UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MARIA SALETE DE SOUZA NERY

DE ARTE A NEGÓCIO OU DE WORTH A HERCHCOVITCH: AFINIDADES ELETIVAS, CATEGORIAS SOCIAIS E PROCESSOS SÓCIO- HISTÓRICOS: A CONFIGURAÇÃO MODA

Salvador 2009

MARIA SALETE DE SOUZA NERY

DE ARTE A NEGÓCIO OU DE WORTH A HERCHCOVITCH: AFINIDADES ELETIVAS, CATEGORIAS SOCIAIS E PROCESSOS SÓCIO- HISTÓRICOS: A CONFIGURAÇÃO MODA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Edson da Silva Farias

Salvador 2009

______

Nery, Maria Salete de Souza N456 De arte a negócio ou de Worth a Herchcovitch: afinidades eletivas, categorias sociais e processos sócio-históricos: a configuração moda / Maria Salete de Souza Nery. – Salvador, 2009. 371f.: il. Orientador: Prof. Dr. Edson da Silva Farias Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2008.

1. Sociologia – cultura. 2. Moda. 3. Worth, Charles. 4. Herchcovitch, Alexandre I. Farias, Edson da Silva. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.

CDD – 306

A

Nancy Nery, a quem continuo dedicando tudo que faço.

Victor Scarlato, que tem me ensinado sobre o que é dedicar-se em tudo que se faz.

Giovanna Nery, minha nova dedicação. AGRADECIMENTOS

A Victor Scarlato, pelo fundamental apoio, incentivo, afeto e ajuda ao decorrer de todo o período de estudos, trabalho e mudanças de percurso.

A Edson Farias, orientador e amigo, que acreditou em mim e nesse trabalho, incentivando a pesquisa no tema e o desafio da guinada de objeto.

Ao Grupo de Pesquisa em Cultura, Memória e Desenvolvimento, cujos debates e encontros fortaleceram apostas, abriram caminhos e se tornaram espaço fundamental de discussão a respeito de minha proposta de tese e de seu desenvolvimento.

Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UFBa, pelo apoio, atenção e cuidado de seus professores e funcionários.

Aos meus novos colegas da UFRB, pelo incentivo e compreensão nessa etapa final de trabalho.

A todos que contribuíram nessa trajetória, seja em aulas, em conversas, em incentivo, em carinho, em confiança, em compreensão, em solidariedade e em “puxões de orelha”.

Meu muito obrigada.

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. _ Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. _ A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco Polo –, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: _ Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Pólo responde: _ Sem pedras o arco não existe.

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, p. 79.

ABSTRACT

The starting point of this paper is the affirmation that there is a change of discourse in behalf of clothing creators, that emphasizes the business of fashion nature in the XXI century, unlike what occurred in the XIX century, when the figure of the first designer emerges (Charles Worth) parting from the statement that fashion is art. When stating that it was really about an art, Worth contributes to a significant change in status for those that worked with the creation of clothing designs, which is possible only in function to the transformations occurred in society’s ways of life in the XVIII and XIX centuries. At present, despite not having unanimity in that matter, a new change of discourse is noticeable among those dedicated to creating clothing: the statement that fashion is a business, in frank opposition to Worth’s statement. Despite, the conception that fashion is linked to creativity its business nature is emphasized. Therefore, it is considered that in the same way as in Worth’s time, such change of discourse can be interpreted in virtue to the transformations occurred throughout time. Fashion is heuristic to the comprehension of the century’s XX and XXI social relations, due to the growing value of appearance and its role in the capitalist development. In order to develop this research, fashion is defined as a production process, commercialization and consumption of symbolic goods directed to the composition of the immediately sensible (images, smells, tastes, sounds, surfaces), which acceptance/use is of ephemeral nature and is caused by likes, style, social constraints of variable order and/or deliberated choice on account of objectives and previously established expectations, assumed by the interdependent and functionality relations that tie their diverse individuals, the outlines of what the sociologist Norbert Elias called configuration. Therefore, fashion would be a configuration marked by four fundamental functions: business; product; expression and use. In this paper, clothing is specifically taken as the discussion point. The adopted strategy is through the trajectory of representative individuals of both mentioned poles to unravel the web of relations which are inserted and the configuration that holds them in their development process. In this manner, it will be possible to establish the links between mentioned poles. These two representative individuals are the Englishman Charles Worth, for his project of making fashion be recognized as art in the XIX century, and Alexandre Herchcovitch. In regard to this last one, the choice was made because he is a Brazilian of relative recognition in (and that seeks to build a solid international career) and who states fashion to be a business, which ends by guiding his professional trajectory and, therefore, his productions. Besides books that study fashion, luxury and capitalism, papers that discuss socioeconomic transformations of the period are also taken, as also academic and magazine articles as well as written books by Herchcovitch, taken for configuration analysis purposes.

Key words: Sociology of culture; fashion; configuration; Charles Worth; Alexandre Herchcovitch. SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...... 12 INTRODUÇÃO ...... 15

O debate sobre a moda ...... 21

As formas e a moda em Georg Simmel ...... 22 A teoria dos campos de Pierre Bourdieu e a moda ...... 33 A sociologia configuracional de Norbert Elias ...... 41

Configuração-moda, afinidades eletivas e a estrutura do trabalho ...... 48

PARTE I: WORTH, A MODA E O LUXO...... 63 OBRA EM PANOS: WORTH E O PROJETO DO COSTUREIRO COMO ARTISTA ...... 64 Worth, sua trajetória e a moda...... 65 O artista e a academia...... 78 Unicidade e mercantilização nas obras de arte e de moda ...... 88

O COSTUREIRO E SUA MAGIA: CRIATIVIDADE, HERESIA E MODA ...... 103 Criação e artifício...... 104 Símbolo e produção artística ...... 111

Indivíduo, liberdade e criavidade...... 117 Dom, vocao e arte ...... 121 Mimese e reconhecimento ...... 125

Arte e moda: a heresia ...... 136

ENTRE O ETERNO E O EFÊMERO: O LUXO NO SÉCULO XXI ...... 147 “In vestito” ...... 148 O luxo, a roupa e a mulher ...... 151 O pronto-para-usar e o não tão novo luxo...... 160 Distinção em época de “novo luxo” ...... 182

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PARTE II: HERCHCOVITCH...... 192 OS FIOS E A TRAMA OU “O CROQUI ARTÍSTICO ACABOU”: ALEXANDRE HERCHCOVITCH E O NEGÓCIO MODA...... 193 Judaísmo, comércio e capitalismo...... 198 Judeus, São Paulo e comércio de roupas ...... 211 Dener Pamplona de Abreu e a moda brasileira...... 221 Contexto de formação de Alexandre Herchcovitch ...... 232 Os anos 90 e o amadurecimento ...... 247 Os anos 2000 e a internacionalização...... 267 Processo criativo em moda, segundo Herchcovitch...... 288

CONCLUSÃO ...... 300 REFERÊNCIAS ...... 311

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APRESENTAÇÃO

Este pesquisa aqui apresentada seguiu tortuoso caminho até sua definição final. Nisso, em nada comparece em termos de originalidade. A construção do objeto se deu inicialmente em função de interesses despertados por minha atividade profissional enquanto professora da disciplina Antropologia Cultural. A inclinação pela interface entre sociologia e certas discussões da antropologia é prévia, mas se consolidou com a experiência de dedicar maior atenção a algumas questões e temas vinculados às alterações recentes sofridas na cidade de Salvador com as medidas governamentais implementadas pelo Governo do Estado no sentido de impulsionar o projeto turístico para a Bahia, cujo primeiro formato datava ainda da primeira metade do século XX. Estávamos a essa época nos primeiros momentos dos anos 2000 observando as conseqüências da reestruturação dos casarões de parte do Centro Histórico de Salvador, não definido propriamente como reforma, nem como restauração, menos ainda como revitalização. A palavra de ordem era baianidade, uma suposta identidade baiana vinculada a um modo de ser e de se relacionar com os outros que comparecia de modo denso, em especial, nas estreitas ruas de paralelepípedos do chamado “Coração do Pelourinho”, no Centro Histórico de Salvador. Comecei a observar a conjunção entre cenário histórico, medidas governamentais, novos moradores e comerciantes do Pelourinho, tipos de empreendimentos a que se concedia incentivos e alvará de funcionamento e, em especial, o modo de apresentação pessoal das pessoas que circulavam pela região. Ao mesmo tempo, era notório o aumento na quantidade de programas televisivos, matérias audiovisuais e impressas, livros que tratavam de “baianidade”. No entanto, comecei a perceber igualmente o crescimento de uma idéia e projeto de “moda baiana”, vinculada à noção de baianidade e estimulada a partir do incremento de eventos locais e de cursos, inclusive de nível superior, que tinham começado a surgir atraindo contingente razoável de pessoas. Os anos 2000 e 2001 (até o episódio de 11 de setembro) foram de ascensão dos índices de consumo no país e em outros países. O momento parecia favorável ao desenvolvimento local de moda. Foi então que passei a direcionar meu interesse mais especificamente à moda feita em Salvador a partir de sua vinculação à questão identitária. Eu queria compreender, em primeiro lugar, o que vinha sendo denominado de moda baiana. Ou, em termos mais precisos, eu objetivava discutir a 13

constituição da identidade local como inspiração na criação de vestuário por estilistas radicados em Salvador. O projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UFBa, foi estruturado a partir de quais questionamentos. E então já havia se colocado o interesse por minha parte de fazer a investigação a partir da perspectiva de sociologia configuracional desenvolvida por Norbert Elias.

No entanto, ao acompanhar entrevistas com estilistas brasileiros divulgadas em jornais e revistas, comecei a observar que, mesmo quando não questionados a respeito, era comum surgir a afirmação de que a moda é um negócio, o que muitas vezes comparecia em paralelo à negação de que a moda seria uma arte. Em pesquisas mais aprofundadas quanto ao processo de desenvolvimento da moda internacionalmente, meu interesse foi despertado pela trajetória do inglês Charles Worth e pelo modo como começou a trilhar um caminho de sucesso com seu trabalho como costureiro (o termo estilista surge no século XX). Como já havia tomado conhecimento de obras seminais de Elias, como Sociedade de corte, Mozart e Processo civilizador, bem como trabalhos de Pierre Bourdieu, como A distinção, As regras da arte e o artigo O costureiro e sua grife, utilizei esse instrumental para construir uma discussão inicial, apresentada em seminário ao Grupo de Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento, do qual faço parte, a respeito de Charles Worth e sua afirmação de que moda é uma arte. O fio condutor da discussão foi tentar compreender a polêmica que se instaura a partir de Worth e quais as conseqüências da mencionada afirmação no que se refere ao trabalho com moda. Desde aí eu já anunciava que uma mudança tinha se processado e que isso era perceptível através das afirmações de que moda é negócio. Meu interesse por essa questão que tanto despertava minha curiosidade crescia à medida que eu aprofundava as pesquisas. E a questão da produção local de moda começou a ficar distante. Era instigante para mim perceber o que poderia ter contribuído para tal mudança discursiva. No entanto, mantive a proposta inicial no exame de qualificação de tese, mas não o suficiente para encobrir minha nítida inclinação por esse problema que me era tão instigante. Por sugestão e incentivo dos membros da banca de qualificação, o que inclui meu orientador, professor Dr. Edson Farias, em outubro de 2006 abandonei o tema original. A partir daí comecei a me dedicar plenamente ao problema de compreender a mudança de acento discursivoo que ia da afirmação, no século XIX, de que a moda seria uma das artes ditas superiores, para a afirmação, no século XXI, de que a moda seria um negócio. Melhor fundamentada, mantive a intenção de experimentar o aporte eliasiano, que parecia trazer pontos favoráveis à compreensão das interações humanas e ultrapassar alguns problemas mais evidentes de outras 14

propostas sociológicas, ainda que estas permaneçam como importante contribuição a este trabalho. Em 2007, por fim, uma série de acontecimentos me ajudaram a definir questões específicas da pesquisa. Confesso que, em momento algum, vislumbrei a possibilidade de me ater à trajetória de uma grife internacional. Eu desejava um contraponto interessante, contemporâneo e brasileiro para Worth. Cogitei alguns nomes e comecei a pesquisá-los. Ainda que, a rigor, eu conseguisse dar conta da configuração moda brasileira independente de tomar um estilista ou produtor de moda como ponto de partida, resolvi escolher um estilista para manter certo equilíbrio com a função de Charles Worth. Do mesmo modo, vários estilistas pareciam interessantes, mas o reconhecimento que o paulista Alexandre Herchcovitch já apresentava, seu empenho na internacionalização de sua marca e sua vinculação ao rol, não unânime, de estilistas que afirmam que a moda é um negócio me fez tomá-lo como esse contraponto necessário para os fins de minha investigação. Assim, meu objetivo passava pela compreensão dos fios que atavam Worth, inglês radicado em , e Alexandre Herchcovitch, brasileiro, em uma mesma configuração e que, ao mesmo tempo, os distanciavam em termos de visão a respeito da moda. O lançamento, ainda em 2007, do livro Cartas a um jovem estilista, de autoria de Alexandre Herchcovitch apenas veio no sentido de corroborar minha escolha e incrementar a pesquisa aqui apresentada com essa referência que se tornou o eixo principal da discussão a respeito do trabalho de Herchcovitch, tomado aqui (da mesma forma que a própria moda) como heurístico à compreensão de processos mais amplos.

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INTRODUÇÃO

“Minha história é moda. E moda é negócio, por esse motivo no exterior o segmento é conhecido por indústria da moda”. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 39)

Talvez, nos atuais dias, a frase de Alexandre Herchcovitch, estilista brasileiro de carreira também internacional, chegue a soar, de certo modo, banal. Parece evidente a identificação da moda como um negócio. No entanto, se tal afirmação é “comum”, deveríamos questionar o porquê de sua enunciação. Aquilo que já está devidamente assentado pouco carece de declarações tão contundentes. Esse foi o ponto de partida para a pesquisa aqui apresentada. Afirmações como a de Herchcovitch foram lidas em entrevistas com indivíduos renomados da moda nacional e internacional. A curiosidade, contudo, foi apenas despertada com a percepção de que, em alguns casos, afirmações similares surgiam sem que houvesse questionamento por parte do entrevistador a respeito de uma possível identificação da moda com a arte. O ponto nodal estava na tentativa de dissociar a moda quanto ao trabalho artístico (em sentido “tradicional”), algo que parecia dever ser explicitado em frases categóricas, como o exemplo da entrevista realizada pelo Jornal A Tarde com Paulo Borges, “mentor e diretor artístico do São Paulo Fashion Week”, maior evento de moda do Brasil, em 08 de fevereiro de 2002. Ao caracterizar a moda, Paulo Borges afirma:

O profissional não pode fazer roupa só até onde o braço alcança; tem que fazer roupa para o mundo. Pode ser negativo [fazer uma moda voltada apenas a um público local] porque ela vai estar agradando aquelas pessoas que estão só ali, e nós vivemos num mundo capitalista; moda é business, moda não é arte. A moda pode trabalhar com arte, mas não é para pendurar na parede e ser vendida por US$ 100 milhões. (LAGO JÚNIOR, 2002). A 12 de julho do mesmo ano de 2002, em entrevista ao Jornal Hoje, o estilista Walter Rodrigues faz afirmação similar:

Jornal Hoje: O que mais te motivou seguir esta carreira? Walter Rodirgues [estilista]: Eu acho que moda é uma forma de se expressar. Você tenta passar alguma coisa. Não considero uma arte, mas comércio1. Na revista Vogue Brasil, edição especial de Verão 2003, Costanza Pascolato igualmente discorre:

1 Acesso em: http://redeglobo.globo.com/CGI-bin/jornalhoje/montar_texto.pl?controle=4061. 16

A moda não é absolutamente uma arte. Trata-se sim de uma arte aplicada (ouvi dos estilistas Vivienne Westwood e Helmut Lang em entrevistas), mesmo se em alguns aspectos a criação de moda tem pontos em comum com a arte. Não podemos esquecer que, mais do que nunca, a verdadeira legitimidade da criação de moda está na venda de roupas. A mais bela peça, se não for vendida e não for usada, perde sua razão de ser. A autêntica aprovação do talento de um criador é quando o modelo (por ele criado) encontra sua consumidora. A genuína aclamação se dá entre a “arara” (cheia de cabides com as roupas) e a cliente na loja. O resto tornou-se simplesmente a glamourização deste encontro comercial. (PASCOLATO, 2003, p. 18). Ou seja, a qualificação da moda em seu possível reconhecimento como uma das artes estava no teor de sua dependência quanto aos ganhos econômicos. É em função de objetivos comerciais que a moda é, então, classificada como distinta da arte. Porém, ao consultar livros de história da moda, frases opostas eram encontradas em Schiaparelli, Balmain, Poiret, entre outros, que enfatizavam a renúncia a ganhos comerciais como definidor de suas respectivas posturas de trabalho2. Seguindo a ordem cronológica inversa, somos confrontados com Charles Worth, um inglês de origem popular do século XIX que migra para Paris e lá consegue se estabelecer como o primeiro criador de moda; isto é, como o primeiro costureiro no “sentido moderno” do termo. Worth, hoje pouco lembrado por suas criações, afirmava ser um artista e, por isso, assinava seus desenhos de vestuário (croquis), ao passo em que se vestia semelhante a Rembrandt. Contudo, isso não significa que houvesse qualquer unanimidade no século XIX a respeito da questão, do mesmo modo que não há no XXI. O que se percebe é um acento discursivo que pendia para a tentativa de afirmação, no século XIX, da moda como arte, ainda que sem negar interesses comerciais, e que passou a pender com mais intensidade para a afirmação de que moda é negócio (e, pois, não-arte, mas, ainda assim, um trabalho pautado na criatividade), no século XXI. O que pode ter contribuído para a mudança em tal acento discursivo, favorecendo a assunção da moda como negócio?

Considera-se que uma conjunção de relações teria contribuído para a paulatina mudança de acento discursivo ao longo do século XX. Em lugar de eleger um possível elemento para discussão, a opção aqui assumida é apresentar, nessa constelação, um conjunto de fatores que, em suas afinidades, teriam processualmente confluído e se encadeado de modo a – com as transformações na configuração – possibilitar o desenvolvimento dessa interpretação sobre moda e sobre o trabalho com moda. Para tanto, a estratégia escolhida foi, inicialmente, explicitar o contexto de mudanças nos padrões de interação que permitiu que o pequeno-burguês Worth ascendesse na Paris do século XIX a partir de seu ofício de criar

2 Pierre Bourdieu e Yvette Delsaut assinalam isso em seu texto (2002). 17

roupas, e não apenas de confeccioná-las em conformidade com as designações de aristocratas. Por outro lado, fazia-se igualmente necessário escolher, na configuração atual, um indivíduo, de preferência também criador, e que afirmasse que a moda é negócio a fim de proceder trabalho interpretativo similar àquele em relação a Worth. Deste modo, ao buscar a compreensão do processo que une ambos numa mesma série de acontecimentos, seria possível perceber a conjunção entre transformações sociais e de categorização social sobre moda. A opção foi por escolher um estilista brasileiro, pois, ao mesmo tempo em que se compreenderia amplos e internacionais processos, se teria a oportunidade de igualmente compreender o desenvolvimento da configuração-moda no Brasil em seus vínculos com a configuração-moda mais ampla, cujo equilíbrio de tensões historicamente favoreceu em especial a França como nódulo de maior densidade de concentração de poder de decisão a respeito de questões de moda. Com tais interesses, o estilista brasileiro escolhido foi o paulista Alexandre Herchcovitch, o que se deu em função de alguns critérios básicos. O primeiro deles, anteriormente destacado, é que o estilista defende inequivocamente a concepção de que a moda é um negócio. O segundo é que a sua carreira está ainda em processo, o que nos permite uma visão mais atual da configuração, e, além disso, sua carreira teve impulso a partir dos anos 1990, o que faz com que Herchcovitch possa ser caracterizado como representante de uma “nova geração” de estilistas brasileiros, inclusive com formação universitária em moda. O terceiro critério é de que o estilista tem suas coleções apresentadas no São Paulo Fashion Week, que, junto ao Fashion Rio, são os dois maiores eventos nacionais. Quarto, o estilista conseguiu angariar reconhecimento junto aos especialistas e tem explícito projeto de internacionalização da marca, contando até com a inauguração, em 2007, de uma loja própria em Tóquio. Por fim, sendo natural de São Paulo e mantendo sua sede na citada cidade, Alexandre Herchcovitch nos permite, a partir de sua trajetória, apreender a constituição de São Paulo como maior pólo de produção de moda do país. Não há qualquer pretensão aqui em esgotar o assunto, e sim apresentar os delineamentos que permitem compreender as transformações em curso. E, do mesmo modo que Norbert Elias, podemos afirmar a intenção de “traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo. Tal estudo não é uma narrativa histórica, mas a elaboração de um modelo teórico verificável da configuração que uma pessoa (...) formava, em sua interdependência com outras figuras sociais da época” (ELIAS, 1995, p. 18/19). Não se trata de elaboração de história de vida ou da biografia, seja de Worth ou de Herchcovitch. Tais indivíduos são tomados enquanto permitem considerações que os ultrapassam como indivíduos, por permitir vislumbrar a rede, mas, sem dúvida, a rede da qual fazem parte de modo, em grande medida, 18

privilegiado. Nesses termos, Worth e Herchcovitch são heurísticos, mas outros indivíduos poderiam ser tomados para fins de pesquisa. Igualmente, o tema moda é apresentado enquanto revelador de relações mais amplas, posto que múltiplas. É nesse sentido enriquecido que tomamos o modelo configuracional como base de interpretações.

Em suma, a partir das respectivas trajetórias de Charles Worth (inglês radicado na França no século XIX) e Alexandre Herchcovitch (brasileiro da passagem do século XX e XXI), ambos criadores de vestuário, busca-se compreender as transformações sociais ocorridas ao decorrer do período na configuração-moda e que podem ter contribuído para uma mudança de acento discursivo, no século XXI, que enfatiza ser a moda prioritariamente um negócio, diferente da afirmação comum, no século XIX, por parte de criadores de moda, de que moda era uma arte. Com vistas a tal objetivo prioritário, foi realizada uma revisão bibliográfica acerca de estudos sobre moda escritos, principalmente, por sociólogos. A partir de tal revisão, buscou-se definir moda a partir da sociologia configuracional de Norbert Elias e identificar seu papel no mundo moderno-capitalista, o que tem como apoio a revisão de trabalhos que versam sobre o desenvolvimento capitalista e, especificamente, em sua relação com a produção e comércio de roupas e acessórios. A via de discussão é a comparação entre as trajetórias de vida e produção de Worth, considerado o primeiro estilista no sentido moderno no termo, e que afirmava ser a moda uma arte, e de Herchcovitch, que afirma ser a moda um negócio. A mencionada comparação, construída em função dos respectivos contextos sócio-históricos contribuiu para a identificação de fatores que podem ter ocasionado a mencionada transformação discursiva, ao mesmo tempo em que permitiu tal compreensão como um processo histórico, ou seja, como um continuum que acaba por atar as trajetórias de Worth e de Herchcovitch como representativos de diferentes momentos dentro de uma mesma configuração. Por fim, ainda foi possível compreender, ainda que de modo sumário, a configuração da moda brasileira em seu momento atual.

Ainda que círculos mais densos de interlocução venham se forjando no sentido de contribuir para a compreensão de temas como moda, é ainda notória a deficiência quanto ao efetivamente produzido – em especial, no que se refere à bibliografia em língua portuguesa. Refiro-me mais precisamente a produções que tenham por intento uma reflexão mais acurada acerca do processo de desenvolvimento da moda, para além de uma mera e falha apresentação da cronologia de estilistas e de algumas transformações nas peças de vestuário. A discussão a respeito de moda ainda é alvo de uma série de restrições, apesar da crescente quantidade de trabalhos que vêm buscado tomar o tema e tratá-lo de modo mais qualificado. Reconstruir 19

encadeamentos é tarefa crucial, mas ao mesmo tempo consideravelmente perigosa. Sua importância se deve à necessidade de compreensão do percurso humano, por seu valor de conhecimento e transformação; seu perigo está na possibilidade de atribuir a uma narrativa, equivocadamente, o caráter de verdade e, assim, embotar tanto sua parcialidade quanto uma série de complexas relações (de poder, inclusive) que subjazem seu fazer. Além disso, um outro perigo de similar grandeza, que se mantém em fina associação aos já mencionados, é o indiscutido em que permanece o fundo de interpretação a partir do qual as elaborações são feitas – como se esses “horizontes interpretativos” fossem dados, e não igualmente um ponto de vista assumido pelo autor e, que, pois, deve ser claramente exposto à discussão.

No que se refere ao tema moda, por sua vez, as dificuldades principiam pelo próprio termo. Carente de uma definição mais precisa, a palavra “moda” acaba por fazer parte desse mencionado rol do indiscutido, ou melhor, do pouco discutido. As referências por excelência consultadas se mantêm quase restritas a obras do século XIX – nas contribuições de Spencer, Tarde, Veblen e Simmel (este último já na passagem para o século XX), intelectuais motivados pelas visíveis transformações sofridas pelo mundo urbano-industrial. Considerando o século XX, podemos apontar Sombart, Bourdieu, Baudrillard, Barthes, Lipovetsky e alguns intelectuais da Escola dos Annales (a exemplo de Daniel Roche) como importantes e reconhecidos expoentes – um número bastante simplório, em especial no que se refere à sociologia, considerando o século XX ser marcado, em grande medida, pelo consumo e por aquilo a que Jean Baudrillard (1996) e depois Lipovetsky (1997) apresentaram como uma espécie de generalização de uma lógica de produção de moda para os mais diversificados produtos do mundo capitalista3. Conforme Baudrillard, as relações humanas como um todo estariam assumindo características da moda.

Sombart, na primeira década do século XX, já apontava a íntima relação entre o luxo e o desenvolvimento capitalista. Segundo ele (1979), o comércio de bens de luxo teria sido o principal motor ao capitalismo. O luxo não se limitava ao vestuário, mas como o têxtil foi um privilegiado produto das primeiras indústrias, nascidas nos séculos XVIII e XIX, muito cedo assumiu o duplo caráter de bem de luxo, distintivo, e industrial. Assim, o movimento de usos e desusos de vestuário correu em paralelo ao desenvolvimento da lógica de produção e consumo no capitalismo pautado em similar movimento. Não há como determinar qualquer causalidade, mas apenas evidenciar as afinidades que ligaram vestuário e capitalismo na história ocidental. A afirmação de Baudrillard e de Lipovetsky indica que esse

3 Veja-se, por exemplo, a discussão de Sombart (1979) acerca do papel dos bens de luxo no desenvolvimento do capitalismo. 20

paralelismo contribuiu para aquilo que passamos a compreender como típico da moda, suas características principais, dada a mencionada afinidade com o capitalismo, e o desenvolvimento que o capitalismo assumiu a partir, inclusive, dessa afinidade, teria levado paulatinamente a que diferentes produtos viessem a ser produzidos e consumidos como moda. Tal afirmação tem maior abrangência do que a mera afirmação de uma valorização da aparência, apesar de tal fator estar incluído nesse rol de discussões. Trata-se do movimento de usos e desusos, referido também a questões de possível funcionalidade dos produtos. Especialmente Baudrillard vai ainda além e identifica na moda uma espécie de lógica que passa a reger mesmo as interações humanas, seja nas relações de trabalho ou mesmo nas afetivas. O mundo capitalista, nesses termos, seria um “mundo moda”, cuja implicação inicial estaria na provável vinculação entre compreensão das transformações na produção/consumo de moda, no capitalismo de modo geral e nas interações sociais de modo conjugado.

Ao lado desses autores está Norbert Elias (1897-1990). Tributário das discussões, em especial, de Weber, Elias apresenta uma proposta de compreensão do mundo social a partir de idéias como a de configuração e de longa duração que podem ser de grande valia a um debate sobre moda – ainda que esse autor não tenha se dedicado ao tema como ponto central de suas considerações. Elias lança explícitas críticas à formulação de teorias a partir de dualismos e nominalismos – o que contribui para dirimir uma compreensão equivocada da moda enquanto conjunto quase insondável de (supérfluas) contradições, passo necessário à assunção de uma interpretação que tente destrinçar suas ambivalências Em acréscimo, trata-se de um pensador igualmente interessante devido à afinidade do assunto moda com os temas característicos de sua escolha – este autor, por vezes, conferiu visibilidade a objetos considerados pouco sociológicos e, portanto, marginalizados com o estigma de não- acadêmicos, tais como etiqueta, emoções, lazer e esporte. Por outro lado, estes mesmos temas ajudam a iluminar as discussões que se intenta aqui travar; isto é, apesar de o autor não ter dedicado um estudo à moda, este tema "ronda" e perpassa seus trabalhos.

Através desta pesquisa, portanto, é estabelecido um diálogo entre os trabalhos de Norbert Elias e o tema moda a partir de algumas formulações e noções tecidas pelo autor, a serem exploradas em conformidade com as exigências do próprio tema e em obediência ao curso da discussão. Nesses termos, é crucial nesta parte inicial do trabalho apresentar o processo de construção da definição aqui utilizada de moda, e os diálogos estabelecidos com cientistas sociais do século XIX e XX para tal fim, e que, igualmente, pautaram a escolha do aporte eliasiano para o desenvolvimento da pesquisa. 21

O debate sobre a moda Os desafios impostos pela tentativa de compreensão do mundo social ou, em outros termos, do que significa a percepção de seres singulares (indivíduos) que, a partir de vínculos de interação, formam redes que parecem assumir relativa autonomia sobre esses mesmos indivíduos levaram à constituição de diferentes propostas de teoria, que, a despeito de suas singularidades mais evidentes, guardam igualmente inúmeras proximidades entre si. Deste modo o resgate contínuo das bases que sustentam as propostas de teoria social que circulam e são atualizadas por diversos pesquisadores em seus específicos trabalhos é fundamental. Mais do que isso, trata-se da necessidade crescente de não apenas reconhecer a existência de suas diferenças, mas de percebê-las dentro de um mesmo continuum, isto é, a partir dos fundamentais pontos de partida e de encontro que ligam as propostas. A tessitura das relações entre desenhos teórico-metodológicos distintos permite visualizar com maior clareza as especificidades que nos levam a adotar modelos, bem como perceber o que neles se deve emendar e superar na busca de propostas em melhor conformidade com o objetivo sociológico de “dar conta” do mundo social. Se isso é válido quanto a teorizações mais abstratas, o mesmo pode ser afirmado quanto a temas específicos, a exemplo da moda, cujas discussões (no âmbito das ciências sociais) iniciam em fins do século XIX com as contribuições de Herbert Spencer, Gabriel Tarde, Thorstein Veblen, nos anos 1880, e, na primeira década do século XX, Georg Simmel. Após isso, novas contribuições, à exceção do trabalho de Werner Sombart (publicado em 1913), surgirão apenas a partir dos anos 1960, quando transformações nítidas no “mundo da moda” incitarão novos trabalhos, como é o caso da tentativa de interpretação da moda a partir da semiologia, com Roland Barthes e, logo após, Jean Baudrillard, que em muito contribuíram para as interpretações de Gilles Lipovetsky nos anos 1980, ou a significativa discussão de Pierre Bourdieu ainda nos anos 1970 acerca da distinção, tomada como tema geral, e da moda, trabalhada em textos específicos. De qualquer modo, apesar da distância temporal que marca tais obras, é perceptível um fio de continuidade que as une a partir das contribuições dos autores do século XIX. Deste modo, em lugar de fazer um arrolamento de cada um dos trabalhos, a opção será, a partir da escolha de autores seminais, do ponto de vista desta pesquisa, buscar refazer o percurso das principais discussões sobre moda nas ciências sociais. Para tanto serão tomados Georg Simmel, autor que ajudou a sintetizar inicialmente as contribuições de seus antecessores numa discussão a respeito de moda, Pierre Bourdieu, por suas elaborações que conseguem discutir o tema a partir de interações humanas e com visada contextual, e Norbert Elias. No caso deste autor, apesar de ele, como mencionado, não ter efetivado discussão 22

específica a respeito do tema, será tomado porque este trabalho de pesquisa buscará compreender a moda enquanto uma configuração.

Longe de hierarquizar as propostas pelos autores apresentadas, a intenção neste trabalho foi expor articuladamente alguns pontos de suas discussões, buscando as articulações entre eles. Contudo, esses autores, como outros tantos que poderíamos citar, se valem de noções variadas em seu trabalho. Configuração, constelação, estrutura, símbolo, campo, mundo, esfera são algumas delas. Discutir tais termos e perceber seus diferentes usos (e as implicações desses usos no que se refere a concepções teóricas e a desdobramentos metodológicos) é crucial à condução de qualquer trabalho de pesquisa de caráter sociológico que faça uso de tais autores e propostas teórico-metodológicas. Nesse sentido, as considerações sobre moda serão apresentadas em função dos respectivos panos de fundo conceituais dos mencionados autores.

As formas e a moda em Georg Simmel A despeito do caráter ensaístico que marca parte considerável de sua obra, o pensamento simmeliano parece longe da assistematicidade de que, por vezes, é acusado. A base fundamental da arquitetura de conceitos construída pelo autor e que permite compreender os aspectos decisivos de suas reflexões em sociologia e em filosofia está em sua concepção acerca da especificidade do ser humano: a capacidade de “construir pontes e portas”, ou seja, de estabelecer ligações e, para tanto, separações entre os diferentes elementos que compõem o mundo, retirando-os do fluxo constante da vida “como se” fossem entes singulares, e compondo, a partir dos liames construídos entre eles, figurações (ou configurações), sempre transitórias e parciais, devido à possibilidade de sempre se construírem renovadas configurações a depender do posicionamento do sujeito em relação a seu objeto. Em outros termos, trata-se da capacidade de síntese, que permite a exteriorização da unidade vital em formas objetivas, que despertam e explicitam sentidos possíveis dissolvidos na pluralidade da vida. A construção de formas, para Simmel, é o mecanismo humano geral de apreensão da vida por estabelecimento de liames entre elementos que se percebe como separados. Assim, o pesquisador, como um geômetra, constrói formas de formas, tendo em vista a incompletude daquelas encontradas na vida, continuamente abandonadas na edificação de novas4 (MORAES FILHO, 1983). A ele caberá, pois, relacionar os fragmentos de forma construídos historicamente. Este procedimento cognitivo representa o

4 E nisso Simmel se distancia de Kant, para quem as formas de compreensão humanas são imutáveis. 23

caminho mesmo da história humana que, de totalidade mais coesa, se agita em direção a uma série de diferenciações que dão margem ao modelamento de novas totalidades. As formas não são apenas um modo de apreensão do mundo, elas constroem o mundo e vão mudando em conformidade com o mundo, afinal constituem com ele uma totalidade. Deste modo, para Simmel, o estudo a respeito da moda, como uma forma social, não se limita à reflexão de um tema específico que diz respeito às interações humanas, mas confere a possibilidade de compreensão da vida social em sua riqueza. No entanto, tomar aspectos da vida, “retirá-los” do fluxo, e conformá-los, dar-lhes forma, portanto, é simultaneamente aprisionar e limitar os sentidos em configurações, fragmentos, portanto, da totalidade inesgotável original, uma vez que nada são além de uma perspectiva possível de apreensão dos conteúdos da vida. Por isso, o Simmel aventureiro instiga sempre o observador a “girar” o seu objeto com vistas a relativizar o próprio olhar e conseguir perceber na constelação, enquanto pluralidade de sentidos, diferentes configurações, sínteses possíveis de serem construídas, objetos distintos a serem estudados cientificamente (SIMMEL, 2002b, WAISBORT, 2000). As constelações, como um agrupamento de fatores passíveis a interligações, são, portanto, marcadas pela multiplicidade. Este, inclusive, é o modo como Weber (1999) utiliza a noção ao definir como objeto de interesse da revista Arquivo para a Ciência Social e Política Social apenas a constelação em que os “fatores” agrupados formam fenômenos culturais historicamente significativos que, a fim de serem causalmente explicados, levariam à consideração de outros agrupamentos singulares – o que significa haver já a interferência humana numa primeira delimitação geral, cabendo, então, perceber e interpretar as ligações possíveis. Por sua vez, as configurações construídas (pois trata-se de imputação de sentido) podem vir a servir de elementos à composição de novas e mais complexas sínteses em sentido vertical (sínteses mais abstratas, a exemplo do mundo da arte, da religião e da ciência) e também em sentido horizontal (enquanto sínteses historicamente remodeláveis).

Por que el hombre es el ser que liga, que siempre debe separar y que sin separar no puede ligar, por esto, debemos concebir la existencia meramente indiferente de ambas orillas, ante todo espiritualmente, como uma separación, para ligarlas por medio de un puente. Y del mismo modo el hombre es el ser fronterizo que no tiene ninguna frontera. El cierre de su ser- en-casa por medio de la puerta significa ciertamente que separa una parcela de la unidad ininterrumpida del ser natural. Pero así como la delimitación informe se torna en una configuración, así también su dilimitabilidad encuentra su sentido y su dignidad por vez primera en aquello que la movilidad de la puerta hace perceptible: en la posibilidad de salirse a cada instante de esta delimitación hacia la libertad (SIMMEL, 2001, p. 53). 24

Por outro lado, o “girar” o objeto ou o movimentar a porta é evidenciado, nas elaborações de Simmel, em sua tentativa de dar conta das ambivalências presentes em qualquer objeto. No caso da moda, o autor busca interpretar a forma a partir dos jogos entre os duplos imitação/ distinção, originalidade/ anonimato, dentre outros, concebidos como funcionalmente interdependentes. É dessa forma que ele recupera o jogo imitação/distinção anunciado por Herbert Spencer, em 1883. Em seu texto “Le manière et la mode” (s.d.), Spencer inicia uma discussão mais fina sobre o tema da moda ao relacioná-lo ao par imitação e distinção, tema que será continuamente retomado nos debates posteriores sobre moda. Do ponto de vista de Spencer, as classes inferiores imitam as superiores que, para se distinguirem, acabam por criar novas formas de conduta e de aparência para manter as marcações sociais vigentes. Este seria, inclusive, o papel das leis suntuárias, medida legal de delimitação de fronteiras entre classes distintas, através de proibições no uso de certos tecidos, em seu tipo e/ou metragem, e mesmo aviamentos. Seja na imitação como forma de reverência àquele hierarquicamente superior, seja como modo de afirmação de igualdade social, a moda então teria “nascido”, para Spencer, como mecanismo que categoriza ao permitir enxergar nos corpos as definições de camadas sociais. Em outros termos, a moda comparece como elemento de identificação, e, pois, distinção entre grupos. Spencer concebe a moda a partir da articulação dos dois termos – imitação e distinção – dentro de um processo simultâneo e incessante. Uma vez que a moda é apontada como marcador social, ela pode servir como mecanismo que contribui igualmente para borrar as fronteiras instituídas entre grupos, em especial por tratar de uma questão de aparência, e não de um conhecimento intelectivo que demandaria uma formação continuada particular. Nas disputas por prestígio e reconhecimento, elementos de aparência seriam mais facilmente enganadores, ao mesmo tempo em que possuiriam mais imediato efeito. E a industrialização, para Spencer, teria oferecido as ferramentas necessárias para que indivíduos das camadas inferiores da sociedade tivessem efetivas condições de rivalizar com as superiores: dinheiro. Antes as riquezas eram restritas à aristocracia; agora, o enriquecimento era um processo possível e que permitia, por exemplo, ao burguês comprar a aparência aristocrática e ser aceito, apesar de ser apenas m burguês vestido como aristocrata. Ora, o modo de a aristocracia manter seu caráter distinto, de acordo com Spencer, era mudar sua aparência quando seus trajes ganhavam generalidade, num ritmo, portanto, cada vez mais veloz. A mudança começa a ter fim em si própria, enquanto o gosto e o bom-senso no vestir vão sendo abandonados em nome da mera futilidade das trocas, comprometendo, ainda segundo Spencer, o ideal da elegância. 25

Do ponto de vista de Simmel, no entanto, imita-se não apenas por reverência ou desejo de aproximação, mas também por busca de segurança na filiação a um grupo. Ao destinar a outros a responsabilidade de ser original, e o risco de reprovação social dele decorrente, o indivíduo aceita a indiferenciação do anonimato no agir de determinado modo “porque os demais agem assim” e se torna o oposto do homem teleológico, que age com vistas a um fim. Para Simmel, a moda é simultaneamente a imitação, que promove o indivíduo a mero exemplo de uma regra, e a distinção, pela singularidade que assume cada moda em comparação com os usos alheios e com as modas anteriores. No entanto, para Simmel, o caráter distinto da moda se dá, fundamentalmente, porque, para o autor, são modas de classe. Do mesmo modo que Spencer, Simmel afirma que as chamadas classes inferiores imitam as superiores, que, portanto, abandonam suas modas para manter a distinção e justificam, desse modo, a arbitrariedade da moda, evidenciada na assunção daquilo que não se relaciona com a vida prática e que pode, inclusive, ser qualificado como feio. Quanto maior a proximidade entre os círculos sociais, mais fácil se torna o uso da moda para diminuir a distância ainda existente e a velocidade das mudanças pelo estrato superior no sentido de impedir tal encurtamento de distâncias. Nesses termos, quanto maior o desenvolvimento urbano e a individuação, mais intenso se torna o jogo imitação/distinção. O anonimato proporcionado nas grandes urbes impeliria o uso de marcadores visíveis como instrumentos privilegiados para a definição de fronteiras de grupo. Ao mesmo tempo, o autor acaba delegando às classes médias o papel de conferir maior velocidade à moda, já que, ao mesmo tempo, desejaria se aproximar da classe superior e se distinguir da classe mais inferior. Fazer isso significa assumir o elo entre moda e capitalismo, a tema de discussão por Werner Sombart, em Lujo y capitalismo. Segundo o autor (1979), os principais produtos comercializados nos primórdios do capitalismo, como afirmado, eram ligados ao luxo. E nisso estavam postos tecidos e roupas, espelhos, açúcar, café, dentre outros. Apesar da menção às roupas feitas, o autor destaca que a base capitalista esteve associada ao trabalho fino, o que remonta mais propriamente ao sob medida. Por demandarem maiores investimentos, os bens de luxo acabam se caracterizando pelo quilate dos cuidados desprendidos ao longo de todo o processo, no sentido de evitar as grandes perdas a que se estaria sujeito. A matéria-prima era de alto custo (por vezes importada); o fabrico, em grande medida artesanal, era mais minucioso (exigindo dedicação e mais aprofundados conhecimentos – o que contribui para a especialização de tarefas); e, por fim, a distribuição e a venda deveriam estar em conformidade com o produto, em termos de seus cuidados e requinte. Coisas que, portanto, poucos estavam em condições tanto de fabricar como de adquirir. Daí a idéia de distinção e, 26

pois, imitação ter surgido na esteira das discussões sobre moda, evidenciando que moda e luxo, no século XIX, estavam atados, diferente do que ocorrerá no século XX com a ascensão do prêt-à-porter. O interesse na possível relação entre moda e capitalismo, como objeto de estudo, mantém-se presente e tem em Gilles Lipovetsky um dos seus expoentes.

O argumento de Lipovetsky (1997) é de que a moda consiste em um fenômeno, cujas características são a efemeridade (na valorização do novo como finalidade em si), a sedução (valorização da superficialidade, a exemplo da estética de produtos e embalagens) e a diferenciação marginal (concepção segundo a qual as novidades dos produtos são feitas a partir de pequenas mudanças nos detalhes das peças pré-existentes). Tais características permitem que o consumo seja incessante e, simultaneamente, consiga atender a gostos cada vez mais individualizados. A diferenciação marginal multiplica as peças fabricadas e, ao mesmo tempo, permite a manutenção da idéia de novidade, que estimulada, confere mais rápido descarte de produtos. Desse modo, mais que um fenômeno, a moda parece ser tratada como uma espécie de racionalidade de produção e, como tal, é que teria podido se generalizar, a partir dos resultados obtidos, para outros produtos que, inicialmente, não seriam vinculados à moda. Para Lipovetsky, a produção de carros e geladeiras, bem como bens imateriais, a exemplo da música, “seguiriam a moda”.

Ela [a moda] não é mais tanto um setor específico e periférico quanto uma forma geral em ação no todo social. Estamos imersos na moda, um pouco em toda parte e cada vez mais se exerce a tripla operação que a define propriamente: o efêmero, a sedução, a diferenciação marginal. É preciso deslocalizar a moda, ela já não se identifica ao luxo das aparências e da superfluidade, mas ao processo de três cabeças que redesenha de forma cabal o perfil de nossas sociedades. (LIPOVETSKY, 1997, p. 155). No entanto, Lipovetsky, apesar de apontar as restrições de manter a moda vinculada apenas ao vestuário, limita-a ao mencionado conjunto de três operações. De fato, segundo o autor, a moda seria um fenômeno da modernidade e, portanto, estaria presa a características específicas. No entanto, o autor retira a questão das relações humanas que ajudam a valorar, por exemplo, um produto como novo e válido como moda e mesmo as dinâmicas de transformações quanto àqueles que podem ser reconhecidos como profissionais vinculados à moda e mesmo o valor de criativo a eles tributado, bem como as possíveis mudanças em termos de comportamento dos consumidores a pressionar, talvez, por alterações nas operações indicadas. Em outros termos, se os autores do século XIX buscaram apreender na moda uma dinâmica societal, percebe-se que Barthes, Baudrillard e mesmo Lipovetsky, apesar do interessante percurso que fazem acerca do processo de constituição da moda como esse pretenso fenômeno, acabam por engessar a compreensão da moda a partir de esquemas 27

interpretativos pouco flexíveis. Barthes, por exemplo, busca interpretar a moda como um sistema, nos moldes da interpretação semiológica de Saussure. Para Roland Barthes (2005), a indumentária estaria para o traje do mesmo modo que a língua para a fala. O vestuário, por sua vez, corresponderia à linguagem. O autor, cujas reflexões a respeito da moda iniciam ainda nos anos 1950, acaba construindo um esquema de classificações consideravelmente rígido e pouco atento às questões de contexto ao afirmar a auto-referência do sistema e buscar em complexos de oposições a sintaxe da moda. O mesmo não pode ser afirmado a respeito de Baudrillard (1996), que apenas insinua uma interpretação sobre a moda, seguindo a trilha semiológica deixada por Barthes. Ainda assim, Baudrillard chega a denunciar a generalização da moda para diferentes âmbitos do mundo social, inclusive em termos de interações sociais, e o papel da diferenciação marginal no mascaramento dos produtos de moda sob a fachada de supostas novidades, aspectos prontamente incorporados por Lipovetsky em sua interpretação da moda nos anos 1980.

Ao observar a intensidade crescente das trocas, Simmel, ainda na primeira década do século XX, já afirma a progressiva submissão da moda ao mundo econômico, a ponto de serem instituídas profissões especificamente a ela ligadas. As coisas não se tornam moda; elas são produzidas para alcançarem tal fim. O capitalismo teria igualmente acelerado tais processos à medida que exige dos indivíduos apenas o dinheiro como mecanismo para acesso aos bens: “És más fácil establecer por medio de ellos [dos objetos de moda] paridad con la capa superior que en otros ordenes, donde es forzosa una adquisición individual, imposible de lograr con dinero” (2002a, p. 366). Aqui se percebe a relação com as discussões promovidas por Veblen, pois, afinal, a aproximação através de formas de consumo conspícuo é mais fácil do que através de um complexo e demorado aprendizado de habilidades característico do ócio conspícuo, para o qual apenas a posse de dinheiro seria insuficiente, pois tal formação se dá ao longo da trajetória de vida, como enfatizará Pierre Bourdieu em final dos anos 1970 ao discutir o tema da distinção (2007).

Em 1889, o norte-americano, filho de imigrantes noruegueses, Thorstein Veblen publica A teoria da classe ociosa. Por classe ociosa, Veblen (1985) compreende as classes nobres, sacerdotais e parte de seus agregados, cuja característica comum estaria no exercício de ocupações não-industriais5, sejam governamentais, guerreiras, religiosas ou esportivas. Se as armas são honoríficas, acentua Veblen, a atividade industrial, que lhe serve de contraponto,

5 Para Veblen, a atividade industrial é “todo esforço que tem por fim valorizar a vida humana por meio da exploração do ambiente não-humano” (1985, p. 19). 28

é entendida como odiosa e entediante. No entanto, prossegue o autor, o surgimento da classe ociosa coincide com o da propriedade, cujo motivo estaria na emulação. “A propriedade surgiu e se tornou uma instituição humana sem relação com o mínimo de subsistência. O incentivo dominante desde o início foi a distinção odiosa ligada à riqueza; exceto temporária e excepcionalmente, nenhum outro motivo se lhe sobrepôs em qualquer estágio posterior de desenvolvimento” (VEBLEN, 1985, p. 27). Paulatinamente, a atividade industrial ganha espaço, e a acumulação de bens se transforma em uma espécie de prêmio que substitui os troféus obtidos com as atividades predatórias, tornando-se mais importante na construção da estima – e a propriedade ganha lugar especial como evidência do acúmulo conseguido. Em outros termos, a honra passa a ser obtida e medida pelos bens materiais acumulados, que precisam estar evidentes aos outros para a obtenção da consideração alheia e da satisfação própria, de acordo com o autor. A distinção do ócio, tempo gasto em atividade não-produtiva, seria medida, por sua vez, pela politesse e erudição. Em outros termos, as boas maneiras e a erudição são uma espécie de comprovação da dedicação do indivíduo a atividades não- lucrativas. Daí logo se depreende o papel dos aprendizados em geral, em comida, bebida e no modo de fazer uso deles, bem como do vestuário no consumo conspícuo, ou seja, no consumo ostensivo como forma de honra e respeitabilidade pública. Nesse sentido, as festividades que marcam a vida ociosa funcionam também como momento de comparação quanto ao consumo conspícuo. No entanto, com a industrialização, tal forma de consumo (dispêndio de dinheiro em bens) começa a superar o ócio conspícuo (dispêndio de tempo em atividades não- lucrativas):

Quando a diferenciação aumenta e se torna necessário atingir um ambiente humano mais vasto, o consumo começa a superar o ócio como meio ordinário de decência. (...) Nessa altura os meios de comunicação e a mobilidade da população expõem o indivíduo à observação de muitas pessoas que não têm outros meios de julgar da sua boa reputação exceto mediante a exibição de bens (e talvez de educação) que ele esteja apto a fazer enquanto estiver exposto à sua observação direta. (VEBLEN, 1985, p. 56/57). Veblen, portanto, destaca o aumento de circuito de relações, e mesmo o anonimato de tais interações, como fundamento para a superação do ócio pelo consumo conspícuo – o que não significa o desaparecimento do caráter distintivo do ócio. O consumo conspícuo teria se tornado crescentemente mais eficaz como evidência das riquezas de que se dispõe. No entanto, atribui, em acréscimo, ao instinto de artesanato, acentuado com o fim da escravidão, a condenação do ócio conspícuo, o que teria contribuído igualmente para seu declínio. Dentre as formas de consumo conspícuo, Veblen confere lugar especial ao vestuário, 29

que “levaria vantagem sobre a maioria” dos outros mecanismos ao estar sempre em destaque nos corpos dos usuários e proporcionar uma imediata consideração de sua força pecuniária independente de uma relação direta com os outros. A beleza, segundo Veblen, é proporcional a seu preço caro. Por isso, afirma ele, ainda que uma cópia beire à perfeição, assim que descoberta ela perde esteticamente (porque cai pecuniariamente). Em resumo, ao dispêndio conspícuo passa a se subordinar o princípio do ócio conspícuo. No entanto, Veblen atenta para um terceiro princípio: “O vestuário não apenas deve ser conspicuamente dispendioso e incômodo [para evidenciar o não-trabalho de seu usuário]: deve, ao mesmo tempo, estar na moda” (VEBLEN, 1985, p. 101). Para Veblen, a novidade é o princípio da moda. Como tal, estaria igualmente vinculada à lei do dispêndio conspícuo. Como sua época seria marcada pela prevalência do dispêndio conspícuo, as modas, entendidas aqui como os específicos trajes, assumem caráter mais instável e menos elegante do que em épocas de maior estabilidade (em que prevalece o princípio do ócio), quando os trajes são feitos para suportar o efeito do tempo. Nesses termos, o dispêndio conspícuo seria incompatível com a exigência de beleza e de elegância no vestuário, para Veblen. A utilidade dos detalhes em moda é apenas uma simulação que logo se evidencia chamando a atenção para sua futilidade substancial. É assim que buscaríamos refúgio em novo estilo. E a esse respeito o vestuário feminino ganha destaque, pois além de evidenciar o dispêndio conspícuo e a função feminina de embelezamento do lar, os saltos, espartilhos e chapéus elaborados ressaltariam ainda sua dependência econômica quanto a seu marido. Em suma, Veblen destaca o modo como a aparência é ressaltada em mundo em que aumenta a circulação de desconhecidos, o mundo urbano-industrial, como mecanismo de exibição de posicionamentos socioeconômicos e de interações socialmente estabelecidas. É como tal que o mecanismo de imitação/distinção discutido por Spencer pode ter funcionamento. No entanto, esses pensadores destacaram suas conseqüências quanto ao funcionamento das relações de dado grupo social, ainda que dividido em camadas cada vez menos nítidas; já Tarde aponta como as interações com grupos estrangeiros se fazem sentir também na incorporação adaptativa, inovada, de elementos externos, trazidos, segundo Tarde, especialmente pela elite. Por outro lado, se Veblen relaciona a moda ao vestuário, é perceptível que o autor discute, sob o rótulo de dispêndio conspícuo, uma série de outros elementos, a exemplo dos talheres, o que abre a similar possibilidade, que não chega a ser por ele explorada, de generalização do termo moda para esses outros segmentos, talvez ainda não tão evidentemente impactados pelo “gosto por novidades” como o vestuário. 30

O interessante é notar como Simmel lida com a moda simultaneamente em dois aspectos: são as específicas modas incorporadas e abandonadas; ao mesmo tempo em que se trata de um processo-moda definido pelas relações entre as específicas modas. O autor usa a seu favor a ambigüidade do termo e se aproxima de Tarde, autor que buscou explorar a duplicidade da palavra moda em suas elaborações. Se Spencer observa a moda a partir das relações entre as camadas sociais do mundo ocidental capitalista, Gabriel Tarde, em As leis da imitação (s.d.), livro que congrega cinco textos escritos pelo autor de 1882 a 1888, generaliza a moda como parte do processo social que informa as mudanças e a continuidade dos diferentes agrupamentos sociais. De certo modo, portanto, Tarde dialoga com Spencer ao manter como tópico fundamental o jogo entre imitação e distinção. No entanto, extrapola suas contribuições para além das questões de classe. De acordo com o sociólogo, as relações sociais em geral são pautadas pela imitação, seja no fazer propriamente imitativo de seguir um modelo tentando, ao máximo, se assemelhar a ele ou mesmo na contra-imitação, quando se tenta criar uma oposição ao modelo operando por inversão. São divergências que, segundo Tarde, Spencer constata, mas não consegue explicar por sua lei da diferenciação progressiva. A sociedade, nos termos de Tarde, é um grupo de pessoas cujas semelhanças são produzidas por imitação e por contra-imitação. As imitações se consolidam em convenções, perpetuadas ao longo da história societal. No entanto, para além da imitação do costume, haveria a imitação-moda, “fraca torrente ao lado do grande rio do costume” (p. 279). Às idades de costume, seguem-se idades de moda, que dão lugar a idades de costume, e assim por diante. A moda, para Tarde, refere-se aos períodos em que as relações com grupos estrangeiros acabam por promover imitações que alteram os costumes, mas que se condensam em costumes assim que se consolidam. Para o autor, tais processos não negam ou restringem a originalidade; ao contrário, são o impulso necessário ao seu desenvolvimento. A imitação de um ou de alguns poucos tomados como modelares é que são esse obstáculo à valorização individual. Tarde, portanto, acentua que relações estabelecidas com vários indivíduos/grupos significam a possibilidade de tomar, por imitação, aspectos específicos de cada um deles que acabam por se combinar possibilitando diversidade inicial e ressaltando a personalidade original. Assim se daria a invenção. Segundo Tarde, essa seria a lei da imitação: a importação de exemplos estrangeiros paulatinamente propagados por moda, consolidados na forma de costumes e socialmente sistematizados. Os períodos, portanto, de moda, em que estão em fase de expansão as imitações de modelos estrangeiros, são marcados pelo orgulho de seu tempo, mais do que de seu país, pois, no caso deste último, haveria resistência maior dos costumes frente às inovações. Deste modo, para Tarde, a imitação-moda está atrelada às transformações 31

dos costumes; ao mesmo tempo, ela não leva, ao que parece, ao desaparecimento do grupo em função do estrangeiro, pois se trata de uma complexa combinação de elementos importados e originários ainda a se generalizar. As chamadas sociedades democráticas, marcadas pela comunicação entre os povos, portanto, estariam sob o império da moda, diferente do mundo aristocrático, pautado na ênfase aos costumes. A engenhosidade da teoria de Tarde abarcando imitação e mudança, continuidade e transformação, contudo, esbarra numa visão quase linear da história, apresentada como sucessão costume-moda-costume. Ainda assim, o autor apresenta interessantes considerações:

As características que o reino da moda, em matéria de costumes, impõe à indústria são fáceis de adivinhar. Para se espalhar, por uma espécie de epidemia conquistadora, uma língua deve regularizar-se e despoetizar-se, tomar um ar mais lógico e menos vivo; uma religião deve espiritualizar-se, tornar-se mais racional e menos original; um governo deve tornar-se mais administrativo e menos prestigioso; uma legislação deve brilhar pela razão e pela eqüidade mais do que pela originalidade das suas formas; uma indústria, enfim, deve desenvolver o seu lado mecânico e científico em detrimento do seu lado espontâneo e artístico. Numa palavra, o que parecerá talvez singular, o reino da moda parece ligado ao da razão. (TARDE, s.d., p. 381). Ao vincular a moda a um processo social mais amplo que permite inovações sem fazer desmantelar a sociedade, Tarde retira a moda do restrito âmbito do vestuário ao torná-lo processo social. O vestuário seria apenas uma de suas formas, como os alimentos, a habitação, as instituições, dentre outros, e o veículo das imitações, por excelência, seria a linguagem. No entanto, como enfatiza Tarde, a propagação da imitação-moda requer a racionalização dos elementos e características em expansão, que, “despoetizados”, teriam maior facilidade para as combinações devidas, tal como ocorre com a própria indústria capitalista, cuja racionalidade é um dos fatores de sucesso de sua expansão. Em outros termos, Tarde acaba por identificar, no desenvolvimento societal, a história do incremento da racionalidade nos diferentes âmbitos da vida. Mais que isso, acaba por identificar a moda com o acento de tal racionalidade, diferente de outros autores que percebem no caráter imitativo da moda um exemplo da irracionalidade possível das ações humanas. De qualquer modo, Spencer, Tarde e Veblen acabam por explorar pontos específicos da questão da moda, seja na temática da imitação/distinção (Spencer), do papel da incorporação de novidades nas transformações sociais (Tarde) ou do caráter de marcador socioeconômico e de estilo de vida que a aparência assume em agrupamentos sociais mais diferenciados (Veblen). Tais aspectos são retomados por Simmel em função das transformações experimentadas com o desenvolvimento urbano, a industrialização e a maior visibilidade da individuação como um todo, do qual a moda faz parte como um das formas assumidas pelas interações humanas. 32

Ora, segundo Simmel, a moda só existe enquanto as modas morrem para dar lugar a outras num processo incessante e circular, uma vez que há a possibilidade efetiva de reabilitar aquilo que foi posto em desuso tempos antes. É assim que a moda, enquanto movimento, pode ser compreendida enquanto adaptação à “sociedade” e afastamento as suas exigências. Enquanto movimento, a moda não estaria limitada ao vestuário. Nos termos de Simmel, seu campo é o das exterioridades, do qual o vestuário e o lazer servem como exemplos. Assim, o movimento é caracterizado pelo ciclo adoção-imitação (generalização)- abandono. A moda só vive enquanto modas morrem. E nisso mesmo as anti-modas, que ele denomina “avessos” à moda, acabam alimentando o processo por contribuir na criação de novidades. A moda acaba sendo tratada por Simmel como uma espécie de necessidade social, vinculada à individuação, que cria maior diversidade social, anseio por formas facilmente identificáveis de distinção e a possibilidade de mascaramento do “eu interior”, à ênfase no presente, que caracteriza tempos de mudanças constantes e acentua o gosto pelo novo, e ao pertencimento a grupos, que tem na imitação a possibilidade de reconhecimento e segurança. No entanto, a despeito de suas inegáveis contribuições, Simmel mantém a discussão sobre moda restrita às relações entre classes sociais, ainda que tenha sido um pensador que incorporou em seu debate o tema da individuação. Ao tomar, por exemplo, a Florença do século XIV, caracterizada por grande diversidade de trajes, entendidos como individualizados, Simmel aponta a inexistência de uma moda dominante como conseqüência da ausência de “necesidad de conjunción sin la cual no nace una moda” (SIMMEL, 2002a, p. 368). Ou seja, por sua grande diferenciação, a imitação estaria comprometida e, desse modo, a existência de moda. Por outro lado, Simmel observa o movimento da moda sem considerar aspectos já perceptíveis em sua época: o de que o movimento de imitação não é unidirecional. Simmel restringe as imitações a uma única direção: as camadas inferiores imitariam as superiores.

A teoria de Simmel, de difusão da moda da classe mais alta para a mais baixa, sugere que as roupas da moda seriam um dia adotadas pela classe operária. Na verdade, os trabalhadores franceses e suas mulheres adotaram roupas da moda de modo seletivo: certos estilos não foram escolhidos. Sua teoria também previa que, no âmbito da classe operária, os estilos da moda seriam adotados primeiro pelos estratos mais altos e mais tarde pelos mais baixos. No terceiro quartel do século XIX parecia ser esse o caso, embora a existência de barreiras culturais, como o analfabetismo e o uso de línguas que não fosse o francês, tenha impedido a difusão de certos estilos em comunidades rurais. No entanto, especialmente no último quarto do século XIX, os modelos da moda tinham maior chance de ser seguidos não pelos trabalhadores qualificados, mais prestigiados, mas pelos trabalhadores não- qualificados de Paris e das províncias. Esses dados sugerem que o modelo de 33

Simmel precisa ser complementado por informações sobre a freqüência com que os membros de diferentes estratos da classe operária adotavam ou não os estilos da moda, e por uma compreensão dos fatores que incentivavam ou inibiam essa adoção. (CRANE, 2006, p. 129). E mesmo no que toca as “classes superiores”, houve, ao longo do processo histórico, a incorporação de peças advindas de camadas menos privilegiadas, a exemplo do uso de calças por mulheres (artigo inicialmente adotado pelas mineradoras). Segundo Diana Crane, foram os artigos de vestuário marginais da Europa e dos Estados Unidos aqueles que mais se generalizaram a ponto de se fazer presentes no século XXI (p. 197). No entanto, a pluridirecionalidade que a moda acabaria por assumir tem mais nítidos contornos apenas na segunda metade do século do século XX, com os chamados baby boomers. Talvez, inclusive, as conseqüências da Segunda Guerra Mundial, com o crescimento da produção norte- americana de vestuário, a ascensão das roupas prontas-para-usar, melhoria das condições econômicas da classe média e posterior diversidade de estilo dos grupos juvenis tenham favorecido o surgimento de novos autores interessados na questão do vestuário, a partir dos anos 1960.

A teoria dos campos de Pierre Bourdieu e a moda Tributário assumido quanto às contribuições de Ernst Cassirer (2001a), que em muito também influenciou a abordagem eliasiana, Bourdieu não se furta a criticá-lo e ultrapassá-lo em pontos fundamentais. Mas, é preciso notar que os aspectos tomados de Cassirer por Bourdieu e que, por via indireta, têm insinuações desde as contribuições de Simmel, se distinguem dos elementos fundamentais de Cassirer incorporados por Norbert Elias. Concordando com a existência de estruturas simbólicas e com a tendência das ciências sociais em construir topologias como instrumentos de representação do mundo social, Pierre Bourdieu (2000) avança a discussão ao tentar superar a filosofia da consciência que ainda imperava nas construções efetuadas por seus antecessores, sem recair no estruturalismo, que acabava por conceber as práticas como meras variantes das estruturas objetivas. A relação passa a ser pensada como entre estruturas e práticas sociais, sendo aquelas, portanto, postas não na consciência dos indivíduos, como ocorre no idealismo de Cassirer, e sim incorporadas em todo seu ser e exteriorizadas por suas diferentes ações (BOURDIEU, 2002b). A praxeologia defendida pelo autor significa a tentativa de dar conta de estruturas, a um só tempo, estruturadas e estruturantes das práticas sociais. Segundo Bourdieu (2000), os neo- kantianos, dentre os quais figuraria Cassirer, privilegiam o caráter estruturante das estruturas, 34

o que deveria ser equalizado ao aspecto estruturado das mesmas, enfatizado pelos estruturalistas. A tentativa de dar conta de tal dualidade o leva a buscar na noção de habitus a ligação necessária (também dialética) que possibilita o movimento entre as duas instâncias. Tal habitus funciona como um sistema de disposições inconscientes do agente que o leva a considerar as estruturas incorporadas ao decorrer de suas ações, tendendo a produzir práticas, portanto, conformes a estas estruturas objetivas (2001). Para tanto, o habitus correlaciona dialeticamente as estruturas e a conjuntura vivida, enquanto estado particular da estrutura.

O espaço social é, para Bourdieu, multidimensional se apresentando, pois, como um campo de forças em disputa. Isto é, o espaço social é um conjunto, em aberto, de campos apenas relativamente autônomos, uma vez que sempre lançados em jogos pelo poder de decidir e influenciar no funcionamento e, conseqüentemente, na estrutura dos demais campos. Cada campo possui uma lógica e uma hierarquia próprias, frutos de um processo de depuração rumo à sua definição e distinção como gênero particular. Ao mesmo tempo, cada campo, como estrutura de relações objetivas, opera a partir de um tipo de capital característico, enquanto recurso de poder, que define os posicionamentos ao seu interior; no entanto, há igualmente uma hierarquia entre os capitais postos em jogo nos diferentes campos e que, historicamente, tem feito com que o chamado campo econômico assuma uma posição destacada frente aos demais, subordinando-os, em certa medida, à sua lógica. Nestes termos, cabe, então, ao cientista

estabelecer um conhecimento adequado não só do espaço das relações objectivas entre as diferentes posições constitutivas do campo mas também das relações necessárias estabelecidas, pela mediação dos habitus dos seus ocupantes, entre essas posições e as tomadas de posição correspondentes, quer dizer, entre os pontos ocupados neste espaço e os pontos de vista sobre este mesmo espaço, que participam na realidade e no devir deste espaço (BOURDIEU, 2000, p. 150). Para tanto, é necessário determinar as estruturas objetivas, segundo Bourdieu homólogas, de tais campos, o que se daria a partir da comparação entre casos particulares a fim de entrever os invariantes que permitiriam a operação de generalização que distingue o procedimento científico, processo semelhante ao defendido por Simmel para a delimitação das formas. A construção dos campos permitiria, de igual modo, dar conta das diferentes interações concretas, lugares de articulação e atualização dos diferentes campos, casos singulares de um possível determinável em função de uma crença, a de validade do jogo ao interior e entre os campos – aquilo a que Bourdieu denomina illusio (2002c). 35

Percebe-se, então, a relação entre a proposta de Bourdieu e a de Cassirer. Tanto como este último, Bourdieu considera que se deve, a partir das práticas, abstrair suas estruturas singulares, os campos. Tais campos são autonomizações realizadas historicamente e que, a despeito de suas leis específicas, isto é, do capital específico em jogo, mantêm relações fundamentais entre si. A analogia das estruturas em Bourdieu acaba por levá-lo à busca dos invariantes estruturais que representam a totalidade dos diferentes campos num mesmo sistema simbólico, sem negar suas especificidades. No entanto, Bourdieu distancia-se de Cassirer ao tentar apresentar a dinâmica que anima essas estruturas e ao inserir a temática do poder em suas discussões. Para Bourdieu, os campos têm internamente e entre si a característica fundamental de consistir em relações conflituosas de disputa pelo poder de significar o mundo e de ordenar os demais campos.

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados” (BOURDIEU, 2000, p. 11). Se, inegavelmente, Bourdieu ultrapassa Simmel e Cassirer ao pôr em discussão o caráter social do corpo, sua contribuição fundamental está na tentativa de explicitar a relação entre estrutura e práticas, ainda que deixe em aberto a origem do próprio habitus e demonstre considerável dificuldade em mostrar as transformações históricas dos campos que toma para discussão – ainda que afirme sua inegável historicidade, em fina sintonia com as discussões de Simmel e sua ênfase na sociação/socialização. Se retomamos, enfim, as discussões de Simmel, a noção de campo de Bourdieu figuraria como análoga aos mundos ou esferas, formas modeladoras e, nesse sentido, estruturas estruturantes e estruturadas. Já os sub-campos de Bourdieu pertenceriam, em Simmel, a um nível inferior de síntese. Por exemplo, a pintura, como forma cultural, pertence a um segundo nível de integração, (para Simmel) abaixo, pois, do mundo da arte do qual faz parte. Em suma, Bourdieu poderia ser tomado como pensador que busca estudar e evidenciar as relações que conformam as estruturas apenas anunciadas genericamente por Simmel, extrapolando o debate para além do âmbito da consciência. Além do mais, se Simmel afirma serem o conflito e a subordinação estruturas invariantes das diferentes interações, coube a Bourdieu apontar os conflitos na ordem dos campos, algo que o relativismo simmeliano tende a suprimir ao invocar a legitimidade e, pois, o direito interpretativo de cada esfera. Uma crítica possível e contundente a Bourdieu é ter pouco efetivado o retorno às interações concretas, como, segundo ele, esse espaço de interseção 36

entre os campos, objetivo último de sua teoria da ação. Suas análises se ativeram, em grande medida, a campos determinados, explicitando sua estrutura e mecanismos de funcionamento, a partir dos quais outros campos, por conta da autonomia apenas relativa que os caracteriza, por vezes eram tomados com o intuito de evidenciar as relações estabelecidas e a posição assumida por cada campo na hierarquia, como resultado de lutas históricas. Deste modo, Flaubert comparece em As regras da arte (2002) mais propriamente como um exemplo interessante à caracterização do campo da arte, e suas tensões com o campo econômico no século XIX, do que propriamente como um indivíduo cuja trajetória é passível de interpretação por recurso à busca de seus diferentes posicionamentos no interior de variados campos. Lembremos que também para Simmel o indivíduo é o lugar de cruzamento entre as diversas esferas. Como comentário adicional, é importante observar a utilização, por vezes difusa, de que faz uso Bourdieu acerca da noção de configuração. Em Bourdieu (2001), as configurações seriam específicas atualizações historicamente realizadas das estruturas de relações objetivas. Seriam, em seus termos, momentos de um sistema de transformações históricas, o que faz com que esta noção esteja mais próxima do domínio específico das práticas, que apresentam as estruturas, incorporadas e exteriorizadas, de diversos modos. No que se refere à moda, é interessante notar que Bourdieu chega a defini-la como campo, em seu texto “O costureiro e sua grife, contribuição a uma teoria da magia”, escrito conjuntamente com Yvette Delsaut, e publicado no ano de 1975. Mais especificamente interessado nas transformações em curso na alta costura, Bourdieu e Delsaut iniciam o texto afirmando que o

campo da alta costura deve sua estrutura à distribuição desigual, entre as diferentes maisons, da espécie particular de capital que é o fator da concorrência neste campo e, ao mesmo tempo, a condição da entrada em tal competição. As características distintivas das diferentes instituições de produção e difusão, assim como as estratégias que elas utilizam na luta que as opõe dependem da posição que ocupam nessa estrutura. (2002, p. 115). Assim, as maisons devotadas à antiga clientela, especialmente à velha burguesia, vêem-se confrontadas pelas boutiques de vanguarda dos novos ingressantes ao campo, situados em pólo oposto, e que dirigem seus esforços no atendimento à nova burguesia ou aos jovens da velha burguesia. A lei da concorrência, isto é, a dialética da distinção impõe a polarização que ajuda a definir cada um de seus termos: o pólo dominante do luxo austero da ortodoxia e o pólo dominado do ascetismo ostensivo da heresia. Nessa discussão, portanto, os autores articulam, pela possibilidade que as homologias relativas conferem, os campos da arte, da economia e da religião ao campo da moda. Independe dos critérios lançados mão, seja antigüidade, preço, cores, os dois pólos se mantêm em sua oposição, ao mesmo tempo em que 37

a relação entre idade e dinheiro é definida como princípio das equivalências: “De fato, a loja – destinada aos jovens – de uma maison situada no pólo dominante apresenta quase todas as características das lojas situadas no pólo dominado desse campo” (2002, p. 118). Isso faz com que, segundo os autores, um burguês pobre equivalha a um jovem burguês. Do mesmo modo como ocorre nos outros campos, no da moda são os ingressantes que definem o jogo. A eles é destinado romper as convenções, mas sem pôr o jogo, e suas regras, em risco devido à illusio. Seus emblemas são a liberdade, a fantasia e a novidade, de onde advém seu caráter de vanguarda e sua própria jovialidade. No entanto, ainda que se possa definir a direita e a esquerda (conservadores e revolucionários), Bourdieu e Delsaut identificam igualmente a existência do centro através de Yves Saint-Laurent, que une elementos dos dois pólos e angaria elogios de ambos os lados. A autoridade de alguns novatos, no caso da moda, acaba sendo convencionalmente obtida através de uma trajetória em que a passagem por maisons já reconhecidas é passo anterior à abertura de casas próprias. Autoridade, relações e competência seriam adquiridas através das maisons antigas, o que põe “o costureiro de vanguarda ao obrigo da condenação radical de que seria passível por suas audácias heréticas” (2002, p. 140). E nisso Bourdieu e Delsaut acabam recuperando a discussão weberiana a respeito da relação entre o profeta e o sacerdote. Para Weber, muitas vezes o profeta e as seitas advêm, respectivamente, das corporações sacerdotais e da religião, criando hereticamente as seitas, embriões de possíveis religiões futuras (WEBER, 2004). No entanto, apesar das homologias com a religião e, especialmente, com a arte, Bourdieu e Delsaut apontam as diferenças associadas a posições similares de campos distintos. Por exemplo, como a arte legítima (ou arte maior) seria hierarquicamente superior à moda, de acordo com a mesma lógica de distinção anteriormente anunciada, haveria restrições a que um costureiro, mesmo que tivesse alcançado elevada posição em seu campo, fosse aceito como artista. Não é possível fazer transferências de capital de um campo a outro. O costureiro, conforme os autores, seria o oposto do artista, inclusive por estar submetido a criações sazonais, efêmeras, mas, além disso, por permitir a substituição do criador, ainda que sua unicidade seja o fator primordial de valoração dos produtos: “o poder mágico do criador é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser garantido por sua assinatura” (2002, p. 154). O poder do criador estaria, segundo os autores, em sua capacidade de “mobilizar a energia simbólica produzida pelo conjunto dos agentes comprometidos com o funcionamento do campo” (p. 162), sejam eles jornalistas, intermediários e clientes ou mesmo outros criadores. Bourdieu e Delsaut buscam evidenciar 38

como aquilo que aparece como mera constatação de valor, na verdade trata-se de uma imposição arbitrária, ou, em outros termos, que o valor é relacional. Mais do que isso, os autores insinuam atribuir especial papel às grifes, que, com a questão recente na época da escrita do texto a respeito da substituição do criador ou sua presença como funcionário em diferentes empresas, poderiam passar a ser consideradas como as “reais” concentradoras do poder mágico, potencializando, por sua vez, o poder mágico do substituível criador singular. No entanto, Bourdieu não chega a discutir tal tema, apenas apresenta que algumas transformações estariam em curso, por conta da crise da alta costura, evidência de reestruturações em curso quanto às marcas de distinção burguesas. Nesse sentido, o prêt-à- porter igualmente comparece como uma retradução de uma série de transformações, equivalente, segundo Bourdieu e Delsaut, à reestruturação do campo do poder, na reorganização da divisão do trabalho e diversificação daqueles que têm acesso aos lucros burgueses. Na moda, isso seria perceptível pela divisão de tarefas entre criador e gestor na condução dos trabalhos da maison. Bourdieu e Delsaut, inclusive, apontam Courrèges como exemplo desse novo formato de “empresa total” (termo dos autores).

Diferente dos costureiros tradicionais que advinham das frações dominantes e tinham pretensões artísticas, Courrèges advinha de camada popular e tinha instrução científica. Além disso, teria sido Courrèges o primeiro a romper com a definição convencional de costureiro, que prevalecia antes da Segunda Guerra. Em lugar de participar ativamente da vida parisiense, ele teria se estabelecido como criador-gerente de produtos de luxo, a menores preços, para mulheres de gerentes. A transformação, portanto, estaria em conformidade com o crescimento da nova burguesia moderna, ávida por atendimento de suas demandas, inclusive de distinção em relação à velha burguesia. A segurança de sua legitimidade, obtida mediante aquisições próprias (são, especialmente, assalariados e executivos) comparece na busca por uma simplicidade que, de qualquer modo, diferencia-se da sobriedade do luxo da velha burguesia, que desejava se diferenciar, por sua vez, dos novos- ricos. Mais do que dinheiro, seu argumento é o do bom-gosto. No entanto, ao que parece, ainda que tais transformações estivessem em curso a ponto de reorganizar as relações entre sob medida (alta costura) e pronto-para-usar (prêt-à-porter) e mesmo a relação entre criadores e outros agentes do campo, Bourdieu não chega a questionar a estrutura que ele monta para dar conta do campo da moda, fundado praticamente em relações duais, à exceção do posicionamento de centro atribuído a Yves Saint-Laurent. Ainda que se considerem os méritos das interpretações bourdianas e sua afirmação da historicidade dos campos, a fixidez 39

das posições na estrutura dos mesmos acaba por dificultar a própria pretensão de Bourdieu de perceber as relações em jogo quando tomamos, por exemplo, a concepção de que os “vetores” de onde emanam as criações ganharam em multiplicidade. As categorias de direita, esquerda e centro parecem ser insuficientes para dar conta de uma pluralidade de relações e de características das maisons da atualidade. Se tomarmos a imagem que se constrói a partir de Yves Saint-Laurent, quantos seriam os posicionamentos efetivamente possíveis dentro do intervalo entre os pólos direita e esquerda? Por outro lado, as associações construídas entre status, estilo de vida e classe, entendidos como homólogos e mediados pelo habitus por Bourdieu, seja em sua consideração a respeito da decoração das casas de costureiros em função de suas características de criação nas maisons, seja em sua discussão geral a respeito da distinção, parece não mais condizer com o momento atual.

Se considerarmos unicamente o consumo de produtos culturais, principalmente música, o que se constata é que não só os membros pertencentes aos estratos mais altos da pirâmide social apreciam predominantemente música popular como os da base da pirâmide. Além disso, não é possível encontrar uma elite musical que restrinja o seu consumo unicamente às formas mais elaboradas de música clássica. O mesmo ocorre com outros produtos culturais. No Brasil, não temos trabalhos abrangentes nessa área, embora se registre uma influência profunda das idéias de Bourdieu sem a contrapartida empírica dos testes de suas teses entre nós. Recentemente, o Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing realizou duas pesquisas entre jovens dos segmentos A e B sobre estilo de vida e consumo de música. Em ambas, e comparativamente ao consumo de música de outros segmentos sociais, verificou-se o consumo de diferentes estilos musicais sem que fosse possível se identificar uma relação entre a posição social desses jovens e o consumo de estilos musicais específicos. (BARBOSA, 2008, p. 23) Em A distinção, livro publicado em 1979 e, portanto, pouco posterior a “O costureiro e sua grife”, Pierre Bourdieu buscou discutir a formação dos gostos, mediante instrução familiar e educativa formal, como mecanismo e arma nas disputas entre classes pela distinção social. Nesse sentido, trata-se mais propriamente de práticas que acabariam por reproduzir as estruturas de classes e de gostos vigentes. Enquanto parte do estilo, o vestuário também serviria, portanto, como esse marcador social e que, ao mesmo tempo que diferencia, identifica a condição de classe de seu usuário. Bourdieu, pois, refina a discussão que vem desde Spencer a respeito da relação entre vestuário e imitação/distinção, uma vez que, a partir de suas considerações, torna-se igualmente evidente a precariedade de buscar, na incorporação de traços de gosto (mesmo vestimentares), uma forma de negar o próprio posicionamento social. Uma vez que os chamados bons modos e o gosto, que permitem identificar, apreciar e avaliar, tratam-se de um aprendizado cultivado desde a infância, as 40

possibilidades de imitação se tornam consideravelmente limitadas por parte de representantes de camadas menos favorecidas. Pode-se imitar elementos de vestuário, mas não refinamento por conta da falta de cultivo necessário.

A teoria de Bourdieu ajuda a explicar como as classes sociais e, por conseguinte, as estruturas sociais são mantidas através do tempo, mas é menos útil para compreender como as pessoas respondem em períodos de rápida mudança social. Sua ênfase na aquisição, durante a infância e por meio do sistema educacional, de padrões para fazer as avaliações culturais sugere que esses e, conseqüentemente, os gostos culturais mudam de forma relativamente lenta. O resultado da incessante competição por distinção cultural é a estabilidade, e não a mudança, da estrutura social. (CRANE, 2006, p. 33). Inclusive, como responder a questão, igualmente apontada por Crane a partir de sua interpretação dos dados de Le Play a respeito dos usos vestimentares por parte da classe média e operária francesa do século XIX, de que estratos inferiores do último período do citado século “eram às vezes considerados mais elegantes que os superiores”? (2006, p. 97). Ou ainda como compreender a afirmação recorrente, nos dias atuais, de que a inspiração para criações em moda teriam advindo de usos observados nas ruas, como a coleção de Herchcovitch para o Outono-Inverno de 2007 ou a ascensão experimentada pela inglesa Vivienne Westwood com suas roupas punk? Os estilos de vida se multiplicaram e passaram a substituir, em grande medida, o status de classe como marcador de grupos, o que levou autores mais contemporâneos, a exemplo de Mike Featherstone, a afirmar a individuação dos estilos de vida, em especial após a geração baby boomer, ainda marcada por grupos de estilo, mas já diversificados a partir da questão etária da juventude e de posicionamentos ideológicos frente ao capitalismo. A teoria bourdiana parece não dar conta, portanto, de questões ligadas tanto à produção, como ao consumo de vestuário, entendidos pelo autor como intrinsecamente vinculados. Além disso, Bourdieu acaba se eximindo de traçar considerações contextuais mais amplas que permitam compreender as próprias transformações que assinala, apesar de seu modelo interpretativo permitir.

Tendo em vista tais questões, a opção assumida neste trabalho é discutir moda a partir da sociologia configuracional de Norbert Elias, o que impõe o desafio adicional de tecer a discussão a respeito de um tema não trabalhado pelo autor. Nesse sentido, inicialmente serão feitas considerações, em especial, a respeito da noção de configuração dentro do arcabouço eliasiano.

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A sociologia configuracional de Norbert Elias A partir das considerações prévias, será possível melhor compreender a proposta de Norbert Elias, pensador que, como Simmel, ocupou (ocupa ainda) um lugar um tanto marginal nas discussões sociológicas. Norbert Elias, além disso, mantém com Simmel a proximidade de pouco explicitar as referências de seu pensamento e de, pelo estilo de sua escrita, obrigar o leitor a, raras exceções no escopo de sua obra, “garimpar” o significado de certos termos que utiliza. Talvez uma de suas obras mais sistemáticas seja, de fato, o livro Introdução à sociologia, publicado em 1970, a ser aqui utilizado no sentido de discutir a noção de configuração, base de sua proposta de sociologia.

Elias parte de duas críticas fundamentais: a primeira, dirigida à separação indivíduo-sociedade que ele substitui pela noção de relação nós-eu; e a segunda, dirigida a uma espécie de metafísica das estruturas sociais, construída na tentativa de compreensão, sociológica e cotidiana, das forças coercitivas a que os indivíduos estão sujeitos. No primeiro caso, o autor busca resolver a difícil questão da substancialização da sociedade, compreendida como autônoma em relação aos indivíduos, que comparecem como sua contraparte. Como dar a entender que a sociedade não se trata de uma terceira pessoa do singular, como indicam nossos hábitos de fala, e sim uma primeira pessoa do plural, ou seja, um nós de que os indivíduos, portanto, fazem parte? Elias se utiliza dos próprios artifícios lingüísticos quando apresenta a relação nós-eu como alternativa. Isso não significa, por outro lado, que o autor censure o uso do termo sociedade; ele apenas adverte a respeito dos riscos de seu uso, riscos derivados de nossas convenções lingüísticas. E, nesse sentido, a proposta eliasiana já parte de uma separação entre categorias sociais e categorias sociológicas. Do ponto de vista do autor, o pesquisador deve primar pela busca de crescente congruência com a realidade, sem esquecer que ele faz parte daquilo que estuda, isto é, que ele, como sociólogo interessado na compreensão das configurações atuais, é parte da configuração que estuda. As concepções científicas, seu modo de abstração é decorrência do processo sócio-histórico vivido pelos homens – nesse sentido, as categorias sociológicas são decorrência das categorias sociais – mas devemos problematizar sociologicamente as categorias sociais em uso. Em lugar de aceitá-las, o papel sociológico é compreendê-las. De acordo com Vico, inclusive, isso seria um ponto positivo na afirmação da superioridade do conhecimento sobre o humano em detrimento dos demais. Para Vico, só se pode conhecer efetivamente aquilo de que se faz parte. No entanto, os caminhos trilhados na constituição da sociologia passaram a assumir atitude de ressalva em relação à questão ao apontar que o envolvimento do pesquisador pode 42

acabar por comprometer sua investigação. Pertencer podia significar atribuir a pré-conceitos estatuto de realidade. É nesses termos que Durkheim afirma a regra de afastar-se dos preconceitos como condição à pesquisa sociológica; e Weber discute a relação entre objetividade, termo que comparece entre aspas em seus trabalhos, e a estruturação de métodos de pesquisa. Na trilha das inquietações de Weber, Elias discute a dialética entre envolvimento e alienação na condução das pesquisas, utilizando alienação aqui em seu sentido produtivo de tentativa, e apenas tentativa, de distanciamento na investigação em curso. Para Norbert Elias (1999), forças são exercidas pelos indivíduos sobre outros indivíduos e pelos indivíduos sobre si próprios. A dificuldade em perceber isso, portanto, estaria posta não apenas nas mencionadas armadilhas de nossa língua, que tende a transformar palavras como estrutura e sociedade em substâncias autônomas, sujeitos cindidos de objetos gramaticais, mas também no relativamente alto grau de envolvimento ainda presente nas pesquisas em ciências humanas, em comparação com as chamadas ciências naturais, que acaba fazendo com que os dilemas sociais sejam vividos como angústias e, conseqüentemente, com que o uso da fantasia, como forma de encobrir os hiatos de compreensão, seja mais recorrente, e os hiatos maiores. Aos cientistas caberia a destruição dos mitos, conhecimento pré-científico e que, portanto, está na base das próprias concepções científicas – num caminho que se inicia, pois, com as teorizações construídas pelos “homens comuns” para sua orientação no mundo e que impõe à sociologia do conhecimento a questão acerca das condições de desenvolvimento das pré-ciências às ciências constituídas. Pergunta Elias, em Os alemães: “Como pode um cientista social nutrir a esperança de dar vida a tais experiências cotidianas, como o duelo pelas classes altas e a briga pelas classes baixas, sem tentar, ao mesmo tempo, encontrar modelos teóricos das estruturas sociais que abranjam ambas?” (1997, p. 72). O problema não está na construção de modelos teóricos das estruturas, mas estes devem ser resultado da pesquisa, e não o instrumento de aproximação com o “real”, pois ao se conferir anterioridade a tais modelos, corre-se o risco de utilização da pesquisa como mero exemplo ou confirmação do modelo, em lugar de ser seu questionamento. Segundo Elias, foi ainda durante as pesquisas de sua tese de doutoramento que o questionamento acerca dos a priori se desenvolveu:

Não me era mais possível ignorar que o que Kant considerava como atemporal e como dado antes de qualquer experiência – fosse o conceito do vínculo de causalidade, o do tempo ou das leis naturais e/ou morais – deve ser aprendido, ao mesmo tempo que os termos correspondentes, por intermédio de outros homens para poder estar presente na consciência de cada indivíduo. Isso é um saber adquirido, que, como tal, pertence portanto ao patrimônio de experiências do homem (2001, p. 101). 43

Ao observarmos o social, aquilo que conseguimos efetivamente enxergar como mais primário são, segundo o autor, interações entre indivíduos. Esse é o ponto inegável de qualquer concepção a respeito do social. Se assim o é, do ponto de vista de Elias, estas relações, de interdependência, funcionalidade recíproca e de poder entre indivíduos, a que ele denomina configuração, devem ser o ponto de partida e de chegada da sociologia. As estruturas sociais, bem como as estruturas de personalidade a que estão vinculadas, são, por isso, históricas, como afirmaram Simmel e Bourdieu. A opção de Elias é, contudo, não ceder às abstrações a que se lançam outros autores. Do mesmo modo que Simmel vê nas formas sociais relações entre indivíduos só que a uma distância maior que torna essas relações básicas crescentemente mais opacas a ponto de justificar o estudo das estruturas por si como se fossem absolutamente autônomas, Elias considera que não se pode perder de vista que, do mesmo modo como num jogo de cartas, o Estado-Nação, a sociedade, a arte, dentre outros (o que nos permite incluir a moda), nada mais são do que redes de relações vividas entre indivíduos. Aquilo que se observa como uma floresta, nada mais são do que árvores olhadas à distância. No entanto, Elias adverte: isso não nega a existência da floresta. A proposta eliasiana, portanto, não se centra na negação do “todo”; é uma crítica à sobrevalorização seja da floresta sobre as árvores, seja das árvores sobre a floresta. Para evidenciar isso, Elias (1994) recorre ao exemplo de Aristóteles a respeito da relação entre as pedras e casa: a estrutura da casa, enquanto uma nova unidade, não pode ser depreendida das pedras que a compõem tomadas isoladamente. Deste modo, afirma, seria igualmente uma impropriedade negar a existência da nova unidade (casa) em favor da afirmação de que há apenas indivíduos. No entanto, o exemplo da relação entre pedras e casa se mostra bastante frágil quando comparada à complexidade social. As interações humanas são desiguais, os indivíduos são desiguais. Nesses termos, tem-se comprometida qualquer visão acerca de um “todo” harmonioso. Forças centrípetas e centrífugas agem simultaneamente na modelação das relações e, portanto, no percurso da configuração, transformando aqueles que estão nela envolvidos. A margem de decisão individual, segundo Elias, é variável, posto que é igualmente relacional.

E aquilo a que chamamos “poder” não passa, na verdade, de uma expressão um tanto rígida e indiferenciada para designar a extensão especial da margem individual de ação associada a certas posições sociais, expressão designativa de uma oportunidade social particularmente ampla de influenciar a auto-regulação e o destino das outras pessoas. (ELIAS, 1994, p. 50). Como afirmado, do ponto de vista de Elias, há um vínculo inquebrantável entre estruturas sociais e de personalidade, decorrente de sua concepção de relação nós-eu. A 44

formação individual depende da história da estrutura das relações humanas. As pessoas mudam em suas relações com os outros e, nesses termos, vão se modelando e remodelando nessas relações caracteristicamente reticulares; o que significa tratar-se de estruturas móveis. Ao utilizar a noção de rede e de reticularidade, Elias acentua, por outro lado, que tais relações são continuamente tecidas e destecidas num jogo ininterrupto. Deste modo, o indivíduo parte de uma rede anterior a ele, construída por seus antecessores, para uma rede que ele ajuda a formar. Como o movimento é contínuo, os modelos espaciais muitas vezes utilizados nas pesquisas sociológicas na definição das interações sociais são rejeitados pelo autor por configurarem, segundo ele, modelos estáticos, não condizentes com a elasticidade da dinâmica relacional. Em suma, as estruturas sociais, de personalidade e da história estão intimamente imbricadas. Assim, quanto mais diferenciada a estrutura funcional, mais divergirão os indivíduos que dela fazem parte. Os vínculos que unem e amarram os indivíduos em uma totalidade (o cimento, se tomarmos o exemplo da casa) são, conforme indicado anteriormente, de interdependência, funcionalidade e poder6.

Aquilo que chamamos sua estrutura [da casa] não é a estrutura das pedras isoladas, mas a das relações entre as diferentes pedras com que ela é construída; é o complexo das funções que as pedras têm em relação umas às outras na unidade da casa. Essas funções, bem como a estrutura da casa, não podem ser explicadas considerando-se o formato de cada pedra, independentemente de suas relações mútuas; pelo contrário, o formato das pedras só pode ser explicado em termos de sua função em todo o complexo funcional, a estrutura da casa. Deve-se começar pensando na estrutura do todo para se compreender a forma das partes individuais. Esses e muitos outros fenômenos têm uma coisa em comum, por mais diferentes que sejam em todos os outros aspectos: para compreendê-los, é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e funções. (ELIAS, 1994, p. 25). Esta é a justificativa fundamental para que Norbert Elias advogue que o jogo de cartas, a sociedade, o Estado, a arte, dentre outros, sejam estudados pelo que são: relações de interdependência entre indivíduos (configurações).

O que distingue o conceito de figuração7 dos conceitos mais antigos com os quais se pode compará-lo é precisamente que ele constitui um olhar sobre os homens. Ele ajuda a escapar de armadilhas tradicionais, as das polarizações, como a do “indivíduo” e da “sociedade”, do atomismo e do coletivismo sociológico. Os meros termos “indivíduo” e “sociedade” já bloqueiam frequentemente as percepções. Caso se chegue a um distanciamento, fica-se em condições, nos degraus da escada em espiral da consciência, de se

6 Do mesmo modo, poder não é entendido como uma coisa que uns detêm e outros não. Trata-se do jogo de forças estabelecidos entre indivíduos, organizados ou não em grupos. 7 Alguns autores traduzem o termo como configuração; e outros, como figuração. A opção aqui foi adotar o termo configuração por sua maior coerência em relação à perspectiva do autor, uma vez que o prefixo con- indica algo feito ou sofrido conjuntamente, isto é, em relações socialmente estabelecidas. 45

reconhecer a si próprio, aparentemente no degrau precedente, enquanto homem entre outros homens, e de reconhecer a sociedade como uma figuração constituída de numerosos indivíduos fundamentalmente interdependentes, ou seja, tributários e dependentes uns dos outros; só então se é capaz de superar intelectualmente a polarização entre indivíduo e sociedade. Eis um objetivo tão fácil como ovo-de-colombo e tão difícil como a revolução copernicana (ELIAS, 2001, p. 149). Deste modo, as estruturas sociais, bem como as configurações formadas nas relações são, segundo ele, tão concretas como os indivíduos específicos em interação – como crítica às tipificações enquanto construtos abstratos (imputação de sentido) de pesquisadores (numa referência e oposição explícita a Weber, mais especificamente) e num explícito reconhecimento a Durkheim em sua tentativa de evidenciar a realidade da sociedade (ELIAS, 2006). Seguindo o raciocínio do autor, o estudo a partir das esferas (e, pois, de seus correlatos) deveria ser substituído por um modelo de funções diferenciais e de integração crescentes e decrescentes, igualmente níveis de síntese de caráter simbólico. Max Weber apresentou, em seus trabalhos, a diferenciação em esferas (racionalização) como um modo historicamente constituído de apreensão do mundo e que tem conseqüências no modo de ação dos homens. Além disso, Weber toma tal operação analítica como fundamento primordial à sua proposta metodológica. O autor deixa claro que as tipificações, ou seja, tais construtos abstratos, a exemplo das esferas, são apenas recursos metodológicos para interpretação do indiferenciado e, por isso mesmo complexo, mundo das ações sociais. Ao buscar apoio na noção de função, Elias intenta discutir as interações prescindindo, portanto, dessa etapa prévia de elaboração de tipos puros. A noção de função utilizada por Elias tem por inspiração o uso de que faz do termo Ernst Cassirer (2001a). Segundo Hésper Rivera (1998), tal noção teria sido adotada por Elias em 1923. Além de concordar com Cassirer quanto ao caráter simbólico do conhecimento humano, Elias adota deste autor a idéia central de que os estudos devem focar atenção na explicitação das relações (funções), e não na busca por substâncias. Deste modo, as esferas

(…) se referem a relações específicas de funções que as pessoas desempenham para si próprias e para os outros. Se as esferas políticas, económicas e todas as outras forem encaradas como relações funcionais de pessoas interdependentes, em breve se verá que a divisão é meramente conceptual. Mais, veremos que não tem relação com qualquer modelo sociológico da sua interdependência e, assim, desviamos a investigação sociológica do seu caminho. Basta-nos considerar um fenómeno como os impostos. Serão os impostos fenómenos de natureza “econômica”, “social” ou “política”? Será a decisão quanto ao modo como a carga fiscal é suportada de “caráter puramente económico”, “puramente político” ou “puramente social”? Ou não será antes a consequência de um equilíbrio de poder entre vários grupos de pessoas, entre governantes e governados, entre 46

os estratos sociais mais ricos e mais pobres, que podem ser razoavelmente bem determinados sociologicamente? (ELIAS, 1999, p. 69). O questionamento do autor pode ser compreendido à luz de sua proposta; no entanto, é nítida a tentativa de marcar uma posição singular que acaba por não fazer jus às considerações dos demais sociólogos aqui estudados. Simmel, Bourdieu e Weber – este que, mesmo não sendo aqui discutido diretamente, é aquele a quem Elias mais frontalmente se dirige – unanimemente afirmam a vida social como totalidade e, assim, como o mencionado espaço de interseções a que se referiu Bourdieu, apesar das especificidades e maiores/menores dificuldades de efetivação das respectivas propostas lançadas. De qualquer modo, não se trata de visão simplista do mundo societal como soma de esferas ou campos. Em acréscimo, Elias igualmente critica uma das conseqüências possíveis das tipificações. Apesar de autores afirmarem que os estudos devem incidir nas interações sociais, acabam por, na elaboração de tipos, retirar os indivíduos do jogo de relações. A ênfase na funcionalidade que marca as relações acaba por ser uma decorrência de tal cuidado: o indivíduo A está em função do indivíduo B; do mesmo modo que B está em função do indivíduo A; e ambos estão em função de tantos quantos se relacionem. Elias resgata, portanto, um sentido mais antigo de função (a partir de Cassirer) que se distingue do modo como os autores denominados funcionalistas fazem uso do termo. Esta funcionalidade – do modo como Elias constrói o termo – indica ainda que se tratam de jogos de forças assimétricas (de poder), passíveis de cambiar ao decorrer da relação e a depender dos jogadores em questão. No entanto, para dar conta do caráter, portanto, coercitivo que se aí se evidencia, o autor opta pelo uso do termo interpenetração. As ambivalências destacadas por Simmel passam a compor as análises das interações singulares, sem a necessidade de recorrer à estratégia de conceber estruturas relativamente autônomas. O mesmo pode ser afirmado quanto à necessidade de “virar” o objeto para obter variadas perspectivas (configurações) para análise. No caso da sociologia eliasiana, múltiplas perspectivações são possíveis a partir de uma mesma configuração, uma vez que as relações recíprocas exigem que o pesquisador se mova em busca da explicitação da função AB, bem como a função BA, além de outras tantas postas em jogo na configuração estudada. Elias parece pretender se aproximar daquilo a que Simmel insinua em seus trabalhos: o “conhecimento perfeito” que se atém às interações, e suas estruturas, a partir das relações interindividuais. Se isso marca uma proximidade com o citado autor, ao mesmo tempo marca fundamentais distanciamentos em relação a eles, e de Elias para com Bourdieu, uma vez que Elias, para alcançar seu intuito, se desvia da separação estabelecida por Simmel entre forma e vida e, especial, da prioridade que acaba sendo conferida às formas em 47

detrimento da vida. Para Elias, o distanciamento quanto ao mundo prático pela busca da depuração de estruturas é desnecessária ao conhecimento sociológico e um desvio de seus objetivos. Na busca por uma maior congruência do conhecimento sociológico em relação à realidade, Elias advoga a favor do estudo da complexidade dos fenômenos sociais em sua complexidade. Daí as esferas comparecerem como funções inerentes às diferentes relações entre os indivíduos.

Ainda que não faça referência a Simmel, Elias concorda com sua concepção de que o aumento na rede de relacionamentos tende a conferir maior mobilidade ao indivíduo e, assim, maior vazão e possibilidade de incremento do processo de individuação, conforme explicitado anteriormente. Simultaneamente, concorda ainda, diminuem as possibilidades de indivíduos singulares controlarem os demais “jogadores” e o “jogo”. Segundo Elias (1999), o grupo pode, inclusive, se fragmentar em vários grupos pelo aumento de participantes na rede. Tais grupos, por sua vez, podem seguir percursos de modo relativamente independente ou constituir uma nova configuração formada por grupos interdependentes. Além disso, o autor não descarta a possibilidade de o grupo inicial se manter conformado como uma configuração de elevado grau de complexidade. Para escapar de uma possível rigidez da figura formada a partir dos laços entre indivíduos, Elias afirma a sua proposta como uma sociologia evolutiva, cujo problema fundamental seria “descobrir e explicar como formações sociais tardias emergem de formações primitivas”. A noção de evolução em Elias, no entanto, não se confunde com o termo progresso. Para ele, o desenvolvimento histórico encerra progressos e retrocessos, e não cabe ao cientista social explicitar qual a sua opinião sobre como a sociedade deveria evoluir (1990). A configuração atual é apenas uma transformação possível da formação social anterior, esta sim necessária para que a configuração atual viesse a surgir. Cabe ao estudioso refazer esse percurso de longa duração: “É tão plausível examinarmos a cadeia de potenciais conseqüências como descobrir a constelação particular de fatores responsáveis pela emergência desta e não doutra configuração, dentro das alternativas possíveis” (ELIAS, 1999, p. 177). Sem dúvidas, aqui é perceptível a indelével marca de Weber, para quem cabia ao cientista social reconstruir as conexões (históricas) de sentido, imprescindível à compreensão da ação social – só que, em Elias, o objetivo é a compreensão do processo que levou a uma determinada configuração. O que interessa, portanto, é estudar uma certa configuração, o que não pode ser feito, segundo o autor, a partir de indivíduos isolados. A noção de constelação surge, mais uma vez, e num sentido conforme a Simmel e a Weber: como agrupamento de fatores. É por essa atenção aos processos que Elias critica as 48

topologias sociais, que não fazem jus às tensões entre os interesses centrífugos e centrípetos e, pois, à história. Deste modo, a contribuição fundamental da sociologia configuracional é permitir um estudo acerca das interações sociais em que a “saída” do chamado mundo das práticas seja tão desnecessária como o ater-se a uma ou outra esfera específica (ou campo) no estudo perdendo de vista a multidimensionalidade de qualquer fenômeno social.

Configuração-moda, afinidades eletivas e a estrutura do trabalho Deste modo, poderíamos tomar a crítica de Elias em relação ao uso da noção de esferas como ponto de partida para a compreensão da moda. Ora, similar à concepção de que, por exemplo, arte, política e religião são funções que ligam os indivíduos em redes específicas de interação, poderíamos, inicialmente, compreender a moda como uma dessas funções. No entanto, a partir do momento em que indivíduos passam a estar vinculados em relações de interdependência funcional a partir da moda, temos aí o estabelecimento de uma configuração específica e não homogênea que congrega indivíduos em diferenciados grupos, em termos de sua complexidade, e maior/menor afastamento entre si, bem como assimetricamente vinculados em relações de poder. É nesses termos que moda será aqui tratada como uma configuração, do mesmo modo que poderia sê-lo o jogo de cartas, a arte, uma equipe de futebol ou o Estado; ou seja, trata-se de um modo de evidenciar que tal função será tomada como elemento fundamental de interpretação das relações. Contudo, é importante notar que não se trata de descartar as demais funções. Ao contrário, e em conformidade com o que propõe Norbert Elias, as demais funções serão igualmente tomadas como imprescindíveis à compreensão da configuração-moda, aqui destacada. O ponto de partida para tal incursão, em se tratando de interações que ligam os diferentes indivíduos, depende unicamente de uma escolha estratégica do pesquisador. É nesses termos que Alexandre Herchcovitch aparece como interessante possibilidade, para além de sua contundente e contínua afirmação de que a moda é um negócio (e não uma arte). Sua escolha se deveu a ele congregar uma série de aspectos de relativa importância à compreensão do processo de produção de bens entendidos como vinculados à moda em contexto brasileiro, seja sua história familiar ou mesmo por ser paulista e ter em São Paulo a sede de sua marca. No entanto, há um outro aspecto digno de relevo que torna Herchcovitch um fio privilegiado de condução desta pesquisa: suas intenções notórias de internacionalização. A partir do mencionado estilista, buscou-se aqui não apenas compreender a configuração-moda como ela se apresenta no Brasil, mas a configuração mais ampla que a envolve internacionalmente e como isso se deu historicamente até os dias atuais. 49

Assim, tal configuração é aqui tomada como heurística à compreensão de uma série de interações que não se limitam à moda, por conta do caráter configuracional das relações.

Evidenciar algumas das articulações entre as produções no Brasil e aquelas que, por sua vez, amarram o Brasil a outros lugares do mundo significa não apenas esboçar como foi se constituindo o atual desenho nacional de interações a partir da moda, em elos harmônicos e tensos. Discutir esse tema significa levar à baila a moda enquanto relações comerciais – empreendimento (negócio) – e os processos que envolvem sua produção/consumo. O papel criativo do estilista é posto em questão não apenas a partir da consideração das demandas de públicos consumidores, mas igualmente das possibilidades vislumbradas para inserção de dada proposta de trabalho pela observação da malha tecida nacional/internacionalmente em seus indicativos (e pressão) para determinados tipos de produção. Seu trabalho, portanto, só pode ser compreendido, inclusive em termos de aceitação, na e pela consideração dessa rede, que, inclusive por sua extensão, acaba por conferir privilegiado papel a certos indivíduos e grupos que, em suas possibilidades de articulação, contribuíram, junto com os outros indivíduos que compõem a rede, para definir seus específicos rumos. Nesses termos, a trajetória de Herchcovitch é decorrente de uma série de encadeamentos de ações prévias a ele, e que ultrapassam o estrito âmbito da influência de sua família, e de outras tantas ações de seus contemporâneos, espacialmente próximos ou distantes dele. São, por exemplo, uma série de relações históricas que acabaram propiciando a canalização das produções de vestuário no Brasil para dois Estados, Rio de Janeiro e São Paulo, que acabaram assumindo, geograficamente, o papel de centros irradiadores de produções e de definições de gosto como complementares propostas para a “moda brasileira”, condensadas, em termos gerais, em duas facetas: o citadino e o praieiro. Ao mesmo tempo, por condensarem redes mais complexas, intricadas, de indivíduos ligados a negócios de moda, a circulação nos grupos configuracionais assentados nesses dois Estados, com São Paulo à dianteira, confere maiores chances de contatos mais próximos com grupos internacionais que conseguiram maior prestígio e, portanto, reconhecimento em termos de produção de vestuário. Não obstante a importância desses indivíduos privilegiados que assumem destaque frente os demais, é importante salientar que, ainda assim, eles estão presos à rede da qual fazem parte, sofrendo, inclusive, as conseqüências, de variadas ordens, por tais amarras. Ou seja, Alexandre Herchcovitch não é aqui tomado enquanto indivíduo descolado de seu entorno. Ao contrário, ele apenas se torna interessante na medida em que permite, através de seu percurso, a visada da mais ampla rede da qual faz parte e tem ajudado a constituir. 50

No entanto, uma das dificuldades enfrentadas por quem deseja estudar moda como tema de pesquisa e que, de certa forma, foi aqui apresentado através dos autores discutidos é a multiplicidade de significados que o termo moda assume como categoria social. O termo moda é compreendido, em primeiro lugar, como vestimentas de ampla, mas temporária, aceitação. Seria um tipo de roupa/acessório de uso generalizado. Contudo, a sua generalidade, para ser moda, deve estar atada ao seu desuso (efemeridade), para que se abra espaço ao surgimento de outras modas. O “fora de moda” ou “marginal na moda” está ligado ao que “está na moda”, seja por oposição, por alternativa ou mesmo por sua possibilidade de generalização futura. Moda, neste sentido, poderia ser compreendido como uma dinâmica de incessantes criações, escolhas, efervescências, declínios, mortes, em proximidade com as indicações de Simmel. Mas esse movimento, por outro lado, só existe enquanto acontecimento (modas) – síntese de uma série de relações socialmente estabelecidas que só podem ser compreendidas quando inscritas num contexto (configuracional) mais amplo, e histórico, que explicite seus próprios significados, em dado momento ao longo de uma trajetória – o que dificulta sua compreensão como apenas dinâmica ou apenas fenômeno.

Transpondo essa discussão para termos mais propriamente metodológicos, a moda será compreendida como uma configuração (Elias, 1999) que entrelaça quatro funções, depreendidas da multiplicidade que a palavra moda sugere: 1. Negócio, envolvendo as relações estabelecidas entre profissionais diretos – dedicados às fases de pesquisa, produção, divulgação e comercialização dos produtos (FEGHALI, DWYER, 2001) – , além de usuários, representantes políticos e econômicos, movimentos culturais, dentre outros, como elementos funcionalmente interdependentes e constituidores do processo de produção, escolha e uso de bens; 2. Produto (fetichizado), fruto das relações que definem inspirações e valoração como criativo, aparece como se fosse autônomo na forma de modas, além de ser submetido a classificações várias e, por vezes, nebulosas, a exemplo de luxo, prêt-à-porter, industrial, prime, dentre outros; 3. Expressão espontânea ou deliberadamente manipulada, ainda que de forma ocasional, de um suposto “eu” em função das diferentes relações de identificação/diferenciação em que o indivíduo esteja envolvido; e, enfim, 4. A moda como uso, conseqüência das relações social e historicamente desenvolvidas que o indivíduo estabelece com o produto, envolvendo questões como efemeridade/ perenidade, emoção (enquanto memória material, potencial de sedução, auto-satisfação, conforto ou mesmo obrigatoriedade de uso) /racionalização (planejamento, possibilidade de manipulação); imitação/ distinção, em suas diferentes modulações. É importante ressaltar que tais funções 51

são conjugadas nas diferentes interações vividas e, por conta disso, seu assinalamento aqui é apenas uma indicação de que tais funções serão consideradas ao longo da discussão. Nesses termos, a palavra moda é utilizada no texto nas suas diferentes possibilidades de sentido, evidenciados pelo contexto frasal. Ou seja, aquilo que, muitas vezes, é tomado como obstáculo à compreensão, é aqui positivamente utilizado enquanto evidência da riqueza e complexidade da discussão.

A moda pode, então, ser compreendida como um processo de produção, comercialização e consumo de bens materiais e simbólicos direcionados à composição do imediatamente sensível (imagens, cheiros, gostos, sons, superfícies), cuja aceitação/uso é de caráter efêmero e se dá por gosto, estilo, constrangimentos sociais de variadas ordens e/ou deliberada escolha por conta de objetivos e expectativas previamente estabelecidos, assumindo, por conta das relações de interdependência e funcionalidade que amarram os diversos indivíduos que compõem, constroem e são construídos por tais relações reticulares, os contornos do que Norbert Elias denominou configuração.

Como previamente destacado, para a compreensão da configuração-moda foi tomada a trajetória do estilista brasileiro Alexandre Herchcovitch, cujo destaque profissional inicia em princípios dos anos 1990 e se mantém até os dias atuais. A visibilidade do estilista se deu em paralelo à crescente afirmação de que era possível a produção brasileira de moda ter qualidade em termos de matéria-prima e materiais empregados, bem como de confecção e de criação. O fio condutor para exploração dessa trajetória foi, especialmente, o livro Cartas a um jovem estilista, de autoria do próprio Alexandre Herchcovitch, em que, a partir de sua trajetória pessoal, o estilista apresenta sua concepção de moda e tece uma série de sugestões a possíveis interessados em trabalhar na área. No entanto, outros materiais foram fundamentais nesse processo. Acompanhar a configuração-moda exige a atualização constante de informações, para as quais revistas que versam sobre assuntos atuais, como Veja e Exame, são fundamentais por apresentar questões de um ponto de vista, em primeiro lugar, político- econômico. Em complemento a uma visão similar, o acompanhamento de matérias no FolhaOnline, jornal virtual da Folha de S. Paulo, foi igualmente feito. No entanto, demanda- se também uma atenção especial em relação aos comentários de moda, críticas, indicação de características do momento, dentre outras informações, que ajudam a compreender os meandros, relações e produções ligadas à moda, bem como contribuem no sentido de permitir identificar estratégias e indivíduos-chave nessas articulações. Nesse caso, as publicações em revistas de atualidade e informativas são menos produtivas. A opção foi acompanhar as 52

publicações, especialmente, das revistas Vogue Brasil e IstoÉ Platinum. Ainda que não houvesse limitação a essas duas publicações, elas ganham destaque perante outras que teriam caráter similar e que foram analisadas no sentido de perceber seu potencial de contribuição tendo em vista os fins deste trabalho. E, nesse sentido, é importante frisar a diferença entre as duas publicações. A revista Vogue Brasil traz reportagens e pequenos artigos que permitem acompanhar as discussões em voga e as características do período; já a IstoÉ Platinum tem sua importância por ser voltada especificamente ao setor do luxo, permitindo, através de seus artigos e peças publicitárias, definir o luxo em seu significado atual fora e dentro do Brasil. O acompanhamento dos desfiles no São Paulo Fashion Week e no Fashion Rio foi principalmente feito através de visitações aos sites do São Paulo Fashion Week e do UOL Estilo, em que são apresentados artigos, entrevistas, fotografias e vídeos relacionados aos eventos especificamente, mas também assumem, ao longo do ano, caráter variado. Do mesmo modo que no caso das revistas, tratam-se de sites mais visitados, porém não os únicos. As visitações estavam vinculadas às exigências que o percurso de pesquisa impunha. E, nesse sentido, outro site, sem dúvidas, bastante visitado foi o de Alexandre Herchcovitch. Além disso, publicações a respeito de história da moda internacional e nacional, reflexões sociológicas sobre moda e de outros temas vinculados a esta tese foram consultados, a exemplo de biografias e autobiografias de pessoas e casas de moda: como a de Dener, Ocimar Versolato e Casa Gucci – com a intenção de compreender o percurso e as transformações do trabalho com moda pelas quais passaram esses indivíduos/grupos.

No entanto, este é apenas um panorama das fontes pesquisadas e que serviram de base a esta tese. As demais são deslindadas a cada capítulo, em conformidade com os rumos que o processo de pesquisa vai assumindo, seus obstáculos e suas possibilidades em aberto. E talvez o maior e mais instigante desafio tenha sido a elaboração de uma estratégia de escrituração para o texto aqui apresentado que se mantivesse em conformidade com a opção teórico-metodológica de uma análise configuracional. Uma vez definida a questão norteadora da pesquisa – a transformação na definição da moda apresentada por criadores no sentido de ressaltar seu aspecto de negócio, em detrimento da anterior tentativa de identificação da moda com a arte – fazia-se necessário evidenciar, através de elementos da história da configuração- moda, como tal mudança de definição (de acento, mais propriamente) e, portanto, de categorização foi processualmente se tecendo ao longo do século XX. Do mesmo modo que este trabalho não tem por finalidade apresentar a história de vida de Herchcovitch, tomada aqui apenas em termos de elementos entendidos como cruciais para compreensão do processo 53

em curso, o mesmo pode ser afirmado quanto a uma possível expectativa de aqui encontrar um trabalho que exponha, em minúcias, uma pretensa história da moda brasileira. Aqui, a recorrência à história é igualmente feita em função do interesse (sociológico) que norteia a pesquisa: compreender a atual configuração que permite ou impele que moda seja, por excelência, identificada como negócio. Os rumos de uma configuração, e especificamente de uma trajetória particular, dependem da confluência de uma série de fatores e, pois, de trajetórias que acabam por potencializar as possibilidades de certos rumos de configuração. Em lugar de compreender tais confluências apenas como limitações e fechamentos, creio ser mais condizente apontar a abertura de caminhos que propiciam e significam. Contudo, em conformidade com as exposições de Simmel, Weber e do próprio Elias, considero impossível, nos limites deste trabalho, abarcar todos os fatores que nessa constelação se conjugaram a ponto de conformar a configuração que temos hoje. Assim sendo, alguns desses fatores, considerados importantes na condução desta pesquisa, foram destacados e discutidos singularmente antes da incursão propriamente dita nas relações vividas por Alexandre Herchcovitch, transformadas em capítulo final deste texto. Em outros termos, cada capítulo é a discussão a respeito de uma configuração específica, à qual se amarram as demais. E todas, em seu conjunto de recíprocas conformações igualmente se articulam na definição da configuração final, tornada principal nesta pesquisa. Não são fatores, portanto, que meramente se amarram na configuração-moda brasileira, síntese das anteriores. Tais configurações singulares são fios que ajudam a compor e, ao mesmo tempo, são conformadas pela configuração final. Nesse sentido é que esta última não é mera síntese das demais, posto que é simultaneamente decorrência e conformadora delas numa cadeia de relações de “mão dupla”8. O tratamento singular se deveu à importância de sua discussão mais pormenorizada para a melhor compreensão da configuração mais recente e de âmbito nacional, da qual Herchcovitch nos serve como fio de condução. Trata-se mais propriamente de uma questão de afinidades eletivas entre esses diferentes fatores, igualmente configurações.

