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A TERRA: CONFLITOS E ORDEM

António Ferreira Soares e a Geomorfologia do Baixo Mondego

Lúcio Cunha1 & António Campar de Almeida2

1 IEG e CEG – Universidade de ; E-mail: [email protected]. 2 IEG e CEG – Universidade de Coimbra; E-mail:[email protected].

Palavras-chave: António Ferreira Soares; Baixo Mondego; Quaternário; Geomorfologia.

Resumo: Associando-nos à justa homenagem que se presta ao Professor Doutor António Ferreira Soares, pretende-se reflectir sobre o seu contributo para o conhecimento geomorfológico do espaço do Baixo Mondego. Para tal, passam-se em revista os trabalhos que desenvolveu sozinho ou em equipas por si lideradas nas áreas de Coimbra, Condeixa, no vale do Baixo Mondego e na Serra da Boa Viagem, tentando mostrar o contributo do trabalho que desenvolveu nos últimos 20 anos para o avanço registado no conhecimento geomorfológico desta área do país e do Quaternário português.

Key-words: António Ferreira Soares; Baixo Mondego; Quaternary; Geomorphology.

Abstract: Joining with the fair homage paid to Professor António Ferreira Soares, we intend thinking over his contribution for the geomorphologic knowledge of Low Mondego. For that, papers developed by himself or by teams with his leadership and referred to Coimbra, Condeixa, Low Mondego valley and Serra da Boa Viagem, were reviewed. An effort is attempted to display the importance of the work he developed, especially during recent 20 years, for the progress of the geomorphologic knowledge of both this area and the Portuguese Quaternary.

O geólogo geógrafo de investigação científica, com tradução em publicações conjuntas sobre diferentes Por questões de objecto, mais que de temas. Esta colaboração, desde há muito método, Geografia e Geologia sempre aceite e tacitamente praticada pela andaram de mãos dadas… O modo de comunidade de geólogos e geógrafos, de que funcionamento dos geossistemas, a são exemplo os trabalhos conjuntos de articulação entre os seus diferentes Orlando Ribeiro com Carlos Teixeira e Cotelo elementos, a génese e evolução da Neiva nos anos 40 do século passado, tem superfície terrestre, a relação entre Terra passado por fases de mais intensa colabora- e Sociedade, a inventariação e exploração ção e por outras de maior afastamento, mas dos recursos, os impactes da actividade nunca deixou, de facto, de ser praticada. humana, as manifestações dos riscos De entre as diferentes disciplinas das naturais são alguns dos temas de estudo Geociências, a Geomorfologia tem sido palco em que as duas ciências, autónomas mas privilegiado para o encontro entre geólogos sempre próximas, se têm vindo a e geógrafos. A evolução das formas de relevo encontrar. Não admira, assim, a estreita bem como a possibilidade de entendê-la e colaboração que se vai estabelecendo entre situá-la cronologicamente através da análise profissionais dos dois ramos do saber dos depósitos correlativos tem sido o científico, expressa, quer na colaboração pretexto privilegiado para este encontro, pedagógica no ensino superior das Geo- para a partilha de metodologias, para o ciências, quer na participação em projectos trabalho conjunto.

