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NEGOCIAÇÕES DO FEMININO NA NOVELA LADO A LADO: DESAFIOS ROMÂNTICOS NA CONTEMPORANEIDADE

Mayara Magalhães Martins 1 Antonio Crístian Saraiva Paiva 2

Resumo: A televisão é conhecida como um dos dispositivos tecnológicos responsáveis pela integração cultural brasileira. A novela é um dos produtos televisivos considerado como um dos mais bem sucedidos no Brasil. A partir da década de 1970 as novelas ganham temáticas atuais e passam a ter uma estética mais realista. Tradicionalmente conhecidas por dialogar com o público feminino, os temas que pautam essas narrativas envolvem o relacionamento amoroso, dilemas familiares e desafios cotidianos relacionados a inserção da mulher no mercado de trabalho vividos por heroínas quase sempre são marcadas pela sua retidão moral. Porém, em Lado a lado, novela de época exibida às 18h, uma das protagonistas, Laura, embora não subverta completamente a moral do que se compreende como a “boa moça” nos dias atuais, é uma personagem como modos bastante avançados para o início do século XX. Laura se divorcia e busca sua autonomia financeira, sem, contudo, abrir mão dos ideais românticos. Neste trabalho busco compreender de que forma mulheres internautas, participantes de um grupo de discussão no Facebook, compreendem a trama da personagem Laura. Como elas negociam as permanências e mudanças femininas através do texto teledramático e como elas conciliam demandas românticas com outras expectativas femininas. Palavras-chave: , figurações femininas, romantismo, redes sociais

Introdução

O presente artigo busca apresentar reflexões sobre o amor, a relação conjugal e o feminino na telenovela “Lado a lado” a partir de abordagens metodológicas que começaram a ser desenvolvidas no campo acadêmico: a etnografia virtual e o estudo de recepção na Internet. Nos últimos anos é crescente o número de pessoas que têm acesso ao computador e a Internet. Cada vez mais estas tecnologias são utilizadas como recurso de comunicação, lazer e sociabilidade. As interações on-line e as possibilidades que a tecnologia digital nos oferece transformam nossas formas comunicação e altera nosso ritmo cotidiano. Atividades corriqueiras como assistir televisão são reinventadas. A ideia do telespectador passivo ao conteúdo exibido na televisão torna-se cada vez mais distante. Nas redes sociais os programas televisos são temas recorrentes nas publicações dos internautas. Nesta perspectiva, as , um dos programas mais populares e de maior audiência da TV brasileira, também não escapam das críticas e elogios dos usuários da Internet.

1 Doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Bolsita Capes. E-mail: [email protected] 2 Prof. Dr. do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.

1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

Sobre o gosto do telespectador em conversar sobre telenovelas vale dizer que este hábito não é novo. Martín-Barbero (2009) percebeu em seus estudos que seus interlocutores tinham mais prazer em contar do que em assistir este tipo de programa. Certamente o que se caracterizaria como diferença entre o modo tradicional de se assistir televisão e as práticas mais atuais é que hoje, com o acesso a Internet, a possibilidade de interação no momento em que se assiste a telenovela, ou após a sua exibição, se estende a um grupo maior de pessoas. No mundo contemporâneo não se fala mais sobre as telenovelas apenas com os membros da família ou com grupos de amigos. Na Internet o telespectador pode interagir com qualquer um que assista telenovelas e esteja disposto a falar sobre suas tramas. Pesquisas de caráter mercadológico e estudos acadêmicos como o de Lopes e Mungioli (2012) revelam que o comportamento de ver televisão conectada a Internet é um hábito que os brasileiros vêm cultivando. Atenta a esta nova forma de assistir televisão proponho neste trabalho um breve estudo de recepção na Internet. No início do século XX os estudos críticos na área da comunicação de massa privilegiavam em suas análises o papel do emissor no processo comunicacional. As críticas, sobretudo as formuladas nos estudos ligados a Escola de Frankfurt, concebiam o emissor de mensagens como ativo, produtor absoluto de sentidos, e um receptor passivo, incapaz de produzir conhecimento e discursos com um ponto de vista próprio. A partir de 1980, os chamados estudos de recepção propõem uma nova forma de conceber o processo comunicacional, o receptor deixa de ser compreendido como alguém inerte e passa a ser considerado como um sujeito capaz produzir sentidos (Sousa, 1995). Umas das maiores referências no campo dos estudos de recepção é Jesus Martín-Barbero, num dos seus trabalhos mais conhecidos, “ Dos meios às mediações ”, o autor reestrutura o modelo analítico do processo comunicacional deslocando a análise do meio de comunicação (o emissor) para onde o sentido é produzido (receptor). Na concepção do autor os sentidos das mensagens transmitidas pelos meios de comunicação são definidos pelos usos sociais que os receptores fazem das mensagens. Os estudos de recepção tentam, portanto, resgatar a complexidade da vida cotidiana para compreender os sentidos produzidos pelos receptores. Por ser um método analítico de caráter micro os estudos de recepção construiu relações estreitas com o método de pesquisa antropológica, a etnografia. Os fundamentos dos estudos de recepção são, pois, a audiência ativa e o conteúdo dos meios, considerados abertos a diferentes interpretações. Nos estudos de recepção na Internet esses

