UNIVERSIDADE FEDERAL DO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

NOVAS IMAGENS, VELHOS CONCEITOS: A PRODUÇÃO DE IMAGENS DE MODA NO BRASIL E A VISIBILIDADES DOS MODELOS NEGROS

ANA CAROLINA DELGADO DE OLIVEIRA

2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

NOVAS IMAGENS, VELHOS CONCEITOS: A PRODUÇÃO DE IMAGENS DE MODA NO BRASIL E A VISIBILIDADES DOS MODELOS NEGROS

ANA CAROLINA DELGADO DE OLIVEIRA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Orientadora: Mirian Goldenberg

Rio de Janeiro Fevereiro / 2007

2 FICHA CATALOGRÁFICA

OLIVEIRA, Ana Carolina Delgado de Novas imagens, velhos conceitos: a produção de imagens de moda no Brasil e a visibilidade dos modelos negros. / Ana Carolina Delgado de Oliveira. – Rio de Janeiro: UFRJ / PPGSA – IFCS, 2007. xi, 217f. Orientadora: Mirian Goldenberg Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS / Programa de Pós- graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, 2007. Referências Bibliográficas: f. 179-1186 1. Modelos Negros 2. Moda e Racismo 3. Corpo e Sexualidade 4. Consumo 5. Mercado Étnico. I. Goldenberg, Mirian. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia.

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Aos meus pais Sérgio Vidal de Oliveira e Mª do Socorro Delgado de Oliveira Às minhas fontes de inspiração Kevin da Silva Gomes e Tet Mendes

4 AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar a minha orientadora Mirian Goldenberg, por toda paciência e dedicação durante todos os momentos da pesquisa. Por me acompanhar desde os primeiros anos da graduação e me ajudar a lançar novos olhares sobre meus campos de ação. E principalmente, por acreditar na relevância acadêmica do meu trabalho.

Aos professores Peter Fry e Yvonne Maggie pelas valiosas discussões durante as aulas de Relações Raciais e Étnicas, pelas sugestões feitas durante o processo de qualificação do projeto e por todo estímulo à concretização deste trabalho.

À toda a equipe da Central Única das Favelas (CUFA), em especial ao Celso Athayde e a Nega Gizza, por tudo que me foi permitido vivenciar durante os anos em que trabalhamos juntos, principalmente na realização das diversas edições do Prêmio Hutúz.

Aos jornalistas e “mestres” Iesa Rodrigues e Lula Rodrigues, por me ajudarem a entrar pela porta da frente na vivência prática das teorias efêmeras do campo da moda brasileira.

Aos meus amigos queridos que se disponibilizaram a ceder seus depoimentos e me deixaram seguir seus passos durante a elaboração deste trabalho.

Aos eternos companheiros e companheiras Renata Moutinho, Simone Oliveira, Michelle Andrade, Pedro

5 Lacaille, Rodrigo Felha, Flávia Chaves, Marjorie Bastos, Anderson Quak, Patrícia Lanes, Nino Brown, Carolina Figueiredo e Rafaela Maia, com a certeza de que aprendemos muito durante nossas experiências envolvendo raça, estética e hip hop.

Aos meus amigos do grupo Racionais Mc´s, com imensa admiração, por tudo que aprendi, e continuo aprendendo a cada novo encontro, com vocês, sobre respeito auto-estima e indignação. A todos aqueles que fazem do rap a trilha sonora dos guetos.

Aqueles e àquelas que, com todas as dores e delícias, lutam para quebrar os preconceitos no campo da moda. Aos modelos negros e negras que teimam em manter acesa a chama do “black is beautiful”.

Aos meus pais, pelo apoio e carinho incondicional sempre, ao meu afilhado Kevin por iluminar a minha vida e ao Tet Mendes pelo amor, pelo apoio e pela participação efetiva na realização deste trabalho.

Por fim, a todos que contribuíram, direta ou indiretamente para a realização deste trabalho, meus sinceros agradecimentos.

6 RESUMO

NOVAS IMAGENS, VELHOS CONCEITOS: A PRODUÇÃO DE IMAGENS DE MODA NO BRASIL E A VISIBILIDADE DOS MODELOS NEGROS

Ana Carolina Delgado de Oliveira

Orientador: Mirian Goldenberg

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Essa dissertação tem por objetivo analisar a não-presença de modelos negros na atual produção de imagens de moda no Brasil, apesar de a constituição miscigenada do povo brasileiro, fato que levaria à uma criatividade única, ser um dos principais argumentos para a divulgação e valorização da moda brasileira no exterior.

Palavras-chaves: modelos negros, black style, influências da estética negra na moda, mercado étnico, moda consciente, corpo e sexualidade.

Rio de Janeiro

2007

7 ABSTRACT

NEW IMAGES, OLD CONCEPTS: THE FASHION IMAGES IN AND THE VISIBILITY OF THE BLACK MODELS

Ana Carolina Delgado de Oliveira

Advisor: Mirian Goldenberg

The main goal of this dissertation is to discuss the invisibility of the black models in the brazilian fashion images despite the fact that the mix between black, white and indians in the origins of brazilian people, which may is used to promote brazilian fashion worldwide.

Key words: black models, black style, ethnic market, ethical fashion, body and sexuality .

Rio de Janeiro

2007

8 LISTA DE ANEXOS

Anexo I ...... Glossário

Anexo II ...... Etnografia do desfile da grife Manifesto 33 1/3

Anexo III...... Etnografia de um editorial para a Revista GQ Alemã

Anexo IV...... Etnografia da temporada brasileira de moda Primavera/Verão 2006/2007

9 SUMÁRIO

Introdução...... 12

Capítulo I – Metodologia...... 30

Capítulo II – “Você é o que você consome”...... 39

2.1 – Ser negro está na moda...... 52

Capítulo III – “Sobre os negros: breve perfil da população negra no Brasil e nos EUA. Quem são os consumidores negros?...... 56

3.1 - Black is beautiful. Pelo menos nos Estados Unidos...... 70

Capítulo IV – “Negros no consumo. A busca da auto-estima”...... 81

4.1 – Cabelos. Qual é o pente que te penteia?...... 99

Capítulo V – “Ser modelo”...... 113

5.1 – Sexualidade e relações de gênero...... 128

5.2 – O corpo é o valor máximo. Imagem é tudo...... 134

5.2.1 – Diferenças entre os corpos femininos e masculinos...... 137

5.2.2 – Diferenças entre os corpos negros e brancos...... 143

5.3 – Ser modelo negro...... 147

Capítulo VI – “Estudo de caso. Afinal de contas, quem é o sexo frágil na moda?”...... 152

Capítulo VII – “Considerações finais”...... 172

Bibliografia...... 179

10 Anexos...... 187

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Introdução

Negro Drama (Racionais Mc's)

Negro drama. Entre o sucesso e a lama, dinheiro, problemas,inveja, luxo, fama. Negro drama. Cabelo crespo e a pele escura. A ferida a chaga, a procura da cura. Negro drama Tenta ver e não vê nada. A não ser uma estrela longe meio ofuscada. Sente o drama, o preço, a cobrança, o amor, no ódio,a insana vingança. Negro drama. Eu sei quem trama, e quem tá comigo, o drama que eu carrego pra não ser mais um preto fudido. O drama da cadeia e favela, túmulo, sangue,sirene, choros e velas Passageiro do Brasil, São Paulo. Agonia dos que sobrevivem, em meio a zorra e a covardias. Periferias,vielas e cortiços. Você deve tá pensando o que você tem a ver com isso? Desde o início, por ouro e prata, olha quem morre, então veja você quem mata. Recebe o mérito a farda que pratica o mal Me vê pobre, preso ou morto, já é cultural. Histórias, registros,escritos, Não é conto nem fabula,

12 Lenda ou mito. Não foi sempre dito que preto não tem vez? Então olha o castelo e não foi você quem fez cuzão, Eu sou irmão dos meus truta de batalha. Eu era a carne, agora sou a própria navalha. Tim..Tim.. Um brinde pra mim! Sou exemplo, de vitórias, trajetos e glórias! O dinheiro tira um homem da miséria, mas não pode arrancar de dentro dele a favela. São poucos que entram em campo pra vencer. A alma guarda o que a mente tenta esquecer. Olho pra trás e vejo a estrada que eu trilhei, mó corre. Quem teve lado a lado, e quem só fico na bota. Entre as frases, fases e varias etapas, Do quem é quem, dos Manos e das Minas fraca. Negro drama de estilo. Pra ser, e se for, tem que ser, se temer é milho. Entre o gatilho e a tempestade, sempre a provar, que sou homem e não um covarde. Que Deus me guarde,pois eu sei que ele não é neutro, Vigia os rico,mas ama os que vem do gueto. Eu visto preto, por dentro e por fora. Guerreiro, poeta entre o tempo e a memória. Ora, nessa história vejo o dólar e vários quilates. Falo pro mano que não morra, e também não mate. O Tic Tac não espera, veja o ponteiro. Essa estrada é venenosa e cheia de morteiro Pesadelo,hum, é um elogio: pra quem vive na guerra a paz nunca existiu,

13 No clima quente, a minha gente sua frio, tinha um Pretinho, seu caderno era um fuzil. Um Fuzil. Negro drama. Crime,futebol, música, caralho.... Eu tambem, não consegui fugir disso aí, eu sou mais um. Forrest gump é mato, eu prefiro contar uma historia real, vou contar a minha.... Daria um filme: uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço. Veja! Olha outra vez: um rosto na multidão. A multidão é um monstro, sem rosto e Coração. Em São Paulo,terra de arranha-céu, a garoa rasga a carne, é a Torre de Babel. Famíla Brasileira, dois contra o mundo. Mãe solteira de um promissor vagabundo. Luz, câmera e ação, gravando! A cena vai: um bastardo,mais um filho pardo, sem Pai. Senhor de engenho,eu sei bem quem é você, sozinho, cê num guenta, Sozinho,cê num guenta a peste. Você disse que era bom, e a favela ouviu: lá também tem Whiskye e Red Bull, tênis Nike e fuzil Admito, seus carro é bonito. É, e eu não sei fazer, internet, video-cassete, os carro loko, Atrasado eu to um pouco, sim eu acho. Só que tem que seu jogo é sujo, e eu não me encaixo Eu sou problema de montão, de carnaval a carnaval, eu vim da selva, eu sou leão, sou demais pro seu quintal. Problema com escola? Eu tenho mil, mil fita. Inacreditável, mas seu filho me imita! No meio de vocês ele é o mais esperto,

14 ginga e fala gíria, gíria não,dialeto. Esse não é mais seu,subiu! Entrei pelo seu rádio, tomei, você nem viu, Nós é isso ou aquilo, ué, ce não dizia? Seu filho quer ser preto, haha,que ironia! Cola o pôster do Tupac aí. Então, que ce diz? Sente o negro drama, vai, tenta ser feliz! Hey bacana, quem te fez tão bom assim? O que se deu, o que se faz, o que se fez por mim? Eu recebi se tic, quer dizer kit, de esgoto a céu aberto,parede madeirite. De vergonha eu não morri, tô firmão, eis-me aqui. Voce não, você não passa quando o mar vermelho abrir! Eu sou o Mano, homem duro do gueto, Brown, Obá! Aquele loko que não pode errar. Aquele que você odeia amar nesse instante. Pele parda e ouço Funk. E de onde vêm os diamantes? Da lama. Valeu mãe! Negro drama. Na época dos barraco de pau lá na pedreira, onde vocês tavam? O que vocês deram por mim ? O que vocês fizeram por mim ? Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho, agora tá de olho no carro que eu dirijo...... Demorô, eu quero é mais!! Eu quero é ter sua alma! Aí, o rap fez eu ser o que sou...... Ice Blue, Edy Rock e Kl Jay, e toda a família,e toda geração que faz o rap. A geração que revolucionou, a geração que vai revolucionar......

15 Anos 90, século 21, é desse jeito. aí, você saí do gueto, mas o gueto nunca saí de você, morô irmão? Você tá dirigindo um carro,o mundo todo tá de olho em você, morô? Sabe por quê? Pela sua origem, morô irmão, é desse jeito que você vive. É o negro drama...... Eu não li, eu não assisti, eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama. Eu sou o fruto do negro drama. Aí dona Ana, sem palavras, a senhora é uma rainha. Mas aê, se tiver que voltar pra favela, eu vou voltar de cabeça erguida porque assim é que é, renascendo das cinzas firme e forte, guerreiro de fé, vagabundo nato!

Escolhi a letra de “Negro Drama”, quinta faixa do último cd do grupo “Chora Agora, Ri Depois” para introduzir este trabalho por considerá-la uma síntese da situação atual dos negros no Brasil. Racionais Mc´s, mais do que ícones do discurso politizado e agressivo do movimento hip hop no Brasil, são também ícones de estilo, inspiram uma estética ligada ao “black style” urbano e contemporâneo. Há tempos envolvida com a discussão sobre o que representa ser negro no Brasil, meu objetivo, ao ingressar no mestrado, era realizar uma pesquisa onde pudesse estudar dois campos de interesse: moda e raça, por considerá-los significativos para entender o processo de criação de identidades no século XXI. Além disso, minha experiência

16 pessoal em ambos os campos é intensa e me fez elaborar uma série de questionamentos que gostaria que fossem discutidos no meio acadêmico, e também me permitiu uma posição de observadora participante privilegiada. Como jornalista e produtora de moda, estudante de antropologia e participante ativa de movimentos sociais ligados ao combate ao racismo, percebi que a questão estética, principalmente da aceitação estética do negro por parte do senso comum e de si próprio, é fundamental para pensar e discutir as relações raciais no Brasil. E a moda, por lidar diretamente com a imagem, além de ser um dos segmentos da economia brasileira que mais cresce atualmente, é um campo interessante para observar as representações estéticas produzidas, divulgadas, e não-reveladas acerca dos negros no Brasil. Atualmente, o campo do consumo lida mais diretamente com os aspectos subjetivos dos atos de compra e venda: vende-se uma imagem, geralmente associada à beleza e à perfeição; e compra-se ilusão e sensação, a ilusão de poder atingir a perfeição ao comprar o produto, e a sensação de que isso poderá causar profundas rupturas no cotidiano. Considero estes aspectos do mercado de consumo fundamentais para a compreensão da imagem que temos, e da imagem que tentamos construir, do negro no Brasil hoje. Um panorama de discussões, debates e campanhas sobre as ações afirmativas, cotas e da igualdade racial, um governo que instituiu a Secretária de Promoção da Igualdade Racial: acredito ser este o momento propício para discutir todos os aspectos relevantes do “racismo à brasileira”. Nosso racismo peculiar e evidente, tão ligado à estética.

17 A princípio, meu tema para a dissertação de mestrado seria a moda hip hop por acreditar que esta parcela específica do mercado de moda é o único lugar onde os negros assumem os lugares de protagonistas. Eles são estilistas, stylists, modelos, empresários e têm visibilidade nos meios de comunicação a partir dessa parcela do mercado. Minha questão seria descobrir se havia alguma relação entre o fato de o hip hop ser um movimento musical e social ligado diretamente aos negros e o seu protagonismo neste segmento da moda. E se havia, como conseguiam manter um mercado que cada vez mais deixa de ser alternativo sob seu domínio, e porque essa visibilidade não consegue penetrar em outros segmentos da moda. Nos Estados Unidos, a moda é historicamente usada pelos negros para reforçar sua identidade étnica. De lá vem o maior exemplo de protagonismo negro na moda: o hip hop. Porém, meu encontro com o tema “os negros e a moda” se deu na primeira edição de um evento anual de hip hop no Rio de Janeiro, o Prêmio Hutuz. Em relação às roupas, no hip hop pode-se notar um “elogio ao excesso”, muito brilho, muita bijuteria, o volume é essencial, seja nas roupas oversized, nos cabelos black power ou trançados. Acessórios e cabelo são essenciais para as mulheres. Nas edições do Prêmio Hutuz, umas prezam pela elegância, tons sóbrios e prata, roupas mais longas e não tão justas, e peças assinadas por estilistas internacionais, no estilo das cantoras Beyonce e Mary J.Blidge; outras abusam da androginia com calças oversized, camisetas largas e bonés ou chapéus rodados, como a rapper Missy Elliot. Algumas usam o oversized com um toque de feminilidade, vestindo um top bem curto e uma boa maquiagem, estas costumam ser quase

18 unanimidade na maioria dos eventos de hip hop. Um exemplo internacional a ser citado é a cantora Eve. Há também as que usam roupas bem justas e curtas, num estilo usado por algumas rappers americanas como Lil’ Kim e Fox Brown. Os cordões em formato de correntes, de ouro e prata, muitas vezes com as iniciais do nome de seu portador ou um cifrão, são o hit entre ambos os sexos. Os homens, a maioria com a cabeça raspada, misturam algum item do vestuário clássico tradicional, como um blazer ou calça de alfaiataria com toques de streetwear: tênis, camisas de basquete, casacos esportivos e muitos acessórios como bonés, colares e pulseiras. A aparência importa, segundo Peter Fry (2006)1, e uma análise estética dos freqüentadores do Prêmio Hutuz ratifica a afirmação. É perceptível o fato de que há uma preparação especial para ir até o evento. A primeira edição, em Março de 2000, foi o início da minha relação com a estética do hip hop e foi onde pude perceber o quanto a questão da imagem e do estilo podem estar ligadas às questões raciais. Meu olhar se estendeu para além do conteúdo social, político e cultural do movimento. Naquela noite, havia muita informação misturada, foi difícil ler o que aquelas roupas queriam dizer. Senti-me literalmente “um peixe fora d´água”, minha pele clara, meu traje básico: calça preta e blusa branca e o cabelo comprido castanho claro me tornavam uma estranha no ninho. Na segunda edição, já me produzi mais dentro do estilo hip hop: cabelo trançado, jeans oversized, maiô preto usado como body, sandália plataforma e muitas pulseiras

1 Palestra realizada no CAFE / UERJ – Colóquio de Afro-descendências Expandido da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, durante a mesa redonda “Negro é lindo! – A onda hype da representação da negritude”, em agosto de 2006.

19 coloridas, além de um enorme par de argolas prateadas. Confesso que estava perfeitamente à vontade dessa vez, pois como o vestuário é usado como um dos elementos de identificação pelo grupo, desta vez não precisei me esforçar tanto pra provar minha legitimidade no campo, algo que muitas vezes tive que fazer durante a minha trajetória. Pude reforçar minha percepção, já despertada há algum tempo, de que a moda no hip hop parece não seguir as tendências da moda em geral, parece atemporal e muito autêntica, talvez mude apenas alguns detalhes e cores. Pouca coisa mudou nos looks dos participantes do evento da primeira para a segunda edição: continuavam os brilhos, a modelagem oversized, o jeans como tecido predominante no vestuário de homens e mulheres, agasalhos esportivos, minissaias, tênis, bonés, cabelos trançados, com um ou outro toque sutil das tendências de moda atuais. Na terceira edição, passei do lugar de convidada a uma das produtoras do evento. A partir de então pude acompanhar de perto as negociações e o processo de concepção do projeto, despertando então meu interesse pelo Hutuz como lugar de observação do comportamento e da questão estética relacionada à juventude negra relacionada ao hip hop. Em 2002 pude estar mais atenta ao que seria realmente o mercado hip hop: pessoas ligadas ao movimento que não gostariam ou não conseguiram sair de seus meios para melhorar sua qualidade de vida. O impacto visual do hip hop é muito grande, e é proposital: seja para fins de ostentação, sedução, auto-afirmação, demonstrar o orgulho racial numa alusão clara aos negros americanos ou à África, ou simplesmente seguir a moda ditada por seu grupo. Esta valorização estética também recebe estímulos das novas

20 marcas que vêm surgindo no cenário nacional, por exemplo, o rapper Ice Blue, do grupo Racionais Mc´s, lançou sua marca de roupas em 2002 e foi um dos apoiadores do evento. Nesta terceira edição, pude perceber que o consumo ocupa um papel importante no hip hop: os cd´s de rap, as roupas, cabelos e acessórios, as produtoras, os veículos de comunicação, as festas, há um mercado em movimento. Mas tive dúvidas se a maioria dos envolvidos tem essa consciência ou apenas os empreendedores, e em relação a estes, é difícil perceber o que há de sonho, de conformismo e de necessidade no fato de terem optado pelo hip hop como meio de subsistência. Em 2003, mesmo tendo trabalhado na pré-produção do evento, pude ficar no papel de observadora participante, e pude perceber que o hip hop estava ali realmente virando um mercado: roupas, esporte, música, filmes, debates e pesquisas, artes plásticas (graffiti), tudo isso eram possibilidades para quem quisesse “viver de hip hop”. Daí surgia um novo problema: pra quem vender seu trabalho ou seu produto? Para quem quisesse apreciar, conhecer mais, ou simplesmente fizesse a melhor oferta, ou apostar na segmentação do mercado? Bom, essa percepção foi o prenúncio de um início de 2004 que dividiu as águas do movimento hip hop brasileiro. O tema da quinta edição foi “Supermercado Hutuz”. O que por si só já demonstra a familiaridade das pessoas do movimento com a categoria “mercado de consumo”. E o que estaria à venda nesse mercado? Apenas os produtos gerados, não a ideologia, diriam os mais radicais. Mas a verdade é que, em 2004, muitas concessões foram feitas. Podemos encarar como amadurecimento do hip hop o fato de querer aproveitar

21 o avanço do rap internacional na mídia e ganhar dinheiro e melhorar a qualidade de vida, mas alguns poucos militantes também encararam como traição e não estavam dispostos a aceitar o mainstream. Em 2004, em paralelo com as aulas do mestrado, estava de volta à produção do evento, quando os organizadores do Hutúz decidiram que a moda teria que estar presente de alguma maneira. A moda estava se destacando como elemento de distinção para os adeptos do movimento. O ideal era que o Supermercado Hutuz mostrasse todas as áreas possíveis para o hip hop se manifestar naquele momento, e todas as opções profissionais existentes a partir deste movimento. Foi organizado um pocket desfile com algumas marcas representativas do mercado hip hop, e só desfilaram modelos negros. Essa foi uma decisão política e também um protesto contra o mercado formal da moda: existem modelos negros capazes de participar de castings para os quais não são convocados, sofrem uma série de preconceitos e são invisíveis para a maioria dos outros profissionais do campo e, conseqüentemente, para o público mais amplo. Eu fui a responsável por essa produção. No casting havia quatro modelos que mais tarde se tornaram informantes da presente pesquisa. Vale ressaltar que, desde 2002, namoro um modelo negro, um dos principais incentivadores deste trabalho, e, para este desfile, contei com a ajuda dele para conseguir os contatos das modelos negras. Os modelos homens já eram nossos amigos em comum, e também adeptos do movimento hip hop, o que foi um dos fatores determinantes para que aceitassem fazer o trabalho por uma remuneração simbólica, já que uma das principais reclamações dos modelos negros é a de que muitas vezes eles

22 só são convocados para um trabalho quando o cachê tem o valor baixo. Todos acharam importante a idéia de um desfile de streetwear que apresentasse apenas modelos negros, já que, no mesmo ano, as semanas de moda oficiais tinham apresentado coleções com influências do “black style” (Tulloch, 2004) apenas com modelos brancos nas passarelas. Pedro Caetano, Iran, Tet Mendes, Marcus Vinicius, Alex Damazio, Túlio Fiúza, Emilene e Jeisa desfilaram para as seguintes marcas: Wendell Bráulio (RJ), Ice Blue (SP), Manos (SP) e Rocawear (NY). O cenário da premiação trazia versões black gigantes de embalagens de produtos tradicionais como Maizena e Sucrilhos, com um tigre de cabelo black power na frente, e o pocket desfile causou um forte impacto como esperávamos. Nesta época, freqüentava as aulas do curso de Jornalismo de Moda, no SENAC- RJ (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Rio de Janeiro) e me causou estranheza quando ao convidar as pessoas, alunos e professores – estes jornalistas de moda dos dois jornais mais importantes do Rio de Janeiro: Iesa Rodrigues, do Jornal do Brasil e Lula Rodrigues, do Jornal O Globo - para o evento, e comentar sobre o desfile, elas nem soubessem da existência de marcas de hip hop. Foram ao evento seis alunas e um dos professores, o jornalista Lula Rodrigues, que aproveitou a ocasião para fazer um editorial de jóias masculinas com inspiração hip hop tendo um dos modelos participantes do Hutuz como protagonista. Com o fim do Hutúz 2004, afastei-me definitivamente da produção do evento e passei a me dedicar à pesquisa e à observação voltada para outra esfera da moda no Brasil, estimulada pelas aulas do curso de jornalismo, que me deram a oportunidade de me inserir definitivamente no campo,

23 acompanhando as principais semanas de moda do Brasil – eventos restritos a convidados. Com o passar do tempo, com as aulas, conversas com a orientadora, e questionamentos levantados pela bibliografia, percebi que não teria como fazer uma observação participante, eu seria sempre “uma participante tentando observar”. Surgiu a necessidade de problematizar tudo, pois ao assumir esse viés, assumi também que todas as categorias que uso são frutos do meu envolvimento com o objeto, e, por isso, ainda mais difíceis de terem alguma neutralidade científica. Desde sua idéia original, esta é uma pesquisa com um interesse claro: trazer para a discussão acadêmica, e para os próprios participantes de ambos os campos, moda e raça, questões sobre a participação dos negros no mercado de moda brasileiro até então pouco discutidas. Ao voltar da segunda temporada de moda, na qual participei ainda como aluna do curso do SENAC, em São Paulo, defendi meu projeto de qualificação tendo como tema a relação entre moda e hip hop na construção de identidades raciais. Foi então que, ao comentar sobre os fatos observados, entre eles um caso de preconceito racial ocorrido com o meu namorado durante o Fashion Rio, recebi a sugestão do professor Peter Fry para mudar o foco do trabalho e analisar a relação entre os negros e a moda através de uma outra perspectiva: qual a visibilidade do negro no mercado de moda atual no Brasil? Por quê eles só conseguem ser protagonistas no que diz respeito à moda hip hop? Há mudanças na “configuração racial” do Brasil nos últimos tempos. Por mais lentas e graduais que sejam, já podem ser percebidas nas áreas de produção de padrões estéticos, tais como na teledramaturgia, na publicidade e na

24 moda. O tema dessa pesquisa será a crescente visibilidade dos negros no mercado de moda brasileiro. Um dos principais problemas que enfrentei foi delimitar os objetivos da pesquisa, definir que grupo observar, já que o mercado de moda conta com uma variedade de profissões. Resolvi, então, observar os modelos negros. Primeiro, porque acompanho o cotidiano deles de perto, pois meu namorado e muitos dos meus amigos são modelos, e negros. Segundo, porque, dentro da hierarquia e do quadro de funções do campo, o modelo tem um papel fundamental na divulgação das representações estéticas. A cada nova estação homens e mulheres representam o que é ser belo, seja nas passarelas ou editoriais de moda. Terceiro, porque em qualquer análise rápida das principais semanas de moda no Brasil, Fashion Rio e São Paulo Fashion Week, percebe-se a diferença entre a quantidade de modelos negros, homens e mulheres, em relação à quantidade de modelos brancos, sem que os profissionais envolvidos ou os expectadores manifestem nenhum tipo de questionamento. Ao mesmo tempo, uma observação deste mundo nos permite perceber o aumento do número de participantes negros em campanhas, desfiles e editoriais de moda nos últimos dez anos. A minha principal hipótese é a de que no mercado de moda podemos verificar um microcosmo da situação racial no Brasil, e isso se deve ao fato de ser um campo diretamente ligado à produção estética. Busco transformar minhas experiências em hipóteses que a partir do embasamento teórico e da reeducação do meu olhar - com a tentativa de desconstrução dos pré-conceitos, podem mostrar-se equivocadas ou prontas para serem reelaboradas. Um dos desafios que estava consciente de ter

25 que cumprir era não sair a campo com categorias e teorias enviesadas que apenas confirmassem minhas hipóteses de trabalho. Por isso, achei fundamental explicitar as dificuldades da pesquisa, desde a construção do objeto até a apresentação do trabalho final, passando pelo trabalho de campo e a edição das informações coletadas. Quanto à escolha das questões a serem abordadas, procurei incluir aqueles temas que considero cruciais para compreender a trajetória de um modelo, e mais especificamente os modelos negros. Seriam muitos os temas a serem abordados e informantes a serem ouvidos, mas preferi definir os temas aliando os mais citados pelos que entrevistei, acrescentando fatos que observo a partir de minha experiência no mercado. Todos os temas têm ligação entre si, e busquei incluir uns e excluir outros da forma mais objetiva possível. Tentei abordar aqueles que permitem traçar um panorama que inclua as relações entre o mercado da moda e a sociedade, usando o modelo como instrumento de comunicação. Também considero importante desconstruir alguns mitos que ocupam o imaginário popular de que a profissão de modelo é recheada de glamour. Na minha vivência no trabalho de campo, percebo que esta é uma das construções que permite verificar a importância que o corpo e a beleza têm como valores da nossa sociedade. Gênero e sexualidade, corpo, consumo politicamente correto, experiências de discriminação e geração são fundamentais para compreender a relação entre raça e moda atualmente, e, mesmo já tendo sido amplamente discutidos, acho importante tentar trazer uma nova abordagem a esses tópicos. Defini, então, como objetivos específicos: verificar as diferenças da carreira para homens e mulheres, a sexualidade,

26 o uso de drogas e os mecanismos “alternativos” de socialização, a importância do mercado hip hop como propulsor de um viés politicamente correto ligado à visibilidade do negro na moda, o papel e a estrutura da família dos modelos negros, as motivações que levam os jovens negros a tentarem uma carreira ligada diretamente a sua imagem e suas percepções sobre as mudanças que esta escolha proporcionou em suas trajetórias, suas experiências subjetivas e percepções sobre “ser negro”. A observação participante foi realizada em cinco temporadas de desfiles de moda, incluindo os desfiles das semanas de moda de Rio de Janeiro e São Paulo de Junho de 2004 até Julho de 2006. As entrevistas e o que chamarei de acompanhamento, já que assisti ao nascimento da carreira da maioria dos entrevistados e os acompanhei em todas as temporadas citadas, ocorreram ao longo de toda a pesquisa, muitas vezes em forma de depoimentos informais, acompanhados de observações como: “ Você tem que colocar isso na sua pesquisa!”. Contei com o apoio dos modelos entrevistados, mas, por outro lado, todos os outros profissionais procurados, brancos, se recusaram a dar qualquer depoimento formal mais profundo, com gravador ou por e-mail, e só deram depoimentos rápidos e declarações informais a partir da promessa de que não seriam identificados. Estruturei o trabalho em sete capítulos. O primeiro capítulo descreve a metodologia utilizada, traçando um perfil dos entrevistados e dos eventos observados. O segundo capítulo busca discutir os significados atuais do consumo e da moda no panorama mundial, como o Brasil decodifica estas informações e as adapta a sua

27 realidade, e ainda como os modelos negros se inserem neste novo mapa da produção de imagens. A busca pelo desenvolvimento sustentável e a tomada de responsabilidade social pelas grandes empresas se aliam à onda politicamente correta surgida nos anos 90 e tentam dialogar com o luxo e com o efêmero. Os estudos de Bourdieu (1983), Featherstone (1991), Canclini (1999) e Lipovetsky (1989) nortearam este capítulo. No terceiro capítulo, achei importante traçar um breve perfil dos consumidores negros no Brasil, com base nas recentes pesquisas do Dieese (2006), OIT (2004) e também da pesquisa Grottera (1997). Como não poderia deixar de citar, o caso da população negra consumidora nos Estados Unidos é abordado a partir do seu caráter independente e lançador de tendências, cujo expoente principal atualmente é o hip hop. O quarto capítulo pretende relacionar os temas: negros, estética e consumo. Analisei os aspectos subjetivos do consumo que costumam afetar de maneira mais significativa a população negra, e, a partir daí, o surgimento do mercado étnico e a força dos produtos voltados para beleza e higiene pessoal, e principalmente dos produtos para os cabelos. No quinto capítulo a abordagem se volta para os depoimentos dos modelos sobre suas próprias trajetórias, gerando uma conexão com todos os temas discutidos nos capítulos anteriores. Busquei localizá-los dentro do campo, explicitando alguns comportamentos mais comuns e o vocabulário específico. É importante frisar que o campo da moda é um campo altamente elitista. Conseguir penetrá-lo e manter-se nele já é considerado uma vitória, independente da cor da pele.

28 O sexto capítulo relaciona dois estudos de caso de um homem e de uma mulher, negros, da mesma idade, que ilustram as contradições e ambições presentes na carreira de modelo. O sétimo capítulo traz as conclusões da pesquisa e idéias que podem ajudar a reformular e redirecionar as questões relacionadas ao “racismo estético” no Brasil. Por tratar-se de uma pesquisa que tem como tema a imagem, os anexos trazem fotos dos entrevistados, dos principais representantes nacionais e estrangeiros do campo, negros e brancos, além de imagens de alguns dos principais momentos da pesquisa. O panorama da questão racial no Brasil está presente em todos os capítulos. Por considerar fundamental um breve histórico do pensamento brasileiro, não só acadêmico, mas também das imagens aceitas e construídas pelo senso comum ao longo dos anos, busquei usar as noções de “preconceito de marca” dos estudos de Nogueira (1991), e a visão de Freyre(1981) sobre a miscigenação do povo brasileiro e suas peculiaridades. A idéia era analisar suas persistências em nosso comportamento e vocabulário até os nossos dias. Para uma discussão contemporânea, direcionada para a imagem do negro no mercado de produção de imagens, utilizei, fundamentalmente, a discussão entre Sodré (1999) e Fry (2002).

29 Capítulo 1 Metodologia

Para a realização deste trabalho, utilizei basicamente a observação participante, ou, levando em conta meu envolvimento com o tema, a “participação observadora”. A minha proximidade com os entrevistados permitiu que, além das entrevistas e depoimentos informais, eu fizesse um acompanhamento de suas trajetórias profissionais nestes três anos de trabalho. Cabe ressaltar que, mesmo antes da mudança de abordagem do tema moda e questão racial, ainda com foco no mercado hip hop, os pesquisados já faziam parte da minha rede de relações, devido ao envolvimento comum de todos com o movimento hip hop, seja como admiradores, freqüentadores das festas ou adeptos da filosofia.

1 - Modelos entrevistados2:

Nome: Davi, 24 anos. Estado Civil: solteiro Filhos: não tem Onde Mora: Botafogo, Rio de Janeiro Com quem mora: Com a namorada Renda mensal: R$ 2.000,00 Escolaridade: 2º grau completo Tempo de profissão: 4 anos

Nome: Maurício, 24 anos. Estado Civil: solteiro

2 Optei por utilizar nomes fictícios por considerar que algumas falas podem trazer problemas e constrangimentos no campo profissional.

30 Filhos: um filho Onde Mora: Engenho Novo, Rio de Janeiro Com quem mora: Mora sozinho Renda mensal: R$ 2.000,00 Escolaridade: 2º grau completo Tempo de profissão: 3 anos e meio

Nome: Luciano, 27 anos. Estado Civil: solteiro Filhos: não tem Onde Mora: Engenho de Dentro , Rio de Janeiro Com quem mora: mãe e irmãos Renda mensal: R$ 2.000,00 Escolaridade: Formado em Marketing pela Univercidade. Tempo de profissão: 4 anos

Nome: Tatiana , 23 anos. Estado Civil: solteira Filhos: não tem Onde Mora: Leme, Rio de Janeiro, mas a casa da mãe fica em Campo Grande. Com quem mora: Mora com uma amiga Renda mensal: entre R$2.000,00 e R$ 3.000,00 Escolaridade: 2º grau completo Tempo de profissão: 2 anos e meio

Nome: Carlos, 24 anos. Estado Civil: solteiro Filhos: não tem Onde Mora: Méier, Rio de Janeiro Com quem mora: com a mãe e a irmã

31 Renda mensal: R$3.500,00 Escolaridade: 2º grau completo (acaba de passar no vestibular para Matemática na UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Tempo de profissão: 6 anos

Nome: Daniela, 27 anos. Estado Civil: casada Filhos: não tem Onde Mora: Glória, Rio de Janeiro Com quem mora: com o marido Renda mensal: R$ 3.000,00 Escolaridade: formada em Psicologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense) Tempo de profissão: 11 anos (com alguns intervalos)

Nome: Carla, 30 anos. Estado Civil: solteira Filhos: não tem Onde Mora: Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro Com quem mora: mora com uma amiga Renda mensal: R$ 3.000,00 Escolaridade: 2º grau completo Tempo de profissão: 13 anos

Nome: André, 28 anos. Estado Civil: solteiro Filhos: não tem Onde Mora: Engenho de Dentro, Rio de Janeiro Com quem mora: mora com a namorada Renda mensal da família: R$ 1.500,00

32 Escolaridade: 2º grau completo, cursando a faculdade de Biologia na UNISUAM (Centro Universitário Augusto Motta) Tempo de profissão: 7 anos

Nome: Roberto, 23 anos Estado Civil: solteiro Filhos: não tem Onde Mora: Centro, São Paulo Com quem mora: mora com o primo e mais uma amigo Renda mensal da família: R$ 2.500,00 Escolaridade: 2º grau completo, cursando Design Gráfico no SENAC/SP Tempo de profissão: 3 anos

Dos nove entrevistados, seis (Luciano, Davi, Tatiana, Carlos, André e Carla) têm pais separados, e três (Davi, Tatiana e Roberto) dependem exclusivamente da profissão de modelo. Entre os outros, quatro (Carlos - ator, André- músico e estagiário em pesquisas na área de Biologia, Daniela – psicóloga e Carla, - atriz) contam com outras atividades remuneradas para complementar a renda, Luciano e Maurício, apesar de não contarem com atividades paralelas, podem contar com a ajuda dos pais, Luciano apenas da mãe, em casos de maiores necessidades. Fundamental para as conclusões do trabalho foi o acompanhamento das duas principais semanas de moda (Fashion Rio e São Paulo Fashion Week) do país. Ao todo, foram cinco temporadas. Também acompanhei o panorama internacional através de sites e das publicações mais significativas do gênero.

