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Departamento de Comunicação Social

Ficções que constroem memórias: representações femininas na Lado a Lado

Aluno: Flavia Pontes Espíndola Orientador: Tatiana Oliveira Siciliano

Introdução: Que produto estamos analisando? A telenovela no Brasil.

Rose Calza (1996) em O que é a Telenovela define o gênero como produto midiático que pode ser considerado uma forma de arte popular, por ter surgido a partir de adaptações de outros gêneros: literatura, cinema e teatro. Para Nelson Rodrigues, a telenovela é filha do folhetim e, portanto, não desaparecerá nunca da vida do homem (ALENCAR, 2002). Os folhetins são uma invenção francesa da década de 1830, que indica um espaço no jornal, mais especificamente o rodapé, incialmente destinado à publicação de miscelâneas e depois fica famoso com a publicação de capítulos de romances. O folhetim foi muito comum na imprensa do século XIX e teve como autores nomes ilustres como Alexandre Dumas na França e Machado de Assis no Brasil. No Brasil, concepção folhetinesca atingiu o ápice com a transmissão da radionovela O Direito de Nascer, acompanhada de sua publicação em fascículos, em 1952.

Embora o folhetim do século XIX, além do rádio e do teatro, tenham lhe servido de matriz, a telenovela brasileira construiu uma linguagem própria, não se limitando seguir a fórmula narrativa do chamado “dramalhão” das radionovelas. Tendo em vista, que a televisão é o meio de comunicação que mais atinge a massa, se traduz como um poderoso instrumento de difusão da informação. Tal característica influencia na produção da telenovela, nota-se uma preferência na manutenção do narrativo em detrimento do visual, com o objetivo de ser mais acessível ao público. Apesar da televisão disponibilizar recursos, como a imagem e o som, no caso da produção da telenovela a imagem é menos explorada, diferentemente, do que acontece no cinema. A novela, portanto, prioriza os diálogos de personagens, é uma arte que se exprime, principalmente, através dos diálogos, das palavras.

No Brasil, a telenovela assumiu um lugar de prestígio na indústria cultural1. Hoje, o país é o principal exportador do produto. A novela brasileira se diferencia, principalmente, na qualidade da produção, utilizando recursos técnicos sofisticados. A criação da Central Globo de Produção, na década de 1970, viabilizou a qualidade técnica da produção das , que passaram a receber poderosos investimentos financeiros. O objetivo da Rede Globo era transformar a estrutura de produção da telenovela semelhante a de uma empresa, com etapas de produção em massa, índices de qualidade, e que criasse um padrão sofisticado a marca.

O modo “moderno” de produzir telenovela possibilitou nos mantermos no mercado. E assim inovar no tipo de ficção, baseado em crônicas do cotidiano, abordando temas polêmicos, como valores morais, políticos e religiosos, enfim, difíceis de serem abordados em culturas

1 Cf, definição do Dicionário de Comunicação Houaiss (NEIVA, 2013:292), indústria cultural é “divulgação massificadora por meio do qual a mídia, funcionando como um sistema mercantil industrial, impõe formas universalizantes de comportamento e consumo”. Departamento de Comunicação Social mais conservadoras. O melodrama é a base estrutural da telenovela, embora seja associado a canastrice e ao dramalhão, pode ser considerado uma mistura de linguagens, musical, verbal, vocal e visual. A medida que as novelas dialogavam com as questões atuais, garantia o sucesso do público (CALZA, 1996).

Do ponto de vista mercadológico, a telenovela transformou-se em um produto lucrativo, de alto retorno financeiro, que se firmou no mercado brasileiro como um dos maiores fenômenos da indústria cultural. O fato da telenovela atingir muitas pessoas e de influenciar nos valores morais, no comportamento e nos padrões de seu público, torna-se uma alternativa promissora para o publicidade. Com a aliança da publicidade e do marketing, a programação da telenovela passou a ser organizada em estratégias de mercado, como o caso dos intervalos comerciais que dividem a estrutura narrativa em blocos.

