Verdade Tropical: Crítica Cultural E Modernidade Extasiada
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Verdade tropical: crítica cultural e modernidade extasiada “Verdade tropical”: cultural critic and ecstatic modernity 1 Cláudio Coração Resumo: Pretende-se, neste trabalho, identificar as marcas do narrador crítico em Verdade tropical a partir das estratégias de configuração de um discurso sintético e revelador de um espírito de tempo. Utilizaremos o conceito de midiatização como parte da reflexão sobre a evidenciação da crítica cultural de Caetano Veloso ao tentar legitimar o método tropicalista de ler o mundo, cravado no anseio de uma modernidade extasiada, potente de repertório estético. Palavra chave: crítica – cultura – modernidade – midiatização – Verdade tropical – Caetano Veloso Abstract: This work aims to identify the brands of the critical narrator in “Verdade tropical” from the strategies of configuration of a synthetic speech and reaveling of a spirit of time. We will use the mediatization concept as part of reflection about the cultural critical disclosure of Caetano Veloso in his attempts do legitimize the “tropical” method for reading the world, tagged in the desire of a ecstatic modernity, powerful of aesthetical repertory. Keywords: criticism – culture – modernity – mediatization – “Verdade tropical” – Caetano Veloso Introdução À época da morte de Michael Jackson, em 2009, Caetano Veloso frisou em um depoimento: “Michael Jackson é o anjo e o demônio da indústria cultural”. Tal frase é resumidora de dois aspectos. Atribui um poder de síntese sobre a emblemática figura de Michael Jackson e à sua trajetória no show business. Como também exerce uma espécie de crítica aos fundamentos da intensa e sedutora produção cultural no Ocidente, pós-1950, em cuja ambientação Michael Jackson é um dos principais representantes. Essa aferição de Caetano Veloso sobre Michael Jackson pode ser problematizada em outras significações. Há na frase-síntese do cantor e compositor uma atitude intelectual propagadora de certa modernidade a respeito da produção da arte, capitaneada por códigos da indústria do entretenimento. Poderíamos catalogar precipitadamente tal apreensão como um mote de crítica cultural, na qual a figura de Caetano Veloso ganha contornos controversos, evidentemente. Por se colocar, quase sempre, como o analista espirituoso do caldo cultural vigente, desde, pelo menos, os anos 1960, sua persona pública se constrói em meio a movimentos minuciosamente articulados à www.compos.org.br - nº do documento: E4EA1B8A-612B-434D-9F00-E060DBC13565 Page 1 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação sua trajetória artística pessoal. Se Michael Jackson é “um anjo decaído” da indústria do espetáculo, por exemplo, Caetano, não menos, transita na inconstante montanha-russa simbólica que é a representação cultural midiatizada. Em meio à mística do “retrato do artista enquanto arauto”, seu livro Verdade tropical (publicado originalmente em 1997) parece apreender fenômenos decadentistas – do Brasil e do mundo no limiar do século XX – a partir da reconstituição de sua vida e obra em uma construção de emblemas caros ao percurso do artista/intelectual envolvido com o processo histórico e com o jogo da memória. Verdade tropical se apresenta, de modo geral, como cartilha das balizas estéticas do tropicalismo (movimento de profundas absorções na cultura brasileira, a partir da segunda metade dos anos 1960) e como agente de percepção de um Brasil que poderia dar certo e não deu, em certa medida. As feições do depoimento de Caetano são instrumentalizadas pela função crítica, em um painel em que se apresentam personagens da cultura ocidental, fracassados e deuses do star system, relâmpagos da memória afetiva e a busca por um tempo perdido arrumado ao gosto das demandas políticas e estéticas, em sentido amplo. Porém, para ditar os rumos do movimento tropicalista em consonância com as experiências pessoais, o discurso do livro é essencialmente iconoclasta, cabotino muitas vezes. Ou seja, a arte de Caetano é entremeada com as experiências e os momentos cruciais de sua vida: a infância lúgubre em Santo Amaro, as descobertas artísticas e estéticas em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro; a experiência torturante na prisão; o exílio em Londres; a percepção do olhar estrangeiro em terras europeias e latinas. Trata-se de uma narrativa que se elabora como quadro simbólico da sociedade (a brasileira mais fortemente) durante quatro décadas. Essa pretensão deve ser encarada de modo a referendar um estado de deleite. Nesse sentido, os ideários do tropicalismo se desenvolvem com o encantamento dos gestos de outrora, cujo desenrolar dos fatos enuncia um Brasil a acertar contas com suas tantas representações culturais – as arcaicas