De acordo com Michael Löwy (1992), parte considerável da terminologia conceitual utilizada nas ciências sociais ainda advém da física e da biologia. No entanto, a expressão afinidades eletivas teria passado por um caminho singular, pouco usual, ao vir da alquimia para a sociologia, através da literatura. Os grandes patronos da noção teriam sido Albertus Magnus, Goethe e Max Weber. Embrionariamente, a concepção de que o semelhante atrai o semelhante já teria se apresentado na Grécia Antiga, através de Hipócrates. No entanto,

8 O mesmo é cabível quanto ao capítulo dedicado a Worth. Apesar de sua anterioridade histórica, é, a partir da configuração atual, que valoramos suas intenções e produções como primeiro costureiro no século XIX. 54

esclarece o autor, afinidade aparece como metáfora alquímica apenas na Idade Média. Foi o mestre de Tomás de Aquino, Alberto Magno, quem, no século XIII, provavelmente primeiro fez uso da palavra affinitas no sentido de uma forma de atração entre moléculas nas combinações químicas; assim, se o enxofre combina com metais, é devido, segundo ele, à sua afinidade natural. Essa idéia teria sido retomada no trabalho de Johannes Conradus Barchusen, alquimista germânico do século XVII, e de Hermannus Boerhave, alquimista holandês do século XVIII. Em Elementia chemiae (1724), Boerhave, segundo Löwy, explana que as partículas de solvente são dissolvidas em corpos homogêneos através da afinidade de sua própria natureza. Afinidade seria, portanto, a força que faz com que essas entidades heterogêneas formem uma união, mais pelo amor do que pelo ódio. É em sentido próximo a este que, em 1775, a expressão afinidades eletivas teria sido utilizada, ao que parece, pela primeira vez pelo químico-mineralogista-matemático sueco Torbern Olof Bergman, em seu livro De atractionibus electivis, traduzido para o francês em 1788. Em seu trabalho, Bergman usa os termos afinidade e atração, inclusive, de forma intercambiável. Ao ter contato com a obra de Bergman, o Barão Guyton de Morveau, químico francês a ele contemporâneo, enfatiza a afinidade como tipo particular de atração, distinta da específica intensidade do poder atrativo, através do qual duas ou mais entidades formam um ser cujas propriedades são novas e distintas em relação àquelas que se combinaram. A interessante questão que o Barão acaba por nos incitar a discutir é: Tais afinidades são promotoras de sínteses? Em que medida? Como podemos observar através da história da noção que Michael Löwy nos apresenta, diferentes concepções teriam sido apresentadas a respeito. Na tradução para o alemão, em 1785, da obra de Bergman, a expressão “atração eletiva” comparece como Wahlverwandtschaft, afinidade eletiva. Esta, segundo Löwy, teria sido provavelmente a versão a que Johann Wolfgang von Goethe tomou como inspiração e que serviu de título para sua obra, publicada em 1809: As afinidades eletivas (Die Wahlverwandtschaft). Como afirma Kathrin Rosenfield, esta obra de Goethe, que desliza entre o romance e a novela e que provocou tamanhas polêmicas, traz como título a articulação entre as palavras Verwandtschaften, que indica parentesco, e Wahl, escolha. Enquanto distinto de Entscheidung, que remete a decisão, Wahl estaria mais próximo de uma concepção de “escolhas inconscientes, que desconhecem a negação e a opção. (...) Remete assim ao problema ético da ação humana, que pode ser chamada de ‘livre’ e ‘racional’ apenas quando consegue fazer o salto das ‘escolhas’ naturais e espontâneas para as ‘decisões’ que, ao introduzirem os limites da opção, são criadoras de novas realidades, agora eticamente relevantes” (ROSENFIELD, 2008, p. 16). A noção de parentesco, portanto, remeteria ao 55

vínculo entre os objetos escolhidos. Ora, poderíamos ir além dessa interpretação a partir do resgate do uso feito por Alberto Magno e por Bergman. Ambos, em seus específicos contextos, ressaltam as afinidades como atração. Tal atratividade estaria na ordem da escolha, posto que seria mais propriamente definida pelo parentesco entre termos – o que é diferente de afirmar sua semelhança. Qual a capacidade de A e C se atraírem, a ponto de se descolarem de seus respectivos pares prévios para seguirem essa atração? Este é o jogo encenado por Goethe, em seu livro, através da chegada do Capitão e de Ottilie na casa e na vida do casal Charlotte e Eduard.

Ao ouvir a leitura de Eduard de um livro de química em que toca na questão das afinidades, Charlotte imediatamente se mostra curiosa para compreender o termo, que a teria feito lembrar de parentes que a preocupavam no momento – referia-se especificamente à situação de Ottilie, sua filha adotiva, no colégio interno em que estudava (GOETHE, 2008). Imediatamente, Charlotte é repreendida por Eduard e pelo Capitão, que enxergam nela a narcísica tendência humana de se ver refletido em tudo. Ora, Charlotte parece encarnar a posição do próprio Goethe que, através de sua obra, busca transformar a metáfora química numa espécie de instrumento teórico de compreensão das interações humanas, a ser testado a partir das relações amorosas que envolvem Charlotte, Eduard, Capitão e Ottilie – algo, inclusive, anunciado por Eduard, ao perceber que Charlotte já estava tecendo tal relação, quanto ao crescente afastamento de Eduard em relação a ela em função da chegada de Capitão, seu amigo de adolescência, como hóspede da casa. No entanto, as relações se tornariam ainda mais intrincadas com a chegada de Ottilie, um novo elemento que promoverá, como conseqüência, um rearranjo das relações a ponto de aproximar o Capitão e Charlotte, por um lado, e Eduard e Ottilie, por outro. Ora, Goethe parece evidenciar que o resultado de qualquer tentativa em prever o futuro das interações pode ser frustrado a partir de uma mera vicissitude: a chegada de um novo “elemento” no conjunto de relações previamente existente. As interações – ou, se se preferir, o composto químico – é instável. Segundo a explanação do Capitão e de Eduard a Charlotte, todos os seres da natureza mantém relações recíprocas, formando uma unidade a partir da coesão de suas partes. No entanto, tal união pode deixar de existir devido a alguma força ou outra determinação em jogo que, em cessando, pode acarretar o retorno à união anterior.

_ E isso será diferente segundo a diversidade dos seres – completou Eduard. – Ora agirão como amigos ou velhos conhecidos que rapidamente se reúnem, se juntam, sem modificarem um ao outro, tal como o vinho ao se misturar com a água; ora, ao contrário, permanecerão absolutamente estranhos um ao outro, sem se unirem, mesmo através de fricções ou 56

misturas mecânicas; tal como o óleo e a água, que logo depois de sacolejados juntos voltam a se separar. (...) Contudo, (...) há também em nosso mundo químico, elementos para juntar aquilo que se repele mutuamente. (GOETHE, 2008, p. 44). Assim, sintetiza o Capitão:

_ (...) Àquelas naturezas que, ao se encontrarem, se ligam de imediato, determinando-se mutuamente, chamam-nos “afins”. Nos álcalis e ácidos essa afinidade é bastante evidente; embora sejam opostos e talvez justamente por isso, procuram-se e se agregam da maneira mais decidida, modificando-se e formando juntos um novo corpo. (...) Por exemplo: o que chamamos de pedra-cal não passa de terra calcárea mais ou menos pura, estreitamente unida a um ácido tênue que ficou conhecido para nós como gaseiforme. Se colocarmos um pedaço dessa pedra em ácido sulfúrico diluído, este então se juntará à cal, ganhando com ela a forma de gesso; aquele ácido tênue, etéreo, por sua vez, se evaporará. Aqui ocorreu uma desagregação e uma nova combinação, o que nos autoriza a aplicar a expressão “afinidade eletiva”, pois realmente parece que se preferiu uma relação em detrimento da outra. (GOETHE, 2008, p. 45/46). Assim, do mesmo modo que a atratividade que leva à combinação dos elementos mantém, em Goethe, seu aspecto criativo, visto que uma nova unidade se conforma, ela estaria vinculada a uma separação prévia, donde adviria seu potencial destrutivo. Mais do que isso, a síntese, para Goethe, implica a transformação dos componentes prévios na nova unidade. A relação entre quatro elementos, por outro lado, não se faz necessária, segundo o raciocínio apresentado por Goethe através do Capitão. Inclusive Eduard aponta como característica galante o fato de os químicos agregarem o quarto elemento para que nenhum dos três anteriores fique imune. Ou seja, não se trata de condição necessária, mas eventual, haver a conformação de dois novos pares, e não apenas um. No entanto, no caso do livro de Goethe, ao “esticar” a noção de afinidades eletivas para as relações humanas, fazendo-a ganhar universalidade, o autor parece apontar a complexidade maior que o termo adquire. As afinidades eletivas assumem, enquanto escolhas e não decisões, um teor não-racional, atadas ao desejo, ao amor, às emoções que, por vezes, defrontam-se com uma série de barreiras de convenções sociais. É isso que dilacera Eduard e arruína Charlotte. Mas, acima de tudo, as afinidades se dão por parentesco, termo nebuloso que parece ir além das meras semelhanças ao repousar no desejo, quanto às relações humanas. Como acentua Rosenfield (2008), apenas a decisão seria capaz de interromper os problemas e evitar o final trágico dos acontecimentos. Ou seja, mais uma vez o império da racionalidade a conduzir as relações para uma conformação novamente equilibrada. No entanto, as hesitações impedem a tomada de decisão e definem o desfecho da narrativa. Segundo Löwy, a transposição conceitual operada por Goethe estava alicerçada nas próprias metáforas sociais utilizadas pelos alquimistas; Löwy, 57

inclusive, aponta a possibilidade de Goethe ter também se inspirado em Boerhave, além de Bergman. De qualquer modo, foi através do trabalho de Goethe que a expressão afinidades eletivas se estabeleceu na cultura germânica.

É de modo, contudo, apenas semelhante em relação a Goethe que Max Weber fará uso da expressão em seus trabalhos. Em A ética protestante e o espírito do capitalismo, lançado em 1904/5 e ampliado em 1920, Weber afirma:

Em face da enorme barafunda de influxos recíprocos entre as bases materiais, as formas de organização social e política e o conteúdo espiritual das épocas culturais da Reforma, procederemos tão-só de modo a examinar de perto se, e em quais pontos, podemos reconhecer determinadas “afinidades eletivas” entre certas formas da fé religiosa e certas formas da ética profissional. Por esse meio e de uma vez só serão elucidados, na medida do possível, o modo e a direção geral do efeito que, em virtude de tais afinidades eletivas, o movimento religioso exerceu sobre o desenvolvimento da cultura material. Só depois (quando isso estiver estabelecido de forma razoavelmente inequívoca) é que se poderá fazer a tentativa de avaliar em que medida conteúdos culturais modernos são imputáveis, em sua gênese histórica, àqueles motivos religiosos e até que ponto se devem a outros fatores. (WEBER, 2005, p. 83). O autor, no mesmo texto, volta a utilizar o termo ao afirmar que, comparativamente, o calvinismo parecia “ter mais afinidade eletiva com o rígido senso jurídico e ativo do empresário capitalista burguês” (p. 126). Desse ponto de vista, Weber parece buscar ressaltar que as pontes de similitude entre “certas formas de fé religiosa” e “certas formas de ética profissional”, por um lado, e entre o calvinismo e o “senso jurídico e ativo do empresário capitalista burguês”, por outro, acabaram por aproximar o protestantismo de certos modos de condução da vida profissional que, combinados, teriam possibilitado o desenvolvimento do capitalismo no Ocidente, do modo como ocorreu. O aspecto de novidade, segundo Löwy, parece ter desaparecido no uso weberiano da noção de afinidades eletivas – e de afinidades de sentido, que denota algo similar. Em Weber, “elective affinity unites socio- cultural, economic and/or religious structures without forming a new substance or significantly modifying the initial components – even though the interaction has the effect of reinforcing the characteristic logic of each structure”9. (LÖWY, 1992, p. 09/10). É nesse sentido, inclusive, que não se trata de qualquer relação de causalidade e nem exatamente de influência, posto que é relação recíproca (LÖWY, 1992; DE PAULA, 2005). Ao mesmo tempo, tem-se aí que não se trata de uma relação de expressão, em que o protestantismo

9 “As afinidades eletivas unem as estruturas sociocultural, econômica e/ou religiosa sem formar uma nova substância e sem modificar significativamente os elementos iniciais – ao contrário, a interação tem o efeito de reforçar a lógica que caracteriza cada estrutura” (Tradução nossa). 58

exprimiria o capitalismo em sua faceta religiosa, ou vice-versa. Condições históricas teriam favorecido tais afinidades, e seu rumo em direção ao desenvolvimento capitalista. Nesses termos, tais afinidades não necessariamente levariam ao capitalismo. Uma série de outros fatores confluiu de modo a dificultar outros direcionamentos possíveis e a facilitar o que se deu. Inclusive, isso nos impele a considerar o papel das vicissitudes no processo sócio- histórico. No entanto, é possível questionar a interpretação do autor quanto ao desaparecimento da novidade como resultado da afinidade, afinal não é disso que trata o desenvolvimento capitalista para Weber? Mas, de fato, tal síntese na forma do capitalismo se dá a partir da afinidade entre protestantismo e certa ética profissional, reforçando esses elementos mais do que modificando-os substancialmente. Ao que parece é diferente da interpretação de Löwy a respeito do pensador alemão. Weber é um autor dedicado aos processos sociais. A afirmação da criação de algo novo significaria a formação de um terceiro elemento que apareceria como descolado dos demais. Isso comprometeria a própria noção de processo, no refinado modo como Weber utiliza o termo em suas interpretações. Como processo, as mudanças vão se dando na continuidade. E assim é possível perceber o capitalismo como direção paulatinamente assumida a partir do “reforço mútuo” proporcionado pela afinidade entre determinadas formas de fé e de ética profissional, dentre outros fatores não abarcados pelo autor nos limites de sua obra, permitindo que o vínculo entre capitalismo e protestantismo fosse restabelecido interpretativamente. De qualquer modo, ainda segundo Löwy, Max Weber foi o responsável por tornar afinidades eletivas um conceito sociológico, mas o sociólogo alemão não teria chegado a examinar o significado do conceito, nem suas implicações metodológicas ou mesmo chegou a definir seu campo de aplicação. Weber utilizou o termo para caracterizar modos precisos de relação entre diferentes formas religiosas, para definir o vínculo entre interesses de classe e visão de mundo e como ferramenta para analisar, conforme apontado, a relação entre religião e ethos econômico. A proposta de Michael Löwy é integrar os vários significados que o termo adquiriu ao longo de sua história, no sentido de utilizar o conceito como uma ferramenta metodológica em pesquisas interdisciplinares. Para tanto, ele busca esclarecer o uso deste termo, que já comparece em trabalhos seus desde 1981, mas que foi criticado por sua falta de precisão. No final da mesma década, Michael Löwy reapresenta o conceito como essa ferramenta de ainda inexploradas possibilidades para a sociologia da cultura. O objetivo de seu trabalho, intitulado Redemption & utopia, definido por ele como um estudo de afinidades eletivas, é investigar a geração de intelectuais nascidos em fins do século XIX no universo cultural judaico da Mitteleuropa (Europa Central), cujos escritos foram simultaneamente inspirados por forças 59

germânicas (românticas libertárias) e judaicas (messiânicas) e culminaram na criação de um novo conceito de história e uma nova percepção da temporalidade, em discrepância com o evolucionismo e a filosofia do progresso, e que teve em Walter Benjamin seu maior expoente. Michael Löwy define:

By “elective affinity” I mean a very special kind of dialetical relationship that develops between two social or cultural configurations, one that cannot be reduced to direct causality or to “influences” in the traditional sense. Starting from a certain structural analogy, the relationship consists of a convergence, a mutual attraction, an active confluence, a combination that can go as far as a fusion10. (LÖWY, 1992, p. 06). Nesses termos, o autor mantém a reciprocidade da relação, definida como uma dialética, e sua pauta numa atração; no entanto, articulando as concepções de Goethe e de Weber, anuncia que tal relação não necessariamente implicará na transformação dos elementos postos em contato. O resultado da relação pode ser uma fusão ou um reforço mútuo. Acentua ainda o autor que o conceito pode ser aplicado para compreender (segundo ele, no sentido forte de verstehen) conexões entre fenômenos diferentes dentro do mesmo campo cultural (religião, filosofia, literatura) ou entre distintas esferas sociais (religião e economia, misticismo e política, entre outros11). Para tanto, o autor distingue graus de afinidade em função do grau de crescente dinamicidade da relação: correspondência; escolha; articulação; nova figuração (esta, segundo Löwy, ausente das considerações weberianas12). Considerando que Weber não tenha chegado a explorar cuidadosamente o termo como o faz Löwy e a opção teórico-metodológica de utilizar para os fins deste trabalho de pesquisa o aporte eliasiano, é importante notar que as opções apontadas por Löwy parecem limitadoras quando confrontadas com o potencial que a noção de afinidades eletivas guarda. Quando Elias substitui a noção de esfera pela compreensão das múltiplas funções que ligam os indivíduos, abre espaço para que, em outros termos, o religioso, o político, o econômico sejam discutidos de modo articulado, afinal compõem as diferentes interações humanas – ainda que não consigamos esgotar todas as articulações possíveis. A noção de afinidades eletivas viria complementar o uso de que faz Norbert Elias da noção de valência. Em Elias, as valências (mais propriamente co-valências) são as ligações recíprocas entre os indivíduos. E, do mesmo modo que essas valências significam fixações em outros; mantêm-se ainda

10 “Eu defino ‘afinidade eletiva’ como o especial campo de relações dialéticas que se desenvolve entre duas configurações sociais ou culturais e que não pode ser reduzida a causalidades diretas ou ‘influências’ no sentido tradicional do termo. Iniciando a partir de certa analogia estrutural, a relação consiste numa convergência, numa atração mútua, numa confluência ativa, numa combinação que pode vir a se tornar uma fusão”. (Tradução nossa). 11 Exemplos utilizados pelo autor. 12 Em relação a isto, creio já ter feito aqui as devidas considerações críticas. 60

indefinidas valências abertas, indicando a abertura dos indivíduos, em oposição à concepção de Homo clausus, de que Elias deseja se afastar. A mudança nas valências que atam um indivíduo, ou o desaparecimento de uma delas, promove “uma alteração da configuração particular de todas as valências (...) [e muda-se] o equilíbrio de toda a teia de relações pessoais” (ELIAS, 1999, p. 149). Deste modo, a noção guarda certa proximidade com a noção de afinidades eletivas; no entanto, o termo afinidades eletivas remete com maior facilidade às relações humanas, por um lado, e à dinamicidade de tais relações, por outro. Por isso, a opção aqui na utilização dessa expressão, afinidades eletivas, em detrimento da noção de valência. Ainda assim, é importante afirmar que a noção de valências, termo igualmente advindo da química, parece ter um sentido bastante próximo da noção de afinidades eletivas, em especial, se, em conformidade com as discussões de Elias, consideramos que se tratam mais propriamente de co-valências. Deste modo, as relações de co-valência funcional entre os indivíduos, em suas diferentes intensidades e possibilidades de transformação ao longo das interações (seja por destituição de ligações, acréscimo ou transformações nas relações já previamente existentes), conformariam as configurações em sua dinamicidade. Tomando-se configurações mais amplas, seríamos capazes de perceber núcleos de maior ou menor densidade (que poderiam ser tomadas como configurações específicas dentro da configuração mais ampla, a depender dos interesses de pesquisa) e mesmo relações mais próximas ou mais distantes entre diferentes núcleos. A rigor, tratam-se igualmente de relações entre indivíduos e, nesses termos, são relações de co-valência ou de afinidades eletivas. Weber, como bem apontou Löwy, não se valeu do termo num sentido que chegasse a abarcar as “mínimas interações”, mas essa possibilidade de uso já estava em aberto desde Goethe. Diferentes cadeias de interação vão se aproximando a partir de relações de “mão dupla” criando sínteses definidoras dos processos humanos. Ou, nos termos da pesquisa aqui apresentada, a trajetória de Herchcovitch foi se dando em função de uma gama de interações que, por sua afinidade eletiva, foram se conjugando de modo a conduzir os contornos da configuração para o modo como atualmente se apresenta. Algumas dessas interações, entendidas aqui como relevantes, foram destacadas da totalidade da qual fazem parte e tratadas, inicialmente, de forma separada, ao mesmo tempo em que suas ligações recíprocas eram apontadas. Tratadas igualmente a partir da noção de configuração, tais interações foram retomadas no capítulo dedicado à configuração-moda no Brasil. Como haviam sido previamente discutidas, compareceram no capítulo final de modo mais sintético e remissivo, senão levariam a um considerável desvio dentro da narrativa final – o que poderia comprometer a fluidez do texto. Nesse sentido, este trabalho foi textualmente estruturado em duas partes: 61

A primeira parte traz três capítulos que versam sobre relações fundamentais à compreensão da configuração aqui tornada objeto de estudo. Deste modo, tais relações compõem tal configuração, mas, tendo em vista a questão que norteia esta pesquisa, foram tratadas com maior aprofundamento e de modo destacado. Deste modo, tratam-se de configurações que têm antecedência histórica ou que ocorreram no exterior ou, ainda, que fundamentaram valorações distintas a respeito do trabalho de produção de vestuário e que, por afinidade eletiva, ajudaram a direcionar a produção de vestuário no Brasil, seja favorecendo ou dificultando. Outras configurações podiam ter sido destacadas, outras foram tratadas na segunda parte do trabalho, ainda que sumariamente, como configuração única. Assim, o primeiro capítulo da primeira parte tem por título Obra em panos, Worth e o projeto do costureiro como artista. O objetivo do capítulo é discutir o surgimento e valor atribuído ao trabalho de Charles Worth em função das transformações de sua época, o século XIX. A importância de Worth se deve a ele ser considerado o primeiro costureiro, no sentido de primeiro criador de vestuário e por Worth ter buscado reconhecimento como artista. Assim, do ponto de vista de Worth, a moda seria uma arte. No entanto, em lugar de reconhecimento, instaura-se a polêmica e o debate em relação à possível associação entre o objeto artístico e o objeto de moda. Nesses termos, tal capítulo funciona como interessante ponto de partida, pois evidencia as disputas que giram em torno das categorizações sociais e, ao mesmo tempo, trata da inicial identificação dos criadores de moda, hoje genericamente denominados de estilistas, com o fazer artístico. Ainda que a noção de configuração possibilite uma análise que não se dê a partir da tipificação em esferas, categorias como arte, política, ciência, entre outros, passaram a compor o vocabulário cotidiano, na medida em que o modo de interpretação de mundo historicamente foi se constituindo no sentido de uma diferenciação deste em específicos âmbitos que classificam as ações, as interações, os indivíduos e suas produções (o que em termos eliasianos seria tratado como diferenciação funcional). Em função disso e da polêmica em torno da possível classificação da moda, como arte ou não-arte, o desenvolvimento da concepção de artista como uma ocupação diferenciada dentre as demais, e o processo de formação do artista, foram discutidos a partir do surgimento das academias de arte. A investigação a respeito das disputas em torno da relação moda-arte-economia foram, no entanto, aprofundadas no segundo capítulo, que tem por título O costureiro e sua magia, criatividade, heresia e moda. Assim, a discussão weberiana e bourdiana foram contribuições de primeira ordem. Com inspiração no título do texto de Bourdieu e Delsaut – O costureiro e sua grife, contribuições a uma teoria da magia – e em sua utilização da nomenclatura religiosa para interpretação da moda, no capítulo se buscou compreender as relações 62

socialmente estabelecidas de proximidade e distanciamento entre arte e moda, a partir da vinculação (diferenciada) de ambas com a questão econômica. A religião comparece como o pano-de-fundo a partir da interpretação weberiana a respeito da relação entre religião e seita, sacerdote e profeta. É levando em consideração tais categorizações socialmente construídas que a polêmica em relação ao projeto de Worth se torna compreensível, bem como os desdobramentos posteriores. Do mesmo modo que há afinidades entre as duas configurações apontadas – aquela que é apresentada a partir da trajetória de Worth e aquela que indica as respectivas valorações do artista e do costureiro –, igual afirmação pode ser feita entre elas e a discussão do terceiro capítulo. Intitulado Entre o eterno e o efêmero, o luxo no século XXI, o capítulo objetiva a compreensão de transformações que aconteceram ao decorrer do século XX e que tiveram rebatimento no comércio de bens de luxo, inclusive vestuário, e que depois se irradiaram para outros segmentos ainda no século XX e no século XXI, e que teriam contribuído para a paulatina mudança na compreensão da moda no sentido de identificá-la a um negócio e negar seu caráter artístico (ainda que sem unanimidades a respeito).

A segunda parte é composta por um único capítulo: Os fios e a trama ou “o croqui artístico acabou”, Alexandre Herchcovitch e o negócio moda. Este capítulo tem por objetivo compreender a afirmação de Herchcovitch de que moda é negócio e suas implicações em termos de processo produtivo e auto-concepção como profissional. Mais do que isso, intenta-se compreender o desenvolvimento de tal concepção em contexto brasileiro – ou seja, como Alexandre Herchcovitch foi “possível” – e a constituição da atual configuração da moda nacional através da trajetória do citado estilista.

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PARTE I: WORTH, A MODA E O LUXO

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OBRA EM PANOS: WORTH E O PROJETO DO COSTUREIRO COMO ARTISTA

Que homem, na rua, no teatro, no bosque, não fruiu, da maneira mais desinteressada possível, de um vestuário inteligentemente composto e não conservou dele uma imagem inseparável da beleza daquela a quem pertencia, fazendo assim de ambos, da mulher e do traje, um todo indivisível? Parece-me que esta é a ocasião de retomar certas questões relativas à moda e aos adereços (...) e de vingar a arte do vestir das calúnias ineptas com que a atormentam certos amantes muito equívocos da natureza (BAUDELAIRE, 1997, p. 55). Conforme já previamente exposto, não se opera aqui com o recurso weberiano de compreensão do mundo a partir de sua divisão em esferas. Arte, religião, economia, política são funções inerentes às diferentes interações humanas, que foram processualmente diferenciadas em nossa compreensão de mundo. Ou seja, tais categorias foram historicamente sendo tecidas e utilizadas como nosso repertório de definições de mundo. A partir do momento em que categorias como arte e economia começam a ser socialmente utilizadas, assumem um substancial caráter de interesse sociológico, no sentido de compreender seu desenvolvimento e transformações, e também o modo como, ao serem tomadas como pautas para ação, contribuem para certos direcionamentos da história humana. Longe, portanto, de tentar resolver a questão de a moda ser ou não arte – e, nesse sentido, de concordar ou discordar com o posicionamento de Baudelaire –, o que é posto aqui como interessante e relevante é compreender a tensão que se instaura com a polêmica e seus posteriores desdobramentos. Nesse sentido, tomar-se-ão, em primeiro lugar, os problemas relativos tanto do classificar a moda como arte, bem como do expurgar esse âmbito de tal alcunha ao afirmá- la como não-arte. Discutir o pleito significa atentar para as relações estabelecidas entre diferentes indivíduos que participaram do debate em sua plasticidade e força. Interessa, portanto, o frutífero de perceber as aproximações e distanciamentos daquilo que vigeu e vige enquanto idéia de arte e de moda e as dificuldades próprias do classificar, que o caso da relação moda e arte evidenciam. Tomo para isso, conforme afirmado, a figura de Charles Frederick Worth (1825-1895), um inglês nascido em um período em que o debate sobre o artístico, seu caráter e especificidade no mundo (a autonomização do artista) acontece de modo mais candente. O projeto de Worth, considerado nos estudos sobre o vestuário como o primeiro costureiro-criador, será afirmar e firmar a moda como uma arte. 65

A pergunta norteadora é: O que pode ter contribuído para o estabelecimento de tensões na definição da moda como suposta arte? O mapeamento do tema se dará, em primeiro lugar, a partir de fragmentos da trajetória de Worth que pude recolher em textos esparsos. Conhecer, ainda que nebulosamente, a história de vida desse importante personagem nos ajuda tanto a situá-lo no mundo francês da época, espaço e tempo de execução de seu projeto, como permite questionar os conteúdos e encaminhamentos do projeto no transcorrer de sua vida. Contudo uma compreensão sociológica “pede” explorações contextuais que ofereçam a oportunidade de ampliar o arco de visão, sempre limitado, do pesquisador. A opção aqui foi percorrer sumariamente algumas transformações do fazer denominado artístico com a finalidade de, a um só turno, pinçar alguns dos argumentos historicamente utilizados em sua definição como tal, compreender o status atribuído ao artista em suas modulações históricas e identificar alguns dos agentes que possivelmente teriam participado do debate. Esses dois momentos investigativos estão apenas analiticamente separados. A estratégia de escrituração textual adotada reflete a intenção de, concomitante à explicitação da trajetória de Worth, indicar traços tidos como fundamentais desse contexto histórico, traços estes mais detida e didaticamente explorados na segunda parte do texto. O pano-de-fundo principal são os trabalhos Mozart, sociologia de um gênio, de Norbert Elias, e As regras da arte, de Pierre Bourdieu.

Worth, sua trajetória e a moda Worth nasceu em Bourne, Lincolnshire, Inglaterra. Aos 12 anos, é enviado por sua mãe para trabalhar em Londres numa loja de cortinas. Um ano após, passa a trabalhar no armarinho Swan & Edgar, vendendo xales. Trabalhou ainda, estima-se em 1845, na Lewis and Allenby, que, dentre outras coisas, fornecia tecidos finos à Rainha Vitória. Ainda quando trabalhava na Swan & Edgar, desempacotando chapéus e vestidos trazidos da França, além de outras atividades, Worth teria começado a se interessar mais profundamente por questões de vestuário, em especial a moda parisiense (COSGRAVE, 2000). Havia, na época, uma peculiar divisão internacional do trabalho. A Inglaterra era reconhecida por uma excelência na técnica; a França, nos modelos. Ao que parece, Worth desejava aliar o que havia de positivo em ambos: a técnica inglesa e a criatividade francesa. Para isso, nas horas vagas do trabalho, ele visitava a National Gallery para estudar as roupas a partir das telas dos chamados Grandes Artistas; e em 1846, muda-se para Paris. Se considerarmos que Worth inicia seu trabalho junto à Swan & Edgar em mais ou menos 1845, nota-se, ou melhor, imagina-se a avidez e 66

intensidade de seu estudo e empenho; e como seu método para conhecimento acerca das questões do traje (especificamente das formas) se dava, em especial, a partir de produtos considerados artísticos, num momento de ascensão da figura do artista em termos de prestígio social, torna-se mais fácil compreender a associação por ele construída. No entanto, algumas considerações a respeito são imprescindíveis.

Só podemos efetivamente compreender Worth e seu empreendimento considerando, inclusive, que ele não foi o primeiro a afirmar (ou a tentar afirmar) a produção vestimentar como uma arte. Ainda na segunda metade do século XVIII, houve essa tentativa, mas não por parte dos costureiros, e sim mais propriamente dos que trabalhavam com a composição da imagem do usuário – isto é, com acessórios e ornamentos. A sua vinculação com o fazer artístico se dava, esta é uma hipótese, pelo quilate da relação estabelecida entre vendedor/consumidor. As sugestões de compra-uso feitas pelo vendedor funcionavam como uma forma de dominação que acabava por se diferenciar agudamente do tipo de relação estabelecida entre costureiro e cliente. O cliente escolhia o tecido, mas era o comerciante que sugeria o forro e os enfeites correspondentes. Do ponto de vista da clientela, como assinala Daniel Roche (2007), a produção, confecção e adorno cabiam ao comerciante, e não ao alfaiate ou à costureira, cujos status técnico, social e econômico eram inferiores. Por mais que o costureiro, no uso de sua experiência e conhecimento, operasse inovações e sugestões, o fazer era conjunto – e a subordinação à vontade do cliente, imperativa – a ponto de o produto ser tributado muitas vezes unicamente ao usuário, em geral aristocrata, cujo nome acabava sendo emprestado ao traje. O costureiro era posto unicamente como um artífice de mecânico ofício, tal qual ocorria na música, na literatura, naquilo que, ao decorrer dos mesmos séculos XVIII e XIX foi se constituindo, ou melhor, foi sendo construído e consolidado como arte.

O colocar-se como artista, portanto, significava mudar a ordem das relações vigentes rumo a uma autonomia criativa dos artistas e, daí, a subsunção dos “outros” (o vulgo) à criatividade pretensamente livre e superior desses indivíduos especiais cujas obras estariam na ordem do sagrado, e ambos acima de qualquer valoração, a não ser a conferida por seus pares. O artista seria, assim, o gênio que consegue se livrar dos grilhões do enraizamento a outros homens, às necessidades mundanas, a um tempo e lugar. A sua obra seria, pois, marcada pela perenidade (atemporalidade). Como pôr, então, como condição de legitimidade o reconhecimento público de uma obra como arte? O fator distintivo do artista seria uma espécie de fidelidade a um projeto de produção, à guisa de qualquer reconhecimento em vida. O reconhecimento da obra como digna de apreciação, ainda que 67

ardorosamente desejado, poderia ou não acontecer por parte dos contemporâneos – e o relegar o projeto criativo a segundo plano em detrimento do gosto e desejo do público (do “pouco diferenciado e conhecedor vulgo”) por conta do desejo de sucesso (ou seja, por interesses materiais) seria igualmente relegar a si e a obra à condição de não-arte ou, no máximo, de arte inferior – o desinteresse interessado assinalado por Pierre Bourdieu (2002c). Segundo este autor, a definição de uma especificidade do artístico em relação a outras ocupações e fazeres, do modo como foi sócio-historicamente construído, estaria em direta ordem com a negação do interesse pecuniário como fator primordial que guia a criação. Nisso consistiria a suposta liberdade do artista, uma vez que dinheiro e reconhecimento, mesmo desejados, não chegariam a restringir as possibilidades criativas.

A trajetória de Mozart, explicitada e discutida por Norbert Elias (1995), evidencia tal concepção ao discutir os esforços de um pequeno burguês que deseja sua independência em relação aos mandos de seu empregador, mas que deseja também sobreviver de sua produção, e nisso aproxima-se da condição de Worth, ainda que este tenha vivido no posterior século XIX. No caso de Worth e de Mozart, sobreviver de suas obras se tratava de uma questão de necessidade. Mozart viveu no século XVIII e, em referência à música, pode ser tido como um dos pioneiros a se lançar em tal empreitada. Em Mozart, contudo, ainda não estava claro o futuro significado atribuído ao termo reconhecimento no que toca à arte. Daí sua própria ânsia e frustração ao longo do percurso. A busca pela independência esbarrava no visgo das fortes dependências vividas – na necessidade mesmo do estabelecimento de articulações/laços para que a própria exibição pública de sua obra fosse possível e também aceita, ainda mais quando se trata de composições musicais que, muitas vezes, dependem do trabalho de instrumentistas e, a depender, de atores; em acréscimo, depende da própria disponibilidade de instrumentos.

Deste modo, no que se refere à moda, os problemas de seu reconhecimento como arte não podem ser postos nem em termos dos desejos de sobreviver de moda, nem pela divisão do trabalho existente na produção do vestuário. Ainda que tenha vivido no século posterior ao de Mozart, o projeto de Worth e a situação vivida pelos costureiros de sua época – quanto às relações e condições de trabalho – acabam por também aproximá-los. Ser reconhecido como artista, portanto, implicava que Worth deveria inverter a relação, se impor como o detentor do poder maior frente ao consumidor, que, como “ser comum”, não disporia das condições e recursos intelectivos para mais do que aceitar as determinações do gênio. Seria necessário, enfim, criar sem interferências, produzir com antecedência. Ao cliente 68

caberia apenas vislumbrar, aceitar; no máximo, escolher dentre o posto para ele de antemão como opções pelo artista, que cria em função de sua inspiração e gosto. A garantia do valor da obra seria, então, registrada pela assinatura do artista, marca de que a obra é fruto de uma única pessoa – imagina-se, ao menos. Essas mudanças só seriam efetivamente possíveis quando da passagem para o século XIX, uma vez que, até 1791 (ano em que se deu a abolição das corporações pela Constituinte), era vedado ao alfaiate e à costureira estocar e vender tecido; em suma, executar trajes com antecedência. Em acréscimo, o clima instalado na França ainda na primeira metade do século XIX parece favorecer o surgimento do projeto de Worth e viabilizar (potencialmente) sua transformação em realidade. Se o período inicial pós- revolucionário foi marcado pela execração da aparência e de qualquer marca de frivolidade, nos anos trinta do século XIX é bastante visível uma nostalgia do período pré-revolucionário, com sua alegria, festas e o requinte de suas belas vestimentas. “O desprezo ao rococó cedeu lugar à admiração” (ELIAS, 2005, p. 42). O “retorno” do desejo de luxo na França pode ter servido de fértil solo para o surgimento do sonho do inglês Worth, e pode ter sido determinante na sua opção de deixar a Inglaterra e ir a Paris.

Mais do que isso, o momento foi igualmente propício na medida em que incentivos, na Inglaterra e na França, quanto a um mais amplo conhecimento da população em geral acerca de obras de artistas antigos, se coloca, propiciando uma bagagem que ajuda a constituir uma relação mais simétrica entre, no caso, costureiro e clientela. Na Inglaterra, tal movimento se deu por conta da baixa qualidade e do mau-gosto atribuídos às denominadas artes aplicadas ou industriais. Esse precário resultado foi reportado à deficiente formação dos artesãos, que inexistiam como classe, e se viam submetidos a industriais preocupados apenas com vendas. Ao mesmo tempo, os reconhecidos artistas da época se mantinham indiferentes quanto à questão, pois consideravam que seu fazer tinha caráter muito distinto, e superior, em comparação ao trabalho artesanal. A medida, por fim, adotada na Inglaterra do século XIX, segundo Pevsner (2005), foi buscar aperfeiçoar o gosto geral através do mencionado estímulo ao contato com as obras do passado ligadas às artes decorativas. De tal ação resultou posteriormente a criação do Victoria and Albert Museum e de escolas de desenho coordenadas pelo Departamento de Arte Aplicada, combinando, pois, museus de arte aplicada a escolas de arte, o que se tornou a característica mais significativa das academias de arte na segunda metade do século XIX. Tais produções foram denominadas artes aplicadas por conceberem-nas como uma aplicação das belas-artes, ou artes superiores, em produtos de uso cotidiano. De qualquer modo, tal termo fez com que os trabalhos a ele relacionados fossem 69

aproximados às realizações artísticas, do modo como elas eram concebidas no século XIX. Quanto à França, por outro lado, ainda que houvesse reconhecimento notório, para além de suas fronteiras, a respeito de sua suposta superioridade de produção, também havia uma inquietação quanto à perda de qualidade de suas peças. Esboçou-se na França um movimento contra as academias advindo dos representantes do movimento romântico, mas que só ganha força a partir dos anos 1790, quando, ao pequeno círculo de românticos, na defesa da liberdade criativa, aliam-se “inimigos” como Voltaire e os enciclopedistas. O impacto das formulações acerca da relação entre genialidade e ausência de regras norteadoras da produção, numa França em que as academias se desenvolveram sob os auspícios de um Estado Absolutista que as subvencionava financeiramente, e a indicação primeira das normas de criação a serem seguidas em nome do mercantilismo, resultaram na extinção das academias em 1793, seqüência da abolição das guildas em 1791. A restauração das academias se deu em 1795, e o século XIX francês foi marcado por uma academização completa da formação do artista, uma vez que grande parte do aprendizado, que se dava nos ateliês e oficinas, havia sido extinto, marcando uma separação mais radical entre arte e artesanato, em contraposição à política em vigor na segunda metade do século XVIII, em que, por determinação real, as artes deveriam contribuir para o benefício das artes industriais, bem como para expansão do comércio – uma decorrência do próprio mercantilismo (DEJEAN, 2005b; PEVSNER, 2005). De qualquer modo, as disputas entre as academias e as guildas significavam a percepção da proximidade entre os dois fazeres. No que se refere à produção de roupas, podemos apontar que a Imperatriz Joséphine, primeira esposa de Napoleão (Primeiro Império), por conta de seu gosto pelo Renascimento, buscava inspiração nas telas dos pintores da referida época para composição de seus trajes e acessórios. É cabível apontar que, conforme indicam Jones e Stallybrass (2003), havia uma atenção dos pintores em detalhar consideravelmente as vestimentas, em detrimento dos próprios rostos, que, por vezes, se repetiam numa mesma tela. Aquele que se dedicava à costura acabava por tomar contato e se ver compelido a conhecer tais obras para atender os anseios de suas clientes. Durante o Diretório e o Império, Louis Hyppolite Leroy foi um costureiro reconhecido por sua elegância e que conseguiu considerável prestígio em sua época (MACKRELL, 2005). Tratava-se já de um mundo burguês em consolidação. Ainda que Leroy estivesse submetido às criações de suas nobres clientes, como as rainhas da Espanha, da Bavária e da Suécia, um novo cenário se anunciava. A indicação de Leroy como homem elegante é fundamental para a percepção das transformações em curso. 70

As mudanças sociais na França levaram à Revolução de Julho em 1830 e à ascensão de Louis-Phillipe, cujo reinado, conhecido como Monarquia de Julho, durou 18 anos e fortaleceu o poder da burguesia social e politicamente. A história nacional francesa foi redefinida como a experiência do povo da nação, em todas as suas classes. Imagens históricas (de caráter considerado artístico), em pinturas e livros, se tornaram parte crucial da vida e ajudaram a justificar, inclusive, a trajetória do rei, que substitui a espada, de referência aristocrática, pelo guarda-chuva em suas caminhadas pelas ruas de Paris. Houve um considerável crescimento das exposições destinadas ao público em geral, ao passo de ser um período de incremento das práticas de consumo. De qualquer modo, a substituição da espada pelo guarda-chuva era um indicativo da busca burguesa por um estilo próprio. “During the second half of the century [XVIII], critics systematically and harshly attacked the sophisticated and affected manners and dress of the young, wealthy bourgeois – financiers, lawyers, or magistrates – who aped aristocratic courtly ways”13 (PERROT, 1996). Já não havia as leis suntuárias do Antigo Regime (abolidas em 1793), que protegiam os aristocratas, enquanto classe, das aproximações, em aparência, de segmentos burgueses. A magnificente roupa aristocrática foi tomada como símbolo de seus privilégios. Estas leis se multiplicaram a partir dos séculos XIII e XIV e tinham por objetivo proteger a indústria nacional, impedir os excessos no uso de metais preciosos, e também “lembrar” o lugar de cada um na hierarquia ao impor vestuários específicos a cada camada social, daí a proteção à aristocracia no que se refere à conturbação das fronteiras de classe a partir da aparência. Por volta de 1620, as leis suntuárias deixaram de ser segregativas; apesar de continuar significando uma série de interdições quanto ao vestuário, passaram a se dirigir a todos os indivíduos. Segundo Lipovetsky (1997), o decreto da Convenção de 1793, que declarou o princípio democrático de liberdade de vestuário, apenas legalizou o que já, de fato, existia. As fronteiras vestimentares estavam confusas. No entanto, a nova indumentária, de caráter burguês, precisava estar em conformidade com os ideários da classe, ligados, por exemplo, à prudência, discrição e limpeza (asseio). Ao mesmo tempo, a burguesia não era associada a bom-gosto. A elegância daqueles que produziam tais bens passa a ser um valioso critério para seleção e reconhecimento público, o que lhes permite (e a Worth) se colocar como conselheiros destes que não haviam sido instruídos ao longo de sua trajetória quanto a um gosto socialmente aceito que lhes permitisse uma autonomia criativa. Trata-se, portanto, de uma série de

13 “Durante a segunda metade do século [XVIII], críticas sistemáticas atacaram os modos e roupas sofisticadas e afetadas dos jovens burgueses ricos – financistas, advogados e magistrados – que imitavam as maneiras aristocráticas” (tradução nossa). 71

afinidades que torna o momento favorável a que o técnico profissional passe a criar e obtenha, a partir disso, o reconhecimento de que detém um conhecimento e gosto privilegiados. Leroy foi reconhecido por sua elegância; Worth, aproveitando a conjuntura propícia, irá além. Deste modo, ele pertence a uma época em que se articulam o desenvolvimento industrial, dos meios de transporte e do consumo geral, o estímulo ao conhecimento generalizado de obras artísticas, a busca por parte da vigente classe dominante por um estilo próprio e a susceptibilidade da burguesia, em especial aqueles bem aquinhoados, a aconselhamentos quanto ao gosto.

Worth, como já mencionado, muda-se para a capital francesa em 1846. Inicialmente trabalha na Gagelin-Opigez, onde vendia tecidos finos, xales, vestidos e outros componentes do vestuário. Lá encontra sua futura esposa, Marie Augustine Vernet (1825- 1898), cujo trabalho era vestir os produtos da loja para apreciação e escolha das clientes. Era, portanto, uma manequim viva, ainda que o modo de exibição mais usual de roupas fosse através de miniaturas em bonecos de cera, madeira ou porcelana, as poupées (ou fashion dolls, como eram denominadas na Inglaterra), talvez inspiração e precursoras das manequins de vitrine das lojas. Ambos, Worth e Marie Augustine, trabalhavam, pois, num magazin de nouveauté, denominação da época para os primeiros estabelecimentos comerciais a manterem grandes estoques de mercadorias (BENJAMIN, 1991). Surgidos nos anos 30 e 40, esses magazins vendiam principalmente artigos de luxo. Dentre estes, destacavam-se os tecidos, mas havia em similar monta o comércio de outros produtos advindos da indústria têxtil, conforme nos aponta Ortiz (1991), como roupas, sedas, lençóis, luvas, dentre outros, rompendo com a especialização dos pequenos comerciantes. Da fabricação sob encomenda, passa-se para a produção prévia voltada ao mercado de modo mais amplo (padronização), mesmo a produção de peças permanecendo artesanal. Ainda que não permita um volume tão expressivo de negócios como o obtido posteriormente a partir da criação dos grands magazins (as grandes lojas de departamentos), essa padronização incipiente já implicava, como observa ainda o autor, uma considerável ampliação no grau de racionalização do trabalho, havendo, inclusive, o uso da publicidade para atração de clientes14.

A produção de roupas em série na França se deu ainda nos anos 20, mas ganha impulso apenas após 40. A máquina de costura é patenteada por Isaac Singer em 1846

14 Muitos destes magazins de nouveautés estavam situados nas chamadas galerias, centros comerciais para produtos de luxo. Nessas galerias, portanto, a proximidade espacial de empreendimentos concorrentes se torna crucial para a organização do trabalho, tendo em vista a redução de custos e, como mencionado, a atração de clientes. 72

(COSGRAVE, 2000), e a produção de roupas sob medidas padronizadas só se dará depois dos anos 70. Até então a confecção é voltada primacialmente à lingerie, xales, mantilhas, mantôs e casacos curtos (LIPOVETSKY, 1997). Worth, então, se instala num período em que não havia, ou pouco havia, a concorrência com a produção mecanizada, apesar de haver uma incipiente padronização das roupas. Ainda na Gagelin-Opigez, ele abre uma espécie de departamento de costura na loja, após cinco anos de trabalho (O’HARA, 1999), em que sua função era, inicialmente, enaltecer o produto enquanto as manequins desfilavam. Em 1847, Paris tinha 233 manufaturas de prontos para uso com mais de sete mil trabalhadores; após 1847, contava com 255 costureiras trabalhando especificamente nas roupas prontas femininas, surgidas apenas a partir de 1845 (PERROT, 1996). Só esse setor empregava mais de 1.300 trabalhadoras, o que deu a Worth, ainda segundo Perrot, a idéia de obter um triplo proveito comprando diretamente da manufatura, vendendo a roupa e fazendo vários modelos de traje. Algumas mulheres trabalhavam para as lojas e outras para suas clientes, fazendo roupa fina pronta para usar. Elas teriam sido inspiração fundamental para Worth.

Em 1855, Gagelin-Opigez integrou a primeira Exposição Universal de Paris, momento crucial na trajetória de Worth, que ousou apresentar um trabalho em seda bordada em ouro branco, com um pouco usual alto preço que correspondia a US$ 3,000, segundo informação constante no livro Costume & fashion: a complete history, de Bronwyn Cosgrave (2000). Tais exposições tinham por objetivo fundamental evidenciar a grandeza das Nações em consolidação a partir da exibição de seu progresso, ou seja, de produtos ligados, em especial, às chamadas artes mecânicas, industriais. É em tal tipo de exposição, que vincula desde trabalhos como o seu a certo tipo de arte de segundo escalão, que inicia a escalada bem sucedida de Worth – que acaba por atrair uma classe média bem estabelecida, conseqüência da vitória burguesa de fins dos anos 40 e das intenções de Napoleão III em fazer de Paris uma grande cidade. Havia, portanto, um clima de prosperidade que contribuía sobremaneira para o empreendimento de Worth, que abre sua Maison Worth na 7 rue de la Paix, em sociedade com o suíço Otto Gustave Bobergh (1821-81) em 1857. Worth era o “gênio criativo”; Bobergh, desenhista, tinha também talento para os negócios15, e, por fim, Marie Augustine desfilava na loja e em locais públicos para exibição das criações do marido e comandava as outras manequins (EVANS, 2002). O casal, deste modo, levou para sua Maison o desfile já realizado nas pequenas lojas, mas o incrementou com a suntuosidade da produção e do produto, bem como com o caráter seleto da clientela. Trata-se agora do traje completo. A

15 Worth não sabia desenhar. Segundo James Laver (1999), ele mandava fazer litogravuras de cabeças e braços e depois esboçava o vestido. 73

idéia do gênio criador de vestuário não aniquila a condição do técnico produtor de trajes, que continua a existir. Estabelece-se sim uma nova figura, a do costureiro (couturier), criador e fazedor, com uma nova e melhor condição social, hierarquicamente superior. Sua superioridade se daria por conta de o seu trabalho ser configurado como intelectivo-criativo em contraposição ao trabalho de executor que cabia aos técnicos da costura – numa divisão que prevalece ainda hoje. Ao mesmo tempo, Worth reabilita a figura do homem que produz roupas para mulheres, perdida desde Leroy, e reacende os protestos que levaram à formação oficial da guilda das costureiras em 1675 (DEJEAN, 2005b). As críticas se deram em função de as mulheres se submeterem ao escrutínio de homens para que pudessem ser produzidos seus trajes. Isso seria um perigo às mulheres por se constituir como um atentado moral – o que pode ter contribuído, apesar de não configurar como elemento único, para que costureiros assumissem um modo efeminado como característica de estilo, independente, em alguns casos, de questões de condição sexual. Phillipe Perrot (1996, p. 187) nos apresenta uma citação da Enciclopédia Larousse (século XIX) sobre a questão do costureiro homem:

Here, under the Second Empire we see the reappearence of those unspeackably peculiar men (are they really men?) presiding over the clothing of women, the most fashionable women, crumpling gauze on the bosoms of princess, plancing ribbons and flowers on the bodices of duchesses, and becoming arbiters of dress designs or fabric choices. This is a trend we sincerely hope will not become a general practice, one that might spread to include unaffected and upright women. Let feminine hands have the privilege of constructing clothing for mothers, wives, and sisters. To them leave the delicate tasks that require a skillful touch, not an athlete’s strength, if they are to be done well and above all decently16. Worth sempre foi consideravelmente contestado em vários sentidos (não podemos aí esquecer o seu desejo de aceitação como artista), contudo, segundo Perrot, até a década de 1880, ele permaneceu como exceção para o monopólio da couturière. Ninguém o igualou em prestígio e alcançou os preços por ele cobrados por suas criações. Ele foi o primeiro couturier, e a primeira maison de couture parisiense (expressão de início do século XX) foi a Casa Worth. Assim, as costureiras perderam sua centralidade, e os costureiros tomaram seu lugar como “artistas da moda” (DEJEAN, 2005b). O reconhecimento/sucesso de Worth em sua época se deveu, no entanto, em grande medida a uma iniciativa que, ao que parece, partiu de

16 “Aqui, no Segundo Império, vemos reaparecer aqueles indescritíveis homens peculiares (são realmente homens?) comandando a roupa da mulher, da mais elegante mulher, pregando gaze nos peitilhos das princesas, atando fitas e flores nos corpetes das duquesas e se tornando árbitros dos modelos das roupas e das escolhas de fabrico. Esta é uma tendência que nós sinceramente esperamos não se tornar uma prática generalizada, que pode se difundir a ponto de alcançar as mulheres simples e direitas. Deixem que mãos femininas tenham o privilégio de fazer as roupas para as mães, esposas e irmãs. Deixem a elas a delicada tarefa que requer o hábil toque, e não uma força atlética, se tal incumbência é factível e, sobretudo, decente” (tradução nossa). 74

sua esposa, evidenciando o papel que cada indivíduo é capaz de desempenhar em termos de construção histórica. Talvez, se Marie Augustine não tivesse feito parte da trajetória de Worth, ele não conquistasse sua principal cliente e abrisse os fundamentais caminhos para o surgimento da chamada alta costura. Com o intuito de expandir os negócios do marido, Marie Augustine objetiva conquistar a esposa de Napoleão III, a Imperatriz Eugênia, como cliente.

Em 1848, a Segunda República foi proclamada na França, com Louis-Napoléon Bonaparte, sobrinho do primeiro imperador, eleito Presidente. Em 1852, ele assume poderes ditatoriais com uma nova constituição e se torna o Imperador Napoleão III. Durante o segundo Império (1852-70), segundo MacKrell (2005), a fascinação com o passado permaneceu como tônica, com acentuado interesse pelo Rococó, de caráter aristocrático. Se o capitalismo parecia ter vencido, os bem-nascidos deram ênfase aos modos e modas aristocráticos como forma de contestação à moralidade burguesa austera e opressiva. Os vestidos pintados por Watteau em suas telas foram para as fashion plates das revistas de moda francesas dos anos 1860. Madame Pompadour e a Rainha Maria Antonieta também foram reabilitadas. Se Édouard Manet foi o artista de vanguarda responsável pela retomada do Rococó; a grande patrocinadora quanto ao traje foi a Rainha Eugênia. De origem espanhola, ela se identificava com Maria Antonieta, outra estrangeira. Colecionava objetos da rainha do século XVIII e os punha no Petit Trianon, lugar de refúgio de Maria Antonieta em Versalhes. Além disso, a Rainha Eugênia se vestia ao modo da antiga Rainha.

Para, então, tornar a Rainha Eugênia cliente de Worth, Marie Augustine apresenta os desenhos do marido, que ele assinava e patenteava (afinal eram obras de arte), para Pauline, Princesa von Metternich, esposa do embaixador da Áustria na França – os trabalhos foram executados com parceria de Bobergh. Pauline pagou 600 francos por duas criações.

These gentleman, quite eager to have me a customer, asked if I would be so kind as to have a dress made by them. I only had to tell them the price I would be willing to pay… The evening dress would be launched at the next ball at the Tuileries Palace… It was made of silver-lamé white tulle (wich was new) and decorated with daisies with pink centers placed in tufts of wild grass. The flowers were veiled in white-tulle, and a wide white satin belt circled my waist. I had diamonds sewed everywhere – and Worth had his first success! As soon as the Empress entered the throne room where the diplomatic corps was gathered for the circle, she instantly noticed the masterpiece! When she came up to me she asked who had made this dress so marvelous in its simplicity and elegance. “An Englishman, Madame, a rising star in the havens of fashion!” “An what is his name?” “Worth”. “Well”, replied the Empress, “let the star have stallites. Please ask him to call on me tomorrow 75

morning at ten!” Worth was launched and I was lost, because three hundred- franc dresses disappeared17. (Apud PERROT, 1996, p. 250). A Imperatriz, a partir do baile de 1860, acaba por se tornar sua principal cliente. A influência da Imperatriz Eugênia foi de grande importância para a trajetória bem sucedida, em vida, de Worth. A Imperatriz era a única cliente por quem Worth se deslocava. Fazia parte da inversão da relação levar as clientes a se deslocarem ao seu encontro. E, para isso, o ambiente da Maison devia ser minuciosamente decorado. Segundo descrição de Cosgrave (2000), a ambientação podia ser comparada, em requinte e discrição, ao de uma embaixada. À porta, um letreiro, em dourado, mostrava seu nome. Não havia, diferente do que ocorria com as grands magazins, qualquer anúncio promocional: aquelas que desejassem ser clientes de Worth, segundo James Laver (1999), tinham que ser indicadas por outras clientes já estabelecidas. Uma vez atravessada a porta, a cliente percorria várias ante-salas. A primeira delas exibia uma série de panos de seda fina nas cores preta e branca que acabam por dar destaque a sofás e cadeiras, delicadamente posicionados, e a um gabinete que guardava antigas posses de Worth. A segunda sala, denominada de sala arco-íris, trazia uma fileira de sedas multicoloridas de Lyon e brocados italianos, e a terceira sala, lãs britânicas. No salão dos espelhos, por sua vez, os desenhos de Worth eram modelados em manequins de madeira. Esses espelhos eram estrategicamente posicionados, segundo Cosgrave, a fim de que a cliente pudesse, de pronto, reconhecer, logo de sua entrada, como sua roupa era algo desfalecido perto das novas criações de Worth. O salon de lumière – a última sala – era decorada, por sua vez, com seda preta. A luz do dia era afugentada com a ajuda de numerosas cortinas de veludo. Esta sala era iluminada por candeeiros a gás para recriar o ambiente de um grande baile ou recepção. A cliente, assim, teria a oportunidade de vislumbrar com antecedência os efeitos de um vestido de festa criado por Worth numa noite de gala. Não à toa, estudiosos contemporâneos, como Diana Crane (2006), associam o costureiro à recente noção de marketing. A engenhosidade de suas estratégias é notória.

17 “Este cavalheiro, completamente ansioso para que eu adquirisse um traje, perguntou se eu teria a bondade de adquirir um vestido feito por ele. Eu apenas teria que dizer a ele o preço que estaria disposta a pagar... O vestido lançado no próximo baile no Palácio das Tulherias... Ele foi feito de lamé prata com tule branco (o que era novidade) e decorado com margaridas com centros em cor-de-rosa postas em tufos de capim selvagem. As flores foram cobertas com um véu de tule branco e um extenso cinto de cetim branco circundava minha cintura. Eu tinha diamantes costurados por toda parte – e Worth teve seu primeiro sucesso! “Assim que a Imperatriz entrou na sala do trono, onde o corpo diplomático se reúne para a reverência, ela imediatamente atentou para a obra-prima! Quando veio até mim, perguntou quem havia feito aquele vestido tão maravilhoso em sua simplicidade e elegância. ‘Um britânico, Senhora, uma estrela em ascensão nos céus da moda!’ ‘E qual é o nome dele?’ ‘Worth’ ‘Bem’, replicou a Imperatriz, ‘deixe a estrela ter satélites. Por favor, diga para que ele me procure amanhã às dez!’ Worth estava lançado e eu estava perdida, porque os vestidos de 300 francos desapareceram” (tradução nossa). 76

Por incrível que possa parecer, Charles Worth é hoje conhecido mais por essas estratégias do que por sua inventividade. Além do uso de modelos vivas e da composição de desfiles para exibição de seus trajes previamente elaborados, Worth, mesmo sem grande sistematicidade, apresenta duas coleções anuais, com renovação por sazonalidade, o que era também uma novidade e que se mantém como prática até hoje, além de criar em função da procura da clientela. Além disso, em 1868, Worth fundou a Chambre Syndicale de la Confection et de la Couture pour Dames et Filletes. Sua intenção foi, inicialmente, proteger os desenhos de moda de cópias indevidas. A organização persiste, mas mudou de nome. A Chambre Syndicale de la Haute Couture é uma das várias que compõem a Fédération Française de la Couture du Prêt-à-Porter, estabelecida em 1973 e mais conhecida por Chambre Syndicale de la Couture. Trata-se de uma organização reguladora que define as regras para que uma Maison possa ser classificada como de alta costura. Dentro da Federação, a Câmara Sindical tem também por função promover, orientar e defender seus membros no que toca a questões de “pirataria” (os modelos são protegidos por direitos autorais), mas também de relações internacionais, organização de desfiles, dentre outros. A preocupação de Worth tinha seu fundamento por ser, o período de sua ascensão, igualmente o da padronização e industrialização das roupas. Além disso, a existência tão comum de pessoas prendadas em costura facilitava a que alguns de seus modelos fossem copiados, em especial por mulheres de classe média que passavam a ter maior condição de consumo – principalmente, as jovens solteiras que começavam a alçar postos de trabalho e podiam se aproximar de um “estilo burguês” numa época em que não mais havia leis suntuárias (CRANE, 2006). Ao mesmo tempo, a Câmara significava a limitação de ingresso num seleto grupo e conferia a Worth a posição privilegiada de controle sobre os demais criadores. Como mencionado, Worth inspira-se num procedimento já corrente na confecção industrial, voltada às camadas populares e médias, e que aumenta significativamente a lucratividade do negócio: ele agrupa as operações de compra direta da fábrica, venda do tecido e fabricação da roupa, o que lhe permite, nos termos de Lipovetsky, um “triplo ganho”. Além disso, dá continuidade à especialização de tarefas na costura, que já existia e que foi fundamental para o desenvolvimento da moda. Ao fazer isso, contribui para um formato específico de burocratização do negócio, pois se, por um lado, avança sistematicamente na separação das funções de direção (criação) e de execução (fabricação); por outro, trata-se, de acordo com Lipovetsky, de uma organização regida a partir da noção de gosto, e não de um saber racional. Ainda de acordo com o autor, trata-se de uma 77

(...) lógica burocrática que, de resto, ordenará toda a organização das grandes casas doravante estruturadas de maneira piramidal, tendo no topo o estúdio, cuja vocação é a elaboração dos modelos, e “embaixo” as oficinas com suas tarefas especializadas (as fazedoras de mangas, de corpetes, de saias, as “costureiras”, e, mais tarde, as que fazem ponto ajour, as operárias do “grande vestido”, do tailleur, do “solto”) e seus índices hierarquizados (“primeira”, “segunda de oficina”, primeira e segunda contramestras, ajudante, aprendiz). Que a Alta Costura tenha tido por clientes as mulheres da alta sociedade, que tenha sido uma indústria do luxo, não muda nada o fato historicamente maior de que fez a moda passar da ordem artesanal para a ordem moderna burocrática. (LIPOVETSKY, 1997, p. 93). Ainda que possamos discordar da compreensão de Lipovetsky acerca do caráter de racionalidade da organização de produção do vestuário, é interessante notar o modo como a alta costura teria, inicialmente, conjugado a organização burocrática a um modo de personalização do costureiro, inicialmente tido como insubstituível por conta da unicidade de seu potencial criativo. No topo da pirâmide, ele passa a coordenar todas as demais atividades, que estariam submetidas ao trabalho do criador. Já no que se refere às peças de vestuário, Worth em grande medida deu continuidade àquilo que havia no século XVIII, à diferença de eliminar parte dos ornamentos em direção a um traje mais discreto. As modificações que ele elaborou foram pequenas e o punham em pouco risco de abandono pela clientela. Georgina O’Hara (1999), por exemplo, enumera seu vestido-túnica18, lançado em 1860; a abolição da crinolina19, em 1864, com elevação da saia na parte de trás formando uma cauda; a criação, em 1869, de uma nova anquinha20 atrás. Além disso, modificou os chapéus, afastando-os da testa e diminuiu o tamanho dos espartilhos. Sua posição privilegiada foi arranhada apenas pelas novas transformações no cenário político francês. Em 1970, Worth termina a sociedade com Bobergh, que retorna ao seu país de origem. A queda do Segundo Império, em decorrência da guerra franco-prussiana, e o exílio de sua cliente de maior prestígio, a Imperatriz Eugênia, para a Inglaterra obriga Worth a fechar sua Maison por um ano. A partir de sua reabertura, a Maison Worth passa a ser comandada pela família, incluindo aí os filhos Gaston (1853-1924) e Jean-Philippe (1856-1926), que assumiram o negócio, após a morte de Worth em 1895, respectivamente como administrador e estilista. Gaston Worth, inclusive, foi o primeiro presidente da Chambre Syndicale de la Haute Couture.

As possíveis aproximações entre as figuras de Worth e de Mozart nos permitem constatar que a dificuldade de incluir a moda no âmbito da arte não se dá facilmente pelos

18 Veste que ia até os joelhos, usada por sobre uma saia longa. 19 Pequena anquinha feita de crina ou de arcos de aço. 20 As anquinhas já eram usadas desde o século XVIII. Segundo Köhler (2001), eram armações de bambu, barbatana de baleia ou aço, presas por tiras ou correias. Em 1725, o arco inferior chegou a medir de cinco a seis metros de circunferência. 78

argumentos convencionais. Como apoio à compreensão da controvérsia, serão tomados, mesmo de modo geral, alguns aspectos da história da autonomização do pintor e do escultor, cujos fazeres artísticos elevados, por conta das tensões igualmente vividas em seu processo de reconhecimento como “artes superiores”, explicitam a formação de uma importante configuração que obtém considerável peso no equilíbrio de poder: a academia. O reconhecimento de que a academia é o lugar de elaboração de um saber legítimo sobre arte faz como que os indivíduos que compõem o seleto grupo, os acadêmicos, assumam um papel diferenciado no valor atribuído a determinada obra e ao suposto artista. Indubitavelmente, a despeito das possíveis controvérsias internas entre seus membros, os acadêmicos participaram do debate referido à moda.

O artista e a academia Conforme nos indicam estudos devotados à história da arte, como os empreendidos por Burke (1999), Hauser (2003), Panofsky (2000), Pevsner (2005), dentre outros, o prestígio que envolve a arte e o artista é historicamente recente. Por outro lado, diferenciações de status entre as atividades são perceptíveis desde a Antigüidade na “superioridade” atribuída à limpeza e elaboração mental presentes no trabalho do poeta em detrimento da sujeira ocasionada pelo trabalho visto como meramente manual do pintor e do hoje denominado escultor. Ainda que sua obra fosse digna de apreço, havia uma nítida separação entre obra e personalidade do artista; esta era desconsiderada (HAUSER, 2003). Conforme aponta Panofsky (2000), era perceptível na Antigüidade, e à semelhança do Renascimento, duas concepções de arte: uma considerava que ela seria uma imitação imperfeita da natureza; a outra, que a obra de arte tinha a possibilidade de corrigir as falhas da natureza e, por isso, lhe seria superior. No entanto, até o Quattrocento, os pintores e escultores são ainda considerados artesãos mecânicos e não tinham instrução formal em escolas. Seu aprendizado, realizado nas oficinas, era acentuadamente técnico, envolvendo apenas rudimentos de leitura, escrita e aritmética. Ao final desse ensinamento básico, tornavam-se aprendizes junto a mestres com quem trabalhavam por oito a dez anos nessa condição. Até o século XV, a elaboração artística é coletiva. Ainda não se tinha instituído a “assinatura do artista” como uma prática que individualizava a obra – mesmo considerando o relativo avanço que a guilda (inicialmente associação de empresários independentes) significou em relação à loja (cujos indivíduos eram organizados hierarquicamente). Apesar disso, as guildas, por suas regras e caráter estritamente local (sua função principal era proteger os associados de 79

eventuais concorrentes), acabam por se tornar um entrave àquilo que posteriormente se convencionou denominar “liberdade de produção artística”.

A emancipação dos pintores e escultores dos grilhões das guildas e sua ascensão do nível do artesão para o do poeta e do letrado foram atribuídas à sua aliança com os humanistas; o apoio que receberam destes explica-se, por outro lado, pelo fato de os monumentos literários e artísticos da Antigüidade formarem uma unidade indivisível aos olhos desses entusiastas, os quais, ademais, estavam convencidos de que os poetas e artistas plásticos da Antigüidade clássica eram tidos em igual respeito. (...) E fizeram com que sua própria época – e toda posteridade até o século XIX – acreditasse que o artista, que jamais fora alguma coisa além de um mero mecânico aos olhos da Antigüidade, compartilhava com o poeta as honras do divino privilégio (HAUSER, 2003, p. 330/ 331). Artistas e escritores, portanto, pertenciam a dois diferentes mundos: o do ateliê e o da universidade, respectivamente. Na universidade, os estudos iniciavam pelas “artes”, isto é, as sete artes liberais (dignas de homens livres), divididas nas mais elementares – gramática, lógica e retórica (o Trivium) – e nas mais avançadas – aritmética, geometria, música e astronomia (o Quadrivium) – e prosseguiam para um dos níveis mais altos – teologia, lei ou medicina. O currículo era o mesmo da Idade Média. Já a concepção de academia adotada pelos humanistas estava ligada à idéia de reuniões informais, levada novamente à Itália por sábios da Grécia que lá foram com o intuito de reunificar a igreja romana e a grega e acabaram por contribuir para o ressurgimento do platonismo na Itália e, pois, da noção de academia a ele associada. Esta era, fundamentalmente, um círculo de debates entre indivíduos, que, em alguns casos, se expandiu e compôs universidades (as academias eram tidas como parcelas de universidades). A maioria das universidades italianas só surge verdadeiramente no decorrer dos séculos XIII e XIV, quando a crescente riqueza exige melhor preparação com a educação (BURCKHARDT, 2003). Ainda no Quattrocento e Cinquecento, conforme Pevsner (2005), os termos universidade e academia passam a ser concebidos como sinônimos. De qualquer modo, não há, segundo Burke (1999), prova de treinamento teórico formal de artistas em academias até a fundação da Academia Del Disegno em Florença na segunda metade do século XVI. Esta instituição servirá de modelo para o sistema acadêmico francês (século XVII), inglês (século XVIII) e de outros países.

No entanto, a respeito da possível proteção dos humanistas àqueles que hoje denominamos artistas, Hauser indica que, mesmo essa proteção tendo sido de grande importância, não podemos considerá-la “a razão da ascensão social do artista”. Torna-se imprescindível, prossegue ele, considerar o desnecessário em que se transformam as guildas com o equilíbrio entre oferta e demanda. A relação de proximidade com os humanistas seria, 80

desse ponto de vista, uma justificativa para uma posição econômica já alcançada. Mesmo concordando com a ressalva de Hauser acerca da questão, é conveniente ressaltar que se corre o risco de empobrecer o significado social do reconhecimento do trabalho enquanto prestigioso e, pois, de mudança de posicionamento no jogo de forças/tensões estabelecido ao se compreender tal aliança como de fins tão acentuadamente econômicos. O aumento do preço das obras, decorrente do aumento do valor simbólico obtido a partir da afirmação dos humanistas, não empana o significado e o impacto do aumento de status nas mais ínfimas relações cotidianas. Estava-se atribuindo valor intelectual a essas produções e oferecendo condições para uma concepção de arte enquanto conjunto – em especial com a subseqüente elaboração de teorias gerais da arte.

O decreto papal de 1540 que libera os escultores de pertencer às guildas dos “artesãos mecânicos”, por exemplo, traz como uma justificativa, para tanto, o alto valor que os antigos, julgava-se, lhes atribuíam. Os estudos históricos dos humanistas, ao que parece, foram os grandes responsáveis por essa espécie de reavaliação da classificação imperante desde o século XII. Conforme esta, as artes ditas mecânicas envolviam trabalho manual (e sujo), venda no varejo (similar ao trabalho de um verdureiro) e não demandava aprendizado (conhecimentos abstratos). Por conta disso, a afirmação do caráter intelectivo do trabalho do escultor e do pintor será de grande importância, para além mesmo da remissão a uma possível valorização do seu labor na Antigüidade. A literatura, então, será tomada como referência a partir das aproximações possíveis entre esses âmbitos, visto que desfrutava de mais considerável prestígio (produto e produtor) e, conforme nos lembra Elias, estava mais avançada em seu processo de autonomização. O debate estabelecido por Leonardo e os argumentos por ele expostos, nesse sentido, nos servem como exemplo ao evidenciar sua tentativa de estabelecer paralelos entre pintura e literatura. Para Leonardo, a pintura é um tipo de ciência superior às ciências (“impessoais”) por estar vinculada ao indivíduo. Acaba, pois, por igualmente rumar em direção à afirmação de que existe um âmbito, a arte, com características específicas em relação à ciência. Segundo ele, a pintura é imaginativa e limpa – o mesmo, no entanto, ele não afirmava em relação à escultura – e é (a pintura) uma forma de registro, tal qual a literatura:

Se vocês a chamam [a pintura] de matemática porque é feita por trabalho manual, porque as mãos desenham o que está na imaginação, vocês, escritores, usam a pena por meio do trabalho manual para registrar em forma escrita o que está em sua mente. E se vocês a chamam de mecânica porque é feita por dinheiro, quem cai neste erro – se é que se pode chamar de erro – mais que vocês mesmos? 81

Se vocês dão palestras instrutivas, não procuram quem lhes paga mais? Fazem algum trabalho sem pagamento? E, no entanto, eu não digo isso culpando tais visões, pois todo trabalho merece sua recompensa. (LEONARDO, 2004, p. 167). Quanto à mercantilização das obras, terceiro critério de avaliação e objeto das preocupações de Leonardo, a resposta parece ter advindo com a progressiva assunção da postura “desinteressada” do artista. De acordo com Vasari, citado por Burke (1991), Masaccio em Florença do século XV tinha uma atitude desinteressada em dinheiro, traço que merece ênfase. Desprezo maior teria sido demonstrado por Donatello. Poderíamos questionar se não teria sido esse um modo de reagir à idéia de inferioridade por conta da venda das obras. Porém é Michelangelo, convencido de seus dotes superiores e em seu trabalho assinado e solitário, o marco do chamado artista moderno. Deve-se lembrar, contudo, que tanto Brunelleschi como Masaccio e Leonardo eram notários, e Michelangelo era um aristocrata. Sua posição já digna de certo privilégio contribuía, certamente, para que sua “voz” fosse ouvida e seus trabalhos tivessem outro teor valorativo. No entanto, o desenvolvimento das discussões filosóficas em torno da arte foi fundamental para as transformações sentidas. No neoplatonismo, as belezas visíveis eram compreendidas como reflexo da beleza invisível, que, por sua vez, seria reflexo da absoluta beleza. É Agostinho quem substituirá o espírito impessoal neoplatônico pelo Deus pessoal do cristianismo e, assim, acaba por divinizar as Idéias (PANOFSKY, 2000). Esta concepção será decisiva no medievo, ao mesmo tempo em que será constantemente relida até aparecer, no século XVI, como faculdade de representação, mais do que um conteúdo. Nesse sentido, inicia sua aproximação à concepção de “imaginação” e, pois, de gênio, tal como foi mais recentemente concebido. O entrave era a ainda existente crença em leis transcendentes que inexoravelmente limitavam a produção, o que era paradoxal a uma compreensão de criador livre. Apenas no Maneirismo, Zuccari afirmará de modo mais contundente a liberdade do artista e exporá como contradição as concepções de arte como aperfeiçoamento e de arte como imitação do real. Para ele, Deus não informa o homem para que este crie; parece mais propriamente que Zuccari estabelece uma analogia que aproxima o artista e Deus pela semelhança de suas obras. Em outros termos, ainda que haja uma justificativa divina, abre-se espaço para a posterior afirmação do artista como um deus. Se o Maneirismo significava um peso na concepção da obra como aperfeiçoamento, fruto da imaginação do artista que pinta di maniera; opositores reforçarão a concepção da arte submetida a ordenamentos prévios e, pois, imitativa. O Neoclassicismo foi um prolongamento dessa segunda concepção, ao mesmo tempo em que conferiu um tom pejorativo ao termo “maneira”. No entanto, ao mesmo tempo, ao tomar de empréstimo a 82

noção “estilo” a partir da retórica e da poética, adota-se, parcialmente, um quê maneirista. Para Bellori, o estilo seria “uma maneira e habilidade particulares de pintar e de desenhar, que vem do gênio próprio de cada um para realizar e utilizar suas idéias; esse estilo, essa maneira ou esse gosto provêm da natureza ou do talento” (Apud PANOFSKY, 2000). A arte estaria no justo equilíbrio entre aperfeiçoamento e imitação. São essas concepções, e esse transcurso, que alimentarão a afirmação do dom excepcional concedido por Deus ao gênio. Obviamente, a condição socioeconômica de Michelangelo em muito contribuiu para seu reconhecimento, e ele sabia disso: “Sou conhecido aqui somente como Michelangelo Buonarroti, porque nunca fui um pintor ou escultor como aqueles que fazem disso uma profissão” (MICHELANGELO, 1548 Apud PEVSNER, 2005, p.95). Se Michelangelo podia assumir uma postura de desprezo por aqueles que estavam à sua volta, devido à sua mencionada condição privilegiada; ao mesmo tempo, foi alimentado pelo transcurso das idéias sobre o artístico: para ele, a arte era uma expressão do espírito. Conforme observa Castiglioni (1997), em seus relatos sobre as noites de março de 1506, deveria fazer parte do modo aristocrático de vida uma formação universal, o que incluía conhecimentos em línguas, música, bem como em artes figurativas. No entanto, deveria, o aristocrata, assumir certa sprezzatura, uma postura de displicência que indica um fazer adequado, superior, mas sem esforço. Esta habilidade espontânea e atitude diletante aristocrática podem ter contribuído para o estilo do artista que Michelangelo, como aristocrata, ajudou a popularizar.

O mesmo não podia ocorrer entre aqueles que dependiam do trabalho para a sobrevivência. Provavelmente inspirado pelas concepções do alemão Nicolau de Cusa, conforme Cassirer (2001b), Leonardo recusa a mera aceitação da autoridade e da tradição. Em textos de Nicolau de Cusa, é o leigo, informado por sua experiência, que comparece como mestre do filósofo. O conhecimento está, para o pensador alemão, aberto a quem desejar obtê- lo, pois o homem congrega em si a totalidade das coisas, como microcosmos para onde conflui, nos termos de Cassirer, o macrocosmos. Tal concepção de douta ignorantia pode ser observada na elaboração dos argumentos de Leonardo:

Embora eu não tenha o poder de me referir a autores como eles têm, contarei com uma fonte muito maior e mais valorosa – a experiência, instrutora dos mestres deles. Aqueles se exibem, em vanglória e pompa, vestidos e adornados não com suas obras, mas com as obras dos outros, e não querem me permitir a minha. E se me desprezam porque sou um inventor, quanto mais não culpariam aqueles que não são inventores, mas trombeteiros e recitadores das obras dos outros. (LEONARDO, 2004, p. 16). No entanto, seus textos são pouco lidos em sua época. Ao mesmo tempo, o mundo em que se desenvolve a idéia de desinteresse do artista é o da ascensão do burguês e do 83

sucesso mediante o trabalho (no comércio, em especial). A dedicação ao conhecimento, em seus diferentes matizes, estava, desde a tão aqui mencionada Antigüidade (ateniense), relacionada às camadas mais bem posicionadas socialmente, que, segundo esta concepção, são compostas por quem dispunha de tempo para tal. Em outros termos, apenas os que não trabalhavam (os bem nascidos) podiam devotar seus esforços às atividades intelectivas. O desinteresse em atrelar seu labor a ganhos econômicos permitia a eles maior liberdade de pensamento e criação. Tratava-se de atividade não remunerada e não reconhecida como trabalho. A própria discussão acerca da política em Atenas nos oferece rico material para compreensão dessas associações. A dedicação à política, enquanto aquilo que se refere à polis (inclusive o saber elaborado a seu respeito), estava restrito a apenas algumas camadas que, considerava-se, dispunham de tempo (não-trabalho) para tanto – argumento este, inclusive, utilizado posteriormente, com as devidas reformulações, pelos liberais com o intuito de tentar justificar o voto por renda e diminuir as pressões por participação advindas das “classes perigosas”. A necessidade de obtenção de recursos via trabalho era vista como obstáculo à produção de “obras superiores”, gerando um argumento utilizado ainda hoje para hierarquização das obras. Quanto à pintura e à escultura, os círculos aristocráticos definiam o cânone; em outros termos, determinavam o bom gosto e suas regras, mas dedicar-se à execução de obras foi tido, ao decorrer de todo Antigo Regime, como indigno, ou o faziam como passatempo (ELIAS, 2005). Pintores e escultores advindos de “classes inferiores” se transformavam em executores dessas regras de bom gosto definidas exteriormente ao que, aqui anacronicamente, chamaremos de círculo de artistas, muitos dos quais pequenos burgueses. Por isso o destaque de Michelangelo em sua época. Deste modo, a tentativa de afirmar o fazer artístico como labor intelectual num contexto em que a associação entre atividades intelectuais em geral e aristocracia ou modo de vida aristocrático vigia levará ao paulatino elo entre fazer artístico e modo de vida aristocrático (mesmo por parte de não- aristocratas), o que servirá como evidente inspiração na criação do estilo de vida do artista. Assim a comercialização das obras, considerando o estilo de vida do artista já instituído com inspiração no ethos aristocrático – cuja consolidação plena se dará apenas no século XIX –, pode ter sido compreendida como uma “invasão” burguesa ao remanescente domínio da “aristocracia”. Isso nos ajuda a compreender, inclusive, o porquê de apenas alguns tipos de arte serem consideradas “superiores”.

O acirramento crescente da pressão de segmentos burgueses com vistas à ascensão social (a econômica já estava sendo conquistada) pode ter levado a uma tentativa de 84

aliar trabalho remunerado burguês (interesse econômico) e atitude aristocrática de desinteresse como mecanismo para sua maior aceitação pelo círculo de especialistas em formação. Por outro lado, no afã de conter tais pressões, os intelectuais, em especial no século XIX, com a maior difusão das obras, conferem ainda maior relevo a seus argumentos e critérios, ao passo em que buscam num período pré-capitalista seu ideal de vida e produção, com o romantismo de cavalaria e byronista e a “torre de marfim” simbolista em que se transmuta a l’art pour l’art. Considerar essas produções como arte, e não mais como artesanato, ou seja, enquanto atividade imaginativa, relembrando a expressão de Leonardo, demandou uma alteração significativa no sistema de ensino dessas atividades. As guildas deixam de ter o monopólio do ensino e a educação passa a ocorrer em escolas, com espaço dedicado ao aprendizado teórico. As oficinas – que desde o início do Quattrocento introduziram o método científico no aprendizado de jovens –, mesmo com as inovações, perdem gradualmente espaço no século posterior.

O artista, no Renascimento, passa, paulatinamente, a ser sacralizado, junto com sua obra. A afirmação do gênio tem, nesse período da história, o princípio de sua construção mais visível e advém, em grande medida, da idéia de propriedade intelectual. Na Idade Média, o artista era apenas o veículo através do qual o divino se expressava; no chamado mundo moderno, a obra passa a ser tida como originada da racionalidade humana. A obra superior, pois, seria fruto de uma racionalidade igualmente superior: o gênio. O ideal da imitação é substituído pelo da originalidade, ou criatividade, idéia que comparece com força apenas no século XVIII – período em que não apenas aumentam as dificuldades de sobrevivência por conta da instituição do mercado livre (a concorrência com base na competência individual), como também é posta a dicotomia interior (essência valorizada) e exterior (aparência falseadora) pelo espírito romântico como conseqüência das transformações vividas nos séculos anteriores. No entanto, ainda assim, como novamente nos indica Elias em seu texto sobre as telas de Antoine Watteau (2005), poucos artistas no Antigo Regime, em especial no reinado de Luís XIV na França, fugiam abertamente do cânone aristocraticamente instituído. As academias funcionarão como forte padronizador desses gostos e fazeres.

A instrução nas academias, com inspiração na Academia de Platão em Atenas, passa a ser tão rígida como fora nas guildas. A Accademia Del Disegno seria o embrião para essas organizadas instituições maneiristas de ensino e de arte (de cunho neoclássico). Fundada por Cosimo de Médici por sugestão de Vasari, a Accademia Del Disegno se distingue das antigas reuniões. Até Michelangelo, os métodos medievais de ensino de arte não haviam sido 85

questionados. A busca neoclássica pelo equilíbrio entre aperfeiçoamento e regramento, já discutida, e, portanto, a nova concepção do artístico são a base de desenvolvimento das academias de arte. Cosimo de Médici e Michelangelo foram nomeados Capi da instituição. Segundo Pevsner (2005), tratava-se mais propriamente de um sistema de consultas obrigatórias prestadas pelos artistas renomados aos iniciantes. Deste modo, não se buscava rivalizar com os ateliês, menos ainda substituí-los, mas os artistas renomados aumentavam, através disso, sua possibilidade de direcionar trabalhos e de definir o gosto, que é um valor. Em 1593, é inaugurada a Accademia di S. Lucca, em Roma, de onde Zuccari, que criticou a Accademia Del Disegno por sua negligência aos estudos, foi presidente. Tal escola passa a ser de formação integral, com cursos e professores. Ambas as academias exerceram influência decisiva na primeira academia de Paris, cuja assembléia de fundação, ainda segundo Pevsner, se deu em fevereiro de 1648. Fazia parte do projeto de Henrique IV para enriquecer e embelezar a cidade. Em 1654, os representantes da academia conseguiram que o rei fizesse doações em dinheiro e concedesse salas no Collège Royal de l’Université. A academia se transforma, assim, num empreendimento da Coroa e passa a servir aos interesses mercantilistas do Estado Absolutista. Na França, deste modo, uma ditadura no ensino é também estabelecida: a rigidez da formação é acentuada.

As peculiaridades do processo de formação do Estado francês, que alcançou alto grau de centralização e integração, também promoveram a visão segundo a qual a cultura francesa representava a civilização universal e a metacultura da humanidade. Tal visão não apenas facilitava uma atitude séria para com a cultura, através do desenvolvimento das instituições culturais, como também favorecia o desenvolvimento da cultura como uma especialização e um estilo de vida prestigiosos. Isso era particularmente verdadeiro para aquela fração da classe média atraída pelos ideais culturais do Iluminismo e pelo estilo de vida do escritor do século XVIII (FEATHERSTONE, 1997, p. 53). O status de acadêmico ganha força e passa a servir como mecanismo de distinção entre artistas; em especial para os mais instruídos e materialmente independentes. Mas a criação do “academicismo” é atribuída a Le Brun, que, durante 20 anos, esteve à frente da Academia de Paris e de Roma. A educação e produção artística, no século XVIII, permanecem sob a supervisão do Estado, que passa a ser seu único patrocinador de importância. A Academia, pois, como já afirmado, servia aos interesses do Estado e mantinha, com a figura de Le Brun, um perfil igualmente controlador. O aprendizado prático se dava no ateliê; na academia, ocorriam aulas de desenho a partir de desenhos, modelos em gesso e modelo-vivo, aulas teóricas sobre geometria, perspectiva e anatomia, além de conferências (PEVSNER, 2005). Tal programa, baseado em regras claras e firmes, se manteve até parte do 86

século XIX. No entanto, as tensões quanto aos ditames de Le Brun não tardam a surgir, em especial na França, onde ele exercia papel mais atuante e, portanto, onde se desfrutava de menor liberdade. A cisão entre uma arte oficial e uma arte progressista começa a surgir e, com a diminuição dos subsídios por parte de Luís XIV, abre-se maior espaço para produções dirigidas ao público mais amplo, ao passo que a sociabilidade nos salões favorece a formação de círculos alternativos de arte – pequenas academias informais – transformando-se paulatinamente no espaço de referência para divulgação e avaliação de obras. A mudança maior se dá após a morte de Luís XIV, em 1715, quando uma sensação de libertação se estabelece. O período do Rei-Sol foi marcado por uma série de tensões estabelecidas por suas tentativas de frear possíveis intentos de seus concorrentes ao poder, a saber, a nobreza de espada (noblesse d’épée). Para tanto, o rei firma alianças com a nobreza de funcionários (noblesse de robe), constituída pelos mais altos segmentos da burguesia. Contudo, se Luís XIV se esmerou em reduzir o poder da nobreza de espada – o que inclui membros de sua família – para manutenção de sua estabilidade pessoal ao trono, sua morte implica novas transformações nas relações de poder. Seu filho, ainda de menor no período de sua morte, não pôde assumir o trono. Quem assume a regência, então, é seu parente adulto mais próximo, um representante da alta nobreza de espada. A sensação de libertação transforma o século XVIII pré-revolucionário num período de muitas festas e, quanto ao estilo artístico, o posterior e pejorativamente denominado “rococó” substitui o barroco. Novas academias são difundidas na segunda metade do século XVIII. Se em 1720, conforme Pevsner (2005), contavam-se 19 academias em toda Europa; em 1790, eram mais de cem. Segundo carta do rei da França, datada de 1777, a arte deveria contribuir para o benefício das artes industriais e florescimento e expansão do comércio, em conformidade com o mercantilismo.

Com a Revolução Francesa, novo rearranjo das relações e percepções de mundo toma lugar. As obras passam a ser avaliadas a partir do crivo político. O “rococó” é depreciado em sua frivolidade, e o aumento de poder das classes burguesas de profissionais que dependiam do trabalho para sobreviver serve de mola-mestra para maior independência dos artistas, em sua maioria advindos, como afirmado anteriormente, da pequena burguesia. O solapamento da aristocracia não implicará a substituição dela pela burguesia na definição do bom gosto. “Para essas classes (...) havia coisas mais importantes para a sobrevivência que o bom gosto” (ELIAS, 2005, p. 37). Se antes os consumidores determinavam o gosto; agora, os produtores, mais livres, é que o determinam. O artista se conjuga em especialista, e é no círculo de especialistas que as definições de gosto passam a se dar. O grande público segue, 87

por fim, esses direcionamentos. Se, como explicita Joan DeJean (2005a) ao discutir a Querela entre Antigos e Modernos – que se deu entre 1687 e 1715, anos ainda de vida de Luís XIV – os debates na academia foram tão acalorados a ponto de terem ganhado dimensão pública, imagine-se o quilate e fervor das discussões que tomaram lugar no período pós-revolucionário quando o artista, como indivíduo, se considera apto e “livre” para inovar e tentar reivindicar a elas a alcunha do bom gosto e, pois, sua aceitação como arte. Na academia, os princípios básicos da regra e da forma foram abandonados. O julgamento só poderia se dar no meio especializado contando agora com a participação do próprio artista pleiteante. A cor tornou-se tão importante como o desenho; e a sensibilidade tornou-se critério de julgamento, em lugar da obediência a regras previamente estabelecidas. A maior autonomia conquistada, por sua vez, será crucial para a consolidação e manutenção da “sacralidade” do fazer artístico, cuja prerrogativa principal é a acessibilidade a poucos no fazer e no consumir arte.

Em 1793, a Academia, cuja administração é assumida por um moderno, é suprimida em certos privilégios e substituída por outros órgãos – apesar de ser novamente restaurada em 1795 através da figura do Institut de . De 150 membros, passa a contar com vinte e dois. Ainda assim mantém seu prestígio, conservadorismo (suas regras foram inspiradas no clássico) e aliança com o Estado, por seu caráter formativo e avaliativo. Há, no século XIX, a academização completa da educação do artista, na expansão dos programas acadêmicos e extinção das guildas, ainda em 1791, e de grande parte do aprendizado na oficina ou no ateliê. Em verdade, o que isso aponta é uma separação radical entre as concepções de arte e de artesanato. O artista anteriormente advinha das oficinas e aprofundava seu conhecimento nas academias. Se se concebe o artístico como dom, a instrução formal perde sentido. No século XIX, muitos movimentos se lançam contra as academias. Ou seja, ao lado de rígidos acadêmicos, passam a figurar diversos grupos de artistas independentes e com propostas variadas, transformando a configuração e a prévia balança de poder. Mesmo combalida, a Academia, enquanto configuração formada pelos acadêmicos, permanece enquanto referência e centro de poder: veta-se a participação dos naturalistas do século XIX em seu círculo e se estabelece a oposição ao possível reconhecimento da moda como uma das artes superiores.

A Academia contribui ao longo da história, em suma, para a valorização e distanciamento do artista e da obra artística em relação ao público em geral. Ao mesmo tempo, o contra-movimento dos diferentes segmentos progressistas e a mercantilização crescente de obras voltadas às camadas médias da população, em especial perceptíveis no 88

século XIX, acaba por acarretar uma espécie de aproximação (ou reaproximação) entre público e arte e a um conseqüente recrudescimento por parte dos artistas e especialistas conservadores na filtragem dos produtos passíveis de receberem a alcunha de artísticos. A figura do artista, socialmente privilegiada, se transforma num mecanismo para ascensão social. As pressões por inserção aumentam; contudo as realizações artísticas voltadas para e/ou aceitas pela “massa anônima” são compreendidas como inferiores. O desinteresse e a originalidade se transformam, então, nos principais critérios de avaliação e de manutenção da distinção do artista e da arte.

No que se refere às produções em moda, é preciso investigar a especificidade de seu labor quanto aos mencionados critérios, o que será feito a partir da retomada da vida e do projeto de Worth discutidos na primeira parte desse capítulo.

Unicidade e mercantilização nas obras de arte e de moda O fazer artístico seria uma atividade, portanto, individual e de caráter intelectivo (no sentido de imaginativo) de produção de peças inéditas e únicas, resultantes da criatividade distintiva de seu artífice, que se submete aos apelos de sua faculdade criativa superior em detrimento, inclusive, de possíveis imperativos econômicos, relegados estes a uma segunda ordem de necessidades. Tomando o primeiro ponto exposto nesta tentativa de definição, poder-se-ia argumentar, no que se refere aos trabalhos de produção em moda, o caráter coletivo da produção como primeiro empecilho às aproximações com a arte. No entanto, teríamos aí que retomar o exemplo da música. Nela há uma divisão do trabalho assemelhada à moda: o compositor, enquanto criador, e outros tantos que, tais quais os costureiros, funcionam como meros executores. Uma das iniciativas de Charles Worth é autonomizar o trabalho do costureiro-criador ao distingui-lo do costureiro-técnico. Como já explicitado, Worth reabilita a figura do homem que costura para mulheres. Assim, em sua época, o que havia mais propriamente eram costureiras, que faziam roupas para as mulheres, e alfaiates, que costuravam para homens. Ao se colocar como um homem que costura para mulheres, reabilitando uma antiga prática, Worth passa a ser denominado costureiro, já que o termo alfaiate não lhe caberia.

O costureiro-criador, depois denominado estilista, teria como especialidade a criação dos modelos, ou seja, a elaboração mental do seu produto, prévia, portanto, à construção da obra. Esta seria, portanto, a expressão da imaginação criativa, mas que é fruto 89

igualmente de um planejamento prévio registrado no desenho, que, como tal, promove uma aproximação maior do trabalho do costureiro-criador com o do pintor. Mais propriamente, o criador de moda desenha, no croqui, e esculpe através dos panos. No entanto, Worth, é isso que indicam seus estudos, advoga a favor da instrução, da aquisição de conhecimentos para burilamento do dom no que se refere à específica área em questão: o vestuário. O dom seria, portanto, uma matéria-prima insuficiente e que, por isso, precisa ser enriquecida com trabalho (estudo). Assumir tal necessidade significa, ou pode significar, certo reconhecimento, por parte de Worth, da própria validade da instrução acadêmica; ou seja, dos mesmos acadêmicos que o rejeitaram como artista, mas que mantinham seu prestígio. De qualquer modo, a sua imaginação o levaria à criação de modelos inéditos a partir da norteadora idéia do belo. Os costureiros-técnicos apenas levariam a cabo as idealizações do criador. O trabalho deste teria, portanto, como principais instrumentos aqueles necessários à produção das litogravuras, ou seja, o papel e a “caneta”, além da imaginação. Essas elaborações, registradas em papel, levariam a assinatura do criador, individualizando a obra21. Worth, inclusive, assinava seus croquis. O seu auto-reconhecimento como artista podia ser evidenciado também na própria composição de sua aparência pessoal. Segundo Diana Crane, “no meio de sua carreira, ele passou a se vestir como um artista, inspirando seu traje no de Rembrandt, o que implicava usar uma boina de veludo, um casaco volumoso e sem forma e um pequeno lenço de seda no lugar da gravata” (2006, p. 303). Rembrandt foi imortalizado por suas telas em que a vida cotidiana da burguesia holandesa de sua época foi exposta. Seu sucesso, em vida, se deveu a corresponder, numa Holanda que, diferente da França, não concedia subsídio público ao trabalho artístico, aos anseios de sua clientela burguesa em fixar retratos nas salas de suas casas. Rembrandt parecia ter um especial gosto pela representação de enfeites, jóias, tecidos, talvez herdado de seu mestre, o pintor romanista Lastman. Em suma, Rembrandt desenvolveu um gosto pelos detalhes, o que pode ter feito dele, em especial por sua caracterização da burguesia, uma fonte privilegiada para os estudos de Worth. Ao mesmo tempo, a trajetória de vida do gravurista, desenhista e pintor, fazia dele uma inspiração para muitos movimentos artísticos do século XIX. Apesar de ter conhecido grande sucesso em vida, a ponto de suas obras serem colecionadas por toda a Europa do século XVII, Rembrandt, ao se voltar para aquilo que ele desejava pintar, acaba se afastando dos desejos de sua clientela. Se, por um lado, a Holanda permitia certa liberdade de produção, em contraposição ao forte controle

21 Como já foi afirmado, os fashion plates eram um modo de divulgação de modas a partir de desenhos. Invenção inglesa, data dos anos 70 do século XVIII – como a The Lady’s Magazine, que começa a publicar fashion plates em 1770. Até então, “conhecer a última moda” significava percorrer o continente com várias bonecas vestidas de acordo com a moda em vigor. 90

francês; por outro, limitava essa mesma liberdade por conta da dependência ao consumidor. “Enquanto sua arte foi inteligível para a rica burguesia de Amsterdã, ele foi admirado; quando sua busca espiritual se intensificou, quando sua mensagem se tornou mais e mais o resultado da meditação íntima de um solitário, o sucesso o abandonou” (PEVSNER, 2005, p. 187). Rembrandt morreu só e arruinado financeiramente. Isso fazia com que ele fosse igualmente admirado por vários artistas românticos, a exemplo de Goya, considerado um dos grandes artistas da passagem para o século XIX. Em acréscimo, os trabalhos de Rembrandt e os rumos de seu desenvolvimento punham a fundamental questão do tempo e sua relação com o indivíduo, conferindo expressão artística ao movimento da vida. Esta teria sua unidade como um fluxo e, deste modo, o retrato acabaria por conter a totalidade da vida, não mais concebida como somatório de presentes. Em tal busca por superar a oposição entre unidade e multiplicidade, Goethe se aproxima, segundo Simmel, de Rembrandt:

El retrato em Rembrandt contiene, con esta acumulación o al modo de ella, la movilidad de la vida psíquica, mientras que el retrato clásico no solo és intemporal em el sentido del arte em general, es decir independiente de la posición entre un antes y un después del tiempo universal, sino que, en si mismo, en el orden de sus momentos, posee una inmanente intemporalidad. Por eso los más ricos y conmovedores retratos de Rembrandt son los de gente vieja, porque en ellos pasa a primer plano un máximo de vida vivida; en el retrato de jóvenes ha alcanzado lo mismo solo con um cuadro de Tito a través de un viraje de la dimensión, puesto que aqui, em cierto modo, está acumulada la vida futura con sus desarrollos y destinos y es intuible como el presente de una sucesión futura, tal como allá lo era de la serie temporal ya sucedida. (2006, p. 23) No entanto, além de se identificar com Rembrandt, ainda segundo Alice MacKrell, Worth adota o esteticismo, um dos desdobramentos do romantismo, e compõe roupas estéticas. O termo estética, enquanto filosofia da beleza na arte, foi usado pela primeira vez pelo filósofo alemão Gottlieb Baumgarten, nos anos 1750. Contudo, coube a Kant a teoria do Esteticismo, que afirmava a separação da filosofia da arte em relação às outras filosofias. A arte só poderia ser julgada por seus próprios critérios. Théophile Gautier e Charles Baudelaire revivem o conceito do esteticismo como l’art pour l’art. O objetivo da arte seria o prazer, e a própria vida deveria ser tratada como uma forma de arte, apesar do inegável hiato entre ambas. O próprio artista devia ser um objeto de arte, daí as freqüentes acusações, de acordo com Campbell, de que os estetas seriam narcisistas e efeminados. “De maior significado é a semelhante necessidade de exercer o autocontrole e a disciplina, pois a arte é encarada como uma questão de habilidade, não de sentimento” (CAMPBELL, 2001, p. 280). Por isso a antipatia de Baudelaire pelos românticos. O esteticismo acaba, então, por se tornar o culto do artificial, sem desafiar as convenções como faziam os boêmios. 91

Há um repúdio do utilitarismo, mas não do materialismo, pois o luxo, na forma dos objetos extraordinários, raros, belos e de pouco uso, simboliza efetivamente a atitude estética. Por conseguinte, embora o esteticismo ajude a promover o fenômeno da moda, tornando os indivíduos conscientes deles mesmos como objetos de beleza, e tenha um impacto no gosto e nos padrões de consumo da virada do século, não gera o anseio inquieto, essa insatisfação com a experiência e aspiração ao sonho que formam os alicerces do espírito do consumismo. (CAMPBELL, 2001, p. 280/281). Originalmente foi um movimento literário, mas acabou ecoando para além da literatura, como é perceptível não apenas através de Worth. Goldwin, por exemplo, estudou o traje histórico e foi secretário honorário da Costume Society, fundada em 1882, cujos membros incluíam Oscar Wilde e Whistler. Este último, por sua vez, havia sido influenciado pelos escritos de Baudelaire e de Gautier, quando foi a Paris para fins de estudo. Em 1859, ele, pintor americano, vai à Inglaterra e, junto a Swinburne, introduz lá o Esteticismo por volta de 1860. Inclusive, os vestidos usados pelas modelos em seus retratos eram, conforme MacKrell, desenhados por ele. Por outro lado, Goldwin foi o grande incentivador para que Arthur Liberty buscasse construir um vestido estético. O traje estético, de acordo com Georgina O’Hara, “consistia em túnicas em estilo medieval – soltas, desestruturadas e com poucos detalhes, acessórios ou adornos. O objetivo do movimento era incentivar as mulheres a adotar um estilo mais natural que as cinturas minúsculas e os bustos volumosos decretados pela moda da época”. (1999, p. 267). Na Exposition Universelle de 1889, em Paris, a Liberty’s, fundada em 1874 ou 1875, exibiu, ao sabor da inspiração oriental do esteticismo, algumas becas estéticas e, devido a seu sucesso, abre, em 1890, a Maison Liberty22. Worth, inclusive, apesar de não abrir mão das características fundamentais, já instituídas, do traje do século XIX, produz uma série de becas; contudo, para o específico momento do chá, em conformidade com a meticulosa segmentação do traje, no período, em função da hora do dia e da ocasião a ser vivida. As roupas, do modo como foram discutidas por representantes do esteticismo, funcionariam como expressão pessoal. Deste modo, seria possível, ou até preferível, usar um estilo de roupa única, adequada à personalidade do usuário, que não precisaria ser escravo do mainstream fashion para ser elegante. Deste modo, Worth cria um argumento interessante para que a própria clientela evite as cópias de modelos, e sim busquem algo que seria apropriado à sua personalidade e corpo: algo único, portanto, numa época de crescente padronização dos trajes. No entanto, para Campbell, ainda que estimule certo gosto pela moda, e por uma moda individualizada, o esteticismo isoladamente não ajuda

22 O termo liberty é ainda hoje usado como referência a certo tipo de estampa, em especial composta por pequenas flores ou frutas coloridas. Foi bastante utilizada com o estilo hippie dos anos 70 e, ainda hoje, com sua reestilização no boho. 92

a compreender o desenvolvimento do consumismo. Para o autor, tal processo só teve vazão com o estímulo à fantasia suscitado pelo romantismo, que privilegia o desejo em detrimento da satisfação; ou, em outros termos, a compra em detrimento do uso, pois naquela, conforme os argumentos de Campbell, estaria a experimentação, em sonho, do mundo perfeito que o uso não confere. Este estaria fundamentalmente marcado pela frustração, daí a insacialidade; o que seria evidenciado pelos armários abarrotados de objetos que sequer serão, um dia, usados. Duas das fantasias do período são que o traje aconselhado por outrem poderia promover o reconhecimento de seu portador como alguém de bom-gosto ou efetivamente confundir fronteiras de classe, como a crescente incorporação do traje da classe média por segmentos trabalhadores parece evidenciar (CRANE, 2006).

Voltando, no entanto, à questão da divisão do trabalho em moda, esta operaria, pois, com a corrente hierarquia entre a atividade intelectual (do criador) e as atividades técnicas de realização, por parte do corpo técnico, do previamente projetado. Ainda que essa especialização aproxime a organização do trabalho em moda da lógica industrial em franca expansão, é justificativa insuficiente para a não-aceitação da moda no domínio das chamadas artes superiores. Do mesmo modo, no que se refere à unicidade da obra, não necessariamente, em moda, trabalha-se com reprodução em série. Como visto, à época de Worth, a reprodução seriada e barata estava ainda em estágio incipiente. Além disso, o que se convencionou chamar Alta Costura, na França, ou simplesmente Costura, na Inglaterra trabalha com “inéditos”, defrontando-se igualmente com o problema das cópias (falsificações da obra). O ineditismo da produção (ou seja, sua unicidade), juntamente com o valor simbólico conferido pela idéia do artístico, são a justificativa para os elevados preços cobrados pelas produções, o que ajuda a sustentar, por outro lado, uma pretensa superioridade do criador em relação à sua clientela. O próprio século XIX, com o crescimento da produção em larga escala, acaba por propiciar um fértil campo para a produção personalizada de vestuário, como fator distintivo para os bem-aquinhoados e para os dotados de “bom-gosto”. O culto à personalidade e à roupa como sua expressão favorecerão a produção de peças únicas em detrimento do “estilo de classe”.

A obra de arte, afirma Benjamin (1986), sempre foi reprodutível, imitável, mas nunca em sua inteireza. Faltava às cópias, mesmo as mais perfeitas, “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra” (1986, p.167). Essa existência única, conforme o autor, confere a ela a possibilidade de uma história, que remonta não apenas às transformações em sua matéria, mas também em seu status, sempre variável, e na 93

observação de quem teria sido seu(s) proprietário(s), sob quais condições e em que época. É nisso que consiste, aos olhos de Benjamin, a autenticidade da obra de arte e que escapa a qualquer reprodução técnica. No caso desta, perde-se a possibilidade de distinguir original, com seu aqui e agora, e cópias. O objeto, segundo o autor, é retirado do domínio da tradição, da possibilidade de conter uma história que o distinga de outros.

Na medida em que ela [a técnica] multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num forte abalo à tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade (BENJAMIN, 1986, p. 168/169). Conhecer a história inscrita na trajetória da obra reproduzida tecnicamente se tornaria um trabalho inócuo. É cabível aqui relembrar a unicidade possível no trabalho de criação de moda, ao mesmo tempo em que afirmar o vestuário como memória. O trabalho de Stallybrass é um exemplo. Este autor, no livro O casaco de Marx (2000), explicita como peças de vestuário acabam por condensar em suas partes esgarçadas, puídas, desbotadas ou até no modo mais ou menos cuidadoso de ser guardado, uma trajetória particular e como isso se revela de modo intenso quando seu proprietário morre. Segundo o autor, as roupas portam significados e acabam, pelo simples contato que podemos ter com elas ao olhá-las num armário, por evocar momentos em que elas estiveram presentes e que podem estar guardados em nossa memória. Algumas peças, inclusive, a depender do status de seu proprietário são expostas em momentos ritualizados ou se transformam na expressão do estilo singular dele. Além disso, o vestuário é um instrumento para conhecimento da história de um povo, suas hierarquias e relações internas e externas. A idéia de reprodução em série, por outro lado, não caracteriza a moda feita acontecer por Worth no século XIX. É importante lembrar que moda, nesse período, ainda é basicamente sinônimo de luxo, termo definidor, ainda hoje, da alta costura. Contudo, a mercantilização da obra e suas conseqüências ainda não foram devidamente discutidas.

Ainda segundo Benjamin, a dispersão dos objetos ocasiona o acesso mais facilitado às produções, diminuindo sua sacralidade, em grande medida mantida pela unicidade da obra, seu distanciamento (pouca acessibilidade) em relação ao olhar e entendimento “comum” e pela ritualidade que marca os contatos com elas. O apelo da maioria à possibilidade de produzir e/ou ter uma obra se configura como uma espécie de ameaça à distinção do produto e do produtor. Segundo Horkheimer e Adorno (2000), a demanda crescente acarretou a formação de uma espécie de indústria voltada à produção de bens 94

culturais com fins de comercialização. A partir do momento em que o consumo passa a objetivo primordial, este passa a nortear as produções, guiadas pela idéia de imitação e não mais de inovação, que caracterizaria o fazer artístico. A indústria cultural, tal como denominada pelos frankfurtianos, teria o negócio como ideologia, o que diminuiria a validade de suas produções, feitas com menor atenção à qualidade. A atitude típica do artista, de inconformismo e suspeição para com o aceito, seria substituída pela busca do aceito e do aceitável, por servirem como garantias de consumo, combinando, deste modo, as idéias de reprodução (seriada) e de mercantilização da arte.

Sobreviver de arte, ainda que apenas como intenção, fez parte do processo de autonomização do artista. Ainda que alguns bem-nascidos, a exemplo de Flaubert, discutido por Bourdieu em As regras da arte (2002c), tenham existido, há igualmente aqueles que careciam do trabalho para a sobrevivência. Para estes o ideal era sobreviver de arte, ou seja, vender o que não tinha preço, a sua obra. Novamente Mozart nos oferece a oportunidade de discutir a idéia. As intenções deste músico eram, a partir da comercialização de sua obra, conquistar a liberdade de produção. Contudo, a vida de Mozart, e mesmo de Rembrandt, evidencia como a necessidade de sobreviver da mercantilização de sua obra pode ser incompatível com a liberdade do criador. Mozart e Rembrandt, então, optam pela liberdade, o que acaba lhes acarretando a ruína econômica, pois não viveram numa época que facilitava esses empreendimentos. O artista precisa ser reconhecido como tal para poder usufruir de relativa liberdade ou dispor de recursos econômicos de antemão para poder assumir uma atitude deveras desinteressada economicamente. No entanto, para os que pertencem às camadas mais empobrecidas, esperar o reconhecimento como artista, na era das academias, significa estar à mercê de um debate cujos participantes em geral são os especialistas, ou seja, pessoas consideradas privilegiadas no conhecimento do artístico e que têm em suas opiniões expressas o valor do saber legítimo. Estas opiniões, por sua vez, não podem ser descoladas do fundo principal que sustenta as classificações procedidas pelos especialistas: a necessidade de manter a distinção (prestigiosa) do artista e da arte. Esta, enquanto produção intelectualizada, exigiria de seu público uma intelectualidade igualmente superior para sua compreensão ser possível. Deste modo, o quilate do público consumidor se torna também um critério para avaliação do artístico.

Ao estudar a produção literária do século XIX, Bourdieu acaba por evidenciar esse mecanismo classificatório das obras através do público consumidor. E este parece ser um primeiro ponto que contribui para que a moda não se coadune muito bem aos esquemas de 95

definição dos produtos artísticos. Se se compreende que a arte tem como consumidores pessoas intelectualizadas e que, devido às suas faculdades mentais superiores, se dedicam por deleite e/ou “elevação do espírito” às artes, o que é possível afirmar quanto às clientes de Worth? Além de sua clientela nobre, já referida, e a que pode ser acrescentada a Rainha Elisabeth da Áustria, as clientes de Worth, por excelência, eram burguesas – atrizes, como Sarah Benhardt e Eleonora Duse, compunham igualmente o rol de pessoas por ele atendidas (O’HARA, 1999). A sua clientela era internacional: compreendia francesas, inglesas, germânicas, russas e americanas. O momento de surgimento de Worth na cena francesa é o de consolidação da burguesia em seu poder na França. Contudo, apesar de essa burguesia ter alçado ao poder e de consideráveis estratos terem já adotado hábitos aristocráticos, entendidos como refinados, é importante lembrar as valorações ainda vigentes por conta das disputas estabelecidas. Não havia como garantir o refinamento, em termos de gosto, da clientela de Worth. Suas produções sim podiam ser uma estratégia para a demonstração pública de um bom gosto pelo qual, enfim, o usuário não seria responsável. A idéia de que o burguês é o rico e grosseiro que, apesar do empenho, desconhece os bons modos ainda persiste nessa época. Estava ainda em construção a idéia de civilidade como atributo francês, e não de classe. Nesse sentido, se, por um lado, a Imperatriz contribuiu para o sucesso do modelista, por outro, dificulta grandemente qualquer observação mais acurada a partir do público, pois entra em jogo seu poder, enquanto Imperatriz, de influir nos gostos e usos. Em conseqüência, a sua cliente mais famosa contribuía para a difusão dos modelos de Worth para diferentes camadas da sociedade. Como observa Wilson (1989), como muitas mulheres passaram a trabalhar no século XIX, e uma parcela era de solteiras, os cuidados com a aparência se tornaram maiores. A generalização dos modelos, algo que define a moda enquanto tal, está num contraponto em relação à idéia de que o público de arte é restrito por ser seleto. Quando Bourdieu discute este específico ponto no que se refere à arte, menciona a distância temporal necessária até que haja a banalização de dado objeto artístico – o processo é normalmente lento. Além disso, o objeto artístico, estando acima de qualquer consideração temporal, ganha ares de universalidade. Os produtos-moda, por seu turno, são datados, evanescentes. Uma das contribuições de Worth, inclusive, é iniciar um processo de sistematização da produção a partir do estabelecimento de um calendário – a moda é por ele burocratizada, isto é, organizada racionalmente para sua própria manutenção enquanto negócio. A idéia de reprodução por falsificação em si, como visto, não seria problemática; mas a de generalização rápida, em especial para a época em questão provavelmente foi tida como consideravelmente comprometedora, uma vez que explicitaria ser a obra de gosto médio e, assim, poria em discussão o “desinteresse” daquele 96

que pleiteia o reconhecimento como artista. De qualquer modo, se a ligação personalidade- roupa que Worth ajuda a construir, a partir de sua vinculação ao esteticismo, favorece a busca por modelos únicos; por outro, exige uma aceleração das novidades. Anteriormente, ainda que as roupas fossem costuradas para uma cliente singular, sua durabilidade era maior, ao mesmo tempo em que as imitações eram plenamente aceitas – tratava-se de uma moda de classe. A individualização do traje exige do criador a renovação constante daquilo que faz. E tais inovações devem se dar em dois sentidos simultâneos: no tempo, no que se refere a uma mesma cliente, e entre clientes. Isto é, num sentido vertical e horizontal. Se a disputa entre a burguesia e a aristocracia incentivaram um gosto pelo novo; agora isso passa paulatinamente a se dar tendo por referência o indivíduo, acelerando ainda mais o processo de produção numa época em que a roupa sob-medida é o costume. Não à toa Worth irá fundar a Câmara Sindical e ajudar a instituir as condições para que um costureiro seja aceito no rol da alta costura. Enfim, Worth acaba por promover, talvez à luz das academias de arte vigentes no século XIX, regras estritas que limitam o círculo dos altos costureiros e, deste modo, garantem seus privilégios e destaque em relação aos demais.

Questionar o “desinteresse” do produtor, contudo, é perguntar acerca do que é primordial para ele: o sucesso, ou seja, a venda ou a obra em si? No que se refere a Worth, é muito difícil responder – não disponho de informações suficientes para isso. No entanto, há outra questão talvez mais importante no que toca a essa discussão: se no caso da arte, o artista reclama sua independência, quais as possibilidades e limites para a independência do criador de moda? Isso nos leva à consideração do objeto, isto é, do próprio traje. O que se pode perceber, a partir do produto artístico convencional, é a sua possibilidade de existência independente. Melhor explicitando, ainda que ninguém deseje ouvir uma música, ler um livro ou ver uma escultura, eles estão passíveis de execução ou de serem apreciados. Deste modo, existem. O produto-moda depende do corpo que o veste para existir e depende ainda de que a relação com o corpo seja harmoniosa para ser belo. Em outros termos, ainda que o modelista crie para si próprio apenas, ele se defronta com os limites do seu corpo (limitações que estão, portanto, para além dos materiais disponíveis e remetem a um outro externo à obra, outro esse de quem se deseja desvincular). Ou seja, se a realização se dá apenas no uso (que, no mundo capitalista significa, normalmente, consumo), o “criador” necessariamente precisa considerar e conhecer esse outro. Sua produção é sempre produção-para. Em vista disso, trabalha-se em busca do novo, do original, mas do novo original aceitável. Podemos afirmar, então, que a idéia de “ditadura da moda” é uma falácia. Um produto só é caracterizado como moda quando 97

e porque é aceito, isto é, posto em uso. Fora isso, são promessas (aposta em tendências) e fracassos. A história da moda registrada nos livros é apenas a dos aceitos e até o limite de sua aceitação por parte do seu público contemporâneo. Se na moda, o próprio termo, a partir da idéia de generalização, já contém a de aceitação; no caso da arte em geral, a aceitação não se vincula ao hoje da produção e, ao mesmo tempo, não se confunde com generalização – aceitação e generalização são termos descolados. A história da moda é mais conservadora do que o comumente propalado. É constituída mais propriamente por lentas mudanças do que por efetivas rupturas – veja-se o caso de Mrs. Bloomer23. As rupturas são mais evidentes quando uma pessoa/grupo elabora sua própria aparência – quando, enfim, o “desinteresse, ainda que interessado” parece comparecer com maior força. É possível observar melhor essa ambigüidade a partir de um fragmento de texto do historiador Hippolyte Taine, em que ele descreve a relação de Worth com suas clientes:

Esta criatura pequena, seca, nervosa e vestida de negro olha para elas usando um casaco de veludo, recostado de forma descuidada em um divã, com um charuto entre os lábios. Ele lhes diz: “_ Ande! Vire! Muito bem! Volte dentro de uma semana e prepararei uma toalete que lhe cairá bem!” Não são elas que escolhem, é ele. Elas já se dão por satisfeitas deixando-o escolher e, até para isso, precisam de apresentação (apud Laver, 1999, p. 187-188). Ainda que a balança de poder tenha se modificado em seus pendores, a necessidade do olhar esse outro configura o grande lastro de dependência. A observação, contudo, não se dá apenas quanto ao corpo, mas também, como dito, quanto aos gostos, mudanças e possibilidades de uma época. Atentando para as produções de Worth, algumas delas ao menos, ainda que as mudanças sejam perceptíveis no vestuário feminino do século XIX (e sem dúvida ele teve grande contribuição nesse sentido), não há rupturas. E no que se refere às peças confeccionadas com antecedência, e até mesmo na apresentação dos croquis, eles invariavelmente estiveram sujeitos a intervenções por parte da cliente. Isso sem mencionar o limite à criatividade na ocorrência de encomendas. Outro ponto de tensão a ser considerado é o da finalidade. O objeto artístico é posto como aquele que tem seu fim em si próprio; o vestuário tem no uso sua finalidade. Por isso, inclusive, alguns estilistas, como Vivienne Westwood e Helmut Lang, citados por Costanza Pascolato, buscaram afirmar a moda como arte aplicada. Tanto que, nas vitrines, o que se observa são manequins vestidos

23 Mrs. Amélia Bloomer, feminista, teria sido a idealizadora de um traje racional para mulheres. Consistia no uso de uma saia ampla abaixo dos joelhos, sob a qual haveria uma espécie de calças até o tornozelo. A invenção de Mrs. Bloomer, ridicularizada à época de sua criação, só foi posta em uso quase 50 anos após por conta da difusão do ciclismo e de sua prática também por mulheres. 98

numa simulação de uso. Hoje, em muitas lojas, os vendedores portam os produtos à venda na afirmação de que uma peça de vestuário só adquire vida quando posto em corpo que o anime. Lembre-se de que Worth é pioneiro na promoção de desfiles como modo de divulgação de suas criações.

Até aqui, ainda que se tenha tentado compreender a produção do vestuário a partir de aproximações e distanciamentos em relação a uma concepção de arte posta em funcionamento em especial no século XIX e que se tenha conseguido, apesar das várias lacunas, apontar algumas dessas aproximações e afastamentos, considero haver um ponto fundamental de discussão ainda não abarcado: o modo como se percebia e percebe ainda hoje o vestuário. E aqui retornamos à fala inicial de Baudelaire no esclarecer quem são os por ele denominados “amantes muito equívocos da natureza” que caluniam a arte do vestir. Trata-se, no que se refere à França mais especificamente, ao debate acerca da relação civilidade/natureza encetado pela burguesia intelectualizada do século XVIII. Mesmo havendo, como reforça Elias, poucas diferenças entre os costumes da alta burguesia e da aristocracia nesse período, a intelectualidade burguesa, ressalte-se como exemplo Rousseau, enfronham a discussão acerca de natureza/civilidade, ou interior/exterior ou ainda autêntico/falso; enfim, o simples e o ornado. Em outros termos, o que está posto na aparência (modos de lidar com o corpo e os objetos, mas também o vestuário) é, de acordo com as colocações da época, enganador – uma aparência de superioridade que acaba por embotar o que seria de fato importante: o eu interior em sua simplicidade, o natural. Este discurso compareceu não apenas na França, mas também na Inglaterra e na Alemanha, a exemplo da exposição de Simmel sobre o vestuário como máscara. Como essa visão pode ter afetado o modo de apreensão acerca do vestuário? Em termos de século XIX, a discussão era bastante recente (pré-Revolução Francesa) e muito provavelmente – a citação de Baudelaire o confirma – já havia se sedimentado certo preconceito no ver o vestuário o supérfluo, reforçado por sua ligação próxima com as transformações sofridas rumo à industrialização: a importância da indústria têxtil e do consumo de objetos ligados à aparência para a consolidação de um sistema de produção negativamente apontado – lembre-se que o casaco é o objeto tomado por Marx em suas discussões n’O Capital, e, como aponta Stalybrass, em O casaco de Marx (2000), referindo-se à Inglaterra, as peças ligadas ao vestuário eram as mais comumente postas em penhor para quitação de dívidas, evidenciando não apenas a carência de muitos, mas igualmente o valor atribuído ao vestuário e em especial no que se refere a cidades que têm inverno rigoroso. As transformações no vestuário pós-revolução de 1789 99

evidenciam o impacto e influência desse discurso. Rousseau é geralmente citado como pensador cujas idéias teriam levado às radicais mudanças (aqui sim uma ruptura) procedidas no vestuário feminino e infantil na época, em seu apelo pelo natural, ajudando a constituir um estilo vestimentar burguês, ainda que abandonado nas primeiras décadas do século XIX – o denominado estilo Império nas roupas femininas, inspirado em trajes da Antigüidade. A visão, pois, do vestuário como domínio do superficial, em contraposição à profundidade humana do artístico, provavelmente já estava consideravelmente sedimentada e teve no discurso oficial de alguns acadêmicos uma importante voz em sua defesa. Além disso, os representantes da academia, homens de prestígio, tinham como “atribuição” a tentativa de evitar a generalização de uma idéia de arte para a própria manutenção da autonomia de produção e de distinção do artista. Ao mesmo tempo, como já afirmado, seriam os detentores por excelência da possibilidade de reconhecimento por seu caráter oficial de especialistas. A crença em tal poder deliberativo e em sua validade, mesmo havendo acalorados debates, é imprescindível à manutenção da hierarquia enquanto tal.

O reconhecimento da moda como uma arte por parte desses especialistas, em período de tão acentuadas pressões por difusão comercial de obras e por inserção, advindos dos novos segmentos artísticos, era improvável. A atitude característica da época, por parte dos segmentos de relevo da academia, é de recrudescimento em relação aos pleiteantes, conferindo ainda maior destaque aos critérios de unicidade, intelectualidade e desinteresse que caracterizariam as obras artísticas e serviriam como fatores de distinção para seus produtores num período de franca generalização das características dos produtos de moda para as diferentes mercadorias postas à venda no mundo capitalista, tal como nos demonstra Sombart (1979) e Lipovetsky (1997). De qualquer modo, aquilo que se evidencia para além do debate e seus argumentos, é o caráter de relativa arbitrariedade a que estão ligadas essas classificações, o que pode ser observado não apenas na trajetória de Worth, mas também de Mozart, Rembrandt, Michelangelo e Leonardo. Por isso, a compreensão da moda e das nominações socialmente construídas no que se refere a tal tipo de produção são compreendidas apenas à luz dos jogos de força que tomam lugar ao decorrer do processo.

Quanto a Worth, sua Maison entrou em declínio nos anos anteriores à sua morte em 1895. Seus filhos, como anteriormente afirmado, herdaram o negócio, que, em 1897, já recebia encomendas por telefone, cartas ou por visitas de suas clientes a uma de suas lojas em Londres, Dinard, Biarritz ou Cannes. Gaston Worth empregou Paul Poiret (1879-1944), um jovem francês que havia trabalhado para Jacques Doucet. Por dois anos, Poiret se esforçou 100

por tornar a filosofia de criação de Worth, baseada na pura elegância, em uma mais prática elegância. Esse esforço descontentou Jean-Philippe, o outro filho de Worth. De qualquer modo, Poiret acaba por dar continuidade à articulação arte-moda pretendida por Worth: “Am I a fool when I dream of putting art into my dresses, a fool when I say dressmaking is an art... For I have always loved painters and felt on an equal footing with them. It seems to me that we practice the same craft and that they are my fellow workers”24. (POIRET apud MACKRELL, 2005, p. 118). Ainda no início do século XX, os dois novos nomes da costura que viriam rivalizar com Poiret, em sua ditadura da moda, anunciam e ilustram as principais tendências de compreensão da moda ao longo do século XX: Elsa Schiaparelli, que, conforme ela própria descreveu em sua autobiografia se considerava uma artista, e Gabrielle Chanel, que começa a afirmar que a moda é, acima de tudo, um negócio e que via em Schiaparelli uma artista que fazia roupas. A disputa entre as duas evidencia um momento novo na tensão de definição da moda. Schiap, como ficou conhecida em sua época, foi continuadora de Poiret; Chanel, por sua vez, ilustra a nova época, tanto que hoje apenas o nome Chanel é conhecido pelo grande público. O interessante, no entanto, é notar como as duas tiveram peso na balança do período e, de modos distintos, influenciaram muitos dos futuros diretores de moda, como os costureiros são atualmente denominados.

Em 1924, a Casa Worth criou o Les Parfums Worth e produziu sua primeira fragrância, Dans la Nuit. Dez mais se seguiram. Ainda assim, a Casa Worth foi adquirida pela casa de Paquin, que a fechou em 1956. No entanto, antes de seu fechamento, os filhos de Worth deram sua própria contribuição à moda. Em 1910, Gaston Worth se tornou o primeiro presidente da Chambre Syndicale de la Haute Couture e, em 1923, ele advogou pela abertura da École Supérieure de la Couture, o que se deu em 1930.

***

Ao invés de eleger qualquer fator como primordial, a intenção neste capítulo foi perceber alguns dos meandros do debate que se estabeleceu pela tentativa de aproximar produções de moda e produções artísticas. Mais do que percebê-los em separado, a observação da conjunção desses fatores, como eles se amalgamam (e talvez muitos outros que não chegaram a ser aqui abarcados) em seus entrelaçamentos, na compreensão do por que do

24 “Eu sou um tolo quando sonho em pôr arte em meus vestidos... um tolo quando afirmo que a costura é uma arte... por eu sempre ter amado pintores e ter sentido que estava em iguais condições que eles. Parece que praticamos o mesmo ofício e que eles são meus colegas de trabalho” (Tradução nossa). 101

desconforto estabelecido pela idéia da moda como arte, constituiu o objetivo estabelecido para este texto. Observar a histórica construção da definição do artístico como um específico âmbito e as regras que demarcam os limites de seu pertencimento, em consonância com a racionalização da interpretação do mundo, nos permite, sendo uma categoria social, compreender as transformações e, portanto, sentidos atribuídos à moda ao longo da história. A moda, bem como a mencionada fotografia, são aquilo que não se encaixa bem, o torto, o impuro, o de difícil classificação. O incômodo gerado pela exposição e lugar que Worth busca conferir à moda talvez esteja mais propriamente relacionado à evidência dos limites e arbitrariedade de tais esquemas classificatórios. Se inexiste um “lugar” apropriado à moda, não haveria um problema prévio, nos esquemas utilizados, e que demandariam sua transformação ou abandono? E mais, quem tem o poder de definir? Aquilo que podemos observar é que se trata de um jogo de forças em que todos, ainda que assimetricamente, participam. Tal assimetria não se refere apenas à condição socioeconômica, ainda que seu peso seja inegável. A escolha dos recursos utilizados na “negociação” é fundamental, ainda que os resultados do jogo sejam de difícil controle prévio. Estou me valendo aqui da noção de poder utilizada por Giddens em seu diálogo com Parsons. Para Giddens (1998), poder não deve ser compreendido de forma substancializada como uma coisa que apenas alguns possuem, e sim como uso de recursos, independente de sua natureza, para assegurar resultados almejados. A habilidade nas escolhas e usos de recursos, o que se dá sempre em função das expectativas de escolhas e usos dos outros envolvidos, é decisiva. É, pois, no transcurso do jogo, sempre em movimento, que mais radicais, e até inicialmente impremeditadas, redefinições vão se dando. “O poder, em sentido amplo, é equivalente à capacidade transformadora da ação humana – a capacidade dos seres humanos de intervir em uma série de acontecimentos de modo a alterar seu curso” (GIDDENS, 1998, p.257).

As tensões vividas pelos criadores do século XIX, pressionados pelo ideal do desinteresse, por um lado, e pelas exigências de mercado, por outro, se apresentam de modo específico para os criadores de moda, afinal esta tensão é substituída pela do ser submetido ao mercado, como conseqüência de sua relação com o público, e o de ter dificuldade em obter o status de artista. O problema, portanto, não parece estar em, digamos, ser mais interessado em comparação a outros criadores, e sim mais propriamente no seu posicionamento abaixo dos chamados artistas, quando não longe deles. Worth não desejava que as pessoas encomendassem suas roupas de acordo com seu desejo. “Se o fizessem, eu perderia metade de meu comércio”, declarou ele (Apud ERNER, 2005, p. 32). A afirmação do artístico não 102

levava à negação do negócio e do desejo de lucro. Muito ao contrário, contribuía, uma vez que Worth via, na criação, a chave de seu sucesso. Ainda que hoje não seja lembrado por qualquer traço de genialidade no que se refere à sua produção de vestuário, Worth deve ser reconhecido pelas questões que acaba pondo em pauta e que nos fazem ainda hoje, mais de um século depois, discutir o sentido e as conseqüências de suas intenções. No que se refere ao debate explicitado, torna-se evidente o caráter em grande medida arbitrário de certas classificações e hierarquizações, e os jogos de poder envolvidos nessas e noutras similares discussões.

Em acréscimo, o escavar curiosa e meticulosamente elementos da trajetória de vida daquele considerado o primeiro costureiro, e a busca por tentar compreender a relação que ele tentou fazer crer entre moda e arte – aquela como um ramo desta – e as conseqüências de suas intenções nos discrepantes posicionamentos de pensadores da época nos leva, igualmente movidos pela curiosidade, à especulação quanto ao modo como hoje, nesta primeira década de século XXI, é definida tal relação. Se, ao decorrer do século XX, os ainda denominados estilistas mantiveram a tensão ao exprimirem, entre si próprios, opiniões distintas e, assim, alimentando ainda o debate, o século XXI apresenta algumas transformações já feitas sentir na segunda metade do século anterior. Sem unanimidades, mergulhados em uma questão irresolvida, percebemos por parte de renomados nomes da moda nacional e internacional a afirmação categórica da moda como negócio. Esta reviravolta discursiva, se compararmos com Worth, significa nova mudança de status, fruto das transformações em curso nos séculos XX e XXI. Ainda que alguns pontos fundamentais de definição do artístico e os problemas que a moda levanta terem sido postos ao final deste capítulo, é necessário aprofundar a discussão a respeito do significado atribuído à criatividade no trabalho denominado artístico, uma vez que o enclave principal para o reconhecimento da moda como arte se vincula aos interesses econômicos supostamente levarem os costureiros a limitarem sua criatividade a favor do atendimento aos anseios do público consumidor. Tal discussão será construída a partir da relação entre arte e religião, uma vez que às obras de arte são conferidas sacralidade no século XIX. Em conseqüência, a moda, enquanto corruptora deste caráter santificado do artístico, é discutida a partir da noção de heresia. A partir daí será possível investigar, em pormenor, a relação entre moda, luxo e capitalismo. 103

O COSTUREIRO E SUA MAGIA: CRIATIVIDADE, HERESIA E MODA

Se o verdadeiro talento pudesse abdicar a este ponto de sua própria natureza, e deixar assim de lado sua originalidade pessoal, para transformar-se em outro, tudo perderia ao representar esse papel de Sósia. É o deus que se faz valete. É preciso inspirar-se nas fontes primitivas. É a mesma seiva, espalhada pelo solo, que produz todas as árvores a floresta, tão diversas quanto ao porte, aos frutos, e à folhagem. É a mesma natureza que fecunda e nutre os gênios mais diferentes (HUGO, 2004, p. 66). Como compreender a mudança de acento discursivo da afirmação da moda como uma arte para a de moda como um negócio e quais as repercussões quanto às noções de criatividade e inspiração, de um ponto de vista sociológico, no que se refere à criação de produtos-moda?

Se o tema da liberdade e da produção de bens denominados culturais crescentemente se tornou tema de interesse de diversos cientistas sociais ainda no século XIX, é perceptível, ao mesmo tempo, a resistência que marcou o desenvolvimento desta disciplina quanto a determinadas problemáticas, em especial aquelas cuja ligação ao “irracional das emoções” se apresenta de modo intenso. Sem dúvida, podemos considerar a presença do tema emoção; contudo, a sua marginalidade é, ainda assim, digna de nota – apesar de mudanças recentes já se verificarem. Assim, discutir criatividade e inspiração como categorias sociológicas constitui um desafio que se tentará vencer pela continuidade da estratégia do capítulo anterior, ou seja, a partir da relação entre arte, como exemplo, por excelência da produção reconhecidamente criativa, e religião, devido às freqüentes considerações da arte como obra sagrada. O liame, por sua vez, entre arte e religião se dá pela noção de dom, como presente, e de vocação, como chamamento divino à execução de obras. Para tanto, faz-se necessário discutir a relação entre criação e artifício, bem como a produção artística como processo de simbolização. A trama entre as noções elencadas acaba por nos levar ao questionamento apresentado sumariamente no capítulo anterior a respeito da valoração das obras e dos artistas, o que será feito a partir da articulação entre mimese e reconhecimento.

A partir de tais considerações, poderá ser melhor compreendida a relação da moda com a arte, da forma como foi concebida no século XIX, e as restrições de grupos legitimados 104

como artísticos quanto ao reconhecimento da produção de moda como uma forma de arte. Por outro lado, tem-se a possibilidade mais efetiva de começar a compreender o progressivo desfalecimento dessa tentativa por parte de grupos ligados à moda no final do século XX. Esta discussão nos permitirá compreender as “exigências” de postura e relação com o trabalho a partir da definição da moda como arte e da moda como negócio, lembrando que, independente do acento discursivo, o entendimento de que se trata de trabalho criativo se mantém.

Criação e artifício A relação entre arte e divindade é percebida desde o Renascimento a partir da busca por compreender o processo criativo e definir seus objetivos. O indivíduo se assemelharia a Deus pela possibilidade de criar. Contudo, como salienta Vico nos idos do século XVII, as diferentes criações humanas – e nisso ele inclui leis, rituais, normas de conduta, dentre outros – não foram gerados para agradar, preservar, ensinar ou sequer dominar, e sim são modos de auto-expressão que permitem a comunicação entre os homens e com Deus (BERLIN, 1982). A partir das obras humanas, é possível interpretar o modo pelo qual os seus criadores viam e viviam seus mundos. Entretanto, nessa assertiva, criador não pode ser entendido de modo limitado, restrito ao indivíduo que cria, pois há um estilo de grupo e de época que encontra nessas diferentes criações uma voz expressiva. Através da obra, falam seu autor e sua “cultura”. É nesse sentido que, tempos após, Baudelaire definirá que a arte pura, conforme a concepção moderna, “é criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista” (2008, p. 73). Em decorrência disso, uma obra, inclusive artística, não pode ser compreendida a partir de critérios universais e atemporais, pois significaria negar o caráter histórico e criativo dos homens. Na verdade, em Vico há uma associação entre as noções de criatividade e história, posto que as atividades criativas proporcionam as transformações humanas, ou melhor, trata- se de um processo contínuo de autotransformação guiado pela Providência Divina, que, portanto, limita a liberdade humana. No entanto, se, para Vico, o potencial criativo, que é exercido em qualquer atividade humana, é o ponto crucial de semelhança que os homens guardam com Deus, a diferença está em que só podemos efetivamente conhecer o que criamos, e aí estamos em intransponível desvantagem em relação ao criador mor. Deus conhece o mundo porque o fez. Os homens criam a partir da prévia criação divina, por isso seu conhecimento é sempre limitado, incompleto. Conforme Berlin, Vico alia a concepção renascentista do homem criador, discutida de modo sumário no capítulo anterior, à anterior 105

concepção escolástica de que o conhecimento está vinculado à criação. Contudo Vico teria ampliado o espectro da noção de criação para a própria história em geral. Ora, se conhecemos verdadeiramente apenas aquilo que criamos, o conhecimento a respeito da história é “mais divino” e superior; por isso, deve servir como modelo às ciências naturais e exatas, e não o contrário, conforme argumentos da época. Não poderíamos compreender o humano a partir daquilo que, segundo Vico, lhe é exterior: a natureza e a matemática. A discussão, por excelência, se dá em relação às concepções científicas difundidas por Descartes. É porque os homens “fazem a si próprios” – concepção que influenciará a Hegel e a Marx – que podem re- experimentar esse processo, empaticamente, na imaginação. O conhecimento histórico é, pois, melhor fundamentado que o científico, o que vai além da distinção entre ambos.

Concepções similares foram desenvolvidas mais tardiamente, no século XVIII, por Herder, em sua oposição ao Iluminismo francês, representado especialmente por Voltaire. Segundo consta, Herder teria tido contato com a obra de Vico, mas talvez apenas numa fase posterior de suas elaborações. A época de Herder já oferecia terreno mais fértil ao desenvolvimento de certas idéias, como a da singularidade dos povos, alimentadas pela frustração alemã com os desdobramentos da Revolução Francesa, em especial com a derrota da Alemanha pelo exército napoleônico. A razão iluminista teria dado lugar a violências. Além de pacifista, Herder inclina-se ao patriotismo. Ao mesmo tempo, ao afirmar que cada povo tem seu espírito próprio, Herder acaba por se opor ao fulcro das elaborações dos philosophes franceses e de seus discípulos alemães. O debate franco-alemão levou ao desenvolvimento das duas noções concorrentes de cultura, uma de âmbito universal, a partir da qual os diferentes povos deveriam ser avaliados em termos de estágio evolutivo, o que levava à sua hierarquização (posição, por excelência, francesa e adotada pela aristocracia alemã), e a outra que tomava como ponto de partida a singularidade de cada povo, que deveria ser compreendido em si próprio, em termos de sua história, apesar de um povo poder, por relação, influenciar outros (concepção alemã). Contudo, apesar das distinções assinaladas, há igualmente proximidades entre Herder e Voltaire. Ainda que seja um dos líderes do Sturm und Drang, Herder, ainda segundo Berlin, acreditava na razão, ao mesmo tempo em que Voltaire acreditava que o objeto das ciências históricas deveria ser a vida das comunidades em lugar das realizações individuais. No entanto, e aí as diferenças novamente se apresentam, a variedade, para Herder, deixa de ser percebida como falha ou traço de inferioridade, como acreditavam os Iluministas, para se tornar a marca do gênio, individual ou coletivo. Não se trata mais do ideal renascentista da mimesis aristotélica lida como imitatio. A imitação é 106

veementemente rejeitada como um avesso da propensão humana e do artístico, mais especificamente. Um desdobramento de tal concepção pode ser observado em Victor Hugo, que foi influenciado por Herder. Para Hugo, tal como podemos observar em Herder, cada época tem suas idéias próprias, ao mesmo tempo em que ao artista deve caber a liberdade, a ponto de Vacquerie afirmar que só se imita Hugo não o imitando. O fragmento de abertura deste capítulo evidencia o lugar de origem como o terreno fértil a partir do qual diversidades são criadas. Para Hugo, o poeta deve partir do característico, da cor local, e não do belo, e a sua liberdade em relação a limitadoras regras deve guiá-lo, fazendo com que apenas o gênio seja o “peso que pode fazer inclinar a balança da arte” (2004, p. 79). Muito próximo a Vico, além de afirmar a incomensurabilidade dos diferentes valores de cada cultura, Herder considera que todas as formas de auto-expressão humanas revelam a personalidade do indivíduo que o criou e de seu grupo particular, como parte de um processo comunicativo mais amplo. Pensamento e sentimento, teoria e prática, público e privado são uma totalidade inseparável. “Compreender uma coisa era, para ele, ver como ela podia ser vista, determinada e avaliada como o era, dentro de um contexto específico, por uma cultura ou tradição em particular” (BERLIN, 1982, p. 140). Como seu mestre Hamann, Herder desejava compreender a totalidade em suas articulações complexas e mutáveis. Podíamos afirmar, então, que Herder intentava compreender o movimento em sua vitalidade, diferente do procedimento efetivado e cultuado pelos iluministas, pautado na análise, ou seja, na morte, pela dissecação. Acaba, junto com Vico, por exaltar a memória e a tradição como formadoras do homem. Ao cantar, os povos antigos cantam histórias. E, nesse sentido, Herder acaba por apresentar

como autêntica poesia a que emerge do povo, “comunidade orgânica” (...). Daí que a importância histórica da posição romântica nesse debate – seja nos trabalhos de Herder sobre a canção, dos irmãos Grimm sobre os contos e de Arnim sobre a religiosidade popular – resida na afirmação do popular como espaço de criatividade, de atividade e produção tanto ou mais que na atribuição a essa poesia e a esses relatos de uma autenticidade ou uma verdade que já não se acharia em outra parte (MARTIN-BARBERO, 2003, p.39). Era em relação à espontaneidade e autenticidade do “espírito do povo” que se opunha o caráter de artifício daquilo que era forjado para o mercado ou para suas similares instituições. No entanto, não havia unanimidade também no que se referia ao uso de artifícios. Conforme apontado no capítulo anterior, Baudelaire, assim como os representantes do Esteticismo, 107

defendeu o artifício não apenas como coisa cosmética, mas em termos que veríamos depois muito aprofundados por Fernando Pessoa e Ezra Pound, ou seja, de uma técnica que serve para revelar a emoção, transformando-a ou fingindo-a [no sentido de forjando-a], em arte, o que na época soava provavelmente como antítese à espontaneidade declarada e aparente do romantismo, ou simples aderência ao código de técnica superficial do parnasianismo. (VILLA, 2008, p.16/17). Nos termos do poeta e crítico francês,

Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-las à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la. O mal é praticado sem esforço, naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre produto de uma arte. (BAUDELAIRE, 1997, p. 57). Como os românticos, Baudelaire recusa o aprendizado acadêmico como uma limitação ao artista; mas, como Herder, e diferente de parte considerável dos românticos, de quem foi fervoroso crítico, Baudelaire defende a razão. É esta que permite ao artista ultrapassar a natureza rumo ao superior mundo “humano”. Baudelaire parece igualmente influenciado, como Herder, pelo espírito científico em sua concepção de processo criativo. Para ele, é a observação guiada pela curiosidade que constitui um verdadeiro artista. Ainda que tenha caído na armadilha de cindir natureza e “cultura”, o autor francês clama pelo esforço de distanciamento quanto ao natural, entendido como simplicidade, ao modo dos ensinamentos de fins do século XVIII. No entanto, a valorização do artifício implica aceitação e defesa da concepção de que o trabalho artístico é um trabalho, ou seja, que demanda esforço e exige uma série de competências e qualidades. Em Sobre a modernidade, o pintor da vida moderna, artigo postumamente publicado em 1869, ao tecer o elogio aos trabalhos do anônimo G., identificado como o desenhista, aquarelista e gravador Constatin Guys (1805- 1892), Baudelaire define o artista como um “homem do mundo, homem das multidões e criança”.

A criança vê tudo como novidade; ela está sempre inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor. Ousaria ir mais longe: afirmo que a inspiração tem alguma relação com a congestão, e que todo pensamento sublime é acompanhado de um estremecimento nervoso, mais ou menos intenso, que repercute até no cerebelo. O homem de gênio tem nervos sólidos; na criança, eles são fracos. Naquele, a razão ganhou lugar considerável; nesta, a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a infância agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada. É à curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar fixo e animalmente estático das crianças diante 108

do novo, seja o que for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, tecidos cintilantes, fascínio da beleza realçada pelo traje. Um de meus amigos dizia- me um dia que, ainda pequeno, via seu pai lavando-se e que então contemplava – com uma perplexidade mesclada de deleite – os músculos dos braços, as gradações de cores da pele matizada de rosa e amarelo, e a rede azulada das veias. O quadro da vida exterior já o impregnava de respeito e se apoderava de seu cérebro. A forma já o obcecava e possuía. A predestinação mostrava precocemente a ponta do nariz. A danação estava consumada. É preciso dizer que essa criança hoje é um pintor célebre? (1997, p. 19). Identificado com a criança, o artista é homem pelo uso da racionalidade, por não se deixar tomar apenas pela sensibilidade, que deve ser regulada, mesmo controlada pela razão, mas não deixa de ser também sensibilidade. Por isso a virtude advém do artifício, de uma reconstrução humana. Por isso também Baudelaire elogia as diferentes formas de artifício, inclusive o cuidado com a aparência pessoal, seja nas mulheres como nos homens (era defensor dos dândis). Herder, por sua vez, se opõe à artificialidade por ela, em sua concepção, tirar a magia da arte. Para Baudelaire, ao contrário, é a artificialidade que cria a magia, conforme pode ser percebido no uso que faz da palavra sobrenatural e da referência à percepção da “virtude do artifício” como ensinamento de deuses e de profetas. Por outro lado, Baudelaire assume uma atitude de antipatia em relação ao público, a quem apelida, no prefácio de Flores do mal, de “leitor hipócrita”, rejeição recorrente em escritores de sua época, a exemplo de Herder. Se, por um lado, as concepções de autores como Herder ajudam a fundamentar a valorização do popular que contribuirá, inclusive, para a conformação da disciplina antropológica no século XIX, por outro, serão igualmente o fundamento a partir do qual as críticas ao “populacho” serão erigidas. Conforme Raymond Williams (2001), desde as décadas de 1730 e 1740 cresce o público leitor de classe média, em função do aumento da influência dessa classe.

Como consecuencia, el sistema de patronazgo había pasado a la edición por suscripción y de allí a la edición comercial general de tipo moderno. Estas transformaciones afectaron a los escritores en diversos aspectos. Los afortunados pudieron disfrutar de una mayor independencia y estatus social: el autor se convertió en un “profesional” con todas las de la ley. Pero el cambio también implico la intituición del “mercado” como el tipo de relaciones reales del escritor com la sociedad. (WILLIAMS, 2001, p. p. 43). O patronato implicava uma relação de proximidade com um círculo restrito e seleto de indivíduos, que, inclusive, exerciam a função de críticos da obra e cujas apreciações ajudavam a compor os trabalhos futuros dos artistas. Como os textos de Elias sobre Mozart e Watteau ajudam a perceber, a liberdade de criação artística era mais um ideal do que uma efetiva possibilidade, em especial para aqueles cujas famílias não detinham posses significativas. Mas a maior independência e status que podem ser relacionados a um trabalho 109

dirigido ao impessoal mercado também exigiam o cumprimento de obrigações, mas agora não mais dirigidas a um grupo de conhecidos e que se entende como “iguais”. O estabelecimento de um mercado da arte – e, portanto, do artista como um profissional – começa a se apresentar ainda no século XIX com a mudança de atitude perante o “público”, identificado como “populacho” pouco cultivado. Em O que é arte?, artigo terminado em 1898 e que levou quinze anos em processo de elaboração, Leon Tolstoi enumera as condições que contribuem para a produção de falsos objetos artísticos: “(1) a remuneração considerável dos artistas pelo seu trabalho, e o conseqüente estabelecimento do artista como um profissional, (2) a crítica de arte e (3) as escolas de arte” (2002, p. 159). Para Tolstoi, a arte é a transmissão dos sentimentos vivenciados pelo artista. Deste modo, e começando então pelo último ponto, como isso poderia ser ensinado? Esse é o questionamento que levanta ao criticar as escolas de arte, ao mesmo tempo em que vocifera contra os críticos de arte, que buscariam interpretar aquilo que não pode e não carece de interpretação, pois, em última instância, o sentimento do artista já havia sido transmitido ao público sem a necessidade de qualquer mediação. A crítica de arte acabaria por eleger e incentivar a imitação de métodos utilizados por outros artistas na expressão de seus sentimentos, mas não pode ensinar a manifestar a peculiaridade do sentimento do “aprendiz”, que precisaria descobrir por si. A conseqüência é o forjamento da arte e, portanto, a diminuição de sua qualidade. As escolas de arte advieram, segundo o autor, justamente para suprir aqueles que escolheram a arte como atividade profissional. Tais escolhas teriam assumido maior freqüência visto a arte ter se transformado em “arte para as classes ricas”, ou seja, numa época em que a una arte religiosa teria se cindido em duas partes, tendo uma delas se afastado de seu caráter previamente religioso. Quando as pessoas das camadas privilegiadas se aperceberam de que “qualquer arte era boa desde que garantisse prazer”, essa arte passou a ser bem remunerada, angariando, assim, vários interessados que teriam se devotado a ela como profissão. Como tal, a maior característica da arte, a sinceridade, teria sido parcialmente destruída, pois o artista profissional precisa sobreviver de sua arte e, para tanto, precisa “inventar constantemente assuntos para sua obra – e ele os inventa”.

Fica claro que diferença deve haver entre obras de arte criadas por pessoas como os profetas hebreus, os autores dos Salmos, Francisco de Assis, o autor da Ilíada e da Odisséia e os autores de todos os contos, lendas e canções populares – os quais não só não recebiam remuneração alguma por suas obras, como nem mesmo ligavam seu nome a elas – e a arte que passou a ser produzida por poetas, dramaturgos e músicos da corte, que recebiam honrarias e remuneração por isso, e depois por artistas oficiais que viviam de seu ofício e recebiam remuneração de jornalistas, editores, empresários e 110

mediadores em geral que se situam entre os artistas e o público urbano – os consumidores de arte (TOLSTOI, 2002, p. 159/160). A arte do povo, como afirma Tolstoi, tem como critério a consciência religiosa. Como isso não ocorre na arte das classes altas, seus apreciadores carecem de um critério alternativo, o gosto de homens considerados instruídos, que assim ganha autoridade. A partir das teses criadas para justificar suas apreciações, surge uma horda de imitadores que produz falsificações artísticas, pois é “impossível ensinar um homem a ser artista” (Idem, p. 169). Segundo Tolstoi, as escolas de arte destroem a capacidade de produzir arte real nas pessoas que a freqüentam e ainda multiplicam a falsa arte “que perverte o gosto das massas e com a qual o mundo está prestes a transbordar”. Defende, em contrapartida, como se buscaria fazer a partir do início do século XX, aulas de desenho, música e canto em todas as escolas primárias para que os dons fossem descobertos e posteriormente aperfeiçoados. Uma das condições primordiais à criatividade artística é a liberdade, afirma. De qualquer modo, para Tolstoi, as pessoas de sua época e círculo teriam perdido a capacidade de perceber a arte real. O público das classes privilegiadas é caracterizado como ignorante e insensível à arte. Por não serem contagiados por ela, não distinguem a verdadeira arte da falsa arte e passam a seguir as indicações de críticos.

Mesmo Herder difere o Pöbel auf die Gassen, a ralé, da Das Volk, o “corpo da Nação”. Contudo, como salienta Williams, não se trata apenas de uma questão de redefinição profissional que está em jogo. A auto-afirmação do artista como categoria superior também é um mecanismo de defesa em relação a um modo de existência social que parecia ameaçado pela industrialização. A palavra “arte”, que antes indicava apenas destreza em fazer algo, passa a remontar a um modo de sensibilidade respaldada por mudanças paralelas nos termos “criatividade” (cuja aplicação só pode se dar a partir da idéia de uma “realidade superior”), “originalidade” (vinculada a espontaneidade e vitalidade) e “gênio” (que, associada à idéia de inspiração, passou de uma disposição característica, como ressalta Williams, a uma atitude especialmente realçada e adotou um tom afetivo). Até fins do século XIX, a palavra artista se referia mais a um temperamento do que a uma destreza. Voltando a Herder, para ele a originalidade, a liberdade de escolha e a criação são o divino no homem, e a falsificação dessa experiência, seja para a satisfação de clientes ou exibição de virtuosismo ou mesmo pela mera excitação dos sentidos, é entendida como uma traição. Ainda que alguns Sturmer tivessem enveredado pelo individualismo, Herder continuou a afirmar a vinculação coletiva dos indivíduos. O poeta é criador do povo, e é por ele criado. E isso se dá porque pensar é usar símbolos, elementos de comunicação e, portanto, de articulação que, por sua vez, se 111

cristalizam, como Vico já havia afirmado anteriormente, em formas simbólicas: sejam elas poesias, cultos religiosos ou rituais diversos.

Símbolo e produção artística Em Teoria Simbólica (2002), o sociólogo Norbert Elias discute especificamente a faculdade de comunicação por símbolos como traço humano distintivo fundamental e que possibilita ao homem seu desenvolvimento ao longo do tempo, ou seja, a história. Os símbolos, sínteses que expressam relações estabelecidas entre seres e coisas do mundo, funcionam como mecanismo de orientação de conduta neste mesmo mundo e, como conhecimento (aprendizado), são igualmente “coisa do mundo” participando, portanto, da constituição de novos símbolos, em processos contínuos de sínteses em níveis de crescente complexidade. Ou seja, ao mesmo tempo em que os diferentes símbolos são uma forma de compreensão do mundo, fazem parte do mundo a ser compreendido. Em outros termos, continuamente símbolos ajudam a constituir novos símbolos. Tais símbolos guardam, em si, a história de sua construção coletiva ou, se preferirmos, à Bakhtin, as marcas de seu dialogismo e polifonia. Se, aristotelicamente, o mármore traz, em potência, diferentes possibilidades de vir-a-ser a depender daquele que o manuseie e de suas intenções, e se tal plasticidade compõe os seres em geral, as interpretações possíveis são inumeráveis, uma vez que tais símbolos são o estabelecimento de relações, liames, entre diferentes seres, cada qual com suas virtualidades, compondo combinações de possíveis – jogos de articulações (sintéticas) –, a rigor, infinitas. Isto permite aos seres humanos uma considerável variabilidade de símbolos construídos e passíveis de construção e transforma cada símbolo existente em potencial criador de novos símbolos, ou seja, símbolos de símbolos numa cadeia igualmente infinita e cada vez mais complexa.

Esta compreensão de certo modo ainda se vincula ao significado mais antigo de símbolo, apesar de não se restringir mais a coisas materiais. Os símbolos, originariamente, eram objetos cindidos em duas partes reciprocamente remissíveis. O objeto quebrado nunca é um mero objeto. A partir do momento em que o qualificamos como “quebrado”, indicamos sua ligação, visível inclusive, com a outra metade que ali falta. O significado repousa na totalidade reconstituída, ainda que apenas imaginativamente. Deste modo, o símbolo é marcado pela carência e, pois, pela incitação à reunião das partes isoladas. Mais do que isso, o próprio objeto material mantinha uma relação evidente com o significado. Não se trata apenas, como na metáfora, de uma relação conceitual entre dois elementos distintos que 112

aproximamos por semelhança. No que se refere ao símbolo, as partes de um mesmo precisam ser interpretadas como totalidade, ao passo que tal totalidade material está referida a um significado que igualmente precisa ser recobrado. Se há, portanto, uma ligação entre o objeto e o significado, este último não está para além do símbolo, e sim nele próprio e, a partir dele, se prolonga, uma vez que o simbólico não é imitativo. Ao incitar interpretações, por um lado, e sedimentar ou transformar outras pelo uso desses mesmos símbolos, acaba por abrir um mundo de significados possíveis – o que Paul Ricoeur define como “excesso de significação”. O exemplo comum é o das alianças usadas por um casal. A aliança no dedo do noivo nos remete de imediato à existência de outra aliança-par, a da noiva, com que compõe a totalidade de um laço inquebrantável, expresso, pois, através do formato do círculo, para nós, a figura geométrica perfeita. As alianças dos noivos já são uma derivação, pois não se trata de um objeto que foi partido, mas seu significado como símbolo se sedimentou ao longo dos tempos pelo costume. No caso aqui estudado, a noção de símbolo é mais ampla, pois vai além do símbolo material. Mesmo palavras, gestos, práticas são simbólicos. O humanamente gerado apresenta as articulações sócio-históricas que o fizeram e mantêm. São distintos modos de apresentação das interações humanas. Ao mesmo tempo, os símbolos participam da própria construção das interações de que são fruto, uma vez que interferem no mundo humano de que fazem parte. Não se trata de substancializá-los, mas de lembrar que as relações estabelecidas com símbolos de várias ordens, ou através deles, interferem no curso dos acontecimentos. Por isso talvez Weber nos lembre – e Geertz mais recentemente – de que se tratam de teias simbólicas criadas pelos seres humanos, mas que acabam por enredá-los.

No caso de Norbert Elias, a diversidade lingüística é seu ponto fundamental de interesse. A disposição biológica para a criação de sons aliada à capacidade de simbolização e retenção de conteúdos pela memória permitiu, conforme o autor, a criação de línguas distintas, a capacidade (humana) de aprender outras que não a língua-materna e, ainda, de formar sínteses. Esta seria a vantagem evolutiva dos seres humanos, que buscam construir símbolos progressivamente congruentes com a realidade como mecanismo de controle do mundo e de sobrevivência do grupo. Na composição de tais sínteses de sínteses, fantasia e razão comparecem “de mãos dadas” compondo um mesmo continuum. Também para Vico, teria havido um tempo em que os homens pensavam por imagens, antes do que por conceitos. É o que ele denomina “lógica poética”, que teria feito com que a metáfora precedesse o uso literal das palavras, bem como teria definido a anterioridade da poesia em detrimento da prosa. Conforme Berlin, Vico acreditava que as magníficas imagens elaboradas por poetas 113

não eram fruto do uso consciente da fantasia, mas se devia a que a capacidade desses homens em sentir diretamente era maior que a nossa, ao passo que eles tinham desenvolvido pouco ainda a capacidade de observação científica e de estabelecimento de analogias. A definição de determinadas elaborações simbólicas, por exemplo, como mais concordantes com a realidade, segundo Elias, implica que um acento de maior racionalidade foi conferido ao processo, sem negar a existência da fantasia. O aumento de alienação (distanciamento, no sentido aqui positivo do termo) permite maior congruência e intervenção, em grau mais elevado de segurança, no mundo (ELIAS, 1990). Este teria sido o caminho para o florescimento e destaque do saber científico a partir do desenvolvimento da fala, do pensamento e da escrita como formas de utilização dos símbolos tornadas referenciais pelos seres humanos, ao decorrer de sua história. Obviamente, trata-se da história de alguns povos específicos. Por outro lado, o autor deseja marcar o caráter cumulativo dos símbolos gerados, o que difere de uma afirmação de progresso. Um exemplo desse controle é o desenvolvimento ocidental da noção de tempo e da armadilha que carrega.

A noção tempo é, já que se trata de um símbolo, uma síntese, cujo grau de elaboração/abstração é elevado a ponto de sua autonomização gerar o “esquecimento” de seu caráter humano. Hoje, o calendário se tornou, conforme Elias, indispensável à regulamentação das relações inter-humanas. A concepção ocidental de tempo, pautada no calendário e no relógio, contribuíram para a promoção de um determinado modo de disciplina das condutas guiado por esses objetos. Em muito, é possível lembrar aqui a discussão de Marx acerca da relação entre alienação, ideologia e fetiche da mercadoria. Para Marx, o não reconhecimento pelos homens de que são produtores do mundo está vinculado à inversão ideológica que faz com que eles se submetam às coisas que criam e passem a acreditar que essas coisas os criam e são seu objetivo. A inversão abre espaço para a sacralização do inumano, da vazia mercadoria no capitalismo. É importante lembrar que Georg Simmel amplia o espectro da discussão de Marx. Tal procedimento de autonomização das coisas, para Simmel, vai além do capitalismo e da mercadoria. No entanto, lembra Elias, não é suficiente, quanto ao tempo, contrastar um “tempo social” a um “tempo físico”. “Não são o ‘homem e a natureza’, no sentido de dois dados separados, que constituem a representação cardinal exigida para compreendermos o tempo, mas sim os homens no âmago da natureza” (ELIAS, 1998, p.12). A criança É ensinada ao longo de sua trajetória a “lidar com o tempo”. Em lugar de ser instruída acerca das relações complexas entre fragmentos de um fluxo progressivo e contínuo, 114

apreende a partir da relação que é levada a estabelecer com o “tempo”, enquanto símbolo comunicável, representativo de uma instituição social de caráter coercitivo.

A transformação da coerção exercida de fora para dentro pela instituição social do tempo num sistema de autodisciplina que abarque toda a existência do indivíduo ilustra, explicitamente, a maneira como o processo civilizador contribui para formar os habitus sociais que são parte integrante de qualquer estrutura de personalidade (ELIAS, 1998, p. 14). Os próprios instrumentos de medição do tempo, segundo o autor, transmitem mensagens. O relógio é um símbolo que, através do movimento e posição de seus ponteiros ou dos números em seu mostrador, remetem ao símbolo tempo e a todas as articulações de idéias a ele subjacentes. Tal elaboração, de nível alto de síntese, foi sendo paulatina e continuamente construída. No entanto, apesar de sua natureza social, pontua o autor, não podemos esquecer de que o símbolo social “tempo” se assenta também sobre dados e eventos naturais, como o envelhecimento. O símbolo é uma síntese na medida em que representa as sínteses aprendidas ao longo da trajetória de um grupo social. Seu caráter de coercitividade, no entanto, não leva a uma rígida limitação de ações; por outro lado, todo indivíduo só pode operar a partir de um saber previamente adquirido, ainda que ele venha a ser entendido como um gênio criativo, o que confirma que o limite não é absoluto. A discussão sobre o caráter simbólico do humano, a quinta dimensão, tem que necessariamente comportar a compreensão das transformações históricas ou daquilo a que se convencionou denominar, individual ou mesmo coletivamente, criatividade: “A margem de decisão dos homens, sua liberdade, repousa no final das contas em sua possibilidade de controlar, de diversas maneiras, o equilíbrio mais ou menos flexível e, aliás, em perpétua evolução entre as diferentes instâncias de onde provêm as restrições” (ELIAS, 1998, p. 29). A coerção deve ser tomada a partir da relação sempre variável e, por isso, instável em maior ou menor grau entre coerção externa (ou, mais propriamente, coerções) e auto-coerção, a depender da época, do lugar, mas também da camada social. Cada vez mais podemos afirmar também que depende igualmente do indivíduo em questão. A margem de escolha é também conseqüência disso. No entanto, apesar de utilizarmos o termo símbolo, seu caráter histórico-cumulativo aponta sua processualidade e, nesse sentido, sua permanente abertura, sua incompletude. Nos termos do autor, no que se refere ao tempo, trata-se de um símbolo conceitual de uma síntese em vias de constituição (simbolização). Sintetizar significa estabelecer ligações e, nisso, aproximar distantes e distanciar o que parece próximo. De acordo com Simmel, só ligamos aquilo que entendemos estar previamente separado. Assim, ligar é, simultaneamente, separar e, ambos, remetem a selecionar. É um modo humano de compreensão e, por isso, a quinta dimensão 115

(simbólica), para Elias, acaba por englobar as demais: a física, biológica, social e de personalidade. Não se trata, contudo, de uma apreensão individual a que são acrescentadas outras em igual condição. Tal processo não é social apenas por ser uma herança deixada aos descendentes; é social também no sentido de que envolve interações entre contemporâneos que se alimentam e se restringem num jogo contínuo de cooperações e tensões e acabam, em tal dinâmica, por definir um curso de acontecimentos dentre vários possíveis. Um exemplo é a própria separação estabelecida entre natureza e cultura ou mesmo, de modo mais geral, a racionalização ocidental do mundo em esferas, conforme nos indica Weber. É caso exemplar o percurso aqui seguido de definição do artístico. Tal busca só pode ser efetivada de modo restrito a certas épocas e lugares do mundo, e, ainda assim, a concepção do artístico variou consideravelmente ao longo da história. Em vista disso, alguns historiadores da arte, como Hans Belting (2006), apontam a impropriedade da universalização da noção de arte. Ao mesmo tempo, não se pode afirmar que tal percurso, isto é, que a racionalização do mundo era inevitável. E, por isso, certas categorias sociais, como arte, podem ser apenas limitadamente utilizadas como categorias sociológicas, a fim de evitar as armadilhas da língua e, mais precisamente, de um senso de naturalidade quanto a ela.

As pistas deixadas por Elias permitem avançar a discussão no sentido de compreender as produções simbólicas a que convencionamos denominar artísticas. Para tanto, por conta dos interesses deste trabalho, o exemplo primordial será o desenho/pintura. Assim, ao seguir a linha de raciocínio do autor, é possível afirmar que o desenho, em geral, é uma forma de simbolização, como a fala, mas que não desfrutou, no percurso da história dos homens, o mesmo relevo que ela. Isto os teria condicionado, a fala e o desenho, a uma trajetória específica, mas não a única possível. Para o homem das cavernas, devido a seu grau relativamente pequeno de distanciamento, pintar um animal era “tê-lo” passivo à sua frente. Era um mecanismo de intervenção no mundo – mágico, como será denominado tempos após. No mundo medieval, era um modo de suscitar certas experiências religiosas. O distanciamento progressivo permitiu a percepção da relação estabelecida e participação, no caso, do desenhista/pintor como uma espécie de sujeito que apreende uma das possibilidades do objeto, às vezes compreendida como sua verdade (essência), criando um desenho interior (Idéia) a ser exteriorizado. Se, no Pré-Renascimento, entre a subjetividade do artista e a realidade do objeto artístico se interpunham ainda leis transcendentes – como a obediência à matemática e aos desejos da opinião pública –; no Renascimento, o conceito de Idéia, no sentido artístico, limitará, segundo Panofsky (2000), a validade de tais leis. O espírito do 116

artista transforma a realidade em Idéia, como uma forma de representação superior à natureza – por corrigir-lhe os defeitos – e independente dela. E deve fazê-lo em conformidade com sua intuição, já que se trata de um dom concedido por Deus, o Grande Artista, segundo a leitura neoplatônica. Está aberto o caminho para a concepção de “gênio”, a ser definitivamente forjada quando da percepção da suposta contradição entre genialidade e submissão a regras, posta em pauta, fundamentalmente, no século XVII. Em meados deste citado século, o Neoclassicismo, em sua oposição ao Maneirismo e ao Naturalismo, defenderá a conciliação entre gênio e regras, ou liberdade e disciplina, em nome das obras artísticas como “realidades enobrecidas”.

A Idade Média costumava comparar Deus com o artista a fim de fazer compreender a própria natureza da criação divina. Os tempos modernos, em contrapartida, comparam o artista a Deus a fim de “heroificar” a criação artística. (PANOFSKY, 2000, p. 122). A arte seria uma forma de envolvimento com o mundo, visto que significa estar afetado por este mundo e ser impulsionado por tal afetividade; porém, um tipo de envolvimento conquistado apenas após relativo distanciamento. Esse distanciamento pode ser compreendido como a curiosidade e inquietação que acabam por desnaturalizar as interações, os homens e as coisas, e por provocar o estranhamento quanto ao mundo, como apontou Baudelaire ao relacionar o artista à criança, no trecho anteriormente transcrito. Representa uma produção de símbolos em que o envolvimento cedeu espaço a uma maior alienação, o que permitiu a geração de uma nova ordem de envolvimento, afinal tais oscilações permanecem como história impedindo um efetivo retorno ao estado original, ainda que a separação aqui operada desse processo em fases destacáveis seja apenas de caráter analítico. A produção de símbolos pela ciência, por sua vez, remonta à necessidade de progressivo afastamento, isto é, alienação. O distanciamento como mecanismo de controle teria possibilitado, portanto, o desenvolvimento da ciência e da arte, ambas fantasia e razão, mas com distintos acentos e formas de expressão. Como a história humana se manteve atada à busca preferencial pelo distanciamento e constituição da língua como racionalidade e controle, recurso por excelência de socialização e coordenação no mundo, o desenvolvimento lingüístico e sua transformação em referência enquanto promotor de aprendizado e inclusão social, como antes realçado, pode ter levado a disposição humana para a elaboração de outras formas simbólicas, como a pintura, mas também as diferentes produções marcadas pelo acento na fantasia (como as formas poéticas), a um papel um tanto marginal, e esta marginalidade, por sua vez, pode ter sido crucial para a liberdade conferida aos produtores dessas formas simbólicas (na busca de materiais, exercício de formatos e modos de expressão) 117

e as variadas relações por eles estabelecidas ao longo do tempo com o conhecimento formalizado (acadêmico) e com a noção de disciplina – o Maneirismo, Naturalismo e Neoclassicismo citados nos servem de exemplo. Como já evidenciado aqui, a relação entre a liberdade do artista e seu condicionamento a regras servirá de mote a intensos debates para além do século XVII.

A disposição para a produção de símbolos, como o desenho, seria “ativado”, posto que latente, apenas por alguns e em algumas condições especiais, o que lhe teria possibilitado, por seu caráter socialmente construído de relativa excepcionalidade, ser interpretado como dom, em articulação a uma influência religiosa/filosófica (as divindades, em Platão, presenteiam a virtude aos homens; posteriormente, afirmar-se-á o mesmo quanto aos talentos e às vocações) e a um crescente processo de individuação que abre espaço à consideração do sujeito-que-faz, concebido como autônomo e celebrado como gênio. Esquece-se da imersão de tais indivíduos em fluxos sociais que os dirigem, apesar da constante reconfiguração (re- simbolização) do aprendido, em avanços e retrocessos, fazendo de tais obras “coisas coletivas”, posto que símbolos de símbolos, sínteses de sínteses.

Indivíduo, liberdade e criatividade Não há como negar o imbricamento entre individuação e o desenvolvimento, e crescente prestígio, da noção de criatividade, a ser associada, em especial, ao fazer artístico. No que se refere à valorização da idéia de indivíduo, ainda que considere a impossibilidade de pinçar um ponto na história como início de tal processo, Simmel (2002b) destaca três importantes momentos: o primeiro, à época do Renascimento italiano, cuja individuação estava ligada a um desejo de distinção, de ser um si-próprio que esbarra nos obstáculos à condução de uma vida efetivamente livre, culminando em nova explosão dos anseios de individualidade no século XVIII; o segundo momento teria se dado, portanto, no século XVIII, quando, ao se perceber os constrangimentos que dificultavam a possibilidade de singularidade, a noção de individualidade é atada à de liberdade. Tal liberdade do indivíduo estava, pois, na contrapartida do antinatural, ou seja, do socialmente construído. Esta concepção obteve defesa na economia, na política e na filosofia. Contudo, se os grilhões da liberdade foram artificialmente forjados, a conseqüência de sua quebra, acreditava-se, seria a eliminação, ainda em conformidade com a interpretação simmeliana, das desigualdades assim criadas. Recair-se-ia numa espécie de igualdade natural dos indivíduos, que tomaria, portanto, o homem singular como apenas caso do genérico, alvo, então, das maiores considerações. A 118

contradição aí posta é apenas parcialmente sanada quando, ao par liberdade e igualdade, é acrescido o fator fraternidade, que ajudaria a dirimir as inevitáveis desigualdades da realidade na recorrência a valores de caráter humanitário. Entretanto, em termos mais candentes, a contradição entre os termos destacados vem à tona apenas ao decorrer do século XIX, terceiro momento apontado por Simmel, com a percepção da precariedade das igualdades. As desigualdades passam a estar situadas num “eu” interior intransferível.

As contribuições francesa e inglesa, por um lado – no que toca à concepção de que as personalidades são livres e iguais – e a germânica, por outro – referida à unicidade –, se fundem e ganham corpo nas idéias da livre competência e na divisão do trabalho, conforme Simmel. No entanto, tal expressão do ímpeto de liberdade não se fez unicamente presente na forma econômica. O mundo burguês industrial erigido a partir dos ideais da Revolução Francesa pôs a nu uma faceta cruel das pretensas igualdades: o horror da “massa” em sua indiferencialidade medíocre. O olhar dos inconformados se volta, assim, para a suposta beleza e encantamento do perdido mundo aristocrático, entendido como seu antípoda. Dois modos de vida se erguem e tensionam: o mundo racional burguês e o mundo imaginativo-emocional dos remanescentes aristocráticos, a saber, os artistas e intelectuais, ambos os segmentos vinculados a ocupações não confundidas com o mundo do trabalho ordinário. Mais propriamente, tratava-se de ocupações que começavam a ser ameaçadas pela profissionalização, como acentuou Tolstoi. Essa pressão acaba por dirigir a reafirmação do “desinteresse” por parte daqueles que percebiam e se opunham às transformações em curso. Em sua rejeição ao ethos burguês, esses filiados ao espírito romântico acabam por se colocar como um dos mais elevados ideais de sua época por sua fina ligação ao ideal da liberdade, conquistada pelas diferenças individuais, que se presentificam na expressão da criatividade. Isso, inclusive, se faz sentir para além do romantismo. Conforma-se, nessa articulação, o enlace entre indivíduo-liberdade-criatividade-afetividade-arte. O debate, portanto, se prolonga na tensão entre o desejo de liberdade, alcançável pelo indivíduo, e as limitações a essa liberdade, impostas pela necessidade de convívio social e a racionalidade que tal existência social implica. Em outros termos, a valorização do indivíduo e da liberdade que, no século XVIII, advêm, por excelência, das lutas burguesas pela transformação da ordem social, é usada como mote para questionamento do próprio mundo burguês. À concepção de que a perfeição divina teria instaurado um mundo marcado pela estabilidade, isto é, por uma “ordem” a ser cultivada e reproduzida, inclusive em termos de uma estrutura sócio-econômica que privilegia o sentido de linhagem e herança, contrapõe-se a pressão por mudanças 119

advindas das novas camadas abastadas da sociedade. Pautada em uma nova forma de riqueza, o dinheiro, segmentos burgueses intentam mais amplas formas de reconhecimento e começam a rivalizar com o poder e prestígio da aristocracia. As mudanças em curso exigem uma reelaboração nas concepções vigentes de ordem. À ordem como continuidade, defende-se uma ordem marcada por transformações internas rumo a um aperfeiçoamento. Em conformidade, inclusive, com certas idéias protestantes, seria tarefa dos homens construir o paraíso na terra mediante seu trabalho. Isso significa ser um desejo de Deus a mudança ordeira e artificial (feita pelos homens) do mundo social. Trata-se de uma visão da sociedade como história e que acaba por levar à obsessão da elaboração narrativa de tudo quanto é humano. O enquadramento histórico permite conjugar e, deste modo, harmonizar os eventos singulares e se torna a principal referência de avaliação, inclusive da arte, que começa a se afastar do ideal da imitatio. Se Deus criou o mundo como totalidade única, este possuiria, então, uma única história. Do mesmo modo, ao ressaltar as transformações, destacam-se as diferenças. Não se trata de desconsiderar semelhanças, ou as ações conjuntas, mas mais propriamente de dar conta delas mesmo considerando as diferenças e a ação individual. Deus avalia as trajetórias de indivíduos singulares. Na leitura filosófica do liberalismo, ainda que os homens sejam iguais enquanto homens e devam ser tratados como iguais perante a lei, a especificidade de seu sucesso ou fracasso só pode compreendido à luz das diferenças individuais. Cada indivíduo possui habilidades, competências singulares que devem ser cultivadas para que alcance o almejado sucesso. A liberdade está na possibilidade e estímulo a tal cultivo em nome, inclusive, do progresso (coletividade). No entanto, ao invés de sugerir o mundo como caos, já que se funda em uma série de ações particulares, a “ordem burguesa” resvala para a afirmação de uma racionalidade da história. As ações humanas, guiadas pela razão, levariam à construção de um mundo racional e, por isso, superior. Seria tal racionalidade a nascente e, ao mesmo tempo, o deságüe da liberdade. No entanto, como afirmado, o “mundo burguês” que se instaura com as guerras e com a industrialização parece frustrar as expectativas do progresso. A liberdade é buscada em outro “lugar”. Se não está na razão e no trabalho, estaria ela, talvez, na emoção e na arte, numa época em que a religião está sob suspeita. A articulação entre arte e liberdade vinha sendo forjada a partir da tentativa de compreensão, como já discutido, da criação divina do mundo humano. Contudo, não há mais como comportar a noção de que o artista deve imitar. Como nos lembra George Steiner (2003), nossas definições do divino, de modo tautológico, estão associadas à criatividade. Teríamos dificuldade em aceitar como válida a assertiva de que Deus teria “inventado” o mundo. Se o homem se assemelha a Deus em sua criatividade, e se à criatividade está atada a 120

possibilidade, também divina do não-fazer, é a ela que se liga a liberdade. Steiner, por exemplo, discute a questão a partir dos esboços de obra abandonados pelos artistas. Ele questiona os possíveis ali postos e a frustração do artista ao perceber em sua obra algo menor em relação àquilo que ele poderia ter desejado. Ao mesmo tempo, aponta os retoques nas obras como mudanças de curso ao longo do fazer. Para ele, não se trata apenas da eventualidade de que uma obra poderia não ter existido, mas também de que ela acaba por ser uma degradação de uma potencialidade maior. De fato, Steiner parece pouco questionar se há, de fato e sempre, um projeto prévio de concepção artística. De qualquer modo, ele nos provoca a perceber as infinitas possibilidades de composição que podem simplesmente não ter chegado a existir. Do mesmo modo, Deus poderia nunca ter criado o mundo e, como é insinuado na passagem bíblica acerca do dilúvio ou das previsões do apocalipse, pode a qualquer momento se desfazer dele.

É unicamente nessa absoluta gratuidade em relação ao ser – o ser sempre é uma dádiva – que o artista, poeta ou compositor podem ser considerados “divinos” e que sua prática pode ser considerada análoga à do Criador. (...) A “criação”, por isso, oferece-se por definição como aquilo que afirma a liberdade e que inclui e exprime em sua encarnação a presença de tudo que esteja ausente de sua essência ou de tudo que poderia ter assumido uma forma radicalmente diversa. (STEINER, 2003, p. 142/143). A oposição ao mundo racional burguês e o desencanto pela “quebra da promessa de liberdade pela razão” contribuíram para consolidar ocidentalmente a autonomização do cultural como um âmbito de sentido próprio, destacado da religião, a ponto de Tolstoi se orgulhar e temer sua condição de rival de Deus, e a sacralização do artista e de suas obras. Um acento maior é conferido à idéia de que a criatividade é livre, e de que, portanto, o verdadeiro artista deve ser livre. Se a faculdade da criatividade é exercida a partir da liberdade, o ímpeto de pertencer a seu universo, como produtor ou público, é incrementado a ponto de se criar um mercado de produção/consumo de obras culturais, nem sempre reconhecidas como artísticas devido à sua vinculação econômica – este foi o caso da moda. Se a liberdade criativa é divina, a associação ao mercado seria diabólica. “Os instrumentos poéticos visando ao simples lucro imediato, a sistemática vulgarização do sentimento e a realização de planos políticos infames são rigorosamente diabólicos. É um abuso cuja violência, além disso, aprofunda a separação entre o criador e o criado” (STEINER, 2003, p. 43). Mas, ao mesmo tempo, a depender da compreensão que se tenha da ordem, as mudanças sociais, pela instabilidade de perspectivas que gera, poderia ser igualmente entendida como a obra do Diabo no mundo. Lembre-se que, conforme expresso por Baudelaire, a percepção de uma vocação artística é qualificada como início da danação. A arte, ao ser separada da 121

religião, é concebida como rival desta e se constitui como afronta. A insolência do artista em se aproximar de Deus pela criatividade poderia ser tomada, conforme expresso pelo terror de Tolstoi, como heresia. Assim, a própria criatividade poderia ser considerada como manifestação do diabólico no sentido de subverter a ordem divinamente instituída em nome não apenas da desordem, mas também da inquietante imprevisibilidade. De qualquer modo, segundo algumas interpretações teológicas, o Diabo estaria a serviço de Deus, para educar, testar e punir os homens.

Assim, retomando as conexões históricas, a relação entre arte e religião já vinha sendo tecida desde o Medievo, o que permite a consolidação da compreensão da genialidade artística como dom, no mesmo sentido que o chamado para ingresso na vida religiosa – definição do latim tradicional para vocatio, vocábulo a ser re-semantizado por Lutero em sentido secular, equivalendo a um campo no qual trabalhar, independente de qual seja, por ordem de Deus (LUTERO, 2005; WEBER, 1992). O dom seria o presente; a vocação seria a obrigação (tarefa a cumprir) erigida a partir do presente, ou seja, da habilidade concedida por Deus. Assim, dom e vocação estão ligados.

Dom, vocatio e arte Weber associa a idéia de dom e vocação pessoal à sua noção de carisma. Segundo ele (2004, p. 280), o carisma é um “dom pura e simplesmente vinculado ao objeto ou à pessoa que por natureza o possui e que por nada pode ser adquirido”, mas, conforme ele próprio indica, para alguns, o carisma pode e deve ser despertado e desenvolvido mediante ascese. A discussão weberiana sobre o carisma acontece no interior de seu debate acerca da esfera religiosa. O autor distingue, então, a partir desta noção, os seguintes tipos-ideais: o sacerdote, o profeta e o mago. O sacerdote, mesmo dotado de certo carisma, teria em seu cargo a legitimidade; já o profeta e o mago atuariam em virtude de seu dom pessoal. O profeta e o mago, por sua vez, distinguir-se-iam pelo primeiro ter em sua missão uma doutrina, e não uma magia. Ambos, contudo, têm seu sucesso condicionado à ideal-típica rejeição econômica, o que os aproxima do ideal artístico do desinteresse25. O apelo emocional, segundo Weber, seria outra característica a distanciar esses ideal-tipos quanto a indivíduos como os mestres, a exemplo dos fundadores de grandes escolas filosóficas. Estes, apesar de conquistarem discípulos, não ultrapassam a condição de educadores que ensinam o seu modo de percepção

25 No entanto, é sempre importante lembrar que se trata de tipos puros, muitas vezes encontrados em diferentes possibilidades de associação na realidade. Do mesmo modo, a rejeição econômica apontada é ideal-típica. 122

do mundo. Já os profetas agiriam por revelação, o que poderíamos tomar em nossas específicas associações, como uma espécie de inspiração. Trata-se, a revelação profética, ainda em conformidade com Weber, de

uma visão homogênea da vida, considerando-se esta conscientemente de um ponto de vista que lhe atribui um sentido homogêneo. A vida e o mundo, os acontecimentos sociais e os cósmicos, têm para o profeta determinado ‘sentido’, sistematicamente homogêneo, e o comportamento dos homens, para lhes trazer salvação, tem de se orientar por ele e, sobre esta base, assumir uma forma coerente e plena de significado. (...) Significa sempre, só que em graus diversos e com êxito diferente, uma tentativa de sistematização de todas as manifestações da vida, portanto, de coordenação do comportamento prático num modo de viver, qualquer que seja a forma que este adote em cada caso concreto. (2004 , p. 310). O mago, por seu turno, é por Weber definido como a

pessoa carismaticamente qualificada de modo permanente, em oposição à pessoa comum, o ‘leigo’, no sentido mágico do conceito. Requisitou para si particularmente o estado que especificamente representa ou transmite o carisma, o êxtase, como objeto de um empreendimento. Ao leigo, o êxtase só é acessível como fenômeno ocasional. (2004, p. 280). A magia passa da atuação direta sobre o mundo ao simbolismo, como mecanismo de controle sobre o “incontrolável”. Se o mundo das almas, deuses e demônios é acessível simbolicamente, o modo de neles intervir se daria também simbolicamente, o que influencia o caráter dos procedimentos mágicos. Ou seja, se as coisas do mundo e seus processos são símbolos de um mundo extraterreno, deve-se influir não nestes, explica Weber, mas no poder que neles se manifesta, a partir de mecanismos que “falem” a esses deuses, demônios e almas; através, portanto, de algo que tenha significado – outros símbolos pela magia tornados sagrados. Aquele que possui o carisma adequado faz valer a sua vontade sobre a dos deuses (coação mágica). Tais procedimentos, no entanto, verificada a sua eficácia, tendem a se racionalizar, e a coação mágica tende, igualmente, a dar lugar a uma espécie de “serviço divino”, numa relação mais cordial, por estável, com os deuses e correlatos, à base de súplicas e orações, mas cuja origem seria, como explicitado, mágica. Os magos transmutam-se, então, em sacerdotes, funcionários profissionais, preparados mediante uma doutrina solidificada e, pois, regular para ingresso e trabalho na corporação religiosa. Têm, portanto, uma formação e disciplina qualificáveis como racionais. A estabilidade da corporação religiosa permite aos seus membros uma maior autonomia em relação a uma idéia de dom e vocação; o mesmo não ocorre quanto aos profetas e magos, cuja atuação depende inextricavelmente de sua atuação pessoal, pautada em seu dom, que deve ser reconhecido enquanto tal pelos outros. A comprovação de seus poderes/habilidade se daria por milagres (no caso dos magos) e 123

revelação pessoal (quanto aos profetas). Não se deve, contudo, desprezar a possibilidade antes anunciada do ensino da arte mágica como mecanismo para despertar e adestrar o poder individual.

Compreender o carisma como vocação significa, em Weber, afirmar seu caráter de missão, de tarefa íntima. Assim sendo, sua legitimidade existe apenas na medida em que encontra reconhecimento. Sendo uma “tarefa íntima”, por sua vez, o carisma se transforma numa espécie de impulso alheio à vontade de seu portador e, portanto, estranho a qualquer interesse econômico mais específico. Por isso consolida-se como atitude do portador de carisma o desprezo aos ganhos econômicos por esta via, ao menos em termos ideais. Tal característica acaba por se tornar uma condição, inclusive, para seu reconhecimento. Como vocação, por fim, o carisma só pode ser despertado e provado, nunca aprendido. Neste sentido, apóia-se no “irracional” e, como tal, por-se-ia como oposto a regularidades e sistematicidade, inclusive a pecuniária (GERTH, MILLS, 2002). Em termos mais precisos, o carisma estaria, à primeira vista, associado à liberdade. Na introdução à obra weberiana Ensaios de sociologia, Hans Gerth e Wright Mills afirmam que o conceito de carisma, tal como construído por Weber, seria um modo de destacar que os homens não podem ser vistos apenas como produtos sociais. No entanto, Weber acentua, de acordo com sua argumentação, o caráter, sim, limitado de investigações empíricas fundadas a partir das noções de liberdade e livre arbítrio, quando tornadas sinônimos das idéias de “ação irracional, individual e não- previsível”. Acentua Weber ao debater com Knies:

Não se percebe que a oposição é outra, ou seja, a oposição entre a ação humana que persegue um fim, por um lado, e as condições para esta ação, isto é, os condicionamentos dados pela natureza e pelas respectivas constelações históricas e políticas. (1999, p. 33). Como possibilidade de escolha, a liberdade é, conforme sugere Weber, diretamente proporcional à calculabilidade. Longe, portanto, de a liberdade/criatividade ser “a-social”, elas são valor atribuído a certas mudanças na realidade empírica.

É, portanto, evidente que não há uma relação necessária entre o sentido da ação humana, que é “criativa”, e o resultado que se atribui por imputação causal à criatividade humana. Uma ação que se apresenta para nós sem sentido e valor pode, percebendo os seus efeitos, ser “criativa”, pela concatenação de destinos históricos, e, por outro lado, ações humanas que pintamos (apresentamos) com as melhores cores possíveis devido aos nossos valores, e a sua respectiva imputação causal, podem desaparecer na imensidão cinza do que, historicamente falando, é indiferente e sem significado. Também podemos imaginar que algo que aconteceu com certa regularidade chegue a modificar pela concatenação dos destinos, profundamente o sentido da história. (1999, p. 37/38). 124

Neste último ponto, incidiria o interesse das chamadas ciências culturais: nestas, diferentemente das chamadas disciplinas científicas, haveria a particularidade do interesse nas “sínteses criativas”, expressão de Wundt, tanto nas conexões individuais como nas culturais. Trata-se, como afirmado de antemão, de um significado atribuído a determinadas mudanças qualitativas na realidade empírica.

Tais considerações acerca do carisma nos ajudam a compreender o papel e lugar do artista, em especial no chamado mundo burguês do século XIX. Tendo sua habilidade reconhecida como dom, ou seja, como uma vocação pessoal, não passível a ensinamentos e sim, ao máximo, à burilação para o desenvolvimento de suas potencialidades, o artista seria o responsável por um tipo de atividade simbólica que, diferentemente da religião, representa a salvação no mundo por fuga às rotinas institucionalizadas e às pressões do racionalismo pela produção de objetos mágicos, posto que sagrados (WEBER, 2002). Dotado de carisma, qualidade de pessoa extraordinária que o distingue dos homens comuns, o artista se aproxima do profeta (pelo caráter de revelação que assumem as suas inspirações e de doutrina, no que toca à possibilidade de suas inovações formarem discípulos) e do mago (por operar em rituais na transmutação do sem valor em coisa sagrada), e assume uma posição de superioridade e, igualmente, de sacralidade que confere a ele, especificamente, e à arte em geral, um status cada vez maior no mundo do igualitarismo burguês. Representa, pois, de acordo com as interpretações da época, o imbricamento entre liberdade (pela associação ao emocional- imaginativo) e diferença (por originalidade) – isto é, dos anseios de toda uma época. O reconhecimento da autoridade carismática do artista põe a arte como concorrente direto da religião no chamado mundo moderno.

No entanto, ao discutir o trabalho científico como vocação, à luz da secularização operada por Lutero, Weber intenta contestar uma idéia vigente de que não haveria carisma em outras funções, ao tomar a frieza da ciência e relacioná-la à idéia de imaginação. O fazer científico é composto pela fundamental associação entre “entusiasmo e trabalho”, que, juntos, criam a idéia. Por outro lado, afirma o autor,

é um erro grave acreditar que isto só ocorre na ciência e que a situação num escritório comercial é diferente de um laboratório, por exemplo. Um comerciante ou um grande industrial sem “imaginação comercial”, ou seja, sem idéias ou sem intuições de gênio, continuará sendo durante toda a vida um homem que faria melhor se tivesse continuado como funcionário ou técnico. Jamais será realmente criador, em organização. A inspiração no campo da ciência não desempenha um papel maior, como um conceito acadêmico parece supor, do que no campo dos problemas da vida prática por um empresário moderno. Por outro lado, e isso também é, com freqüência, 125

mal compreendido, a inspiração não tem um papel menor na ciência do que na arte. (...) [A imaginação matemática] é orientada de modo muito diferente, em significado e resultado, da imaginação de um artista, e difere basicamente em qualidade. Mas os processos psicológicos não diferem. São um frenesi (no sentido de “µαυια” de Platão) e ‘inspiração’. (WEBER, 2002, p. 95). A inspiração, por sua vez, depende de dons. Esse ímpeto leva o cientista, como ao artista, à dedicação ao trabalho, só que a ciência, segundo Weber, estaria presa ao progresso, o que não ocorre na arte por nela não caber a idéia de superação, afinal cada produção artística teria fim em si própria. A vocação da ciência, por sua tarefa ser de esclarecimento, nos leva a considerar que a da arte poderia ser compreendida como a de “salvação no mundo” ou, simplesmente, e aqui tentando ir além das insinuações do autor, poderíamos compreender a vocação da arte como de interpretação mimética do mundo, aproximando-se da ciência em sua função de esclarecimento e dela se distanciando pelo seu modo peculiar, não conclusivo (pela abertura oferecida por seu modo figurativo de apresentação), de “falar” sobre o mundo – convocando aquele que com ela toma contato a participar do processo interpretativo. Por sua vez, a vocação do artista seria produzir tais símbolos definidos como artísticos. Mas o caráter mágico/sagrado de tais símbolos remonta não apenas à transformação do mundo por eles operada, pois nisso não se distinguem de outras formas simbólicas, e sim à sua capacidade (mágica) de suscitar emoções. Ao mesmo tempo, com a valorização do indivíduo, os produtos artísticos, antes realizados também em conjunto, passam a ser individualizados, atomizados, enquanto o trabalho científico é percebido como cumulativo, e, portanto, cooperativo. De qualquer modo, o artista só seria artista quando é socialmente reconhecido como tal.

Mimese e reconhecimento Luiz Costa Lima é um dos autores que mais recentemente buscaram elaborar uma revisão da noção de mimese. O objetivo aqui não é refazer a revisão, mas articular alguns pontos da discussão sobre mimese e sobre reconhecimento que permitam compreender a moda em suas aproximações e distanciamentos com a arte. Nesse sentido, Costa Lima traz interessante contribuição ao tomar a mimese a partir da questão da “diferença”, em lugar da semelhança, convencionalmente ressaltada. Como Paul Ricoeur (1994), Costa Lima discorda que mimese seja imitação.

A tradução, estabelecida desde o Renascimento, da voz mimesis como imitatio, muito mais que um erro de tradução, implicava uma teoria do conhecimento bem diversa da aristotélica. Ou, preferindo falar, com 126

Panofsky, em mistranslation, a justificamos pela necessidade de readaptar o conceito a um quadro cultural radicalmente diverso (LIMA, 1995, p. 101). A noção de mimese foi, portanto, lida no Renascimento de modo a fazer ressaltar a busca pela semelhança, em conformidade com a idéia de que se deve, acima de tudo, imitar o modo de vida de Cristo, a divindade que se fez homem para nos libertar e servir de exemplo a nossas ações. Como categoria social, ela não pode ser retirada de seus contextos de uso. É desse modo que a estética barroca enfatizará a dificuldade e mesmo impossibilidade de tal imitação. A obra humana é marcada por essa busca, que acaba sempre desviada de seu propósito pela curva da artificialidade que compõe o ornato. Já os primeiros românticos repudiarão tanto a imitação como o ornato. É contra a arbitrariedade de regras exteriores que os românticos erigem o gênio como critério para a arte. Tal provocação só pode ocorrer a partir do momento em que se discute o status do indivíduo no que concerne ao “processo criativo”. Os românticos acabam por ressaltar, junto à valorização do indivíduo, a busca pela diferença, e nisso rejeitam a noção de mimese. Assim, o desaparecimento da mimese seria correlato da exaltação do artista como criador. Contudo, em lugar de invalidar a noção, Costa Lima propõe sua devida atualização, tendo em vista que, mesmo em Aristóteles, a mimese não pode ser confundida com imitação. Para o autor, a fascinação ocasionada pela mimese está nas promessas que ela não consegue cumprir: “ela diz o que não sabe plenamente”. Ela é inesgotável em termos de compreensão. “Não há discordância em se declarar que a mimesis se põe em ação movida por um desejo de semelhança. E não será preciso muita perspicácia para se entender que entre essa situação inicial e o resultado final a distância é (felizmente) imensa” (LIMA, 1995, p. 257).

Do mesmo modo, Paul Ricoeur enfatiza a inovação ao discutir a relação entre tempo e narrativa. Segundo ele, a atividade mimética seria a atividade de síntese que refigura a experiência por aproximar termos/coisas antes afastados no espaço lógico. É o que Ricoeur denomina “síntese do heterogêneo” (1994). A construção de uma narrativa implica articular, em um modelo ou estrutura comum, eventos entendidos como singulares. É essa intriga que deve ser verossímil por sua generalidade. O caráter de inovação aí presente se manifesta nas aproximações efetivadas entre aquilo que inicialmente comparece como discordante, ou seja, os eventos particulares. A fala de Baudelaire é, mais uma vez, reveladora:

O grande mérito de Goya consiste em criar a monstruosa verossimilhança. Seus monstros nasceram viáveis, harmônicos. Ninguém ousou mais do que ele no sentido do absurdo possível, todas essas contorções, esses rostos bestiais, essas caretas diabólicas estão penetradas de humanidade. Mesmo do ponto de vista particular da história natural, seria difícil condená-los de tanto que há analogia e harmonia em todas as partes de seu ser; numa palavra, a 127

linha de sutura, o ponto de junção entre o real e o fantástico é impossível de determinar; é uma fronteira vaga que a análise mais sutil não poderia traçar de tanto que a arte é simultaneamente transcendente e natural. (BAUDELAIRE, 2008, p. 67). Para Ricoeur, em outros termos, a “imaginação produtora” se refere, antes de tudo, às sínteses. Seria, portanto, a atividade ou capacidade de síntese que define o caráter criativo dos homens. Ao mesmo tempo, podemos relembrar que foi a capacidade de síntese, ou seja, de constituição de símbolos, aquela apontada como definidora do próprio caráter humano em geral. A narrativa é, para Ricoeur, um modo de concordância do discordante, do mesmo modo que a metáfora: esta, como uma nova pertinência na predicação; aquela, como “nova congruência no agenciamento dos incidentes” (p. 10). As narrativas, como exemplo de mimese, encerram a singularidade, pela articulação que promovem entre o discordante, ao mesmo tempo em que estão marcadas pela generalidade da intriga. A familiaridade presente é, ao mesmo tempo, rompida por seu questionamento, pois, afinal, trata-se de um “outro”. Isto é, conforme Ricoeur, o estudo só está completo se conseguirmos reincorporar a narrativa à experiência como um todo, desde a pré-compreensão, passando pela constituição da obra, até sua recepção.

É a tarefa da hermenêutica reconstruir o conjunto das operações pelas quais uma obra eleva-se do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dado por um ator, a um leitor que a recebe e assim muda seu agir. Para uma semiótica, o único conceito operatório permanece, o do texto literário. Uma hermenêutica, em compensação, preocupa-se em reconstruir o arco inteiro das operações pelas quais a experiência prática se dá obras, autores e leitores. Ela não se limita a colocar mimese II entre mimese I e mimese III. Ela quer caracterizar mimese II por sua função de mediação. O desafio é pois o processo concreto pelo qual a configuração textual faz a mediação entre a prefiguração do campo prático e sua refiguração pela recepção da obra. Aparecerá corolariamente, no termo da análise, que o leitor é o operador, por excelência que assume, por seu fazer – a ação de ler – a unidade do percurso de mimese I a mimese III através de mimese II. (RICOEUR, 1994, p. 86/87). A mimese narrativa, portanto, teria três sentidos ou momentos articulados, para Ricoeur: 1) o retorno à pré-compreensão que temos da ação; 2) a entrada no reino da ficção, isto é, a criação propriamente dita do mundo como-se; e 3) a configuração nova por meio da ficção da ordem pré-compreendida da ação. A obra apenas ganha sentido quando o leitor, a partir da mimese II, recobra o percurso que leva da mimese I à mimese III. A inteligibilidade de uma obra, portanto, é explicada por ser síntese de um mundo já conhecido por nós, mas que é transformado na obra pela imaginação criadora. Se se trata de um mundo refigurado, mas previamente conhecido, o receptor mantém, desde sempre, um elo com a obra, que precisa apenas ser recobrado no momento da leitura naquilo a que Gadamer denominou fusão 128

de horizontes, o diálogo entre o mundo do leitor e o mundo apresentado pela obra. Horizonte é, tal como definido por Gadamer, “o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante, falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes” (1999, p. 452). Por sua estreita vinculação à situação, cada horizonte total, ou mundo da compreensão, é composto por uma multiplicidade de horizontes particulares, enquanto parte do total que, no caso, é mobilizada na leitura. A seleção de certos elementos como relevantes depende da localização espaço-temporal dos envolvidos, isto é, da própria situação a qual se vive em sua especificidade e da “abertura”, por parte do leitor, ao diálogo com a obra. Esta abertura significa a disposição para permitir que o novo surja e seja assimilado em sua riqueza. Um dos méritos de Gadamer é, pois, defender a existência de uma forma legítima de preconceito. A participação das concepções prévias em termos de conhecimento não-temático e temático é inevitável e imprescindível ao processo do conhecer. A ilegitimidade de certas formas de preconceito se relaciona mais ao “fechamento” para o diálogo, isto é, à recusa em aceitar o novo. Ou seja, é por apresentar um mundo que me é familiar que posso compreender uma obra, não apenas narrativa. Por isso, e assim, a obra é, nos termos de Ricoeur, apropriada pelo leitor, ou melhor, pelo receptor em geral de qualquer obra artística, pois é deste modo que permite a aproximação desse receptor (envolvimento) com a possibilidade de mundo através da obra apresentado/atualizado. No entanto, ao mesmo tempo, como destaca Costa Lima, a mimese contribui para o estranhamento pela desfamiliarização ao questionar o familiar, o que é sua vocação crítica. Ou seja, o resultado é sempre a diferença. Só como anomalia, ressalta Costa Lima, a mimese, da qual a arte seria exemplo, produz cópias.

Contudo, na “era da técnica”, volta a ser cabível o questionamento acerca das cópias. Mais que isso, a discussão sobre a técnica põe outra questão em jogo: a época em que produtos ditos artísticos incorporam elementos de multimídia leva a algum redirecionamento ao problema da mimese? George Steiner, em Gramáticas da criação (2003), nos ajuda a discutir a questão ao relacionar os termos criação e invenção em seus diferentes usos ao longo dos tempos. Segundo ele, o termo invenção parecia pressupor tudo o que poderia ser “descoberto”. Posteriormente, passa a ser concebido como uma re-criação de um tema comum a partir do fingimento. Já a noção de criação parece não permitir tal correlação. A ciência inventaria; a arte criaria.

As associações que estabelecemos – talvez subconscientemente – entre a invenção e a forma, de um lado, e a criação e o conteúdo, por outro, são 129

quase instransigíveis. É por isso que costumamos nos admirar tanto com algum novo padrão métrico ou uma nova medida de estrofes, com o uso de novos materiais em arte ou arquitetura ou as “invenções a duas vozes” de Bach para harpa. O artista inventa da mesma forma que o engenheiro ou o designer. A “invenção do conteúdo”, por outro lado, soaria como uma rubrica desconcertante e estranha. O conteúdo, assim, implica um vínculo profundo com a criatividade e com a dinâmica de certos atos geradores. O conteúdo musical das invenções de Bach, resistente a qualquer paráfrase ou representação verbal que não seja metafórica, parece verdadeiramente exigir o conceito específico de uma criatividade em sua mais alta expressão e de uma produção capaz de modelar seu singular formato técnico (que pode perfeitamente ter sido inventado para a ocasião). (STEINER, 2003, p. 123). O próprio Steiner questiona a separação entre forma e conteúdo. Ao assim proceder, reconhece a abolição mesmo da distinção entre invenção e criação. No entanto, ele insiste: sempre consideramos a criação como superior à invenção. A lâmpada poderia ser inventada por outro indivíduo; o mesmo pode ser afirmado quanto a uma tela de Rembrandt? A ciência é cumulativa; poderíamos afirmar o mesmo quanto à arte? Igualmente, uma diferença entre invenção e criação estaria em as soluções criativas serem inferiores ao que poderia ter sido efetivado. Por outro lado, apesar de reconhecer que toda obra é polifônica, como Ricoeur e Costa Lima acabam, por outros termos, por apontar, Steiner considera que compreender a produção de uma obra apenas como atividade combinatória daquilo que é pré- existente aponta apenas para a invenção e não consegue dar conta do problema. Em outros termos, o autor acaba por definir a “crise da arte” como uma espécie de crise do criador, que passa a ser definido como ser coletivo. Além disso, a invenção é “interessada” e “útil”, e as ciências são marcadas pelo anonimato. Há construções coletivas também na arte, relembra. Mas, acima de tudo, pontua que o virtual talvez nos obrigue a repensar o que é criatividade.

Na arquitetura (e na escultura) de hoje e do futuro, as discriminações entre a criatividade humana, a invenção tecnológica e o experimento controlado, como os que são realizados nas ciências, estão sendo dissolvidas. O brilho dessa dissolução sugere enigmas filosóficos do mais alto interesse. A medalha de ouro deveria ir para o construtor ou para o software? E, nesse caso, o que poderia significar autoria? (STEINER, 2003, p. 323/4). O isolamento e a privacidade são cada vez mais difíceis. O mundo das “interfaces” contribui para um novo deslocamento do eixo da criatividade: do anonimato coletivo passou ao personalismo e agora retorna ao coletivo, mas num novo sentido. Não se trata mais de buscar a eternidade a partir das obras e da igualdade com Deus. A própria morte foi rotinizada e, assim, fez com que a imortalidade perdesse o sentido. Como hoje, nos termos do autor, reivindicar a imortalidade seria, no mínimo, embaraçoso. Poderíamos, ultrapassando Steiner, sugerir que nisso consiste a ênfase no efêmero, não apenas na vida, mas também naquilo a que convencionamos denominar arte. Daí a emergência das instalações e 130

performances artísticas, obras desmontáveis ou que se esgotam no momento de sua apresentação, de seu happening, como inaugurado nos anos 1950 por Allan Kaprow. E nisso há um reviravolta fundamental:

A perícia artesanal e a elegância formal do recurso mecânico são elevadas ao mesmo nível – e mesmo acima – do estatuto da arte. A tecnologia passa a ser considerada um ato de poiesis (como nos quadros de Léger). A arte não pode nem mais competir nem muito menos superar a techne do engenheiro: a invenção é identificada como o modo primário da criação no mundo moderno. (STEINER, 2003, p. 348). A arquitetura e o desenho industrial são assinalados pelo autor como exemplos das sinapses entre as artes (em qualquer sentido convencional, assinala Steiner), a álgebra do engenheiro e o virtuosismo do artesão. Não haveria, pois, sentido em manter a separação entre o criado e o inventado. Foram essas transformações que levaram, inclusive, ao questionamento da arte, no sentido de anunciar seu fim. Como afirma Hans Belting (2006), as mudanças no “objeto” levam a uma revisão no discurso. O discurso do “fim da arte” se refere mais ao fim de um determinado discurso que busca enquadrar diferentes obras numa história universal da arte.

A arte está ligada de modo renitente a um artista que se expressa pessoalmente nela e a um observador que se deixa impressionar pessoalmente por ela. Assim, ela é secretamente rival da técnica, cujo sentido precípuo consiste em que ela funciona ao ser usada e cujas informações contudo dizem respeito não a um criador, mas a um usuário. Por isso, desde o início reside na técnica uma indiferença diante de qualquer imagem humana ou imagem do mundo, tal como sempre se refletiram na arte. A técnica, dito de modo extremo, não interpreta o mundo que encontra à sua frente, mas produz um mundo técnico que hoje, sobretudo nas mídias, é muito conseqüentemente um mundo da aparência, no qual qualquer realidade corporal e espacial é suprimida. Ela dramatiza desse modo a crise da individualidade que irrompeu na modernidade desde o esgotamento da cultura burguesa. (BELTING, 2006, p. 19). Ao mesmo tempo, é perceptível o apelo ao retorno para a realidade pessoal e corporal, adverte Belting. Contudo, a sólida e perene obra individual cede espaço aos espetáculos fugazes; a duração é substituída pela impressão. Com a pluralidade das produções, mesmo os intérpretes de arte seriam substituídos pela atual figura do consultor de investimentos, afinal o ponto de referência deixa de ser aquele que faz e sim aquele que adquire. De igual modo, o questionamento da arte acaba por levar à produção de obras que buscam uma definição possível para a arte em tempos de incerteza; é o que ocorre com a “arte conceitual”. Essa crise se rebate, conseqüentemente, na história da arte. Com a consideração da pluralidade das produções, como enquadrá-las numa história universalizante? A “história da arte” deixava em segundo plano as obras não-ocidentais e não-européias. Após a Segunda 131

Guerra Mundial, a pressão por parte de representantes dos Estados Unidos em serem reconhecidos cresce. Posteriormente, o mesmo ocorre na Europa Oriental, cujos artistas começam a encontrar espaço no mercado ocidental. “Cultura e mercado são indiscerníveis nesse processo, tanto que ambos são ilimitadamente assimiláveis e permitem que tudo seja indiscriminadamente válido” (p. 89). A profissionalização da arte faz com que o olhar do público, que passa a ter imensa importância, seja igualmente profissional e exija profissionalização da parte dos “novatos”. Mais uma vez, por conta da pluralidade torna-se difícil manter as fronteiras que distinguiam as obras artísticas de outras que se aproximam delas em características. O reconhecimento a que chegaram a arte e os artistas no século XIX levou a um aumento da pressão por participação e reconhecimento. Ao mesmo tempo, o prestígio do artístico faz com que algumas de suas características exerçam influência sobre outros tipos de produção. É o caso da publicidade, que cada vez mais, conforme Belting, rivaliza com a arte. Se o produto kitsch era uma imitação da arte sem ser arte; hoje, afirma o autor, parece prevalecer o contrário: a arte aparece como imitação do kitsch na busca de se “convencer” de que ainda é arte. As alterações no produto, no entanto, também acarretam mudanças em seu espaço de exposição. Os museus, como templos da arte, foram uma criação burguesa. “Ainda em 1958, Ad Reinhardt fazia uma defesa veemente do museu como ‘oratório’ e não como lugar de diversão. Três anos mais tarde, Claes Oldenburg inverteu o argumento e, no seu Store Manifesto, substituiu o oratório pelo estabelecimento comercial” (BELTING, p. 136). A “crise do museu”, como foi chamada nos anos 70, foi substituída pelo museu que atende os desejos dos organizadores e do público. O museu se adapta ao mundo do mercado e se aproxima das feiras. “Não obstante, a inovação permanece um desejo, que hoje se realiza pela mudança do medium e da técnica” (BELTING, 2006, p. 275).

De profetas e magos, a profissionalização dos artistas significa sua transformação em sacerdotes. Na lógica de concorrência pelo saber legítimo, a sua vulnerabilidade é sentida. Mais do que isso, a valorização do artístico e a distinção que aqueles que se vinculam às artes obtêm através delas, seja na condição de artistas, críticos ou apreciadores/consumidores, acarreta, como já discutido, o aumento do interesse em comercializar tais obras, o que remonta ao desenvolvimento do mercado de arte; em outros termos, sua mercantilização de modo cada vez mais ampliado. Segundo Fredric Jameson, a característica atual é a “transformação do cultural em econômico e do econômico em cultural”. Por isso questiona:

Qual é de fato a justificativa de se distinguir os dois níveis, o do cultural e do econômico, quando nos Estados Unidos de hoje, como vimos, o cultural – a indústria do entretenimento – é, juntamente com os alimentos, um dos 132

nossos mais importantes produtos de exportação, um produto que o governo está preparado para fazer enormes esforços para defender, como se pode verificar nas disputas nas negociações do GATT e do NAFTA? (2001, p. 64). O cultural, conforme Jameson, passou a ser consumido em diferentes momentos da vida cotidiana: “nas compras, nas atividades profissionais, nas várias formas de lazer televisuais, na produção para o mercado e no consumo desses produtos, ou seja, em todos os pormenores do cotidiano” (p. 115). O espaço fechado do estético é aberto e se amplia na mesma ordem de ampliação do econômico. Por isso o autor questiona a manutenção de uma concepção de esferas em separado e advoga a consideração do processo como uma espécie de desdiferenciação entre as esferas. E nisso não apenas se atesta o reinado da mercadoria, mas a substituição do sublime, como busca pelo absoluto através da arte, pelo belo, como fonte de prazer.

Por outro lado, uma vez que a criação artística carece de um modo especialmente envolvido de produção e tem por uma de suas intenções promover envolvimentos inusitados, por parte daqueles que, apenas imersos no mundo, estão abertos ao diálogo com a obra, o seu resultado é emocional. Isso não significa, por sua vez, ser a obra artística fruto apenas do envolvimento. Segundo Hegel (2000), o artista deve se embeber na vida e ficar obsediado pela coisa enquanto não a der expressão; contudo, ainda assim, é, para ele, uma atividade racional. O mesmo pode ser observado em Kant (1980), para quem a arte deve parecer, e apenas parecer, espontânea, quando sua justa-medida, na verdade, é o Juízo reflexionante. O gosto do artista, algo a ser continuamente exercitado e corrigido, disciplina e direciona o gênio, que nada mais é do que a união, em certa proporção, de imaginação e entendimento ou, nos termos de Elias, fantasia e racionalidade. Em Tonio Kröger (2000b) e Morte em Veneza (2000a), Thomas Mann explora com maestria a relação do burguês-artista com o mundo e o processo de criação artística nas figuras de Tonio e Aschenbach, respectivamente. No jogo entre envolvimento e alienação, o artista, ou melhor, o burguês extraviado tornado artista, que é apresentado por Mann, seria o amante da vida que não consegue se coadunar com ela, por isso restringe-se a observá-la de longe, porém meticulosamente, movido pelo desejo de conquistá-la, o que significa pertencer a ela. O artista é, como Tonio, filho de uma mistura entre racionalidade (na figura do europeu pai cônsul) e afetividade (na figura da mãe Consuelo, vinda de um lugar exótico que fica “na parte de baixo do mapa”). Contudo, tal mescla não parece suficiente para indicar o que faz de um artista um gênio reconhecido. Mais do que isso, as obras de T. Mann marcam o momento de transição, em que o questionamento do sentido do artístico ganha espaço e a figura do artista entra em decadência. Tonio e 133

Aschenbach são expressão de um modo de ser e de elaboração do artístico em vias de transformação, por isso a melancolia acaba por ser a tônica das personagens. No jogo capitalista, o belo é ressaltado, acima de tudo, como fonte de prazer. A admiração e proximidade cultivada com as manifestações populares, como visto a partir de Herder, contribuiu para sua valorização como mecanismo de excitação “fácil” dos sentidos e, portanto, de sua liberação. Foi o amálgama entre características populares de produção e as chamadas “artes elevadas” que constituiu a fórmula por excelência através do qual o mercado do simbólico se estabeleceu. Não se trata, portanto, da mera mercantilização das obras, mas de sua transformação para o atendimento a gostos que recobririam maior fatia da população. O resultado observável é a caracterização desta como uma sociedade de consumidores, ao mesmo tempo em que como sociedade do espetáculo. Por outro lado, uma vez que se intenta o atendimento a um possível público consumidor, tais produtos precisam ser racionalmente projetados para alcançar tal fim em curto prazo, sem os desgastes e prejuízos de manter criações pautadas em incertas produções guiadas a apenas por indivíduos singulares e desconhecedores das “leis do mercado”. A produção se torna, também nesse sentido, coletiva, já que a divisão e, pois, especialização de tarefas se torna crucial ao sucesso do negócio ou, ao menos, para diminuir os riscos de fracasso.

De qualquer modo, ainda que se considerem as mudanças que se processaram ao longo do século XX, é perceptível o acento conferido ao papel do “receptor”. A validade da obra ou do evento estaria no reconhecimento “externo” de seu valor. Ser artista significaria a concordância entre a auto-percepção do fazedor e a percepção dos outros sobre ele. Para tanto, esses outros, entendidos como público, especialistas e outros artistas previamente reconhecidos têm que dispor de um esquema comum, ou que se acredite ser comum, para ser confrontado com a auto-percepção inicial. O acesso se dá por meio de traços que o pretenso artista acabaria por expor através de suas obras e de si próprio, mesmo à sua revelia, e que marcariam sua identidade, ao mesmo tempo em que seriam definidores do tipo com que os outros operam nas avaliações do artístico. Quanto maior a quantidade de traços, mais fácil e imediata seria a identificação. No entanto, parece se tratar mais de uma crença em algo homogêneo e geral do que na existência efetiva dessa pauta comum de referência, pois se trata, acima de tudo, de uma negociação de categorias mais do que de um fácil enquadramento a partir de esquemas prévios e acabados. Re-conhecer significa que algo já estava disponível previamente, não é novo. E está disponível na medida em que determinada categoria social foi se constituindo ao longo dos tempos, a partir das interações estabelecidas entre indivíduos 134

específicos em relações não-simétricas. Se assim o é, não se pode, por um lado, acreditar na fixidez da categoria, passível a reformulações constantes, e nem que seu avanço no tempo significa um progresso necessário na categorização (no sentido de que hoje estaria mais próxima à perfeição). O jogo do reconhecimento, portanto, está vinculado a identidades em disputa, inclusive pelo motivo de que esse “fundo comum” são fragmentos de tipos a serem relacionados e que, portanto, não existem de modo idêntico na realidade. Por isso também as categorizações envolvem negociações e disputas. Assim, a categoria artista, com seus traços supostamente identificadores, apesar de não-consensuais, não-fixos e, muitas vezes, “não- reflexivos” assume caráter coercitivo sobre aqueles que desejam o reconhecimento, a identificação como artistas e, pois, a distinção, por distanciamento, de outros “modelos de conduta e estilos de vida”. A pressão por reconhecimento recíproco se acentua com a individuação, isto é, com as transformações nas hierarquias instituídas. Em paralelo a elas, houve igualmente a individuação da reivindicação por reconhecimento. As categorias, portanto, do reconhecimento se individualizam em nome de um estilo de vida que, embora socialmente construído, é concebido como individual. Se antes o pertencimento a determinada camada socioeconômica já implicava uma suposta identidade, o jogo relacional se acentua consideravelmente com a maior mobilidade instaurada no mundo burguês. Símbolos de pertencimento são adquiríveis monetariamente; no entanto, não se limitam a objetos materiais. N’A Distinção, Bourdieu (2007) aponta a importância de considerar as trajetórias dos indivíduos na apreciação da questão. São gostos explicitados, mas igualmente gestos e hábitos que servem de traços identificadores. É importante lembrar, mais uma vez, que re- conhecer significa ligar; e aí ligam-se traços identificadores a uma série possível de tipos socialmente elaborados, e que, como afirmado, se entende como compartilhados, na definição das supostas identidades. O caráter de luta se dá pelo próprio jogo, que envolve interesses, expectativas e avaliações. E, em tais termos, encerra a possibilidade de frustração e equívoco, além das reformulações ou desejo de reformulações; inclusive porque a individuação faz aumentar o conjunto dos tipos possíveis, ao mesmo tempo em que diminui as distâncias entre eles, dificultando ainda mais certos enquadramentos. Não se trata, é importante reafirmar, de uma galeria de tipos prévios, mas de traços que são social e historicamente articulados, ou melhor, fragmentos de tipos que, a despeito de sua imprecisão, são associados e até reformulados a partir dos contatos estabelecidos nas interações sociais.

Se a criatividade e a autoridade carismática dependem de reconhecimento, de juízos de valor que atribuam tais significados a pessoas específicas, somos lançados à 135

complexa questão de quem define o ser carismático, afinal, segundo o próprio Weber, ao considerarmos o crente que busca, por exemplo, o mago, somos forçados a considerar que o reconhecimento é prévio ao encontro. A respeito de tal ponto, Marcel Mauss afirma: “É a opinião que cria o mágico e as influências que ele libera” (2003, p.77). Nesses termos, devemos encontrar as mais precisas respostas aos questionamentos inicialmente postos não na análise de indivíduos reconhecidos como carismáticos, mas em toda a rede de relações que o abarca e ajudou a constituí-lo como tal, nas redes que os legitimam em suas transformações históricas. Pierre Bourdieu foi um dos teóricos que levou adiante tal empreendimento. Explicitamente inspirado em Mauss, Bourdieu questiona: “Quem cria o criador?”. Para este autor, a ideologia do carisma, em seus termos, é um entrave à percepção do caráter relacional das atribuições de valor aos bens culturais ao direcionar os olhares para o específico criador ou ao incitar a resposta de que o comerciante de arte descobre um novo artista por inspiração. Para ele, o valor das obras e a crença neste valor se criariam no campo da produção como sistema de relações e espaço de lutas pelo monopólio do poder de consagração, cuja eficácia e legitimação estaria “na energia acumulada na história de cada campo”. Em outros termos, a sacralidade da cultura seria produzida por uma espécie de “alquimia social” (expressão por ele empregada), na qual colaboram os diversos agentes da produção e da circulação de bens. Ao mesmo tempo, Bourdieu parece ir além da concepção de que o reconhecimento é feito apenas pelos outros. Para ele, o sentido e valor das manifestações simbólicas “dependem tanto daqueles que a percebem quanto daquele que a produz” (2007, p. 65). A assinatura do artista, ou seja, a revelação do vínculo entre objeto e sujeito, a partir da explicitação da identidade do criador como indivíduo singular e especial/sagrado, representa o toque mágico de Midas deixando a sua indelével marca no que toca – no caso aqui estudado, estendendo a sua sacralidade (do artista) aos diferentes objetos (objetos aqui em sentido amplo) que assina. É o que Bourdieu e Delsaut denominam transubstanciação de valor.

(...) É inútil procurar apenas na raridade do objeto simbólico, em sua unicidade, o princípio do valor deste objeto que, fundamentalmente, reside na raridade do produtor. É produzindo a raridade do produtor que o campo de produção simbólico produz a raridade do produto: o poder mágico do criador é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser garantido por sua assinatura (2002, p. 154). Daí os problemas concernentes à sucessão. Criar seria “afirmar a unicidade insubstituível de seu estilo” (BOURDIEU, 2002a, p. 150). No entanto, tratar-se-ia de uma imposição arbitrária de valor que acaba por assumir a aparência de constatação de valor. Se 136

tal jogo, e crença no jogo, é o que ocorre no campo artístico, somos obrigados a nos questionar a respeito de casos específicos como os da arte comercializada.

Como afirmado anteriormente, cresce em prestígio a produção simbólica (como mercadoria) ao decorrer, em especial, do século XIX. Associada aos ideais da liberdade e diferença, atribuídos aos produtores e também aos apreciadores de arte, mesmo em menor monta, o mundo do artístico começa a se ver progressivamente invadido por ímpetos econômicos, denegados por seus principais agentes. Contudo, a comercialização do artístico, do que não tem preço, o ingresso de novos criadores de facções menos providas pecuniariamente e o agigantamento da camada média e suas pressões por participação, aceleram enormemente o processo e as tensões daí decorrentes. Muitos labores em processo de autonomização, em especial ligados aos recentes incrementos tecnológicos (a exemplo da fotografia), têm em seus agentes fervorosos reivindicantes a também reconhecimento como artistas, posição, como amplamente demonstrado, de grande prestígio. Os costureiros têm o mesmo desejo – o que representaria seu esforço em elevar a sua posição social por agregação de valor simbólico a seu trabalho e produtos. Se assim o é no século XIX, ainda que tal intento tivesse se tornado alvo de tamanhas e acaloradas discussões, inclusive na Academia, e tendo os costureiros, a exemplo do próprio Worth, assumido como seu o “estilo de vida do artista”, como compreender as recentes afirmações de que moda é um negócio – mesmo tal afirmação não sendo unânime? A resposta, segundo visto, deve ser buscada não em criadores específicos, e sim no processo de formação e desenvolvimento da moda como uma configuração que articula diferentes indivíduos em relações assimétricas num contexto específico, histórica e, portanto, humanamente gestado.

Arte e moda: a heresia Bourdieu, ao discutir a dinâmica das interações, explicita as condições necessárias para ingresso e aceitação em um posicionamento privilegiado em um campo social, conforme sua nomenclatura. Os já instituídos, ou seja, os indivíduos que conseguiram alçar posicionamentos destacados acabam por funcionar como dispositivos de onde emanam as diretrizes principais para a valoração dos chamados novatos. No caso da moda, como esta opera a partir da idéia de novidade, prossegue o autor, os novatos acabam tendo não apenas a possibilidade como igualmente o dever de apresentar novidades – uma obrigação de vanguarda. Não se pode, entretanto, considerar a possibilidade de tal exigência como um apelo à liberdade. Em primeiro lugar, trata-se, como afirmado, de uma exigência de novidade; 137

em segundo, há um limite, um intervalo de fronteiras nada precisas e nem sempre consensuais, para o aceitável. Deste modo, e por sua relação com os ganhos capitalistas, o novo só pode se dar a partir da articulação necessária com o previamente aceito e esperado, em especial pelos consumidores, o que nos ajuda a compreender a sempre vigente tendência ao retrô. Assumindo e estendendo algumas noções de Bakhtin, toda produção simbólica é dialógica e polifônica. Isto é, o diálogo – de poder – é sempre estabelecido e nele são processualmente postos em debate o valor das produções que, por sua vez, são a condensação das diferentes “vozes”, com diferentes pesos, que participaram da constituição, direta ou indireta, próxima ou distante temporalmente, dos produtos.

A partir das considerações de Bourdieu, poderíamos compreender que o valor de criativo é fruto das variadas articulações estabelecidas entre os agentes do campo no atendimento às suas expectativas. Ao mesmo tempo, assinala o autor, o reconhecimento da validade de dada produção acarreta outra exigência como conseqüência necessária: certos traços da produção devem ganhar estabilidade se transformando naquilo que convencionalmente é denominado assinatura da produção, fazendo com que a mesma ganhe “ares” que poderíamos considerar conservadores – o chamado estilo, traços de permanência no variável. Portanto: “O que faz com que os produtos sejam Dior, não é o indivíduo biológico Dior, nem a maison Dior, mas o capital da maison Dior que age sob as características de um indivíduo singular que só pode ser Dior” (BOURDIEU, DELSAUT, 2002, p. 154). Se, como assinalado no capítulo anterior, uma diferença crucial da alta costura foi desenvolver um mecanismo de burocratização que fugia da completa impessoalidade dos funcionários na específica figura do criador, a manutenção do negócio fez com que, mesmo na Maison Worth, o problema fosse colocado quando de sua morte. Uma vez que o criador é insubstituível, a morte deveria necessariamente levar ao fechamento da casa. Não é isso que ocorre, mesmo com o empreendimento de Worth, ainda que, neste caso, haja um velado apelo à transmissão hereditária do dom, uma vez que a Casa passa a ser comandada por seus filhos. Assinala Bourdieu: na moda, diferente da arte, é aceito o princípio da substituição do criador, ainda que isso, mesmo nos dias atuais, acarrete uma série de dificuldades. Contudo, mesmo com a possível substituição, o objeto físico apresenta-se como igualmente sagrado, e os consumidores convertidos (expressão de Bourdieu) aceitam “pagar o preço, material ou simbólico, para deles se apropriarem” (2002a, p. 169). Por outro lado, é importante enfatizar que, diferente do que a fala de Bourdieu e Delsaut sobre Dior pode dar a entender, a suposta estabilidade alcançada é frágil justamente por depender dessas amplas articulações e que vão 138

além da simples consideração de um suposto campo da moda. Por isso, mais uma vez, apesar de considerar a importância e as contribuições do modelo bourdiano de interpretação social, o modelo sugerido por Elias parece em maior conformidade com os intentos desse trabalho. As diferentes funções que articulam os indivíduos funcionam como possíveis gatilhos a amplas transformações. As interações envolvem equilíbrios móveis de poder e, por isso mesmo, são menos estáveis do que o modelo de Bourdieu dá a entender. Um exemplo são as conseqüências da Segunda Guerra Mundial e, especificamente do período da Ocupação alemã na produção francesa e, conseqüentemente, na produção de outros países, em especial dos Estados Unidos26. Entretanto, antes de enveredarmos por tais discussões, permanece ainda em aberto uma resposta plausível para a questão de partida desta pesquisa.

A polêmica quanto à aceitação do caráter artístico da moda, no século XIX, teve como principais argumentos o se tratar de um trabalho técnico, por um lado, e sua vinculação econômica, por outro. A afirmação do artístico não empana o caráter mercadológico da moda. Significa, antes, um acento discursivo que tem conseqüências no modo como a atividade e seu produtor são vistos. Em outros termos, a atual afirmação da moda como negócio não chega a representar uma tentativa de aniquilamento de pretensão artística, haja vista não apenas o teor criativo do trabalho, mas a proximidade do estilo de vida que marca aqueles que se dedicam a tal empreendimento quanto àquilo que se entende como traços identificadores dos artistas. Ao observar aspectos da história da moda ocidental, somos surpreendidos pelo fato de a mudança discursiva quanto à moda ser mais ou menos simultânea ao crescimento do prêt-à-porter e declínio da alta costura, o que se dá de modo mais gritante nos anos 1970, período em que cresce a discussão sobre a crise da arte e do museu.

Ora, se retomarmos as discussões prévias, podemos perceber como o pleito de Worth, apesar de se pautar em semelhanças, representava, por isso mesmo, uma grande violação. A heresia, conforme visto, está no surgimento de novos modos de magia que, por sua proximidade com as religiões instituídas, acabam por rivalizar com elas, ao mesmo tempo em que rumam em direção à sua própria rotinização. A moda, pelo seu reconhecido caráter mercadológico e pelo insolente desejo por parte de seus criadores de reconhecimento como arte, acaba por se colocar como uma heresia, pois, ao fazê-lo, acaba-se também por questionar os valores ou práticas rituais das “religiões” já aceitas, uma vez que destaca as várias semelhanças em jogo e as possíveis arbitrariedades envolvidas em tais categorizações. A

26 A respeito da produção de roupa e acessórios na França durante a Ocupação, ver: VEILLON, Dominique. Moda e guerra: um retrato da França ocupada. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2004. 270p. 139

busca de Worth é por reconhecimento da moda como arte e, portanto, dele como artista. No jogo que se institui perante o público, outros profissionais, artistas e, em especial, perante a Academia, Worth busca enfatizar os traços da proximidade. O desejo inicial não é do confronto e questionamento, e sim a busca por pertencer. A auto-identificação como artista encontra aceitações, bem como negações. O sentido de disputa é, deste modo, explicitado, do mesmo modo que a artificialidade das fronteiras categoriais. A moda é interessante a partir do momento em que consegue não se enquadrar bem, seja como arte seja como estrito negócio, uma vez que trabalha a partir da noção de “criação de roupas”. Assumir, por sua vez, os trajes de Rembrandt e um estilo de vida identificado ao do artista apenas parece reforçar a arbitrariedade e, portanto, o caráter circunstancial sociocultural e historicamente de tais atribuições. E isso toca a moda como arte, bem como a própria arte como arte. Só o “povo do livro”, o que vai além do judaísmo conforme Steiner, mas cuja memória é livresca, distingue a imagem, ela sim universal, como algo especial. Todos os povos desenvolveram formas simbólicas imagéticas. Por isso, a discussão aqui conferiu ênfase aos processos de envolvimento e distanciamento como comuns a qualquer produção. No entanto, não se pode afirmar que a mesma liberdade relativa pode ser atribuída a qualquer fabrico. As transformações na compreensão do modo de produção de certas imagens e textos específicos levaram à sua associação ao trabalho de Deus. A criatividade foi lida como divina. No entanto, poderíamos igualmente lê-la a partir do diabólico. Se Deus significa ordem, estabilidade, em uma de suas interpretações convencionais, o Diabo poderia ser considerado desordem e mudança no curso dos acontecimentos e ser assim associado à idéia de criatividade. No entanto, a moda é herética por ser reconhecida como mercadológica, por lhe ser atribuído potencial de sedução e devido aos indivíduos que com ela trabalham enfatizarem o objetivo de atender aos anseios do mercado. Ora, é herética porque sua magia poderia proporcionar o “ludibriamento” pela falsificação daquele que se apresenta. É herética, em conseqüência, por ser um artifício através do qual o engano na avaliação dos outros é possível (mais uma vez, o sentido de máscara destacado por Simmel e que remete às discussões de Rousseau). Mas, acima de tudo, é válido repetir, é herética por sua vinculação ao mercado. A desconfiança em relação aos ganhos pecuniários permanece ainda hoje. Por exemplo, para Belting, a arte multimídia se define por sua posição periférica quanto à indústria do entretenimento. Ora, o mesmo autor discute a profissionalização da arte e sua vinculação aos ganhos capitalistas. Apesar, pois, de se discutir o esboroamento das fronteiras que definiam e, assim, separavam uma série de “esferas” como modo de apreensão e compreensão do mundo social, ainda se busca nostalgicamente sua permanência. Se há uma crise na arte, se esta se 140

profissionalizou e se transformou num ofício, inclusive no atendimento ao mercado, faria sentido aos profissionais da moda ainda desejar ser reconhecidos como artistas; ou tal questão perde sua pertinência? Se os fazeres são plurais, a moda é uma possibilidade de fazer e consegue, ainda assim, manter uma melhor unidade em sua pluralidade do que o artístico, antes definido em um enquadre específico de épocas e escolas. Obviamente, abundam trabalhos que buscaram um enquadramento histórico linear para a moda. A questão é que parece ser menos problemático ao trabalho com moda a ênfase na pluralidade, inclusive mercadologicamente, do que no caso da arte, visto que as transformações não se limitam à pluralidade, mas fundamentalmente na aproximação da arte com o mercado. Ou seja, trata-se de uma exigência de repensar a difícil questão do que viria a ser arte. A moda pode ser moda e afirmar-se certo desinteresse pela arte, inclusive porque o fugaz na arte, com suas performances e instalações que são desmontadas ao fim do espetáculo acabaram por se aproximar do evanescente e espetacular da moda com seus desfiles. O que parece ocorrer é que a arte começa, talvez à revelia, a se aproximar da moda.