33 O Fashion Rio é o segundo maior evento de moda do país. Surgiu em 1992 como “Semana Leslie de Estilo” passando a se chamar “Semana Barrashopping de Estilo”. A partir de 2002, com 28 grifes, passou ao formato atual ocupando o Museu de Arte Moderna, localizado no centro do Rio de Janeiro. A Dupla Assessoria é a responsável pela organização geral do evento. O São Paulo Fashion Week, maior semana de moda da América Latina nasceu em 1995 como Phytoervas Fashion. Das passarelas do SPFW saíram as top models brasileiras que conquistaram as passarelas internacionais. O evento, e seu coordenador Paulo Borges, é considerado o responsável pela profissionalização da moda brasileira, ao fortalecer o setor dentro do mercado de negócios e ao mesmo tempo difundir a cultura de moda para a população em geral. Desfiles realizados nas temporadas analisadas:

Fashion Rio - Primavera/Verão 2004/2005 Rio Moda Hype, Colcci, Sta Ephigenia, Patrícia Vieira, Marcia Ganem, Salinas, Walter Rodrigues, Graça Ottoni, MvsM, Mara Mac, Tessuti, Blue Man, TNG, Karlla Girotto, Coven, Victor Dzenk, Cavendish, Virzi, Lenny, Sandpiper, Permanente, Lei Básica, Drosófila, Maria Bonita, Maria Bonita Extra, Complexo B, Totem, Carmelitas, A Colecionadora, Frankie Amaury, Rygy e Novos Estilistas (Wendell Braulio e OEstudio, e Miquelina, Lena Santana e Zigfreda)

Fashion Rio – Outono/Inverno 2005 Rio Moda Hype, Lilica Ripilica, Animale, Colcci, Sta Ephigenia, Patrícia Vieira, Super Lucy in The Sky, Walter

34 Rodrigues, Graça Ottoni, MvsM, Mara Mac, Tessuti, TNG, Karlla Girotto, Coven, Victor Dzenk, Cavendish, Virzi, OEstudio, Permanente, Drosófila, Maria Bonita, Maria Bonita Extra, Zigfreda, A Colecionadora e Novos Estilistas (Maria Fernanda Lucena, Artemísia e Melk Z Da)

Fashion Rio - Primavera/Verão 2005/2006 Rio Moda Hype, Maria Bonita, Lilica Ripilica, Maria Bonita Extra, Zigfreda, OEstudio, Sta Ephigenia, TNG, Tessuti, Patrícia Vieira, Blue Man, Drosófila, Lei Básica, Virzi, Lucy in The Sky, Salinas, Mara Mac, Permanente, Victor Dzenk, Sta Ephigenia, Sandpiper, Graça Ottoni, Animale, Alessa, Colcci, Walter Rodrigues, Karlla Girotto, Totem, Lenny, Marcia Ganem, Cavendish, Complexo B, Redley, Maria Fernanda Lucena, Novos Estlistas (Chiaro, Layana Thomaz, Melk Z Da, Luiza Bonadiman)

Fashion Rio - Outono/Inverno 2006 Rio Moda Hype, Lilica Ripilica, Sta Ephigenia, Carmelitas, Maria Bonita Extra, Maria Fernanda Lucena, Redley, Virzi, Tessuti, Chiaro/ Layana Thomaz, Graça Ottoni, Mara Mac, Victor Dzenk, Drosófila, TNG, Walter Rodrigues, Marcia Ganem, Cavendish, Lucy in The Sky, Sandpiper, Alessa, Cantão, Melk Z Da, Luiza Bonadiman / Reserva, Wendell Braulio, Colcci, Permanente – Andrea Saletto, Elisa Chanan, Complexo B, Animale, Acqua Studio

Fashion Rio - Primavera/Verão 2006/2007 Rio Moda Hype, Animale, Acqua Studio, Alessa, Blue Man, Cantão, Cavendish Coven, Colcci, Theodora, Juliana Jabour, Salinas, TNG, Complexo B, Drosófila, Eduardo Suppes, Elisa

35 Chanan, Layana Thomaz, Lenny, Lilica Ripilica, Lucy in The Sky, Luiza Bonadiman, Maria Fernanda Lucena, Mara Mac, Marcia Ganem, Maria Bonita Extra, Melk Z Da, Nina Becker, Permanente, Redley, Salinas, Sandpiper, Sta Ephigenia, Sommer, Totem, Victor Dzenk, Walter Rodrigues, Zil e Novos Talentos (Chiaro, Reserva e Kylza Ribas)

São Paulo Fashion Week - Primavera/Verão 2004/2005 Jum Nakao, Ricardo Almeida, UMA, Sais, (feminino), Zoomp, Alphorria, Ellus (feminino), Cori, , Fause Haten, Iódice, Triton, Cia Marítima, Reinaldo Lourenço, British Colony, Agua de Coco, Fause Haten, Mario Queiroz, Forum, Osklen, V.ROM, Huis Clos, Alexandre Herchcovitch (masculino), Movimento, Patachou por Tereza Santos, Gloria Coelho, Lorenzo Merlino, Ellus 2nd Floor, Poko Pano, Ronaldo Fraga, Lino Villaventura, Isabela Capeto, Raia de Goeye, Erika Ikezili, Vide Bula, André Lima, Cavalera, Jefferson Kullig, Sommer, Zapping, Água Doce, VR Menswear, Eduardo Suppes, Caio Gobbi, Custo Barcelona, Marcelo Quadros

São Paulo Fashion Week - Outono/Inverno 2005 Alphorria, Ricardo Almeida, UMA por Raquel Davidowic, Alexandre Herchcovitch (feminino), Zoomp, Ellus (masculino), Pedro Lourenço, Cori, Carlos Tufvesson, Fause Haten (masculino), Iódice, Triton, Reinaldo Lourenço, British Colony por Maxime Perelmuter, Fause Haten (feminino), Mario Queiroz, Forum, Osklen, V.ROM, Huis Clos, Alexandre Herchcovitch (masculino), Ellus (feminino), Patachou por Tereza Santos, Samuel Cirnansck, Gloria Coelho, Lorenzo Merlino, Ronaldo Fraga, Lino Villaventura,

36 Isabela Capeto, Raia de Goeye, Erika Ikezili, Vide Bula, André Lima, Cavalera (masculino), Fábia Bercsek, Jefferson Kullig, Sommer, Neon, Cavalera (feminino), Zapping, Mareu Nitschke, VR Menswear, Eduardo Suppes, Gisele Nasser, Caio Gobbi, Lourdinha Noyama, Renato Loureiro

São Paulo Fashion Week - Primavera/Verão 2005/2006 Ricardo Almeida, UMA por Raquel Davidowic, Sais, Alexandre Herchcovitch (feminino), Zoomp, Ellus, Pedro Lourenço, Cori, Carlos Tufvesson, Fause Haten (masculino), Iódice, Triton, Cia Marítima, Reinaldo Lourenço, British Colony, Agua de Coco, Fause Haten (feminino), Mario Queiroz, Forum, Osklen, V.ROM, Huis Clos, Alexandre Herchcovitch (masculino), Movimento, Patachou por Tereza Santos, Samuel Cirnansck, Gloria Coelho, Lorenzo Merlino, Karlla Girotto, Poko Pano, Ronaldo Fraga, Lino Villaventura, Isabela Capeto, Raia de Goeye, Erika Ikezili, Vide Bula, André Lima, Cavalera (masculino), Fábia Bercsek, Jefferson Kullig, Sommer, Neon, Cavalera (feminino), Zapping, Água Doce, Mareu Nitschke, VR Menswear, Eduardo Suppes, Gisele Nasser, Basso & Brooke, Caio Gobbi,

São Paulo Fashion Week - Outono/Inverno 2006 Ricardo Almeida, Uma por Raquel Davidowicz, Patrícia Viera, Alexandre Herchcovitch (feminino), Rosa Chá por Amir Slama, Vide Bula, Mário Queiroz, Zoomp, Maria Bonita, Cavalera (feminino), Patachou por Tereza Santos, Zapping, VR Menswear, Triton, Iódice, Ellus, Reinaldo Lourenço, Alphorria, Cori, Neon, Maxime Perelmuter, Karlla Girotto, Forum, Cavalera (masculino), Fause Haten (feminino),Ronaldo Fraga, Huis Clos, Alexandre

37 Herchcovitch (masculino), Caio Gobbi, André Lima, Osklen, Lorenzo Merlino, Pedro Lourenço, Raia de Goeye, Fause Haten (masculino), Samuel Cirnansck, Érika Ikezilli, Lino Villaventura, Isabela Capeto, Glória Coelho, Gisele Nasser, Zigfreda, Fábia Berseck, Jefferson Kullig, V.Rom, Sommer

São Paulo Fashion Week Primavera/Verão 2006/2007 Ricardo Almeida, UMA por Raquel Davidowic, Patricia Viera, Sais, Alexandre Herchcovitch (feminino), Zoomp, Ellus, Pedro Lourenço, Cori, Carlos Tufvesson, Fause Haten (masculino), Iódice, Triton, Cia Marítima, Reinaldo Lourenço, Maxime Perelmuter, Agua de Coco por Liana Thomaz, Fause Haten (feminino), Mario Queiroz, Forum, Osklen, V.ROM, Huis Clos, Alexandre Herchcovitch (masculino), Movimento, Patachou por Tereza Santos, Zigfreda, Samuel Cirnansck, Gloria Coelho, Lorenzo Merlino, Karlla Girotto, Poko Pano, Miguel Vieira, Ronaldo Fraga, Lino Villaventura, Isabela Capeto, Raia de Goeye, Erika Ikezili, Anabela Baldaque, Vide Bula, André Lima, Cavalera (masculino), Fábia Bercsek, Jefferson Kullig, OEstudio, Neon, Cavalera (feminino).

38 Capítulo 2 Você é o que você consome “I shop therefore I rule” (chamada de capa da revista inglesa New Consumer, Setembro de 2006)

O momento atual do consumo é marcado por dois movimentos: o consumo consciente, ligado diretamente ao conceito de “politicamente correto”; e o crescimento do mercado de luxo. Além disso, a relação entre consumidores (cidadãos) e produtores (empresas e agências de publicidade) tomou uma nova direção: hoje em dia, há um diálogo entre eles. Não é mais apenas o produtor quem diz o que é melhor para o consumidor, este também expõe suas necessidades e desejos. As imagens publicitárias, que passaram a incluir os consumidores negros como público-alvo, seguem as diretrizes sugeridas por uma crescente, e ainda pequena, classe média negra que busca criar uma relação de identificação com os bens de consumo. Das novas relações entre mercado e consumidores surge o aumento da visibilidade dos modelos negros. A idéia de consumo tem sido reconceitualizada por alguns autores, como Lipovetsky (1989): ao invés de pensar em gastos irracionais, objetos supérfluos ou necessidades de subsistência, pode-se pensar o consumo como um processo cultural onde bens materiais assumem o papel de marcadores sociais e ajudam na elaboração das relações entre os indivíduos. Nesses novos tempos, um interessante movimento vem ganhando cada vez mais força: as relações de influência entre as duas esferas do mercado de consumo. De um lado,

39 criadores e empreendedores dispostos a conquistar cada vez mais adeptos. De outro, os consumidores preocupados em conciliar suas necessidades básicas e seus desejos. Em comum, o interesse em construir uma identidade diferenciada no meio do excesso de informações que recebemos todos os dias. Os jovens negros, independente das condições sócio- econômicas às quais estão submetidos em sua maioria, fazem parte desta parcela que busca construir uma identidade baseada no estilo próprio e tem com a moda contemporânea um diálogo intenso, onde ditam algumas das mais importantes tendências e adaptam outras ao seu estilo de vida. No geral, esse diálogo entre moda e juventude acontece de diversas maneiras. As empresas tornaram-se mais sensíveis aos sinais que vêm das ruas, e com isso o streetwear3 e o sportwear4, as principais tendências ditadas pelos jovens negros, principalmente os norte - americanos, ganharam força e passaram a influenciar coleções desde as grandes maisons5 até as lojas de departamento. Os movimentos culturais urbanos seguiram a trilha do punk6 – que parece ser fonte inesgotável de referências até hoje – e traçam seu caminho “from sidewalk to catwalk” (Polhemus, 1994). Hip Hop, Grunge, Electro7, e até mesmo o Funk, seguem gerando releituras a cada estação. As grandes marcas esportivas como Adidas, Puma, Nike, Asics, Gola, também têm direcionado suas produções para esse novo consumidor que procura ao mesmo tempo conforto e autenticidade, aliando-se a nomes fortes do mundo

3 Estilo de roupa com inspiração nos movimentos culturais urbanos como o punk e o hip hop. 4 Estilo de roupa com inspiração nos uniformes esportivos 5 Como são chamadas as fábricas das marcas mais tradicionais, que lançam as tendências internacionais. 6 Movimento cultural e musical inglês que prega a anarquia. Paradoxalmente, tem uma estreita relação com a moda. 7 Gêneros musicais que se transformaram em manifestações juvenis ao redor do mundo e serviram de referência para grandes nomes da moda.

40 fashion para assinarem algumas de suas coleções, como, por exemplo: Stella McCartney e Yohji Yamamoto para Adidas, Christy Turlington e Neil Barret para Puma. No caso específico do aumento do interesse pelas roupas esportivas e pela moda de rua, o movimento hip hop e sua popularização internacional foram os responsáveis diretos. O movimento de globalização também exerceu suas influências sobre os territórios e criou novas relações, estimulando o que podemos chamar de “movimento antropofágico” do consumo. No caso da moda, poderíamos exemplificar da seguinte maneira: tendências globais são lançadas nas semanas de moda de Milão, e Nova Iorque, e depois são irradiadas para os outros países sendo aceitas, ou “engolidas”, e reinventadas a partir de características locais peculiares. Como exemplo concreto podemos citar as novas relações entre Ocidente e Oriente. De acordo com Sahlins (2004), foi-se o tempo em que o Ocidente encarava o Oriente como local de preservação de tradições milenares, religiões não-cristãs e cidadãos conservadores. O Oriente também mudou seu olhar em relação às culturas ocidentais: capitalismo, lucro, tecnologia e intercâmbio cultural deixaram de ser palavras proibidas. A globalização trouxe nova luz a conceitos e tradições impondo uma nova ordem sócio-econômica e cultural em uma velocidade que o mundo não via desde os processos de colonização. Aliás, muitos pensadores apostaram que este seria o objetivo do movimento mais uma vez nascido no seio da civilização ocidental e fizeram previsões nada otimistas que buscavam estimular os países em desenvolvimento a protegerem suas culturas e seus saberes locais. O temor era que se repetissem os processos de aculturação e assimilação

41 que nortearam a conquista do novo mundo. Pensadores mais otimistas previam um intercâmbio multicultural muito rico, que pudesse inclusive estimular a tolerância entre os povos. Entre erros e acertos, o processo em si foi inevitável e cada território sofreu os efeitos a sua maneira. A moda, como eficaz espelho social que é, nos deu mostras da diversidade de sentidos e reflexos da globalização. A dinâmica consumista ocidental encontrou, principalmente nos tigres asiáticos, jovens ávidos por conhecer as diversas ofertas de produtos e serviços que os permitiriam romper com a tradição. As marcas de luxo que investiram neste mercado encontram no Oriente o público mais receptivo e menos preocupado com o preço das mercadorias – vide as filas imensas e constantes na filial japonesa da Louis Vuitton8, a cada lançamento. A juventude oriental propôs releituras para as manifestações culturais urbanas, como o hip hop, a cena eletrônica e até mesmo a bossa nova e se tornaram referência obrigatória para o mercado street mundial. Os processos tecnológicos mais modernos foram apreendidos rapidamente - o que não chega a impressionar se lembrarmos que já nos anos oitenta, Japão e Coréia dominavam a fabricação de eletrônicos – e hoje a China é um dos maiores expoentes do mercado têxtil, o Vietnam significativo exportador de algodão, e a Índia caminha a passos largos rumo ao título de potência mundial. Porém, para competir no mercado internacional os países baixaram os custo da mão de obra a um nível de semi-escravidão. Na ânsia de se tornarem cada vez mais ocidentais, os jovens vêm se submetendo a uma série de intervenções estéticas que, em alguns casos, se

8 Marca de acessórios francesa, símbolo de luxo no mundo inteiro. Mundialmente conhecida por suas bolsas com monogramas. Uma das grifes que mais sofre com a pirataria no cenário internacional.

42 revelam prejudiciais à saúde; e a pirataria se tornou quase um sinônimo de “made in China”. Processos semelhantes ocorreram na América Latina e na África, que viram surgir pequenas ilhas de luxo em seus países de terceiro mundo. A outra face desse diálogo diz respeito às implicações éticas no ato de consumir. Os bens de consumo trazem consigo valores agregados que passam a dizer muito sobre a personalidade de quem os compra. De olho nesse movimento, as grandes empresas têm buscado alternativas para atrair os consumidores, que vão além do valor estético e de uso do produto. Como exemplo, gigantes do mercado como a canadense MAC com sua linha Viva Glam - que tem a renda de seus produtos revertida para pesquisas sobre a AIDS, e a brasileira Natura com a linha EKOS – que segue uma rígida política de proteção ambiental na compra de sua matéria prima e estimula a auto-sustentabilidade das populações da região norte. O conceito de ética vai além das ações sociais e encontra a estética em campanhas que buscam estimular a valorização dos diferentes padrões de beleza. O melhor exemplo é a “Campanha pela Real Beleza”, dos produtos Dove. O desenvolvimento sustentável é uma das esferas do consumo consciente que conseguiu penetrar dentro das políticas empresariais. Tanto que deixou de ser um diferencial para ser um pré-requisito para análise ética de grandes corporações. A sustentabilidade direciona o processo produtivo buscando resultados sociais mais justos e diminuição de impactos ambientais nocivos ao meio- ambiente. Uma das empresas que buscam desenvolver seus processos produtivos com a totalidade do conceito, no Brasil,

43 é a Natura, que conta com uma diretoria focada somente na sustentabilidade. O último lançamento da empresa realizado no São Paulo Fashion Week – Primavera/Verão – 2006/2007, a linha Diversa de maquiagem reforça o conceito que faz da empresa a quarta marca de maior valor no Brasil. A nova linha, que conta com um inovador sistema de refil, reduzirá em até 70% o impacto ambiental dos produtos. Nos Estados Unidos, a American Apparel se destacou no mercado de moda por reunir todo o processo produtivo, e até mesmo de divulgação, em sua fábrica no centro de Los Angeles, sem utilizar a mão-de-obra do Terceiro Mundo, e ainda pagar uma média salarial superior. Além disso, a otimização do tempo de trabalho garante uma competitividade maior à marca. Bono Vox, o líder engajado de uma das maiores bandas do cenário,o U2, também é um dos representantes desta nova safra de empreendedores do consumo social: ele lançou em um evento off da temporada de moda em Nova Iorque a nova coleção de inverno de sua grife, a Edun (Nude ao contrário). A marca politicamente correta é uma iniciativa conjunta do cantor, de sua esposa Ali Hawson e do estilista americano Rogan Gregory. As roupas da grife são fabricadas em fibras naturais por trabalhadores dos países da América, do Sul, África e na Índia. A idéia é gerar emprego e renda para os países em desenvolvimento e se tornar modelo de comércio consciente e sustentável, incentivando novas ações neste sentido. A qualidade e o design das roupas também fazem parte do conjunto das principais preocupações, já que um dos objetivos é provar que os países em desenvolvimento podem protagonizar ações produtivas relevantes no cenário da

44 economia mundial, sem precisar que seus trabalhadores sejam explorados por relações de trabalho injustas. Mas esta não é a única incursão do cantor na luta por relações de comércio mais justas. Em janeiro de 2006, no Fórum Social Mundial, em Davos, ele lançou o projeto RED, uma rede de consumo mundial, que funciona a partir de um site na internet. O projeto foi criado para gerar receita para o Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária e chamar a atenção da população mundial para a questão da saúde, cada vez mais grave nos países africanos. Sob a marca RED, várias empresas desenvolverão produtos especiais que terão parte de seu lucro destinado ao fundo. As primeiras empresas a aderirem ao projeto foram: Gap, Converse, e American Express. A RED foi criada após a constatação de que o setor privado da economia mundial investe menos de 1% do que o Fundo Global necessita para atuar de maneira efetiva na luta contra a epidemia de AIDS na África. Surgiu como uma alternativa que visa encorajar os investimentos do mercado, tornando-se um campo de circulação de capital lucrativo e social, simultaneamente. Bono Vox faz questão de afirmar que a iniciativa não é uma caridade, é uma iniciativa comercial criada para gerar um fluxo sustentável de recursos financeiros vindos do setor privado para o Fundo Global. Iniciativas globais como estas, que visam oferecer boa qualidade em bens de consumo produzidos por cadeias sociais ou que revertem fundos para campanhas de impacto mundial, alavancam o setor de comércio sustentável e responsabilidade social. Em comum, além de seguirem uma política de desenvolvimento sustentável, estas empresas oferecem

45 produtos com qualidade, o que ajuda a conquistar ainda mais consumidores. O século XXI assistiu também ao aparecimento de um fenômeno chamado consumo consciente, onde os indivíduos buscam, por meio do ato de consumir, exercer princípios de cidadania. Esse novo consumidor busca valorizar e divulgar empresas que desenvolvem ações voltadas para a responsabilidade social, que se preocupam com os impactos de sua produção para o meio ambiente, que procuram relações mais justas entre o preço, a qualidade e a demanda de seus produtos e serviços, que oferecem condições de trabalho e qualidade de vida a seus funcionários. Além disso, busca manter uma relação de cumplicidade com estas empresas, prestando consultorias e dando sugestões de melhores relações com a comunidade e também buscando mobilizar outros consumidores para a prática do consumo consciente. Para não perder os consumidores que optaram por priorizar essa modalidade de consumo, diversas empresas começaram a desenvolver ações consideradas “politicamente corretas”, ações de responsabilidade social – termo que hoje em dia faz parte do cenário econômico mundial - tais como: incentivo ao desenvolvimento sustentável, que pode ocorrer a partir de inovações tecnológicas no método de extração da matéria prima, ou até mesmo a partir da valorização de técnicas nativas de extração; ações de incentivo e apoio à preservação ambiental, já que uma das principais características da atividade industrial é o impacto negativo que costuma causar na natureza. Grandes empresas mantêm fundações de apoio à pesquisa e preservação do meio ambiente; revertendo parte dos lucros arrecadados com a venda de um produto para causas sociais ou instituições

46 filantrópicas. Esta é uma das ações que dialoga diretamente com o consumidor, gerando um apelo que o convoca a adquirir um produto com valores éticos e solidários agregados. A imagem publicitária, aquela que será o primeiro contato do produto com o consumidor, também seguiu este rumo e sofreu algumas alterações. Estas marcas “socialmente responsáveis” passaram a adotar uma variação maior de padrões estéticos em seus comerciais. A diversidade étnica nas campanhas de divulgação incrementou o mercado para os modelos negros e asiáticos. O sucesso da campanha do “Câncer de Mama no Alvo da Moda” é um exemplo de que o consumo ético é um movimento crescente. É possível perceber como está cada vez mais presente no consumo a idéia de criar e/ou financiar projetos sociais: criar projetos de acompanhamento social, familiar e escolar para os funcionários da empresa; aportar recursos diretamente em projetos já desenvolvidos por organizações não-governamentais e/ou ajudar no processo de elaboração desses projetos, criando assim uma cooperação direta com a sociedade civil. Cultivar uma relação saudável com o espaço que se ocupa e com os indivíduos a ele atrelados proporciona à empresa uma espécie de “lucro subjetivo” e, hoje em dia, podemos perceber um avanço do comportamento estratégico das empresas públicas e privadas nessa direção. No mercado brasileiro podemos citar Petrobrás, Natura, O Boticário, Azaléia Calçados e uma série de outras que fazem da responsabilidade social seu grande mote para atrair o consumidor consciente.

47 Existem também instituições idealizadas e comandadas pela sociedade civil, como o Instituto Ethos de Responsabilidade Social Empresarial e o Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, que buscam impulsionar esse movimento de mudança de comportamento social através do consumo, fiscalizando as ações das empresas e incentivando a participação dos indivíduos. É interessante perceber o impacto desse tipo de movimento de conscientização e compará-lo com outros ocorridos há algumas décadas atrás: antes se lutava pela diminuição da importância do ato de consumir na vida cotidiana dos cidadãos, enquanto hoje em dia o consumo é usado como ferramenta dos novos conscientes. O reconhecimento do poder do ato de consumir como elemento fundamental na construção da estrutura social, e o comportamento do novo consumidor que busca valores subjetivos agregados aos bens e serviços, sem dúvida alguma, orientam estratégias de marketing que resultam em linguagens publicitárias inovadoras e também na criação de mercados alternativos. É a partir dessa hipótese que compreendo o aumento do número de modelos negros nos desfiles e campanhas publicitárias, e também o crescimento de um mercado étnico no Brasil. O real impacto, no que concerne a um processo de conscientização derivado do consumo, ainda é discutido pelos diversos setores envolvidos na questão racial. Principalmente porque a publicidade é um campo ambíguo, repleto de significados conflitantes e complementares, e, para os modelos negros, no Brasil, ainda hoje é impossível saber se participam de uma campanha publicitária por serem bonitos e terem suas imagens reconhecidas pelo mercado como

48 modelos de estética digna de ser desejada; se participam por que há o aumento de uma classe média negra que direciona seu poder de compra para produtos capazes de gerar sentimentos de aproximação e reconhecimento; ou se é porque o movimento social voltado para as questões da igualdade de oportunidades e tolerância às diferenças começa a se impor diante da situação racial no país. As empresas de bens e serviços foram as primeiras a perceber que o consumidor estava recebendo cada vez mais informações acerca do que é “politicamente correto”. O consumidor negro, especificamente, estava começando a exigir algum tipo de representação nos anúncios, na medida em que seu poder aquisitivo aumentou. Se ligarmos a televisão hoje, veremos negros nos comerciais do Banco do Brasil, Chevrolet, Sabonete Lux, Sorvete Kibon, fato quase inexistente há dez anos. Os negros aparecem em número menor do que os brancos, isso é incontestável, mas pelo menos já conseguem se reconhecer em alguns anúncios de produtos e serviços que consomem. Mas o que será que mudou? O consumidor gerou uma nova demanda, a partir de um aumento da conscientização sobre a visibilidade do negro dentro do panorama da questão racial no Brasil, e de como o consumo podia ser utilizado na tentativa de reverter esta situação? Ou o mercado gerou uma nova oferta a fim de conquistar uma nova camada negra de classe média em crescimento? Na primeira hipótese, é preciso analisar fatores econômicos: com receio de perder ou deixar de atingir um público com poder de compra, e cedendo a pressões éticas ou políticas, as empresas respondem às demandas, e passam a reconhecer o negro como consumidor e a se preocupar em

49 suprir suas necessidades e despertar seus desejos. Já na segunda hipótese, na ânsia de gerar cada vez mais lucro e criar cada vez mais produtos, o mercado oferece produtos diferenciados e estimula a sensação de “exclusividade” e elogio das diferenças, é o caso do mercado étnico. Simultaneamente ao crescimento do número de adeptos ao consumo consciente, o mercado de luxo não pára de conquistar cada vez mais consumidores ao redor do globo. O interessante é perceber que ambos os movimentos estão apoiados na mesma premissa: as sensações causadas pelo ato de consumir e a sua importância para a construção identitária no século XXI. Porém, deste movimento ligado ao setor de luxo, hoje no Brasil, os negros, modelos e consumidores, não participam efetivamente. Para esta constatação considero duas hipóteses: a parcela negra da classe média alta e da classe alta ainda é quase insignificante em termos estatísticos, por isso não existem campanhas publicitárias tratando-os como público-alvo preferencial. A segunda hipótese é a de que o luxo representa sempre o que há de melhor, e a sua imagem publicitária precisa transmitir esta mensagem Como no Brasil a imagem negra não é reconhecida como bela, não há modelos negros protagonizando campanhas de divulgação de artigos de luxo. O mercado de luxo conquista uma parcela cada vez maior de consumidores em todo o mundo, movimentando $1,5 bilhão ao ano. O Brasil só perde para a Ásia no quesito “maior potencial de crescimento para o consumo de artigos de luxo” (Revista Veja, edição especial, Maio 2005). Só como exemplo, a loja localizada no Shopping Iguatemi (SP), está entre as cinco mais rentáveis da empresa em um total de 300 ao redor do mundo. Além de ser um fato

50 que consolida as desigualdades sócio-econômicas existentes em nosso país, e nos países asiáticos, também mostra novos aspectos do consumo de luxo, como a subjetividade e a aparente democratização dos desejos. Segundo Gilles Lipovetsky (1989), o consumo tornou-se muito mais ligado às sensações que pode causar do que aos produtos propriamente ditos. A efemeridade da moda não permite mais que possamos nos satisfazer apenas com produtos, ela acabou transformando o mundo das sensações em protagonista na hora de consumir. A maioria das pessoas raramente entra em uma loja de sapatos buscando apenas um produto para proteger os pés. Elas querem muito mais, querem o sapato da moda, que é igual ao da atriz da novela, que por sua vez interpreta um personagem rico e poderoso. Isso é o que parece acontecer com o novo mercado de luxo. Os consumidores destes artigos sabem que a felicidade não está em uma bolsa Louis Vuitton, numa jóia Cartier ou em um par de sapatos Manolo Blahnik. As sensações que estas grandes marcas são capazes de despertar, a partir de toda a atmosfera que as cerca: grandes campanhas publicitárias, arquitetura de suas concept stores9 e maisons, relacionamento personalizado com os clientes, formam o novo luxo. Analisando especificamente o caso da moda, iremos perceber um outro movimento relacionado à democratização dos desejos. Até bem pouco tempo atrás moda e beleza compunham segmentos de mercado quase exclusivamente femininos, pois mesmo os homens homossexuais não tinham uma oferta de roupas, acessórios e produtos de beleza desenvolvidos para eles. Com o surgimento do metrossexual,

9 Concept Stores é como são chamadas as lojas que transmitem o conceito da grife. Neste caso, elas têm projeto arquitetônico especial, produtos exclusivamente comercializados e atendimento personalizado para os clientes.

51 o homem vaidoso que pode se preocupar em ter cuidados especiais com a pele, com o corpo e seguir as tendências da moda, assistimos ao nascimento de um novo nicho do mercado que tende a crescer cada vez mais: o mercado de moda e beleza para o público masculino.

2.1 Ser negro está na moda O universo de criação da moda parece nos remeter a um espaço de amplas possibilidades para todos. Mas constatamos ser esse pensamento um equívoco, na medida em que percebemos os mecanismos mais sofisticados de criação nas mãos de poucos. O campo da moda, segundo Bourdieu (1983), ocupa uma posição intermediária entre um campo onde os agentes são naturalmente substituídos, e um campo onde as pessoas são radicalmente insubstituíveis, como nos campos de criação artística e literária. Para o autor, no campo da moda observamos a legitimação do poder do criador e a afirmação da possibilidade de substituir o insubstituível. Ao retratar, acompanhar e simbolizar as transformações sociais, a moda serve como reflexo da sociedade. É possível apreender mais sobre um grupo a partir da moda praticada. De acordo com Mello e Souza (1987), a moda funciona como um poderoso instrumento de integração e nivelamento, já que permite que o indivíduo se confunda com o grupo e desapareça num todo. Em contrapartida, a moda também funciona como indicação e manutenção das diferenças sociais, é uma outra maneira de competição. E se o vestuário evidencia uma demarcação de nosso padrão de vida, também serve à simulação de status social. O grupo e o indivíduo passam a ser reconhecidos pelas roupas e acessórios que usam, e o estilo torna-se importante expressão de

52 identidade do grupo e de seus ideais. Para Do Carmo (2001), o estilo diferencia-se da moda por envolver supostamente um processo de criação em que o grupo social explicitaria sua identidade. Já a moda aparece como cópia de um conjunto de traços pré – aceitos. A moda vem suscitando o interesse de cientistas sociais, por estar intimamente ligada à construção de identidades individuais e de grupos na sociedade contemporânea. A moda comunica, faz a interlocução entre o indivíduo, seu grupo e a sociedade. Permite a criação de personagens, serve para confundir, esconder e disfarçar. A roupa que o indivíduo veste diz quem ele é, ou gostaria de ser, e em que espaço social ele atua ou ao menos, gostaria de atuar (Polhemus, 1996). Atualmente o “black style” (Tulloch, 2004) pode ser encontrado em editoriais das principais revistas de moda internacionais, mesmo que nestes não sejam protagonizados por modelos negros, e até nas principais temporadas de moda do mundo. Nesse caso, é Importante frisar que o último evento analisado para este trabalho foi a temporada primavera/verão 2006/2007 do São Paulo Fashion Week, que teve como tema a África. Visões bem peculiares foram expostas e não faltaram contestações. Em um extrato da matéria veiculada na edição especial do Jornal O Estado de São Paulo, as declarações de bookers e estilistas apontam para as contradições das relações raciais na moda: “A África, o continente negro, inspira a edição de verão 2007 do São Paulo Fashion Week. Mas apesar de dar o clima à estação mais quente do ano, isso não representa um aumento significativo de modelos negros na passarela.“Eu tenho acompanhado os castings e não vi nenhuma mudança

53 sensível, tanto que no Dream Tim ( grupo de new faces cedidas pelo evento aos estilistas) só tem uma modelo negra, comenta Bruno Soares, de 41 anos, booker da agência Wired. Ele que é negro, lembra do sistema de cota de seus tempos de modelo dez anos atrás:Quando eu desfilava em Nova York, todo desfile tinha que ter 30% de modelos negros, 15% de hispânicos e 5% de orientais. Radicalizando um pouco mais Hélder Dias, de 38 anos, diretor da agência HDA, especializada em modelos negros pergunta: Qual é a África do São Paulo Fashion Week? Se for a do Sul podemos esperar que só tenha brancos mesmo na passarela. Acho que isso é pura fachada, tenho modelos com medidas de passarela que não foram chamadas em nenhum casting. Sérgio Mattos, de 42 anos, diretor da agência 40º, alfineta: Existe um preconceito ferrado. Nosso país, que vive de se gabar que é miscigenado, deveria dar o exemplo e não copiar os padrões de beleza da Europa e dos Estados Unidos. Bom, mas nem lá é assim. O estilista Alber Elbaz, da Lanvin, acaba de apresentar sua pré-coleção de verão em Paris usando um casting só de modelos negras. E brincou: Mas eu não sou o Nelson Mandela.”10 O interesse da classe média em consumir os bens de consumo criados a partir do “black style” (Tulloch, 2004) pode ser compreendido por meio da análise de Lipovetsky (1989). Para o autor, nas sociedades contemporâneas, o novo aparece como imperativo categórico da produção e do marketing. A economia e a lógica do consumo caminham na velocidade das mudanças e na diferença. Lipovetsky (1989), ao analisar as sociedades contemporâneas, destaca que o

10 Extrato da matéria publicada no suplemento especial do jornal paulista O Estado de São Paulo que circulou no primeiro dia do evento, 12 de julho de 2006, apenas para os presentes na Bienal do Ibirapuera. A matéria é assinada pela jornalista Lilian Pacce, também apresentadora do programa GNT Fashion.

54 sistema consumado da moda instala na sociedade civil um estado de abertura diante do movimento histórico, cria mentalidades prontas para a aventura do novo. “Sabe que é engraçado ver essa playboyzada querendo ser preta? Eu encontro os caras que me discriminavam pra caramba no colégio nas festas black, de boné, corrente de prata, camisa grande e calça larga. Mas eles não são bobos né? Eles querem ser pretos americanos, com grana e mulher, não os brasileiros que vivem na favela. Papo com favela só se for baile funk pra comprar droga. As minas que nem me olhavam hoje me dão mole. Pegar preto tá na moda.” (Maurício)

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Capitulo 3 – Sobre os negros: breve perfil da população negra no Brasil e nos EUA Quem são os consumidores negros? “O Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas” Antonil

O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. E quando o fez, foi desacompanhado de quaisquer tipos de ação reparatória ou que tivesse como objetivo integrar os recém-libertos ao panorama sócio-econômico da época, o que nos traz até hoje problemas relacionados à pobreza, desemprego e desigualdade de oportunidades em geral. A partir de um processo de abolição que nem ao menos deu ao negro condições básicas para assumir e exercer sua cidadania, iniciou-se um processo de desigualdade racial que perdura até hoje. Apesar de Palmares e outros exemplos de resistência por parte dos negros, para os abolicionistas, a abolição não tinha um caráter primordialmente revolucionário, considerando como tal rupturas mais brutas com a ordem econômica – estrutura latifundiária e social – e a inserção social igualitária para os negros (Schwarcz,2001) . O incentivo à imigração tornou viável a assinatura da lei áurea sem que isso trouxesse grandes prejuízos aos senhores de engenho. Além disso, para as oportunidades remuneradas de trabalho que surgiram no período pós-abolição, poucos negros foram aproveitados. A relação ambígua com a casa-grande continuou de diversas maneiras, pois os escravos não tinham

56 para onde ir depois da abolição, então passavam a aceitar negociações que envolvessem moradia e alimento. As relações pessoais, com destaque para as relações sexuais entre indivíduos de diferentes raças11, concessões e negociações corporais deram a tônica do racismo à brasileira, desde a época da casa-grande e senzala (Freyre, 1933). A partir das peculiaridades das relações entre negros escravos e brancos senhores de engenho alguns autores, como Freyre (1933), imaginaram a possibilidade do desenvolvimento de uma nação sem conflitos de raça, onde a miscigenação assumiria o papel de processo salvador da nação. Minha hipótese é de que o racismo no Brasil nasce a partir dessas peculiaridades na formação do “caráter nacional”. Podemos citar como exemplo as hibridações confusas como as relações sexuais entre os senhores brancos e as escravas negras, pautadas pela violência, que geravam filhos mestiços e bastardos que não podiam ser considerados brancos o suficiente para serem cidadãos, e o processo de assimilação de elementos da cultura africana que se tornaram símbolos nacionais, como a feijoada e a capoeira, em uma época onde a miscigenação precisava ser tomada como atitude positiva. O racismo brasileiro não é declarado como foi o apartheid sul-africano, não é verbalizado fora do espaço privado, mas mesmo assim está presente em gestos cotidianos da sociedade brasileira desde sua formação. Diferentemente do que ocorreu em outros países da América, como Haiti e Estados Unidos, que assistiram a intensos, e muitas vezes violentos, processos de discussão e renegociação do papel do negro na sociedade, segundo

11 Raça neste trabalho é usada como categoria utilizada pelo senso comum, e neste caso pelo próprio autor (Freyre 1933) citado. Pois acompanhando as mais novas pesquisas genéticas, podemos perceber que cada vez mais a idéia de diferentes raças humanas está enfraquecida (Pena e Birchal, 2005)

57 Schwarcz (2001) no Brasil “atrasada ou não, o certo é que a abolição era “vendida” como um presente e, enquanto tal, uma dádiva não-negociada.” (p.46) Toda essa movimentação em relação à abolição aconteceu em um momento onde o mundo discutia a idéia de raça, ainda intrinsecamente ligada à questão biológica, que classificava os grupos humanos em superiores e inferiores a partir de seus diferentes fenótipos, e a imigração aumentava a fé nas chances de conseguir branquear o país e livrá-lo da condenação à inferioridade em função da mistura das três raças. Ainda no final do século XIX, autores como Nina Rodrigues passaram a incorporar os negros e mestiços como componentes populacionais, mas geralmente era apenas para apontá-los como degeneração do povo brasileiro. Herdeiro do direito positivista de Lombroso, o autor acreditava que as características morais eram geneticamente transmissíveis, e que os negros só poderiam ser conscientizados a partir de um processo a longo prazo de transmissão hereditária. Daí a importância da miscigenação rumo ao branqueamento do povo brasileiro. Após a segunda guerra mundial, a UNESCO, preocupada com as ideologias sobre as diferenças raciais e culturais que ganharam força na Europa com o nazismo, promoveu uma série de ações voltadas para a discussão sobre a questão racial. Neste momento, o conceito de raça perdeu força enquanto verdade natural e biológica, e seus aspectos sócio-culturais passavam a ser ressaltados. O Brasil poderia, assim, se encaixar como um exemplo de convivência pacífica entre diferentes raças. Nessa época, o antropólogo Arthur Ramos assumiu um posto oficial na instituição e propôs uma

58 série de estudos etnológicos no país, pois acreditava que tínhamos algo a ensinar aos europeus sobre a mistura de raças e culturas. Ramos, porém, não negava a existência de preconceitos e desigualdades. Deste movimento surgiram pensadores importantes da questão como Roger Bastide, Florestan Fernandes e Thales de Azevedo. Com o passar dos anos, a evidência do caráter estético do racismo brasileiro foi se acentuando. Neste trabalho, as idéias que Oracy Nogueira denominou, no século passado, de preconceito de marca e preconceito de origem são fundamentais. Desmistificando as peculiaridades do racismo à brasileira, em comparação ao encontrado nos EUA, o sociólogo ajuda a compreender o resultado de uma pesquisa realizada pela USP (Universidade de São Paulo) onde 97% dos brasileiros se auto-declaram não-racistas, mas onde 98% admitem conhecer pelo menos uma pessoa racista. Talvez com base nestes conceitos consigamos entender porque é tão difícil para o Brasil aceitar belezas e aparências diferentes do padrão imposto durante o processo de colonização. Nesse panorama, o mercado étnico pode ser encarado também como uma alternativa no combate ao racismo. Segundo Fry (2002), “o racismo moderno no Brasil como alhures é construído sobre representações negativas associadas a determinadas aparências”. (p.324). Para o autor, os profissionais do mercado publicitário podem contribuir “no sentido de transformar em sentido comum a noção de que há várias maneiras de ficar bela(o) e que não há relação nenhuma entre aparência e competência...” (p.324). Essa idéia de “racismo estético” é facilmente percebida no que diz respeito ao mercado da moda no Brasil.

59 “A gente tem aquela coisa de ideologia em ser modelo. Acho que todo preto tem. Pelo menos os que trabalham com imagem, por mais desligados politicamente que sejam, tem uma motivação, que pode até ser inconsciente, mas tem. Aquela coisa de ver mais negros na televisão, nas revistas, em comerciais, você se sente fazendo alguma coisa pela tua gente sabe? Mostrando que os negros também são bonitos, talentosos. Tudo bem, que consumo, moda tudo isso está mais ligado à futilidade, mas todo mundo assiste televisão! Tem um jeito mais fácil de chegar na casa das pessoas? A gente tem que usar as armas que tem!” (André)

Ao falarmos de mercado étnico no Brasil - aqui considerado como mercado onde os negros atuam como protagonistas além de serem o público alvo - estamos falando basicamente do segmento de beleza: cremes para cabelo crespo, maquiagem, hidratantes, sabonetes e desodorantes para a pele negra. O mercado hip hop pode ser encarado como uma segunda vertente do mercado étnico, que além de valorizar os produtos de beleza específicos, também sugere alternativas de consumo como roupas, músicas, acessórios e esportes. Para Santos (2000), o indivíduo é o seu corpo, a sua consciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania. Talvez, segundo o autor, seja esta uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. Não pretendo apresentar um perfil completo da situação sócio-econômica dos negros no Brasil. Mas ao tratar

60 de consumo e produção estética voltados para este segmento, considero relevante traçar um breve panorama sobre a situação dos consumidores e cidadãos negros no país. Um dos argumentos da parcela do senso comum que costuma negar a existência de preconceito racial no Brasil é dizer que neste país o preconceito é de cunho social. Porém podemos afirmar que a pobreza no Brasil tem cor: ela é negra na sua maioria, e as mais recentes pesquisas oficiais comprovam este fato.