e as vanguardísticas. Nossa intenção, neste trabalho, é identificar essas marcas do narrador crítico em Verdade tropical a partir das estratégias de configuração de um discurso sintético e revelador de um espírito de tempo. Utilizaremos o conceito de midiatização como parte da reflexão dessa evidenciação crítica de Caetano ao tentar legitimar o método tropicalista de ler o mundo, cravado no anseio de uma modernidade extasiada, potente de forma ética e estética. www.compos.org.br - nº do documento: E4EA1B8A-612B-434D-9F00-E060DBC13565 Page 2 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Os deslocamentos simbólicos da modernidade e os processos de midiatização O narrador de Verdade tropical amarra os fios das tradições com os da modernidade de modo obsessivo. Pressupõe determinadas causas e adverte sobre as consequências vitais importantes do século XX, por meio tanto da revaloração do processo histórico quanto das projeções simbólicas, no entrosamento da cultura e da arte com a dinâmica do tempo. Nesse sentido, Caetano Veloso é autor/narrador inconveniente, por vezes, a mostrar que a cultura é, quase sempre, instrumentalizada como um totem memorialístico. Desse modo, a formação de “caráter” do compositor em Santo Amaro, na Bahia, e a formação “cultural” no caldo pop do mundo “cosmopolita", anos depois, estão articuladas à percepção de que cultura é gesto da vida midiatizada. Na cola dessa impressão alusiva à cultura envolvida em determinada realidade simbólica, Gadini (2009) assinala: A realidade é (...) não só uma representação (simbólica), mas uma simultânea e contínua construção social. É, enfim, nessa esteira (...) que buscamos pensar a cultura como uma construção contínua, um campo em disputa, marcados pelas mais diversas formas de expressão e materialidades (...) pela perspectiva de uma ação instituinte das relações e da própria vida cotidiana dos grupos humanos, a cultura também configura uma forma de interação social (GADINI, 2009, p.36). Essa noção conceitual de pensar a cultura como uma construção contínua e mutável de campos em disputa nos ajuda a entender as dinâmicas de fabricação estrutural de Verdade tropical e mais os símbolos de influência do tropicalismo na vida nacional, em potente assimilação mediática. Com esse desenho em torno da assimilação cultural, o que se nota é um processo social distendido por outras representações mediadas, nas incorporações que o tropicalismo utiliza para ditar as regras da subversão cultural, por exemplo. Em relação à midiatização dos processos sociais, Braga (2012) diz que: Com a midiatização crescente dos processos sociais em geral, o que ocorre agora é a constatação de uma aceleração e diversificação de modos pelos quais a sociedade interage com a sociedade. Ainda que os processos interacionais mais longamente estabelecidos (...) continuem a definir padrões de comunicação, e lógicas inferenciais, que organizam a sociedade e suas tentativas, tais processos, em sua generalidade, se deslocam para modos mais complexos, envolvendo a diversidade crescente da midiatização (BRAGA, 2012, p.35). O narrador sedutor de Verdade tropical reconhece e identifica as minúcias dos caminhos www.compos.org.br - nº do documento: E4EA1B8A-612B-434D-9F00-E060DBC13565 Page 3 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação que percorre porque ora é autorizado pela autobiografia, ora é legitimado pela crítica que empreende, dinamizando um processo social de diversidade interacional. Há um quê de perversidade nisso, no sentido de explorar tensões mais macroestruturais com os movimentos firmados por determinados atores sociais em alguns contextos. Verdade tropical estampa o projeto cultural de cunho modernista pela disposição quase inata de seus elementos de engajamento estético. O depoimento de Caetano é emocionante porque consolida a identificação com as controversas “coisas do país” e seu inconstante diálogo com “as forças estrangeiras”. Por mais que as complexidades da cultura brasileira contemporânea sejam diluídas pela própria narrativa, as muitas referências presentes na obra – e nas assimilações feitas pelos artistas e intelectuais do tropicalismo em paralelo – reforçam contatos essenciais, fundando uma espécie de processo civilizatório moderno. Assim, nas páginas de Verdade tropical saltam as seguintes representações: A bossa nova: elemento fundante da moderna música popular brasileira; O cinema novo: instrumento de alegoria utópica, notadamente o filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha; O rock n roll: componente de cinismo em sua apropriação pelos tropicalistas; A antropofagia oswaldiana: incorporação da canibalização da cultura popular pela cultura de massa; A poesia concreta: projeto estético fundado na aridez da arte e na ideia de rompimento canônico; A política: