias sexuais, ele concentra a atenção em Clódia, parceira de extravagantes jogos eróticos, que é uma artista plástica obcecada pela imagem dos órgãos sexuais. Por fim, a esses dois personagens debochados vem se acrescentar a figura melancólica de Hans Haeckel, um “escritor sério” para quem a literatura era “paixão, verdade e conhecimento”, que se mata com um tiro na cabeça.

Se é que se pode falar em enredo, o livro conta as peripécias de Crasso à procura de inéditos de H.H., o que rapidamente se transforma em pretexto para sua descoberta do

104 Uma versão reduzida deste artigo foi publicada no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial/ USP/UNESP/UFMG/Folha de São Paulo, São Paulo (10- 03- 2003), (grifo do autor) esta versão foi extraída de: Eliane Robert Moraes, “A Prosa Degenerada”, HH, Pornô Chic, pp. 264- 269.

126 erotismo, evocando as convenções do romance de formação. Assim, ao longo de sua peregrinação, conforme vai encontrando os estranhos manuscritos do escritor morto, o personagem também fica conhecendo toda a sorte de aventuras lúbricas – ou de “bandalheiras”, como prefere Hilda Hilst. Para além da experiência carnal, tais descobertas lhe exigem, como estreante na literatura, a busca de uma via expressiva.

Como representar o ato sexual? Como fixar sobre o papel, ou sobre a tela, o momento fugidio do erotismo? – as questões que pulsam nas memórias obscenas de Crasso ou nos quadros licenciosos de Clódia estão no centro do texto, revelando as inquietações que marcam a ficção erótica da própria autora. O problema que se coloca para Hilda Hilst – ela também estreando na pornografia ao escrever a trilogia – é o mesmo que move seus personagens, na pornografia ao escrever a trilogia – é o mesmo que move seus personagens, girando em torno dos dilemas da representação do sexo. “Esse negócio de escrever é penoso” – confirma o narrador ao procurar exprimir uma volúpia física que ele mesmo considera “indefinível”.

Os Contos d’escárnio-Textos grotescos propõem uma resposta singular para essas questões de fundo da literatura erótica. Valendo-se do espírito satírico que caracteriza as “cantigas de escárnio” da tradição medieval portuguesa, o livro lança mão de uma fabulosa quantidade de gêneros literários sem se fixar em qualquer um deles, dando livro curso a uma paródia vertiginosa. À proliferação de referências ao cânone acrescentam-se as mais diversas formas discursivas como diálogos, poemas, textos dramáticos, fluxos de consciência, receitas, comentários, fábulas, piadas e fragmentos de toda ordem – tudo isso expresso em uma mistura babélica de línguas que só faz desnortear o leitor.

Como observa Alcir Pécora na apresentação ao volume, essa opção pela desordem narrativa “pode ser interpretada como uma resposta irônica à literatura de mercado”. Ao realizar um inventário da mercadoria literária mais estereotipada, o narrador coloca em questão o lixo cultural produzido no país criticando a supremacia do best-seller. Mas sua visada, conclui o crítico, não se reduz a isso: o personagem vai além e faz da hegemonia da indústria cultural a condição de sua própria literatura, criando uma pornografia descontrolada, que excede as normas do mercado.

Ora, levada assim ao extremo, tal estratégia vem perturbar não só a economia sobre a a qual se organizam os textos obscenos em relação ao movimento maior da literatura, mas ainda na própria economia literária em geral. Vejamos por quê:

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Na hierarquia dos discursos, a ficção erótica costuma ocupar um lugar pouco nobre, sendo quase sempre considerada um gênero menor. Isso se deve ao fato de que esse tipo de literatura só adquire o status de gênero a partir dos temas que mobiliza, e nunca por conta dessa ou daquela opção formal. Trata-se, geralmente, de escritos sem pretensões literárias, nos quais os efeitos estilísticos são relegados a um segundo plano em função de uma lei maior: a repetição. De fato, a maior parte dos livros pornográficos limita-se a repetir certo mote, combinando cenas de um repertório sexual limitado com o intuito de excitar o leitor – o que, do ponto de vista escrito da leitura, tende não raro a induzir ao tédio.

Na qualidade de produção literária inferior, a pornografia é normalmente aceita – ou, pelo menos, tolerada. Seu poder de transgressão é, nesse sentido, quase nulo. Na verdade, o texto erótico só consegue realmente escandalizar quando ele deixa de obedecer as leis do gênero menor, perturbando a zona de tolerância que cada cultura reserva às fabulações sobre o sexo. O escândalo de Sade não foi o de escrever obras obscenas, o que aliás era corrente na literatura libertina setecentista, mas sim o de deslocar o pensamento iluminista para a alcova lúbrica, aproximando a filosofia do erotismo. Assim também, se Flaubert escandalizou a moral francesa do século XIX, não foi apenas por ter criado uma heroína adultera, como faziam os autores pornográficos de sua época, mas por tê-lo feito em uma das obras-primas do realismo.

