Lizaine Weingärtner Machado

Relíquias do Brasil: Tropicália, Marginália & a poética de Torquato Neto nos anos de chumbo

Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Literatura da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) para a obtenção do Grau de Doutora em Literatura. Orientador: Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca.

Florianópolis 2019

À memória de Walmir Machado, meu pai, e Bob Dylan, o cão, another best friend, somehow.

AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Linda, e minha irmã, Andreza, pelo afeto, amparo e incentivo desde sempre. Aos amigos, pelo diálogo e pelas risadas, principalmente à Dani, por acrescentar genuína torcida. Ao Jair, pelos ensinamentos ao longo de tantos anos na Graduação e na Pós-Graduação e pela generosa orientação de meus trabalhos finais (TCC, Dissertação e Tese). Aos professores da banca examinadora, Maria Lucia, George e Elisa, por suas leituras agregadoras e instigantes. À Maria Lucia e George também agradeço por todos os apontamentos e sugestões construtivas na banca de qualificação. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de pesquisa.

LER COM OLHO-FÓSSIL OU LER COM OLHO-MÍSSIL Waly Salomão em Gigolô de bibelôs

A política e a poesia são demais para um só homem. Sara, personagem de Terra em transe, filme de

Venturis ventis Aos ventos que hão de vir

RESUMO

Esta tese propõe uma leitura da Tropicália e da Marginália, momentos dos anos 60 e 70 no Brasil, e de suas encarnações com o corpo nietzschiano e a alegoria benjaminiana relacionando-as ao trabalho multifacetado de Torquato Neto. Assim, através das tensões poéticas e políticas que permeiam a atuação do poeta na cultura brasileira por meio da produção poética, musical, de jornalismo cultural e de cinema underground no âmbito da era contracultural, procuro ler o modo como sua obra se engendra e como ela torna-se vitrine ao evidenciar as mazelas brasileiras. Ademais, busco mostrar o caráter alegre do momento tropicalista e pós-tropicalista e como se dá o processo de resistência do poeta ao ocupar espaço, seu projeto político-cultural, nos anos sombrios da ditadura civil-militar brasileira.

Palavras-chave: Tropicália. Marginália. Torquato Neto. Alegoria. Corpo. Ditadura Civil-Militar.

ABSTRACT

This thesis offers an interpretation of Tropicalia and Marginalia, moments from the sixties and seventies in , and their incarnations, together with the Nietzschean body and Benjaminian allegory, linking them to the multidimensional work of Torquato Neto. In doing so, through the poetic and political tensions that permeate the poet's performance in Brazilian culture by means of musical and poetic production, cultural journalism and underground cinema in the counterculture era, I try to read the way in which his work generates itself and how it becomes a display, highlighting Brazilian pathologies. Moreover, I seek to show the joyful nature of the Tropicalist and post- Tropicalist moment and how the poet's process of resistance takes place by occupying space, as well as his political-cultural project in the dark years of Brazilian civil-military dictatorship.

Keywords: Tropicalia. Marginalia. Torquato Neto. Allegory. Body. Civil-Military Dictatorship.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Tropicalistas e Concretos...... 48 Figura 2 − Torquato e o parangolé ...... 59 Figura 3 − Tropicália de Hélio Oiticica ...... 84 Figura 4 − Primeira missa no Brasil ...... 93 Figura 5 − Tropicália ou panis et circencis ...... 98 Figura 6 − Batmacumba ...... 116 Figura 7 − A bela Lindonéia ou a gioconda do subúrbio ...... 126 Figura 8 − Viva a vaia...... 141 Figura 9 − Tristeresina ...... 163 Figura 10 − Passeata dos cem mil ...... 178 Figura 11 − Pureza é um mito ...... 193 Figura 12 − Flor do mal ...... 238 Figura 13 − Navilouca ...... 241 Figura 14 – Vir ver ou vir ...... 249 Figura 15 – Corpo(s) da Navilouca ...... 250 Figura 16 − Bólide para Cara de Cavalo ...... 264 Figura 17 − Seja marginal, seja herói...... 266 Figura 18 − A crucificação de São Pedro ...... 266 Figura 19 − New look ...... 270 Figura 20 − Still de Adão e Eva do paraíso ao consumo ...... 305 Figura 21 − Helô e Dirce ...... 307 Figura 22 − Nosferato no Brasil ...... 320 Figura 23 − Nosferatu: nós/torquato ...... 323 Figura 24 − Vampiro neoliberalista ...... 330 Figura 25 − Manifestoches ...... 331 Figura 26 − Contracapa da Navilouca...... 339 Figura 27 − Bandeira brasileira: índios, negros e pobres ...... 377

SUMÁRIO

Do lado de dentro – notas de início ...... 19 1. Tropicália: parangolé no caos ...... 37 2. Geleia geral brasileira ...... 97 3. Pureza é um mito ...... 155 4. Marginália: contracultura made in Brazil ...... 213 5. Terror & terrir sob o signo do vampiro ...... 295 6. Tropical melancolia ...... 343 Referências ...... 385

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Do lado de dentro – notas de início

A minha alucinação é suportar o dia a dia E meu delírio é a experiência com coisas reais Belchior em Alucinação

Profanar, segundo Giorgio Agamben, significa dar às coisas um uso humano num ato sacrílego, visto que para o filósofo, em Elogio da profanação, “há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado.” (AGAMBEN, 2012, p.66).1 Desse modo, a mudança do sagrado para o profano ocorre por meio de um reuso contrário ao sacral e essa passagem se dá, sobretudo, através dos jogos que eram, inicialmente, derivações das cerimônias sacras em que o ludus “[...] faz desaparecer o mito e conserva o rito [...].” (AGAMBEN, 2012, p.67). Além disso, o verbo profanare, em latim, é dúplice: significa tornar profano, mas também, em alguns casos, sacrificar, assim como o adjetivo sacer, percebido por Sigmund Freud, pode denotar augusto e maldito, ambiguidade que “[...] não se deve apenas a um equívoco, mas é, por assim dizer, constitutiva da operação profanatória (ou daquela, inversa, da consagração).” (AGAMBEN, 2012, p.68) em que a figura sacra é colocada pra fora da sociedade e o homo sacer, consagrado aos deuses; porém portador de uma mácula, se torna majestoso e funesto numa mesma existência.2

1 Agamben é um profanador do sagrado, de matérias e conceitos, assim como Pier Paolo Pasolini o era por também abordar o sacral em seus filmes. Ademais, Agamben interpretou Filipe, um dos 12 apóstolos de Jesus, em O evangelho segundo São Mateus, filme pasoliniano de 1964. 2 Ressalto que o sagrado, especialmente na esfera nacional, prolifera a existência de tabus, vocábulo que apresenta o mesmo sentido que sacer entre os polinésios, como Freud aponta em Totem e tabu: “o significado de ‘tabu’ se divide, para nós, em duas direções opostas. Por um lado quer dizer ‘santo, consagrado’; por outro, ‘inquietante, perigoso, proibido, impuro’. O contrário de ‘tabu’, em polinésio, é noa, ou seja, ‘habitual, acessível a todos’. Assim, o tabu está ligado à ideia de algo reservado, exprime-se em proibições e restrições, essencialmente. A nossa expressão ‘temor sagrado’ corresponde frequentemente ao sentido de ‘tabu’.” (FREUD, 2013, p.12). 20

Em vista disso, profanando, observo que enquanto verbete, as relíquias são preciosidades, fragmentos do corpo de um santo ou objetos sacros antigos e muito estimados. Entretanto, nesta tese, as relíquias apreciadas são oriundas da segunda metade do século XX: a Tropicália,3 a Marginália e a poética de Torquato Neto (1944-1972).4 Do contexto original do termo sacrossanto, refiro-me à estima, no entanto, também maculo o sentido autêntico do vocábulo para configurar um norte para este relicário que investiga o papel profano do corpo nesses momentos artísticos; evidencia a voz, por vezes abafada, da poética torquatiana; exalta os meandros alegóricos utilizados na era tropicalista e contracultural, num recorte contemplativo da cultura brasileira nos anos 60 e 70, e aborda como os anos de chumbo ainda repercutem no Brasil, enquanto assombro e resquício institucional. Portanto, lançando mão de uma liturgia eivada de blasfêmias, como na concepção de Homi K. Bhabha,5 intento demonstrar como as relíquias do país formam uma coleção dissonante, assim como os elementos contidos na canção torquatiana em que objetos mundanos são sacralizados; como a Tropicália e, posteriormente, a Marginália mostraram as assincronias nacionais, antropofagicamente, e como, por conseguinte, o poeta Torquato Neto almejou promover uma missa dessacralizadora das relíquias do Brasil, uma nação essencialmente devota, como assinala em Carmen Miranda não sabia sambar, prólogo da terceira edição de Verdade tropical:

3 Emprego o termo Tropicália pautando-me pela consideração de em Balanço da Bossa e outras bossas: “[...] prefiro falar em Tropicália, em vez de Tropicalismo, como sempre preferi falar em Poesia Concreta em lugar de Concretismo […]. 'Ismo' é o sufixo preferentemente usado pelos adversários dos movimentos de renovação, para tentar historicizá- los e confiná-los.” (CAMPOS, 2008, p.261). Da mesma forma, o sufixo ismo remete a algo uniforme, nada apropriado à Tropicália, momento baseado na revisitação, na dispersão de movimentos e a um caráter heterogêneo e plural. No entanto, faço a transcrição literal das citações diretas, com uso da expressão tropicalismo; como originalmente foram citadas por seus autores, tendo em vista a larga utilização do termo nas décadas de 60 e 70, mas também atualmente. 4 Torquato Pereira de Araújo Neto (09/11/1944−10/11/1972). 5 Para Bhabha, em O local da cultura, “a blasfêmia vai além do rompimento da tradição e substitui sua pretensão a uma pureza de origens por uma poética de reposicionamento e reinscrição.” (BHABHA, 1998, p.309).

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O Brasil é religioso. Eu posso ser ateu, mas o tropicalismo não o é – e o Brasil muito menos. Nossa reafirmação do politeísmo afro-brasileiro (sobretudo no período dos Doces Bárbaros) poderia apontar para o que eu gosto de ler em Deleuze sobre Nietzsche: que o politeísmo é o único ateísmo verdadeiro. (VELOSO, 2017, p.32- 3).

Dessa maneira, a Tropicália efetuou uma movimentação cultural vertiginosa no Brasil do fim dos anos 60, que se estendeu à pós- tropicália a partir de 1969, norteando-se por uma ótica cristã, que abordava emblemas de religiosidade, católica e do candomblé, como o vinho de Miserere nobis, canção de e José Carlos Capinan, a mãe morta ao rezar de Coração materno, composição de Vicente Celestino, e até a oração ao padroeiro baiano de Hino ao Senhor do Bonfim, de João Antônio Wanderley e Arthur Salles. Assim, a era tropicalista se desenvolveu por meio de inúmeras confluências e intercâmbios artísticos, que orbitavam em torno da heterogeneidade cultural envolvendo música, cinema, literatura, artes plásticas e teatro, num projeto de modernidade que previa a crítica cultural, política e comportamental, mas sempre abrigada no âmbito alegórico, uma vez que, para Ismail Xavier, “na perspectiva cristã, é a própria textura da história que se transforma em alegoria (lugar de incompletude que solicita preenchimento) [...].” (XAVIER, 2012, p.447), o que denota que a alegoria não deixa de ser uma manifestação de linguagem na esfera do sagrado cujo mecanismo torna-se fundamental para o viés político porque “[...] o caráter cifrado da alegoria é astúcia diante da censura, solução de compromisso para dizer, com todo o cálculo, o proibido sob o manto do permissível.” (XAVIER, 2012, p.447), como evidenciado em A alegoria segundo a tradição: retrospecto, posfácio de Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. Com espírito contestador, no construto tropicalista havia espaço para matrizes culturais arcaicas, eruditas e de invenção, numa relação dialógica entre tradição e modernidade, mas também cultura de massa e mercado, um arrojo artístico que deixaria marcas estéticas, políticas e culturais. Desenvolvidas sincreticamente num período ditatorial sem lançar mão de messianismos de caráter populista ou palavras de ordem, a Tropicália e a Marginália faziam apologia à resistência, no entanto, 22

não havia terreno, ou ao menos não era um objetivo, apoiar a tomada de poder via revolução, como na práxis política marxista ambicionada pela esquerda tradicional, porque a crítica que formulavam não era avessa aos meios de produção, mas aos cidadãos comuns na sala de jantar e propunha-se, via arte, um ataque ao conservadorismo e à moralidade contidos em todas as classes sociais. Parecendo um tanto secundário, sobretudo aos intelectuais marxistas, o ideário tropicalista, que não se restringia ao campo estético, era, na verdade, ainda mais abrangente que o perceptível, pois os artistas dessa vertente não criticavam apenas a pobreza e a exploração social, mas sim questões amplas, comportamentais e sociais, que também tangiam o corpo por meio dos hábitos, costumes e liberdades. Em função disso, os mais conservadores sempre consideraram que a era tropicalista apresentava uma visão acrítica do país em relação às realidades, cultural e social, afirmação que soava retrógrada, afinal, não seria possível fazer crítica de modo alegre? Os protestistas ostensivos, expressão empregada por Augusto de Campos, eram céticos nesse quesito. Atenta a isso, a Tropicália não defendia uma posição político- partidária propriamente, propunha um novo modo de agir afrontando a realidade brasileira numa perspectiva criteriosa, mas propositiva e divertida, sendo detentora de uma capacidade ímpar de agregar e conectar elementos enquanto tudo se desintegrava, ou ainda, como aponta Manuel da Costa Pinto, a ocasião consistia numa

grande operação de desrecalque de um período pós-utópico, em que a reação ao Brasil arcaico desaguou no colapso da modernização autoritária, o Tropicalismo exuma cadáveres, escava ruínas, coloca tudo ludicamente lado a lado, perfaz uma alegoria que desentranha o passado e cancela distinções estéticas entre alta e baixa cultura, libertando-se também das determinações históricas que esmagam o imaginário nacional (vestindo nele a camisa de força do nacionalismo ou a ele reagindo com afetação cosmopolita). (PINTO, 2010, p.79).