“O que eu acho mais engraçado é quando dizem que no Brasil não tem racismo, o pior é que não é só branco que fala isso. Porque a coisa do social conta a pampa, muito negro que ganhou dinheiro não olha para trás. Não sofre mais preconceito pela frente, mas por trás pode ter certeza que falam dele. Acho que tem esta história do social forte aqui no Brasil, nem sei se é só no Brasil, porque não conheço outros lugares ainda, mas aqui o dinheiro clareia tua pele, quanto mais dinheiro você ganha, mais tua pele branqueia. Mas não é só isso não, as pessoas têm a mente racista, elas crescem pensando que preto é feio, estas coisas, até porque, você quer imagens boas na tua cabeça, e além de não acharem preto bonito, aqui a maioria é pobre, então como é que vão te tratar bem, te colocar nos trabalhos se te acham feio e você é pobre?” (Maurício)

“Eu e minha namorada levamos nosso afilhado de três anos a uma festa de aniversário dos filhos do primo dela. Lá uma menina da idade dele virou pra ele e disse: minha mãe odeia gente preta e eu também. No Brasil não tem racismo? Então o que explica uma mãe que cria uma criança com esta

61 mentalidade? E pode ter certeza, que, a verdade é triste, a maioria das crianças é criada para manter esta estrutura, os brancos são criados para tratar os negros com indiferença e os negros são criados para permanecerem nos seus devidos lugares. Não há interação, não há estímulo à mudança da estrutura. Há um déficit, isto é tão óbvio. E o mais óbvio é que este déficit se mantém há séculos porque ainda cultivamos uma estrutura racista, dá uma olhada nas favelas, nas ruas embaixo das marquises e me diz se isto é uma democracia racial.” (Luciano)

O Atlas Racial Brasileiro12 divulgou em 2004 um panorama sobre a desigualdade racial onde os dados averiguados não deixam dúvidas: uma criança negra tem 66% mais chances de morrer no primeiro ano de vida do que uma criança não negra; os negros representavam 65% da população que vive abaixo da linha da pobreza e 70% da população que vive em condições de indigência; o número de negros que teve acesso a uma consulta ao dentista, pelo menos uma vez na vida, é duas vezes menos que o de brancos, o mesmo ocorrendo para planos de saúde. Segundo Dojival Vieira, jornalista e presidente da ONG ABC sem racismo, em artigo que comenta os números do Atlas para o portal Mundo Negro em Dezembro de 2004, o estudo supõe que a população negra no Brasil tem no século XXI, níveis de qualidade de vida ainda inferiores aos da população branca na última década do século XX, ou seja, um déficit de mais de

12 Relatório realizado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em parceria com o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, da Universidade Federal de Minas Gerais, com base nos censos do IBGE , de 1991 a 2002.

62 dez anos, que a submete aos espaços de invisibilidade e/ou subalternidade. As famílias negras vivem em condições de desigualdade significativa em relação às famílias não negras. Os trabalhadores negros ganham, em média, 35% a 40% a menos do que os trabalhadores brancos. E é para estas pessoas que, em geral, sobrevivem fora das condições de vida ideais, que o mercado étnico volta suas expectativas de lucro. Uma das pesquisas realizadas pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou que, em 2003, enquanto o salário mensal médio do homem branco era de R$ 931,10, o do homem negro era R$ 428,30, o da mulher branca R$ 554,60 e o da mulher negra R$ 297,70. Com estes dados podemos verificar que o mercado formal de trabalho no Brasil opera com dois tipos de discriminação: de raça e gênero. Nas pesquisas realizadas pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos), observa-se que a inserção das mulheres negras no mercado de trabalho é nitidamente desvantajosa, mesmo levando em consideração que sua participação na força de trabalho é mais forte que a de mulheres não-negras. Este quadro, identificado pela constância de taxas de participação mais elevadas para as afro-brasileiras, aponta a maior dependência que o segmento negro feminino mantém em relação ao trabalho. Isto sem contar com os efeitos das elevadas taxas de desemprego que também atingem majoritariamente as mulheres negras. Ainda segundo o DIEESE, os trabalhadores negros aparecem ocupando majoritariamente situações de emprego vulneráveis, no mercado informal, sem carteira assinada. As mulheres negras por sua vez estão concentradas no trabalho doméstico. Quando examinados os ganhos por hora dos

63 trabalhadores, torna-se mais evidente a desigualdade pela cor, pois sobre a remuneração mensal menor recebida pelos negros, incide uma jornada de trabalho maior. Em 2004-2005, destacaram-se as Regiões Metropolitanas de Salvador e de São Paulo, locais em que o rendimento médio real por hora dos trabalhadores negros correspondia a, respectivamente, 48,7% e 52,7% em relação ao dos não-negros. A situação familiar costuma ser constituída de maneira diferente dos brancos, segundo mostram os estudos realizados: os chefes de família costumam ganhar em média 21,3% a menos dos que os chefes de família brancos. As taxas de desemprego são duas vezes maiores para os negros e os brancos costumam ganhar 57% a mais do que os negros que trabalham nas mesmas áreas. Os divórcios acontecem com mais freqüência nas famílias negras, 18,7% a mais.

“Olha, eu acho que, por alto, dos amigos que cresceram comigo por aqui, no subúrbio e tal, uns 90% têm pais separados. E é sempre a mesma história, tipo aquela música do Racionais: “mais um filho pardo sem pai”. Eu acho, que agora, assim tendo que pensar rápido, eu não lembro de ninguém que tenha um pai presente. Mas acho que a maioria das famílias negra é assim , não é? Mãe solteira, que cria os filhos com um puta sacrifício, ou então que foi abandonada e o cara não paga pensão, só história triste. Eu me dou bem com meu pai, mas sei que eu sou minoria.” (Carlos)

A situação no mercado de trabalho pode ser considerada reflexo do desempenho médio da população negra no sistema educacional. Um estudo do IPEA mostra que a escolaridade média de um jovem negro de 25 anos é de 6,1

64 anos de estudo, enquanto a de um jovem branco da mesma idade é de 8,4 anos. Na sua maior parte, crianças e jovens negros freqüentam o sistema público de ensino, muitos não chegam a terminar o ensino médio, pois precisam ajudar na renda familiar. Os sub empregos e o trabalho doméstico são os mais procurados nesse caso. A taxa de analfabetismo na década de 90 foi de 34% para a população negra e parda13, contra 7,5% para a população branca. O debate sobre a situação educacional dos negros no país tem ganhado relevância a partir da discussão sobre a implementação do sistema de cotas nas universidades brasileiras.

“Claro que eu sou a favor das cotas! Senão qual vai ser o outro jeito de termos acesso à educação? Eu sei que não é o remédio total, é só uma solução imediata, uma medida para acalmar os nervos, porque até melhorar o ensino público nesse país vai demorar muito. Mas ainda acho que as ações afirmativas são a única maneira de a gente se impor. Impor mesmo, porque todo esse tempo a gente vem tentando fazer com que as pessoas entendam e nada, então acho que está mesmo na hora de se impor: cotas na moda, na faculdade, na televisão, nas empresas. Infelizmente, no Brasil é só na marra, o pessoal já tem o racismo no sangue.” (Luciano)

“Eu não sou a favor das cotas. Acho que isso aumenta o preconceito, aquela coisa de dizer que o negro não é capaz. Quem estuda, passa. O ensino fundamental é ruim, é aí que tem que focar. Não adianta entupir a faculdade de negros que

13 Segundo Schwarcz (2001), a categoria pardo é uma das mais usadas pelos afro-descendentes no Brasil em casos de auto-classificação.

65 não tiveram um bom preparo, uma boa base. Acho que essas coisas de estudo e emprego, tem que ser no mérito mesmo”. (Davi)

Para Figueiredo (2002), a análise de dados a respeito da formação de uma classe média negra no Brasil, mostra que a mobilidade social tem na educação um aspecto determinante. Segundo a autora, apesar de terem poder econômico para consumir bens dedicados à classe média, quando se faz o recorte da cor da pele ainda é possível verificar que os negros têm uma situação mais instável do que os brancos que estão no mesmo patamar econômico. Não herdaram patrimônio, são filhos de trabalhadores manuais ou do setor público, que ainda continua sendo um bom canal de mobilidade para os negros, devido ao ingresso por concurso. Muitos dos profissionais são de famílias numerosas, que eles continuam a auxiliar após a ascensão social. Ainda segundo Figueiredo (2005), a discreta ascensão profissional não significa aceitação, muito menos a eliminação do racismo. Os negros que estão alcançando a classe média, geralmente, são os primeiros com essas características nos ambientes que freqüentam. E de uma certa forma, também são os primeiros a exigir produtos e serviços que possam adequar-se às suas especificidades. O reflexo deste movimento na mídia e nos veículos de comunicação foi a inclusão dos negros em campanhas publicitárias de produtos como gêneros alimentícios, carros populares, produtos para higiene pessoal, serviços bancários e outros bens de consumo típicos da classe média brasileira.

66 “Ser negro em um ambiente fora daquele que esperam que você faça parte, é matar um leão por dia. Tem sempre alguém que te olha com cara de: O quê você está fazendo aqui? Você se sente pressionado a mostrar o tempo todo que é capaz, que merece estar ali porque também tem talento, eu já chorei muito, sofria mesmo. Hoje em dia, estou bem mais tranqüila, isso me afeta menos. Odeio dizer isso, mas como sou modelo há muito tempo, e agora trabalhando na Globo, eu me acostumei. É horrível, mas chega uma hora que você cria um escudo, já te disseram tantas coisas, que aquele discurso não faz mais efeito, teu emocional já acostumou.” (Carla)

Já os veículos de comunicação, como as novelas e revistas não especializadas, tentam realizar uma inclusão não estereotipada em suas páginas e cenas. Como exemplo, observei uma das comunidades de bate-papo do site da Revista Claúdia – que tem como público- alvo mulheres de 26 a 45 anos, de classe média - chama-se “Black is Beautiful”. Em uma das sessões o debate aconteceu em torno da eleição da negra mais bonita, enquete proposta em uma das edições impressas da revista. O principal argumento de contestação foi: por que eleger a mulher negra mais bonita e não a mulher mais bonita, tendo uma negra como concorrente da enquete? Também podemos observar questionamentos sobre o número de mulheres negras que aparecem nas páginas das revistas, número menor do que as mulheres brancas e, geralmente, veiculados diretamente a anúncios de produtos étnicos: Fórum Revista Claudia – Beleza, Preconceito e Auto Estima enviado por: nina em: 03/08/2005

67 Às vezes acho que ainda muito preconceito por parte da tv e revistas principalmente da tv. Às vezes tenho vergonha de em um país em que a metade da população é negra ou descendente de negros e índios, tenha tanta discriminação por parte de veículos de comunicação. - enviado por: elizabete ribeiro silva em: 28/07/2005 Que negócio é esse de NEGRA MAIS BONITA?? Até quando vamos permitir que se refiram a nós mulheres negras pela nossa cor de pele?? Sou assinante dessa revista e tenho que lhes dizer que foram bastante infelizes, ao criar um tópico com este título. Nos dêem mais espaços em suas revistas, mencionem mais maquiagem, cabelos étnicos, nos tratem iguais às morenas e loiras, que não são citadas pela cor de sua pele, mas simplesmente porque são mulheres, como as negras. Parem com essa hipocrisia e nos coloquem de igual para igual como realmente somos, levante a bandeira contra o racismo e não o reforçe com títulos de pesquisas como esse!! Espero que um dia eu possa escrever a vocês, elogiando uma atitude positiva com relação aos negros no Brasil!! - enviado por: Calua em: 23/08/2005 Galera a beleza não escolhe cor! fico com muita raiva quando as pessoas falam "Nossa que negra linda" porque não falam que mulher linda? Ou então quando falam a Camila Pitanga é tão bonita porque ela fica falando que é negra? Pô ser negro então é ser fadado a ser feio? Nada disso ! temos que parar com essa visão do século XV - enviado por: Negra Lu em: 16/06/2005 Enquanto continuarmos com esse tipo de assunto - "Qual o negro(a) mais bonito?" "Qual o negro isso ou aquilo?" Continuaremos a REAFIRMAR as diferenças e a AFIRMAR que todos NÓS, NEGROS, somos diferentes dos que se

68 consideram BRANCOS (é porque tirando os imigrantes que NÃO se miscigenaram com brasileiros, e que JÁ vieram miscigenados do seu país de origem, poucos,MUITOS POUCOS,não possuem sangue NEGRO ou ÍNDIO correndo nas veias).Por quê não se pergunta qual a BRANCA MAIS BONITA? Qual a BRANCA mais isso ou aquilo? Não precisa, afinal todo o nosso estereótipo, e ideal de beleza é SEMPRE DA RAÇA BRANCA, de origem européia. Gosto muito do conteúdo desta revista, e de outras da editora, e por isso ASSINO. Mas, para mim, uma mulher NEGRA, soteropolitana, de 32 anos, prestes a completar 33, elas (as revistas femininas da Abril) não formam a MINHA opinião sobre beleza, pelo contrário, continuo INDIGNADA cada vez que recebo uma "NOVA" ou "CLÁUDIA" e vejo a Tais Araújo, Isabel Fillardis, Maria Ceiça, Sheron Menezes, Elisa Lucinda, Zezé Motta(só para citarmos os nomes de algumas beldades negras de idades variadas e muito belas!) SEMPRE nos editorias de beleza ou qualquer outra chamada, do lado de dentro, e NÃO na capa a não ser em revistas "específicas" para o público afrodescendente. Mas quem disse que eu quero SÓ ver essas mulheres em revistas "específicas"?! A Taís, foi a 1º "mulher negra" a ser protagonista de uma novela, e porque não saiu nas capas de "NOVA" E "CLÁUDIA"? Outras, menos talentosas, saem nas capas somente por causa da "cor". NÃO estou dizendo que as revistas femininas da Abril são racistas, mas, que sempre seguem e CONTINUARAM a seguir o "padrão que vende" - e que é mundial, afinal não é à toa que os negros afroamericanos têm que "matar um leão por dia" para ficarem no mesmo patamar dos americanos brancos.

69 Nós somos um povo único, e é a nossa MISCIGENAÇÃO, a nossa "mistura" que nos tornas TODAS belas, independente do padrão de beleza - Já fui escrava desse padrão, e no dia que me LIBERTEI dele, me transformei numa mulher MUITO AMADA, por MIM, e pelo HOMEM que escolhi para AMAR e SER AMADO por MIM. (fórum realizado entre junho e agosto de 2005 no site: http://claudia.abril.uol.com.br/ )

3.1 “Black is beautiful”. Pelo menos nos Estados Unidos.....

“I have a dream that one day this nation will rise up and live out the true meaning of its creed: We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal." Martin Luther King, 28 de agosto de 1968

Paira sobre grande parte do imaginário coletivo a idéia dos negros americanos como modelos de sucesso profissional. Afinal, eles ocupam lugares de destaque em setores que vão desde posições importantes na política mundial, até como atores mais bem pagos de Hollywood, passando pelo título de melhores jogadores de basquete do mundo. Com isso, tornam- se imagens dignas de admiração por parte de brancos e negros. Se quisermos voltar ao argumento de que a ascensão social minimiza o racismo, encontramos aqui uma boa fundamentação: negros ricos e bem-sucedidos se tornam ídolos globalizados e até mesmo figuram entre os homens e mulheres mais bonitos do mundo como no caso dos atores Denzel Washington e Halle Berry, e mais ricos como o

70 jogador de basquete Michael Jordan e o jogador de golfe Tiger Woods. Porém, ainda são muitos os famosos que, mesmo nos Estados Unidos, relatam situações racistas ocorridas direta ou indiretamente.

“Eu acho que tem uma coisa muito boa nos Estados Unidos. Eu sei que é bobagem identificar o país como um paraíso racial, repleto de igualdades de oportunidades. Mas há pouco tempo saiu uma pesquisa lá, com as top models de todos os tempos mais lembradas pela população não- especializada, e sabe quem ganhou a pesquisa? A ! Isso nunca, nunca mesmo, vai acontecer no Brasil.” (Daniela)

“Acho que se tem um lugar no mundo onde o negro pode levar uma vida normal, digo sem cobranças, em relação ao seu visual, pode nascer e crescer se achando bonito, esse lugar é o Estados Unidos. Não que lá não tenha preconceito, tem aquelas coisas horríveis com a polícia que a gente volta e meia vê, mas lá você pode ter esperança de verdade.” (Roberto)

A questão é se podemos comparar a situação racial nos Estados Unidos com a do Brasil. Segundo Oracy Nogueira (1991), a diferença está na estrutura do preconceito. Por ter optado seguir a estrutura do apartheid, principalmente na região sul do país, mesmo após a abolição da escravatura, o preconceito nos Estados Unidos pode ser definido como “de origem”, qualquer vestígio de ascendência negra, mesmo longínqua, classifica um indivíduo como negro. Já no Brasil o preconceito existente desde a abolição da escravatura, onde se gerou a esperança da igualdade de oportunidade para todos os

71 brasileiros, é “de marca”. É baseado na composição estética: cabelos, nariz, boca, forma do corpo. Se os traços não corresponderem ao estereótipo “negro legítimo”, o indivíduo pode ser classificado como pardo, moreno, mulato ou outras categorias que o permitem diminuir as chances de preconceito. Nos Estados Unidos, a história dos movimentos negros contra o apartheid se confunde com a própria história política do país. A luta contra as leis da era Jim Crow14 e a favor dos direitos civis, e contra a guerra do Vietnã, uniu as minorias americanas, e as ações promovidas pelos diversos líderes e grupos negros, como Martin Luther King, Malcom X e Panteras Negras obtiveram êxito durante este processo. Em 1960, representando algo em torno de 10% da população, organizados em grupos, e com direito de voto adquirido – mas não respeitado em todos os estados -, 70% dos negros americanos votaram em John Kennedy para a presidência, acreditando em seus planos para aprovar uma série de leis contra a discriminação racial, que faziam parte do conjunto de direitos civis que ele pretendia implementar no país. Porém, apenas em 1963 o projeto chegou ao congresso, e com o assassinato de Kennedy, encontrou resistência entre os senadores. Em 1964 foi finalmente aprovado. O ato decretava ilegal a discriminação racial em lugares públicos, obrigava os empregadores a gerar oportunidades de trabalho iguais para ambas as raças, e determinava o corte de financiamento público no caso de

14 Período entre 1876 – 1964 onde as leis, principalmente no sul do país, restringiam o acesso da população negra a qualquer tipo de benefício público, e determinava a segregação racial em escolas e transportes públicos.

72 ações onde houvesse evidência de discriminação de cor, raça e origem. Dois fatores merecem destaque nesta história. Um deles é o fato de os negros americanos se assumirem como minoria e a partir disso traçarem suas ações conscientes do seu poder de impacto. Como no boicote, organizado por Martin Luther King, aos ônibus na cidade de Montgomery, no Alabama, extremo sul do país, em 1955, após uma senhora negra ter sido presa por se negar a levantar e dar lugar a um jovem branco, na época em que os negros só podiam ficar em pé nos ônibus. Durante um ano os negros da cidade se movimentavam a pé ou em caronas do pequeno grupo que possuía automóvel. Sentindo os efeitos do prejuízo e com uma decisão da suprema corte, em Dezembro de 1956 os ônibus da cidade forma obrigados a funcionar sem promover qualquer tipo de discriminação racial. O outro fator é a força da religião. As comunidades gospel15 influenciaram não apenas no rumo político do país – apoiando todas as ações de protesto não-violentas e ajudando a fundamentá-las no discurso cristão -, mas também em sua cultura, principalmente na música. Blues, jazz e outros ritmos que conquistaram o mainstream e influenciaram o rock e a disco music – primeiros fenômenos de venda da indústria fonográfica mundial, têm suas origens nos guetos americanos, que desde então começam a produzir um lifestyle16 capaz de gerar desejo e consumo por parte da elite branca. A mais recente manifestação cultural a gerar lucros para o mercado mundial de entretenimento foi o movimento hip hop, nascido nos guetos negros de Nova York, nos anos

15 Abreviação para “God Spell”, que no inglês antigo significava “boas notícias”. 16 Usado aqui no sentido de lançar tendências de vestuário e comportamento.

73 70. Acompanhando as agitações políticas da época, surgiu uma manifestação cultural que estimulava o orgulho de ser negro e estimulava os negros a lutarem por seus direitos num país marcado por uma forte segregação racial e, como o Brasil, também construído através da mão de obra escrava trazida da África. Inspirados em líderes negros, como Martin Luther King, Malcom X, Huey Newton (dos Black Panthers), jovens negros, estimulados pelo sucesso do soul e do funk, resolveram dar mais poesia a esses ritmos considerados já absorvidos pelo sistema e longe da missão de servir como música de protesto contra a opressão do povo negro. Surgia o rap - ritmo e poesia. Este é considerado a base mais forte do hip hop no Brasil, que se complementa ainda com o graffiti, o break, e o dj. A moda surge como um importante elemento que comunica e distingue os participantes do movimento. O diálogo com a moda surge na estruturação do próprio movimento. O estilo hip hop constrói uma linguagem que transmite suas idéias, e expressa, antes de tudo, atitude. Para Rose (1994), os artistas do hip hop adotam o estilo como forma de construção de uma identidade que joga com as distinções e as hierarquias de classe ao usar a mercadoria para reivindicar um território cultural. A moda hip hop é um rico exemplo de apropriação crítica pelo estilo. Meio alternativo de criar uma condição social, o estilo hip hop forjou identidades locais para os jovens que compreenderam como era limitado o seu acesso às vias tradicionais de status. O movimento criou um estilo peculiar que, nos anos 80, costumava mixar grandes e tradicionais marcas e usá-las de maneira mais despojada. As raízes da moda de rua, ou streetwear, aparecem nos anos 80, quando as roupas usadas pelos adeptos do

74 movimento hip hop nos Estados Unidos conquistaram os estilistas e camadas médias e altas da sociedade. A periferia inspirou tendências para além do gueto, e até mesmo para as passarelas. Na moda hip hop também aparece a preocupação com a auto-estima negra na construção da identidade. As referências de uniformes esportivos mostram essa relação: surge como forma de homenagear os ídolos negros americanos do esporte, principalmente do basquete e atletismo. Os jogadores de basquete americanos, principalmente, influenciam jovens do mundo todo e são reconhecidos como criadores de tendências, celebridades com estilo próprio e assinam linhas de vestuário exclusivas para grandes marcas esportivas.

“Eu me vestia mais largado. Bem jogador de basquete: calça larga, toda vez que eu saia tinha pelo menos uma peça de basquete, ou uma camiseta, ou um short, ou um tênis. Eu era obcecado por basquete. Tinha maior vontade de ser jogador, de ter estudado fora, ter feito o college nos EUA. Eu jogo basquete, mas eu comecei a jogar bem, eu já estava velho. Eu só começo velho, moda, basquete. Já tinha uns 17, 18 anos. Comecei a jogar porque eu identifiquei com os jogadores negros dos EUA. Descobri o basquete porque meu irmão mais velho começou, com 14, 15 anos e eu não gostava. Mas passei a conviver com a cultura dos caras, com a música e aí passei a gostar e querer fazer também. Pelo basquete eu comecei até a me aceitar mais, vendo os negros americanos. Tinha educação física no colégio e tinha basquete. Um amigo emprestava fita de jogos, até hoje eu tenho várias fitas em casa, que eu gravava. Era super viciado em basquete. Eu não

75 jogava, mas acompanhava. Os caras raspavam a cabeça e faziam corte com a navalha eu chegava no barbeiro e pedia pra fazer igual. Com uns 15 anos, meus pais ficavam malucos. Usava roupa de basquete, me sentia um americano. Era muito novo, meu irmão fazia a mesma coisa. Eu via os caras bonitos e pensava, eu posso ficar parecido com um deles. Jordan, Grant Hill, Karl Malone, vários. Só andava careca, por causa deles. Depois eu comecei a ver os caras com black power e deixei o cabelo black umas três vezes. Eu ia seguindo os caras. Nunca tive isso com outros esportes, só com o basquete. Às vezes eu comento com as pessoas, se tem uma profissão pela qual eu largaria tudo, seria o basquete. Eles ganham muito dinheiro, mas eles não jogam por dinheiro, eles se realizam financeiramente muito cedo. E aí se realizam profissionalmente jogando, dando o sangue mesmo. Não são como os jogadores de futebol aqui, que começam a ganhar dinheiro e não querem mais ir treinar, engordam. É só vê o Jordan, ele teve que parar três vezes para conseguir largar de vez. Basquete fascina, eu jogo pelada e dou meu sangue, detesto perder. E não vou ganhar nada. Às vezes eu tenho teste chego com o supercílio cortado, olho roxo. “ (Luciano)

Considerando o hip hop como uma expressão da cultura popular americana, podemos observar um processo de renegociação do lugar dos bens a partir das marcações utilizadas pelas classes dominantes, e veiculadas nos meios de comunicação de massa. A ostentação de jóias, carros e mansões por uma parcela de rappers americanos são justificadas ora como uma maneira de afrontar a elite branca, ora como maneira de mostrar a juventude negra que existem

76 outros caminhos para uma boa qualidade de vida além do crime, ora como maneira de tentar fazer parte da elite dominante seguindo seus padrões de consumo. Essa negociação do papel do consumo no hip hop varia de acordo com as particularidades locais, mas basicamente transita entre o protesto e a imitação. Em suas edições de Março de 200517, as duas principais revistas do gênero (Vibe e The Source) propuseram uma discussão com os principais estilistas e empresários do ramo sobre os caminhos do mercado de urbanwear, segmento que costuma movimentar bilhões de dólares por ano, quase 10% do lucro da indústria de vestuário masculino dos Estados Unidos, entre roupas e acessórios - calçados, bolsas, bonés, jóias. Na época do surgimento das primeiras iniciativas, o pensamento das grifes era: “clothes for us, by us”. Nos anos 90, o hip hop virou um fenômeno lucrativo mundial, e as principais marcas do gênero sentiram o impacto tanto quanto as gravadoras. As roupas ainda seguem o conceito “made by us” mas não são exclusivamente “for us”. O movimento como um todo acabou por conquistar consumidores brancos e das classes mais altas. Houve uma reestruturação no mercado que pretendia conquistar uma nova parcela sem perder os consumidores fiéis. Com a chegada do século XXI, as grifes começaram a redefinir suas políticas internas, pensando em solidificar sua relação com os novos clientes, e passaram a questionar o termo urban usado para caracterizar o estilo de suas criações. Estilistas como Russel Simons e Marc Ecko argumentaram que quando o estilo era seguido por marcas como Polo by

17 Vale esclarecer que as edições de março e setembro são as mais importantes das revistas de moda no mundo inteiro, pois trazem um balanço das principais tendências das estações, já traduzidas para o consumidor varejista.

77 e era apenas moda, e o estilo seguido pelas grifes de hip hop tinha que ser estereotipado enquanto moda urbana. Com a evolução na variedade de suas linhas de produção, que não se resume mais ao sport ou casual wear, a maioria das grifes acha que não faz mais sentido ficarem sob a nomenclatura restritiva do urban. Muitas marcas lançaram suas linhas de alta-costura masculina, com blazers, ternos e calças e camisas sociais, gravatas, abotoaduras, enfim, uma variedade de peças que pretende agradar homens de bom gosto, assim como as sofisticadas e Armani. A idéia é propor, mais uma vez, a releitura de elementos clássicos do vestuário com um toque de irreverência, seja nas cores ou na desconstrução das silhuetas, a partir da estética dos guetos , origem de 96% dos rappers, empresários e investidores de hip hop americanos. Mesmo podendo apenas significar “o que vem da rua”, a maioria dos estilistas acredita que a definição está mais ligada ao fato de serem negros ou latinos, do que ao lifestyle que suas marcas traduzem. Até recentemente, os lojistas e as grandes cadeias de lojas de departamento nos Estados Unidos não costumavam comprar peças das marcas de urbanwear, alegando que elas não eram condizentes com sua grade nem com o seu público- alvo. Porém, passou a ser comum achar peças muito semelhantes, só que com a assinatura de outros designers como e , que acabavam cultuadas como grandes criações. Hoje em dia, Sean John e Rocawear dividem as araras com D&G e Hugo Boss, por exemplo, nas lojas de departamento mais importantes dos Estados Unidos como Macy´s e Bloomingdale´s.

78 Os consumidores que compram Fubu e South Pole, marcas de urbanwear, nestas lojas de departamento são os mesmos que compram Gap e Abercrombie18, marcas típicas da classe média tradicional americana. Há cinco anos esse tipo de comportamento de consumo era impensável. Podemos pensar que a consolidação do hip hop como uma das manifestações culturais urbanas mais influentes da atualidade impulsionou não só o mercado étnico dos Estados Unidos como o de outros países como Brasil, França, Portugal e Inglaterra. Além de criar mais espaços para a veiculação da imagem do negro, estimulou o aparecimento de uma série de produtos, inclusive veículos de comunicação especializados. No caso dos modelos negros, a visibilidade e o retorno financeiro parecem ser muito grandes, o mercado reconhece os negros como público-alvo e investe em ações de identificação.

“Em Nova Iorque não importa quantos modelos negros têm na agência, não precisa se preocupar porque vai ter espaço pra todo mundo trabalhar. Tem muito trabalho porque os negros compram, então toda linha de produto tem uma coisa que é específica para os negros. Você vê negro em tudo quanto é revista, comercial, em um monte de desfile. Lá também tem o povo do hip hop que tem suas marcas e que faz divulgação só com os negões. Podem falar mal dos Estados Unidos, mas nesse ponto é muito melhor, tem muito trabalho, tem muita grana rolando. Acho que todo modelo negro tinha que ir pra lá, mesmo coroa, lá você pode até fazer aqueles comerciais sendo pai de família!” (Maurício)

18 Segundo pesquisa realizada pela Revista Vibe veiculada na edição de Setembro de 2005.

79 Outro aspecto importante da relação entre moda e hip hop, é que, atualmente, a maioria dos nomes mais importantes do rap americano tem sua própria linha de roupas e acessórios. Existem dois tipos de estrutura para essa iniciativa: associação com alguma grande empresa para criação de uma linha especial que leve a assinatura do rapper, caso da Respect M.E., uma associação entre Adidas e Missy Elliot; e a outra possibilidade que tem como expoente maior o rapper P.Diddy, que acumula as funções de empresário, investidor e estilista de sua marca Sean John. O consumo tem um papel importante no mercado hip hop: a ostentação, a necessidade de usar e fabricar produtos caros e de ótima qualidade norteia desde as ambições dos aspirantes a rappers até os já consagrados empresários.

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Capitulo 4– Negros no Consumo A busca da auto-estima

O reconhecimento do poder do ato de consumir como elemento fundamental na construção da estrutura social, e o comportamento do novo consumidor, que busca valores subjetivos agregados aos bens e serviços orientam estratégias de marketing que resultam em linguagens publicitárias inovadoras e também na criação de mercados alternativos. Segundo essa lógica, as razões simbólicas do funcionamento da economia e do mercado passam a nos dizer mais sobre nós, a sociedade ocidental, do que as teorias mais pessimistas da globalização – aquelas que argumentam sobre a perda da identidade cultural das nações em desenvolvimento – e do que as mais liberais também – aquelas que acreditam que a Europa e a América irão ensinar o caminho do real desenvolvimento. Segundo Sahlins (1976), “na concepção nativa, a economia é um campo de ação pragmática. E a sociedade é o resultado formal. As principais relações políticas e de classe, bem como as concepções que os homens têm da natureza e deles mesmos, são geradas por essa busca racional da felicidade material” (p.181). É a partir dessa idéia que compreendo o aumento do número de modelos negros nos desfiles e campanhas publicitárias, e também o crescimento de um mercado étnico no Brasil. No caso específico do mercado étnico no Brasil, a importância do papel do consumo tem basicamente duas correntes de interpretação entre os acadêmicos e militantes do movimento negro: a primeira acredita que o surgimento de tratamentos e produtos de beleza especialmente desenvolvidos

81 para pele e cabelos étnicos teve, e ainda tem, um impacto positivo na auto-estima dos negros, o que acabou se transformando em um caminho alternativo para a auto- afirmação e para o orgulho negro, elementos fundamentais para a conscientização político-social da questão racial no país. A segunda corrente enxerga este novo papel do consumo, que tem na publicidade, mais precisamente na imagem, seu grande trunfo, como uma ferramenta cuja função principal é alienar a população negra e deixá-la cada vez mais distante da compreensão dos mecanismos de dominação que a cercam. Dentre as empresas que têm seus produtos voltados para o consumidor negro, ou usam modelos negros em suas imagens de divulgação, é raro acharmos produtos e serviços que se encaixariam no mercado de luxo, ou mesmo na categoria de lançadores de tendências – categoria valorizada no campo da moda. Sobre a marcação social que pode ser deduzida a partir dos hábitos de consumo, Sahlins (1976) afirma que: “a racionalidade do mercado não contradiz o totemismo moderno. Ao contrário, ele é promovido justamente na medida em que valor de troca e consumo dependem de decisões de ”utilidade”.....É por suas diferenças de sentido em relação a outros produtos que os objetos se tornam trocáveis: com isso, convertem-se em valores de uso para algumas pessoas, as quais são correspondentemente diferenciadas de outros sujeitos.” (p.191) No caso específico da moda, no início desta pesquisa, ainda era quase inexpressiva a participação de modelos negros nos principais eventos e campanhas. Na penúltima edição do Fashion Rio, temporada verão 2005/2006, participaram 13 modelos negros (cinco homens e oito mulheres) em um total

82 de 145 modelos participantes, o que significa um total inferior a 10%. Nas temporadas de inverno, os números são ainda menores. Ao mesmo tempo, se analisarmos a temporada verão 2005, apenas oito negros desfilaram. Os números não se alteraram significativamente, chegaram a 18 participantes na temporada verão 2006/2007 do SPFW, porém com participação em um número maior de desfiles, e o número de negros desfilando na mesma apresentação aumentou consideravelmente. Segundo um dos nossos informantes, que já participou de cinco edições do Fashion Rio:

“Na temporada Outono/Inverno do Rio é quase impossível ver um negro desfilando... acho que os estilistas pensam estar na Europa, onde a maioria dos modelos são brancos e de olhos claros. Também tem outra coisa, o Rio tem mais tradição de moda praia, verão, então o inverno para os cariocas é mais fraco. Mas mesmo em São Paulo, que ainda é Brasil, né, eles esquecem que vivemos em um país tropical de uma população totalmente miscigenada.” (Luciano)

No campo mais amplo do consumo, com as demandas éticas e ambientais, e no caso mais específico dos negros e da estética, com o aumento da visibilidade e da oferta de produtos, houve mudanças significativas nas relações de mercado. Mas o que será que mudou? O consumidor gerou uma nova demanda, a partir de um aumento da conscientização sobre a visibilidade do negro dentro do panorama da questão racial no Brasil, e de como o consumo poderia ser utilizado na tentativa de reverter esta situação? Ou o mercado gerou uma nova oferta a fim de conquistar uma

83 nova camada negra de classe média em crescimento? Sahlins (1976) poderia ajudar a responder estas questões com a idéia de que: “...essa visão da produção como substancialização de uma lógica cultural deveria proibir-nos de falar ingenuamente sobre criação de demanda pela oferta, como se o produto social fosse a conspiração de um punhado de “tomadores de decisão”, capazes de impor uma ideologia da moda por meio dos engodos da propaganda...... Mas então, quem é dominante: o produtor ou o consumidor? Claramente, essa produção se organiza para explorar todas as diferenciações sociais possíveis por meio de uma diferenciação motivada dos bens. Ela funciona de acordo com uma lógica significativa do concreto, da significância das diferenças objetivas, desenvolvendo com isso sinais apropriados das distinções sociais emergentes.” (p.198). Ao propor que a lógica cultural – razão simbólica - é tão ou mais importante do que a lógica de mercado - razão prática - para entendermos as relações sociais, o autor nos abre a possibilidade de tentar compreender o funcionamento e os impactos do mercado étnico no Brasil. Na primeira hipótese, é preciso analisar fatores econômicos: com receio de perder ou deixar de atingir um público com poder de compra, e cedendo a pressões éticas ou políticas, as empresas respondem às demandas, e passam a reconhecer o negro como consumidor e a se preocupar em suprir suas necessidades e despertar seus desejos. Já na segunda hipótese, na ânsia de gerar cada vez mais lucro e criar cada vez mais produtos, o mercado oferece produtos diferenciados e estimula a sensação de “exclusividade” e elogio das diferenças, é o caso do mercado étnico. Nesta perspectiva, o valor-simbólico dos produtos étnicos é o que

84 definiria seu lugar no mercado. Sahlins (1976) argumenta que “Com o objetivo de esboçar uma resposta que ofereça uma explicação cultural da produção, é crucial observar que o significado social de um objeto, aquele que o torna útil para uma certa categoria de pessoas, não é mais aparente em suas propriedades físicas do que pelo valor que pode ser atribuído a ele na troca. O valor de uso não é menos simbólico nem menos arbitrário do que o valor-mercadoria. A utilidade não é uma qualidade do objeto, mas uma significância das qualidades objetivas.....Nenhum objeto, nenhuma coisa existe ou tem movimento numa sociedade humana exceto pela significância que os homens lhe possam atribuir.” (p.183). No caso das discussões sobre os impactos do mercado étnico na questão racial do país, os significados atribuídos são muitos. Poderíamos separar as duas maiores correntes em prática – a que acredita na predominância da lógica do mercado; e simbólica – a que acredita no impacto subjetivo que os objetos possam causar, neste caso lidando diretamente com a auto-estima deste segmento de consumidores. Acredito que no campo da moda, no que diz respeito às relações entre os dominantes – empresários, estilistas e bookers, em sua maioria brancos - e os modelos negros, as duas hipóteses se manifestam. Pode-se encontrar modelos negros em desfiles, editoriais e campanhas publicitárias basicamente por dois motivos: ou a empresa / estilista / veículo de comunicação pretende-se “politicamente correta” perante seu público-alvo – consciente e socialmente engajado, ou pretende-se inovadora e com o intuito de despertar a discussão da questão racial. Exemplos recentes são a estréia da estilista negra Lena Santana no Fashion Rio, na edição outono/inverno 2004/2005,

85 com quase todo o casting composto apenas por modelos negras, o que gerou reações da imprensa como o comentário do jornalista João Ximenes, do Jornal O Globo, em seu espaço para cobertura do evento na edição on line: “Gente, vocês não sabem o que eu vi agora há pouco no desfile de Lena Santana! Modelos negras! Várias delas! Por um momento, até achei que o Fashion Rio estava acontecendo no Rio de Janeiro.” Outro exemplo que ocorreu na mesma época, a campanha publicitária do carro Fiat Palio tinha o slogan “Reveja seus conceitos” como tema. Em um dos vídeos, uma mulher branca com uma criança no colo encontra uma amiga, também branca. As duas ficam conversando em um estacionamento, até que se aproxima um Fiat Palio dirigido por um negro para pegar a mulher com a criança. Nisso, a amiga pergunta: “Seu motorista?”, e a mulher responde: “Não, meu marido”. Neste momento aparece a expressão de susto no rosto da amiga e um insert com a voz do locutor dizendo: “Você precisa rever os seus conceitos”. Esta campanha publicitária no geral, abordou alguns tabus e preconceitos, por exemplo, em um dos outros vídeos veiculados, um casal de lésbicas ia à reunião escolar do filho. Exemplo do viés “politicamente correto”, a capa da Revista TPM de outubro de 2005 trouxe o ator Lázaro Ramos acompanhado da seguinte chamada: “Ator, bonito e talentoso. Por que ele nunca fez um comercial?”. Neste caso, é bom esclarecer o perfil da publicação: a idéia é abordar moda e comportamento feminino sem clichês, trazendo à tona temas polêmicos que variam desde a descriminalização do aborto até a ditadura da magreza nos corpos femininos. Quanto ao racismo, esta foi a primeira abordagem da revista mensal, que

86 possui conteúdo de moda onde apareceram raras vezes modelos negras. Há ainda um outro viés do mercado que necessitaria de uma observação mais específica para ser compreendido: a presença constante de modelos negros em comerciais e campanhas publicitárias de produtos destinados às classes mais populares. Para Dias Filho (2000), a Afromídia19 se equivoca ao tentar alinhar dois discursos completamente distintos: a publicidade, através das propagandas de produtos étnicos e dos editoriais de moda; e a questão racial. Na opinião do autor, um dos principais paradoxos com os quais nos deparamos ao analisarmos estas revistas é a postura diferenciada em relação aos editoriais tidos como “mais conscientizados” – aqueles que lidam com questões diretamente voltadas a assuntos como discriminação, educação e mercado de trabalho - e em relação aos anúncios de produtos étnicos e editoriais de moda, onde diversos dos estereótipos relacionados aos negros são reafirmados sob o disfarce da tentativa de resgate da auto-estima. A relação dos negros com produtos de beleza é repleta de significados subjetivos, principalmente no que diz respeito aos cabelos. Para Teles dos Santos (1996), os salões de beleza específicos para cabelos étnicos podem ser entendidos como espaços mediadores na tomada da consciência racial, já que os processos simbólicos envolvidos, desde a decisão de ir ao salão até a satisfação final com o resultado, envolvem significados que passam por categorias como auto-estima, socialização e até mesmo envolvimento político, no sentido

19 Dias Filho (2000) considera Afromídia revistas periódicas dirigidas ao público Afro-brasileiro.

87 de re-significação e recusa de uma estética pré-estabelecida pelos considerados dominantes, os brancos. Acredito que tanto a posição de Dias Filho quanto a de Teles dos Santos são interessantes para compreender o momento atual da importância do papel do consumo e das categorias subjetivas para a construção de identidades no século XXI. Proponho, então, que a melhor via de análise para tentar obter uma maior compreensão dos impactos do mercado étnico e, por conseqüência, da visibilidade dos negros no campo da moda, é buscar combinar as duas visões. Nos anos 70, no Brasil, o movimento Black Power já aparecia nas festas promovidas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Os bailes ligados ao movimento Black Rio,realizados nesta época, tiveram importante papel no despertar da consciência negra para a elaboração de uma identidade racial. Podemos supor que as primeiras iniciativas com caráter empreendedor, visando a geração de renda, aconteciam já nessa época, com os produtores que organizavam os bailes e as equipes de som. Nesse momento, a moda já aparecia como importante elemento no incentivo à auto-estima negra: o cabelo black power, as calças boca de sino, o sapato plataforma, e outros que até hoje são considerados signos do movimento black power brasileiro. Este movimento, que já trazia a afirmação estética como um dos seus principais pilares, foi importado dos Estados Unidos, onde o lema “black is beautiful” ditava os rumos do comportamento dos negros norte-americanos a partir da década de 1960. Segundo Teles do Santos (1999), na década de 70 surgiram os movimentos que mostravam o lado positivo de ser negro, com ênfase na existência do conceito de negritude. Já a década seguinte determinou a valorização de uma beleza

88 negra específica, e ligou definitivamente a estética à auto- estima dos afro-descendentes. Esta beleza negra específica estava centrada na “naturalidade”, na idéia de libertar-se dos padrões de beleza branco-europeu e deixar-se ser como é. Nesse projeto, o cabelo teve um papel fundamental: diretamente influenciado pelos norte-americanos, o black power conquistou parte da população negra no Brasil. Por outro lado, os penteados étnicos, como as tranças e os crespos naturais também passaram a ser opções para além do alisamento dos cabelos.