17 A Geomorfologia do Baixo Mondego

no vale do Dueça e no Baixo Mondego. Mais De António Ferreira Soares, pode dizer- recentemente, os dois signatários desta nota se, que é o geólogo mais geógrafo que tiveram, também, a felicidade de poder conhecemos. Ao lermos os seus escritos trabalhar e aprender com António Ferreira científicos, mas principalmente ao acompa- Soares, a propósito de estudos desenvol- nhá-lo no campo e ao ouvi-lo raciocinar alto vidos na área genericamente conhecida sobre os depósitos sedimentares ou outros como Baixo Mondego, a propósito de uma afloramentos geológicos, fica sempre a projecto de investigação que coordenou, sensação de estarmos a ouvir uma envolvendo muitos outros geólogos e interpretação de paisagens, tal o modo como geógrafos e que se estendeu muito para lá nos sentimos transportados por diferentes do tempo e dos limites temáticos da espaços, distintos contextos climáticos ou investigação financiada pela Fundação para tectónicos, diversos ambientes, mesmo que a Ciência e Tecnologia. estes se distribuam por diferentes etapas do O testemunho simples e despretencioso tempo geológico. que se segue tem um triplo objectivo. Antes A leitura que faz das paisagens actuais de mais, a associação à justa homenagem ou passadas não decorre de interpretações que agora se presta, agradecendo ao Mestre imediatistas e ficcionistas sobre um qualquer o muito que deu e continua a dar à ciência e testemunho geológico, antes é consequência o valor dos seus ensinamentos exigentes e de um aturado, rigoroso e metódico processo críticos. Depois, ainda que a amizade não analítico, muito apoiado no trabalho de se deva agradecer, pelo menos deixar o campo. Este, facultando-lhe uma recolha público testemunho sobre o Homem e sobre máxima de elementos, permite-lhe, em a força de sua amizade forte, sincera, leal e associação com o seu profundo camarada. Finalmente, tentar fazer uma conhecimento da geologia regional, nacional pequena reflexão sobre o seu contributo para e internacional, estabelecer as relações o conhecimento geomorfológico de uma necessárias e contextualizar a problemática região complexa, porque de interface entre em causa. Só quem muito entende a diferentes sistemas geomorfológicos, geologia geral poderá explicar bem a cársicos, fluviais, marinhos, eólicos, estuari- geologia local. nos e de vertente. Em consequência da sua formação Assim, ainda que correndo o risco de académica de geólogo, mas também pela fragmentar uma realidade que A. Ferreira imensa necessidade de um saber mais Soares sabia e interpretava como integrada integrado, completo e sistémico, apenas e solidária na sua evolução geomorfológica, conseguido através da integração de dados por comodidade de análise faremos uma de diferentes origens e de trabalho desen- injustamente breve referência aos trabalhos volvido com distintas abordagens método- realizados na área da cidade de Coimbra, lógicas, António Ferreira Soares tem sido, nos depósitos e formas fluviais do vale do por opção científica, um cultor intransigente Baixo Mondego, nos tufos calcários de da transdisciplinaridade, sobretudo nos es- Condeixa e na Serra da Boa Viagem, tudos que fez sobre o Quaternário português tentando reter os principais aspectos do seu e sobre os seus aspectos geomorfológicos. contributo para o avanço do conhecimento Daí, a razão de ser do seu trabalho em equi- geomorfológico nesta região portuguesa. pa, procurando integrar diferentes disci- plinas da geologia, mas também trabalhan- do com investigadores de outras áreas Geomorfologia de Coimbra científicas e, particularmente, com geógra- fos e arqueólogos. É conhecido o amor de A. Ferreira Soares Entre os muitos geógrafos que tiveram a Coimbra, cidade a cujo conhecimento o privilégio de trabalhar com António Ferreira geológico e geomorfológico dedicou cerca Soares contam-se Orlando Ribeiro, Suzanne parte significativa do seu esforço nos últimos Daveau, Fernando Rebelo e António Brum vinte anos (Soares, 1990, 2004; Soares et Ferreira, com caminhos entrecruzados nas al. 1985; Cunha et al., 1999). Destes escritos lides da Geomorfologia na Bacia da Lousã, destacam-se algumas ideias fundamentais:

18 A TERRA: CONFLITOS E ORDEM a primeira é que “o relevo da região de quaternárias na região. No que diz respeito Coimbra reflecte não só a plasticidade aos depósitos tidos como de terraço, ou seja diferenciada das unidades em que se molda, os depósitos que materializam as diferentes mas também o correr de fracturas que, fases de encaixe do relevo fluvial ao longo desenhando uma rede mais ou menos dos tempos quaternários, foi abandonado o complexa não chegam a perturbar a tradicional modelo de correlação altimétrica tendência do largo monoclinal para poente”, usado, por exemplo, por O. Ribeiro e A. ainda que imponham “uma sujeição maior Patrício que, em 1943, propuseram três do relevo urbano às direcções da fracturação, grandes níveis de terraço, ou por SOARES na sobretudo da meridiana e submeridiana” sua dissertação de doutoramento em 1966, (Soares, 2004, p.235). Destaca-se também ao propor quatro grandes níveis; este a arrumação espacial e temporal relativa dos modelo, aliás e de acordo com as ideias da diferentes depósitos tidos como quaternários época, acabaria por ser o seguido na na área e que vão desde os depósitos cartografia geológica da folha da Figueira da fluviotorrenciais que denomina de Foz da Carta Geológica de (1981). Conglomerados de Espírito Santo, O novo modelo de correlação baseia-se nas Areias Vermelhas do Ingote e características sedimentológicas dos depósi- Conglomerados de Logo de Deus, tidos tos, na articulação temporal e espacial dos como anteriores à organização do Baixo diferentes tipos de depósitos (depósitos Mondego, tal como o conhecemos (ob. cit., fluviotorrenciais, depósitos fluviais, depósi- p. 236), aos depósitos fluviais do Calhabé e tos de praia, depósitos eólicos, tufos calcá- de Arregaça-Vale das Flores e aos depósitos rios e depósitos de vertente) e integra as mais recentes e tradutores da evolução vicissitudes neotectónicas regionais nece- recente das vertentes como é o caso das ssárias à explicação morfológica. Areias vermelhas do Estádio. Este vasto Assim, no troço do vale do Mondego e complexo conjunto de depósitos traduz a entre Coimbra e a , foram evolução sequencial do relevo, materializa definidos como depósitos essencialmente alguns dos diferentes aplanamentos do torrenciais os depósitos de Carqueija e relevo regional e serve, sobretudo, para Salabardos, anteriormente entendidos explicar a importância da evolução como terraços do Mondego (Q1: 75 a 100m quaternária do Mondego na construção da e parcialmente nos Q2: 50-70m). Trata-se paisagem. Por isso, nos seus estudos, é de depósitos “conglomeráticos, imaturos, dada, também, particular importância à com matriz areno-pelítica grosseira a muito interpretação de Suzanne Daveau (1986) grosseira e subarcósica a arcósica, com acerca da passagem do Mondego no Maciço tendência oligomítica em quartzo e quartzito, Marginal de Coimbra, questionando se “será com calhaus de morfologia diversa, quer a nudez contrastante do corredor actual do angulosos a muito angulosos, quer redondos Mondego, ao cruzar o Maciço Marginal, a muito redondos” (Marques, 1997, p. 26). sinónimo da sua juventude relativamente ao Terão como equivalentes na região de vale do Ceira” (Soares, 2004) e, sobretudo, Coimbra, as Areias Vermelhas do Ingote ao desenho do meandro abandonado do que testemunham a tectónica que terá Arregaça que associa ao depósito areno- evidenciado o Maciço Marginal de Coimbra e cascalhento do Calhabé. relacionam-se com “derrames a partir dos depósitos pliocénicos ou plistocénicos antigos da Orla” (Soares et al., 1990). Depósitos de terraço Nas vertentes do vale, em regra abaixo do Baixo Mondego dos 60 metros de cota, organizam-se os depósitos de natureza essencialmente fluvial Para o sector do vale do Mondego a de Ameal-Santo Varão que, na margem jusante de Coimbra, o sector do Baixo esquerda, têm o seu topo a cotas de 40-50 Mondego, o trabalho da equipa coordenada metros e que, na margem direita, parecem por Ferreira Soares traduz-se, sobretudo, na ter como correlativos o depósito das bombas clarificação e, diríamos até, na simplificação de gasolina de Tentúgal, a cotas de 20-30 do modelo evolutivo dos depósitos e formas metros. Trata-se de depósitos conglomerá-