Pensando nas estratégias e articulações que dão à arte uma dimensão política, a Tropicália e a Marginália pretendiam chegar ao 23

confronto com a ditadura, perpassando as convenções conservadoras e familiares, tendo em conta que o Estado de exceção não era civil-militar apenas pelo apoio do grande empresariado que fora patrocinador do golpe de 1964 e de sua perpetuação autoritária, mas também pela adesão de boa parte da população em nome dos bons costumes e da manutenção dos valores morais, como visto na vultosa expressão de manifestações como a Marcha da família com Deus pela liberdade, ocorrida dias antes do golpe que retiraria João Goulart da presidência do país; que contava com o apoio do controverso Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)6 e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).7 O profano corpo tropicalista e pós-tropicalista constava como micropolítica de valorização da performance estética e enfatizava o prazer e o sonho da democratização da arte e da vida, significativa expressão corpórea que se podia constatar por meio da afirmação de Caetano: “As cantoras de samba carioca começaram a sambar a partir do final dos anos 1960. Carmen Miranda não sabia sambar. Isso pra mim marca uma virada profunda na história da nossa cultura popular.” (VELOSO, 2017, p.44) e denota esse marco artístico, que fez escola, possibilitado pela Tropicália, já que o ato de sambar era intrínseco aos tropicalistas, como também nos diz Caetano em Os meninos dançam, canção que faz homenagem aos Novos Baianos, banda pós-tropicalista em que se percebia A história do samba/a luta de classes/os melhores passes de Pelé:

6 O instituto era dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, que seria ideólogo, posteriormente, da doutrina de segurança nacional da ditadura civil- militar. Financiado por grandes empresas; com apoio dos principais jornais e de alguns membros eclesiásticos, a função principal do IPES era formular propaganda política direitista por meio de pequenos filmes, veiculados antes das sessões de cinema, na TV, em fábricas e até em coretos de praças públicas pelo interior do país. 7 Posteriormente, a Fiesp teve relação estreita com o Estado de exceção, como observa Elio Gaspari, em A ditadura escancarada, pois “na Federação das indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo término se passava o quepe. Entre 1971 e 1978 um representante da Fiesp fez mais de duzentas visitas à direção do DOPS paulista. Chamava-se Geraldo Rezende de Mattos e era diretor de empresa no complexo industrial de Nadir Figueiredo, um dos barões do sindicalismo patronal. A Ford e a Volkswagen forneciam carros, a Ultragaz emprestava caminhões e a Supergel abastecia a carceragem da rua Tutoia com refeições congeladas.” (GASPARI, 2014, p.64). Além disso, as manifestações pró-impeachment da presidente Dilma Rousseff, ocorridas em 2015 e 2016, também foram apoiadas pela instituição. 24

[...] Eles dançam, eles dançam, Eles dançam, todos eles dançam Dança-moenda Dança-desenho, dança-trapézio, Dança-oração Moenda-redenção.

Nessa seara, o Samba, também dança-oração tropicalista, antes de tornar-se referência, não só para os Novos Baianos, sendo, posteriormente, incorporado à música pop, havia tido seu ápice com o f(ato) de Hélio Oiticica ter se tornado passista do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, agremiação fundada, dentre outros sambistas, por Cartola e Carlos Cachaça, valorização da dança que esmorece no término da era pós-tropicalista, no fim dos anos 70, quando o samba volta a ser renegado e fica exilado nos terreiros de candomblé. Afrontando as moralidades convencionadas pela sociedade, o momento tropicalista tangia outro conflito, para além da luta de classes, discorria sobre o duelo geracional e promovia a desconstrução de hábitos e costumes retrógados contidos nas gerações precedentes. Em função disso, os tropicalistas partilhavam dos conceitos de Herbert Marcuse, presentes em Eros e civilização, onde o capitalismo era criticado num viés marxista, mas também se mencionava a repressão do prazer no coletivo, em que a Tropicália, como salienta Pedro Duarte,

[...] nas canções e nos gestos, nas músicas e nas atitudes – buscava um alargamento do campo da experimentação individual da imaginação para além desses limites impostos pela repressão excessiva identificada por Marcuse. Ela não estaria presente somente nos aparelhos de Estado, mas também em instituições como a família patriarcal monogâmica, ou seja, nas ‘pessoas da sala de jantar’ e no ‘bom rapaz direitinho’, cantados pelos tropicalistas e espalhados pela sociedade brasileira. (DUARTE, 2018, p.69).

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Tal conceituação depois se encontraria à contida em Microfísica do poder de Michel Foucault, para quem as relações de poder não se davam apenas no campo do trabalho e no capital; a relação entre proletários e burgueses também englobava outras formas de poder já que

[...] o poder estaria em toda parte: disseminado, microfísico, espalhado. O poder é descentralizado e o Estado, mesmo em uma ditadura, jamais o esgota. Ele é exercido, por exemplo, nas relações familiares, raciais ou de gênero, justamente aqueles assuntos que os tropicalistas, segundo Caetano, quase nunca viam discutidos mesmo no espectro político de esquerda do Brasil que era filiado ao Marxismo. (DUARTE, 2018, p.70).

Não por acaso, pesquisando, indagando e afrontando, a Tropicália trouxe para o centro do mercado uma confluência de matizes culturais, que propunham um diálogo bastante abrangente, afirmando uma poética singular que apostava impetuosamente na intertextualidade e identificava-se com o retorno de pautas mais do que válidas como a antropofagia oswaldiana, embora essa matriz digestiva fosse lançada em outro contexto sociocultural, isto é, a antropofagia de outrora, como combate à dominação, figurava na era tropicalista num embate inédito até então: com avanços tecnológicos, mídia e mercado. Para alcançar o efeito desejado, os artistas operaram por meio da carnavalização durante o efêmero momento tropicalista, mas o carnaval só conseguiu permanecer enquanto a ditadura esteve envergonhada, como na acepção de Elio Gaspari. Após o endurecimento do regime ditatorial, via Ato Institucional nº 5, a Tropicália seria enterrada alegoricamente, mas continuaria de corpo presente na sua principal signatária, a contracultura brasileira, sobrevivendo até hoje de outras formas, sobretudo referenciais.

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Com as exéquias oficiais da Tropicália, a Marginália se inicia como contestação à repressão e como sintoma da contracultura que ocorria em outras partes do mundo. De tal modo, por uma sina histórica, o pós-64 traria cerceamento, supressão das liberdades e violência numa época, culturalmente, das mais alegres e ricas ao redor do planeta e, assim, “nesse choque, duas rodas giraram em sentido contrário, moendo uma geração e vinte anos da vida nacional.” (GASPARI, 2014, p.211), como apontado em A ditadura envergonhada. Por isso, expondo os mitos e as relíquias do país, os tropicalistas e artistas contraculturais da Marginália produziram bens culturais críticos aos modelos conservadores e à ditadura e congregaram um conjunto de dicções. No entanto, opto por evidenciar a voz de Torquato Neto, dentre todas as possibilidades existentes nesse arco artístico, em função da ausência de holofotes voltados para o poeta em detrimento aos artistas mais conhecidos e infinitamente mais pesquisados como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Sem dúvida, na era pré e pós-tropicalista, o caso de Torquato chama a atenção pela vivência e produção intensa nesse curto espaço de tempo. Certamente, a Tropicália e a Marginália tiveram artistas de grande relevo, mas a invisibilidade ou a passagem de corpo profanador para corpo profanado, ampliada por sua imagem póstuma de vampiro, instigam o olhar mais detido sobre o poeta e sua produção. Nesse turbulento cenário, entre 1964 e 1972, se situa a produção do poeta, múltipla e intersemiótica, que afrontando e driblando a ditadura direitista brasileira, de aparato militar e midiático, por meio da crítica e, sobretudo, da resistência artística, propunha ocupar espaço, seu projeto político-cultural, através das brechas negligenciadas pela censura nos anos de chumbo e de vampiros no Brasil. Logo, a produção torquatiana engendra tensões poéticas e políticas nesse momento anfibológico da história brasileira, empobrecido pela privação de liberdades, mas abastado culturalmente. Assim sendo, utilizo como corpus os escritos8 do poeta embora a obra9 não se configure na forma clássica e esteja parcamente reunida nas

8 A produção de Torquato é composta por letras de canções, poemas, artigos de jornalismo cultural em veículos como o Jornal dos Sports, Correio da Manhã e Última Hora, manifestos, críticas de cinema, roteiro televisivo e de espetáculo musical, direção e atuação em filmes e edição da revista Navilouca. 9 Utilizo o vocábulo obra como na concepção contida em Houaiss, conjunto de trabalhos realizados por um artista, escritor ou cientista, referindo-me a um tecido narrativo e/ou poético, a produção de um autor, neste caso, de Torquato 27

tentativas de coletâneas já realizadas, os livros póstumos Os últimos dias de paupéria, primeira edição reduzida e também a versão ampliada, e os dois volumes de Torquatália, restando estilhaçada em função da tentativa do poeta de eliminar todos os seus escritos. Contudo, lanço mão de demais produções do autor como suas canções, participações cinematográficas e em jornalismo cultural e também utilizo os livros Juvenílias e O fato e a coisa, lançados em 2012, após o acervo resguardado e rescaldado ter sido enviado para sua cidade natal, , por Ana Maria Silva,10 viúva de Torquato e detentora do acervo por décadas, aos cuidados do primo do poeta, George Mendes, que cataloga, organiza e edita os inéditos que resistiram ao fogo e ao tempo. O momento político-cultural atual não permite que percebamos a era tropicalista e pós-tropicalista como sendo fóssil, ao contrário, toda a produção contracultural dessa época nasceu e estabeleceu-se como míssil e nos atinge ainda hoje por meio de estilhaços artísticos de modo extremamente contemporâneo, como no conceito agambeniano. Portanto, pretendo, como na percepção de Waly Salomão, ler a produção de Torquato Neto no âmbito da Tropicália e da Marginália como míssil e não como fóssil,11 aspirando uma abordagem que considere os momentos tropicalistas e pós-tropicalistas como marcos,

Neto, mas também me pauto pela consideração de Roland Barthes em Da obra ao texto, presente em O rumor da língua: “[...] a obra é um fragmento de substância, ocupa alguma porção do espaço dos livros (por exemplo, numa biblioteca). [...] a obra segura-se na mão, o texto mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso (ou melhor, é Texto pelo fato mesmo de o saber); o Texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária do Texto. Ou ainda: só se prova o Texto num trabalho, numa produção. A consequência é que o Texto não pode parar (por exemplo, numa prateleira de biblioteca); o seu movimento constitutivo é a travessia (ele pode especialmente atravessar a obra, várias obras).” (BARTHES, 2012, p.67). 10 Ana Maria era capista da Editora Rocco. Morreu em abril de 2016 em função da Síndrome de Guillain-Barré. 11 A relação entre os vocábulos fóssil e míssil, Waly Salomão extrai do primeiro fragmento do poema Isso ou Aquilo, de Carlos Drummond de Andrade, presente em Lição de coisas, obra de 1962:

O fácil o fóssil o míssil o físsil a arte o infarte [...] (ANDRADE, 2012, p.91). 28

mas tomados como lampejos no presente, sem fossilizar a arte e a política daquele instante, num contrafluxo entre aproximar e distanciar, que possibilite compreender a aura tropicalista vista no tempo de agora, como no jetztzeit benjaminiano. Sendo assim, penso em Torquato como um autor atemporal e vislumbro perceber como suas ideias interferiram no passado e também podem agir na atualidade, afinal de contas, os escritos do poeta são documentos de um tempo em que a vida foi sua força motriz mesmo diante de tantas ameaças; não à toa, com todos os riscos, num combate à letargia impulsionada pela censura, nos disse o poeta em Cordiais saudações, texto de 19 de agosto de 1971,

[...] estar vivo significa estar tentando sempre, estar caminhando entre as dificuldades, estar fazendo as coisas, e sem a menor inocência. Os inocentes estão esperando enquanto aproveitam para curtir bastante conformismo disfarçado em lamúrias, ataques apocalípticos e desespero sem fim. (NETO, 2004, p.200).