O potencial de subversão dos livros eróticos está diretamente ligado à sua capacidade de colocar em xeque os códigos do sistema literário vigente em cada sociedade – transtornando a ordem dos discursos a partir da qual se organizam as culturas. O escândalo acontece, pois, quando os temas obscenos abandonam o gueto onde se confinam os gêneros inferiores e se associam às expressões legitimadas como superiores. Ou, dizendo com Hilda Hilst, quando a “putaria das grossas” se aproxima da metafísica.

Os Contos d’escárnio – Textos grotescos trabalham com a aproximação entre o alto e o baixo de uma forma quase didática. A começar pelo fato de ser uma obra assinada por uma escritora da chamada “grande literatura” – o que, por si só, desautoriza sua filiação ao tipo de pornografia que lota as prateleiras do mercado de sexo. Além disso, a insistente associação entre obscenidades e referências eruditas opera no sentido de nivelar os discursos em questão, embaralhando-os por completo. Por fim, essa subversão torna-se ainda mais intensa com a intrigante fusão de gêneros que o volume põe em cena.

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O notável poder de desvio da ficção erótica de Hilda Hilst decorre justamente de sua recusa em reproduzir qualquer convenção corrente, seja do gênero menor, seja de qualquer outro. É nesse ponto que se afirma a efetiva capacidade de transgressão do texto, manifesta numa perfeita sintonia entre forma e fundo: para responder aos dilemas da representação do sexo, mas sem acatar as restrições impostas à pornografia, a autora perverte as leis literárias, criando uma prosa em que os gêneros se degeneram. Uma prosa degenerada.

Tal é a escandalosa lição que esse livro propõe ao leitor: uma vez degenerado, o texto fica livre de promover as associações mais bizarras e imprevistas, revelando certas relações entre corpo e espírito que nossa cultura, por tradição, tenta esconder. É o que acontece com o deboche escrachado de Crasso que, ao fazer tabula rasa de todos os discursos, expõe os pontos de toque entre o pensamento e as demandas carnais. Suas aproximações insólitas zombam do ascetismo da vida intelectual, insistindo na ideia de que todo conhecimento tem uma única e inequívoca origem: o sexo.

Entende-se por que o narrador muitas vezes dialoga com um interlocutor imaginário que, tratado como ignorante e picareta, é suposto como integrante do meio universitário. “Isto aqui não é cartilha para esse pessoalzinho que está fazendo mestrado” – diz o personagem, reiterando logo em seguida com o mesmo didatismo: “Se você for PhD, peia até o fim. Se não, pule esta”. Figura emblemática das elevadas aspirações do saber, em contraste ao baixo corporal do erotismo, o intelectual é o alvo privilegiado da agressiva pedagogia de Crasso, que não perde a ocasião de ironizar: “Credo! Como é difícil o texto didático”.

Critica radical a hegemonia do lixo cultural, mas também à suposta superioridade das elites intelectuais, o livro de Hilda Hilst sugere que entre esses polos da nossa cultura também existem relações mais complexas do que normalmente se costuma admitir. Tal sugestão não deixa de ser intrigante – e mereceria uma exploração mais atenta. Afinal, como ensinam esses Contos d’escárnio – Textos grotescos, as cumplicidades entre o alto e o baixo sempre podem reservar surpresas para o pensamento.

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6) DISCRIÇÃO E FINURA

Jorge Coli105

Foi no século passado. Eu morava então na França há bastante tempo e colaborava regularmente com o jornal Le Monde, comentando a literatura brasileira traduzida em francês. Como devia vir ao Brasil em férias, propus ao suplemento cultural matérias sobre a literatura que se fazia então por aqui. Isso resultou em duas páginas inteiras publicadas no dia 13 de janeiro de 1984.

Nelas, havia esta passagem: “a melhor poesia brasileira é, em nossos dias, escrita por mulheres: Adélia Prado, Margarida Finkel, Olga Savary, Orides Fontella e, antes de tudo, a muito discreta Hilda Hilst, cujos A morte. Odes mínimas e A obscena senhora D. formam um apogeu de escrita literária”.

Eu não conhecia pessoalmente Hilda Hilst. Alguns amigos riram desse “muito discreta”, pois sabiam que a escritora era desbocada, provocadora, cultivando o prazer de chocar e escandalizar.

Mas ainda creio que, a seu modo, Hilda Hilst fosse discreta. Ela vivia em sua chácara de Campinas, no meio de uma cachorrada simpática, tomando uísque toda noite, o que a levava a um estado de embriaguês vizinho ao transe. Progressivamente, assemelhava-se mais e mais a uma pitonisa. Nunca presenciei de sua parte qualquer incoerência causada pelo álcool, ou qualquer perda de contato com a realidade. Mas era como se uma força interior falasse por ela, brotando com formidável eloquência.

