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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTORIA SOCIAL

O FORA DAS ESCOLAS DE SAMBA

Novos mercados, sociabilidades e espaços do samba carioca: o Zicartola, o G.R.A.N.E.S e o Bloco Cacique de Ramos (1960 - 1985).

MESTRADO

Nome do aluno: Daniel Sean Bosi Concagh

Nome do orientador: Prof. Dr. Marcos Napolitano

2020

É de se notar que, entre os anos 1930 e 1960 na cidade do , praticamente todos os grandes compositores de samba, com alguma relação com o mercado musical, saíram das escolas de samba. Mais do que isto, boa parte deles havia participado ativamente na criação dessas escolas. , Bide e Marçal, os chamados “Bambas do Estácio”, participaram diretamente do surgimento da primeira escola de samba da cidade, a Deixa Falar, em 1929, no bairro do Estácio de Sá. foi um dos criadores da Estação Primeira da Mangueira. Paulo da , da Oswaldo Cruz, depois conhecida como Escola de Samba Portela.

O vínculo deles com as escolas de samba era enorme, posto que haviam sido fundadores, e na maioria dos casos eram os principais letristas nos desfiles. O mercado musical carioca, que nos anos 1930 teve como principal aposta o samba, ia buscar as composições destes músicos para figurar nas rádios, ainda que na maioria das vezes fossem os seus intérpretes brancos, como Francisco Alves, Orlando Silva, e outros que ganhavam destaque comercial. Podemos afirmar que, de uma geração de Ismael Silva e Cartola (anos 1930), passando por Geraldo Pereira e

Silas de Oliveira (anos 1940, 50), até , Elton Medeiros e (década de 1960), que, na minha opinião, representam um momento de transformação, praticamente todos os grandes compositores de samba, com algum vínculo com esse mercado musical, passaram ou traçaram as suas trajetórias dentro das escolas de samba.

Todavia, esse cenário muda na década de 1960, em uma tendência que se mantém até os dias atuais. A partir daí, os sambistas com destaque no mercado musical, na sua imensa maioria, passam a despontar de outros espaços. Desta geração de Paulinho da Viola, Elton Medeiros e Martinho da Vila que, como foi dito, representa um momento de transformação, passando por nomes como , e Benito di Paula (década de 1970), até o Grupo Fundo de Quintal, , e outros (década de 1980), praticamente nenhum desses nomes se constrói dentro das escolas de samba, e mais do que isso, elas deixam de ser lugares de referência para a trajetória desses artistas. Outros espaços passam a ocupar este cenário, e a relação com o mercado se estabelece a partir de outras perspectivas. Por que isso aconteceu, é a questão principal que movimenta essa pesquisa. Atrelada a ela, poderíamos nos perguntar: há mudanças nas escolas de samba nos anos 1960 que influem nessa nova direção? Há transformações no mercado musical? Há alterações nos estilos desses ? Que novos espaços são estes que despontam e por quê?

Um primeiro dado que poderíamos observar, e que pode levantar algumas hipóteses, é que nesse grupo mais ligado às escolas de samba há um intenso processo de ruptura e afastamento, principalmente entre o final dos anos 1940 até 1970, com as suas respectivas escolas. Isso ocorre com Cartola, Carlos Cachaça, Nelson , Ismael Silva, e outros. Como explicar esse fenômeno, em se tratando daqueles que ajudaram a fundar as escolas e eram os seus principais compositores?