Além disso, evidencia os motivos pelos quais a figura do poeta, um dos gestores da Tropicália e ícones da contracultura brasileira, tornou-se uma espécie de homo sacer sem crimes, augusto; mas apartado da sociedade tropicalista, sendo uma figura um tanto quanto apagada frente aos demais nomes dessa cena tão relevante. Nos Estados Unidos, por exemplo, Torquato foi vítima de apagamento ainda em vida, como vemos em Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto,

[...] lançado nos EUA, o álbum Look Around, de Sérgio Mendes e Brazil’ 66 apresenta na faixa 7 a música ‘Pra dizer adeus’, com o nome de ‘To say goodbye’. Seria um bom motivo para comemorar e exultar, não fosse o fato de os créditos ignorarem o nome de Torquato na parceria. Como autores da música aparecem Lani Hall, cantora do grupo e da nova versão da letra, e , o autêntico, autor da melodia. A questão foi parar nos tribunais que facilitaram um acordo entre as partes e Torquato acabou aceitando uma indenização em dinheiro. (VAZ, 2013, p.219).

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Diante disso, a grave supressão de autoria e tentativa de aniquilamento torquatiano é avaliada por Tom Zé em Torquato, Torquato!, capítulo de Tropicalista lenta luta, ao apontar uma chave interpretativa para esse fato, embora ele próprio se considere, numa lógica similar, o Trótski da Tropicália, metáfora de desaparecimento da história oficial que também podemos relacionar ao poeta teresinense:

Não cantar apagava a visualidade de Torquato, na fase em que se instaurava com mais força o cantor-imagem; seu silêncio vocal retirava-o dos registros de comportamento e performances que caracterizaram o Tropicalismo. Esse apagamento de Torquato é uma das possíveis raízes fundadoras para a maneira como ele saiu da vida. História-raiz – uma face, apenas, da lapidação da pedra, que tem tantos ângulos quantos são os olhos que a veem. Nem ângulos nem olhos são exatos. Imprecisão. Rashomon. (ZÉ, 2011, p.116).

Contudo, o artista baiano utiliza o conceito de efeito rashomon12 para mostrar como sua opinião não é universal e não pode determinar ou até mesmo provar sua veracidade em função das opiniões conflitantes daqueles que, assim como ele, conviveram com o poeta. Em todo o caso, para além da depreciação enfrentada ainda em vida e propagada após seu falecimento, em função da produção de Torquato abarcar audiovisual, jornalismo, música e cinema, sempre pareceu estranho aos pesquisadores de sua obra que não houvesse, atualmente, nenhum registro de áudio do poeta, mesmo que considerássemos que todas as suas participações cinematográficas foram feitas em cinema mudo e ele não fosse intérprete de suas canções. Diante disso, em 2014, durante a produção do documentário Torquato Neto – Todas as horas do fim,13 um dos diretores, Marcus Fernando, deu

12 Além de um conceito, Rashomon também é um filme de Akira Kurosawa, de 1950, que descreve um estupro e um assassinato sob a ótica de quatro testemunhas. Em função das contradições, o espectador não consegue determinar a veracidade dos fatos descritos pelas personagens: o bandido, o samurai, sua esposa e um lenhador. 13 O documentário foi lançado em 2017 com roteiro e direção de Marcus Fernando e Eduardo Ades e narração de Jesuíta Barbosa. 30

uma entrevista ao jornal O Globo lamentando não ter encontrado, após uma verdadeira varredura em arquivos variados, nenhum registro que contivesse a voz de Torquato, apesar de suas participações em programas de rádio e nos festivais musicais dos anos 60. 14 Posteriormente, ao ler a matéria publicada no periódico carioca, o radialista gaúcho Vanderlei Malta da Cunha lembrou-se de ter feito uma entrevista com o poeta nos bastidores do IV Festival da TV Record em 1968 por intermédio de Gilberto Gil, que o levou ao encontro de Torquato. Cunha, instigado pela publicação, encontrou em seus guardados uma gravação esquecida por 46 anos, uma fantasmagoria sonora, que viria a ser o único registro de voz do artista. Foi essa gravação que possibilitou até para Thiago Silva de Araújo Nunes, piloto de avião e filho do poeta, a ouvir a voz do pai que morrera quando ele tinha apenas dois anos. Com esse surpreendente registro, que resistiu ao tempo, Torquato ressurgiu como um Brás Cubas, um morto que volta para nos dizer sua importância, para ocupar, novamente, seu devido espaço e para nos lembrar do valor da Tropicália, como nesse trecho transcrito do áudio citado:

Eu acho que o grupo baiano deixou de folclorizar o folclore [...]. Uma vez um crítico de música popular escreveu num jornal do Rio que tinha muita pena do grupo baiano porque o grupo baiano tinha abandonado o Samba, mas o Samba estava de braços abertos, e que o dia que o grupo baiano quisesse voltar para o Samba, seria bem recebido. Eu acho isso da maior besteira. Eu acho incrível. Acho que nós nunca saímos do Samba, nós só continuamos com ele, né? Não continuamos folclorizando o Samba, o folclore da , o Samba de roda, nem coisa nenhuma, nem todas as influências que as pessoas têm de música popular no Brasil durante sua formação, as mil maneiras de música popular. Eu acho que o nosso trabalho hoje em dia, eu digo isso sem nenhum

14 Em 1963, Torquato trabalhou na Rádio Pioneira de Teresina e também na Rádio Clube de Teresina, emissora em que ele apresentava o programa Roda de Samba, mas não há nenhum registro desses trabalhos, apenas relatos de amigos e ouvintes.

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perigo de ser chamado de imodesto, eu acho nosso trabalho importantíssimo pelo seguinte: porque é o que abre perspectivas. O tropicalismo é um negócio abrangente, totalizante. Você pode fazer , não tem que pedir a ninguém que fique definindo toda hora “Mas o que é o tropicalismo?”. Tropicalismo é você fazer o exercício de liberdade. (NETO, 1968).

Cumprindo o exercício de liberdade artística, a partir de um universo de referências, o Samba era um norte para os tropicalistas, que jamais tiveram a intenção de promover repetição, ou seja, não tinham nada contra a tradição, não só do Samba, mas olhavam com suspeição a estagnação da arte como tradição. No entanto, sem qualquer teleologia, sem nenhuma pretensão de superar o que já havia sido feito artisticamente no país, apostava-se apenas no novo, naquilo que até então era inédito, pois a retomada da linha evolutiva da MPB, proposta por Caetano Veloso, não propunha evolução como superação, mas como ideia de movimento, de continuidade, de devir. Para Caetano, e também para os demais tropicalistas, a linha evolutiva tinha empacado em João Gilberto e precisava seguir adiante, ser posta em curso. Pode-se dizer que mesmo diante de uma provável invisibilidade no campo da música,15 por ser apenas letrista e não músico e/ou intérprete, Torquato engendrou um modo de resistir às políticas culturais, mas também ditatoriais, pois além de opressão, havia conservadorismo social e falta de incentivo financeiro para produções marginais. A ideia era combater a ausência de voz. Em seu principal papel cinematográfico, o protagonista de Nosferato no Brasil, não há voz por se tratar de um filme mudo, mas Torquato comunica com o corpo, com seu vampiro tropical e marginal que se torna um paralelo à imagem do canibal antropofágico. Assim, sua voz, literalmente, surgiu recentemente, mas seu corpo tornou-se imortal via Nosferato, visto que, como aponta Paul Zumthor, em Performance, recepção, leitura, no discurso poético

15 No áudio citado anteriormente, Torquato menciona que sua primeira letra de canção foi Nenhuma dor, composta em 1964, musicada, posteriormente, por Caetano Veloso e gravada pelo artista no álbum Domingo (1967) em parceria com . Além dessa canção, o disco de Caetano e Gal apresenta mais duas letras de Torquato: Minha senhora e Zabelê, ambas musicadas por Gilberto Gil. 32

[...] o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo [...] É por isso que o texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o sentido é aí percebido. O mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável, ele é sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível. [...]. (ZUMTHOR, 2014, p.75).

Talvez, em função disso, o poeta tenha procurado outros meios de resistência no círculo underground e sua produção seja rica em aporias assim como o período em que ela foi desenvolvida. Ironicamente, suas letras são conhecidas e executadas nos mais variados meios, mas muitas vezes lembradas e atribuídas, erroneamente, aos seus intérpretes, pois, como vemos em Medula e osso, elas “[...] estão no DNA sonoro e poético do brasileiro, são constitutivas de memória afetiva individual e coletiva. Estão na linha evolutiva (me apropriando aqui da expressão de Caetano Veloso) tanto da canção quanto da literatura no Brasil.” (MORICONI, 2017, p.20). Todavia, percebe-se que nas décadas de 60 e 70, artistas como Torquato, Hélio Oiticica, Waly Salomão, José Agrippino de Paula, Jards Macalé, Rogério Sganzerla, Sérgio Sampaio e tantos outros, eram apontados como marginais, desviantes; entretanto, eram eles que, criando, afrontavam a sociedade e promoviam experimentação estética. Nessa época, conflituosa, estar à margem era peitar toda uma estrutura social e econômica para constituir espaço: um lugar em que o outro, o artista fora da curva também tivesse voz e, sobretudo, pudesse fazê-la ecoar.16 A múltipla produção de Torquato e, principalmente, o momento em que ela acontece e reverbera acaba por evidenciar a postura contracultural e a não linearidade de sua produção, que se configura como uma junção de fragmentos, sob um ponto de vista, e que sugere uma ideia de não-obra. Visivelmente fragmentada, pode ser entendida

16 Em alguns casos, como dos músicos Sérgio Sampaio, Itamar Assumpção e Jards Macalé, além de marginais, foram chamados de malditos e nunca se livraram do rótulo. Sampaio e Assumpção morreram sem se desvencilhar da alcunha e Macalé irrita-se até hoje em função desse estigma, como pode ser visto no documentário Jards Macalé – um morcego na porta principal, de 2008, com direção de Marco Abujamra e João Pimentel. 33

como um corpus único, um combo que apresenta variados campos de enunciação; o que, aparentemente, parece ruína se mantém como um corpus esparso que tenta representar um período; parece tentar traduzir o pensamento torquatiano por meio da letra de canção ao cinema. De tal modo, há uma teia impregnada de possibilidades na escrita de Torquato em função de sua constante tentativa de experimentação e, logicamente, por seu perfil inconstante; há um jogo de auto espelhamento em que toda sua produção, em variadas formas textuais, contamina-se da sua própria vida, isto é, esses variados campos de atuação são também variados campos de enunciação onde as recusas políticas, ideológicas e comportamentais do poeta se evidenciam, e fica explícito, como cita Moriconi, que

[...] existe uma textualidade torquatiana, envolvendo verso, frase, prosa jornalística, escrita íntima, em modo de jogo combinatório. A obra de Torquato é como um ímã que busca apreender poeticamente as contradições do real sem a pretensão onipotente de resolvê-las, tudoaquiagoraaomesmotempo. À medida que avançam os anos de chumbo, o desalento predomina sobre a esperança dos primeiros tempos, mas é sempre um desalento ativo, provocativo [...]. Por ser uma apreensão poética, e por estar sempre atenta ao avesso das coisas e de si, os paradoxos e oposições percorrem seus textos. Um termo forte acaba sempre levando a seu oposto: vício e virtude, a poesia como mãe e como pai, o fim e o início, o dentro e o fora. Convívio conflitivo das palavras, coisas, pessoas. (MORICONI, 2017, p.27-8).

Considerando isso, podemos pensar a obra de Torquato como uma espécie de transgressão entre o real, o vivido, e a obra, o fictício, num modo símile ao personagem clariciano de A hora da estrela, quando o narrador-personagem, Rodrigo S.M., um narrador híbrido que se aproxima e se afasta da personagem nordestina, Macabéa, que procura um lugar no ,17 nos diz: “transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em

17 Nordestino, Torquato também ansiava por um lugar na cidade do Rio de Janeiro, como pode ser percebido, sobretudo, em suas canções. 34

escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer ‘realidade’.” (LISPECTOR, 1990, p.31). Afinal, a relação entre o literário e o autor também perpassam as experiências particulares do indivíduo, como considera Florencia Garramuño, em A experiência opaca: literatura e desencanto, pois

essas práticas artísticas foram acompanhadas por uma série de experimentos vitais que se transformaram numa marca histórica desses momentos: a experiência com as drogas, a descoberta do corpo, a noção de experimentação, o desbunde, a curtição, inclusive os inúmeros suicídios e mortes precoces desses artistas, assim como a vivência do exílio, da guerrilha e da militância política, parecem antes assinalar não tanto uma pobreza de experiência, mas a emergência de outras formas da experiência, dramaticamente intensas, mas, sem dúvida, não relacionadas de maneira necessária a uma decantação do saber e a uma narração linear, completa e totalizadora. (GARRAMUÑO, 2012, p.38-9).

Por conseguinte, a obra torquatiana é composta de modo assistemático, transitando em diferentes meios e linguagens, e por ser fragmentária por definição, de certa forma, se inter-relaciona por meio de diálogos inter e intratextuais, percebidos no conjunto da obra, que sugere o desejo de não totalidade, optando sempre por uma construção poética diversa e estilhaçada englobando palavra, som e imagem, tornando a poesia de Torquato, e nela incluo tudo que ele produziu, como devota de contestação no âmbito mercadológico da Tropicália e, posteriormente, no caráter contracultural da Marginália.