Voltava com insistência às suas obsessões dos contatos com o além. Vozes sobrenaturais ouvidas em cassetes virgens, em discos, com frases que pareciam dizer “Chante avec mon ami Mesquita”, ou “as folhas são verdes”. Uma vez, ela correu até uma estação de rádio, porque no final da transmissão de “A dança do sabre” de Kachaturian, havia percebido uma mensagem transcendente. Não havia nada no disco, o que aumentou sua convicção: algum espírito havia tomado aquela precisa onda hertziana para chegar a seus ouvidos.

Seu mundo era fechado sobre si mesmo, e ela vivia de modo solitário. Era discreta, portanto. Mas não hesitava em dizer barbaridades em alto e bom som. Numa cerimônia em sua homenagem, alguns jovens vieram, muito contentes, mostrar-lhe algo que consideravam revolucionário: poemas escritos em camisetas, o que chamavam de

105 Jorge Coli, “Discrição e finura”, HH, Pornô Chic, pp. 270 - 275.

130 poemisetas. Uma das moças trouxe-lhe algumas de presente. Ela declarou no microfone: “Escreva na caceta, minha filha. É muito melhor!”. Outra vez, o rapaz que a apresentava para um auditório era alto, magro, muito loiro e de olhos claros. Ela não hesitou: “Esse seu jeito de soldado nazista me deixa tarada!”. / Era o seu modo mais imediato de lançar, com violência, impactos de sexualidade em meios bem comportados. Hilda Hilst, na sua mocidade, fora muito bela, como testemunham as numerosas fotografias suas daquela época. Juventude rica, internacional, cheia de amores. Contou-me que uma vez, em , hospedou-se no mesmo hotel onde estava Marlon Brando em companhia de um namorado. O ator largou o parceiro e foi bater desesperadamente na porta do seu quarto. Ela, que estava apaixonada por outro, não abriu106. / Sobretudo para os jovens, talvez seja difícil hoje, nestes nossos tempos conservadores e monogâmicos, entender a intensidade sexual que emana dos escritos de Hilda Hilst. Essa intensidade não é uma pose, nem uma fabricação puramente fictícia. Porque do vivido ao escrito não há ruptura.

As declarações abusadas continham energia subversiva; subversão que permanece nos seus escritos mais admiráveis. O orgânico, as pulsões do desejo, a animalidade – e nisto entra sua identificação com os cães, amorosos e instintivos – o corpo, a carne, os ossos, as dores e os prazeres sempre foram, nela, profundamente vividos. Sua espiritualidade é a mais carnal, alma feita de carne e de sexo; nas obscenidades expostas revelam-se intimidades universais. Ao escrever – ou dizer – boceta, cu, piroca, Hilda Hilst investia algo de sagrado, porém, não retirava dessas palavras a evidencia obscena: é a obscenidade que as faz forte.

E por que haverias de querer minha alma Na tua cama? Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas Obscenas, porque era assim que gostávamos.

106 Como várias das histórias que fazem parte da biografia de Hilda, essa tem mais de uma versão. Segundo a versão de Hilda em Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst (Biblioteca Azul, 2013): “Eu queria muito conhecer o Marlon Brando, achava-o lindo, e então me tornei namoradinha do Dean Martin só para ficar perto de Marlon Brando. Mas eu não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Me vi obrigada a aguentar o Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava o Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, a Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?”. Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido o Marquand…”. (N.E.)

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Mas não menti gozo prazer lascívia Nem omiti que a alma está além, buscando Aquele Outro. E te repito: por que haverias De querer minha alma na tua cama? Jubila-te da memória de coitos e de acertos. Ou tenta-me de novo. Obriga-me. Do desejo, Hilda Hilst

Os desejos, todos eles, brotam como instrumentos da poesia e das revelações mais profundas e mais transcendentes. A pedofilia, que se transformou em nosso tempo em dragão hediondo, revira-se de ponta-cabeça quando a autora veste a pele de uma garotinha divertindo-se com todas as pulsões sexuais: Lori Lamby é uma obra-prima de finura, equilíbrio, reviravoltas e provocações.

Não se deve entender Contos d’escárnio apenas pela sua aparência de sátira. Ele desencadeia poderosas obsessões e na mais desenfreada grosseria indecente nunca desce à sordidez. A autora elabora um imaginário tão imprevisível que metamorfoseia o chulo em sorridente sofisticação:

“Foi espantoso. Ao redor do buraco de Josete, tatuadas com infinito esmero e extrema competência estavam três damas com seus lindos vestidos de babados. Uma delas tinha na cabeça um fino chapéu de florzinhas e rendas. não acredito no que estou vendo, Josete, você tatuou à volta do seu cu pra qué? homenagem a Pound, Crassinho mas isso deve ter doído um bocado!”