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fundamentos se concretizam na medida em que a audiência tem suas possibilidades de participação ampliadas, mais do que ativo o receptor é, portanto, interativo. Se na etnografia tradicional a convivência com um grupo é o instrumento básico para captar valores subjacentes nos entremeios das práticas sociais, na etnografia virtual a materialidade simbólica conta a favor da pesquisa, pois na web , “para que esses valores culturais sejam compartilhados, necessitam obrigatoriamente perpassar a tela do computador, deixando rastros tangíveis” (Knewitz, 2009, p. 10). Nos estudos de recepção os sentidos produzidos pelos sujeitos são compreendidos a partir de suas relações sociais de poder. Por tentar compreender o receptor em sua subjetividade, os estudos de recepção privilegiaram o ambiente doméstico como campo de pesquisa. Na dinâmica das pesquisas diversas formas de relação de poder são percebidas, dentre as que mais ganharam relevância estão as envolvem as desigualdades de gênero e de classe. No que diz repeito a recepção na Internet é importante considerar os limites de interpretação que se configura com esta nova realidade. Lacalle (2010) mostra que na Internet a noção de espaço se comprime e se converte numa espécie de “não-lugar” (Augé, 1994). Nesta perspectiva, o pesquisador que propõe realizar estudo na Internet deverá perceber que nem sempre marcadores sociais que tradicionalmente são usados em pesquisa face a face serão pertinentes ou poderão ser usados com segurança na pesquisa do campo virtual. Neste caso, o pesquisador deverá engendrar novas categorias compatíveis com seu campo. Se devido à própria estrutura da Internet os limites espaciais se diluem, no caso mais específico das comunidades virtuais dedicadas as telenovelas os limites que determinam as diferenças de classe não são claras, portanto, considerar categoria de classe neste contexto de estudo não é recomendado. No presente estudo escolhi compreender as produções de sentido entre as internautas 3 sob uma perspectiva de gênero, pois além das telenovelas serem produtos culturais voltados para o entretenimento feminino, a participação das mulheres em comunidades virtuais de telenovela é mais expressiva se comparada aos homens. Neste estudo foi tomada como objeto empírico a telenovela “Lado a lado”, escrita por Claudia Lage e João Ximenes Braga, transmitida no horário das 18h pela Rede Globo, de 10 de setembro de 2012 a 09 de março de 2013, teve sua história ambientada no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o século XX.

3 Uso o artigo feminino antes do substantivo internauta porque nas comunidades dedicadas às telenovelas a participação das mulheres é expressivamente superior aos dos homens. Em todo o texto, quando me referir às participações na comunidade, sempre usarei expressões no gênero feminino.