19 A Geomorfologia do Baixo Mondego ticos grosseiros, granodecrescentes, subma- Tufos de Condeixa turos, polimíticos com calhaus de quartzo, quartzito e xisto, sub redondos a redondos. Posicionados no sector setentrional e A matriz é arcosarenítica e microconglome- ocidental do Maciço de Sicó, ocupam uma rática a submatura a imatura e os corpos extensão reduzida (cerca de 10 Km2) entre arenosos apresentam estratificação entre- Condeixa e Cernache e são responsáveis por cruzada em ventre ou planar (Marques, ob. uma morfologia tabular realçada pelo encaixe cit.). Com estes depósitos correlacionar-se- da rede fluvial numa superfície suavemente ão, a Oeste, as areias marinhas de Quiaios inclinada para Oeste. Depois dos trabalhos e Cantanhede, num litoral colocado “a pioneiros de Simões da Costa (1853) e de Oriente do actual e que mergulhava pelo Paul Choffat (1895) que descreveu a triângulo da Bouça, entre as Serras de organização geral do corpo de tufos calcários Montemor e da Boa Viagem” (Soares et al., e apontou a sua idade quaternária com base em fósseis de vertebrados (Elephas antiquus 1993). e Hippopotamus major), é de salientar o Mais abaixo nas vertentes do vale, com trabalho de A. Gama Mendes (1974) que rechãs pelos 20 metros de cota, organizam- propõe um escalonamento de quatro grandes se os depósitos fluviais de Tentúgal, na níveis correlacionados com os níveis de margem direita do Rio, e de Gabrielos, na terraço fluvial conhecidos no Baixo Mondego margem esquerda. No sector mais a jusante (Soares, 1966). L. Cunha (1988), ao estudar articula-se com estes o depósito de as Serras Calcárias de Condeixa – Sicó – Ervedinho-Vila Verde. O depósito de Tentúgal Alvaiázere, aceita este esquema de assenta no substrato Cretácico e envolve, organização. de baixo para cima: um corpo O trabalho realizado em finais da década essencialmente conglomerático grosseiro, de 90 do século passado teve como objectivo polimítico, com calhaus de quartzo, quartzito fundamental, a cartografia geológica e e xisto, sub-redondos a sub-angulosos, de geomorfológica da área de afloramento dos esfericidade baixa, com matriz tufos, a distinção das suas diferentes fácies, arcosarenítica grosseira a muito grosseira, a interpretação dos seus modos de imatura a submatura e com estratificação articulação vertical e horizontal, a correlação oblíqua (Marques, ob. cit.); um corpo com outros depósitos na área, para tentar essencialmente arenoso, por vezes depois a sua integração no modelo geral de microconglomerático, com estratificação evolução do relevo no Baixo Mondego. Foram entrecruzada; um corpo pelítico, cinzento a definidos quatro grandes grupos de fácies negro, localmente com nódulos de vivianite, (tufos conglomeráticos, tufos finos que deverá relacionar-se com situações margosos, tufos de acumulação ricos em apauladas ou de meandros abandonados na restos vegetais e tufos em cortina ou em evolução do rio. De acordo com Soares et cascata) que se articulam de diferentes al. (1993), com estes depósitos fluviais modos nos perfis observados na região. Na colocados mais abaixo na vertente do vale área de Condeixa-a-Velha (espessura de c. “parecem correlacionar-se apenas os da 20m) observa-se uma sequência positiva Praia da Murtinheira, cujos depósitos clássica, com tufos conglomeráticos na base, estão mascarados pelas dunas de Quiaios e a que se seguem tufos margosos amarelos Cantanhede” e que poderão materializar um e tufos vacuolares, para terminar num litoral coincidente com “o alinhamento das espesso conjunto de travertinos cinzentos e Lagoas das Braças, Vela, Salgueira e duros. Em Eira Pedrinha (espessura de c. Teixoeiros.” Esta disposição permite pensar 15m) a organização passa por um corpo de o corredor de Lares com abertura tufo margoso, localmente oncolítico, corpos antecedente, no todo ou em parte de tufos de acumulação ricos em fósseis contemporânea da flexura da margem norte vegetais, para terminar num novo corpo do Mondego que pode justificar o margoso, localmente pelítico e cinzento. desencontro altimétrico entre os depósitos Tendo em conta a dificuldade em de Ameal-Santo Varão (50m) e os das distinguir diferentes níveis, uma vez que as bombas de gasolina de Tentúgal (30m). massas de tufo passam, quase sempre, de

20 A TERRA: CONFLITOS E ORDEM modo contínuo da superfície dos 100 metros serão objecto de análise pormenorizada ao fundo dos vales abaixo dos 70 metros, o (Soares et al., 1993). Sobrepõem-se a carácter francamente polifásico dos tufos retalhos de uma plataforma marinha com colocados no “nível” dos 100 m, a provável paleoarriba, colocada a uma altitude média existência de tufos anteriores aos tufos de 8-10 m e que tem sido denominada de conglomeráticos posicionados na base e a Praia da Murtinheira. certeza de que alguns dos tufos são muito A organização sequencial dos depósitos recentes, por integrarem no seu seio e a sua composição permitem tirar ilações vestígios arqueológicos romanos, torna-se quanto à paleoclimatologia e à paleogeo- muito difícil conjecturar acerca da idade geral grafia associadas à evolução destas dos Tufos de Condeixa. Mesmo assim, em vertentes. Assim, a divisão em dois grandes termos gerais parece poderem distinguir-se corpos, em que o inferior, imediatamente dois grandes grupos: os tufos de Condeixa- acima dos conglomerados e areias praiais -a-Velha, provavelmente mais antigos, e os da base da plataforma, corresponde a uma tufos margosos amarelos e os tufos de situação típica de enchimento por gravidade acumulação das áreas de Eira Pedrinha, de uma depressão na vertente, com o Condeixa-a-Nova e Cernache, cujos topos contributo de materiais calcários heteromé- vêm frequentemente abaixo dos 70 metros tricos mas que interestratificam com areias e que parecem ser mais recentes. Tendo em homométricas de aparente origem eólica. consideração a geomorfologia regional e a Esta sequência indicia condições rexistásicas articulação com os depósitos de vertente do relativamente secas, crionivais e com o litoral sector setentrional do Maciço de Sicó (Cunha, ainda próximo. A parte superior do corpo, 1999) aparentemente posteriores à com sequências arenosas e pelíticas, com construção da plataforma dos tufos, estes rizoconcreções e com eventual paleossolo, dois grandes grupos poderão ser, no todo parece indicar condições de mais elevadas ou em parte correlativos dos dois grandes temperaturas e humidade. O corpo superior, grupos de depósitos fluviais definidos para mais bem estratificado, parece reflectir o o Baixo Mondego. retorno das condições frias, mas mais húmidas do que o inferior, e um litoral decerto bem mais afastado. Serra da Boa Viagem Enquanto se formavam, teriam estes depósitos assistido às primeiras fases do Neste correr pelos espaços da porção último período glaciário, imediatamente terminal da bacia do Mondego, é com antes dos grandes encaixes das linhas de naturalidade que a Serra da Boa Viagem, água na serra da Boa Viagem? ponta mais ocidental do Baixo Mondego, A frequência dos episódios de eolização, tenha sido estudada por A. Ferreira Soares plasmados no corpo inferior, deu azo à para aí procurar mais elementos que o natural tentação de fazer equivaler estas ajudassem a completar o entendimento da areias com as Areias de Tentúgal (Soares, evolução desta sub-região. Poucos trabalhos 1966) que se sobrepõem aos depósitos de anteriores se lhe tinham referido. A. terraço de Tentúgal-Gabrielos. Do mesmo Fernandes Martins (1949) dá importância modo, também as sequências mais ou menos fundamentalmente aos níveis que considera solifluxivas do corpo superior permitiram a marinhos da plataforma superior da serra, proposta de correlação com as Areias de da plataforma do farol novo (80 m) e dos Zouparria (Soares et al., 1986, 1989), mais 10-15 m a NW de Buarcos. G. Soares de a montante e já referidas. Foi-se tornando Carvalho (1954) chama a atenção, em parti- claro que a plataforma correspondente à cular, para os depósitos de vertente imedia- Praia da Murtinheira, por ser a mais baixa tamente abaixo do Farol Novo, aos quais, da serra, seria a equivalente lateral dos após análises granulométricas e morfoscó- depósitos de terraço inferiores do Mondego, picas, atribui uma origem periglaciar. ou seja, de Tentúgal-Gabrielos e de São precisamente estes depósitos de Ervedinho-Vila Verde. vertente, distribuídos por vários afloramen- Para além de outros autores, como A. F. tos entre a Murtinheira e o Farol Novo que Martins (1949) e A. C. Almeida (1997) que