Conversamos bastante quando ela estava escrevendo Cartas de um sedutor. “Quero criar um sedutor macho que seduz outro macho, mas nada de coisa de veado. Macho mesmo, héteros.” Depois: “Já que não consigo vender meus livros, quero escrever histórias de sacanagem para caminhoneiros baterem punheta!”. Quando ela me mostrou o texto acabado, eu disse: “Você acha que alguém pode bater punheta lendo isso, Hilda? Isso é a mais pura e mais alta expressão literária”. Ela ficou muito brava, mas eu tinha razão. Hilda Hilst escrevia em modo sofisticado para leitores, eles também, culturalmente sofisticados. Ou como diz nas Bufólicas:

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Se o teu canto é bonito,

Cuida que não seja um grito.

A primeira vez que vi Hilda Hilst foi em 1985: eu acabara de ser contratado pela Unicamp. Estava em minha sala, num terceiro andar, quando ouço um tropel na escada, e os chamados “Jorge Coli! Jorge Coli!”. Ela era que vinha me dizer o quanto ficara feliz com o texto do Le Monde. A partir daí, nos telefonávamos com frequência, e eu ia, de vez em quando, à sua chácara. / Ela sofria com o sentimento de não ser reconhecida à altura dos seus admiráveis escritos. “Sou melhor do que tudo o que está por aí!”, dizia. Eu sofria também, na minha medida, com colegas especialistas em literatura que olhavam de alto para sua obra e que sorriam desdenhosos quando lhe mostrava um ou outro poema. Estou certo que hoje mudaram de ideia.

Quando a velhice avançou, Hilda Hilst, mais fragilizada, teve apoio de vários amigos. Eu fui para os Estados Unidos e nosso contato rareou. A última vez que a vi, frágil, avençando de braços dados com Lygia Fagundes Telles, foi em 2000, numa exposição a ela consagrada pelo Sesc Pompeia. Fiquei muito comovido ao vê-la. Ela me disse apenas “Então, você veio”? Respondi: “Claro, Hilda”. Paramos aí. Essa emoção, em mim até agora, me levou a escrever um texto para a Folha de S. Paulo, que transcrevo aqui:

Qual a boa metáfora para descrevê-la: uma pluma? Uma flor delicada que, por milagre, anda? Um cristal frágil? Sua voz faz-se carícia tímida. Para onde foi a Hilda Hilst desbocada, de tom enérgico, manejando palavrões que abalaram bem-educados e bem pensantes? Aos setenta anos, a mais bela e a mais terrível das bruxas “vamp” se transformou numa fada. Ela irradia felicidade enternecida. Está grata pela homenagem, o que pode ser bonito e comovente. Na verdade, não é justo. Porque foi ela quem carreou, para língua e para a cultura brasileiras, um universo de belezas inquietantes, novo, único, indo buscar nas carnes, nas vísceras, interrogações metafisicas em modos antes ignorados. A dívida não é dela, é nossa para com ela.

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F] IMAGEM

A DesOrdem da ‘Santa’ na Obscenidade do ‘Progresso’

“Todos nós estamos na sarjeta,

Mas alguns de nós olham para as estrelas”.

OSCAR WILDE

E quem olha se fode.

LORI LAMBY107

107 Com esta dedicatória em epígrafe, Hilda Hilst, apresenta a sua primeira obra obscena. Hilda Hilst, O caderno rosa de Lori Lamby [1990], Organização e plano de edição Alcir Pécora (São Paulo: Globo/ Col. Obras reunidas de Hilda Hilst, 20052), p. 5.

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Apontando o seu olhar para o alto, a protagonista da colagem que apelidei de ‘Santa’, não repara no brilho de estrela nenhuma. No seu céu diurno – opaco, pálido e tenebroso – centraliza-se o Sol, que possibilita uma interpretação no sentido metafísico. Eis que este astro dardeja cansado, como se quisesse avisar um desfecho do tempo108. Por isso, ponderei a escolha de inserir esta colagem na dissertação, considerando os símbolos que observei na obra e que tentarei descrever posteriormente. Observa-se no quadro, à primeira vista, o ‘êxtase’ de uma mulher que incorpora relíquias do sagrado, não escondendo, ao mesmo tempo, a naturalidade do seu corpo, que se consagra no proeminente deflagrar do seu peito, como na amostra de um altar do profano. Assim, se dividirmos a análise da representação desta protagonista em duas partes, cabeça e corpo, e olharmos sucessivamente para o conjunto, constatamos a reconciliação de dois elementos divergentes na tradição cristã. O Eros (Ἔρως), endeusado na cultura clássica, na era cristã, é destronado do seu pódio, menoscabado pela advinda do Deus único – (Θεός - Théos). Desde então estes elementos serão desunidos na dicotomia Sagrado e Profano. Se começarmos a observar a desnudez do corpo, destacam-se os seios, prómeros que, no pudor da moral religiosa, são trivialmente associados ao erotismo. Concomitantemente, acorrentada aos mamilos, apresenta-se uma relíquia não bem identificada que se pode associar, apenas por analogia, à iconografia de Cristo. Esta relíquia, que, na verdade, poderia representar qualquer efígie, é religiosamente segurada pelas mãos da mulher que lhe incumbe uma função apotrópica. Por outro lado, a cabeça mostra a mulher como uma jovem freira que, num sobejo de castidade, vela o seu cabelo por devoção, em contemplação do alto, do céu, símbolo místico de redenção. Neste encontro com o céu, que se define ‘êxtase’ – não impreterivelmente num sentido catártico – constata-se uma mistura de dor e gozo, de derrelição na vida na procura de uma esperança no além, assim como, outrossim, a possível projeção de um prazer corpóreo-sexual a partir do estímulo da relíquia: um corpo sagrado que se sobrepõe a um corpo profano, resultado da reaproximação destas duas esferas. Nas costas da ‘Santa’, reparamos num cenário decadente e cinzento, que, apesar das indicações toponomásticas, que assinalam “OranienburgerStraße109”, poderia representar a decadência da civilização, em qualquer contexto urbano, inclusive uma metrópole brasileira.