*

O universo tropicalista aborda questões que poderiam parecer ultrapassadas, mas que retornam, se é que deixaram de ocorrer, quando percebemos o cenário que nos cerca, atualmente. Parafraseando o verso 35

de Gil, o Brasil continua lindo, mas essa constatação se faz, em certa medida, quase em igual condição da original, outrora feita pelo baiano se referindo especificamente ao Rio de Janeiro; exaltando a beleza citadina sem mencionar as mazelas instauradas no país que o obrigavam a despedir-se. Assim, a colagem do passado com a reunião de absurdos do presente, que inclui saudações à ditadura e a torturadores, é proposta, aqui, como elogio à era tropicalista e contracultural, especialmente por sua força contestadora, mas também como forma de ler a história cultural nacional a contrapelo, para encarar esse novo coro dos contentes de modo essencialmente crítico; como postura frente ao tempo que vivemos, complexo, multicultural, mas também antirrevolucionário; avesso ao progressismo cultural, político e social, conflito amargamente real que torna infrutífero referir-se apenas aos anos rebeldes quando se mira a Tropicália, a Marginália e a voz subversiva de Torquato. Sem corpo presente, o poeta não pode acompanhar e, tampouco, conseguiria imaginar a que ponto chegaríamos na geleia geral brasileira, portanto, relê-lo agora amplia a importância de seus escritos, torna aquilo que se considera datado, em função do momento de feitura estar inserido num amplo cenário obscurantista, soar revelador. Dito isto, observo que conheci seus escritos mais profundamente nos idos de 2005 durante a ociosidade de uma legítima greve geral de professores e servidores na Graduação em Letras. Entretanto, a imaturidade teórica e o cenário de estabilidade econômica, proporcionada pelo início da era Lula, pareciam distanciar os tempos sombrios, que não vivenciei por ter vindo ao mundo no governo do imortal Sarney, daquele momento promissor que vivíamos; ampliado pelo respiro após duas desastrosas gestões neoliberais. Naquela ocasião, entre tantos outros livros lidos, me ative aos dois volumes de Torquatália e pude ampliar o conhecimento sobre o jovem poeta que eu conhecia de poemas esparsos e canções. Lembro-me que a informação da morte aos 28 anos me inquietava; aos 19, me intrigava o fato de um poeta pouco mais velho que eu ter produzido tanto e em diferentes meios num curto espaço de tempo. Hoje, tantos anos depois, eu já o supero em idade, mas continuo intrigada, entretanto, sua produção quantitativa já não é o centro de minhas reflexões, e sim a irônica similaridade, de certo modo, da época tropicalista e contracultural com o período atual. Agora, a sensação de asfixia torquatiana faz ainda mais sentido porque vivenciamos a continuidade de um golpe, com máscara democrática, iniciado logo após a reeleição de Dilma Rousseff, a 36

sucessora de Lula, e executado na farsa do impeachment de 2016. Torquato jamais poderia prever que seu amigo de terna infância em Teresina, Wellington Moreira Franco,18 estaria envolvivo na trama como um dos principais articuladores do recente golpe de Estado e, consequentemente, sendo um dos fundamentais condutores de Temer, um exemplar vampiresco com quem certamente até um entusiasta vampírico como Torquato não simpatizaria, ao posto máximo de Brasília entre os anos de 2016 e 2018. Contudo, o poeta de curta vida terrena, metamorfoseado vampiro tropical, seria eternizado na história artística brasileira e seu antigo amigo, o “gato angorá”, como o batizara Brizola noutros tempos, ficaria petrificado no lastro das tramoias políticas do país, que, espantosamente, continuaria alçando seres nefastos ao alto escalão governamental. Por fim, rememoro que, recentemente, pudemos ouvir o poeta. Confesso que a materialidade de sua voz, timbre e sotaque, que até então era inquietante incógnita, me fez imaginar o que ele nos diria e registraria em sua Geleia geral se pudesse experienciar as ondas de conservadorismos, sucessão de desmandos e afrontas aos direitos constituídos que o jornal do Brasil anuncia.

18 Moreira Franco é citado por Torquato em Motivo, poema de Juvenílias:

[...] Wellington Moreira Franco Bonachão. dengoso. rico. (O pai tinha um automóvel, uma casa bonita e uma propriedade na Socopo – a piscina). amigo. O primeiro deles. Quando ele foi embora eu até chorei! E chorei sentido, Lágrimas de amigo. Apesar das chatices da D. Kerma. (NETO, 2012, p.50).

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1. Tropicália: parangolé no caos19

[...] não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo. Friedrich Nietzsche em A gaia ciência

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Oswald de Andrade em Manifesto antropófago

Em Tropicalista lenta luta, Tom Zé faz uma curiosa observação em torno do vocábulo Tropicália ao apontar que a palavra que designaria esse momento cultural, manifesto em variados nichos artísticos dos anos 60, já figurava, parcialmente, na expressão latina alea jacta est, utilizada por Júlio César na travessia do rio Rubicão, atual Fiumicino, na Itália:

Considere a famosa frase do general romano e a coincidência de na palavra ‘tropicália’ já estar contido um terço da expressiva alea jacta est, dita por César, que malmente se traduz em ‘a sorte está lançada’. Malmente, porque a expressão latina, uma ejaculação de ímpeto decidido, traduzida soa pálida e claudicante. Entretanto, é gostoso verificar que ‘sorte’, no sentido de fado ou destino, está contida na palavra ‘tropicália’. [...] Ao dizer tal frase o comandante romano atravessou um rio e começou uma guerra. Nesse

19 Parangolé: gíria carioca que definia um acontecimento repentino e/ou espontâneo produtor de alegria. 38

sentido o ‘a sorte está lançada’ se enlaça com o Tropicalismo, que nos anos 60 rolou na lama de águas estagnadas por uma esquerda reacionária e uma direita atrabiliária, iniciando uma guerra cultural. (ZÉ, 2011, p.57).

Nesse caso, os generais eram proibidos pelo direito romano de levarem suas tropas para o cruzamento do rio Rubicão, mas Júlio César, em 49 a.C, infringe a lei para perseguir Pompeu, profere sua conhecida frase, que também pode ser traduzida como “O dado está lançado”, e a guerra se inicia. A partir daí, a ação se tornou sinônimo de decisão arriscada, em função da expressão “atravessar o Rubicão” passar a ser utilizada como referente à atitude sem volta, imutável. Portanto, assim como fora para o ilustre romano, a sorte também estava lançada aos tropicalistas nos idos de 1960 e a guerra cultural teve nuances alegres, mas também melancólicas, nas águas paralisadas da cultura brasileira, como nota Tom Zé. Na raiz latina, tropicália acontece pela junção de tropical e ália, tropicus e alea, mas se tomarmos a origem grega, tropikos, que em sentido astronômico envolve-se pelo caráter de movimento, em função da passagem dos solstícios, percebemos a derivação via tropos, a volta, a virada que se dá em um vocábulo quando queremos fazê-lo ter um significado que não tinha originalmente. Assim, tropos, figura de linguagem ou de retórica, serve para evidenciar uma mudança de significado linguístico ou de pensamento e se jogarmos com esse dado etimológico, como no ludus profanatório, podemos entender a Tropicália como sinônimo de mudança, de desvio da ordem vigente, e, a partir disso, crer na era tropicalista como amor fati nietzschiano, como amor a essa sorte, a esse destino. Nos anos 60, o Brasil passou por uma espécie de revisão cultural que abordava os primórdios do país; as origens, as políticas culturais e questões econômicas, que englobavam dependência, consumo e consciência, concomitantemente com a instauração do Estado antidemocrático. Em função disso, ocorrera o engajamento de muitos intelectuais, artistas e estudantes e a expansão da militância social e política, cenário em que os destaques são o CPC da UNE, Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes, e grupos organizados como Grupo Opinião e o Teatro de Arena. Nessa época, dois movimentos distintos apostavam nos ideais políticos referidos pelo ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o movimento de cultura 39

popular no Recife e o CPC, aos quais tinham Paulo Freire e Carlos Estevam Martins como representantes. Segundo Renato Ortiz, em Cultura brasileira & identidade nacional,

não resta dúvida de que existem matizes entre as duas abordagens, no entanto, creio que se pode genericamente afirmar que os dois movimentos se construíram em grande parte com base no conceito de alienação cultural. A teoria isebiana, ou pelo menos parte dela, penetra tanto as forças de esquerda marxista quanto o pensamento social católico. (ORTIZ, 2017, p.48).

Assim sendo, o teor isebiano atingira diretamente o teatro e o cinema. O teatro brasileiro passa a trabalhar os conceitos de cultura alienada, popular e nacional, especialmente nos textos de Gianfrancesco Guarnieri e de Augusto Boal. No cinema, a referência ao órgão, criado em 1955 e extinto dias após o golpe de 1964, apareceria principalmente em Uma situação colonial de Paulo Emílio Sales Gomes e em Eztetyka da fome de Glauber Rocha, num momento em que, conforme aponta Ortiz,

o diagnóstico de Paulo Emílio sobre a alienação do cinema brasileiro marca toda uma série de análises sobre a problemática do cinema nacional. Ele ressurge, por exemplo, na proposta de realização de um cinema novo. Pode-se dizer que até mesmo o debate sobre a bossa nova é marcado pela discussão da alienação ou não da importação do jazz pela música brasileira. (ORTIZ, 2017, p.49).

Desse modo, o CPC da UNE, organização também suprimida com o golpe civil-militar, foi pioneiro ao organizar um projeto para a cultura brasileira com o intento de promover através da arte uma transformação da sociedade. Para os intelectuais da arte popular revolucionária, a arte nacional era aquela que fosse verdadeiramente popular e essa definição, sob a ótica tropicalista, configurava-se como um erro cepecista, pois os artistas tropicalistas não defendiam a 40

separação entre a arte nacional e popular e a considerada inautêntica, realizada com referências estrangeiras. No entanto, como bem observa Celso Favaretto, em Tropicália, alegoria, alegria,

a atividade desses grupos era apaixonada, sendo frequentemente maniqueísta. Manteve acessa, durante toda a década, uma polêmica de grande alcance cultural, em torno da oposição entre arte alienada e arte participante. Havia agressividade, quando não desprezo, contra as tendências experimentalistas, assim como uma recusa da importação de formas, ritmos e estilos. Embora matizada, a atitude desses grupos gerou uma forma de consciência participante, um público esclarecido, politicamente avançado, que se distinguia, maniqueisticamente, de uma pequena elite, considerada reacionária, por ser formalista. (FAVARETTO, 2007, p. 29).

Nesse sentido, a cultura popular era enaltecida e a cultura de massa bastante demonizada naquele momento de franca modernização e incremento do mercado cultural fazendo com que os intelectuais cepecistas defendessem a arte como a de Geraldo Vandré20, que se centrava em canções de protesto, e se opusesse com afinco à realização tropicalista, porque naquele instante, entre 1967 e 1968, a Tropicália combatia os conservadorismos e aludia sem receio à globalização. 21

20 A oposição entre a canção engajada e a tropicalista era frutífera. Na visão tropicalista, a canção de protesto denunciava o mercado e o consumo, mas se tornava cínica ao necessitar do cenário musical para existir e se propagar. Os tropicalistas demonstravam, sem pudor, a relação entre arte e mercado e se aventuravam ao encarar os meios de comunicação de massa e a lógica da sociedade de consumo. Além disso, Torquato, por exemplo, declarava não gostar das canções com letras engajadas e Geraldo Vandré, por implicância, se referia ao poeta como “inocente do Piauí nas mãos dos baianos”. 21 O nacionalismo é uma problemática que impera nos debates das atividades dos centros populares de cultura. Assim, Ortiz aponta que “[...] retoma-se de certa forma o argumento isebiano que focalizava o problema da dependência cultural em termos de alienação. A luta anti-imperialista, tema essencial das manifestações estudantis, penetra desta forma o texto artístico, e pode, pedagogicamente, ser exposto para a grande massa. [...] Diversas manifestações culturais passam assim a compor o espectro de fenômenos considerados sob a 41