As reformas urbanas e a aspiração ao modelo de capital civilizada: cenas de Lado a Lado

O primeiro capítulo da novela Lado a Lado começa com a contextualização da época de 1903, no Rio de Janeiro. Os recursos utilizados são fotos antigas, que retratam o centro da cidade, construções, o bonde e as reformas urbanas. As fotos evidenciam as transformações que a cidade do Rio de Janeiro passava para atingir o ideal de modernidade e cosmopolitismo desejado pelas elites. Período que ficou conhecido como “bota-a-baixo”.

Figura 1 – Abertura da primeira cena da telenovela Lado a Lado em 10/9/2012

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Figura 2 – Imagens do Rio de Janeiro de 1903 trazidas pela telenovela no primeiro capítulo

Figura 3 – Demolições na cidade retratadas (em fotos antigas) pela telenovela

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Figura 4 – Cotidiano da cidade (fotos antigas) na telenovela

A gestão política de Rodrigues Alves (1902-1906) foi marcada pelas reformas urbanas na antiga capital federal, cujo o objetivo era o “saneamento da cidade”, com intuito de transformar a capital do Império em um modelo próximo as cidades remodelas europeias, a partir de Haussmann e apagar as marcas "coloniais" e "africanas", dando lugar aos hábitos "civilizados". O sonho de transformar o Rio de Janeiro em uma cidade civilizada parecia real e para o plano político de "saneamento da capital" acontecer, Rodrigues Alves contou com a ajuda dos engenheiros Lauro Muller, Pereira Passos e do médico sanitarista Oswaldo Cruz. Afinal, o projeto político da república era baseado em dois pilares: o progresso e a disciplina. Entretanto, a filosofia republicana de liberdade e igualdade para a população não ocorreu (ABREU, 2013; ARAÚJO, 1995 e SICILIANO, 2012).

Na novela Lado a Lado várias cenas mostram a adesão das elites ao projeto de governo. Uma das mais significativas, que se passa em 11/9/2012, traz Carlota Passos (Christiana Guinle), que na trama é irmã da baronesa Constância (Patrícia Pillar), comentando com sua irmã Celinha (Isabela Garcia), que jamais o Rio de Janeiro será como Paris, enquanto casais negros frequentarem estabelecimentos chiques da cidade.

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Figura 5 – Isabel () e Zé Maria (Lázaro Ramos) vão a uma confeitaria elegante e sofrem discriminação em cena de 11/9/2012

No imaginário da elite, representada na telenovela pela personagem Carlota, um casal negro, vindo de um extrato social menos favorecido culturalmente e economicamente, não poderia se portar dentro dos códigos de etiqueta da elite, que eram inspirados nos moldes europeus. Assim, o Rio não se civilizaria se permitisse que os pobres e ex-escravos frequentassem os mesmos lugares refinados das classes mais abastadas. Com as transformações urbanas e a introdução de novos lazeres e sociabilidades, o espaço público recebeu maior foco de atenção. As ruas passaram a ser local de passeio e com isso houve intervenções em relação aos modos e costumes da população de baixa renda.

As grandes avenidas, representadas no Rio de Janeiro, pela Avenida Central (atual Rio Branco) e Beira Mar, que foram abertas na gestão de Rodrigues Alves, eram os locais que os orgulhosos membros do poder público e habitantes que aspiravam os modelos europeus, faziam o “footing” e andavam para ver e serem vistos. Quanto aos populares, a rua era pública, mas suas vestimentas e hábitos, não eram bem-vindos. Pois, o novo estilo de vida urbano era mais individualista e caracterizou-se pela adoção de costumes burgueses, no modo de desfrutar as atrações urbanas ou populares e de criar formas de divertimento acessíveis financeiramente. Logo, por essa razão, aflorou a vida noturna carioca. Já as relações familiares nos anos de 1890 e 1920 representa a transição entre o comportamento tradicional e o moderno.

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Figura 6 – Avenida Central em 1906 com o conjunto de edifícios. Foto Augusto Malta. Retirado de Kok, 2005.