108 Inspirado nesta colagem, emoldurada no meu quarto, reparei na deslumbrante representação de algumas das maiores ‘obsessões literárias’ da autora. A obra, que intitulei livremente, foi exposta anonimamente no Kunsthaus Tacheles, ocupação artística de Berlim, na qual, em 2010 achei uma cópia. Seria difícil localizar o original dado que o edifício foi desocupado em 2012, mas existem inúmeras cópias, como a minha, espalhadas pelo mundo. 109 Rua do Centro de Berlim localizada na proximidade do edifício em que a colagem foi exposta.

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Das janelas dos prédios, notam-se outras presenças antropomorfas. Estas outras personagens, caricaturas extraídas de desenhos animados, são figuras grotescas que observam a ‘Santa’ com olhar de escárnio ou desaponto. No universo literário hilstiano, estes observadores poderiam ser reinterpretados, aliás, por exemplo, como os vizinhos de A obscena Senhora D, ou, mesmo, como alguns dos leitores indignados que estigmatizaram superficialmente os escritos de Hilda Hilst. Como no anúncio de um pressagio, nas paredes dos mesmos edifícios brilha mais do que o sol um cartaz luminoso, possivelmente comercial. Este cartaz retrata o símbolo de aprovação por antonomásia, que, relembrando os gestos dos antigos romanos, se situa na história da humanidade como emblema do apreço, publicitando um convite ao otimismo, até no uso hodierno do engenho facebookiano. Este mesmo otimismo é evocado por um outro cartaz, de papel, no qual a frase “Happy new year” tenta encobrir um graffiti que, na mesma parede, denuncia a iminência de uma guerra. Pelo contrário, no alto, cujo conforto a Santa procuraria, perfila-se uma paisagem perturbadora. No céu acinzentado pela poluição, ao lado de um sol cansado e opaco, não voam delicadas pombas da paz, mas migram dois pássaros resistentes, bem mimetizados com o contexto, enquanto estes símbolos da natureza são quase totalmente extintos e substituídos, pela força do progresso, por aviões e paraquedas, que evocam um cenário iminente de guerra. Apesar disso, surpreendentemente, da terra conseguem ainda nascer flores, símbolos de devoção, de amor, de pureza, de beleza, de desejo e de esperança de que a natureza possa persistir, resistir e renascer. Entretanto, estas flores não apresentam vívidas cores, mas, conciliando-se com o cenário, germinam murchas e tingem-se de luto, ostentando uma cromaticidade resignadamente turva, pressagiando uma iminente desgraça. Da ‘obscena lucidez’ de quem “olha para o alto” origina-se a desordem e a vontade da ‘Santa’ de se manifestar, que podemos ler como uma heterónima da própria Hilda Hilst, na medida em que as ruínas dos símbolos desse progresso, mitificado e cobiçado110, perturbam o olhar desta mulher iconoclasta e polémica, mística e profana, segundo a qual uma santidade, quase inatingível, seria a maior revolução. Assim, na decadência deste cenário, o desmazelamento do mundo, na ostentação das suas contradições, apresenta-se como perspetiva verdadeiramente obscena e desventurosa, traduzindo-se na guerra e nas outras misérias de um ser humano que,

110 Especifica-se que nem o título, nem o conteúdo do texto, pretendem atacar nenhuma corrente filosófica. Pelo contrário este texto pretende expor uma reflexão sobre a implementação de um esvaziamento semântico destas palavras, universalmente reconhecidas como positivas, mas usadas, amiúde, com o fim de aplicar medidas que se distanciam da conceição abstrata que estas projetariam na coletividade.