A partir dessas discussões, intelectualizadas e que se desgastaram com o passar do tempo, a Tropicália surgia com outro viés cultural e com táticas que retomavam questões já abordadas como a antropofagia oswaldiana, por exemplo, mas rompendo com dogmas e conceitos canônicos para lançar um modo distinto de olhar para o país e para a cultura nacional. Embora os tropicalistas soubessem que havia inúmeras semelhanças entre a Tropicália e o primeiro modernismo brasileiro, o contexto desses dois momentos de invocação antropofágica era bastante distinto, tendo em vista as adversidades dos anos 20 e os embates televisivos e modernizantes dos anos 60, década que apresentava grande expectativa em toda a América Latina, em função das transformações que estavam em curso no dito Terceiro Mundo, após uma lufada revolucionária, que seria dissipada pelas instaurações ditatoriais e a estagnação econômica e social. De tal modo, a apreciação desse período cultural brasileiro implica, dentre outros pontos, perceber como os artistas da época lidaram com a realidade nacional em detrimento ao descompasso entre as suas expectativas iniciais e o real a que foram submetidos, entretanto, esse choque produziria uma revolução cultural em que “[...] reavaliou-se a experiência do país, como drama ou comédia, sempre com ironia, uma vez que os percalços da revolução, ainda em pauta, já projetavam no horizonte o fantasma da condição periférica como um destino e não como um estágio da nação.” (XAVIER, 2012, p.29-30), como apontado em Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. Ademais, em entrevista concedida a Ricardo Muniz em 10 de agosto de 1987, Rogério Duarte22 considerava que os classificação de ‘cultura popular’: o cinema novo que reivindica a implantação de uma indústria cinematográfica nacional; o teatro que revaloriza os temas brasileiros; as tradições populares regionais. [...] O rock simbolizaria assim uma etapa do processo de alienação cultural, enquanto a música folclórica reafirmaria a identidade perdida no ser do outro. A comercialização da música regional aparece desta forma como uma dessacralização da autenticidade da arte popular (poderíamos dizer que ela perde sua ‘aura’); paradoxalmente, a ideologia do CPC vai reencontrar a problemática anteriormente colocada pelos folcloristas. Uma vez que a noção de alienação se confunde com a de inautenticidade, pode-se estabelecer uma aproximação entre concepções que a priori se apresentavam como frontalmente antagônicas.” (ORTIZ, 2017, p.75- 6). 22 Rogério foi uma espécie de guru tropicalista como pode ser visto no filme- homenagem Rogério Duarte, o tropikaoslista, de José Walter Lima. Ademais, o artista baiano foi designer de vários álbuns de muitos artistas como Caetano 42

tropicalistas não cabiam na gaveta do habitual e por isso foram muito combatidos: “Nós não cabíamos nessa gaveta e fomos rejeitados por isso, por buscar uma totalidade num momento em que tudo estava compartimentalizado. O Tropicalismo, e sua força, significa isso. Ele não é um movimento, mas um momento de um movimento [...].” (DUARTE, 2003, p.148). Por esse motivo, a Tropicália ganharia ares nunca imaginados naquele tempo antidemocrático e vil, que Torquato Neto, sobretudo em relação à ditadura, diria: “a nova ordem gerou uma dispersão geral” (NETO, 2004, p.189) 23 e esse caráter se deve em muito à receptividade que os tropicalistas tiveram com as transformações que ocorriam no mundo na esfera dos costumes, como a rebeldia jovem, liberação sexual, oposição às repressões políticas e morais; postura bastante distinta da esquerda tradicional que era aguerrida politicamente, mas assaz “careta” quanto à arte e aos costumes mais arrojados ambicionados e vivenciados pela contracultura ou a dita cultura do contra, que evidenciava a então urgente ampla transformação das esferas políticas, culturais e de costumes, escolha tropicalista que afinava com o dito de Torquato no manifesto Torquatália III: “escolho a tropicália porque [ela] não é liberal mas porque é libertina.” (NETO, 2004, p.63). Em 1967, ano do nascimento tropicalista, ocorreram várias atividades artísticas como o lançamento da instalação Tropicália de Hélio Oiticica e do filme Terra em transe, de Glauber Rocha; a montagem de O rei da vela realizada pelo Teatro Oficina, a exposição das máscaras sensoriais de Lygia Clark, a composição da canção Tropicália de Caetano Veloso, a participação deste e de Gil no III Festival da Canção da TV Record; onde foram apresentadas,

Veloso, Gilberto Gil e ; também foi autor de alguns cartazes de filmes, entre eles o de Deus e o Diabo na terra do sol, filme de Glauber Rocha, e tradutor, direto do sânscrito, do Bhagavad Gita: canção do divino mestre, texto religioso indiano; além de Professor Notório Saber da UFBA (Universidade Federal da Bahia). 23 Como observa Jair Tadeu da Fonseca, em A Tropicália, a ditadura e além: Glauber Rocha, Torquato Neto e Waly Salomão, a Tropicália “[...] caracterizou- se pela confluência de artes e artistas em ação coletiva e, depois desse período, por sua dispersão, através da diluição das vanguardas artísticas na dimensão comportamental que caracteriza a contracultura, [...] algo que Silviano Santiago (1978) já intuíra nos ensaios Os abutres e Caetano Veloso enquanto superastro.” (FONSECA, 2015, p.24).

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respectivamente, Alegria, Alegria e Domingo no parque e a publicação de PanAmérica, de José Agrippino de Paula, romance-epopeia em que o cinema é o mito máximo num cenário habitado por estrelas hollywoodianas e mitologias contemporâneas, expostas num fluxo incessante, quase onírico, num diálogo com as mais variadas personagens, literárias, políticas e artísticas, e também elementos da cultura de massa atravessadas por passagens nonsense, que incluem até órgãos sexuais alados, numa narrativa violenta e surreal que caracterizaria a aura da vida brasileira no pós-64. Por isso, em meio à tensão, articulou-se espontaneamente toda uma cena artística que se caracterizou como momento tropicalista, como na assertiva de Rogério Duarte, porque a Tropicália não é um movimento cultural, como a historiografia sempre o situa, já que não dispõe de uma agitação organizada; com premissas estéticas e manifestos formais. Sendo, certamente, um exemplo de múltipla movimentação cultural em que, como observa Frederico Coelho em Tropicália, organizado em parceria com Sergio Cohn, “[...] se definido como essa movimentação, foi, de fato, muito mais a reunião criativa de contradições do que a confluência plácida de consensos.” (COELHO, 2012, p.12). Entre outros fatos, podemos considerar a Tropicália como momento e não como movimento a partir da declaração de Gilberto Gil em entrevista a Augusto de Campos e Torquato Neto em abril de 1968, contida em Balanço da Bossa e outras bossas. Na referida publicação, Gil é enfático ao declarar que o trabalho do grupo baiano “[...] surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado.” (CAMPOS, 2008, p.193). Porém, o emprego da palavra movimento sempre esteve atrelado aos tropicalistas. Às vezes, com um uso de senso comum, mas em outras ocasiões com a conotação de união verdadeiramente. Afinal, é inegável que em 1967 e 1968 havia por parte de vários artistas um desejo, uma vontade, uma tomada de posição para tornar possível uma transformação das expressões artísticas do Brasil e isso aconteceu antes mesmo de a imprensa agrupá-los em um ismo aglutinante. Os eventos artísticos daquele biênio foram bem significativos para a cultura brasileira, sendo, em separado, construtos de importância para o cinema, teatro, música, artes plásticas e literatura, mas constituindo-se de modo ainda mais expressivo se levarmos em consideração a sincronicidade e elo entre obras distintas que se alinhariam ao momento tropicalista. Em função disso, alguns artistas utilizavam a expressão movimento tropicalista, como vemos, por exemplo, no documentário Tropicália de Marcelo Machado, em que 44

Caetano e Gil aparecem em um programa português em meados de 1969, durante o exílio dos artistas, respondendo a uma questão feita pelo apresentador: se a música que faziam naquele momento ainda era tropicalista. Ao passo que Caetano responde ao interlocutor: “o nome de um movimento só existe enquanto o movimento existe e o tropicalismo não existe mais como um movimento. Nós já não estamos mais no Brasil e o que fazemos hoje é irresponsável ao movimento tropicalista que não existe mais”. Originalmente, a categoria de momento foi utilizada por Renato Poggioli em Teoria da vanguarda e por Marjorie Perloff nos escritos sobre futurismo em O momento futurista e, aqui, é retomada via texto de Flora Süssekind, Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60. Nesse texto, a autora considera ser mais adequado avaliar o caso Tropicália sem o uso do ismo para se evitar a suposição de algo programático, que o caráter do sufixo traria, tendo em conta que, segundo Süssekind,

talvez seja o caso, nesse sentido, de não se pensar unicamente, então, em movimento (no que esta expressão supõe de programático e organizacional), mas num ‘estado mais amplo e profundo’, numa ‘arena de agitação’, num ‘momento tropicalista’ cuja abrangência iria bem além do campo estritamente musical (no qual se poderia pensar, de fato, num grupo mais coeso, constituído basicamente pelos participantes do disco-manifesto Tropicália), ou de uma limitação temporal demasiado rígida (se bem que o biênio 1967-68 concentra, de fato, algumas de suas mais intensas e significativas manifestações). (SÜSSEKIND, 2007, p.31).

Além disso, outros tropicalistas ampararam esse conceito como, por exemplo, José Celso Martinez Corrêa, que corrobora com a autora ao afirmar em Primeiro ato: “Tropicalismo, nome dado pelo colunismo oficial dominante a uma série de manifestações espontâneas, surgidas durante o ano de 1967, e portanto destinadas à deturpação e à morte.” (CORRÊA, 1998, p.127). Logo, para os artistas, a cena tropicalista sempre foi considerada um momento, como defende Süssekind, ao apontar que Zé Celso teria dito em 1977 que o Tropicalismo nunca 45

existiu, pois “[...] ‘o que existiu’, segundo ele, ‘foram rupturas em várias frentes.’ Rupturas que, a princípio, foram se processando sem plena consciência de sua interligação e abrangência, ou de um possível ‘estado criador geral’.” (SÜSSEKIND, 2007, p.31). Assim, percebe-se que a Tropicália reuniu elementos formando uma espécie de gênese sob um panorama de discussões e transgressões produzidas num curto espaço temporal em que, como observa João Camillo Penna, em O tropo tropicalista, consistiu

[...] no registro estrutural de uma ideia – o anacronismo – fixado e convertido em uma convenção intemporal, que dispõe indiferentemente de documentos não estetizados. Tudo cabe, nesta colagem de disparates, todos os elementos opostos e justapostos para significar uma e a mesma coisa: o descompasso anacrônico. (PENNA, 2017, p.66).

Em Lembranças tropicalistas, entrevista publicada, originalmente, no Jornal Opinião em 31 de janeiro de 1971, Torquato define a Tropicália como sendo o próprio país e, desse modo, o Brasil seria uma continental “[...] sala mista de tudo, de miséria, de tecnologia, de tudo isso...”. (NETO apud COHN; COELHO, 2012, p.256), que poderia, fatalmente, ser entendida conforme o fenômeno de polinização cruzada formulado por Waly Salomão:

Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado. Entre a confissão e o jogo. Entre o vivenciado e o inventado. Entre o propósito e o instinto. Entre a demiúrgica lábia e as camadas superpostas do refletido. [...] nas brechas em que lacuna vira cesura, cadência e, quem sabe, ligação. (SALOMÃO, 2014, p.322).

E, em função disso, em se tratando de política, a direita era colérica no ataque aos tropicalistas por prezarem pela busca da estabilidade de costumes e na defesa aos conservadorismos, mas 46

também alguns setores da esquerda tornavam-se reacionários, como ressaltado por Tom Zé, ao não tolerarem as mudanças sociais e abominarem invencionices como o uso das guitarras elétricas, da incorporação do rock internacional e no emprego das alegorias de modernidade.24 Sempre voltado à esquerda, embora não de modo ortodoxo, Caetano, assim como os demais tropicalistas, não partilhava da totalidade dos anseios da esquerda tradicional, marxista, no entanto, seu pensamento nunca fora em direção à direita e isso perdura até a

24Gil e Caetano falam sobre conservadorismos, críticas e o uso da guitarra elétrica na coluna Música Popular, espaço torquatiano no Jornal dos Sports, no artigo compositores e críticos, de 27 de setembro de 1967, ao responderem à questão proposta por Torquato: “O samba acabou? Gilberto Gil acha que não. E explica: ‘Mudou, evoluiu. Eu, por exemplo, que comecei a compor depois que a bossa nova já havia renovado muita coisa, sinto necessidade de me atualizar ainda mais. Estamos em 1967, é preciso que as pessoas não se esqueçam disso. Pretendo utilizar instrumentos eletrônicos nos arranjos de minhas músicas, daqui para a frente. [...]. Assim, ‘Domingo no parque’ e ‘Bom dia’ serão executadas também com guitarra elétrica, no próximo festival da Record. É uma experiência pela qual assumo os riscos. Acho que vai ficar bonito.” (NETO, 2004, p.179). Ao passo que Caetano também defendia o uso das guitarras elétricas, como Torquato aponta: “Mais ou menos igual é a opinião de Caetano Veloso, que terá sua canção ‘Alegria, alegria’ executada com instrumentos eletrônicos no mesmo festival. Diz ele: ‘É bobagem insistirem em fazer do samba uma forma para museus, morto. O samba não morreu: está crescendo. É isso o que me interessa. ‘Alegria, alegria’ é uma marcha, mas não é uma marcha como as que Chiquinha Gonzaga ou mesmo Lamartine Babo faziam tempos atrás. Naturalmente, sem o que foi feito antes eu não poderia fazer o que faço agora: basicamente parto da tradição. Mas não quero ficar ‘tradicional’ a vida inteira. Tanto em harmonia como em letra (principalmente nessas duas), pretendo estar atualizado. Pretendo, pelo menos, pesquisar uma atualização e responder pelo que faço. Guitarra elétrica é um instrumento muito bonito. E desde que existe que é utilizada no samba. Cresci ouvindo os trios elétricos da Bahia, que ainda hoje animam o carnaval de lá: e nunca ninguém pensou em dizer que os trios elétricos tocam iê-iê-iê. É que esses músicos não estão cheios de preconceitos tolos, nem de medo: eles apenas encontraram uma forma excelente de animar uma festa. [...].” (NETO, 2004, p.179-80). Ademais, para além de estética, a inclusão das guitarras elétricas na música tropicalista era uma forma de importunar os conservadores. Uma ala de artistas puristas da MPB chegou até a promover uma passeata contra o uso do instrumento . Elis Regina, Edu Lobo e até Gilberto Gil estavam presentes. Gil, posteriormente, disse não concordar com a manifestação e que apenas acompanhava Elis no ato retrógrado. 47

atualidade, como o artista ressalva em Carmen Miranda não sabia sambar, texto de 2017:

Minha primeira motivação para colocar-me à esquerda se mantém até hoje: a horrenda desigualdade da sociedade brasileira. E só faz exacerbar-se no clima dos meses recentes, em que o horror dos conservadores finge se dirigir à corrupção quando é nojo e medo dos pobres, pretos e desorganizados, além de impaciência com estes. (VELOSO, 2017, p.24).