O jornalista e crítico musical Sérgio Cabral nos fornece algumas pistas, observando que já no final da década de 1940, em decorrência do aumento da competitividade entre as escolas, começam a ocorrer algumas padronizações e organizações mais disciplinadas dos desfiles. Isso pesou, como uma das primeiras

consequências, sobre os sambas-enredo. Se no início da disputa, em 1932, até os anos 1950, os compositores das escolas tinham bastante liberdade para compor, e muitas vezes até espaço para lançar o mote e improvisar na hora o resto, essa abertura vai pouco a pouco se fechando no contexto pós-45. Algumas “pré-fórmulas” e restrições vão paulatinamente padronizando os estilos de sambas-enredos “mais competitivos”. Na década de 1960, outros fenômenos vão alterando as escolas, e em boa medida afastando setores das velhas guardas. Em 1960 a escola Império Serrano revoluciona o desfile trazendo as ideias do coreografista Fernando Pamplona, que havia sido convidado para propor a temática (que naquele ano foi Zumbi dos Palmares), o vestuário e algumas coreografias. A presença dele e sua equipe, e portanto “profissionais de fora” da comunidade, foi mal vista por muitos, mas obteve um enorme sucesso na competição, já que a Império ficou empatada com outras em primeiro lugar e recebeu um dos títulos (nesse ano cinco escolas ficaram empatadas e receberam o título). Nos anos seguintes, as outras escolas começaram a seguir esse modelo de contratar profissionais de outras áreas. Na década de 1960, Cabral também observa que há uma penetração das classes médias nas arquibancadas dos desfiles e nas próprias quadras das escolas, fazendo muitas começarem a cobrar pela entrada nos ensaios. E finalmente, nos anos 1970, o jornalista aponta que há a entrada de uma figura poderosíssima nas escolas, os carnavalescos, que trouxeram quantidades de dinheiro inauditas, somadas à entrada da televisão nos desfiles, transformado o porte de fantasias, carros alegóricos e equipamentos. Os mais conhecidos foram Joãozinho Trinta e Anísio Abraão, que com sua fortuna do jogo do bicho investiu largamente na escola de samba Beija Flor. Por outro lado, Cabral nota que nesse período os sambas-enredo já se encontravam bastante padronizados, em alguns estilos que se mantém até os dias atuais. Na conclusão da sua obra, o autor observa com pesar que:

O leitor há de ter notado que a partir da década de 70, desapareceu dessa narrativa um personagem anteriormente muito importante na nossa história, o sambista. Os valores mudaram. Sambistas da linhagem de Paulo da Portela, Cartola,

Antenor Gargalhada, Silas de Oliveira e tantos outros deixaram de ser protagonistas...1

Essa pesquisa, todavia, não segue a linha de interpretação de Sérgio Cabral e de pesquisadores como José Ramos Tinhorão, Hermínio Bello de Carvalho, Lúcio Rangel e outros, que nos anos 1960 e 1970 assumiram uma postura de afirmar que as velhas escolas de samba do passado haviam se perdido, dando forma a escolas desvinculadas de suas comunidades, sem tradição, inautênticas e dominadas pelo mercado. Seguindo outra convicção, verifica-se que esta conclusão não se sustenta inteiramente. As escolas de samba, pelo contrário, continuam muito ligadas às suas comunidades e em geral às camadas negras da população. Têm suas belezas e virtudes, assim como as do passado. Portanto, não cabe a essa pesquisa julgar os melhores ou piores tempos. O que parece concreto nas ideias de Cabral, e que se pretende analisar, é que de fato houve um processo de restrição da liberdade dos compositores e padronização de certos elementos. Esse fenômeno poderia ter levado ao afastamento dos antigos compositores e ao surgimento de novos espaços frequentados por esse grupo, assim como aos diferentes rumos dos novos sambistas que foram depois se inserindo no mercado musical, os quais por sua vez tinham pouca ou nenhuma relação com as escolas de samba cariocas.

A questão central da pesquisa, portanto, já foi assinalada: entender porque, a partir dos anos 1960, no Rio de Janeiro, boa parte dos compositores de samba que começam a se inserir no mercado musical, deixam de ter, ou tem pouca relação com as escolas de samba no sentido de sua formação e trajetória musical; rompendo portanto com uma tradição que vinha desde os anos 1930, de gerações de compositores de samba que tinham as escolas de samba como o seu símbolo de identidade e referência para a sua experiência musical.