137 apelidando-se de ‘sapiens’ e considerando-se parte de um desígnio de eterna evolução, patenteia um progresso que, na verdade, se apresenta muitas vezes como o domínio de uma minoria em detrimento dos outros, sustentado pelo sofrimento da terra e dos seres humanos. É por isso que esboça o pessimismo, destingindo de paixão as suas flores, que, ao nascerem murchas, reverberam, ao concretizar-se na humana propensão de se agarrar ilusoriamente ao corpo. Na procura de uma certeza vazia na materialidade, mas diante do medo da desmaterialização, da descomposição conseguinte à ‘finitude da vida’, alimenta- se a obsessão de uma solução metafísica ao grande mistério da existência. Mas, observando desde aqui, outros seres humanos, das próprias janelas, no conforto das próprias casas, que consideram alheias a qualquer transtorno, não conseguem perscrutar além daquilo que, por norma, lhes é indicado como justo, vivendo uma inconsciência coletiva, uma tranquilidade passiva, que não os protege da queda das bombas na própria cabeça. Procura-se, então, a redenção abstraindo-se numa ilusão. Assim, estas figuras que não conseguem, nem querem, questionar aquilo que os rodeia, absorvidos pelos dogmas, aliciados pela publicidade e educados na irresponsabilidade face a uma ordem apresentada como universal e justa, deixam-se seduzir pela luminosidade dos cartazes da propaganda, ao esconder como obsceno aquilo que não se encaixa naquele esquema e difere da norma, daquela ordem, chegando a repudiar até a nudez do próprio corpo humano, considerado impúdico e alvo de pecado.

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G] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARTIGOS [A]

1) A AMARGA TAREFA DE CRIAR NUM PAÍS SEM LETRAS E SEM POESIA Diário do Povo. “A amarga tarefa de criar num país sem letras e sem poesia”. Campinas [27-03-1988]. CEDAE: II. IV.7. 2. 00033. 2) NOSSA MAIS SUBLIME GALÁXIA ARAÚJO, Celso & FRANCISCO, Severino. “Nossa mais sublime galáxia. Revoltada com o descaso, Hilda Hilst, a maior escritora viva em língua portuguesa, resolve botar pra quebrar e lança um livro porno - erótico. Só tem medo que levem a sério”. Jornal de Brasília. Brasília [23-04-1989]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00036.

3) FÓRMULA PARA VENDER FALASCHI, Celso. “Fórmula para vender”. O Globo. Rio de Janeiro [16-04-1988]. CEDAE: HH. II. IV.7. 2. 00034.

4) HILDA SE DESPEDE DA SERIEDADE WERNECK, Humberto. “Hilda se despede da seriedade”. Jornal do Brasil (s. l.) Perfil [17-02-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00037.

5) HILDA HILST VIRA PORNÓGRAFA SCALZO, Fernanda. “Hilda Hilst vira pornógrafa para se tornar conhecida e vender mais”. Folha de São Paulo. São Paulo [11-05- 1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00038.

6) A OBSCENA SENHORA HILST MORAES, Eliane Robert. “A obscena senhora Hilst. Poemas eróticos disfarçam uma fina reflexão sobre a linguagem”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro [12-05-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00039.

7) INOCÊNCIA ESCANDALOSA ARAÚJO, Celso. “Inocência Escandalosa”. Jornal de Brasília. Distrito Federal. Caderno 2 [24-05-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00040.

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8) O CONFLITO ENTRE A SOCIEDADE E O ESCRITOR WILLER, Cláudio. “O conflito entre a sociedade e o escritor”.Folha de São Paulo, São Paulo. Jornal da Tarde. Caderno de Sábado [26-05-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00041/p. 55.

9) UM CADERNINHO PICANTE DOS SANTOS, Hamilton. “Um caderninho picante”. Playboy [s.l.], Prazeres Culturais [maio de 1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00042, p.55.

10) BRINCANAGENS DE HILDA HILST GABAGLIA, Marisa Raja. “Brincanagens de Hilda Hilst”. Diário popular. São Paulo [20-10-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00046.

11) UMA OBSCENA ESCRITORA DE RESPEITO [1990] CEDAE: HH. II. 7. 2. 00048, p. 55.

12) OURO PARA VOCÊS HILST, Hilda. “Ouro para vocês: eu mesma”. Correio popular. Campinas. Caderno C. [21-06-1995]. CEDAE: II. V. 2. 00173.

13) A SUBLIME HILDA HILST SEFFRIN, André. “A sublime Hilda Hilst”. D. O. Leitura. São Paulo [1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00047, p. 55.

14) LORI LAMBY O ATO POLÍTICO DE HILST PRADO, Luis André. “Lori Lamby, o ato político de Hilst”. O Estado de São Paulo. São Paulo. Caderno 2. Leitura. Erotismo. Polêmica. p. 4 [14-06-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00043, p. 55.