Não obstante, assim como os tropicalistas se irmanavam nessa lógica, também não era possível generalizar a esquerda marxista em função de seus adeptos nunca terem formado um grupo homogêneo, antidemocrático e de conhecimento raso em estética – haja vista a infinidade de críticos, políticos e artistas de destacado conhecimento político-cultural −, entretanto, nos anos 60, os representantes da esquerda tradicional, em geral, discordavam veementemente dos tropicalistas no quesito cultural. Um grande exemplo de embate entre esses dois segmentos de esquerda se deu no debate promovido pela FAU da USP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde Caetano, Gil e Torquato, acompanhados pelos poetas concretos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, foram atacados durante suas falas num evento que, dentre outras questões, marcava-se pela distribuição de um texto de Augusto Boal, diretor do Teatro de Arena, que consistia num ataque direto aos tropicalistas e à estética pretendida, e pelas vaias e confusões vindas da plateia, formada, sobretudo, por estudantes esquerdistas de viés marxista. Sob a ótica ortodoxa, o choque se dava em função dos tropicalistas não serem engajados politicamente ao ponto de serem opositores ferrenhos do Capitalismo e das classes dominantes e por não se ocuparem com ênfase do proletariado. Para eles, a arte era por si só um embrião revolucionário e era importante a crítica em relação às pessoas da sala de jantar, que só se ocupavam em nascer e morrer, e toda a inércia e conservadorismo brasileiro, mote que apareceria em Panis et circensis, quando as pessoas são reduzidas ao básico: nascer, comer e morrer num total alheamento da vida, da política e da arte. Além de políticas, as divergências eram também estéticas, culturais e comportamentais, embora houvesse, como aponta Pedro Duarte, em Tropicália ou panis et circencis, uma suspeição diante da esquerda 48

tradicional em função da “[...] tolerância de parte dela com experiências socialistas, como a soviética de Stalin ou até a cubana de Fidel, que perseguiram, censuraram e mataram no presente em nome do futuro de igualdade.” (DUARTE, 2018, p.64), num contexto bastante tétrico.

Figura 1 – Tropicalistas e Concretos

Para além dos impasses ideológicos das esquerdas, em O tropicalismo no cárcere, matéria de Armando Antenore, publicada na Folha de S. Paulo em 1997, Gil aponta que as forças militares acreditavam que os tropicalistas caracterizavam um perigo maior que o da esquerda formal porque dispunham de táticas mais modernas e próprias de uma nova esquerda, afinal, como também aponta Duarte,

na época, práticas revolucionárias davam sinais de autoritarismo e burocratização, como na União 49

Soviética, mas a própria ideia de revolução perdia seu encanto pela pretensão de uma ‘colonização do futuro’ (para aproveitar a expressão conhecida de Octavio Paz). Os tropicalistas rebelaram-se contra toda submissão do presente ao futuro, o que os distanciou do ideal revolucionário à direita e à esquerda. (DUARTE, 2018, p.65).

Fatalmente, os tropicalistas tinham uma visão de mundo e de estética distinta da ótica retrógrada de direita, mas também da velha esquerda. Entretanto, uma reunião de artistas e obras convergindo para uma mesma ideia e intenção não é algo que aconteça todos os dias. Em decorrência disso, Waly Salomão ilustra, em A praia da Tropicália, como ocorreu o momento tropicalista e de como essa ocasião ímpar é quase improvável de ocorrer já que necessita de um período de sensibilidade em que vários fatores se unem, “[...] vão se juntando aqui, uma parte aqui, outra parte ali, outro pedaço acolá, que faz acontecer e explodir um movimento, e não é sempre que acontece, a natureza não é pródiga nisso, é na verdade raro [...].” (SALOMÃO, 2005, p.38-9). Para tanto, a aura de intenções artísticas da Tropicália era registrada por Torquato, através de suas colunas, pois o poeta, de certa forma, organiza o mo(vi)mento nas páginas dos jornais sendo um cronista e um propagandista tropicalista nas mídias, sobretudo impressa, produzindo um jornalismo guerrilheiro com sua visada crítica e corajosa ao abordar os mais variados temas num método particular, que, segundo Feliciano Bezerra, em A escritura de Torquato Neto,

[...] era o da fricção cultural, conduzido pelo apanhado, às vezes geral, às vezes específico, dos fatos e produtos culturais em circulação, mobilizados e recuperados por um prosaísmo de ritmo intenso, exato e com cesuras precisas, acentuando traços que, invariavelmente, revelavam o poeta que se encontrava por trás do cronista. (BEZERRA, 2004, p.59).

Nos espaços que ocupava nos folhetins, suas colunas desafiavam os padrões jornalísticos, evidenciavam a participação de amigos e davam destaque para uma vasta agenda cultural, que contemplava o que 50

de melhor era feito nas artes: shows, discos, peças, lançamentos de livros, sempre abusando de notas com ares de inacabamento, de matéria bruta. Porém, era cotidiano o registro de notas importantes para o meio cultural, por isso, Torquato escreve em 20 de maio de 1967 em Música Popular do Jornal dos Sports, que haveria uma reunião decisiva entre Gilberto Gil e outros artistas para pensarem a Tropicália: “Gil se reúne este fim de semana com vários compositores e intérpretes para expor seus planos que, segundo ele, somente serão possíveis através de um trabalho de equipe entre o pessoal mais novo de Música Brasileira. Tomara!” (NETO, 2004, p.109), e do mesmo modo, relata, posteriormente, os frutos da reunião que mencionara na mesma coluna em 23 de maio:

'É necessária a imediata institucionalização de um novo movimento da música brasileira, a exemplo do que foi feito com a bossa nova.' E não transcrevo mais porque a importantíssima entrevista de Gilberto Gil, na qual ele desenvolve esse tema aí de cima, foi publicada aqui mesmo no JS, há dois dias. Vale, no entanto, comentar as declarações do baiano. Estou envolvido também nesse movimento e não digo isso para me dar importância, mas porque o fato me deixa mais ou menos por dentro do assunto. Desse assunto, um problema aliás, que se resolvido poderá trazer condições profissionais inteiramente novas para o compositor e para o intérprete da música brasileira moderna. (NETO, 2004, p.111).

Dessa maneira, propondo desconstruir a identidade nacional, a tarefa de desconstrução tropicalista via o “escracho” como a cola que possibilitaria unir todos os antagonismos imagináveis opondo-se a um nacionalismo exacerbado e desatando-se das amarras e diretrizes culturais vigentes numa época de transe em busca de um devir cultural múltiplo, complexo e tolerante, em que, como assinala Rogério Duarte, em Tropicaos:

[...] Não há outra saída para o Brasil, que não seja seus próprios caminhos. Não adianta a gente tentar implantar aqui o capitalismo nos moldes 51

americanos, ou socialismo nos moldes russos. [...] Nós somos o anunciante do terceiro milênio. O terceiro milênio ainda não começou. A manifestação dessa audácia brasileira. Há aí um mito. O mito do terceiro milênio, a ideia de que o Brasil por ser o país mais miscigenado é aquele que pode fornecer a resposta, pelo menos em potência, mais universal. [...] Como dizia Rimbaud, a verdadeira vida está para ser inventada. [...] Eu diria que o verdadeiro tropicalismo também está para ser inventado. Uma coisa não sei com que nome nem com que forma, mas eu não vejo a não ser por essa direção. (DUARTE, 2003, p.149-50).

O momento previa que para se traçar um caminho cultural nenhum outro atalho precisaria ser descartado, podia-se criar um mapa de possibilidades numa concepção contemplativa e agregadora dos elementos estrangeiros, mas sempre com o intuito de acrescentar o que já havia sido produzido no Brasil numa forma contumaz de pensar um norte para o país. Diante de uma reunião de elementos esdrúxulos, a Tropicália testemunhava as sombras, mas idealizava a busca solar, que não comportava “nem o ufanismo ingênuo nem a autodepreciação colonizada, a Tropicália produzia uma crítica alegre ou uma alegria crítica do Brasil.” (DUARTE, 2018, p.13), como define Pedro Duarte. Em função disso, podemos aproximar a intenção tropicalista da contida em A gaia ciência de Friedrich Nietzsche, obra que empresta seu título da expressão utilizada pelos trovadores provençais nos séculos XI-XIV, para designar sua arte porque gai saber ou gaya scienza é, como observa Paulo César de Souza, “[...] aquela que alegremente se impõe limites no questionamento do mundo, para preservar e afirmar a existência.” (SOUZA, 2015, p.306). No pensamento de Nietzsche, o corpo ocupa posição de destaque e altera o estatuto e o lugar do organismo humano numa reinterpretação e ressignificação dos sentidos que o filósofo encara como fio condutor, Am Leitfaden des Leibes, de variadas questões filosóficas que envolvem o homem, mormente ética, estética e política. Miguel Angel de Barrenechea observa, em Nietzsche e o corpo, que

nosso organismo é perpassado por um permanente dinamismo, por um contínuo confronto de forças, 52

que configuram relações de poder que mudam instante após instante. Esse processo dinâmico, essa multidão de forças em conflito que constituem os corpos, será entendido através de uma noção central da filosofia de Nietzsche: vontade de potência. (BARRENECHEA, 2017, p.13).

Portanto, o homem não é espírito e nem matéria, é um ser complexo regido pelo anseio de pujança que a gaia ciência desvencilha da moral judaico-cristã afastando o recalque e a má compreensão do corpo “[...] rumo a uma leveza pagã que permita a dança [...]”. (SOUZA, 2015, p.307), sobretudo quando o filósofo considera, em Assim falou Zaratustra, que “acreditaria apenas num deus que dançasse” para espantar os demônios, afinal, não seria com cólera, mas com riso que se mataria o espírito do pesadelo, principalmente, a partir da crença da arte como oração. 25 Operando por meio de contrastes e incorporações entre urbano/rural, popular/erudito, luxo/lixo e agindo conscientemente em meio à múltipla realidade do país, a Tropicália deu voz a muitas vozes sem hierarquizá-las, num mosaico que misturava linguagens com intento de produção de cultura verdadeiramente plural. Além disso, os tropicalistas transitavam entre o apolíneo, com doses de harmonia e racionalidade, mas também eram dionisíacos; remetiam ao caos26 como força geradora, às emoções e ao instinto, sendo cigarras e não formigas, ao cantar e dançar, como na fábula atribuída a Esopo e recontada por La Fontaine, transformando a estética e a sensibilidade artística, mas

25 Conforme cita Barrenechea, “diante do dualismo corpo-alma, sustentado por diversas concepções metafísicas e teológicas ocidentais, Nietzsche propõe uma perspectiva radicalmente diferente pela qual o corpo, outrora depreciado, é exaltado como constitutivo da natureza humana. Assim, o corpo deixa de ser o seu ‘outro’ para tornar-se o próprio, o seu traço distintivo, o fio condutor para a reinterpretação do homem.” (BARRENECHEA, 2017, p.18). 26 Jorge Mautner propunha a grafia de caos com a letra K em Fundamentos do Kaos: “O super-homem de Nietzsche gritará pelo mundo seu grito de dor. Kaos = conflito criador.” Em função disso, Glauber Rocha tinha apreço pela nova era do kaos e dizia que se fosse se definir, diria que seria o kaos com K de Mautner porque “eu filmo o combate na hora do combate.”.