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Sobre o campo virtual, optou-se por realizar a pesquisa numa comunidade do Facebook, pois esta é atualmente a rede social mais popular entre os brasileiros. No que diz repeito a comunidade selecionada para o estudo foi feita uma pesquisa com a sentença “novela Lado a lado” usando uma ferramenta de busca do próprio Facebook e utilizando um filtro em que apenas comunidades fossem visualizadas. Na seleção da comunidade foi levado em consideração o seguinte critério: a participação diária de vários membros da comunidade. Este critério foi fundamental para a pesquisa porque a matéria-prima deste trabalho foi às publicações dos participantes. É interessante dizer que a participação dos membros do grupo foi tão intensa dentro da comunidade e fora dela (em outras redes sociais) que elas ganharam visibilidade entre os atores de “Lado a lado”, sendo o grupo até mesmo citado em matérias publicadas na Internet. As questões que conduziram este trabalho foram delineadas a partir da leitura das publicações deixadas na comunidade. Após o levantamento dos registros tentei tecer minha análise guiada pelos temas que me pareceram mais significativos para as internautas, chegando às seguintes indagações: De que forma as internautas compreendem a trama da personagem protagonista? Como as internautas negociam permanências e mudanças femininas através do texto teledramático? Como elas produzem um discurso que conciliam demandas românticas com as novas expectativas femininas sobre o matrimônio? A telenovela brasileira, por uma forte influência dos romances folhetinescos do século XIX, é também conhecida como “folhetim eletrônico”. Tanto os romances românticos quanto as telenovelas são produtos voltados preferencialmente ao entretenimento feminino. Considerando esta trajetória das narrativas de massa produzidas no Brasil e o público alvo que estes produtos buscam alcançar, proponho ainda fazer um breve debate sobre a relação da literatura e do amor com a “produção” da subjetividade feminina moderno, pois, como veremos adiante, ao conversar sobre a telenovela as internautas vão reconstituindo através da escrita as atitudes dos personagens a partir de suas experiências enquanto mulheres.

Consumo cultural, o amor e as mulheres

A ascensão do modelo de família burguesa coincide com o avanço técnico de diversos saberes. No campo das artes (ou entretenimento) o desenvolvimento técnico da impressa ampliou o acesso à leitura. Os romances publicados nos jornais em formato de folhetim difundiu o hábito de ler.

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Nos romances modernos os temas mais recorrentes são aqueles que tratam dos conflitos típicos do período de transição do século XVIII e XIX: o casamento por amor e as crises matrimoniais. Para Maria Rita Kehl (1998) a literatura “inventou” o amor burguês e o casamento burguês abriu espaço para uma “invasão literária” porque as regras de composição do matrimônio tradicional foram esvaziadas e as narrativas românticas ofereceram um novo roteiro simbólico para a constituição dos laços conjugais. No período colonial brasileiro Costa (1989) mostra que o casamento entre as pessoas de classes sociais privilegiadas respondiam a interesses econômicos e de ascensão social da família patriarcal, ou seja, da família que seguia as ordens e vontades do pai. Os interesses que regiam a família patriarcal era a conservação da riqueza e do prestígio social. No Brasil Colônia as tentativas de urbanizar o país e estabelecer um modelo de administração estatizada encontrou dificuldade na medida em que os interesses públicos mexiam com os interesses privados das famílias mais ricas. O projeto de ascensão do Estado nacional tinha entre outros objetivos à proteção da saúde pública e a ordenação da cidade. O eixo central desse projeto era reordenação dos limites entre público e privado. Nesta perspectiva, a família e a sexualidade do casal eram conceitos limites entre o biológico e a cultura. Na formação da família burguesa a prioridade do casamento deixa de ser da ordem patrimonial e o investimento passa a ser o envolvimento amoroso. Aos poucos os pais deixam de impor aos filhos com quem devem casar, ficando sob o critério dos noivos a escolha do cônjuge. O modelo institucionalizado da família burguesa definiu de forma clara os limites entre público e privado. Tais limites correspondiam claramente aos papeis sociais que homens e mulheres deveriam exercer dentro e fora da família. Aos homens estavam reservadas as paixões ilícitas, a vida pública e a política, às mulheres restava à gestão do espaço doméstico e o dever com a continuidade da espécie. Na interpretação de Kehl (1998) a “fúria de ler” das mulheres burguesas foi estimulada por uma vida pobre de experiências emocionais. O recolhimento à leitura levaram as mulheres a se aventurarem em emoções muitas vezes distantes das suas. A leitura de romances rapidamente tornou-se uma prática feminina. As mulheres sonhavam em satisfazer suas expectativas amorosas no casamento porque este era o único lugar legítimo em que elas poderiam viver um romance. O casamento ocupava toda a vida da mulher, casar e ter filhos era praticamente o único destino possível. Neste contexto, a leitura levou muitas mulheres a experimentar na imaginação tudo aquilo que o machismo reprimia na vida social.