Figura 7 – Avenida Beira Mar em 1908. Foto Marc Ferrez. Retirado de Kok, 2005 Departamento de Comunicação Social

Embora o cartão postal das Avenidas Central e Beira Mar agradassem aos olhos dos transeuntes e aos estrangeiros, a desigualdade permanecia. A telenovela, inclusive, apresentou esse dilema em várias passagens. Um dos pontos complexos, foi a expulsão dos menos favorecidos para as favelas, que começavam a se formar a partir do Morro da Providência e a migração para os subúrbios, intensificada devido ao desenvolvimento dos meios de transporte, como o bonde e o trem. Entre as datas de 1890 e 1906 as zonas denominadas rurais cresceram 100%, já as zonas urbanas acerca do centro, cresceram 44%. Entretanto, as apropriações das áreas mais afastadas agravaram os problemas gerados pela falta de serviços comunitários essenciais, como as epidemias de varíola e febre amarela somadas a disseminação da malária e tuberculose (ARAÚJO, 1995 e ABREU, 2013).

A condição feminina nas cenas de Lado a Lado:

Já na abertura da novela, em 10/9/2012, aparece a protagonista Laura (Majorei Estiano), mulher jovem e de origem nobre, experimentando o vestido de noiva inteiramente branco e de estilo romântico, acompanhada da mãe, a baronesa Constância e da tia, Celinha. A mãe aconselha a filha a como uma mulher casada deveria se comportar no código de etiqueta da época. O importante era arrumar casamento e mantê-lo. Laura não concordava com as ideias maternas, desejava ela mesma fazer suas escolhas sentimentais e de vida, que incluía ter uma profissão e estudar.

Figura 8 – Constância e Laura experimentando vestido de noiva em 10/9/2012.

O pensamento de Laura só é possível na virada do século XIX para o XX, onde a mulher burguesa já pode ganhar a “rua”, diferente da mulher da primeira metade do século XIX (LEITE, 1993) saindo da casa para passeios diurnos a pretexto de encontrar amigas, tomar chá nas confeitarias e “flanar” nos logradouros chiques e remodelados, saindo um pouco do controle familiar ao escapar do domínio privado para a esfera pública.

A rapidez das transformações urbanas na virada do século XX, impulsionaram mudanças na dinâmica familiar, como a neutralização da figura do homem como força social dominante e a Departamento de Comunicação Social redefinição das formas de socialização da mulher em quatro âmbitos: direito, educação, trabalho e lazer. O aumento da oferta de eventos artísticos e culturais, a influencia dos hábitos de diversão, o aprimoramento educacional e o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação foram mudanças cruciais para ampliar a socialização feminina (ARAÚJO, 1995).

Os primeiros 30 anos da república brasileira representaram a transformação dos costumes, apesar de manter o ideal do casamento para mulheres, que estavam sujeitas as regras sociais, como a virgindade antes do matrimônio. Os maridos tinham o "direto" a infidelidade, o que tornou a prostituição um elemento de equilíbrio da organização familiar. Entretanto, o projeto higienista republicano condenava a prática do prazer sexual fora do casamento, por motivos morais e de saúde. Os rapazes solteiros, com hábitos considerados libertinos, ficavam mais expostos a doenças venéreas.

Em relação ao direito político das mulheres, o alistamento eleitoral para participar das votações era nitidamente possível, mas não ocorria. O papel do homem na organização familiar como formador de opinião, foi um dos principais motivos para impedir a prática dos votos para mulheres, já que a cidadania era exercida por seus maridos. Além deste fato, para se ter direitos políticos era necessário ser proprietário de terra. Logo, as mulheres não tinham o direto a terras, igualmente aos escravos, e também não poderiam administrar os bens de seus maridos. A mulher não tinha acesso a educação de qualidade, o que dificultava inserção no universo da política e de se engajar em lutas sociais.

No período republicano, o progresso da educação feminina foi mais perceptível. Antes, a maioria das mulheres cariocas eram analfabetas. Entretanto, o acesso ao ensino secundário era precário e muitas vezes restrito aos homens. Já que o ensino secundário representava uma forma de se inserir no mercado de trabalho, e não esperavam isso das mulheres. A Constituição Republicana foi determinante ao separar a Igreja do Estado, foi um fator de mudança na educação feminina, não mais obrigada a seguir à risca a moral cristã.