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também abalando as políticas comportamentais. Nessa dicotomia, o dionisíaco consistiu em superar o pessimismo, pois, como na estética nietzschiana, a ideia era flertar com o pessimismo para fortalecer o otimismo e a alegria era o método pelo qual se pretendia dissolver as variadas contradições do Brasil, que num viés ortodoxo ou marxista, poderia ser tachado de alienado, mas que se caracterizava como um tipo não convencional de consciência político-cultural. A vontade de potência aconteceu em variados gêneros artísticos, sendo a música a maior vitrine, mas não a única fonte dessacralizadora. Nas artes plásticas, de modo crítico, foram incorporados elementos da cultura de massa nos trabalhos de Hélio Oiticica, Rubens Gerchman e Glauco Rodrigues, por exemplo. No cinema, Terra em transe, de Glauber, propôs uma visada barroca sobre o Brasil e a América Latina e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, revisitou as origens ameríndias do país expondo a brasilidade por meio de nossa mitologia. O teatro operou através da carnavalização de O rei da vela e de Roda viva, montadas pelo Teatro Oficina, com o intuito de satirizar politicamente e apontar as contradições de um mundo regido pela elite e pela sociedade de consumo. A literatura era representada por PanAmérica de Agrippino e a televisão, por sua vez, tornou-se um picadeiro com os programas do Chacrinha, que misturava elementos e meios culturais através de devoração, funcionando como um exemplo concreto de arte coletiva total, como na definição de Hélio Oiticica no Esquema geral da nova objetividade, e esse dado possibilitava, como observa Zé Celso, “[...] toda uma reciclagem desse lixo e criação de uma cultura nova e vitoriosa em relação à cultura hegemônica, imperial, oficial e central.” (CORRÊA apud COSTA, 2011, p.80-1). Nessa carnavália, os maiores exemplos foram A buzina do Chacrinha e A discoteca do Chacrinha, programas em que os scripts televisivos remetiam ao carnaval de rua e ao circo dando destaque ao corpo e aos ornamentos, como nota Celso Favaretto, ao considerar que,

ao vivo ou no vídeo, o centro de todos os olhares era o corpo do Chacrinha, sua barriga grotescamente monumentalizada por roupa e bugigangas, ou o rosto, os gestos desengonçados dos cantores-atores, e suas roupas imitando a moda – classe média −, enfim a feiura cotidiana. (FAVARETTO, 2007, p.135).

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Affonso Romano de Sant’Anna, em Música popular e moderna poesia brasileira, avalia que a Tropicália faz uma crítica da cultura do país incorporando elementos bregas, suburbanos e populares “[...] e em vez de chamar isto de mau-gosto, incorpora tudo numa visão carnavalizada da cultura. Parte para a aceitação crítica do lado vergonhoso de nossa cultura, que a elite recusa.” (SANT’ANNA, 2013, p.70). Muito em função disso, pode-se dizer que a era tropicalista nutria profundo interesse pelo carnaval enquanto festa popular, a ponto de ampliá-la, por exemplo, para a estrutura das canções e para a conduta corporal como linguagem e forma promovendo uma carnavalização nas apresentações perceptível, sobretudo, nas roupas, nas atitudes e no processo criativo. No Manifesto Pau-Brasil, Oswald de Andrade destaca que “o Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça.” (ANDRADE, 1972, p.05) e por isso havia sido contemplado pelos modernistas brasileiros para evidenciar a nossa originalidade cultural. Herança antiga da cultura popular europeia, os festejos foram incorporados no país nos cliclos migratórios. No velho continente, os europeus primavam pelas festas em família (casamentos, aniversários, celebrações de santos), festas anuais (Páscoa, Natal, Ano Novo), mas também o carnaval, período em que as pessoas cessavam suas atividades laborais e se divertiam em vários dias de folia num grande evento e festejo social, sobretudo na Itália, em que “[...] pode ser visto como uma peça imensa, em que as principais ruas e praças se convertiam em palcos, a cidade se tornava um teatro sem paredes, e os habitantes eram os atores e espectadores [...]” (BURKE, 2013, p.248-9), como aponta Peter Burke, em Cultura popular na Idade Moderna. Desse modo, o carnaval passa a ser um corpo popular que une a multidão por meio de máscaras, fantasias e a abolição de hierarquias dando mais ênfase ao lugar importante que já ocupava na vida do homem medieval, como vemos em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, de Mikhail Bakhtin:

Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. [...] Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade. O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar do mundo: o seu renascimento e a sua renovação, dos quais participa cada indivíduo. 55

Essa é a própria essência do carnaval, e os que participam dos festejos sentem-no intensamente. (BAKHTIN, 2013, p.06).

Não por acaso, essa grande festa, como nos diz Favaretto, “[...] constituía uma categoria preliminar da cultura brasileira: um fato marcante da ‘raça’, ao lado das culinárias regionais, do barroco mineiro e dos mitos indígenas. [...].” (FAVARETTO, 2007, p.131) e os tropicalistas resgatam essa tradição ao produzirem por meio de uma roupagem arrojada, embora um tanto desligada do dado etnológico que os modernistas haviam propagado décadas antes, mas sempre escandalizando artisticamente, criando polêmicas e dividindo a sociedade e os críticos ao exercerem o posto de antenas da raça, como na concepção de Ezra Pound. Nessa visada, a carnavalização bakhtiniana é bastante perceptível na proposta tropicalista em função da pluralidade de vozes, da fusão entre o erudito e o popular, do prosaico e do poético, da larga utilização da paródia e da ironia e pela constatação de que “o carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva.” (BAKHTIN, 2013, p.07), que também pode ser entendida como a partilha do sensível, proposta por Jacques Rancière, pois é “[...] o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas.” (RANCIÈRE, 2015, p.15). Todavia, não se ignora o fato da vertente brasileira ser descendente direta do carnaval moderno, composto de desfiles e fantasias de origem francesa, e ser estruturado a partir dos sambas- enredo das escolas de samba, especialmente do Rio de Janeiro, sendo a maior competição carnavalesca do mundo. Assim, a folia antecessora da quarta-feira de cinzas era um pilar para a era tropicalista, cujo clima regente era o da carnavalização da vida e da arte com ares de dessacralização, numa proposta dionisíaca e tropical, haja vista que a duplicidade do dionisíaco e do apolíneo estava em voga naquela época em função das teorias de Herbert Marcuse, contidas em Eros e civilização, e, principalmente, porque o carnaval, conforme menciona Favaretto,

abole a distância entre os homens, entre o sagrado e o profano, entre o sublime e o insignificante, 56

entre o cômico e o sério, entre o alto e o baixo etc., relativizando todos os valores. Na visão carnavalesca de mundo, a realidade está em constante transformação, pois instala um espaço de jogo em que as dissonâncias e contrastes permanecem como uma luta contínua de forças contraditórias. O rito carnavalesco é ambivalente: é a festa do tempo destruidor e regenerador. Introduz no tempo cotidiano um outro tempo, o de mistura de valores, de reversão de papeis sociais – tempo do disfarce e da confusão entre realidade e aparência. [...] Participar do carnaval é ser, ao mesmo tempo, ator e espectador, é perder a consciência de indivíduo, desdobrando-se em sujeito e objeto do espetáculo e do jogo. (FAVARETTO, 2007, p.132-3).

Paradoxalmente, a Tropicália acontecia por meio de carnavalizações permeadas por doses de comicidade e alegria, mas também apresentava pitadas de melancolia e escárnio, exigindo recursos críticos para sua compreensão. No entanto, pode-se dizer que na concepção tropicalista, assim como para Oswald no Manifesto antropófago, “a alegria é a prova dos nove” (ANDRADE, 1972, p.18), mas trata-se de uma alegria de braços dados com a tragédia, isto é, esses elementos irmanavam-se num pessimismo alegre irradiando cores, sons e texturas numa época opaca, cinzenta e de inúmeras tentativas de silenciamento em virtude do contexto em que o Brasil se situava, eclipsado pelo golpe militar e seus ranços autoritários, sendo o momento artístico brasileiro em que mais se falou da relação entre política e cultura de modo crítico e construtivo promovendo a arte comprometida sem que se lançasse mão de conceitos retrógrados, pois a canção de protesto, por exemplo, geralmente era adepta da crítica social direta, e a tropicalista aludia alegoricamente à história contestando a política vigente, mas também os costumes, conservadorismos e moralidades por meio do viés antropofágico, que devora também a essência da canção de protesto, pois esse método é absorvido, “[...] mas são eliminados o seu didatismo e o seu projeto definido de futuro. Se fica a preocupação social mais direta com o povo, ninguém fala em nome dele ou o convoca para nada.” (DUARTE, 2018, p.39), conforme aponta Pedro Duarte. 57

Propunha-se escancarar as problemáticas nacionais de modo irreverente assumindo a festa em meio ao caos e jogando luz nos contrastes de modo carnavalizador por estabelecer uma nova relação com a arte sem hierarquias e/ou classificações numa mistura de gêneros e estilos de um modo libertino, bastante oswaldiano, numa época de transe da arte, da política e da terra. Sendo assim, a Tropicália figurou como um parangolé em meio aos caos, embora o parangolé, além de obra de arte de Hélio Oiticica, tenha vários sentidos e seja seu conceito de antiarte, como ele aponta em Aspiro ao grande labirinto:

parangolé é antiarte por excelência; inclusive pretendo estender o sentido de ‘apropriação’ às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isto um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc., e ao próprio conceito de ‘exposição’ – ou nós modificamos ou continuamos na mesma. museu é o mundo; é a experiência cotidiana. (OITICICA, 1986, p.79).

O conceito de Oiticica que quebraria, em definitivo, a distância entre a obra de arte e o espectador, permitindo uma interação corporal capaz de fazer com que o público também seja agente do processo artístico, admitia sentidos distintos: no Rio de Janeiro mais elitizado, conversa fiada e/ou lábia; nos morros cariocas era sinônimo de alegria inesperada. Por isso, em Hélio Oiticica: qual é o parangolé? e outros escritos, Waly Salomão ilustra as (in)definições possíveis desse vocábulo:

– ‘Qual é o parangolé?’ era uma expressão muito usada quando cheguei da Bahia para viver no Rio de Janeiro, e significava, dentre outros sentidos mais secretos: ‘O que é que há?’, ‘O que é que está rolando?’, ‘Qual é a parada?’ ou ‘Como vão as coisas?’. Somente para marcar a plasticidade dinâmica da língua: alguém indagar ‘E as coisas?’ na gíria carioca de então não significava preocupações físicas, alquímicas ou filosóficas mas muito simplesmente uma interrogação sobre 58

o que hoje atende pela poética alusiva de ‘fumaça- mãe’, ‘pau-podre’, ou seja, designa o mesmo que o étimo oriundo da língua quimbundo dos bantos angolanos: maconha (Cannabis sativa). (SALOMÃO, 2003, p.37).

Como um evento repentino e alegre, a Tropicália dialogou com vários matizes culturais sob a égide da cultura popular e da identidade nacional. Assim, mesmo diante da censura política, os artistas balançaram o coreto ao tocarem nos aspectos relativos à modernidade e à nacionalidade no século XX e, como observa Zé Celso, esse processo vinha numa constante em que,

[...] a geração de Darcy já começou a libertar o brasileiro desse tremendo preconceito, dessa rejeição à sua origem, e a aceitar sua origem mestiça, cafuza, mulata, mesclada, e até a se vangloriar disso e gozar das qualidades desse ser e dos defeitos atribuídos a esse indivíduo, esse indivíduo preguiçoso, cafajeste, gozador, esculhambador. De repente, esses pecados da catequese passaram a ser nossas virtudes e o próprio Oswald descobre no carnaval a religião da raça. (CORRÊA apud COSTA, 2011, p.76).

Entretanto, o termo parangolé ficou conhecido, verdadeiramente, como a série de capas plásticas multicoloridas e em várias camadas criadas por Oiticica e foram os passistas do Morro da Mangueira, da escola de samba homônima, os primeiros a vestirem a obra de Hélio no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro na exposição Opinião 65. No entanto, os participantes trajados com as capas artísticas não puderam permanecer na instituição, provavelmente, em função de uma ordem de cunho racista e elitista. A atitude de Hélio diante da negativa, a proposta de exibirem-se nos jardins do museu, provocou aplausos do público presente, que incluía críticos, artistas e jornalistas e, assim, com essa performance pungente, os parangolés tiveram sua existência afirmada por meio dos corpos e dos movimentos dos espectadores-participantes, ato que ia ao encontro do pensamento nietzschiano em relação ao corpo humano, pois, para o filósofo, a 59

principal característica do corpo é o movimento, a existência permanente de impulsos, a diversidade de ações possíveis em que, como ele aponta em Assim falou Zaratustra, “o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.” (NIETZSCHE apud BARRENECHEA, 2017, p.48).

Figura 2 − Torquato e o parangolé

Com efeito, tivemos nesse evento a primeira não-exposição das capas que, hoje, ironicamente, estão expostas nos museus por meio de réplicas podendo ser tocadas e até vestidas, entretanto, esse episódio foi 60

bastante significativo, como considera Florencia Garramuño, em A cultura como margem, capítulo de A experiência opaca: literatura e desencanto, porque

mais do que como happening ou performance, o episódio aparece como um assalto, uma invasão que não deixa de adquirir as características de um assédio. Os ‘marginais’ invadem o museu, penetram nele, transformando a noção de marginal, nesse caso, num conceito interior e não exterior: os marginais estão dentro do espaço institucional do museu, mas, por sua presença mesma – embora só e na medida em que essa presença está ali −, transformam a instituição- museu. (GARRAMUÑO, 2012, p.72).