15) INOCENTES REVELAÇÕES DE FANTASIAS SEXUAIS TEIXEIRA, Wagner. “Inocentes revelações de fantasias sexuais”, O Globo, Rio de Janeiro, Segundo caderno [15-07-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00044, p. 55.

16) HILDA HILST CONTRATA A PUBLICAÇÃO LORI LAMBY NA ITÁLIA MEDEIROS, Gutemberg. “Hilda Hilst contrata a publicação do erótico “Lori Lamby” na Itália”. Diário do Povo. Campinas. Viver [14-11-1991]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00051.

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17) HILDA HILST EM ITALIANO. COMEÇANDO PELA TRILOGIA OBSCENA ANÓNIMO. “Hilda Hilst em italiano. Começando pela trilogia obscena”. Jornal da Tarde. São Paulo [08-01-1992]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00053.

18) ATESTADO DE MAU GOSTO OU MOTIVO DE ORGULHO NACIONAL? MENDES, Mario. “Brega até a alma”. Revista Elle. São Paulo. Cultural Piece. Ano 11. nº 128. [janeiro de 1999]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 2. 00055.

CARTAS PUBLICADAS [B]

1) O QUE É MORALIDADE? RIBEIRO, Pedro Lúcio. “Hilda Hilst”. Correio Popular, Campinas, Correio do Leitor [9-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00146.

2) ENCONTRO COM HH DE ALMEIDA, Liliam C. S. E. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor Campinas [janeiro de 1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00157.

3) ESTUDANTE PROBLEMATIZA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO CHAVES, Caio Márcio. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [9-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00145.

4) LEITOR INDIGNADO DENUNCIA “LICENCIOSIDADE” WUTKE, José Luís P. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [19-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00152.

5) LEITOR DENUNCIA A CENSURA “PURITANA” RIBEIRO, Pedro Lúcio. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [14-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00148.

6) O RETORNO DA DEUSA REFLETE-SE NOS “PURITANOS” SILVA, Nise. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [15-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00150.

7) HILDA ESCOLHEU O MAL E PODE SER CENSURADA KUHNE, Elisabeth. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [17-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00151.

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8) LEITOR CONDENA GODOY POR DEFENDER HILST LUPORINI MENEGALDO, Luciano. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Campinas.Correio do Leitor [8-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00143.

9) ILUSTRADOR ESTIGMATIZA HILST WUTKE, José Luís P. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [8-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00144.

10) REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE ARTE ROSA, Waldemar Paulo. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [25-01- 1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00155.

11) PARABÉNS PELA CRÓNICA “A ALMA DE VOLTA” LEMOS, Marisa. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor, Campinas [13-01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00147.

12) LEITORA PARABENIZA CRÓNICAS HILSTIANAS OLIVEIRA, Olga Mª V. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [15 -01-1993]. CEDAE: HH. II. V. 2. 00149.

13) CARTA SOBRE A HIPOCRISIA E OS DIREITOS DAS CRIANÇAS JOSEMI, Maria. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [8-01-1993] CEDAE: HH. II. V. 2. 00142.

14) AS CRIANÇAS APRENDEM A PICHAR AO LEREM PALAVRÕES ABREU, Barbara Pereira de. Correio Popular. Caderno C. Campinas [janeiro de 1993].CEDAE: HH. II. V. 2. 00156.

15) LEIAM HH ANTES DE JULGAR SUZUKI, Ana França “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas, (23- 01-1993). CEDAE: HH. II. V. 2. 00154.

16) HILDA HILST VENCEU… DIAS, Fábio Anderson. “Hilda Hilst”. Correio Popular. Correio do Leitor. Campinas [janeiro 1993] CEDAE: HH. II. V. 2. 00158.

17) CUIDADO COM SODOMA E GOMORRA! FERNANDES, José Salomão. “Pornografia”. Correio Popular. Campinas. [21-01-1993] CEDAE: HH. II. V. 2. 00153.

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CARTAS PESSOAIS [C]