A partir daí, o mercado voltado para a beleza étnica começou a se estabelecer no país tendo os salões de beleza como seus precursores e a inspiração afro-americana como diretriz. Porém, a realidade dos negros brasileiros é completamente diferente das condições de vida dos negros norte-americanos, e é justamente neste ponto que as teorias começam a se confrontar. A condição sócio-econômica dos negros nos Estados Unidos permite que eles sejam considerados uma parcela importante a ser atingida pelo mercado de consumo. Sua participação nas camadas médias e altas do estrato social é bem mais efetiva do que no Brasil. Além disso, segundo Dias Filho (2000), precisamos considerar as diferenças na situação racial nos dois países quando falamos em auto-estima e cidadania usando produtos de beleza ou roupas, pois os consumidores negros nos Estados Unidos têm uma outra relação com o mercado, a partir das lutas por direitos civis nos anos 60, além de um poder de consumo efetivo. Quando trazemos esta análise para o mercado brasileiro esbarramos nas contradições e ambigüidades dos próprios conceitos de auto-estima e cidadania. Esta é uma das dificuldades em aplicarmos uma

89 definição de consumo que seja aliada a uma prática social cidadã em nações em desenvolvimento, e torna-se ainda mais difícil ao tentar aplicá-la ao Brasil.

Auto-estima e cidadania para os negros no Brasil são categorias com inúmeras significações, do mercado ao movimento negro. Porém, não podemos negar que o surgimento de produtos, serviços e veículos de comunicação diretamente voltados para os negros aumentou a visibilidade destes nos mercado. Como efeito, direto ou indireto, deste processo é possível aferir, pelo menos no grupo dos modelos negros, uma elevação na auto-estima (muitas vezes “orgulho negro” é usado como sinônimo) e a sensação de poder partilhar uma característica desejada por a toda sociedade: o poder de compra. É importante lembrar que os modelos negros formam um pequeno grupo de consumidores com poder de compra acima da média da população negra em geral.

O ato de consumir ainda não pode ser considerado um ato pleno de cidadania para os negros no Brasil. Primeiro, porque o poder de compra da maioria da população negra é abaixo da média, ela ocupa os estratos mais baixos da pirâmide social brasileira, desde os tempos da escravidão. As mudanças ocorridas não foram suficientes para que se desenhasse um outro panorama racial na análise do mercado de consumo brasileiro, mesmo reconhecendo os inúmeros avanços da questão racial no país, e o aumento, mesmo lento e gradual, de uma elite negra. A participação dos negros nas classes A e B subiu de 9%, em 1992, para 15,8%, em 2004, segundo pesquisa feita pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade com bases em dados da PNAD. Segundo

90 depoimento do economista Mário Theodoro, da UNB, o racismo custa para o Estado brasileiro R$ 67,2 bilhões. Esta é a quantia que, segundo o economista, o Brasil deixou de investir durante todos estes anos, e que teria que investir a partir de agora para reduzir as diferenças entre negros e brancos no que diz respeito a saneamento, habitação e educação.20

Em segundo lugar, muitos ainda sofrem constrangimentos em diversos estabelecimentos comerciais do país. Os relatos de discriminação vão desde as dúvidas sobre o poder real de compra até a desconfiança de que o individuo possa furtar o produto. Luciano conta uma de suas experiências:

“Estava na loja Zara, do Shopping Rio Sul, com a minha namorada, comprando roupas. Enquanto ela estava no provador, eu sentei ao lado de um senhor que aguardava a esposa. Minha namorada saiu, pagamos as compras e fomos embora da loja. Na saída do shopping, este senhor e sua esposa vieram nos abordar, junto com dois seguranças me acusando de ter roubado a bolsa deles na hora em que me sentei ao lado dele. Sendo que eu não fui o único a me sentar ao lado dele enquanto ele esperava, antes de eu sentar tinha uma outra pessoa, e depois que eu me levantei também sentaram outras pessoas ao lado dele. A diferença? Estas outras pessoas eram brancas, e eu não. Foi um constrangimento horrível, chamamos a polícia, eles pediam para nos revistar, revistar nossas bolsas, porque tinham certeza de que a bolsa deles só poderia estar com a gente, ali no meio da rua, em Botafogo, todo mundo olhando. Fomos à

20 Fonte: Revista Isto é DINHEIRO, edição Junho de 2006.

91 delegacia e os processamos por racismo, mas lógico que até agora, mais de um ano depois, não deu em nada “. (Luciano)

Não ser bem tratado por vendedores das lojas, que sempre duvidam que o negro vá fazer uma compra; escutar o alarme da porta do banco mesmo quando não carrega nada de metal consigo; pedirem todos os seus documentos de identidade para uma simples compra com cartão de crédito, enquanto que para o cliente branco ninguém pede nada; ser observado com mais rigor pelos seguranças do shopping e das lojas; são fatos cotidianos na rotina de consumo dos negros no Brasil. Não importa o poder aquisitivo o que causa impacto é a cor da pele. Por isso, falar em consumo étnico como forma efetiva de expressão ou como experiência plena de cidadania ainda não é possível, pelo menos no Brasil, de acordo com os pesquisados.

“Eu acho que o consumo em si não pode ser ainda considerado como uma válvula de escape daquilo que a gente pretende enquanto igualdade. Estas coisas mínimas como não ser bem tratado nas lojas, alarme de porta giratória de banco, ninguém sentar do seu lado no ônibus, um processo para conferência de cheque que pode durar meia hora, não mudaram com o surgimento do mercado étnico nem com o nosso pequeno aumento no poder de consumo. Lógico que eu passei a trabalhar muito mais, assim como os outros modelos que eu conheço, e que são todos lindos, agora tem salão, creme, sabonete, shampoo, um monte de coisa. Mas isso, infelizmente não é o suficiente.” (Daniela)

92 “O mercado étnico mudou as coisas em 100%, mas a situação no Brasil é tão crítica que ainda faltam mais uns 200% até as coisas se acertarem. Quando eu digo 100%, é porque antes os negros eram invisíveis na televisão, nas revistas, nos desfiles, e hoje não, hoje são a minoria, tudo bem, mas já estão lá na luta silenciosa, tentando preparar um lugar ao sol para as gerações futuras. Os outros 200% é porque a sociedade brasileira é racista, muito racista, então imagina mudar a cabeça de uma sociedade inteira?” (André)

Em relação à presença dos modelos negros nos meios de comunicação, uma breve análise nos permite notar a “invisibilidade” deles nas revistas de moda que não fazem parte da Afromídia. O protagonismo21 dos modelos negros quase só acontece nas revistas voltadas exclusivamente para este segmento, ou então nas campanhas de produtos das linhas étnicas das marcas mais conceituadas, como Seda e Lux, por exemplo. Algumas raras exceções - como a mídia impressa do modelo de celular MotoRazr V3, da Motorola, de cor preta, lançado durante a edição primavera/verão 2005/2006 da São Paulo Fashion Week, que trazia a modelo negra Rojane Fradique como uma das protagonistas da peça publicitária, junto com uma outra modelo branca que anunciava o modelo tradicional, prateado – já acontecem, mas na maioria das

21 Com este termo pretendo destacar as campanhas, editoriais e peças publicitárias que trazem os negros como “principais”, segundo a classificação das agências de modelo.

93 vezes, quando o produto se pretende inovador e é da cor preta.22

Portanto, para os modelos negros, a Afromídia e o mercado étnico aparecem como principais oportunidades de protagonizarem campanhas, editoriais e anúncios. É também o único lugar onde os testes são realizados só com negros, eles competem entre si, mas não por apenas uma vaga, há espaço para a diversidade dos tipos de beleza negra. Nesse sentido, o mercado étnico abriu um importante espaço para a geração de renda e para o surgimento de novos talentos entre os modelos negros.

Um dos argumentos de Dias Filho, é que os editoriais e anúncios nos veículos da Afromídia geralmente ratificam os estereótipos, não inovam em relação à maneira tradicional pela qual a publicidade explora a imagem dos negros. O autor cita como exemplos a ênfase na sensualidade dos corpos negros nos editoriais e anúncios, e a preocupação excessiva com os cabelos crespos, vide o número de reportagens e anúncios a este respeito. Segundo estudo realizado por Dias Filho (2000), que acompanhou as edições da revista Raça Brasil de 1996 a 1999, o veículo trazia em média 21 anúncios de cosméticos e 17 reportagens sobre moda.

A visão dos modelos negros sobre o mercado étnico varia, mas todos concordam que é um espaço a mais para mostrar o trabalho:

22 Um pouco depois do lançamento desta campanha, uma outra empresa de aparelhos celulares, a Siemens, lançou uma campanha com o tema “black is back”, onde foram usados ícones da era disco – globo e o vinil, - e uma guitarra fazendo referência a B.B.King, para lançar um novo aparelho, SL 65, de cor preta.

94 “Assim, é claro que esse lance de revistas, de produtos, acho que se não tivesse esse tipo de veículo, muitos negros ficariam de fora de várias etapas, de vários processos da moda, mas acho que não seria a solução, somente isso. Acho que a galera do Brasil tem que começar... Não sei, é uma parada que vem de cima né? Que não depende só da gente. O poder tá concentrado na mão dos brancos e eles que decidem quando tem que colocar um negro quando não tem, a maioria dos estilistas são brancos, acho que é difícil eles colocarem negros no desfile.” (Carlos)

“Quando você dá oportunidade de mostrar o negro, você abre um leque de produtos voltados para o negro, ou outros, que muitas pessoas desconhecem. A população brasileira é formada de 70% de negros e pardos – que é uma mistura né? – então acho que é uma situação difícil. Há quatro, cinco anos era difícil você ver um casal de negros na televisão, numa novela, um núcleo negro de novela, foto de negros em propagandas ou em comerciais. Hoje em dia você já vê mais, sendo que como o brasileiro é um povo muito misturado deveria sim ser usado como exemplo essas marcas que estão usando negros para divulgar sua imagem, podendo abrir esse leque para outras marcas e modelos. Você vai lá fora e vê, em NY você vê campanha da Calvin Klein com negro, Pólo Ralph Lauren com negros, são marcas multinacionais e isso faz com que você deseje ver uma Osklen colocando negros na passarela ou no catálogo, lojas de ponta. Porque o negro também é bonito, não é só porque o cara é branco que ele é mais bonito que o negro”. (Davi)

95 “Principalmente na parte de beleza, eu lembro que, e isso acontece de vez em quando ainda, não tem o pó ideal da tua cor, e agora já tem alguns de diversas tonalidades mais acentuadas. E pra gente trabalhar e divulgar também, porque tem a Revista Raça e rolam os editoriais. Eu acho válido”. (Tatiana)

Um aspecto importante citado por Tatiana, é a disponibilidade de produtos de maquiagem próprios para pele negra que começou a surgir nos anos 90, época em que o mercado étnico começou a se firmar, e também a importação de produtos sofreu um avanço. Antes disso, as mulheres negras encontravam dificuldade em achar produtos que fossem específicos para o seu tipo de pele e que se adequassem a sua tonalidade. As modelos negras sofriam por ter que usar bases, pó compactos e blushes que não eram compatíveis com seu tom de pele. Muitas vezes os maquiadores tinham que misturar diversos produtos até conseguir uma tonalidade aproximada, mesmo assim o aspecto ficava artificial e a maquiagem pesada afetava a pele, normalmente oleosa, das modelos. Em parte, isso deve-se ao fato da crença de que as mulheres negras não teriam poder aquisitivo suficiente para adquirir cosméticos específicos, então não se justificava um investimento em produtos voltados para este segmento. Mesmo assim, algumas empresas resolveram arriscar, produzindo cosméticos com preço mais baixos e específicos para peles negras, e obtiveram um bom retorno. Estas empresas pioneiras acabaram por estimular o lançamento das linhas étnicas de grandes marcas de produtos de beleza e higiene pessoal. Segundo Teles dos Santos (1999), a idéia de

96 linhas de cosméticos específicos para a pele negra como projeto de reafirmação da identidade étnica foi um movimento iniciado nos anos 80: a junção da etnicidade e do consumo. Homens e mulheres negros, que fazem parte de um pequeno grupo com significativo poder de compra, responderam de forma positiva a estas iniciativas. O poder de compra reduzido dos negros brasileiros fez com que as empresas interessadas em investir neste segmento investissem em produtos chamados de “segunda linha”. Por isso, o mercado étnico tem a maioria dos seus produtos tidos como “populares”. Este fato parece não inibir grandes empresas que começam a investir no mercado brasileiro: as grandes empresas de produtos de beleza que exportam seus produtos para o Brasil começam a apostar também no segmento étnico. L´Óreal e Wella já comercializam suas linhas para cabelos crespos no país, a MAC e a Revlon também já contam com tons de maquiagem apropriados para peles negras. A beleza negra ainda não foi inteiramente decodificada pelo mercado, que tradicionalmente ainda tenta encaixá-la em definições pré-concebidas como sensual, “selvagem” e exótica. Por outro lado, os modelos negros buscam ser reconhecidos por sua beleza natural, sem precisar sublinhar de maneira caricata nenhum de seus atributos físicos, como o cabelo e as formas do corpo. Em muitos editoriais, homens e mulheres negros parecem estar sempre prontos para seduzir, ou, então, com enormes cabelos black power e roupas extravagantes. A Afromídia, o mercado de produtos étnicos e outras iniciativas neste sentido têm seu valor por contribuir não só com o aumento da auto-estima dos consumidores negros, mas

97 também com o espaço de visibilidade e geração de renda dentro de duas fatias do mercado que vem crescendo em ritmo acelerado no panorama da economia nacional: a indústria da moda e dos produtos de beleza. Não podemos negar que seus efeitos práticos no que diz respeito a mudanças concretas no status quo da situação racial no Brasil, desde o racismo até as políticas de ação afirmativa, são muito reduzidos. Fora isso, há de se considerar a hipótese de que nem todas as propagandas voltadas para o público negro têm outros objetivos além de vender o produto mostrado e gerar lucro para a empresa produtora. Para que os negros se firmem como cidadãos e consumidores no Brasil há muito mais a ser feito além do estímulo ao mercado étnico. A elaboração de políticas públicas voltadas para a geração de emprego, saúde e educação, além de medidas eficazes contra o racismo ainda são os maiores direitos a serem reivindicados, de acordo com os pesquisados.

“Sabe o que eu acho? Que falta tudo: saúde, educação, respeito. Mas acho também que as coisas começaram a andar, devagar, mas começaram. Hoje tem uma secretaria especial para assuntos dos negros, tem a gente nas revistas, nos desfiles, nas faculdades, chegando de mansinho nas empresas. Acho que não pode se acomodar, porque tem muita coisa para ser feita, aliás, tem tudo para ser feito, a gente não tem nada se você for parar para pensar, nem o direito de ter o cabelo crespo a gente tem (risos) que é logo induzido a raspar ou alisar por essa droga de padrão de beleza racista que esse país tem!” (Maurício)

98 O reconhecimento do valor estético do negro ainda pode ser considerado uma utopia dentro da nossa realidade, de acordo com os modelos negros ouvidos neste trabalho.

4.1 Cabelos Qual é o pente que te penteia? A quantidade de nomes e apelidos para o tipo de cabelo dos negros e a sua importância social, por si só, já seriam temas de análise para uma tese inteira. Portanto, o objetivo deste capítulo é traçar apenas um panorama do assunto, visto que a importância do cabelo para aqueles que trabalham diretamente com a imagem, caso dos modelos negros, é fundamental. Considero o preconceito contra o cabelo crespo uma extensão do preconceito racial no Brasil, e uma de suas principais implicações estéticas. O cabelo crespo é a antítese do que, tanto o mercado quanto o senso comum, consideram um “cabelo bonito”. O cabelo tem um significado social importante: ele é fundamental na definição do status de um indivíduo. A cor, a textura, o comprimento e o corte do cabelo podem dizer muito sobre a localização do indivíduo dentro da sociedade: classe social, gosto musical, grupos de afinidade e etnia, são alguns exemplos. Segundo Sabino (2006): “sendo um dos símbolos mais poderosos de identidade individual e social, o cabelo consolida o significado do seu poder, primeiro, porque é físico e extremamente pessoal; segundo, porque apesar de pessoal é também público, muito mais do que privado. As efetivas hierarquias sociais podem ser simbolizadas por intermédio das formas de capilaridade que os indivíduos portam. Gênero, ocupação, idade, fé, etnia, status sócio- econômico e até mesmo orientação política, além de

99 disposições e gostos pessoais – que não deixam de remeter às classes sociais- significam posições na gramática social, radicando-se nas relações de força inerentes às relações interpessoais e institucionais.” A dicotomia cabelo bom versus cabelo ruim faz parte do imaginário popular no Brasil e está intimamente relacionada ao padrão de beleza europeu adotado pelos veículos de comunicação, e, conseqüentemente, também pelo senso comum. O cabelo bom é aquele que remete à ascendência branca, européia: cabelo liso, comprido, claro e brilhante; coerente com o padrão dominante de beleza. O cabelo ruim é o cabelo crespo, volumoso, cacheado, de textura mais porosa e, por isso, mais opaco. Cabelo crespo é sinônimo de feiúra. Os tratamentos direcionados aos cabelos crespos são sempre com o objetivo de mudar sua forma: permanentes afro – para definir melhor os cachos e dar mais movimento ao cabelo; alisamentos – estes são os que têm a maior variedade de estilos e produtos, de modalidades a ferro quente e chapinhas até a escova progressiva sem formol. Existem também os cortes e penteados que buscam minimizar os “problemas”: as tranças e penteados afro e o corte “à máquina” para a maioria dos homens. Podemos afirmar que o mercado étnico tem nas vendas de produtos dedicados aos cabelos crespos seu maior lucro.23 Além disso, este é um setor deste mercado que não pára de crescer. A cada semana surgem novos produtos e serviços voltados para os “problemas” do cabelo crespo. Desde a década de 1960, influenciados diretamente pelos movimentos americanos que lutavam pelos direitos

23 Fonte: “Qual o pente que te penteia?”, pesquisa sobre o perfil do consumidor negro no Brasil realizada pela agência Grottera em 1996, que aferiu a expansão do mercado de produtos de beleza étnicos no país.

100 civis e usavam claramente a estética como forma de protesto, salões de beleza étnicos se especializam em tratamentos, penteados e produtos, nacionais e importados, dedicados aos cabelos dos negros e negras. Mas como nem todos podem pagar por produtos e tratamentos de qualidade, os salões de “fundo de quintal” aparecem como manifestação do mercado étnico informal, que ocorre principalmente nas periferias, onde mulheres nem sempre profissionalmente qualificadas usam produtos e métodos nem sempre aprovados pela vigilância sanitária, nos cabelos de seus parentes, vizinhos e amigos próximos. Tudo em nome da “boa aparência” e do fim dos “problemas” com o cabelo crespo. Com o “boom” dos produtos especializados, os dedicados aos cabelos étnicos conquistam um número maior de adeptos a cada lançamento. Até as marcas mais tradicionais, e mais conceituadas, de shampoos e condicionadores, como Seda, Palmolive, Dove, L´Oreal e Pantene, lançaram suas linhas específicas para cabelos crespos, étnicos, rebeldes, cacheados, entre outras nomenclaturas. São produtos que visam diminuir o volume, definir os cachos e hidratar os fios em sua maioria. Os negros passaram a ser vistos como os responsáveis pela sua imagem a partir da grande oferta de produtos, acessíveis a todas as faixas de renda – com inegáveis diferenças de qualidade, vale ressaltar. Com isso, um cabelo “bem tratado” passa a ser uma exigência, principalmente no mundo da imagem e da moda. Estes segmentos costumam aceitar variações, como os penteados afro: tranças soltas, embutidas(nagô), dreadlocks e black power. Já os segmentos mais tradicionais da sociedade ainda demonstram certa

101 resistência aos cabelos étnicos não alisados, no caso das mulheres, e não raspados, no caso dos homens. Um de nossos informantes, graduado em marketing, chegou a fazer entrevistas para oportunidades de emprego em uma central de estágios durante a graduação, mas nunca conseguiu chegar sequer até a segunda fase do processo seletivo. O motivo alegado era que o seu cabelo precisava de “um jeito”.

“...... quando eu chegava pra fazer uma entrevista, as pessoas implicavam com a minha aparência, “ com esse cabelo aí...”, e eu não tava afim de cortar o cabelo na época, e nem tava definido que eu ia ser modelo, mas eu não queria cortar o cabelo. Na entrevista falavam: “esse teu cabelo aí, você dá um jeito?” eu falava: “ o que é dar um jeito pra você? É cortar? Cortar eu não corto não.” Foram várias vezes. Foi mais na área de marketing mesmo. Às vezes eu nem chegava a ter contato com alguém do RH da empresa, na central de estágio as pessoas já pré-definiam a cultura organizacional da empresa e falavam: “eu acho que a empresa não vai aceitar”, e nem encaminhavam pra essa vaga. E não era por causa da roupa, nem da cor, era o cabelo”. (Luciano)

Os negros mais “livres” para terem uma aparência fora do padrão que a sociedade espera – a incessante busca pelo padrão europeu de beleza que inclui cabelos lisos - são aqueles ligados à moda ou às carreiras artísticas. Modelos, estilistas, cantores, atores, designers gráficos, artistas plásticos, cineastas e produtores são aqueles que podem usar dreadlocks, tranças, black power, cabelos pintados e penteados afro. Os negros que atuam em segmentos mais

102 formais do mercado, pelo contrário, se preocupam em estar sempre com o cabelo “limpo e arrumado”. Em relação à limpeza, o dreadlock é o penteado que mais sofre discriminação. O processo de formação das tranças requer que o indivíduo permaneça um tempo sem lavar a cabeça para que seja possível que o cabelo adquira uma textura capaz de ser moldado na forma dos dreads. Após a formação das tranças, o cabelo pode ser lavado normalmente e requer um cuidado – cremes e shampoos – especial. O problema é que a maioria das pessoas associa a imagem dos dreadlocks à falta de higiene. Um de nossos informantes nos diz:

“As pessoas achavam que eu não tinha muita higiene, nem cuidado pessoal, porque tinha dread. Ficavam me perguntando como eu conseguia não lavar a cabeça, eu explicava que lavava a cabeça no mínimo quatro vezes por semana, que aquilo era um mito. Mas várias vezes senti que as pessoas me olhavam com uma certa cara de nojo, ou chegavam até a julgar meu caráter, dizer coisas do tipo: “com esse cabelo, não deve ser boa coisa, imagina, não deve tomar banho direito, imagina o que mais pode fazer”. Depois que eu raspei a cabeça, confesso que me senti muito aliviado, é muito ruim falar isso, mas acho que os negros não têm o direito nem de escolher que tipo de cabelo querem ter. Temos sempre que medir nossas mínimas ações.” (André)

Mesmo com o dito fim da ditadura do alisamento e do corte à máquina, os top models negros ainda seguem esses padrões, como , Tyra Banks, , Tyson Beckford e Richard Elms. Entre nossos informantes,

103 dois homens têm o cabelo raspado, um tem dreadlock, um tem black power e o outro costuma variar entre black power, tranças embutidas e outro tipo de penteado que faz enrolando pequenas mechas em um formato pontiagudo. Já entre as modelos, duas tinham o cabelo alisado na época da entrevista, e a outra o mantinha natural com um corte na altura do pescoço. Porém, em meados de março de 2006, reencontrei as duas que estavam com cabelo alisado no começo do trabalho, com megahair cacheado. É interessante notar, que entre as mulheres, o assunto não foi espontaneamente abordado por nenhuma delas. Somente responderam às perguntas relacionadas e frisaram que gostariam de ser menos cobradas em relação a isto. Uma delas disse:

“Gosto de variar meu visual sempre. Às vezes uso lente de contato, aplique liso, depende do tipo de trabalho que eu estou focando na época. Quando queria publicidade, sem dúvida aplique lisão com a lente, para o teste da novela também. Agora para o fashion, eu gosto dele black mais curto, porque dependendo de quem estiver fazendo o beauty24 pode ficar incrível. Digo depende, porque não é todo mundo que sabe mexer bem no nosso tipo de cabelo, é que nem maquiagem, tem muito bambambam que não sabe fazer pele de modelo negra direito.” (Carla)

As dicotomias vão além do bom versus ruim. Pode-se sugerir também limpo versus sujo, duro versus macio, belo

24 Assim como o styling, processo de escolha das peças de roupa que serão mostradas e como serão mostradas, o beauty de um desfile ou editorial também é fundamental. Às vezes um único profissional é o responsável pelo conceito de maquiagem e penteado do trabalho. Outras vezes, há um profissional para cada área.

104 versus feio, rebeldes versus lisos, elas perpassam todas as classes sociais e transformam o cabelo crespo em segmento lucrativo de mercado e em motivo de discriminação. Um elemento estético do corpo negro que costuma sofrer constantes críticas e é alvo de piadas de mau-gosto que acabam se tornando frases de efeito incorporadas na linguagem popular, como “nega do cabelo duro”, “cabelo de bombril”, “juba de leão”. Este conjunto de pré-conceitos acerca do cabelo crespo já faz parte do inconsciente coletivo, e ainda é estimulado de maneira massiva pela mídia. Podemos citar o comercial do carro utilitário Fiat Strada, onde um rapaz negro usando cabelo black power retirava diversos objetos de dentro do cabelo. O objetivo da propaganda era insinuar que, devido ao volume, cabiam tantos objetos dentro do cabelo dele quanto no carro. A idéia da valorização da ascendência africana e do orgulho negro através de cortes e penteados teve mais aceitação entre os jovens negros do que as roupas com tecidos e modelagens africanas. Apesar disso, ainda existem ao redor do mundo locais onde se busca preservar a tradição afro por inteiro, como por exemplo os blocos afro tradicionais do Pelourinho em Salvador. Os homens, talvez na esteira das mudanças dos padrões de comportamento masculinos em relação à vaidade, passaram a ser mais cuidadosos com os cabelos: trançam, penteiam e usam produtos específicos. O cabelo étnico, e a variada gama de serviços relacionados a ele, principalmente tranças e alisamentos, também serve como fonte de renda para mulheres negras, inclusive as mais jovens, que usam suas habilidades e sua criatividade para trançar cabelos, e assim garantir um

105 rendimento extra. Os cabelos garantem boa parcela informal do mercado étnico, já que as técnicas costumam ser passadas de geração em geração25 de trançadeiras, e a proliferação dos cursos profissionalizantes para cabeleireiros tornou mais acessível estes conhecimentos. Além disso, com o sucesso do hip hop e sua estética chegando além da periferia, o visual inspirado nos negros norte-americanos conquistou o público de maior poder aquisitivo, valorizando o serviço no mercado. Uma outra singularidade do cabelo enquanto componente estético, e talvez a mais importante delas, é a facilidade de transformação. O corpo, em si, para sofrer modificações rigorosas precisa passar por processos complexos e dolorosos como as intervenções cirúrgicas26. Já o cabelo pode sofrer mudanças radicais, você pode “tornar-se outra pessoa”, apenas cortando-o ou tingindo-o. Por ser considerado a moldura do rosto, qualquer transformação no cabelo reflete-se no conjunto estético do indivíduo. Isso permite aos negros e não-negros transitarem por diversas formas estéticas através de mudanças no cabelo. No caso específico da relação dos não negros com o cabelo afro, atualmente podemos observar que alguns jovens brancos adotam as tranças e uma tentativa de corte black power, seja para transitarem em eventos específicos, como carnaval e festas de hip hop, ou para o dia-a-dia. Os cortes versáteis, aqueles que se transformam com a simples aplicação de gel ou pomada, são hoje em dia muito usados por pessoas que precisam “passear” por diversas identidades ao longo do dia.

25 Hoje em dia existem cursos de profissionalização e especialização em penteados e tratamentos químicos para cabelos crespos. 26 Considero relevante assinalar que o Brasil ocupa a segunda posição no ranking dos países onde há o maior número de mulheres que se submetem à cirurgias plásticas e são consumidoras de tinturas loiras, atrás apenas dos Estados Unidos.

106 O Brasil, por ser um país diretamente influenciado pela cultura norte-americana, propala um “culto à lourice” que pode ser percebido claramente na análise de qualquer produção de imagens direcionada aos brasileiros: publicidade, dramaturgia, editorias de moda e mídia impressa. No mundo da moda, as louras são as mais privilegiadas, as que têm mais chances de sobressair. Uma parte das modelos que não consegue chegar a esse grupo principal, pinta seu cabelo de louro ou tons afins, para garantir ao menos trabalhos medianos. Homens e mulheres louros estão presentes em quase todas as publicidades – principais e coadjuvantes – e também no casting de qualquer desfile. Entre as modelos negras brasileiras, algumas clareiam os cabelos em forma de mechas ou reflexos, mas nenhuma adotou o visual louro por completo. Já entre os jovens negros, homens e mulheres, existe uma significativa parcela que faz algum tipo de clareamento nos cabelos. Sabino (2006), em a sua análise dos significados da louridade nas academias de ginástica, percebeu: “certa vez, por exemplo, em uma tarde de agosto de 2002, contei em uma destas salas vinte e uma mulheres, dezessete dentre elas tinham o cabelo tingido de louro, sendo que dentre as dezessete, oito poderiam ser consideradas mulatas, que além de tê-los tingidos, os tinham alisados”. Entre os homens, um de nossos informantes tem as dreadlocks claras por conta do sol:

“Costumava surfar, jogar capoeira na praia, andar de skate no sol, e aí meu cabelo sempre dá uma queimadinha. No começo geral achava que eu pintava, passava parafina, água oxigenada, essas paradas. Mas eu nem ligo pro cabelo, faço as

107 dreads, deixo elas crescerem e não estou nem aí. Minha mãe, namorada é que ficam cuidando, passando cera, creme. Eu lavo com shampoo e pronto”.(Carlos)

Ainda no campo dos modelos negros, há uma preocupação em “variar o cabelo” para não ficarem parecidos uns com os outros, em um país onde uma das máximas do senso comum é ”preto é tudo igual”. Eles reconhecem que isso vale tanto para o senso comum quanto para o mercado de moda em geral, e que a forma do cabelo é uma diferença mais facilmente percebida do que a tonalidade da cor da pele e os traços físicos entre eles.

“Lembra aquele comercial do Fiat? Que tinha um negão de black, cabelo pro alto, que tirava um monte de coisa de dentro do cabelo? Então, nada a ver comigo, né? O tom da pele, o cavanhaque, até mesmo o cabelo, nem é parecido! Mas muita gente perguntava se era eu no comercial. Parece que todo preto de cabelo pro alto sou eu! Não consigo entender!” (Luciano)

Os negros e negras norte-americanos costumam ousar mais em relação a cortes e cores. Uma das hipóteses é que a qualidade dos produtos americanos, inclusive os mais populares, é superior à das marcas nacionais. Segundo Teles dos Santos (1999), na opinião dos profissionais especializados em cabelos étnicos os produtos americanos são os melhores. O autor também analisa a disposição dos objetos nos salões de beleza afro, principalmente os anúncios de produtos quase todos norte-americanos: a cenografia dos salões de beleza afro tem um objetivo claro: ser vitrine da imagem positiva do

108 negro, imagem esta que pode ser alcançada a partir dos tratamentos estéticos oferecidos no salão. A maioria das fotografias são de negros norte-americanos. Duas práticas têm predominância, atualmente, entre as mulheres negras: as chamadas escovas definitivas e o megahair. Estes processos variam de preço e qualidade, e neste sentido estão acessíveis para quase toda a população negra. As escovas definitivas são as sucessoras do “hene”, creme alisante tradicional, conhecido pelo seu cheiro desagradável e resultado final artificial que proporciona. Já o megahair tem um diferencial em relação às outras técnicas: o indivíduo pode incorporar um elemento estranho ao seu corpo, o cabelo natural – vindo de outra pessoa, ou o sintético. Não é simplesmente modificar o cabelo. Malysse (2006) inclui este trajeto do cabelo natural – da “doadora” até a “receptora” – no que ele chama de “body-business”. Nessa busca pelo cabelo ideal estão embutidas aspirações simbólicas muito claras, segundo Malysse (2006) “no caso do megahair, os efeitos esperados não são somente de ordem estética mas são de ordem social e relacional : entre quem tem o cabelo que quer e quem tem vergonha do seu cabelo, as redes sociais tecem armadilhas simbólicas cheias de julgamentos morais. A aparência ideal, no caso o visual capilar ideal (cabelo liso, loiro, comprido e cheio) sempre corresponde ao do grupo social dominante, o cabelo da elite, portador de referências sociais codificadas pela mídia. Como forma de modificação corporal, o megahair, tanto quanto a cirurgia plástica, inscreve formalmente sobre o corpo do “receptor” os valores culturais do grupo de referência dominante (e os cabelos dos dominantes “doadores”)”.

109 O papel dos salões de beleza étnicos e das (os) profissionais que aplicam estas técnicas de modificação vai além da aplicação pura e simples. Estes têm um papel importante, agem como psicólogos, que ajudam a resolver o problema do cabelo crespo, ajudam na busca pela melhor solução, o melhor corte, o melhor produto. Os salões de beleza étnicos atuam como espaço de transformação completa: física e emocional, pois o efeito das modificações capilares sobre a auto-estima das mulheres negras é indiscutível. Segundo Teles do Santos, a partir dos anos 70, Rio de Janeiro e São Paulo, considerados os centros cosmopolitas do Brasil, começaram a ver negros com o cabelo black power, fato que, na época, estimulou uma crescente busca da consciência racial, e já anunciava o repúdio às técnicas de alisamento – naquela época feito com pastas a base de soda cáustica e ferro quente, em prol da valorização da naturalidade e dos penteados afro. Um artigo publicado em Dezembro de 2001 no site da Revista Isto é, na sessão Comportamento, é bastante ilustrativo de como a mídia e também o senso comum pensam quando o assunto é cabelo crespo: “Cabeça feita Aumentam a qualidade e a variedade de produtos para o tratamento de cabelos crespos e rebeldes Ressecados, arrepiados, volumosos ou crespos. Não importa o adjetivo. A tarefa de transformar cabelos rebeldes em “alinhados” é uma missão quase impossível. Além de uma boa dose de paciência, é preciso ser criativo. Quem não pode ir todos os dias ao cabeleireiro recorre quase sempre aos cremes para garantir um bom visual. É o caso da estudante

110 paulista Deborah Paula de Souza, 17 anos, que não saía de casa sem encharcar os cabelos com produtos do tipo “sem enxágue”. Para fugir dessa rotina, Débora optou por uma ação mais duradoura. Fez um relaxamento – recurso que deixa os cabelos mais soltos e assentados, sem alisar. “Agora possa usá-los soltos, sem receio de levar um susto cada vez que olho no espelho. Eu parecia um leãozinho”, diz a garota. Ela compõe o índice de 78% dos brasileiros que consomem produtos para cabelos étnicos. Mas basta olhar as prateleiras das perfumarias para ver que os recursos se multiplicaram. É grande a variedade de cremes para hidratação e relaxamento e ainda de xampus, condicionadores e máscaras disponíveis. Um sinal de que o mercado acordou para uma demanda longamente reprimida. “A indústria brasileira criava produtos tendo a beleza européia como referência. Hoje ela se voltou para o padrão da mulher brasileira”, diz Rodrigo Goecks, gerente da Embelleze. Em quatro anos, o mercado dobrou de tamanho. “Em 2000, faturamos R$ 340 milhões”, informa João Carlos Basílio, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec). As alternativas cresceram em volume e qualidade. “São produtos feitos com ingredientes naturais, como manteiga de karité, cupuaçu e extrato de algodão, que hidratam e fortalecem os cabelos”, explica Eloina Fleith, técnica da Biosève. A concorrente Niasi criou a linha Biorene Hidraforte, à base de extratos vegetais, óleo de jojoba e silicone, que revitaliza e hidrata cabelos quimicamente tratados. Com proposta semelhante, a Shizen desenvolveu a linha Traty para cabelos extremamente ressecados. Já a Farmaervas recorreu à tradicional babosa para criar a linha

111 Bio Aloe, que vem com filtro solar. Para quem quer soltar os cachos, a Niely Cosméticos oferece a Fashion Hair. A novidade dos importados são os lançamentos da Revlon, à base de vitamina líquida, colágeno, elastina e óleo de coco. Eles ajudam a encorpar os fios e garantem o brilho dos cabelos. A L’Oréal também acaba de lançar no Brasil a linha Osmose Série Expert, para hidratação e definição do cacheado. Com todo esse arsenal, só mantém o visual felino selvagem quem quiser.”

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Cap 5 – Ser modelo

“Apenas uma coisa é pior do que ser negra no mundo da moda, querida. É ser gorda.” (Frase da top negra Tyra Banks para uma das participantes brancas que estava acima do peso, no reality show America´s Next , em um dos julgamentos, exibido pelo canal a cabo Sony em outubro de 2006)

A profissão de modelo é construída em torno da valorização do corpo e da beleza de homens e mulheres. A perfeição e simetria de traços físicos, de acordo com o padrão de beleza vigente da época, são as principais qualidades, naturais ou adquiridas, para se alcançar êxito na carreira. Segundo um de nossos informantes:

“Acho que a profissão de modelo não valoriza o seu caráter, valoriza só a sua beleza. Você pode ser o maior mau caráter, mas ser bonito e dane-se. Pode ser bem burro, só tem que ser bonito” (Luciano).

“É louco demais! Você ganha dinheiro porque te acham bonito, e às vezes, pra quem se dá bem, é dinheiro de verdade, papo de R$ 5.000,00 por foto. Se você parar pra pensar o quanto tem de gente que estudou a vida toda e nunca vai ter um salário igual ao que a gente pode ganhar em um dia, dá um nó na cabeça.” (Roberto)

Aliam-se às medidas fundamentais, altura: mais de 1,70m (mulheres) e mais de 1,80m (homens); e quadril: até 90

113 cm (mulheres), outras características que permitem incluir o indivíduo em categorias que vão do belo ao exótico, passando por “estiloso e vendável”. Podemos observar que o desejo de “ser modelo” faz parte do imaginário de parte de jovens e adolescentes no Brasil. Um exemplo é a brasileira Camila Finn, que com 13 anos foi a primeira brasileira a vencer o concurso Ford . Traços físicos que antes colocariam o jovem em uma situação de desconforto com o próprio corpo e inseguro em relação a sua aceitação pelo grupo e principalmente pelo sexo oposto, como a estatura acima da média e a magreza excessiva, transformaram-se em capital físico (Bourdieu, 2002) para ingressar em um campo onde a disputa se dá nos domínios da estética. Os padrões de beleza em voga no mercado de moda do país ainda têm suas raízes na Europa, apesar de o biotipo de homens e mulheres brasileiras seguir uma outra realidade, e apesar da aparente valorização do corpo brasileiro no mercado de moda internacional. O tipo de corpo brasileiro que faz sucesso no exterior, é aquele que se assemelha ao padrão de beleza europeu, como o de Gisele Bundchen, , , dentre outras top models.

“Ninguém na agência nunca virou e falou que eu era bonito, dizem que eu sou estiloso, que eu tenho um corpo ótimo, uma altura boa, mas a palavra bonito ninguém nunca falou. E o pior é que falam direto para os caras brancos, você vê os bookers comentando: fulano é tão bonito, sicrano é lindo.” (Luciano)

Para tornar-se modelo, a motivação é apenas o começo. O segundo passo é ser encontrado, ou procurar, por

114 uma agência. Na maioria das vezes o processo acontece da seguinte maneira: o jovem é abordado por um “scouter” ou “olheiro” na rua que lhe aconselha a procurá-lo na agência para conversarem sobre a possibilidade de ser modelo. Estes “olheiros” costumam freqüentar lugares como a Zona Sul carioca e o Baixo Jardins em São Paulo e também outros como as cidades do interior da região sul do país. Os que são “descobertos” costumam ser os que despontam com mais facilidade como as apostas da temporada ou do booker. Muitas vezes os jovens abordados nunca tinham cogitado a idéia de ingressar nessa carreira, mas a maior parte costuma retornar o contato, mesmo que algum tempo mais tarde. Mesmo não aceitando prontamente o convite, o indivíduo passa a contar com esta possibilidade como fonte de renda. Hoje em dia é aconselhável certificar-se de que a pessoa que fez a abordagem trabalha realmente em uma agência de modelos que presta serviços legais no mercado, pois esse tipo de abordagem também costuma ser o mote de agências de prostituição.