No entanto, o poder ainda era masculino e pátrio. No Rio de Janeiro, as mulheres dependiam da autorização prévia dos maridos para exercer uma ocupação, como exemplo para ingressar ao magistério de escolas públicas, era necessária autorização dos maridos por escrito e se fossem divorciadas, o papel do divórcio (ARAÚJO, 1995).

A mulher nessa época não havia conquistado papel relevante no espaço político, embora já tivesse ampliado seus domínios da “casa”, para a “rua”, do espaço privado para o público. O que tornava o discurso da personagem Laura, na telenovela, de querer ser livre, independente e emancipada, um tanto vanguardista para época. Contudo, o fato de Laura pertencer à elite e ter tido uma educação primorosa, dava subsídios para reflexão, tornando seu protesto possível, embora improvável.

Laura também protagoniza outro embate interessante para uma mulher da elite. Pede ao marido Edgar divórcio, pois achava que ele estava tendo um caso. A cena da assinatura do divórcio no cartório, em 5/11/2012, retrata que a iniciativa e a escolha partiu da personagem Laura, da esposa. O personagem Edgar aceitou apenas por que as consequências da negação prejudicariam a reputação de esposa. O direito ao divórcio foi uma das pautas femininas no Brasil. Após a proclamação da República foi instituído o casamento civil, que depois tornou- se obrigatório. Na época de Lado a Lado (1903-1910), o divórcio permitia apenas a separação dos corpos e bens do casal, o matrimônio era indissociável. No entanto, a indissolubilidade do Departamento de Comunicação Social casamento variava de classe social para classe social. Isabel (Camila Pitanga) a outra protagonista da novela, negra e pobre, mas amiga de Laura, sofre preconceitos não por se separar, mas por ter um filho sem ser casada, mas isso só acontece na esfera familiar. A mulher pobre pode (e deve) trabalhar e acaba sendo menos regulada em relação à moral burguesa, embora sobre ela existam os rigores mais severos da necessidade. As representações femininas - que são categorias de pensamento socialmente compartilhadas e, desta maneira, relacionada ao contexto histórico, mas que não somente reproduzem, mas também são produtoras de signos e sentidos (FRANÇA, 2004) - são bem vívidas na telenovela Lado a Lado. Um olhar feminino, da assinatura de uma das autoras, Claudia Lage, destaca um papel de agente para as mulheres da época. E como a telenovela contou com equipe de historiadoras na assessoria, apesar dos discursos feministas das personagens serem pouco prováveis, não eram inverossímeis, tendo desta maneira, a telenovela contribuído para elaborar novas representações da mulher na mídia.

Referências

1. ABREU, Maurício. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IPP, 2013. 2. ALMEIDA, Heloísa Buarque de. “Trocando em miúdos. Gênero e sexualidade na TV a partir de Malu Mulher”. In: RBCS, volume 27, número 79, junho de 2012. 3. ALENCAR, Mauro. A Hollywood brasileira. Panorama da telenovela no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Senac, 2004. 4. ARAÚJO, Rosa Maria B. A vocação do prazer. A cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. 5. CALZA, Rosane. O que é telenovela. São Paulo, Brasiliense, 1996. 6. FRANÇA, Vera Regina Veiga. Representações, mediações e práticas comunicativas. In: PEREIRA, Miguel; GOMES, Renato Cordeiro e FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain (Orgs.). Comunicação, representação e práticas sociais. Rio de Janeiro, Ed. PUC; Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2004. 7. LEITE, Míriam Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro XIX. São Paulo, Ed. EDUSP, 1993. 8. NEIVA, Eduardo. Dicionário Houaiss de Comunicação e Multimídia. São Paulo, Publifolha, 2013. 9. SICILIANO, Tatiana Oliveira. “Metamorfoses guanabarinas: o Rio de Janeiro no raiar do século XX por Arthur Azevedo”. In: Interseções. Vol. 14, número 2,dez. 2012.

Sites acessados:

1. Disponível em: http://gshow.globo.com/novelas/lado-a-lado/ . Acesso em: 28 de julho .2016. 2. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas.htm. Acesso em: 28 de julho.2016.