A utilização de certas idéias e efeitos tomados de empréstimo da “arte” deixa de ser uma usurpação daquilo que lhe pertenceria como uma propriedade, e passa a ser uma possibilidade, dentre outras, de espetáculo de moda. É nesse sentido que estilistas e suas criações podem, inclusive, “invadir” os museus, cuja primeira entrada efetiva se deu nos anos 1980. A retrospectiva dos 25 anos de criação de Yves Saint Laurent no Metropolitan Museum of Art, em Nova York (1983-1984), foi o marco inicial da abertura do espaço museológico à moda. Antes disso, as exibições nos museus se restringiam a trabalhos de arte ou exposição de trajes históricos. Dominique Veillon dedica espaço, em seu livro Moda e guerra (2004), ao comentário acerca da exposição organizada no Pavilhão Marsan, em março de 1945: o Teatro da Moda. Tratava-se do específico contexto de fim da ocupação alemã na França e do reconhecimento do papel do traje, seja como mecanismo para a França devastada continuar angariando recursos, seja como, apesar da decadência e das dificuldades, uma forma de manutenção de estima elevada, seja ainda como forma de resistência aos alemães pela persistência ou mesmo pelo uso das cores da França numa explícita afronta aos exércitos estrangeiros.

A idéia bem antiga de bonecas que levavam ao mundo inteiro as criações francesas foi retomada. Quinze teatros-miniatura, realizados por renomados artistas servem de cenário para 170 pequenos manequins vestidos e penteados por 35 costureiros, 15 modistas e 20 cabeleireiros e chapeleiros. Com uma altura de 70 centímetros, essas bonecas de arame, com máscara de gesso, foram executadas por Jean Saint-Martin, o inventor dos manequins 141

em engradados, seguindo desenhos de Éliane Bonabel; eles evoluem em situações bem diferentes. Touchagues por exemplo reconstituiu a praça Vendôme; Douking, a ponte des Arts; Grau Sala colocou num bosque “a bela ciclista 1945”, vestida por Mad Carpentier. Uma das composições mais originais é de autoria de Jean Cocteau, que faz suas bonecas evoluírem, superbem vestidas, no cenário surrealista de uma casa devastada por um incêndio. Finalmente, Christian Bérard ressuscita um teatro. De cada camarote debruçam-se elegantes rostos aureolados de plumas, folhas etc. (2004, p. 235). A diferença crucial da exposição a partir dos trabalhos de Yves Saint Laurent está em que se trata de produções da moda corrente. Segundo Alice Mackrell (2005), ao anunciar, em 1985, o novo Musée des Arts e de la Mode no mesmo Pavillon de Marsan no Louvre, Jack Lang, Ministro da Cultura, sublinhou o papel do museu de moda no domínio cultural e estético e, assim, justificou a abertura dos museus à moda. A inauguração de um museu da moda e do têxtil, como será mais tarde renomeado o Museu das Artes e da Moda, marca as redefinições em curso. É assim que Issey Miyake fez sua primeira “instalação fashion”, termo que denota um ambiente ou espaço na galeria de arte reservado a uma exibição especial. O Issey Miyake Spetacle: Bodyworks foi a , Los Angeles e São Francisco em 1983. Em 1988, apresentou seu Issey Miyake: A-Un Exhibition em Paris e, em 1998, o Issey Miyake: making Things. Ainda em 1996, a Bienal Il Tempo e la moda inaugura um período em que diversos museus e galerias promovem exposições fixas ou temporárias a partir da moda.

Igualmente, os desfiles de moda passaram a incorporar elementos teatrais, e os novos modos de apresentação das artes plásticas em “tempos de crise”. A busca de reconhecimento da moda como arte e o prestígio do artístico em geral parecem servir para compreensão de tal influência. Conforme Evans (2001), já em meados do século XIX, Gagelin já contratava manequins para desfilar seus xales pela loja. Worth, funcionário dele, leva os desfiles ao ateliê, quando da abertura de sua Maison, onde seus vestidos podiam ser apresentados às clientes. Outro importante vetor foi a “fashion play” do teatro londrino, em especial a comédia musical, cujo auge se deu de meados da década de 1890 até 1914. Tratavam-se, segundo Evans, de figurinos dramatizados, em que mulheres que ditavam a moda usavam modelos de alta costura. No entanto, apesar de Gagelin já fazer uso de desfiles, a estilista inglesa Lady Duff Gordon, ou simplesmente “Lucile”, reivindicou a autoria dos primeiros desfiles de manequins nas primeiras décadas do século XX. Seus desfiles, como enfatiza Evans, eram inicialmente exibições enfadonhas com orquestra para ambientação musical e chá para as clientes. É a irmã de Lucile, a romancista Elinor Glyn, que promove a incorporação de textos e cenários e, inclusive, uma espécie de organização em atos, como no teatro, ao desfile. Um desses espetáculos foi o The Seven Ages of a Woman, de 1909, em que 142

a vida da mulher foi dividida em sete etapas: Menina, Debutante, Noiva, Esposa, Anfitriã e Viúva. Os desfiles de Lucile, dirigidos a uma platéia também masculina, foi alvo de várias críticas em sua época pela suposta coisificação da mulher, exposta ao olhar e desejo masculino. Contudo, nos desfiles de Worth e de Poiret também havia presença masculina na platéia.

Em 1910, Lucile abriu uma filial em Nova York, levando consigo para o desfile inaugural quatro de suas manequins londrinas, Gamela, Corisande, Florence e Phyllis. Construiu uma réplica do palco de Londres, enviou convites cor de malva, contratou uma orquestra para tocar, serviu bolinhos e, mais uma vez, em suas próprias palavras, “Lucile transformou o negócio sério de comprar roupas num evento social” (Gordon 1932: 136). Em 1911 (...), Lucile abriu filial em Paris, onde suas manequins inglesas incrivelmente altas (não raro com mais de um metro e oitenta) de estilo dramático ficaram famosas. Principalmente Dolores e Hebe foram as primeiras a ganhar notoriedade depois de Marie Worth. Em sua primeira apresentação em Paris, Lucile valeu-se da febre do tango e ofereceu um chá dançante, em que as manequins dançaram o ritmo argentino ao som da orquestra. Houve muitos outros chás com tango, que davam aos costureiros a oportunidade de apresentar seus modelos em movimento, enquanto as manequins se deslocavam à música, numa performance desprezada por muitos contemporâneos, mas que, hoje em dia, faz parte do desfile de moda (Steele 1998: 228). (EVANS, 2001, p. 37). Os desfiles chegavam a durar três horas. Nos anos 1950, a média era de uma hora e quinze minutos. Hoje, dura, no máximo, meia hora. E somente após 1918, com o aumento da clientela estrangeira que visitava Paris em busca de suas produções de moda, os eventos passaram a ter datas fixadas. Ainda em 1904, por outro lado, a loja de departamentos Peter Robinson promoveu um lançamento de moda em que os manequins se misturavam em meio aos clientes nas seções de roupas do estabelecimento, numa prática que permanece até hoje, com a obrigação de os vendedores das lojas vestirem exclusivamente os produtos da loja durante o horário de trabalho. Como é possível observar, a principal inspiração para os desfiles foi o teatro. No entanto, mais recentemente, outras inspirações artísticas foram assimiladas, a ponto de alguns desfiles figurarem mais como estratégias de marketing para reforçar o glamour de certas marcas do que como momento de apresentação de roupas a serem adquiridas. É o caso da moda conceitual e dos raros remanescentes da alta costura, a exemplo dos desfiles de John Galliano para a Dior. Inclusive é cada vez mais comum o uso de instalações nos desfiles de moda como um recurso cênico adicional, e não como provocação ou incitação à consideração da moda como arte. Obviamente, como já afirmado, existem diferentes opiniões e posicionamentos a respeito do suposto caráter artístico da moda, ainda hoje. Inclusive, muitos artistas têm utilizado a moda para explorar idéias, e não apenas o 143

contrário, como ocorre com a chamada wearable art, ou seja, literalmente arte vestível, experiências artísticas a partir do vestuário.

***

A noção de heresia da moda ajuda a compreender os embates que se estabeleceram. Em acréscimo, as transformações da arte, vividas como uma crise, e as reformulações dos museus também nos trazem importantes elementos a serem considerados no trato do problema da transformação discursiva sobre a moda, por parte de seus representantes. Haja vista a crise na definição do artístico e sua crescente comercialização, talvez a afirmação da moda como uma arte tenha perdido sua razão de ser. Por outro lado, a progressiva secundarização da função religiosa, o objetivo crescente de atender os públicos (função de mercado) e o aumento de valor conferido aos chamados bens culturais talvez tenham eletivamente se afinado de modo que uma concepção de sacralidade do artista também perdesse paulatinamente o espaço que antes desfrutava. Contudo, a produção de moda também sofreu alterações. Tais mudanças devem ser compreendidas articuladamente.

Nesses termos, torna-se difícil a aceitação da concepção de liberdade criativa. As diferentes obras humanas, inclusive artísticas, são símbolos. Como tais, de acordo com nossa compreensão aqui exposta, é a eles subjacente uma série de pressupostos (sínteses) conceituais e de modos de produção. Além disso, como se tratam de síntese, articulam uma experiência que é necessariamente coletiva em um modo de fazer que igualmente é valorado e ensinado de modo coletivo. Por isso, Vico afirmou que, através do simbólico, é perceptível não apenas o traço do indivíduo, mas também seu lugar e época. É isso que permite, inclusive, que percebamos as influências que se apresentam numa obra, e elas sempre existem. Deste modo é que as noções bakhtinianas são importantes nesse percurso. Ao tratar da literatura, seu objeto de estudo privilegiado, Bakhtin busca reforçar que toda e qualquer produção é resultado de um diálogo estabelecido com outros. Estes outros não se limitam a, no caso, literatos, e sim todos aqueles com quem o artista teve contato. Mais que isso, a própria obra é um diálogo com outros. Uma vez que esses outros ajudaram a constituir a obra, eles estão nela presente. Em conseqüência, além de dialógica, ela é polifônica. As diferentes vozes que dela participam se manifestam em suas assimetrias. Podemos, como o próprio autor acaba por fazer, alargar tal noção para além da fronteira da literatura. Tais noções seriam, portanto, aplicáveis, tanto criação de moda como de arte. Deste modo, a noção que ganha corpo nessa discussão acaba por ser a de síntese. Contudo, como enfatiza Steiner, a compreensão de que a 144

criação não passa de uma ars combinatoria parece não fazer jus à questão da criatividade, pois apenas se referiria à invenção. O desconforto do autor se dá na medida em que, ao considerarmos o processo criativo como articulação de elementos pré-existentes, limitamos as possibilidades de criação, em função dos limites de combinação possíveis, ao mesmo tempo em que reduzimos o papel do indivíduo no processo. Devemos aprofundar a discussão.

De fato, a individualidade das obras é aqui criticada, mas não significa um retorno às anônimas produções coletivas de outrora, nem mesmo sua defesa. Porém, a afirmação da coletividade da obra é efetivada. Por sua vez, o conjunto da obra é único. Por tal conjunto, compreendo desde sua concepção como momento singular, se for o caso (pois há obras que vão sendo simplesmente elaboradas sem planejamento), passando pela escolha de materiais, cores, suporte, dentre outros, até sua realização. A rigor, qualquer indivíduo tem potencial e capacidade de desenvolver habilidades “artísticas”, mas, ainda assim, não haverá coincidência de produto – o que é diferente de copiar o que já existe. Se o caráter coletivo das obras se refere à imersão dos indivíduos em teias societais, há que se lembrar de que tais trajetórias são únicas. Talvez o problema crucial seja a separação entre a concepção de indivíduo e de sociedade e todas as conseqüências categoriais de se operar com dicotomias que se enraizaram nos usos cotidianos. Por outro lado, a noção de síntese não se refere a uma junção de elementos prévios – esta seria uma concepção simplista, em especial após todo um desenvolvimento das discussões acerca da noção de dialética ao longo dos tempos. De fato, se trata também de uma reelaboração, pois aqui não cabe uma dialética como relação entre “dois”, nem como necessário embate entre contrários. O que parece interessante em recobrar tal noção é a idéia subjacente de a interação entre diferentes ocasionar, como resultado, algo novo. Tal novidade não é concebida em termos de absoluta diferença, pois, na dialética, mesmo nos moldes como Marx a discutiu a partir de Hegel, o novo gerado mantém características de seus antecedentes. Trata-se, como feito na discussão a respeito de afinidades eletivas, de um processo e, como tal, de transformações dentro da continuidade. O novo, portanto, não seria um terceiro elemento destacado dos anteriores. Os elos são mantidos, ao mesmo tempo em que as diferenças são igualmente perceptíveis. E esses “novos” serão a base a partir dos quais outros tantos serão conformados. Deste modo, não se trata de um circuito fechado de combinações limitadas, pois cada síntese elaborada significa uma abertura que se dá em função ou, na direção, daquilo que foi construído por um indivíduo singular no fluxo de suas interações, o que congrega seus contemporâneos, seus antepassados e suas expectativas de futuro. Mais do que isso, permite comportar o acaso e o não premeditado como 145

importantes fatores que se fazem, ou podem se fazer presentes, no processo produtivo criativo. A conseqüência de tais considerações é, em suma, a afirmação da criatividade como algo geral. Por isso talvez Weber, ao discutir as sínteses criativas a partir de Wundt, aponte que mesmo ações que entenderíamos comuns podem trazer resultados “criativos” quanto ao curso da história. No entanto, por que usamos, então, a categoria de criativo para diferenciar certos indivíduos? Uma resposta preliminar seria o inusitado da combinação, da síntese efetivada. O caráter coletivo de construção de gostos e de procedimentos faz com que certas estratégias combinatórias e escolha de “elementos” a serem combinados ganhem mais considerável recorrência no cotidiano. O inusitado de certas sínteses parece se referir mais a uma necessária alienação na relação com o mundo. Ainda que o distanciamento nunca seja absoluto, ele significa a desfamiliarização com aquilo que, convencionalmente, é corriqueiro. Não se trata de uma questão de intencionalidade como fator obrigatório à alienação. Talvez, como insinua Baudelaire, seja a curiosidade infantil, e, portanto, também geral, que, por circunstâncias específicas, se prolongou na vida de certo indivíduo ou grupo de indivíduos. Mais uma vez, a recorrência à trajetória é fundamental. A criança é marcada pelo desconhecimento. Mesmo considerando que o aprendizado não encontra um ponto de término, os “adultos” lidam com o mundo como se ele fosse familiar. Giddens discute a questão a partir da idéia de segurança ontológica, como um modo de confiança e de crença de que o mundo natural e social é previsível e, pois, familiar. Crê-se que as coisas são como aparentam ser até que situações problemáticas ocasionem a perturbação na confiança. Os graus de tal perturbação variam em função da ruptura sofrida. Mas, além da noção de segurança ontológica, os estudos de Giddens contribuem às reflexões deste trabalho na medida em que sua teoria da estruturação toma por base que os indivíduos lançam mão, em suas práticas, de traços mnêmicos como referência à ação. É nesse sentido que ele afirma que a estrutura é uma “ordem virtual”, ou seja, exibe apenas “propriedades estruturais” (GIDDENS, 1989). Tais considerações nos levam a tornar mais complexo o jogo sintético. A palavra elemento foi por vezes usada aqui entre aspas pois a intenção é reafirmar que nossa percepção das coisas e relações é um olhar limitado a respeito delas. Os “elementos” são, na verdade, aspectos que nos chamam atenção e levamos em consideração no nosso fazer. Por isso, os olhares possíveis são múltiplos, o que aumenta exponencialmente as articulações que podemos tecer. É, inclusive, por ser síntese que nossas obras “falam” aos outros. Aquele que toma contato com o produto o rearticula à experiência que o originou a partir, mais uma vez, dos aspectos (do produto) a que conferiu relevo em seu processo interpretativo. Esse relevo, por outro lado, que pode diferir de indivíduo a indivíduo é justificado pela trajetória de vida e 146

intelectual do interpretante. Interpretar é, portanto e mais uma vez, sintetizar, ou seja, estabelecer ligações. No entanto, se a criatividade está relacionada à nossa capacidade de síntese, como poderíamos compreender a inspiração? “Olhar” um objeto ou situação significa articular aspectos que entendemos como significativos a “elementos” de nossa experiência. A memória é o operador fundamental aqui por conta da instantaneidade das articulações. O caráter significativo de certos aspectos se relaciona à memória, àquilo que nela é mais vivo, seja por recorrência ou mesmo por ser inusitada. Em todo caso, é aquilo que, de algum modo, “nos chamou a atenção” em algum momento. A inspiração pode ser compreendida como um modo de atenção que nos permite estabelecer conexões inusitadas. Ela, pois, estaria vinculada à vontade de fazer algo. O momento de inspiração é o da efetivação da articulação que pode permitir a elaboração que, ao menos em nossos planos, aparece como pouco comum. A consideração de Steiner de que hoje vinculamos invenção e criação se mostra pertinente: enfatizar as sínteses significa dar conta dos dois termos num só conjunto.

Voltando à questão específica da moda, apesar de ser afirmado seu caráter mercadológico, ainda não foi feita uma discussão mais cuidadosa a respeito. Nesses termos, apesar do relativo avanço da discussão, um fator primordial ainda carece ser tratado, a fim de que se tenha elementos de substância que possam servir de base à interpretação do trabalho de Herchcovitch e, através dele, da moda de uma forma mais ampla. Em vista disso, o capítulo que segue buscará discutir a articulação entre moda e capitalismo. Para tanto, tomaremos o luxo, uma vez que moda, inicialmente, significava uma série de produtos raros, caros e sob medida. Além disso, a perenidade atribuída aos produtos ligados ao luxo os aproximam mais de uma noção de arte. Essas foram as características fundamentais da chamada alta costura. Num outro extremo, hoje vemos crescer as discussões acerca de um suposto “novo luxo”, após um período de relativa decadência que se deu em paralelo ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da produção industrial através do pronto-para-usar (prêt-à-porter). Somos, pois, obrigados a buscar nos estilos de vida dos principais consumidores de vestuário – ou seja, nos consumidores de produtos de luxo27 – a resposta que buscamos.

27 É forçoso lembrar aqui que o luxo não se resume ao vestuário. Engloba, por exemplo, perfumes, objetos de decoração, bebidas, dentre outros produtos e serviços. 147

ENTRE O ETERNO E O EFÊMERO: O LUXO NO SÉCULO XXI

“O luxo, (...) filho legítimo do amor ilegítimo, é o gerador do capitalismo” (SOMBART, 1979, p. 173)

Werner Sombart define o luxo como causa do capitalismo. No entanto, o trabalho de pesquisa aqui desenvolvido não toma como objetivo a procura de causas para o capitalismo, do mesmo modo que se isenta de investigar causas para o luxo. Por outro lado, parte da percepção de uma relação que ata vestimenta, luxo e capitalismo. Tomado desta forma, um suposto renascimento do luxo em fins do século XX, como vem sendo denominado, permite discutir amplas questões que podem nos ajudar a compreender o problema que norteia esta tese: mudanças de mercado, mas igualmente de estilos de vida e aspirações que tiveram direto rebatimento nas demandas por determinados produtos e também no modo de produzi-los, distribuí-los e divulgá-los, bem como, em acréscimo, grandes transformações no modo como se costura a rede de relações entre os diferentes profissionais envolvidos com o circuito da moda, e entre eles e os seus consumidores. Além disso, é importante lembrar que, no século XIX, moda e luxo são quase sinônimos. A diferença estava em que o luxo ultrapassava a questão da vestimenta. O que ocorre então com a relação entre luxo e capitalismo após o citado século? O objetivo deste capítulo é discutir o crescimento da demanda por produtos de luxo e seus significados no século XXI. Para tanto, o suporte primordial são revistas que discutem e apresentam moda e luxo: a revista Vogue Brasil, a revista IstoÉ Platinum, uma edição especial da revista IstoÉ, e a revista A, as duas últimas especificamente destinadas a consumidores e interessados em bens de luxo. Além disso, livros e artigos dedicados aos temas do vestuário na história e da recente noção de novo luxo foram consultados. Esta bibliografia forneceu a base para as discussões aqui levantadas.

A percepção de transformações significativas no processo de produção e consumo de moda no Brasil age igualmente como motivador para esta investigação. Na passagem para 2008, foi anunciada a aquisição de grifes brasileiras por holdings e fundos de investimento. O texto aqui apresentado, contudo, não se define pelo arrolamento jornalístico de eventos ocorridos, bem como não tomará o caso brasileiro em discussão, ainda que sugira algumas vias de interpretação a respeito. A intenção, neste momento, é 148

tomar a discussão prévia, que, acredito, permite melhor compreender os rumos da produção nacional em sua articulação às transformações no cenário internacional dos negócios capitalistas (a partir da moda) e nos modos de vida – conseqüentemente, nos gostos, em suas contemporâneas tendências de definição. Para tanto, o trabalho é dividido em três partes. Inicialmente, em “in vestito”, são discutidos alguns dos diferentes significados da vestimenta ao longo da história, sublinhando seu caráter de marca identitária, moeda de troca e riqueza tomando, em especial, o período Renascentista como centro de discussão. Em seguida, a partir de considerações de Werner Sombart, é tomada a temática do luxo em sua associação com o capitalismo e o papel da mulher nesse processo. Por fim, são discutidas as transformações mais recentes no modo de vida burguês e a emergência de uma nova concepção de luxo em fins do século XX, em sua relação com o desenvolvimento do pronto-para-usar (prêt-à-porter), bem como iniciais conseqüências nessa redefinição de gostos. Questiona-se, em especial, o sentido de novidade atribuído à recente concepção de luxo, aqui percebida como decorrência de demandas de mercado associadas a uma retomada do sentido de gosto construída pela velha alta burguesia.

“In vestito” Segundo sublinha Adriana Valese (2006), a palavra “investimento” tem sua origem no termo italiano in vestito, pois os investimentos de valores, nos termos da autora, eram feitos nos vestidos, isto é, nos trajes. Conforme nos lembram Ann Rosalind Jones e Peter Stallybrass (2003), investir, no Renascimento (período em que a moda toma, pela primeira vez, o sentido de mudança constante), era apontar a função social do indivíduo, seu formato social, o que se dava, em grande medida, por meio dos trajes. Assim se estabelecia desde a roupa do rei, transmitida geracionalmente como marca de transferência hereditária do poder político, até a roupa da empregada doméstica – e nos ajuda a compreender, inclusive, o porquê de, em alguns grupos sociais, os escravos permanecerem nus ou poderem circular, como foi no caso brasileiro, com as “roupas de baixo”, íntimas, dos seus colonizadores. Por moda se entendia mais comumente o processo de fazer algo (facio, facere), o que tanto pode remeter àquele que faz, àquilo que é feito ou ao modo de fazer. Desta forma, ao marcar posições sociais, as roupas feitas pelo homem fazem o homem. No Renascimento, a vestimenta não se limitava a ser objeto possuído, constituía- se igualmente como moeda que estabelecia as conexões entre os homens por conta de um sistema de trocas altamente enraizado que fazia com que as roupas, anéis, sapatos 149

passassem por diferentes mãos e, pois, circulassem por diferentes grupos, além de servirem como objeto privilegiado de penhor em períodos de penúria (provavelmente, inclusive, penhor deriva de pannus, pano), como mecanismo para estocar riquezas28 e como pagamento mais corriqueiro a serviços prestados, o que ainda pode ser percebido nos dias atuais através do costume de dar a prestadores de serviço, em especial domésticos, além do salário, um “agrado” adicional, que pode se dar na forma de alimentos ou de roupas novas e/ou usadas. O pagamento se confunde, então, com generosidade; no entanto, na falta de uma contrapartida que vá além daquilo a que o salário já paga (ou seja, o trabalho), aquele que recebe o presente só tem como alternativa a submissão. Por isso, salienta Mauss (2003), o presente deve ser retribuído com outro de igual ou superior valor. Não se tratam de meros presentes; o sentido agonístico das trocas revela relações de poder feitas acontecer, inclusive, através de objetos que poderiam ser entendidos como banais, evidenciando, portanto, a profundidade do aparente superficial. É a importância do banal que leva Malinowski a se dedicar à compreensão do kula; o estranhamento que tal aparente paradoxo proporciona. A relação entre os homens e as coisas é expressão das relações entre os homens e da compreensão que eles têm de si (enquanto “eu”) e do “nós”, de modo articulado.

Em seu estudo realizado na Polinésia, Mauss (2003) evidencia como os taonga, ou seja, as coisas são veículo do mana, da força do indivíduo e do clã. Possui um poder especial, um hau, que passa do doador ao receptor, estabelecendo uma conexão espiritual entre ambos. A retribuição seria a devolução do hau ao doador. No caso, portanto, de extensas trocas, a coisa acaba por conectar a coletividade enquanto tal e firma relações entre coletividades distintas. Como afirma o autor, entre os maori, o vínculo pelas coisas é um vínculo de alma, pois a coisa detém a alma de seu doador; identifica e expressa, e, assim, é mágica. E, talvez por ser mágica, seja igualmente perigosa. “Dar é manifestar superioridade, é ser mais, mais elevado, magister; aceitar sem retribuir, ou sem retribuir mais, é subordinar-se, tornar-se cliente e servidor, ser pequeno, ficar mais abaixo (minister)” (MAUSS, 2003, p. 305). No caso das extensas trocas no mundo pré-capitalista, as roupas começam a apresentar uma nova faceta: a da conturbação das identidades, uma vez que as trocas se aceleram de modo considerável. Em outros termos, o seu valor parece

28 “The notion that clothes could escape circulation was, by and large, a fantasy. As we have seen, the crown jewels could be pawned; an aristocrat’s ceremonial robes could be pawned (…). Money are transformed into things; things are transformed back into money. It was in things that the Renaissance stored up material memories, but it was also those things that would, when need required, become commodities again, exchangeable for cash” (JONES, STALLYBRASS, 2003, p. 33). 150

se colocar não por seu visgo ao dono, mas por sua flexibilidade, capacidade adaptativa: por sua possibilidade de troca. Tal evidência parece ganhar corpo não exatamente por uma intensificação das trocas internas, mas pela relação que essa intensificação tem com mais extensas relações externas a partir das Cruzadas. As roupas desmembradas nas trocas para adaptação aos novos corpos e donos e a hibridização crescente dos trajes com a descoberta de novos tecidos, estampas, cortes e modelos advindos de povos estrangeiros aponta para identidades movediças e, pois, indivíduos marcados pela inconstância e possibilidade de traição. O que significa ser um aristocrata italiano, por exemplo, vestido com tecido persa e jóias mexicanas? Era um possível esfacelamento de uma unidade política em construção. Ao lado, pois, da permanência que marca a profundidade (nos hábitos e trajes chamados costumes), havia em tensão com ela, a mudança, que parece operar progressivamente uma separação entre o indivíduo e suas posses; estas se constituindo mais propriamente como máscaras do que como inscrições profundas. Veja-se que o que se busca evidenciar aqui é, mais uma vez, a tensão que se estabelece e não qualquer presunção em definir pólos unívocos que pudessem caracterizar as transformações em curso. Para Jones e Stallybrass (2003), o capitalismo, como modo de produção que fetichiza a mercadoria, ocasiona o retraimento do fetichismo dos objetos. Os objetos detinham vida (o hau de que trata Mauss); as mercadorias, por sua vez, são vazias. Elas deixam de ser trocadas para serem descartadas nos dias atuais. A magia do objeto está em seu significado, e este, por sua vez, está em sua trajetória. A perda de referência quanto ao processo que originou o bem, vinculado à extensão da rede de troca (e seu caráter meramente comercial) faz com que o significado se torne fugidio e deixe de estar em interações e uso para repousar apenas no uso como possibilidade. Foi por seu poder mágico que os protestantes atacaram não apenas os ídolos, mas também as vestimentas. Fetichismo era entendido como a reverência a meras coisas, o culto da matéria morta, conferindo vida ao morto; as vestimentas, por seu caráter de marca identitária, tinham vida. A relação é tão próxima a ponto de a origem lingüística de fetiche ser a mesma para moda: facere. O demoníaco, então, começa a ser mais estritamente associado à vestimenta. Os colonizadores não fetichizavam os objetos; seus interesses se voltavam à sua possibilidade de serem transmutados em mercadorias, longe do seu caráter de marca e, pois, de memória. Os fetiches eram cultuados e usados. Com o capitalismo, as roupas podem ser fashion no sentido de separáveis e descartáveis bens, mas eram menos fashionings, materializações da memória, objetos que trabalham magicamente sobre o corpo do usuário e o transformam – ainda que possamos discutir os 151

atuais significados atribuídos à marca por parte dos usuários29. Os séculos XVI e XVII são de transição, apresentam essa tensão de modo vivaz. Acreditamos que tal tensão lá vivida se manifesta progressivamente nos dias atuais, e uma de suas expressões é o chamado novo luxo, ou seja, as formas atuais de concepção e vivência do luxuoso, e que pode ser igualmente discutido a partir da vestimenta.

O luxo, a roupa e a mulher Segundo Elyette Roux,

luxo é derivado do latim luxus (a uma só vez substantivo e adjetivo), oriundo do vocábulo agrícola, que inicialmente significou “o fato de crescer de través”, depois “crescer em excesso”, para tornar-se “excesso em geral” e, enfim, significar “luxo” a partir do século XVII. (2005, p. 115). A exibição de bens caros, na Antigüidade, era bem-vista e permitida como coisa pública e, nas diferentes sociedades, é possível perceber o papel da exibição de bens preciosos nos rituais religiosos como modo de engrandecimento da relação com os deuses, a quem se deveria oferecer o melhor como uma espécie de contra-dádiva simbólica à atenção dos deuses à comunidade e para a continuidade do elo. Se o maior peso na relação nós-eu era conferida ao nós, a monumentalidade da arquitetura, as esculturas em praça pública e a riqueza dos trajes daqueles que encarnavam a comunidade e, a depender, eram um híbrido de homens e deuses, e como tais deveriam se adornar com riqueza, era um luxo coletivo e desejado, em contraposição a uma mesquinha concentração privada de riquezas; portanto, mal-vista. Eterno, o luxo antigo marca um desejo de imortalidade. Para tanto, deve ser mágico. Deveríamos, então, questionar a corrente noção de luxo como excesso. Do ponto de vista da relação com os deuses e da posterior sociedade aristocrática, o luxo não é excesso, ainda que seja abundância. Nos estudos de Mauss e de Malinowski, o que se evidencia é que o objeto trocado não é relevante, e sim a troca. Nas sociedades aristocráticas, por sua vez, o valor primordial está na herança, ou seja, numa relação que se estabelece dentro de frações da sociedade através da transmissão de bens duráveis ao longo de várias gerações – o que acentua a importância do antigo ou, como afirma McCraken (2003), da pátina como marca de perenidade. Ao mesmo tempo, distingue uma camada social; é marca de identidade e, portanto, das hierarquias socialmente estabelecidas, o que

29 Atualmente parece existir uma tensão entre uma concepção comum de vestuário como extensão da suposta personalidade de seu usuário e a de que o vestuário é o principal responsável por caracterizar seu usuário, ou seja, o constrói (ainda que limitadamente) e, assim, torna-se possibilidade de falseamento. 152

não impede, ainda assim, o estabelecimento do sistema de troca de roupas, afinal os trajes são mais suscetíveis à passagem do tempo e do uso do que outros bens, a exemplo das jóias. A riqueza constituía o modo de vida da aristocracia e, nesses termos, a definia enquanto uma específica camada social. Lembre-se que a noção de luxo como excesso, segundo Roux, data do século XVII, quando segmentos burgueses, por acúmulo de moeda, começam a “invadir” o mundo aristocrático e usar seus trajes. A roupa teria sido, deste modo, um veículo privilegiado a tal indesejada invasão, traindo seus usuários: de marca passa a máscara, enquanto falsidade e mera superficialidade. Não à toa tem-se a criação de leis suntuárias, leis da monarquia contra as “despesas extravagantes”, que tinham um caráter de política econômica, mas também de proteção à especificidade da aparência aristocrática. Por outro lado, a desconfiança quanto às aparências leva aos discursos inflamados de Rousseau, no século XVIII, contra a artificialidade e o engano proporcionados pelo traje, e se estendem ao século XIX no debate quanto ao luxo socialmente aceitável, o “luxo útil” (ORTIZ, 1991). No entanto, além disso, deve-se acentuar o papel das reformas católica e protestante na constituição da roupa como centro dos debates sobre o necessário e o excessivo a partir do século XVII (ROCHE, 2007). Se o século XVI foi marcado pelas viagens e explorações e, nesse sentido, pela curiosidade quanto aos povos estrangeiros e adoção de trajes (ou partes deles) advindos de outras comunidades, culminando no surgimento do primeiro livro ilustrado de trajes na segunda metade do século XVI (MACKRELL, 2005)30, os séculos XVII e XVIII foram marcados, segundo Roche (2007), por um interesse de caráter histórico pelo vestuário. Teria sido nesse período em que

três tradições convergiram: a das grandes coleções, que transmitiam uma impressão da diversidade das roupas; a dos estudos meticulosos sobre a indumentária dos antigos e dos modernos, em parte ligados à tradição acadêmica da pintura histórica e sua pedagogia; e, por fim, a das obras dedicadas aos trajes provincianos e regionais. Essas coleções de trajes locais, cujo aparecimento está associado às primeiras tentativas de proto- etnografia, envolviam eruditos, viajantes e acadêmicos provincianos. O nascimento da história da vestimenta coincidiu com o interesse romântico pelo passado. (ROCHE, 2007, p. 38). Em paralelo, os economistas começam a refletir sobre o luxo nas roupas e seu papel no consumo. Duas questões se colocam: a distinção da aristocracia frente à burguesia

30 Segundo a autora, o livro mais famoso do gênero foi o de Cesare Vecellio, De gli habiti antichi et moderni di diversi parti del mondo, publicado em Veneza em 1590. O livro é dividido em duas partes: a primeira consiste em 361 xilogravuras de trajes na Europa, e o livro II contém 59 xilogravuras das roupas asiáticas e africanas. Na segunda edição da obra, datada de 1598, o autor incluiu uma amostra de “vestidos” do Novo Mundo e aumentou as xilogravuras para um total de 507 imagens. 153

em ascensão, bem como o problema moral da riqueza num mundo de desigualdades sócio- econômicas. Contudo o luxo não é associado apenas à questão de classe; no reinado de Luís XIV, mais uma vez de acordo com as informações de Roche, o dismorfismo sexual na aquisição de roupas era pequeno nas camadas populares, o que não ocorria na nobreza. As duas nobrezas, a de espada e a togada, gastavam de forma semelhante em indumentária, mas o dismorfismo sexual era acentuado: o valor dos guarda-roupas das mulheres era o dobro comparado aos masculinos. Deste modo, é lançada a questão acerca do papel da mulher nas mudanças dos costumes na época.

Para Werner Sombart (1979), Francisco I foi o verdadeiro criador da corte por fazer com que as mulheres interviessem nela de modo preponderante. Dessa intervenção teria surgido o luxo. Para ele, o luxo é pessoal e feminino; neste sentido, as discussões de Veblen a respeito do consumo conspícuo como mecanismo de distinções de classe (1985) desviariam a idéia de luxo de seu significado primeiro. É no âmbito privado, destaca mais uma vez Roux, que a palavra luxo toma o sentido, no século XVIII, de luxúria e, pois, de desregramento, prolongando o sentido antigo de luxo e o renovando às condições da época. É a individualização do luxo o fulcro das discussões. Para Sombart, o luxo pessoal nasce da excitação dos sentidos, o que tem como base última a vida sexual, devido à sua relação com o erotismo; por isso o luxo teria se desenvolvido a partir da associação entre o desenvolvimento da riqueza e a liberdade da vida amorosa. Estaria ligado a uma experiência sensorial prazerosa e, nesse sentido, para além das questões de necessidade, mesmo porque as necessidades são variáveis a depender dos grupos sociais e das épocas.

Enquanto os mal-estares da privação e da carência são parte substancial da vida cotidiana do indivíduo, não há nenhum dilema no tocante a se ter de conceder mais alta prioridade à satisfação ou ao prazer. É o aparecimento da “abundância” que traz esse problema em sua esteira. (CAMPBELL, 2001, p. 97). De qualquer modo, ao associá-lo diretamente ao prazer, Sombart situa a mulher na base do desenvolvimento do luxo, algo em conformidade, inclusive, com as indicações bíblicas, uma vez que, segundo interpretações da Bíblia, coube a Eva a responsabilidade primordial pela expulsão do paraíso, quando houve a percepção da nudez e, portanto, a necessidade de criação das primeiras roupas. As roupas, então, estariam associadas ao pecado original e, pois, à pecadora mulher. No entanto, não apenas como consumidoras e amantes presenteadas e que seduziam a partir de sua beleza (e traje) as mulheres tiveram papel no desenvolvimento do luxo. Os principais responsáveis por fiar e tecer eram mulheres. Tal trabalho, que podia ser exercido no lar, sem criar obstáculos à criação dos 154

filhos, era um modo de obtenção de renda, ao mesmo tempo em que se constituía numa virtude feminina, numa espécie de educação moral que fazia com que as artes de fiar, tecer e bordar fossem prendas que atravessassem diferentes camadas sociais. Ao mesmo tempo, poderíamos considerar tais prendas como uma espécie de lembrança simbólica do pecado original e que, como tal, serviam como remissão, cura e prevenção, na formação do desejável caráter feminino. Em acréscimo, foi a fiação a base das fábricas, e estas eram primordialmente constituídas por mulheres, até a revolução industrial do século XVIII tomar lugar. E quando se pensa em revolução industrial se tem em mente a produção têxtil, marcando a íntima relação de afinidade entre a produção vestimentar e o desenvolvimento capitalista. A indústria de seda é uma das que primeiro adotam, segundo Sombart, uma organização capitalista; ao mesmo tempo em que aponta ter sido, talvez, a fabricação de tecidos de lã em Florença a primeira grande indústria constituída sobre tal base. As mulheres ainda desempenharam importante papel como penhoristas, mesmo que subordinadas a homens, como era também o caso no que se refere à tecelagem e à costura (as mulheres não podiam compor corporações de ofício). No que se refere às casas de penhor, as mulheres estavam à frente daquelas de menor porte. Além disso, é necessário ainda citar que era na produção vestimentar que as mulheres podiam burilar sua criatividade. Se fiar era considerado honroso pelos moralistas, os trabalhos exercidos com uso da agulha sugeriam alguns problemas. Bordar era decorar roupas, o que aproximava o trabalho feminino de algumas formas de arte executadas pelos homens, criando instabilidade na distribuição sexual dos afazeres e na hierarquia homem/mulher. Era uma espécie de evidência de habilidade estética, fruto de labor intelectual, e, por isso, foi alvo de opiniões diversas. Por tudo isso, talvez, a prostituta tenha sido celebrada por Baudelaire como a encarnação do mundo moderno: por sua independência, vinculação ao comércio, sensualidade (exploração dos sentidos), apego à aparência (a ponto de estarem à frente de inovações em vestimenta) e instabilidade (na efemeridade das relações estabelecidas). A prostituta é, para Baudelaire, encarnação do moderno por ser, ao mesmo tempo, mercadora e mercadoria. Para além de tais questões, o século XVIII marcou também a crescente renúncia masculina aos enfeites, o que se deu em nome de uma aparência mais sóbria. Ao homem burguês cabia a vida pública do trabalho; à mulher, a manutenção de um resquício de modo aristocrático de vida, no gosto pelo adorno e nas obrigações a ela dirigidas no burguês mundo privado (cuidados para com a família e a casa) e nos negócios do marido (com as sociabilidades em banquetes e festas). 155

O mundo burguês conturba as fronteiras de classe traçadas pela indumentária, ao mesmo tempo em que os liberais vêem no comércio de vestimentas um especial motor para o desenvolvimento econômico. Mas, de qualquer modo, a moda traz uma insígnia aristocrática; além disso, marcou a própria decadência de tal camada social. Durante a segunda metade do século XVIII, as críticas se dirigiram aos jovens burgueses ricos que imitavam os aristocratas (PERROT, 1996). No 8 Brumário, Ano II (29 de outubro de 1793), a Convenção decretou a ruptura com os códigos vestimentares. A determinação dos trajes deixa de ser legal e passa a ser apenas social – com exceção de casos específicos. Aos poucos, a grande burguesia afirma seu estilo pautado no bom gosto, boas maneiras, modéstia, respeitabilidade e autocontrole expressos em especial a partir das transformações no traje masculino. Em paralelo, no século XIX, desenvolve-se o consumo no sentido moderno, ou seja, não discriminado em simples função de determinação legal ou pertencimento de classe, mas pela habilidade de escolha.

O comércio de roupas de segunda mão permaneceu e com considerável procura, mas sob suspeita, uma vez que, por um lado, seus artigos eram às vezes frutos de roubo e, por outro, devido a muitos de seus mercadores serem judeus. A permanência do comércio de trajes usados, muito procurados por trabalhadores que buscavam a facilidade da roupa pronta e barata, ajudou, segundo Perrot (1996), a produção em massa de roupas novas, prontas para uso e de baixo custo. Em 1847, Paris contava com 233 manufaturas de prontos-para-uso com mais de sete mil trabalhadores. A roupa pronta para mulher aparece um pouco mais tarde, por volta de 1845. A produção de roupa burguesa, no entanto, não traz a democratização do vestir. As camadas médias desejam os símbolos de status, e aí imitam mais intensamente seus supostos “superiores”, que crescentemente estabelecem novas formas de distinção ligadas ao saber-escolher.

In elegance, savoir-fare, and breeding, the aristocracy could not lose; the bourgeoisie was unable to challenge the rules of the game, just as it was incapable of creating values or pleasures without imitating, aping, or assimilating aristocratic models in an ecletic fashion. (PERROT, 1996, p. 83).31 Os costureiros deverão ser versados em matéria de trajes, usos sociais e elegância para assumirem a nova função de criadores e não apenas executores de trajes criados pela aristocracia, a fim de atender sua nova clientela burguesa. A escolha desses

31 “Em elegância, savoir-faire e bons modos, a aristocracia não perde; a burguesia era inábil para desafiar os papéis do jogo, do mesmo modo que era incapaz de criar valores e divertimentos sem imitar, macaquear ou assimilar modelos aristocráticos em uma moda eclética” (Tradução nossa). 156

profissionais como “consultores” indicava se tratar, talvez, de algo que ia além de uma mera imitação: constituía-se, ao mesmo tempo, como uma rejeição dos padrões da classe alta mais tradicional; contudo, uma rejeição que deveria se assentar no bom gosto, inclusive porque este permitia que o consumo se desse sem ferir tão brutalmente a ética religiosa a que estavam filiados.

Foi, portanto, precisamente porque as classes médias tinham tão forte herança puritana que elas ficaram tão ávidas de “seguir a moda” e, conseqüentemente, de consumir, com sofreguidão, os bens de luxo. Elas o fizeram a partir de um entranhado medo de que pudessem ser (e ser consideradas) destituídas de virtude. Sua preocupação predominante era mais, portanto, de proteger seu caráter mostrando “gosto”, do que de melhorar sua posição social exibindo força pecuniária. (CAMPBELL, 2001, p. 217/218) Talvez fosse melhor afirmar: num misto em que força pecuniária e proteção de caráter estivessem juntas a partir da noção de gosto e expressas nas casas, nos móveis, na prataria e, claro, no vestuário. Simultaneamente, a alta-burguesia elege os ideais de limpeza, simplicidade e bons modos como seus traços identificadores. A limpeza nas roupas se desenvolve ao longo do século XIX, em especial por conta do discurso medicalizante que busca distinguir a população sã da população contaminada, o que ainda não é acompanhado pelo asseio dos corpos. Por outro lado, a simplicidade distingue esta camada da burguesia quanto à própria aristocracia e também aos novos-ricos, que buscavam imitar o estilo aristocrático mais ostentador. Por fim, correlacionado aos dois aspectos antes mencionados, estão os bons modos (burguesamente ligados à retidão do autocontrole), o que dá vazão à disseminação da figura do gentleman inglês, em seus modos e trajes, como a melhor encarnação do espírito burguês – inclusive em sua versão mais radical, o dandy, tão celebrado por Baudelaire. O dandismo era uma reelaboração dos valores aristocráticos, inclusive de rejeição do trabalho como assunto vulgar, adaptados ao novo contexto de época e nisso se constituía num burguês-aristocrata: abandonava-se o princípio do nascimento nobre em nome de um ego nobre (CAMPBELL, 2001). A estratégia distintiva estava centrada na simplicidade elegante (refinamento) e, desta forma, no modo de adquirir, ter e, especialmente, usar os trajes – mais do que na roupa em si, enquanto objeto.

Propriety in appearance implied a moral guarantee of successful socialization. This semantic equivalence between the concrete and the 157

abstract, the literal and the figurative, made propriety (exactly like hygiene) an ethic as well as a technique. (PERROT, 1996, p. 137).32 Estimava-se o cultivo da racionalização do traje em função das circunstâncias a serem vividas. Os novos-ricos, por sua vez, continuavam a ser criticados, como é perceptível, por sua vulgaridade e falta de gosto próprio. Essa inabilidade da burguesia impedia que ela exercesse o poder de decisão sobre o que usar sem sofrer grandes riscos – criando condições para o surgimento do costureiro-criador e o reconhecimento da legitimidade de seu saber e ofício. A diferença se estabelece não mais por nascimento, e sim por conhecimento, o que pode ajudar a explicar a profusão de livros de etiqueta ao decorrer do século XIX, lembrando o movimento similar que ocorreu no Renascimento, período em que, como discutido, houve grande diferenciação de trajes em um mesmo território. Se a produção industrial permite a aquisição em massa de trajes igualmente inspirados nas modas lançadas pelas camadas mais favorecidas, ao mesmo tempo em que os novos ricos mantinham na exuberância aristocraticamente instituída seu ideal, a burguesia busca agora se distanciar de ambas as camadas e, em fundamental contraposição à produção industrial de roupas, acaba por glorificar como prestigioso o traje sob-medida. A alta costura é, pois, primordialmente burguesa, o que contribui para os receios a ela dirigidos e para a negação de seu caráter “artístico”. Nesse sentido, o panorama que se tem no século XIX está assentado na oposição fundamental entre produção industrial e alta costura (que congrega o sentido de moda, por sua relativa efemeridade posta no rápido desuso, e de luxo, pela meticulosidade do trabalho artesanal e pela riqueza e qualidade do material empregado). A alta costura remonta a uma ostentação do indivíduo na exibição de materiais raros e caros em produções personificadas quanto aos modelos e feitas-sob- medida. A produção industrial, por seu turno, além de ser barata e massiva, era de má qualidade e desconfortável. A simplicidade elegante, por sua vez, permanece restrita a pequenos círculos da alta-burguesia, na síntese entre o modo aristocrático e a ética burguesa.

De qualquer modo, se a produção de têxteis e do luxo esteve na base do desenvolvimento capitalista pela importância do traje como símbolo, riqueza e moeda, é necessário acrescentar que o próprio sentido de moda como bens efêmeros, que começa a se constituir, ajuda a consolidar uma lógica específica de produção voltada não à duração das mercadorias, mas à sua obsolescência – isto é, em que a própria efemeridade e apego à

32 “A retidão quanto à aparência implicava uma garantia moral de socialização bem-sucedida. Essa equivalência semântica entre o concreto e o abstrato, o literal e o figurativo, fez da retidão (exatamente como fez da higiene) uma ética, bem como uma técnica” (Tradução nossa). 158

aparência das coisas (como motivação à sua aquisição e descarte) alimenta o sistema capitalista como um todo ao promover o consumo incessante e, portanto, uma perene insatisfação. Isso não significa que a população como um todo tinha acesso aos bens de consumo: “As lojas de departamentos não eram freqüentadas pelos operários ou camponeses; elas se dirigiam fundamentalmente à burguesia e às classes médias” (ORTIZ, 1991, p. 144). Conforme Diana Crane, a distância entre as camadas média e alta em comparação à camada mais empobrecida da sociedade era bastante considerável. Em fins do século XIX, “a classe baixa formava a esmagadora maioria da população do período (73% na França, 85% na Inglaterra e 82% nos Estados Unidos)” (CRANE, 2006, p. 26). O interesse da autora de A moda e seu papel social se centra em estudar o que as “pessoas comuns”, da camada operária da população usavam. Para tanto, ela toma como alicerce as pesquisas realizadas pelo cientista social Frédéric Le Play, que dedicou investigações voltadas especificamente às famílias de camada operária entre os anos de 1850 e 1910, e estudos sobre orçamentos familiares feitas por pesquisadores americanos no fim do século XIX e durante o século XX. De acordo com os dados por Crane analisados, as roupas de trabalho dos operários franceses eram, normalmente, confeccionadas por suas esposas, salvo se fossem roupas devotadas a alguma ocasião especial. Nesse caso, as roupas eram adquiridas em alfaiates ou, na metade do século XIX, em alguma indústria de pronto-para- usar que comercializava roupas a preços baixos. Quanto às roupas femininas, eram costuradas em casa, regra especialmente seguida nas províncias.

Os trabalhadores qualificados de Paris e, em menor grau, das províncias vestiam-se no estilo da classe média aos domingos. Usavam sobrecasaca, gravata de seda, colete de seda ou cetim e . O grupo era constituído por artesãos e artífices cujo trabalho os colocava em contato com a classe média. (...) Os artesãos eram os que possuíam o maior prestígio dentro da classe operária, particularmente aqueles ligados à fabricação de bens de luxo. (CRANE, 2006, p. 87). Durante a semana, porém, eles usavam “roupas de operários”. Mesmo os fazendeiros estabeleciam como parâmetro as roupas dos operários, em lugar da vestimenta de classe média, o que pode ser explicado, conforme a autora, devido à própria condição de vida e de pouca alfabetização desses fazendeiros que, inclusive, viviam mais distantes do epicentro da moda, que era Paris. Tais condições se mantiveram até meados da década de 1870. Os trabalhadores não-qualificados, em geral, passaram a ter maior rendimento que os qualificados. No entanto, os dados da época evidenciam, segundo a análise de Diana Crane, que os trabalhadores qualificados passaram a gastar maior percentual de sua renda em roupas. É o período, inclusive, em que se difundem informações sobre moda para além 159

da capital Paris. Tal é a tese, conforme discutido na introdução, que põe em questão a noção de difusão de moda “de cima para baixo”, utilizada por alguns estudiosos, a exemplo de Simmel e mesmo Bourdieu, uma vez que “estratos inferiores do último período eram às vezes considerados mais elegantes que os superiores” (p. 97). O processo de democratização do século XIX foi, portanto, bastante irregular e exige do estudioso maior refinamento interpretativo. Porém, o abismo entre as mulheres de classe média e as de classe operária era maior do que o que separava os homens. Antes de 1875,

enquanto 20% dos homens nas famílias desse período eram tidos pelos autores dos estudos como pessoas que se vestiam no estilo da classe média, apenas três (7%) das mulheres nesse grupo (todas casadas com trabalhadores qualificados) foram avaliadas da mesma forma. No período posterior, seis delas (17%, em relação a 19% dos maridos) vestiam-se (...) num estilo semelhante ou idêntico ao da classe média. (CRANE, 2006, p. 107). As mulheres casadas da camada operária passavam a maior parte de seu tempo em casa, por isso talvez permanecessem mais distantes do estilo burguês, mas, em acréscimo, as características das roupas femininas de classe média, com suas crinolinas, luvas, sombrinhas e espartilhos, bem como com a velocidade com que mudavam seus detalhes dificultava por si só a aquisição e uso das roupas de classe média por parte das mulheres de classe operária. Ainda que tenha aumentado a aquisição de peças de moda por parte das mulheres de classe operária após 1875, é perceptível que isso se deu de modo muito seletivo também pelo inapropriado que tais peças eram para o cotidiano dessas mulheres. Eram as esposas de trabalhadores qualificados de Paris que, mesmo após 1975, provavelmente mais possuíam peças de vestuário de classe média. Contudo, nas províncias, a relação se invertia a favor das mulheres de trabalhadores não-qualificados. No entanto, é possível a partir daí afirmar que, agora, em todas as camadas havia a presença de peças de classe média e, conseqüentemente, a diminuição na quantidade de peças “tradicionais”. Já as mulheres solteiras de classe operária faziam, comparativamente, maior investimento em roupas, mesmo fora dos domingos. Ou seja, ainda que indivíduos da classe operária tivessem começado a adquirir peças de vestuário da classe média, seu nível de consumo ainda era bastante restrito se comparado à classe média. Por isso, esta e a classe alta eram o maior alvo das atenções das lojas de departamento.

Se, como assinalou Georg Simmel (1998a), a moda só vive enquanto as diferentes modas morrem – ou seja, é o jogo efemeridade/inovação que nutre a lógica da distinção/imitação –, instaura-se importante debate, nessa época de tantas disparidades, acerca do que é o luxo socialmente aceito. Parte-se, portanto, da premissa de que existe 160

uma forma de luxo aceitável, que estaria em objetos duráveis, como jóias e arte, e na concepção, em desenvolvimento, de conforto.

Como bem observa Jean-Pierre Goubert, o conforto é contemporâneo da idéia de modernidade, ele estabelece um corte entre o passado e o presente. Para os homens que vivem dentro desta nova “ordem dos objetos”, ficar ao lado da lareira, com a família e os vizinhos, sem aquecedor central, sem eletricidade, é visto como algo inconfortável, portanto “antiquado”. Um “antes” e um “depois” se inscrevem desta forma na materialidade dos objetos, demarcando aqueles que se ajustam ou não aos novos tempos. (ORTIZ, 1991, p. 146). No entanto, os partidários do “luxo inútil”, ou seja, da importância das frivolidades, a exemplo do citado Baudelaire, partem das roupas e da toilette para estruturar sua defesa. O argumento é que o passageiro define o próprio mundo moderno. Na busca por estabelecer formas de luxo a partir de categorias de valor, um distanciamento começa a ser operado entre moda (passageira) e luxo (durável) como categorias distintas; contudo, a relação entre moda, luxo e produção industrial será reelaborada apenas ao decorrer do século XX com o advento e desenvolvimento do prêt-à-porter.

O pronto-para-usar e o não tão novo luxo Se, por um lado, como acentua Ortiz (1991), medidas revolucionárias, a exemplo do fim da inviolabilidade das corporações de ofício e consolidação da propriedade privada, foram fundamentais ao desenvolvimento do capitalismo e, portanto, ao comércio de luxo; por outro, o prêt-à-porter, segundo Pierre Bourdieu e Delsaut (2002), seria uma espécie de retradução das transformações do estilo burguês, associado, por seu lado, à reestruturação dos modos de apropriação dos lucros capitalistas: reorganiza-se a divisão do trabalho de dominação e diversificam-se os grupos que podem obter o lucro e prestígio burguês. Tal processo, em curso desde os anos 1950-1960, é representado nos livros de história da moda como o ingresso numa segunda fase que marca o fim do momento aristocrático e centralizado da alta costura.

Não só o pólo costura sob medida, expressão sublime da moda de cem anos, atrofiou-se por decréscimo extremo da clientela, como também a Alta-Costura não veste mais as mulheres na última moda. Sua vocação é bem mais a de perpetuar a grande tradição de luxo, de virtuosismo de ofício, e isso essencialmente com fim promocional, de política de marca para o prêt-à-porter ponta de série e para os diversos artigos vendidos sob sua grife no mundo. Nem clássica nem vanguarda, a Alta-Costura não produz mais a última moda; antes reproduz sua própria imagem de marca “eterna” realizando obras-primas de execução, de proeza e de gratuidade estética, toaletes inauditas, únicas, suntuosas, transcendendo a 161

realidade efêmera da própria moda. (...) O luxo supremo e a moda separaram-se; o luxo não é mais a encarnação privilegiada da moda e a moda já não se identifica com a manifestação efêmera do dispêndio ostensivo ainda que eufemizado. (LIPOVETSKY, 1997, p. 109). Prêt-à-porter é uma expressão lançada na França em 1949 por J.C.Weill, em referência ao ready to wear americano. Trata-se da produção industrial de roupas acessíveis à maioria e, ainda assim, vinculadas à qualidade e distinção da moda e suas tendências. Compreender o desenvolvimento prêt-à-porter exige de nós a articulação de dois pontos em suas afinidades eletivas: a produção de vestuário nos Estados Unidos e as conseqüências da Segunda Guerra Mundial na produção francesa. A França manteve até meados do século XX um reinado quase absoluto no que se refere a estilo. Suas produções há muito ultrapassaram as fronteiras do país. Mais do que um modo de vestimenta, a alta costura era uma importante fonte de rendimentos para os franceses. No entanto, com a guerra contra a Alemanha, os franceses foram obrigados a mudar consideravelmente seus trajes, ainda que tivessem mantido, a duras custas, a produção de vestuário a partir da simplificação e sobriedade dos trajes e aproveitamento de materiais vistos como pouco nobres, a exemplo da cortiça que passaria a servir de sola para os calçados, e reaproveitamento de materiais vários, seja tecido de roupas desgastadas ou mesmo de cortinas, de estofados, dentre outros. Os franceses, além de racionar, serão obrigados a reciclar, e, como afirmado no capítulo anterior, a vestimenta do período de guerra passou a ser vista como inusitada forma de resistência. “Fim dos vestidos exageradamente vistosos, dos bonezinhos excêntricos, das jóias extravagantes e das unhas cor de sangue” (VEILLON, 2004, p. 28). Discrição e conforto elegante passam a ser a tônica na alta costura, cobiçada por uma Alemanha que desejava assumir a centralidade da Europa, inclusive no que toca ao gosto. Lucien Lelong brada: “O luxo francês e a qualidade são indústrias nacionais. Eles fazem entrar no caixa do Estado bilhões em divisas estrangeiras que precisamos mais do que nunca... O que a Alemanha ganha com produtos químicos, fertilizantes ou máquinas, nós ganhamos com musselinas diáfanas, perfumes, flores ou fitas” (apud VEILLON, 2004, p. 34). A resistência, portanto, não se limita à manutenção apenas de orgulho próprio. O vestimentar também se mantém como importante forma de sobrevivência, pois países que não entraram na guerra continuaram demandando as produções francesas. A alta costura e o luxo, de forma geral (o que inclui perfumes, cosméticos e outros produtos para além das roupas), não desaparecem, mas sofrem inequívocos abalos. Internamente, o luxo é substituído pelos itens necessários. Com o racionamento de gasolina, a utilização maciça de bicicletas faz com que as calças rejeitadas 162

no século XIX pelas francesas, à exceção das operárias das minas (conforme aponta Diana Crane), e rejeitadas no século XX mesmo com as tentativas de Chanel, comecem a ser adotadas. Também pelo mesmo motivo, o vestido curto habillé passa a ter seu uso admitido à noite. As restrições ao uso de couro levam à moda dos cintos finos. À falta de meias de seda, as mulheres colorem as pernas com tintura de iodo ou fazem um risco na perna nua que imita a costura das meias de seda ausentes. A imprensa também mantém considerável papel no incentivo à continuação do consumo, mesmo com as transformações e restrições em curso, a exemplo do novo uso de fibras artificiais, como o raiom, a viscose e a fibrana. No setor têxtil, a indústria começa a ser organizada a partir de planos de fabricação, centralização e compartilhamento das criações das lojas que participassem das sociedades recém-formadas. Ao mesmo tempo, aqueles que enriqueceram às custas do “mercado negro”, os nouveaux riches, ou BOF (beurre-oeufs-fromage33), como ironicamente chamados, ajudam a manter, internamente, o comércio de luxo. As inovações têm prosseguimento e em muito se aproximam do que efetivamente será incorporado aos usos da segunda metade do século XX, mas talvez o fundamental neste momento seja apontar que as restrições que levaram, na Ocupação, ao maior comedimento, discrição e simplicidade do vestuário racionalizado francês acabaram por aproximar suas produções daquilo que já se fazia sentir como traços vestimentares norte-americanos, numa época em que os Estados Unidos, à parte da guerra que se desenrolava, buscavam aproveitar o momento favorável para suplantar a produção francesa a partir de características próprias, ainda que sem poder descartar sua influência. Em outros termos, a situação de guerra fez com que os estilos francês e norte-americanos se assemelhassem, favorecendo o desenvolvimento da produção no norte da América, que, fora da guerra, tinha melhores condições de investimento e maiores possibilidades de reconhecimento internacional, uma vez que os criadores franceses não tinham como acompanhar, em condição de igualdade, a concorrência. Era uma guinada fundamental na balança de poder e que se desdobraria de modo a alterar os rumos da configuração moda como um todo, o que inclui o Brasil, a ser discutido em detalhes no capítulo posterior; mas, além disso, trata-se de novos gostos e usos que igualmente se tornarão perceptíveis nos tecidos, cores e formas das roupas, bem como na relação entre usuário e traje, reverberando, assim, naquilo que é criado, no modo como é criado e mesmo na estrutura do negócio.

Quando termina o conflito, o fenômeno da moda não tem a mesma significação que em 1939. Não é mais propriedade exclusiva de uma

33 Tradução: manteiga-ovos-queijo. 163

classe abastada que pode se vestir sob medida. Foram criadas outras correntes, em particular “uma moda de guerra”, em que o cotidiano às vezes se alia ao excêntrico. Além disso, vemos surgir ateliês de confecção no Midi, particularmente em Nice, arautos do prêt-à-porter. Alguns anos depois e o produto industrial suplantará o “costurado a mão”. (VEILLON, 2004, p. 236). Mais que isso, alguns anos depois Paris perderá seu posto de único centro difusor de moda. Ainda em 1947, começam as missões européias de produtividade enviadas aos Estados Unidos. Os europeus conheceram o casual wear, com seus modelos que aliavam a estética ao conforto, já adaptados à produção em série, massiva. Ou seja, descobriram a racionalidade norte-americana de produção:

Os pedaços do quebra-cabeça, divididos em grandes peças, são cortados industrialmente – cada peça de roupa é montada em cadeia –; fazem-se todas as combinações possíveis de cores e desenhos, chegando a uma grande diversidade a partir das formas básicas. Por fim racionalizam-se tamanhos, para que se adaptem a quase todos os tipos de corpo, com base em medidas perfeitamente codificadas de busto/cintura/quadris. (VICENT-RICARD, 2002, p. 23) A transição das roupas feitas à mão para as roupas confeccionadas em máquina ocorreu antes nos Estados Unidos. Segundo Diana Crane (2006), três fatores foram aí fundamentais: a máquina de costura, os moldes para peças de roupas específicas e o desenvolvimento do sistema de medidas corporais. No final do século XIX, a máquina de costura era utilizada em todo país. Mas, além disso, já em 1860 uma companhia norte- americana inicia a distribuição de moldes de roupa em larga escala. Os moldes eram complemento à máquina de costura. “Por volta da década de 1870, a companhia vendia 6 milhões de moldes por ano (a população americana em 1870 era de 38,5 milhões de habitantes” (CRANE, 2006, p. 154). A guerra civil, prossegue a autora, contribuiu sobremaneira à difusão das roupas confeccionadas à máquina. As roupas prontas passaram a ser facilmente encontradas, e as informações sobre pronta entrega eram transmitidas através de catálogos enviados por correio. As roupas ganhavam em simplicidade, e se tinha assim a diminuição dos custos de produção e de venda. Na França, o desenvolvimento foi diferente. A máquina de costura foi difundida com o objetivo de a mulher da classe operária economizar ou ganhar dinheiro, e não confeccionar para si. As roupas prontas eram desprezadas pela classe média. Além disso, o custo da máquina de costura era mais alto na França do que nos Estados Unidos, e o financiamento também era mais difícil até 1890, afirma Crane. Além disso, podemos considerar o peso que a racionalidade protestante desempenhou no desenvolvimento de um modo específico, e estranho à Europa em geral, de racionalidade, pragmatismo e comedimento que favoreceu o desenvolvimento 164

da organização burocrática nos Estados Unidos e sua aplicação à produção de vestuário. O modelo foi percebido como tão promissor a ponto de as indústrias francesas e italianas prontamente assimilarem as novas concepções e forma de estruturação norte-americana do trabalho de produção da moda, que permitem maior agilidade de produção e ampliação do mercado; ou seja, lucratividade consideravelmente maior. É nesse contexto que surge a figura do consultor de estilo, encarregado de criar coleções estéticas e que igualmente atendessem as limitações industriais. Os clientes também precisaram se acostumar ao formato da roupa pronta-para-usar e passam a contar com o incentivo dos meios de comunicação para tanto. E logo as indústrias européias passaram a exportar para o Novo Mundo uma adaptação européia desses princípios norte-americanos. “Mas a moda pronta para o uso imediato implica séries de produtos acabados, sem retoques nem transformações. Implica a necessidade de que a extensa cadeia industrial escolha e fabrique, ao longo de 18 meses, uma tendência de moda que estará à disposição dos clientes pelo curto período de uma estação” (VICENT-RICARD, 2002, p. 32). Para tanto, é necessário investir maciçamente em planejamento: coordenar as atividades de diferentes profissionais e empresas a partir das mesmas tendências e contar com o apoio dos canais de distribuição. Nos Estados Unidos, além de roupa de qualidade, havia um eficiente sistema de merchandising, “baseado em mensagens promocionais divulgadas pela imprensa, apoiado na publicidade e exposto aos consumidores nas vitrines das lojas” (p. 36). Esse trabalho de aconselhamento e coordenação de tendências será a função do consultor de moda, a se estabelecer mais propriamente como tal nos anos 1960. Françoise Vicent-Ricard foi uma das pioneiras nesse tipo de trabalho. Segundo ela, em um mês e meio o grupo em que ela estava inserida visitou, em fins dos anos 1950, de cem a cento e vinte empresas de confecção norte-americanas a fim de assimilar a estratégia interna de cada empresa e reformular de modo aperfeiçoado ou criar um modelo próprio a partir do cotejamento das várias estratégias percebidas. É por sua relação cada vez mais fina com o mundo industrial que o costureiro, depois denominado estilista virá a ser chamado também de designer de moda e, mais recentemente, diretor de criação.

Ao mesmo tempo, por outro lado, 1947 viu surgir o new look de Christian Dior, com sua cintura marcada e abundância de panos. Em uma primeira visada, a glamorosa mulher celebrada por Dior parece se opor consideravelmente às transformações do período. A grande inovação de Dior teria sido, em primeiro lugar, a tentativa em retornar ao luxo do pré-guerra, apesar das visíveis adaptações a um modo de simplicidade 165

elegante. No entanto, o próprio Dior ajuda a incrementar as transformações em curso nas estratégias que concebe para diminuir os efeitos que as falsificações, facilitadas pela difusão de moldes e de modelos via imprensa, começavam a trazer. Se a preocupação com as cópias já existia antes de Dior (remontando a Worth), podemos afirmar que se intensifica no período. A necessidade de controlar a difusão de modelos em outros países ocasiona a criação e exploração do sistema de licenças para circulação inicial das marcas de costureiros franceses, e depois das criações francesas. Jacques Rouët, gerente da Maison Dior, e a Câmara Sindical da Alta-Costura estiveram à frente do processo.

Tudo começou em 1948, quando o fabricante de meias Prestige pediu seu nome [de Dior] para produzir e distribuir seus artigos no mercado americano. Propunha então 10 mil dólares, valor considerável logo depois da Guerra. Dior teve a audácia de recusar; pediu e obteve uma porcentagem sobre a renda. Nascia o sistema das licenças. No fim dos anos 1980, Dior tinha mais de duzentas licenças. (ERNER, 2005, p. 60) O Novo Mundo adapta o estilo Dior, inicialmente rejeitado pelas consumidoras norte-americanas, e o difunde. Hoje, apesar de haver a diversificação de produtos (brand stretching) sob o rótulo de uma mesma grife, exige-se a reversão das licenças para maior controle acerca do nome da marca. Os produtos, bem como os locais onde esses produtos são comercializados, são atualmente vistos como de fundamental importância para a manutenção da marca e de seu prestígio. No caso de Dior, até gravatas que ele considerava de gosto duvidoso foram comercializadas com seu nome. Apesar dos possíveis lucros pela comercialização das mencionadas gravatas, tal ação seria analisada, nos dias atuais, como uma estratégia equivocada pela possibilidade de “arranhar” a imagem positiva da marca quanto à qualidade de materiais, execução e gosto. Sem dúvida, são os produtos “secundários”, a exemplo de bolsas e perfumes, que garantem, por excelência, a lucratividade das empresas de moda. As roupas, em especial de alta costura demandam tempo considerável de produção, materiais mais raros e atendimento personalizado. Por isso têm maior potencial de prejuízo. Ao contrário, os acessórios, perfumaria e cosméticos têm um custo mais baixo e são produzidos em maior escala. Por seu reduzido custo, permite que pessoas de menor poder aquisitivo possam adquirir um bem de luxo. A maior parte das vendas de lojas de grife é realizada a partir da comercialização de tais produtos, que, convencionalmente, são postos na entrada da loja. Os espaços de fundo acabam sendo reservados a produtos mais caros e à clientela mais nobre. Na verdade, conforme Dana Thomas aponta, os muito ricos não freqüentam as lojas; têm atendimento domiciliar. A autora acaba se ressentindo pelas mudanças no luxo: nostalgicamente acaba por afirmar, 166

como expresso no subtítulo de seu livro, que o “luxo perdeu o brilho”. Essa perda de brilho estaria ligada, conforme podemos perceber a partir de suas considerações, às transformações pelas quais passou, e vêm passando, a condução dos negócios de moda. Atualmente, por exemplo, diferente do sistema de licenças do período Dior, as grifes centralizam todo o processo, desde a produção até a comercialização e divulgação de seus cada vez mais diversificados produtos, sejam eles produzidos diretamente pela marca ou em parceria. Por tal controle, conseguem manter a raridade dos produtos e, portanto, seu valor de luxo. Ao invés de permitir que os produtos, por outro lado, sejam adquiridos em quantidade para serem vendidos em lojas diversificadas, a comercialização em lojas próprias também se transforma num diferencial, numa época em que a marca assume a importância que antes era fundamentalmente do produto, o que contribui para que uma gama bastante considerável de pessoas não crie grandes obstáculos em possuir produtos falsificados: além de cópias de boa qualidade produzidas a partir do incremento tecnológico, o primordial sentido de exibição pública e satisfação pessoal está mais na visibilidade da marca na peça do que propriamente no material empregado em sua confecção ou durabilidade do produto. Por isso, as estratégias de “glamourização” do produto original começam a ser reforçadas, no sentido de conferir maior valor ao serviço prestado. “A indústria de bens de luxo, como é conhecida atualmente, é um negócio de US$157 bilhões (...). Trinta e cinco grandes marcas controlam 60% dos negócios e dezenas de pequenas empresas respondem pelo resto” (THOMAS, 2008 [2007], p. 03).

O prêt-à-porter foi a ponta-de-lança do processo, uma vez que se tratava de uma primeira separação entre luxo e moda, como assinala Lipovetsky, e de uma fusão entre a produção industrial e a moda. Isto é, se a indústria se referia à produção em série e de precária qualidade e inovação, e a moda, ligada ao luxo, ao sob medida, à “unicidade”; o prêt-à-porter seria, pois, uma síntese entre ambos, isto é, a roupa industrializada, de qualidade e inovadora – o que contribui, inclusive, para acelerar ainda mais o ciclo de produção de novos bens, afinal o intervalo entre distinção (inovação) e imitação (generalização) se torna cada vez menor. Para dar conta de uma produção industrial de qualidade, os industriais começaram a associar-se a estilistas. Ao decorrer dos anos 1950, o prêt-à-porter será ainda muito pouco inovador; nos anos 1960 é que se inicia mais propriamente sua renovação, ainda dividindo espaço com a alta-costura. Os anos 1970 são o da consagração das ruas e do prêt-à-porter. “O luxo estava praticamente morto. A crise do petróleo, a recessão econômica e o alto desemprego puseram um fim no consumo” 167

(THOMAS, 2008, p. 166). A ascensão do pronto-para-usar está também atada aos progressos na técnica de fabricação (que permite ao artigo industrializado ser de melhor qualidade a menor custo), mas liga-se também às conseqüências da Segunda Guerra Mundial, conforme explicitado, com a expansão da chamada classe média em seu poder de compra e desejo de participação no “mundo da moda”. O surgimento da “cultura juvenil” e a utilização da aparência pessoal como importante meio de expressão é outro fator a ser destacado. No entanto, há ainda algumas considerações imprescindíveis à reconstituição do período e compreensão do recente “novo luxo”. Associa-se esta discussão às consideráveis mudanças no estilo de vida burguês.

De acordo com a tese exposta no espirituoso livro do jornalista David Brooks (2002), a nova camada dominante seria uma mistura entre o estilo de vida burguês – do discreto, sóbrio e comedido trabalhador – e do boêmio – os extravagantes e libertários artistas do século XIX. “A boêmia é a corporificação social do romantismo, sendo o boemismo a tentativa de tornar a vida ajustada aos princípios românticos” (CAMPBELL, 2001, p. 273). Como os dândis, os boêmios desprezavam o trabalho, mas viviam em situação de pobreza; eram artistas e intelectuais pobres e/ou sem reconhecimento, que viviam a busca pelo prazer e cultivavam uma vida pautada na criatividade. Para Brooks, a camada dominante é composta por burgueses-boêmios. Para o autor, graças a essa fusão de estilos e gostos, os burgueses-boêmios seriam, por um lado, autênticos, espontâneos e criativos e, por outro, disciplinados, trabalhadores e ávidos por prosperidade. São pessoas, por excelência, instruídas que mergulham simultaneamente na criatividade boêmia e na ambição burguesa pelo sucesso, medido em dinheiro. Esta seria a elite dos anos 1990. Tal transformação, segundo Brooks, tem na inserção da classe média nas aristocráticas instituições de ensino o seu maior canal. A estabilidade da riqueza e prestígio assegurada pela herança cede, paulatinamente, lugar ao mérito como modo de ascensão social e mecanismo para entrada nos círculos mais prestigiosos. O mérito está, pois, ligado à instrução universitária e aos cargos que esta propicia. Este processo começa a ganhar visibilidade nos anos 1950. Adotando uma postura apenas em certa medida contrária ao antigo establishment, essa nova elite rejeita a ostentação, associada à suntuosidade, para eles exagerada, da elite a qual desejavam substituir. Em seu lugar, considerando sua vinculação à boêmia (atualizada às condições do século XX) e à burguesia que desejavam destronar (mas a que se aproximavam no gosto pelo dinheiro), ajudam a erigir a sofisticação, discreta, mas eivada de requinte, como ideal, em especial após as Grandes 168

Guerras. O burguês rico e pouco culto, nesse modo de vida, tem menos prestígio que o intelectual/artista rico, mas com menos posses. O refinamento está na simplicidade que apenas o bom-gosto torna distintivo. Diminui a procura pela alta costura, representante de um tipo de produção voltado ao antigo e decadente establishment. O quadro de estilistas também muda: antes, congregava indivíduos com pretensões artísticas, algo a que Charles Worth ajudou a constituir ao associar moda e arte; a partir dos anos 60/70, congregam também indivíduos com instrução técnico-científica.

As transformações recentes da relação entre as diferentes classes sociais e o sistema de ensino, cuja conseqüência foi a rápida propagação da escolaridade, incluindo todas as mudanças correlatas do próprio sistema de ensino, assim como todas as transformações da estrutura social que resultam – pelo menos, em parte – da transformação das relações estabelecidas entre diplomas e cargos, decorrem de uma intensificação da concorrência pelos diplomas; com efeito, para garantir sua reprodução, as frações da classe dominante (empresários da indústria e do comércio) e das classes médias (artesãos e comerciantes), mais ricas em capital econômico, tiveram de intensificar fortemente a utilização que faziam do sistema de ensino. (BOURDIEU, 2007, p. 123/124). Toma lugar, deste modo, uma disputa pelo diploma, que acaba por desvalorizá- lo, e uma disputa mais próxima entre os diplomados, advindos de diferentes camadas sociais, ainda que isso não possa ser concebido como duelo entre iguais. Ao mesmo tempo, são os ofícios ligados à criatividade a porta de entrada privilegiada para incremento de status por parte daqueles que, na falta de poder econômico de família para participar da camada mais privilegiada, desejam uma aproximação por prestígio através de acúmulo de conhecimentos. A moda é exemplar nesse aspecto, pois diferentes casas de renome nos dias atuais tiveram seu início nos séculos XVIII e XIX com o trabalho de artesãos e pequenos comerciantes. Por outro lado, o trabalho de costura, como previamente discutido, também era ofício entendido como menor, ligado à pequena burguesia. E, por fim, parte dos estilistas que alcançaram, mesmo nos dias atuais, certo reconhecimento como profissionais advieram, como Worth, de camadas mais empobrecidas da população: Poiret era filho de comerciantes; Chanel era órfã de mãe, e o pai era vendedor; John Galliano é filho de bombeiro; Alexander McQueen é filho de taxista. O trabalho com moda é não apenas possível a pessoas de diferentes camadas socioeconômicas, como se torna uma forma prestigiosa de ascensão social ao lidar com questões de gosto.

E nada é mais distintivo, mais distinto, que a capacidade de constituir, esteticamente, objetos quaisquer ou, até mesmo, “vulgares” (por serem apropriados, sobretudo, para fins estéticos, pelo “vulgar”) ou a aptidão para aplicar os princípios de uma estética “pura” nas escolhas mais comuns da existência comum – por exemplo, em matéria de cardápio, 169

vestuário ou decoração da casa – por uma completa inversão da disposição popular que anexa a estética à ética. (BOURDIEU, 2007, p. 13). A determinação daquilo que pode ser entendido como de bom gosto se torna mais complexa, acompanhando a própria complexidade das relações interindividuais e entre camadas distintas, cujas fronteiras deixam de ser precisas por conta da mobilidade possível instaurada no mundo capitalista burguês. A complexificação do bom-gosto se assenta em sua redefinição a partir da noção de elegância: o caro não necessariamente é de bom gosto. A frase “menos é mais” (less is more) e a voga do hi-lo (high-low), em que peças caras e/ou grifadas são associadas a peças baratas, são expressão disso. Por outro lado, com a profusão de produtos em circulação, e com diferentes características, o bom gosto se torna um saber de poucos – o que tem levado, mais uma vez, a uma série de publicações ensinando a como vestir, comer, sentar, dentre outros. No entanto, pelo que já foi discutido previamente, é perceptível que a incitação à simplicidade elegante já constitui um estilo da velha burguesia do século XIX, que primeiro estabeleceu relações mais estreitas com o mundo aristocrático. O que pode, portanto, ser apontado, no que se refere ao século XX, são os mecanismos através dos quais o estilo que essa fração burguesa ajuda a instituir se disseminam como modo mais elevado e aceito de bom gosto. E, sem dúvidas, o acesso às instituições de ensino aristocráticas, bem como o casamento de conveniência entre filhos de famílias aristocráticas com filhos de famílias burguesas ajuda a difundir os ideais do refinamento também junto a descendentes de novos-ricos e, posteriormente, de frações da pequena burguesia. Tal transformação leva igualmente a uma exigência de mudanças na produção de bens caros ligados ao vestuário – o que culmina com a decadência da alta costura, que precisou ser reelaborada em seus significados sociais a fim de manter uma função para sua produção, ainda que esta seja marginal (economicamente, como afirmado, a alta costura gera prejuízos). Por outro lado, como afirmado, as grandes casas que comercializam ainda hoje bens de luxo tiveram seu início de produção ainda no século XIX, como a Louis-Vuitton e a Hermès. Seus proprietários, pequenos comerciantes, forneciam seus produtos artesanalmente produzidos à família real. Por isso, mesmo com a decadência das cortes, permaneceram como redutos de prestígio e de reconhecido bom gosto. Como bem afirmou Bourdieu, a criatividade deixa de ser uma espécie de insígnia de classe, e o trabalho com criatividade acaba por assumir um caráter enobrecedor, distintivo. No entanto, as transformações recentes trazem como ponto fundamental mudanças radicais na gestão do negócio. 170

O prêt-à-porter significa, em outros termos, ou o surgimento do criador- gerente ou a sociedade entre ambos. As casas passam, ao assumirem o caráter industrial, a ser geridas como empresas, mas empresas cujo produto está ligado à criatividade. Como síntese entre o imaginativo e comercial, tais empreendimentos ganham substancial espaço, prestígio e lucratividade. Isso significa que a moda tem assumido, cada vez mais, sua função comercial/econômica. Antigos modos de produção, baseados na idéia de família gestora e herança, por um lado, e no surgimento de gênios criadores têm cedido lugar à formação de conglomerados, algo relativamente recente quanto à moda. Talvez isso venha contribuindo à afirmação crescente da moda como negócio em detrimento da anterior tentativa de ressaltar seu caráter artístico, segundo as convenções correntes, mesmo ainda havendo tal tipo de associação (ainda que em menor monta). Do mesmo modo, a assunção da moda como negócio, por excelência, pode ter contribuído para a formação de tais conglomerados, num movimento de “mão dupla” e, no caso, de recíproco reforço. A gestão racional dos negócios da moda possibilitou não apenas o desenvolvimento do prêt-à- porter, mas a conformação do caráter mais atual do luxo, composto ainda pelo luxo de exceção, destinado a poucos, e, fundamentalmente, pelo prêt-à-porter de luxo, segmento de produtos mais caros e de melhor qualidade dentro do prêt-à-porter. Os principais produtos de moda comercializados podem ser categorizados, ainda que sempre precariamente, do seguinte modo: o luxo de exceção, que congrega, mas não se limita à alta costura (ainda fiel às normas de vinculação instituídas por Charles Worth e, portanto, de produção artística do vestuário, é mantida como símbolo e estratégia de marketing para manutenção do glamour de certas marcas, bem como lançamento de possíveis tendências de modo geral, abstrato e, portanto, passível a uma série de adequações); o prêt-à-porter de luxo e o convencional prêt-à-porter (produção massificada, industrial, de vestuário). Tal recomposição está ligada a uma maior democratização do acesso aos bens, em especial por conta do aumento da quantidade de pessoas advindas da classe média que podem acessar bens de luxo, bem como à globalização que, por um lado, exige profissionalização maior, mas, por outro, significa uma considerável abertura de mercados – isto é, novos consumidores espalhados pelo planeta – permitindo, por suas distâncias, uma produção seriada, mas não-massiva, que mantém a idéia de raridade, ou melhor, de seletividade fazendo com que a produção de bens caros se torne economicamente interessante. O espírito aventureiro e o caráter familiar, ao mesmo tempo amador, que caracterizava a gestão das casas de moda é hoje cada vez mais raro (ERNER, 2005). 171

Os três maiores grupos, LVMH, Pinault-Printemps Redoute (PPR) e Richemont (...) foram montados há menos de vinte anos. Bernard Arnault, dono e mentor do LVMH, foi o precursor da idéia de fazer do luxo um pólo de atração para o dinheiro caprichoso do mercado financeiro. (...) O objetivo tornou-se a criação de produtos de excelente qualidade, em grande quantidade, acessíveis ao que seria uma classe média alta em escala global, mas suficientemente raros para conservar a aura de exclusividade e o preço elevado. (VARELLA, 2005, p. 24). O luxo, sendo caro e entendido como perene, segundo Pascal Morand, economista e diretor do Instituto Francês de Moda, confere alta e durável rentabilidade, ou seja, aquilo que desejam os investidores. Ao mesmo tempo, os altos lucros permitem inovações constantes e, pois, uma continuidade dos índices de consumo. Mais do que isso, para Silvio Passarelli, diretor do MBA em Gestão de Luxo da Faap (Faculdade Álvares Penteado), em São Paulo, os bens de luxo podem colaborar no processo de produção e consumo de bens econômicos, na medida em que sua maior durabilidade significa respeito ao meio ambiente ao evitar a grande descartabilidade dos produtos: “Os bens de luxo – e sob certos aspectos, alguns produtos premium – são duráveis porque estão suportados por um tripé: bom design, materiais de qualidade superior e processos impecáveis” (2008, p. 114). O bom design faz com que, nos argumentos de Passarelli, o produto seja por muito tempo reconhecido como de bom-gosto; a boa qualidade dos materiais garante a durabilidade e funcionalidade; e os processos impecáveis são os rigorosos padrões de qualidades que põem os produtos à prova antes de sua comercialização.

Os acessórios da grife [Louis Vuitton, maior empresa de luxo no mundo] são criados de forma quase artesanal. O couro usado em suas bolsas, cintos e sapatos são fornecidos por abatedores que criam animais em áreas onde não há arame farpado e proteção contra mosquitos para que não danifiquem o couro. As bolsas, com costuras feitas à mão, passam por um rigoroso teste de qualidade. Durante quatro dias, a bolsa, carregada com 3,5 kg, é levantada e solta insistentemente. Os zíperes são abertos e fechados cinco mil vezes, raios ultravioleta miram no couro para certificar que ele é resistente e braceletes são chacoalhados para verificar se nenhum pingente irá se soltar. (SAMBRANA, 2007, p. 24) A Louis Vuitton é a base da LVMH, Moëy Hennessy Louis Vuitton, conglomerado de luxo de capital aberto comandado por Arnault. O ingresso na bolsa de valores é uma das principais estratégias que passou a nortear a gestão das “indústrias do luxo”. Há, do ponto de vista da lucratividade, uma série de vantagens na abertura de capital:

aumenta o capital, eleva o status da marca, cria incentivos à gerência, como opções de ações, e torna a empresa mais transparente, conseqüentemente atraindo gerentes executivos de calibre mais elevado. Mas também faz com que a empresa fique nas mãos de acionistas que 172

exigem aumentos de lucros trimestrais. “A abertura de capital realmente força uma mudança na forma de fazer negócios”, disse-me o ex-estilista da Gucci, Tom Ford. “Você se vê forçado a tomar consciência de como está gastando e para onde vai, a tomar decisões de curto prazo, pois é a isso que reagem os acionistas, e jogar com os benefícios a longo e curto prazo. Para satisfazer essas previsões de lucro, as empresas de luxo reduziram os gastos. Algumas usam materiais inferiores e muitas transferiram a produção discretamente para nações em desenvolvimento. A maioria substituiu a arte manual individual pela produção em linha de montagem, em grande parte automatizada. (...) Para engordar ainda mais os números, as empresas de luxo introduziram acessórios de fabricação barata e preço inferior – como camisetas com logotipos, nécessaires de náilon e bolsas jeans – e expandiram a faixa de perfumes e cosméticos. (THOMAS, 2008, p. 09) Em 1999, ano de melhores resultados, conforme dados divulgados pelo banco de investimentos Bear Stearns, os índices do luxo subiram 144 por cento. Mesmo com a redução de lucros no período do 11 de setembro, as estimativas em 2007 eram de que as vendas no setor de luxo ultrapassariam, inclusive, os índices anteriores ao ataque às Torres Gêmeas e deflagração da guerra norte-americana contra o Iraque. Contudo, a recessão ocasionada pela chamada crise global iniciada em 2008 possivelmente trará impactos ao setor com a retração dos investimentos e da comercialização de produtos em alguns pontos do mundo, em especial considerando que a crise atinge o Japão, atualmente maior consumidor mundial de bens de luxo. Além disso, a crise atinge frontalmente as empresas de capital aberto pela desvalorização das ações na bolsa de valores. Contudo, o que nos interessa nesse ponto da discussão é perceber as transformações na gestão das empresas. Convencionalmente, as mesmas pessoas que lidavam com a criação dos produtos dividiam suas atenções com as questões ligadas à administração da empresa, estabelecimento de contatos favoráveis de negócio e relações, a depender do caso, com a imprensa. Além disso, a condução dessas atividades era igualmente feita por diferentes indivíduos, quase sempre parentes. E tais encargos eram transmitidos geracionalmente, por herança. Esse modo de condução de negócios conseguiu sobreviver por uma quantidade bastante relativa de tempo, ultrapassando, por vezes (no caso das casas mais antigas), a marca de um século de existência. No entanto, conforme afirmado, as barreiras do incremento do pronto-para- usar, as mudanças no gosto do consumidor, as falsificações e as exigências da globalização, para além das querelas familiares34, criaram imensas dificuldades para a

34 O livro A casa Gucci: uma história de glamour, cobiça, loucura e morte, de Sara Gay Forden (2008) narra a história da marca Gucci, sua constituição em empresa familiar, períodos de auge (como nos anos 1950/60), escândalos e disputas judiciais familiares até o assassinato de Maurizio Gucci (supostamente por sua ex-esposa, Patrizia, condenada como mandante do crime) e a incorporação da Gucci ao grupo PPR, após intensas disputas com o grupo LVMH. Hoje, a Gucci é a segunda marca de luxo mais vendida no mundo. 173

sobrevivência do negócio nos moldes antigos. E nisso o caso da Louis Vuitton é exemplar, enquanto marco das transformações em jogo.

Em 1851, Louis Vuitton, aprendiz de cofreiro, embalava as malas da imperatriz Eugênia. Em 1854, abriu seu próprio negócio e começou a retrabalhar o projeto básico do baú que aprendera com seu mestre e patrão. Trocou a tampa arredondada por uma superfície plana, o que facilitava o empilhamento das malas na carruagem, e substituiu o couro, que mofava e ficava rachado, por um álamo coberto por lona de algodão à prova de água (SAMBRANA, 2007; THOMAS, 2008). Como os fabricantes de baús tinham também a função de arrumá-los e desarrumá-los, Louis Vuitton era o responsável por embalar os delicados vestidos criados por Worth para a imperatriz (lembre-se que os vestidos de Charles Worth levavam cerca de 14 metros de tecido, e apenas os botões, que eram bordados, demandavam de três a dez horas de trabalho). O negócio teve bons resultados por décadas, a ponto de expandir nos anos 1950. Contudo, nos anos 1970 de “crise do luxo”, a empresa contava apenas com duas lojas e 7 milhões de francos franceses (aproximadamente US$1,2 milhão) de lucro e clientes que haviam envelhecido. Os negócios estavam sob responsabilidade de Henry-Louis, que cuidava das vendas, e de Claude-Louis, que supervisionava a produção. O modo de fabrico e os modelos permaneciam os mesmos, e a clientela não se renovava. Em 1977, Renée Vuitton, a matriarca, como relata Dana Thomas, pediu ao genro, Henry Racamier, que assumisse os negócios da família. Racamier foi o primeiro responsável pelo atual formato da gestão dos negócios ligados ao luxo. Ele era casado com Odile, filha de Gaston-Louis e Renée, e tinha experiência gerencial, pois deteve uma empresa de folha de aço, a Stinox, que ele vendeu em 1976. “Recamier não era uma pessoa de moda; era um empresário” (THOMAS, 2008, p. 31). Ao analisar os livros descobriu que as franquias estavam obtendo o maior lucro. A especialidade dos “tradicionais” donos de empresas ligadas ao luxo era a criação e produção, mas havia considerável amadorismo no que se refere à comercialização e mesmo divulgação dos produtos. Os comerciantes compravam os produtos e vendiam por maior preço, além disso, por conta do contato direto com os clientes, faziam as escolhas acertadas quanto ao que comprar do fabricante, que, por falta de pesquisa, ficava com produtos em estoque sem obter saída. Racamier decidiu implantar, prossegue a autora, a estratégia da integração vertical: abriu lojas sob a propriedade e administração da Louis Vuitton. “Em alguns anos, a Louis Vuitton desfrutava de uma margem de lucros colossal de 40%, quando a maioria da concorrência ainda ganhava 15 a 25%.” (2008, p. 32). 174

Racamier aumentou a produção, construiu novas oficinas, introduziu uma linha de produtos mais popular, fez com que a Louis Vuitton patrocinasse as regatas da America’s Cup, para dar visibilidade à marca e, após sete anos de comando, a Louis Vuitton já havia aumentado em 15 vezes o volume de vendas e em 30 vezes o lucro, que passou a cerca de US$22 milhões. Foi ele também o responsável pela abertura do capital da empresa, em 1984, “o que forçou os executivos da empresa a trabalhar de forma mais profissional, mas também deixou a empresa vulnerável a um processo de mudança do controle societário por meio da compra de ações” (2008, p. 32). Em 1986, a Louis Vuitton adquiriu a Veuve Clicquot, um grupo que comercializa champanhe e perfume, e que contava com a Parfums Givenchy. No ano seguinte, Racamier conduziu a fusão entre a Louis Vuitton e a Moët Hennessy, criando o grupo LVMH. Em 1988, incluiu a empresa de moda Givenchy ao portfólio. Racamier criou, deste modo, um imenso conglomerado de empresas de luxo, com produtos diversificados e que, por isso, tinham condições de manter a lucratividade do empreendimento como um todo, caso uma das empresas passasse por qualquer dificuldade financeira. Além disso, a abertura de capital permitia maior volume de investimentos às empresas, bem como a facilidade em comprar ou vender ações, caso houvesse necessidade e interesse. Em 1988, Racamier propôs a Bernard Arnault participação na LVMH.

Formado em engenharia pela École Polytechnique, que ajuda a produzir a elite empresarial francesa, Arnault, como Racamier, era um empresário. Nas palavras dele: “Gosto mesmo é da idéia de transformar a criatividade em lucratividade” (ARNAULT apud THOMAS, 2008, p. 11). Morando em Nova York desde que François Mitterrand assumiu como primeiro presidente socialista da França, Arnault, com o afrouxamento da política econômica francesa anos após, decidiu voltar à França. Para tanto, pediu a seu advogado, Pierre Godé, que encontrasse uma empresa para que ele adquirisse. Em 1984, Godé propôs a aquisição do Grupo Boussac, que incluía a empresa têxtil de mesmo nome e a Christian Dior. À época, 90% das vendas da Dior eram licenças e seu lucro era de 38 milhões de francos franceses (US$7,5 milhões). No total, havia 260 licenças de produtos Dior fabricados por outras empresas, muitos deles abaixo do padrão de luxo. Em fins de 1984, a transação foi efetivada. “Em cinco anos, Arnault havia demitido cerca de 8 mil funcionários e vendido grande parte dos ativos fabris da empresa por quase US$500 milhões – o que o tornou um dos homens mais ricos da França” (THOMAS, 2008, p. 40). Ele começou a aplicar o método de Racamier de integração vertical, controlando produção, distribuição e marketing internamente. Em 1986, convenceu Christian Lacroix, estilista da 175

Patou, a abrir uma Maison chamada Christian Lacroix. Dois anos após, Lacroix teve que ressarcir à Patou US$2 milhões por conta das conseqüências de sua intempestiva saída da Maison. Arnault, por sua vez, tinha conseguido estruturar seu conglomerado de luxo. Quando Racamier, em 1988, propôs a Arnault participação na LVMH, ele (Racamier) e o presidente da LVMH, Alain Chevalier, travavam uma luta pelo controle do conglomerado. A aliança com Arnault, segundo Dana Thomas, parecia, para Racamier, uma forma de fortalecimento pessoal. Chevalier acabou se afastando do cargo de presidente da LVMH. Arnault, na época, o principal acionista do conglomerado, assumiu a presidência do grupo e Racamier passou a vice-presidente e diretor administrativo, bem como presidente da Louis Vuitton. A luta passou a ser entre Racamier e Arnault. Em abril de 1990, após decisão judicial favorável a Arnault, Racamier pediu demissão da Louis Vuitton e da LVMH. Na época de sua demissão, a empresa havia se expandido para 125 lojas e vendas de cerca de US$765 milhões. Arnault elevou exponencialmente tais valores. Contratou Yves Carcelle inicialmente como diretor de estratégia e desenvolvimento e depois o promoveu a CEO (Chief Executive Officer) e presidente da Louis Vuitton. O desafio era reformular a imagem da empresa junto ao público, que a identificava unicamente com as antigas malas de viagem. Carcelle e seu braço direito, Jean-Marc Loubier,

lançaram campanhas publicitárias da Louis Vuitton que romantizavam as viagens de luxo; organizaram e patrocinaram corridas de carros antigos, como a Vintage Equator Run em 1993 pelo sudeste asiático, e convidaram jornalistas para visitar a oficina Asnières e redigir matérias sobre a fabricação do baú Louis Vuitton. Reintroduziram a centenária lona xadrez Damier e lançaram uma bolsa retro chamada Alma, inspirada em uma linha de 1930. (THOMAS, 2008, p. 45). Trabalharam também o estilo da marca. Em 1996, ano do centenário da tela de monograma, contrataram sete estilistas de reconhecimento público (Sybilla, Azzedine Alaia e Vivienne Westwood foram alguns deles) para reinterpretá-la. Suas criações foram divulgadas em publicidade. Além disso, percebeu que nos desfiles de prêt-à-porter encontraria ampla publicidade mundial simultânea, ou quase. Para isso, decidiu contratar um estilista para fazer o prêt-à-porter feminino da Louis Vuitton, a ser apresentado nos desfiles de Paris, Milão e Nova York. O contratado foi Marc Jacobs, cujas roupas são produzidas em pequenas quantidades, com preços consideravelmente elevados e só podem ser adquiridas nas lojas próprias da Louis Vuitton. Quanto ao lado empresarial, durante a época de Racamier, a Louis Vuitton terceirizava 70% da produção. Carcelle reverte esse processo e aumenta o número de fábricas de cinco para quatorze. Ao mesmo tempo, 176

mantém o controle na distribuição, implementado por Racamier. “Para um europeu, tenho uma abordagem americana”, explicou Arnault (Apud THOMAS, 2008, p. 48).

Os anos 1980 foram marcados por considerável euforia no consumo, o que contribuiu para os resultados que, primeiro, Racamier e, depois, Arnault conseguiram obter (CASTARÈDE, 2005). Ao decorrer dos anos 90, Arnault passa a adquirir sistematicamente empresas com o nome já consolidado (e com problemas financeiros), ingressando em vários setores, mas sem os riscos e investimentos para criação de uma nova marca. Entre 1999 e 2000 adquiriu mais de vinte marcas conhecidas. No entanto, após 2000, com a diminuição dos índices de comercialização, vendeu algumas empresas e explora ao máximo as marcas mais fortes, no sentido de obter alta rentabilidade. Segundo Roux (2005), o desenvolvimento do consumo de produtos de luxo internacionalmente nos anos 80 não foi seguido por um momento de crise, como chegou a ser afirmado. A desaceleração era previsível levando-se em consideração o alto consumo do período. A questão crucial é, conforme a autora, a adequação aos anseios dos novos consumidores, o que tem feito surgir em diferentes pontos do mundo centros de pesquisa e cursos com esta finalidade. Um exemplo são as pesquisas encomendadas pelo Comitê Colbert, instância de representação e de promoção do luxo francês, a partir dos anos 90, com o intuito de definir luxo, seu peso no mercado, desafios e perspectivas. Compreende-se que o consumidor de luxo sabe reconhecer um produto de luxo, por isso eles seriam a principal fonte a partir da qual se deveria criar a definição de luxo e os requisitos necessários para que um produto possa ser enquadrado neste setor de mercado. Os anos 2000, por sua vez, foram caracterizados por novo aumento nos índices de consumo, abalado apenas pelo ocorrido em 11 de setembro de 2001. Com o “ataque às Torres Gêmeas”, símbolo norte-americano dos negócios capitalistas, pelo grupo Al Kaeda, numa postura anti-norte-americana e anti- capitalista, e a subseqüente guerra dos Estados Unidos da América contra o Iraque, além da divulgação dos modos e das condições de vida dos afegãos e iraquianos (dentre outros povos), os índices de consumo diminuem em diferentes pontos do mundo, o que tende a se agravar novamente com a divulgação da atual recessão norte-americana e da “crise global”: “Após o 11 de setembro, as vendas ‘sensacionais’ de 2000 e do início de 2001 despencaram de repente” (ERNER, 2005, p. 142). Atualmente o maior mercado de luxo é o Japão, tendo a China como grande aspirante a superar os Estados Unidos, em segundo lugar (LOPES, 2008). 177

A especificidade do consumidor de luxo tem exigido, inclusive, um preparo especial por parte dos profissionais que se relacionam diretamente com os clientes. Segundo Lydia Sayeg, responsável pela direção da Casa Leão, joalheria situada na capital paulista, a copeira da loja “tem uma lista com o nome de cada cliente, que mostra se eles preferem o café com muito ou pouco açúcar, com adoçante, frio ou bem quente, com ou sem leite. Aponta também se eles bebem água com ou sem gás, se preferem champanhe, uísque ou vinho” (SÔNEGO, s.d., p. 23). A matéria redigida por Dubes Sônego, intitulada Como vender artigos de luxo, traz como argumento que apenas o bom produto é insuficiente para atrair consumidores e transformá-los em clientes. Atendimento personalizado, conhecimento acerca do produto e das coleções e aquilo a que ele denomina bagagem cultural são entendidos como fundamentais. Como a relação deve ser de confiança mútua e de relativa intimidade com as preferências do cliente, a rotatividade de funcionários, comum no comércio em geral, não é bem vista: “clientes de luxo necessitam ser ‘carregados no colo da emoção’”, segundo Carlos Ferreirinha, diretor da MCF, consultoria especializada em negócios de luxo (apud SÔNEGO, s.d., p.27). O luxo está na excelência dos detalhes, o que inclui cuidado na fabricação do produto e no atendimento ao cliente. Em seu artigo, Sônego apresenta algumas dicas para vendedores que desejem se inserir no mercado de luxo:

1. O vendedor deve atuar como consultor e, para isso, deve acumular conhecimento sobre o produto, opções de produto e modo/ocasiões de uso;

2. Deve conhecer a história da marca;

3. O atendimento deve ser personalizado, a ponto de o cliente se sentir exclusivo, o que significa primar pela atenção conferida ao cliente;

4. Deve possuir “boa cultura geral e traquejo social” para conversas, ambientação do cliente e possíveis encontros de negócios fora do ambiente da loja;

5. Deve-se, por fim, evitar o rodízio de vendedores para que haja a devida sintonia com o cliente.

O desejo de personalização dos produtos e do atendimento, a atenção especial que diminui a frieza das relações comerciais e a redução do rodízio de vendedores tende a se generalizar para além do comércio de luxo. Transformações sociais no sentido de uma individuação, por conta do aumento da rede de relações, levam a uma conseqüente valorização das sensações que compensam, ou deveriam compensar, o relativo isolamento 178

vivido em meio à multidão. No entanto, é possível perceber também críticas ao modelo atual, que acabaria primando mais pela “massificação” de um sentido de luxo que, a rigor, apenas se aproxima do atendimento antigo do que propriamente um serviço personalizado que atinge uma quantidade ainda muito limitada de pessoas. É nesse sentido que se compreende a nostalgia de Thomas e sua afirmação de que o “luxo perdeu o brilho”. O termo masstige, junção de massa e prestígio, significa literalmente prestígio para as massas, isto é, consumidores de classe média que se dispõem a gastar de 20 a 200% mais em um produto inspirado em produtos de luxo. É a essa fatia de mercado, cujo crescimento do consumo se dava em torno de 10% ao ano (até o agravamento da crise global), que as empresas de luxo desejam atingir com produtos mais acessíveis. É, portanto, essa fatia de mercado, de uma classe média melhor estabelecida e de novos-ricos, que se torna o principal comprador e, pois, freqüentador das grandes lojas de luxo, que, assim, teriam “perdido seu brilho”.

O desenvolvimento das grandes holdings coincide com a internacionalização do mercado de luxo. A globalização faz com que apenas as marcas que têm apoio financeiro de grandes grupos tenham efetivas chances de sobrevivência em larga escala: os produtos precisam estar disponíveis e na mídia em diferentes lugares do mundo e quase simultaneamente, e o investimento na formação dos profissionais que atuam no setor é maior. A estratégia de crescimento foi diversificar a clientela, agora também comportando parte da classe média. Segundo Guillaume Erner (2005), mais de 60 por cento dos americanos, europeus e japoneses são consumidores, ainda que ocasionais, de uma marca de luxo. Dois seriam os segmentos que caracterizam os consumidores de produtos de luxo: os clientes muito ricos (clientela tradicional, afeita a viagens, mas fiel) e o segmento, segundo Roux (2005), menos fiel dos clientes “razoavelmente abastados”, expressão utilizada pela autora, composto por clientes mais atentos ao preço, mais exigentes e pouco fiéis à marca. Essa “democratização” levou a uma nova aproximação entre as idéias de luxo e de moda. O novo luxo comporta bens não tão raros (comparando-se, no vestuário, à alta costura), o que é possível com uma clientela em escala global, e nem tão perenes, com o objetivo de manter em movimento as aquisições de novos produtos. Assim, torna-se imprescindível concentrar esforços no sentido de demarcar o espaço, a distinção das empresas de luxo enquanto tais. E deve-se ressaltar que os produtos de luxo não se limitam ao vestuário; incorporaram produtos diversificados. Os segmentos de luxo englobam desde perfumes e cosméticos, bebidas, comércio automobilístico, hotéis e restaurantes a óculos, 179

dentre outros. Castarède (2005) classifica os produtos de luxo, em geral, em três modalidades:

1. produtos top-de-linha: ligados ao extremo luxo, como a alta-costura, alta joalheria, objetos de arte, palácios, dentre outros. É destinado a raras pessoas e conta com um faturamento anual estimado em 20 bilhões de euros.

2. luxo intermediário: objetos elegantes, caros, de boa qualidade, e mais acessíveis. Seu faturamento mundial por ano é estimado em 40 bilhões de euros, compondo uma fatia mais lucrativa do que o alto-luxo. Estão incluídos o prêt-à-porter (com uma média de participação de 14 bilhões de euros), os acessórios (calçados, chapéus, dentre outros), malas, relógios de pulso, canetas, dentre outros. Neste caso, além da qualidade, o preço é fator de importância capital.

3. produtos diferenciados: são ainda mais acessíveis e obtém-se um faturamento similar ao do luxo intermediário. Envolvem produtos, como perfumes e cosméticos, bebidas, lazer, eletrônica, gastronomia, esportes.

O objeto de luxo do primeiro tipo, prossegue Castarède, é prestigioso sem necessitar esforços de divulgação – ao contrário, o seu público, por ser seleto “pede” pouca divulgação. Já o do segundo tipo carece de estratégias mais racionalizadas de marketing, pois a distribuição é seletiva, mas relativamente extensa, por manter clientes em diferentes partes do planeta. No que se refere ao terceiro tipo, a ênfase está na publicidade e nas estratégias de distribuição – o que faz com que essa gama de produtos sofra mais com a concorrência. O maior lucro, contudo, advém do prêt-à-porter, dos acessórios e dos licenciamentos. Para melhor controlar a imagem da marca e a qualidade dos produtos, as grandes grifes, no entanto, como já afirmado, reduziram os contratos de licenciamento, centralizaram a fabricação dos produtos e optaram pela venda em lojas próprias – racionalização de custos. A Louis Vuitton, “com mais de 400 lojas espalhadas pelo mundo, (...) fatura 5 bilhões de dólares, tem margem superior a 40% e tornou-se a engrenagem central do qual faz parte, o LVMH. Sozinha a Louis Vuitton responde por mais de 25% do faturamento e por mais da metade do lucro do LVMH” (GASPAR, 2008, p.40). Uma bolsa chega a custar o equivalente a 75 mil reais. Outra estratégia é a diversificação de produtos, que permite atrair clientes com diferentes poderes aquisitivos, bem possibilita a que o cliente possa adquirir diferentes tipos de produto da mesma marca. Palavras do consultor de moda Jean-Jacques Picart, que tem o LVMH como cliente, sobre Arnault: 180

Mesmo hoje nunca está presente no estúdio de criação. Mas ele pode se gabar de ter mudado o sentido da moda. Ele nos ensinou que não se deve pensar em sucesso de uma coleção, e sim no sucesso de uma proposta comercial de longo prazo. (VARELLA, 2005, p. 27). Essa fala é reveladora no sentido de apontar que criador e gestão passam a estar separados, ainda que o criador não possa mais esquecer que trabalha numa empresa, para um patrão e com negócios. Por isso o costureiro, denominado estilista ou designer de moda desde os anos 1970 de expansão do prêt-à-porter, acaba congregando, como afirma Erner, o artesão, a estrela, o artista e o businessman numa mesma figura. Para ele, é inegável a vocação comercial da criação de roupas; no entanto, mesmo a arte e o artista não se oporiam mais ao capitalismo.

Ao contrário: encarnam para a sociedade um “continente modelo” pelo princípio de inovação, e, para o indivíduo encarregado de tarefas repetitivas, uma alternativa a um trabalho freqüentemente percebido como alienante. Assim, o trabalho do criador de moda encarna um ideal, representando uma excelente maneira de aproveitar as contradições do capitalismo. Seu personagem se diferencia do artista amaldiçoado, gênio precário, sempre à espera do reconhecimento de sua arte. Jovens costureiros – Yves Saint Laurent ontem, Alexander McQueen e John Galliano hoje – vêem seu talento ser celebrado, recebendo remunerações equivalentes a grandes empresários. Como qualquer dirigente da Microsoft, Tom Ford recebe stock-options35. Mas sua profissão, sua agenda, em uma palavra, sua vida, faz sonhar muito mais do que a de um responsável por uma grande empresa. Esses jovens são pagos para inovar; recebem, tanto no sentido próprio como no figurado, a bonificação de sua originalidade. Aprenderam a conjugar os imperativos da rentabilidade com sua própria inventividade, não para se redimir deles, mas, ao contrário, para satisfazê-los da melhor maneira. (...) Antigamente insistia- se bastante na imaginação e na criatividade deles. Doravante, destaca-se seu profissionalismo. Antes de tudo, os costureiros são grandes profissionais; nesse contexto, esse vocábulo nem mais parece exótico. (ERNER, 2005, p. 54/55). Bernard Arnault é o segundo lugar na lista de homens mais ricos da França. Quando assumiu a LVMH, em 1990, o lucro líquido era de US$621 milhões; em 2005, alcançou US$1,79 bilhão. Em 2008, segundo dados publicados pela revista Exame, o grupo tornou-se a maior empresa do mercado do luxo no mundo, com faturamento de US$24 bilhões e lucro líquido de 5,2 bilhões de dólares. E mesmo assim a quantidade de dinheiro perdido com as falsificações é alto. Segundo a Organização Aduaneira Mundial, o setor de moda chega a perder US$9,7 bilhões por ano para a falsificação. A alta costura, último reduto de uma possível identificação entre moda e arte, hoje não chega a contar com dez

35 Stock option é um plano (e há diferentes tipos de plano) que permite que os profissionais de uma empresa, após período de carência, adquiram ações da empresa onde trabalham por preço predeterminado (ou, a depender do caso, como bônus), contribuindo para a atração, permanência e maior produtividade de profissionais qualificados (QUINTAS, 2007).

181

maisons – no fim da Segunda Guerra Mundial, eram mais de cem. Por outro lado, a transformação do estilista em designer – acentuando seu caráter técnico – e de artista em, muitas vezes, funcionário de uma empresa leva à ressignificação do ideal de criatividade, agora posto na intrincada equação que envolve novidade, aceitação como algo obrigatório (trata-se de um negócio), manutenção do estilo da casa (o funcionário é substituível) e assinatura pessoal. Como funcionário, o designer de moda, ou diretor de criação, deve ser plástico a ponto de se coadunar com as diferentes demandas – de empregadores e consumidores, além das suas próprias. Além disso, deve-se considerar a possibilidade de ele trabalhar para diferentes marcas, com públicos distintos, e a possibilidade de diversificar os produtos. Como funcionário de uma empresa capitalista, o estilista é obrigado a assumir em seu cotidiano o objetivo da lucratividade, o que lhe permite afirmações como a de Tom Ford: “Sou cínico. Não sou artista. (...) me pergunto se algo vai vender. (...) posso e quero vender” (Apud ERNER, 2005, p. 54). E, mais recentemente: “Não me vejo como um artista. Sou apenas um designer que trabalha duro, que tem bom instinto comercial e amor em criar coisas belas” (2008, p. 89)36.

A produção é organizada de modo que tenhamos uma produtividade incrivelmente alta. O ateliê é um local de disciplina e rigor surpreendentes. Cada movimento e cada etapa do processo são planejados criteriosamente com a tecnologia de engenharia mais moderna e completa. Não difere de como são feitos os automóveis nas fábricas mais modernas. Analisamos cada parte do produto, onde comprar cada componente, onde encontrar o melhor couro ao melhor preço, que tratamento deve receber. Uma bolsa apenas pode ter até mil etapas de fabricação e planejamos cada uma delas. (ARNAULT apud THOMAS, 2008, p. 18). Apesar da evidente burocratização, evidenciada nas palavras de Arnault e pela escalada rumo à homogeneização global do modo de condução dos negócios a partir de um controle centralizado e dos próprios produtos que circulam por diferentes pontos do mundo, é possível falar de um contra-movimento: alguns desses criadores de itens de luxo começam a abrir pequenos empreendimentos destinados a uma clientela seleta, restrita, em moldes próximos aos “antigos”, mas com mais cuidado em relação à questão de gestão do negócio. Apesar de nos grandes conglomerados do luxo se afirmar o atendimento

36 Tom Ford em entrevista à revista IstoÉ Platinum (edição de abril/maio de 2008) após sua saída da Gucci e em período de abertura de loja de sua marca na Daslu, em São Paulo. Segundo ele, são oferecidas três categorias de serviço em sua loja: roupas produzidas sob encomenda, roupas produzidas sob medida e as prontas para vestir. Além das roupas masculinas, Tom Ford também assina uma linha de cosméticos em parceria com a Estée Lauder, óculos com a italiana Marcolin e, desde junho de 2008, começou a confeccionar sapatos de acordo com o tamanho dos pés do cliente. Seus ternos custam, em média, US$2,5 mil (prontos para usar) e US$7,5 mil (sob medida). (SAMBRANA, 2008). 182

personalizado como uma característica presente em suas diferentes lojas, alguns criadores se ressentem, como mencionado em relação à jornalista Dana Thomas, de uma “massificação” do luxo e da perda de qualidade de seus produtos. No entanto, não se trata propriamente de um retorno às anteriores estratégias. A organização do negócio permite a internacionalização dos clientes e índices consideráveis de lucro, a medir pelo quilate da clientela. O estilista congrega o administrador moderno no equilíbrio conquistado entre o exclusivo e o industrial.

Distinção em época de “novo luxo” Charles Worth, no século XIX, conseguiu elevar a condição social do costureiro na medida em que obrigou a clientela a se submeter à criação “livre” do artista. Agora, nova inversão é promovida e acaba por ter como conseqüência a clara submissão do criador à clientela. É, no entanto, cabível questionar: a aura de sacralidade ainda é condição à perpetuação do luxo? Se o couturier é transformado em designer, este se vale do conhecimento adquirido em institutos especializados e do bom-gosto burilado através dos estudos e de seu tino de observação (ainda concebido como dom) para, junto a outros profissionais, promover não mais produtos, e sim marcas que contam com todo um aparato logístico (leia-se de profissionais de administração, marketing e publicidade) em sua construção. O designer, ainda que seja fundamental e tenha alcançado o patamar de celebridade, perde relativo espaço para a marca, que, substancializada, assume o papel de produtora dos bens. Não importa que Dior tenha morrido, que Galliano, seu substituto na criação de vestuário, não seja perfumista; o perfume Dior é um produto confiável por ser Dior. A clientela dos anos 2000

faz suas afinidades e identificações afetivas depender das marcas que sabem projetar sua identidade, reinterpretando-a de maneira criativa e coerente, na época ou em outro universo. Antes que aos habituais arbítrios qualidade-preço, ela se entrega a um raciocínio valor-preço (value for money). Qual é o valor agregado simbólico, afetivo e emocional, que justifica o diferencial de preço praticado pelas marcas de prestígio? Qual é o sentido, o conteúdo desse valor, em que legitimidade ele se apóia? Perguntas que o consumidor faz a si mesmo a fim de justificar suas escolhas. (ROUX, 2005, p. 96). Do ponto de vista do consumidor e do produtor, a centralidade é posta no cliente e, pois, na capacidade de as marcas (substancializadas) se mostrarem direcionadas a cada um, tomado como indivíduo único e especial, para que a identificação, por parte do cliente, com a marca seja possível e efetivada. Essa exigência aparece como um aparente 183

paradoxo frente a uma produção, inclusive de luxo, que é extensiva, contudo novos mecanismos de distinção são erigidos, proporcionando, inclusive, uma tentativa de re- fetichização do objeto. A distinção é posta não apenas na possibilidade de ter o que outros não podem financeiramente adquirir, por contra da extensão da produção e do processo acelerado de cópias que o próprio desenvolvimento tecnológico-informacional ajuda a constituir, mas fundamentalmente num saber acumulado que permite fazer escolhas que serão aceitas como refinadas por seus pares.