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Considerando o consumo literário no processo de constituição da subjetividade feminina moderna, é possível afirmar que a leitura de romances românticos foi um elemento de socialização importante. As mulheres aprenderam a escrever a própria história mediando ficção e realidade. O amor e o romance tornaram-se o sentido maior da união conjugal. Ao mesmo tempo em que a leitura de romances, de alguma forma, entorpecia as mulheres distanciando-as da rotina de reclusão ao espaço doméstico, o amor, definido pela livre escolha do amante, subverteu o lugar de submissão feminina porque foi dada ela a oportunidade de ter sua voz ouvida. Se o casamento era o destino da mulher, escolher ela própria o companheiro significava decidir de maneira autônoma o seu destino. Até aqui a produção da subjetividade feminina moderna foi pensada como algo que possui estreitas relações com a literatura romântica. Nos anos de 1940, com surgimento do rádio, a leitura deixa de ser a única prática de consumo de histórias de amor. Nas radionovelas, e depois nas telenovelas que começaram as serem exibidas em 1950, as narrativas românticas dos folhetins foram adaptadas aos novos suportes e o consumo de histórias de amor se difundiu. Hoje a telenovela, mesmo com a concorrência da Internet, é um dos produtos culturais de maior audiência no Brasil. Sua difusão na sociedade brasileira influencia e se deixa influenciar pelo cotidiano das grandes cidades do nosso país. A telenovela brasileira é para nós uma espécie de agente mobilizador de repertórios coletivos e nesse contexto a Internet se transforma em espaço ideal para debater sobre a vida das personagens.

Negociações amorosas entre as fãs virtuais de “Lado a lado”: o casal Laura e Edgar

Acima informei os critérios que me levaram a escolha pela comunidade estudada. Esclareço que no grupo atuei apenas como leitora e que as análises construídas foram conduzidas pelas publicações das participantes da comunidade. A opção de concentrar a investigação em apenas um casal se deve ao fato de que na própria comunidade o interesse estava dirigido à relação de Laura e Edgar. Imagino que este interesse específico pelo casal pode ser associado ao fato de que parte dos membros da comunidade é fã da atriz , interprete de Laura. A admiração pela atriz, provavelmente, foi projetada para a personagem. No artigo não será possível abordar toda a trajetória do casal, portanto, o que será debatido é apenas um fragmento da história que diz respeito ao pedido de divórcio que Laura faz a Edgar (Tiago Fragoso), tema recorrente entre as publicações na comunidade.