21 A Geomorfologia do Baixo Mondego fazem corresponder os depósitos do nível incompleto e sempre provisório, mas que do farol (90-100 m) a ambientes praiais, de permite enquadrar os depósitos e as formas idade provável siciliana, A. F. Soares et al. de diferentes tipos e condicionalismos gene- (2007) precisam o estudo destes depósitos, ticos, no espaço e no tempo, de acordo com que se acham distribuídos por vários retalhos os condicionalismos paleoambientais que entre a proximidade da Casa dos Cogumelos presidiram à sua génese e evolução. Per- e o farol novo, apoiando-se agora também mite, também, posicionar as principais fases na análise da paleofauna aí ocorrente. de deformação tectónica que afectaram este A análise sequencial dos afloramentos espaço. permitiu concluir pela existência de dois Esta preocupação de articular espacial e ambientes litorais diferenciados: um sector temporalmente os depósitos quaternários norte onde as areias e conglomerados está bem patente na folha 19-D (Coimbra- marinhos interestratificam com fanglomera- Lousã) da Carta Geológica de Portugal, dos de origem calcária e um sector sul elaborada sob a responsabilidade de Ferreira dominado por areias e conglomerados Soares. Na complexa legenda deste marinhos. O primeiro sector é associado a documento cartográfico pode dar-se conta um meio praial adjacente a uma arriba (e não só da arrumação vertical dos diferentes vertente?) bastante activa, enquanto o outro depósitos, mas também da sua correlação sector corresponde a uma praia, também espacial entre a Bacia da Lousã, Coimbra e encostada a arriba mas com muito pouca Condeixa. Assim, e tendo em conta o seu actividade. contributo para o conhecimento geomorfo- A paleofauna, constituída essencial- lógico regional, este documento tem uma mente por conchas e fragmentos de importância que vai muito para além do moluscos e equinídeos, permitiu, pela rela- conhecimento detalhado das unidades ção com a distribuição actual da fauna litológicas e das linhas estruturais que semelhante, concluir que as águas super- suportam o relevo e as paisagens. O detalhe ficiais do mar ao tempo eram mais frias do na diferenciação dos depósitos quaternários, que as actuais. As relações com faunas afins o rigor da sua cartografia, a par com a lógica descritas para a costa atlântica de França e e inteligência das propostas de correlação de Marrocos permitiram enquadrar tempo- transformam a folha de Coimbra-Lousã da ralmente estes depósitos dentro do final do Carta Geológica de Portugal, num documento Plistocénico Inferior ou do início do único e imprescindível para o estudo do Plistocénico Médio. Regionalmente, tudo Quaternário e da Geomorfologia desta área aponta para que estes depósitos sejam do Centro de Portugal. anteriores à deposição das Areias de Quiaios e das Areias de Cantanhede (Carvalho, 1964) e posteriores às Areias de A concluir… Arazede (Soares, 1967). Pelo que fomos apresentando, de modo injustamente sintético e garantidamente Correlação incompleto, o conhecimento geomorfológico do espaço do Baixo Mondego deve muito aos As observações rigorosas e pormenori- trabalhos de Ferreira Soares. A força dos zadas que foram feitas, o conhecimento dos seus raciocínios, a lucidez das propostas diferentes tipos de depósitos e das suas científicas que faz e a orientação esclarecida relações com as formas que marcam a de inúmeros trabalhos de investigação são paisagem actual do Baixo Mondego, permiti- hoje importantes chaves para o conheci- ram a sua articulação num modelo evolutivo mento geomorfológico do Centro de Por- para o Quaternário do Baixo Mondego tugal. (quadro I) que nos dispensamos de comen- tar detalhadamente até para não nos Tivemos a sorte e o prazer de estar com substituirmos aos esclarecidos raciocínios de Ferreira Soares nas mais diferenciadas A. Ferreira Soares sobre o tema. situações – em encontros científicos, no Trata-se de um modelo necessariamente campo, no Baixo Mondego ou em muitos