Nesse caso, os produtos roçam a ignorância com o desprezo, destinando- se àqueles que desejam, acima de tudo, compartilhar conhecimentos restritos. É na escassez de informação e não propriamente na preciosidade material do artigo ou em sua longevidade que está a supremacia de valor. (GARCIA, 2006, p. 28). Ao lado do convencional objeto de luxo figura agora o simples e, deste modo, sublinha Carol Garcia, o novo luxo ganha um caráter intelectual, por um acervo de conhecimentos acumulado que permite identificar, dentre as coisas simples, aquilo que é elegante, o que, por conta da parca circulação de informações a respeito, se torna um bem possuído por poucos, pois pequenas diferenças entre os produtos se tornam fundamentais (SOARES, 2006). Deste modo, apenas os iniciados reconhecem os iniciados. Os antigos modos de identificação do luxo por seu valor financeiro passam a ser questionáveis. Os produtos devem transmitir emoção, como é perceptível no fragmento de artigo transcrito abaixo:

Está nascendo um novo luxo. Não apenas exclusivo. Criativo. Um conceito que alia grandes marcas a materiais naturais, design exclusivo e experiência cultural para impactar um público classe A cansado da sofisticação clássica. (...) Quem poderia supor que a ráfia, gênero de palmeira cujas fibras produzem fios industriais, poderia compor chiquérrimas sandálias de Stella McCartney? (VITÓRIA, 2007, p. 96). O esvaziamento de significado posto na descartabilidade das mercadorias ganha sua tentativa de contrapeso, ou de refetichização, a partir da recorrência à experiência, ligada ao processo de fabrico ou ao processo de aquisição do bem, que ganharia, assim, autenticidade. O valor não estaria apenas cristalizado na memória que advém do uso de certos bens em momentos marcantes de vida, eles seriam escolhidos para aquisição por serem autênticos. Isso faz com que não necessitem ser caros para serem valiosos. Em especial, a autenticidade estaria no rústico, naquilo que é ligado à natureza, ao artesanal, ao distante (naquilo que advém de costumes de povos estrangeiros ou das camadas populares e que se tem a sensação de fugir do frio e vazio mundo de produção capitalista, por conta do envolvimento, da entrega naïve, como afirma Bourdieu, que 184

caracteriza a relação das camadas populares com os bens, e que poderíamos estender para povos não-ocidentais, a depender do caso). No que se refere ao luxuoso, acaba por ocorrer uma intensa mistura de materiais e, como afirmado, uma ressignificação do luxo em torno de certos valores recorrentes, em oposição à suntuosidade. Conforme observado, em especial em matérias publicitárias e em artigos jornalísticos que apresentam produtos de luxo, não necessariamente ligados ao vestuário, pôde-se observar que seriam eles: conforto, elegância/requinte/sofisticação, tradição, simplicidade, aventura, emoção. Além disso, o produto de luxo deve ser raro, ou seja, personalizado – o que, mais uma vez, ajuda a eleger o artigo feito à mão como pleiteante ao luxo; contudo, muitas vezes, em associação a minuciosas técnicas de fabrico ou a outras técnicas e/ou processos de composição de caráter industrial. Na busca por autenticidade e individualidade, a customização – que é a personalização de uma peça feita pelo consumidor ou pelo próprio fabricante, como um serviço adicional oferecido à clientela – ganha espaço como estratégia fundamental. A Louis Vuitton, além de preservar alguns aspectos artesanais de produção, customiza as peças em função do gosto do cliente. Por exemplo, no relógio Turbillon, o proprietário pode gravar o seu nome, escolher o tipo de pulseira, a cor do ouro e o tipo de pedra preciosa que comporá o relógio (SAMBRANA, 2007). Tal demanda tem levado a conseqüências como um novo desenvolvimento da atividade artesanal em geral, inclusive com um cuidado maior de profissionalização. Na Itália, a Bottega Veneta, que faz parte do grupo Gucci, e é líder no mercado italiano de roupas e acessórios em couro, começou a promover um curso gratuito com duração de 36 meses para jovens entre 18 e 25 anos, com segundo grau completo, para formar costureiros especializados em trabalho artesanal com couro, uma espécie de retorno às medievais corporações de ofício (RABELO, 2007). Este projeto tem por objetivo sanar a dificuldade em encontrar profissionais com conhecimento para a atividade. A escassez de trabalhadores aptos pode ser compreendida por conta da mencionada corrida por diplomas que acabou por desvalorizar em demasia as atividades de caráter técnico, entendidas como inferiores em relação a funções enxergadas como correlatas (comerciais e artísticas), mas com superior status. No entanto, como afirma Rabelo, “o cuidado é artesanal, mas a ambição é globalizada” (2007, p. 37). Trata-se de um mercado em expansão no mundo, inclusive no Brasil, em que, segundo dados, o consumo de produtos de luxo é visto como promissor por conta não apenas de uma maior estabilidade da moeda brasileira e da valorização internacional do luxo, mas também por conta, segundo dados da pesquisa realizada em novembro de 2004 pelo Instituto Ipsos (apud KLINKE, 2005), de o brasileiro se dispor a gastar acima de suas posses na aquisição 185

de produtos entendidos como supérfluos, o que faz com que o consumidor brasileiro pague em parcelas por produtos de luxo. Apesar da falta de dados específicos, considera-se que há um gosto pela novidade (para além da qualidade ou apelo à tradição) que impulsiona o consumo no Brasil. A chamada crise mundial, por outro lado, ameaça alcançar o setor de luxo que, estima-se, deve crescer apenas 3% em 2009, comparado aos 10% dos últimos cinco anos. A decisão tomada por algumas grifes, como a Louis Vuitton, a Gucci e Armani, é investir em países emergentes para diminuir os efeitos da crise.

Uma pesquisa realizada pela consultoria Bain & Company mostra que o mercado de luxo nos países que compõem o Bric (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia e China), com crise e tudo, deve crescer, em média, 25% nos próximos cinco anos. E o mercado brasileiro, com faturamento estimado hoje em 1,6 bilhão de dólares ao ano, é o que deve registrar o maior aumento nesse período: cerca de 35%. (MEYER, 2008, p. 26). Estima-se que 50 grifes de luxo devem se estabelecer no Brasil nos próximos cinco anos (até 2013, portanto). O argumento está no potencial de vendas do Brasil, e não no atual volume de vendas. Houve um aumento no número de milionários novos no país nos últimos dois anos, com o aquecimento do mercado de capitais37; e a classe média brasileira ainda não foi alçada ao consumo de produtos de luxo (mais propriamente o prime), o que é visto como interessante e ainda intocado nicho de mercado38. Outro importante fator a ser destacado é que, apesar das dimensões do território brasileiro, há grande concentração da clientela e das lojas que se dedicam ao luxo em poucas cidades. Ainda segundo Meyer,

aproximadamente 75% dos artigos de luxo do Brasil são vendidos na cidade de São Paulo. E, desse total, 95% são comprados numa região que ficou conhecida como Quadrilátero do Luxo. Trata-se de uma área de pouco mais de 2,6 quilômetros de raio que concentra os quatro principais pontos-de-venda de grifes famosas do país (...): o shopping Iguatemi, no bairro de Pinheiros, as imediações da , nos Jardins, a Villa Daslu, no bairro da Vila Olímpia, e o Shopping Cidade Jardim, localizado próximo à marginal Pinheiros. (2008, p. 31/32). Deste modo, haveria possibilidade de crescimento do consumo interno de produtos nacionais, ao mesmo tempo em que a busca por experiências prazerosas e o interesse pelo distante aumenta as possibilidades de inserção do trabalho brasileiro em

37 “Segundo dados do banco de investimento Merryl Lynch, ao longo de 2007 surgiram 63 novos milionários por dia no país. O número de pessoas com patrimônio superior a 1 milhão de dólares aumentou de 92 000 em 2002 para 143 000 em 2007, um salto de 55%. (...) E, pelo menos até o momento, a crise no mercado de capitais parece não ter alterado significativamente esse quadro” (MEYER, 2008, p. 30). 38 Analistas têm utilizado uma diferenciação entre produtos de luxo (o alto luxo dos produtos exclusivos e quase completamente produzidos de modo artesanal) e produtos premium (diferenciados, de alta qualidade, mas não exclusivos, seriam os chamados top de linha de uma empresa comercial). A alta classe média e a classe média seriam consumidores de produtos premium, por excelência. 186

âmbito internacional com produtos de qualidade e menor preço. Isso, no entanto, não significa negar a crise ou diminuir seus impactos, já sentidos, mas apontar que, ainda assim, alguns empresários têm considerado que a diminuição do peso dos Estados Unidos e dos países europeus no consumo de luxo pode vir a favorecer o desenvolvimento de tal setor em países como o Brasil, tomados como alternativa à crise. O comércio de produtos de moda produzidos no Brasil tem dificuldades de crescimento por conta de problemas gerenciais, concorrência com o mercado de produtos falsificados, um público interno ainda restrito (apesar de promissor) para os bens mais caros, ao mesmo tempo em que falta espaço e visibilidade para inserção no mercado externo. “A moda brasileira brilha, mas não vende”, afirma Gloria Kalil (CAMARGOS, 2008, p. 44), consultora de moda, ao comentar os mais recentes casos de compra de marcas brasileiras por holdings, no mesmo movimento feito por Bernard Arnault na Europa.

Em acréscimo, o crescente prestígio das marcas de luxo e seu reconhecimento por diferentes agrupamentos sociais, distribuídos em vários pontos do planeta, têm incrementado a proximidade e parceria entre empresas ligadas à produção de diferentes bens ligados ao luxo e grifes de moda. Um exemplo é o aparelho celular LG KE580 Prada ou o Nokia N93 Diesel, ainda no que toca a aparelhos celulares; o helicóptero, modelo EC135, fabricado pela Eurocopter, remodelado em seu interior pela grife francesa Hermès; o Flying B Chronograph, relógio fruto da parceria entre o fabricante suíço de relógios Breitling com a montadora inglesa Bentley.

O estilista Giorgio Armani foi um dos primeiros a fazer isso. Há cerca de quatros anos, ele se juntou com a montadora Mercedes-Benz e criou o Mercedes-Benz CLK 500 Cabriolet design by Giorgio Armani (cerca de R$ 220 mil). Os 100 modelos fabricados, apesar de custarem uma pequena fortuna, foram vendidos rapidamente. “Há uma transferência de valores entre as marcas. Armani agrega referências únicas ao carro”, diz Pyr Marcondes [sócio e diretor da Superbrands, consultoria especializada em avaliação de marcas]. (FURTADO, 2008, p. 47). A diversificação dos produtos que exibem uma mesma marca (brand stretching) não é recente no caso da moda. Poderíamos citar como exemplos Paul Poiret, Elsa Schiaparelli e Coco Chanel, com seu famoso e ainda existente perfume Chanel Nº 5, ou mesmo o sistema de licenças de Dior. Para Bourdieu (2002a), tais processos efetivavam, em conformidade com o afirmado pelo consultor Pyr Marcondes, uma espécie de prolongamento de valor da marca aos diferentes produtos a ela associados. A concepção de Bourdieu é de que a marca é a real possuidora de valor, desde quando seu nome, enquanto tal, é já socialmente reconhecida. A inovação de Armani foi associar duas marcas 187

conhecidas e efetivamente interferir, participar da elaboração de um produto de outra marca e de natureza distinta em relação àquilo a que ele se dedicava. Nesse caso, as duas marcas transferem seus respectivos valores, proporcionando uma esperada valorização de ambas, medida através da resposta de público quanto ao produto decorrente da associação, e do volume de vendas dos diferentes produtos comercializados pelas duas marcas em separado. Foi o que ocorreu a partir da parceria entre Bleitling e Bentley. Mais uma vez, o paulistano Herchcovitch é exemplar no Brasil a respeito. Em sua lista de licenciamentos e parcerias figuram: Motorola (celular modelo Motovitch), a Zelo (linhas de cama e banho), a Olympikus (linha de tênis e uniforme da delegação brasileira que competiu nos jogos Panamericanos de 2003 e nas Olimpíadas de 2004), a Dryzun (jóias), Sugar Shoes (tênis), Melissa, Tweety, Lupo, Tok&Stok (aparelho de jantar e móveis), Walt Disney, Sanrio, Zé do Caixão.

As noções de criatividade, inspiração e o lugar do criador são deslocados para acompanhar tais transformações. Seja denominando designer de moda ou diretor de criação, autodenominação dos estilistas nos anos 1990, aquilo que esses termos parecem buscar é uma expressão mais condizente com o apelo técnico-profissional da atividade. A lógica da concorrência e o desejo de expansão da marca, ao que parece, têm exigido dos estilistas rever a artística rejeição ao envolvimento com questões e preocupações materiais em nome do burguês desejo de sucesso. Busca-se, pois, as alternativas que permitiriam permanecer criativo, cultivando a imaginação e assumindo um estilo de vida ainda marcadamente artístico, e administrar um negócio com objetivos de lucro como marca de reconhecimento. Não interessa a esses profissionais a rejeição em vida para celebração post mortem. As soluções buscadas são ou a assunção da função administrativa ou a divisão de funções, delegando a outrem o cuidado com o negócio. De qualquer modo, o estilista passa a trabalhar declaradamente em função do mercado e com o lucro como objetivo. Sua vinculação ao mercado parece não suscitar mais tantas polêmicas, e é cada vez mais usual. Assim, tais mercadorias, apesar do prazer que proporcionam, não seriam vistas mais como objetos sagrados, como é perceptível pelo desapego aos bens. O antigo luxo era, em certa medida, eterno; o “novo”, não. Talvez por isso se dê a corrida em busca da autenticidade, o que afeta, inclusive, as estratégias de produção e as características dos produtos comercializados em diferentes lugares do mundo, a exemplo do Brasil.

Em 1992, o Comitê Colbert encomendou uma pesquisa ao Cofremca junto aos consumidores, tendo como campo de trabalho os Estados Unidos, a Espanha, a Itália, a 188

Alemanha, a Grã-Bretanha e o Japão. O intuito era, a partir das definições dadas pelos consumidores acerca do que é luxo, proceder recomendações às marcas para melhor condução das estratégias de negócios. Tais recomendações foram, segundo Roux (2005): 1) pôr-se em cena e causar sensação; 2) fazer-se vida e emoção; 3) ganhar sentido e significação. Em outros termos, a aura de sacralidade expressa pela noção glamour precisa ser mantida, mas outros termos são criados para dar conta deste novo momento, não apenas no setor de moda. As discussões acerca do que vem sendo denominado “indústrias criativas”, do qual a moda faria parte (além da música, artesanato, dentre outros), vem se avolumando. Segundo dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), os negócios ligados à criatividade movimentam em torno de US$ 1,3 trilhão, cerca de 7% do PIB mundial. No Brasil, estima-se que movimenta cerca de 5% do Produto Interno Bruto.

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Inicialmente, trabalho técnico que submetia o “fazedor” às vontades de seus clientes aristocráticos, o mérito de Worth foi perceber a valorização do artista em sua época e as conseqüências favoráveis ao costureiro se seu ofício fosse reconhecido como artístico. Ainda que o resultado discursivo tenha sido o debate e, pois, a tensão instaurada por vozes dissonantes, tal associação gerou uma inversão de relevo nas relações entre costureiro-cliente. Aquele que anteriormente se via como mero técnico, cujo trabalho se restringia à execução das ordens de seus clientes que, assim, eram entendidos como os responsáveis pelas inovações (a parte intelectual da produção), passa a se perceber e a ser percebido como criador que, por seu dom em imaginar belas obras e exteriorizá-las em conformidade com os rigores do bom-gosto, pode assinar suas criações e exercer aquilo a que foi destinado (vocação). De mero executor, portanto, o costureiro transmuta-se em criador. No entanto, isso não chega a empanar a relação de proximidade com o mundo dos interesses pecuniários. A tensão vivida na época no que se refere à comercialização de obras artísticas é, desde sempre, vivenciada nesta herética produção criativa. Worth, como mencionado, advinha de camada popular e, pois, tinha na produção de vestuário seu sustento e desejava, como muitos de sua época, o reconhecimento em vida, medido, burguesamente, pelo acúmulo de dinheiro. No entanto, é perceptível um aumento e incremento dos discursos mais recentemente dirigidos à afirmação, por parte de criadores de moda, de que esta deve ser definida como um negócio. 189

Ao contrário do que é possível imaginar, tal afirmação remete à percepção de que “o lugar” da produção de moda, e de seu produtor, estão suficientemente consolidados e de que a organização do trabalho, como uma empresa convencional gerida com fins à internacionalização, não ameaça a noção de que se trata de um trabalho ligado à criatividade. A mudança substancial está na percepção da centralidade crescente que o consumidor vem assumindo no processo criativo. O criador livre e solitário (artista), como discutido, cede lugar ao profissional atento, por pesquisa, às demandas de mercado e que necessita de um trabalho em equipe, coordenando diferentes atividades e tendências medidas em pesquisas junto ao consumidor e outros agentes que compõem o circuito, para alcançar seus objetivos – e talvez por isso o termo diretor de criação tenha parecido mais condizente com o tipo de trabalho realizado. Em outros termos, a criação permanece, mas deixa de ser concebida como se fosse livre. Talvez, inclusive, o mais adequado termo seria “invenção” nesse novo contorno da produção de moda em que as mudanças devem ser racionalizadas, restritas a detalhes e paulatinamente inseridas a fim de evitar maiores riscos ao negócio. As restrições maiores à liberdade, ou melhor, ao ideal de liberdade por parte de tais criadores acentua, portanto, o grau de racionalidade deles exigido no processo criativo – lembre-se de que, no discurso de muitos filósofos e artistas, dos quais apresentamos aqui pequeníssima amostra, a racionalidade é componente vital na composição de uma obra de arte de bom-gosto. Nestes termos, as pesquisas empreendidas são a bússola fundamental à construção de um produto aceitável no mercado. A partir delas, temas são definidos, inspirações primeiras a que se deve realçar em busca por reconhecimento, parâmetro na definição dos “naturalmente” vocacionados a criar. Os remanescentes da moda conceitual oferecem inspirações mais abstratas (caricaturadas) a outros criadores, que deverão sintetizar as referências aceitas com outros elementos, formando novas e inusitadas composições. Longe, portanto, de se constituir por uma espécie de “sopro divino”, a inspiração é fruto de pesquisas e de observação do cotidiano, de busca por algo inspirador, além de fruto de negociações entre diferentes indivíduos que compõem a rede, tais como os representantes da indústria química na definição de cores e padronagens (CALDAS, 2004). É, portanto, a inspiração uma ferramenta de trabalho. E nisso a capacidade de circulação por diferentes grupos, de observação e de síntese são fundamentais ao criador.

A cena cultural (...) é seguida de maneira muito mais atenta pelos criadores de moda. Agnès B (...) interessa-se pela arte contemporânea, mas também patrocina o jovem cinema e ouve rap há muito tempo; Karl Lagerfeld tem uma cultura artística muito ampla, assim como uma galeria e uma livraria de arte. Essas propensões incitam os costureiros, de forma 190

quase natural, a se nutrir de influências estéticas externas à moda, que freqüentemente se encontram nas tendências do momento. Poucas inovações estéticas ou musicais lhes escapam; sua ideologia profissional os incita a pensar que tudo que é novo faz parte de seu mundo. (ERNER, 2005, p. 141). Mais propriamente, as inspirações podem advir de diferentes situações e áreas. Por isso, a capacidade/possibilidade de circulação efetiva por diferentes grupos, em diferentes lugares, se transforma em requisito fundamental, por oferecer a matéria de base que possibilita sínteses mais ricas, inusitadas, e ainda com o atendimento à identificação de consumidores em potencial. A noção, pois, de vocação secularizada por Lutero e depois por Calvino mantém sua validade e, portanto, seu uso nos dias atuais. O papel de síntese do criador, por sua vez, ganha evidência. O consumidor deve “se perceber” na obra, e não se submeter a ela e, por conseguinte, ao seu criador. Deve, pois, estar contido nela pelo trabalho promovido por um conjunto de profissionais articulados por uma divisão rigorosa e racional de tarefas. A relação mágica, no entanto, permanece? Tal história ilustraria, talvez, nos termos de Weber, a rotinização do carisma. O estilista, de mago, poderia ser hoje percebido como sacerdote. A moda sairia de seu status de heresia para se transformar numa “religião autônoma”, com suas crenças e normas singulares, com seus especiais sacerdotes e sua instituição, a marca. Os sacerdotes, formados por ascese, mesmo dotados de certo carisma, são substituíveis. A marca seria a grande responsável pela transubstanciação de valor. Mas, é claro, muitos estilistas novatos, porém que já desfrutam de certo reconhecimento e têm a possibilidade de fundar sua empresa, utilizam seu nome, na convencional associação entre a figura do criador e da marca. Estaríamos vivendo ainda um processo de transição, um mundo em que as casas familiares dividem espaço com os gigantescos conglomerados internacionais. O movimento que permitiu a ascensão, pela instrução, de elementos da pequena burguesia ao âmbito de produção da moda parece começar, ainda que de modo marginal e muito desigual, ameaçar a se colocar também em plano internacional. A noção de novo luxo permite isso ao possibilitar o questionamento do sentido de gosto. Deste modo, os estilistas podem advir de diferentes pontos do mundo. Ainda que o reconhecimento do bom gosto se dê, primordialmente, por parte de uma fração daqueles que pertencem às camadas mais favorecidas economicamente, o ideal da simplicidade e a busca por autenticidade tem permitido, paradoxalmente, o estabelecimento e reconhecimento de certas formas de composição popular como bom gosto, o que nos leva, em conseqüência, a questionar a noção de Bourdieu de que as camadas menos favorecidas seriam aí meras imitadoras. Elas se tornaram fonte 191

fundamental de inspiração. Ao lado disso, a compreensão da composição do gosto contemporâneo e das características da produção recente de moda, a partir do luxo, permite uma discussão mais acurada acerca do caso brasileiro, o que será feito no próximo capítulo a partir de Alexandre Herchcovitch.

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PARTE II: HERCHCOVITCH

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OS FIOS E A TRAMA OU “O CROQUI ARTÍSTICO ACABOU”: ALEXANDRE HERCHCOVITCH E O NEGÓCIO MODA

Nem lembro qual foi minha primeira aparição pública, seja numa entrevista para televisão ou quando publicaram a primeira matéria a meu respeito num jornal. Mas uma informação vem sempre à minha cabeça: recordo que queria focar na seriedade necessária ao mercado de moda e como este merece ser bem tratado. Pensava num discurso que afastasse aquela aura de futilidade e deslumbramento que cerca certos personagens da moda, e falar de negócio, números, mostrar uma indústria poderosa... É aquela coisa: pouca idade e muitas certezas absolutas, verdades definitivas... (HERCHCOVITCH, 2007, p. 45). A coleção feminina de Inverno 2009 do estilista brasileiro Alexandre Herchcovitch, desfilada na data de 19 de janeiro de 2009 no São Paulo Fashion Week, maior evento de moda da América Latina, que ocorreu no prédio da Bienal de São Paulo, teve como inspiração o caos urbano, a mistura sem ordenamento, o cabaré dadaísta e o punk alemão. Segundo Herchcovitch, em entrevista a UOL Estilo (19/01/2009), sua inspiração primeira foi o crescimento desordenado e composição arquitetônica de cidades como Berlim e São Paulo. Essas cidades teriam sua unidade, enquanto cidades, no desigual, na mistura, na conturbação visual de sua falta de regularidade. No entanto, essa inquietante desarmonia forma um conjunto que incita o questionamento do que seria, de fato, unidade e se a noção de unidade com que operamos corresponde efetivamente àquilo que encontramos nas ruas de diferentes cidades espalhadas pelo mundo. Ao tomar Berlim e São Paulo como exemplos, Alexandre Herchcovitch parece querer nos lembrar da proximidade que pode ser percebida nessas cidades geograficamente distantes entre si. Do mesmo modo, ainda que ambas sejam marcadas por esse “crescimento desordenado” a que menciona o estilista, permanecem como distintas cidades. A provocação desse tipo de estética urbana consiste na aproximação, mesmo involuntária, entre edificações díspares em meio à conturbação visual de peças publicitárias, carros e mesmo transeuntes que não obedecem a padrões quanto à aparência. Herchcovitch transporta isso para a linguagem dos “looks” de moda, em primeiro lugar, ao associar o cabaré ao punk, união inicialmente inusitada entre temas e referências que parecem distantes. Em segundo lugar, e talvez de modo mais impactante, tais concepções pautaram um trabalho têxtil de compor diferentes texturas em uma mesma peça de roupa, criando uma espécie de ilusão visual: “Toda essa mistura fez com que eu criasse roupas com tecidos de texturas diferentes e que parecessem que são sobrepostas mas que na verdade são uma roupa só. (...) A 194

gente criou texturas sobre as texturas. (...) A gente trabalhou em cima do tecido”39. Diferente do convencional trabalho em patchwork, que é a construção de uma peça a partir da composição entre recortes de tecidos diferentes, Herchcovitch apresenta a diversidade dentro do mesmo tecido. O caráter ilusório está em operar com o olhar convencional de que a heterogeneidade ou assimetria implicam em cortes ou em uma reunião forçada de elementos. O estilista paulista nos confronta com uma nova percepção de unidade possível inspirada em cidades cosmopolitas. Em acréscimo, aponta uma São Paulo em conformidade com características de outras cidades desenvolvidas da atualidade e, talvez nisso, busque expressar igualmente que o tipo de roupa que produz é usável em São Paulo, do mesmo modo que em Berlim. Já no desfile masculino para a mesma estação, Herchcovitch buscou apoio, segundo ele, na saudade que as pessoas do mar têm do que deixaram na terra. A coleção pode ser interpretada como uma espécie de nostalgia da fixidez e de certo senso de tradição, de raízes deixadas para trás no curso dos acontecimentos, de terra por fim, lembrando aqui, em certo sentido, a definição de Zygmunt Bauman (2007) de que estaríamos em uma modernidade líquida. E nisso Herchcovitch se lança em busca do clássico através da alfaiataria. Segundo ele, em entrevista realizada em 23 de janeiro de 2009, data da apresentação da coleção masculina para o Inverno 2009, as pessoas parecem que fogem do clássico, então o estilista paulistano, por sua vez, estaria resgatando-o sem a diferenciação feita a ele. Não se trata, contudo, de algo pontual para este evento. Há coleções, Herchcovitch tem buscado aperfeiçoar sua alfaiataria e tem conseguido reconhecimento quanto a esse empreendimento. A atenção em relação ao corte mais refinado estaria vinculada à sua busca por internacionalização, à necessidade de melhor corresponder às necessidades de uma clientela mais exigente, mais acostumada a trabalhos de melhor qualidade.

Essas coleções de Herchcovitch foram apresentadas já em meio às discussões acerca da crise global e de suas possíveis conseqüências para o Brasil. “O crash de Wall Street e de suas congêneres e a subseqüente recessão que já assola boa parte do mundo rico fizeram com que a atenção geral se voltasse para um conjunto de países batizados de emergentes” (LAHÓZ, 2009). Ainda que a chamada tese do “descolamento”, concepção de que alguns países pudessem sair ilesos da crise global, não seja mais acreditada, há possibilidades de, em meio a um cenário em que os países da Europa e dos Estados Unidos teriam crescimento zero ou negativo projetado para 2009, os países emergentes (em especial China, Índia, Rússia e Brasil) manterem ainda possibilidades de crescimento positivo, mesmo sem alcançar o

39 Entrevista de Alexandre Herchcovitch a Tv UOL. Reportagem de Geovanna Morcelli, em 19/01/2009. 195

percentual atingido nos anos anteriores. No caso do Brasil, cujo PIB de 2007 foi 5,4% e, no primeiro semestre de 2008, comparado ao mesmo período de 2007, atingiu uma alta de 6%, esperam-se índices menores para o ano de 2009 – a projeção do Governo Federal é de PIB de 3% em média – mas ainda assim haveria crescimento. Um dos maiores problemas enfrentados pelo Brasil é ter seu crescimento econômico atrelado a negócios com a China, que já começa a viver os efeitos da crise. Tal panorama implica transformações significativas na configuração-moda. Os anseios, por excelência, daqueles que têm sua sede no Brasil é a possibilidade de estender seus negócios de modo a alcançar vendas e reconhecimento em especial na Europa e nos Estados Unidos. Herchcovitch, por exemplo, chegou a declarar publicamente sua intenção de inaugurar loja própria em Nova York com os investimentos que receberia advindos da abertura de capital de sua marca, seguindo a trilha de sua loja inaugurada em Tóquio em 2007. No entanto, com a crise, há grande possibilidade de que as marcas internacionalmente conhecidas comecem a aumentar os investimentos e inserção nos países emergentes como forma de compensação às possíveis perdas de mercado na Europa e nos Estados Unidos. De fato, o peso de países como o Brasil no faturamento de grifes de luxo é pequeno – não chega a 2% das vendas –, mas entende-se que tais países são promissores por terem mercado inexplorado e economia em crescimento. Deste modo, as disputas internas também se acirrariam, o que pode promover mudanças de curso nas estratégias definidas para as marcas brasileiras, que até princípios de 2008 contavam com ambiente favorável, apesar dos obstáculos ainda existentes, para ampliação dos negócios à escala global. Em acréscimo, alguns dados apontam o aumento significativo do crescimento nos índices de consumo nos países emergentes, a ponto de virem a rivalizar com os países desenvolvidos. Mesmo considerando que isso ocorreria em 25 anos e que tais projeções são apenas probabilidades e, portanto, estão sujeitas a mudanças repentinas de curso, os resultados dessas pesquisas têm visíveis efeitos em termos de condução de negócios. As ações nos países chamados desenvolvidos e emergentes no período de crise será fator fundamental na confirmação/negação de tais projeções. De qualquer modo, o prêt-à-porter de luxo convencionalmente sofre abalos inicialmente em suas vendas, atreladas à concepção e ao modo de vida ligados à ostentação. Diferentes grifes começam a operar numa espécie de resgate do minimalismo e do grunge como opções no novo cenário; contudo, ao mesmo tempo, há propostas voltadas à suntuosidade na perspectiva de que a aparência se torne a válvula de escape por excelência em meio ao crash. De qualquer modo, alterações significativas são esperadas para configuração-moda em termos da rede internacional de indivíduos que congrega. O mapa geopolítico global estaria em fase de acentuadas 196

transformações. Assim, o mesmo pode ser afirmado a respeito da moda e da “parte brasileira” dentro dessa configuração mais ampla.

A compreensão do contexto atual é, pois, fundamental à compreensão dos delineamentos posteriores da configuração-moda. No entanto, como já anteriormente explicitado, uma interpretação do momento atual demandava o enfrentamento de questões fundamentais. Com alicerce na observância de uma mudança discursiva na qualificação da moda por parte de indivíduos dedicados à criação de roupas para uma ênfase em seu caráter de comercialização, ao longo de um século e meio, a proposta deste trabalho de pesquisa foi compreender a mudança discursiva em função de transformações ocorridas no processo de confecção da moda ao longo do século XX. Para isso, alguns pontos significativos de discussão, escolhidos em meio a uma constelação de fatores por sua relevância, foram aqui inicialmente tomados. O primeiro deles diz respeito ao surgimento do chamado primeiro estilista (denominado costureiro, em sua época), o contexto que permitiu e estimulou sua trajetória e sucesso, e sua afirmação de que a moda seria uma arte, e o costureiro, portanto, um artista. O segundo ponto – e capítulo dentro da estrutura textual aqui construída – tratava da relação entre arte, moda e economia tal como ocorre, em especial, no século XIX, a partir das categorias em curso de compreensão de mundo. A intenção era, por excelência, compreender a polêmica instaurada a partir do empreendimento de Charles Worth. O terceiro, por sua vez, teve por intenção discutir transformações recentes no modo de fabrico e condução dos negócios a partir do desenvolvimento do prêt-à-porter. Tais fatores são fundamentais à compreensão do modo de desenvolvimento da configuração-moda no Brasil e de suas atuais características. As afinidades eletivas entre esses fatores potencializaram certos direcionamentos na configuração total e, conseqüentemente, no modo como ela se desenvolvia especificamente no Brasil. Ao mesmo tempo, transformações na história brasileira ajudavam a constituir a rede, ainda que em peso diferenciado se compararmos com os chamados grandes centros de moda. Como a configuração é única, as relações, como afirmado, são de “mão dupla” e simultâneas. Nesse sentido, tais capítulos prévios servem como suporte às discussões deste capítulo final. Aqui se busca, portanto, compreender a configuração-moda brasileira a partir da trajetória do estilista paulistano Alexandre Herchcovitch, que afirma categoricamente que a moda é um negócio (e não uma arte) e o modo de condução que ele assume em sua vida profissional a partir desta afirmação. A moda é tomada neste trabalho como heurística à compreensão de questões sociais amplas; do mesmo modo, a trajetória de Herchcovitch é heurística à compreensão da configuração que a 197

moda assumiu no Brasil e o lugar que ocupa na configuração internacional da moda. Não se trata, pois, de mera articulação dos capítulos anteriores. Eles, sim, são fios fundamentais às articulações que serão aqui tecidas. Alexandre Herchcovitch é paulista, cidade que conseguiu concentrar ao longo de sua história a maior produção e consumo de moda do país e que congrega mais da metade dos negócios vinculados a luxo em território nacional; é filho de judeus, povo que ajudou a construir o comércio de moda no Brasil; estudou numa das primeiras turmas de curso de nível superior de moda; desfila no maior evento de moda do Brasil; é celebrado pela crítica; está presente em parte considerável das iniciativas para o desenvolvimento dos negócios no setor (seja pela abertura de capital de sua empresa ou participação na fundação da Abest, Associação Brasileira de Estilistas); tem projetos de internacionalização de seus negócios; e, em primeiro lugar, afirma que moda é negócio.

Não há aqui, é importante reafirmar, intenção de apresentar a biografia do estilista. Apenas traços da trajetória de Herchcovitch foram tomados como referência para discussões mais amplas que tocam o desenvolvimento da configuração-moda no Brasil; esse sim o ponto fundamental de interesse. A respeito de tais traços, alguns livros e textos foram aqui utilizados. O de maior importância foi o livro escrito, por encomenda, pelo próprio Alexandre Herchcovitch. Cartas a um jovem estilista, publicado no ano de 2007 é parte da série Cartas a um jovem..., que busca apresentar diferentes áreas de trabalho a jovens que desejem seguir carreira na profissão. Nesse livro, Herchcovitch articula sua trajetória pessoal à visão que desenvolveu a respeito da moda. Outras publicações tomadas como referência são o volume dedicado ao estilista na coleção Moda Brasileira, igualmente publicada em 2007, e o livro Herchcovitch; Alexandre, também da editora Cosac Naify, publicado em 2002. Por fim, os dois volumes do livro O Brasil na moda, de Paulo Borges e Giovanni Bianco foram importantes referências por trazerem breves, mas importantes, entrevistas com uma variedade de indivíduos que contribuíram para o desenvolvimento da moda no Brasil. Este capítulo, por fim, está estruturado em sete partes, que vão desde a compreensão do universo judaico em sua relação com o mundo capitalista e o comércio de roupas – mais especificamente –, passando pelo papel dos imigrantes (especialmente judeus) no comércio de moda no Brasil e pelo surgimento de Dener Pamplona, considerado o primeiro estilista brasileiro, até o processo de formação de Herchcovitch e suas concepções moda. Em outros termos, busca-se aqui compreender a configuração-moda no Brasil seguindo como fio de condução a trajetória de um dos estilistas de renome na atualidade. Não se trata de compreender que as circunstâncias aqui apresentadas construíram Herchcovitch; e nem o oposto. Há uma confluência de fatores 198

que se afinaram de modo a conformarem a configuração descrita nesta pesquisa. Nesse sentido, tal percurso tem seu início com os hebreus e sua religião, afinal Herchcovitch, ainda que hoje não seja praticante, é filho de uma família de judeus que vieram ao Brasil fugindo das perseguições ao seu povo. Associados ao mercado, os judeus que migraram para o Brasil ajudaram a dinamizar o comércio de roupas, uma das fontes privilegiadas de seus rendimentos. E em julho de 1971, nascia Alexandre Herchcovitch, filho de Regina e Benjamin Herchcovitch, na Maternidade Pérola Byington, na cidade de São Paulo. No entanto, a compreensão de sua trajetória e da história da moda no Brasil inicia séculos antes com a saga do povo judeu, apresentada apenas em linhas gerais.

Judaísmo, comércio e capitalismo Por sua localização geográfica, a região que hoje conforma Israel e arredores detinha interessantes privilégios que, ao mesmo tempo, constituem a causa primordial de sua saga histórica. Como afirma Weber, “efectivamente, hasta donde alcanza nuestra mirada retrospectiva, Palestina era en los tiempos históricos un país de tránsito para el comercio entre Egipto, los territorios del Orontes y del Éufrates, el Mar Rojo y el Mediterráneo” (1998, p. 42). Tal condição permitiu aos antigos hebreus relações intensas de trocas com diferentes povos, antes mesmo do exílio, e, ao mesmo tempo, o pôs como território em disputa. Originalmente, a região compreendia diferentes agrupamentos humanos definidos por linhagens que, por sua vizinhança, pactuaram relações relativamente amistosas entre si, a ponto de construírem uma confederação jurada que tinha sua valia, seja na aceitação do ger, estranho à tribo, mas juridicamente protegido, seja nas alianças feitas em períodos de guerras confederadas. Em outros termos, trata-se de um povo internamente multifacetado (em verdade, diferentes povos unidos pela confederação) e que manteve contatos, ainda que por questões de dominação, com diferentes outros povos. Como salienta Weber, em seu texto dedicado ao judaísmo antigo (1998), Israel estava em meio a povos que detinham conhecimento já sedimentado em relação à linguagem escrita, viviam em organizações urbanas, tinham o comércio marítimo e por caravanas desenvolvido, com Estados burocratizados, sacerdotes intelectualizados, estudos astronômicos e especulações cosmológicas. Tais contatos foram fundamentais ao desenvolvimento da história sociocultural de Israel do modo como ocorreu. 199

O ger, acima mencionado, constituía um caso especial e de fundamental interesse para a compreensão das relações no mundo hebreu. Seminômades, os gerîm (plural de ger) eram os tecedores de linho, carpinteiros e pastores. Ainda que houvesse diferentes tipos de ger, os livres e os que eram obrigados a prestações de serviço, tais grupos possuíam direitos políticos que garantiam sua estada em terras de grupos estrangeiros confederados, inclusive a possibilidade de possuir uma casa, ainda que lhe fosse vedado possuir outras propriedades, em especial terras. Nesses termos, conforme nos indica ainda Weber, o ger não era tido como completamente estrangeiro, ainda que sua pertença não fosse igualmente plena. Apenas após o exílio, tais grupos passaram a assumir plenos direitos (WEBER, 1998). Aceita-se, portanto, a existência de um grupo móvel que, em sua condição de “estrangeiro” acabava por servir de vínculo entre os diferentes grupos vizinhos, a despeito de suas diferenças fundamentais de costumes e atividades econômicas, e, como tal, igualmente serviam de pontes a trocas diversas entre os grupos, seja de mercadorias, informações, conhecimento ou outro. A estrutura social antiga do povo de Israel consistia em linhagens de campesinos proprietários e pastores e, num outro segmento, nessas linhagens forasteiras de artesãos e músicos vinculados a Israel pela relação de clientela. Posteriormente, há a transformação de tal estrutura no sentido de compreender um segmento urbano proprietário de terras e de formação guerreira, e israelitas endividados ou que haviam perdido suas terras. De viticultores a beduínos do deserto, as diferentes linhagens só assumiram efetivamente um modo de vida mais sedentário na época dos reis. Tal composição de relações e aceitação dos gerîm constituía uma inovação, segundo Weber, para a época. E o autor acaba por tomar a construção da confederação jurada como ponto de partida à compreensão do culto a Yahweh. A hipótese levantada pelo autor, a partir da hermenêutica dos livros que compõem o Pentateuco, é de que Yahweh teria sido um deus dentre outros cultuados. Mais precisamente, tal deus estaria ligado às forças da natureza e se colocaria como deus da guerra, por conta das catástrofes naturais capaz de propiciar, ao mesmo tempo em que seria o deus da prosperidade, pela benesse da chuva que proporciona alimento para os homens e para o gado, e a matéria para a confecção de roupas – ambas, a comida e as roupas, são entendidas como necessidades básicas para o judeu (ATTALI, 2003). Portanto, era principalmente em períodos de guerra que a aliança era pactuada entre os homens e Yahweh, que passava a guiá-los como verdadeiro rei nas batalhas. Apenas em tempos de guerra é que a confederação se tornava uma realidade prática; ou seja, como assinala ainda Weber, as guerras confederadas eram, assim, sempre guerras santas. Nesses termos, seria compreensível a aparição do deus, como comparece nos relatos bíblicos, como alterações dos fenômenos da natureza. Ao mesmo tempo, torna-se igualmente compreensível 200

a escolha de Yahweh como deus único a ser celebrado após os variados episódios em que os hebreus foram beneficiados em suas disputas com outros povos por intervenção da natureza. Talvez o exemplo mais significativo seja o conhecido episódio em que Moisés conduz o povo de Israel após a saída do Egito. Segundo relatado no Êxodo, Yahweh conduziu o povo “como coluna de nuvem durante o dia, para abrir-lhes caminho, como coluna de fogo à noite para iluminá-los. Assim podiam andar de dia e de noite” (Ex 13, 21). Ele instruía Moisés naquilo que deveria ser feito, inclusive na ordem de erguer o bastão e estender a mão sobre o Mar Vermelho, dividindo-o para a passagem, em segurança, dos “filhos de Israel”:

Ao amanhecer, o mar voltou ao seu lugar, enquanto os egípcios, em fuga, iam-lhe ao encontro. E o Senhor atirou os egípcios no meio do mar. As águas voltaram e recobriram os carros e os cavaleiros. Não sobrou ninguém de todas as tropas de Faraó que haviam adentrado o mar, no encalço de Israel. Os filhos de Israel, no entanto, andaram a pé enxuto no meio do mar, com uma muralha d’água à sua direita e à sua esquerda. Naquele dia, o Senhor salvou Israel da mão do Egito e Israel viu o Egito morto na orla do mar. Israel viu com que mão forte o Senhor havia agido contra o Egito. O povo concebeu temor ao Senhor, acreditou no Senhor e em Moisés, seu servo. (Ex 14, 27-31). É nesse momento, portanto, que o povo de Israel assume a crença irrestrita ao deus que os libertou, mediante a comprovação de sua força, e se fideliza a ele:

La liberación de la servidumbre de Egipto mediante la milagrosa aniquilación de um ejército egípcio em el Mar Rojo era para los profetas el símbolo del poder de Dios y da absoluta credibilidad de sus promesas, por um lado, y de la constante gratitud de Israel hacia él, por outro. Y, más concretamente, la peculiaridad de tal proceso residia em que dicho prodigio fue obrado por um dios extraño hasta entonces para Israel, de resultas del qual fue adoptado como Dios dela confederación em una berît40 solemne mediante la implantación del culto yahwista por Moisés. Sin embargo, esta recepción se llevó a cabo sobre promesas mutuas entre las partes actuando el profeta Moisés como mediador entre ellas. Las promesas del pueblo servían de base a su obligación especial y permanente para com el dios, mientras que las promesas ofrecidas por este como contrapartida lo convertían para Israel em um Dios de La promesa en un sentido tan eminente como ningun outro dios conocido de cualquier país en toda la historia universal. (WEBER, 1998, p. 143/144). Do mesmo modo, tempestades e terremotos se fizeram sentir na batalha de Débora. E o povo de Israel, o “povo de Deus que luta”, passa a paulatinamente assumir Yahweh como seu único deus. Do mesmo modo que o povo o escolhe por seus feitos, Yahweh também elege esse povo por sua fidelidade a ele. É um pacto, e desse pacto advém a promessa, como recompensa, de ser um povo acima dos demais povos, que desconhecem e,

40 A berît era uma espécie de confraternização jurada, o que se dava mediante a comensalidade entre “irmãos”. Considere-se que, por exemplo, os gerîm chamavam seus “hospedeiros” estrangeiros de irmãos. A berît era o modo de constituição e reafirmação, portanto, das alianças. 201

pois, não elegeram Yahweh. Este deus, enfim, torna-se a unidade que congrega os diferentes grupos que estão sob seu domínio. O elo que une o diversificado povo de Israel, que inicialmente era uma confederação política, toma a forma de uma associação crescentemente religiosa e que, por fim, começa a impactar o Direito teologizando-o. Lembre-se que foi na época de Moisés, do exílio, que se iniciam as escriturações do Direito. No entanto, vários foram os senhores da terra de Israel, desde egípcios, passando por babilônios, persas e romanos. Como importante ponto de cruzamento para rotas comerciais, esse povo que, inicialmente, lidava de modo mais intenso com atividades pastoris e agrárias, logo tomou o comércio como possibilidade mais efetiva. A relação com a Babilônia, antes mesmo do exílio, intensificou as práticas comerciais por parte do povo de Israel. Contudo, como região cobiçada, os hebreus passaram por diferentes guerras, diferentes senhores, conforme mencionado, e, assim, começaram a se dissipar por diferentes localidades e povos, para além das linhagens que, inicialmente, constituíam seu povo. A transformação em tribos sedentarizadas se dá apenas à época do rei David, que busca a unificação dos povos em um único reino. Este, porém, após a morte do rei Salomão, acaba por ser cindido em dois reinos: ao norte, Samaria ou Israel, na Cisjordânia e Galiléia dos dias atuais, com Jeroboão como soberano, e, ao sul, a Judéia, em torno de Jerusalém. No sul, os hebreus, como povo de Judá, se tornam, agora, judeus. Além das divergências políticas,

A distinção entre os dois reinos é também de ordem religiosa: os habitantes de Israel, hebreus que logo serão chamados “samaritanos”, aspiram a retornar a uma religião mais simples. Alguns chegam até a operar um sincretismo com as religiões dos povos que vivem ao seu redor: assim, El torna-se o pai de YHWH41 e, com sua esposa Asterath (Astarte) e os filhos dos dois (uma menina e um menino), forma um conjunto divino. Ao contrário, o reino do sul, o da Judéia, povoado de judeus, permanece estritamente monoteísta: ali, os samaritanos são até considerados pagãos. (ATTALI, 2003, p. 59). As dispersões ocasionadas pelas disputas territoriais, por outro lado, significaram matizações maiores das características primeiras desses povos, enquanto costumes e línguas e, sem dúvida, tornaram-se grande ameaça à continuidade da confederação enquanto tal. Até à época dos reis, a confederação tinha sua unidade na existência de um herói ou profeta guerreiro, aceito por Yahweh, e cuja autoridade, portanto, se estendia para além dos domínios de sua tribo. Esses guerreiros eram chamados para dirimir questões judiciais ou para a obtenção de esclarecimentos acerca de deveres rituais e mesmo morais. Na redação do

41 Em hebraico, são utilizadas apenas consoantes na língua escrita, e as mesmas consoantes, a depender da vocalização, podem designar diferentes palavras. Por isso, Yahweh, conforme conhecemos, aparece redigido no livro de Jacques Attali como YHWH. A intenção do autor é se manter mais próximo ao universo judaico, do qual ele faz parte como descendente. 202

Pentateuco, eles comparecem como “juízes”, e guiaram a confederação até a eleição dos reis, o primeiro dos quais David. Sua permanência enquanto povo, no entanto, apesar da ameaça de dissolução da unidade pela dispersão decorrente das batalhas, se deu a partir do elo religioso. A religião permitiu a continuidade na transformação, e a unidade, apesar das diferenças internas, o que parece ter sido mais facilmente possível devido ao povo confederado já ser marcado pelas diferenças de linhagens e, posteriormente, de tribos. Desse modo, a religião judaica ajudou a constituir esse povo enquanto povo, a despeito da ameaça constante sobre seu território (e talvez por conta mesmo disso), e a sedimentar a concepção de que pertencer a tal povo e pertencer à religião de Judá eram sinônimos. Ou seja, de que ser judeu constituía uma raça específica, conforme serão tratados ao decorrer da época de domínio romano. Manter o elo religioso, apesar da dispersão do povo, significava instituir parâmetros de conduta rigorosos que identificavam os judeus e, portanto, simultaneamente os diferenciava dos demais. Tais normas de conduta, objeto de estudo precoce entre os judeus, estava na Torah (os cinco livros que compõem o Pentateuco), cujos comentários, fruto de estudo e debate (registrados no Talmude) igualmente serviam de guia às ações, ao mesmo tempo em que constantemente eram objeto de reflexão tendo em vista os casos específicos vividos e a serem deliberados. O registro escrito serve como guia mais preciso na dispersão dos povos do que o conhecimento pautado apenas na memória, já que conseguem conter, ainda que limitadamente, as possíveis alterações às narrativas iniciais. Além disso, o conhecimento da escrita, exigido como obrigação de ensino dos pais aos filhos (para todo judeu), permitia diálogos e consultas entre aqueles que estavam geograficamente distantes. Lembre-se que a relação do povo de Israel com outros povos letrados é bastante antiga. Uma intensa rede de trocas é estabelecida pelos judeus dispersos e os articula a outros povos. No entanto, sua condição de povo-pária os leva a nunca plenamente se assimilarem em outros povos, apesar de cultivarem noções como a de hospitalidade e de respeito às leis estrangeiras. O povo-pária judeu, como tal, era sempre estrangeiro. Ou seja, tal como aponta Simmel (2002b), o estrangeiro é aquele para quem o próximo está distante e o distante está próximo. A solidariedade que eles formavam entre si a partir do elo religioso conformava regras internas que deveriam ser observadas, mas que não necessariamente eram válidas em suas relações com o não-judeu. Como estrangeiros, os judeus criaram seus guetos previamente aos guetos obrigatórios a que foram impostos, por exemplo na Veneza de 1516 (ATTALI, 2003). Os não-israelitas, afirma Weber, lhe são indiferentes.

Cuando estalla la guerra con ellos, Yahweh se pone, naturalmente, del lado de Israel. Pero no odia a los extranjeros, en cuanto tales, aun cuando adoren 203

a otros dioses. Si ayudan a Israel en la guerra o le prestan cualquier servicio (Jobab como guia por el desierto, Núm. 10), incluso si traicionan a su pueblo en favor de Israel (Rahab y los espías en Jos. 2) reciben el privilegio de vivir en Israel en calidad de gerîm. No se dice nada acerca de que los pueblos extranjeros hayan de ser combatidos por ser tales. Al contrario: Yahweh desapuebra muy expresamente que se les cause daño por imprudência política y, sobre todo, que se los traicione (como en Siquem) (...) Tales concepciones comenzaron a racionalizarse en un sentido universalista al hacerse teológicamente necesaria una teodicea que, para explicar la amenaza política y las derrotas, deducía de la berît com Yahweh el derecho de este castigar a Israel en caso de desobediencia. Como antes, Yahweh sigue siendo indiferente respecto de los demás pueblos. Pero los utiliza como “flagelo de Dios” (Peisker) contra el díscolo Israel y, uma vez que su pueblo se ha corregido, permite que Israel les venza de nuevo. A Yahweh le importa Israel, sólo Israel; los otros pueblos son meros medios para un fin. Sólo que para que éstos pudieran ser tales, era preciso que Yahweh poseyera el poder de utilizarlos a su antojo para sus fines. Por conseguiente, debía también determinar su destino, al menos en parte. Así lo hacía Yahweh no solo para desgracia de ellos. En efecto, la delimitación del territorio de Israel no fue hecha por Yahweh en interés de los otros pueblos, pero redundó en su provecho. (WEBER, 1998, p. 366/367). É o que Weber denominou de moral para dentro e moral para fora. Tal indiferença permitia o trato dos judeus com outros povos, mas dificultava qualquer possibilidade de assimilação, inclusive pelo ressentimento judeu em se crer destituído de sua “verdadeira” posição, bem como pela esperança em ver reverter a organização sociopolítica a favor do povo de Israel, como prometeu Yahweh. Ora, tal condição contribuiu para que as normas de solidariedade, fraternidade e proteção para com o irmão se vissem restritas àqueles que seriam efetivamente irmãos: os judeus. O Deuteronômio, por exemplo, permitia a usura com os estranhos na fé. Inicialmente, trata-se da usura anteriormente permitida para com o ger. Se, por conta da crença comum que o fazia irmão, o antigo ger foi incorporado, os atuais estranhos à fé em Yahweh assumem uma condição similar ao antigo ger: são os novos estrangeiros para os judeus. Em outros termos, tais relações religiosamente condicionadas traduziam-se igualmente em termos econômicos. Isso distingue significativamente a atitude do judeu da do protestante. Segundo Weber, a usura no puritanismo era valorada positivamente do ponto de vista religioso. No caso dos judeus, havia um dualismo. O empréstimo não era bem aceito entre irmãos; dava-se apenas para com estrangeiros. Num mundo fundamentalmente agrário, a relação de posse das coisas era pessoal e, mesmo, de história familiar. O comerciante, que troca as coisas e que, por isso, tem desapego por elas, acaba sendo visto sob suspeita. O problema, conforme a interpretação weberiana, está na impessoalidade e racionalidade econômica (deste modo, eticamente irracional) que determina a proibição do empréstimo a juros por parte de diferentes religiões, inclusive do judaísmo (WEBER, 2004). Do ponto de vista de Weber, a relação da religião judaica com a riqueza não 204

é ascética. A riqueza é um dom de Deus, mas a relação com o comércio se deu, mais propriamente, por questões conjunturais para um povo que valorizava, por excelência, o trabalho intelectual. Sua condição fazia com que suas contribuições ao capitalismo se dessem mais propriamente naquilo que o judeu constituía de relação com o não-judeu, isto é, nas brechas da religião (não sendo, pois, religiosamente orientados). “Si Dios ‘bendicía’ a los suyos con el éxito econômico, no era para ‘confirmarlos’ en su comportamiento económico, sino porque el judio piadoso había vivido según el beneplácito divino fuera de esta actividad lucrativa” (WEBER, 1998, p. 371). A sua contribuição ao desenvolvimento capitalista estaria relacionada à sua condição de povo forasteiro, fundamentada em seu hermetismo ritual. O desejo de riqueza existe nos diferentes povos. O caráter peculiar do puritanismo, para Weber, está no controle racional, religiosamente orientado, do “vício de lucrar” (2004, p. 416).

Como forasteiros, a vida dos judeus era marcada pelo fluxo, ou pela ameaça constante da migração forçada, a depender da conjuntura vivida. Por essa condição de estrangeiros, era-lhes proibida a posse de terras, como igualmente era vedada a possibilidade de ter escravos, cujo trabalho na agricultura (extensiva) era tida como imprescindível. Ao mesmo tempo, sendo acusados da morte de Cristo, os judeus foram impedidos de exercer os ofícios entendidos como respeitáveis. Restaram-lhes os trabalhos menosprezados nas sociedades agrícolas ou proibidos por questões religiosas: a atividade no mercado e de prestamista.

En la historia de la economia, el extranjero aparece como comerciante, o, si se quiere, el comerciante aparece como extranjero. Cuando reina una economia que, en lo essencial, produce en su interior todos los productos necesarios, o solo cambia una parte muy limitada de estos productos, no necesita intermediário alguno. Sólo hace falta el comerciante para aquellos artículos que se producen fuera del círculo. En el caso de que no haya miembros del grupo que vayan a buscar estos artículos afuera – en cuyo caso irían ellos a ser los comerciantes “extranjeros” – el comerciante tiene que ser extranjero. No hay ocasión de vida para otros. (SIMMEL, 2002b, p. 212). Com as Cruzadas, e suas possibilidades comerciais, os judeus começaram a ser também proibidos de exercer o comércio, o que os impelia a se dedicar com quase exclusividade ao empréstimo a juros (usura), proibido aos cristãos. A inserção nas nascentes guildas também lhes foi negado. Se em 800, Carlos Magno, para o mais rápido enriquecimento de seu povo, incentiva a permanência dos judeus; por outro lado, a história dos judeus é marcada por restrições e proibições, como posteriormente ocorreu em Roma, quando, em 1555, aos judeus foi relegado apenas o comércio com roupas e objetos usados e o empréstimo a juros. Os empréstimos eram permitidos porque continuamente era o dinheiro 205

judeu que financiava obras e exércitos, como ocorreu, inclusive, no período das Cruzadas. Sua marca foi a errância, e daí a sua peculiar relação com a riqueza, em especial em sua forma simbólica: o dinheiro (em moeda e, posteriormente, em cheque e títulos), mais fácil, inclusive, de carregar nos períodos migração. Os mercadores judeus, segundo Attali (2003, p. 191), foram os primeiros a recorrer a invenções atribuídas a italianos: cheque, letra de câmbio e a contabilidade por partidas dobradas (para anotar o movimento dos créditos de cada um). Daí a relação estabelecida pelo autor entre a história dos judeus e o desenvolvimento do mercado financeiro. No entanto, poderíamos retrucar a partir de Weber:

Quais são as contribuições econômicas específicas do judaísmo na Idade Média e na Moderna? Empréstimos, desde a casa de penhores até o financiamento de grandes Estados, determinados tipos de comércio, destacando-se fortemente o ambulante e o de miudezas e as mercearias específicas de regiões rurais, certas partes do comércio atacadista e sobretudo do de títulos e valores, ambos especialmente em forma de comércio bolsista, câmbio de dinheiro e os negócios de transferência geralmente ligados a este, fornecimentos ao Estado, financiamento de guerras e, em grau preeminente, de fundações de colônias, arrendamento de impostos (naturalmente, exceto o arrendamento de impostos condenáveis, como aqueles feitos aos romanos), negócio de crédito e bancários, e financiamento de emissões de todo tipo. Destes, são próprias do capitalismo ocidental moderno (em oposição ao da Antiguidade, da Idade Média e da Ásia Oriental do passado) determinadas formas de negócios (altamente importantes), tanto jurídicas como econômicas. (WEBER, 2004, p. 405/406). No entanto, para Weber, a procedência dessas inovações não é propriamente judaica, apesar de os judeus terem contribuído na implantação e desenvolvimento de alguns desses elementos no mundo ocidental por terem fácil circulação entre os povos orientais e ocidentais, inclusive nos tempos de maior acirramento de expansão do mundo muçulmano, o que reafirma que sua contribuição fundamental estava em seu caráter de “povo-ponte”. Além disso, como acentua Weber, falta aos negócios judeus uma organização do trabalho em indústrias caseiras, manufaturas e fábricas, que é própria do capitalismo moderno. E a justificativa para isso, mais uma vez, estava na precariedade de condições dos judeus para a fixação e desenvolvimento de negócios mais estruturados. Do ponto de vista do judeu, quando da expulsão de Adão (ou Ish), aquilo que é apresentado a ele é a escassez. “Ish, o homem sem nome, o homem genérico, torna-se então um homem específico, o qual estabelece com Deus um contrato que transforma a condição humana em projeto: realizar o reino de Deus sobre a terra para recuperar a inocência moral, para fazer desaparecer a privação” (ATTALI, 2003, p. 21). A percepção de que estavam nus e a saída do Éden levou os homens a assumir uma dupla necessidade como base para sua existência: alimento e roupa. O desejo de sair da privação significa para o homem a busca da construção do Paraíso mediante o trabalho. Não se trata de 206

um trajeto de retorno ao Paraíso do Éden, mas da construção de algo novo, que supere as limitações, segundo Attali, econômicas com que os homens se vêem confrontados. E quanto mais esses mesmos homens se envolvem em conflitos e cedem às suas ambições na luta pelos bens raros, mais se lançam em dificuldade para sobreviver, mais se distanciam de seus objetivos. O vínculo entre dinheiro e sangue, afirma o autor, é recorrente. Mais do que isso, se lembramos que Yahweh é simultaneamente o deus das catástrofes naturais que favorecem em situação de guerra e o deus amistoso que brinda os homens com a chuva promotora da prosperidade, o vínculo aparece já aí conformado. Como instrumento para a subsistência, “o dinheiro é, antes de tudo, um meio de evitar a violência. Impondo a si mesmo a substituição do sacrifício pela oferenda, o povo judeu anuncia todo o seu destino: ele utilizará o dinheiro como meio de reparar os prejuízos e de deter a engrenagem das represálias” (ATTALI, 2003, p. 25). No entanto, deve-se adorar apenas um deus, e não tornar o dinheiro um concorrente Dele, como se depreende da passagem bíblica acerca do bezerro de ouro, que trata da idolatria, mas também da veneração ao dinheiro acima da reverência a Yahweh (Ex 32). Além de queimar o bezerro de ouro, o resultado foi a morte de 3 mil homens judeus. Após o episódio dos idólatras, Moisés comparece com a lei escrita a partir do ditado de Yahweh, o Decálogo. O dinheiro que deveria evitar a violência, acaba se transformando num dos principais promotores dela.

Ou seja, conforme discutido, a característica fundamental dos judeus, e a sua contribuição primordial à história econômica, consistia em ligar os diferentes, servir de ponte entre os povos. A exigência de circulação dos judeus por conta das diásporas que viveram fez com que a circulação e a síntese se tornassem suas marcas, afinal intermediar significa sintetizar adaptando o diferente à realidade local: conjuntura político-econômico-social, gostos, costumes, leis, fé. O exercício da especulação e da síntese era, inclusive, propiciado pela própria língua, uma vez que era possível estabelecer, por um lado, relações entre palavras distintas que eram escritas com as mesmas consoantes (conforme explicitado) e, como cada letra equivalia a um número, e uma palavra equivale à soma dos valores de cada uma de suas letras, é possível relacionar igualmente palavras que têm o mesmo valor numérico. Palavras distintas mantêm relação entre si por via de sua abstração em valores numéricos. Palavras com as mesmas consoantes, a depender de sua vocalização, são palavras distintas, ainda que relacionáveis. Talvez daí advenha a relação dos judeus com a abstração e a matemática, acentuada por suas transações comerciais de trocas entre mercadorias, pesagem para cálculo de valor e cálculo de juros. 207

O principal termo utilizado para designar o dinheiro, kessef, aparece cerca de 350 vezes na Bíblia. Escreve-se com as consoantes KSF, as quais, vocalizadas como kossèf, designam a inveja, a nostalgia, o que, evidentemente, não deixa de ter relação com o dinheiro. Por outro lado, essas mesmas três consoantes, vocalizadas como kassaf ou de outro modo, formam um verbo que aparece somente cinco vezes em toda a Bíblia, tendo a cada vez um sentido próximo de “desejar”. Tais passagens, aliás, revelam as formas do desejo que o dinheiro permite satisfazer. (ATTALI, 2003, p. 41). Do mesmo modo, o dinheiro enquanto pagamento que se deve se dirá, ainda conforme Attali, DaMim, plural de DaM, sangue. Conforme a interpretação apresentada pelo autor, o dinheiro substitui o sangue. O comércio já é bastante desenvolvido na época salomônica e permanece assim, apesar de interrompido pela crise ao final do período de Salomão e que acabou culminando no surgimento de grupos antimonarquistas e na divisão do reino. Ainda que o trabalho não seja entendido como honroso (como é o caso do trabalho manual), é melhor do que servir a outrem como uma espécie de assalariado. Incentiva-se a autonomia, o trabalho em negócio próprio. O lucro para bens de primeira necessidade, já na época de Salomão, era limitado a um sexto, e a venda fora da comunidade era proibida se os bens se tornassem raros. No entanto, a despeito dos diferentes senhores frente aos quais o povo judeu se viu submetido, a Judéia permaneceu próspera, a ponto de, apesar das restrições a que eram submetidos, os judeus serem, mesmo, chamados a enriquecer determinada comunidade. Eles foram obrigados a aprender a se adaptar às diferentes leis, mas também a diversas situações e possibilidades econômicas. Assim, não há restrições para o comércio dos judeus: produtos agrícolas, têxteis, vinhos, metais, peles, madeira, escravos... Para os judeus, é desejável ser rico. É um modo de melhor servir a Deus. A moeda, inclusive, serve para compensar qualquer dano, até o corporal. A indenização, que substitui a violência, deve ser proporcional ao dano. Apenas a vida não pode ser trocada por dinheiro; como exemplo, é proibido vender a esposa. Para os cristãos, o dinheiro é perigoso e pode ser nocivo à salvação, o que pode ser depreendido da afirmação de Mateus de que Jesus teria dito ser “mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (19, 24). O antijudaísmo cristão é inseparável da denúncia econômica. O judeu que vendeu o Messias por dinheiro é capaz de vender qualquer coisa. E, mesmo com sua saga, os judeus passaram à história como um povo apegado ao dinheiro e que consegue, apesar das adversidades, constituir riquezas invejáveis.

De acordo com Simmel, em A filosofia do dinheiro (2003), o dinheiro é a expressão autônoma da trocabilidade das mercadorias, ou seja, de sua relatividade, de onde deriva o valor econômico das coisas. É uma abstração (síntese) das relações entre as 208

diferentes mercadorias. No entanto, do ponto de vista do autor, as relações entre as coisas encenam as próprias relações humanas, marcadas por ações recíprocas por ele definidas como formas de intercâmbio. Nesse sentido,

el dinero es expressión y medio de relación, de la interdependência de los hombres, de su relatividad, que hace depender la satisfacción de los deseos de uno de la de los del otro. (...) Al constituirse como construcción abstracta en los intercambios recíprocos de un círculo relativamente amplio y al permitir la expressión mecánica exacta de toda aspiracción especial, de todo valor de realización individual y de toda tendencia personal, debido a su mero carácter cuantitativo, el dinero completa en lo económico aquella correlación sociológica universal, entre la extensión del grupo y la constitución de la individualidad. (SIMMEL, 2003, p. 155, 441). O aumento da rede de relações e de objetivos a serem alcançados fez aumentar o valor dos instrumentos que permitem a troca. Como os fins últimos se tornam mais distantes, tem-se a sensação de que os meios, que lhe servem de atalho, constituem os próprios fins, em especial no que toca ao dinheiro, pois a sua posse garante a manutenção da liberdade de opções quanto àquilo que se pode adquirir. Deste modo, o dinheiro acaba sendo transformado em finalidade em si própria. No entanto, os fins são meros meios. Como aquilo que circula e liga ao circular, mantendo, ainda assim, a diversidade daquilo que põe em interação, o mundo do dinheiro é familiar ao judeu por sua própria condição e, também por isso, é por este mais facilmente assimilável. Ao mesmo tempo,

también el dinero confirma, de hecho, aquella elevación por encima de lo individual, aquella confianza en su omnipotencia como en la de un principio superior que puede conservar para nosotros lo individual, y más bajo y, al mismo tiempo, convertirse en ello mismo. La capacidad especial y el interes de los judíos por los negócios dinerarios se han puesto en relación con su “educación monoteísta”, esto es, un carácter nacional acostumbrado desde hace milenios a mirar hacia un ser superior unitario – especialmente debido a que la nación tenía solamente una relativa transcendencia – y a ver en el objetivo y el punto de contacto de todos los intereses individuales, por lo qué, asimismo, en la esfera económica, es necesario que se dé el valor que aparece como la unidad omnicomprensiva y el punto en que se agudizan todos los órdenes internacionales. (SIMMEL, 2003, p. 277). O monoteísmo judeu, portanto, que concebe Yahweh como aquele que liga os diferentes constituindo, assim, uma unidade na diferencialidade teria, de acordo com Simmel, contribuído a que os judeus compreendessem e aceitassem o papel de intercâmbio do dinheiro em épocas em que o dinheiro, e o negócio com o dinheiro eram mal-vistos. Compreendia-se que a finalidade das transações estava nas terras e dentro de ligações pessoais, uma vez que as terras adquiridas deveriam ser mantidas para transmissão por herança. O negócio com dinheiro significava manter-se em momento intermediário. O dinheiro era compreendido como infértil, e por isso era condenável. No entanto, as riquezas dos judeus, povo errante, 209

passaram a ser aquilo que podiam carregar (talvez por isso, como afirmado, a importância do dinheiro em detrimento de outros bens na história judaica). Avessos à idolatria, os judeus “economizavam” na quantidade de deuses cultuados. O Deus supremo com quem é estabelecido o contrato de privilégio no mundo é uno, a despeito da multiplicidade dos homens. Como o dinheiro, Yahweh une o diferente em si, ao mesmo tempo em que se mantém singular e acima daquilo que une (trata-se da sensação de independência do dinheiro frente às mercadorias). A abstração do dinheiro, seu caráter de síntese, é facilmente assimilável pelo monoteísta judeu. Como discutido no que toca à passagem do Êxodo, na Bíblia, a respeito do Bezerro de Ouro, há o risco de confundir a fidelidade a Yahweh com a fidelidade ao dinheiro; de transformar o dinheiro no deus acima de todas as coisas. E, por isso, se deu a cólera de Yahweh e a morte de três mil dos homens que seguiam Moisés no deserto. Após isso, Moisés estabelece o contrato de aliança entre Yahweh e o povo de Israel.

É interessante observar como tais restrições aos judeus significavam, por outro lado, o exercício de uma peculiar espécie de liberdade, por sua vez, proibida ao não-judeu: a liberdade de circulação. Foi assim que esse povo ajudou a construir uma série de sínteses fundamentais ao desenvolvimento da história econômica ocidental. Se os judeus comercializavam todos os tipos de produtos, sem dúvidas a roupa figurava dentre eles. Artigo de necessidade, logo após os alimentos, o povo judeu aprendeu desde cedo a importância da indumentária, seja nas determinações de Yahweh a respeito de como deveria ser a roupa de seus sacerdotes, o que comparece em minuciosa descrição na Torah (Ex 28), seja nas exigências indumentárias que lhes foram impostas pelos seus dominadores, a fim de que fossem mais facilmente identificáveis. Além do período da recente Shoah42, é possível citar a ordem do califa Al-Motawakkel, em 853, para que os judeus calçassem um sapato branco em um dos pés e um preto no outro, além de manter um desenho de macaco sobre o manto usado43; a ordem dos cristãos, no século XIII, de que os judeus usassem uma marca identificadora44; no século XV, em Veneza, a imposição do uso de chapéu amarelo45; e mesmo a definição detalhada do uniforme dos rabinos (tal como conhecemos hoje), como parte do primeiro decreto de 1808, que decorreu das discussões do Sinédrio, reunião de

42 Termo iídiche que designa o genocídio perpetrado pelos nazistas. Significa “catástrofe”. 43 No caso dos cristãos, ordenou o desenho de um porco por sobre o manto. 44 Nos países germânicos, um chapéu cônico; nos latinos, um decálogo ou rodela de tecido amarelo costurado sobre a roupa. 45 A cor amarela era uma imposição recorrente no sentido de lembrar o dinheiro recebido por Judas por ter indicado onde estava o Cristo. 210

setenta e um responsáveis judeus da França e da Itália (a maioria negociantes e financistas) junto a Napoleão.

Os rituais cotidianos judeus também têm amplo espaço à consideração da vestimenta, tanto na determinação do que deve ser usado e como deve ser usado, como dos momentos em que isso deve ocorrer. Apesar das discussões a respeito, pouco se sabe sobre a origem de tais regras. Segundo Michael Asheri (1995), Maimônides, Rabino da Espanha do século XII, indica que a maioria dos mandamentos foram elaborados para “neutralizar” as práticas pagãs dos nabateus. De acordo ainda com Maimônides, os judeus não teriam dado muita atenção ao significado de tais ritos cotidianos por considerar que eles haviam sido construídos pelo próprio Yahweh, uma vez que são prescrições que comparecem na Torah. De qualquer modo, é importante observar a relevância das roupas nos rituais cotidianos:

Ao acordarem pela manhã, os judeus ortodoxos, tanto homens quanto mulheres, antes mesmo de abrirem os olhos, dizem a curta prece Modeh ani, agradecendo a Deus por haver-lhes restituído as almas. Levantando-se da cama, compete aos homens lavar as mãos antes de recitarem bênçãos, vestirem-se ou a qualquer outra coisa. Por esta razão, os mais ortodoxos mantêm uma jarra com água e uma bacia sobre uma mesinha ao lado da cama, de modo que ao despertar possam imediatamente lavar-se. Essa água é referida como negelvasser (i.), “água das unhas”. Judeus menos ortodoxos caminham até o banheiro, ou a cozinha, para lavar-se. A razão para este zelo dos ultra-ortodoxos será encontrada em sua ação seguinte, a colocação do tallit katan ou arba kanfot. Essa pequena peça de indumentária, usada por todos os judeus praticantes do sexo masculino, não é envergada a menos que se diga primeiro uma bênção. Como esta não pode ser proferida sem se lavarem primeiro as mãos e como o ortodoxo não vai querer dar nem dois passos sem que esteja usando a peça de vestuário, ele lava as mãos, diz a bênção e veste o arba kanfot ao lado da própria cama. As mulheres também lavam as mãos, uma vez que existe uma proibição geral de dar mais de quatro passos pela manhã sem que isso tenha sido feito (ASHERI, 1995, p. 105). Em seguida o autor descreve o arba kanfot:

O arba kanfot, que em hebraico significa “quatro cantos”, é um pedaço quadrado ou retangular de algodão ou lã, com um furo no meio, para que possa ser enfiado pela cabeça e usado sob roupas normais cotidianas. Em cada um de seus cantos há uma borda ou “franja”, feita de cordões ou fios espessos de lã, especialmente tecidos. Eles são enrolados e se lhes dão nós de uma maneira prescrita, de modo que cada franja termine por oito pontas de fio. Esse traje é usado em obediência a um mandamento específico, encontrado em Nm 15, 37-41. (...) O arba kanfot com freqüência tem sido comparado ao uniforme de um soldado. O objetivo deste é identificá-lo aos seus próprios olhos e aos dos outros, como um servo de seu país, de seu povo ou de seu rei. (1995, p. 105/6). A obediência a tais prescrições, um tanto relativizada pelos judeus liberais (ou progressistas), indica que as vestimentas não podem ser compreendidas como mero ornato à 211

exibição pública dos judeus. Elas assumem um caráter igualmente sagrado que faz com que estejam inseridas nos rituais cotidianos e não se restrinjam a uma preparação para eles. O vestir-se é ritualístico. Sagrada, identificadora, instrumento de repressão, artigo de necessidade básica, produto comercializado no mercado, a roupa, por muito tempo, conforme discutido anteriormente, foi também moeda e produto de intensa circulação no mercado de uso de segunda mão. Devido a tamanho papel do ponto em múltiplas funções, uma leva considerável de judeus se dedicou ao comércio de roupas. E tal interesse sofreu grande estímulo com o desenvolvimento industrial a partir do têxtil e a posterior fabricação de roupas prontas. No Brasil, seja no fabrico ou na comercialização, os judeus tiveram papel de relevo no setor, especialmente por parte daqueles que se concentraram na cidade de São Paulo e ajudaram, com seu trabalho, a constituir a teia de relações que fizeram a mencionada cidade se transformar em uma referência nacional no que toca à produção e comercialização de roupas, abrigando, hoje, o maior evento de moda brasileiro: o São Paulo Fashion Week. A relação dos judeus com o Brasil, porém, é mais antiga.

Judeus, São Paulo e comércio de roupas Os judeus e cristãos-novos tiveram participação ativa no “descobrimento” das Américas ao compor parte fundamental da expedição de Cristóvão Colombo em busca de uma rota alternativa às Índias (ATTALI, 2003; MIZRAHI, 2005). Pedro Álvares Cabral, por sua vez, ao aportar no Brasil trouxe o navegador Gaspar da Gama e o astrônomo e geógrafo Mestre João, ambos judeus (SOBEL, 2008). A presença de judeus e conversos no Brasil se deu, portanto, desde a chegada dos portugueses a essa terra, e na condição de colonizadores. Tratava-se de uma terra que podia abrigá-los, inclusive, das intensas perseguições que sofriam por conta de sua fé. No entanto, a partir de 1591/2, iniciam as visitas de representantes do Santo Ofício de Portugal à Bahia, o que os põe em situação de ameaça mesmo nessa parte do chamado Novo Mundo. A relação dos judeus com o Brasil foi intensa a ponto de a sede da primeira comunidade judaica da América ter sido construída em Recife, que, após a invasão holandesa de 1630, passou a ser área de liberdade religiosa, tornando-se porto para famílias judias de Amsterdã de origem portuguesa (sefardis). A expulsão dos holandeses, em 1654, implicou, conforme Mizrahi (2005), no fim dessas comunidades judias com o retorno da maioria a Amsterdã. Parte desses grupos, contudo, foi para as colônias holandesas na América Central, e um outro grupo foi para Nova Amsterdã, dando origem à “maior comunidade da diáspora judaica: a cidade de Nova York” (p. 12). No entanto, para fins desse trabalho, o 212

interesse fundamental se dirige não aos judeus colonizadores, mas às correntes de migração que começam a afluir para o Brasil ainda em inícios do século XIX e que se aceleram nas primeiras décadas do século XX. Sua origem é diversificada: são judeus europeus e do Oriente Médio. Muitos também foram os motivos que impulsionaram a vinda de famílias judias para o Brasil: desde possibilidades de melhores condições de vida por conta da instalação da Corte Portuguesa no Brasil, com a conseqüente abertura dos portos às nações amigas (1808); a instauração da liberdade religiosa no Brasil como decorrência das relações com a anglicana Inglaterra; e mesmo a fuga de seus países de origem pelo acirramento das perseguições aos judeus. Pelas condições esboçadas, os primeiros judeus a virem ao Brasil a partir de 1810 foram de origem inglesa.

Uma vez que a Corte Portuguesa se instalou no Rio de Janeiro, a nova capital do Império experimentou consideráveis transformações e impulso em diferentes setores. Com a evidência da discrepância entre os gostos, usos e hábitos dos moradores do Brasil frente à Corte, uma nova dinâmica de comércio passou a alimentar o desejo de luxo, proporcionado pelo afluxo de mercadorias caras vindas de países estrangeiros, em especial da França e da Inglaterra. Os judeus tiveram ampla participação nesse processo através do comércio ambulante e da abertura de lojas para a distribuição dos desejados produtos, que iam de bebidas (como champagne), a pianos, roupas, porcelanas, dentre outros. Por outro lado, as novas formas de sociabilidade que começaram a se tecer exigiam a presença das mulheres nos bailes, e mesmo o discurso médico começava a impelir as mulheres a sair às ruas para o bem de sua saúde (apesar de discordarem de alguns dos novos trajes adotados e de sua vida noturna, contrários ao papel de esposa e mãe que eles defendiam para a mulher). As lojas que começam a se instalar, em especial na Rua do Ouvidor, transformam-se também num atrativo para que as mulheres mudem o seu antigo hábito colonial de reclusão domiciliar, a ponto de ameaçar o convencional comércio dos vendedores e mascates de porta. Até então, a produção brasileira de roupas, por comporem os afazeres em geral femininos, dava-se por excelência em âmbito doméstico ou era alimentado por mascates viajantes que comercializavam os refugos dos produtos de moda antiga como se fossem as novidades da Europa. A habilidade das moças quanto à costura e ao bordado as qualificava como “prendadas” e aptas ao casamento (no caso das sinhás e sinhazinhas), mas era também possibilidade de sustento (no caso das negras escravas ou libertas, de algumas sinhás e, na primeira metade do século XX, de parte considerável das mulheres que moravam nas cidades e tinham no trabalho uma necessidade). No entanto, a identificação com o trabalho de escravos fez com a habitantes do 213

Brasil rejeitassem a possibilidade de se dedicar ao desenvolvimento efetivo de tais atividades (MALERONKA, 2007). A produção nacional se restringia ao têxtil. E, mesmo no que se refere a tais fábricas, uma série de medidas iniciadas ainda em 1785, com a ordenação por D. Maria I da destruição de todos os teares brasileiros para o beneficiamento da indústria inglesa, levaram igualmente ao recalcamento da produção local. A tecelagem brasileira, na época, estava em franco desenvolvimento, tendo seus produtos conquistado a preferência, inclusive, das senhoras. Após a determinação real, apenas nos lugares mais longínquos os teares permaneceram intactos e (ilegalmente) em operação. O alvará foi revogado apenas em 1808 (23 anos após), por D. João VI, com a chegada da família real ao Brasil. A indústria têxtil e a produção artesanal foram retomadas. No entanto, os novos hábitos trazidos pela corte levaram a uma transformação considerável nas percepções a respeito deste tipo de trabalho. Conforme afirmado, a discrepância entre as modas apresentadas, em tecidos, cortes e cores, aliada a uma valorização do produto importado como marca distintiva (um modo de diminuir as distâncias entre Brasil e Europa e, por outro lado, um modo de aumentar as distâncias entre os grupos internos) e o apelo a que as mulheres saíssem às ruas – que teve eco nos discursos médicos (apesar de estes desaconselharem as mulheres a seguirem as modas estrangeiras, pouco ou nada em sintonia com o clima local, com o corpo humano e até com a moralidade) – fez com que a produção doméstica paulatinamente perdesse importância no cotidiano das famílias mais abastadas, apesar de se manter como conhecimento necessário (como prenda) e passasse a se constituir em ofício para os menos aquinhoados. Enquanto isso, as novas referências estrangeiras chegavam ao Brasil através dos moldes e modelos importados da França, na moda feminina, e Inglaterra, na masculina – só que, desta vez, com maior fechamento para diálogos e, pois, trocas. As práticas artesanais já híbridas (de tecer, fiar, bordar e trançar), desprestigiadas, foram sendo marginalizadas e, assim, compuseram um tipo de produção das camadas de menor poder aquisitivo. Conhecer corte e costura devia se constituir, do ponto de vista das camadas enriquecidas da sociedade, em um passatempo que ajudaria a desviar as moças de possíveis tentações, e não uma atividade regular profissional. As mulheres abandonam os trajes coloniais que as aproximam das escravas e identificam-se de modo crescente com as européias; os homens assumem a aparência mais austera do burguês europeu.

Um elemento fundamental para a difusão da moda entre os membros da “boa sociedade” foi o surgimento dos jornais femininos. Indo ao encontro das necessidades dessa camada, esses jornais – que começaram a circular no Rio de Janeiro de 1827 – já traziam em suas páginas seções especializadas em moda, nas quais eram publicados e minuciosamente descritos modelos de 214

vestimentas que seguiam as tendências da moda francesa, cujos exemplares já eram vendidos nas lojas comerciais da cidade. Um outro dado importante é o caráter didático dessas colunas, que discutiam a adoção e o consumo da moda e divulgavam lojas e produtos, satisfazendo os desejos da “boa sociedade” de incorporar os padrões europeus de vestimenta. Além dos jornais femininos, outro veículo indispensável à “boa sociedade” foram os manuais de etiqueta e civilidade. A importância da leitura dessas obras pode ser mensurada se levarmos em conta que a nova sociabilidade que se configurava no Rio de Janeiro obrigava aquela camada a “civilizar seus costumes”. (RAINHO, 2002, p. 15). De acordo com Castilho e Garcia (2001), o mercado editorial brasileiro começa a ganhar impulso e a discutir questões ligadas à aparência pessoal após a revogação da proibição de impressão no Brasil; ou seja, mais uma vez, após a vinda da família real. E tais publicações tiveram grande importância na transformação dos hábitos de consumo de roupas no Brasil, uma vez que não apenas constituíam um elo de ligação entre o Brasil e as novidades de alguns países da Europa, como também ajudavam a promover uma rede que articulava e, de certo modo, homogeneizava os comportamentos e consumo locais. No entanto, a vastidão e discrepâncias do Brasil não permitiam à época que tais redes fossem ampliadas. Para tanto, seria necessário um suporte técnico, comunicacional e de serviços que permitisse a circulação desses materiais formativos de gosto e dos produtos equivalentes ou que permitissem o fabrico de cópias. Os importadores tiveram papel relevante na mudança de hábitos da camada mais favorecida, porém seus negócios só ganham efetivo impulso após 1860, quando o vapor substitui a navegação a vela e diminui o tempo de travessia do Atlântico (DURAND, 1988, p. 64). Em outros termos, o desenvolvimento do comércio de moda só tem condições de se efetivar a partir do momento que o Brasil passa a estar servido da infra-estrutura de transportes e comunicações necessárias, além de um parque industrial que permitisse a produção nacional. Até o final do século XIX, as tecelagens nacionais só produzirão tecidos grosseiros, destinados à sacaria de café e roupa dos escravos. Tudo mais era fruto das importações. Como, portanto, o consumo de bens de luxo se mantinha restrito a determinadas localidades do Brasil – acentue-se aí o Rio de Janeiro e regiões circunvizinhas – uma grande leva de judeus que aportaram no Brasil em princípios do século XIX teve a capital do Império como destino. Isso, no entanto, não significa que o Rio de Janeiro tenha sido seu único porto. Em 1870, o conflito franco-prussiano levou família judias a emigrar. Além do Rio de janeiro, parte deles foi ao norte do Brasil, e outros grupos se destinaram a Campinas e São Paulo. Outro destino que foi alvo de crescente do afluxo migratório de judeus foi Porto Alegre. 215

A acelerada urbanização brasileira e as possibilidades de trabalho nas primeiras décadas do século 20 transformaram as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre em focos de atração de imigrantes de todas as origens. Estabelecendo-se nessas cidades, a maioria dos imigrantes judeus dedicou-se ao comércio prestamista. Instalados em zonas suburbanas e rurais, alguns conseguiram enfraquecer a tradicional dependência do colono dos proprietários de armazém, pelas “vendas a prestação”. Carregavam malas, levando cortes de tecidos, guarda-chuvas e outros produtos nos braços e nos ombros, e desse modo muitos imigrantes conseguiram em pouco tempo e sem capital inicial sustentar-se no comércio lojista. (MIZRAHI, 2005, p. 33). Após a Abolição da Escravatura, a imigração, de uma forma geral, fez parte de uma política nacional de qualificação da mão-de-obra que atuava no Brasil para trabalho nas indústrias nascentes e mesmo nas lavouras, ao mesmo tempo em que compunha uma clara política étnica para branqueamento da população, bastante miscigenada pelo tempo de convivência com os negros escravizados (MATTOSO, 2000). Havia, desse modo, preferências quanto à origem dos trabalhadores, estimulando a vinda de migrantes europeus em detrimento, por exemplo, dos chineses e japoneses. A política migratória direciona, portanto, aqueles que aqui chegavam a regiões pouco povoadas ou em processo de industrialização. O caso de São Paulo é peculiar. Sua expansão, segundo Santos e Silveira, esteve ligada inicialmente à produção de café “numa fase em que havia mercado para esse produto, porque o nível de vida estava em elevação na Europa e nos Estados Unidos” (2006, p. 36). No entanto, é apenas no período que vai do começo do século XX aos anos 40 que começa a se dar um esboço de integração nacional, com a construção das estradas de ferro e aparelhamento dos portos, ainda que tais transformações tenham se dado com grandes desigualdades regionais. É nesse período, igualmente, que começa a se forjar a hegemonia paulista, “com o crescimento industrial do país e a formação de um esboço de mercado territorial localizado no Centro-Sul” (p. 37). Nos anos 1930, São Paulo já superava o Rio de Janeiro e, assim, começou a atrair maior número de imigrantes, comportando uma população que em sua maioria advinha do velho continente (numa proporção de 2/3 de imigrantes). Além de se dirigirem à capital, comunidades judaicas asquenazes46 e sefardis47 foram organizadas em Santos, Campinas, Rio Claro, São Carlos e Franca. Como advinham de diferentes países, esses judeus começaram a se organizar em bairros distintos de acordo com suas origens. Os bairros escolhidos na cidade de São Paulo foram, por excelência, Bom Retiro, Brás, Mooca, Belém, Cambuci, Liberdade e Boa Vista. Segundo Rachel Mizrahi

46 Judeus europeus. Falam o iídiche, mistura de alemão, eslavo, russo e hebraico. 47 Também chamados sefaradim, são judeus provenientes da Península Ibérica e que falam o judezmo/espanhol, mistura de espanhol, português, árabe, turco, inglês e francês. 216

(2005), a maior parte dos imigrantes judeus de origem européia instalou-se no Bom Retiro. A Rua dos Imigrantes, hoje Rua José Paulino, de intenso comércio de confecções, era a via por onde as famílias se diluíam. O motivo primordial era a localização da Hospedaria dos Imigrantes, instalada no Bom Retiro em 1882.

A região do Bom Retiro foi, por muito tempo, desabitada, mas, entre 1828 e 1872, tornou-se retiro de finais de semana, contando com sítio e chácaras. Com a chegada dos imigrantes, tornou-se, paulatinamente, sede para teares e máquinas de costura de italianos, judeus, gregos e, mais recentemente, coreanos (BRESSER, 2001). Nos dias atuais, além de seu comércio popular, o Bom Retiro comporta indústrias ligadas à moda do porte da Rosa Chá e da Rosset. A hospedaria foi fechada por conta de suas precárias condições, e novas instalações foram construídas no Brás, nas proximidades das linhas férreas do Norte e Ingleza. Apesar de a primeira parte da nova hospedaria ter sido entregue em julho de 1887, fazendo desenvolver o Brás como bairro de imigrantes, o Bom Retiro continuou sendo ocupado pelos estrangeiros. Desde o início do século XX até os anos 1940, segundo Deborah Bresser, os judeus foram o grupo predominante – a presença coreana se intensifica apenas a partir dos anos 1970. No entanto, as primeiras famílias de imigrantes que lá se estabeleceram não se dedicaram a ofícios ligados ao vestuário, e sim à olaria por conta da fartura em matéria-prima derivada da várzea do Rio Tietê. Foi, na verdade, a olaria que definiu a direção de desenvolvimento do bairro para as ruas entre a Estação da Luz e a várzea, onde ficava a Rua dos Imigrantes (atual José Paulino) e a Rua dos Italianos. Nas ruas paralelas ao Bom Retiro, os asquenazes construíram suas sinagogas. O desenvolvimento do bairro, no entanto, foi igualmente condicionado pela presença da estação de ferro, que permitia o escoamento e chegada de matérias-primas e produtos finalizados com maior facilidade, e o baixo custo dos terrenos (em constante ameaça de inundação por conta da várzea), adquiridos com fins de armazenar produtos, sediar as oficinas e indústrias, bem como para fins residenciais. Inicialmente, suas lojas eram as malas que carregavam para as vendas à prestação.

“Meu avô Henrique tinha uma mala cheia de camisas e não voltava para casa antes de vender tudo”, diz Benny Rosset, diretor da Cia. Marítima, a indústria de moda praia do grupo Rosset, cuja sede fica no Bom Retiro e hoje é o maior fabricante de tecidos com lycra do País. Henrique Rosset, 82 anos, veio para o Brasil nos anos 40 e com sua fábrica de camisas construiu um império. “Quero administrar minha empresa para os meus filhos, como meu avô e meu pai fizeram para mim”, diz Benny, entregando o segredo do sucesso da família. Os Rosset, diferentemente de outros imigrantes do período, preferiram dar continuidade ao trabalho de seus pioneiros. A maioria dos judeus contemporâneos de Henrique Rosset queria que seus descendentes estudassem e virassem doutores. Os Rosset são também 217

diplomados, mas apostaram no futuro dentro da fábrica. Os outros acabaram abandonando o mundo têxtil e de confecções – o que abriu espaço para que novos imigrantes viessem assumir os teares e as máquinas de costura. (BRESSER, 2001, p. 42). A tradição do comércio de roupas no Bom Retiro teria iniciado com os judeus, mas sua preocupação em enviar os filhos à universidade fez com que muitos abandonassem as confecções, abrindo espaço à chegada dos gregos e, posteriormente, dos coreanos ao bairro. Apenas nos anos 1950, o bairro, ainda residencial, assume sua mais franca característica de bairro comercial. Foi no Bom retiro que a mãe de Alexandre Herchcovitch, Regina, trabalhou num banco judaico. Foi igualmente no Bom Retiro que Tufi Duek, dono da Tufi Duek e da Forum Tufi Duek, também descendente de judeus, iniciou sua carreira (BRESSER, 2001).

A veia comercial desenvolvida nesse ambiente deu a Tufi o primeiro empurrão em direção à moda. Ainda nos anos 60 ele participou da febre da calça americana, quando o jeans era uma novidade no Brasil. Ele lembra: “Um amigo meu descolou um navio que trazia calças Lee de contrabando. Juntei uma grana, fui lá e comprei várias. Depois vendi para os colegas da escola. Eu estava com 12, 13 anos de idade e, como se vê, já tinha aprendido alguma coisa no Bom Retiro. Tinha essa raiz judia, não tem jeito. É a mesma raiz do Ralph Lauren, do Calvin Klein, de um monte de vencedores”. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 332/3). Obviamente, não se trata de exclusividade judia. Outros povos ajudaram a construir a história do bairro e a história da moda no Brasil, tenham sido eles italianos (como os Matarazzo), gregos (como os Anastassiadis) ou mesmo armênios (como Renato Kherlakian, fundador da Zoomp) e os mais recentes coreanos. Contudo, nem todos os judeus se instalaram no Bom Retiro. Os sefardis, que chegaram ao Brasil em melhores condições econômicas, escolheram os bairros de Copacabana e Ipanema, no Rio de Janeiro, e Bela Vista, Consolação e Jardins, em São Paulo. Os judeus orientais, que preferiam ser designados “sírio-libaneses”, instalaram-se, por sua vez, na Mooca, junto aos italianos e espanhóis. Segundo Mizrahi, os sírios-libaneses vendiam mercadorias aos judeus provenientes de terras otomanas e eram denominados “turcos da prestação” por viverem do comércio prestamista. Os asquenazes que tinham no comércio prestamista sua subsistência, por sua vez, eram denominados “judeus da prestação”. No entanto, estes logo se tornaram lojistas e passaram a se destacar na produção de vestuário. Alguns, inclusive, começaram a investir em tecelagens e negócios imobiliários. Já os sírios e os libaneses foram responsáveis pelo desenvolvimento do comércio nas imediações de ruas como a 25 de Março, local escolhido pela mãe de Alexandre Herchcovitch para a comercialização das peças que fabricava em casa. O avô e avó maternos de Alexandre Herchcovitch era judeus romenos. A família vivia inicialmente em Botucatu, interior de São Paulo, quando passaram por dificuldades financeiras após a morte do avô de 218

Regina. Regina Stulman (Herchcovitch após o casamento com o primo Benjamin, de ascendência polonesa) perdeu o pai quando tinha seis meses. Por conta das dificuldades financeiras que enfrentaram, Regina e o irmão mais velho deixaram os estudos e foram trabalhar para ajudar no sustento da família e nos estudos do irmão caçula. Aos 13 anos, Regina trabalhava pela manhã no mencionado banco judaico no Bom Retiro; à tarde, num escritório de contabilidade; à noite, datilografando laudos confidenciais da Polícia Técnica. Além disso, como narra Lilian Pacce (2002), nas horas vagas, junto à mãe e à avó, Regina fazia bolsas e bijouterias de miçangas que ela vendia na Rua 25 de Março. Para os imigrantes, o trabalho manual era válido, como qualquer outro. O que importava era, em primeiro lugar, encontrar uma ocupação que lhes proporcionasse condições de subsistência.

Progressivamente, alguns imigrantes e seus descendentes passaram a exercer ofícios ligados à produção do vestuário. Sem uma rigorosa abrangência, muitos deles possuíam um valioso substrato de habilidades para as artes e os ofícios, fruto de inúmeras práticas e experiências que haviam sido conservadas e que continuaram nos grupos familiares por muitas gerações, permitindo a execução de movimentos psicomotores delicados e destreza fina própria para os trabalhos da agulha. Entregando-se à costura de forma perseverante, muitos imigrantes resistiam à idéia de alistar-se numa fábrica e, por possuírem muitos antecessores no ofício, que lhes abriam as portas das oficinas e alfaiatarias, foram se apropriando das oportunidades de trabalho. (MALERONKA, 2007, p. 34). Tanto o ofício do alfaiate como da costureira implicam as possibilidades do trabalho autônomo ou assalariado, seja nas fábricas, em oficina própria ou na casa do cliente (com pagamento pela diária de serviço). No entanto, o trabalho do alfaiate era mais valorizado por ser tido como mais complexo, envolvendo, inclusive, a manipulação de ferramentas pesadas, como as tesouras industriais (MALERONKA, 2007). De qualquer modo, como era exigido conhecimento do trabalho com a agulha e com a máquina, apenas aqueles que tivessem qualificação podiam se assentar no ramo. Era um setor atrativo aos judeus igualmente porque lhes permitia a manutenção de um trabalho autônomo, conforme, inclusive, seus costumes e preceitos indicavam. A maior parte dos trabalhadores vinculados à confecção na época eram autônomos. Em acréscimo, havia ainda as vantagens de o custo de instalação de uma oficina de costura ser relativamente baixo, e a possibilidade de contar com o trabalho feminino, permitindo a participação dos diferentes componentes da família, fossem homens ou mulheres, e mesmo crianças. Tudo isso teria contribuído para o êxito dos judeus no ramo de confecções. Saliente-se que ainda na primeira década do século XX, foram fundadas em São Paulo duas escolas de artes e ofícios, uma masculina e uma feminina, dentro do conceito de escolas de trabalho. Com o desenvolvimento industrial, era um modo de 219

proporcionar maior qualificação do trabalhador para lidar com as novas máquinas e ferramentas de trabalho. Na mesma década é fundado na cidade o Mappin Stores (1913), que, com organização da loja em divisão por seções, comercializava também artigos importados, que eram comumente exibidos em suas vitrines. Já os anos 1930 foram marcados por considerável impulso de produção, parcialmente, em decorrência do bloqueio das importações dos bens de consumo por conta da Segunda Guerra Mundial. A política econômica adotada por Vargas foi a do incentivo à industrialização via substituição das importações por produções nacionais. A política, de claro cunho nacionalista, acabou oferecendo oportunidades para a dinamização da produção nativa, ainda que, mais uma vez, aprofundando as diferenças regionais. As indústrias concentravam-se no Sudeste e no Sul, agora interligados, enquanto as demais regiões permaneciam fundamentalmente como fornecedoras de matéria-prima (BRUM, 1991). A necessidade de ampliação do mercado para essa industrialização em desenvolvimento levou à extinção das barreiras à circulação de produtos entre os Estados da União, contribuindo para a promoção, incipiente, da integração nacional; no entanto, faltava ainda a estruturação de uma malha nacional de transportes (SANTOS, SILVEIRA, 2006). No que se refere à moda, as indústrias continuavam se dedicando apenas à produção de tecidos. A concentração do desenvolvimento, e a posição assumida por São Paulo nesse processo, acaba estimulando um fluxo migratório crescente dentro do próprio Brasil, em especial advindo do Nordeste, e que tinha São Paulo como um de seus principais destinos. De acordo com e María Laura Silveira, apenas nos anos 1930 é que o número de imigrantes brasileiros para o Estado de São Paulo supera o de estrangeiros (p. 42). No entanto, a política de Getúlio Vargas foi restritiva à migração judia para o Brasil.

Em 1945, em condições mais favoráveis, entidades judias se organizaram para promover a entrada de judeus sobreviventes da Shoah e que buscaram no Brasil um refúgio. Nesse mesmo período, a partir de 1945 e 1950, a indústria brasileira ganha novo impulso e São Paulo se afirma como metrópole fabril do Brasil. Para isso, o Estado precisou contar com o apoio, em matéria-prima, dos Estados nordestinos. No que se refere à produção de “roupas prontas”, já na década de 1940 havia uma divisão em dois grupos. O primeiro dedicava-se à confecção em grande escala de produtos mais populares e localiza-se fundamentalmente no Bom Retiro, no bairro da Luz, do Brás e da Mooca; já o segundo grupo dedicava-se aos artigos de luxo e localizava-se no centro da cidade (MALERONKA, 2007). Data igualmente dos anos 1940 a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), 220

administrado pela Confederação Nacional da Indústria, e que tinha como objetivo a criação de cursos para formação de mão-de-obra qualificada para o trabalho nas fábricas. Em 1950, São Paulo concentrava 32,4% dos estabelecimentos industriais do país e 34,6% dos empregos industriais. E, nesse processo, os judeus contribuíram não apenas como mão-de-obra, mas também como novo grupo consumidor. Os anos 1950 foram marcados, em especial a partir do período JK (Juscelino Kubistschek), pela abertura do Brasil à entrada de capital externo e de indústrias estrangeiras. O projeto juscelinista de desenvolvimento do Brasil via industrialização, os “50 anos em 5”, previa a modernização do país e do próprio aparelho estatal pela intensificação das relações internacionais. Os rumos assumidos pela industrialização acabaram permitindo que o Estado de São Paulo suplantasse o Rio de Janeiro, inclusive em diversidade de produtos. Ao mesmo tempo, o programa de Juscelino, com o apoio de institutos de pesquisa, previa, ao lado da industrialização, um amplo processo de renovação cultural. Os institutos de pesquisa, como o ISEB e o CPC, são criados para justificar o plano desenvolvimentista do governo via aliança com o capital internacional. No entanto, as pesquisas realizadas apontaram como causa para o suposto atraso brasileiro a recorrente importação dos modelos estrangeiros. A solução apontada pelos institutos indicava uma produção nacional, com características nacionais, como resposta ao problema. Uma nova onda de entusiasmo por conta da percepção das mudanças em curso e de nacionalismo passa a assolar o Brasil em diferentes setores, seja na produção de música, teatro e cinema, seja nas roupas. Vivia-se no Brasil uma espécie de euforia por conta de uma conjuntura favorável que se instalou desde o final da Segunda Grande Guerra, período do início mais evidente dos rearranjos internacionais na moda a favor da produção industrial e descentralizando a produção, por conta dos avanços norte-americanos. No entanto, a França mantinha a dianteira em termos de referência quanto à moda. Ao mesmo tempo em que se buscava promover em âmbito nacional e internacional o tecido de algodão, principal fibra nacional, que contava com o trabalho de grandes tecelagens, como a Matarazzo, de São Paulo, e a Bangu, do Rio, a Cia. Brasileira Rhodiaceta, filial do grupo francês Rhône-Poulenc, iniciou a produção de fibras sintéticas no país, como o Ban-Lon, o Albène, o Rhodianyl, a Helanca e o Tergal (DURAND, 1988). Segundo o autor,

A alta sociedade de São Paulo ou do Rio de Janeiro vestia-se em Paris, ou em umas poucas casas de alta costura que se incumbiam de importar modelos e reproduzi-los em exclusividade ou em poucas cópias, a preço mais convidativo. Mais para os anos sessenta, a situação em São Paulo era até mais favorável que a do Rio. Aliás, foi filosofando que “mulher bonita, inteligente mas sem dinheiro serve mesmo é para manequim” que Dener trocou o Rio por São Paulo. (1988, p. 71).

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Dener Pamplona de Abreu e a moda brasileira A Casa Canadá, que começou como peleteria, funcionava como uma dessas importadoras de moda no Rio de Janeiro. Como em 1944, os impostos dificultaram as importações, começou a reproduzir localmente os vestidos de luxo. Para tanto, necessitava constituir um setor de costura eficiente e começar atividades de promoção das coleções em função dos lançamentos de Paris e das atividades da “boa sociedade” brasileira, o que se deu através da exibição dos modelos em desfiles. Deste modo, era necessário contar com uma equipe de profissionais, como um grupo de manequins e mesmo um estilista para fazer as adaptações nacionais dos modelos exibidos nos grandes desfiles internacionais: as chamadas “interpretações” da moda francesa da estação (DURAND, 1988). D. Cândida Fiala era a responsável por viajar a Paris três vezes ao ano em busca das novidades da passarela. No entanto, para a confecção de tais “interpretações” fazia-se necessário investir em estilistas, costureiras e, para a exibição pública, um grupo de manequins. Uma dessas manequins foi Danusa Leão; no entanto, o maior nome que trabalhou na Casa Canadá foi Dener Pamplona de Abreu.

Dener (1936-1978) nasceu em Belém do casamento entre Alfredo, um jogador de futebol de Ilhéus, e Eponina (Lolita), brasileira de Belém, de “família remediada” recém- chegada dos estudos na Inglaterra, o que era um costume mesmo para não-ricos. Com a crise da borracha e o desquite dos pais, quando este contava ainda nove anos, a família mudou-se para o Rio de Janeiro (DÓRIA, 1998). Escreveu Dener em sua autobiografia:

Conosco foi assim: minha irmã veio para o Rio ficar com um tio nosso que já estava na capital. É dez anos mais velha do que eu, até hoje uma grande senhora, muito bem casada, e não perdeu na viagem os melhores traços da família. Nós viemos depois, e reacertamos o passo quando minha mãe trocou as fazendas e os búfalos por uma mesa de escritório onde quis pôr em prática o que aprendera na Inglaterra. Tia Mariquinhas, o avô Anacleto, os antepassados de Belém haviam preparado d. Eponina na Inglaterra para que ela pudesse ler em francês e inglês e dar ordens em alemão. Não deu certo, mas ela aproveitou tudo isso para ser ótima estenógrafa em todas essas línguas. (ABREU, 2007, p. 23). Dener, portanto, fez parte de um grupo de migrantes do Norte do país que buscou melhores condições de vida no Sudeste do Brasil; no caso, o Rio de Janeiro. A família instalou-se num hotel pensão à Rua Xavier da Silveira, em Copacabana. A mãe de Dener encontrou trabalho como secretária da diretoria da presidência na Panair, empresa de viagens aéreas. Enquanto isso, buscou garantir os estudos do filho. Dener estudou no colégio de d. Maria José Imperial, mãe do compositor Carlos Imperial, e tinha aulas de balé em um curso das Operárias de Jesus, atrás do colégio. Segundo relato de Carlos Dória (1998), Dener, desde 222

cedo, gostava de desenhar. Sofrendo de enxaquecas, passava as noites insones desenhando: “No balé, apenas chegou a dar umas piruetas. No desenho, porém, levava-se a sério” (p. 33). Quando Dener contava treze anos – portanto, na passagem para os anos 1950 – um acontecimento singular, um acaso, ajudou a direcionar sua trajetória definitivamente para a costura. Quando estava no lotação, a caminho de encontrar sua mãe, que havia lhe conseguido um emprego numa companhia de seguros (provavelmente como boy) para afugentá-lo dos desenhos,

subiu uma mulher de perna fina e horrível de feia, com a cara comprida como artista de cinema visto de lado no cinema Olinda. Fiquei imaginando vesti-la em meu caderno, disfarçando a perna e dando um jeito de diminuir o tamanho da cara. Surgiu um engarrafamento providencial. Ficamos parados uns quinze minutos e depois começamos a andar a passo de tartaruga. Eu ia produzindo meus vestidos na pasta de desenho que sempre tive comigo desde a hora em que acordava até a hora de dormir. Quando passa o engarrafamento, entre no lotação uma mulher de muita classe senta-se ao meu lado. Recomeça a corrida, eu com a papelada no colo, pensando nos complementos que ia pendurar no meu personagem. Só senti a cara batendo no ferro da frente, e meu ombro na janela, e gritinhos em volta. (...) Não reparei na senhora ao meu lado que estava calma, com todos os meus desenhos na mão, folheando um por um. Minha vizinha de banco era d. Cândida Fiala, irmã de d. Mena Fiala. O seu carro havia quebrado no meio do caminho e ela tomara o lotação para chegar mais rapidamente a uma cliente a quem precisava atender. “Quem é que faz isso, meu filho?” Eu respondi que era eu mesmo. (...) “Eu sou diretora da Casa Canadá, você conhece?” “Eu não, senhora”. (ABREU, 2007, p. 40/41). Aos treze anos de idade, Dener foi empregado na Casa Canadá e passou a receber o maior salário da família, quatro contos, enquanto sua mãe ganhava dois contos e oitocentos. Lá permaneceu até os dezessete anos, segundo seu próprio relato, na condição de estilista. A primeira cliente de Dener na renomada Casa Canadá foi d. Sarah Kubitschek. Apesar de considerar que seu trabalho era artístico, o que o fez recusar muitas oportunidades com a confecção industrializada do prêt-à-porter, que começou seu crescimento no mundo a partir dos anos 1950, Dener apontava: “Há gente que pensa que, para fazer de um vestido uma obra de arte, basta saber desenhar ou ter boa imaginação. Se fosse assim, a alta-costura estaria cheia de grandes nomes e as costureirinhas de bairro conseguiriam fazer vestidos mais do que aceitáveis” (2007, p. 19). Dener acompanhava a confecção dos vestidos na oficina e se esmerava em estudar através de livros e revistas de moda, inclusive trazidos por suas clientes quando regressavam das viagens à Europa. Considerar seu ofício uma arte não o afastava da concepção de que o estudo era condição fundamental à qualidade de trabalho. O período de crescimento da fama de Dener como estilista foi, portanto, o do crescimento do Brasil no pós- 223

Guerra, um país que, portanto, tinha as condições iniciais de se dedicar à aquisição de produtos de luxo e que, por questões de limitações à entrada de produtos estrangeiros a partir de meados dos anos 1940, viu-se obrigado a iniciar uma incursão na produção nacional de moda, o que marcava a diferença do período Dener em relação, por exemplo, à época da instalação da família real no Brasil. Desde ali, o consumo de luxo esteve restrito à aquisição de produtos estrangeiros, ainda que tal aquisição se desse em território nacional. Agora, começava uma nova etapa no consumo de bens de luxo, no que toca ao vestuário. Ainda que guiado pelas diretrizes das criações européias, constituía-se um grupo de estilistas nacionais em função de uma clientela efetiva. Uma vez que os anos 1950 serão igualmente marcados por uma crítica feroz à imitação ao estrangeiro feita no Brasil, logo os ecos desse nacionalismo crescente alcançarão a moda, e a moda, naquela época, tinha em Dener seu principal expoente. Quando tinha, então, dezessete anos, Dener recebe, através de um bilhete lhe dado por Danuza Leão, um convite para trabalhar na nova casa que seria inaugurada por Ruth Silveira. Prometidos dez contos de salário, Dener aceita o convite. Trabalhando para Ruth Silveira, Dener começou a viajar pelo Brasil para lançar suas coleções e a ter seu nome conhecido. Entre 1949 e 1970, uma rede de aeroportos se constitui no país permitindo deslocamentos interestaduais e internacionais mais velozes. Isso facilita as incursões de Dener por outros Estados brasileiros, e mesmo para a Europa, para onde ele decide ir após deixar o ateliê de Ruth Silveira. Quando retorna ao Brasil, o estilista opta por deixar o Rio de Janeiro e adotar São Paulo como morada.

Eu estava decidido a inventar a moda brasileira, sabia que podia e não me faltava o talento de figurinista. Bastava ser promovido e impor meu nome. Precisava ser sensação, ser falado e todo lugar, discutido. O que eu pude fazer para chocar e chamar atenção, eu fiz. Só não fiz mais porque não sabia o que poderia fazer ou porque a polícia não deixava. Se soubesse e se deixassem, eu fazia. Isso me ajudou muito. Ajudou porque aquela badalação toda acabava em um vestido divino. (ABREU, 2007, p. 55). Dener já percebia o crescimento de São Paulo e as oportunidades que a cidade, iniciando sua vida mais intensa de lazeres da “boa sociedade”, podia lhe oferecer. Inicialmente, mora em casa de Maria Augusta Dias Teixeira, também paraense, dona da boutique Scarlett, para quem Dener chegou a trabalhar desenhando roupa habillé e esporte. Segundo Carlos Dória, foi junto a ela que Dener decidiu mudar para São Paulo. Depois de morar na casa de Maria Augusta, Dener se muda para uma suíte do Hotel Comodoro, na Avenida Duque de Caxias. É nesse período que a Rhodia começa a ingressar nos negócios com fios sintéticos. 224

“Em 1956, o empresário norte-americano Charles Snitow organizava a primeira versão da US World Trade Fair, gigantesco evento que pretendia mostrar a produção industrial do mundo ao mercado norte-americano” (DÓRIA, 1998, p. 58). Para Snitow, a política de industrialização juscelinista era motivo suficiente para que o Brasil tivesse um estande na feira. Snitow, então, convida o empresário Caio Alcântara Machado para liderar a iniciativa, que vê em tal participação uma oportunidade de mostrar ao mundo os produtos brasileiros. Como decorrência, em 1958, é inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek a I Fenit (Feira Nacional da Indústria Têxtil) no Pavilhão Internacional do Parque do Ibirapuera. Capitaneada por Caio Alcântara Machado, a feira resultou em prejuízo de cerca de 80 milhões de cruzeiros.

Mesmo assim, Wilton, Sebastião e Mauro Paes de Almeida, do Banco Nacional do Comércio, cobriram o rombo e continuaram a investir. Mas o problema era de difícil solução. Como o empresariado nacional desconhecia o poder da inflação, acreditava poder se defender dos humores da economia escondendo seus estoques. Por isso, a feira não tinha o que vender. Ocorreu então a Caio usar o evento apenas como um promoter. Livio pegou a idéia no ar e transformou a Fenit em um showroom da Rhodia. (DÓRIA, 1998, p. 58). Livio Rangan, um italiano que aportou no Brasil em 1953, foi contratado da Rhodia à época da primeira Fenit. A ele passou a caber a idealização e execução da Fenit entre 1959 e 1970. A Fenit se transformou no mecanismo para divulgação da Rhodia no Brasil, ainda que ela estivesse instalada no país desde 1919. Apesar de permanecer dando prejuízo, a Fenit se transformou num evento social de grande pujança em São Paulo. O objetivo da Rhodia (empresa francesa) era vender matéria-prima para a produção de tecidos sintéticos no Brasil. Para tanto, era necessário criar moda feminina e masculina com esse tipo de tecido e, assim, incitar o consumo. Como estratégia inicial, a Rhodia pagaria a publicidade de quem trabalhasse com seu fio, tecido e roupa, contanto que o selo Rhodianyl figurasse junto à marca. Contratou a agência de publicidade Ogilvy & Mather, dirigida por Neil Ferreira, e trouxe do Rio de Janeiro o fotógrafo de moda Otto Stupakoff e o diretor de arte Licínio de Almeida. Além disso, escolheu Alceu Penna para desenhar os modelos.

Talvez o mais brilhante desenhista do país, Alceu era daltônico: sua irmã tinha de escrever o nome da cor em cada tubo de guache para que pudesse trabalhar. A cada ano, seguindo ordens de Livio, viajava para Paris e Milão apenas para copiar o que então era moda. Trazia cores, padronagem, estilo. Depois, fazia adaptações, criando a coleção comercial Rhodia com alma nacional. (DÓRIA, 1998, p. 60). A idéia de Livio era promover uma moda brasileira e, para isso, recorreu, inclusive, a temas nacionais, como as tradições gaúchas, e idealizou eventos de moda que, no 225

caso das mencionadas tradições gaúchas, incluíram a participação de cavalos no show. A partir dos temas, artistas plásticos eram convidados a criar as padronagens dos tecidos. Alceu criava desenhos, e Livio explicava aos “novatos” as questões técnicas necessárias para que as padronagens criadas pudessem ser aplicadas aos tecidos. O responsável pela criação dos cenários (a partir das idéias de Livio) para os estandes, fotos da Rhodia e feira era Cyro del Nero, que havia estudado cenografia na Alemanha e tinha sido premiado na Bienal de São Paulo de 1969. Carlos Dória descreve: “Um dia chegaram à praia de Pernambuco, no Guarujá, em São Paulo, com quatro caminhões lotados de carcaças de automóveis, pintadas de cores fortes, látex. As carcaças seriam lançadas contra a arrebentação das ondas, enquanto modelos eram fotografadas subindo nelas” (p. 61). Para a criação dos roteiros do show, foram convocados Millôr Fernandes, Flávio Rangel e Torquato Neto. Outro convocado foi Carlos Drummond de Andrade, que inclusive escreveu o poema “Seis manequins”. Para a coreografia, Lenny Dale, que trabalhou como assistente de coreografia nas filmagens de Cleópatra, foi convidado. Já as trilhas sonoras eram assinadas por , Tim Maia, , Tom Zé. Por vezes, Júlio Medaglia, Rogério Duprat e Diogo Pacheco participaram. Jorge Benjor (ainda ) e Sérgio Mendes também compareceram, dentre outros. Em outros termos, tratava-se de uma equipe cuidadosamente escolhida. Em outubro, após terminado o período dos espetáculos na capital paulista, era feita uma síntese do espetáculo, que daí viajava pelo Brasil divulgando a moda, produtos e o nome da Rhodia.