Esta é a problemática central da pesquisa. E os objetos de análise, associados a esta questão de fundo, são três: o Zicartola, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo dos Palamares ( G.R.A.N.E.S.) e o Bloco Cacique de

1 CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Lumiar. 1996, p. 233.

Ramos. Neles, se constituíram sociabilidades entre sambistas, produtores musicais e outros artistas centrais para a constituição do mercado de samba nas décadas de 1960, 70 e 80. Sujeitos cujos vínculos sociais cada vez menos passavam pelas escolas de samba. Dentre as fontes pesquisadas, foram os espaços com o maior número de citações, tanto por parte da bibliografia especializada, como por parte dos sambistas com sucesso comercial no período. Essas observações com as fontes, fizeram-me elegê-los como os objetos centrais da pesquisa.

Mas é preciso atentar para dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, apesar de centrais, eles não foram os únicos, e por isso é preciso observar as dimensões ampliadas da sociabilidade. Ao focar-se demais em um objeto de estudo, pode-se correr o risco de circunscrever os seus agentes aos limites daquele espaço, perdendo-se a dimensão de que, para além da sociabilidade que envolve aquele lugar, os seus sujeitos transitam por outros cenários e estabelecem outras relações. Por isso, é preciso levar em conta que existem redes de sociabilidade2. Atrelado a estes espaços centrais da pesquisa, havia uma gama de outros locais por onde transitavam os seus agentes e se constituíam as redes de sociabilidade: outros bares, casas de show, blocos, terreiros, casas particulares, teatros, boates, etc.

Em segundo lugar, havia um contexto social, político e cultural no Rio de Janeiro e no país que precisa ser observado na relação com esses espaços. O Zicartola, por exemplo, foi um ponto importante de encontros e reuniões entre estudantes para discussões políticas no início da ditadura militar, especialmente depois que a União Nacional dos Estudantes (UNE), e seu Centro Popular de Cultura (CPC), foram

2 Conceito que me parece bem desenvolvido por Jean-Françoise Sirinelli, apesar do autor estar falando de uma sociabilidade intelectual. Conforme Sirinelli, os meios de sociabilidade se constituem pelos espaços onde os laços se atam (um bar, uma editora, uma casa de cultura, etc.). E as redes de sociabilidade são dimensões que geram, ao mesmo tempo, inclusão, por se constituírem vínculos e integrações, e exclusão, por girarem em torno de valores e questões comuns compartilhadas. Segundo o autor, o pesquisador interessado em buscar a história de uma determinada sociabilidade, precisa traçar uma arqueologia social, isto é, os espaços de convivência daqueles grupos, e os motivos de origem daquela sociabilidade. O que a motivou a se formar. Ver: SIRINELLI, Jean-Françoise. “Os intelectuais”. In: Por uma história política. (Org. René Remond). Rio de Janeiro: Editora FGV. 2003.pp. 248 - 254.

destruídos em abril de 19643. Para além, foi um local de fomentação de parcerias artísticas como o grupo Rosa de Ouro, o show espetáculo Opinião, dentre outros, centrais no contexto cultural de oposição ao regime militar; o G.R.A.N.E.S, por sua vez, reuniu ativistas como Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Candeia e outros, dentro de um projeto de valorização da cultura negra e afirmação identitária em um contexto de violência racial e disputas simbólicas.

Relacionar estes espaços ao contexto da ditadura militar, avaliando a sua interação, ao mesmo tempo, com as mutações do mundo do samba e as clivagens culturais e políticas pelas quais o pais passava, enfatizando o lugar do samba nas lutas culturais do período, se constitui como um dos objetivos centrais dessa pesquisa.

O Zicartola foi um bar e restaurante de samba que funcionou na Rua da Carioca, centro do Rio de Janeiro, entre 1963 e 1965. O terreno foi adquirido pela importante família Agostini, que tinha domínio sobre vários restaurantes e bares da cidade, e cedido ao casal D. Zica e Cartola (e por isso Zicartola), em setembro de 1963. No seu curto tempo de funcionamento, o espaço foi ponto de encontro de sambistas antigos e novos, jornalistas, intelectuais, bossanovistas, boêmios e estudantes, configurando uma sociabilidade importantíssima para a constituição de parcerias e grupos musicais e artísticos. Esses encontros, em certa medida, tiveram um papel de destaque no contexto político, cultural e social do período.