1) CARTA PESSOAL DE PEDRO LÚCIO RIBEIRO RIBEIRO, Pedro Lúcio. Campinas. [3-01-1993]. CEDAE: HH.II.V.1 .00130. 2) CARTA DE ANIMALISTA Margarette (?), manuscrita, Campinas [18-04-1993] CEDAE: HH. II.V.1.00131. 3) SONHEI VOCÊ COMO UM ANJO JARA, Alfredo P. “e-mail”. Campinas [1-11-1993] CEDAE: HH. II. V. 1. 00133. 4) CARTA DE NELLY NOVAES COELHO NOVAES COELHO, Nelly. São Paulo [15-06-1990]. CEDAE: HH. II. IV. 7. 1. 00014. 5) PENSO O QUE VOCÊ ESCREVE PESTANA, Carmen Joana. Campinas [29-04-1994]. CEDAE: HH.II.V.1. 00136. 6) “PORNOGRAFIA” DEVORA O KARMA J. B. GARCIA. CEDAE: HH. II. IV. 7. 1. 00010, p.54. 7) CFA DENUNCIA HOMOFOBIA ABREU, Caio Fernando. Porto Alegre [13-12-1969]. CEDAE: HH. I. 2. 00050. 8) CFA DEPRIMIDO POR CENSURA E DITADURA ABREU, Caio Fernando [4-03-1970]. CEDAE: HH. I. 2. 00066. 9) JUVENAL NETO COMENTA SUA CRÍTICA NETO, Juvenal. São Paulo [3-03-1981]. CEDAE: HH. II. I. 2. 0006. 10) CARTA DE UM ADMIRADOR ABDALLA, Alfredo Ricardo. Novo Horizonte. SP [27-02-1987]. CEDAE: HH. II. I. 2. 00010. 11) BILHETE ANEXO Á TESE: A ESCRITURA DELIRANTE EM HH SILVEIRA MACHADO. Clara, s.d. CEDAE: HH. II. I. 2. 00015. 12) NÃO ME MOVO DE TI Ruth (?) Uni Santos - Faculdade de Comunicação, s.d. CEDAE: HH.II.I.2.00011, p. 25.B. 13) CARTA DE LETICIA PAULA PAULA “Letícia, Santos” SP [21-04-1993]. CEDAE: HH. II. 1. 2. 00014. 14) DIFICULDADE DE DISTRIBUIR POESIA GALVÃO, Donizete. Brasília: s.d. CEDAE: HH.II.VII.1.00273, p.73.

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15) LA BELLE DAME SANS MERCI GALVÃO, Donizete, São Paulo [maio de 1997] CEDAE: HH.II.VII.1.00442.

16) CARTA DE RICARDO DICKE DICKE, Ricardo Guilherme. Cuiabá [24-10-1990]. CEDAE: HH.II.VII.1.00297. p. 73. 17) CARTA DE INÊS Inês (?),s.d., CEDAE: HH.II.VII.1. 00447, p. 76. 18) O CADERNO ROSA DE HILDA HILST MORA FUENTES, José Luís. CEDAE: HH. II. IV. 7. 1. 00029. 19) CARTA DE FELICITAÇÃO E. DAHLSTROM, Iris. Campinas [3-12-1992]. CEDAE: HH. II. V. 1 .00129. 20) AGRADECIMENTO AOS ARTISTAS HELENA, Ana. Campinas [23-01-1994]. CEDAE: HH. II.V.1.00134. 21) A SALVAÇÃO VEM POR MEIO DA FÉ Sumaré [19-04-1995]. CEDAE: HH. II. V. 1.00138. 22) VISITEI O CARMELO E ENTREGUEI-ME À DEUS ALMEIDA PRADO, José Adelino de. Santos [12-11- 1966]. CEDAE: HH.I. 2.00034.

SELEÇÃO DE CRÓNICAS [D]

1) A ALMA DE VOLTA Correio popular (28-12-1992), apud, C&C, pp. 29-31. 2) BERTA – ISABÔ C&C, pp. 383-385. 3) (EGE) ESQUADRÃO GERIÁTRICO DO EXTERMÍNIO Correio popular (3-05-1993), apud, C&C, pp. 74-77. 4) MIRTA Correio popular (4 – 09 – 1994), apud, C&C, pp. 262-264. 5) NEGÃO SACANA, ISSO SIM! Correio popular (13-11-1994), apud, C&C, pp. 285-287.

6) BIZARRA, NÃO? Correio popular (2-04-1995), apud, C&C, pp. 326-328.

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FORTUNA CRÍTICA [E]

1) OBRA DE HILDA HILST DEIXA A GLOBO MEIRELES, Maurício. “Obra de Hilda Hilst deixa a Globo e vai para a Companhia das Letras”. Folha de São Paulo. Painel das letras. São Paulo [23-07-2016].

2) APRESENTAÇÃO POR LEO GILSON RIBEIRO HILST, Hilda. Ficções (São Paulo: Edições Quíron, 1977), pp. VII- XII.

3) TU, MINHA ANTA, HH HILST, Hilda. Pornô Chic [2014] Ilustração: Millôr Fernandes, Jaguar, Laura Teixeira, Veridiana Scarpelli. Fortuna Crítica: Jorge Coli, Humberto Werneck, Alcir Pécora, João Adolfo Hansen, Caio Fernando Abreu, Eliane Robert Moraes (São Paulo: Globo, 20141), pp. 252-255.

4) A FESTA ERÓTICA DE HH ABREU, Caio Fernando. In: Pornô Chic, pp. 256- 263.

5) A PROSA DEGENERADA ROBERT MORAES, Eliane. In: Pornô Chic.. pp. 264-269.

6) DISCRIÇÃO E FINURA COLI, Jorge. In: Pornô Chic. pp. 270-274.

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