Os espetáculos promovidos pela Rhodia se distinguiam consideravelmente dos desfiles promovidos pela paulista tecelagem Matarazzo. Esta, então associada à francesa Boussac, começa, por conta da concorrência, a investir em desfiles no Rio de Janeiro e em São Paulo. Produtora de fios de algodão, a emergência dos fios sintéticos a partir do intenso trabalho de divulgação da Rhodia, consistia em ameaça aos negócios. Prêmios foram instituídos, estilistas europeus, a exemplo de Christian Dior, foram convidados. E Dener angariou o prêmio do desfile, tornando-se destaque em São Paulo. A fama o estimula a abrir sua própria loja na praça da República, perto da Basílio da Gama, onde havia adquirido um apartamento. Sua mãe se muda para São Paulo, a fim de ajudá-lo. Depois, já nos anos 1960, passam a morar no Alto Pinheiros, e Dener abre seu ateliê na Avenida Paulista, ao lado da loja de Henri Matarazzo. É nessa época que surge Clodovil, seu principal rival, no evento da Matarazzo-Boussac. Exatamente no ano de 1960, em matéria para O Cruzeiro, Alceu Penna escreve sobre suas idéias de moda, idéias essas que foram tecidas junto a Livio Rangan e que ajudariam igualmente a direcionar as produções de Dener, que recorrentemente fará parte da 226

equipe de convocados por Livio. Ao descrever os lançamentos da estação, Alceu Penna acentua a presença do bordado inglês e questiona: “E por que não os bordados do Ceará? Por que Espanha, Índia, Marrocos e não o Brasil? Até onde uma linha de inspiração nacional poderia influenciar a moda internacional?” E sugere o café como inspiração. A coleção teria as cores das sementes, flores e folhas do café. “Nos estampados, estilizações deveriam sugerir moendas, cestos e peneiras, feitas por artistas como Aldemir Martins, Volpi, Darcy Penteado, Heitor dos Prazeres, Milton Dacosta, Livio Abramo, Maria Bonomi e outros tantos. Modelagem? Dener, Jacques Heim. Jóias, Burle Marx. Chapéus, Madame Rosita” (DÓRIA, 1998, p. 67). Daí talvez adviesse a construção de um espírito de moda nacional, ainda que guiada pelas produções internacionais, que levaria Dener a se afirmar como grande expoente e defensor de uma moda brasileira, capaz, inclusive, de ser internacionalmente lançada:

Eu criei a moda brasileira, um estilo próprio e nosso, que fez com que nossas grandes senhoras não precisassem ir vestir-se na Europa. Eu fiz os brasileiros acreditarem em moda, e figurinista passou a ser assunto. Lancei uma imagem e hoje ninguém tem vergonha de dizer que se veste no Brasil. Antes de mim, para ser elegante, precisava usar etiqueta de fora. (...) Usavam cópias importadas e com grandes assinaturas, só porque a etiqueta era francesa. Acabei com isso na moda feminina, e agora vou acabar também na moda masculina. Daqui a pouco tempo todo brasileiro de classe só vestirá roupa nossa, inclusive Sport, que é o mais difícil. Hoje a nossa indústria já pode fazer tecidos para as grandes criações. (ABREU, 2007, p. 99). O desfile idealizado por Alceu Penna aconteceu em 14 de setembro de 1960 na Maison de l’Amerique Latine, em Paris. No verão de 1962/3, a escolha foi pelos Estados Unidos. Com promoção da Rhodia, revista O Cruzeiro e Varig, a coleção Brazilian Nature, com estampas de Volpi, Antônio Bandeira, Fernando Lemos e Manabu Mabe, contou com a modelagem de Dener e Guilherme Guimarães, dentre outros. O roteiro, conforme Dória, incluiu Nova York, Seattle, São Francisco e Los Angeles. Apesar dos atritos que existiam na relação entre Livio Rangan e Dener, os dois, conforme esboçado, passaram a nutrir idéias muito próximas acerca da concepção de moda. Além disso, a Rhodia começou a selecionar e treinar modelos, o que permitiu a elas alçar prestígio diferenciado. Por seu turno, Dener, com sua habilidade para tecer relações favoráveis, abria as portas de sua casa para memoráveis recepções para os estrangeiros que freqüentavam a Fenit, como a festa organizada, a pedido de Caio Alcântara Machado, em homenagem a Gunther Sachs, milionário alemão dono de uma marca de prêt-à-porter, a Mic-Mac. Na ocasião, Dener vestiu todas as empregadas com roupas de baiana e decorou a casa nas cores do Brasil. Imaginou ainda decorar a casa com pássaros exóticos nas gaiolas, mas como não os encontrou para a compra, usou pombos pintados a tinta e adornados com penas de faisão e pavão amarradas às costas, quando não 227

adornados com bois de pluma de avestruz, dentro de gaiolas de vime. Devido à tinta, os pombos foram morrendo intoxicados ao decorrer da festa. Mas Livio Rangan já não era indispensável à Rhodia e, como angariou desafetos, acabou sendo demitido da Rhodia. Caio Alcântara Machado passou a comandar sozinho a Fenit a partir dos anos 1970, agora no Anhembi e restrita a industriais, comerciantes, estilistas de moda e compradores de diferentes partes do Brasil. Em 1972, as roupas dos desfiles da Rhodia passaram a ficar expostas no Museu de Arte de São Paulo, em um espaço novo: o Museu do Costume. Seguindo, pois, a trilha internacional, a moda brasileira ingressava nos museus. De qualquer modo, os eventos da Rhodia foram um marco fundamental à difusão do prêt-à-porter no Brasil.

Ainda que São Paulo, frente à “vida social” do Rio de Janeiro, apenas estivesse iniciando seu percurso, as mudanças já eram sentidas, em especial pela dinâmica que ganhava a Rua Augusta48, cuja maior parte do comércio era explorado por imigrantes estrangeiros. É igualmente no início dos anos 1960 que Dener consegue sua mais prestigiosa cliente: Maria Teresa Goulart, esposa do então presidente João Goulart. Quando se tornou primeira-dama, após a renúncia de Jânio Quadros, Maria Teresa foi logo comparada a Jackie Kennedy. De beleza vista como tipicamente brasileira, coube a Maria Teresa Goulart começar a se vestir com estilistas nacionais. Era uma espécie de “exigência do momento”. Dener se torna, então, o costureiro oficial da primeira-dama em 1963, o que também possivelmente contribuiu para seu apelo ao nacional. No entanto, a fama de Dener não pode ser atribuída apenas à relação com Maria Teresa. O personagem Dener, com suas “frescuras”, como ele costumava afirmar, foi de fundamental importância para que o estilista se mantivesse sempre como alvo de atenções e, pois, de notícias que o celebrizavam. Como afirma Carlos Dória, Dener parecia ser um indivíduo do século XIX, uma espécie de aristocrata que estava em conformidade com os gostos da camada mais abastada da São Paulo dos anos 1960. Os anos 1970 promoveram significativas transformações nas características dessa camada.

A dependência em relação ao capital estrangeiro, que se aprofundou a partir dos anos 1950, se acentua ao mesmo compasso em que aumenta a dívida brasileira, situação que irá perdurar até os anos 1970, enquanto o êxodo rural e a migração (interna) para São Paulo aumentam a desigualdade entre as regiões do país. Devido às disparidades de renda no Brasil e à grande concentração da produção e do consumo no Sudeste, as estratégias de produção nacional se voltam crescentemente ao mercado externo e suas demandas, o que aumenta a

48 A decadência da Rua Augusta se dá mais propriamente a partir da inauguração do shopping Center Iguatemi, em 1966. 228

necessidade de modernizar as indústrias nacionais. A circulação entre as diversas regiões e destas com a chamada “região concentrada”, noção de Milton Santos, mesmo que com densidades diversas, é ainda mais facilitada. A difusão de energia elétrica, antes localizada, passa a compor uma rede nacional a partir da criação e atuação da Eletrobrás nos anos 1960. Ao mesmo tempo, uma revolução das comunicações ocorre nos anos 1970 com o uso de satélites. Vivia-se o chamado “milagre brasileiro”, período de franca expansão nos negócios, que ajudou a substituir a antiga camada abastada do Brasil. Ao mesmo tempo, a capacidade de compra do brasileiro, guardando aí as diferenças regionais, se amplia fazendo com que indivíduos de camadas mais pobres comecem a gastar mais em chamados bens supérfluos, não apenas dinamizando o setor do comércio de moda, mas conferindo específico acento nas produções industrializadas, os prontos-para-usar, que começam a melhorar sua qualidade e a rivalizar com o domínio dos estilistas que se dedicavam, como Dener, à roupa sob medida. Como denuncia Dener, as novas mulheres ricas têm dinheiro, mas lhes falta o bom gosto que permite compreender o significado do luxo e de suas produções. Ou seja, têm dinheiro, mas vestem-se mal, de acordo com o estilista: “O novo-rico liquidou com o bom gosto, infringiu velhos códigos de conduta, estragou a elegância da antiga sociedade. As moças freqüentam os melhores costureiros e compram os piores modelos; seguindo, aliás, o exemplo de seus pais, que vão às melhores galerias e compram os piores quadros” (ABREU apud DÓRIA, 1998, p. 54/55). Sua clientela se torna, então, bastante restrita, ainda mais se considerarmos que as aquisições de roupas de luxo nacionais eram ainda bastante incipientes no Brasil e se restringiam quase exclusivamente a São Paulo e Rio de Janeiro, inclusive com disparidades entre as duas cidades. O próprio Dener afirma nunca ter inaugurado loja no Rio de Janeiro, pois faltava dinheiro às mulheres cariocas. Suas produções, como ele chegou a asseverar, eram as mais caras no país. E seu negócio dava prejuízo.

Eu sou talvez o costureiro mais caro do Brasil, mas a minha casa de alta- costura dá prejuízo. O que eu gasto de material, em pessoal e em tempo, não compensa o que eu peço por uma roupa. Se dedicasse todo meu tempo à indústria de moda, ganharia dez ou vinte vezes mais. Além disso, não precisaria de todo o esquema de promoção que tenho em volta de mim. Seria apenas um industrial, como uma porção de outros. Por que forço a alta-costura? Porque a alta-costura é o laboratório da moda de um país. A alta-costura inspira os modelos, mexe a engrenagem de todo o mundo da moda, lança padrões, estilos. Nenhum país tem moda própria se não tiver uma excelente alta-costura. (ABREU, 2007, p. 110). É desse modo que Dener denuncia, inclusive, a falta de apoio governamental no sentido de impulsionar a moda no país, uma vez que o produto nacional é ainda consideravelmente caro se comparado a produções estrangeiras ou produtos falsificados 229

comercializados aqui como estrangeiros. E exorta a possibilidade de o Brasil se transformar em um país exportador de moda: “Conto isso tudo para mostrar que podemos exportar moda. (...) Não é só mandacaru que dá dinheiro ao país” (ABREU, 2007, p. 113). Nesse sentido, papel relevante no processo têm as revistas femininas, com uma imprensa de moda voltada não só a consumidores, mas também a profissionais. Tais revistas, ao passo do que ocorria em outros setores do país, ajudou a criar um circuito integrado de moda, apesar de ter nessa rede um ponto de confluência bastante nítido: São Paulo, seguido do Rio de janeiro.

Dener morre em 1978. Sofria de cirrose hepática. Quanto aos negócios, estava falido. A essa época, Dener havia experimentado, inclusive, o trabalho na nascente televisão brasileira. Inicialmente, júri, mas logo o sucesso de Dener o fez ganhar um programa de auditório próprio em 1972. No entanto, a ditadura o impediu de prosseguir no trabalho, por conta de seus modos afeminados. Como afirma Durand, ainda que Dener se identificasse com o universo do século XIX, foi incabível a possibilidade de construir uma vida e alicerçar a carreira mantendo-se restrito aos círculos prestigiosos da “sociedade paulistana”. Dener e Clodovil se viram obrigados a “descer à rua” e buscar nos chamados meios de comunicação massivos o apoio e, especialmente, divulgação de que necessitavam. “Dener encontrou no nacionalismo a chave de seu estilo, mas pressentia no seu personagem a chave de seu sucesso” (BORGES, 2003, p. 190). Como advinha de família de camada popular, Dener, que comumente inventava termos afrancesados, mas desconhecia a língua, viveu em conformidade com suas idealizações a respeito da vida dos grandes costureiros, cujo contato inicial ele teve através das revistas femininas. Diferente do que ocorria na Europa e nos Estados Unidos, em que os estilistas eram pessoas que, mesmo de classe média, tinham passado por cursos universitários, convencionalmente de artes plásticas, com mais condições e tempo de interiorizar os valores e modos de comportamento das camadas mais favorecidas (quando não eram pessoas que advinham mesmo das camadas mais privilegiadas socioeconomicamente), Dener e Clodovil foram autodidatas no estilismo. Daí, talvez, como pontua Durand, os modos afetados de Dener fossem tão acentuados. A sua incursão no mundo da televisão, cuja entrada no Brasil se deu nos anos 1950, fez com que ele criasse uma espécie de caricatura de si próprio, ao perceber que seu personagem era bem sucedido: o povo gosta, afirmava. E a estratégia de participar de tais eventos e programas de televisão acabou se tornando um modo de manter-se em evidência, quando os negócios decaíam. Nos mesmos anos 1970, inclusive, as telenovelas começam a despontar como novo foco de difusão de trajes a partir das roupas de seus personagens, como o de Sônia Braga em Dancing’ Days. 230

Para a elaboração dos trajes, as figurinistas foram obrigadas a construir pesquisas em boutiques das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, além de consultarem revistas de moda e revista de tendências para conhecer previamente o que seria lançado em termos de cores, tecidos e modelos na estação seguinte. Deste modo, a televisão igualmente ajudou a tecer uma rede nacional de uniformização relativa dos usos a partir do sucesso das novelas. O sucesso foi notório a ponto de, em pouco tempo, instituir-se o merchandising nas novelas para divulgação de produtos e marcas, uma forma de publicidade que se estrutura a partir da criação da agência Apoio, pela Rede Globo, em 1978, apenas para cuidar de merchandising. Ao mesmo tempo, as senhoras da “sociedade” que antes comercializam algumas peças começam a estruturar lojas; estas, por sua vez, ganham diversidade de padrões, estilos e preços com o crescimento de uma moda industrial de melhor qualidade. A diversificação dos estilos, fruto da melhoria das condições de vida no pós-guerra e dos impactos da “geração baby boomer”, também chega ao Brasil, permitindo a assunção pelos brasileiros de estilos hippie, punk, dentre outros, que se vinculavam, por vezes, a um tipo de consumo de peças mais baratas, facilmente atendíveis pelo prêt-à-porter. Havia, mesmo no Brasil, pouco espaço à alta costura. Mais do que isso, ante à diversidade e, pois, ao aumento da concorrência, as determinações quanto ao uso paulatinamente passaram a estar nas mãos dos consumidores. A concepção do ditador de moda, a que Dener prezava, deixava de fazer sentido. Os anos 1970, no Brasil, marcaram a ascensão de um produto que, posteriormente, traria reconhecimento internacional ao Brasil, enquanto produtor: o jeans. Ao lado disso, as mulheres começam a ganhar as ruas num sentido diverso do que ocorreu no século XIX. O trabalho fora de casa para mulheres de diferentes camadas socioeconômicas deixava de se dar por necessidade financeira ou por hobby; consolida-se como modo de afirmação de independência. Nas ruas, dedicadas ao trabalho, as mulheres deixam de costurar para a família e deixam, inclusive, de fazer os pequenos remendos que permitiam maior durabilidade à roupa. Os anos posteriormente serão da busca pelo conforto e pela praticidade. Os anos 1980 marcarão, por fim, o declínio do costume em buscar nas costureiras e alfaiates de bairro a solução da composição do traje. Simultaneamente, essas mulheres, que recebem informações de moda a partir das revistas especializadas e de programas televisivos, continuam buscando o cultivo da “boa aparência” para aceitação e exercício nos cargos, inclusive executivos, que começam a ocupar. As roupas prontas, de crescente qualidade, começam a se firmar como alternativa mais viável. 231

Em 1978, Dener, que morava na Avenida Cidade Jardim, começou a trabalhar duas vezes por semana em uma loja de um casal português, Isabel Maria e Manoel José Cordova, na Rua São Caetano. Mas Dener até subornava o boy para que lhe comprasse bebida alcoólica. Já havia sido internado algumas vezes. Foi enterrado no túmulo da família de Alik Kostakis, sua amiga colunista. A cirrose hepática coincidiu, segundo Dória, com o desencanto com a moda, desde 1973. Além de testemunhar o crescimento do prêt-à-porter e conseqüente declínio da alta-costura, Dener, que se considerava um artista, manteve considerável falta de cuidado na condução dos negócios. Enquanto já começavam a se consolidar relações de proximidade entre os estilistas e gestores encarregados de administrar o negócio, Dener considerava que ele, sendo artista, pairava acima de todos “vivendo da arte e pela arte” (ABREU, 2007, p. 83). Dener chegou a procurar Caio de Alcântara Machado para que este comprasse sua marca. Em entrevista a Paulo Borges, Caio Alcântara Machado comenta:

Mandei ele trazer seu balanço comercial. Veio uma lista com uns nomes: “Lurdinha de tal: quem paga a roupa dela é fulano. Terezinha de tal: quem paga por suas roupas é sicrano”. Sem querer, eu tive um dossiê de quem pagava para quem na sociedade. Segredos de alcova. E era uma lista de apenas 150 nomes, onde ninguém pagava nada. E eu não estava mesmo mais interessado em ter um costureiro por perto. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 187). Festas caras, vida requintada, vestidos criados, mas não pagos pelas clientes, desorganização das finanças, desvio de dinheiro por parte de funcionários, não pagamento de direitos trabalhistas, salários em atraso, atravessamento das contas da empresa com as contas pessoais, Dener gastava aquilo que ganhava, roubava os talões de cheque de sua empresa (a advogada tinha limitado o uso de talões), pagava as contas dos amigos... Dener chegou, inclusive, a, sem saber, assinar um contrato em que vendia sua marca sem receber dinheiro algum pela transação. A advogada de Dener, então, Maria Leite Neves entrou em acordo com Augusto Azevedo, o beneficiado. Como Dener detestava prêt-à-porter, a marca Dener, de alta costura, seria de propriedade de Dener, e o prêt-à-porter seria explorado por Augusto Azevedo por dez anos. Mas Dener se recusava a desenhar. Segundo ela, que trabalhou para Dener até 1976,

o dinheiro não vinha porque Dener não desenhava as coleções, e Dener dizia que não desenhava as coleções porque, ele não desenhando, Azevedo não faturava. Eu pedia para ele desenhar, um pouco que fosse. Ele até que desenhava, e recebia um pouco mais. Depois, a alta-costura passou a decair e eu sugeri que aquela era a hora para retornar ao prêt-à-porter. Mas ele se negava. (Apud DÓRIA, 2007, P. 152). Aproximando-se à comum imagem do artista, Dener morreu doente e falido. 232

O mercado de moda no mundo entrava inexoravelmente numa era industrial. Ele [Dener], no entanto, continuava um artista, investia cada vez mais na alta-costura quando a alta-costura já se tornava inviável, quando o luxo artesanal de uma coleção de vestidos de noite já funcionava apenas como promoção para a coleção de prêt-à-porter do estilista. Dener não gostava do prêt-à-porter, não tinha nenhum interesse pela indústria ou pelos licenciamentos de sua marca, no máximo achava “uma glória” ver meias com seu nome serem vendidas em Rondônia. Esse desprendimento financeiro acompanhou toda sua carreira e acabou tendo resultados catastróficos, ainda que, aparentemente, a aura de glamour persistisse. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 191). Esse nome da moda nacional, entendido como primeiro estilista brasileiro, figurou ao lado de outros nomes importantes à sua época, como Guilherme Guimarães, Ronaldo Esper, Clodovil e . Chegou, inclusive, a junto a alguns costureiros fundar e registrar, em 1976, a Câmara da Alta-Costura Brasileira, a fim de defender os interesses daqueles que lidavam com a moda nacional. Em dezembro do mesmo ano, como conseqüência, a Receita Federal firmou uma resolução que restringia a entrada de produtos estrangeiros por “compristas brasileiros”. No entanto, era o final do período Dener, que inovou, inclusive, apresentando, em 1972, uma coleção batizada Candomblé, religião da qual começava a se aproximar. O nascimento do estilismo nacional, no entanto, se dá em um período de consideráveis transformações em seu fazer. É nesses anos 1970, especificamente em 1971, que nasce Alexandre Herchcovitch em São Paulo.

Contexto de formação de Alexandre Herchcovitch Os anos 1970 foram palco, internacionalmente, da abertura de prêt-à-porter por parte de quantidade considerável das chamadas grandes maisons e pelo início do processo de divisão internacional do trabalho. No entanto, trata-se de uma espécie renovada de pronto- para-usar que se coloca como convergência entre a alta costura e a roupa industrializada e que teve como um de seus iniciadores Didier Grumbach. Advindo de uma família de industriais do vestuário, Grumbach, era, à época, diretor-geral do grupo C. Mendès, que fabricava o prêt- à-porter Saint Laurent Rive Gauche, a linha Givenchy Nouvelle Boutique e as linhas Philippe Venet, Valentino e Chanel (BAUDOT, 2002). Grumbach se alia a jovens estilistas freelances, desejosos de assinar produtos e linhas criados por eles e de ter uma grife própria. Nessa relação, o industrial assumiria o papel de prestador de serviços e deixaria de intervir no processo criativo. O convencional era o estilista (que tem o status inferior ao do costureiro de alta-costura) trabalhar para uma indústria, e o resultado eram produtos pouco inovadores e de baixa qualidade. A proposta de “Criadores e Industriais” de Grumbach permitia uma espécie 233

de meio-termo; explorava a fronteira entre a criatividade e a qualidade que existia na alta- costura e a produção mais barata e massiva da roupa industrial. Desse modo, ao lado dos costureiros (da alta-costura) e dos estilistas (termo criado nos anos 1960/70 para definir os líderes do prêt-à-porter), surgem os criadores. Os primeiros associados de Grumbach serão Emmanuelle Khanh e Ossie Clark. Depois, nomes como Issey Miyake, Tierry Mugler, Jean- Paul Gautier e outros também figurarão no rol dos “jovens criadores”. Tal processo culmina com a criação da Câmara Sindical do Prêt-à-Porter dos Costureiros e Criadores de Moda, consolidada com dificuldade na Paris dos anos 1970 e, nas palavras de Baudot, “verdadeira instituição nos anos 1980”. Nessa conjuntura, os até então denominados países de Terceiro Mundo participavam na condição de mercado para os produtos estrangeiros, ainda que inicialmente o consumo atingisse marcas de pouca relevância no faturamento do consumo internacional de moda; bem como atuava na condição de exportador, inicialmente, de matérias-primas, como fios, para o desenvolvimento de produção. Paulatinamente, a divisão internacional do trabalho fará com que as indústrias do mundo da moda se distribuam em países terceiro mundistas, devido à busca por mão-de-obra barata, enquanto os pólos de criação e de consumo dos bens de melhor qualidade se mantêm na Europa e nos Estados Unidos. No caso deste, inclusive, é apenas ao final dos anos 1970 que a moda lançada nos Estados Unidos começa a ser aceita na Europa. Até então os Estados Unidos figuravam igualmente como “interpretadores” dos lançamentos europeus. A internacionalização do negócio, por outro lado, acarretou outra transformação fundamental a se consolidar apenas nos anos 1980: os criadores de moda passariam a advir de diferentes pontos do planeta, ainda que a Europa se mantivesse como ponto de confluência. É o caso, por exemplo, de Kansai Yamamoto, um dos primeiros japoneses a apresentar seu trabalho em Paris. O jogo de relações globais na produção, divulgação e comercialização da moda significava, pois, um duplo movimento: centrífugo, no angario de mão-de-obra barata e na busca por mercados promissores; e centrípeto, por manter, em especial, a Europa (e, dentro dela, a França, em primeiro lugar) como centro necessário para o reconhecimento do trabalho e aquisição, portanto, de prestígio do “mundo da moda”. Tornava-se cada vez mais difícil, no caso do Brasil, crer na alternativa de produtos com características nacionais, na verdade ainda em grande medida “interpretações” da moda européia, como principal mecanismo para refrear a entrada e consumo de produtos estrangeiros.

No Brasil, os anos 1970 iniciaram ainda sob o embalo do “milagre brasileiro” (1968-1973), contudo a crise do petróleo, em fins de 1973, e as condições da empresa privada 234

nacional, com uma burguesia nascente e comprimida por dois grandes gigantes, as estatais e as multinacionais, conferiam grande privilégio ao produto importado. A política neoliberal defendida pelos Estados Unidos preconizava a abertura do mercado de chamados países de Terceiro Mundo para a livre concorrência com empresas estrangeiras, em melhores condições que as empresas desses países, alguns deles recém-saídos da condição colonial. Segundo as concepções neoliberais, um Estado fortalecido deve ter poucas atribuições para desempenhá- las a contento (“Estado mínimo”). O papel do Estado seria administrar as relações e manter a segurança (através do monopólio da violência), enquanto o mercado, livre, teria condições de se auto-regular e atingir um equilíbrio a partir da dinâmica de preços, fruto da própria concorrência. Em situação privilegiada, as empresas, em especial norte-americanas, começaram sua incursão em diferentes países criando uma rede de extensão ainda maior e que abarcava os diferentes continentes, mas em relações de assimetria evidentes. O Brasil entra nesse circuito na condição de dependente e subalterno, uma vez que os investimentos nas empresas privadas nacionais eram pautados, sobretudo, em financiamentos externos ou estatais; sendo estes também via empréstimos no exterior. Constrói-se uma dívida externa que implica a diminuição dos investimentos internos e o afluxo de dinheiro para pagamento da dívida, que, em contexto de crise internacional, começa a ser cobrada, ao mesmo tempo em que diminuem as possibilidades de empréstimo. Tal situação se agrava nos anos 1980. De qualquer modo, modelo similar de desenvolvimento desigual de integração é perceptível também dentro do Brasil com as evidentes discrepâncias regionais e centralidade, não apenas na produção de moda, das capitais São Paulo e Rio de Janeiro. No entanto, numa economia globalizada, a estruturação de um sistema financeiro eficiente torna-se condição à estruturação de negócios de solidez, e, no Brasil, São Paulo ganha dianteira nesse processo frente ao Rio de Janeiro e aos demais Estados do país. A Embratel, criada em 1965, acabou por liderar o processo de informatização, facilitando a integração ao mercado globalizado e contribuindo para a expansão da quantidade de empresas no setor de informática. Nos anos 1970, tem-se a criação da Embrapa, que irá, por seu turno, promover pesquisas que contribuirão para o desenvolvimento da indústria têxtil. O relativo movimento de desconcentração da produção industrial brasileira que ocorre nos anos 1970, num espelhamento do que já ocorria desde os anos 1930 e internacionalmente com a aceleração do processo de globalização, favorece, neste momento, o Sul do Brasil. Holdings nacionais e globais também irão se instalar, mantendo seus centros de comando no Sudeste, Sul e, por vezes, na Bahia (SANTOS, SILVEIRA, 2006). As competições entre Estados, então, se acirram para abrigar novas fábricas. As relações significativas não estão necessariamente 235

próximas, como ocorria anteriormente, daí a substituição, segundo Santos e Silveira, da noção de circuitos regionais de produção para a de circuitos espaciais da produção, num movimento comandado hoje, ainda em conformidade com os autores, por um fluxo não restrito a materiais, pois envolve capitais, informações e mensagens, cujas formas de circulação dependem da integração do sistema de comunicação e informática que possibilitam a dinamização do sistema financeiro, inclusive na instituição do sistema de crédito ao consumidor como forma de efetuação de transações – o que se consolida no Brasil efetivamente nas décadas posteriores. De qualquer modo, é importante ratificar, apesar da relativa descentralização, as assimetrias permanecem.

São Paulo, metrópole brasileira, já não tem o seu papel metropolitano definido por ser uma capital industrial, mas por ser uma capital relacional, o centro que promove a coleta de informações, as armazena, classifica, manipula e utiliza a serviço dos atores hegemônicos da economia, da sociedade, da cultura e da política. Por enquanto, é São Paulo que absorve e concentra esse papel no poder decisório. (SANTOS, SILVEIRA, 2006, p. 210). Na moda, um exemplo da centralidade paulista e do acirramento da concorrência está na contestação vinda do Rio de Janeiro, depois Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará, Santa Catarina e Rio Grande do Sul quanto à posição de São Paulo com a Fenit (DURAND, 1998). O peso de São Paulo pode ser percebido no rótulo de “regionais” que ganharam as demais feiras de moda. Classificadas como tais pelo MIC, Ministério da Indústria e Comércio, as feiras só podiam ocorrer 60 dias antes ou depois das feiras pré-existentes. Deste modo, a Fenit de São Paulo, consagrada como feira nacional, fixou-se em maio, quando lançava, sem possibilidade de concorrência, as coleções de Primavera-Verão. A produção do Rio de Janeiro, principal concorrente das empresas paulistas, era a maior prejudicada, tendo em vista sua condição de preterida na relação com São Paulo e a possibilidade crescente de abastecimento de produtos nos mais diferentes Estados. Uma série de associações também começa a se estabelecer no sentido de conferir sustentação e força às produções dos seus respectivos Estados de origem; no entanto, tais grupos, efêmeros, não trouxeram grandes conseqüências no equilíbrio de forças inicial. Alguns desses grupos são o Consórcio da Moda Brasileira (1972), Núcleo Paulista de Moda (1980) ou Grupo São Paulo de Moda (1986), em São Paulo; Grupo Moda-Rio (1975/78); Grupo Mineiro de Moda; Grupo Ousadia, de Fortaleza. Em 1985, inclusive, discute-se no Rio de Janeiro sua “vocação econômica”, em função das produções e dos usos em São Paulo. Para os otimistas, segundo Durand, a mulher paulista estaria fadada a uma aparência postiça, o que conferiria grande margem de atuação para desenvolvimento das produções cariocas; para os pessimistas, o suposto charme carioca 236

já sofria abalos e estes aumentariam com a consolidação de São Paulo como uma “Nova York brasileira”, o que significa, simbolicamente, produtos identificados ao cosmopolita e de vanguarda. Tais tensões e rivalidades serão fundamentais à constituição do que poderíamos denominar de mapa da moda brasileira no século XXI. No entanto, outros elementos são fundamentais, como as transformações que se processam no cenário político-econômico e sociocultural do Brasil ao longo dos anos 1980 e 1990. De qualquer modo, nos anos 1970, em que Alexandre Herchcovitch tem seus primeiros nove anos de vida, estão lançadas as bases de condição ao desenvolvimento do trabalho do estilista do modo como se deu. Contudo, tais bases se conformaram a partir de uma série de relações e de cruzamento de trajetórias que foram se dando ao longo de séculos de história, dos quais aqui é apresentada apenas uma súmula. Em primeiro lugar, Herchcovitch nasceu brasileiro por conta de uma política migratória nacional que favoreceu a entrada dos estrangeiros judeus que eram perseguidos em seus países de origem. E tal “abertura de portos” se deu a reboque de uma tentativa de modernização do Brasil, via uso de mão-de-obra qualificada e que, numa segunda conseqüência entendida como favorável pelos círculos de decisão nacional, contribuiria para mudar a constituição étnica do país. No caso dos Herchcovitch, sua entrada no Brasil se deu nos anos 1910, em decorrência dos pogroms. Como tantos judeus do Leste Europeu que migraram para o Brasil em princípios do século XX, a família Herchcovitch se estabeleceu na promissora São Paulo e, quando do nascimento de Alexandre, buscou, como ocorreu com diversas famílias de classe média brasileiras e de origem estrangeira, conferir instrução formal ao filho, mecanismo privilegiado de ascensão social e econômica para a mencionada classe, em especial com a chamada democratização do ensino brasileiro. Lembre-se que o pai de Alexandre, Benjamin Herchcovitch, formou-se em química industrial, engenharia mecânica e administração de empresas. Como judeus, os pais de Alexandre buscaram que tal escolarização se desse em escola judia ortodoxa; no caso, o colégio Iavne, localizado no bairro do Jardim Paulista.

O acesso de Alexandre à noção da indumentária ocorreu muito cedo, no colégio Iavne, em meados dos anos 1970. Certamente o jovem estudante se impressionou com as luxuosas vestes dos rabinos com suas camadas de tecido e o belo drapejado. O universo judaico ortodoxo ainda possui indumentária marcante: as mechas de cabelo cacheado sob o chapéu, eventualmente revivida na figura do ídolo pop Boy George; a elegância do preto; as perucas para mulheres casadas, usadas para esconder o cabelo natural. Enfim, a aparência como rito e identidade cultural. O hábito de usar certas roupas faz parte de sua vida desde a infância. Isso não determina um elo direto entre Alexandre e seu 237

prematuro interesse pela moda, mas indiscutivelmente deu-lhe consciência da indumentária e de sua simbologia. (COSAC, 2007, p. 77). Segundo o próprio Alexandre, sua vocação teria começado a se manifestar aos seus nove ou dez anos (HERCHCOVITCH, 2007, p. 21). E nisso sua principal influência, por ele mesmo destacada, teria sido sua mãe. Regina Herchcovitch, como afirmado, manteve ligação com a moda como consumidora; como fabricante/vendedora, ao comercializar na Rua 25 de Março algumas peças que produzia nas horas vagas de trabalho; e como empresária, uma vez que, depois de casada, chegou a montar uma microempresa de lingerie, com costureiras e vendedoras terceirizadas, em seu apartamento no bairro de Sumaré, localizado no distrito de Perdizes, Zona Oeste da capital paulista. Ou seja, seguindo os passos de outros judeus em diferentes partes do mundo, Regina começa a se dedicar à costura, fazendo com que Herchcovitch cresça em meio a panos, linhas e máquinas de costura. De acordo com Lilian Pacce (2002), a montagem da confecção de lingerie teria se dado quando Herchcovitch contava nove anos. Em outros termos, o estilista acaba por identificar os primórdios de sua vocação para a moda não apenas no interesse e encanto despertados pelas roupas de sua mãe, mas ter crescido observando tais trabalhos e em meio a eles teria constituído impulso fundamental à sua trajetória posterior.

É claro que denota certa ingenuidade imaginar que todo garoto apaixonado pelo jeito de vestir da mãe vai virar um grande estilista. O fato é que algumas lendas do estilismo sempre pontuam alguém familiar como uma influência mais maciça na escolha da moda como profissão. A pequena participação dela nesse universo, seja como confeccionista seja como consumidora das maiores tendências dos anos 80 (aprendi a amar macacão porque era a roupa preferida de minha mãe e de quase todas as mulheres daquela década), me deixou um legado de imagens e me transformou num aficionado por roupas e tudo relacionado ao mundo da moda. Tinha de me policiar para não me valer dessa memória afetiva e começar uma nova coleção pensando em bodies de stretch (chamados na Era Disco de collant), fuseau com moletom, macacão de tricoline extralargo com alguns franzidos e salto alto. Sem esquecer da profusão de bijuterias coloridas e gigantescas. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 32). Parece mais interessante, para compreender a visão que A. Herchcovitch começa a construir, perceber a criança que se via mergulhada em um mundo de panos, seja nos rituais do judaísmo, seja no rigorismo que envolvia a questão indumentária no colégio Iavne, seja através do trabalho de sua mãe ou do fascínio que as roupas dela, as roupas dos anos 1980, começavam a provocar. De qualquer modo, tratava-se de um menino que estava sendo iniciado nesses diferentes mundos amarrados por tiras de panos. Questões indumentárias faziam parte de seu cotidiano, de modo similar à instrução convencional num passado não muito distante (e ainda presente quanto a algumas famílias) quando a inserção no mundo do 238

trabalho se dava desde a infância como continuidade ao trabalho dos pais, que, assim, eram encarregados de lhes ensinar os primeiros passos em seu ofício, que, por sua vez, aprendidos desde tenra idade, garantiam a habilidade, a “arte” do fazer. Sem dúvidas tal percurso deve ter se dado para muitas dessas famílias de imigrantes que conseguiram construir empresas familiares, mas, como já devidamente apontado, a possibilidade de inserir os filhos em instituições escolares passou a ser a escolha mais comum de muitos pais de classe média (antes, uma escolha possível apenas em camadas mais abastadas). No caso de Alexandre Herchcovitch, talvez a escola e o trabalho doméstico da mãe devessem levá-lo, de modos distintos, ao mesmo ponto. Tamanha a familiaridade que vai construindo com o mundo das roupas que, ainda criança, fez uma fantasia de carnaval para si próprio usando cartas de baralho grampeadas: “Feliz sobretudo na companhia de mulheres, gostava de conversar sobre roupas e de fazer desenhos para trajes femininos, que mantinha em segredo. Quis aprender a costurar, e pediu inicialmente à empregada que o ensinasse; depois recorreu ao auxílio da mãe” (ADES, 2002, p. 117). Desde cedo, já dava sugestões de composição do traje e de maquiagem à mãe, o que demonstra a canalização da curiosidade infantil na constituição de um senso de observação e gosto próprio. É ainda nos anos 1970, aos 07 anos, que inicia sua coleção de caveiras (COSAC, 2007). A paixão por caveiras vai fazer desta uma das marcas registradas de Alexandre em diferentes peças que produz: de camiseta a relógio, a caveira, logotipo de sua marca, pode se fazer presente. Em 2007, eram mais de cem exemplares em sua coleção particular.

Herchcovitch guarda, entre seus pertences pessoais – meticulosamente ordenados –, uma maravilhosa e macabra coleção de caveiras e esqueletos que inclui desde modelos de anatomia a cavaleras mexicanas, de utensílios em forma de crânio (descendentes distantes das taças usadas por astecas e vikings) a um castelo-caveira, cenário de um jogo. (ADES, 2002, p. 108). É possível questionar se o interesse por caveiras não teria igualmente relação com as marcas profundas de um passado de perseguições aos judeus e que culminaram na Shoah do recente século XX. A lembrança do que ocorreu com os antepassados e que levou a contínuas reestruturações abruptas de modos de vida, como a imigração involuntária que justifica a existência da família Herchcovitch no Brasil, faz com que a morte tenha grande probabilidade de ser tema recorrente: nos assuntos familiares dos judeus, pela própria narrativa da saga étnica e familiar; nos rituais religiosos, para lembrar a luta pela manutenção da fé e da unidade judaica; bem como na escola, como tema de reflexão, estudo e disciplina quanto à construção de uma peculiar postura frente aos outros. As próprias instituições de ensino judaicas foram criadas para ajudar a manter os costumes através do método de ensino, 239

da alimentação oferecida aos alunos, do aprendizado da língua, do respeito às convenções (inclusive indumentárias) e, assim, para contribuir no sentido de reforçar os elos da comunidade, ameaçados pela dispersão no mundo (MIZRAHI, 2005). Deste modo, é possível imaginar o significado especial que assume a morte, como tema cotidiano, na imaginação infantil e no processo criativo do estilista adulto. Seu encanto pela mórbida personagem Mortícia Adams, do filme A família Adams, transformada em uma de suas treze tatuagens, e a fotografia que tirou, deitado em um caixão, em 1998 são demonstrações da importância do tema para Herchcovitch. Obviamente, não se pode determinar qualquer elemento aqui como causador de tal interesse em colecionar caveiras; trata-se, mais propriamente, de uma possibilidade interpretativa ou, se se preferir, de um dos possíveis elementos que podem ter contribuído para formação de tal interesse e gosto, a ponto de ele ter se mantido ao longo dos anos através de uma crescente coleção. Inclusive, deve-se destacar o caráter lúdico, ainda que por vezes igualmente mórbido, que assumiu tal gosto. Ao mesmo tempo em que mantém uma caneca em formato de crânio, Alexandre criou, em 2001, uma camiseta que trazia como estampa a caveira de Mickey Mouse, personagem de Walt Disney. Tal combinação, inclusive, entre o infantil e a morte nos permite destacar temas freqüentes de suas coleções: o universo de Walt Disney e o mundo sombrio underground dos punks. Ao lado deles, e formando par de certa equivalência com o anterior, o pop dos anos 1980 e o sadomasoquismo igualmente figuram como inspirações. No mais, o destaque está em seu uso de símbolos religiosos nas coleções. São traços de continuidade na mudança exigida nas relações de mercado. As marcas, portanto, do estilista. Ainda em 1985, quando Alexandre contava 14 anos, foi exibida pela Rede Globo de televisão a novela Ti Ti Ti, que Herchcovitch, segundo relato próprio, assistia. A narrativa se pautava numa relação de disputa entre dois estilistas, Jacques Léclair e Victor Valentim, personagens e trama inspirados na rivalidade entre Dener e Clodovil. Se a novela ajudava a voltar a atenção dos telespectadores a um interesse e familiaridade maior em relação a questões de moda, a primeira metade dos anos 1980, por outro lado, foi também marcada pelo processo de transição do Brasil. Fazia-se perceptível o esgotamento do modelo de centralização do Estado e da industrialização por substituição de importações. Ao mesmo tempo, com a crise mundial, os empréstimos concedidos ao Brasil eram suficientes apenas para o pagamento da dívida externa acumulada. Os investimentos, conforme esboçado, tornaram-se escassos, e a inflação, em 1985, contabilizava 239 pontos percentuais. A redemocratização teria sido fruto de uma negociação entre oposição (PMDB), representantes do governo militar e grupos dissidentes (PFL), não chegando a constituir uma ruptura efetiva. No entanto, mesmo com alto índice de inflação, desemprego, dívida externa e grandes 240

disparidades na distribuição de rendas, em fins de 1984 já era perceptível uma retomada do crescimento econômico do país e o aumento das exportações. Em 1985, Tancredo Neves é eleito para assumir a função de Presidente na nova República, mas, devido à sua morte logo após as eleições, o cargo foi assumido por seu vice, José Sarney, do Partido da Frente Liberal (PFL). O Governo Sarney, que teve seu fim em 1989, acabou se constituindo como uma nova etapa de transição. O programa de Estabilização da Economia Brasileira, o Plano Cruzado, teve caráter emergencial e não conseguiu atingir os pontos fundamentais da crise econômica; no entanto, conseguiu obter queda do índice da inflação. O resultado é que os anos 1980 serão caracterizados por um boom no consumo que, contrariando as expectativas, promoveu uma retirada maciça de dinheiro das cadernetas de poupança deixando o governo sem recursos para investimento. Deste modo, a inflação volta a crescer, há aumentos de preços e problemas generalizados de abastecimento, o que leva à escassez. O Governo lança novos programas, como o Cruzado II e o Plano Bresser, mas a inflação alcança o pico de 933,6% em 1988.

Em meio a esse contexto, Alexandre, aos 15 anos, ganha sua primeira máquina de costura, ou seja, em 1986 (PACCE, 2002). No mesmo ano, foi à Bahia nas férias e resolveu fazer uma consulta a Ifá.

Imagine um típico paulistano de classe média, de formação judaica – com direito a escola ortodoxa – e curioso o suficiente para buscar respostas e caminhos para o futuro num terreiro de umbanda na Bahia?! Isso aconteceu em minha adolescência, durante rápida passagem de férias com meus pais, em Salvador. E pode dar uma noção exata do que me move neste mundo: inquietude e vontade de me colocar à prova sob os mais variados prismas. Dos búzios da mãe-de-santo, saiu uma previsão que – inconscientemente ou não – caiu no meu esquecimento por muito tempo: “Você vai ter uma profissão legal, mas muito difícil no Brasil. Seu sucesso será tanto que atravessará mares e oceanos”. Ao retornar a São Paulo, o encontro místico já soava como um passado distante”. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 17). Sob a influência da mãe, em seu retorno a São Paulo, resolveu levar sua vocação adiante. Montou um ateliê na sala da casa de seus pais, com mais duas máquinas. Aos 16 anos, já produzia e comercializava camisetas para os amigos próximos. Além disso, foi aos 16 anos que A. Herchcovitch criou seu vestido em organza de seda cor-de-laranja e que levava bolas de pingue-pongue inseridas na barra. Segundo Herchcovitch, tal modelo já evidenciava algumas preocupações recorrentes em seu trabalho, como o caimento da roupa. Em 2000, Herchcovitch jogou o modelo no lixo, mas a mãe o recuperou. Interessante é que, dois anos após, ele usaria similares matrizes para a composição de uma nova coleção. Aplicou correntes de alumínio “de tamanho bem exagerado”, segundo ele, aludindo às microcorrentes dos tailleurs da Maison Chanel, à roupa. No entanto, aí as correntes não se limitaram às

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extremidades da roupa, de tecido delicado e transparente do mesmo modo que o vestido costurado na infância. As correntes, aplicadas ao tecido, criam um contraste ao mesmo tempo em que deformam o tecido por conta do peso. De acordo com Cosac, Herchcovitch teria alegado a lembrança de que seus avós usavam moedas na bainha das roupas, para obter mais perfeito caimento, como inspiração na criação do modelo. Podia ser também um mecanismo para salvaguarda de bens em período em fuga da perseguição anti-semita. Entretanto, não apenas as lembranças das histórias dos avós foram usadas por Herchcovitch. Em seu desfile de formatura, em 1993, um dos tecidos utilizados na confecção de algumas peças, como corselets e calças, foi o piquê, extraído das colchas que a avó mantinha guardadas em seu armário. Aos 16 anos, fez ainda uma roupa completa para a mãe ir a um casamento: um casaco amarelo mais curto na frente, com maxi-botões (inspirados nos anos 60), que foi usado com uma bermuda de renda preta e com sapato e luvas com estampa de oncinha (PACCE, 2002). Herchcovitch começa, então, a se dedicar ao estudo da moda através de livros e revistas sobre o assunto: “Todo sábado, depois do almoço, corria para uma banca de revistas na Cidade Jardim (bairro de classe média alta em São Paulo) e passava horas folheando revistas que traziam fotos dos desfiles de Paris” (HERCHCOVITCH, 2007, p. 18/19). Sua crescente vinculação à moda se rebatia, inclusive, em seu modo de apresentação pessoal no colégio.

Às vezes eu provocava um pouco, porque não estava de acordo com algumas coisas. Se o uniforme era camiseta branca com o símbolo do colégio, eu recortava o símbolo e aplicava de cabeça para baixo. Se a calça tinha que ser azul, a minha era um jeans manchado de cloro. Tinha essa coisa de estar transgredindo. Aproveitei aquele colégio em que nada se podia para fazer justamente o que eu queria. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 953/4). A esse respeito, relata sua mãe: “Quando ele estudava no Iavne, colégio judeu ortodoxo, eu era chamada todo dia pela direção. Um dia, porque ele tinha recortado a camiseta; no outro, pintado a calça; no outro, tingido o cabelo. Eu não agüentava mais” (Apud PACCE, 2002, p. 261). Acabou por cortar os cabelos para manter os amigos, pois recebeu ultimato do colégio para se retirar em definitivo caso não o fizesse. A mecha de cabelo foi pendurada ao lado da foto de Boy George, seu ídolo, em um painel que ficava em seu quarto. Como muitos adolescentes de sua época, Herchcovitch manteve próxima ligação com a música. Boy George, vocalista do grupo pop Culture Club, angariou fãs em diferentes partes do mundo e fez considerável sucesso no Brasil dos anos 1980. Boy George desafiava a fronteira entre o masculino e feminino, a ponto de se tornar ícone dos transformistas, ao mesmo tempo em que trazia com freqüência, em sua aparência pessoal, elementos religiosos. 242

Do mesmo modo que podia comparecer como padre, vestia hábito de freira em suas apresentações. No entanto, uma de suas imagens marcantes são os cabelos, sob chapéu alto, com cachos descendo sobre o peito, ao modo dos judeus ortodoxos. De acordo com Asheri (1995), no Levítico, os hebreus são chamados a não “arredondar os cantos da cabeça”, e essa expressão foi interpretada pelos judeus ortodoxos como uma proibição quanto ao corte dos cabelos que crescem na região das têmporas e áreas próximas. Para alguns, não se deve aparar completamente os cabelos de tal área; para outros, qualquer corte aí é proibido, de modo que o cabelo cresce em longas payes encaracoladas que podem ficar pendidas ao lado do rosto, como usou Boy George em momentos de sua carreira, ou são enfiadas atrás das orelhas ou ainda “são enroladas em torno do dedo e enfiadas numa espécie de bola de cabelos nas têmporas” (ASHERI, 1995, p.138). O inglês Boy George figura em segundo lugar no ranking das pessoas que, conforme o próprio Alexandre Herchcovitch, teriam influenciado seu trabalho:

Ter descoberto aquela figura andrógina, todo maquiado, muito enfeitado e que não era exatamente um travesti me deu um nó na cabeça. Passei a comprar todas as revistas que traziam a banda em reportagens e cheguei a ter um álbum de recortes, no qual cada imagem dele me fazia viajar naquele sem-fim de lenços, batons, brincos e outros artífices femininos. Não acho que ele tenha influenciado minha moda, pois nunca fiz nada que remetesse ao jeito de ele se vestir. A contribuição de Boy George em meu imaginário – quem já assistiu a algum desfile meu sabe que costumo colocar suas músicas como trilha de fundo até a apresentação começar – é muito mais sutil. Fez- me pensar numa roupa sem preconceitos, barreiras ou limitações. É fácil entender esse raciocínio ao perceber que, em meus primeiros desfiles, usei no casting homens (entre eles, meu irmão Artur) que desfilaram de saias, muitos deles com sapatos altos no look e que, na imagem final, jamais perderam a masculinidade. Acreditei na moda sem gênero! (HERCHCOVITCH, 2007, p. 35). A discussão sobre gênero se apresenta nos trabalhos de Alexandre Herchcovitch nos cortes das roupas, que permitem, em certa medida, transposições do masculino ao feminino nos usos cotidianos, na transposição do masculino/feminino nos desfiles (como citado por ele ao se referir à apresentação em que homens desfilaram de saias e com sapatos femininos) e na própria escolha de seus modelos, normalmente andróginos. Em alguns desfiles, inclusive, as modelos compareceram com os rostos cobertos, como na coleção Outono-Inverno de 1997, acentuando as ambigüidades que a anatomia dos corpos permite e conferindo maior evidência ao traje, em detrimento do indivíduo que o usa no momento da apresentação – o que é justificado nessa época em que os modelos de passarela ganharam notoriedade de estrelas (desde os anos 1980). O próprio Herchcovitch mantêm coleções particulares de bolsas e sapatos femininos, usados por ele em algumas fotografias. Contudo, é 243

interessante notar a relação estabelecida entre o “dessexualizado” e o apelo fetichista que, muitas vezes, também é característica forte em seu trabalho. O ingresso no underground paulistano, segundo Herchcovitch, contribuiu para reforçar o conceito de moda sem gênero. O fetichismo que comparece em seus trabalhos é um diálogo com o jogo de gênero promovido pelas drag queens. A adolescência de Herchcovitch é marcada, no colegial, tanto por uma viagem de seis meses a Israel, acordando, no kibutz, às quatro horas da manhã para trabalhar na cozinha ajudando a preparar a refeição de mais de mil pessoas (PACCE, 2002); como por sua incursão na noite de São Paulo (HERCHCOVITCH, 2007). Como salienta ele, era época clubber. Ao contrário do que expõe Herchcovitch, os clubbers são um grupo de estilo, mas não podem ser qualificados como movimento, pois eles não têm “bandeira política”. Os clubbers se definem por uma postura de negação do mundo vivido pela entrega, quase adolescente, ao mundo das festas (que, nos anos 1970, ocorriam nos chamados clubes). Não há luta; há fuga, a ponto de as festas (raves) durarem dias. Os clubbers, no entanto, colocam- se como uma síntese possível entre os punks (esteticamente evidenciado, por exemplo, pelo uso de piercings e de roupas detonadas), os homoeróticos, com atenção especial à montagem das drag queens (na maquiagem e peças de roupa e/ou acessórios), o futurismo (pelo recurso ao plástico, neon e gosto por cores fluorescentes, simplesmente chamadas flúor) e o universo adolescente (na incorporação de peças ou estampas com motivos infantis, a exemplo de bolsa da Barbie ou de camisa com estampa da Hello Kitty). É nesse universo que Herchcovitch conheceu, em 1988, Márcia Pantera, segundo ele, a drag queen mais famosa do Brasil e que, anos após, participará de seu desfile de formatura na católica Faculdade Santa Marcelina. Márcia Pantera apresentava-se cantando samba ou dublando Shirley Bassey: “Usei muito vinil, couro, elástico, corrente, rendas para fazer mais de trezentas roupas para Márcia. E era assim: um look para sexta-feira, outro para sábado e mais um novíssimo para o domingo. Uma insanidade!” (HERCHCOVITCH, 2007, p. 36). Segundo ele, dois mundos aí se cruzavam: o das peças de lingerie da mãe e o fetiche sado-masoquista (S&M) de Thierry Mugler. A primeira peça confeccionada para Márcia Pantera teria sido um macacão branco de helanca com renda preta nas pernas (PACCE, 2002). Do mesmo modo que Boy George o leva à problematização da artificialidade da roupa (que não pode ser compreendida apenas como mera extensão da pele, como chegou a afirmar McLuhan) e das construções de gênero, o mesmo ocorre a partir da vida noturna que começa a experimentar. Esse teria sido para Herchcovitch (e segundo ele próprio) o período de seus questionamentos sobre religião, sexualidade e condição socioeconômica, base para a elaboração das roupas em seu desfile de formatura. 244

Considerando a importância que tais elementos terão nas suas coleções de moda, compreende-se o seu gosto pelos trabalhos de dois estilistas apontados por ele como referências suas, mas que poderiam ser, por muitos, considerados opostos e, portanto, excludentes entre si. São eles Thierry Mugler e Rei Kawakubo. De um lado, Thierry Mugler, que nasceu em Estrasburgo em 1948 e abriu sua Maison em 1974. Conforme Baudot (2002), Mugler sofre influência do mundo do espetáculo, do futurismo e do retrô hollywoodiano. Quando as produções de moda estavam ainda embaladas pelo apelo hippie e pela busca, por parte das mulheres, de uma roupa confortável e natural – adequada ao seu ingresso ao mundo do trabalho e, muitas vezes, inspirada no traje masculino –, Thierry Mugler49 compareceu com uma concepção de “mulher fetiche” e dominadora em roupa sexy, com cintura de vespa e ombros acolchoados em tecidos, como o látex e o vinil. De outro lado, Rei Kawakubo, que nasceu no Japão em 1942, traz como princípios básicos, segundo Scilling (2000), o ascetismo e a desconstrução, com suas roupas em forma de saco, que tiram o corpo do campo visual, camuflando-o e “dessexualidando-o”50. Rei Kawakubo, da Comme des Garçons, tem no esconder o corpo e no uso de intenso geometrismo os pontos nodais de seu trabalho e o contraponto fundamental às produções ocidentais mais convencionais. “Trajes assimétricos, demasiado longos, compridos e angulares, em cores escuras” (SCHILLING, 2002, p. 508) foram os elementos usados nas apresentações da estilista, no prêt-à-porter da Paris de princípios dos anos 1980. Considerados disformes e mesmo andrajosos, seus trabalhos, que tentam conferir conceito às roupas apresentadas, foram inicialmente criticados, mas conseguiram encontrar espaço junto à nova mulher que desejava evidenciar sua independência através da roupa. É no geometrismo, na funcionalidade, na roupa “dessexualidada”, na desconstrução da roupa e na imersão crescente na alfaiataria (que acaba por ser uma conseqüência do jogo de construir e desconstruir as peças) que Herchcovitch se aproxima de Rei Kawakubo; é no sexismo, no uso do látex, na exibição do corpo sob o tecido transparente, no uso de detalhes sado-masoquistas, na roupa que contorna e, por vezes, sufoca o corpo que Thierry Mugler aparece como influência. O ponto de encontro entre ambos, percebidos por Herchcovitch e que igualmente o aproxima deles, é a importância conferida à questão do gênero, seu papel e relação possível com a roupa. Esse será o principal ponto de articulação que Herchcovitch tomará para fazê-los dialogar. No entanto, a síntese proposta pelo paulista “chama” outros convidados ao diálogo. Um deles, também referido por Herchcovitch como

49 Em 1997, Thierry Mugler é admitido na Câmara Sindical da Alta-Costura Parisiense. 50 O neologismo é proposital. Parece aqui um termo adequado para tratar de uma roupa que se busca acima das considerações de gênero e que, por isso mesmo e pelo espanto que ocasiona, acaba sempre remetendo a tal problematização.

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diferentes lugares do mundo. O modelo construído por Disney foi seguido por muitos, seja quanto às animações, seja no que toca aos parques temáticos. Uma miscelânea de produtos que multiplicavam consideravelmente o rendimento de um filme, por exemplo, foram igualmente criados a partir de personagens e de suas aventuras: bonecos, jogos, vinis, material escolar, roupas, dentre outros, e que ampliaram significativamente sua gama nos anos 1990/2000. O próprio Herchcovitch, por exemplo, a reboque da nostalgia dos anos 1980, estabeleceu uma parceria com a Disney que lhe permitiu o uso das imagens da Branca de Neve e de Bambi em sua coleção de 2003: “dois ícones de minha infância e da cultura pop”, afirmou o estilista (2007, p. 65). Além da Disney, outros parceiros de Herchcovitch ligados ao universo infantil são a Sanrio, empresa que detém o uso de imagem da Hello Kitty, e a Warner Bros, para uso da imagem do Piu-Piu (Tweety). Desse modo, percebe-se que o infantil, o futurista, o pop, o punk e a drag queen celebrados no mundo clubber mantêm a força no trabalho de Herchcovitch que, portanto, leva o underground paulistano revisitado e revisado às passarelas. No entanto, ao mesmo tempo, não há condições de considerar que suas coleções são uma extensão do mundo clubber. Se Vivienne Westwood, nos anos 1970, começou a vestir os punks e, com isso, começou a construir uma carreira como estilista; a trajetória de Herchcovitch inicia criando roupas para figurarem na cena clubber – que, como os punks, surgiram na Inglaterra dos anos 1970 e, no Brasil, encontraram mais fértil espaço em São Paulo. Ao mesmo tempo vai paulatinamente se deslocando do clubber rumo a um produto mais autônomo, menos vinculado a grupos tão restritos, mais vendável. É desse modo que o próprio Herchcovitch interpreta sua fotografia num caixão:

Ao voltar um pouco no relógio e encontrar o ano de 1998, quando fiz uma foto deitado no caixão e ganhei até um reconhecimento de óbito, tenho mais clareza sobre qual lado de Alexandre Herchcovitch morreu... O que foi sepultado naquela espécie de brincadeira-manifesto foi o estilista maldito, que gostava de produzir imagens carregadas de certos estranhamentos e, na maioria das vezes, sem grande tino comercial. Esse divisor de águas, tão caro à minha carreira e à minha vida, me fez enxergar que amadurecer era mais que preciso. Era urgente mesmo! Foi o ano em que contratei mais modelistas, decidi incrementar a alfaiataria e pensar na democratização da marca, contando com uma artilharia pesada para fazer a dupla jeans e camiseta. (HERCHCIVITCH, 2007, p. 25/6). A resposta de vendas, segundo ele, foi imediata. Em 2005, a linha Herchcovitch Jeans já tinha apresentação própria nos desfiles de moda voltados ao consumidor final. No mesmo ano de 1998, a loja e ateliê de Herchcovitch migra para a Rua Haddock Lobo, no Jardins na cidade de São Paulo. É interessante notar que, se por um lado, os defiles de Herchcovitch não podiam ser considerados mera extensão do universo clubber; por outro, o 247

distanciamento em relação ao “estilista maldito” significou uma aproximação crescente com o legado de Rei Kawakubo, confrontado com suas outras referências, já mencionadas. Esse redirecionamento, que o estilista toma como amadurecimento de seu trabalho, está colado, como fica claro, a uma atenção maior às questões comerciais. Compreender esse processo significa um mergulho na configuração-moda dos anos 1990; ao mesmo tempo em que o percurso de Herchcovitch é aqui tomado como o fio que nos ajuda a compreender os processos que envolvem a moda brasileira.

Os anos 90 e o amadurecimento Se se vivia no Brasil um período de reestruturação, no restante do mundo os anos 1980 foram uma fase de grande acento no consumo. “Finalmente, estava na moda ganhar dinheiro, vestir bem e não ter interesse pela política”, afirmou Charlotte Seeling (2000, p. 487). Surgem os yuppies, young urban professionals, símbolo da década, que levam uma vida de esbanjamento e têm no consumo seu principal mote. A importância conferida ao corpo (com a dança, a ginástica aeróbica e a discussão sobre homossexualidade), o orientalismo e mesmo a afirmação do black, iniciada nos anos 70, conformam outras expressões do período. No entanto, o clima de otimismo dos anos 1980, denominados de “década perdida”, sofreu significativos abalos com a irrupção da sida (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS), declarada epidemia em 1985, o acidente nuclear de Chernobyl (em 1986) e a crise da Bolsa de Valores (1987). Por fim, em 1989, outro evento marcaria a história das relações internacionais e a década: a queda do muro de Berlim. O final dos anos 1980, portanto, poderia ser definido como o de crença no triunfo do capitalismo e do inevitável caráter de sua expansão pelo mundo. Na moda, os anos 1980 foram marcados, como decorrência da década anterior, por uma razoável heterogeneidade das produções. Como afirma James Laver (1999), a individualidade dos anos 1960 era obtida através do chamado look total; contudo, nos anos 1970, a noção de individualidade passa a estar vinculada à tentativa de um estilo pessoal de vestir. Podemos completar o autor afirmando que os anos 1990 e princípios de 2000 têm levado esse lema a conseqüências impremeditadas. Mike Featherstone (1997), inclusive, destaca a individualização da própria noção de estilo. Antes, voltada a uma concepção de caráter de grupo; a categoria estilo, mesmo em seu uso cotidiano, acompanhou a individuação ocorrida ao longo do século XX e passou a se referir a um modo de afirmação de si, enquanto indivíduo. No entanto, a valorização da individualidade, e da noção de liberdade a ela atrelada, não significa a negação da relação com outros. Ao contrário, a individualidade defendida se aproxima mais de uma 248

idéia de síntese individual de características socialmente “disponíveis” e, pois, socialmente construídas. Com o encurtamento das distâncias promovido pelo desenvolvimento dos meios de transporte, de comunicação e de informação, difundem-se igualmente uma variedade de estilos de vida, incrementando o “estoque de possibilidades” a respeito. A globalização, inicialmente discutida em seus aspectos econômicos, não tarda a evidenciar sua faceta sociocultural. No entanto, mesmo tal circulação está atrelada à distribuição internacional de controle da informação. É nesse sentido que, nos negócios ligados à moda, o papel da publicidade, enquanto mecanismo profissionalizado de divulgação de produtos, ganha em importância, pois é a possibilidade de o produto ser conhecido em diferentes partes do mundo. E, uma vez que se percebe o desejo de construção de um estilo individualizado, as peças publicitárias começam a exibir produtos atrelados a determinados estilos de vida. Tais estilos significam gostos, hábitos e desejos que estariam expressos nas músicas preferidas, nos filmes assistidos, nos assuntos discutidos, nos restaurantes freqüentados, na decoração domiciliar, no modelo e cor do carro, nas roupas usadas, dentre outros. O papel conferido aos detalhes aumenta, pois eles são elementos fundamentais na definição das diferenças. Ainda que não se limite ao resultado de uma gama de bens consumidos, estes seriam um mecanismo de expressão de estilo, concepção que ajuda a instituir a idéia de que vivemos em uma “sociedade de consumidores”. O mercado comparece como fornecedor do instrumental através do qual as individualidades podem ter franca expressão. Por outro lado, as empresas capitalistas fornecedoras de tais bens mudam, de certo modo, suas estratégias de produção, divulgação e comercialização em torno de frases como: “seja você mesmo” ou “faça seu estilo”, recorrentes nos anos 1990 e 2000. Como síntese, o estilo em vestimenta é constituído pela singular combinação entre peças de estilos (grupais) distintos. O resultado seria único, ainda que o processo de construção seja coletivo e mantenha amarra a estilos de grupo. A imersão plena em um estilo de grupo se torna mais característico da adolescência; uma vez que o adolescente experimentaria seqüencialmente estilos de grupo, a exemplo de grunge, depois o punk e, assim por diante (ainda que de modo cada vez mais veloz), em busca da constituição de uma suposta identidade pessoal que, na fase adulta, seria fruto das múltiplas experiências e, por isso, carregaria marcas dessa trajetória, expressa também através das combinações da vestimenta. Ou seja, esse “eu” singular é entendido, desse modo, como síntese de uma dada trajetória, mas que não chega a se cristalizar, na vida adulta, em um molde fixo; permanece em contínua relaboração. Nesse sentido, a construção da unicidade (individualidade) estaria nas mãos do consumidor, cabendo, por exemplo, às grandes lojas de departamentos e às boutiques de público segmentado (em sua diversidade) oferecer a 249

variedade que possibilita a unidade, seja nas cores, nos tecidos, nas estampas, nos comprimentos ou mesmo nos cortes das peças (BARTHES, 1996, LIPOVETSKY, 1997). Ao mesmo tempo, alimentam-se outros caminhos de suposta satisfação das individualidades, a exemplo da customização, enfatizada em princípios dos anos 2000 como nova etapa na busca por individualidade.

Como a própria desinência evidencia, falar em customização não significa tratar especificamente do traje enquanto produto e sim de um processo que vai da sua elaboração até o produto final. Trata-se do “faça você mesmo”, cuja crescente atribuição de valor (simbólico) tem levado os antigos meros consumidores a se colocarem enquanto também criadores de seus trajes (e, em alguns casos, produtores, o que aumenta mais ainda seu valor simbólico). A partir de trabalhos à mão ou à máquina (aplicação, bordados, rasgos, desfiamentos, recortes, pintura, tinturação, dentre outros), a peça nova ou antiga é refeita, personalizada de acordo com os gostos e/ou necessidades do consumidor, assim ganhando novo e mais elevado status – principalmente se o refazer da peça tiver no dono seu autor. A antiga tarefa manual identificada com o atrasado ou com a pobreza é reabilitada em nova condição por seu resultado único. Foram os baby boomers, geração do pós-Guerra, que, ao ajudarem a multiplicar os estilos juvenis de vida, nos anos 60 e 70, promoveram tal reabilitação no seu afã de distinção quanto aos demais grupos que surgiam. Há aí uma desvinculação considerável em relação a uma idéia de reforma enquanto evidência de pouco poder aquisitivo. O “faça você mesmo” vai sendo compreendido como exercício (lúdico e por vezes ideológico) da criatividade; criatividade esta cada vez mais aproximada ao trabalho artístico. Além disso, o que se obtém, apesar de o estilo ser grupal, são peças únicas. O “artista” das ruas transita exibindo sua obra e pode, por seu caráter de vanguarda, manter uma relação de superioridade para com os conformados, anônimos e insatisfeitos consumidores convencionais da moda. O estar diferente se, por um lado, significa o risco de sofrer preconceitos (e, por isso, estar em conformidade com a moda vigente representa segurança, mas também anonimato); por outro lado, é compreendido como coragem, criatividade, ousadia, como assinalou Simmel (1998a, 2002a). Num jogo em que a busca por novidades vigora, o período em que esses grupos de estilo juvenis começam a florescer com maior evidência será também o de uma considerável inversão: as ruas passam a inspirar as passarelas e a destronar o estilista de seu papel de ditador, pondo em questão a ênfase atribuída por sociólogos – como Simmel e, posteriormente, Pierre Bourdieu (2002a, 2007) – 250

em um vetor único de influência (imitação) da moda, que seria de cima para baixo. Cada vez mais a “pluridirecionalidade” dos possíveis vetores parece se assentar.

Em língua inglesa, o refazer a roupa para adaptá-la ao gosto do consumidor tem por verbo o to customize, que, nos anos 1990, ganha uma expressão similar (não antes existente) em língua portuguesa, o customizar. Mas, mais do que isso, percebe-se que, nos anos 1990/2000, deu-se um passo além em relação aos grupos de estilo dos anos 60 e 70. Não se trata mais de diferenciação de grupo e sim da busca por diferenciações individuais. Customiza-se a partir de gostos individualizados. É nesses termos que a roupa é compreendida como expressão de um “eu”, que agora é tido como plástico, adaptável às diferentes situações e grupos com que se identifique. O sociólogo Zygmunt Bauman (2007) usa a metáfora do líquido – ou seja, daquilo que flui e é disforme – para dar conta desse desejo de individualidade que encontra no consumo uma pretensa (e, segundo o autor, falsa) solução. O seu movimento constante e a exigência de rápida adaptabilidade fazem com que esse “eu”, que não tem contornos precisos, contraditoriamente busque, no consumo de certos produtos, exprimir algo que se tornou fugidio e transitório: a própria individualidade. A customização, portanto, representa uma estratégia socialmente elaborada para dar conta dos desejos de diferenciação agora individual em tempos de produção em larga escala a partir do resgate da peça única pela inserção do consumidor, e de seus desejos, no processo criativo. Ao lado, contudo, da customização, o vintage, que é uso de peças antigas (ou que são propositadamente envelhecidas) junto a peças novas, e o hi-lo (corruptela de high, alto, e low, baixo), que é a composição da aparência pela justaposição de peças caras e baratas, também se tornaram estratégias de busca por individualidade. Ou seja, tanto a customização, o vintage e o hi-lo são tentativas de aproximar numa totalidade pares inicialmente entendidos como opostos: industrial/manual, massificado/individualizado, antigo/novo, caro/barato. No entanto, ao uni-los, apresenta-se a compreensão de que há harmonia possível e de que as dicotomizações são falsas. O ideal passa a ser a construção de sínteses, em suas diferentes possibilidades. Essa seria, ao que parece, a chave para a expressão individualizada.

A continuidade nos padrões de consumo atingidos nos anos 1980 teve seu contraponto, nos anos 1990, pela aposta no minimalismo; isto é, na concepção, ainda em voga nos anos 2000, de que less is more. A chamada roupa básica, expressão criada nos Estados Unidos para um tipo de roupa mais utilitária, ganha maior espaço. No entanto, ao básico são acrescidos detalhes de luxo, seja nos tecidos utilizados, na fibra artesanalmente trabalhada ou no tipo de corte/costura. Nesse processo, a marcas italianas, como Armani, Prada e Gucci, 251

começam a concorrer com as marcas francesas ao apresentar suas coleções pautadas na simplicidade elegante; enquanto marcas norte-americanas conquistam espaço e conseguem alto volume de vendas, a exemplo de Ralph Lauren, Calvin Klein, Donna Karan e, depois, Tommy Hilfiger. “O luxo ostensivo não é tido nos anos 90 como politically correct, mas, paradoxalmente, as marcas de artigos de luxo têm cada vez mais procura. O luxo torna-se ‘democrático’. Marcas como Hermès, Louis Vuitton, Armani, Gucci, Prada e Ralph Lauren erguem gigantescos impérios globais nos anos 90” (GOTTSCHLICH, 2002, p. 555/6). A concorrência global, intensificada pela maior facilidade em produzir cópias mais baratas dos modelos exibidos nas passarelas e com menor defasagem de tempo, visto a possibilidade de acompanhar os desfiles no momento em que ocorrem, através da televisão ou da Internet, obriga as marcas a promover um vulto maior de investimentos no caráter distintivo da marca e na renovação da gestão e do marketing do negócio. É esse contexto que se mostra propício ao surgimento de figuras como Bernard Arnault, com capital disponível para as injeções de dinheiro necessárias ao desenvolvimento de peças e ações publicitárias a serem lançadas simultaneamente em diferentes pontos do planeta e com experiência em gestão de mega- empreendimentos. O novo modelo apresentado, exposto em capítulo anterior, significou a substituição dos antigos estilistas por jovens promissores, com formação universitária, e uma renovada visão a respeito do trabalho com moda. Agora, esses “jovens criadores”, que criam para cada vez mais jovens compradores, assumiam grandes grifes; a exemplo dos ingleses John Galliano e Alexander McQueen, respectivamente na Christian Dior e na Givenchy, ou do israelo-americano Alber Elbaz na Yves Saint Laurent. Segundo Baudot, “a maioria dos estilistas atua, na realidade, como verdadeiros diretores artísticos que estão menos preocupados com a criação propriamente dita do que com a homogeneização dos diferentes dados de uma cadeia de produção e de distribuição” (2002, p. 321). Ou seja, até mesmo o papel dos estilistas dentro das maisons passa a ser redefinido. Inclusive, o termo designer e design começam a ser usados com maior freqüência no Brasil dos anos 1990 para designar o estilista e seu trabalho, acentuando o caráter técnico de ambos. O designer é um profissional sujeito às condições de mercado, e não um artista. Essas transformações têm claro rebatimento na definição do ofício e nas suas possibilidades, ao mesmo tempo em que ajudam a resolver um problema existente quando o criador é considerado artista: a sucessão do cargo na Maison. Enquanto profissionais, as demissões e substituições (inclusive por falecimento) são mais rápidas e “menos sentidas”. O negócio permanece. A balança de definição do estilista se inclina consideravelmente à compreensão da moda como negócio; negando, deste modo, um suposto caráter artístico. O espaço à alta costura parece cada vez mais limitado: 252

Em 1992, flexibilizaram-se as estritas regras de admissão na alta costura, fixadas em 1945. Até então eram necessários 20 empregados fixos no atelier para poder se apresentar duas vezes por ano no próprio salão uma coleção de pelo menos 50 modelos cosidos à mão. Actualmente, os costureiros de nova geração passam por uma fase transitória de dois anos, durante a qual só precisam de ter 10 empregados fixos e apenas são obrigados a apresentar 25 criações em cada estação. (SEELING, 2002, p. 562). Em 1997, após oito casas de alta costura terem fechado as portas e as quinze restantes “lutarem pela sobrevivência”, Didier Grumbach, novo presidente da Chambre Syndicale de La Couture de Paris, mais uma vez simplifica as regras, de modo a contribuir para a recuperação da alta costura. “Parecia que a alta costura estaria a desaparecer e que dificilmente sobreviveria à passagem para o novo milénio, quando, pouco antes do fim do milénio, volta à cena” (SEELING, 2002, p. 565). A Prada, marca italiana agora capitaneada por Miuccia Prada e por seu marido Patrizio Bertelli, comprou, em 1999, “51% da estilosa empresa de prêt-à-porter do estilista austríaco Helmut Lang com sede em Nova York, uma participação nos sapatos britânicos Church & Co. e (após anos de namoro) a participação controladora da altamente bem-sucedida empresa de prêt-à-porter da estilista alemã Jil Sander” (THOMAS, 2008, p. 55). De modo similar ao que acontece nos grupos de Bernard Arnault e de François Pinault, na Prada há uma divisão de funções bastante clara: Miuccia Prada cuida da criação; seu marido Bertelli, como CEO (Chief Executive Officer), cuida das questões de gestão e ajuda a conduzir o processo de criação na medida em que dá indicações a respeito de atendimento ao mercado. A formação de tais grupos permite a que essas atuais empresas de capital aberto, que são obrigadas a publicar seus resultados, mantenham uma imagem de sucesso, ainda que uma das marcas sob seu controle não obtenha bons resultados, pois é publicado o volume total do grupo. De qualquer modo, devido à venda de seus 10% da Gucci para a LVMH, a Prada teve condições de constituir o Grupo Prada e se reerguer, até que ocorressem os ataques terroristas de 2001, fazendo com que a abertura de capital necessária à empresa sofresse danos e gerasse considerável dívida ao Grupo. De qualquer modo, o luxo, ainda que não-exclusivo, voltava à cena em fins do século XX com altas margens de lucro. Como afirmou Helmut Lang, os anos 2000 iniciavam democráticos e elitistas, ao mesmo tempo, fazendo figurar o básico e o luxuoso simultaneamente no guarda- roupa e nos corpos das pessoas (hi-lo).

O sistema antigo de classificação – alta costura, prêt-à-porter, street fashion – hoje já não pode ser utilizado. As fronteiras desapareceram, as tendências na sua forma pura deixaram de existir. Os actuais estilistas influentes utilizam elementos das três categorias como parte de um todo. Ultrapassaram a questão da fonte de inspiração que existiu até os anos 60 na alta costura e na street fashion, e assim fazem avançar a máquina da moda. As costureiras 253

que antigamente, nas casas de moda, copiavam e reinterpretavam Dior, foram substituídas por empresas industriais com modelos de todos os preços, desde as cadeias como a GAP ou H&M até as mais caras. Estas aproveitam as idéias que surgem nas marcas criativas e à conta delas fazem um negócio gigantesco. (Helmult Lang em entrevista a Margrit Mayer, realizada em 1998/9 in SEELING, 2002, p. 607/8). Tomando-se, portanto, a customização, o vintage e o hi-lo é possível perceber, como ressaltado, a tentativa de justapor pares inicialmente compreendidos como opositivos como estratégia na busca por autenticidade e individualidade. Ao mesmo tempo, a busca pela diferença, conseqüência também de uma sensação de ameaça de homogeneidade global após a queda do muro de Berlim, estimulou a pesquisa nos lugares culturalmente mais distantes quanto ao mundo capitalista ocidental. Não se trata apenas de apelo ao Oriente, do modo como ocorreu nos anos 1970, como expressão de oposição ao capitalismo (seu caráter ideológico). O determinante passa a ser, por excelência, a busca pelo diferente como meio para a expressão da especificidade pessoal, daí a valorização das raízes (o apelo às tradições, ao trabalho manual, ao simples ou, simplesmente, ao diferente em relação ao mundo industrial capitalista), e a “resposta”, para tanto, podia ser buscada no ainda chamado Terceiro Mundo (atualmente denominados países emergentes51 devido aos índices de crescimento que conseguiram obter nas últimas décadas) e mesmo nos excluídos grupos que se conformaram dentro do próprio mundo ocidental, como a emergência de roupas e acessórios usados por funkeiros no Brasil. O resultado desses processos na produção de moda européia será sua crescente abertura ao surgimento de estilistas advindos de diferentes partes do mundo, processo que já havia se iniciado, mas com bastante timidez, nos anos 1980. É nesses termos que o brasileiro Ocimar Versolato52 conseguirá construir uma carreira de estilista em Paris que lhe franqueou a inclusão de sua maison na restrita lista da alta costura, em 1998; carreira abalada por questões de condução da administração e finanças, numa época de transformações consideráveis na estruturação da gestão das casas53. Do mesmo modo, outros estilistas nacionais começarão a buscar espaço para a constituição de carreiras assentadas no exterior, como Carlos Miele, com marca própria, e Francisco Costa, como estilista da Calvin Klein,

51 O termo “países emergentes” foi concebido nos anos 80, quando o economista belga Antoine van Agtmael, ex- funcionário do Banco Mundial, utilizou o termo como mecanismo para tornar mais “atraentes” papéis pautados em dívidas dos países do chamado Terceiro Mundo (LAHÓZ, 2008). 52 Versolato foi um dos jovens que foram inicialmente seduzidos pela moda ao assistir, na televisão, uma matéria que apresentava desfiles de Paris. Doze anos após, em 1986, Versolato seria um dos alunos de Marie Rucki, da francesa escola Studio Berçot, que, na intenção de formar profissionais voltados à moda (não apenas como estilistas) para ampliação de mercado, associa-se, no Brasil, à Rhodia e passa a promover cursos de moda em São Paulo. É através de Marie Rucki que Versolato vai a Paris a fim de dar continuidade aos seus estudos e à sua carreira, agora internacional. 53 A esse respeito, ver o livro Vestido em chamas, escrito pelo próprio Ocimar Versolato (2005), em que ele narra a sua trajetória até o retorno ao Brasil. 254

ambos sediados nos Estados Unidos dos anos 2000. O movimento de expansão global dos negócios ligados à moda, com o incremento tecnológico que ocorre em diferentes lugares do mundo (como exigência para o funcionamento a contento dos negócios globalizados), implica o contra-movimento simultâneo que permite, mesmo timidamente, a incursão dos produtores brasileiros na dinâmica internacional dos negócios ligados à moda, ainda que em condição periférica. No entanto, as ambições perseguidas não se limitam à exposição de coleções entendidas como exóticas que unicamente ajudariam a promover o espetáculo da moda. Produzir roupas que tenham a sede da marca no Brasil, e com aceitação no mercado nacional e, ao mesmo tempo, circulação por outros países é, nos anos 1990 (e nos anos 2000), um grande desafio. Na esteira de tais transformações, os estilistas se rebatizam, ainda nos anos 1990, de diretores de criação, evidenciando sua nova relação com o trabalho e os meandros da complexa cadeia de produção da moda. Não havia mais espaço para um Dener Pamplona de Abreu nessa conjuntura. É justamente na passagem para o ano 2000 (especificamente em 1998) que Herchcovitch anuncia sua morte e se lança na produção de jeans e camisetas, o básico cultuado nos anos 1990 e 2000.

Ao final do ensino médio, Alexandre Herchcovitch iniciou o curso de artes plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Cursou um ano. Em 1989, prestou vestibular e, em 1990, iniciou curso de moda na Faculdade Santa Marcelina (FASM), uma instituição católica, com unidade em Perdizes na cidade de São Paulo, que foi pioneira no Brasil na oferta de curso de ensino superior em moda. Segundo Herchcovitch, saído de instituição judaica ortodoxa, tal mudança fazia parte também de seus questionamentos, na época, a respeito de sexualidade, dinheiro e religião. Em 1993, Herchcovitch realizou seu desfile de formatura do curso, ainda que, por conta de reprovação na disciplina Linguagem Instrumental, não viesse a obter o diploma (ALONSO, 2002).

Eu fiz uma passarela em forma de cruz invertida e usei amigos meus como modelos. Lembro que a primeira pessoa a entrar na passarela foi a Márcia Pantera, com uma camisola e touca de freira com chifres. Ela carregava dois terços cheios de tinta vermelha arrastando no chão. Quer dizer, essa imagem é superforte... Depois as modelos entravam em camisolas de jérsei brancas, manchadas de menstruação. Elas carregavam uns saquinhos de limão e cabeças de boneca que espirravam tinta vermelha. Nessa parte a cruz invertida, que era de tecido branco, começava a se manchar. Era bem dramático. Eu não tinha nenhuma preocupação comercial, só conceitual. Queria expor com precisão aquilo que eu queria, a minha discussão sobre religião, loucura, pobreza... Foi uma performance, na verdade, porque as roupas não eram para ser vendidas. Eu me lembro que depois do desfile a 255

Flavia Lafer54 deixou reservado um monte de peças. Isso para mim era maravilhoso, eu via ela usando diariamente. Ela foi uma das primeiras que acreditaram na roupa de fato. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2002, p. 954). No Hospício, primeira parte de seu desfile, os habitantes sujam de sangue suas calças, como a de piquê (com tecido retirado das colchas de sua avó); no Cortiço, cardigãs de brechó, com caveira nas costas, e usados com saias por homens, são queimados e desfiados na passarela; no Tibet, “salvação do mundo”, as peças são cor de gema com pences pespontadas em preto, colete salva-vidas de avião, faixa Adidas, tule sobre helanca, renda sobre cetim (PACCE, 2002). O início, com Márcia Pantera, a drag queen negra com túnica branca e cruzes ensangüentadas, e Johnny Luxo, o franzino e andrógino amigo que Herchcovitch conhecera em 1991, que desfilou carregando bonecas com fórceps no pescoço, pode ser interpretado como uma espécie de auto-mutilação que reverbera nas pessoas que estão à volta e destrói o indivíduo. Seja o camisolão das freiras (a religião), seja o do hospício (conseqüência dos estigmas sofridos), como auto-coerção ou imposição alheia, Herchcovitch aponta as dúvidas sobre sexualidade, a hipocrisia e o medo. Ao mesmo tempo, a postura da caminhada numa passarela, propõe o desafio, o enfrentamento que encontra sua expressão maior na destruição, que simbolicamente encena a transformação e abre as possibilidades de encontrar a verdadeira redenção, cuja parte do desfile é, talvez, ironicamente denominada Tibet, referida na cor de gema de algumas peças, mas, principalmente, por uma concepção de paz por conta de um encontro consigo mesmo. O desfile de Herchcovitch sugere um encadeamento em atos, influência do teatro sobre o planejamento dos desfiles de moda, iniciado no início do século XX com Lucile e Elinor Glyn e incrementado, em especial, na segunda metade do século. Apresentar essa coleção na católica Faculdade Santa Marcelina, ainda mais com uso de cruzes invertidas e ensangüentadas foi entendido como uma afronta à instituição e à religião que a norteia. A direção não queria, mas Herchcovitch afirmou que se recusaria a desfilar caso impusessem reformulações como condição à sua apresentação. Herchcovitch recebeu apoio da mãe e pôde apresentar sua coleção. No entanto, de acordo com Borges e Bianco (2002), Herchcovitch, nessa época, já havia começado a ser famoso por conta de sua inserção e trabalho no chamado underground paulistano, a ponto de, na platéia de seu desfile, figurarem Erika Palomino55, Flavia Lafer, Reinaldo Lourenço56, Gloria

54 Stylist, que tem trabalhos para a Vogue de diferentes países. Surgido nos anos 1990, esse termo designa aquele que irá produzir os chamados looks finais (escolha e composição de peças de roupa, sapato e acessórios) para desfiles e/ou fotografia (PALOMINO, 2002). 55 Jornalista da Folha de São Paulo. 56 Estilista. Iniciou carreira trabalhando como assistente de Gloria Coelho, com quem depois se casou. Trabalhou também como produtor de moda da consultora Constanza Pascolato na Editora Abril. Posteriormente, estudou no 256

Coelho57 e Paulo Martinez58. Nessa época, Erika Palomino começava a ser reconhecida no Brasil por suas matérias jornalísticas no caderno Folha Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, em que se dedicava a mostrar a chamada cena clubber paulista, que começava a despontar. Segundo Borges e Bianco, os dois dos principais personagens da coluna eram Márcia Pantera e Johnny Luxo, ambos vestidos por Herchcovitch: “O Johnny e a Márcia me atraíam porque eram diferentes e, principalmente, tinham muita liberdade em se vestir, em se expor” (apud BORGES, BIANCO, 2002, p. 954). Os shows de Márcia Pantera começaram a ficar famosos, do mesmo modo que o grupo da produtora Giovana Curllin, da modelo e cantora Geanine Marques (principal modelo de Herchcovitch até os dias atuais) e do artista plástico Maurício Ianês (que trabalha assessorando Herchcovitch desde 1993). Paulo Martinez, que trabalhava para a revista Elle, e Erika Palomino procuraram por Alexandre Herchcovitch para a elaboração de matérias na coluna “Noite Ilustrada” (da Folha de S. Paulo) e na Elle. Daí a presença de seleto público no evento. Isso permitiu, inclusive, contatos e visibilidade ao trabalho do estilista, a ponto de, no ano seguinte (1994), Paulo Borges convidar Herchcovitch para participar do Phytoervas Fashion em sua primeira edição.

No Brasil, em termos político-econômicos, continuava-se o processo de liberalização. Em 1989, finda o período Sarney e inicia o governo Fernando Collor, jovem que parecia encarnar, aos olhos dos brasileiros, a desejada modernidade que deveria substituir o passado, os “velhos” modos de condução do país. Collor, além de jovem, era um desportista e visivelmente gostava de bens tecnológicos e de luxo, bem como prezava o lazer. Talvez uma de sua imagens mais marcantes tenha sido em seu jet sky pelas praias brasileiras. Contudo, uma medida liberal de Collor transformaria o cenário empresarial brasileiro, que ainda sofria as conseqüências de ter um lento desenvolvimento por conta do peso das estatais e dos privilégios concedidos às empresas estrangeiras instaladas no país. Sem o controle do Estado ditatorial, as diferentes demandas da população começavam a exercer forte pressão sobre os empresários e sobre o novo governo, em especial após a nova Constituição de 1988. Além disso, o governo igualmente sofria pressões advindas do empresariado nacional e internacional, ambos em busca de apoio e incentivo. Em conformidade com concepções liberais de defesa da livre-concorrência, igualmente estimuladas pelos Estados Unidos como

Studio Berçot, dirigido Marie Ruckie, na França. Em 1984, lançou marca própria. Tem loja própria, e suas peças são também comercializadas em lojas multimarcas no Brasil e no exterior (Estados Unidos, França, Itália, Reino Unido e Japão). 57 Estilista. Nascida em Minas Gerais, estudou no Studio Berçot de onde retornou em 1974. Em 1990, lançou sua segunda marca, a Carlota Joakina (a primeira é a G). Tem loja no Brasil e showroom em Paris e Londres. Exporta para a Europa, Estados Unidos, Canadá, Líbano, dentre outros. 58 Stylist. 257

alternativa viável ao Terceiro Mundo, Collor “abre as portas” do Brasil para a livre entrada de produtos estrangeiros, de mais baixos preços e melhor qualidade que os artigos nacionalmente produzidos. O que seguiu foi um período de extrema crise das empresas privadas nacionais, em especial de pequeno e médio porte. Apenas as empresas de maior porte, e já consolidadas no mercado, tiveram oportunidade de superar a crise mediante considerável investimento, em especial em tecnologia. A burguesia industrial brasileira colocava-se contra o autoritarismo e a estatização da economia e defendia uma economia liberal de mercado, mas carecia de uma estrutura melhor assentada e profissionalização para conseguir enfrentar uma concorrência a que não estava acostumada e preparada, inclusive tecnologicamente. A inflação acumulada em 1989 havia sido de 1.782, 90%, conforme dados da Folha de São Paulo. Em 1990, Zélia Cardoso de Mello assume o Ministério da Fazenda e, no mesmo ano, Collor bloqueia o dinheiro nas cadernetas de poupança e contas correntes dos brasileiros e promove congelamento de preços e salários. Mais uma vez, há mudança na moeda, que volta a ser Cruzeiro. Ainda assim, a inflação acumulada em 1990 é de 1.476, 56%. No início de 1991, o presidente eleito Fernando Collor promove novo congelamento de preços e salários, eleva o índice de juros e promove a redução das taxas de importação. Era o Plano Collor II. Com o confisco da poupança e das contas correntes, bem como com o aumento dos juros e congelamento de salários, o consumidor passou a ter precárias condições de compras. E em situação de crise, o setor da moda, entendida como supérflua, sofre, convencionalmente, grandes abalos. No entanto, com o Plano Collor II, as empresas também foram abaladas por conta da concorrência, da flutuação cambial e pela dificuldade em exportar. O resultado foi a falência de muitos empreendimentos, agravando ainda mais a crise já instalada. A partir daí, em tais condições, era imprescindível uma alteração considerável das empresas nacionais em termos de profissionalização e investimento em tecnologia para a produção de bens mais confiáveis e competitivos. Na conjuntura que se instala e sem o devido apoio governamental, apenas os grupos enriquecidos podiam se lançar em tal reestruturação e se manter frente à concorrência. Em 1991, a inflação acumulada é de 480,20%. O descontentamento do empresariado e do povo acaba levando ao impeachment do Presidente Collor no ano de 1992. Marcílio Marques, Ministro da Fazenda, é substituído por Gustavo Krause. A inflação acumulada em 1992 chega a 1.158,0%59. As medidas implementadas por Collor tiveram duplo efeito na moda. Por um lado, o modo abrupto da “abertura” levou à mencionada falência de muitas empresas e indústrias que estavam iniciando um percurso de expansão.

59 Os dados sobre inflação acumulada ao ano foram retiradas do Banco de Dados Folha (Almanaque), da FolhaOnline (almanaque.folha.uol.com.br/dinheiro90.htm). 258

Como foi afirmado, apenas aquelas melhor estruturadas conseguiram ser mantidas, apesar dos efeitos da crise. Por outro lado, as empresas que nasceram ofereciam produtos de melhor qualidade. Ao lado disso, com a diminuição da taxa de importação, produtos variados, em qualidade e preço, começaram a ter franca entrada no Brasil, proporcionando maiores opções de compra aos brasileiros. É nesse momento, por exemplo, que a loja Daslu, da empresária Eliana Tranchesi, que assumiu os negócios ao lado de Lourdes Aranha em 1984 (após a morte de Lúcia Albuquerque), inicia as negociações com grifes internacionais, levando para São Paulo, ao decorrer dos anos 1990, uma série de marcas de luxo. De acordo com Erika Palomino, “difícil foi convencer essas marcas internacionais a entrar no Brasil, já que o país tinha um mercado ainda incipiente e a fama de mau pagador, além de enfrentar boa dose de ignorância da parte dos grandes conglomerados do Planeta Fashion (PALOMINO, 2002, p. 81). A Daslu foi inaugurada em fins dos anos 1958 pela mãe de Eliana Tranchesi, Lúcia Piva de Albuquerque, como decorrência de seu negócio de trazer do Rio de Janeiro para São Paulo peças de moda. Após suas viagens, costumava convidar as amigas próximas para sua casa no bairro de Vila Nova Conceição a fim de vender as roupas – história semelhante à da constituição de várias boutiques da época. Doava parte dos lucros a instituições de caridade. A Daslu, no entanto, é hoje considerada uma das lojas mais luxuosas do mundo. Na época de Lúcia Piva de Albuquerque, o Brasil ainda era fechado às importações, o que obrigava aqueles que desejassem luxo europeu a viajar para o exterior ou a contar com pessoas que o faziam e comercializavam ilegalmente as peças adquiridas. Com o crescimento do negócio, ela contratou as filhas das amigas para ajudar nas vendas, prática que se difunde, em especial nos anos 1970, como um modo aceito de moças da camada mais enriquecida da sociedade obter rendimentos extras e ocupar o tempo. Em 1977, Eliana Tranchesi, ainda com 21 anos, começa a se envolver nos negócios. Trabalhava como vendedora e, ao mesmo tempo, lançou uma marca própria: a Daslu. Enquanto isso, sua mãe, com o crescimento dos negócios, adquiria sucessivamente as casas vizinhas para comportar as peças em exibição e proporcionar o devido conforto às clientes. Ocupou, com o tempo, quase um quarteirão. Quando o Presidente Collor anunciou a diminuição da taxa de importação, Eliana Tranchesi planejou a importação de roupas de luxo ancorada na afirmação de certeza da existência de um mercado reprimido (THOMAS, 2008). A primeira coleção comprada foi de Claude Montana. Depois, Valentino e Moschino. Em meados dos anos 1990, Chanel, com venda de 70% da coleção apenas no primeiro dia de exibição: “Pedi às amigas para deixarem o que haviam comprado para que pudesse ter algo para mostrar no dia seguinte” (TRANCHESI apud THOMAS, 2008, p. 310). Depois, passou a comercializar também Gucci, Prada, Zegna 259

e Dolce & Gabbana, que montaram boutiques na loja. Em 2002, tinha 23 casas somando 13 mil metros quadrados. Em 2005, fechou a antiga Daslu e abriu a nova, na Vila Olímpia, com 17 mil metros quadrados e mantendo a prática de não ter provadores para as mulheres, que trocam suas roupas umas em frente às outras – como em um ambiente familiar, segundo Tranchesi. O sucesso da Daslu foi apenas abalado pela denúncia de sonegação fiscal, no mesmo ano de 2005. A Operação Narciso da Polícia Federal levou à prisão temporária de Eliana Tranchesi e de Celso de Lima, dono da empresa de importação relacionada à Daslu. As mercadorias, segundo a acusação, eram subfaturadas por empresas importadoras. A Daslu, autuada, ainda paga a dívida por suas infrações à Justiça Federal. No entanto, apesar da crise interna, mantém o negócio e abriu loja no Shopping Cidade Jardim, inaugurado em maio de 2008 no distrito do Morumbi (São Paulo), e destinado à venda de produtos de luxo. A loja pretende atingir um público menos aquinhoado, pois comercializa principalmente a marca Daslu, economicamente mais acessível. A Daslu ainda vive a crise instalada em 2005, período em que simultaneamente houve a denúncia e a empresa inaugurou nova loja, contraindo novas despesas.

De qualquer modo, a história da Daslu ajuda a compor o complexo cenário dos anos 1990: a um só tempo, período de crise e de expansão de uma nova época de consumo. O vice-presidente Itamar Franco assume a presidência após a saída de Fernando Collor e busca conduzir um governo neutro, sem grandes impactos ou inovações. É seu Ministro da Fazenda, empossado em maio de 1993, Fernando Henrique Cardoso, quem assumirá o “centro da cena” ao apresentar seu plano econômico para estabilização da moeda nacional e controle da inflação, em dezembro do mesmo ano. Fernando Henrique Cardoso cria a URV (Unidade Real de Valor), indexador que cria paridade com o dólar e estabelecerá a base da futura moeda: o Real, criada em meados de 1994. A sensação de estabilidade econômica, de controle da inflação e a paridade com o dólar promovem um incremento substancial no consumo. As pessoas podiam dividir em prestações suas compras sabendo o quanto iriam pagar em cada uma delas. Nesse período, marcado por uma maior integração nacional – ainda que polarizada em seu comando, principalmente em São Paulo, e crescentemente difusa em sua base de trabalho (ainda que com desigualdades flagrantes) – a produção e consumo de moda no Brasil avançam significativamente. Seus mecanismos de divulgação, igualmente, começam a se incrementar permitindo o planejamento e execução de medidas que contribuem para a organização do setor. Um dos passos nesse sentido foi o Phytoervas Fashion, do qual 260

Alexandre Herchcovitch participou enquanto convidado a apresentar uma coleção no primeiro evento, realizado em 1994.

Por intermédio de Romeu Moreira Leite, proprietário, à época, da agência Elite Models, Paulo Borges foi apresentado a Cristiana Arcangeli com o intuito de que ele (Paulo Borges) produzisse e dirigisse o concurso “Look of the Year”, evento internacional promovido pela agência e que contaria com o patrocínio da Phytoervas, empresa de cosméticos, – o que levaria à mudança do título do evento para Phytoervas Look. Segundo relato de Paulo Borges, o concurso foi bem sucedido:

Teve música clássica brasileira executada ao vivo por um quinteto de violoncelos, uma cantora lírica arrasou nas Bachianas de Villa-Lobos e um grupo indígena dançou um rito religioso especial. Todo o desfile foi feito com produção de artistas de wearable-art60 e de jovens estilistas absolutamente desconhecidos, com suas roupas “muito estranhas” – na visão do povo e no entendimento do momento – como Escola de Divinos e Marcelo Bonito, ainda um modelo que criava camisetas customizadas. O Romeu ficou feliz, Cristiana ficou feliz. E essa felicidade toda fez com que nos aproximássemos. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 950). Cristiana, ainda segundo Paulo Borges, interessou-se em saber quem eram os estilistas, e P. Borges relatou que se tratavam de talentos brasileiros à espera de visibilidade. E acrescentou afirmando que, caso houvesse patrocínio, ele realizaria um evento apenas de jovens. Daí surgiu o planejamento e execução do Phytoervas Fashion. Para o evento, inicialmente convidou Walter Rodrigues, estilista conhecido de Borges há anos e com quem já havia trabalhado em desfiles para H. Stern, Azaléia, dentre outros. O segundo convidado foi Alexandre Herchcovitch, a quem conheceu após o desfile de formatura na Faculdade Santa Marcelina:

O designer Fernando Pires iria fazer um desfile de botas masculinas numa boate gay, com as roupas desenvolvidas pelo “tal” jovem estilista que havia chocado as freiras da faculdade e chamado a atenção de toda a imprensa especializada. O pessoal havia me pedido para conseguir modelos para o desfile – ninguém conhecia o estilista, como conseguir um casting de modelos masculinos incríveis?... Um desfile de botas, numa boate gay, com um estilista desconhecido. Lá fui eu, fazer uma convocação geral para o tal happening fashion. Era um pequeno desafio, mas tudo aquilo me instigava. E foi naquela noite que fiquei frente a frente com aquele menino – que de cara me pareceu genial. Nunca mais nos separamos. Nasceu ali uma paixão profissional, uma admiração profunda. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 950). Paulo Borges afirma não ter conseguido contratar assessoria de imprensa, “pois todas julgavam o projeto uma loucura total”. A proposta consistia em três noites de desfiles

60 O termo, surgido nos Estados Unidos dos anos 1960, em função das transformações da época, designa a chamada Arte Vestível, peças de roupas confeccionadas ou transformadas para ser “arte”. 261

(um desfile por noite), num mesmo local (um galpão semi-abandonado), na segunda-feira após o carnaval de 1994. No sentido de angariar divulgação, Paulo Borges começa, em seus termos, a “mapear” pessoas e veículos dispostos a falar a respeito do assunto – cita Erika Palomino e Cristina Franco, esta última era apresentadora de matérias sobre moda no jornal Hoje da Rede Globo, de televisão. Graça Borges (produção executiva), Duda Molinos e Mauro Freire (responsáveis pelo conceito de beleza) também participaram do projeto. Alexandre Herchcovitch foi convidado há apenas 22 dias da realização do evento. Ele tinha que montar uma coleção e, segundo ele, não tinha estrutura para isso. A organização do evento lhe deu 800 reais para aquisição de tecidos e aviamentos, e para contratar uma costureira.

Sempre colecionei tecidos e nesse desfile eu usei todo o meu estoque, então todas as peças eram únicas. Tinha uma blusa com estampa xadrez defeituosa – na estamparia o tecido dobrou deixando partes não estampadas – que foi muito copiada mais tarde. (...) Era a primeira vez que eu podia contratar alguém como a Cláudia Liz e a Paula Mott. Na minha cabeça essas modelos eram impossíveis! No dia do desfile pedi que elas tirassem o sapato e passassem o dia todo assim, porque eu queria todas desfilando descalças e com os pés bem sujos... Na verdade, eu também não tinha dinheiro para fazer sapatos. No desfile tinha também uma maquiagem azul e, quando as meninas entravam na passarela, o maquiador Duda Molinos borrifava água na cara dela pra escorrer a maquiagem. Elas usavam cabelos de velha, uma coisa meio cebola, com uma redinha e chifres. Era uma coisa completamente diferente de qualquer desfile que alguém pudesse ter visto até então. O que estava acontecendo na moda era muito chato... As pessoas aplaudiram no meio, foi muito emocionante. (HERHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 955). No entanto, como salienta Paulo Borges, diferente do desfile de formatura que foi assistido por um pequeno número de pessoas que já trabalhavam com moda, o Phytoervas Fashion era um evento de maior porte e que conseguiu visibilidade, inclusive, da imprensa não-especializada. A coleção de Herchcovitch, mesmo questionada em sua usabilidade por tal imprensa, foi vendida em menos de um mês: “O nome Herchcovitch virou hype. Alexandre fez desfiles com Paulo Borges para a Valisère e a Rhodia e assinou algumas peças para a marca Ellus durante três coleções. Em outubro de 1994 abriu sua primeira loja” (BORGES, BIANCO, 2003, p. 955). Esse foi o ano da eleição, em primeiro turno, de Fernando Henrique Cardoso para Presidente do Brasil, cargo que ocuparia por dois mandatos61, em decorrência da credibilidade que conseguiu alcançar junto à população por conta do Plano Real, que consegue levar o índice da inflação acumulada de 1995 ao patamar de 14,5%. O período, portanto, foi marcado por otimismo, euforia e elevação nos índices de consumo do brasileiro,

61 No seu primeiro mandato, foi criada a emenda constitucional que permitia a reeleição nos cargos do Poder Executivo. 262

o que tinha reflexos diretos no consumo de produtos ligados à moda por diferentes camadas da população. Tratava-se de momento propício ao desenvolvimento de carreiras ligadas ao setor e à efetivação de negócios de vulto. Para isso, era necessário, inicialmente, conferir maior visibilidade à moda. É nesse contexto que as ações de Paulo Borges se inserem e podem ser compreendidos seus mecanismos, como o apelo ao espetacular e ao choque, e os resultados que conseguiu alcançar, tornando-o um nome-chave no desenvolvimento da moda no Brasil.

A segunda edição ocorreria no ano seguinte, num galpão da Rua Cardeal Arcoverde, denominado por Mauro Freire de Espaço Phabrica. Com projeto de arquitetura, decoração e mobiliário de Ângelo Bueno e criação de imagem de Giovanni Bianco, o espaço contaria com área para beleza, livraria, local de eventos, restaurante, loja, galeria para exposições fotográficas e de jovens designers (termo usado por P. Borges), lançamentos de livros, CDs, dentre outros. Convidou o brasileiro, e aqui desconhecido, Inácio Ribeiro, da marca internacional Clements Ribeiro, para apresentar sua coleção. Além dele, foram convidados Fause Haten, Jorge Kaufmann, Jeziel Morais, Reis Kopke e CoopaRoca (cooperativa de costureiras da favela da Rocinha). Nessa edição, Alexandre Herchcovitch já viria contar com o suporte que não teve na edição anterior. A tecelagem Santaconstancia desenvolveu uma estampa de caveira exclusiva para ele, Fernando Pires produziu os sapatos e Cristina Franco registrou cenas do desfile a serem exibidas na TV Globo. Na descrição de Paulo Borges:

Na passarela Márcia Pantera entra, pela primeira vez, vestida de homem, precedida por três modelos com mais de dois metros de altura, um rapaz enrolado numa cobra e uma mulher com os cabelos arrastando pelo chão. As modelos não usam maquiagem, os cabelos são presos num coque com uma piranha, como o próprio Alexandre usava na época. O casting superou o desfile. Cristina Franco comentaria mais tarde em um programa que Alexandre “exagerava no personagem”. “Nesse desfile a trilha alternava trechos da Bíblia com momentos muito grandes de silêncio, que constrangiam muito o público. Eu tive a preocupação de filmar a reação da platéia, só porque queria ver o que acontecia... As pessoas riam, achavam esquisito e torciam o nariz. Cochichavam o tempo inteiro”, comenta o estilista. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 955). Mas, ao mesmo tempo, como enfatiza Paulo Borges, ele apresentou peças que marcariam a sua trajetória, como a camiseta com estampa de Pombajira, que foi muito comercializada, e continuou construindo sua fama. Para Herchcovitch, o desfile era uma peça fundamental na construção de sua imagem. Ele investiu, desde cedo, no potencial cênico que os eventos permitiam, criando atmosferas que agiam no sentido de valorizar o produto 263

exibido. Deste modo, os cuidados na escolha dos modelos, maquiagem, acessórios, cenário, iluminação e trilha sonora eram tão importantes como a roupa que se desejava apresentar e, nesse sentido, contribuíam para o espetáculo que Paulo Borges queria criar para atrair a atenção do público para o evento – o que o aproxima das ações de Livio Ragan com a Fenit. A terceira edição do Phytoervas, por sua vez, foi ainda maior, mantendo desfiles, como o de Walter Rodrigues, Alexandre Herchcovitch e da CoopaRoca, e incrementando a presença de personalidades nacionais de fama, a exemplo de Fernanda Torres, Marília Pêra e Marília Gabriela, que, inclusive, desfilaram. Nessa edição, realizada em 1995, Herchcovitch apresentou peças marcantes, a exemplo da noiva, com chifres na cabeça, com vestido tricotado por sua mãe (pesava 10kg) e que carregava uma placa escrito “noiva”. No entanto, antes do desfile de Herchcovitch, Jorge Kaufmann apresentou uma coleção com proposta oposta: modelos saudáveis, roupas coloridas, em conformidade com o clima de otimismo que se vivia no Brasil. O público foi à euforia. Apenas d. Regina e o stylist Paulo Martinez foram ao camarim cumprimentar Herchcovitch, que concluiu que o público não havia apreciado seu desfile. Essa foi a última apresentação de Herchcovitch no Phytoervas Fashion. Carlos Pazetto assumiu, então, a direção do primeiro desfile independente de Herchcovitch. Ocorreu num hospital desativado, o Humberto Primo, no centro financeiro de São Paulo. Se, no desfile anterior, havia forte referência aos anos 1950; no atual, Herchcovitch enfatizava ídolos decadentes, a exemplo dos Menudos, grupo musical composto por porto-riquenhos e que fez considerável sucesso no Brasil dos anos 1980. Segundo A. Herchcovitch, houve especial uso de elementos considerados cafonas, a exemplo de roupas de velhas, e que lhe renderam comentários favoráveis de crítica, a ponto de o desfile posterior reunir mais de 2.500 pessoas nas dependências da Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), locação escolhida para o evento. A inspiração foram os uniformes escolares e as roupas de ginástica. De acordo com Herchcovitch (BORGES, BIANCO, 2003, p. 956), a inspiração veio de uma pergunta básica: “O que ninguém colocaria numa passarela?” A resposta foi: “Abrigo de moletom”. Mais uma vez, ausência de maquiagem, referência à mãe e/ou a Rei Kawakubo, e na trilha sonora uma rádio sintonizada em tempo real. A inspiração, em conformidade coma característica da época, veio das ruas:

Enquanto montava essa coleção eu lembrava sempre de uma senhora que eu vi lavando a calçada. Ela devia ter acordado e posto uma saia, ficou frio e pôs um moletom por baixo... tinham muitos desses looks no meu desfile, muita sobreposição. Eu lembro que a Veja escreveu que era um desfile de trapos da 25 de Março – a pessoa que escreveu não deve ter entendido porra nenhuma. Já a Erika [Palomino] comentou que era um desfile niilista: “O 264

que esta roupa está fazendo na passarela?” Ela entendeu o que eu quis dizer. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, p. 956). Apesar do sucesso da terceira edição do Phytoervas, ainda conforme Borges, desentendimentos com Cristiana Arcangeli promoveram a separação entre ambos. O evento só ocorreria por mais três anos, sem Paulo Borges e sua equipe. Inicia-se, um novo projeto capitaneado por Paulo Borges: o MorumbiFashion Brasil, no ano de 1996.

Sentia que era o instante exato de dar a largada, o chute inicial. Com toda a experiência adquirida nas relações com o Phytoervas Fashion, sabia como e por onde deveria começar. Sempre tive uma relação muito forte com todos os setores da indústria, com empresários, estilistas, jornalistas, e todos os elos necessários para fechar o mecanismo vital de consolidação da moda brasileira. Preparei várias cópias com o projeto descritivo do evento, um histórico, seu organograma, cronograma, e uma relação com as possíveis grifes e estilistas que fariam parte dele. Enviei para empresas de diversos setores, desde o têxtil até o de confecções, passando pela indústria de cosméticos, bebidas, pelo setor financeiro, shopping centers, e até pela indústria automobilística Paralelamente tratei de registrar todo o projeto “Calendário Oficial da Moda Brasileira” como marca registrada. Não queria nem podia mais repetir experiências anteriores, e perder o controle daquilo que estava construindo. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 999). Através de Angélica Armentano, diretora de atendimento de uma agência de publicidade, Borges entrou em contato com os representantes do Morumbi Shopping, cuja estratégia de marketing consistia em associar a marca do shopping à idéia de moda. Ainda em 1995, Paulo Borges consegue fechar um contrato de patrocínio que garantia toda a execução do projeto, com a ressalva de que o subtítulo do evento deveria ser “MorumbiFashion”. Em julho de 1996, realiza-se a primeira edição do “MorumbiFashion Brasil – Calendário Oficial da Moda”. E, no mesmo ano, tem-se a realização da Semana BarraShopping de Estilo, no Rio de Janeiro, projeto idealizado pela Dupla Assessoria, empresa especializada na produção de eventos de moda, e pertencente a Eloysa Simão e Giorgio Knapp (GERALDINI, 2008). Segundo Paulo Borges, as dificuldades foram inúmeras, pois envolvia reunir pessoas e empresas importantes num mesmo evento e em muito se falava das disputas, brigas e egos extremados que caracterizavam tais pessoas. Por isso, tomou a iniciativa de, após procurar cada um, obter as adesões por assinatura de contrato, através da qual firmava-se o compromisso oficial de participação no evento. Um elemento de estímulo adicional a tal iniciativa e à cooperação que encontrou, apesar das adversidades expostas, foi, sem dúvidas, o sucesso de Ocimar Versolato nos desfiles parisienses, cujas notícias começavam a chegar ao Brasil. No entanto, a maior dificuldade para Paulo Borges se transformou em sua maior façanha. O funcionamento da moda, pensada como indústria, envolve a fina articulação entre 265

diversos setores de produção, que, no Brasil, mantinham desenvolvimento à parte do restante da cadeia produtiva. Para além de estilistas, o setor do vestuário envolve uma gama de profissionais (e empresas) vinculadas à imprensa, publicidade, indústria têxtil, indústria química, de produção de aviamentos, calçadista, profissionais do segmento de confecção e de acabamento, empresas de cosméticos, distribuidores, modelos, estilistas, maquiadores, cabeleireiros, entre outros62. A proposta de um calendário oficial da moda significava a tentativa de criar mais efetivo espaço para o estabelecimento de relações e negócios entre os diversos segmentos atomizados, ao mesmo tempo em que se incrementava o potencial de visibilidade dos diferentes setores e profissionais devido à sua concentração em um único evento. Nesse sentido, os desfiles de moda funcionam como chamariz tanto às empresas envolvidas com moda, como aos consumidores – diferente do potencial de visibilidade de um estilista que apresenta isoladamente sua coleção em um evento independente, voltado apenas a restritos convidados. “Com a participação integral do setor”, afirmou Paulo Borges, “todos ganhariam, e o negócio da cadeia têxtil, como um todo seria igualmente beneficiado” (BORGES, BIANCO, 2003, p. 1000). A iniciativa girava em torno da intenção de profissionalização do setor, portanto. Sem dúvida, a base de construção do MorumbiFashion Brasil, em São Paulo, e da Semana BarraShopping de Estilo63, no Rio de Janeiro, eram os desfiles realizados na Europa, mas igualmente eram herdeiros das ações de precursores no Brasil, como Caio de Alcântara Machado e Livio Rangan. A primeira edição do MorumbiFashion ocorreu pouco após o desfile de Herchcovitch na FAAP. Ainda assim, ele apresentou coleção e se preocupou em construir uma imagem diferente. A principal inspiração foram os anos 1980, com uso de tecidos estampados de maiôs e jeans manchado. As modelos usavam cabelo estilo Moicano construído a partir da aplicação de penas degradées. A coleção apresentava muitas cores, em oposição ao recente desfile anterior.

Aí eu acho que ficou bem nítida essa minha característica: estar me negando a cada nova coleção, estar sempre mostrando uma coisa nova. Foi a partir daí

62 Feghali e Dwyer (2001) apresentam uma classificação dos setores que envolvem a moda, no que se refere a profissionais: 1) equipe da indústria têxtil e confecção (estilista, modelista, costureiros, profissionais de desenvolvimento de produto, executivo de marketing, técnico têxtil, engenheiro químico-têxtil, empresário); 2) equipe de comercialização (vendedor, gerente, fashion buyer, consultor de estilo, vitrinista, sacoleira); 3) equipe de design (designer na tecelagem, designer têxtil, designer gráfico); 4) equipe de produção de moda e de divulgação (modelos, beauty artist, agência de beleza, stylist, produtor de moda, figurinista, diretor de desfile, diretor artístico, scouter e produtor de casting, agente, coordenador de camarim, relações públicas, coordenador de promoções e eventos, coordenador executivo, DJ, assessor de imprensa, assessoria de imprensa oficial, jornalista de moda, fotógrafo de moda, camareira, passadeira, segurança). Por sua vez, o complexo têxtil engloba os seguintes segmentos: 1) produção de fibras; 2) fiação; 3) tecelagem; 4) malharia; 5) acabamento; 6) confecção. 63 Os dois shoppings centers, inclusive, pertenciam à mesma empresa, Renasce. E mesmo as decisões da diretoria do MorumbiShopping de São Paulo eram submetidas à direção da matriz, no Rio de Janeiro. 266

que eu parei de contar para a imprensa o que eu faria antes do desfile acontecer. Eu percebi que a surpresa era uma arma a meu favor. O choque podia ser um ponto positivo. Eu hoje tenho que estar sempre me negando, isso virou quase que uma norma para mim. Talvez na forma e na construção eu mantenha uma ligação entre as coleções, mas nas cores, nos volumes, nas personagens, tem que ser sempre o oposto, sempre uma coisa nova. É bom para me exercitar, é bom para quem vai comprar e para quem vai assistir. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 956). A coleção de inverno 1997 foi aplaudida de pé: Herchcovitch fazia sua primeira incursão na alfaiataria. Predominaram como cores do desfile o preto, o marinho, o rosa e o verde-flúor, em modelos que desfilaram sob luz negra e com cabelos fluorescentes usando longas franjas de canutilhos, lembrando o orixá Oxum, do candomblé. Esse foi o primeiro dos desfiles de Herchcovitch em que ele viria a esconder os rostos das modelos, como fez repetidas vezes nos eventos posteriores. Foi um mecanismo para melhorar o acabamento, a construção do traje, como ele próprio pontuou em entrevista a Paulo Borges. Nessa época, já vendia no exterior, na loja Patricia Fields de Nova York (desde 1996). A coleção posterior, no entanto, apresentaria a mistura entre alfaiataria e aeróbica, o que, segundo Herchcovitch, não teria agradado muito. Mas o estilista persistiria com as misturas. Era o verão 1998/1999. Casaco com lingerie, bordado de alta costura com látex, Herchcovitch apresentou uma coleção em que a sensualidade comparecia nas transparências e nas rendas e era contrabalançada pela agressividade, pelo gótico e pela referência aos anos 1980. Mas o sucesso maior da coleção foi um sapato-tênis, depois denominado sapatênis, que foi comercializado nas lojas Arezzo. Nesse mesmo ano, Alexandre Herchcovitch e Renato Kherlakian, da Zoomp, acordaram uma parceria. Herchcovitch conceitualizaria a coleção da Zoomp, e a Zoomp licenciaria sua linha de jeanswear e apoiaria sua marca. Foi neste ano de 1998 que Herchcovitch foi fotografado no caixão anunciando sua morte e a busca por um amadurecimento que lhe permitiria ingresso em mais amplo mercado. Inicia o processo investindo em jeans e camiseta, dupla de grande sucesso dos anos 1990, conforme já comentado. E o Brasil se tornou um grande exportador e consumidor de jeans. A marca Herchcovitch; jeans, segunda marca de Alexandre Herchcovitch – a primeira é a Herchcovitch; Alexandre – foi criada, portanto, em 1998. Hoje, atua com dois tipos de modelagem: a brasileira e a internacional. A brasileira tem cintura mais baixa e a calça é mais certa no corpo; a internacional, que agrada mais as paulistas, tem cintura mais alta e é um pouco mais folgada. No entanto, a marca Herchcovitch; jeans possui variados itens, para além das calças. Trata-se de um contraponto às coleções de prêt-à-porter, mais caras. No ano de 1998 o estilista também iniciou as apresentações de sua coleção em passarela internacional, a Fashion Week. Seu projeto de internacionalização, que agora iniciava, estava 267

vinculado ao jeanswear, ao desfile em Londres e ao aumento do volume de encomendas por compradores de diferentes lugares do mundo. Na verdade, o processo já havia iniciado desde 1996.