O restaurante reunia com frequência esses nomes que estavam distanciados de suas escolas de origem: Cartola, Ismael Silva, , dentre outros. Ao mesmo tempo, foi o espaço primordial do início da carreira musical de artistas como Paulinho da Viola, Elton Medeiros, . Paulinho, em 1964, trabalhava como bancário no centro da cidade, quando conheceu Hermínio Bello de Carvalho na fila da agência, e após algumas conversas o escritor o convidou para conhecer o Zicartola; Clementina, por sua vez, já cantava em alguns bares, mas foi se

3 Sobre esses encontros estudantis de discussões políticas no Zicartola, ver a obra de: CASTRO, Maurício Barros de. Zicartola: Política e Samba na Casa de Cartola e Dona Zica. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará. 2004.

apresentar pela primeira vez no restaurante de samba e participar das gravadoras após o contato com Bello; Elton Medeiros, compositor jovem naquele momento, já frequentava a casa de Cartola na Rua dos Andradas, mas foi a partir daquele espaço que começou de fato a despontar profissionalmente, e Paulinho tornou-se o seu principal parceiro de composições4. Os três, em comum, procuraram sim se vincular às escolas de samba. Paulinho chegou a ir em alguns ensaios da Portela, e Elton da Unidos de Lucas, mas não encontraram naqueles ambientes motivação e liberdade para comporem os seus sambas. Clementina, por sua vez, apesar de seu enorme talento, foi barrada pelo machismo que predominava nas escolas de samba, não havendo espaço para mulheres compositoras. Exemplo parecido ocorreu com . As décadas de 1960 e 1970 marcam um período de ascensão das mulheres compositoras no mercado de samba - Clementina, Ivone, Clara Nunes, Beth Carvalho, dentre outras, em um fenômeno que se relaciona bastante a este contexto novo de mercado e sociabilidade. Por meio dessas novas redes sociais, que envolviam principalmente o Zicartola, a Gafieira Estudantina, o Teatro Jovem, o Teatro da Rua Siqueira de Campos, as boates da zona sul, o bar de Araci Cortes, espaços que serão melhor analisados na tese, esse grupo de Paulinho, Clementina e Elton Medeiros formou parcerias com as velhas e novas gerações de músicos, participando de shows e gravações com grupos como o: Rosa de Ouro, Os 5 Crioulos, a Voz do Morro, dentre outros5. Portanto, esse representa um ponto de transição e conflito, de uma geração que procurou se articular com as escolas de samba, mas se inseriu socialmente e profissionalmente, de fato, em outros ambientes.

Seria impossível falar da crítica ao modelo das escolas de samba sem pensar na figura de Antônio Candeia Filho. O compositor, que havia se destacado na Portela

4 Sobre essas passagens de Hermínio Bello, Paulinho da Viola, Elton Medeiros e Clementina de Jesus dentro do Zicartola, ver suas biografias em: PAVAN. Alexandre. O Timoneiro: Perfil Biográfico de Hermínio Bello de Carvalho. Rio de Janeiro: Casa da Palavra. 2006, p. 70; COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas Histórias, Memórias Futuras: O Sentido da Tradição em Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: Editora Ufrg. 2001, pp. 81-87. & CASTRO, Felipe, MARQUESINI, Janaína, COSTA, Luan & MUNHOZ, Raquel. Quelé, a Voz da Cor: Biografia de Clementina de Jesus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2017, p.79.