“Quando eu tinha uns 17, 18 anos, tinha um amigo meu que era modelo e comentou: “pô você podia ser modelo, você tem altura, tem um porte bacana, rosto maneiro, vambora lá na agência, te apresento a galera”. Eu falei: “não é minha praia não, não curto muito não”. Mas também eu estava sem grana na época para fazer as fotos, era bem caro o book. Passou uns 5, 6 anos, esse mesmo amigo me convidou pra ir na agência com ele, meu cabelo estava começando a crescer. Eu cheguei lá aí o booker da agência me viu e falou: “você é bacana, tem alguma foto aí?” Eu mostrei as que eu tinha, e ele pediu pra eu fazer novas fotos e levar para ver no

115 que dá. Acabou que eu fui aceito na agência e comecei a fazer uns trabalhos. Foi por acaso, mas eu tinha vontade, eu tive vontade, mas não era prioridade da minha vida ser modelo. Eu sempre tive vontade, sempre tive não né, ele despertou uma vontade em mim, que no futuro eu procurei...” Luciano)

“Eu não decidi ser modelo, foi sem querer. Minha mãe e minha irmã já eram modelos. Minha mãe já foi modelo internacional, e desde pequeno eu convivo com esse meio. Só que eu tinha um preconceito muito grande, eu achava um mundo meio “aviadado”, e eu era muito assediado pelos fotógrafos quando era pequeno, e acabei ficando com trauma. E eu trabalhava no Rio Sul, na Redley, depois fui pra uma loja de decoração, e nesse espaço de tempo conheci algumas pessoas que me incentivaram. Numa dessas eu conheci o Cande Salles, produtor de elenco da Conspiração Filmes, depois eu conheci o Sérgio Mattos e por último eu conheci o Adelson Brasil, que é fotógrafo. Esses três me convidaram em diferentes momentos: um falou vamos fazer uma foto; o outro falou você devia ser modelo, o outro me convidou pra agência. E depois eu fiquei sabendo que eram pessoas influentes, que trabalham bem, então eu percebi que não era coincidência, que realmente eu podia ter chances de trabalhar e ser bem sucedido na profissão. Foi assim que eu comecei.” (Davi)

Outra maneira é procurar uma agência, e nesse caso, já com algum material (fotografias), ou depois de ter feito algum tipo de curso para modelos. Muitas vezes o material apresentado é fraco e a primeira coisa é refazer as fotografias de apresentação. Este fato, às vezes, se torna um dos grandes

116 problemas para aqueles que não foram “descobertos”: o custo das fotografias, com qualidade profissional, de acordo com o padrão das grandes agências, é alto, e nem sempre os aspirantes a modelo que “correm atrás” da agência têm dinheiro para arcar com essa primeira despesa. Caso ele seja considerado uma possibilidade de sucesso, ele faz a primeira dívida com a agência: esta paga o custo das fotografias, para o book e composite, e desconta do primeiro cachê. Outra possibilidade comum para aqueles que contam com o apoio da família, é realizar um tipo de arrecadação entre os familiares para poder arcar com as despesas das fotografias.

“Eu fiz um curso no SENAC, e quando acabou o professor passou uma prova pra gente, e a prova foi um desfile em um shopping em Angra, e quando eu estava ali, naquela movimentação de backstage, camarim, eu falei é isso que eu quero fazer. E aí meti a cara, várias coisas aconteceram pra eu desistir, não tinha dinheiro, morava longe, e foi indo, eu fui aprendendo um bocado de coisas. Na verdade minha família me incentivou, falavam: ah você é magricela, é alta. Mas eu nunca imaginei, pelo fato de ser muito tímida, nunca pensei em desfilar. Mas todo mundo falava, aí eu fui procurar saber porque todo mundo fala. Aí eu fui ler, procurar saber, fiz curso de modelo. Mas eles sempre me apoiaram. Tanto que da primeira vez que eu fui fazer meu book, eu não tinha grana, quem me ajudou foi minha família: meu tio me deu R$ 5,00, minha tia, foi uma vaquinha. E eu consegui fazer meu book, ainda consegui fazer meu composite, eles me apóiam muito, em tudo.” (Tatiana)

117 Os modelos costumam exercer um tipo de influência nas pessoas mais próximas, que começam a saber mais detalhes sobre a carreira, se deslumbram com as quantias recebidas e com o status social alcançado. Muitas vezes estas pessoas pedem para ser apresentadas para o booker, para saber se têm alguma chance de também ingressar no campo, outras vezes o próprio modelo enxerga possibilidades de sucesso para um amigo ou familiar. Além dessas, existe uma outra possibilidade para ingressar no campo: ser apresentado ao booker por alguém importante do meio, algum jornalista, estilista, dono de grife, patrocinador/ empresário. Geralmente estas pessoas não se importam com o valor das despesas iniciais e já chegam na agência merecendo a atenção especial do booker e com um material de ótima qualidade. Além das características físicas, existem algumas regras que precisam ser seguidas por aqueles que desejam ser reconhecidos como bons profissionais. Umas dependem diretamente dos modelos, outras dependem dos profissionais responsáveis por gerenciar suas carreiras. Estar sempre em forma, ser pontual nos testes e trabalhos, circular nos eventos mais badalados, se vestir de acordo com as tendências e manter o book atualizado, estas são as obrigações de um bom modelo. A agência e os bookers são fundamentais não só para a construção de uma carreira sólida, como também para localizar o modelo dentro de uma das categorias. Afinal de contas, não é todo mundo que vira top model, e as pessoas que tentam a sorte na profissão sabem disso. A agência faz a ponte entre o cliente e o modelo. Dentro da agência existem vários bookers. Cada um deles é responsável por cuidar de um determinado grupo de modelos,

118 ou atender um determinado tipo de cliente. Os modelos aparentemente sofrem apenas uma divisão: os tops e os não tops. Mas a existência de diversas modalidades de cachês (A – R$ 1.000,00 até R$ 2.000,00;B – R$ 600,00; C – R$ 400,00, Especial – acima de R$ 2.000,00) mostra uma outra realidade. Qual modelo pertence a cada faixa de cachê é uma definição da agência, numa avaliação de rendimento individual e aceitação do mercado. É impossível sobreviver na carreira fora de uma agência, pois são elas que têm os contatos dos clientes e fazem todas as intermediações em relação ao cachê. Às vezes, algumas produtoras entram em contato direto com o modelo, tentando evitar o pagamento do percentual, mas o modelo que faz esse tipo de negociação constantemente fica “queimado” no mercado. Mesmo como integrante do casting de uma agência pequena, é importante ter alguém com conhecimento de mercado que negocie pelo modelo. A diferença entre agências pequenas e grandes é que estas oferecem uma quantidade maior de trabalho, e as negociações acerca do valor do cachê são conduzidas de maneira mais profissional. Ao mesmo tempo, se tomamos como exemplo a agência 40º Models, considerada a maior e mais importante do Rio de Janeiro, e analisarmos o seu casting composto por cerca de 130 modelos, veremos que apenas 30%, em média, trabalham de maneira significativa. Esse inchaço das grandes agências é uma das constantes reclamações dos modelos, e uma das causas principais dos constantes atritos entre eles e os bookers. Já nas agências pequenas, o relacionamento é feito com menos atritos, mas, em compensação, na ânsia por crescerem no mercado, essas agências costumam baixar o valor do pagamento dos

119 modelos, o que acaba por desvalorizar os cachês, ao sinal de concorrência. A agência fica com um percentual de 30% do cachê do modelo por trabalho executado. Existem trabalhos onde os modelos não são pagos, mas como geralmente são editoriais veiculados em jornais e revistas de grande circulação, ou realizados por fotógrafos e stylists conceituados, é considerado válido tanto para a agência como para o modelo participar do trabalho. Existem várias estratégias que visam o lucro, a curto ou médio prazo, nas agências, mas a mais importante é agradar aos clientes estrangeiros. Os clientes estrangeiros procuram o Brasil por diferentes motivos: as belezas naturais que podem servir de locação apenas pela quantia de uma liberação do órgão responsável; a beleza e a qualidade dos modelos aliados aos cachês que aqui são mais baixos do que na Europa; gastos com produção executiva mais baixos devido a diferença entre as moedas. A quantidade de marcas e veículos estrangeiros que realizam seus editoriais e campanhas no Brasil é alta, principalmente no verão. Geralmente o conceito desses trabalhos não costuma fugir muito da idéia de “sol, praia, futebol e gente bronzeada”. Talvez isso explique porque os modelos negros costumam participar em uma média considerável de trabalhos internacionais. Todos os informantes costumam participar regularmente de trabalhos internacionais, principalmente no verão.

“Isso é muito bom né? Os gringos vem aqui e ficam loucos! Estes testes para os comerciais gringos do Gatorade é batata, toda a galera vai e são sempre os negões brasileiros que fazem. “ (André)

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“Se você for ver no meu book, acho que tem mais trabalho gringo do que nacional. Aí você pode achar que eu sou top model. Que nada, é porque os gringos são menos preconceituosos, tem aquela coisa de campanha internacional ter todos os tipos físicos possíveis. E quando é editorial, lá fora os negros compram revista, compram roupa cara, então tem que ter pelo menos um de nós representando.” (Carlos)

“Se a carreira de modelo fosse minha prioridade, acho que eu já teria ido para fora do país há séculos! Todo trabalho internacional que eu faço, o fotógrafo, o stylist, todo mundo comenta que lá fora eu trabalharia muito. E eu sei disso. Pela quantidade de trabalhos internacionais que faço, pelo que eu acompanho da moda, dá para sacar que lá fora as coisas parecem ser pelo menos um pouco diferentes.” (Daniela)

Quando o modelo é bem aceito pelos profissionais estrangeiros, mesmo que não vire top model, passa a ser valorizado dentro da agência, e os bookers passam a citar estes trabalhos nas negociações por cachês mais altos.

“Logo que eu comecei, uns seis meses depois, já era verão aqui no Brasil e de cara eu peguei um trabalho que era uma foto com a Naomi Campbell, eu e mais dois parceiros negões, um era o Sacramento, que já é mais do famoso. Eu e o outro cara, que também tava começando, ganhamos maior moral lá na agência.” (Luciano)

Uma outra estratégia é “fechar o casting” de um evento ou desfile: uma agência consegue colocar apenas

121 modelos integrantes do seu casting e fecha um pacote com o cliente. Isso, na maioria das vezes, diminui o valor do cachê dos modelos intermediários, mas garante a presença de um top model, por uma quantia que satisfaça o cliente e não prejudique o lucro da agência. Os modelos negros costumam fazer parte desses pacotes, até porque esse é um dos argumentos dos bookers para vendê-los: é “politicamente incorreto” em um evento, ou comercial, ou desfile que ultrapasse um número mínimo de participantes, não ter ao menos um modelo negro ou uma negra.

“Cara, eu sei que tem uns trabalhos que eu tô lá porque foi no bolo. Porque o booker fechou o pacotão e eu entrei, não porque me escolheram, porque me acham muito bonito. Em desfile então, é direto.” (Maurício)

O trabalho do booker é lidar diretamente com o cliente e, a partir das necessidades deste, encaminhar o material dos modelos que se encaixam no briefing, composite ou a cópia do book, para os produtores, ou encaminhar diretamente os modelos para o teste de vídeo ou passarela. Muitas seleções são feitas apenas através da análise de material. Por isso é importante assegurar que o material esteja sempre atualizado e que realmente expresse o máximo da potencialidade do modelo. É função conjunta do booker e do modelo cuidar da renovação do material. O booker vende o modelo para o cliente. Talvez, nesse momento, fique mais evidente a idéia do modelo como um mero “produto” que não precisa necessariamente ter nenhuma característica além de uma determinada beleza física. É o valor que essa beleza pode agregar ao produto, ou veículo em

122 jogo, que o booker tenta negociar. E no caso da publicidade, podemos tentar fazer uma relação com a importância disso para o cliente a partir do alto valor pago aos modelos que desempenham papel principal em um anúncio, não importa o tipo de serviço ou produto. Apesar de os cachês mais altos serem dos trabalhos publicitários, a hierarquia do campo dos modelos funciona da seguinte maneira: em primeiro lugar estão os que trabalham no fashion, aqueles que realmente cumprem o padrão de corpo exigido: são altos, magros e possuem feições estéticas de acordo com os padrões de beleza em voga, ou no que o mercado chama de “exótico”27. Por isso, atuam em desfiles, editoriais de moda e campanhas de grandes grifes. Em seguida, estão aqueles que atuam majoritariamente em campanhas publicitárias, justamente porque os padrões da publicidade não são tão rígidos como os padrões exigidos nas passarelas. O mercado publicitário lida com padrões de beleza um pouco mais democráticos, pois visa atingir consumidores de todas as classes sociais e tipos de beleza. Por último, estão os que trabalham em eventos, promoções e figuração, estes muitas vezes nem são considerados modelos pelos outros, mas na maioria das vezes se auto-denominam como tais. Para aqueles que buscam se realizar na profissão, e não apenas ganhar dinheiro, o fashion é o patamar mais alto. Os top models são aqueles que dominam o mercado fashion. Eles são escolhidos como aposta certeira dos bookers internacionais, que estão sempre por dentro dos padrões mais valorizados no mercado. Há também os favoritos que duram apenas uma temporada. Estes são “new faces” lançados pelas

27 Os rostos exóticos, considerando o mercado na sua dimensão internacional, são geralmente aqueles com traços étnicos bem característicos, como as brasileiras Caroline Ribeiro e Suiane, a sudanesa e a australiana .

123 principais agências que de uma hora para outra aparecem na maioria dos catálogos e desfiles das grifes mais comerciais, e que podem ou não agradar ao público especializado, e ascender na carreira. A maioria acaba indo para o exterior, a partir do convênio da agência brasileira com alguma outra no exterior, na tentativa de emplacar no mercado internacional e conseguir virar top model. O booker é peça fundamental no campo, e faz parte das regras para o modelo manter uma boa relação com ele. Isso pode ser conseguido através de idas periódicas na agência, convívio em eventos, e cair no gosto de algum cliente importante. Ir a eventos e festas é importante para estreitar as relações com outros profissionais do meio, como editores, stylists, jornalistas e fotógrafos, e também para se mostrar “antenado” e interessado em tudo que diz respeito à moda. O mesmo processo se dá com as roupas, apesar de a maioria se dizer fiel a um estilo próprio. Nos testes e festas, faz diferença ir vestido com peças de grifes consideradas no momento pelo mercado. Em geral, são marcas de espírito jovem como Osklen e Cavalera e ligadas a eventos dedicados a novos talentos como o Rio Moda Hype e o Amni Hot Spot. Além das motivações e formas de ingressar na carreira, também existem as motivações e formas para continuar na carreira. A rejeição é uma constante no cotidiano dos modelos: a cada semana entram novos modelos no mercado, são mais pessoas para competir pela mesma vaga, a rotina dos testes costuma ser exaustiva. Além disso, o mercado cultua a novidade, os novos rostos costumam ser mais valorizados, e com isso torna-se cada vez mais difícil criar algum tipo de estabilidade no cenário nacional. Já na

124 Europa e Estados Unidos, como a oferta de trabalho, ou a demanda por imagens de moda e publicidade, é maior, é mais fácil estabelecer-se. A pressão para se manter em forma e seguir as regras para ser um bom modelo costumam desanimar tanto quanto a acirrada competição. Qualquer deslize de postura ou descuido com o corpo são severamente punidos. Os bookers passam a não vender mais o modelo até que este volte à forma original, e muitos desistem neste intervalo. Outros ficam, mas carregam a fama de atrasados ou indisciplinados por toda a carreira e quando continuam a trabalhar é porque realmente se encaixam nos padrões estéticos do mercado, é o caso de um de nossos informantes, considerado o próximo “top model negro do Brasil” pelo booker no início da carreira. Hoje em dia, entre stylists e fotógrafos, existem pessoas que não o convocam por ser famoso pela indisciplina, e, principalmente, falta de pontualidade. As tentativas de negociações corporais e a circulação “quase livre” dos mais variados tipos de droga também costumam assustar alguns logo no começo. Outros conseguem resistir até certo período e uns conseguem passar incólumes por essas duas características do campo que costumam causar seqüelas pessoais e profissionais graves. Uns acham um grande sacrifício continuar em um campo onde os valores morais tradicionais são tão vulneráveis e o capital estético é o mais importante, porém precisam do dinheiro que ganham apenas por serem magros e belos para arcar com suas despesas: ajudar em casa, financiar os estudos, quitar as dívidas e manter o padrão de vida conseguido com o tempo de carreira. É importante lembrar que a maior parte dos modelos negros vêm de famílias de baixa renda.

125 Para os que se dizem viciados, a grande dificuldade é largar uma profissão onde se ganha tão bem, com a qual já conseguiram comprar uma série de bens de consumo e já atingiram um status que levariam anos para atingir, e no caso dos negros talvez nem atingissem, para se aventurar em uma outra carreira onde teriam que começar do zero, e talvez nunca alcançassem a mesma remuneração. Argumentam que é difícil largar uma profissão onde a qualquer momento o seu telefone pode tocar e em quatro horas de trabalho ganhar R$ 25.000,00 (esta estimativa é válida para protagonistas de campanhas de beleza, que geralmente estão na categoria C da agência). Alguns resolvem da seguinte maneira: investem o dinheiro que vão ganhando em atividades paralelas. Por exemplo, aproveitam para fazer estágios não-remunerados, para quando não quiserem mais ser modelos possam ingressar em uma outra função, porém sem ter que começar de um estágio tão inicial. Outros esperam juntar dinheiro para ir tentar a carreira no exterior e assim conseguir uma soma maior de dinheiro, que possa realmente garantir alguma estabilidade para o período de transição de carreiras. No caso dos negros, muito acreditam que no exterior, principalmente nos Estados Unidos e na França, o volume de trabalho será maior devido ao poder e à influência do mercado étnico e da maior chance de oportunidades para os negros em geral. Para alguns modelos negros existe também uma motivação subjetiva: a sua insistência em permanecer no campo, mesmo em condições adversas, pode significar um apoio à abertura do mercado e um incentivo à auto-estima dos jovens negros em geral que poderão vê-lo nas grandes mídias.

126 A relação dos modelos com a família varia de acordo com diferentes fatores, provavelmente segundo os mesmos fatores que influenciam a constituição e as relações familiares em geral. Porém, na profissão de modelo, onde os jovens se iniciam muito cedo, os pais nem sempre têm acesso a tudo que acontece no ambiente de trabalho e não podem estar com os filhos, no caso os menores de idade, em todos os testes e trabalhos. Nesse momento, quando os jovens entram para a profissão por volta dos 12, 13 anos, no caso das meninas, e 16, 17 anos, no caso dos meninos, e obtendo sucesso a curto prazo vão morar em outro país, a ausência dos pais pode significar a perda de uma referência familiar, e conseqüentemente, a redefinição do valores. Nesse caso, sempre há alguma referência de uma família tradicional, grande parte das vezes, se tomarmos como exemplo a família de uma das inúmeras modelos que são descobertas na região sul do país, na maioria dos casos no interior do Rio Grande do Sul, e que foram socializadas a partir de um processo educacional nos moldes mais conservadores. Com 13 anos, esta menina precisa sair de sua cidade e ir morar em um grande centro cosmopolita, Rio de Janeiro ou São Paulo, e aí tem duas opções: dividir um apartamento pertencente à agência com outras modelos, nesse caso sem ter que arcar com nenhuma despesa; ou vir com a família ou algum outro acompanhante, nesse caso as despesas extras são bancadas pelo próprio acompanhante. O booker se torna uma espécie de tutor, “segundo pai / mãe” para o jovem. Caso essa menina se firme na carreira fashion, se mostre um rosto vendável para grandes campanhas e editoriais internacionais, no tempo médio de seis meses, ela

127 deverá partir para outro país, dessa vez em convênio com uma agência internacional que será a provedora do local de moradia, que ela certamente dividirá com outras modelos, brasileiras ou não, e de suas diárias de alimentação durante o tempo de validade do contrato. Esse contexto apresenta meninas de 14 a 17 anos que passam a ter contato com suas famílias apenas no intervalo de suas viagens profissionais. Acredito que esse afastamento, no período da adolescência, deva trazer algum tipo de conseqüência na formação do indivíduo. A hipótese que apresento pode ser considerada conservadora, pois as experiências de descoberta continuarão a acontecer, só que dessa vez na companhia de pessoas da mesma idade. Porém, sem dúvida, o amadurecimento é antecipado: as cobranças profissionais vêm na proporção em que o cachê aumenta. Em menos de um ano essas meninas passam de sustentadas a provedoras de famílias de classe média baixa, ou classe baixa. Com isso geram uma reviravolta na estrutura familiar, por mais tradicional que ela seja. As motivações para ingressar no campo são em sua maioria muito subjetivas, enquanto que para permanecer elas se tornam mais práticas. Já as formas de ingressar e se manter no campo são completamente flexíveis.

5.1 Sexualidade e relações de gênero

Uma das representações sobre o mundo da moda é a que diz que as mulheres e os homossexuais são os dominantes (Bourdieu, 1979) do mercado. Das agências de modelo às editorias das revistas especializadas, mulheres e homens homossexuais são os que realmente aparecem mais. Isto não

128 quer dizer que os homens heterossexuais nunca estão visíveis. Ao contrário, eles são os principais investidores do mercado de moda. Se analisarmos o panorama brasileiro atual, iremos perceber que apesar da predominância de mulheres e homens homossexuais, os homens heterossexuais começam a ocupar outros espaços no campo que vão além da posição distante de sócio investidor. Pois a maioria das presidências de grandes empresas de moda (confecções, fábricas de tecido, fábricas de calçados) é ocupada por homens heterossexuais, e a maioria dos capitalistas em grifes e negócios de moda também são homens heterossexuais. Porém, ocupando estas posições, os homens heterossexuais não parecem tão próximos do glamour do mercado, e também não parecem tão associados a funções criativas. Fotógrafos, estilistas e modelos começam a demarcar um novo espaço no campo: o espaço masculino heterossexual. O surgimento deste personagem no mundo da moda parece estar relacionado a um novo comportamento masculino, que permite ao homem acompanhar o mundo da moda sem ter sua sexualidade questionada (Goldenberg, 2000) ou sem ser alvo de acusação de desvio (Becker, 1977), mas também com o crescimento da indústria da moda em geral, que fez com que pessoas ligadas a outras áreas migrassem em busca de altos salários e, também, de sucesso, prestígio e fama. Mas, justamente por estar se integrando ao campo há pouco tempo, os homens heterossexuais ainda encontram dificuldades para lidar com um universo até então dominado por mulheres e homossexuais. Uma delas é o fato de que, como dominantes, adotaram estratégias profissionais peculiares, que estão intimamente ligadas a características que lhes são atribuídas pelo senso comum. Por exemplo, o mundo

129 da moda prefere pessoas extrovertidas, sorridentes e comunicativas, e estas não são exatamente marcas fortes do comportamento masculino tradicional. Além disso, a moda é uma área diretamente ligada à criatividade e à sensibilidade, outras características freqüentemente associadas a mulheres e homossexuais. Variadas representações sobre o que significa ser homem ou mulher para o senso comum aparecem nos discursos dos entrevistados, e uma delas tem a ver com a suposta dificuldade que as mulheres têm de se relacionar bem com outras mulheres no ambiente de trabalho, em situações de competição, como no caso da profissão de modelo.

“Por isso que as mulheres ganham mais dinheiro, a carreira é curta elas sofrem pra caramba. E a briga de vaidades do universo feminino é bem maior do que no masculino. Você vê, os homens são todos amigos, independente de ser top, ficam todos no mesmo grupo, trocando idéia. As mulheres não, é competição 30 horas por dia. Os homens são muito tranqüilos.” (Daniela)

Ainda confirmando estereótipos, pelos depoimentos podemos concluir que para os homens, no que diz respeito à aceitação do que podemos chamar “corpo natural” é mais fácil. Portanto, pelos depoimentos, parece que a carreira para os homens é menos difícil, porque seus corpos não são tão alvo das pressões quanto os corpos femininos. Eles cuidam do corpo praticando as atividades físicas que mais gostam , são assediados por muitas mulheres, engordam com menos facilidade e podem ser vaidosos em relação ao vestuário. No entanto, trabalham menos e ganham menos.

130 No que diz respeito às relações com o sexo oposto, os entrevistados apresentam diferentes visões. Alguns acham mais fácil se relacionar com pessoas do meio, e outros preferem “não misturar as coisas”. Os relacionamentos amorosos podem ser usados também como forma de ascensão, tanto pessoal como profissional, e isso acontece, segundo eles, mais com as mulheres. Como exemplo, citam os affair do jogador de futebol Ronaldinho. Depois de um breve, ou suposto, envolvimento com o jogador, todas deslancharam suas carreiras. As negociações corporais, “dar pra alguém” ou “comer alguém”,são recorrentes no mundo da moda.

“Na verdade eu sou muito na minha, sou muito lezada pra perceber essas coisas. Mas acho que é tranqüilo, talvez no meio seja até mais fácil. Mas tem uma coisa engraçada, tem uns meninos que falavam comigo e hoje em dia eles passam e não falam comigo, aí eu penso: ué eu conheço ele, porque ele não fala mais comigo? Ele falava antes, porque agora não fala mais? Mas não sei, acho que não atrapalha muito não.” (Tatiana)

“Agora ela gosta, mas no começo...... Se bem que quando eu comecei ela nem existia na minha vida então, quando eu a conheci eu já trabalhava com moda. No começo ela ficava meio chateada porque é um trabalho que você está sempre com muitas mulheres e rola um pouco de assédio, mas agora ela já desencanou. A gente já está há três anos juntos e acho que ela já se acostumou e me dá maior apoio.” (Davi)

“Hoje em dia, eu estou casado, mas antigamente eu me acabava nessa história de mulher. E além disso, acho que a

131 carreira é bem melhor pra quem está disposto a certas coisas. Tipo sair com fulano, e pegar fulana, essas coisas,”(André)

Na moda, o poder de sedução é usado por homens e mulheres o tempo todo, pois é considerado uma arma poderosa. A regra no cotidiano da moda é se comportar o tempo inteiro como se estivesse em um comercial, muito contente e mostrando, esteticamente, o melhor de si. Os modelos acreditam que estão sendo analisados os tempos todo. Eles podem ser descobertos por “olheiros” – profissionais que estão sempre em busca de novos talentos - de agências internacionais, stylists e fotógrafos, onde quer que estejam. Mas não só eles precisam usar a sedução, o booker precisa seduzir o cliente a pagar um determinado cachê, o stylist precisa seduzir os donos das grifes para poder coordenar o desfile, o modelo precisa seduzir o fotógrafo. Daí a necessidade da sedução ser imperativa no campo da moda. O próprio ambiente da moda naturaliza o exercício da sexualidade. Em um backstage de desfile em uma semana de moda, por exemplo, cerca de 25 homens e mulheres trocam de roupa na frente de outros 20 profissionais. O fato de “tirar a roupa” não é apontado como um problema, principalmente para os modelos. Esta situação corriqueira em testes e trabalhos requer um tipo de relação com o próprio corpo, que permita ao modelo ficar à vontade, pois não são vistos com bons olhos aqueles que não lidam com facilidade com esta troca de roupa freqüente. Se em um editorial realizado na praia, uma modelo, ou um modelo, se recusa a trocar de roupa apenas com o auxílio de uma toalha, sem a menor privacidade, é considerado “fresco”, atrapalha o andamento e

132 corre o risco de ficar “queimado” com os profissionais que estão coordenando o trabalho. Esta banalização do corpo ou do corpo nu pode ser o ponto de partida para alguns casos de assédio sexual. Esse tipo de assédio é uma realidade já que as relações e negociações pessoais no campo da moda estão fortemente ligadas à sexualidade. O corpo é um bem de troca, que pode ser usado, sem juízos de valor, na busca pela fama e pelo dinheiro. O estereótipo do mundo da moda como um mundo promíscuo, onde só existem gays e prostitutas, pode não estar completamente distante da realidade ao sugerir a exarcebação da sexualidade como uma das principais características do campo. Para homens e mulheres negras, os conflitos com a sexualidade como forma de negociação e a história de erotização dos seus corpos vem desde a escravidão, através da violência dos senhores de engenho e das fantasias das ricas senhoras (Freyre,1937), até as mulatas das escolas de samba e mitos sobre a potência sexual dos homens negros (Moutinho, 2004). No mundo da moda, brancos e negros compartilham essa situação, de intimidação para uns e de chances de sucesso para outros. As reações a esse tipo de situação são variadas, desde os que acham legítimo esta forma de obter fama ou dinheiro, até aqueles que se sentem profundamente ofendidos. O que torna a questão mais delicada é o fato de os modelos estarem entrando cada vez mais novos na profissão e nem sempre com maturidade suficiente para saber como e quando negociar (ou não) seus corpos. Um dos casos mais freqüentes de assédio é entre bookers e modelos, principalmente do sexo masculino. Quando o booker é homossexual, a maioria dos modelos que

133 trabalham mais, e são os favoritos na agência, sofrem desconfianças e acusações dos colegas de estarem tendo algum tipo de relacionamento, na maioria das vezes puramente sexual, com ele. E, na realidade, alguns sucumbem a essa negociação, que no caso das mulheres tem mais a ver com ganhos financeiros e materiais do que com benefícios em relação à carreira. Nesse trâmite de negociações corporais, os homens são os mais assediados, eles sofrem investidas de mulheres e de homossexuais masculinos. Um outro dado relevante é a presença de casais bissexuais. Geralmente são casais de um homem e uma mulher que mantém uma “relação aberta”, onde o relacionamento com alguém do mesmo sexo não é considerado traição. Casos homossexuais femininos ainda costumam ser apenas experiências passageiras, não tão duradouras como os relacionamentos entre homossexuais masculinos. Julgamentos de valor acerca das relações afetivas não costumam ser muito comuns no mundo da moda. Situações que seriam facilmente condenadas pelo senso comum são tratadas como normais, como por exemplo: traições, “surubas” e trocas de casais. O campo da moda é um dos locais onde ser homossexual pode se tornar um capital positivo. Ele tem trânsito livre entre homens e mulheres e pode jogar com a identidade dupla, masculino / feminino, quando lhe convém. Além disso, o risco de um indivíduo sofrer algum tipo de preconceito em função de sua orientação sexual no mercado de moda é praticamente nulo.

5.2 – O corpo é o valor máximo. Imagem é tudo

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No final do século XX, os padrões de beleza, não só ligados ao mercado da moda, ficaram intimamente ligados ao conceito de juventude. Na moda, os rostos mais valorizados são daqueles que têm cara de “bebê”, principalmente após o atentado terrorista de 11 setembro nos Estados Unidos. A resposta da moda ao episódio foi o resgate do lúdico e da inocência, valores ligados diretamente à infância, como podemos observar na análise das tendências observadas nas coleções desenvolvidas logo após o episódio. Meninos e meninas que mal entraram na adolescência se vêem inseridos em um mercado onde seus corpos são seus principais instrumentos de trabalho.

“Eu procuro ligar os fatos à psicologia, por que eu sou psicóloga e sou fascinada por isso, além de querer trabalhar com adolescentes. As meninas mais novas perdem todas as referências que tinham antes de ser modelo. Saem da sua cidade, de perto da família e criam um outro tipo de referência voltado apenas para o corpo e a beleza como valores máximos.” (Daniela)

Um aparente movimento de democratização parece amenizar a rigidez de padrões estéticos. Atualmente, cada vez mais podemos ver imagens de diferentes tipos de beleza em revistas, jornais, editoriais de moda e anúncios.

“Os padrões estão bem mais flexíveis do que antigamente. Porque hoje em dia você pode fazer vídeo que não tem pré-requisito, pode ser mais baixinha, mais gordinha. Essa restrição física tem para passarela: tem altura mínima, o

135 quadril não pode ser muito largo. Eu nunca tive problema porque sou muito magra, sempre fui. Nunca precisei fazer regime. Se eu precisasse fazer regime não seria modelo de jeito nenhum. A questão física tem mais impacto na passarela, no resto não percebo. Tem muita menina baixinha que trabalha muito. Tem a questão do vídeo, da foto, você não precisa ter aquele padrão 90cm de quadril.” (Daniela)

A flexibilidade varia conforme a cidade, de acordo com os pesquisados. Rio de Janeiro e São Paulo são destacados como referências no mundo da moda.

“As mulheres têm uma dificuldade maior de se manter magra e o padrão de passarela não é um padrão muito normal. Aqui no Rio é bem mais flexível. Eu só trabalho no Rio, conheço pessoas que trabalham em São Paulo e o padrão é outro, tem que ser realmente magra. Aqui no Rio tem meninas que desfilam de biquíni que estão gordinhas para o padrão de passarela paulista.” (Tatiana)

Há uma cobrança, externa e interna, não só de um determinado corpo, mas também de um determinado estilo, que reúne roupas, cabelo e postura, dos modelos em geral. O público sempre espera algo diferente no visual de um modelo: pode ser o cabelo com corte moderno, ou a cor, ou o penteado, pode ser a roupa comprada em um brechó da Alemanha, a tatuagem, a sandália exclusiva do último desfile, ou o jeito de andar. O que importa é não ser convencional. Ao mesmo tempo em que os modelos têm a liberdade para ousar, eles não têm a liberdade de serem convencionais, porque o mercado rejeita essa postura.

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“Eu tenho o cabelo black power, mas às vezes cansa, quero usar de um jeito diferente, fazer um rabo-de-cavalo. Mas se for a um teste com ele mais baixo, as pessoas já me olham como se eu estivesse que estar com o cabelo cheio, armadão. Você não pode andar mais com qualquer roupa, qualquer cabelo, tem uma cobrança, sua imagem vira mais importante do que você mesmo.” (Daniela)

5.2.1 - Diferenças entre os corpos femininos e masculinos

A carreira de modelo é completamente diferente para homens e mulheres, com exceção do que diz respeito à exigência de determinada aparência e corpo. Mesmo assim, a beleza para o modelo homem parece mais relacionada a algo despojado e natural, e para as mulheres parece estar sempre ligada ao sacrifício e privação, como aparece no número considerável de casos de intervenções cirúrgicas, anorexia e bulimia nervosa entre elas.

“Eu faço o que eu gosto, eu malho, corro, jogo basquete, nado. O homem tem que ter um corpo atlético, eu não conheço homens que digam que não podem comer isso ou aquilo.... nem é por questão de estética não, é por saúde mesmo. Estou procurando não comer muita besteira. As meninas fumam para inibir a fome e ir emagrecendo. Por exemplo, tem um trabalho: um catálogo italiano que tem que estar muito magra, a mulher começa: não come nada, fuma pra caramba, e vai emagrecendo. A não ser que o cara esteja muito fora do padrão, gordo pra fazer uma foto, os homens

137 não fazem isso. Os caras que são muito fortes eles pedem pra dar uma emagrecida antes de fazer as fotos, senão não rola. Mas são uma exceção. As meninas fazem de tudo pra não comer. Pra não comerem e ficarem belas. Belas perante o mundo da moda.” (Luciano)

“Historicamente a mulher tem um problema maior com corpo, o homem não tem muita exigência. Mesmo fora do meio de moda não há tanta exigência. A mulher está sempre correndo atrás do corpo ideal, e no meio da moda a exigência é maior para as mulheres. Para homem é outro tipo de exigência, é diferente. Não precisa usar biquíni, não precisa estar tão sarado pra desfilar de sunga, e ainda por cima eles secam o abdômen muito mais rápido.”(Davi)

Um exemplo claro da diferença de significados entre beleza masculina e beleza feminina no campo da moda, é o tempo de duração da carreira de modelo. A carreira de um modelo masculino que começa aos 16, pode ir até os 36 em média. Já uma modelo feminino que começa aos 13, quando chega aos 26 pode ser considerada em fim de carreira. O argumento usado é de que as mulheres amadurecem, “tomam” corpo mais cedo e também envelhecem mais cedo, de uma maneira que o mundo da moda e da imagem não aceita mais como belo. Já o homem, considera-se, envelhece com um certo charme. No mundo da moda, beleza masculina dura mais, ou em termos de mercado, rende mais do que a beleza feminina.

“Mulher é mais cobrada. A carreira de modelo pra mulher dura muito menos do que para o homem. a do homem

138 pode ir até os 50 anos. O Paulo Zulu por exemplo, tem 42 anos. Ele tem o corpo mais sarado do que o meu, que tenho 24, tem a pele melhor do que a minha. Só come o que planta, vive disso. Mas a mulher é diferente, ela vive bem dentro da moda até os 28, 30 anos. É raro ver uma modelo que passa dos 30 anos que trabalhe bem, faça fotos, desfiles. Se ela for muito boa, vai até os 34, 35 anos. E algumas até fazem vídeo depois dos 30 anos, mas a maioria encerra de vez a carreira. A mulher é muito mais cobrada, tem que estar magra o tempo todo, pele boa e sempre lutar contra o tempo. Porque quanto mais velha for ficando, menores são as possibilidades de trabalho, enquanto o homem fica sossegado. A idade do homem pra trabalhar bem é dos 25 em diante. A melhor idade do modelo homem é dos 28 aos 30. Porque o homem consegue equilibrar maturidade e vivência com seu corpo ” (Carlos)

Essa valorização é facilmente perceptível através da análise dos valores dos cachês e do número de oportunidades de trabalhos para as modelos. Os cachês para as mulheres costumam ser maiores no caso de fotografias e campanhas publicitárias. Nos desfiles ambos se encaixam nos níveis da tabela de preços em voga. Além do que uma mulher, em uma posição média no mercado, pode trabalhar em torno de três dias na semana, enquanto que para os homens essa média muitas vezes não é alcançada nem pelos top models. Ou seja: as mulheres ganham bem mais, além de terem muito mais oportunidades de trabalho.

“Mulher tem muito mais espaço na moda. Eu não sei como homem consegue sobreviver. Há três meses atrás, não

139 tinha trabalho. Só que pra mulher aparece um desfile com cachê de R$ 300,00, pode fazer uma foto e ganhar R$ 500,00, R$ 150,00. Para os homens eu não percebo essa rotatividade, movimentação de um trabalho aqui, outro ali. O mercado tem que bombar para acontecer algo. A carreira do homem é muito mais longa, mas os cachês para as mulheres são muito maiores.” (Tatiana)

“Na verdade eu acho até plausível a mulher ganhar mais, porque ela é muito mais cobrada, é muito mais difícil. Experimenta um modelo homem colocar um salto alto pra tentar andar na passarela, as roupas que elas vestem são muito mais pesadas, a carga da bateria feminina de desfiles é muito maior, tem mulheres que fazem 40 desfiles por semana de moda. E acho que também tem outra coisa: o fato da mulher ganhar mais vem desde que a moda existe e, a carreira feminina termina muito mais rápido. O homem pode trabalhar até os 40 anos, o cara mais velho pode fazer catálogos, campanhas, mesmo sendo coroa. Agora mulher não, é muito difícil você ver uma modelo com 40 anos fazendo alguma coisa. Por isso, pelo tempo dela ser bem mais curto, eu acho certo ela ganhar mais” (Davi)

As mulheres precisam andar de salto alto, usar roupas às vezes complicadas e pesadas de carregar, e o mais importante: precisam manter pele e cabelos impecáveis, mesmo sendo submetidas a diversos produtos de maquiagem por dia, no caso de uma modelo que tenha um bom ritmo de trabalho, algo em torno de três trabalhos por semana. Fora as exigências em relação ao corpo, que mudam de acordo com o briefing do trabalho: uma foto requer um corpo mais

140 volumoso e uma postura mais sexy, e em um intervalo de três dias essa mesma modelo pode ter que estar extremamente magra para um ensaio fotográfico mais conceitual.

“Em desfiles, por exemplo, as mulheres deveriam ganhar um cachê bem mais alto. Para um desfile você precisa esticar o cabelo, no desfile seguinte enrolar, colocar spray. Uma maquiagem leve em um, pesada e outro. O sapato nunca é do seu tamanho, fica largo ou apertado, a roupa fica caindo... é um saco. Já o homem chega uma hora e meia antes do desfile, põe o cabelo pro alto, um pó na cara e vai e volta com um sapato baixinho, e volta para casa feliz com o mesmo cachê.” (Daniela)

“As mulheres tem que entrar magérrimas e com saltos altíssimos, e o estilista ainda pede pra dar aquela viradinha x, pra valorizar a roupa. Fora depilação que é a tortura maior”. (Tatiana)

Até os anos 80, talvez os sacrifícios não fossem tantos. Afinal, ser modelo estava diretamente relacionado a “ser gay” ou “ser prostituta”. Este era o mito recorrente no imaginário popular, que assim costumava classificar as profissões que lidavam com a exposição direta do corpo e da imagem, como as de modelo e ator. Hoje em dia, essas profissões são tidas como posições de prestígio na sociedade, e os modelos, homens e mulheres, são tomados como padrões de beleza. O mercado de moda ainda é predominantemente feminino: as mulheres estão mais inseridas do que os homens, ganham mais do que os homens, consomem mais do que os

141 homens. Com o surgimento do metrossexual28, do homem mais vaidoso, que gosta e consome moda, o mercado começou a valorizar um pouco mais o público masculino. Isso facilitou a entrada dos homens nas profissões ligadas à moda. A diferença de exposição entre homens e mulheres está mais ligada ao número de oportunidades do que a quantidade de homens no mercado. No site da agência 40 Graus, a principal do Rio de Janeiro, apresenta seu casting: são 68 mulheres (8 negras) e 61 homens (4 negros), uma diferença pequena. Mas ao se analisar os rostos conhecidos, a diferença vem à tona. É possível, para uma pessoa com conhecimento mínimo na área, reconhecer pelo menos 60% das mulheres, seja de algum anúncio ou revista. Já os homens, é necessário ser profissional da área para reconhecer com facilidade ao menos 40% deles.

“Acho que é um preconceito, mas é verdade. É difícil você ver um homem fazendo uma campanha de um creme, tanto hidratante, como creme de cabelo, shampoo. É muito mais bonito você ver uma mulher fazendo, acho muito mais aceitável. Apesar de a gente estar caminhando para uma era mais moderna, algumas coisas vão sempre ser iguais, você nunca vai ver um homem fazendo comercial de um Vasenol da vida, uma Nívea. Agora está mudando um pouco, o número de modelos homens está aumentando muito mais, antigamente você via dois, três negros trabalhando. Hoje em dia você consegue ver uns dez negros. Claro que uns trabalham mais, outros trabalham menos, isso em qualquer profissão. E o fato de ter mais modelos mulheres também é

28 Palavra surgida da junção de metropolitan e heterosexual, em 1994, em um artigo do jornalista inglês Mark Simpson, define o homem heterossexual morador das grandes metrópoles que começou a gastar grande parte do seu tempo e dos seus rendimentos com a aparência. Como conseqüência, o mercado assistiu ao surgimento de novas linhas de cosméticos, novos tratamentos de beleza e também um novo approach por parte das marcas de moda masculina.

142 pelo fato do sonho de toda menininha ser modelo ou apresentadora. Mas nem todo mundo trabalha. Você pode entrar numa agência e ter 50 modelos. Dessas, 15 trabalham.” (Davi)

“Acho que agora está até melhorando, mas o mundo da moda ainda é feminino, mas está mudando. Acho que daqui a dez anos, não que vai ficar igual mas já vejo uma mudança. Até no modo de se vestir, tem homens que já acompanham as tendências da moda. Acho que isso já é uma entrada do universo masculino na moda.” (Luciano)

“Originalmente a profissão de modelo deve ser feminina. A coisa da exposição do corpo sempre foi muito da mulher. O espaço é feminino.” (Daniela)

“A demanda de trabalho para mulher é maior. Ela investe, gasta mais dinheiro, é consumista. Não que o homem não goste. O homem está ficando mais vaidoso. Agora estão lançando linha de cabelos para homens: condicionador, shampoo. A mulher é que é bonita. Nada é tão bonito quanto a mulher. Fisicamente a mulher se preocupa muito mais com a vaidade, a beleza, o cheiro, a estética em geral. Em geral o mercado é mais voltado para as mulheres. Estatisticamente existem mais mulheres do que homens no mundo” (Davi)

5.2.2 – Diferenças entre os corpos negros e brancos

Em relação à exigência da juventude prolongada, no caso específico dos negros, existe ainda a crença de que eles envelhecem mais devagar, e isso poderia explicar o sucesso

143 de modelos como Patrícia de Jesus, Letícia Dias, Cris Vianna, Sacramento e Cláudio Negrão, que apesar de já terem passado dos 25 anos, ainda podem ser vistos em anúncios e campanhas nacionais e internacionais, e não parecem estar perto do fim da carreira. Um exemplo internacional é a top model Naomi Campbell, que aos 35 anos de idade e 20 de carreira, continua sendo muito requisitada para participar de desfiles e campanhas publicitárias de grandes marcas. O mercado de trabalho na moda é apontado como desigual para homens e mulheres, e essa diferença permanece entre homens negros e mulheres negras, estas geralmente são as últimas da pirâmide. Porém, segundo um dos nossos informantes:

“É engraçado porque, assim fora do mundo da moda, as mulheres pretas sofrem bem mais preconceitos do que os homens. É comum você, por exemplo, estar na porta da faculdade, passar uma preta bonita, e o cara falar:”eu pego aquela macaca ali”. E no mundo da moda é diferente, porque a mulher preta é bem mais valorizada do que o homem. Eu não sei porque isso ocorre, deve ser pelo fato de, fora do país, eles darem bastante crédito à mulher preta. A mulher é bem mais valorizada do que o homem na moda.” (Luciano)

“As mulheres negras são bem mais valorizadas que os negros na moda. No mercado fora da moda, a mulher negra sofre bem mais do que o homem. No mercado da moda, a mulher negra é bem menos discriminada que o homem negro. Pode não existir modelos negras tão famosas como as brancas. Mas as que são trabalham bastante, todos as querem. As modelos internacionais abriram as portas, como a Naomi

144 Campbell, Alek Wek que trabalham muito. Têm várias modelos negras que bombam lá fora. O Brasil é um país que compra idéias européias.” (Carlos)

Já no que diz respeito à aparente democratização dos padrões de beleza vigentes no mercado, os negros passaram a conquistar espaços no que diz respeito à veiculação de imagens relacionadas à moda, estética, bens e serviços em geral. Espaços ainda pequenos se comparados a outros padrões de beleza, mas que já demonstram um sinal de crescimento de um nicho de mercado. Mesmo com todo este avanço da questão racial no que diz respeito à veiculação de imagens positivas dos negros, que remetem diretamente ao significado de beleza, o racismo na moda ainda é uma realidade. O racismo existente no Brasil está diretamente relacionado às características físicas e estéticas do negro. Observações pejorativas relacionadas à cor da pele, à forma e à textura do cabelo, ao tamanho da boca e do nariz fazem parte do cotidiano dos negros no Brasil. A não-valorização de padrões de beleza diferentes do europeu é uma das características do campo da moda. Mesmo no Brasil onde a miscigenação e as misturas culturais costumam ser valorizadas, e até mesmo usadas como marcas registradas de sua peculiaridade criativa, a maioria dos modelos mais atuantes são loiros com os olhos e pele claros. O racismo, que na maioria das vezes ocorre de maneira velada, é também um dos fatores que funciona tanto para estimular como para desestimular os jovens negros. Alguns dizem nunca terem sofrido nenhum tipo de discriminação abertamente, mas nenhum deles nega as

145 manifestações veladas e a maior dificuldade em conseguir ser bem-sucedido no fashion.

“Diretamente, nunca fui discriminada no trabalho, graças a Deus não, mas indiretamente você sente. Na hora de fazer a maquiagem: vem fulana, vem sicrana, e eu já cheguei há um tempão tenho que perguntar: e eu não vou fazer, aí que me dão atenção e falam: senta aqui. Mas como eu sou muito tranqüila, acho que eu sei lidar, depois eu converso com a pessoa e quebro. Minha mãe às vezes costuma falar que eu dou tapa na cara os outros sem usar as mãos. A gente tem que usar as nossas táticas. Mas diretamente ainda não sofri preconceito, nem quero sofrer, mas acho que estou bem preparada pra isso. É até ruim falar bem preparada né? Mas acho que tem que estar não adianta, porque ainda tem. Não adianta querer esconder, mas eu creio que isso vá acabar.” (Tatiana)

Com todas estas dificuldades e pressões sofridas, por que vale a pena continuar a ser modelo negro? Por unanimidade, a resposta foi: pelo dinheiro. Pelo fato de ganhar uma soma em dinheiro que eles não conseguiriam, com algumas horas ou poucos dias de trabalho, em nenhuma outra profissão com tão baixo nível de exigência técnica. A relação com a quantidade de dinheiro que se ganha e que se pode ganhar tem a forma de sacrifícios para uns e vício para outros. Além disso, os negros ingressam na carreira de modelo mais velhos do que os brancos. Talvez por isso alguns informantes tenham relatado que observam e se assustam com a pouca idade com a qual as meninas se separam da família.

146 Suas experiências familiares mais fortes estão na maioria das vezes ligadas aos ensinamentos sobre a discriminação. A maioria dos adolescentes negros tem como parte de sua educação, e também da vivência prática, experiências diretamente relacionadas à cor da pele e outras características físicas, como o cabelo, tamanho da boca e do nariz. Segundo nossos informantes, a postura deles diante do racismo e das percepções sobre raça no Brasil foi construída a partir dos conselhos e relatos dos pais. A maioria dos modelos negros conta com o apoio dos pais para ingressar na carreira por diversas razões: a possibilidade de um emprego de alta remuneração para o filho(a) garantindo-lhe um futuro seguro economicamente e o reconhecimento da beleza do filho(a) por pessoas especializadas.

5.3 – Ser modelo negro Para os negros, o mercado estético tem um significado especial. Estar inserido no campo da beleza e do consumo, antes um objetivo que parecia inatingível, começa a ser realidade, e a imagem do negro já é considerada capaz de estimular o consumo de certos itens como produtos de beleza e roupas. Para um jovem negro, que normalmente está acostumado a lidar com experiências de discriminação diretamente ligadas a suas características estéticas, ser modelo causa um impacto positivo na auto-estima. Existem duas motivações importantes que fazem um jovem negro optar pela carreira de modelo: provar para si mesmo e para o mundo que é bonito e ganhar dinheiro e/ou status a partir disso. Essas duas motivações caminham juntas por toda a sua trajetória.

147 Ser modelo tem um forte significado simbólico: o capital estético do indivíduo foi reconhecido pelo mercado especializado, ou seja, ele é aceito no campo. A partir daí, o grau de aceitação e o seu valor como modelo estarão sujeitos a constantes negociações e dependerão das variações do mercado. Por isso, lidar com a rejeição também faz parte das regras básicas de sobrevivência no campo. Além da rejeição há uma outra sensação que também é comum aos negros, a sensação de que há sempre um limite para o sucesso, pelo menos no Brasil. Nesta última temporada primavera/verão – 2006/2007, a modelo baiana Rojane Fradique foi eleita o “corpo perfeito” da estação, corpo esguio e dentro dos padrões da moda, com um grau de flacidez quase nulo nas chamadas zonas críticas 29, o corpo dos sonhos de qualquer mulher. Porém, quase todas as marcas de moda praia já lançaram suas campanhas e materiais de divulgação, e Rojane, mesmo sendo o corpo perfeito não estampa nenhuma delas. A minha hipótese é de que os desfiles são uma forma de apresentação mais efêmera, as pessoas assistem naquele momento ao show, e depois podem assistir no máximo às reprises veiculadas nos programas especializados, ou seja, a aparição dos modelos negros nas passarelas pode “ser esquecida”. Já o material impresso estabelece um outro tipo de relação com os profissionais do campo e admiradores: eles costumam ser colecionáveis, ainda mais depois que as marcas passaram a investir cada vez mais na qualidade do material gráfico produzido. As imagens fotográficas são imortalizadas a partir do hábito dos profissionais do campo de colecionar referências visuais para futuros trabalhos. Na minha hipótese,

29 As zonas críticas são as pernas e quadris, porém desde que a imprensa brasileira apontou celulites no corpo da top model fazendo com que ela se recusasse a desfilar de biquíni novamente no país, este tipo de observação ficou restrito aos comentários informais dos freqüentadores das semanas de moda.

148 esta é uma das explicações para o fato de o aumento do número de modelos negros na passarela não ter sido acompanhado pelo número de participações nos materiais de divulgação. A idéia de poder ganhar dinheiro e status tendo a imagem atrelada a produtos do mercado fashion é muito sedutora. Mas nem todos os indivíduos que são aceitos no mercado como modelos chegam a esse patamar, apesar de todos começarem com este objetivo. Para os negros, no Brasil, este processo é ainda mais difícil, pois o mercado étnico ainda não é tão forte, além de ser majoritariamente destinado a classes mais baixas; e as marcas pertencentes ao mainstream não costumam colocar modelos negros em destaque nas suas campanhas e desfiles. No caso dos modelos negros a competição se dá de maneira muito específica, já que eles competem entre si por vagas nos principais castings, e a entrada de novos modelos no mercado significa a redução imediata do número de chances de ser chamado para um trabalho. Um caso interessante aconteceu entre dois dos nossos informantes: Luciano era o negro mais valorizado de uma agência, enquanto Carlos também tinha esse posto, só que em uma agência menor. Carlos acabou migrando para a mesma agência a partir de um convite de um dos bookers, o mesmo que cuidava de Luciano. A partir daí o número de trabalhos de Luciano diminuiu a ponto de fazê-lo quase desistir da profissão, enquanto para Carlos foi uma guinada positiva na carreira. Na opinião de um dos modelos negros pesquisados:

“Já que o mercado é racista e trata os pretos sendo todos iguais, sejam eles claros, escuros, com nagô, careca, olho

149 puxado, nariz fino, as grandes agências deveriam ter no seu casting apenas uma modelo negra e um modelo negro, só assim eles conseguiriam trabalhar num ritmo parecido com os brancos. Claro que muitos ficariam na pista, mas os melhores sobreviveriam e conseguiriam de verdade abrir o mercado para os outros.” (Roberto)

Entrar para o mercado, ser convidado a participar do casting de uma agência, é apenas a primeira etapa do desafio para aqueles cuja motivação é provar seu valor estético. A partir daí, de acordo com meus pesquisados, o caminho até a consagração no fashion, o que de fato prova sua aceitação pelo mercado, é uma questão de sorte, muito mais do que talento. Os futuros top models não costumam demorar muito tempo para “estourar”, e este tempo fica cada vez menor, eles fazem no máximo um ou dois anos de trabalhos de porte médio (campanhas nacionais, editoriais estrangeiros realizados no país, participação nas semanas de moda nacionais) antes de serem descobertos pelo mercado internacional. Entre os negros podemos citar quatro casos de sucesso, no Brasil e no exterior, com trabalhos relevantes na área fashion: Walter Rosa, Sacramento, Patrícia de Jesus e Ana Bela. Atualmente, a pernambucana , 17 anos, residente em Nova Iorque parece seguir o mesmo caminho, é apontada como uma das maiores promessas do mundo fashion internacional. Vale lembrar que a carreira dos negros costuma durar mais, já que demoram mais tempo para terem sinais de envelhecimento na pele, como pode ser visto nas top models Tyra Banks e Naomi Campbell. Tyra tem 32 anos, figurava na lista das modelos mais bem pagas do mundo, a terceira, atrás apenas de Gisele Bundchen e Heidi

150 Klum, e acaba de encerrar sua carreira como modelo – Tyra é apresentadora de um talk show e produtora do reality show “American Next Top Model”. Desfilou no último desfile da grife de lingerie Victoria´s Secrets, sendo a primeira negra a integrar o casting da grife, em Nova Iorque. Naomi tem 36 anos e continua sendo uma das modelos mais atuantes do mercado. A motivação subjetiva, que lida diretamente com a auto- estima, com as percepções sobre si mesmo e com as percepções dos outros sobre si, quando não é a principal alavanca para a carreira de modelo para um jovem negro, é um dos motivos que faz com que estes indivíduos continuem a carreira.

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Capítulo 6 – Estudo de Caso Afinal de contas, quem é o sexo frágil na moda?

Considero importante esclarecer que Luciano é meu namorado há cinco anos. Acompanho integralmente sua carreira de modelo, iniciada há quatro. Alguns dos casos relatados neste capítulo, não foram retirados de depoimentos formais, mas de momentos em que pude observar, de um lugar privilegiado, como as engrenagens da moda brasileira, e da sociedade em geral, funcionam para um modelo homem negro. Um dos aspectos que mais me chamou a atenção, e por isso dei esse título ao capítulo, são as diferenças às quais homens e mulheres negros estão submetidos. Levando em consideração a minha experiência profissional, acadêmica e pessoal, não imaginava que o lugar da mulher negra como o corpo mais discriminado e pior remunerado na cultura brasileira pudesse ser valorizado em algum setor do mercado de trabalho. Pré-conceito desfeito pelo resultado desta pesquisa, pude constatar que na profissão de modelo as mulheres negras são mais bem remuneradas do que os homens negros, em sua maioria, e se levarmos em conta a realidade norte-americana, podem até ganhar mais do que modelos brancas da mesma categoria. Além disso, as chances de ascensão são maiores, o trabalho é mais valorizado e as oportunidades de trabalho são mais numerosas. Mesmo levando em consideração o fato de que a carreira de um modelo homem pode durar dez anos a mais do que a carreira de uma modelo mulher.

152 As pressões físicas e psicológicas da carreira, excluindo os distúrbios alimentares, que são comprovadamente mais freqüentes nas modelos mulheres, trazem conseqüências emocionais para homens e mulheres. Escolhi Luciano e Daniela para ilustrarem uma comparação baseada no gênero e nas vivências de discriminação racial. Ambos têm 27 anos, nasceram e foram criados em subúrbios da Zona Norte do Rio de Janeiro, ele no Engenho de Dentro e ela na Penha. Possuem o ensino superior completo, ele em Marketing e ela em Psicologia. Para eles, a profissão de modelo é a principal fonte de renda. Começaram na carreira de modelo de maneira semelhante, e o primeiro contato foi com o mesmo booker:

“Bem, acho que modelo você não decide, você não escolhe o momento. Acho que você recebe um convite inesperado, e você acaba indo, e vai indo e quando você vê já tá dentro do mundo. Não é bem assim, tem pessoas que têm vontade, têm perseverança e não conseguem, é meio que a galera que te escolhe, não é você que escolhe o momento. Na verdade, eu tinha recebido um convite, era bem mais novo, tinha uns 18 anos, mas não dei muita importância, cheguei a fazer umas fotos, mas nem corri atrás de nada. Então um certo dia eu acompanhei um amigo meu até a agência Mega, ele me apresentou ao Sérgio Mattos, ele gostou de mim e falou: “Pô, faz umas fotos e volta aí”. Na época eu apresentei umas fotos que eu tava com cabelo curto ainda, aí eu deixei o cabelo crescer, ele falou: “Tira umas fotos com esse cabelo”. Levei, ele gostou de mim e eu tô nessa até hoje.” (Luciano)

153 “Eu tinha 15 anos mais ou menos, eu sempre fui magrela alta, só que assim, magrela, girafa, cabelinho duro e tal, mas aí com 15 anos, eu sei lá o que aconteceu comigo, que as pessoas começaram a falar “nossa tá tão bonita”, “você tem que ser modelo”. Mas nunca pensei em ser modelo. Daí com 16 anos eu estudava na CEFET, não fazia muita coisa, só estudava, tinha tempo livre, aí pensei: vou lá ver como é, passar em uma agência, de repente fazer umas fotos. Mas é porque as pessoas falavam tanto, que eu precisava ver se isso era verdade mesmo. Mas eu só fui realmente passar numa agência com 17 anos, que eu fui na Elite. Ai cheguei lá o Sérgio Mattos me atendeu, e disse que eu tinha um altura legal, tava com um corpo ótimo, mediu meu quadril, negra com 87cm de quadril é ótimo, porque geralmente negro tem o quadril largo.” (Daniela)

Sobre o período de adaptação à nova atividade:

“Eu andava com uma galera que já era modelo, então eu já tava mais ou menos ligado no que acontecia, então eu não fui totalmente cru. Claro que eu tive várias decepções, mas eu já fui mais ou menos preparado. Dos primeiros trabalhos que eu fiz, um que foi bem bacana, foi um editorial, que nem chegou a rolar foto. Mas só em ser selecionado foi bem bacana. Foi com a top model inglesa Naomi Campbell. Ali eu vi que eu tinha certo dom, certo jeito pra coisa. Ali eu vi que poderia fazer várias outras coisas.” (Luciano)

“Meu book ficou lá um tempão, nada acontecia. Até porque eu morava na Vila da Penha, a Elite era no Leblon, eu não andava muito pela Zona Sul, não ficava indo à agência,

154 aliás, eu nem sabia que precisava ir à agência. Depois de uns três meses eu desisti da Elite, tirei meu book de lá. Aí eu conheci uma menina, que hoje é apresentadora de TV, que me falou: tira seu book da Elite e vamos para uma agência menor, que de repente você vai trabalhar e depois você volta para uma agência grande. Fui para Estilo, começaram a pintar alguns trabalhos, mas eu odiava assim completamente! Detestava tudo, eu não gostava das pessoas, eu não gostava do trabalho, não gostava de ir à agência, eu não gostava das pessoas da agência, eu não gostava de nada! Eu fiquei nessa agência uns três meses, fiz umas coisas pequenas, eu nem sabia na época que estas coisas eram pequenas, fiz até figuração uma vez! Pagava super pouco, e eu até pensei ser modelo é isso? Nunca mais, um absurdo! Fiz uns catálogos, fiz umas coisas interessantes, e depois de um seis meses eu parei, já tinha definido que eu ia parar.” (Daniela)

Daniela teve um estímulo extra para essa primeira pausa em sua carreira:

“Me mandaram para um teste, com um cara que tá até preso hoje, ele era da moda, amigo de um monte de gente da moda, inclusive do Serginho, e ele fazia uns testes e assediava as meninas e acabou acontecendo comigo. Eu fui fazer o teste, pela Estilo, passei no primeiro teste, fui fazer o segundo teste. No primeiro dia tinha um monte de meninas e no outro dia eu tava sozinha. Aí eu perguntei: ué? Cadê as outras meninas? Aí ele falou: já vão chegar, já vão chegar.. e tal. E nessa o cara começou a me assediar eu fiquei em pânico, e como eu já tinha decidido que não tava muito afim, que já ia parar porque não era muito a minha praia, depois dessa....Cheguei em casa

155 super mal, não contei pra ninguém, mas meus pais perceberam que tinha acontecido alguma coisa. Na semana seguinte eu fui na agência, tirei meu book de lá, não contei nada, até porque ele me ameaçou, porque no teste você coloca seu nome, endereço na ficha, e na época eu era muito nova, não tinha noção,se fosse hoje....” (Daniela)

Esse tipo de situação, o assédio, é constante no mundo da moda, mas mesmo entre os (as) profissionais mais velhos e experientes, a denúncia não é a reação de praxe. Até porque, informalmente, ceder ao assédio de alguém “poderoso” no campo, é uma das formas de ascensão mais conhecidas entre os modelos. Depois de cinco anos, ela voltou para a carreira:

“Como eu tinha ficado seis meses nesse meio, eu conheci muita gente, então de vez em quando pintavam uns trabalhos, mas eu não era mais ligada a nenhuma agência. Eu tinha 18 anos já, tava mais descolada, sabia o que podia e não podia fazer. Foi época de pré-vestibular, e aí com 19 anos eu parei completamente. Entrei na faculdade, na UFF. Mas aí eu comecei a sentir falta de dinheiro, eu tava estudando, e pensei até em voltar, trabalhei em outras coisas, na Embratel um ano e meio. Quando eu tava prestes a sair da Embratel, meu pai morreu, foi assassinado em um assalto, aí eu fiquei muito mal. Péssima, foi um choque muito grande porque eu sempre fui muito ligada ao meu pai, e foi uma coisa da noite pro dia, a duas quadras da minha casa, foi horrível pra família inteira. Depois de uns seis meses, eu fiz umas fotos com um fotógrafo amigo meu, que eu conheci na época que eu tinha uns 17 anos, porque eu tava muito triste aí ele falou: vamos fazer

156 umas fotos, para você ver como você tá bonita e tal. E eu já tava com 22 anos. Essas fotos ficaram bem legais, eu tava com um visual bem diferente, com cabelo curto, radicalizei, cortei bem curtinho mesmo. E eu tava muito bem afastada desse mundo, ele levou o portifólio dele na Mega, uma das bookers gostou e ele começou a me convencer a voltar, aí eu voltei, com 23 anos, por conta dessa fase de instabilidade total que eu tava passando na minha vida. ” (Daniela)

É possível notar, já nestas primeiras falas, que a carreira de modelo viria a ocupar espaços diferentes na vida dos dois jovens. Mesmo sendo a principal fonte de renda para ambos, eles desenvolveram diferentes tipos de relação, no que diz respeito à aproximação e prioridade, com a profissão. Porém, as percepções acerca da beleza e da auto-estima foram parecidas:

“Não, nunca me achei bonito. Depois, uma foto bem produzida, todo mundo fica bonitinho....Hoje eu me aceito mais do que antigamente, eu não me aceitava não. Eu me achava feio, talvez até pela receptividade das mulheres, não sei. A receptividade não era boa não, na infância não foi tão boa não. “ (Luciano)

“Quando eu trabalhei mais nova, eu já senti isso da auto-estima, parece que mexeram com a minha personalidade, é aquela coisa, você faz um teste com 50 pessoas e você é a escolhida. Aí você pensa: tem alguma coisa de muito legal em mim, né? Muda alguma coisa, até a forma de se vestir, você pode ousar mais com tudo, com roupa, com cabelo, você se sente mais bonita mesmo. Ainda mais que na minha

157 adolescência eu tive aquela coisa de ser a magrela, a girafa e tal, e aí quando eu comecei a trabalhar todo mundo perguntava na rua: você é modelo, é tão bonita!” (Daniela)

A carreira de modelo, ao mesmo tempo em que aumenta a auto-estima, faz com que os participantes aprendam a lidar com a rejeição, principalmente os modelos negros, que lidam com uma relação candidato/vaga muito maior do que os modelos brancos:

“De 100 testes que eu faço, eu sou dispensado de uns 60, 70. Hoje em dia eu já aprendi a equilibrar isso, é até ruim aprender a ser descartado, mas no começo eu sofria mais, no começo eu ficava mais cabisbaixo, “por que não me escolheram?” me olhava no espelho, “será que eu tô no lugar certo? Será que se eu tivesse no marketing...” Às vezes bate essa dúvida. Por exemplo, eu vou fazer um teste daqui a pouco, tem 30 homens. Eles vão escolher 5 homens e os negros se batem entre eles, tem 10 negros na agência, eu vou me estapear com todo mundo pra pegar uma vaga. Então é cruel pra todo mundo, mas eu acho que para o modelo negro é mais cruel. No geral é uma carreira cruel, porque de tanto você ser descartado, mexe com seu ego.” (Luciano)

“Quando você é rejeitado em vários testes, como pra mim isso não é o sonho da minha vida, mas eu dependo financeiramente, tem um impacto. E essa coisa “pra que que eu sirvo?” é a pergunta. Às vezes você chega num teste e ai te dizem: linda, maravilhosa e você não pega o trabalho, aí você pergunta, o que ele quer então? Se eu sou linda e maravilhosa porque eu não peguei o trabalho? Essa coisa de aprender a ser

158 rejeitado é complicado. A gente precisa aprender mesmo, e vai aprendendo. Eu recebi muito não, aí eu percebi que eu não sirvo pra fazer vídeo. Porque eu ia pros testes aí diziam você é linda, corpo lindo, fotografia linda e o resultado... não peguei! Outro, outro, depois do 6º, eu falei quer saber? Não vou perder mais meu tempo fazendo teste de vídeo, se eu sou linda e maravilhosa e não pego, não é isso que eles querem. Aí eu conversei com uma menina e ela disse: você tá louca, quer desistir no 6º teste de vídeo? Não é assim não. Você vai fazer 50 não vai ser chamada pro call back, aí depois você começa a ser editada, e depois você começa a pegar os trabalhos. E realmente ela tinha razão, eu resolvi insistir mais um pouco e comecei a pegar os vídeos e ser editada para tudo. È complicado receber não, pra mim que é só dinheiro.” (Daniela)

Existem outras vantagens na carreira que vão além do aumento da auto-estima, e que estimulam os esforços para lidar com as constantes rejeições e esforços físicos: o status social e a remuneração.

“Você tem acesso a muitas coisas que com certeza você não teria se não fosse modelo. Eu freqüento lugares que eu jamais imaginaria que eu iria freqüentar. Financeiramente tem os prós e os contras. Os prós são que você pode ganhar uma bolada da noite pro dia, hoje você tá com zero reais na conta e amanhã você pode estar com R$15.000,00 na conta. E as desvantagens são que você não pode se programar, não dá pra fazer dívida, ainda mais quando sua carreira não tá concretizada. As pessoas que não conhecem o meio ficam meio deslumbradas, a família adora ver você nas revistas. No

159 começo a família fica com um pé atrás. É uma carreira sedutora, eu tenho acesso a vários lugares que se eu tivesse lá no marketing eu não teria. As festas que você freqüenta, os lugares que você vai, a grana que você ganha, hoje eu posso estar zerado, amanhã eu faço um teste, pego o trabalho e ganho R$ 15.000,00 em um dia. Vou lá gravo ou fotografo, fico cinco horas em um estúdio e daqui a 30 dias passo na agência pra receber minha grana. É sedutora pra caramba, é muito difícil largar Eu acho tranqüilo, porque eu gosto mesmo. Mas já teve casos que eu entrei no estúdio às 12:00 e saí às 3:00 pra fazer um editorial bacana pra caramba, mas tem horas que seu corpo grita, cansa pra caramba, mas é tranqüilo. “ (Luciano)

“Eu não pararia não. Eu me vejo trabalhando até 30, 35. Porque é um dinheiro que entra do nada na sua vida, é bom, não tem como dizer que não é. Eu hoje não ganharia o que eu ganho com moda em nenhum outro trabalho. Tem coisas boas em ser modelo negro, acho que tem mais coisas boas do que ruins. Essa coisa da auto-estima, estarem começando a ter seu espaço. O mercado descobriu uma parcela que compra e quer vender pros negros, é muito da mídia, não é a gente que tá fazendo nada, a gente entra aí. É muito importante, é muito legal, ver um cara negro num comercial de sabonete, de pasta de dente, que até algum tempo atrás era uma coisa que não acontecia de verdade. Eu gosto de ter esse perfil de beleza, até porque eu vejo as meninas, no meu trabalho até, se inspirarem, que olham e falam “nossa, ela é tão bonita” e querem copiar alguma coisa, meu cabelo. Sempre gostei de usar o cabelo enrolado, quando cismam de fazer escova no meu cabelo, eu penso como pode? É meu diferencial, e além

160 disso é tão bonito. Eu gosto de chegar em um lugar e ver que as meninas olharam e gostaram dele assim enrolado e cheio. Eu quero que os meninos e meninas negros percebam esse ideal de beleza, percebam que não é só a beleza branca. Acho que eles têm que ter em quem se inspirar. Ter a possibilidade do negro olhar o negro como belo, eu acho crucial.” (Daniela)

Um ponto importante na trajetória dos modelos negros, e curiosamente manifestado de maneira mais entusiasmada pelos homens, é a aura de utopia e idealismo que parece regê- los na busca por “vencer na carreira”. Se tornar um referencial de beleza e sucesso, que vai além da música e dos esportes, para os jovens negros é um dos objetivos principais de todos os modelos negros entrevistados. O posicionamento, e principalmente a vivência, de ambos sobre a discriminação no mundo da moda, e no cotidiano em geral, é bem diferente, apesar de terem em comum o olhar crítico sobre a situação racial no Brasil e a desigualdade de oportunidades de trabalho no campo da moda:

“Acho que o modelo negro que falar que nunca sofreu discriminação tá mentindo, ele tá mentindo muito. Porque a todo o momento a gente sofre. Cheguei num teste uma vez, a agência não tinha me bookado, tinha maior galera na agência: “pô, vamo lá no teste, vamo lá”, e eu fui. Cheguei lá no teste, o cara me olhou meio estranho, e falou: “Desculpe, mas você não é o perfil”, eu perguntei por que, ele respondeu: “Porque nós não pedimos negros”. O engraçado disso é que era um teste pro Guaraná Antártica. Guaraná é brasileiro né? Eu fiquei meio indignado. Fui embora meio indignado, mas fazer o que né? Bola pra frente, levantei a cabeça e tô aí até hoje.

161 Tem um caso do Fashion Rio, que eu encontrei meu booker de São Paulo, acho que não cabe falar a agência, e o meu booker do Rio de Janeiro sugeriu a ele que me levasse pra semana de moda de São Paulo, falou pra ele: “Ele manda bem nas passarelas, manda super bem. Leva ele lá pro Fashion Week”. Aí ele falou: “Pô, Serginho não vai rolar, porque ele não vai trabalhar em São Paulo. Serginho você já viu a cor dele? Ele é preto, não vai rolar”. Aquilo me doeu bastante e eu fiquei super feliz quando eu cheguei em São Paulo, pra fazer os desfiles da V.Rom e da Cavalera, e encontrei com ele. Ele ficou meio sem graça assim, nem falou comigo mas eu gostei bastante. Inacreditável, mas o cara era negão. Isso que eu fiquei mais indignado, o cara era preto, fazer isso ao invés de dar força pro modelo preto, abrir as portas pra gente, que é super difícil modelo preto fazer desfile, o cara não...o cara ofendeu alguém da raça dele, o cara era modelo quando era mais novo, o cara é negão, não entendo... o cara já távendido mesmo. A galera de moda é bem rígida mesmo, é bem cara de pau e fala na cara: “não, a gente não quer preto”. É horrível falar isso, mas você acaba se acostumando. Inacreditável, quando você vê, você fala: “Pô, o cara falou isso pra mim e eu podia ter dado uma porrada na cara dele, ali na hora”, eu tava no camarim do desfile, eu me segurei porque eu tava no desfile de uma grife bacana e você acaba se queimando, sempre quem tá errado é o modelo, esse cara nunca vai tá errado porque ele já tem nome no mercado, ele é de São Paulo, então a galera de São Paulo já é uma galera mais formal mais certa...... Uma parada que ofende bastante...... e sei lá...... é uma merda se acostumar com isso mesmo. E assim, até na agência, quando você fala: “por que eu não fui bookado pra aquele trabalho?”, você ouve:

162 “porque eles não queriam preto”. Quando você chega na agência, que você ouve isso você não quer nem voltar mas... sei lá, você vê que seu booker não tem culpa às vezes, mas às vezes tem, as grifes tem uma parcela de culpa também, de não quererem botar preto, principalmente homem, nas campanhas, nos editoriais, em todo veiculo relacionado à própria grife.” (Luciano)

“Essa história de discriminação na minha vida é muito complexa. Minha mãe é branca, do norte e meu pai era negro, baiano. Então lá em casa, não sei se pela mistura, eu até acho que não, acho que pela cabeça do meu pai mesmo, o que ele usou na nossa criação, nunca teve isso de você precisa ser inteligente porque é negra, tem que se arrumar porque é negro. Eu já vi muita gente educando crianças negras por esse viés, o negro para não ser discriminado tem que estar bem arrumado, e lá em casa nunca teve isso. Eu e meu marido a gente conversa muito sobre discriminação, porque nossa educação foi muito diferente, até pra educação dos filhos mesmo, a gente nem pensa em filhos agora, mas como a gente conversa sobre tudo...se a gente tivesse um filho como seria? Lá em casa nunca teve isso, eu tive questões pessoais com meu cabelo, mas lá em casa sempre teve um diálogo intenso: quer alisar cabelo? Por quê? Tanto que eu passei um tempo com cabelo liso, e o meu marido diz que o meu olhar pro preconceito é diferente porque eu não tenho atenção pra essas coisas, que talvez eu até tenha passado por situações de discriminação e não tenha percebido, porque não fazia parte da minha educação, da minha realidade. Isso faz parte da minha personalidade hoje. Eu até mudei um pouco depois que eu casei com o Adriano, porque ele falava umas coisas

163 que eu achava um absurdo. Mas depois eu fui percebendo, essa coisa de parar em blitz... Antes eu namorava um cara branco e nunca tinha sido parada em blitz, quando eu comecei a namorar o Adriano, nos quatro primeiros meses a gente foi parado três vezes. Aí ele me alertou: viu como as coisas não são o mundo mágico de oz que você tá pensando?” (Daniela)

“Assim, é claro que esse lance de revistas, de produtos, acho que se não tivesse esse tipo de veículo, muitos negros ficariam de fora de várias etapas, de vários processos da moda, mas acho que não seria a solução, somente isso. Acho que a galera do Brasil tem que começar... Não sei, é uma parada que vem de cima né? Que não depende só da gente. O poder tá concentrado na mão dos brancos e eles que decidem quando tem que colocar um negro quando não tem, a maioria dos estilistas que têm são brancos, acho que é difícil eles colocarem negros no desfile.” (Luciano)

“Eu não gosto dessa separação, acho mais maléfica do que benéfica, tipo aquela coisa da revista Raça. Tem seu lado bom, mas acho que gera mais separação. Acho que os espaços têm que ser construídos juntos, acho que usar essa coisa do negro pra criar um espaço diferenciado, eu acho ruim. Acho que tudo tem seu lado bom, e seu lado ruim. Mas acho que separar é muito complicado. Eu não vejo muita saída, mas eu não gostaria que caminhasse pra esse lado, modelos negros vestindo roupas de estilistas negros...O espaço do negro na moda é muito pequeno. Você não vê uma negra estourando, como toda hora estoura uma branca por aí. Só tem espaço pra uma negra. Vê os ícones, tem mil brancas e top reconhecida só a Naomi, que daqui a pouco vai fazer 40 anos! Além

164 disso,o Brasil vende o negro como sambista e jogador de futebol, não como beleza. Negro no Brasil não é sinônimo de beleza. Hoje no Brasil é só pelo politicamente correto, não pode deixar de ter, e colocam só por isso, não é pra vender beleza. Ou é politicamente correto, ou é pra mostrar todas as raças.” (Daniela)

Mesmo com tantas dificuldades, eles consideram o relacionamento entre os modelos negros, bom:

“Por incrível que pareça, apesar da gente ter que sair na porrada nos testes, tem uma vaga e são 50 negões, e pô a gente vai brigar por uma vaga e tem 10 brancos brigando por oito vagas, apesar de tudo isso a união é mantida, a galera preta é super unida pelo menos eu penso assim. Fico amarradão quando eu vejo um negão num desfile, fico amarradão quando eu vejo um negão num editorial, nem catálogo. Fico super feliz, se não for eu é um outro negão, eu tô amarradão porque aquele negão tá abrindo as portas pra mim, pro moleque que tá nascendo, que vai cair nesse mundo aí. E a relação com os modelos brancos também é super tranqüila, a galera meio que não acredita que isso acontece, se eu chego pra um camarada meu branco e falo: ”não vai rolar de ir”, ele fala: “por quê?” , “porque eu sou negão”, “cara, não acredito que isso acontece ainda”. Assim eles não acreditam, mas acho que eles não querem acreditar, porque todo mundo sabe que isso acontece. Até na casa deles, na mesa de jantar, de repente rola um comentário: “tinha que ser preto”, “preto é aquilo”, “preto fede”. É isso aí mesmo.” (Luciano)

165 “Eu acho que tem uma falsidade tremenda. Primeiro que quando eu cheguei nisso, eu tinha muito aquela coisa de chamar de amigo de abraçar, eu não sou muito de abraçar e beijar quem eu não conheço.As pessoas abraçam e beijam todo mundo, e chamam de amigo e ligam, falam da vida, pra alguém que você nem conhece. Mas depois eu fui entendendo, tem um pouco disso de ser expansivo, de ser descolado, de ser legal. Mas não tem como você ser absolutamente amigo de uma pessoa que está concorrendo com você por uma vaga num trabalho de R$ 10.000,00. No dia-a-dia, não tem problema nenhum, essa coisa de puxar tapete não acontece muito não. Em desfile, essa coisa de sapato acontece, se só tem um sapato de tal tamanho, é brabo, o sapato some mesmo. No dia-a-dia, todo mundo se fala, mas não vem me dizer que está todo mundo torcendo por todo mundo porque não é assim. Não é uma equipe unida, é um contra o outro. Eu não tenho amiga modelo. E a concorrência entre os negros é muito pior, porque é sempre uma vaga para nego, é sempre assim em desfile, tem 30 brancos e um negro. Mas eu acho que a falsidade entre os negros é um pouco menor, eu não sei te dizer porque, é uma coisa de sensação mesmo. Acho que é porque são pessoas que começaram na moda um pouco mais tarde, não começaram com 13, 14 anos, as meninas negras com quem eu convivo começaram um pouco mais tarde, então tem um pouco aquela coisa modelão, mas acho que a cabeça é diferente. As modelos brancas começam muito cedo e só vivem disso, daí eu acho que a cabeça se forma de um outro jeito.” (Daniela)

166 Apesar de se sentir completamente incomodada com as estratégias que dominam o campo da moda, Daniela se mostra uma profunda conhecedora das regras:

“Tudo me incomoda, eu não me sinto bem nos ambientes. Não dá para generalizar, eu conheci pessoas interessantes, tem poucas pessoas que eu conheci nesse meio que eu sei que valeram à pena. Mas o convívio com algumas pessoas fica complicado pra mim, porque muitas meninas, e meninos, vivem só disso, e têm um estilo de vida que é muito distante do meu. Essa coisa de ir às festas, estar sempre na agência, só ter amigos modelos, viajar pra fazer trabalho. Não sei eu me sinto muito distante desse mundo. E também eu sou mais velha, e eu pego trabalhos com meninas muito mais novas, eu não tenho muita paciência pra aquela menina com 15 anos, magra que nem um palito, que fica falando ai, eu tô gorda, minha barriga tá grande...Passa o dia inteiro sem comer. Me dá vontade de perguntar: tua mãe sabe disso? “Faz parte do mundinho modelo não comer, fazer regime, ou pelo menos mostrar pra todo mundo que não come, aquela história que modelo come uma folha de alface, mentira. Mas o mundo precisa acreditar nisso, e elas passam o dia inteiro bebendo refrigerante light, uma loucura. Mas além disso, é um mundo muito fútil, nada vai fazer você se destacar a não ser sua altura e sua beleza, isso me incomoda. É muito ego junto. Eu sei que deve ser alguma coisa além disso, porque, quando eu digo que eu não gosto de nada, é de nada mesmo. Eu sei que eu preciso, mas eu fico tensa do telefone tocar e eu ter que ir pra algum teste, fico tensa de saber que eu peguei um trabalho e na semana que vem eu vou ter que passar um dia inteiro com gente chata, fazendo uma coisa chata. Acho que o que

167 me incomoda também, é que eu dependo financeiramente disso, hoje, é o que me sustenta, faço bijuteria, porque é uma válvula de escape, dá algum retorno financeiro, porque como psicóloga, eu não ganho nada, estágio não-remunerado. Depender da moda é uma coisa muito complicada pra mim, hoje. Eu queria poder dizer: esse trabalho eu não tô afim de fazer, hoje não posso ir nesse teste. Porque agência tem essa coisa, se você disser muito não eles te põem na geladeira mesmo.Esse trâmite de ser modelo me incomoda muito, de ter que ir na agência, ser só sorrisos pra todo mundo, fingir que gosta de todo mundo, e eu não sei fazer isso. Tem que ser expansiva demais, eu sou mais tímida.Hoje em dia eu me preparo antes para um trabalho, me preparo pra ser bom ou ruim, aí chegando lá eu consigo achar pessoas legais e ficar lá até o final, viajar pelos espaços até eu poder voltar a ser quem eu sou. Porque quando eu tô na moda, eu sou uma pessoa que não sou eu de verdade, isso demanda um esforço. “ (Daniela)

Ainda em comum, ambos têm a pele clara, são considerados negros de traços finos, e concordam que, até hoje, isso facilitou bastante a circulação no campo:

“Acho que pra questão do fashion a cor da minha pele favorece. Várias pessoas já me disseram isso. Acho que, digamos assim, entre aspas o “negro tinta forte”, o caminho é mais difícil pra ele. Acho que tanto no fashion quanto no comercial. “ (Luciano)

“Eu acho que o meu perfil pra modelo negra é muito certinho, eu não tenho a pele muito escura. Aí eu vou concorrer com as modelos negras, e tem aquela coisa do

168 negro com os traços mais finos, é aí que eu entro. Eu sou alta, tenho gestos muito delicados, então a maioria das coisas que eu pego são aquelas coisas da fina, da elegante. Desfile eu pego muito porque eu sou realmente muito magra. Eu vendo padrãozinho de beleza. Eu não vendo a exótica. Quando eu entro em desfile, e só tem eu de negra, eu sei que eu entrei por causa dos meus traços finos, eu sei disso.” (Daniela)

Sobre uma das maiores metas almejadas na carreira, a vida profissional internacional, eles também divergem.