Os anos 2000 e a internacionalização Uma cliente de Herchcovitch, Caroline Glidden Gannon, passou a residir em Nova York e constantemente indicava a Herchcovitch que diferentes pessoas haviam se interessado por suas peças. Incentivado pela cliente e amiga, fez um mostruário com 32 peças. Conseguiram vender para três lojas, dentre as quais a Patricia Fields, que compareceu ao desfile de Herchcovitch na FAAP (HERCHCOVITCH, 2007). Posteriormente, quando fazia o figurino da série Sex and the City, Patricia Fields escolheu uma camiseta de Herchcovitch, com estampa de Bambi, para vestir a personagem Carrie, de Sarah Jessica Parker.

Foi na Inglaterra que descobri a necessidade de sofisticar minha alfaiataria, porque os compradores de lá aprovavam as camisetas, os jeans e sempre pediam para ver as peças mais talhadas. No exterior, eles medem a qualidade técnica e a personalidade de um estilista pelos ternos, jaquetas, calças, roupas que revelam bom domínio no corte, execução, acabamento e adequação do tecido escolhido. (2007, p. 74). Depois vieram Paris e, mais recentemente, Nova York. Atualmente, como salienta o próprio Herchcovitch, suas roupas são comercializadas em lojas multimarcas que vão da Bergdorf Goodman, que iniciou encomenda em 2006 (com 180 peças) à Opening Ceremony, ambas em Nova York. O investimento, assegura, é alto, pois envolve os custos do desfile, que, segundo o estilista, giram em torno de US$160 mil (2007, p. 72). Os gastos envolvem desde a estrutura e montagem do showroom, com funcionamento de quase dois meses, até custos de confecção (até seu relato de 2007, 5% da produção das roupas se dava em países como Portugal e China). O ano de 2007 foi marcado por mais um passo de Alexandre Herchcovitch em seu projeto de internacionalização: a inauguração, em março, de uma loja própria no bairro de Daikanyama, em Tóquio. O Japão começou a ganhar destaque no cenário da moda com seu crescimento econômico, que permitiu aos japoneses um consumo intensivo de produtos, inclusive de luxo. No entanto, além disso, os japoneses, em especial jovens, começaram a ganhar destaque por conta de seu modo de compor as diferenças peças de roupas, em sobreposições tidas como ousadas, com grande mistura de cores, tecidos e 268

estampas64 e sem uma definição preponderante de estilo, a não ser aquilo que se tem denominado de hiper-individualização da moda. Nesses termos, trata-se de um mercado bastante receptivo a novidades. Esses teriam sido os fatores fundamentais à escolha de Herchcovitch por inaugurar loja em Tóquio. Inclusive, em dezembro do mesmo ano, Oscar Metsavaht, dono da marca carioca Osklen, igualmente inaugurava loja em Tóquio, destacando que não promoveria qualquer alteração das peças para adaptação local (a não ser o envio apenas de numeração equivalente a tamanhos menores de peças). Com projeto da Arthur Casas, a fachada da loja de Herchcovitch traz um dos grafismos em gilete que caracterizou a coleção de Herchcovitch na época, e a fachada é renovada em função das estampas de cada coleção. No entanto, voltando ao ano de 1998, este seria marcado ainda por uma transformação: a migração da loja-ateliê de Herchcovitch para a Rua Haddock Lobo, no Jardins, em São Paulo. Segundo Lilian Pacce (2002), aos 22 anos, no ano de seu desfile de formatura (1993), Herchcovitch saiu da casa dos pais, no bairro de Sumaré, para dividir uma casa-ateliê com o artista plástico e assessor de Herchcovitch até os dias atuais, Maurício Ianês. No ano seguinte, sua primeira loja foi aberta na Alamenda Franca, no Jardins, bairro de referência para o estilista desde a adolescência, época em que comprava revistas de moda para começar a conhecer o que faziam os estilistas. De acordo com Herchcovitch (2007), foi Ianês que o familiarizou com as artes plásticas e o incitou a ir além das meras preocupações com questões práticas de acabamento, execução e vendas, como afirmou o estilista, e a conceber a roupa como modo de expressão e, sendo assim, como uma espécie de suporte que lhe permitiria ir além da mera apresentação de panos. Para Herchcovitch, significava criar um discurso, com fundamentos, através das roupas; diferente de provocar mero espanto como reação de público. Trabalhando juntos desde 1993, Herchcovitch destaca a paixão comum aos dois pelo látex como material de base.

Como um artista que finalmente descobre uma nova matéria-prima para veicular sua expressão artística, a borracha líquida extraída das seringueiras da Amazônia me permite maleabilidade, ineditismo, silhuetas distintas. Era um passo à frente rumo ao vinil. Além da moda, minhas criações em látex ganharam reconhecimento no mundo das artes. Foi com um vestido em látex preto que participei da mostra Wild: Fashion Untamed, no Costume Institute, do Metropolitan Museum de Nova York. O mesmo modelo foi usado pela atriz Scarlett Johansson em matéria de capa da revista W. Há um exemplar na FIT (Fashion Institut of Technology) numa exposição chamada Weaponized Women. E mais dois vestidos também em látex estão na Global Trends, Local Traditions, no Centraal Museum de Utretch, na Holanda. Um

64 Xadrez, listras e bolas, por exemplo, podem figurar em um mesmo look. Inclusive, por conta de seu gosto já anunciado pelos trabalhos da estilista japonesa Rei Kawakubo, Herchcovitch pode ter se aproximado do estilo japonês a ponto de ter incorporado a mistura de estampas e tecidos em suas produções. 269

preto e outro bem colorido (o resultado final parece renda) que destacam desenhos de pássaros e flores. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 40). Maurício Ianês estudava artes plásticas na FAAP quando passou a dividir apartamento com Herchcovitch. O início da relação de trabalho se deu com ajudas que proporcionavam levar elementos das artes plásticas para as produções de Herchcovitch, a exemplo do uso do látex para misturar ao tecido das roupas.

No início era tudo muito informal, o ateliê funcionava no nosso próprio apartamento. A gente não tinha grana e eu fazia de tudo, de faxineiro a office-boy. Aos poucos a coisa foi crescendo e criando compartimentos, até que chegou a hora que alguém precisava ir ao banco pra gente... Hoje eu colaboro com pesquisas, vou atrás de referências históricas, dou palpite na criação conceitual da coleção, faço o styling dos desfiles, cuido do som e da iluminação da passarela, desenho os catálogos, enfim, sou responsável pela unicidade da linguagem em tudo que diz respeito à marca. E, além disso, desenho o segmento de jeanswear. (IANÊS apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 1062). Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada em 30 de novembro de 2007, Ianês é questionado se a moda seria arte, ao que responde: “Não, arte e moda são coisas diferentes, o que não impede que elas dialoguem e cruzem suas fronteiras. A moda não precisa se dizer arte para ser boa. Precisa apenas ser uma boa moda”. Em 2002, Maurício Ianês distanciou-se da marca, mantendo-se como assessor, e abriu o leque de ações e clientes ao participar do projeto Amni Hot Spot, do Calendário Oficial da Moda Brasileira, trabalhar para o estilista Walter Rodrigues e para as marcas Cori e Vision. Herchcovitch aponta que o contato com Ianês o levou a buscar um repertório mais amplo de idéias e matérias-primas, mas enfatiza: “sem, contudo, jamais cair na tentação ou pretensão de achar que moda é arte” (HERCHCOVITCH, 2007, p. 39). No entanto, o ano de 1998 traria, ainda, outra mudança significativa para a moda: a eleição de Paulo Skaf para presidente da ABIT, Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção. No mesmo sentido das ações de Paulo Borges com o projeto de Calendário Oficial da Moda Brasileira, e em fundamental afinidade e complemento a elas, Paulo Skaf, que assumiu efetivamente seu cargo em 1999 substituindo Luís Américo Medeiros (há mais de trinta anos no cargo), foi peça de grande importância na construção de unidade na cadeia produtiva:

O que acontecia na prática eram produtores de algodão vendo fiações, que são seus clientes, como inimigos. Fiações com problemas de relacionamento com os produtores de algodão. Fiações e tecelagens com dificuldades de relacionamento. As tecelagens com as confecções, sempre trocando acusações. A confecção com o varejo em desarmonia, enfim, era uma grande desunião, até por problemas individuais de algumas pessoas envolvidas neste cenário. (SKAF apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 1046). 270

A construção da unidade, contudo, teria que ir além e alcançar igualmente as empresas ligadas à promoção e design. Em outros termos, tratava-se de construir uma rede de relações que uniria os diferentes elos da cadeia, em suas específicas localizações do país. Do ponto de vista de Paulo Skaf, inclusive, a desunião acabava diminuindo as possibilidades de o setor influenciar decisões e, conseqüentemente, ações do governo que estimulassem seu desenvolvimento, pois, com os “elos quebrados”, não havia igualmente organização do setor de modo a se apresentar como grupo coeso perante o governo, pesando a balança de poder a seu favor, e, assim, apresentar suas demandas com maiores chances de atendimento. Deste modo, a primeira ação de Paulo Skaf na presidência da ABIT foi promover a união entre produção de algodão, fiação, tecelagem, malharia e confecção. A segunda estratégia foi criar metas comuns a todos e específicas a cada área de modo a modernizá-las. Além disso, afirmou Paulo Skaf em entrevista a Paulo Borges, criou-se um departamento para cuidar de questões relativas ao meio ambiente e um prêmio para valorizar e prestigiar os profissionais do setor, o ABIT Fashion Brasil, em parceria com a produtora OBL, dirigida por Tânia Otranto, Balia Lebeis e, mais uma vez, Paulo Borges. Com o setor melhor organizado, Skaf reuniu 32 representantes do setor em uma audiência com o então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Iniciava a tentativa de pressionar o governo a promover ações favoráveis ao desenvolvimento do setor para abastecimento do mercado interno e externo. De 1996 a 2001, houve investimentos na ordem de US$ 6 bilhões com vistas à modernização de parque fabril, tecnologia e treinamento (PALOMINO, 2002). A ação mais efetiva da ABIT é a criação, em 1997, da Agência de Promoção de Exportação e Investimentos (Apex-Brasil), ligada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que ajudará a impulsionar novas ações e a conferir visibilidade à constituição de grupos com interesses comuns como estratégia viável para benefício do setor como um todo. Os resultados obtidos por esses novos eixos de articulação impulsionarão a fundação, em 2003, da Associação Brasileira de Estilistas (Abest), por iniciativa dos estilistas Alexandre Herchcovitch, Amir Slama, Lino Villaventura, Serpui Marie e Walter Rodrigues. Atualmente presidida por Amir Slama, a Abest surgiu a partir das dificuldades que os estilistas enfrentavam, especialmente, para exportar produtos. O objetivo da Associação é, nas palavras de Herchcovitch (2007, p. 75), “obter maiores incentivos do governo brasileiro no quesito exportação”. As primeiras ações envolveram desfiles e showrooms para apresentar a moda brasileira em países estrangeiros. O primeiro evento aconteceu em Moscou, no ano de 2004 (ALEXANDRE..., 2007). A ele, seguiram-se os de Paris e Tóquio. Em seu primeiro ano de atividades, com cinco integrantes, a Abest exportou US$600 mil; no ano seguinte, com nove integrantes, exportou 271

US$3 milhões; em 2006, com 51 associados, US$12 milhões, com vendas em 38 países. Atualmente, a Abest conta com 50 integrantes que exportam para 48 países. A meta é, em 2010, efetivar transações comerciais com 90 países. A projeção para 2008 era de exportar US$13,4 milhões65, conforme dados divulgados no site oficial da Associação66. A Abest conta, atualmente, com o apoio da Apex-Brasil, do Ministério do Turismo e da Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal), na montagem de showrooms, promoção de desfiles e confecção de catálogos. Nesses termos, os objetivos da Abest, expostos no site oficial têm caráter mais amplo em relação ao que destacou Herchcovitch. De acordo com as informações apresentadas no site, trata-se de “fortalecer e promover a indústria de moda nacional focada nos pilares: qualidade, design e identidade”. Num segundo momento, destaca-se que também objetiva “desenvolver marcas de alcance internacional e garantir a autenticidade e criatividade das coleções, divulgando o estilo de vida brasileiro”; e terceiro, “contribuir também para o crescimento de todos os segmentos vinculados à moda do nacional”. São ações conjugadas, da ABIT, Apex e Abest, que têm envolvido as diferentes relações que compõem a configuração-moda, com conseqüências na produção, distribuição, divulgação e comercialização da moda dentro do Brasil e, assim, melhor estruturando as relações (leia-se, profissionalizando) cria-se a base para inserção mais competitiva no mercado internacional mudando a imagem do Brasil no exterior, associada à falta de profissionalismo (por exemplo, atraso na entrega de pedidos, entrega de produtos que não correspondem ao que foi contrato, dentre outros), o que criava dificuldades no estabelecimento de contratos.

Contudo, retornando ao ano de 1999, após firmada a parceria com a Zoomp, o grande desafio de Herchcovitch seria apresentar duas coleções distintas, independentes. Em passarela branca, de ladrilhos, Herchcovitch apresentou macaquinhos jeans com coturnos. Quanto ao desfile da marca principal, o estilista manteria as misturas – agora entre Japão, New Look de Dior, alfaiataria, candomblé, futurismo, Espanha – e a crítica o aclama. Segundo Herchcovitch (2007), ele havia percebido que a marca registrada de Dior estava igualmente presente nas roupas dos Orixás. De Dior, ele toma o New Look, ao qual adicionou

65 Os dados relativos ao ano de 2008 ainda não foram divulgados, contudo os resultados têm possibilidade de terem sido inferiores ao projetado devido à chamada crise mundial, cujos efeitos são especialmente sentidos, no caso brasileiro, quanto às exportações. E o setor de moda, vinculado à futilidade, convencionalmente sofre abalos nos primeiros momentos de crise, ainda que haja episódios (como a Segunda Guerra Mundial) em que a moda acabou sendo vivida como escape e, simultaneamente, como meio de estabelecimento de relações comerciais vantajosas, em especial com os países que sofreram menos com a guerra ou que conseguiram obter vantagens a partir dela. 66 www.abest.com.br. 272

um “toque oriental” e formas das roupas usadas na dança espanhola, sob uma trilha sonora que misturava pontos de umbanda com influências da música flamenca. O uso do látex, da crina de cavalo, de certas cores e recursos que fugiam àquilo que Dior elaborou em sua época foi, segundo o estilista, o modo que ele utilizou para atualizar Dior, para torná-lo conforme à mulher dos dias atuais. Já o interesse pelo candomblé parece se aproximar de uma atração pelo tema da religião de um modo geral. O certo é que referências ao candomblé aparecem em mais de uma coleção e, inclusive, em sua incursão no mundo da joalheria, a se iniciar no ano 2000, quando, além de outras peças que ganharam destaque – a exemplo do soco-inglês de ouro com incrustações de diamantes e um grande parafuso de ouro amarelo em semi-círculo formando uma pulseira, ele produziu fitas do Senhor do Bonfim em couro, vários tons, e usou fechaduras de ouro como arremate. As originais fitas do Senhor do Bonfim são feitas de tecido e devem ser amarradas no pulso com nós, no momento em que se fazem os pedidos. Estes apenas são realizados quando do rompimento espontâneo da fita. Já as fitas propostas por Alexandre Herchcovitch, como salienta Cosac (2007), apontam que os desejos nunca serão realizados, pois a fita de couro e ouro dificilmente se romperá: “o que é para ser efêmero torna-se eterno” (p. 94). No mesmo ano de 1999, Herchcovitch desenha um vestido exclusivo para a boneca Barbie, em parceria com a Mattel. Como ele próprio afirma, desde cedo apresentou facilidade para se “desdobrar” em vários assuntos: ao mesmo tempo em que gostava de costura, voluntariamente fez aula de caligrafia (por conta de seu gosto por fontes), de matemática (assunto que afirma adorar até os dias atuais, o que é perceptível pelo modo geométrico com que lida com as formas), de artes (na Escola Panamericana de Artes), de serigrafia e de fotografia (chegando a trabalhar como fotógrafo para o jornal da Tarde, em 1998, com 17 anos). Isso lhe franqueou, na vida adulta de dedicação à moda, a possibilidade de trabalhar para várias linhas dentro da marca Herchcovitch; Alexandre, feminino e masculino, como a Herchcovitch; Jeans (homem e mulher), a Judy Blame and Alexandre Herchcovitch (a AND é uma co-branding que teve início em 2004 para produção de camisetas e acessórios, criadas fundamentalmente em encontros virtuais entre Herchcovitch e Blame67, que mora em Londres) e a Herchcovitch Black. Mas, fundamentalmente, a versatilidade do estilista é percebida, primeiro, em seu trabalho paralelo para outras marcas, como a Ellus, a Zoomp e a Cori, que marcaram sua trajetória. Segundo, no desenvolvimento de produtos vinculados à aparência, mas que não são roupa, a exemplo das jóias para a Dryzun, roupas de cama para a Zelo, conjunto de louça e móveis para a Tok & Stok (sugerindo os motivos e as

67 Judy Blame, nos anos 1980, vestia Boy George na época da banda Culture Club e fazia editoriais para a revista I-D. 273

formas das peças), sandálias para a Melissa (que, hoje, são produto comercializado na loja Patricia Fields, sob assinatura do estilista) e mesmo band-aid com estampa sua. Por fim, Herchcovitch, como emblema do sucesso possível àquele que pleiteia uma qualificação professional em curso superior em moda, é diretor artístico do bacharelado em Design de Moda do Centro Universitário Senac-SP, é DJ uma noite por semana no Clube Glória e participa de curta-metragens (como a parceria com Zé do Caixão). Em relação ao seu cargo como diretor artístico no Senac-SP, pontua:

Minha função consiste em analisar o conteúdo programático das disciplinas, qualificar o desempenho do corpo docente e coordenar um programa de atualização para que o curso esteja sempre conectado com a realidade do mercado de moda. Um dos pontos fortes dessa empreitada é acompanhar os alunos em fase de conclusão de curso. São cerca de sete encontros com a turma do quarto ano, nos quais acompanho os primeiros passos da coleção de formatura, em horários individuais, para detectar deficiências e apontar caminhos de acordo com o desenvolvimento de cada um. Realizamos também pequenos fóruns, nos quais pessoas atuantes em vários segmentos da indústria da moda dão um panorama atual de suas áreas e falam sobre o perfil profissional exigido para um futuro contrato. Também trocamos experiências com professores e intelectuais que têm a moda como objeto de estudo. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 87/88). No entanto, o ano de 1999 marca ainda outra mudança significativa no contexto nacional: devido a crises financeiras internacionais na Ásia e na Rússia, o governo Fernando Henrique sela novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (BIRD) e Banco de Compensações Internacionais (BIS), num total de US$41,5 bilhões. Houve desvalorização da moeda brasileira, aumento da dívida interna e da taxa de juros e crise financeira. Na coleção posterior, em contraposição à coleção de inverno de 1999, Herchcovitch usa pétalas de flores e tons pálidos, com ênfase no salmão. Contudo, as transformações que Herchcovitch destacou, a partir da fotografia no caixão, não se restringiriam a seu trabalho e a crise financeira em que o país começava a mergulhar: marca, de fato, uma nova etapa no fazer moda no Brasil. Ou seja, é representativo do momento. Na busca por profissionalização na condução do MorumbiFashion, Paulo Borges convidou Denise Basso, Graça Cabral e Márcia Matsuno, que atuavam no departamento de marketing da Zoomp e estavam se preparando para abrir empresa de consultoria na mesma área, para se associarem a ele e organizarem o evento. Acabada a nona edição do MorumbiFashion, em julho de 2000, reuniram-se, ainda conforme Paulo Borges, para análise do processo, das relações e necessidades do evento. Cada membro da equipe assumiria função específica para coordenação das atividades: Paulo Borges, direção artística; Denise Basso, direção de Estratégia e Administração; Márcia 274

Matsuno e Graça Borges, direção de Planejamento e Produção; Graça Cabral, direção de Relações Corporativas e de Comunicação. Os planos da equipe de Paulo Borges não se coadunavam com os planos dos diretores do shopping, que desejavam a manutenção do tamanho do evento (talvez, e trata-se apenas de hipótese, por conta da crise brasileira). Aproveitando a proposta da Fundação Bienal de cessão do seu prédio para realização do evento, a rescisão com o shopping foi executada. Em janeiro de 2001, ocorria a primeira edição do São Paulo Fashion Week, contando com a empresa Direct TV como patrocinadora master. Com título inspirado nos títulos dos eventos de moda de outros lugares do mundo, em que consta no título o nome da cidade que sedia o evento, o São Paulo Fashion Week (SPFW) se torna o maior evento de moda da América Latina. Seguindo os passos do evento paulista e buscando rivalizar com ele, ocorreria a primeira edição do Fashion Rio, como decorrência da Semana BarraShopping de Estilo. Isso se deu em 2003 (ALEXANDRE..., 2007). No entanto, ainda em 2001, acontece o primeiro desfile de Herchcovitch em Paris. Apresentou uma coleção em que os tecidos utilizados, high-tech (hi-tech), mudavam a cor a depender da incidência de luz, criando variados efeitos cromáticos ao longo da passagem de cada modelo pela passarela, bastante em conformidade ao seu gosto por tecidos tecnológicos e apelo futurista. A essa época ele não apenas já havia desfilado em Londres (London Fashion Week), como já havia figurado em matérias de revistas como I-D, The Face, Vogue Itália e Collezione. Herchcovitch, no mesmo ano no Brasil, havia apresentado uma inovação em seu desfile: a coleção masculina agora figurava separadamente e, no caso dessa edição, Herchcovitch contou, como modelos, com crianças de 09 a 11 anos de idade, convocadas entre alunos de seu antigo colégio I.L.Peretz, mantido pela Associação Cultural Religiosa Brasileira Israelita, e onde estudou até a segunda série. Multiplicar a quantidade de desfiles significa igualmente multiplicar inspirações e estilos apresentados nas passarelas. Isso remete a uma complexidade maior no modo como somos obrigados a discutir a questão da assinatura pessoal do estilista (sua identidade criativa) e modos de interpretação que buscavam ver as criações como extensão fácil, imediata do criador. Para dar conta de tamanha diversidade, a “matriz identitária” (ou matrizes) se tornam consideravelmente mais abstratas, permitindo sua atualização em formas, comparativamente, diversificadas – perceptível na comparação entre marcas distintas e mesmo entre diferentes coleções de uma mesma marca, isto é, no espaço e no tempo. Tudo isso, inclusive, sem negar, ao mesmo tempo, o fio de continuidade entre as produções. Em entrevista à revista belga Dutch, de acordo com P. Borges, Herchcovitch definiu o seu estilo a partir da noção de mistura; segundo ele, atitude típica do brasileiro. Mas, mais do que isso, o define também o modo peculiar como sintetiza aquilo que toma para pôr 275

em relação. Poderíamos acrescentar ainda que sua recorrência em tomar temas arbitrários, no sentido de não imediatamente remissíveis entre si (temas desarticulados à primeira vista) se torna traço marcante em seu trabalho. Ou seja, o trabalho de Herchcovitch não é reconhecível pela limitação a certo rol de temas, mas sim à sua abertura e ao modo como escolhe e lida com eles. O caráter de abstração desses marcadores de estilo lhe abre grande campo de criação sem que fira a fina necessidade de continuidade, nem a igual exigência de renovação. Devido ao sucesso internacional, o estilista quadriplicou os pontos-de-venda no exterior, rompeu o contrato com a Zoomp, desenhou a coleção de jóias anteriormente mencionada e lançou o livro HERCHCOVITCH; Alexandre, pela Editora Cosac & Naify.

Ainda em 2001, ocorre a primeira edição do Amni Hot Spot, cuja idealização foi também do grupo de Paulo Borges no sentido de incentivar novos talentos em moda. Tendo como principal patrocinador a Rhodia/Amni, o objetivo do evento, realizado ainda hoje, é, a partir de uma seleção prévia, formar um grupo de seis a nove novos estilistas e acompanhá-los ao longo de dois ou três anos, propiciando estrutura e suportes técnicos pré e pós-produção, do levantamento de custos à venda. Alguns nomes do primeiro grupo foram: Deoclys Bezerra, Érika Ikezili, Emilene Galende, Fábia Bercsek, Jefferson de Assis, Marcelo Bohrer, Samuel Cirnansck, Walério Araújo e Wilson Ranieri (BORGES, BIANCO, 2003). Cuidar de todos os elos significava incrementar, inclusive, os canais de visibilidade ao trabalho de novos criadores, permitindo a eles o estabelecimento de contatos, contratos, mas, acima de tudo, incentivo à construção de um trabalho diferenciado. E, para isso, a difusão de cursos técnicos e de nível superior a partir dos anos 1990 foi de grande importância, ao oferecer, do ponto de vista da criação de uma visão de moda como mercado/indústria, a profissionalização necessária. Os cursos de moda, conforme Herchcovitch (2007), seriam uma forma de evitar, em seus termos, armadilhas e falhas do autodidatismo. É interessante, no entanto, lembrar que, apesar do interesse em estudar moda como opção de curso universitário – como relatado aqui, caminho bastante convencional aos filhos de classe média da geração de Herchcovitch, em especial em família judaica – o estilista não finaliza efetivamente o curso na FASM por não haver sido aprovado em uma disciplina específica, talvez reflexo de sua frustração em sofrer as conseqüências de ser aluno em um curso pioneiro e, portanto, ainda em gestação. Ou, talvez, resquício da idéia convencional de que o criativo dispensa cuidado tão extremado com a formação daquilo que ele traz como dom e que já teria sido suficientemente burilado, naquilo que um curso de moda poderia efetivamente oferecer, ao decorrer de seu percurso. Isso, no entanto, não o impede de atuar no Senac-SP, na condição de diretor artístico,

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Coelho57 e Paulo Martinez58. Nessa época, Erika Palomino começava a ser reconhecida no Brasil por suas matérias jornalísticas no caderno Folha Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, em que se dedicava a mostrar a chamada cena clubber paulista, que começava a despontar. Segundo Borges e Bianco, os dois dos principais personagens da coluna eram Márcia Pantera e Johnny Luxo, ambos vestidos por Herchcovitch: “O Johnny e a Márcia me atraíam porque eram diferentes e, principalmente, tinham muita liberdade em se vestir, em se expor” (apud BORGES, BIANCO, 2002, p. 954). Os shows de Márcia Pantera começaram a ficar famosos, do mesmo modo que o grupo da produtora Giovana Curllin, da modelo e cantora Geanine Marques (principal modelo de Herchcovitch até os dias atuais) e do artista plástico Maurício Ianês (que trabalha assessorando Herchcovitch desde 1993). Paulo Martinez, que trabalhava para a revista Elle, e Erika Palomino procuraram por Alexandre Herchcovitch para a elaboração de matérias na coluna “Noite Ilustrada” (da Folha de S. Paulo) e na Elle. Daí a presença de seleto público no evento. Isso permitiu, inclusive, contatos e visibilidade ao trabalho do estilista, a ponto de, no ano seguinte (1994), Paulo Borges convidar Herchcovitch para participar do Phytoervas Fashion em sua primeira edição.

No Brasil, em termos político-econômicos, continuava-se o processo de liberalização. Em 1989, finda o período Sarney e inicia o governo Fernando Collor, jovem que parecia encarnar, aos olhos dos brasileiros, a desejada modernidade que deveria substituir o passado, os “velhos” modos de condução do país. Collor, além de jovem, era um desportista e visivelmente gostava de bens tecnológicos e de luxo, bem como prezava o lazer. Talvez uma de sua imagens mais marcantes tenha sido em seu jet sky pelas praias brasileiras. Contudo, uma medida liberal de Collor transformaria o cenário empresarial brasileiro, que ainda sofria as conseqüências de ter um lento desenvolvimento por conta do peso das estatais e dos privilégios concedidos às empresas estrangeiras instaladas no país. Sem o controle do Estado ditatorial, as diferentes demandas da população começavam a exercer forte pressão sobre os empresários e sobre o novo governo, em especial após a nova Constituição de 1988. Além disso, o governo igualmente sofria pressões advindas do empresariado nacional e internacional, ambos em busca de apoio e incentivo. Em conformidade com concepções liberais de defesa da livre-concorrência, igualmente estimuladas pelos Estados Unidos como

Studio Berçot, dirigido Marie Ruckie, na França. Em 1984, lançou marca própria. Tem loja própria, e suas peças são também comercializadas em lojas multimarcas no Brasil e no exterior (Estados Unidos, França, Itália, Reino Unido e Japão). 57 Estilista. Nascida em Minas Gerais, estudou no Studio Berçot de onde retornou em 1974. Em 1990, lançou sua segunda marca, a Carlota Joakina (a primeira é a G). Tem loja no Brasil e showroom em Paris e Londres. Exporta para a Europa, Estados Unidos, Canadá, Líbano, dentre outros. 58 Stylist. 257

alternativa viável ao Terceiro Mundo, Collor “abre as portas” do Brasil para a livre entrada de produtos estrangeiros, de mais baixos preços e melhor qualidade que os artigos nacionalmente produzidos. O que seguiu foi um período de extrema crise das empresas privadas nacionais, em especial de pequeno e médio porte. Apenas as empresas de maior porte, e já consolidadas no mercado, tiveram oportunidade de superar a crise mediante considerável investimento, em especial em tecnologia. A burguesia industrial brasileira colocava-se contra o autoritarismo e a estatização da economia e defendia uma economia liberal de mercado, mas carecia de uma estrutura melhor assentada e profissionalização para conseguir enfrentar uma concorrência a que não estava acostumada e preparada, inclusive tecnologicamente. A inflação acumulada em 1989 havia sido de 1.782, 90%, conforme dados da Folha de São Paulo. Em 1990, Zélia Cardoso de Mello assume o Ministério da Fazenda e, no mesmo ano, Collor bloqueia o dinheiro nas cadernetas de poupança e contas correntes dos brasileiros e promove congelamento de preços e salários. Mais uma vez, há mudança na moeda, que volta a ser Cruzeiro. Ainda assim, a inflação acumulada em 1990 é de 1.476, 56%. No início de 1991, o presidente eleito Fernando Collor promove novo congelamento de preços e salários, eleva o índice de juros e promove a redução das taxas de importação. Era o Plano Collor II. Com o confisco da poupança e das contas correntes, bem como com o aumento dos juros e congelamento de salários, o consumidor passou a ter precárias condições de compras. E em situação de crise, o setor da moda, entendida como supérflua, sofre, convencionalmente, grandes abalos. No entanto, com o Plano Collor II, as empresas também foram abaladas por conta da concorrência, da flutuação cambial e pela dificuldade em exportar. O resultado foi a falência de muitos empreendimentos, agravando ainda mais a crise já instalada. A partir daí, em tais condições, era imprescindível uma alteração considerável das empresas nacionais em termos de profissionalização e investimento em tecnologia para a produção de bens mais confiáveis e competitivos. Na conjuntura que se instala e sem o devido apoio governamental, apenas os grupos enriquecidos podiam se lançar em tal reestruturação e se manter frente à concorrência. Em 1991, a inflação acumulada é de 480,20%. O descontentamento do empresariado e do povo acaba levando ao impeachment do Presidente Collor no ano de 1992. Marcílio Marques, Ministro da Fazenda, é substituído por Gustavo Krause. A inflação acumulada em 1992 chega a 1.158,0%59. As medidas implementadas por Collor tiveram duplo efeito na moda. Por um lado, o modo abrupto da “abertura” levou à mencionada falência de muitas empresas e indústrias que estavam iniciando um percurso de expansão.

59 Os dados sobre inflação acumulada ao ano foram retiradas do Banco de Dados Folha (Almanaque), da FolhaOnline (almanaque.folha.uol.com.br/dinheiro90.htm). 258

Como foi afirmado, apenas aquelas melhor estruturadas conseguiram ser mantidas, apesar dos efeitos da crise. Por outro lado, as empresas que nasceram ofereciam produtos de melhor qualidade. Ao lado disso, com a diminuição da taxa de importação, produtos variados, em qualidade e preço, começaram a ter franca entrada no Brasil, proporcionando maiores opções de compra aos brasileiros. É nesse momento, por exemplo, que a loja Daslu, da empresária Eliana Tranchesi, que assumiu os negócios ao lado de Lourdes Aranha em 1984 (após a morte de Lúcia Albuquerque), inicia as negociações com grifes internacionais, levando para São Paulo, ao decorrer dos anos 1990, uma série de marcas de luxo. De acordo com Erika Palomino, “difícil foi convencer essas marcas internacionais a entrar no Brasil, já que o país tinha um mercado ainda incipiente e a fama de mau pagador, além de enfrentar boa dose de ignorância da parte dos grandes conglomerados do Planeta Fashion (PALOMINO, 2002, p. 81). A Daslu foi inaugurada em fins dos anos 1958 pela mãe de Eliana Tranchesi, Lúcia Piva de Albuquerque, como decorrência de seu negócio de trazer do Rio de Janeiro para São Paulo peças de moda. Após suas viagens, costumava convidar as amigas próximas para sua casa no bairro de Vila Nova Conceição a fim de vender as roupas – história semelhante à da constituição de várias boutiques da época. Doava parte dos lucros a instituições de caridade. A Daslu, no entanto, é hoje considerada uma das lojas mais luxuosas do mundo. Na época de Lúcia Piva de Albuquerque, o Brasil ainda era fechado às importações, o que obrigava aqueles que desejassem luxo europeu a viajar para o exterior ou a contar com pessoas que o faziam e comercializavam ilegalmente as peças adquiridas. Com o crescimento do negócio, ela contratou as filhas das amigas para ajudar nas vendas, prática que se difunde, em especial nos anos 1970, como um modo aceito de moças da camada mais enriquecida da sociedade obter rendimentos extras e ocupar o tempo. Em 1977, Eliana Tranchesi, ainda com 21 anos, começa a se envolver nos negócios. Trabalhava como vendedora e, ao mesmo tempo, lançou uma marca própria: a Daslu. Enquanto isso, sua mãe, com o crescimento dos negócios, adquiria sucessivamente as casas vizinhas para comportar as peças em exibição e proporcionar o devido conforto às clientes. Ocupou, com o tempo, quase um quarteirão. Quando o Presidente Collor anunciou a diminuição da taxa de importação, Eliana Tranchesi planejou a importação de roupas de luxo ancorada na afirmação de certeza da existência de um mercado reprimido (THOMAS, 2008). A primeira coleção comprada foi de Claude Montana. Depois, Valentino e Moschino. Em meados dos anos 1990, Chanel, com venda de 70% da coleção apenas no primeiro dia de exibição: “Pedi às amigas para deixarem o que haviam comprado para que pudesse ter algo para mostrar no dia seguinte” (TRANCHESI apud THOMAS, 2008, p. 310). Depois, passou a comercializar também Gucci, Prada, Zegna 259

e Dolce & Gabbana, que montaram boutiques na loja. Em 2002, tinha 23 casas somando 13 mil metros quadrados. Em 2005, fechou a antiga Daslu e abriu a nova, na Vila Olímpia, com 17 mil metros quadrados e mantendo a prática de não ter provadores para as mulheres, que trocam suas roupas umas em frente às outras – como em um ambiente familiar, segundo Tranchesi. O sucesso da Daslu foi apenas abalado pela denúncia de sonegação fiscal, no mesmo ano de 2005. A Operação Narciso da Polícia Federal levou à prisão temporária de Eliana Tranchesi e de Celso de Lima, dono da empresa de importação relacionada à Daslu. As mercadorias, segundo a acusação, eram subfaturadas por empresas importadoras. A Daslu, autuada, ainda paga a dívida por suas infrações à Justiça Federal. No entanto, apesar da crise interna, mantém o negócio e abriu loja no Shopping Cidade Jardim, inaugurado em maio de 2008 no distrito do Morumbi (São Paulo), e destinado à venda de produtos de luxo. A loja pretende atingir um público menos aquinhoado, pois comercializa principalmente a marca Daslu, economicamente mais acessível. A Daslu ainda vive a crise instalada em 2005, período em que simultaneamente houve a denúncia e a empresa inaugurou nova loja, contraindo novas despesas.

De qualquer modo, a história da Daslu ajuda a compor o complexo cenário dos anos 1990: a um só tempo, período de crise e de expansão de uma nova época de consumo. O vice-presidente Itamar Franco assume a presidência após a saída de Fernando Collor e busca conduzir um governo neutro, sem grandes impactos ou inovações. É seu Ministro da Fazenda, empossado em maio de 1993, Fernando Henrique Cardoso, quem assumirá o “centro da cena” ao apresentar seu plano econômico para estabilização da moeda nacional e controle da inflação, em dezembro do mesmo ano. Fernando Henrique Cardoso cria a URV (Unidade Real de Valor), indexador que cria paridade com o dólar e estabelecerá a base da futura moeda: o Real, criada em meados de 1994. A sensação de estabilidade econômica, de controle da inflação e a paridade com o dólar promovem um incremento substancial no consumo. As pessoas podiam dividir em prestações suas compras sabendo o quanto iriam pagar em cada uma delas. Nesse período, marcado por uma maior integração nacional – ainda que polarizada em seu comando, principalmente em São Paulo, e crescentemente difusa em sua base de trabalho (ainda que com desigualdades flagrantes) – a produção e consumo de moda no Brasil avançam significativamente. Seus mecanismos de divulgação, igualmente, começam a se incrementar permitindo o planejamento e execução de medidas que contribuem para a organização do setor. Um dos passos nesse sentido foi o Phytoervas Fashion, do qual 260

Alexandre Herchcovitch participou enquanto convidado a apresentar uma coleção no primeiro evento, realizado em 1994.

Por intermédio de Romeu Moreira Leite, proprietário, à época, da agência Elite Models, Paulo Borges foi apresentado a Cristiana Arcangeli com o intuito de que ele (Paulo Borges) produzisse e dirigisse o concurso “Look of the Year”, evento internacional promovido pela agência e que contaria com o patrocínio da Phytoervas, empresa de cosméticos, – o que levaria à mudança do título do evento para Phytoervas Look. Segundo relato de Paulo Borges, o concurso foi bem sucedido:

Teve música clássica brasileira executada ao vivo por um quinteto de violoncelos, uma cantora lírica arrasou nas Bachianas de Villa-Lobos e um grupo indígena dançou um rito religioso especial. Todo o desfile foi feito com produção de artistas de wearable-art60 e de jovens estilistas absolutamente desconhecidos, com suas roupas “muito estranhas” – na visão do povo e no entendimento do momento – como Escola de Divinos e Marcelo Bonito, ainda um modelo que criava camisetas customizadas. O Romeu ficou feliz, Cristiana ficou feliz. E essa felicidade toda fez com que nos aproximássemos. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 950). Cristiana, ainda segundo Paulo Borges, interessou-se em saber quem eram os estilistas, e P. Borges relatou que se tratavam de talentos brasileiros à espera de visibilidade. E acrescentou afirmando que, caso houvesse patrocínio, ele realizaria um evento apenas de jovens. Daí surgiu o planejamento e execução do Phytoervas Fashion. Para o evento, inicialmente convidou Walter Rodrigues, estilista conhecido de Borges há anos e com quem já havia trabalhado em desfiles para H. Stern, Azaléia, dentre outros. O segundo convidado foi Alexandre Herchcovitch, a quem conheceu após o desfile de formatura na Faculdade Santa Marcelina:

O designer Fernando Pires iria fazer um desfile de botas masculinas numa boate gay, com as roupas desenvolvidas pelo “tal” jovem estilista que havia chocado as freiras da faculdade e chamado a atenção de toda a imprensa especializada. O pessoal havia me pedido para conseguir modelos para o desfile – ninguém conhecia o estilista, como conseguir um casting de modelos masculinos incríveis?... Um desfile de botas, numa boate gay, com um estilista desconhecido. Lá fui eu, fazer uma convocação geral para o tal happening fashion. Era um pequeno desafio, mas tudo aquilo me instigava. E foi naquela noite que fiquei frente a frente com aquele menino – que de cara me pareceu genial. Nunca mais nos separamos. Nasceu ali uma paixão profissional, uma admiração profunda. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 950). Paulo Borges afirma não ter conseguido contratar assessoria de imprensa, “pois todas julgavam o projeto uma loucura total”. A proposta consistia em três noites de desfiles

60 O termo, surgido nos Estados Unidos dos anos 1960, em função das transformações da época, designa a chamada Arte Vestível, peças de roupas confeccionadas ou transformadas para ser “arte”. 261

(um desfile por noite), num mesmo local (um galpão semi-abandonado), na segunda-feira após o carnaval de 1994. No sentido de angariar divulgação, Paulo Borges começa, em seus termos, a “mapear” pessoas e veículos dispostos a falar a respeito do assunto – cita Erika Palomino e Cristina Franco, esta última era apresentadora de matérias sobre moda no jornal Hoje da Rede Globo, de televisão. Graça Borges (produção executiva), Duda Molinos e Mauro Freire (responsáveis pelo conceito de beleza) também participaram do projeto. Alexandre Herchcovitch foi convidado há apenas 22 dias da realização do evento. Ele tinha que montar uma coleção e, segundo ele, não tinha estrutura para isso. A organização do evento lhe deu 800 reais para aquisição de tecidos e aviamentos, e para contratar uma costureira.

Sempre colecionei tecidos e nesse desfile eu usei todo o meu estoque, então todas as peças eram únicas. Tinha uma blusa com estampa xadrez defeituosa – na estamparia o tecido dobrou deixando partes não estampadas – que foi muito copiada mais tarde. (...) Era a primeira vez que eu podia contratar alguém como a Cláudia Liz e a Paula Mott. Na minha cabeça essas modelos eram impossíveis! No dia do desfile pedi que elas tirassem o sapato e passassem o dia todo assim, porque eu queria todas desfilando descalças e com os pés bem sujos... Na verdade, eu também não tinha dinheiro para fazer sapatos. No desfile tinha também uma maquiagem azul e, quando as meninas entravam na passarela, o maquiador Duda Molinos borrifava água na cara dela pra escorrer a maquiagem. Elas usavam cabelos de velha, uma coisa meio cebola, com uma redinha e chifres. Era uma coisa completamente diferente de qualquer desfile que alguém pudesse ter visto até então. O que estava acontecendo na moda era muito chato... As pessoas aplaudiram no meio, foi muito emocionante. (HERHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 955). No entanto, como salienta Paulo Borges, diferente do desfile de formatura que foi assistido por um pequeno número de pessoas que já trabalhavam com moda, o Phytoervas Fashion era um evento de maior porte e que conseguiu visibilidade, inclusive, da imprensa não-especializada. A coleção de Herchcovitch, mesmo questionada em sua usabilidade por tal imprensa, foi vendida em menos de um mês: “O nome Herchcovitch virou hype. Alexandre fez desfiles com Paulo Borges para a Valisère e a Rhodia e assinou algumas peças para a marca Ellus durante três coleções. Em outubro de 1994 abriu sua primeira loja” (BORGES, BIANCO, 2003, p. 955). Esse foi o ano da eleição, em primeiro turno, de Fernando Henrique Cardoso para Presidente do Brasil, cargo que ocuparia por dois mandatos61, em decorrência da credibilidade que conseguiu alcançar junto à população por conta do Plano Real, que consegue levar o índice da inflação acumulada de 1995 ao patamar de 14,5%. O período, portanto, foi marcado por otimismo, euforia e elevação nos índices de consumo do brasileiro,

61 No seu primeiro mandato, foi criada a emenda constitucional que permitia a reeleição nos cargos do Poder Executivo. 262

o que tinha reflexos diretos no consumo de produtos ligados à moda por diferentes camadas da população. Tratava-se de momento propício ao desenvolvimento de carreiras ligadas ao setor e à efetivação de negócios de vulto. Para isso, era necessário, inicialmente, conferir maior visibilidade à moda. É nesse contexto que as ações de Paulo Borges se inserem e podem ser compreendidos seus mecanismos, como o apelo ao espetacular e ao choque, e os resultados que conseguiu alcançar, tornando-o um nome-chave no desenvolvimento da moda no Brasil.

A segunda edição ocorreria no ano seguinte, num galpão da Rua Cardeal Arcoverde, denominado por Mauro Freire de Espaço Phabrica. Com projeto de arquitetura, decoração e mobiliário de Ângelo Bueno e criação de imagem de Giovanni Bianco, o espaço contaria com área para beleza, livraria, local de eventos, restaurante, loja, galeria para exposições fotográficas e de jovens designers (termo usado por P. Borges), lançamentos de livros, CDs, dentre outros. Convidou o brasileiro, e aqui desconhecido, Inácio Ribeiro, da marca internacional Clements Ribeiro, para apresentar sua coleção. Além dele, foram convidados Fause Haten, Jorge Kaufmann, Jeziel Morais, Reis Kopke e CoopaRoca (cooperativa de costureiras da favela da Rocinha). Nessa edição, Alexandre Herchcovitch já viria contar com o suporte que não teve na edição anterior. A tecelagem Santaconstancia desenvolveu uma estampa de caveira exclusiva para ele, Fernando Pires produziu os sapatos e Cristina Franco registrou cenas do desfile a serem exibidas na TV Globo. Na descrição de Paulo Borges:

Na passarela Márcia Pantera entra, pela primeira vez, vestida de homem, precedida por três modelos com mais de dois metros de altura, um rapaz enrolado numa cobra e uma mulher com os cabelos arrastando pelo chão. As modelos não usam maquiagem, os cabelos são presos num coque com uma piranha, como o próprio Alexandre usava na época. O casting superou o desfile. Cristina Franco comentaria mais tarde em um programa que Alexandre “exagerava no personagem”. “Nesse desfile a trilha alternava trechos da Bíblia com momentos muito grandes de silêncio, que constrangiam muito o público. Eu tive a preocupação de filmar a reação da platéia, só porque queria ver o que acontecia... As pessoas riam, achavam esquisito e torciam o nariz. Cochichavam o tempo inteiro”, comenta o estilista. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 955). Mas, ao mesmo tempo, como enfatiza Paulo Borges, ele apresentou peças que marcariam a sua trajetória, como a camiseta com estampa de Pombajira, que foi muito comercializada, e continuou construindo sua fama. Para Herchcovitch, o desfile era uma peça fundamental na construção de sua imagem. Ele investiu, desde cedo, no potencial cênico que os eventos permitiam, criando atmosferas que agiam no sentido de valorizar o produto

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exibido. Deste modo, os cuidados na escolha dos modelos, maquiagem, acessórios, cenário, iluminação e trilha sonora eram tão importantes como a roupa que se desejava apresentar e, nesse sentido, contribuíam para o espetáculo que Paulo Borges queria criar para atrair a atenção do público para o evento – o que o aproxima das ações de Livio Ragan com a Fenit. A terceira edição do Phytoervas, por sua vez, foi ainda maior, mantendo desfiles, como o de Walter Rodrigues, Alexandre Herchcovitch e da CoopaRoca, e incrementando a presença de personalidades nacionais de fama, a exemplo de Fernanda Torres, Marília Pêra e Marília Gabriela, que, inclusive, desfilaram. Nessa edição, realizada em 1995, Herchcovitch apresentou peças marcantes, a exemplo da noiva, com chifres na cabeça, com vestido tricotado por sua mãe (pesava 10kg) e que carregava uma placa escrito “noiva”. No entanto, antes do desfile de Herchcovitch, Jorge Kaufmann apresentou uma coleção com proposta oposta: modelos saudáveis, roupas coloridas, em conformidade com o clima de otimismo que se vivia no Brasil. O público foi à euforia. Apenas d. Regina e o stylist Paulo Martinez foram ao camarim cumprimentar Herchcovitch, que concluiu que o público não havia apreciado seu desfile. Essa foi a última apresentação de Herchcovitch no Phytoervas Fashion. Carlos Pazetto assumiu, então, a direção do primeiro desfile independente de Herchcovitch. Ocorreu num hospital desativado, o Humberto Primo, no centro financeiro de São Paulo. Se, no desfile anterior, havia forte referência aos anos 1950; no atual, Herchcovitch enfatizava ídolos decadentes, a exemplo dos Menudos, grupo musical composto por porto-riquenhos e que fez considerável sucesso no Brasil dos anos 1980. Segundo A. Herchcovitch, houve especial uso de elementos considerados cafonas, a exemplo de roupas de velhas, e que lhe renderam comentários favoráveis de crítica, a ponto de o desfile posterior reunir mais de 2.500 pessoas nas dependências da Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), locação escolhida para o evento. A inspiração foram os uniformes escolares e as roupas de ginástica. De acordo com Herchcovitch (BORGES, BIANCO, 2003, p. 956), a inspiração veio de uma pergunta básica: “O que ninguém colocaria numa passarela?” A resposta foi: “Abrigo de moletom”. Mais uma vez, ausência de maquiagem, referência à mãe e/ou a Rei Kawakubo, e na trilha sonora uma rádio sintonizada em tempo real. A inspiração, em conformidade coma característica da época, veio das ruas:

Enquanto montava essa coleção eu lembrava sempre de uma senhora que eu vi lavando a calçada. Ela devia ter acordado e posto uma saia, ficou frio e pôs um moletom por baixo... tinham muitos desses looks no meu desfile, muita sobreposição. Eu lembro que a Veja escreveu que era um desfile de trapos da 25 de Março – a pessoa que escreveu não deve ter entendido porra nenhuma. Já a Erika [Palomino] comentou que era um desfile niilista: “O 264

que esta roupa está fazendo na passarela?” Ela entendeu o que eu quis dizer. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, p. 956). Apesar do sucesso da terceira edição do Phytoervas, ainda conforme Borges, desentendimentos com Cristiana Arcangeli promoveram a separação entre ambos. O evento só ocorreria por mais três anos, sem Paulo Borges e sua equipe. Inicia-se, um novo projeto capitaneado por Paulo Borges: o MorumbiFashion Brasil, no ano de 1996.

Sentia que era o instante exato de dar a largada, o chute inicial. Com toda a experiência adquirida nas relações com o Phytoervas Fashion, sabia como e por onde deveria começar. Sempre tive uma relação muito forte com todos os setores da indústria, com empresários, estilistas, jornalistas, e todos os elos necessários para fechar o mecanismo vital de consolidação da moda brasileira. Preparei várias cópias com o projeto descritivo do evento, um histórico, seu organograma, cronograma, e uma relação com as possíveis grifes e estilistas que fariam parte dele. Enviei para empresas de diversos setores, desde o têxtil até o de confecções, passando pela indústria de cosméticos, bebidas, pelo setor financeiro, shopping centers, e até pela indústria automobilística Paralelamente tratei de registrar todo o projeto “Calendário Oficial da Moda Brasileira” como marca registrada. Não queria nem podia mais repetir experiências anteriores, e perder o controle daquilo que estava construindo. (BORGES, BIANCO, 2003, p. 999). Através de Angélica Armentano, diretora de atendimento de uma agência de publicidade, Borges entrou em contato com os representantes do Morumbi Shopping, cuja estratégia de marketing consistia em associar a marca do shopping à idéia de moda. Ainda em 1995, Paulo Borges consegue fechar um contrato de patrocínio que garantia toda a execução do projeto, com a ressalva de que o subtítulo do evento deveria ser “MorumbiFashion”. Em julho de 1996, realiza-se a primeira edição do “MorumbiFashion Brasil – Calendário Oficial da Moda”. E, no mesmo ano, tem-se a realização da Semana BarraShopping de Estilo, no Rio de Janeiro, projeto idealizado pela Dupla Assessoria, empresa especializada na produção de eventos de moda, e pertencente a Eloysa Simão e Giorgio Knapp (GERALDINI, 2008). Segundo Paulo Borges, as dificuldades foram inúmeras, pois envolvia reunir pessoas e empresas importantes num mesmo evento e em muito se falava das disputas, brigas e egos extremados que caracterizavam tais pessoas. Por isso, tomou a iniciativa de, após procurar cada um, obter as adesões por assinatura de contrato, através da qual firmava-se o compromisso oficial de participação no evento. Um elemento de estímulo adicional a tal iniciativa e à cooperação que encontrou, apesar das adversidades expostas, foi, sem dúvidas, o sucesso de Ocimar Versolato nos desfiles parisienses, cujas notícias começavam a chegar ao Brasil. No entanto, a maior dificuldade para Paulo Borges se transformou em sua maior façanha. O funcionamento da moda, pensada como indústria, envolve a fina articulação entre 265

diversos setores de produção, que, no Brasil, mantinham desenvolvimento à parte do restante da cadeia produtiva. Para além de estilistas, o setor do vestuário envolve uma gama de profissionais (e empresas) vinculadas à imprensa, publicidade, indústria têxtil, indústria química, de produção de aviamentos, calçadista, profissionais do segmento de confecção e de acabamento, empresas de cosméticos, distribuidores, modelos, estilistas, maquiadores, cabeleireiros, entre outros62. A proposta de um calendário oficial da moda significava a tentativa de criar mais efetivo espaço para o estabelecimento de relações e negócios entre os diversos segmentos atomizados, ao mesmo tempo em que se incrementava o potencial de visibilidade dos diferentes setores e profissionais devido à sua concentração em um único evento. Nesse sentido, os desfiles de moda funcionam como chamariz tanto às empresas envolvidas com moda, como aos consumidores – diferente do potencial de visibilidade de um estilista que apresenta isoladamente sua coleção em um evento independente, voltado apenas a restritos convidados. “Com a participação integral do setor”, afirmou Paulo Borges, “todos ganhariam, e o negócio da cadeia têxtil, como um todo seria igualmente beneficiado” (BORGES, BIANCO, 2003, p. 1000). A iniciativa girava em torno da intenção de profissionalização do setor, portanto. Sem dúvida, a base de construção do MorumbiFashion Brasil, em São Paulo, e da Semana BarraShopping de Estilo63, no Rio de Janeiro, eram os desfiles realizados na Europa, mas igualmente eram herdeiros das ações de precursores no Brasil, como Caio de Alcântara Machado e Livio Rangan. A primeira edição do MorumbiFashion ocorreu pouco após o desfile de Herchcovitch na FAAP. Ainda assim, ele apresentou coleção e se preocupou em construir uma imagem diferente. A principal inspiração foram os anos 1980, com uso de tecidos estampados de maiôs e jeans manchado. As modelos usavam cabelo estilo Moicano construído a partir da aplicação de penas degradées. A coleção apresentava muitas cores, em oposição ao recente desfile anterior.

Aí eu acho que ficou bem nítida essa minha característica: estar me negando a cada nova coleção, estar sempre mostrando uma coisa nova. Foi a partir daí

62 Feghali e Dwyer (2001) apresentam uma classificação dos setores que envolvem a moda, no que se refere a profissionais: 1) equipe da indústria têxtil e confecção (estilista, modelista, costureiros, profissionais de desenvolvimento de produto, executivo de marketing, técnico têxtil, engenheiro químico-têxtil, empresário); 2) equipe de comercialização (vendedor, gerente, fashion buyer, consultor de estilo, vitrinista, sacoleira); 3) equipe de design (designer na tecelagem, designer têxtil, designer gráfico); 4) equipe de produção de moda e de divulgação (modelos, beauty artist, agência de beleza, stylist, produtor de moda, figurinista, diretor de desfile, diretor artístico, scouter e produtor de casting, agente, coordenador de camarim, relações públicas, coordenador de promoções e eventos, coordenador executivo, DJ, assessor de imprensa, assessoria de imprensa oficial, jornalista de moda, fotógrafo de moda, camareira, passadeira, segurança). Por sua vez, o complexo têxtil engloba os seguintes segmentos: 1) produção de fibras; 2) fiação; 3) tecelagem; 4) malharia; 5) acabamento; 6) confecção. 63 Os dois shoppings centers, inclusive, pertenciam à mesma empresa, Renasce. E mesmo as decisões da diretoria do MorumbiShopping de São Paulo eram submetidas à direção da matriz, no Rio de Janeiro. 266

que eu parei de contar para a imprensa o que eu faria antes do desfile acontecer. Eu percebi que a surpresa era uma arma a meu favor. O choque podia ser um ponto positivo. Eu hoje tenho que estar sempre me negando, isso virou quase que uma norma para mim. Talvez na forma e na construção eu mantenha uma ligação entre as coleções, mas nas cores, nos volumes, nas personagens, tem que ser sempre o oposto, sempre uma coisa nova. É bom para me exercitar, é bom para quem vai comprar e para quem vai assistir. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 956). A coleção de inverno 1997 foi aplaudida de pé: Herchcovitch fazia sua primeira incursão na alfaiataria. Predominaram como cores do desfile o preto, o marinho, o rosa e o verde-flúor, em modelos que desfilaram sob luz negra e com cabelos fluorescentes usando longas franjas de canutilhos, lembrando o orixá Oxum, do candomblé. Esse foi o primeiro dos desfiles de Herchcovitch em que ele viria a esconder os rostos das modelos, como fez repetidas vezes nos eventos posteriores. Foi um mecanismo para melhorar o acabamento, a construção do traje, como ele próprio pontuou em entrevista a Paulo Borges. Nessa época, já vendia no exterior, na loja Patricia Fields de Nova York (desde 1996). A coleção posterior, no entanto, apresentaria a mistura entre alfaiataria e aeróbica, o que, segundo Herchcovitch, não teria agradado muito. Mas o estilista persistiria com as misturas. Era o verão 1998/1999. Casaco com lingerie, bordado de alta costura com látex, Herchcovitch apresentou uma coleção em que a sensualidade comparecia nas transparências e nas rendas e era contrabalançada pela agressividade, pelo gótico e pela referência aos anos 1980. Mas o sucesso maior da coleção foi um sapato-tênis, depois denominado sapatênis, que foi comercializado nas lojas Arezzo. Nesse mesmo ano, Alexandre Herchcovitch e Renato Kherlakian, da Zoomp, acordaram uma parceria. Herchcovitch conceitualizaria a coleção da Zoomp, e a Zoomp licenciaria sua linha de jeanswear e apoiaria sua marca. Foi neste ano de 1998 que Herchcovitch foi fotografado no caixão anunciando sua morte e a busca por um amadurecimento que lhe permitiria ingresso em mais amplo mercado. Inicia o processo investindo em jeans e camiseta, dupla de grande sucesso dos anos 1990, conforme já comentado. E o Brasil se tornou um grande exportador e consumidor de jeans. A marca Herchcovitch; jeans, segunda marca de Alexandre Herchcovitch – a primeira é a Herchcovitch; Alexandre – foi criada, portanto, em 1998. Hoje, atua com dois tipos de modelagem: a brasileira e a internacional. A brasileira tem cintura mais baixa e a calça é mais certa no corpo; a internacional, que agrada mais as paulistas, tem cintura mais alta e é um pouco mais folgada. No entanto, a marca Herchcovitch; jeans possui variados itens, para além das calças. Trata-se de um contraponto às coleções de prêt-à-porter, mais caras. No ano de 1998 o estilista também iniciou as apresentações de sua coleção em passarela internacional, a London Fashion Week. Seu projeto de internacionalização, que agora iniciava, estava 267

vinculado ao jeanswear, ao desfile em Londres e ao aumento do volume de encomendas por compradores de diferentes lugares do mundo. Na verdade, o processo já havia iniciado desde 1996.

Os anos 2000 e a internacionalização Uma cliente de Herchcovitch, Caroline Glidden Gannon, passou a residir em Nova York e constantemente indicava a Herchcovitch que diferentes pessoas haviam se interessado por suas peças. Incentivado pela cliente e amiga, fez um mostruário com 32 peças. Conseguiram vender para três lojas, dentre as quais a Patricia Fields, que compareceu ao desfile de Herchcovitch na FAAP (HERCHCOVITCH, 2007). Posteriormente, quando fazia o figurino da série Sex and the City, Patricia Fields escolheu uma camiseta de Herchcovitch, com estampa de Bambi, para vestir a personagem Carrie, de Sarah Jessica Parker.

Foi na Inglaterra que descobri a necessidade de sofisticar minha alfaiataria, porque os compradores de lá aprovavam as camisetas, os jeans e sempre pediam para ver as peças mais talhadas. No exterior, eles medem a qualidade técnica e a personalidade de um estilista pelos ternos, jaquetas, calças, roupas que revelam bom domínio no corte, execução, acabamento e adequação do tecido escolhido. (2007, p. 74). Depois vieram Paris e, mais recentemente, Nova York. Atualmente, como salienta o próprio Herchcovitch, suas roupas são comercializadas em lojas multimarcas que vão da Bergdorf Goodman, que iniciou encomenda em 2006 (com 180 peças) à Opening Ceremony, ambas em Nova York. O investimento, assegura, é alto, pois envolve os custos do desfile, que, segundo o estilista, giram em torno de US$160 mil (2007, p. 72). Os gastos envolvem desde a estrutura e montagem do showroom, com funcionamento de quase dois meses, até custos de confecção (até seu relato de 2007, 5% da produção das roupas se dava em países como Portugal e China). O ano de 2007 foi marcado por mais um passo de Alexandre Herchcovitch em seu projeto de internacionalização: a inauguração, em março, de uma loja própria no bairro de Daikanyama, em Tóquio. O Japão começou a ganhar destaque no cenário da moda com seu crescimento econômico, que permitiu aos japoneses um consumo intensivo de produtos, inclusive de luxo. No entanto, além disso, os japoneses, em especial jovens, começaram a ganhar destaque por conta de seu modo de compor as diferenças peças de roupas, em sobreposições tidas como ousadas, com grande mistura de cores, tecidos e 268

estampas64 e sem uma definição preponderante de estilo, a não ser aquilo que se tem denominado de hiper-individualização da moda. Nesses termos, trata-se de um mercado bastante receptivo a novidades. Esses teriam sido os fatores fundamentais à escolha de Herchcovitch por inaugurar loja em Tóquio. Inclusive, em dezembro do mesmo ano, Oscar Metsavaht, dono da marca carioca Osklen, igualmente inaugurava loja em Tóquio, destacando que não promoveria qualquer alteração das peças para adaptação local (a não ser o envio apenas de numeração equivalente a tamanhos menores de peças). Com projeto da Arthur Casas, a fachada da loja de Herchcovitch traz um dos grafismos em gilete que caracterizou a coleção de Herchcovitch na época, e a fachada é renovada em função das estampas de cada coleção. No entanto, voltando ao ano de 1998, este seria marcado ainda por uma transformação: a migração da loja-ateliê de Herchcovitch para a Rua Haddock Lobo, no Jardins, em São Paulo. Segundo Lilian Pacce (2002), aos 22 anos, no ano de seu desfile de formatura (1993), Herchcovitch saiu da casa dos pais, no bairro de Sumaré, para dividir uma casa-ateliê com o artista plástico e assessor de Herchcovitch até os dias atuais, Maurício Ianês. No ano seguinte, sua primeira loja foi aberta na Alamenda Franca, no Jardins, bairro de referência para o estilista desde a adolescência, época em que comprava revistas de moda para começar a conhecer o que faziam os estilistas. De acordo com Herchcovitch (2007), foi Ianês que o familiarizou com as artes plásticas e o incitou a ir além das meras preocupações com questões práticas de acabamento, execução e vendas, como afirmou o estilista, e a conceber a roupa como modo de expressão e, sendo assim, como uma espécie de suporte que lhe permitiria ir além da mera apresentação de panos. Para Herchcovitch, significava criar um discurso, com fundamentos, através das roupas; diferente de provocar mero espanto como reação de público. Trabalhando juntos desde 1993, Herchcovitch destaca a paixão comum aos dois pelo látex como material de base.

Como um artista que finalmente descobre uma nova matéria-prima para veicular sua expressão artística, a borracha líquida extraída das seringueiras da Amazônia me permite maleabilidade, ineditismo, silhuetas distintas. Era um passo à frente rumo ao vinil. Além da moda, minhas criações em látex ganharam reconhecimento no mundo das artes. Foi com um vestido em látex preto que participei da mostra Wild: Fashion Untamed, no Costume Institute, do Metropolitan Museum de Nova York. O mesmo modelo foi usado pela atriz Scarlett Johansson em matéria de capa da revista W. Há um exemplar na FIT (Fashion Institut of Technology) numa exposição chamada Weaponized Women. E mais dois vestidos também em látex estão na Global Trends, Local Traditions, no Centraal Museum de Utretch, na Holanda. Um

64 Xadrez, listras e bolas, por exemplo, podem figurar em um mesmo look. Inclusive, por conta de seu gosto já anunciado pelos trabalhos da estilista japonesa Rei Kawakubo, Herchcovitch pode ter se aproximado do estilo japonês a ponto de ter incorporado a mistura de estampas e tecidos em suas produções. 269

preto e outro bem colorido (o resultado final parece renda) que destacam desenhos de pássaros e flores. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 40). Maurício Ianês estudava artes plásticas na FAAP quando passou a dividir apartamento com Herchcovitch. O início da relação de trabalho se deu com ajudas que proporcionavam levar elementos das artes plásticas para as produções de Herchcovitch, a exemplo do uso do látex para misturar ao tecido das roupas.

No início era tudo muito informal, o ateliê funcionava no nosso próprio apartamento. A gente não tinha grana e eu fazia de tudo, de faxineiro a office-boy. Aos poucos a coisa foi crescendo e criando compartimentos, até que chegou a hora que alguém precisava ir ao banco pra gente... Hoje eu colaboro com pesquisas, vou atrás de referências históricas, dou palpite na criação conceitual da coleção, faço o styling dos desfiles, cuido do som e da iluminação da passarela, desenho os catálogos, enfim, sou responsável pela unicidade da linguagem em tudo que diz respeito à marca. E, além disso, desenho o segmento de jeanswear. (IANÊS apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 1062). Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada em 30 de novembro de 2007, Ianês é questionado se a moda seria arte, ao que responde: “Não, arte e moda são coisas diferentes, o que não impede que elas dialoguem e cruzem suas fronteiras. A moda não precisa se dizer arte para ser boa. Precisa apenas ser uma boa moda”. Em 2002, Maurício Ianês distanciou-se da marca, mantendo-se como assessor, e abriu o leque de ações e clientes ao participar do projeto Amni Hot Spot, do Calendário Oficial da Moda Brasileira, trabalhar para o estilista Walter Rodrigues e para as marcas Cori e Vision. Herchcovitch aponta que o contato com Ianês o levou a buscar um repertório mais amplo de idéias e matérias-primas, mas enfatiza: “sem, contudo, jamais cair na tentação ou pretensão de achar que moda é arte” (HERCHCOVITCH, 2007, p. 39). No entanto, o ano de 1998 traria, ainda, outra mudança significativa para a moda: a eleição de Paulo Skaf para presidente da ABIT, Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção. No mesmo sentido das ações de Paulo Borges com o projeto de Calendário Oficial da Moda Brasileira, e em fundamental afinidade e complemento a elas, Paulo Skaf, que assumiu efetivamente seu cargo em 1999 substituindo Luís Américo Medeiros (há mais de trinta anos no cargo), foi peça de grande importância na construção de unidade na cadeia produtiva:

O que acontecia na prática eram produtores de algodão vendo fiações, que são seus clientes, como inimigos. Fiações com problemas de relacionamento com os produtores de algodão. Fiações e tecelagens com dificuldades de relacionamento. As tecelagens com as confecções, sempre trocando acusações. A confecção com o varejo em desarmonia, enfim, era uma grande desunião, até por problemas individuais de algumas pessoas envolvidas neste cenário. (SKAF apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 1046). 270

A construção da unidade, contudo, teria que ir além e alcançar igualmente as empresas ligadas à promoção e design. Em outros termos, tratava-se de construir uma rede de relações que uniria os diferentes elos da cadeia, em suas específicas localizações do país. Do ponto de vista de Paulo Skaf, inclusive, a desunião acabava diminuindo as possibilidades de o setor influenciar decisões e, conseqüentemente, ações do governo que estimulassem seu desenvolvimento, pois, com os “elos quebrados”, não havia igualmente organização do setor de modo a se apresentar como grupo coeso perante o governo, pesando a balança de poder a seu favor, e, assim, apresentar suas demandas com maiores chances de atendimento. Deste modo, a primeira ação de Paulo Skaf na presidência da ABIT foi promover a união entre produção de algodão, fiação, tecelagem, malharia e confecção. A segunda estratégia foi criar metas comuns a todos e específicas a cada área de modo a modernizá-las. Além disso, afirmou Paulo Skaf em entrevista a Paulo Borges, criou-se um departamento para cuidar de questões relativas ao meio ambiente e um prêmio para valorizar e prestigiar os profissionais do setor, o ABIT Fashion Brasil, em parceria com a produtora OBL, dirigida por Tânia Otranto, Balia Lebeis e, mais uma vez, Paulo Borges. Com o setor melhor organizado, Skaf reuniu 32 representantes do setor em uma audiência com o então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Iniciava a tentativa de pressionar o governo a promover ações favoráveis ao desenvolvimento do setor para abastecimento do mercado interno e externo. De 1996 a 2001, houve investimentos na ordem de US$ 6 bilhões com vistas à modernização de parque fabril, tecnologia e treinamento (PALOMINO, 2002). A ação mais efetiva da ABIT é a criação, em 1997, da Agência de Promoção de Exportação e Investimentos (Apex-Brasil), ligada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que ajudará a impulsionar novas ações e a conferir visibilidade à constituição de grupos com interesses comuns como estratégia viável para benefício do setor como um todo. Os resultados obtidos por esses novos eixos de articulação impulsionarão a fundação, em 2003, da Associação Brasileira de Estilistas (Abest), por iniciativa dos estilistas Alexandre Herchcovitch, Amir Slama, Lino Villaventura, Serpui Marie e Walter Rodrigues. Atualmente presidida por Amir Slama, a Abest surgiu a partir das dificuldades que os estilistas enfrentavam, especialmente, para exportar produtos. O objetivo da Associação é, nas palavras de Herchcovitch (2007, p. 75), “obter maiores incentivos do governo brasileiro no quesito exportação”. As primeiras ações envolveram desfiles e showrooms para apresentar a moda brasileira em países estrangeiros. O primeiro evento aconteceu em Moscou, no ano de 2004 (ALEXANDRE..., 2007). A ele, seguiram-se os de Paris e Tóquio. Em seu primeiro ano de atividades, com cinco integrantes, a Abest exportou US$600 mil; no ano seguinte, com nove integrantes, exportou 271

US$3 milhões; em 2006, com 51 associados, US$12 milhões, com vendas em 38 países. Atualmente, a Abest conta com 50 integrantes que exportam para 48 países. A meta é, em 2010, efetivar transações comerciais com 90 países. A projeção para 2008 era de exportar US$13,4 milhões65, conforme dados divulgados no site oficial da Associação66. A Abest conta, atualmente, com o apoio da Apex-Brasil, do Ministério do Turismo e da Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal), na montagem de showrooms, promoção de desfiles e confecção de catálogos. Nesses termos, os objetivos da Abest, expostos no site oficial têm caráter mais amplo em relação ao que destacou Herchcovitch. De acordo com as informações apresentadas no site, trata-se de “fortalecer e promover a indústria de moda nacional focada nos pilares: qualidade, design e identidade”. Num segundo momento, destaca-se que também objetiva “desenvolver marcas de alcance internacional e garantir a autenticidade e criatividade das coleções, divulgando o estilo de vida brasileiro”; e terceiro, “contribuir também para o crescimento de todos os segmentos vinculados à moda do nacional”. São ações conjugadas, da ABIT, Apex e Abest, que têm envolvido as diferentes relações que compõem a configuração-moda, com conseqüências na produção, distribuição, divulgação e comercialização da moda dentro do Brasil e, assim, melhor estruturando as relações (leia-se, profissionalizando) cria-se a base para inserção mais competitiva no mercado internacional mudando a imagem do Brasil no exterior, associada à falta de profissionalismo (por exemplo, atraso na entrega de pedidos, entrega de produtos que não correspondem ao que foi contrato, dentre outros), o que criava dificuldades no estabelecimento de contratos.

Contudo, retornando ao ano de 1999, após firmada a parceria com a Zoomp, o grande desafio de Herchcovitch seria apresentar duas coleções distintas, independentes. Em passarela branca, de ladrilhos, Herchcovitch apresentou macaquinhos jeans com coturnos. Quanto ao desfile da marca principal, o estilista manteria as misturas – agora entre Japão, New Look de Dior, alfaiataria, candomblé, futurismo, Espanha – e a crítica o aclama. Segundo Herchcovitch (2007), ele havia percebido que a marca registrada de Dior estava igualmente presente nas roupas dos Orixás. De Dior, ele toma o New Look, ao qual adicionou

65 Os dados relativos ao ano de 2008 ainda não foram divulgados, contudo os resultados têm possibilidade de terem sido inferiores ao projetado devido à chamada crise mundial, cujos efeitos são especialmente sentidos, no caso brasileiro, quanto às exportações. E o setor de moda, vinculado à futilidade, convencionalmente sofre abalos nos primeiros momentos de crise, ainda que haja episódios (como a Segunda Guerra Mundial) em que a moda acabou sendo vivida como escape e, simultaneamente, como meio de estabelecimento de relações comerciais vantajosas, em especial com os países que sofreram menos com a guerra ou que conseguiram obter vantagens a partir dela. 66 www.abest.com.br. 272

um “toque oriental” e formas das roupas usadas na dança espanhola, sob uma trilha sonora que misturava pontos de umbanda com influências da música flamenca. O uso do látex, da crina de cavalo, de certas cores e recursos que fugiam àquilo que Dior elaborou em sua época foi, segundo o estilista, o modo que ele utilizou para atualizar Dior, para torná-lo conforme à mulher dos dias atuais. Já o interesse pelo candomblé parece se aproximar de uma atração pelo tema da religião de um modo geral. O certo é que referências ao candomblé aparecem em mais de uma coleção e, inclusive, em sua incursão no mundo da joalheria, a se iniciar no ano 2000, quando, além de outras peças que ganharam destaque – a exemplo do soco-inglês de ouro com incrustações de diamantes e um grande parafuso de ouro amarelo em semi-círculo formando uma pulseira, ele produziu fitas do Senhor do Bonfim em couro, vários tons, e usou fechaduras de ouro como arremate. As originais fitas do Senhor do Bonfim são feitas de tecido e devem ser amarradas no pulso com nós, no momento em que se fazem os pedidos. Estes apenas são realizados quando do rompimento espontâneo da fita. Já as fitas propostas por Alexandre Herchcovitch, como salienta Cosac (2007), apontam que os desejos nunca serão realizados, pois a fita de couro e ouro dificilmente se romperá: “o que é para ser efêmero torna-se eterno” (p. 94). No mesmo ano de 1999, Herchcovitch desenha um vestido exclusivo para a boneca Barbie, em parceria com a Mattel. Como ele próprio afirma, desde cedo apresentou facilidade para se “desdobrar” em vários assuntos: ao mesmo tempo em que gostava de costura, voluntariamente fez aula de caligrafia (por conta de seu gosto por fontes), de matemática (assunto que afirma adorar até os dias atuais, o que é perceptível pelo modo geométrico com que lida com as formas), de artes (na Escola Panamericana de Artes), de serigrafia e de fotografia (chegando a trabalhar como fotógrafo para o jornal da Tarde, em 1998, com 17 anos). Isso lhe franqueou, na vida adulta de dedicação à moda, a possibilidade de trabalhar para várias linhas dentro da marca Herchcovitch; Alexandre, feminino e masculino, como a Herchcovitch; Jeans (homem e mulher), a Judy Blame and Alexandre Herchcovitch (a AND é uma co-branding que teve início em 2004 para produção de camisetas e acessórios, criadas fundamentalmente em encontros virtuais entre Herchcovitch e Blame67, que mora em Londres) e a Herchcovitch Black. Mas, fundamentalmente, a versatilidade do estilista é percebida, primeiro, em seu trabalho paralelo para outras marcas, como a Ellus, a Zoomp e a Cori, que marcaram sua trajetória. Segundo, no desenvolvimento de produtos vinculados à aparência, mas que não são roupa, a exemplo das jóias para a Dryzun, roupas de cama para a Zelo, conjunto de louça e móveis para a Tok & Stok (sugerindo os motivos e as

67 Judy Blame, nos anos 1980, vestia Boy George na época da banda Culture Club e fazia editoriais para a revista I-D. 273

formas das peças), sandálias para a Melissa (que, hoje, são produto comercializado na loja Patricia Fields, sob assinatura do estilista) e mesmo band-aid com estampa sua. Por fim, Herchcovitch, como emblema do sucesso possível àquele que pleiteia uma qualificação professional em curso superior em moda, é diretor artístico do bacharelado em Design de Moda do Centro Universitário Senac-SP, é DJ uma noite por semana no Clube Glória e participa de curta-metragens (como a parceria com Zé do Caixão). Em relação ao seu cargo como diretor artístico no Senac-SP, pontua:

Minha função consiste em analisar o conteúdo programático das disciplinas, qualificar o desempenho do corpo docente e coordenar um programa de atualização para que o curso esteja sempre conectado com a realidade do mercado de moda. Um dos pontos fortes dessa empreitada é acompanhar os alunos em fase de conclusão de curso. São cerca de sete encontros com a turma do quarto ano, nos quais acompanho os primeiros passos da coleção de formatura, em horários individuais, para detectar deficiências e apontar caminhos de acordo com o desenvolvimento de cada um. Realizamos também pequenos fóruns, nos quais pessoas atuantes em vários segmentos da indústria da moda dão um panorama atual de suas áreas e falam sobre o perfil profissional exigido para um futuro contrato. Também trocamos experiências com professores e intelectuais que têm a moda como objeto de estudo. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 87/88). No entanto, o ano de 1999 marca ainda outra mudança significativa no contexto nacional: devido a crises financeiras internacionais na Ásia e na Rússia, o governo Fernando Henrique sela novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (BIRD) e Banco de Compensações Internacionais (BIS), num total de US$41,5 bilhões. Houve desvalorização da moeda brasileira, aumento da dívida interna e da taxa de juros e crise financeira. Na coleção posterior, em contraposição à coleção de inverno de 1999, Herchcovitch usa pétalas de flores e tons pálidos, com ênfase no salmão. Contudo, as transformações que Herchcovitch destacou, a partir da fotografia no caixão, não se restringiriam a seu trabalho e a crise financeira em que o país começava a mergulhar: marca, de fato, uma nova etapa no fazer moda no Brasil. Ou seja, é representativo do momento. Na busca por profissionalização na condução do MorumbiFashion, Paulo Borges convidou Denise Basso, Graça Cabral e Márcia Matsuno, que atuavam no departamento de marketing da Zoomp e estavam se preparando para abrir empresa de consultoria na mesma área, para se associarem a ele e organizarem o evento. Acabada a nona edição do MorumbiFashion, em julho de 2000, reuniram-se, ainda conforme Paulo Borges, para análise do processo, das relações e necessidades do evento. Cada membro da equipe assumiria função específica para coordenação das atividades: Paulo Borges, direção artística; Denise Basso, direção de Estratégia e Administração; Márcia 274

Matsuno e Graça Borges, direção de Planejamento e Produção; Graça Cabral, direção de Relações Corporativas e de Comunicação. Os planos da equipe de Paulo Borges não se coadunavam com os planos dos diretores do shopping, que desejavam a manutenção do tamanho do evento (talvez, e trata-se apenas de hipótese, por conta da crise brasileira). Aproveitando a proposta da Fundação Bienal de cessão do seu prédio para realização do evento, a rescisão com o shopping foi executada. Em janeiro de 2001, ocorria a primeira edição do São Paulo Fashion Week, contando com a empresa Direct TV como patrocinadora master. Com título inspirado nos títulos dos eventos de moda de outros lugares do mundo, em que consta no título o nome da cidade que sedia o evento, o São Paulo Fashion Week (SPFW) se torna o maior evento de moda da América Latina. Seguindo os passos do evento paulista e buscando rivalizar com ele, ocorreria a primeira edição do Fashion Rio, como decorrência da Semana BarraShopping de Estilo. Isso se deu em 2003 (ALEXANDRE..., 2007). No entanto, ainda em 2001, acontece o primeiro desfile de Herchcovitch em Paris. Apresentou uma coleção em que os tecidos utilizados, high-tech (hi-tech), mudavam a cor a depender da incidência de luz, criando variados efeitos cromáticos ao longo da passagem de cada modelo pela passarela, bastante em conformidade ao seu gosto por tecidos tecnológicos e apelo futurista. A essa época ele não apenas já havia desfilado em Londres (London Fashion Week), como já havia figurado em matérias de revistas como I-D, The Face, Vogue Itália e Collezione. Herchcovitch, no mesmo ano no Brasil, havia apresentado uma inovação em seu desfile: a coleção masculina agora figurava separadamente e, no caso dessa edição, Herchcovitch contou, como modelos, com crianças de 09 a 11 anos de idade, convocadas entre alunos de seu antigo colégio I.L.Peretz, mantido pela Associação Cultural Religiosa Brasileira Israelita, e onde estudou até a segunda série. Multiplicar a quantidade de desfiles significa igualmente multiplicar inspirações e estilos apresentados nas passarelas. Isso remete a uma complexidade maior no modo como somos obrigados a discutir a questão da assinatura pessoal do estilista (sua identidade criativa) e modos de interpretação que buscavam ver as criações como extensão fácil, imediata do criador. Para dar conta de tamanha diversidade, a “matriz identitária” (ou matrizes) se tornam consideravelmente mais abstratas, permitindo sua atualização em formas, comparativamente, diversificadas – perceptível na comparação entre marcas distintas e mesmo entre diferentes coleções de uma mesma marca, isto é, no espaço e no tempo. Tudo isso, inclusive, sem negar, ao mesmo tempo, o fio de continuidade entre as produções. Em entrevista à revista belga Dutch, de acordo com P. Borges, Herchcovitch definiu o seu estilo a partir da noção de mistura; segundo ele, atitude típica do brasileiro. Mas, mais do que isso, o define também o modo peculiar como sintetiza aquilo que toma para pôr

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em relação. Poderíamos acrescentar ainda que sua recorrência em tomar temas arbitrários, no sentido de não imediatamente remissíveis entre si (temas desarticulados à primeira vista) se torna traço marcante em seu trabalho. Ou seja, o trabalho de Herchcovitch não é reconhecível pela limitação a certo rol de temas, mas sim à sua abertura e ao modo como escolhe e lida com eles. O caráter de abstração desses marcadores de estilo lhe abre grande campo de criação sem que fira a fina necessidade de continuidade, nem a igual exigência de renovação. Devido ao sucesso internacional, o estilista quadriplicou os pontos-de-venda no exterior, rompeu o contrato com a Zoomp, desenhou a coleção de jóias anteriormente mencionada e lançou o livro HERCHCOVITCH; Alexandre, pela Editora Cosac & Naify.

Ainda em 2001, ocorre a primeira edição do Amni Hot Spot, cuja idealização foi também do grupo de Paulo Borges no sentido de incentivar novos talentos em moda. Tendo como principal patrocinador a Rhodia/Amni, o objetivo do evento, realizado ainda hoje, é, a partir de uma seleção prévia, formar um grupo de seis a nove novos estilistas e acompanhá-los ao longo de dois ou três anos, propiciando estrutura e suportes técnicos pré e pós-produção, do levantamento de custos à venda. Alguns nomes do primeiro grupo foram: Deoclys Bezerra, Érika Ikezili, Emilene Galende, Fábia Bercsek, Jefferson de Assis, Marcelo Bohrer, Samuel Cirnansck, Walério Araújo e Wilson Ranieri (BORGES, BIANCO, 2003). Cuidar de todos os elos significava incrementar, inclusive, os canais de visibilidade ao trabalho de novos criadores, permitindo a eles o estabelecimento de contatos, contratos, mas, acima de tudo, incentivo à construção de um trabalho diferenciado. E, para isso, a difusão de cursos técnicos e de nível superior a partir dos anos 1990 foi de grande importância, ao oferecer, do ponto de vista da criação de uma visão de moda como mercado/indústria, a profissionalização necessária. Os cursos de moda, conforme Herchcovitch (2007), seriam uma forma de evitar, em seus termos, armadilhas e falhas do autodidatismo. É interessante, no entanto, lembrar que, apesar do interesse em estudar moda como opção de curso universitário – como relatado aqui, caminho bastante convencional aos filhos de classe média da geração de Herchcovitch, em especial em família judaica – o estilista não finaliza efetivamente o curso na FASM por não haver sido aprovado em uma disciplina específica, talvez reflexo de sua frustração em sofrer as conseqüências de ser aluno em um curso pioneiro e, portanto, ainda em gestação. Ou, talvez, resquício da idéia convencional de que o criativo dispensa cuidado tão extremado com a formação daquilo que ele traz como dom e que já teria sido suficientemente burilado, naquilo que um curso de moda poderia efetivamente oferecer, ao decorrer de seu percurso. Isso, no entanto, não o impede de atuar no Senac-SP, na condição de diretor artístico, 276

ajudando a conciliar o perfil acadêmico e técnico do curso; talvez, inclusive, o tenha estimulado. Em 2002, o São Paulo Fashion Week, segundo Paulo Borges, voltou a crescer, “fez novas mudanças estéticas previstas na sua nova estrutura, realizou exposições, cada vez mais voltadas para a discussão da estética e a identidade do que seria a ‘tal’ Moda Brasileira” (BORGES, BIANCO, 2003, p. 1002). Em termos mais precisos, tais debates comparecem como conseqüência da nova voga do tema das identidades na definição da relação global-local (ou glocal), em especial disseminada para além das discussões acadêmicas após o episódio dos ataques terroristas do grupo fundamentalista islâmico Al-Kaeda, sob a liderança de Osama Bin Laden, na data de 11 de setembro de 2001, quando questões político-econômicas se manifestaram igualmente a partir de contraposições religioso-culturais e provocaram grande interesse e curiosidade em relação aos países não-ocidentalizados e àqueles na periferia no capitalismo, no que se refere, especialmente, aos seus costumes. Ao lado disso, o incremento no valor simbólico, e correspondente valor de troca, de bens simbólicos vinculados à criatividade, em especial a partir da criação do termo indústrias da criatividade pelo Governo Britânico em fins dos anos 1990 e das pesquisas realizadas no sentido de apontar sua participação no PIB mundial, promove paulatinamente o interesse governamental em tratar a questão cultural do ponto de vista do desenvolvimento, o que implica a criação de políticas de incentivo à maior profissionalização do setor. No caso britânico, criou-se um Ministério para cuidar das questões relativas à mencionada “indústria”, exemplo seguido por diferentes países. Nesses termos, a identidade parecia se tornar a chave para mais ampla aceitação do produto brasileiro no mercado internacional. No entanto, o grande problema a ser discutido é: Como, então, evitar produções marcadas pelo exótico ou demasiado “bairristas”, a ponto de serem usadas apenas dentro do país? O tema da identidade é movediço, facilmente poderia se transformar numa armadilha às ambições de ampliação do espectro de atuação da configuração-moda brasileira no cenário mundial.

No Brasil, quanto à produção vestimentar, o nacionalismo esteve, por muito tempo restrito basicamente à maior utilização dos tecidos de fabricação nacional. Os modelos foram por muito tempo importados – o bom gosto, pois, definido a partir de países estrangeiros (em especial, a França), mesmo no período mais nacionalista de Dener. Neste sentido, elementos de localidade eram características remetidas às camadas menos favorecidas da população – as chamadas produções populares. A falta de recursos (econômicos) para aquisição das peças, bem como uma relativa inadequação do gosto estrangeiro às necessidades, corpos e gostos locais já enraizados contribuíram para a continuidade de uma produção autônoma em 277

camadas menos favorecidas economicamente, à margem da produção de moda dos circuitos de reconhecimento, mesmo que em diálogo (de poder) com ela. Ainda que as discussões a respeito do ser brasileiro tenham iniciado no século XIX – por conta das especificidades de uma colônia desejosa de efetivar sua independência, inclusive cultural –, a voga das identidades (ou identificações) como pauta de problematizações teóricas está atrelada às reflexões sobre globalização/mundialização. Enquanto pesquisadores passam a afirmar o caráter original e criativo do hibridismo, desvio em relação a uma idéia de pureza européia; o pouco democrático mercado mundial começa paulatinamente, nos anos 1970 e 1980, a abrir estreitos espaços à valorização do diferente. O receio de uma possível homogeneização cultural futura, encontrável nos estudos iniciais sobre globalização/mundialização e a percepção das trocas já efetivadas como embebidas em relações de poder, sublinharam desejos de resistência e busca do outro. No que se refere à moda, a necessidade de renovação a cada estação já está nela contida, pedindo assim a constante busca do diferente. As outras culturas são tomadas como fontes para a produção de novidades. Ainda que haja centros de referência da fashion – cidades como Paris, Milão, Londres e Nova York –, é perceptível o aumento da quantidade de nomes advindos de outros lugares do mundo, como do Japão e, de modo bastante incipiente, do Brasil. As marcas nacionais começam a trabalhar com o intuito do reconhecimento internacional, a partir do incremento de exportações e abertura de lojas e franquias em diferentes pontos do mundo, bem como com a fundação da Abest, em 2003, para impulsionar o processo – mesmo ano da posse do novo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Alexandre Herchcovitch, Carlos Miele (M. Officer), Amir Slama (Rosa Chá) e Oscar Metsavaht (Osklen) são apenas alguns exemplos de estilistas/marcas que têm conquistado inserção e reconhecimento internacional. Um dos carros-chefe da internacionalização é a chamada moda praia. A Rosa Chá, por exemplo, que exportou, em 1997, 686 peças; em 2003, exportou 45.885 e, em 2005, exportou cerca de 104.500 de suas 550 mil peças produzidas. A expectativa é exportar 23% de sua produção anual. Segundo Amir Slama, dono e criador de peças da Rosa Chá, “hoje o Brasil não exporta só maiô e biquíni, mas o jeito de se exibir no verão brasileiro. É esse comportamento que está despertando a atenção do mundo” (BRESSER, 2004, p. 116), idéia reforçada quando observamos matérias, como a de 07 de maio de 2004, exposto em site de moda, sob o título “H&M segue a onda da Selfridges e aposta 100% em brasilidade” e cuja conclusão do referido artigo foi: “Pois é. Não só a Inglaterra parou com a Selfridges e seu Brasil 40 Graus. A Europa cismou mesmo com o Brasil” – leia-se: com a, para nós, bastante complexa idéia de brasilidade, ao que parece, entendida como ligada à vivacidade nas formas (sensuais) e nas 278

cores (intensas e em profusão), como pode ser observado na matéria de Inês Figueiró, para a Gazeta Mercantil, no que se refere às possibilidades de acordos comerciais entre o Brasil e a China:

[Segundo Ênio Klein, consultor da Associação Brasileira da Indústria de Calçados (Abicalçados),] o Brasil precisa apostar no design de seus sapatos, para suprir a demanda da classe média chinesa que não pára de crescer e quer consumir. “O nicho brasileiro é o calçado de grife, ancorado num design brasileiro, numa cara brasileira”, explica. (...) Marcelo German, diretor de conceito e marketing do Studio Scala, dono da grife Morenatom, afirma que, no caso de sua coleção, a “cara do Brasil” é representada por signos que remetem à praia, Amazônia, cultura africana, indígena e sensualidade. Uma das criações, por exemplo, faz alusão aos desenhos das calçadas de Copacabana. “Essa é a inspiração brasileira. Alegre, divertida, colorida, que usa diversos materiais”, diz. Com 120 pontos de venda em diferentes partes do mundo, a grife Morenatom ainda não chegou à China. (2004, p. 13). A diversidade brasileira e a percepção da existência de um mercado interno, e externo, pouco aproveitado acabou levando a um interessante panorama. A organização da produção de moda passou a estar vinculada a identidades regionais: a moda paulista, a carioca, mineira, a cearense, a baiana, e assim por diante. O desenvolvimento da indústria nacional, e sua relativa dispersão nas últimas décadas, possibilitou a que cada região buscasse constituir nichos próprios de criação de moda, buscando rivalizar com São Paulo e Rio de Janeiro, ainda em posições privilegiadas quando se compara ao restante do Brasil. Cada região passou a assumir as características que, supostamente, seriam específicas e, ao mesmo tempo, passíveis de uso no Brasil (ou adaptados a um pretenso gosto médio), afinal seriam diferentes modos de expressão da (diversificada) cultura brasileira. Uma compreensão desse processo pode ser feita a partir da idéia de concorrência. A identidade seria uma espécie de recurso, liame, que amarraria as propostas, nódulos heterogêneos de uma rede, e facilitaria sua visibilidade na rede mais abrangente Brasil. Assim, por exemplo, o Ceará comparece com tramas em diversos materiais, como o tricô e fibras sintéticas remetendo ao artesanato local. Cada Estado acaba por apresentar seu evento de moda, e este se torna o espaço de divulgação, por excelência, das produções. As articulações entre esses nódulos, por sua vez, passam por uma segunda organização. Para além da questão, digamos, interestadual, esses pretensos “diferentes modos de apresentação da cultura brasileira” são rearticulados a partir dos dois pólos de concentração da criação e produção de moda, facilmente distinguíveis entre si em suas características e não menos concorrentes: São Paulo (com o São Paulo Fashion Week) e o Rio de Janeiro (com o Fashion Rio). Criou-se, ou melhor, recriou-se a idéia dos “Dois Brasis”. São Paulo, com desfiles de caráter urbano, cosmopolita, congregando em especial 279

marcas paulistas e mineiras; Rio de Janeiro, o Brasil praieiro, com desfiles ligados à leveza, ao branco, ou ao colorido, à pouca roupa, congregando, portanto, marcas identificadas com o artesanal e litorâneo – aí comparecendo cariocas, cearenses e, de forma bastante tímida, a Bahia. O Brasil amazônico surge de forma difusa, ainda assim marcante (como inspiração), e o sertanejo, pouco existe, mas comparece pontualmente, como na coleção para o verão de 2007 de Ronaldo Fraga, inspirado em seu conterrâneo Guimarães Rosa.

A despeito de qualquer consideração a respeito do equívoco de confundir fronteiras geopolíticas com culturais, a organização da produção brasileira em dois principais pólos, ainda que deixando em plano secundário tantos outros Brasis, parece significar o reconhecimento das ligações e, pois, a fragilidade das fronteiras interestaduais, bem como evidencia relações de poder historicamente estabelecidas na busca por hegemonia. São Paulo com uma moda brasileira de metrópole, usável em qualquer lugar do mundo, e o Rio, com uma idéia de moda de feições nacionais (próxima à idéia divulgada do Brasil no exterior e que há bastante tempo tem o Rio como grande representante), e, por isso, com possibilidade de inserção internacional, como a proposta paulista, mas pelo motivo de se apresentar como expressão do nacional, ou seja, a partir da idéia de diferença, especificidade que o atrelamento à identidade lhe conferiria. Secundarizando-se os exageros das tipologias, e os desviantes que, obviamente, não conseguem abarcar, a não ser pelo confronto com os casos específicos, os finos cruzamentos entre os “dois Brasis” da moda começam também a ser postos em uso. Os liames: identidade e tecnologia. Assim, as evidentes diferenças entre os dois eventos de moda começam a ter suas fronteiras borradas a partir do momento em que observamos no discurso do principal idealizador e organizador do São Paulo Fashion Week, Paulo Borges, a afirmação da necessidade de construir uma “moda brasileira” usável em diferentes pontos do mundo, o que justifica a África ter comparecido como tema do evento paulista de divulgação da coleção Verão 2006-2007, quando Herchcovitch apresenta coleção em que articula o africano ao punk. Além disso, o mesmo Paulo Borges atua como diretor responsável pela trimestral revista ffwMAG. Revistas de divulgação de moda, a exemplo da Vogue e da edição especial de Caras voltada aos dois mencionados eventos, começam a prescindir da antes usada divisão ao interior das respectivas publicações entre peças apresentadas em São Paulo e aquelas divulgadas no Rio de Janeiro. Evidências de mudanças em processo. Mesmo o calendário dos dois eventos, que antes se sobrepunham impedindo que uma pessoa pudesse assistir os dois eventos, agora assume novo caráter. Na impossibilidade de unificação plena, que demandaria a escolha de uma das cidades como sede do evento ou um complexo e 280

custoso esquema de revezamento, os dois eventos foram mantidos, mas seus calendários não mais se sobrepõem: passaram a ser seqüenciais, como se um fosse, na verdade, a continuação do outro. A divisão de características das produções, já construída pelas disputas e desejos anteriores de diferenciação, transformou-se em justificativa plausível à manutenção de ambos, e numa forma de organização do mega-evento brasileiro. Deste modo, mantém-se o movimento centrípeto que canaliza as produções regionais, filtradas nos diferentes eventos estaduais, para os dois pólos principais da moda brasileira, que, por seu turno, constituem-se no canal para visibilidade de tais produções no conjunto do país, ao mesmo tempo em que se colocam como etapa fundamental para inserção internacional (movimento centrífugo).

Quanto a Herchcovitch, impactado pelas reminiscências que envolveram a elaboração do seu livro em 2001, utilizou uma referência de seu segundo vestido na coleção de 2002, o peso nos caimentos, mas agora com o uso de correntes e que já foi aqui comentado. É o primeiro ano em que é patrocinado por uma empresa não vinculada à moda: a Motorola. Tempos após, a parceria levará à criação do Motovitch.

No início de 2002 percebi que a minha roupa ganhava mais força quando era apresentada na própria loja. Por isso tomei a decisão de diminuir a distribuição para multimarcas e investir em lojas. Além das duas que já tinha em São Paulo [na Haddock Lobo e no Morumbi Shopping], abri uma em Brasília [no Park Shopping] e outra em Porto Alegre [no Iguatemi]. A partir daí passei a pensar na marca como grande business. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 958). O desfile posterior, de verão 2002/2003, refletia, segundo Paulo Borges, a concepção do novo “criador-empresário” ao apresentar peças de fácil entendimento pelo grande público: “Eu passei uma mensagem muito forte conceitualmente, de otimismo, alegria, em resposta aos atentados de 11 de setembro. Foi a coleção de maior sucesso até então. No atacado, vendi 50% a mais do que a coleção anterior. Fora do Brasil, aumentei em 20% meus pontos-de-venda” (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 959). Com uso freqüente de patchwork, a coleção trouxe como principais referências o surfwear, a praia, Ursinhos Carinhosos e Meu Pequeno Pônei. No entanto, destaquem-se as referências à ciranda e ao regionalismo brasileiro. Herchcovitch, portanto, busca inserção no movimento de tomar a identidade como recurso para alavancar a moda produzida por brasileiros em contexto internacional. A partir de sua característica confessa da mistura de elementos, Herchcovitch começa então a experimentar de modo mais sistemático o uso de referências nacionais como fator de destaque. De fato, os atentados de 11 de setembro abalaram o vertiginoso comércio de moda da passagem para os anos 2000; no entanto, o aumento das vendas não tardou a recomeçar em diferentes partes do mundo. No Brasil, a eleição do presidente Lula, empossado 281

em 2003, deu-se em contexto de balança comercial superavitária, mas de grande descontentamento quanto às questões sociais. O período Lula será marcado, em seu primeiro mandato, pelo desenvolvimento industrial e pela balança comercial positiva, com considerável incremento das exportações por conta de alianças internacionais. Em 2004, no acumulado do ano, as exportações e o saldo comercial chegaram a recordes históricos, em especial devido ao agronegócio. Ancorado no rápido crescimento econômico chinês, com quem mantém negócios de exportação de soja, o Brasil conseguiu atingir, em 2004, o Produto Interno Bruto (PIB), soma de bens e serviços produzidos pelo país, de 4,9% (em 2005, o PIB registrou crescimento da economia num percentual de 2,3%, e, em 2006, de 3,7%, após a revisão). Os índices de crescimento do Brasil, ainda que abaixo de um grupo de países que obtiveram melhores resultados, mesmo na América Latina, fez com que o Brasil fosse incluído no Bric, grupo formado pela China, Índia, Rússia e Brasil, promessas de desenvolvimento recorde para as próximas décadas. Ainda que tímido, pois potencialmente o país apresenta condições de resultados melhores, o crescimento do Brasil promoveu uma melhoria nas condições de vida, em especial da classe média, fazendo, inclusive, com que, em 2007, o número de milionários no Brasil crescesse em 19,1%, segundo dados do 12o Relatório Anual sobre Riqueza Mundial, realizado pela consultoria Capgemini e pelo banco americano Merryll Lynch. Ainda que seja um país marcado por desigualdades (e, portanto, por grande potencial de crescimento ainda inexplorado), a conseqüência inicial para a moda é o incremento do consumo no país, inclusive de produtos mais caros. Além disso, com o aumento das exportações e com a assunção pelo país da noção de indústrias criativas, com a tentativa de construir pesquisas que demonstrem o PIB brasileiro relacionado ao setor (do qual a moda faria parte), abrem-se oportunidades de pressão para a diminuição da burocracia nas transações de exportação e para um investimento maciço na produção de qualidade voltada ao comércio interno. A expectativa é que o centro de consumo deixe de ser os Estados Unidos e compareça pulverizado nos chamados “países emergentes”. Segundo Antoine van Agtmael, “em dez anos haverá 1 bilhão de novos consumidores nos países emergentes e, em 25 anos, esses mercados já estarão maiores que os desenvolvidos” (2008, p. 44). Trata-se, contudo, apenas de uma estimativa.

No verão de 2003-2004, o tema de base da coleção de Herchcovitch foram as festas juninas, ainda na esteira das discussões sobre identidade. Em cenário completamente branco e ao som das cantigas de Villa-Lobos, as modelos desfilaram por entre postes com bandeirolas amarradas. 282

Proponho-me a criar objetos de desejo para uma quantidade cada vez maior de clientes, independentemente da região onde morem. E subverter algumas convenções também, por que não? Atraí-los com uma moda que reflita a maneira como eles se vêem naquele momento. Esse raciocínio nos conduz a outra questão: como trabalhar com elementos brasileiros sem cair no folclórico e no caricatural. Não tenho referências óbvias também não me submeto à colonização das tendências internacionais. Quando decido fazer um verão 2003 inspirado em nossas festas juninas – com direito a cenário montado com bandeirolas, lenços entre decotes e nos pescoços, mistura de estampa e cores –, carrego um senso de brasilidade bem dosado. Modestamente, sintetizei todo o conceito de Aldeia Global, proposto por Marshal Mc Luhan nos anos 70, que profetiza um mundo interligado em rede, porém interessado em divulgar e consumir suas culturas regionais. Em síntese, minha meta é fazer um casamento perfeito de uma cultura 100% brasileira com uma silhueta que encante clientes do Brasil, Estados Unidos, Japão, Alemanha, China, Inglaterra e Canadá. E, acima de tudo, estabelecer parâmetros bem rigorosos no quesito matéria-prima. (HERCHCOVITCH, 2007, p.72). Um exemplo interessante está na coleção de 2004, em que Herchcovitch promoveu uma síntese entre Hello Kitty e Carmem Miranda. A roupa emblemática da coleção foi o vestido de látex preto com camadas de babados na parte inferior. Além disso, a modelo usava um adorno de cabeça com frutas em veludo preto e orelhas de gato. Esse foi o modelo exposto no Metropolitan e no FIT, em Nova York. Nesse sentido, apesar de haver a referência a Carmem Miranda no adorno, mas, principalmente, na riqueza de babados que comparecia nas roupas, há uma ruptura fundamental que afasta a produção de Herchcovitch de uma relação mais estreita como mera repetição da indumentária da cantora: a ausência de cor e, no que toca Carmem Miranda, de uma profusão de cores (nessa específica peça). A Carmem Miranda apresentada por Herchcovitch tem caráter fetichista, apesar da suposta delicadeza dos babados e do fino laço que emoldura a cintura da modelo. Além do preto, a cor que predomina em outras peças é o amarelo, quebrado, normalmente, apenas em pequenos detalhes, como em estampas de pequenas Hello Kitties. E a referência adicional é o flamenco, que comparece no corte de algumas peças e mesmo nos recorrentes babados. Na coleção masculina, a inspiração principal foi o universo da personagem do ator brasileiro José Mojica Marins, o Zé do Caixão. As camisetas apresentavam estampas com os cartazes do filme. No entanto, ao observar peças publicitárias da coleção, é possível perceber, mais uma vez, a referência religiosa, e seu questionamento, na figura do modelo Rafael Argenta, próximo à imagem de Cristo divulgada pelo catolicismo, com sua barba e cabelo comprido repartido no centro da cabeça. A ruptura está no látex preto como matéria da camisa, no olhar e no cenário noturno com presença de coruja e da imensa lua cheia por trás de coqueiros, insinuando o vampiresco/demoníaco, outra referência também ao universo de Zé do Caixão. Além disso, a

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referência a piratas se faz perceptível. Em 2006, Herchcovitch é convidado para participar e criar o figurino de um longa-metragem de José Mojica Marins, intitulado Encarnação do Demônio. Ainda no ano de 2004, ocorre o primeiro evento internacional em função da criação da Abest em 2003: um desfile em Moscou, Rússia – um dos países em franco desenvolvimento e que compõe o Bric. Na coleção de verão 2004-2005, Herchcovitch usa as bonecas russas, matrioskas, como referência. De cores quentes, os modelos soltos, em forma trapézio, ficaram marcados pela mistura de estampas e tecidos, outro traço característico de Herchcovitch, desfilados em meio a um jardim de flores naturais que estavam meticulosamente ordenadas ao longo da passarela. As estampas de tapetes orientais misturadas ao floral se confundiam com o cenário. No desfile masculino, por sua vez, a referência foi a Noite dos Mortos, do México. Combinações de padrões geométricos distintos, listras e losangos, referência a banditismo e desarmonia foram marcas da coleção. Para o Inverno de 2005, a inspiração foi o Romanticismo, presente no uso de laçarotes amarrados ao pescoço e aos adornos, a exemplo de colares antigos e do uso de flores naturais como pingentes dos colares. Flores e pássaros de borracha foram usados na estruturação de vestidos que remetiam a uma espécie de rococó brasileiro, enquanto os chapéus cônicos aludiam ao personagem infantil Pinóquio. Na coleção masculina, o oposto: a referência foi o mundo do boxe, ainda que o esporte tenha surgido na Inglaterra do século XIX, com suas proteções para mão e hematomas nos olhos. Macacões jeans, calças de metalassê cintilantes, chapéus- panamá e lenços amarrados ao pescoço ajudavam a compor os looks. No ano de 2005 ainda, a linha Herchcovitch; Jeans passa a contar com desfile autônomo para o consumidor final. O Verão 2005-2006 trouxe, por sua vez, o psicodélico e misturas de estampas florais e de tecidos, ressaltando a complexa elaboração de corte e costura; enquanto o desfile masculino enfatizou os anos 1960/1970 e as roupas dos mecânicos e caminhoneiros, com uso de bandanas e macacões. No Inverno de 2006, a inspiração foi Leonardo da Vinci e a indumentária renascentista. As cores utilizadas foram, por excelência, estampados de verde e marrom, com detalhes em vermelho, que compareciam em vestidos e pelerines. Nesse mesmo ano de 2006, devido aos índices favoráveis de crescimento e às políticas sociais desenvolvidas, o Presidente Lula é reeleito, assumindo, portanto, seu segundo mandato. Herchcovitch cria os uniformes para o McDonald’s e faz um desfile na convenção mundial da marca em Orlando, Estados Unidos.

Em sua coleção Primavera-Verão 2006-2007, Herchcovitch se volta, mais uma vez à geometria e mantém a alfaiataria, cada vez mais apurada. Do mesmo modo, o uso de

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ajudando a conciliar o perfil acadêmico e técnico do curso; talvez, inclusive, o tenha estimulado. Em 2002, o São Paulo Fashion Week, segundo Paulo Borges, voltou a crescer, “fez novas mudanças estéticas previstas na sua nova estrutura, realizou exposições, cada vez mais voltadas para a discussão da estética e a identidade do que seria a ‘tal’ Moda Brasileira” (BORGES, BIANCO, 2003, p. 1002). Em termos mais precisos, tais debates comparecem como conseqüência da nova voga do tema das identidades na definição da relação global-local (ou glocal), em especial disseminada para além das discussões acadêmicas após o episódio dos ataques terroristas do grupo fundamentalista islâmico Al-Kaeda, sob a liderança de Osama Bin Laden, na data de 11 de setembro de 2001, quando questões político-econômicas se manifestaram igualmente a partir de contraposições religioso-culturais e provocaram grande interesse e curiosidade em relação aos países não-ocidentalizados e àqueles na periferia no capitalismo, no que se refere, especialmente, aos seus costumes. Ao lado disso, o incremento no valor simbólico, e correspondente valor de troca, de bens simbólicos vinculados à criatividade, em especial a partir da criação do termo indústrias da criatividade pelo Governo Britânico em fins dos anos 1990 e das pesquisas realizadas no sentido de apontar sua participação no PIB mundial, promove paulatinamente o interesse governamental em tratar a questão cultural do ponto de vista do desenvolvimento, o que implica a criação de políticas de incentivo à maior profissionalização do setor. No caso britânico, criou-se um Ministério para cuidar das questões relativas à mencionada “indústria”, exemplo seguido por diferentes países. Nesses termos, a identidade parecia se tornar a chave para mais ampla aceitação do produto brasileiro no mercado internacional. No entanto, o grande problema a ser discutido é: Como, então, evitar produções marcadas pelo exótico ou demasiado “bairristas”, a ponto de serem usadas apenas dentro do país? O tema da identidade é movediço, facilmente poderia se transformar numa armadilha às ambições de ampliação do espectro de atuação da configuração-moda brasileira no cenário mundial.

No Brasil, quanto à produção vestimentar, o nacionalismo esteve, por muito tempo restrito basicamente à maior utilização dos tecidos de fabricação nacional. Os modelos foram por muito tempo importados – o bom gosto, pois, definido a partir de países estrangeiros (em especial, a França), mesmo no período mais nacionalista de Dener. Neste sentido, elementos de localidade eram características remetidas às camadas menos favorecidas da população – as chamadas produções populares. A falta de recursos (econômicos) para aquisição das peças, bem como uma relativa inadequação do gosto estrangeiro às necessidades, corpos e gostos locais já enraizados contribuíram para a continuidade de uma produção autônoma em 277

camadas menos favorecidas economicamente, à margem da produção de moda dos circuitos de reconhecimento, mesmo que em diálogo (de poder) com ela. Ainda que as discussões a respeito do ser brasileiro tenham iniciado no século XIX – por conta das especificidades de uma colônia desejosa de efetivar sua independência, inclusive cultural –, a voga das identidades (ou identificações) como pauta de problematizações teóricas está atrelada às reflexões sobre globalização/mundialização. Enquanto pesquisadores passam a afirmar o caráter original e criativo do hibridismo, desvio em relação a uma idéia de pureza européia; o pouco democrático mercado mundial começa paulatinamente, nos anos 1970 e 1980, a abrir estreitos espaços à valorização do diferente. O receio de uma possível homogeneização cultural futura, encontrável nos estudos iniciais sobre globalização/mundialização e a percepção das trocas já efetivadas como embebidas em relações de poder, sublinharam desejos de resistência e busca do outro. No que se refere à moda, a necessidade de renovação a cada estação já está nela contida, pedindo assim a constante busca do diferente. As outras culturas são tomadas como fontes para a produção de novidades. Ainda que haja centros de referência da fashion – cidades como Paris, Milão, Londres e Nova York –, é perceptível o aumento da quantidade de nomes advindos de outros lugares do mundo, como do Japão e, de modo bastante incipiente, do Brasil. As marcas nacionais começam a trabalhar com o intuito do reconhecimento internacional, a partir do incremento de exportações e abertura de lojas e franquias em diferentes pontos do mundo, bem como com a fundação da Abest, em 2003, para impulsionar o processo – mesmo ano da posse do novo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Alexandre Herchcovitch, Carlos Miele (M. Officer), Amir Slama (Rosa Chá) e Oscar Metsavaht (Osklen) são apenas alguns exemplos de estilistas/marcas que têm conquistado inserção e reconhecimento internacional. Um dos carros-chefe da internacionalização é a chamada moda praia. A Rosa Chá, por exemplo, que exportou, em 1997, 686 peças; em 2003, exportou 45.885 e, em 2005, exportou cerca de 104.500 de suas 550 mil peças produzidas. A expectativa é exportar 23% de sua produção anual. Segundo Amir Slama, dono e criador de peças da Rosa Chá, “hoje o Brasil não exporta só maiô e biquíni, mas o jeito de se exibir no verão brasileiro. É esse comportamento que está despertando a atenção do mundo” (BRESSER, 2004, p. 116), idéia reforçada quando observamos matérias, como a de 07 de maio de 2004, exposto em site de moda, sob o título “H&M segue a onda da Selfridges e aposta 100% em brasilidade” e cuja conclusão do referido artigo foi: “Pois é. Não só a Inglaterra parou com a Selfridges e seu Brasil 40 Graus. A Europa cismou mesmo com o Brasil” – leia-se: com a, para nós, bastante complexa idéia de brasilidade, ao que parece, entendida como ligada à vivacidade nas formas (sensuais) e nas 278

cores (intensas e em profusão), como pode ser observado na matéria de Inês Figueiró, para a Gazeta Mercantil, no que se refere às possibilidades de acordos comerciais entre o Brasil e a China:

[Segundo Ênio Klein, consultor da Associação Brasileira da Indústria de Calçados (Abicalçados),] o Brasil precisa apostar no design de seus sapatos, para suprir a demanda da classe média chinesa que não pára de crescer e quer consumir. “O nicho brasileiro é o calçado de grife, ancorado num design brasileiro, numa cara brasileira”, explica. (...) Marcelo German, diretor de conceito e marketing do Studio Scala, dono da grife Morenatom, afirma que, no caso de sua coleção, a “cara do Brasil” é representada por signos que remetem à praia, Amazônia, cultura africana, indígena e sensualidade. Uma das criações, por exemplo, faz alusão aos desenhos das calçadas de Copacabana. “Essa é a inspiração brasileira. Alegre, divertida, colorida, que usa diversos materiais”, diz. Com 120 pontos de venda em diferentes partes do mundo, a grife Morenatom ainda não chegou à China. (2004, p. 13). A diversidade brasileira e a percepção da existência de um mercado interno, e externo, pouco aproveitado acabou levando a um interessante panorama. A organização da produção de moda passou a estar vinculada a identidades regionais: a moda paulista, a carioca, mineira, a cearense, a baiana, e assim por diante. O desenvolvimento da indústria nacional, e sua relativa dispersão nas últimas décadas, possibilitou a que cada região buscasse constituir nichos próprios de criação de moda, buscando rivalizar com São Paulo e Rio de Janeiro, ainda em posições privilegiadas quando se compara ao restante do Brasil. Cada região passou a assumir as características que, supostamente, seriam específicas e, ao mesmo tempo, passíveis de uso no Brasil (ou adaptados a um pretenso gosto médio), afinal seriam diferentes modos de expressão da (diversificada) cultura brasileira. Uma compreensão desse processo pode ser feita a partir da idéia de concorrência. A identidade seria uma espécie de recurso, liame, que amarraria as propostas, nódulos heterogêneos de uma rede, e facilitaria sua visibilidade na rede mais abrangente Brasil. Assim, por exemplo, o Ceará comparece com tramas em diversos materiais, como o tricô e fibras sintéticas remetendo ao artesanato local. Cada Estado acaba por apresentar seu evento de moda, e este se torna o espaço de divulgação, por excelência, das produções. As articulações entre esses nódulos, por sua vez, passam por uma segunda organização. Para além da questão, digamos, interestadual, esses pretensos “diferentes modos de apresentação da cultura brasileira” são rearticulados a partir dos dois pólos de concentração da criação e produção de moda, facilmente distinguíveis entre si em suas características e não menos concorrentes: São Paulo (com o São Paulo Fashion Week) e o Rio de Janeiro (com o Fashion Rio). Criou-se, ou melhor, recriou-se a idéia dos “Dois Brasis”. São Paulo, com desfiles de caráter urbano, cosmopolita, congregando em especial 279

marcas paulistas e mineiras; Rio de Janeiro, o Brasil praieiro, com desfiles ligados à leveza, ao branco, ou ao colorido, à pouca roupa, congregando, portanto, marcas identificadas com o artesanal e litorâneo – aí comparecendo cariocas, cearenses e, de forma bastante tímida, a Bahia. O Brasil amazônico surge de forma difusa, ainda assim marcante (como inspiração), e o sertanejo, pouco existe, mas comparece pontualmente, como na coleção para o verão de 2007 de Ronaldo Fraga, inspirado em seu conterrâneo Guimarães Rosa.