5 Sobre o desenvolvimento da sociabilidade musical desses artistas, ver a pesquisa de: BOSI CONCAGH, Daniel. S. Zicartola e Paulinho da Viola: Sociabilidade do Samba e Construção de Narrativas. São Paulo: Universidade de São Paulo. Pesquisa de Iniciação Científica. 2017.

durante várias décadas, começou a enxergar a perda de certos valores que considerava fundamentais e a transformação daquele ambiente em uma máquina de dinheiro. Depois de inúmeras brigas com a direção e outros integrantes da Portela, Candeia decidiu afastar-se da escola e, junto com outros que compartilhavam dos seus ideias, fundar uma nova: o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo dos Palmares (G.R.A.N.E.S), fundado em 1975. O intuito desse espaço era promover espetáculos e encontros de valorização da cultura negra, resgatando jongos, partidos, cânticos rituais, etc. Seria interessante compreender como rapidamente esse lugar se tornou um ponto de referência de sociabilidade para compositores como Martinho da Vila, Zé Luís do Império, o próprio Candeia, Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola, dentre outros; como essa questão da militância negra se articulou às gravadoras, promovendo alguns desses artistas que até então eram desconhecidos e que encontraram lugar no mercado de samba da década de 1970; e como esse projeto se vinculou a diversas outras pequenas escolas e espaços em uma rede de sociabilidade.

Dois anos depois, em 1977, Candeia lançou junto com o pesquisador Isnard de Araújo a obra que refletia a sua militância e as bases do seu pensamento: Escola de Samba: a árvore que esqueceu a raiz, na qual atacava o modelo atual das escolas de samba, argumentando que elas estavam perdendo as suas referências. Nesta obra, os autores redigiram um manifesto6, defendendo que o sentido das escolas de samba deveria ser promover a liberdade das danças de origem africana nos desfiles, em oposição às coreografias padronizadas; defender a participação plena dos membros da comunidade, em oposição ao esquema que estava surgindo de pagar para desfilar e com isso excluir os mais pobres; defender uma escola mais livre, e não tão dependente do dinheiro e seus carnavalescos; e principalmente, defender a cultura e a arte negra, aspecto fundamental de sua militância7.

6 Ver o manifesto em: CANDEIA, Antônio. & ISNARD, Araújo. Escola de samba: a árvore que perdeu a raiz. Rio de Janeiro: Editora Lidador. 1978, pp. 90-95.

7 Sobre a militância e a trajetória de Candeia, ver: BOCSKAY, Stephen. A. Voices of samba: Music and the brazilian racial imaginary, 1955 - 1988. Brown University: Tese de doutorado. 2012.

O Bloco Cacique de Ramos, por sua vez, surgiu em 1961, no subúrbio carioca de Ramos, zona da Leopoldina. Conquistou, ao longo das décadas de 1960 e 70, um lugar de destaque dentre os blocos de rua do carnaval carioca, e no final dos anos 1970 tornou-se um ponto de encontro importante para jovens sambistas. Um lugar para tocar, conversar, comer e beber: portanto para fazer um .

Alguns desses jovens compositores decidiram formar um conjunto, o Grupo Fundo de Quintal, que contava com nomes como: Almir Guineto, Mario Sérgio, Jorge Aragão, (um pouco depois), dentre outros. Na página do grupo, na sessão de história, encontramos uma justificativa para o nome do conjunto: “Fundo de Quintal significa que qualquer um pode ser sambista, pois, o samba é produzido nos fundos de uma casa qualquer; e foi lá que ele nasceu”8. Sobre essa origem, me parece que os autores estão se referindo às casas das Tias baianas do início do século XX no Rio de Janeiro, onde supostamente teria nascido o samba amaxixado, e o lugar dos primeiros sambistas com inserção no mercado, como , e João da Baiana. e Luiz Antonio Simas observam que a palavra pagode tem origens africanas, e no começo do século passado se referia a “festas ruidosas”, onde se tocava, comia e bebia ao mesmo tempo. Esses encontros no Cacique eram acompanhados geralmente de rodas de samba com comes e bebes no centro. Os músicos, em certa medida, estariam retomando uma tradição pré-escolas de samba, das festas de samba que aconteciam nas casas e terreiros das tias (sendo a mais conhecida a de Tia Ciata). Os autores observam ainda que essa moda dos “ de mesa” se espalhou por diversos lugares do Rio no final da década de 1970: havia o Cacique de Ramos, o pagode da casa de João Nogueira, o Terreiro da Tia Doca, o Pagode do Arlindinho, dentre outros9. Esses espaços também constituíram parte de uma rede de sociabilidade comum.