“As meninas que entram muito novas, são treinadas pra carreira internacional. Essa é uma realidade que eu não vivi. Eu gostaria porque eu adoro viajar, aprender outros idiomas, quando eu voltei com 23 anos, eu ainda teria a chance de viajar, mas eu tava estagiando, não era minha opção principal. Hoje em dia eu penso, que eu podia ter viajado, hoje eu sei que não rola mais, não tenho mais o perfil. Corpo e altura eu tenho, tenho cara de ser bem mais nova do que a minha idade, fisicamente eu não teria problema nenhum, mas hoje em dia, na minha vida não cabe mais largar tudo pra viajar como modelo. Eu mudei de agência agora e uma das diretoras perguntou se eu topo viajar, eu disse que eu só se for pra ficar três, seis meses, fazer um trabalho, passar um mês não, não vai me agregar em nada, não vou conseguir incorporar nada da cultura, falar o idioma. Como psicóloga, iria agregar muito.” (Daniela)

“Nos Estados Unidos e na Europa é onde se concentram os pólos de moda, o Brasil não é pólo de moda ainda. O Brasil importa bastante coisa, importa tudo né...você

169 vê que nas semanas de moda que tem por aí eles se baseiam praticamente na Europa pra lançar as coleções. Agora que o Brasil tá começando a valorizar o próprio país, você vê nas coleções Bahia, sertão, eles tão começando a valorizar agora. E soa bem pras pessoas lá de fora a cultura brasileira. Acho até que é uma jogada dos estilistas brasileiros. Ir lá fora também é um investimento pro homem, você ficar um tempo lá fora. Quando você volta a receptividade da galera quando você vem de fora é bem maior. Não precisa nem ir tão longe, quando eu tô em São Paulo, liga um cliente, me querendo e eles falam que eu tô em São Paulo, dá uma valorizada. Se a galera já age assim com São Paulo, imagina lá fora? Porque lá fora você faz muito material, a qualidade dos fotógrafos é boa, é um baita investimento. Você conhece vários fotógrafos bons, várias pessoas interessantes, quando você volta... Eu até queria fazer isso, até o final desse ano, mas não vai dar. Falta grana. Eu até tive essa grana, mas preferi comprar um carro. Preferi um carro do que viajar. Mas também, eu tinha outras pendências, minha vida aqui, largar tudo assim e ir pra fora... É como um negócio que você abre, tem um risco. Eu não garanto que eu vou chegar lá fora e bombar, virar o top model do momento, eu sei que não vai ser isso. Tem o risco de você ficar lá fora 3 meses e trabalhar bem, e tem o risco de não trabalhar nada e voltar com seu prejuízo, é complicado. Conheço homens, aqui no Brasil o cara batendo de porta em porta, tava numa agência jogado no canto, até que ele saiu da agência grande e foi pra uma pequena faço uns trabalhinhos e tudo bem. Essa agência pequena fez um contato com a Itália, gostaram do cara e mandaram ele ir pra lá ficar um tempo. Ele tá lá até hoje, tem uns 8 meses. Ele já foi pra Ásia, falei com ele essa semana ele tava em Hong Kong, ia pra Tailândia,

170 voltava pra Milão e depois voltava pra Hong Kong. Eu perguntei se ele tinha previsão de volta, ele disse que não quer voltar agora, tá fazendo vários trabalhos irados. E nesse tempo, ele já veio ao Brasil uma vez, e ele disse que o telefone dele não parava. Só ia pedir um favor à agência daqui: que eles contatassem uma agência de fora e avisassem que eu to indo, mandassem meu material pra ver o que eles achavam de mim. Eles podem fazer isso espontaneamente, mas não fazem. Eu já cheguei pro booker e falei, “será que rola uma viagem pra mim? Eu queria ir pra fora.” Já teve um cliente que veio da Itália que eu cheguei ao ponto de perguntar pra ele se tinha preto na agência dele, como eles eram. Ele disse que tinham dois, eu perguntei como eles eram, um era careca forte mais velho, e o outro magro mais novo, careca também. Eu perguntei se tinha alguém do meu perfil, ele disse não. Eu falei “então me leva”, aí ele disse que achava que eu não ia me dar bem Milão, talvez na França, Holanda. Acho que pela cor da pele mesmo, a raça, etnia. “30 (Luciano) Analisando os depoimentos de Daniela e Luciano, podemos afirmar que uma análise aprofundada do campo da moda pode trazer novas considerações sobre as discussões de gênero e também sobre o papel da produção estética na sociedade de consumo.

30 Luciano foi para a Europa em Novembro de 2006, e pretende voltar ao Brasil em Fevereiro de 2007.

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Capítulo 7 – Considerações Finais “Quem somos nós? Somos descendentes de escravos. Somos a prole de homens e mulheres dignos que foram arrancados de seus lares e acorrentados em navios como animais. Somos os herdeiros de um grande e explorado continente conhecido como África. Somos os herdeiros de um passado de humilhação, fogo e assassinato. Eu pessoalmente não me envergonho desse passado. Envergonho-me, sim, daqueles que se tornaram desumanos a ponto de torturar-nos desse modo”. Martin Luther King

Desde o começo do presente trabalho, acreditava, assim como Fry (2002) que as considerações estéticas são fundamentais para compreender as peculiaridades da situação racial no Brasil. Ainda mais se levarmos em consideração o momento atual da moda e da produção de imagens, incluindo publicidade, dramaturgia e cinema, no país. Um momento de expansão e diálogo intenso com o exterior, momento também, para usar um termo recorrente no campo da moda desde a última edição do São Paulo Fashion Week, de reconstruirmos nosso DNA. Neste momento, o que consideramos belo no Brasil já faz parte do que vira tendência mundial. Podemos afirmar que uma das principais raízes das ofensas raciais, desde o seu surgimento, está ligada à idéia da “feiúra”, do estranhamento, da não-aceitação da diferença estética. Seja a cor da pele, a textura do cabelo, os traços, não importa, apesar de todo o avanço da movimentação politicamente correta na produção de imagens, desde o final do século passado, a tolerância estética ainda não alcançou

172 níveis satisfatórios no Brasil. O espaço reservado aos negros nas novelas, comerciais, desfiles, editoriais e campanhas de divulgação de marcas de moda quando muito chega aos 10%. As iniciativas às quais tive acesso durante a pesquisa, e também nas quais participei como profissional de ambos campos, da moda e dos movimentos pelo fim do racismo, apresentam visíveis ruídos de comunicação. Às iniciativas do campo da moda falta o mínimo de conhecimento histórico, e de um sentimento que poderíamos classificar como falta de compromisso com os fatos sobre o desenrolar da situação racial no Brasil. Àquelas vindas dos movimentos negros falta infra-estrutura e conhecimento sobre o funcionamento prático do mercado. No começo deste trabalho o meu principal objetivo era trazer para a discussão acadêmica a questão da visibilidade dos negros na moda brasileira, a partir da inserção dos modelos na produção de imagens de moda voltadas para o consumidor final. Após um ano de pesquisas, observação e entrevistas, percebi que havia uma etapa anterior do processo a ser estimulada. O campo da produção de imagens, principalmente àquelas ligadas à moda e ao consumo, ainda é visto como supérfluo por grande parte da sociedade, inclusive o movimento negro. Portanto, antes de mais nada, é preciso mostrar a importância das relações e dos conceitos surgidos em torno deste novo posicionamento do mercado, que mesmo não contando com a unanimidade acadêmica a respeito das implicações éticas dos seu funcionamento, redefinem a sociedade atualmente. Podemos afirmar, que, no Brasil do século XXI, a própria definição do que é ser negro passa por considerações estéticas.

173 A relação dos negros com a moda é intensa, principalmente no chamado triângulo da diáspora: Londres, Nova York e Kingston, onde a população negra fala inglês e é reconhecida mundialmente pela sua criatividade, conseguindo assim difundir suas tendências ao redor do mundo. Tendências estas que têm no “black style” (Tulloch 2004), e na música, seus principais destaques. Manifestações culturais e moda sempre andaram juntas na construção de um estilo de vida próprio das populações negras ao redor do mundo, como por exemplo, a Soul Music e o Hip Hop nos Estados Unidos, o Reggae na Jamaica, o Grime na Inglaterra e o Samba no Brasil. E o que vale ressaltar é que estas manifestações e suas influências musicais e de moda, apesar de terem conquistado também a população branca e terem chegado ao mainstream, sobreviveram às tentativas de aculturação. A moda da diáspora pode ser entendida como um instrumento de reconstrução e reforço da identidade racial em momentos extremos, desde a luta pelos direitos civis até os novos movimentos sociais urbanos, como os protestos ocorridos nos subúrbios de Paris em 2005. Enquanto linguagem social que proporciona meios de auto-expressão, a moda cria oportunidades de diferenciação, pois ao ser idealizada fora dos padrões dominantes conserva o caráter espontâneo como objetivo de evocar orgulho, proteção, resistência e camuflagem. Ao mesmo tempo, além da diferenciação em relação aos padrões dominantes, fortalece o sentimento de orgulho, auto-estima e pertencimento, a própria materialização do “Black is Beautiful”. A moda apresenta a vantagem de ser uma linguagem de fácil difusão, e, por isso, comunicou a estética negra desde o nascimento do blues até a explosão do hip hop, significando

174 protesto, a partir da apropriação de elementos originais do estilo dominante e apresentação de novas releituras, até o resgate das tradições africanas. O estilo, a estética própria, fez surgir a consciência de que a representação positiva de seus corpos já era, por si só, um fator de resistência sócio - política. “Say it loud: black and proud!” A partir da década de 90, o black style começa a ser oficialmente reconhecido como uma das principais fontes de inspiração do que se tornaria um dos mais lucrativos setores do mercado de moda mundial, o segmento de streetwear. Assim como a música e as manifestações de resgate das tradições africanas, o streetwear passou a ser mais uma linguagem comum aos jovens negros de todo o mundo. Atualmente, de Tóquio a Cuba, uma grande parcela da população jovem tem entre seus ícones de estilo, alguma personalidade da cena hip hop americana. Este fenômeno explica a contratação do rapper Pharrel Williams31 como um dos consultores de estilo da maison de luxe francesa Louis Vuitton. O Brasil também faz parte do circuito e dialoga intensamente com estas influências, as principais marcas brasileiras como Ellus e Cavalera se inspiram na cultura negra urbana para criar seus novos looks. A americana Ecko Unltd chegou ao mercado nacional há aproximadamente dois anos com uma estratégia de marketing focada na classe média alta, e a Sean John, marca do rapper e empresário P.Diddy já planeja sua estréia no mercado nacional para Janeiro de 2007. Os rappers brasileiros Marcelo D2 e Ice Blue, do grupo

31 Pharrel também é proprietário da Bathing Ape, ou BAPE, grife de streetwear, em parceria com o rapper e empresário japonês, Nigo.

175 Racionais Mc´s, também mantêm suas marcas próprias de roupas e acessórios baseados na cultura street. 32 Apesar deste breve panorama mundial apontar para a valorização da cultura juvenil negra contemporânea, principalmente no que diz respeito à moda e ao estilo, mesmo nos Estados Unidos, o mercado de trabalho dos sonhos segundo nossos informantes, a imagem do negro ainda encontra resistências para ser reconhecida como bela. Ser modelo negro pode não estar relacionado diretamente à busca da auto-afirmação em relação à sua aparência física, mas está relacionado ao desejo de fazer parte de um campo elitista, onde os capitais físicos são os valores máximos e por si só geram o capital financeiro. As motivações variam, as histórias de vida e discriminação também, mas não fogem à regra das situações vividas pelos jovens negros ao redor do mundo. Um ano após ingressar no mestrado, em Julho de 2005, ouvi e vi pela primeira vez uma manifestação pública, direcionada aqueles que são os dominantes brancos, organizadores das semanas de moda e stylists, e clara reclamando da falta de modelos negros nos castings das semanas de moda no Brasil. Em um dos dias do Fashion Rio, após a notícia do cancelamento do desfile de lançamento da grife do rapper Marcelo D2, a Manifesto 33 1/3, que traria em seu casting apenas modelos negros, alguns se reuniram na entrada do MAM para protestar. Neste mesmo evento, meu namorado escutou de seu booker, na época, um ex-modelo negro: “Vai fazer o que lá em São Paulo? Não vai conseguir

32 A cultura street é o que podemos definir como um intercâmbio das linguagens do hip hop e seus quatro elementos (rap, dj, break e grafitti), o skate e o streetball.

176 nada lá, é preto.” Nesta mesma temporada, ele estreou no São Paulo Fashion Week, desfilando para V.Rom e Cavalera. Em Julho de 2006, na etapa de conclusão da pesquisa, fui novamente para São Paulo, desta vez para observar o São Paulo Fashion Week cujo tema remetia à África. Fui à coletiva de imprensa, observei todos os dias do evento e participei assiduamente da rotina dos modelos negros do Rio de Janeiro. As coisas mudaram, não a ponto de reparar a desigualdade de oportunidades para os modelos negros, desta vez eles representavam em torno de 15% do número total de modelos, ao invés dos menos de 10% usuais. Mas também não podemos negar que é um grande avanço a maior semana de moda da América Latina dedicar uma de suas edições à cultura africana e sua relação com a identidade do povo brasileiro. Sinceramente, não sei até hoje o que estava em jogo, pois acredito que mudanças de mentalidade significativas ainda vão levar muito tempo para acontecerem, se levarmos em consideração a série de comentários racistas e situações constrangedoras que presenciei. Mas foi válido, pois a imprensa levantou questões acerca da participação dos modelos negros nas semanas de moda no país e também na produção de imagens de moda em geral. Mas, para mim, uma coisa muito importante aconteceu nesta última temporada de moda, e não começou na edição temática do São Paulo Fashion Week, mas já na edição do Fashion Rio: foi a primeira vez que eu ouvi vários profissionais da imprensa especializada se referirem aos modelos negros, homens e mulheres, como “bonitos”. Não eram mais apenas estilosos, corpos esculturais, peles inacreditavelmente lisas, cabelos exóticos, eram reconhecidos como indivíduos belos.

177 A realidade é que apesar de todas os avanços conseguidos no que diz respeito à democratização dos padrões de beleza na produção de imagens, o mercado ainda se mostra conservador. Hoje, no Brasil, ao olharmos para os espaços de veiculação de imagens de moda, ou voltadas para estímulo ao consumo, que tenha um modelo negro como protagonista, ainda não é possível identificar rapidamente o motivo do destaque. Afinal, ele pode se encaixar em uma destas quatro opções: pode ser uma peça publicitária, ou um enredo de dramaturgia, com um tom politicamente correto, que requer representantes de todas as etnias; pode ser a aposta do mercado no aumento do poder de consumo dos negros e no crescimento da sua participação nas classes A e B da sociedade; pode ser parte de uma proposta de linguagem visual inovadora, que pretende se diferenciar do convencional causando espanto ou reflexão; ou o modelo negro pode estar simplesmente ocupando o lugar, que poderia perfeitamente ser ocupado por um modelo branco, de uma pessoa bonita, independente da cor da pele. Apesar de a quarta opção ser o cerne da carreira de modelo, para os negros ela, na maioria das vezes, não é o motivo real da sua participação no trabalho.

178

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REVISTAS e JORNAIS America Magazine Clear Magazine Complex Magazine Drops Magazine Elle America Elle Brasil Elle Espanha Elle Girl Elle Portugal Elle UK Estadão ffwMAG! Flaunt Folha de São Paulo GQ America GQ Portugal GQ UK ID Jalouse

184 Jornal do Brasil L´Uomo Vogue metro.pop Nylon O Globo Pop Quem Revista Oi Simples Sport & Street The Source Trace Vibe Vibe Vixen Vogue América Vogue Brasil Vogue Espanha Vogue Portugal Vogue UK XXL Wax Poetics Zink

SITES www.chic.com.br www.erikapalomino.com.br www.glamurama.com.br www.men.style.com www.mundonegro.com.br www.portalafro.com.br

185 www.oglobo.com.br www.saopaulofashionweek.com.br www.style.com www.xxlmag.com

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ANEXO 1

GLOSSÁRIO

Amni Hot Spot – Evento realizado pelo organizador do São Paulo Fashion Week, ocorre em São Paulo, com exceção de uma única edição realizada em Belo Horizonte, é um evento de novos talentos patrocinados pela Rhodia, fabricante de tecidos e detentora da marca Amni, um tecido sintético que pretende ser sinônimo de modernidade e inovação, assim como os novos talentos. Usar as roupas das grifes que desfilam neste evento é um importante capital simbólico para todos os que fazem parte do campo da moda, inclusive modelos e principalmente stylists.

Book - Em forma de um grande álbum de fotografias, é o local onde os modelos arquivam suas fotografias de apresentação, e cópias dos seus trabalhos mais importantes, como capas de revista e anúncios publicitários. A primeira providência de aspirante a modelo é fazer um book, procurar um fotógrafo e fazer fotografias que consigam demonstrar toda sua versatilidade. O material deve ser bom o suficiente para ser o principal instrumento de “venda” do modelo. Também chamado de portifólio do modelo.

Booker – Pessoa que administra a carreira do modelo. Responsável por cuidar da carreira, desde o contato com o cliente, a negociação do cachê, até garantir que o modelo vai estar no local do trabalho no horário marcado. É o intermediário entre o cliente e o modelo. Personagem

187 importante no desenvolvimento da carreira do modelo, seus contatos podem garantir bons trabalhos. É geralmente quem “forma” e apresenta ao mercado os top models. Tem mais influências na área fashion do que na área publicitária/comercial.

Break – Um dos quatro elementos do hip hop, representa a dança, marcada pelos movimentos corporais que ora lembram acrobacias, ora parecem robóticos, sempre marcados pelo ritmo da batida da música. Os agasalhos esportivos de helanca da marca Adidas usados pelos b.boys e b.girls (dançarinos de break) foram algumas das primeiras influências do hip hop style no streetwear mundial.

Brechó – Pequenas lojas que vendem roupas, acessórios e objetos de decoração de segunda mão. São consideradas a Meca dos mais modernos e descolados, desde que usar o estilo vintage (vestir roupas com cara de antigas usadas de acordo com as tendências atuais, ou misturadas com peças atuais) também se firmou como capital simbólico, mundialmente, na moda. Os brechós mais conceituados são os de Londres e Nova Iorque.

Briefing – Resumo do que será o trabalho. O cliente liga para a agência e explica o roteiro e dá as características físicas dos personagens que imagina para o filme publicitário. No caso de desfiles, o estilista e o stylist passam para a agência as inspirações da coleção e pedem sugestões de modelos que se encaixem naquele perfil.

188 Cachê – Remuneração que o modelo recebe pelo trabalho. Estão divididos em 4 tipos: Special (a negociar, em geral top models), A (R$ 1.000,00), B (R$ 600,00) e C (R$ 400,00), e variam de acordo com a colocação do modelo no mercado. O percentual da agência (30%) é retirado do cachê total do modelo, que fica com 70% do valor fechado com o cliente. Obs: valores de 20 de janeiro de 2006.

Casting – quadro de modelos da agência, elenco de um comercial, fotografia ou desfile. Às vezes os testes para campanhas publicitárias em vídeo são feitos diretamente com um produtor de elenco e não com stylists ou figurinistas.

Composite – Portifólio de apresentação em uma folha. Cartão frente e verso, com fotografia e nome do modelo de capa e verso contendo no máximo mais três outras fotos de trabalhos importantes e as medidas do modelo: tamanho do tórax, altura, tamanho de sapato e manequim para calça e camisa. No caso das modelos, acrescentam-se medidas de busto e quadril.

DJ – um dos elementos do hip hop, é a abreviação pra Disc Jóquei, é aquele(a) que comanda os toca-discos marcando a rima dos mc´s ou animando as festas de rap.

Graffiti – elemento do hip hop que, segundo os integrantes do movimento corresponde às artes plásticas. Hoje em dia, já está incorporado às paisagens urbanas, muros pintados por jovens artistas já fazem parte do cenário das grandes cidades ao redor do mundo, e sua linguagem orgânica influencia as

189 principais correntes de sucesso do design gráfico internacional.

New Faces – Quando o modelo começa jovem na profissão, até os 20 anos em média, ele é apresentado ao mercado como new face, uma nova cara, uma promessa. Geralmente são meninos e meninas que têm o perfil do mercado – atualmente isto significa ter a pele e olhos claros, ser bem magro e ter traços finos – ou então tem um rosto forte o suficiente para serem caracterizados como exóticos e emplacarem suas carreiras. É importante ter este perfil, seja ele negro, ruivo, europeu, tipicamente brasileiro, chique, definido logo no início, enquanto se é uma new face. Este é o momento mais importante do trabalho do book, até porque descobrir novas promessas para o mercado e fazê-las vingar, traz a ele prestígio no campo. Os bons bookers são conhecidos antes de tudo como ótimos olheiros, e pesquisam novos rostos em todos os lugares. Ser uma new face bem sucedida significa meio caminho para ser top model. Existem concursos anuais dedicados à descoberta de novos talentos, o que acelera ainda mais a velocidade com que se movimenta o campo, o tempo para se estabelecer no mercado é muito curto, geralmente uma new face tem em média duas temporadas para firmar seu nome.

Pacote – técnica muito usada pelos bookers, principalmente nas semanas de moda. O booker oferece vários modelos para fazerem parte do casting do desfile e com isso oferecem um desconto no preço dos cachês, algo similar a uma promoção. Às vezes alguns modelos do pacote costumam ter seu cachê em forma de permuta: um valor x em roupas da grife. É um

190 bom negócio porque garante a visibilidade dos modelos no fashion, e é a tática mais usada para lançar new faces.

Rap - Rythm and Poetry, ritmo e poesia. Atualmente, nos países desenvolvidos, a música é o elemento mais lucrativo do hip hop , juntando-se à moda. Rappers figuram nas listas de celebridades mundiais mais bem pagas e que mais influenciam estilos de vida de jovens do mundo inteiro.

Rio Moda Hype – Evento destinado a descobrir novos talentos da cena de estilistas cariocas, é organizado pelas mesmas pessoas que produzem a Babilônia Feira Hype e conta com o patrocínio da Oi, empresa de telefonia celular. O evento faz parte da agenda oficial do Fashion Rio e, para participar, as grifes precisam passar por uma banca formada pelos principais formadores de opinião da moda carioca.

Stylists – São os profissionais que atuam no fashion e coordenam a montagem dos looks, ou seja, colocam as roupas de maneira que elas valorizem o modelo e também sejam valorizadas. Podem exercer toda sua criatividade, desde que aliada ao pensamento do estilista, editor da revista, fotógrafo ou diretor do desfile, e dependendo de qual modelo, também é essencial que este se sinta à vontade. No fashion, a idéia geral é exagerar no conceito, para poder ser absorvido pelo público especializado. Por isso, costuma-se dizer que os desfiles atualmente parecem performances teatrais ou shows propriamente ditos. No comercial, estes profissionais são chamados figurinistas e não têm tanta liberdade criativa, geralmente cumprem os briefings, muito fechados, dos diretores.

191

Teste vídeo/passarela – para um teste de vídeo, geralmente se tem no mínimo duas etapas presenciais: o teste geral - onde vão todos os convocados e o call back – onde vão apenas os selecionados no teste geral. Existem diferentes tipos de teste: quando a agência mesmo manda o material, book e composite, e a partir daí o cliente escolhe os participantes da segunda etapa; tem o teste presencial, onde os modelos levam seu material e fazem geralmente uma fotografia polaroid para serem catalogados pelo cliente. No caso do vídeo eles gravam uma pequena fala; já para desfiles, geralmente eles escolhem por composite e depois convocam para provar alguma das peças da coleção e simular uma caminhada na passarela.

Trabalhar no Fashion – Existe uma hierarquia no campo dos modelos, onde trabalhar mais no fashion do que no comercial denota sua posição no campo. A posição mais alta é ocupada por aqueles que só trabalham no fashion e conseguem ganhar dinheiro e construir uma carreira sólida apenas trabalhando nesse segmento. O segmento fashion é composto apenas por trabalhos diretamente ligados a grifes de moda – roupas, calçados, cosméticos e perfumes – e editoriais para revistas, e muito raramente inclui trabalhos em vídeo. São desfiles, catálogos, campanhas veiculadas em revistas de moda e editoriais. Já o comercial, são as campanhas publicitárias que vendem todos os tipos de produto para todos os tipos de público, mesmo assim ainda há uma hierarquia, há os modelos que fazem comerciais apenas de produtos populares e outros, se encaixam em perfis mais sofisticados.

192 ANEXO 2

Desfile de lançamento da Manifesto 33 1/3

Dia 3 de agosto de 2005, aconteceu o desfile de lançamento da grife masculina Manifesto 33 1/3, do rapper Marcelo D2, na Fundição Progresso, Lapa- eterno berço da boemia e ponto de encontro oficial do hip hop no Rio de Janeiro. O clima era de expectativa, mas com certeza o frisson em torno do evento era bem menor do que o causado na época em que o cantor anunciou em cima da hora o cancelamento de sua estréia na última edição do Fashion Rio. Na época, grande parte da divulgação da Semana de moda girava em torno do encerramento por conta da grife de D2, e todos os principais veículos de moda deram matérias de destaque para o lançamento da grife. Inclusive, essa era uma das maiores preocupações de Marcelo: se os profissionais da moda reagiriam com uma crítica negativa, ou mesmo nem compareceriam ao desfile, por conta do episódio do cancelamento. O segundo andar da Fundição Progresso foi transformado em filial de um boteco com direito a um caprichado serviço de buffet do tradicional Bar Jobi, com todos os petiscos oficiais da boemia carioca, e roda de samba comandada por Walter Alfaiate – que também criou as peças da linha alfaiataria da coleção desfilada. Os convidados sentaram em mesas de bar que ocupavam o contorno da passarela. Com o patrocínio da empresa de telefonia Tim, da qual D2 é garoto-propaganda o evento para 500 convidados teve início às 21h.

193 Eu fui acompanhada da minha amiga Michelle – amiga de longa data também ligada ao movimento hip hop no Rio de Janeiro; e uma amiga dela, Isabela, fã do Marcelo D2. As duas são alunas do curso de jornalismo de moda do SENAC - curso que eu terminei esse ano – e estavam lá fazendo a cobertura para o jornal do curso. Já devidamente acomodadas em uma das mesinhas de bar, bem na boca de cena, de onde sairiam os modelos, a grande maioria nossos amigos e conhecidos (meus, da Michelle e da Ainá – que estava trabalhando na equipe de beauty do desfile, era responsável por trançar os cabelos) de longa data, ouvindo as bolas de basket quicarem no backstage, a gente entitulou o evento de “amo muito tudo isso”. O clima de boteco, a roda de samba, a galera do basket, muitos amigos, hip hop e a expectativa de um desfile só de pretos, fez daquele um momento único para quem gosta, estuda ou está envolvido com a situação atual da juventude negra no país: Marcelo D2 é um dos negros que mais se encontram em evidência no país, sua arte é o hip hop: movimento juvenil de origem negra mais em evidência no país atualmente, o samba, em particular o partido alto, é um dos mais tradicionais movimentos musicais de origem negra que está sendo redescoberto pela juventude carioca, e 63 homens pretos estariam desfilando uma coleção completa. Os jornalistas de moda não estavam todos os presentes, e a repercussão posterior na imprensa também não foi das melhores, na verdade, não foi como teria sido se o desfile tivesse ocorrido no Fashion Rio. Lula Rodrigues, Márcia Dsitzer, colaboradores da coluna “Gente” (JB) e “Gente Boa” (O Globo), eram os principais nomes. Érika

194 Palomino atuou como uma das organizadoras do evento, era mais uma dos amigos “a dar uma força”. Os modelos que participaram do Hutúz estavam lá: Iran, Luciano, Carlos, Túlio. Só faltava o Maurício, que foi cortado porque chegou na prova de roupa – quando os modelos experimentam as roupas que vão usar no desfile para a equipe ver se a peça precisa de ajuste, e o estilista aprova a composição feita pelo stylist – que aconteceu no domingo anterior, com três horas e meia de atraso e com uma cicatriz de um soco que tinha levado na boca. Ele é conhecido pela indisciplina, uma pena porque é um dos modelos mais bonitos do Brasil, e ao que parece, o pessoal vem desistindo dele. Dos modelos cariocas que desfilaram no Fashion Rio, também só faltou o Maurício. Davi, Luciano e Roberto estavam lá. Os veteranos Patrícia de Jesus (top model negra das mais bem sucedidas do Brasil, fez inúmeras campanhas internacionais e nacionais, tais como Sundown e Mc Donald´s e continua na ativa) e Walter Rosa. Ela acompanhando o namorado Dj Primo, dj de Marcelo D2 e ele trabalhando como videomaker, registrando os bastidores do desfile. Em uma pausa antes do início do desfile, consegui um pequeno depoimento do Walter. “- Walter, o que você está achando dessa história do desfile ser só com modelos negros, você que é um dos precursores aqui no Brasil? - Eu acho que é o reconhecimento da beleza negra dentro de um universo que ela é muito presente que é o hip hop, que é o streetwear. Eu acho que o Marcelo está fazendo um acontecimento social muito grande. É muito bonito isso porque a beleza negra depois de ter sido mais de 300 anos escravizada tem muito menos tempo de beleza livre do que

195 beleza escrava, então naturalmente, agora que a gente está começando a ser visto como ser social, o ser negro ou o ser de baixa renda. Acho que aos poucos, por mais que as coisas digam que não, pela cultura, pela música, a cultura negra vem tomando seu espaço e tornando a sociedade uma coisa mais igualitária. Porque o grande preconceito hoje em dia, é o preconceito social, não é mais o preconceito de cor eu acho. Se você tem dinheiro, você é bem aceito. - E como é que você acha que a moda está cumprindo esse papel de ajudar no fim do preconceito racial, como é que você vê a visibilidade dos modelos negros no Brasil, nas semanas de moda... como você enxerga isso? - Quando houve o grande boom, já houve alguns booms, quando houve o grande boom da beleza negra isso foi explorado como uma coisa exótica. Eu não acho que deve ser uma coisa exótica colocada de vez em quando, acho que a beleza negra, ela simplesmente tem que ser explorada como a beleza branca ou a beleza oriental, a beleza africana do norte da África, os árabes e tudo mais. Eu acho que, não sei, acho que beleza é uma coisa que tinha que ser simplesmente beleza. Não beleza negra ou beleza branca. Um dia vai acontecer dessa forma. Mas isso vai demorar uns 200 anos mais ou menos. Porque socialmente essas coisas levam muito tempo. Você pode impor uma lei, mas a sociedade precisa de movimentos lentos”. Quero que ele seja um dos meus entrevistados. As celebridades, porque nenhum evento de moda parece sobreviver sem elas, eram variadas: Felipe Dylon, Dado Dolabella, Diana Bouth, Toni Garrido, o compositor Luiz Carlos da Vila e outros sambistas da velha guarda.

196 Eram quase 22:20 horas e nem sinal do começo do desfile. As pessoas ficavam badalando, ou na gíria da moda “dando pinta”, bebendo, beliscando os petiscos e curtindo a trilha sonora dos maiores sucessos do partido alto, tais como “O show tem que continuar” e “Insensato Destino”. Por volta de 23:00 horas, começou o desfile. Abriram- se as cortinas e no fundo do segundo andar da Fundição Progresso, surgiu um vagão de metrô todo grafitado pelo Flip – grafiteiro de São Paulo também responsável pelas estampas da coleção – e por outros nomes do grafite, como o Toz da FleshBeckCrew (RJ). O primeiro modelo a sair de dentro do vagão foi o Jefinho, que também é b.boy e saiu fazendo uma coreografia que empolgou a galera. Depois deles seguiram-se os outros 62. Nem todos, aliás, a grande maioria, eram modelos. Eram componentes da LUB (Liga urbana de Basket), um grupo de jogadores que faz apresentações no estilo dos globetrotters americanos, e participa de campeonatos de streetball pelo país; b.boys; mc´s, rapazes negros lindos que foram chamados para participar do casting, e uma minoria de modelos profissionais: Luciano, Davi, Roberto, Iran, Anderson, Fabiano, Carlos, Pablo, Jefinho, Du Vale, Túlio, Fábio, Diego, Roverci, Catito, Alessandro, Alexandre. Mesmo os inexperientes nas passarelas, não mostraram grandes embaraços. Pareciam estar todos à vontade e, pelo que pude perceber, com a auto-estima lá em cima. A coleção era completamente inspirada nas grandes marcas de hip hop americanas, como Roca Wear e Phat Farm. Inspirações no basket, futebol americano, camuflado, modelagens extra largas, cores vibrantes, e a linha suits, com alfaiataria adaptada para os rappers. O stylist paulista

197 Mauricio Ianes, também seguiu a cartilha e fez uma edição acertada para os looks. Moletons com ternos, muitos acessórios e destaque para os cabelos, que apareciam na forma de dreadlocks, tranças nagôs e na versão black power. A apresentação apesar de descontraída, a galera vibrava a cada conhecido que adentrava a passarela, e com clima de celebração, foi cansativa do ponto de vista imparcial para analisar um desfile. Os looks eram muito parecidos e o desfile foi longo. Mas na minha opinião valeu o mérito de provar que o mercado hip hop brasileiro pode produzir peças de alta qualidade, semelhantes às americanas, com um toque do charme carioca. No final, o clima era de comemoração. O desfile tinha dado certo e para comemorar nada melhor do que dj´s tocando velhos e novos hits do hip hop. Entre os modelos a sensação era de satisfação pelo “evento entre amigos” e um pingo de frustração pelo que podia ter sido o maior evento de suas carreiras caso o desfile tivesse acontecido durante o evento oficial de moda no Rio de Janeiro. Houve uma polêmica: apenas os modelos profissionais receberam cachês para desfilar, os outros convidados receberam apenas um par de tênis Nike. A marca esportiva apoiou o desfile cedendo os pares de tênis desfilados e alguns acessórios de linhas mais antigas. O impacto causado não foi dos maiores, a repercussão rendeu apenas algumas notas nos principais jornais do estado, e cobertura dos sites especializados com um número reduzido de fotos.