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Agora que foi definido o recorte empírico que se chegou após o levantamento de dados na comunidade, apresento a descrição do romance e a respectiva leitura das internautas. Laura, filha de ex-aristocratas barões do café a beira da falência, era uma jovem dedicada aos estudos, formou-se professora e pretendia exercer a profissão após o casamento. Na esperança de reerguer financeiramente a família, Constância (Patrícia Pilla), mãe de Laura, arranjou o casamento da filha com Edgar, um jovem rico. Logo após o noivado o rapaz viajou para Portugal e viveu por lá por alguns anos cursando a faculdade de Direito. Quando concluiu os estudos Edgar retornou ao Brasil para casar-se com Laura, mas assim como a noiva, Edgar não tinha certeza se deveria contrair o matrimônio, pois não seria um casamento por amor. Receosos em descumprir o compromisso Laura e Edgar se casaram, mas só passaram a manter um envolvimento sexual quando se apaixonaram. Comparando trama do casal com as referências históricas, é certo que o conflito inicial vivido por ambas as partes é coerente com os impasses amorosos e conjugais na época em que “Lado a lado” se passa. Inserção do conceito de amor romântico parece claro na telenovela quando a condição para o exercício da sexualidade do casal é condicionada a existência do vínculo afetivo. Embora o casamento seja arranjado, ele só se concretiza, isto é, a relação sexual só acontece quando os dois se apaixonam. Edgar demonstra ter bom caráter e ser um bom marido, é e apoia a esposa a seguir sua carreira de professora. Porém, o casamento dos dois foi abalado quando Laura descobriu que seu marido teve uma filha, Melissa (Elis Davi), fruto de uma relação amorosa que Edgar manteve com Catarina (Alexandra Negrini), antes do casamento com Laura, quando ele vivia em Portugal. Na comunidade as publicações deixavam claro que as telespectadoras esperavam um final feliz para o casal, no entanto, embora admitissem que Edgar fosse um bom homem, elas esperavam que o galã se retratasse com Laura, pois julgavam que os motivos que levaram a heroína a pedir o divórcio eram legítimos. Uma das participantes expõe numa publicação os motivos que, segundo a ela, fez com Laura quisesse se separar.

“O DIVÓRCIO LAURED 4: A AUTORA DECIDIU ESQUECER A FASE OGRO DE EDGAR E O QUE REALMENTE MOTIVOU LAURA A PEDIR A SEPARAÇÃO? Porque muitas de nós não esquecemos e esperávamos um reconhecimento de responsabilidade por parte de Edgar nessa segunda fase. Esperávamos também que a autora não esvaziasse a história do divórcio, dando a entender que Laura tomou um passo tão importante por mero ciúme infantil de Catarina. Porque... Voltando às ogrisses de Edgar: Tudo bem, Laura errou em ler e não entregar imediatamente a carta falando de Melissa pra