A despeito de qualquer consideração a respeito do equívoco de confundir fronteiras geopolíticas com culturais, a organização da produção brasileira em dois principais pólos, ainda que deixando em plano secundário tantos outros Brasis, parece significar o reconhecimento das ligações e, pois, a fragilidade das fronteiras interestaduais, bem como evidencia relações de poder historicamente estabelecidas na busca por hegemonia. São Paulo com uma moda brasileira de metrópole, usável em qualquer lugar do mundo, e o Rio, com uma idéia de moda de feições nacionais (próxima à idéia divulgada do Brasil no exterior e que há bastante tempo tem o Rio como grande representante), e, por isso, com possibilidade de inserção internacional, como a proposta paulista, mas pelo motivo de se apresentar como expressão do nacional, ou seja, a partir da idéia de diferença, especificidade que o atrelamento à identidade lhe conferiria. Secundarizando-se os exageros das tipologias, e os desviantes que, obviamente, não conseguem abarcar, a não ser pelo confronto com os casos específicos, os finos cruzamentos entre os “dois Brasis” da moda começam também a ser postos em uso. Os liames: identidade e tecnologia. Assim, as evidentes diferenças entre os dois eventos de moda começam a ter suas fronteiras borradas a partir do momento em que observamos no discurso do principal idealizador e organizador do São Paulo Fashion Week, Paulo Borges, a afirmação da necessidade de construir uma “moda brasileira” usável em diferentes pontos do mundo, o que justifica a África ter comparecido como tema do evento paulista de divulgação da coleção Verão 2006-2007, quando Herchcovitch apresenta coleção em que articula o africano ao punk. Além disso, o mesmo Paulo Borges atua como diretor responsável pela trimestral revista ffwMAG. Revistas de divulgação de moda, a exemplo da Vogue e da edição especial de Caras voltada aos dois mencionados eventos, começam a prescindir da antes usada divisão ao interior das respectivas publicações entre peças apresentadas em São Paulo e aquelas divulgadas no Rio de Janeiro. Evidências de mudanças em processo. Mesmo o calendário dos dois eventos, que antes se sobrepunham impedindo que uma pessoa pudesse assistir os dois eventos, agora assume novo caráter. Na impossibilidade de unificação plena, que demandaria a escolha de uma das cidades como sede do evento ou um complexo e 280

custoso esquema de revezamento, os dois eventos foram mantidos, mas seus calendários não mais se sobrepõem: passaram a ser seqüenciais, como se um fosse, na verdade, a continuação do outro. A divisão de características das produções, já construída pelas disputas e desejos anteriores de diferenciação, transformou-se em justificativa plausível à manutenção de ambos, e numa forma de organização do mega-evento brasileiro. Deste modo, mantém-se o movimento centrípeto que canaliza as produções regionais, filtradas nos diferentes eventos estaduais, para os dois pólos principais da moda brasileira, que, por seu turno, constituem-se no canal para visibilidade de tais produções no conjunto do país, ao mesmo tempo em que se colocam como etapa fundamental para inserção internacional (movimento centrífugo).

Quanto a Herchcovitch, impactado pelas reminiscências que envolveram a elaboração do seu livro em 2001, utilizou uma referência de seu segundo vestido na coleção de 2002, o peso nos caimentos, mas agora com o uso de correntes e que já foi aqui comentado. É o primeiro ano em que é patrocinado por uma empresa não vinculada à moda: a Motorola. Tempos após, a parceria levará à criação do Motovitch.

No início de 2002 percebi que a minha roupa ganhava mais força quando era apresentada na própria loja. Por isso tomei a decisão de diminuir a distribuição para multimarcas e investir em lojas. Além das duas que já tinha em São Paulo [na Haddock Lobo e no Morumbi Shopping], abri uma em Brasília [no Park Shopping] e outra em Porto Alegre [no Iguatemi]. A partir daí passei a pensar na marca como grande business. (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 958). O desfile posterior, de verão 2002/2003, refletia, segundo Paulo Borges, a concepção do novo “criador-empresário” ao apresentar peças de fácil entendimento pelo grande público: “Eu passei uma mensagem muito forte conceitualmente, de otimismo, alegria, em resposta aos atentados de 11 de setembro. Foi a coleção de maior sucesso até então. No atacado, vendi 50% a mais do que a coleção anterior. Fora do Brasil, aumentei em 20% meus pontos-de-venda” (HERCHCOVITCH apud BORGES, BIANCO, 2003, p. 959). Com uso freqüente de patchwork, a coleção trouxe como principais referências o surfwear, a praia, Ursinhos Carinhosos e Meu Pequeno Pônei. No entanto, destaquem-se as referências à ciranda e ao regionalismo brasileiro. Herchcovitch, portanto, busca inserção no movimento de tomar a identidade como recurso para alavancar a moda produzida por brasileiros em contexto internacional. A partir de sua característica confessa da mistura de elementos, Herchcovitch começa então a experimentar de modo mais sistemático o uso de referências nacionais como fator de destaque. De fato, os atentados de 11 de setembro abalaram o vertiginoso comércio de moda da passagem para os anos 2000; no entanto, o aumento das vendas não tardou a recomeçar em diferentes partes do mundo. No Brasil, a eleição do presidente Lula, empossado 281

em 2003, deu-se em contexto de balança comercial superavitária, mas de grande descontentamento quanto às questões sociais. O período Lula será marcado, em seu primeiro mandato, pelo desenvolvimento industrial e pela balança comercial positiva, com considerável incremento das exportações por conta de alianças internacionais. Em 2004, no acumulado do ano, as exportações e o saldo comercial chegaram a recordes históricos, em especial devido ao agronegócio. Ancorado no rápido crescimento econômico chinês, com quem mantém negócios de exportação de soja, o Brasil conseguiu atingir, em 2004, o Produto Interno Bruto (PIB), soma de bens e serviços produzidos pelo país, de 4,9% (em 2005, o PIB registrou crescimento da economia num percentual de 2,3%, e, em 2006, de 3,7%, após a revisão). Os índices de crescimento do Brasil, ainda que abaixo de um grupo de países que obtiveram melhores resultados, mesmo na América Latina, fez com que o Brasil fosse incluído no Bric, grupo formado pela China, Índia, Rússia e Brasil, promessas de desenvolvimento recorde para as próximas décadas. Ainda que tímido, pois potencialmente o país apresenta condições de resultados melhores, o crescimento do Brasil promoveu uma melhoria nas condições de vida, em especial da classe média, fazendo, inclusive, com que, em 2007, o número de milionários no Brasil crescesse em 19,1%, segundo dados do 12o Relatório Anual sobre Riqueza Mundial, realizado pela consultoria Capgemini e pelo banco americano Merryll Lynch. Ainda que seja um país marcado por desigualdades (e, portanto, por grande potencial de crescimento ainda inexplorado), a conseqüência inicial para a moda é o incremento do consumo no país, inclusive de produtos mais caros. Além disso, com o aumento das exportações e com a assunção pelo país da noção de indústrias criativas, com a tentativa de construir pesquisas que demonstrem o PIB brasileiro relacionado ao setor (do qual a moda faria parte), abrem-se oportunidades de pressão para a diminuição da burocracia nas transações de exportação e para um investimento maciço na produção de qualidade voltada ao comércio interno. A expectativa é que o centro de consumo deixe de ser os Estados Unidos e compareça pulverizado nos chamados “países emergentes”. Segundo Antoine van Agtmael, “em dez anos haverá 1 bilhão de novos consumidores nos países emergentes e, em 25 anos, esses mercados já estarão maiores que os desenvolvidos” (2008, p. 44). Trata-se, contudo, apenas de uma estimativa.

No verão de 2003-2004, o tema de base da coleção de Herchcovitch foram as festas juninas, ainda na esteira das discussões sobre identidade. Em cenário completamente branco e ao som das cantigas de Villa-Lobos, as modelos desfilaram por entre postes com bandeirolas amarradas. 282

Proponho-me a criar objetos de desejo para uma quantidade cada vez maior de clientes, independentemente da região onde morem. E subverter algumas convenções também, por que não? Atraí-los com uma moda que reflita a maneira como eles se vêem naquele momento. Esse raciocínio nos conduz a outra questão: como trabalhar com elementos brasileiros sem cair no folclórico e no caricatural. Não tenho referências óbvias também não me submeto à colonização das tendências internacionais. Quando decido fazer um verão 2003 inspirado em nossas festas juninas – com direito a cenário montado com bandeirolas, lenços entre decotes e nos pescoços, mistura de estampa e cores –, carrego um senso de brasilidade bem dosado. Modestamente, sintetizei todo o conceito de Aldeia Global, proposto por Marshal Mc Luhan nos anos 70, que profetiza um mundo interligado em rede, porém interessado em divulgar e consumir suas culturas regionais. Em síntese, minha meta é fazer um casamento perfeito de uma cultura 100% brasileira com uma silhueta que encante clientes do Brasil, Estados Unidos, Japão, Alemanha, China, Inglaterra e Canadá. E, acima de tudo, estabelecer parâmetros bem rigorosos no quesito matéria-prima. (HERCHCOVITCH, 2007, p.72). Um exemplo interessante está na coleção de 2004, em que Herchcovitch promoveu uma síntese entre Hello Kitty e Carmem Miranda. A roupa emblemática da coleção foi o vestido de látex preto com camadas de babados na parte inferior. Além disso, a modelo usava um adorno de cabeça com frutas em veludo preto e orelhas de gato. Esse foi o modelo exposto no Metropolitan e no FIT, em Nova York. Nesse sentido, apesar de haver a referência a Carmem Miranda no adorno, mas, principalmente, na riqueza de babados que comparecia nas roupas, há uma ruptura fundamental que afasta a produção de Herchcovitch de uma relação mais estreita como mera repetição da indumentária da cantora: a ausência de cor e, no que toca Carmem Miranda, de uma profusão de cores (nessa específica peça). A Carmem Miranda apresentada por Herchcovitch tem caráter fetichista, apesar da suposta delicadeza dos babados e do fino laço que emoldura a cintura da modelo. Além do preto, a cor que predomina em outras peças é o amarelo, quebrado, normalmente, apenas em pequenos detalhes, como em estampas de pequenas Hello Kitties. E a referência adicional é o flamenco, que comparece no corte de algumas peças e mesmo nos recorrentes babados. Na coleção masculina, a inspiração principal foi o universo da personagem do ator brasileiro José Mojica Marins, o Zé do Caixão. As camisetas apresentavam estampas com os cartazes do filme. No entanto, ao observar peças publicitárias da coleção, é possível perceber, mais uma vez, a referência religiosa, e seu questionamento, na figura do modelo Rafael Argenta, próximo à imagem de Cristo divulgada pelo catolicismo, com sua barba e cabelo comprido repartido no centro da cabeça. A ruptura está no látex preto como matéria da camisa, no olhar e no cenário noturno com presença de coruja e da imensa lua cheia por trás de coqueiros, insinuando o vampiresco/demoníaco, outra referência também ao universo de Zé do Caixão. Além disso, a 283

referência a piratas se faz perceptível. Em 2006, Herchcovitch é convidado para participar e criar o figurino de um longa-metragem de José Mojica Marins, intitulado Encarnação do Demônio. Ainda no ano de 2004, ocorre o primeiro evento internacional em função da criação da Abest em 2003: um desfile em Moscou, Rússia – um dos países em franco desenvolvimento e que compõe o Bric. Na coleção de verão 2004-2005, Herchcovitch usa as bonecas russas, matrioskas, como referência. De cores quentes, os modelos soltos, em forma trapézio, ficaram marcados pela mistura de estampas e tecidos, outro traço característico de Herchcovitch, desfilados em meio a um jardim de flores naturais que estavam meticulosamente ordenadas ao longo da passarela. As estampas de tapetes orientais misturadas ao floral se confundiam com o cenário. No desfile masculino, por sua vez, a referência foi a Noite dos Mortos, do México. Combinações de padrões geométricos distintos, listras e losangos, referência a banditismo e desarmonia foram marcas da coleção. Para o Inverno de 2005, a inspiração foi o Romanticismo, presente no uso de laçarotes amarrados ao pescoço e aos adornos, a exemplo de colares antigos e do uso de flores naturais como pingentes dos colares. Flores e pássaros de borracha foram usados na estruturação de vestidos que remetiam a uma espécie de rococó brasileiro, enquanto os chapéus cônicos aludiam ao personagem infantil Pinóquio. Na coleção masculina, o oposto: a referência foi o mundo do boxe, ainda que o esporte tenha surgido na Inglaterra do século XIX, com suas proteções para mão e hematomas nos olhos. Macacões jeans, calças de metalassê cintilantes, chapéus- panamá e lenços amarrados ao pescoço ajudavam a compor os looks. No ano de 2005 ainda, a linha Herchcovitch; Jeans passa a contar com desfile autônomo para o consumidor final. O Verão 2005-2006 trouxe, por sua vez, o psicodélico e misturas de estampas florais e de tecidos, ressaltando a complexa elaboração de corte e costura; enquanto o desfile masculino enfatizou os anos 1960/1970 e as roupas dos mecânicos e caminhoneiros, com uso de bandanas e macacões. No Inverno de 2006, a inspiração foi Leonardo da Vinci e a indumentária renascentista. As cores utilizadas foram, por excelência, estampados de verde e marrom, com detalhes em vermelho, que compareciam em vestidos e pelerines. Nesse mesmo ano de 2006, devido aos índices favoráveis de crescimento e às políticas sociais desenvolvidas, o Presidente Lula é reeleito, assumindo, portanto, seu segundo mandato. Herchcovitch cria os uniformes para o McDonald’s e faz um desfile na convenção mundial da marca em Orlando, Estados Unidos.

Em sua coleção Primavera-Verão 2006-2007, Herchcovitch se volta, mais uma vez à geometria e mantém a alfaiataria, cada vez mais apurada. Do mesmo modo, o uso de 284

referências étnicas; no caso, a comunidade africana Ndebele foi a inspiração, com suas formas e cores. Os traços de localidade paulatinamente, portanto, deixam de se referir apenas ao Brasil, ao mesmo tempo em que a viagem se torna quase condição à inovação dos trabalhos. É nesses termos que Herchcovitch caminha no sentido de tornar a relação com uma suposta brasilidade vinculada mais à estratégia de criação do que a recorrência a elementos advindos do repertório prévio nacional-popular. Utilizar a Carmem Miranda, a ciranda ou a festa junina se transformam em possibilidades dentro de um universo aberto, deixando de operar como restritivos à criação, pela obrigação de seu uso. E esse “fazer” brasileiro, Herchcovitch relaciona à mistura. Assim, às cores, matérias-primas e geometria Ndebele, Herchcovitch alia elementos da estética punk. Os grafismos geométricos são feitos a partir de composições com a imagem de giletes multicoloridas (ou mesmo em preto e branco), compostas a partir de pequenas contas, e que estampam camisas de corte simples, de referência dos anos 60 em suas golas, ou mantos e mesmos chapéus, articulados ao uso de botas militares e óculos Ray-Ban. Tais grafismos com giletes comporão a primeira fachada de sua loja em Tóquio, inaugurada abril de 2007. Na coleção masculina, por sua vez, as cores são neutras (tons pastéis), com camuflagens leves e referência oriental e à religião judaica e jamaicana. É emblemática a imagem do modelo negro, com dreadlocks vestindo um chemisier, cujo comprimento vai ao tornozelo, e exibindo como pingente da corrente que leva ao pescoço uma estrela de David. Em franca oposição à suntuosidade elegante da coleção, no Inverno de 2007 Herchcovitch toma como principal inspiração as roupas dos bóias-frias e seu modo de composição vestimentar, pautados em improvisação, proteção e abundantes sobreposições, utilizando fibras naturais, como o algodão e a seda, aliadas a sintéticos, como o vinil. Para remeter mais diretamente aos bóias-frias, utiliza sacos de lixo para complementar os looks e complementos como chapéu rústico de palha e botas de cano alto. Já no masculino, a referência parecem ser os Inuit, com suas roupas pesadas e necessidade de grande proteção ao frio. Herchcovitch faz uso da pelúcia, que recobre as roupas simulando casacos de pele, e de capuzes, utilizados em vários casacos e blusas. O estilista deixa evidente a independência entre as coleções masculina e feminina que justificou a separação dos desfiles.

Na coleção verão 2007-2008, por sua vez, o estilista retorna à sofisticação clássica a partir do black tie, e o atualiza a partir da desconstrução do smoking masculino, tornado peça feminina, fazendo comparecer peças, por exemplo, em que o cravo da lapela é transformado no próprio vestido. O cromatismo se dá também a partir de combinações entendidas como clássicas: o preto, o branco e o vermelho. A coleção masculina, por sua vez, 285

também tem no preto e no vermelho suas cores fundamentais, mas agora associadas às bandas de death metal, com uso de maquiagem pesada (lembrando zumbis e outros monstros), botas pesadas com solas de trator, uso de capuzes como camuflagem aos monstros e de correntes com variadas penas pretas atadas ao pescoço dos modelos ou em toda sua roupa. No ano de 2007, a economia brasileira cresceu 5,4%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicados no jornal Follha de São Paulo. Teria sido a maior taxa de expansão desde 2004, quando atingiu crescimento de 5,7%. O aumento do consumo familiar brasileiro atingiu, por sua vez, alta de 6,5% (CIRILO JR, 2008). De acordo com Philippe Aghion, “países com maior volume de crédito e com índices mais elevados de capitalização na bolsa de valores apresentam taxas de crescimento maiores” (2008, p. 55). Advertindo que se trata de uma correlação, e não de causalidade, adverte que uma das principais barreiras ao crescimento das empresas nos países emergentes é a dificuldade na obtenção de financiamento, que podem, a rigor, ser conseguidos no mercado financeiro ou através do sistema bancário. Prossegue: “Os dados sugerem que, num primeiro momento, quando determinado país ainda está longe dos mais desenvolvidos, o financiamento bancário é mais importante. À medida que o país avança, o mercado de capitais se torna preponderante. (...) Nesse sentido, o Brasil parece bem posicionado, pois tem tanto um sistema bancário forte como uma bolsa de valores desenvolvida” (2008, p. 55). Isso ajuda a compreender o movimento que começa a ocorrer nas empresas de moda brasileiras nos anos 2000.

Na passagem para 2008, foi anunciada a aquisição de grifes brasileiras por holdings e fundos de investimento. Compuseram o anúncio marcas como Alexandre Herchcovitch, Isabela Capeto, Fause Haten e Ellus. Desde 2006, quando o grupo HLDC comprou a marca Zoomp, mais de dez negócios foram fechados. Além da HLDC, o fundo de private equity68 Pactual Capital Partners é outro grande comprador. A lógica é a mesma utilizada, nos anos 1980, por Bernard Arnault (da LVMH) na Europa: a aquisição de várias grifes, destinadas a distintos públicos, sob uma administração comum, mas com específicas direções criativas, associando o trabalho de administradores e estilistas, o que marca um novo momento na produção e gestão de moda. A mais rígida distribuição de funções e a assunção do caráter de funcionário de uma rede é relativamente recente no que toca o ofício do criador

68 Private equity (ou Fundos de Ativos privados) são uma forma de fundo de investimento que teve início nos EUA em fins dos anos 1980. Consiste, como o termo indica, em um investimento feito por um determinado grupo em uma empresa com potencial de crescimento (e, geralmente, de capital fechado) através da compra de participação acionária na empresa visada. A partir daí se estabelece uma parceria em que o grupo investidor acaba também por participar da administração do negócio. No Brasil, tal modalidade de investimento, cresce em especial a partir da segunda metade nos anos 1990, devido ao impulso econômico do período. 286

de moda – ainda que a própria concepção de estilista seja igualmente recente. Essas transformações podem ser compreendidas à luz das discussões a respeito do chamado “novo luxo”. A relação pode ser estabelecida devido a Bernard Arnault, cujas ações têm inspirado algumas das mudanças mencionadas quanto à gestão de moda no Brasil, ter reaquecido o decadente comércio de produtos considerados de luxo ao pôr sob sua administração diferentes grifes deficitárias, mas de nome internacionalmente conhecido. A racionalização da gestão e a maior capacidade de investimento das holdings e fundos de investimentos seriam um importante motor à expansão dos negócios num difícil mercado globalizado. No caso do Brasil, de acordo com entrevista de Herchcovitch (LEITE NETO, 03/01/2008), a participação de investidores tornaria factível a internacionalização, dificultada por uma série de fatores, como a incipiente profissionalização e mesmo a dificuldade de uma marca “terceiro mundista” obter reconhecimento ao competir com marcas européias ou norte-americanas com produção e reconhecimento já consolidados. Por outro lado, a participação de investidores, ainda segundo o estilista, possibilita maior democratização das peças comercializadas por conta do incremento da produção.

Alexandre Herchcovitch, que divulgou a venda de suas duas marcas (a Herchcovitch; Alexandre e Herchcovitch Jeans) em janeiro, anunciou, contudo, em princípios de abril de 2008, a desistência do negócio com o grupo I’M (Identidade e Moda), da holding HLDC Investimentos, o que ocasionou igualmente sua saída da direção de criação da Zoomp e do cargo de curador da I’M, evidenciando as dificuldades de transação e de determinação das tarefas de cada parte dos dirigentes (criativo e administrativo) na condução do negócio. Segundo o estilista, “as negociações não chegaram a bom termo” (FOLHAONLINE, 05/04/2008), confirmando a declaração de Mayer, do banco Morgan Stanley, de que a relação entre um estilista (criador) e investidores (voltados a lucro) carrega grande potencial de atritos (apud CAMARGOS, 2008). “Eles negociaram um valor e depois não tinham o dinheiro para pagar. Eu percebi e saí antes [que algum documento fosse assinado]”, afirmou Herchcovitch em entrevista a UOL Estilo-Moda (VASONE, 27/08/2008). De qualquer modo, aproveitando os favoráveis índices de crescimento econômico e o aumento da confiança nas empresas brasileiras, em termos de potencial de crescimento e cumprimento de compromissos, as aquisições prosseguem: em março, o grupo AMC Têxtil – que detém as marcas Colcci, Sommer, Carmelitas, o licenciamento da linha Coca-Cola Clothing e a Malhas Manegotti – adquiriu a totalidade das marcas envolvidas no rótulo TF (Tufi Duek, Forum Tufi Duek, Forum e Triton). E, para além das aquisições, os conflitos instaurados no processo e após a 287

confirmação da venda também são de interesse na interpretação da atual conjuntura da moda e do comércio em geral, afinal uma série de eventos desta ordem têm ocorrido em âmbito internacional, como o processo judicial promovido por Kenzo Takada contra o grupo LVMH pelo seu direito em usar a marca que leva seu nome ou os desentendimentos entre Helmut Lang e os dirigentes da Prada e que culminaram na saída do alemão dos trabalhos na grife. No Brasil, o estilista Fause Haten também anunciou, em junho de 2008, o seu desligamento em relação ao grupo I’M, cinco meses após ter vendido sua grife. Teriam sido selados três contratos. Dois deles se referiam às vendas da empresa e da marca, a serem pagas em parcelas mensais ao longo de quatro anos; o terceiro, por sua vez, se referia à função de Fause Haten como diretor de criação da marca. Até o mês de junho, o estilista teria recebido apenas a primeira parcela e nenhum dos salários como diretor de criação, cargo que exerceu até 17 de junho, segundo afirmação do próprio Fause Haten divulgada no caderno Ilustrada do Folha Online (LEITE NETO, 18/06/2008). “Entreguei a empresa capitalizada. Não era necessário fazer mais nada. Eu não fui atrás de dinheiro, mas de gestão, para que a empresa crescesse e eu pudesse me concentrar apenas na criação”, afirmou o estilista. Fause Haten criou nova grife, a FeagHa, com a logomarca FH. Quanto a Alexandre Herchcovitch, após a desistência do contrato com a I’M, entrou em negociação com o grupo InBrands. Criado em 2007, o InBrands é administrado pelo suíço UBS Pactual, um dos maiores bancos de investimento do mundo, de acordo com Carolina Vasone, em matéria para o UOL Estilo-Moda (19/08/2008). Em janeiro de 2008, Nelson Alvarenga, dono da Ellus e da Ellus 2nd Floor, vendeu, ainda segundo Vasone, suas marcas para a holding e anunciou a compra de 50% da InBrands. Pouco após, Isabela Capeto também entrou para o grupo. A divulgação oficial da parceria entre Alexandre Herchcovitch e a InBrands ocorreu em 25 de agosto de 2008, após cerca de quatro meses de negociação. Além da marca Alexandre Herchcovitch, o grupo InBrands passou a ser também sócio majoritário do São Paulo Fashion Week (SPFW), evidenciando, mais uma vez, a relação de proximidade e influência mútua entre Paulo Borges e Alexandre Herchcovitch. “A associação permite que haja o controle compartilhado da empresa. Por isso a InBrands chama [o negócio] de uma sociedade, não de uma compra”, conforme Alessandra Höhne, do escritório KLA-Kourey Lopes Advogados, representante da InBrands na aquisição dos 70% da empresa de Herchcovitch e de percentual não divulgado da Luminosidade, grupo de Paulo Borges que organiza o SPFW (VASONE, 27/08/2008). O interesse na empresa em grau acentuado é mantido a partir do momento que o estilista é mantido no negócio na condição de funcionário-sócio, o que lhe garante certa margem de autonomia e poder de decisão quanto a deliberações que dizem respeito à empresa e que são definidas como de sua 288

competência, através de contrato. A primeira ação da parceria com Herchcovitch foi a reforma da loja principal do estilista nos Jardins, em São Paulo, e o encaminhamento das reformas das outras três lojas próprias da grife: uma também em São Paulo, outra em Brasília, e a terceira em Belo Horizonte. “O próximo passo é separar a marca de jeanswear [mais jovem e barata] do prêt-à-porter. Devemos inaugurar a primeira loja só de jeanswear este ano, em São Paulo”, afirmou o estilista, que indicou ainda fazer parte dos planos de expansão a inauguração de mais oito lojas próprias no Brasil e o projeto de uma loja em Nova York. A InBrands, conforme Höhne, cuidaria apenas da parte administrativa da empresa; no entanto, Herchcovitch manteria poder de veto em diferentes circunstâncias, inclusive a de uma possível venda da empresa. O estilista assinou contrato para se manter como diretor criativo da grife, por tempo não revelado. Em outros termos, a partir dos anos 1980 nova fase parece ter iniciado no que se refere à produção de moda e que tem gerado um novo termo para definir o “profissional-criativo”. De costureiro (alta costura) a estilista (prêt-à-porter), a atual função desses profissionais no novo formato de seus empreendimentos é de “diretor criativo”, o que é bastante revelador da atual conjuntura. Segundo Dana Thomas (2008), trata-se de uma autodenominação dos estilistas surgida nos anos 1990. A função de diretor aponta um específico formato de gestão, em que tal profissional assume a coordenação de uma equipe no toca à criação de peças, ou seja, dentro de uma empresa marcada por acentuada especialização de tarefas. Criação e administração se transformam em segmentos distintos na condução dos “negócios da moda”, um formato recente na história do vestuário. Em agosto de 2008, já em associação com a InBrands, Herchcovitch reinaugurou sua loja, nos Jardins, em São Paulo, após uma grande reforma. Agora a loja inclui a casa anexa, antes ateliê do estilista, que, por sua vez, passa a funcionar em um galpão no bairro de Barra Funda, junto à fábrica. A nova loja, segundo Lilian Pacce (2008), atende ao aumento do tamanho das coleções e separa melhor as linhas Herchcovitch; Alexandre e Herchcovitch; Jeans. Além disso, a nova loja comercializa livros e produtos licenciados pelo estilista. Do mesmo modo que a loja em Tóquio, a fachada da loja paulista ganha aplicações de lambe-lambe, o que permite a mudança da estampa que compõe a fachada da loja a cada nova coleção.

Processo criativo em moda, segundo Herchcovitch “Minha história é moda. E moda é negócio, por esse motivo no exterior o segmento é conhecido por indústria da moda” (2007, p. 39). Essa frase, que foi posta na introdução desta pesquisa, é o ponto de partida fundamental na compreensão do modo como 289

Herchcovitch concebe o processo criativo em moda. Tanto o trabalho que o estilista desenvolve é dependente da noção que tem sobre moda e, conseqüentemente, sobre o ofício do estilista, como a noção de moda e de estilista que carrega muda em função de sua trajetória de trabalho. Ao mesmo tempo, poderíamos afirmar que o reconhecimento que tem conseguido obter, com as críticas favoráveis na imprensa e os resultados nas vendas (observável através da expansão de sua marca), funcionam como uma reafirmação de suas bases de trabalho. Herchcovitch tem inserção (mesmo diferenciada) nos principais eventos de moda nacionais e internacionais, bem como angariou relativo destaque nos meios de comunicação – com participação, por exemplo, no júri do programa Fantástico, em fevereiro de 2009, para escolha de uma modelo em início de carreira para ser “Garota Fantástica” e participações especiais em telenovelas da Rede Globo, a exemplo de “Malhação”, “Desejo de Mulher” e “Belíssima”. O estilista também foi convidado a participar de exposições em galeria de arte, apresentando “objetos da moda em estado de arte” (2007, p. 52); em acréscimo a peças de suas coleções que passaram a ficar expostas em museus, conforme descrito em momento anterior. Inclusive o livro Cartas a um jovem estilista, que compõe a série Cartas a um jovem..., também pode ser considerado uma demonstração do reconhecimento do estilista paulistano, que, afinal, foi escolhido dentre diferentes profissionais em sua área a participar do projeto, que envolve a descrição do trabalho e uma série de sugestões àqueles que se interessem pela “moda como profissão”. A partir disso, Herchcovitch acaba reforçando sua percepção sobre moda e difundindo-a para outros profissionais ou aspirantes ao trabalho com moda, seja através de suas declarações públicas à imprensa (em entrevistas e artigos jornalísticos), seja através de livros, como o mencionado, ou mesmo a partir de sua atuação no curso de Design de Moda do Senac-SP. Nesses termos, enquanto indivíduo que conseguiu alçar posicionamento de prestígio, Herchcovitch funciona simultaneamente como catalisador de sua época e peça destacada na construção dos encaminhamentos futuros da moda no Brasil. Não se trata, contudo, de percebê-lo descolado da rede do qual faz parte, mas perceber que tais relações envolvem assimetrias que acabam com conferir pesos diferenciados aos indivíduos que a compõem. Um exemplo é o próprio modo como Herchcovitch se reporta a Dener:

Deve-se lembrar que, lá no final dos anos 60 e início dos 70, foi o costureiro Dener que vislumbrou a possibilidade de não perder suas raízes, de fazer concessão a seu imaginário de alta-costura e cair no prêt-à-porter fazendo peças em jeans (coisa que abominava) com uma jogada de marketing muito à frente de seu tempo. Pioneiro por diversos motivos, Dener fechou contrato com uma empresa de azulejos e meias, para viabilizar a saúde financeira de seu ateliê e de seus luxos caríssimos. Um visionário? Sem dúvida alguma! Pena que vivia numa era de glamour extremo, quando os estilistas eram 290

engolidos por plumas e paetês. Mas também por uma avalanche de contas vencidas. (2007, p. 78/79). Herchcovitch é tributário de Dener. Mais que isso, podemos afirmar usando termos simmelianos que Herchcovitch é herdeiro de Dener e de sua época. No entanto, a herança não significa mera reprodução de um modo de vida e de condução do ofício. Herchcovitch elogia as inovações de Dener e se lastima pelas condições de sua época, que compeliram a que sua inventividade ficasse submetida a determinado modo de vida marcado por luxo, festas e bebida a ponto de comprometer a sua saúde física e financeira. Herchcovitch usa sua “herança” de modo a ajudar a construir outro modo de engajamento do estilista com seu trabalho. Ao destacar que a moda é tida, no exterior, como negócio – a indústria da moda –, busca se alinhar ao norteamento seguido nos lugares em que a moda tem história consolidada. Ora, a partir do momento em que se afirma que a moda é um negócio, a clientela torna-se fundamental, reposicionando o papel do estilista em relação a ela. Diferente do pretendia Worth, que se promovia pela afirmação de sua ditadura e assim destacava o papel da inspiração e da intuição no processo criativo, Herchcovitch dignifica o papel da pesquisa para a efetivação de um trabalho de resultados satisfatórios. Ao tecer elogios a Christian Dior, o estilista brasileiro ressalta os elementos que considera imprescindíveis para o aumento das vendas e incremento da imagem do estilista: conhecer os corpos, as mentes, as vontades, o momento e a conjuntura econômica e sociopolítica. Herchcovitch opera com a noção de vocação, que ele aciona ao se reportar ao encantamento com as roupas da mãe e as sugestões que começa a oferecer desde a infância quanto à roupa e maquiagem de d. Regina. No entanto, do mesmo modo que Dener e que Worth, através do acompanhamento de aspectos de sua trajetória, o papel dos estudos comparecem com significativo destaque. E isso ajuda a justificar o distanciamento crescente do autodidatismo como mecanismo que, apesar de válido, é demorado e incerto. Como mencionado, Herchcovitch acaba se transformando numa espécie de evidência da validade dos cursos na área por ter sido um dos frutos das primeiras turmas de nível superior em moda. De qualquer modo, há um crescente distanciamento de uma acepção mais ingênua de “dom”, enquanto um presente que permite prescindir de estudos, de preparo. Por outro lado, é importante ressaltar, não há qualquer afirmação de que o estudo deva ser formal; apenas encontram-se aconselhamentos quanto a isso como um mecanismo auxiliar na condução da formação daquele que trabalhará em moda.

Contudo, a pesquisa tem papel não apenas enquanto formação inicial para aprendizado do fazer costura e do que tem sido feito em costura pelos profissionais já reconhecidos. Herchcovitch menciona o papel, por exemplo, dos relatórios de vendas no 291

direcionamento das criações futuras. Uma vez que a concepção do estilista como ditador de moda cede lugar ao atendimento dos desejos da clientela, mecanismos começam a ser desenvolvidos no sentido de permitir a detecção dessas supostas vontades, estimadas a partir da determinação do que teriam sido os pontos de força da coleção, a serem ainda reforçados nas próximas criações, e os pontos fracos, a serem revistos. Tais pesquisas muitas vezes se dão na forma de questionários a serem respondidos pelos clientes após a efetivação das compras. Se o estilista deve saber articular a conjuntura socioeconômica e cultural à detecção das possíveis vontades dos clientes e ao modo como funcionam suas “mentes”, a noção de processo embutida numa concepção de história como simultâneas continuidades e transformações acaba ganhando considerável espaço e renovando a própria idéia de novidade, sempre atrelada à moda. Do mesmo modo que os desejos de individualidade reconfiguraram a noção de moda, antes entendida meramente como produto destinado a imensa gama de pessoas, e agora se dirige à idéia de oferta de opções de peças para a construção de uma aparência “individualizada” (pois a clientela é internacional, permitindo a manutenção da sensação de raridade do produto, mesmo quando há produção de significativa quantidade de peças), a novidade deixa de ser compreendida como ruptura completa em relação ao antigo, como o foi no século XVII. “Se mudar a cada coleção é preciso”, afirma Herchcovitch, “um bom estilista deve saber que a coleção seguinte (...) tem obrigação de revelar a identidade do estilista, deve carregar sua marca registrada, a fim de se destacar dos demais profissionais e ser um chamariz atraente para a clientela” (HERCHCOVITCH, 2007, p. 08). A novidade também significa, portanto, mudanças na continuidade; em outros termos, o modo como cada estilista se posiciona frente ao desafio de manter uma assinatura pessoal, uma produção identificável que permita a manutenção da fidelidade de sua clientela e, pois, a continuidade das vendas, e, simultaneamente, continue estimulando o consumo pela apresentação de algo renovado. O próprio Herchcovitch menciona que, no início de sua carreira, tinha maior preocupação em, a cada coleção, romper com o que tinha produzido anteriormente, mas demonstra haver mudado no sentido de buscar elos de continuidade que criem uma “identidade” entre suas diferentes produções. A continuidade entre coleções também é importante, pois é o tempo em que as próprias novidades, inicialmente rejeitadas, podem passar a ser aceitas e incorporadas. O movimento passa a ser lento e contínuo: a depender, uma inovação pode levar até três coleções para começar a ser usada. No entanto, é interessante observar como Herchcovitch constrói sua solução para a questão posta: como ter uma assinatura identificatória (um estilo pessoal) sem criar obstáculos à apresentação das inovações que são imprescindíveis às vendas? No que se refere à moda, apresentar novidades, 292

ser criativo é uma exigência, uma norma que direciona os trabalhos. Em lugar de manter-se fiel a determinado tipo de peça ou material utilizado, que pode levar ao esgotamento e fragilização da proposta criativa, Herchcovitch desloca a sua assinatura pessoal, como anteriormente afirmado, para sua estratégia de criação. É nesse sentido que ele pode fazer uso de cores sóbrias numa coleção e apresentar, na seqüência, uma coleção alegre de cores exuberantes; ou pode fazer uso de referências militares numa coleção e românticas em outra. Ou ainda se utilizar de artesanato e tecidos tecnológicos (hi-tech). Sua assinatura está no pôr em jogo elementos diversificados; isto é, está em aproximar, desse modo, aquilo que convencionalmente seria percebido como distante. Assim, Herchcovitch abre infinitas possibilidades para a criação: quantos elementos estarão em jogo; quais; o que toma de cada um; como estarão articulados. Desse modo, Herchcovitch começa a experimentar as combinações possíveis, como uma espécie de jogo matemático, que o permite, inclusive, ultrapassar as fronteiras convencionais de compreensão de uma suposta moda brasileira; isto é, de uma moda feita no Brasil a partir de características nacionais. Quando a idéia de que “o Brasil está na moda” começou a ganhar força, uma série de trabalhos a partir das cores da bandeira nacional, de técnicas populares de fabrico (artesanato de renda de bilro, por exemplo) ou estampas ligadas à noção do tropical começaram a se destacar. Um exemplo foi a coleção de moda praia da Rosa Chá com corte moderno e estampas inspiradas em lendas amazônicas ou os trabalhos de Carlos Miele com inspiração no candomblé e uso de fuxico nas roupas que desfilava em Nova York. Como mencionado, Herchcovitch também começa a criar coleções com apelo ao nacional. No entanto, o modo como ele começa articular discursivamente sua estratégia criativa com a noção da mistura como modo brasileiro de processamento cultural o permite prescindir desse tipo de apelo. Isto é, ele se coloca como brasileiro em qualquer produto que fizer e, em especial, quanto mais ousar nas sínteses que produzir. Como sínteses, os resultados seriam únicos. É desse modo que ele afirma buscar um produto “100% brasileiro” e com silhueta que permita ser usado por uma pessoa de qualquer lugar do mundo:

Devo ter consciência de que, ao criar, devo agradar minha clientela, que é formada por 60% de mulheres e 40% de homens. E, mais do que tudo, busco trabalhar com uma linguagem universal. Talvez por ter nascido em São Paulo, um caldeirão cosmopolita que condensa várias nacionalidades e etnias. Claro que há muito do Brasil em meu trabalho. Sou absolutamente brasileiro no que tange à escolha de inspirações, que sempre se conectam com algum momento de minha vida. A diferença é o modo de reprocessar informações e transformar em algo que as pessoas decodifiquem, como uma viagem bem pessoal, única mesmo. Se vou trabalhar com o verde e o amarelo (...) vou encontrar o tom exato de verde e amarelo e um discurso 293

que me convença artisticamente do motivo pelo qual devo trabalhar com um amarelo mais alaranjado ou um verde mais fechado. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 24). Mais uma vez, apresenta-se em seu texto o distanciamento em relação a uma concepção vulgar do artista. A criação não se dá por intuição; as escolhas devem ser racionalmente fundamentadas, até a medida do possível, para ganharem a coerência que lhes permita a aposta do investimento enquanto coleção. Definido como negócio, o trabalho com moda passa a ser uma profissão dentro de uma empresa privada com fins lucrativos que demanda resultados, medidos em vendas, para sua continuidade. As criações estão em função das vendas possíveis. Por isso a importância do argumento e da pesquisa de mercado, que, obviamente, não se limita aos relatórios de vendas da empresa, ainda que estes sejam importantes. A pesquisa envolve leituras variadas acerca das características do consumidor, das propostas feitas pelos nomes de maior reconhecimento na moda internacional (pois ajudam a confirmar determinados gostos), encomendas de pesquisa em observatórios de tendências (para apontar o que está sendo usado nas ruas) e, claro, trabalho contínuo de observação, em especial nas ruas. São os chamados grupos “alternativos” ou grupos de camadas populares ou ainda de lugares recônditos do planeta a fonte, por excelência, dos estilistas, que buscariam, nos dias atuais, transformar essa “matéria-prima” em possibilidades mais amplas de consumo. As garantias de aceitação são maiores, desse ponto de vista, posto que já está em uso ainda que moderado e/ou restrito. Quanto a Herchcovitch, se qualquer elemento/tema pode ser tomado como inspiração, a característica fundamental do criador acaba consistindo numa espécie de treinamento do olhar, como discute Baudelaire a respeito da curiosidade infantile e de sua diferença quanto ao artista adulto. Ou, se preferirmos, do olhar do estrangeiro de que trata Simmel. Considerando a história nacional da produção de vestuário e o papel dos imigrantes nesses processo, acabamos sendo obrigados a relembrar as origens de Herchcovitch, sua criação em colégio judeu ortodoxo, o modo de relação e “olhar” dos judeus para com não-judeus (e em contexto brasileiro), os meses que viveu em Israel, sua inserção na chamada noite underground paulista, a experiência em instituição católica de ensino... Por excelência, Herchcovitch cultivou o trânsito como modo de vida, e a síntese como processo de trabalho. Um está na dependência do outro.

É interessante observar como a discussão sobre dualidades é apresentada a partir das produções de Herchcovitch. Sagrado/profano, eterno/efêmero, homem/mulher, esconder/mostrar são postos em articulação, ao mesmo tempo em que emerge a questão sobre a relação mesmo entre corpo e roupa. Moldura, prisão, conforto, adorno, mentira são

283

referência a piratas se faz perceptível. Em 2006, Herchcovitch é convidado para participar e criar o figurino de um longa-metragem de José Mojica Marins, intitulado Encarnação do Demônio. Ainda no ano de 2004, ocorre o primeiro evento internacional em função da criação da Abest em 2003: um desfile em Moscou, Rússia – um dos países em franco desenvolvimento e que compõe o Bric. Na coleção de verão 2004-2005, Herchcovitch usa as bonecas russas, matrioskas, como referência. De cores quentes, os modelos soltos, em forma trapézio, ficaram marcados pela mistura de estampas e tecidos, outro traço característico de Herchcovitch, desfilados em meio a um jardim de flores naturais que estavam meticulosamente ordenadas ao longo da passarela. As estampas de tapetes orientais misturadas ao floral se confundiam com o cenário. No desfile masculino, por sua vez, a referência foi a Noite dos Mortos, do México. Combinações de padrões geométricos distintos, listras e losangos, referência a banditismo e desarmonia foram marcas da coleção. Para o Inverno de 2005, a inspiração foi o Romanticismo, presente no uso de laçarotes amarrados ao pescoço e aos adornos, a exemplo de colares antigos e do uso de flores naturais como pingentes dos colares. Flores e pássaros de borracha foram usados na estruturação de vestidos que remetiam a uma espécie de rococó brasileiro, enquanto os chapéus cônicos aludiam ao personagem infantil Pinóquio. Na coleção masculina, o oposto: a referência foi o mundo do boxe, ainda que o esporte tenha surgido na Inglaterra do século XIX, com suas proteções para mão e hematomas nos olhos. Macacões jeans, calças de metalassê cintilantes, chapéus- panamá e lenços amarrados ao pescoço ajudavam a compor os looks. No ano de 2005 ainda, a linha Herchcovitch; Jeans passa a contar com desfile autônomo para o consumidor final. O Verão 2005-2006 trouxe, por sua vez, o psicodélico e misturas de estampas florais e de tecidos, ressaltando a complexa elaboração de corte e costura; enquanto o desfile masculino enfatizou os anos 1960/1970 e as roupas dos mecânicos e caminhoneiros, com uso de bandanas e macacões. No Inverno de 2006, a inspiração foi Leonardo da Vinci e a indumentária renascentista. As cores utilizadas foram, por excelência, estampados de verde e marrom, com detalhes em vermelho, que compareciam em vestidos e pelerines. Nesse mesmo ano de 2006, devido aos índices favoráveis de crescimento e às políticas sociais desenvolvidas, o Presidente Lula é reeleito, assumindo, portanto, seu segundo mandato. Herchcovitch cria os uniformes para o McDonald’s e faz um desfile na convenção mundial da marca em Orlando, Estados Unidos.

Em sua coleção Primavera-Verão 2006-2007, Herchcovitch se volta, mais uma vez à geometria e mantém a alfaiataria, cada vez mais apurada. Do mesmo modo, o uso de 284

referências étnicas; no caso, a comunidade africana Ndebele foi a inspiração, com suas formas e cores. Os traços de localidade paulatinamente, portanto, deixam de se referir apenas ao Brasil, ao mesmo tempo em que a viagem se torna quase condição à inovação dos trabalhos. É nesses termos que Herchcovitch caminha no sentido de tornar a relação com uma suposta brasilidade vinculada mais à estratégia de criação do que a recorrência a elementos advindos do repertório prévio nacional-popular. Utilizar a Carmem Miranda, a ciranda ou a festa junina se transformam em possibilidades dentro de um universo aberto, deixando de operar como restritivos à criação, pela obrigação de seu uso. E esse “fazer” brasileiro, Herchcovitch relaciona à mistura. Assim, às cores, matérias-primas e geometria Ndebele, Herchcovitch alia elementos da estética punk. Os grafismos geométricos são feitos a partir de composições com a imagem de giletes multicoloridas (ou mesmo em preto e branco), compostas a partir de pequenas contas, e que estampam camisas de corte simples, de referência dos anos 60 em suas golas, ou mantos e mesmos chapéus, articulados ao uso de botas militares e óculos Ray-Ban. Tais grafismos com giletes comporão a primeira fachada de sua loja em Tóquio, inaugurada abril de 2007. Na coleção masculina, por sua vez, as cores são neutras (tons pastéis), com camuflagens leves e referência oriental e à religião judaica e jamaicana. É emblemática a imagem do modelo negro, com dreadlocks vestindo um chemisier, cujo comprimento vai ao tornozelo, e exibindo como pingente da corrente que leva ao pescoço uma estrela de David. Em franca oposição à suntuosidade elegante da coleção, no Inverno de 2007 Herchcovitch toma como principal inspiração as roupas dos bóias-frias e seu modo de composição vestimentar, pautados em improvisação, proteção e abundantes sobreposições, utilizando fibras naturais, como o algodão e a seda, aliadas a sintéticos, como o vinil. Para remeter mais diretamente aos bóias-frias, utiliza sacos de lixo para complementar os looks e complementos como chapéu rústico de palha e botas de cano alto. Já no masculino, a referência parecem ser os Inuit, com suas roupas pesadas e necessidade de grande proteção ao frio. Herchcovitch faz uso da pelúcia, que recobre as roupas simulando casacos de pele, e de capuzes, utilizados em vários casacos e blusas. O estilista deixa evidente a independência entre as coleções masculina e feminina que justificou a separação dos desfiles.

Na coleção verão 2007-2008, por sua vez, o estilista retorna à sofisticação clássica a partir do black tie, e o atualiza a partir da desconstrução do smoking masculino, tornado peça feminina, fazendo comparecer peças, por exemplo, em que o cravo da lapela é transformado no próprio vestido. O cromatismo se dá também a partir de combinações entendidas como clássicas: o preto, o branco e o vermelho. A coleção masculina, por sua vez, 285

também tem no preto e no vermelho suas cores fundamentais, mas agora associadas às bandas de death metal, com uso de maquiagem pesada (lembrando zumbis e outros monstros), botas pesadas com solas de trator, uso de capuzes como camuflagem aos monstros e de correntes com variadas penas pretas atadas ao pescoço dos modelos ou em toda sua roupa. No ano de 2007, a economia brasileira cresceu 5,4%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicados no jornal Follha de São Paulo. Teria sido a maior taxa de expansão desde 2004, quando atingiu crescimento de 5,7%. O aumento do consumo familiar brasileiro atingiu, por sua vez, alta de 6,5% (CIRILO JR, 2008). De acordo com Philippe Aghion, “países com maior volume de crédito e com índices mais elevados de capitalização na bolsa de valores apresentam taxas de crescimento maiores” (2008, p. 55). Advertindo que se trata de uma correlação, e não de causalidade, adverte que uma das principais barreiras ao crescimento das empresas nos países emergentes é a dificuldade na obtenção de financiamento, que podem, a rigor, ser conseguidos no mercado financeiro ou através do sistema bancário. Prossegue: “Os dados sugerem que, num primeiro momento, quando determinado país ainda está longe dos mais desenvolvidos, o financiamento bancário é mais importante. À medida que o país avança, o mercado de capitais se torna preponderante. (...) Nesse sentido, o Brasil parece bem posicionado, pois tem tanto um sistema bancário forte como uma bolsa de valores desenvolvida” (2008, p. 55). Isso ajuda a compreender o movimento que começa a ocorrer nas empresas de moda brasileiras nos anos 2000.

Na passagem para 2008, foi anunciada a aquisição de grifes brasileiras por holdings e fundos de investimento. Compuseram o anúncio marcas como Alexandre Herchcovitch, Isabela Capeto, Fause Haten e Ellus. Desde 2006, quando o grupo HLDC comprou a marca Zoomp, mais de dez negócios foram fechados. Além da HLDC, o fundo de private equity68 Pactual Capital Partners é outro grande comprador. A lógica é a mesma utilizada, nos anos 1980, por Bernard Arnault (da LVMH) na Europa: a aquisição de várias grifes, destinadas a distintos públicos, sob uma administração comum, mas com específicas direções criativas, associando o trabalho de administradores e estilistas, o que marca um novo momento na produção e gestão de moda. A mais rígida distribuição de funções e a assunção do caráter de funcionário de uma rede é relativamente recente no que toca o ofício do criador

68 Private equity (ou Fundos de Ativos privados) são uma forma de fundo de investimento que teve início nos EUA em fins dos anos 1980. Consiste, como o termo indica, em um investimento feito por um determinado grupo em uma empresa com potencial de crescimento (e, geralmente, de capital fechado) através da compra de participação acionária na empresa visada. A partir daí se estabelece uma parceria em que o grupo investidor acaba também por participar da administração do negócio. No Brasil, tal modalidade de investimento, cresce em especial a partir da segunda metade nos anos 1990, devido ao impulso econômico do período. 286

de moda – ainda que a própria concepção de estilista seja igualmente recente. Essas transformações podem ser compreendidas à luz das discussões a respeito do chamado “novo luxo”. A relação pode ser estabelecida devido a Bernard Arnault, cujas ações têm inspirado algumas das mudanças mencionadas quanto à gestão de moda no Brasil, ter reaquecido o decadente comércio de produtos considerados de luxo ao pôr sob sua administração diferentes grifes deficitárias, mas de nome internacionalmente conhecido. A racionalização da gestão e a maior capacidade de investimento das holdings e fundos de investimentos seriam um importante motor à expansão dos negócios num difícil mercado globalizado. No caso do Brasil, de acordo com entrevista de Herchcovitch (LEITE NETO, 03/01/2008), a participação de investidores tornaria factível a internacionalização, dificultada por uma série de fatores, como a incipiente profissionalização e mesmo a dificuldade de uma marca “terceiro mundista” obter reconhecimento ao competir com marcas européias ou norte-americanas com produção e reconhecimento já consolidados. Por outro lado, a participação de investidores, ainda segundo o estilista, possibilita maior democratização das peças comercializadas por conta do incremento da produção.

Alexandre Herchcovitch, que divulgou a venda de suas duas marcas (a Herchcovitch; Alexandre e Herchcovitch Jeans) em janeiro, anunciou, contudo, em princípios de abril de 2008, a desistência do negócio com o grupo I’M (Identidade e Moda), da holding HLDC Investimentos, o que ocasionou igualmente sua saída da direção de criação da Zoomp e do cargo de curador da I’M, evidenciando as dificuldades de transação e de determinação das tarefas de cada parte dos dirigentes (criativo e administrativo) na condução do negócio. Segundo o estilista, “as negociações não chegaram a bom termo” (FOLHAONLINE, 05/04/2008), confirmando a declaração de Mayer, do banco Morgan Stanley, de que a relação entre um estilista (criador) e investidores (voltados a lucro) carrega grande potencial de atritos (apud CAMARGOS, 2008). “Eles negociaram um valor e depois não tinham o dinheiro para pagar. Eu percebi e saí antes [que algum documento fosse assinado]”, afirmou Herchcovitch em entrevista a UOL Estilo-Moda (VASONE, 27/08/2008). De qualquer modo, aproveitando os favoráveis índices de crescimento econômico e o aumento da confiança nas empresas brasileiras, em termos de potencial de crescimento e cumprimento de compromissos, as aquisições prosseguem: em março, o grupo AMC Têxtil – que detém as marcas Colcci, Sommer, Carmelitas, o licenciamento da linha Coca-Cola Clothing e a Malhas Manegotti – adquiriu a totalidade das marcas envolvidas no rótulo TF (Tufi Duek, Forum Tufi Duek, Forum e Triton). E, para além das aquisições, os conflitos instaurados no processo e após a 287

confirmação da venda também são de interesse na interpretação da atual conjuntura da moda e do comércio em geral, afinal uma série de eventos desta ordem têm ocorrido em âmbito internacional, como o processo judicial promovido por Kenzo Takada contra o grupo LVMH pelo seu direito em usar a marca que leva seu nome ou os desentendimentos entre Helmut Lang e os dirigentes da Prada e que culminaram na saída do alemão dos trabalhos na grife. No Brasil, o estilista Fause Haten também anunciou, em junho de 2008, o seu desligamento em relação ao grupo I’M, cinco meses após ter vendido sua grife. Teriam sido selados três contratos. Dois deles se referiam às vendas da empresa e da marca, a serem pagas em parcelas mensais ao longo de quatro anos; o terceiro, por sua vez, se referia à função de Fause Haten como diretor de criação da marca. Até o mês de junho, o estilista teria recebido apenas a primeira parcela e nenhum dos salários como diretor de criação, cargo que exerceu até 17 de junho, segundo afirmação do próprio Fause Haten divulgada no caderno Ilustrada do Folha Online (LEITE NETO, 18/06/2008). “Entreguei a empresa capitalizada. Não era necessário fazer mais nada. Eu não fui atrás de dinheiro, mas de gestão, para que a empresa crescesse e eu pudesse me concentrar apenas na criação”, afirmou o estilista. Fause Haten criou nova grife, a FeagHa, com a logomarca FH. Quanto a Alexandre Herchcovitch, após a desistência do contrato com a I’M, entrou em negociação com o grupo InBrands. Criado em 2007, o InBrands é administrado pelo suíço UBS Pactual, um dos maiores bancos de investimento do mundo, de acordo com Carolina Vasone, em matéria para o UOL Estilo-Moda (19/08/2008). Em janeiro de 2008, Nelson Alvarenga, dono da Ellus e da Ellus 2nd Floor, vendeu, ainda segundo Vasone, suas marcas para a holding e anunciou a compra de 50% da InBrands. Pouco após, Isabela Capeto também entrou para o grupo. A divulgação oficial da parceria entre Alexandre Herchcovitch e a InBrands ocorreu em 25 de agosto de 2008, após cerca de quatro meses de negociação. Além da marca Alexandre Herchcovitch, o grupo InBrands passou a ser também sócio majoritário do São Paulo Fashion Week (SPFW), evidenciando, mais uma vez, a relação de proximidade e influência mútua entre Paulo Borges e Alexandre Herchcovitch. “A associação permite que haja o controle compartilhado da empresa. Por isso a InBrands chama [o negócio] de uma sociedade, não de uma compra”, conforme Alessandra Höhne, do escritório KLA-Kourey Lopes Advogados, representante da InBrands na aquisição dos 70% da empresa de Herchcovitch e de percentual não divulgado da Luminosidade, grupo de Paulo Borges que organiza o SPFW (VASONE, 27/08/2008). O interesse na empresa em grau acentuado é mantido a partir do momento que o estilista é mantido no negócio na condição de funcionário-sócio, o que lhe garante certa margem de autonomia e poder de decisão quanto a deliberações que dizem respeito à empresa e que são definidas como de sua 288

competência, através de contrato. A primeira ação da parceria com Herchcovitch foi a reforma da loja principal do estilista nos Jardins, em São Paulo, e o encaminhamento das reformas das outras três lojas próprias da grife: uma também em São Paulo, outra em Brasília, e a terceira em Belo Horizonte. “O próximo passo é separar a marca de jeanswear [mais jovem e barata] do prêt-à-porter. Devemos inaugurar a primeira loja só de jeanswear este ano, em São Paulo”, afirmou o estilista, que indicou ainda fazer parte dos planos de expansão a inauguração de mais oito lojas próprias no Brasil e o projeto de uma loja em Nova York. A InBrands, conforme Höhne, cuidaria apenas da parte administrativa da empresa; no entanto, Herchcovitch manteria poder de veto em diferentes circunstâncias, inclusive a de uma possível venda da empresa. O estilista assinou contrato para se manter como diretor criativo da grife, por tempo não revelado. Em outros termos, a partir dos anos 1980 nova fase parece ter iniciado no que se refere à produção de moda e que tem gerado um novo termo para definir o “profissional-criativo”. De costureiro (alta costura) a estilista (prêt-à-porter), a atual função desses profissionais no novo formato de seus empreendimentos é de “diretor criativo”, o que é bastante revelador da atual conjuntura. Segundo Dana Thomas (2008), trata-se de uma autodenominação dos estilistas surgida nos anos 1990. A função de diretor aponta um específico formato de gestão, em que tal profissional assume a coordenação de uma equipe no toca à criação de peças, ou seja, dentro de uma empresa marcada por acentuada especialização de tarefas. Criação e administração se transformam em segmentos distintos na condução dos “negócios da moda”, um formato recente na história do vestuário. Em agosto de 2008, já em associação com a InBrands, Herchcovitch reinaugurou sua loja, nos Jardins, em São Paulo, após uma grande reforma. Agora a loja inclui a casa anexa, antes ateliê do estilista, que, por sua vez, passa a funcionar em um galpão no bairro de Barra Funda, junto à fábrica. A nova loja, segundo Lilian Pacce (2008), atende ao aumento do tamanho das coleções e separa melhor as linhas Herchcovitch; Alexandre e Herchcovitch; Jeans. Além disso, a nova loja comercializa livros e produtos licenciados pelo estilista. Do mesmo modo que a loja em Tóquio, a fachada da loja paulista ganha aplicações de lambe-lambe, o que permite a mudança da estampa que compõe a fachada da loja a cada nova coleção.

Processo criativo em moda, segundo Herchcovitch “Minha história é moda. E moda é negócio, por esse motivo no exterior o segmento é conhecido por indústria da moda” (2007, p. 39). Essa frase, que foi posta na introdução desta pesquisa, é o ponto de partida fundamental na compreensão do modo como 289

Herchcovitch concebe o processo criativo em moda. Tanto o trabalho que o estilista desenvolve é dependente da noção que tem sobre moda e, conseqüentemente, sobre o ofício do estilista, como a noção de moda e de estilista que carrega muda em função de sua trajetória de trabalho. Ao mesmo tempo, poderíamos afirmar que o reconhecimento que tem conseguido obter, com as críticas favoráveis na imprensa e os resultados nas vendas (observável através da expansão de sua marca), funcionam como uma reafirmação de suas bases de trabalho. Herchcovitch tem inserção (mesmo diferenciada) nos principais eventos de moda nacionais e internacionais, bem como angariou relativo destaque nos meios de comunicação – com participação, por exemplo, no júri do programa Fantástico, em fevereiro de 2009, para escolha de uma modelo em início de carreira para ser “Garota Fantástica” e participações especiais em telenovelas da Rede Globo, a exemplo de “Malhação”, “Desejo de Mulher” e “Belíssima”. O estilista também foi convidado a participar de exposições em galeria de arte, apresentando “objetos da moda em estado de arte” (2007, p. 52); em acréscimo a peças de suas coleções que passaram a ficar expostas em museus, conforme descrito em momento anterior. Inclusive o livro Cartas a um jovem estilista, que compõe a série Cartas a um jovem..., também pode ser considerado uma demonstração do reconhecimento do estilista paulistano, que, afinal, foi escolhido dentre diferentes profissionais em sua área a participar do projeto, que envolve a descrição do trabalho e uma série de sugestões àqueles que se interessem pela “moda como profissão”. A partir disso, Herchcovitch acaba reforçando sua percepção sobre moda e difundindo-a para outros profissionais ou aspirantes ao trabalho com moda, seja através de suas declarações públicas à imprensa (em entrevistas e artigos jornalísticos), seja através de livros, como o mencionado, ou mesmo a partir de sua atuação no curso de Design de Moda do Senac-SP. Nesses termos, enquanto indivíduo que conseguiu alçar posicionamento de prestígio, Herchcovitch funciona simultaneamente como catalisador de sua época e peça destacada na construção dos encaminhamentos futuros da moda no Brasil. Não se trata, contudo, de percebê-lo descolado da rede do qual faz parte, mas perceber que tais relações envolvem assimetrias que acabam com conferir pesos diferenciados aos indivíduos que a compõem. Um exemplo é o próprio modo como Herchcovitch se reporta a Dener:

Deve-se lembrar que, lá no final dos anos 60 e início dos 70, foi o costureiro Dener que vislumbrou a possibilidade de não perder suas raízes, de fazer concessão a seu imaginário de alta-costura e cair no prêt-à-porter fazendo peças em jeans (coisa que abominava) com uma jogada de marketing muito à frente de seu tempo. Pioneiro por diversos motivos, Dener fechou contrato com uma empresa de azulejos e meias, para viabilizar a saúde financeira de seu ateliê e de seus luxos caríssimos. Um visionário? Sem dúvida alguma! Pena que vivia numa era de glamour extremo, quando os estilistas eram 290

engolidos por plumas e paetês. Mas também por uma avalanche de contas vencidas. (2007, p. 78/79). Herchcovitch é tributário de Dener. Mais que isso, podemos afirmar usando termos simmelianos que Herchcovitch é herdeiro de Dener e de sua época. No entanto, a herança não significa mera reprodução de um modo de vida e de condução do ofício. Herchcovitch elogia as inovações de Dener e se lastima pelas condições de sua época, que compeliram a que sua inventividade ficasse submetida a determinado modo de vida marcado por luxo, festas e bebida a ponto de comprometer a sua saúde física e financeira. Herchcovitch usa sua “herança” de modo a ajudar a construir outro modo de engajamento do estilista com seu trabalho. Ao destacar que a moda é tida, no exterior, como negócio – a indústria da moda –, busca se alinhar ao norteamento seguido nos lugares em que a moda tem história consolidada. Ora, a partir do momento em que se afirma que a moda é um negócio, a clientela torna-se fundamental, reposicionando o papel do estilista em relação a ela. Diferente do pretendia Worth, que se promovia pela afirmação de sua ditadura e assim destacava o papel da inspiração e da intuição no processo criativo, Herchcovitch dignifica o papel da pesquisa para a efetivação de um trabalho de resultados satisfatórios. Ao tecer elogios a Christian Dior, o estilista brasileiro ressalta os elementos que considera imprescindíveis para o aumento das vendas e incremento da imagem do estilista: conhecer os corpos, as mentes, as vontades, o momento e a conjuntura econômica e sociopolítica. Herchcovitch opera com a noção de vocação, que ele aciona ao se reportar ao encantamento com as roupas da mãe e as sugestões que começa a oferecer desde a infância quanto à roupa e maquiagem de d. Regina. No entanto, do mesmo modo que Dener e que Worth, através do acompanhamento de aspectos de sua trajetória, o papel dos estudos comparecem com significativo destaque. E isso ajuda a justificar o distanciamento crescente do autodidatismo como mecanismo que, apesar de válido, é demorado e incerto. Como mencionado, Herchcovitch acaba se transformando numa espécie de evidência da validade dos cursos na área por ter sido um dos frutos das primeiras turmas de nível superior em moda. De qualquer modo, há um crescente distanciamento de uma acepção mais ingênua de “dom”, enquanto um presente que permite prescindir de estudos, de preparo. Por outro lado, é importante ressaltar, não há qualquer afirmação de que o estudo deva ser formal; apenas encontram-se aconselhamentos quanto a isso como um mecanismo auxiliar na condução da formação daquele que trabalhará em moda.

Contudo, a pesquisa tem papel não apenas enquanto formação inicial para aprendizado do fazer costura e do que tem sido feito em costura pelos profissionais já reconhecidos. Herchcovitch menciona o papel, por exemplo, dos relatórios de vendas no 291

direcionamento das criações futuras. Uma vez que a concepção do estilista como ditador de moda cede lugar ao atendimento dos desejos da clientela, mecanismos começam a ser desenvolvidos no sentido de permitir a detecção dessas supostas vontades, estimadas a partir da determinação do que teriam sido os pontos de força da coleção, a serem ainda reforçados nas próximas criações, e os pontos fracos, a serem revistos. Tais pesquisas muitas vezes se dão na forma de questionários a serem respondidos pelos clientes após a efetivação das compras. Se o estilista deve saber articular a conjuntura socioeconômica e cultural à detecção das possíveis vontades dos clientes e ao modo como funcionam suas “mentes”, a noção de processo embutida numa concepção de história como simultâneas continuidades e transformações acaba ganhando considerável espaço e renovando a própria idéia de novidade, sempre atrelada à moda. Do mesmo modo que os desejos de individualidade reconfiguraram a noção de moda, antes entendida meramente como produto destinado a imensa gama de pessoas, e agora se dirige à idéia de oferta de opções de peças para a construção de uma aparência “individualizada” (pois a clientela é internacional, permitindo a manutenção da sensação de raridade do produto, mesmo quando há produção de significativa quantidade de peças), a novidade deixa de ser compreendida como ruptura completa em relação ao antigo, como o foi no século XVII. “Se mudar a cada coleção é preciso”, afirma Herchcovitch, “um bom estilista deve saber que a coleção seguinte (...) tem obrigação de revelar a identidade do estilista, deve carregar sua marca registrada, a fim de se destacar dos demais profissionais e ser um chamariz atraente para a clientela” (HERCHCOVITCH, 2007, p. 08). A novidade também significa, portanto, mudanças na continuidade; em outros termos, o modo como cada estilista se posiciona frente ao desafio de manter uma assinatura pessoal, uma produção identificável que permita a manutenção da fidelidade de sua clientela e, pois, a continuidade das vendas, e, simultaneamente, continue estimulando o consumo pela apresentação de algo renovado. O próprio Herchcovitch menciona que, no início de sua carreira, tinha maior preocupação em, a cada coleção, romper com o que tinha produzido anteriormente, mas demonstra haver mudado no sentido de buscar elos de continuidade que criem uma “identidade” entre suas diferentes produções. A continuidade entre coleções também é importante, pois é o tempo em que as próprias novidades, inicialmente rejeitadas, podem passar a ser aceitas e incorporadas. O movimento passa a ser lento e contínuo: a depender, uma inovação pode levar até três coleções para começar a ser usada. No entanto, é interessante observar como Herchcovitch constrói sua solução para a questão posta: como ter uma assinatura identificatória (um estilo pessoal) sem criar obstáculos à apresentação das inovações que são imprescindíveis às vendas? No que se refere à moda, apresentar novidades, 292

ser criativo é uma exigência, uma norma que direciona os trabalhos. Em lugar de manter-se fiel a determinado tipo de peça ou material utilizado, que pode levar ao esgotamento e fragilização da proposta criativa, Herchcovitch desloca a sua assinatura pessoal, como anteriormente afirmado, para sua estratégia de criação. É nesse sentido que ele pode fazer uso de cores sóbrias numa coleção e apresentar, na seqüência, uma coleção alegre de cores exuberantes; ou pode fazer uso de referências militares numa coleção e românticas em outra. Ou ainda se utilizar de artesanato e tecidos tecnológicos (hi-tech). Sua assinatura está no pôr em jogo elementos diversificados; isto é, está em aproximar, desse modo, aquilo que convencionalmente seria percebido como distante. Assim, Herchcovitch abre infinitas possibilidades para a criação: quantos elementos estarão em jogo; quais; o que toma de cada um; como estarão articulados. Desse modo, Herchcovitch começa a experimentar as combinações possíveis, como uma espécie de jogo matemático, que o permite, inclusive, ultrapassar as fronteiras convencionais de compreensão de uma suposta moda brasileira; isto é, de uma moda feita no Brasil a partir de características nacionais. Quando a idéia de que “o Brasil está na moda” começou a ganhar força, uma série de trabalhos a partir das cores da bandeira nacional, de técnicas populares de fabrico (artesanato de renda de bilro, por exemplo) ou estampas ligadas à noção do tropical começaram a se destacar. Um exemplo foi a coleção de moda praia da Rosa Chá com corte moderno e estampas inspiradas em lendas amazônicas ou os trabalhos de Carlos Miele com inspiração no candomblé e uso de fuxico nas roupas que desfilava em Nova York. Como mencionado, Herchcovitch também começa a criar coleções com apelo ao nacional. No entanto, o modo como ele começa articular discursivamente sua estratégia criativa com a noção da mistura como modo brasileiro de processamento cultural o permite prescindir desse tipo de apelo. Isto é, ele se coloca como brasileiro em qualquer produto que fizer e, em especial, quanto mais ousar nas sínteses que produzir. Como sínteses, os resultados seriam únicos. É desse modo que ele afirma buscar um produto “100% brasileiro” e com silhueta que permita ser usado por uma pessoa de qualquer lugar do mundo:

Devo ter consciência de que, ao criar, devo agradar minha clientela, que é formada por 60% de mulheres e 40% de homens. E, mais do que tudo, busco trabalhar com uma linguagem universal. Talvez por ter nascido em São Paulo, um caldeirão cosmopolita que condensa várias nacionalidades e etnias. Claro que há muito do Brasil em meu trabalho. Sou absolutamente brasileiro no que tange à escolha de inspirações, que sempre se conectam com algum momento de minha vida. A diferença é o modo de reprocessar informações e transformar em algo que as pessoas decodifiquem, como uma viagem bem pessoal, única mesmo. Se vou trabalhar com o verde e o amarelo (...) vou encontrar o tom exato de verde e amarelo e um discurso 293

que me convença artisticamente do motivo pelo qual devo trabalhar com um amarelo mais alaranjado ou um verde mais fechado. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 24). Mais uma vez, apresenta-se em seu texto o distanciamento em relação a uma concepção vulgar do artista. A criação não se dá por intuição; as escolhas devem ser racionalmente fundamentadas, até a medida do possível, para ganharem a coerência que lhes permita a aposta do investimento enquanto coleção. Definido como negócio, o trabalho com moda passa a ser uma profissão dentro de uma empresa privada com fins lucrativos que demanda resultados, medidos em vendas, para sua continuidade. As criações estão em função das vendas possíveis. Por isso a importância do argumento e da pesquisa de mercado, que, obviamente, não se limita aos relatórios de vendas da empresa, ainda que estes sejam importantes. A pesquisa envolve leituras variadas acerca das características do consumidor, das propostas feitas pelos nomes de maior reconhecimento na moda internacional (pois ajudam a confirmar determinados gostos), encomendas de pesquisa em observatórios de tendências (para apontar o que está sendo usado nas ruas) e, claro, trabalho contínuo de observação, em especial nas ruas. São os chamados grupos “alternativos” ou grupos de camadas populares ou ainda de lugares recônditos do planeta a fonte, por excelência, dos estilistas, que buscariam, nos dias atuais, transformar essa “matéria-prima” em possibilidades mais amplas de consumo. As garantias de aceitação são maiores, desse ponto de vista, posto que já está em uso ainda que moderado e/ou restrito. Quanto a Herchcovitch, se qualquer elemento/tema pode ser tomado como inspiração, a característica fundamental do criador acaba consistindo numa espécie de treinamento do olhar, como discute Baudelaire a respeito da curiosidade infantile e de sua diferença quanto ao artista adulto. Ou, se preferirmos, do olhar do estrangeiro de que trata Simmel. Considerando a história nacional da produção de vestuário e o papel dos imigrantes nesses processo, acabamos sendo obrigados a relembrar as origens de Herchcovitch, sua criação em colégio judeu ortodoxo, o modo de relação e “olhar” dos judeus para com não-judeus (e em contexto brasileiro), os meses que viveu em Israel, sua inserção na chamada noite underground paulista, a experiência em instituição católica de ensino... Por excelência, Herchcovitch cultivou o trânsito como modo de vida, e a síntese como processo de trabalho. Um está na dependência do outro.

É interessante observar como a discussão sobre dualidades é apresentada a partir das produções de Herchcovitch. Sagrado/profano, eterno/efêmero, homem/mulher, esconder/mostrar são postos em articulação, ao mesmo tempo em que emerge a questão sobre a relação mesmo entre corpo e roupa. Moldura, prisão, conforto, adorno, mentira são 294

confrontados na exibição do corpo, no envolvimento do corpo pela roupa, no cobrimento do rosto que torna a celebrizada modelo dos anos 2000 anônima sob a roupa. A preferência de Herchcovitch, inclusive, é por modelos andróginos que desaparecem sob os panos, ao mesmo tempo em que borram as fronteiras construídas entre os gêneros. Um exemplo do jogo também pode ser percebido na fita do Senhor do Bonfim, normalmente usada por um dono desejoso de seu fim próximo para atendimento dos pedidos e tornada jóia de material resistente “eternizando-a”. No entanto, a interrogação posta sobre os pares duais lhe abre caminho para problematizar também a noção de pares de oposição, o que cria oportunidades novas para estabelecer cruzamentos entre variados elementos ou temas que seriam entendidos, à primeira vista, como sem relação entre si (e para além da restrição a pares). O trabalho de Herchcovitch ganha impulso e maturidade quando se propõe a estabelecer relações entre distantes. O inusitado de seus resultados não está nos elementos em separado que toma como inspiração, e sim no jogo que os afina e transforma. Os elementos e temas são convencionais, apesar de buscados em diferentes lugares e épocas. “Para deixar essa fonte de criatividade sempre na ativa, o melhor caminho é passear entre mundos. Interligar áreas afins e somar um olhar curioso sobre coisas distintas”, afirma Herchcovitch (2007, p. 52). Na coleção Verão 2009, apresentada no São Paulo Fashion Week na data de 20/06/2008 – isto é, em meio às turbulências que envolveram seus contratos com empresas de investimento – Herchcovitch lança a coleção feminina intitulada “Exército do amor”. Nessa coleção, Herchcovitch toma como inspirações a estética militar, com seus tecidos mais rígidos, e mistura o militar à fluidez do rococó do século XVIII, com tecido em seda e xantung. O desfile inicia militar com toques da fluidez do século XVIII e paulatinamente cambia se tornando rococó com toques militares. A própria mistura é tematizada pelo estilista, que, na coleção anterior (Inverno 2008) apresentou uma coleção sem tema, que, segundo ele, era apenas um estudo das formas (com ênfase numa concepção geométrica) e dos tecidos, que apareciam misturados. Ou seja, as sínteses são o ponto nodal da produção de Herchcovitch e que o aproxima de seus antecedentes judeus em sua história de errância pelo mundo, bem como do papel do dinheiro no mundo capitalista, das características que marcam os usos das roupas no século XXI (hi-lo, customização, vintage) ou ainda daquilo a que Simmel e Elias, por exemplo, definem como característico do humano (a construção de pontes). No entanto, se qualquer “coisa” pode ser tomada como inspiração, é a trajetória do estilista que definirá o que será tomado: uma lembrança, um filme, um livro, uma viagem, uma reportagem, uma conversa, uma caminhada... No entanto, “Como lidar com esse batalhão de informações que já foram objeto de estudo de vários estilistas antes de você e viraram teses acadêmicas sem se intimidar?”, 295

pergunta o estilista, a que responde na seqüência: “Nessa hora, além de se valer de talento e senso crítico, faz-se obrigatória a presença de pessoas influentes para ajudá-lo a trilhar o caminho certo” (HERCHCOVITCH, 2007, p. 37). Nos anos 1990, a figura do estilista começou a ser celebrizada a partir, em especial, dos trabalhos de Tom Ford à frente da Gucci, empresa tradicional, mas que sofria com produtos considerados defasados e uma série de problemas familiares que quase arruinaram a empresa. A Gucci, especializada inicialmente em malas, bolsas, cintos e sapatos lança como estratégia a aliança em relação ao mundo de criação de criação de roupas. Com isso, e ajuda de um jovem estilista (como foi característico do período), buscou rejuvenescer a marca, ao mesmo tempo em que a levava às passarelas apresentando sua coleção de acessórios e complementos junto às roupas de Tom Ford. A estratégia foi bem sucedida, e Tom Ford, enquanto estilista, ganhou notoriedade. Contudo, é perceptível no livro escrito por Herchcovitch, sua preocupação em enfatizar as diferentes possibilidades de atuação em moda para além do estilismo. Mais uma vez, a transformação nas categorias de definição, no caso, no que se refere àqueles que trabalham com moda nos ajuda a compreender o processo em curso. Definir-se como diretor criação, tal como os estilistas passam a se autodefinir nos anos 1990 significa um modo de afirmação do modo como sua profissão se dá. Evidencia-se, por excelência, o trabalho em equipe, com especialidade de funções. Como diretor de criação, o trabalho do estilista deixa de ser compreendido como solitário e autônomo; seu papel é coordenar as diversas atividades que compõem o setor de criação da empresa. Em outros termos, a criação é conjunta, o que fica mais evidente quando o estilista não é o dono da marca, da empresa onde trabalha. A marca Herchcovitch; Alexandre remete ao indivíduo Alexandre Herchcovitch que lá trabalha como estilista; no entanto, esse não é o caso de muitas das atuais empresas de moda, que contam com indivíduos contratados para fazer parte da equipe de criação. Não se trata, por outro lado, de falta de hierarquia, mas de um modo de expressar a complexidade de funções e o aumento da quantidade de pessoas que têm papel de relevo no processo criativo. A descrição da atuação de Maurício Ianês dentro da empresa nos serve como interessante exemplo. Segundo Ianês, em entrevista a UOL Estilo,

O stylist, ele tem que entrar na cabeça do estilista um pouco como estilista, mas procurando adicionar novas idéias, novas referências, novos desdobramentos das idéias que o estilista teve para complementar e reforçar alguns pontos da coleção para apresentar no desfile; que o desfile, enfim, ele tem, claro, um apelo comercial, né, você está mostrando uma coleção. No fim, é tudo para vender, vender mais e crescer o nome da marca, tal, mas você tem sempre que mostrar sempre uma coisa de novo, uma coisa que vá conquistar também os formadores de opinião, a imprensa, e que vá estimular 296

o mercado da moda com uma novidade que vá refletir no consumidor. (20/06/2008). É nesse sentido que uma série de profissionais comparece no sentido de alimentar a gama de referências passíveis de serem conjugadas, de avaliar o que está sendo proposto em função das pesquisas de mercado, dos relatórios de vendas e da coerência da proposta em função do todo da coleção. Além disso, poderíamos mencionar os trabalhos dos designers que desenvolvem as estampas solicitadas (ou oferecem seu produto como passível de uso por dado estilista), as cores desenvolvidas pela indústria química, os novos tecidos produzidos nas indústrias têxteis, dentre outros profissionais e empresas. Ser estilista no Brasil, para Herchcovitch, é um trabalho que o prepara em sua ambição de vestir o maior número possível de clientes. Ou seja, prepara-o também em seus planos de internacionalização do negócio. País de dimensões continentais, no Brasil há diferentes climas, costumes, gostos e mesmo estruturas corporais. “Abastecer as araras de lojas multimarcas do Brasil é como brincar de quebra-cabeça”, afirmou (2007, p. 69). Por isso, o trabalho pautado em relatórios de vendas ganha importância. No entanto, Alexandre Herchcovitch reafirma que mesmo a escala dos negócios e a atenção à clientela exigem que o criador conte com uma equipe de trabalho: “Dinheiro e prestígio decorrem de muitas horas de trabalho, gastas não apenas pelo estilista. Um dos talentos mais notáveis que um criador deve ter é o faro aguçado para se cercar de profissionais e de uma equipe afinada, em que cada um saiba exatamente seu papel dentro da engrenagem” (2007, p.13). A constituição de equipe de trabalho parece, segundo a afirmação do estilista, diminuir as “chances de erro” na condução do negócio. Daí o estilista se afirmar como um diretor, um coordenador dos indivíduos que participam da rede de modo a manter a coesão do conjunto. Mais uma vez, Herchcovitch nega o papel da intuição e acentua o do profissionalismo. É nesses termos que decreta o fim do croqui artístico. O croqui tem uma finalidade: é um projeto, aos moldes de um projeto arquitetônico, que tem um papel preciso dentro de uma engrenagem marcada pela rapidez exigida e por cada vez mais acirrada concorrência, como pontua o próprio Herchcovitch ao tratar da situação brasileira específica e também da busca por internacionalização do negócio. Enquanto esboço a ser executado por um conjunto de profissionais, sua “linguagem” deve ser clara e precisa, em primeiro lugar (e não bonita, que se torna questão secundária). À época de Worth, que não sabia desenhar, o croqui foi alçado à condição de uma espécie de pintura a ser admirada por sua beleza; atualmente, do mesmo modo que o estilista se torna profissional, o desenho se torna mais técnico (menos artístico e mais profissional, portanto). Ao estilista se torna mais importante, como afirmou Herchcovitch, conhecer o processo de produção de uma roupa e saber os preços 297

dos aviamentos que usará para que estejam em conformidade com o orçamento pré-definido. O processo criativo é assumido na falta da liberdade; liberdade esta que nunca chegou efetivamente a ter.

Em resumo, ao questionar as dicotomizações, Herchcovitch se distancia do rótulo e da busca pelo artístico e se coloca como pesquisador e, como tal, assume a postura do estrangeiro que, à distância, busca perceber nuances e estabelecer sínteses surpreendentes por não ter o olhar “naturalizado” acerca do que está à sua volta. É nesse sentido, talvez, que Herchcovitch apregoa a própria errância, presente em sua polivalência e em seu conselho ao jovem estilista para que ele experimente diversas situações, lugares, hobbies; para que ele, enfim, transite. Se a marca daquele que faz é o movimento, o seu resultado é essa síntese que abriga o múltiplo em uma unidade que é desconfortável (porque tenderíamos aí a negar a unidade possível) e, simultaneamente, harmônica em seu caos, como ele tematiza na coleção 2009. Desse modo, seu trabalho ganha destaque por ser uma expressão de características fundamentais das interações de início de século XXI. No entanto, como não existe coincidência possível, ajuda a abrir espaço a transformações talvez não premeditadas. Ao retomar elementos do geométrico e da alfaiataria, o esquema matemático de que se vale Herchcovitch propõe um acerto de regulação entre o comercial industrializado, produzido em série, e o sob-medida. Repensar as confluências, contudo, está longe de qualquer crença possível em “pontos finais”. O jogo estaria na busca e nas diferentes respostas cabíveis, que nos permitem permanecer no jogo e perceber os formatos que o mundo pode assumir a partir dos movimentos de peça que fizermos. Tudo passa a depender daquilo que se aponta e se põe em movimento de distância ou aproximação. Talvez, Herchcovitch seja um representante exemplar das sinapses entre a arte, a álgebra do engenheiro e o virtuosismo do artesão de que tratou Georg Steiner.

Quando digo que o croqui artístico acabou, refiro-me muito mais a uma maneira antiga de pensar e fazer moda. (...) O que o mercado espera (e mais que isso, exige!) de um bom profissional hoje é que ele saiba o preço de um botão e entenda todos os processos de confecção de uma roupa. E colocar o máximo de informações, porque hoje o desenho é acoplado a uma ampla ficha técnica para facilitar a vida da modelista, que, a partir daí, vai traduzir e saber onde determinar com exatidão a bainha, o decote, o comprimento... Sem falar na garantia de aumentar sua margem de acerto e a roupa ficar pronta tal qual o desenho, como você imaginou, e seguindo uma previsão de custos. É a hora exata de colocar o pensamento criativo na vida prática e aliar no mesmo momento a nova equação do segmento de moda que diz: criador=administrador. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 58-59). 298

O caráter de administrador se relaciona à necessidade de o estilista ter em mira questões relacionadas a custos, orçamento e resultados. É administrador ainda no que se refere ao comando de uma dada equipe (ou equipes). No entanto, não significa necessariamente que o estilista deva ser dono do negócio ou o responsável pelas finanças como acontecia nas empresas familiares. As experiências de negócios mal-sucedidos por conta de criadores que se viam obrigados a acumular tarefas ligadas à administração financeira dos negócios, a necessidade de financiamentos de vulto para manter as empresas frente à concorrência global, bem como o desenvolvimento mercado financeiro, para além do sistema bancário, permitiu uma nova formatação dos negócios que estimula a especialização das tarefas. A afirmação do criador que deve ser administrador é conjunta a essa especialização que permite que o estilista tenha uma função específica dentro da empresa. No entanto, como uma rede que integra diferentes nódulos (setores) de funções, portanto, interligadas, a visão do todo e dos objetivos da empresa (expansão e lucro) não podem ser perdidos de vista e ajudam a direcionar as diferentes atividades. Nessa configuração, o criador pode, diferente de seus antecessores, se dedicar à criação (como aqueles desejavam), mas não pode esquecer de que se trata de uma empresa que precisa de justificativas comerciais para permitir a continuidade das ações (e das coleções). Ao abrir o capital da empresa e vender parte das ações da marca para uma empresa de investimentos, Herchcovitch teria, pois, a oportunidade de se ater mais às questões ligadas à criação. Contudo, a especialização das funções, tal como ocorre, apesar de se manter em conformidade com a estrutura convencional de empresas capitalistas, parece pôr em risco, de qualquer modo, a noção do criador administrador. Não estaria ele mais livre nesse atual contexto? Esta pesquisa foi construída a partir da idéia de que à afirmação da moda como arte e do estilista (ainda denominado apenas costureiro) como artista teria sido substituída, em termos de acento discursivo, pela noção de moda como negócio, reposicionando o estilista na relação com o seu trabalho. No entanto, arte e negócio não são aqui tomados como pares dicotômicos, e sim como pólos abstratos, idealtípicos, dentro de um mesmo continuum. Funcionam mais propriamente como uma espécie de degradée em que se torna impossível estabelecer qualquer ponto de corte através do qual as cores possam ser efetivamente separadas. Envolveu sempre criatividade e negócio, mas ressaltando ora um (a ponto de permitir a afirmação como arte) ora outro (a ponto de permitir a negação da arte e afirmação do negócio). Elas formam uma totalidade heterogênea em sua mescla, mas, ainda assim, uma unidade inquestionável. Por isso teríamos a mudança de acento nos discursos sobre moda em função de uma série de transformações em processo. Nesses termos, a especialização das tarefas demonstra que o estilista deve ter preocupações comerciais, mas não se transforma,

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por isso, no criador-administrador em sentido estrito. O pêndulo não vai de um pólo a outro de definições, afinal recairia no idealtípico. No entanto, deve-se compreender a afirmação, presente também em Herchcovitch, de que a moda é negócio como descolamento de uma pretensão de que a moda corresponda a um ideal artístico inexistente para a própria arte – levando em consideração artistas que pretendem “sobreviver de seu trabalho com arte”. A heresia da moda está em evidenciar a arbitrariedade de certas categorias e classificações socialmente construídas. Do mesmo modo, a afirmação do negócio de forma tão categórica no que se refere à moda parece se aproximar mais de uma tentativa de ajuste das categorias usuais, ainda que polêmicas, em relação a um exercício profissional que passou por muitas transformações em um intervalo curto de tempo. A ênfase de Herchcovitch parece assumir um caráter de tentativa de afirmação, de convencimento do outro, de difusão da concepção de que há/havia um engano na identificação do estilista com o artista e da moda como uma arte; do mesmo modo que talvez haja um engano em recair naquilo que se compreende como o pólo extremo oposto. É como se ainda fossem buscados os termos adequados que consiguissem ser mais congruentes com a realidade, fugindo das dicotomizações com que fomos historicamente ensinados a olhar o mundo. E os trabalhos de Herchcovitch, no modo como problematizam as dicotomizações e propõem novas unidades como aproximação entre distantes, por um lado, e sem restrição da quantidade de temas postos em diálogo, por outro, acabam se coadunando com esse momento de reestruturações e redefinição de categorias.

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CONCLUSÃO

Na história da moda ou quando se cita a cronologia de algum estilista, há sempre um fato interessante: na maioria dos casos, seja pela situação sociopolítica ou cultural, ou ainda pela tendência de moda daquele momento, parece que um criador se destaca por propor o look certo, no período certo, que expõe aquele ponto de inflexão, a virada do momento. (HERCHCOVITCH, 2007, p. 21). O questionamento quanto à mudança de acento discursivo na definição da moda, ora como arte e ora como negócio, ao longo de pouco mais de um século de história significa um interesse evidente em compreender a relação entre processos e categorias sociais. E, nisso, uma noção ganhou crescente espaço em diferentes momentos do trabalho: a de síntese. Desde a discussão sobre aquilo que distingue o ser humano de outros animais, de como a história humana foi marcada por níveis crescentes de síntese, até a investigação sobre afinidades eletivas, criatividade e, especificamente, criação de moda em Herchcovitch e mesmo os usos que têm caracterizado os anos 1990 e 2000 (no que se refere à moda), houve o contínuo resgate do termo evidenciando sua importância como categoria sociológica de compreensão. É exatamente por isso que a moda nos serve como um tema interessante. Relegada a uma espécie de limbo quanto a seu “valor sociológico”, discutir moda significa dar conta do supérfluo como uma construção social que, portanto, deve ser compreendida à luz de intrincados processos de disputa pelo poder de classificar as coisas do mundo. O desconforto em relação ao supérfluo está na ordem de importância que a ele, o “sem importância”, vem sendo atribuído cotidianamente. Em outros termos, nos remete ao movimento constante de redefinição de tensos equilíbrios de poder, que vão consideravelmente além daquilo que o termo “supérfluo” nos apresenta de antemão. O interessante em tomar a moda é justamente a dificuldade em classificá-la de modo apropriado, seja na apreensão de século XIX, seja ainda na de século XXI. O que é perceptível, no entanto, são tentativas de construir categorizações mais conformes com os jogos de interação que nos amarram e, nisso, como ocorre com essas mesmas interações as categorias vão sendo continuamente ajustadas. No caso da moda, como apontado, as suas ambivalências foram lidas como impureza e mesmo precariedade. É como se as características entendidas como fundamentais na moda estivessem no cruzamento entre arte e economia, tomadas como antagônicas. O trabalho com moda parecia ser a depreciação do artístico, por um lado, e a depreciação do econômico, por outro. O “lugar” de tensão, 301

contudo, é aqui tomado como privilegiado para a compreensão das interações humanas, uma vez que explicita de modo vivaz as disputas e os indivíduos nelas envolvidos. Se as categorizações construídas são simbólicas, elas mantêm um elo fundamental com aquilo de que partem. São expressões. Contudo, como tais, não podem ser confundidas com duplicações. Os símbolos são sínteses, articulações e, portanto, mantêm caráter criativo e se distinguem dos “elementos de origem”. Por outro lado, a partir do momento em que se transformam em categorias de uso social, como afirmou Simmel, ajudam a construir o mundo, que se fundamenta em processos de sínteses de sínteses, simbolizações de simbolizações em escala crescente. Por isso as transformações são contínuas, e as rupturas episódicas.

Em vista disso, é importante observar que as definições de século XXI assumem, ainda que desconfortavelmente, uma postura mais questionadora quanto às dicotomizações. Nos termos e nos usos, é perceptível a ênfase numa idéia de “mistura”, e isso ultrapassa a moda. “Misturar” é articular. Assim, aqueles que pautam seus trabalhos em inusitadas misturas (sínteses), percebendo as possibilidades de diálogo entre diferentes e buscando harmonizações que não aniquilem as diferenças (problema fundamental da tentativa de equacionamento entre o coletivo e o individual com que pensadores e ativistas políticos se defrontaram com a individuação) parecem ganhar respaldo num jogo de interações em que a assimetria é ainda muito grande. Ao mesmo tempo, percebe-se que há uma infinidade de resultados possíveis em decorrência das misturas. Em outros termos, nem sempre a virtude está no meio-termo. Assim, a circulação que favorece o acúmulo de uma bagagem ampla de conhecimentos se torna requisito fundamental. Esse estoque de conhecimentos é construído no movimento de passagem por grupos com características distintas, cidades, países, filmes, livros, relatos históricos... Não haveria fórmulas e, considerando a diversidade que os grupos humanos conseguiram criar em suas específicas trajetórias, bem como as diferentes escolhas (pois são olhares particulares) e sínteses, haveria nisso renovado fôlego criativo, a despeito das reiteradas limitações alardeadas por Barthes quanto ao corte das peças de roupa.

Talvez a síntese que aponta para o diálogo possível entre diferentes a ponto de constituir como resultado totalidades internamente heterogêneas a partir da diversidade seja um dos fatores desse ponto de inflexão de que mencionou Herchcovitch e que ele apresentou na sua coleção para o Inverno de 2009 com a inspiração declarada no caos urbano. A temática e o modo de apresentação da coleção Verão 2008-2009 igualmente sugeria a mesma concepção ao apresentar looks militares com toques de leveza e romantismo que foram cambiando, ao decorrer do desfile, a ponto de o encerramento ter se dado em looks leves e 302

românticos com detalhes militares69. E, por isso, a noção de síntese compareceu em tantos momentos ao decorrer deste trabalho, inclusive no recurso à configuração e às afinidades eletivas como aporte para o desenvolvimento da investigação. É desta forma – isto é, como síntese – que a moda vem sendo associada a um negócio criativo. Busca-se situar a definição num ponto do intervalo entre arte e negócio. Resquício ainda das dicotomizações, as relações são muitas vezes estruturadas a partir de pares que se concebe (ou concebia) como opositivos. Nas criações de Herchcovitch, entretanto, um ponto forte parece ser a convencional (não se trata de uma regra) multiplicidade de elementos postos em diálogo, fugindo da mais comum relação entre dois. No entanto, devido à força da tentativa de identificação da moda como arte pelos estilistas ao longo do século XX e da ainda existente relação de proximidade com aquilo que hoje é ainda definido (ainda que problematicamente) como arte, o termo negócio vem sendo empregado com maior sistematicidade. É, hoje, difícil perceber alguma tendência de negação do apelo criativo no ofício de moda. Há reconhecimento social do caráter criativo do trabalho, mas o amadorismo e a aventura comprometiam significativamente a condução dos negócios, exigida especialmente quando a lógica de mercado se assenta e em moldes capitalistas. Em acréscimo, quando os bens piratas (as falsificações ou faux amis, como afirma Dana Thomas), preocupação desde os tempos de Worth, começa a rivalizar com os produtos originais no quesito qualidade e começam a chegar ao mercado quase simultaneamente aos originais num mundo capitalista de fronteiras alargadas e de considerável desenvolvimento nos meios de comunicação, o planejamento de ações articuladas se transforma em quesito definidor do crescimento e continuidade do empreendimento – mesmo se tratando de empresas que se definem pela opção de menor porte, atendimento personalizado e presença de familiares auxiliando no negócio. Mais do que isso, conforme discutido, as aspirações dos jovens de fins do século XX se dirigiram igualmente à busca de conciliação entre uma suposta liberdade criativa, herdada da aristocracia e de sua posterior manifestação na figura do artista autônomo, e o objetivo do sucesso econômico, herança burguesa que, com a difusão do sistema de ensino e a riqueza possível proveniente de trabalho permitiu que indivíduos de origem menos privilegiada conquistassem dinheiro e prestígio. Mais uma vez, a palavra de ordem é síntese. É nesses termos que o jornalista David Brooks cria o termo Bubos, para dar conta da geração de burgueses-boêmios de fins do século XX. A “arte” começa a ser assumida em sua faceta comercial, a ponto de se discutir o “fim da arte” ou sua transformação. Do mesmo modo, discute-se a estetização da vida cotidiana. Nesse contexto, o caráter fronteiriço e herético da

69 Ver fotos relacionadas ao mencionados desfiles que foram anexadas no corpo do trabalho. 303

moda, considerando-se as categorizações comuns, pôs tal tipo de trabalho numa situação de certo modo privilegiada, ainda mais considerando o aumento de poder de consumo no pós- guerra. A rápida difusão de cursos de moda, como ocorreu no Brasil dos anos 1990/2000, evidencia isso. No entanto, como “supérfluo”, o produto-moda está consideravelmente sujeito às oscilações de mercado e aos momentos de crise. A superfluidade está vinculada à moda enquanto lógica de produção e consumo assentada no acúmulo ou, mais propriamente, na substituição contínua de produtos. Fora isso, a roupa continua sendo entendida como necessidade básica. Como contraposição, tem-se enfatizado menos a distinção ostensiva e o rápido descarte das coisas e valorizado a idéia de prazer individual como objetivo de consumo (no caso dos bens de luxo). A simplicidade elegante remete a compradores que sabem fazer escolhas pautadas no gosto, na qualidade e na experiência (de conforto e prazer) proporcionados e, nesse sentido, escolheriam o que é especial, independente de preço e, como conseqüência, compõem um conjunto em que o caro e o barato figuram juntos (e harmoniosamente). Obviamente, o saber, condição para as escolhas e composições entendidas como acertadas, acaba se tornado, de qualquer modo, um mecanismo de distinção, como o fizeram os aristocratas em relação aos novos-ricos burgueses, mas assentado em renovadas e complexas premissas.

Quanto à relação com a denominada produção artística, estampas ou modelos feitos em associação com artistas ou em homenagem a eles, como a recente coleção da Louis Vuitton inspirada em Stephen Sprouse, ou mesmo a incursão de estilistas em trabalhos a serem expostos em galeria de arte, como ocorreu com Herchcovitch, se deu simultaneamente ao incremento do wearable por artistas plásticos. Ao mesmo tempo, ainda que pessoas com formação em artes plásticas se interessem por moda a ponto de se autoidentificarem como estilistas e trabalharem como tais, a criação de cursos superiores específicos de moda, a partir dos anos 1930 (na Europa), foi um início de percurso rumo a uma relativa definição de âmbito da moda, assumido em sua suposta singularidade como lugar do cruzamento, espaço de fronteira. De certo modo, tal assunção implica na maior liberação dos novos estilistas, soltos das amarras de tentar se afirmarem como artistas, e aumenta as possibilidades de inserção profissional dos novos formados de modo a promover a atuação em diversos setores vinculados à área. Assim houve um investimento maior na profissionalização, agora firmada na articulação necessária entre os setores. Não apenas isso, mesmo aquele que trabalha no topo da função ligada à criatividade, o estilista, deve conhecer as diretrizes do negócio e operar em conformidade com isso. Antes o estilista era administrador, mas despreparado 304

administrativamente por conta de vinculação a projeto artístico. Agora, assumir o negócio é reconhecer a validade da estrutura empresarial capitalista com sua divisão e especialização de tarefas. Antes, o estilista se via obrigado a se dividir entre criação e administração; agora, com o desenvolvimento do sistema financeiro, ele começa a optar por delegar a administração do negócio a empresas sócias. Não se trata de contradição em relação ao que vem sendo afirmado aqui, pois as separações (por especialização) não deixam de ocorrer – continuam sendo concebidas como estratégia que favorece a produtividade –, mas não a ponto de permitir que o estilista, por exemplo, possa conceber e efetivar seu trabalho como se fosse descolado das demais funções e setores dentro da empresa. Ao contrário, passa a caber a ele a coordenação do setor de criação da marca, cargo de diretoria nos termos do mundo empresarial capitalista contemporâneo. Isso lhe possibilita diversificar produtos sob seu nome e empresas para as quais trabalha, sendo ou não dono da marca. Parece não haver, deste modo, grande espaço ao gênio solitário celebrado no século XIX como a imagem do artista. Por incrível que pareça, nesses moldes (ainda em expansão), o estilista parece se dedicar muito mais à criação do que seus congêneres de pouco tempo atrás, que, pouco afeitos e igualmente pouco conhecedores do “mundo dos negócios”, acabavam, como Alexandre Herchcovitch se referiu a Dener Pamplona de Abreu, afundados em plumas e em dívidas. Em suma, para que o setor criativo funcione a contento, deve se pautar e conhecer os direcionamentos que regem o setor administrativo-financeiro. Do mesmo modo, os empresários formados nos cursos de administração, voltados a empresas convencionais, vêm se defrontando com o desafio de conhecer e lidar com as especificidades de produtos ligados ao valor da criatividade, em especial com a perspectiva de enaltecimento crescente de valores como justiça, respeito e solidariedade, ao mesmo tempo que com a valorização do espaço de atendimento como um momento para estar-com, isto é, como um momento de prazer ligado cada vez mais ao relaxamento e à sociabilidade (o que não se restringe a marcas vinculadas ao luxo).

Tomar a configuração brasileira nos permite perceber como tais transformações vão se processando em contexto nacional, as facilidades e dificuldades que se colocam e agem como definidores do percurso paulatinamente assumido por estilistas locais a partir das relações com outros indivíduos, profissionais ou não, em circuito nacional e internacional. É assim que se observa, por exemplo, o papel de indivíduos como Caio Alcântara Machado, Livio Rangan e, mais recentemente, Paulo Borges. Ou de Alceu Penna, Dener e Paulo Skaf. E de tantos outros, numa rede em que as mínimas ações, mesmo as arriscadas, de improviso, de 305

sonho, de planejamento de negócios foram se costurando e se tornando decisivas para o desenvolvimento da produção nacional. Deste modo, destaca-se o papel das vicissitudes nos processos sociais. Encontros de interesses ocasionais e mesmo encontros e situações ocasionais passam a ser fatores de grande importância na compreensão de processos sociais. Poderíamos, por exemplo, questionar a respeito do destino de Dener e da moda nacional se não tivesse ocorrido o engarrafamento que fez com que d. Cândida Fiala, irmã de d. Mena Fiala da Casa Canadá, entrasse no lotação e sentasse ao lado de Dener, tendo a oportunidade de ver seus desenhos. Um mero acaso que contribuiu decisivamente para que Dener não assumisse o posto (provável) como boy que a mãe tinha conseguido para ele como trabalho, desviando-o temporária ou completamente da possibilidade de trabalhar (e em tão tenra idade) com moda, como já parecia ser seu desejo. Não apenas os eventos de evidente magnitude, como guerras ou transformações no cenário político, têm peso na orientação dos acontecimentos. Deste modo, somos obrigados a ampliar nosso arco de visão e tentar, mesmo parcialmente, dar conta de tão complexas redes em suas múltiplas funções.

Ora, aquilo que percebemos, de fato, é a arbitrariedade de certas classificações e, portanto, das valorações e hierarquizações em jogo. Não era intenção e interesse nessa pesquisa tecer qualquer nova classificação que solucionasse a polêmica em torno da moda, e sim apresentá-la e apontar alguns caminhos das categorizações que construímos a partir de nossas interações, tomando a moda como exemplar de relevo. Do mesmo modo que esse olhar fundado em categorizações precisas (que se intentava serem precisas) criava dificuldades no entendimento da moda, atividade que desafiava as tentativas de enquadramento fácil no século XIX, igualmente parecia não atender a contento os objetivos traçados nesta investigação enquanto perspectiva possível de pesquisa. Com o intuito de fugir do possível perigo de utilizar como categorias e raciocínio sociológico aqueles a que acabamos por nos acostumar em usar no cotidiano, optei pelo desafio de uma perspectiva que me impunha constantemente a necessidade e o esforço de rever a arquitetura teórica que estava sendo construída. Busquei tomar a análise configuracional eliasiana como essa base teórico- metodológica mais interessante para compreender as interações e definições atribuídas à moda ao longo do último século. Assim, a moda foi tomada enquanto uma configuração, uma rede elástica que interliga diferentes indivíduos em torno da criação, produção, divulgação, comercialização e consumo de vestuário.

A roupa está vinculada a senso de proteção, beleza, divisão de papéis de gênero, identificação e distinção de grupos socioeconômicos, concepção de corpo e de moralidade, 306

gostos, formação sociocultural dos gostos, disciplina dos gestos e ainda foi privilegiada mercadoria no comércio ocidental e oriental. E as noções de configuração e de afinidades eletivas permitiram, apesar das limitações desse texto, compreender a moda enquanto essa série de interações mutáveis que, por sua dinamicidade, favoreceu diferentes definições para a categoria moda socialmente utilizada. No entanto, apesar de nesse trabalho se ter tomado duas concepções extremas – a de moda como arte e de moda como negócio – a intenção, como discutido, foi evidenciar a complexidade do processo envolvido. Há um duplo e simultâneo movimento que envolve e engloba processos e categorias sociais, impedindo que a noção de causalidade possa ser entendida como adequada para lidar com questões sociais, como autores considerados clássicos das ciências sociais, a exemplo de Max Weber, enfatizaram há séculos. Do mesmo modo, como mencionado, não se tratou aqui de afirmar uma simples passagem da moda como arte para a moda como negócio. Na falta de um termo mais adequado, busquei na gradação de cores, o degradée, uma compreensão mais apropriada. Criatividade e negócio sempre se fizeram presentes na definição dos laços que envolvem os indivíduos ligados a partir da moda. Por isso a utilização da expressão “acento discursivo” aconteceu para indicar uma processual mudança de ênfase, sem a existência de um momento de ruptura mais radical, ainda que marcos possam ser apontados como fatores de peso no processo de redefinição. Um exemplo foi o papel do aumento de visibilidade e de importância do prêt-à-porter nessa dinâmica, em função das Guerras, da crescente qualidade do produto industrial e de confecções, bem como de inovadoras estratégias de associação entre estilistas e industriais de modo a favorecer também a qualidade criativa das peças confeccionadas. Os esforços nesta pesquisa se concentraram na apresentação sumária de alguns desses fatores que paulatinamente confluíram, ainda que ocasionalmente, de modo a favorecer a transformação da concepção de trabalho com moda nos moldes e na direção em que ocorreu. Igualmente, a mudança no acento discurso não põe a definição quanto arte e quanto negócio como simetricamente opostos. A ênfase, em outros termos, não recaiu em um pólo opositivo. Por um lado, as categorias não são precisas – o cientista é que tenta conferir a precisão que facilitaria suas pesquisas. Socialmente, as categorias, em certo grau, são nebulosas em seu uso. E talvez seja justamente devido a isso que estilistas, que possuem voz de peso em tais específicas definições, tanto se empenhem num coro comum, mesmo não unânime, da afirmação do negócio. O objetivo seria, assim, contribuir no jogo de forças a favor da profissionalização do trabalho com moda e, pois, do aumento de investimentos no setor para seu crescimento interno e externo. Por outro lado, trata-se de formas de interpretação e de 307

organização do mundo pautadas em diferenciações típicas que pouco correspondem à densidade sintética com que nos defrontamos cotidianamente.

Charles Worth, diferente de Leroy, foi favorecido por transformações cruciais no modo de vida da aristocracia e da burguesia do século XIX a ponto de encontrar terreno fértil à aceitação do seu trabalho como digno de prestígio, mas não o suficiente para ser plenamente aceito como arte. Mesmo com intelectuais defendendo o papel da aparência e da vida como uma arte, o percurso de desenvolvimento da Academia e a própria conjuntura de mercantilização crescente de bens simbólicos acabaram criando grandes obstáculos e, portanto, estimulando posturas contrárias por parte de fervorosos e prestigiosos indivíduos da época. Ao afirmar que a moda era uma arte, Worth não apenas inverte a hierarquia entre costureiro e cliente, favorecendo o primeiro, mas acentua, em sua relação com a clientela, o valor da criação acima de todas as coisas, inclusive acima do conforto do corpo. Este deveria se render à beleza que a arte seria capaz de proporcionar. Ao mesmo tempo em que era o suporte para a pretensa arte, o corpo se tornava empecilho à perfeição desejada. Por isso, a despeito de conforto ou liberdade de gestos, deveria estar submetido ao ideal da beleza, conformando-se à sua roupa. Foi assim que se estabeleceu a concepção do ditador de moda; a cliente deveria apenas aceitar aquilo que lhe era indicado, pois, afinal, ela está em segundo lugar em relação à indumentária que a transporta acima do mundo do banal. Se o costureiro é um artista, suas roupas são arte e as mulheres são seu suporte. O sacrifício tinha, assim, sua razão de ser. É suficiente observar o modo quase lúdico das alterações na crinolina, suporte que conferia amplidão às saias e vestidos femininos, ou mesmo as alterações nos chapéus. Paul Poiret, estilista que se tornou conhecido no início do século XX, após trabalhar na Maison Worth chega a criar um vestido que quase impedia que as mulheres conseguissem andar por conta da pouca abertura para as pernas. Ele se julgava um ditador e artista. A mulher deveria, de acordo com seu ponto de vista, se adaptar – isto é, nesse caso, adaptar seu modo de andar às condições que sua roupa impunha. Mais do que isso, as próprias mulheres iam em busca de tais ditadores. A afirmação do negócio, ao contrário, muda novamente as relações para a ausência de um padrão definidor.

Ainda que se torne mais difícil falar em termos de um padrão, o estilista dos tempos atuais é obrigado a se comportar e afirmar seu processo criativo como uma pesquisa (vinculada a um orçamento e metas de negócios). As ruas e a satisfação da clientela ganham importância. As ruas oferecem inspirações em cores, estampas, peças e usos. Firma-se a concepção da “criatividade das ruas”. Se tomarmos a discussão de Norbert Elias, em 308

Sociedade de corte e em Estabelecidos e outsiders, veremos como o autor aponta que a manutenção da condição de distinta de algumas camadas ou grupos sociais lhes obriga à auto- imposição de uma série de constrangimentos e limitações (autocontrole), inclusive quanto à vestimenta, ao asseio e aos usos do corpo (postura e gestos). Poderíamos tomar, por exemplo, o uso do espartilho pelas mulheres (abandonado apenas no século XX como peça obrigatória e que vem retornando ao uso por conta dos ideais estéticos para o corpo feminino). O espartilho, além de dificultar os movimentos corporais, uma vez que tinha hastes fixas e que o tecido mais elástico só foi possível de ser fabricado a partir do século XIX, dificultava a respiração e a digestão, obrigando a que as mulheres não se abaixassem, não fizessem movimentos bruscos que pudessem alterar significativamente a respiração e comessem pouco e espaçadamente para que fosse possível digerir os alimentos. Se o aprisionamento era condição para a distinção, seu contraponto, no que se refere a camadas e grupos econômico e socialmente menos favorecidos, era uma maior flexibilidade, pois, afinal, tinham que se adequar às possibilidades, reformando roupas, unindo pedaços de peças com cores e tecidos distintos, sobrepondo peças para proteção contra intempéries... Uma das inspirações de Herchcovitch, comentadas na segunda parte deste texto, foi o recurso utilizado por uma mulher que lavava ruas para sofrer menos as agressões do frio. Segundo ele, a mulher usava uma saia e, por baixo da saia, um moletom. Provavelmente, cogitou o estilista, ela saiu com a saia e, por conta do frio, vestiu o moletom como peça adicional sem se preocupar com a sobreposição que tinha construído. Os imperativos da proteção e da continuidade do trabalho estavam ali em primeiro lugar. Tal maior liberdade (guiada também pelas possibilidades momentâneas de peças e de uso) permite inovações por parte desses grupos, que, assim, se tornam inspiradores de roupas a serem atualizadas nas passarelas de modo a atender outros grupos de consumidores. Sem dúvida, como assinalou Bourdieu, as passarelas funcionam como espaço de legitimação possível, mas não de forma instantânea por dependerem da aceitação por parte de críticos e consumidores. Com a valorização do ofício do estilista, criativo burguês (bubo), e incremento dos índices de consumo, as empresas ligadas ao vestuário se multiplicaram (para os diferentes segmentos) aumentando a concorrência e, simultaneamente, diminuindo as possibilidades de sucesso para um eventual ditador de moda. As inspirações podem advir das ruas (mas não se limitam a elas), do mesmo modo que as ruas, numa moda negócio, são as definidoras dos investimentos, em dinheiro e em criatividade, que podem ser feitos. Mais uma vez recorrendo a Herchcovitch, questionários são aplicados junto aos consumidores a fim de identificar as características das peças que levaram à compra por parte dos clientes, de modo a reforçá-los em coleções posteriores. Do 309

mesmo modo, inovações são cuidadosa e vagarosamente propostas nas coleções para se perceber a receptividade dos consumidores e, a partir disso, investir ou abandonar a idéia. As novidades, portanto, são lançadas dosadamente, como ocorreu com a calça saruel, de cavalo mais baixo do que o convencionalmente usado. O papel de propostas mais ousadas continua cabendo à alta costura, que, apesar dos prejuízos com que é caracterizada hoje, oferece em seu espetáculo peças mais conceituais que servem como referência às criações posteriores. Observa-se a respeito passos vagarosos rumo à diminuição dos rigores da alta costura e certa simplificação dos trajes, talvez indicando reestruturações na alta costura que lhe permitam sobrevivência aproveitando os renovados interesses na roupa sob-medida com o processo de individuação e a personalização dele decorrente.

A atual conjuntura pode ser definida pela busca por expressão individual autêntica, ou seja, ligada a experiência e experimentações que proporcionariam satisfação pessoal. Ainda assim, é importante ressaltar que a relação entre corpo e roupa é consideravelmente multifacetada no período atual. A roupa continua funcionando como modo de vinculação a grupos, do mesmo modo que seria um mecanismo para expressar uma suposta personalidade ou mesmo o humor momentâneo. Igualmente, a idéia da roupa como máscara e mecanismo de distinção continua vigendo. Por outro lado, se há maior possibilidade de escolha, isso não aniquila o papel de recurso disciplinador que as roupas exercem sobre o corpo, ou mesmo seu caráter de memória material. O apelo à diferença e ao autêntico ajuda a favorecer a pulverização dos centros de produção de moda. Inicialmente, a carreira internacional estava restrita à transferência da sede da marca para uma das cidades que são referência em moda, como fez Ocimar Versolato, que abriu sua primeira grife em Paris após trabalhar como assistente de Léger. Hoje, ainda que essas cidades mantenham sua importância e que haja facilidades evidentes a quem consiga iniciar uma carreira sólida nesses grandes centros da moda, que, portanto, continuam fundamentais na carreira de um estilista mais ambicioso, elas podem funcionar como espaço apenas como mecanismo de divulgação internacional do nome da marca e de coleções. A abertura à participação nesses eventos, por mais que ainda seja restrita, é maior do que tempos atrás. Ainda que as marcas mais conhecidas, por excelência, sejam francesas e italianas, é perceptível a diversidade de nacionalidade dos estilistas. Mesmo a incorporação de Nova York no calendário de eventos de projeção internacional, o crescimento do evento sediado em Tóquio e o destaque que alguns criadores russos têm alcançado fornecem o indicativo de uma maior dispersão em curso. Alguns estilistas, como o próprio Herchcovitch, que já desfilou em Paris e Londres, 310

acabaram optando por Nova York como centro de divulgação internacional em maior conformidade com seus objetivos mais imediatos (ainda que desfiles ocasionais de divulgação em outras cidades fora do Brasil igualmente ocorram). Ainda que em desvantagem em relação a indivíduos provenientes de outros países, criadores brasileiros começam, portanto, a abrir caminhos para carreira que extrapole as fronteiras de seu país de origem. Inicialmente paralela às discussões mundiais acerca da questão da relação global-local, o tema das identidades foi enxergado como possibilidade mais efetiva de inserção internacional. Voltava-se assim a falas como de Alceu Penna e de Dener sobre o caráter de uma suposta moda nacional, a ser construída a partir da incorporação de traços pinçados de uma pretensa identidade nacional nas roupas criadas. No entanto, o risco de se ater, como afirmou Herchcovitch, a elaborações exóticas e de pequeno ou efêmero apelo junto aos consumidores era grande. Cada marca acaba buscando mecanismos próprios de recurso à identidade, desde o uso de um corte de gosto nacional, inclusive com a tentativa comercializar os modelos brasileiros sem fazer as comuns adaptações ao gosto convencional dos eventuais consumidores do país estrangeiro, até o uso de referências nacionais (como cores e estampas) nos tecidos, como fez Alceu Penna na coleção que teve por tema o café, ou ainda o recurso a técnicas artesanais de fabricação têxtil. No caso de Alexandre Herchcovitch, a opção foi tomar a “mistura” como elo entre sua produção e uma idéia de brasilidade. Ou seja, a mistura é, pelo estilista, assumida como aquilo que, racionalizadamente, o vincula ao Brasil e pode estrategicamente servir para propor “o look certo, no período certo, que expõe aquele ponto de inflexão, a virada do momento”. Deste modo, a síntese seria, para ele, o elemento que canaliza as preocupações, as ações e/ou as tentativas de solução para os problemas nesse início de século XXI. E, para isso, o estilista articula suas percepções e apostas à sua trajetória pessoal, marcada por sua mãe, por Boy George, Rei Kawakubo, Thierry Mugler, Courrèges, cena clubber e coleção de caveiras. Mais uma vez, não nos cabe o exercício de avaliar a proposta do estilista, refém da ação de tantos indivíduos e de tantas transformações possíveis. Cabe a nós apresentá-la e acompanhar os acontecimentos com vistas à tentativa de compreender o processo em curso e seus desdobramentos.

Como afirmou Luiz Costa Lima: “Terminemos sem grandes acordes. O que aqui termina não se encerra. Apenas se interrompe” (1995, p. 307).

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