198 ANEXO 3

Por dentro de um editorial “gringo” As revistas de moda masculina tem um diferencial marcante em relação às revistas femininas, precisam trazer apelos que vão além dos produtos de beleza e de sugestões de vestuário para alcançar um público representativo. Para isso, seções dedicadas a novidades tecnológicas, carros e mulheres com pouca ou nenhuma roupa são fundamentais. A Revista GQ é a principal revista de moda masculina, editada em versões nacionais na maioria dos países da Europa e nos Estados Unidos- editada pela Condé Nast, a editora de revistas de moda mais importante do mundo - responsável pelas revistas Vogue, W, Glamour, Vanity Fair, GQ e Cargo-, com filiais em alguns países da Europa, como Alemanha, França, Itália e Inglaterra. Dia 12 de Dezembro de 2005 fui fazer uma entrevista para trabalhar como assistente de produção para uma série de editoriais da Revista GQ Germany. O escritório da produtora executiva – pessoas ou empresas que são contatadas pelas revistas para organizarem todos os detalhes da produção local, administrar o orçamento na moeda local, marcar o casting- era em Ipanema e quando eu cheguei ainda estava acontecendo o casting porque alguns modelos tinham se atrasado por conta da chuva. Homens e mulheres de diferentes perfis ainda faziam polaroids em busca de uma vaga no editorial. Logo depois do casting, eu entrei no escritório para ser apresentada ao fotógrafo alemão residente em Paris - Olaf, ao maquiador inglês residente em Londres - Gary, e ao editor de moda da revista alemão residente em Munique - Tobias, com quem eu trabalharia diretamente. Foi uma apresentação rápida, e a

199 produtora me explicou que apesar de terem me pedido uma reserva do dia 13 ao dia 21, as fotografias só começariam no dia 15 e as outras datas ficariam sujeitas às condições do tempo. Apesar de não ter maiores informações sobre os temas, deduzi que como a grande maioria dos estrangeiros, o maior interesse deles era nosso clima. No dia 13 à noite a produtora me ligou avisando que iríamos fotografar no dia seguinte porque eles decidiram começar pela história que não dependia diretamente do clima. Então no dia 14, às 12 horas eu fui encontrá-los no hotel Everest,em Ipanema, onde eles estavam hospedados. Chegando lá fui até o quarto do editor de moda, Tobias, onde ele me explicou que iríamos fotografar três editoriais: um teria como tema uma festa sexy realizada numa suíte de hotel e em locações externas noturnas, no caso a praia de Copacabana, onde homens e mulheres estariam vestidos com roupas chiques, sungas e biquínis, as fotografias seriam em preto e branco, este ensaio foi inspirado em um editorial da revista Vogue Homme ; o segundo, inspirado em um editorial da revista Pop, traria um casal e um grupo de modelos homens usando sobreposições de sungas e biquínis, sempre com óculos escuros. Para este, era necessário que tivesse sol, os personagens principais deste e do terceiro ensaio seriam o top model Jaime e uma modelo francesa que viria ao Brasil especialmente para essas fotos. O terceiro, inspirado em um editorial da Vogue Paris com a top model Daria Werbowy, onde ela exibia acessórios de luxo dirigindo um carro conversível. Para este também dependeríamos do sol, pois a idéia era fotografar no Arpoador. Nos dois primeiros dias, fotografaríamos no Hotel Pestana, localizado na Avenida Atlântica, as fotos seriam

200 noturnas, mas os modelos foram marcados para chegar às 11 horas no local, Gary e uma maquiadora brasileira – Érika Monteiro, que estava prestando assistência para ele, já começavam a maquiar e fazer o cabelo dos modelos. Fui junto com a equipe levando as roupas. Chegando lá encontrei vários modelos conhecidos no casting: Bárbara e Marina que já tinham trabalhado comigo no editorial para a Sport&Style francesa, Daniela, uma das informantes desta tese, Daniel e Henrique que são amigos do meu namorado, e além desses: Alessandra, Adriano, Leonardo e Renato. Bárbara, Marina e Adriano são da Elite, agência que já foi uma das principais do mercado, mas hoje em dia, no Rio de Janeiro, está quase falida. A Bárbara é branquinha, ruiva, com cabelo ondulado, comprido, tem menos de 1,70m de altura e podemos dizer que é do tipo que tem um corpão, é magra, mas com busto e quadril, tem 22 anos, trabalha em uma produtora que fornece programas para o canal a cabo Sportv , e é casada com o dono de uma produtora, a 1500 – que produziu o editorial para a Sport&Style francesa - já morou fora, em Nova Iorque, onde sobreviveu como modelo. Hoje em dia, diz estar mais preocupada em terminar a faculdade de jornalismo, e o trabalho como modelo, que ela diz ”só pegar os trabalhos gringos, porque aqui no Brasil meu tipo não vende nada” é só para “tirar uns dólares que sempre caem muito bem”. Já Marina, 21 anos, estudante de publicidade na PUC, é bem magra, cabelo liso comprido, com um corpo que a gente chama “brasileiro modelo”, tem quadril e pernas torneadas, é alta e tem uma promissora carreira pela frente. Foi chamada por uma agência italiana para passar três meses, de Janeiro a março, em Milão, com as despesas bancadas. Adriano é um dos top models brasileiros que já tem

201 um curriculum considerável no exterior, várias campanhas para , Dolce & Gabbana entre muitos outros. Tem 1,86m, é branco, olhos verdes e cabelos compridos, traços finos. Ficou conhecido do grande público por ter sido casado com a apresentadora e atriz Babi Xavier. Daniel, Henrique e Alessandra são da 40º Models, agência monopolizadora do mercado carioca. Todos têm carreira já consolidada e temporadas no exterior. Daniel tem 27 anos, é de ascendência árabe, podemos qualificá-lo como exótico: corpo malhado, seco, cabelos cacheados castanho claro, rosto com traços brutos e ossos bem marcados. É designer gráfico, webdesigner e também faz alguns trabalhos como ator. Já participou de inúmeras campanhas internacionais como Adidas e Abercrombie & Fitch, é primo de um dos principais fotógrafos de moda do Rio de Janeiro, e procura sempre se aproveitar de seus contatos adquiridos ao longo de sua carreira na moda, para poder começar a entrar no mercado de design gráfico, seu forte são os trabalhos de vídeo e fotografia. Henrique tem 21 anos e uma beleza tipicamente carioca: pele morena, cabelos castanhos lisos, olhos castanhos claro e um corpo definido por esportes ao ar livre, como pelada com os amigos e andar de skate. Já participou das semanas de moda de Nova Iorque e Milão e fez campanhas de grifes como Valentino e Bufallo Jeans. Também embarcou para Milão para participar da temporada masculina de 15 a 20 de janeiro. É o tipo de modelo apenas trabalhado para o fashion, e com sucesso. Alessandra é uma das promissoras new faces do mercado mundial, tem 16 anos, 1,77m é branca, loira, muito magra, com olhos azuis e grandes. É reconhecida como excelente profissional e já morou em Tóquio e Nova Iorque. Dona de uma incrível simpatia e ainda moradora de

202 marechal Hermes, bairro do subúrbio carioca, é presença garantida, sempre que está no país, das semanas de moda no Rio e em São Paulo. Assim como Edgar, é sucesso no fashion. Daniela e Renato são da Ultra, agência pequena e nova no mercado que vem conquistando espaço a cada temporada. Daniela é uma das informantes da tese, negra, magra com cabelos cheios e traços finos, é psicóloga e trabalha bastante tanto no fashion quanto no comercial. Se tivesse investido na carreira de modelo, certamente estaria entre as tops brasileiras que fazem sucesso no exterior, pois seu corpo e sua postura diante das câmeras são consideradas impecáveis. Renato é um new face que após ser dispensado por um dos bookers da agência Elite, procurou a Ultra e entrou para o casting da agência. Na mesma semana foi fotografado para a revista Arena - também uma das principais revistas masculinas do mundo, num editorial de dez páginas, e três dias depois estava escalado para este editorial. Ele ainda não tinha nem composite, mas o fotógrafo da Arena o indicou para uma das campanhas da grife Louis Vuitton. Com uma beleza clássica, branco, rosto com ossos marcados, cabelo preto curto cacheado e olhos azuis tem tudo para ser um “novo João Veluttini”. Leonardo é da , mora atualmente entre São Paulo e Europa e também é de uma beleza clássica para modelos: loiro, cabelo comprimento médio, alto, com a pele clara. Saiu da agência 40º após ter ouvido do booker Sérgio Mattos que não levava jeito para o fashion, que deveria se dedicar só ao comercial. Foi morar um tempo em São Paulo onde consolidou sua carreira e partiu para a Europa, onde fez desfiles para Versace e Diesel. Tem um comportamento raro

203 entre os modelos homens: conta vantagem o tempo inteiro e tem uma grande necessidade de auto-afirmação. As fotografias começariam por volta de 19:00hs, quando o sol já não estivesse mais à vista da varanda da suíte. Por volta das 16:00hs os modelos já começavam a reclamar da demora e da grande antecedência com a qual têm que chegar aos trabalhos. Enquanto isso, Érika e Gary, extremamente perfeccionistas, caprichavam no beauty seguindo as sugestões do exigente fotógrafo. Eu e Tobias estávamos organizando os looks, e desde esse momento ele já demonstrava uma certa apreensão em relação às meninas. Ele tinha dúvidas em relação à postura e ao caimento das roupas na Bárbara e na Marina, e já nessa hora ele começou a falar sobre a dificuldade em fechar o casting para o trabalho. Ele imaginava que no Brasil fosse achar muitos modelos bons, a partir do que já conhecia do mercado internacional. Mas a sua conclusão foi de que os bons vão para fora, não permanecem aqui, por isso foi difícil fechar um casting no Brasil. Enquanto esperavam tempo passar, se formou um grupo de conversa, do qual a Érika também participava, sobre mecanismos do mercado de moda no Brasil. Ouvi relatos sobre a experiência pessoal de cada um. Leonardo contou que morava no interior do estado com a família, por isso antes de uma viagem a São Paulo deixou suas malas na casa do seu booker e foi comprar algumas coisas para viagem. Ao voltar, tocou inúmeras vezes a campainha e ninguém atendia. Nervoso, começou a gritar da calçada. Um outro modelo que estava no apartamento pediu para que ele subisse. Este modelo abriu apenas uma fresta da porta e disse que ele não podia entrar. Ele empurrou a porta com força e ao olhar pro sofá, viu que um outro modelo, negro, fazia sexo oral no

204 booker. Ele disse que preferia não ter visto aquilo, que ficou muito chocado, mas, que não foi nada que ele não soubesse que iria encontrar nesta carreira. Daniel contou que ao ser apresentado ao fotógrafo em um estúdio onde ele fotografava new faces para apresentar ao mercado europeu, ele pediu para que tirasse a roupa, pois assim ele ficaria mais inspirado e seria mais fácil de vendê-lo. Diante da recusa do modelo, ele argumentou que já tinha fotografado uns dez meninos antes, e que todos concordaram em ficar pelados e deixar o fotógrafo “conhecer mais seus corpos”. Érika também contou algumas histórias, que eu não pude prestar atenção por ter que aprontar os looks, e as meninas não se manifestaram. Apenas Bárbara contou por alto que já abandonou um editorial internacional onde ganharia muito dinheiro porque o fotógrafo estava se insinuando insistentemente para ela. Por volta das 20:00hs, com todos prontos, o fotógrafo mostrou o editorial da Vogue Homme para os modelos e explicou-lhes, em inglês, o tipo de clima que gostaria que tivesse nas fotos. A idéia é que fosse uma festa sexy, regada a bebidas, azaração e garotas de biquínis. A produção tinha inclusive providenciado algumas bebidas alcoólicas para ajudar no clima, e para descontrair. Esse briefing assustou um pouco Marina e Bárbara. Então, eu Érika, Daniela e Alessandra começamos a debater o assunto com elas, enquanto as primeiras fotografias eram só com alguns meninos em separado. Eu, Érika e Alessandra começamos a argumentar que é uma questão de postura, ser sexy em uma foto não é igual a ser vulgar. Citamos como exemplo um editorial da revista Pop, onde a top brasileira Jeisa Chiminazzo, aparecia nua em algumas fotos de um editorial

205 de muito bom gosto e muito criativo. Bárbara contra- argumentou que apenas as brasileiras aparecem ou nuas, ou mostrando os seios nesses editoriais sexy. A conversa se dissipou por um momento, por conta da próxima fotografia: Marina e Henrique teriam que simular uma cena de forte apelo sensual, e o mal-estar dela era completamente visível. O fotógrafo, que se comunicava em alemão com o Tobias quando não queria que mais ninguém soubesse do que estavam falando, foi fazendo alguns cliques sem compromisso enquanto esperava que ela relaxasse. No fim deu tudo certo, mérito do profissionalismo do Henrique e do fotógrafo. Bom, mesmo com eles se comunicando em alemão, era visível que o resultado estava aquém do que eles desejavam. Daniela era a única que estava agradando. Alessandra apesar de ótima modelo, não se encaixava no perfil sexy exigido, pois nem corpo formado ela tinha ainda. Enquanto faziam as fotografias, eu e Érika conversávamos sobre como as coisas funcionam: a gente lê, pesquisa, compra revistas caríssimas para ter referência e ganha bem menos que essas meninas que não buscam saber lidar mais com as câmeras e com as diversas situações que diferentes editoriais requerem. No intervalo para o jantar a conversa foi sobre ciúmes dos namorados e namoradas em relação àquela situação. O primeiro a se manifestar foi Daniel, que tem uma namorada muito ciumenta. Ele achava completamente injusto, porque ele encara aquilo como trabalho, e além do mais, ela trabalha como atriz e já fez inclusive cenas de beijo. Marina comentou que por incrível que pareça ela tem mais ciúmes do namorado, que é editor de vídeo, do que ele tem dela. Ela disse que jamais namoraria um modelo. Bárbara acha que tem que haver respeito e confiança, mas reconhece que deve ser

206 difícil para quem namora modelo ver seu par em situações íntimas com outra pessoa. Depois da seqüência de fotografias na suíte, Henrique e Bárbara foram dispensados e descemos para a praia. Lá um clique da Marina sozinha no calçadão, um clique de dois casais na areia: Daniela e Renato, Adriano e Alessandra, e um clique de todos andando no calçadão. Por volta de 1:30h fomos liberados. A principio, no dia seguinte fotografaríamos no mesmo local, só que na piscina do hotel, e com o mesmo casting, com exceção da Bárbara e Leonardo. A equipe e o casting foram marcados para 14:30hs e o esquema de produção seria o mesmo. Primeiro a preparação da maquiagem e cabelos – a Érika tinha mandado uma substituta, Amanda, que nos acompanharia até o fim do trabalho, e depois, as fotografias. Neste dia aproveitaríamos a luz do entardecer para dar um efeito de sol raiando, no caso, fim de festa. Quando cheguei, vi que o casting tinha sido reduzido: estavam Renato, Henrique, Marine e Daniela. O booker do Adriano tinha ligado para avisar que lê não iria, o que os deixou indignados com a falta de profi ssionalismo, e mandaram um outro menino, que eles julgaram ter o mesmo perfil para substituí-lo. Não funcionou, quando o outro modelo chegou, eles o dispensaram: o menino estava completamente diferente da fotografia no composite. Então decidiram fazer apenas com os quatro que já estavam lá. A idéia era dois casais em clima fim de festa. Como algumas fotografias demoravam, eu e Tobias ficamos conversando sobre os modelos brasileiros. Ele estava impressionado com a falta de critério das agências, “parece que no Rio de janeiro qualquer um pode ser modelo”. Ele achava que o fato de o

207 carioca ser considerado um povo bonito, não significa que todos têm talento ou biotipo para serem modelos. A falta de postura da Bárbara, da Marina e das outras meninas que fizeram o teste também o impressionou. Ele acha que isso faz parte da falta de profissionalismo das agências, pois mostra que eles não dão nenhum tipo de direcionamento aos modelos. Daniela foi muito elogiada, tanto ele quanto o Gary disseram que se ela fosse para o exterior seria uma top model, pois “ela tem uma postura muito chique e elegante, coisa rara entre as modelos, além de ter um corpo perfeito”. Já Renato, para ele, será um top internacional em curtíssimo prazo. Ele reclamava também de como foi difícil, quase impossível, selecionar meninas magras para o editorial. As fotografias acabaram por volta de meia-noite de quinta feira, e ficou acertado que Priscila, a produtora executiva, ligaria para marcar o próximo dia das fotografias, pois agora tudo dependia do bom tempo. No sábado fui fazer compras de natal em Ipanema e encontrei a equipe de surpresa. Priscila explicou que como o sol saiu de surpresa, eles decidiram fazer alguns cliques na praia, com a modelo francesa que acabara de chegar e com a Marina, já que nenhum dos meninos estava disponível e o João Vellutini ainda não havia chegado de São Paulo. Porém, a modelo francesa estava grávida de três meses e a agência não tinha comunicado a eles - pelo menos para mim e pra Priscila foi um alívio perceber que até as agências européias não são tão 100% profissionais . Ou seja, os cliques de sábado foram em vão. No fim do dia, Priscila me ligou dizendo que fotografaríamos no domingo de manhã, já com a presença do Jaime e da modelo que substituiria a francesa.

208 No domingo de manhã, cheguei ao hotel Everest, e os modelos já estavam no quarto do Gary, sendo preparados por ele e pela Amanda, A Karen, o Jaime, o Rodrigo e o Marcos. Só não conhecia o Rodrigo e a Karen. Marcos e Jaime são meus amigos e já fizeram outros trabalhos comigo. Todos são da 40º. A Karen é bem alta, 1,80m magra, cabelos crespos compridos, branca com sobrancelhas grossas, e com um tipo de beleza que só quem trabalha com moda entende. Tem a mesma postura elegante da Daniela, mas é bem menos sociável. Rodrigo é um new face que também pode ser classificado como exótico: só entende quem é do meio. Pele bem branca, olhos verdes desenhados, sobrancelha bem grossa, quase o que a gente chama de “monocelha”. O Marcos é o tipo que a gente olha e imagina que vai ser quase impossível trabalhá-lo no fashion. Corpo muito sarado, ele é ex-paraquedista e atleta convicto, mas tem uma beleza muito vendável, moreno, cabelo liso e olhos verdes, com traços que acentuam sua ascendência italiana. Trabalha muito mais no comercial, mas participa da semana de moda no Rio de Janeiro, de editoriais e catálogos estrangeiros. Jaime é a “Gisele de calças”. Top model internacional, já foi garoto-propaganda das principais grifes masculinas do mundo como Gucci e Armani. Estudante de economia na PUC, é de família rica e começou por acaso na profissão. Com 21 anos, tem o mundo da moda masculina praticamente a seus pés. Tenta conciliar a carreira com os estudos, viajando para temporadas internacionais nas férias da faculdade, ou para editoriais e campanhas durante os fins de semana e feriados.

209 Fomos fotografar na altura do Obelisco, em Ipanema, o que já causou um certo constrangimento nos meninos, pois eles já sabiam que seriam fotografias de sunga, e as sungas estrangeiras costumam ser bem diferentes das que eles costumam usar. Jaime e Karen formariam um casal, mantendo o clima de sedução do outro editorial, em duas fotos. Outras duas seriam com os três meninos juntos, e por fim um close do João. Nas fotografias do casal e no close correu tudo bem, mas na parte dos três juntos, atravessando a Visconde de Pirajá às 11h da manhã de um domingo de sol, com sungas que pareciam “de gay” o clima ficou tenso. Jaime começou a se mostrar profundamente insatisfeito e começou a falar que se fosse aquilo ele não iria no dia seguinte, que o dinheiro de um editorial gringo não ia fazer a menor falta, que ele ia dar um “esporro” no booker por não ter contado a ele que era um editorial de “viado”, porque ele não faz mais esse tipo de coisa, ainda mais para uma revista alemã que nem deve ter circulação mundial. Ele estava falando isso comigo, quando Amanda ouviu e contou para Priscila. Esta por sua vez comunicou ao Olaf e ao Tobias, que ficaram desesperados com medo de perder o Jaime no dia seguinte. Coube ao Olaf explicar que não era uma história gay, e que no dia seguinte seriam roupas sofisticadas e acessórios caríssimos, não teria mais sungas. Tobias argumentou sobre o compromisso com os anunciantes da revista. João se acalmou e fizemos a última fotografia por volta de 13h. Depois das fotografias fomos almoçar e seguimos para nossas casas. Eu deveria voltar na segunda à tarde para o hotel apenas para organizar as roupas para o dia seguinte, pois

210 iríamos refazer algumas fotos da “hotel party” com a Karen, Rodrigo e Jaime na noite seguinte, além das fotos dos acessórios pela manhã no Arpoador. Na segunda-feira organizei tudo para o dia seguinte e ao comentar com Tobias sobre o comportamento do Jaime ele me disse: “ele é definitivamente o top model. Temos que nos ajustar às vontades dele. Vale a pena”. Nem foi preciso muito esforço, porque as fotografias no Arpoador correram muito tranqüilas, desta vez com a Marina substituindo a modelo francesa. Fora o calor quase insuportável e a curiosidade dos que passavam pelo calçadão do Arpoador, nesse dia contamos com o apoio de quatro seguranças, tudo deu certo. No intervalo de uma fotografia, Jaime me disse que estava enrolado com duas namoradas: uma do Rio e uma de São Paulo e que não sabia o que fazer. Fato é que o telefone dele não parava de tocar. Ele estava com um humor totalmente diferente do dia anterior e isso deixou a equipe mais tranqüila. Depois das fotografias, tivemos um rápido intervalo, Jaime foi para casa descansar, até as fotografias noturnas lá mesmo no Hotel Everest. Eu fiquei no quarto guardando as coisas nas malas definitivamente e Tobias desceu para acompanhar as fotos. Enquanto jantávamos, a Priscila perguntou para mim e para o Jaime se costumava rolar “muita pegação nesse meio de moda”. Nós dois rimos e o Jaime disse: “é só que rola”. Ela estava perguntando isso porque estava rolando um clima entre a Amanda e o fotógrafo e como ela não era do meio, queria saber se era normal.

211 As fotografias acabaram às 2:30hs, a equipe ainda estava querendo sair para algum lugar, mas eu, os modelos e o assistente de fotografia brasileiro fomos para casa.

212 ANEXO 4

Temporada de Moda Primavera/Verão 2006/2007 O Fashion Rio, segunda maior semana de moda do país, aconteceu de 6 a 11 de Junho dessa vez em novo local: Marina da Glória. A semana de moda do Rio de Janeiro é reconhecida pelo seu apelo comercial, vide o sucesso do Fashion Business33 desde sua primeira edição, não como pólo lançador de tendências como São Paulo, e talvez por isso, a cobertura da mídia, nacional e internacional, seja diferenciada e não traga tanto retorno aos que dela participam como modelos. Mesmo assim, logo no começo da temporada, antes do boom africano do São Paulo Fashion Week, já foi possível notar o aumento da participação dos modelos negros nos desfiles. Rojane Fradique (BA), Carmelita (MG) e Samira (SP) – todas agenciadas por agências paulistas, se juntaram às veteranas recordistas negras de desfiles Emanuela de Paula (PE) e Ana Bela (SP), também agenciadas paulistas. Vale lembrar que Rojane Fradique foi apontada como “o corpo da temporada”, por suas formas perfeitas e rígidas, em contraste com a flacidez evidente nos trajes de moda praia das modelos brancas. Tatiana foi a representante carioca melhor colocada, com quatro desfiles (nem metade das modelos negras paulistas). Entre os homens, Luciano (RJ) foi o recordista com seis desfiles, em 16 que tinham homens no casting, os outros 33 apresentaram apenas looks femininos. Logo no desfile de abertura, Blue Man, polêmica racial: nos arcos da Lapa, uma figuração composta por 750 negros

33 O Fashion Business é a bolsa de negócios do Fashion Rio, em um espaço separado das tendas de desfile, marcas do varejo, participantes ou não do line up do evento, apresentam suas coleções para compradores e imprensa do mundo inteiro.

213 vestidos de preto e acenando objetos cênicos, como flores brancas e velas, ocupava arquibancadas e compunha o cenário da apresentação. A trilha sonora mesclava batuques afro- brasileiros, cantos religiosos, hip hop e Walter Alfaiate cantando ao vivo clássicos do samba. Em alguns momentos do desfile, outros figurantes negros entravam na passarela segurando estandartes com imagens de malandros, prostitutas e mendigos, caracterizando os personagens típicos da Lapa. O tema do desfile: origens do samba. A direção do desfile era da cenógrafa Bia Lessa (a mesma que na temporada de verão 2003/2004 dirigiu a performance34 da marca, colocando um grupo de jovens negros representando a “massa funkeira” das praias cariocas, dançando funk ao invés de desfilar como os outros modelos. O efeito caricato sofreu críticas da imprensa de moda, dos modelos negros e do movimento negro, na época) e, segundo ela, a intenção era homenagear a rica mistura brasileira e fazer uma celebração aos negros. Mesmo sem passar pela questão da legitimidade – quem tem conhecimento e legitimidade para homenagear os negros? – que eu mesma defendo, pela corrente a qual pertenço no movimento hip hop, há uma simples contradição: a comparação numérica entre os modelos negros e os modelos brancos que ocupavam não a figuração, mas o papel de destaque, na passarela mostrando a nova coleção: eram apenas oito em um total de 25. Sem dúvida, é inegável o novo status concedido aos modelos negros nessa edição do evento. Um dos sites mais conceituados do meio (www.erikapalomino.com.br) concedeu espaço na sua home – página de abertura de um website -

34 Os desfiles da Blue Man, costumam ter elementos teatrais que os diferenciam dos demais, por isso a imprensa especializada costuma chamar de performance.

214 com uma matéria intitulada: “Com o casting mais negro da temporada, estilistas da Chiaro são homenageados por modelos”35 , a primeira frase da matéria por si só já seria a justificativa de todo esse trabalho: “É fato a preferência de stylists e estilistas por um casting branco e com traços europeus nas passarelas brasileiras.” A pergunta que temos que colocar em discussão é: por quê? Minha hipótese é a de que na moda, como em todos os campos sócio-econômicos do país, se refletem as estruturas peculiares do nosso racismo: sim, o site assume que há um preconceito nas passarelas, mas em seus editoriais e matérias praticamente não há protagonistas negros. E assim prossegue a invisibilidade. Com mais de um mês de intervalo, por conta dos jogos da Copa do Mundo, começou o São Paulo Fashion Week, o maior evento de moda da América Latina, com o tema: África Pop. Alguns meses antes, assim que o tema foi definitivamente divulgado, os modelos negros da agência 40º, no Rio de Janeiro receberam uma ligação do booker Sérgio Mattos: “Parece que esta edição enfim vai! O tema vai ser África e o Paulo Borges disse que vai querer encher as passarelas de negão!”. As reações foram diversas, da euforia à desconfiança, mas o fato é que todos os meninos foram para São Paulo fazer os testes. Das meninas, só a Tatiana, e mesmo assim porque ela já iria de qualquer maneira para o showroom36 do Carlos Tufvesson, seu padrinho no São Paulo Fashion Week. Entre os meninos muitas dúvidas: medo da frustração de não pegar nenhum desfile em uma semana de moda que tinha

35 O desfile da grife carioca homenageava o cantor Wilson Simonal, e segundo os estilistas, o casting foi escolhido de maneira coerente com o personagem. 36 Na época das semanas de moda, os estilistas costumam organizar apresentação das coleções para compradores nacionais e estrangeiros. Em São Paulo, se organizam em grupos, dividem um espaço e fazem parte da agenda paralela do São Paulo Fashion Week.

215 a África como tema, medo de gastar tanto dinheiro (uma ida a São Paulo para os testes da semana de moda não custa menos de R$1.000,00, por pessoa) sem a certeza do retorno, medo de que a influência do booker carioca não fosse suficiente para lhes dar uma mínima garantia de sucesso, e o medo, de perder algum teste ou trabalho que acontecesse no Rio nesse período de no mínimo 15 dias, compreendendo testes e o evento em si. Poucos dias antes do evento, a imprensa especializada já começou a veicular matérias sobre o tema das coleções. Coincidentemente, ou não, muitas falaram da África, e do evento em si. Em algumas, uma certa expectativa em relação à materialização de um tema tão inusitado quanto o continente africano. Algumas matérias tiveram um tom questionador, assumindo a menor visibilidade dos negros no mercado de moda e questionando a “atitude inovadora” desta edição do evento, com depoimentos de profissionais do meio, e na maioria das vezes, dos próprios modelos. Enquanto isso, os modelos cariocas aguardavam as respostas finais dos testes, em clima de tensão e expectativa. È importante frisar que cortes em cima da hora acontecem com todos os modelos, independente da cor da pele e do sexo, mas nessa edição a tensão entre os negros e negras era maior, porque eles estavam em quantidade jamais vista, em desfiles nos quais nunca participaram, ou imaginaram participar. A tensão durava até o backstage no dia do desfile. Dia 11 de Julho, coletiva de imprensa foi realizada no “Café de la Musique”, uma boate famosa na cidade, que tem como proprietário o empresário Álvaro Garnero e tem uma proposta fashion para a decoração, que muda de acordo com

216 as estações, e tem como consultores, estilistas como Fause Haten e Amir Slama. Paulo Borges começou falando sobre a importância que o evento vem tomando em campos que vão além da moda propriamente dita, como a economia, a tecnologia e o comportamento da sociedade. Segundo ele, a moda é capaz de construir diversos ensinamentos em um país em estágio de desenvolvimento, inclusive ensinamentos sobre a convivência pacífica de diferentes raças em um mesmo território, resultando em um potencial criativo diferenciado. Ainda, segundo ele, a moda expande olhares e emoções, transformando-se em um canal de comunicação. Localizando o evento em um novo panorama, após o ciclo dos dez anos, a idéia é buscar novos conceitos que ajudem a localizar o produto do design brasileiro no mundo globalizado, e para isso é preciso olhar tanto para o futuro, como para o passado. E aí se justifica, segundo o organizador, a ida à África. Na conclusão do organizador, e da equipe de criação do evento, a energia africana foi a mais valiosa das heranças que o povo brasileiro ganhou deste continente, e a idéia desta edição do evento era celebrar esta “dádiva”, exercendo ao mesmo tempo um exercício mais profundo de busca de identidade estética e cultural. Com uma viagem pela África poderíamos passar pelos caminhos do nosso DNA enquanto povo e nação, e descobrir a origem do nosso “mix plural, criativo, cultural e racial tão peculiar. Um verdadeiro liquidificador pop.” A palavra pop surge várias vezes nas justificativas sobre a escolha da África como tema e também sobre os desejos para os novos rumos da moda e do design nacional. O release oficial do evento distribuído na coletiva diz que:

217 “O SPFW apresenta a África remixada, propõe um novo olhar para esta matriz africana que, ao longo dos séculos, ajudou a moldar o que somos como brasileiros, uma parte de importante do nosso DNA. A proposta que o SPFW faz ao falar de África é a de decifrarmos a nós mesmos. Falamos da nossa identidade, da maneira como enxergamos o mundo, da mestiçagem que é a principal característica – e a maior virtude – do brasileiro. Falamos de referências vindas de uma terra desconhecida, mas incrivelmente familiar. Distância e proximidade. Troca e transformação. Uma herança que está presente na nossa pele, nos cheiros e nos sabores, no swing do nosso corpo e no estilo de nossas ruas. Um conjunto de referências que nos fazem tão Brasil e tão África em um só lugar. O SPFW, como principal plataforma de moda do país, convida a entender melhor quem somos e porque somos assim. Só assim teremos uma cultura de moda forte, legitimamente brasileira.” (trecho do release oficial do São Paulo Fashion Week Primavera/Verão 2006/2007) Paulo Borges contou sobre a viagem da equipe do evento ao continente africano, acompanhada de estilistas (Lino Villaventura e Alexandre Herchcovitch) e a equipe do programa GNT Fashion. O mais recorrente em seu discurso era a impressionante energia criativa do povo africano, capaz de se reinventar a todo o momento, e de preservar sua força estética e cultural, que a seu ver é tão semelhante a do povo brasileiro. Só não sei se em algum momento passou pela cabeça de algum dos integrantes da “comitiva SPFW” que talvez esta intensa energia seja fruto de um quase eterno aprendizado de como lidar com situações tão adversas, como a escravidão, a miséria e o preconceito, e outras dificuldades.

218 Mas pelo que pude perceber desde a coletiva de lançamento até o fim do evento e análise do material de divulgação, a África do SPFW desconhece a miséria, a epidemia de HIV, as guerras e outras mazelas que assolam o continente. Lógico, a África tem um imenso legado positivo, estético, cultural, religioso, e diria até mesmo comportamental, mas na minha opinião simplesmente ignorar este fato soa como um tipo de colonização exploratória: arranca-se o legado imaterial de um povo, leva-o para ser apreciado em um outro território onde provavelmente vai gerar algum tipo de lucro, e o país de origem jamais receberá os benefícios, ou nem mesmo os créditos. Sim, posso estar sendo radical, mas foi o que pude perceber durante o evento, jogada de marketing o velho clichê de elogio à diversidade racial enquanto peculiaridade do processo criativo brasileiro, a moda não se importa com a situação racial no Brasil, e pelo contrário, qualquer estudo consegue enxergar o quanto é racista em sua essência. Bom, e como nem todos os estilistas estavam preparados para o tema, ainda na coletiva o organizador justificou que o grande número de estilistas que usaram a África como tema para suas coleções não foram pressionados pela organização do evento, foi apenas uma coincidência. E, além disso, e mais importante, a interpretação de cada um dos estilistas nada tinha a ver com a interpretação oficial da comissão organizadora do evento sobre um possível “verão brasileiro na África”. Muitas versões para este fato surgiram: de que a organização teria sugerido o tema para um número maior de estilistas, porém nem todos se sentiram à vontade em usar o continente como inspiração principalmente por

219 causa da pressão para usarem modelos negros em seu desfile que viria seguida da aceitação do tema. Mais um acontecimento significativo para este trabalho ocorreu durante a coletiva de imprensa: o lançamento de um calendário exclusivo, que será acompanhado de um vídeo com imagens exclusivas, com as 25 modelos brasileiras mais importantes da história fashion no país. , Alessandra Ambrósio, Ana Beatriz Barros, Ana Claudia Michels, Camila Finn, Carol Trentini, Caroline Ribeiro, Cíntia Dicker, , Gisele Bündchen, Isabeli Fontana, Jeísa Chiminazzo, Jéssica Pauletto, Letícia Birkheuer, Liliane Ferrarezi, Luciana Curtis, Marcelle Bittar, Mariana Weickert, , Raica Oliveira, , Renata Maciel, Shirley Malmann, Solange Wilvert e Talytha Pugliese foram as escolhidas. Nenhuma delas é negra, e nem, ao menos, têm traços evidentes do nosso tão “valorizado” mix racial. Além do calendário, um documentário será lançado no canal GNT, e posteriormente vendido em dvd, contando as trajetórias destas modelos. Ainda na fase de pré-produção, e até momentos antes do início do evento, acontecia a escolha dos casting. Uma média de três a quatro testes por estilista/grife foram feitos até o fechamento definitivo. Segundo um dos bookers cariocas, da agência 40º: “ Não sei se foi essa história de África, que é delicada, ou se este ano está meio desorganizado, mas nunca vi tanta dificuldade para fechar casting em um SPFW como estou vendo nesse!”

Um breve panorama da situação dos modelos do Rio:

220 Maurício – pré-selecionado para Cavalera, Alexandre Herchcovitch, Ricardo Almeida, V.Rom e Mario Queiroz a partir dos primeiros testes, no final das contas participou apenas dos desfiles da Cavalera e V.Rom. “ O que mais me revolta é vir pra cá, gastar mó grana, e no final? Nada. Tá ok, vou estrear no SPFW, mas pô qual a novidade? Cavalera e V.Rom sempre colocam preto...... queria ver era esse bando de racista ter coragem de mudar alguma coisa...... o tema não é África? A gente não ia desfilara pra caramba? Palhaçada...... ” Luciano – pré-selecionado para Cavalera, Alexandre Herchcovitch, V.Rom e Mário Queiroz. Foi cortado do desfile de Alexandre Herchcovitch e V.Rom, mas com a interferência do booker, foi “re-admitido” no desfile da V.Rom na última hora. Esse caso da V.Rom foi interessante: o booker comentou com Tet que o diretor do desfile, o moçambicano Zee Nunes não gostava do cabelo dele, por considerar meio indefinido. Depois do primeiro teste, ligaram para a agência e pediram para perguntar se ele rasparia o cabelo, ele disse que não e então foi cortado. Em uma “repescagem” ele foi convocado, e disse ao booker que não iria, pois não rasparia o cabelo. O booker então ligou para o diretor, que pediu que ele fosse mesmo assim. Chegando lá, o dono da marca, Alberto Turco Loco (também dono da Cavalera) foi argumentar que o cabelo dele não era “black” já que todos os negros que iriam participar do desfile tinham a cabeça raspada. “Fiquei com muita raiva, e vontade de perguntar o que ele sabia sobre ser “black”, mas me segurei porque tinha gastado muita grana para passar o mês em São Paulo e estava vendo o número de desfiles ir reduzindo a cada dia.” Então Turco Loco perguntou se poderia desmanchar os enroladinhos e deixar black power.

221 Enfim chegaram a um acordo, e no dia do desfile, Tet entrou com um boné. Carlos e Breno – não foram fazer os testes, mas com a mudança do perfil dos modelos no desfile de Alexandre Herchcovitch, foram chamados em cima da hora. Pedro foi logo após o desfile para o Maranhão onde gravaria a campanha da rede de lojas C&A. Davi– pré-selecionado para Cavalera, V.Rom e Alexandre Herchcovitch. Desfilou apenas para a Cavalera. “Cara, porque a gente continua acreditando que alguma coisa vai mudar? Vim mais uma vez pra São Paulo para desfilar só para Cavalera e continuo tendo que dar graças a Deus por pelo menos isso! Que África homenageada é essa? Cadê o “boom” dos negões? Nem os moleque de São Paulo mesmo tão com essa moral...... Acho que aqui no Brasil não tem mais solução não, só indo lá pra fora mesmo, aqui a gente vai morrer frustrado.” Roberto – pré-selecionado para Zoomp, OEstudio, Fause Haten, Ellus, Mário Queiroz e Alexandre Herchcovitch. Desfilou para Zoomp, OEstudio e Fause Haten. “ Olha eu não entendi nada, maior frisson porque esse seria o ano da África, e aí? Fui cortado de três desfiles e vou fazer o mesmo número da temporada passada. Mas para as meninas, principalmente pra Samira e pra Carmelita, acho que está sendo ótimo, vai trazer muitos resultados. A Emanuela e Ana Bela já são tops e nem moram mais no Brasil, a Rojane também está quase lá....Mas pra nós, homens, é sempre mais difícil. No Brasil, já deu, agora se for pra Nova Iorque...... não volto mais.” Tatiana – desfilou apenas para Carlos Tufvesson. “Eu tento não ficar chateada, mas poxa, eu vejo todas essas meninas e me pergunto: será que eu fico mesmo devendo

222 alguma coisa? Acho que o grande problema, pra mim, é que falta assistência da agência. Duvido que meu booker vai gastar a energia dele me vendendo ao invés de colocar a mais nova branquinha-futura-top, e olha que sei que ele gosta muito de mim. Mas é assim que funciona, e eu sempre soube disso.” Um pequeno parêntese para explicar o “caso Herchcovitch”. O desfile masculino do estilista teve alguns problemas na escolha do casting, mas não consegui colher nenhuma declaração oficial sobre isso, pois não chegou a vazar para a imprensa. A versão divulgada dizia que a forma usada para compor o casting, desde o princípio, foi mesclar modelos profissionais com “pessoas comuns” que tivessem o espírito da coleção – judaísmo e lifestyle rastafari. Estas pessoas comuns foram selecionadas em agências de tipo37 e também através de indicações de amigos do estilista, do stylist e da equipe de produção do desfile. Os modelos profissionais brancos receberam aplicações de dreadlocks artificiais. Mas entre os modelos, bookers e organização do evento (no meu caso, tive acesso às versões extra-oficiais através dos modelos) circulavam outras versões: o stylist teria feito a primeira escolha do casting, que não agradou ao estilista por ter um número grande de modelos negros, daí então teria surgido a idéia de que os modelos brancos poderiam ter dreadlocks aplicados e o pedido para que os modelos negros fossem os de traços mais finos possíveis. Então, houve a intervenção do próprio Paulo Borges, que argumentou sobre a polêmica de um casting “claro” para apresentar uma coleção baseada na Jamaica em um evento

37 Agências que trabalham não só com modelos, mas também com estereótipos. Por exemplo: negros com dreadlocks, senhores acima do peso, crianças que usam óculos, mulheres e homens acima de 30 anos. Estas agências costumam oferecer serviço de figuração para comerciais.

223 que tinha a África como tema. Diante do impasse, e da recusa do estilista em usar modelos negros “mais escuros”, teria surgido a idéia de usar “pessoas comuns” condizentes com o estilo misturadas aos modelos “mais claros”. O estilista não teria ficado satisfeito. O casting foi incompreensível se pensarmos que havia modelos negros no mesmo perfil das “pessoas comuns” que desfilaram, mas acho que além deles e eu, ninguém mais percebeu isso. Do dia 12 ao dia 18 de Julho, foram 48 desfiles: seis masculinos, 14 unissex e 28 femininos. Alguns tiveram o local de exibição modificado por conta dos ataques do PCC – a organização distribuiu uma circular para toda a imprensa dizendo que os desfiles externos estavam sendo suspensos e passariam a ocorrer no espaço do Ibirapuera, pois o evento não poderia se responsabilizar pelo deslocamento seguro dos convidados. Além dos desfiles acontecem uma série de pequenos eventos paralelos nos lounges dos apoiadores e veículos de comunicação. São eventos de lançamento de novos produtos ou cocktails de confraternização. A Natura lançava sua nova linha de maquiagem, a Motorola lançava seus novos aparelhos e a FIAT tentava estreitar seus laços com o mundo fashion, a Melissa mostrava os lançamentos de verão e as Revistas Elle e Quem e o site Glamurama fotografavam os famosos e profissionais. Um dos destaques dos lançamentos paralelos foi a revista ff>>MAG!, uma revista criada pela equipe do SPFW, mas que pretende ser independente do evento. Uma publicação trimestral “ que pretende ser uma revista de inspiração, uma parabólica de discussão sobre moda”,

224 segundo Paulo Borges. Como não podia deixar de ser, a edição é dedicada ao continente africano e suas influências na nossa cultura: entrevistas com artistas locais, editorial de moda fotografado em safáris e outro feito com jovens locais de Johanesburgo. O editorial da revista, assinado por Paulo Borges, diz: “Apertamos a tecla fast forward. A revista nasce com essa vontade de acelerar o passo, pensar para frente, avançar rapidamente. Transformar. Trocar. Mestiçar.Criar. A essência do fazer moda. Propomos aqui um novo olhar. Queremos falar de coisas boas de ver e de saber. Literatura, música, artes, cinema, fotografia, comportamento, turismo....Passeamos por universos paralelos que inspiram a moda e que dela também extraem suas inspirações. No fundo, criamos esta revista para servir como canal de inspiração, amplo e plural; orgânico e envolvente. Nesta edição de lançamento, olhamos para a África como um continente pop e vibrante. Identificamos na África uma parte importante de nosso DNA, uma terra absolutamente desconhecida, mas incrivelmente familiar. À medida que costurávamos os textos e os editoriais que seguem, percebíamos que os laços que existem entre nós e o continente africano são tão fortes que é impossível falar do Brasil sem prestar atenção nessa matriz. Esse é o nosso ponto de partida para esta e para a próxima edição da ffwMAG!. Apresentamos a partir de agora a África remixada, uma nova forma de enxergar o continente, uma colagem que nos ajuda a decifrar a nós mesmos.” Quanto aos desfiles, nove deles – Alexandre Herchcovitch, Zoomp, Ellus, Cia. Marítima, Mário Queiroz, Lino Villaventura, Vide Bula, André Lima e Neon - tiveram como inspiração elementos da cultura negra, desde a África

225 até Salvador, passando pelo Caribe e EUA. Essas referências apareceram nas formas de estampas étnicas, modelagens amplas, valorização dos acessórios coloridos, e pitadas de hip hop wear. No balanço geral, levando em conta os modelos negros, o saldo foi positivo. Não foi o ideal, mas foi sem dúvida um avanço a presença de quase duas dezenas de representantes negros no casting total do evento, e mais do que isso, com uma participação efetiva, isso se aplica mais no caso das mulheres, nos desfiles. Apenas dez desfiles – Pedro Lourenço, Reinaldo Lourenço, Glória Coelho, Triton, Forum, Karlla Girotto, Maria Bonita, Patachou, Zigfreda, Samuel Cirnansck – não contaram com a participação de nenhum modelo negro. Os veículos de comunicação também pareceram descobrir a questão e GNT, Estado de São Paulo e Folha de São Paulo – os principais veículos de cobertura que eu chamaria de “não-especializados” questionaram modelos, estilistas e bookers sobre o déficit de participação dos modelos negros no mercado e fizeram a temida pergunta: há preconceito na moda brasileira?

“Eu acho que isso só aconteceu porque era pro verão. Mesmo se fosse África como tema, e se essa fosse a temporada de inverno, acho que não ia rolar tanta chance pra gente não. Mas vamos esperar, se conscientizar, eu sei que eles não se conscientizaram, deve ser alguma jogada de marketing que a gente vai entender no futuro. Eu quero ver é se isso vai ter continuidade: preto em campanha, desfilando na temporada que vem etc. Chega de blábláblá, a gente cansa...... mas o pior é que só a gente cansa...... ninguém

226 está nem aí, querem achar outro Vellutini e outra Gisele. “ (Roberto).

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