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Quadro I – Correlação temporo-espacial dos depósitos do Baixo Mondego (adaptado de Soares et al., 1992 e 1997 e de Soares, 2000).

outros locais, no gabinete em acesas construiu no campo científico, pelo que discussões – e sempre aprendemos com o transmitiu e ensinou às gerações seguintes, brilho do seu raciocínio, com o rigor e método pelo exemplo da sua atitude perante a do seu trabalho de campo, com o entusiasmo ciência e a vida, António Ferreira Soares será contagiante das suas propostas, com a porventura um dos geólogos a quem a poesia da sua escrita, com o modo solidário Geomorfologia portuguesa mais deve. como está na vida. Apesar de ser um cientista com propensão para elaborar uma escrita agradável, fina, mesmo com preocupações literárias – e algumas vezes, Bibliografia por que não, portadora de uma certa Almeida, A. C. (1997). Dunas de Quiaios, Gândara e irreverência, própria de um espírito sempre Serra da Boa Viagem. Uma abordagem ecológica da jovem, deixada adivinhar por títulos como paisagem. JNICT/ FCG, Lisboa. “O tempo das caretas (Pretexto para Almeida, A. C.; Soares, A. F.; Cunha, L. & Marques, J. F. (1990). Proémio ao estudo do Baixo Mondego. algumas ideias)”, “Um buraco de minhoca Biblos, Coimbra, 66:17-47. (Algumas reflexões sobre o prefixo paleo)”, Almeida, A. C.; Soares, A. F.; Santos, J. G.; Cunha, L & “Um tiro no pé (Outras coisas e Coimbra)” – Tavares, A O. (2000). O sentir da população sobre nunca descura o rigor necessário à as transformações dos Campos do Baixo Mondego. Cadernos Geografia, IEG, Coimbra, pp. 29-41. interpretação científica, baseado na crítica Carvalho, G. Soares de (1954). Areias da Gândara permanente à conclusão apriorística ou na (Portugal) – uma formação eólica quaternária. Publ. contradição aparente ou forçada a que Mus. Lab. Min. Geol. Fac. Ciências, ser. 4, 81: 7-32. sujeita as explicações suas ou dos seus Carvalho, G. Soares de (1954). Sur les dépôts à galets interlocutores, fruto de um modo de estar calcaires du bassin du Mondego et les sables de la Gândara (Portugal). Révue de Géomorphologie perante a ciência de cariz popperiano. Dynamique, 5:193-203. Por isso, pelo muito que laboriosamente Choffat, P. (1895). Notes sur les tufs de Condeixa et la

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