4 Forma carinhosa que as participantes usavam para se referir ao casal Laura e Edgar.

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ele, entretanto, foi um breve momento de fraqueza. Mas e Edgar e seus sucessivos atos de insensibilidade? Ele tinha o direito de se sentir injustiçado por ela não confiar plenamente nele, quando ele manteve sem cerimônia uma noiva no Brasil e uma amante em Portugal? Tá, ela não deveria ter escondido a carta por causa da menina, mas... Ele estava certo ao sair com essa pérola: "Laura escondeu de mim que eu tenho uma filha, sabendo o quanto eu queria ser pai"? Como assim? Ele achava que uma mulher traída ainda tinha que se preocupar com o desejo dele de ser pai, sem pensar na dor e humilhação que ela própria estava passando? Quer dizer que ele só queria ser pai de um jeito ou de outro, não importava quem fosse a mãe? Ah, sim... Mas ele perdoou ela... Ops! Mas, então... Por que começou a excluí-la? Por que ela não pôde ficar junto enquanto ele lia o telegrama de Catarina? Como ele pôde dizer a Laura que o fato de uma ordinária como Catarina não mencionar ele ser casado no telegrama, não fazia a menor diferença? O casamento dele não era mais importante, agora que ele sabia de Melissa? E... Se era só pela filha que ele iria a Portugal, por que não podia levar a esposa junto? Ao não levá-la, ele não dava razões para ela questionar se ele pretendia voltar? Por que não quis levá-la? Foi por que ele já pretendia trazer Catarina e a filha, sem sequer ter a atitude respeitosa de avisar a esposa? Foi para castigá-la, como chefe de família e "tutor" que era, por que ela escondeu a carta? Vamos, que ele alimentou lindamente a insegurança de Laura... E depois que foi para Portugal, prometendo que não iria demorar (e não cumpriu)? Ele não viu, antes de partir, que Laura só chorava, mal dormia, mal comia? Por que ele foi correndo enviar pessoalmente um telegrama para saber de Melissa, mas não teve a mesma consideração pelo filho que Laura esperava? E depois que ela perdeu o filho sozinha, sem uma notícia sequer de Edgar... Foi frescura não suportar vê-lo com a antiga amante e a filha ilegítima no meio de sua sala, como se fossem uma família? Foi normal ele prometer, mas nunca tentar apurar o que aconteceu com as cartas de Portugal que nunca chegaram a Laura? Foi piti Laura se sentir humilhada quando a outra se enfiou de novo na casa dela para dizer que uma nova história entre ela (Catarina), Melissa e Edgar começava no Brasil, e que elas eram sua segunda família, enquanto Laura havia acabado de abortar? Foi sensível da parte de Edgar interrompê-la enquanto ela desabafava sobre o fato de ter perdido o filho sozinha, para falar dos problemas da filha dele? Só por que ela perdeu o filho, ele precisava agir como se esse filho nunca tivesse existido, e como se a dor dela não importasse? Como ele pôde mais uma vez prometer que iria apoiá-la, convidá-la para jantar, e sumir sem se prestar a avisar que precisou cuidar da filha? Como ele pôde não só ignorar que Catarina foi novamente a sua casa afrontar sua esposa, a ponto de não confrontá-la por isso, e ainda foi se sentar com essa mulher pra tomar suco, depois de prometer que outro dia beberia com mais calma? Depois de tudo isso, será que Laura ainda teria mesmo que tolerar ele lhe dar o cano no jantar e ainda passar a noite na casa da outra, sem ter uma explicação para o fato? E A QUESTÃO É: SERÁ QUE TUDO ISSO FICARÁ ESQUECIDO NA PRIMEIRA FASE DA NOVELA E OS AUTORES NÃO IRÃO FAZER EDGAR ASSUMIR SEUS ERROS PASSADOS, E SUSTENTARÃO ATÉ O FIM QUE LAURA SE DIVORCIOU SÓ POR CIÚME INFANTIL DE CATARINA, SEM LEMBRAR QUE EDGAR ALIMENTOU TODAS AS INSEGURANÇAS dela COM MUITA INSENSIBILIDADE?” (publicado em 31 de janeiro de 2013).

As questões colocadas pela internauta sobre os motivos que levaram Laura a pedir o divórcio a Edgar mostram uma perspectiva atual do que se espera de uma relação. Se por um lado as participantes do grupo, incluído a autora da publicação acima, gostavam de Edgar porque ele demonstrou inúmeras vezes seu amor por Laura, contudo, nenhuma dessas demonstrações foi suficiente para que o rapaz fosse “perdoado” pelas internautas pelas “humilhações” que ele fez a heroína passar.

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As internautas compreendem a importância das motivações que levaram Laura a pedir o divórcio porque, ao contrário da época em que se passa “Lado a lado”, em que as mulheres suportavam sozinhas o peso da autoridade do marido na relação conjugal, hoje a compreensão de que ambos os parceiros devem investir na relação é algo claramente estabelecido no relacionamento amoroso. O processo de “desfeminização do amor” como argumenta Giddens (1993), está associado aos avanços femininos em vários segmentos da sociedade. Quando a vida da mulher se resumia ao casamento, era seu papel suportar em silêncio os gestos de “insensibilidade” do marido. Com a dissociação da tríade amor, sexo e casamento, as mulheres puderam conduzir suas vidas com maior protagonismo e o conceito de amor romântico perdeu sua força enquanto gramática afetiva. Homens e mulheres tiveram que produzir novas formas de se relacionar. Sobre essas mudanças Giddens (1993) fala que o termo “relacionamento” aparece para dar conta dos novos modos de amar. O significado de “relacionamento” só faz sentido nos dias de hoje, pois o que se espera de uma relação é um vínculo emocional próximo e continuado. Na prática, o que se vê é que as relações entre os gêneros estão mais equilibradas e que a subordinação feminina as vontades do parceiro é menor. Talvez, por estarem mergulhadas numa sociedade em que se pede mais igualdade de direitos entre homens e mulheres, as participantes do grupo compreendem que seria importante que Edgar reconhecesse que num determinado momento do casamento ele não fez nada que alimentasse um “vínculo emocional próximo e continuado” com sua esposa, que além de se sentir traída, foi deixada em segundo plano pelo marido. Para explicar as relações amorosas contemporâneas Giddens (1993) utiliza, então, o termo “relacionamento puro”, que se refere a uma situação na qual se entra em uma relação social apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação com outra, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfações suficientes para permanecerem. Considerando as publicações das internautas na comunidade estudada é possível perceber uma confusão em relação aos modelos amorosos. Em suas falas o que se percebe é que há um entrelaçamento dos dois conceitos amorosos aqui propostos: o amor romântico e o relacionamento puro. O ideal romântico está presente na telenovela quando o casal “concretiza” o casamento somente quando há amor entre eles. Nos capítulos em que Edgar se declarava para Laura, ou quando os dois protagonizavam cenas de amor, as integrantes da comunidade diziam que gostariam de ter um homem como o galã de “Lado a lado”. Edgar apresentava qualidades que respondem ao