“O samba pode vir de qualquer lugar, do fundo de qualquer quintal”, parece-me uma ideia chave, a ser melhor desenvolvida para esse processo que se

8 www.Grupofundodequintal.com.br. Página “história”. Acessado em 03/05/2017. 9 LOPES, Nei & SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da História Social do Samba. Verbete Pagode. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2015.pp. 207-209.

pretende estudar. Dessa nova leva de compositores que desponta, como Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Bira Presidente, dentre outros, praticamente nenhum deles manteve vínculos com qualquer escola de samba. Portanto não se trata mais de uma geração que procurou e não encontrou espaço, ou fez uma crítica aos novos modelos, mas simplesmente já não tinha mais grande relação com aquele mundo. O que seria interessante entender aqui é como o mercado se articulou tão bem com o termo pagode e com esses artistas para formar um selo de vendagens astronômicas nos anos 1980 e 1990.

O leitor deve ter atentado para o fato de que, quando me referi aos compositores de samba, não me referi a qualquer tipo, mas estritamente àqueles ligados ao mercado musical. Ora, é claro que existiram centenas de compositores de samba fora das escolas de samba entre os anos 1930 e 1960, assim como existiram outras centenas nas escolas entre 1960 e 1990. Gostaria de deixar claro que estou estudando aqueles que tiveram inserção no mercado da música: seja vendendo canções para intérpretes de rádio, seja cantando nas rádios, seja gravando e vendendo discos, seja ganhando dinheiro na televisão, etc. E que, é sobre essa esfera de compositores que estou observando uma transformação: de uma origem que perpassava as escolas de samba, para uma origem que perpassa outros espaços a partir da década de 1960; ou ainda: de um mercado que tinha relação com os compositores de samba das escolas para um mercado que passou a ter relação com compositores de outras origens. E claro, nem todos trilharam esse caminho, mas a sua maioria.

Ao longo dessa apresentação procurei traçar o recorte temporal, 1960-1985: 1960 não representa nenhum marco específico, mas uma série de acontecimentos (transformações nas escolas de samba, entrada de profissionais de outras áreas, saída de compositores antigos, abertura de novos espaços, mudanças no mercado musical, etc.) importantes para essa transformação que pretendo analisar. É a partir do início da década de 1960, por um lado, que as transformações nas escolas de samba começam a se intensificar, acompanhadas por um movimento de crítica na comunidade musical e jornalística. E por outro, que ocorre um crescimento no mercado cultural brasileiro com novos segmentos jovens consumidores. No plano da música, especificamente, isso se intensifica com o investimento em “velhos” artistas que estavam fora deste

mercado, e novos compositores e intérpretes10. Esses artistas, por sua vez, no contexto do samba, começam a frequentar outros espaços a partir desse momento; 1985, por sua vez, representa o marco comercial do pagode com o lançamento do álbum Raça Brasileira, que reuniu nomes como Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra e outros, tornando-se um sucesso estrondoso de vendas, e consolidando esses artistas, que já representam uma fase de distanciamento com as escolas da samba e de afirmação do “gênero” como uma nova aposta do mercado. Justamente por atingir altas vendagens, é a partir daí que o mercado musical passa a investir nesses nomes, criando um cenário comercial de destaque para as músicas e seus artistas nas décadas de 1980 e 1990. Esses músicos construíram na sua imensa maioria parcerias sociais e musicais nesses outros espaços, com pouca ou quase nenhuma relação com as escolas no início das suas trajetórias comerciais.

10 Sobre esse investimento no mercado musical nacional ver: NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a Canção: o Engajamento Político e a Indústria Cultural na MPB (1959-1969). São Paulo. Annablume - Fapesp. 2001, p. 21.