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ideal romântico, e talvez por isso, mesmo tendo errado com Laura, a torcida na comunidade era para que o casal terminasse junto e que no final constituíssem uma família. A perspectiva da relação pura aparece quando elas defendem a decisão de Laura em pedir o divórcio e a expectativa para que Edgar reconhecesse seus erros. No entanto, essa visão não é homogênea entre o público, havia quem afirmasse que Laura exagerou em se separar e que ela não deveria ter abandonado um “homem como Edgar” por um erro do passado. Essas incoerências e contradições mostram que na vida cotidiana esses padrões amorosos se confundem e que aparentemente as mulheres estão em busca de um romance romântico, em que seus companheiros a protejam e tomem certas iniciativas, contudo não estão dispostas a reproduzir completamente este padrão. No caso do casal Laura e Edgar, em nenhum momento as internautas cogitam que Laura procurasse viver um novo amor, o que se esperava era que o marido reconhecesse seus erros e não voltasse a cometê-los. Ao que parece, existia entre os membros da comunidade uma expectativa de que o romance romântico pudesse ser conciliado com uma relação mais igualitária entre o casal. Da mesma forma que Edgar tinha qualidades suficientes para que Laura se esforçasse para manter o casamento, Laura também tinha qualidades e era merecedora do respeito e da consideração do marido. No contexto histórico em que “Lado a lado” se passa, uma das marcas da protagonista era exatamente sua busca por um lugar na sociedade em que a mulher tivesse sua existência reconhecida independente da tutela da família ou do marido. Neste contexto, a expectativa das internautas pelo pedido de perdão de Edgar parece algo coerente com o enredo da telenovela.

Referências

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Female Dealings in the Brazilian Soap Opera Lado a Lado (Side by Side): Romantic Challenges Today

Astract : Soap operas have been one of the most successful cultural products in Brazil. Traditionally known for their dialogue with female audiences, they have as their major topics of discourse amorous relationships, family-related conflicts and challenges involving the insertion of women in the job market. Those dramas are played by heroines whose behavior is marked by moral rectitude. In Lado a Lado, however, a drama that takes place in the past and it is shown on TV early in the evening, one of the main characters, Laura, in spite of not subverting the pattern identifying the “nice girl” of today, is portrayed as depicting an advanced behavior for the early years of the twenty century. Laura divorces her husband and tries to find her economic independence, but do not renounce her romantic ideals. It is proposed then in this academic work, based on research of publications by young women who make up a Facebook discussion group dealing specifically with the afore-mentioned soap opera, a reception study in the internet. It is sought here to identifying how women using the internet understand the plot led by Laura, how those women deal with permanent as well as changing values as proposed by the melodramatic text and finally how they conciliate romantic cravings with female expectations, such as marriage. Initially, the research revealed that the young women involved think that in order that the women in the plot reach a better conjugal relation where there is a balance between the parts, men must renounce their machismo and invest their efforts in the marriage as women do. They think that success in the amorous relation must be pursued by the couple and not at the cost of silencing the women in face of the unfaithful behavior of husbands. Keywords : Soap Opera, Female Figurations, Romanticism, Social Web

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