Para Oiticica, o artista necessitava criar práticas artísticas ao invés de apenas instituir objetos para serem apreciados somente de modo passivo e, por isso, os parangolés precisavam ser animados; sua feitura condicionava-se à necessidade de serem vestidos por indivíduos que a partir do ato de vestir já passariam a fazer parte da obra em si, ou seja, enquanto arte, essas peças necessitavam que houvesse a participação corporal direta do espectador para fundir-se com sua movimentação corpórea. Assim, o abandono do espaço fechado, dos museus e galerias para o aberto foi a saída da torre de marfim, a política do corpo em profusão, numa dança providencial, que Oiticica denominava, enquanto conceituação da experiência do espectador, de experimentar o experimental. Neste caso, em função dos corpos serem de passistas de uma escola de samba, o mito passa a ser a comunidade, o corpo da favela e, dessa forma, a ação teria, inegavelmente, um caráter político, como observa Gonzalo Aguilar, em Hélio Oiticica, a asa branca do êxtase, pois a proibição de acesso ao museu sinalizaria um presságio, a apocalipopótese, e resultaria numa performance que estabelece um lugar aos parangolés, “[...] no umbral do museu, no espaço liminar entre o que a instituição consagra como arte e o que não pode absorver. [...].” (AGUILAR, 2016, p.16-7), numa lógica que testa o público no espaço público. Como um oroboros, a Tropicália estava sempre em busca da devoração das origens, da própria cauda, como emblema da evolução de si mesma, que previa a visão antropofágica sobre as coisas e, acima de 61

tudo, como cita Pedro Duarte, “[...] queria o uso de coisas nascidas em qualquer terreno para criar no nosso algo diferente. O gesto era de abertura e não de fechamento. Impuro, e não puro.” (DUARTE, 2018, p.122). Por esse motivo, a principal ponte estabelecida se deu com o modernismo paulista, movimento bastante heterogêneo dos anos 20, que reunia artistas comprometidos com a cultura nacional, previa a poesia de exportação de Oswald e o desejo de não apenas importar cultura, mas também ser um exportador dela, e a integração de construtos étnicos, folclóricos, linguísticos, históricos e artísticos compostos pela originalidade nativa acrescidos das vanguardas estrangeiras e da perspectiva da industrialização. A era tropicalista promoveu a apropriação da antropofagia oswaldiana, enquanto conceito poético-filosófico, caracterizando-se como uma espécie de força motriz para a produção cultural dos anos 60 e 70, pois, se em certa medida, a Tropicália propunha uma interpretação do Brasil, certamente uma parcela desse escopo era oswaldiana, principalmente, pelo desejo do poeta de alvitrar uma saída para indigestão cultural que acometia o país diante da supervalorização do estrangeiro e apontando a necessidade do resgate e da valorização da arte local e nacional antes da ingestão aleatória dos elementos estrangeiros, ou seja, era sugerido o construto de uma tradição cultural nacional que contivesse uma relação nutritiva, sem ser exclusiva, com a tradição forasteira. Era necessário olhar, para usarmos uma expressão torquatiana, o lado de dentro e o lado de fora; a faceta interna previa atenção ao folclore, às comidas típicas, aos falares e à cultura autóctone, que incluía também sincretismo religioso, e a face de fora observava as vanguardas europeias para fundamentar um projeto que previa o desejo de ser, simultaneamente, nacional e cosmopolita, previstos nos manifestos oswaldianos, Manifesto da poesia Pau-Brasil (1924) e Manifesto antropófago (1928).27

27 Em Antropofagia ao alcance de todos, Nunes resume o mote do manifesto de 24 ao mencionar que o ideal da publicação era unir a floresta com a escola, a cultura nativa e a cultura renovada “[...] num composto híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, ‘o melhor de nossa tradição lírica’ com ‘o melhor de nossa demonstração moderna.’” (NUNES, 1972, p.xxiii) ao passo que considera que o manifesto de 28 trazia o conceito de antropofagia de modo distinto, aludida em aforismos “[...] como pedra de escândalo, para ferir a imaginação do leitor com a lembrança desagradável do canibalismo, transformada em possibilidade permanente da espécie.” (NUNES, 1972, p.xxv). 62

Naquela altura, a antropofagia era uma resposta ao país que difundia, em meio à desigualdade brutal, ideias burguesas de valor que dificultavam o respeito à cultura autóctone, mas o conceito era também, como sugere Bina Friedman Maltz, em Antropofagia: rito, metáfora e Pau-Brasil, “[...] um gesto do colonizado no sentido de dessacralizar a herança cultural do colonizador para inaugurar uma nova tradição.” (MALTZ, 1993, p.11). Por isso, no Manifesto da poesia Pau-Brasil, Oswald aposta em “nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.” (ANDRADE, 1972, p.09) e exalta, por meio de um pensamento sem amarras, o alicerce da cultura brasileira envolvendo a raça, antepassados indígenas e africanos, comida, arte e as manifestações culturais em um projeto anticolonialista que previa a valorização do local e a devoração das referências estrangeiras, sem propagação da ideia de repetição do outro e rejeição xenófoba, pretendendo a devoração no intuito de formar um projeto autônomo e original, em que, como observa Benedito Nunes, em Oswald Canibal, a literatura tornava-se um instrumento de rebelião individual ao modo surrealista que possibilitava aos tropicalistas a chegada “[...] ao problema político pelo ideal utópico da renovação da vida em sua totalidade.” (NUNES, 1979, p.51). Ademais, a ruptura artística promovida pelos intelectuais modernistas era uma referência positiva aos tropicalistas como exemplo de projeto político-cultural para fomentar a cultura nacional, como Waly observa no texto Velha cartomante setentona, afinal, o espaço ocupado com a Semana de Arte Moderna de 1922 tornara-se um marco como momento de ruptura, que fora bastante sofisticado para a realidade brasileira, sendo, sem dúvida, um

[...] acontecimento espermático que exerce sobre nossa sensibilidade sincrônica uma poderosa atração catalítica que faz com que seja difícil para nós, antidissecadores de cadáveres, dela separar o que sabemos bem posterior como por exemplo o animus antropofágico. Ou da mais que atual poesia pau-brasil: tomadas e close-ups tal e qual o cine-olho soviético de Dziga Vertov e cortes e montagem tal e qual outro soviético Serguei Eisenstein. (SALOMÃO, 2005, p.46).

63

Os escritos de Oswald sobre a antropofagia nos anos 20 foram retomados nos anos 50, em A crise da filosofia messiânica, na tentativa de novamente pensar o nacional a partir do universal numa relação dialógica e dialética em que, como observa , em Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira, a antropofagia consistia num exemplo máximo de devoração cultural crítica porque não se baseava em servilismo ou catequese,

[...] mas uma transculturação; melhor ainda, uma ‘transvaloração’: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é ‘outro’ merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação elucidativa: o canibal era um ‘polemista’ (do grego pólemos = luta, combate), mas também um ‘antologista’: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar a proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de suas próprias forças naturais... (CAMPOS, 2006, p.234-5).

Como expropriação, o intento de estabelecer a arte brasileira no exterior se deu, sobretudo, com a música. O Samba, por exemplo, de mat(r)iz africana e ritmos autóctones adquiriu enorme popularidade e o mesmo ocorreria nos anos 50 com a Bossa Nova, um ritmo mais elitizado, mas que deixaria marcas na constituição cultural brasileira admitindo a capacidade de produzir, mesmo sendo um país periférico, a poesia de exportação oswaldiana, que se referia à poesia e à literatura, mas também cingia todas as formas de produção artística. Todavia, por mais abarcante que se configurasse essa intenção, sempre houve críticas em torno desse intento: José Ramos Tinhorão, por exemplo, era um crítico ferrenho dessa questão porque considerava a Bossa Nova uma música feita de matéria-prima brasileira, o Samba, mas com forma, do Jazz, estadunidense. Do mesmo modo, um fato conhecido envolvendo seu nome é a resposta dada por Caetano Veloso ao crítico quando o artista ainda morava na Bahia e a Tropicália não havia surgido oficialmente. Assim, referindo-se às críticas de Tinhorão, Caetano teria dito em 1965, em Primeira feira de balanço, texto integrante de O 64

mundo não é chato, mas que foi publicado originalmente em Ângulos, revista dos alunos do curso de Direito da UFBA, que “a julgar pelos artigos histéricos reunidos em livro pelo Sr. José Ramos Tinhorão – infelizmente o único a colocar o assunto música popular brasileira em discussão −, somente a preservação do analfabetismo asseguraria a possibilidade de fazer música no Brasil.” (VELOSO, 2005, p.143). Contrário a conservadorismos, Augusto de Campos via na Bossa Nova a virada cultural brasileira frente aos países mais ricos e desenvolvidos, advindo de música persuadida para influenciadora, onde a exportação cultural se daria por meio de uma música pronta; um produto acabado, diferentemente do que se fazia até aquele momento, a ênfase da matéria-prima de ritmos exóticos, a macumba para turistas, de que falara Oswald. Para o crítico concreto, a suposta pureza ou caráter genuíno não era pertinente, como ele aposta em Música popular de vanguarda, texto de 1969/1970, por considerar que em apenas dois momentos a música brasileira deixara de ser folclorizada, justamente na Bossa Nova e, posteriormente, na Tropicália, pois

com o manifesto musical de Desafinado a dissonância foi introduzida na música popular brasileira. Abriu-se uma brecha na harmonia tradicional, à qual ainda se apegava – e se apega – grande parte da canção popular do Ocidente. João Gilberto, com o seu canto enxuto, mais cool do que o cool americano, com o seu sentido da pausa-silêncio e aquela batida seca de violão que marcou toda a BN, foi o Webern do movimento. (CAMPOS, 2008, p.284).

O desenvolvimento cultural evidenciado pela Bossa Nova havia sido observado à época, sobretudo por Augusto, mas retomado contemporaneamente em uma canção de Tom Zé e Vicente Barreto, Vaia de bêbado não vale, que consta no disco Imprensa cantada:

[...] Quando aquele ano começou nas Águas de Março de 58 O Brasil só exportava matéria-prima Essa tisana Isto é o grau mais baixo da capacidade humana E o mundo dizia ‘Que povinho retardado’ 65

‘Que povo mais atrasado’ [...] A surpresa foi que no fim daquele mesmo ano Para toda a parte O Brasil do Pato Com a Bossa Nova, exportava arte O grau mais alto da capacidade humana E a Europa, assombrada: ‘Que povinho audacioso’ ‘Que povo civilizado’

A jocosa canção, feita em resposta às vaias que João Gilberto recebeu de uma plateia elitista no show de inauguração do Credicard Hall em São Paulo em 1999,28 nos aponta como a exportação brasileira, antes do sucesso bossanovista, se limitava a insumos em estado bruto a serem lapidados no exterior e evidencia como o advento desse gênero musical caracterizou-se como um enorme salto cultural ao possibilitar a abertura de mercado com a exportação de arte e cultura, o grau mais alto da capacidade humana, o que, de certa forma, tornava a Bossa Nova uma peça fundamental para inventar o Brasil aos olhos do mundo. Para Oswald, a antropofagia era uma chave para a compreensão do país, por isso, em Na boca do estômago: conversa com José Celso Martinez Corrêa, entrevista realizada por Lara da Costa, o diretor teatral menciona que Oswald dizia: “[...] para a vida não há salvação, não há messias, não, o que existe é o advento de um dia: a vida é devoração permanente. E essa alta sabedoria está na antropofagia.” (CÔRREA apud COSTA, 2011, p.74). Assim sendo, em Verdade tropical, Caetano explica as ligações que percebe entre o legado gilbertiano e oswaldiano, equação contundente na cultura brasileira, ao observar que são raros os momentos da história cultural do Brasil que estiveram à altura da visada de Oswald, tendo em vista que a antropofagia

28 O show era em parceria com Caetano Veloso, no entanto, no andamento do espetáculo, João Gilberto reclamara do ar condicionado, do som e do eco que se formara no palco. Em função dos apupos dos endinheirados incomodados com as críticas do músico, João mostrou a língua e respondeu ao público com a frase que serviria de título à canção de Tom Zé. Por fim, Caetano agiu em defesa do mestre dizendo à plateia que João estava certo (o ar condicionado desafinara os instrumentos, o som era ruim e o eco era bastante perceptível no recinto) e, principalmente, que as vaias eram indignas em se tratando de um artista como João Gilberto. 66

[...] é um modo de radicalizar a exigência de identidade (e de excelência na fatura), não um drible na questão. Nós tínhamos certeza de que João Gilberto (que, ao contrário das ‘fusões’ tipo maionese, para usar a palavra escolhida por Calligaris, criou um estilo novo, definido, fresco, inaugural por seus próprios méritos) era um exemplo claro de atitude antropofágica. E queríamos agir à altura. (VELOSO, 2008, p.243- 4).

Inicialmente, a justa associação entre a Tropicália e a antropofagia se dará muito mais no plano da coincidência de ideias do que na filiação ou referencialidade direta, pois vários artistas que integravam a cena declararam que até o seu início não haviam lido as obras de Oswald. Tom Zé e Caetano, por exemplo, assumiram publicamente o não conhecimento da produção oswaldiana, no entanto, essa referência foi difundida pelos artistas e também pela crítica para enquadrar a proposta cultural que se tinha e justificar a postura de vanguarda com o intuito de devorar e nutrir-se, mas sem o emprego de cópia ou negação referencial. Conquanto, é preciso frisar que, para além da referencialidade posterior, a antropofagia nos moldes tropicalistas diferia em alguns aspectos do conceito utilizado no início do século XX. Segundo Favaretto, a Tropicália incorporará do primitivismo antropofágico oswaldiano muito mais a concepção de cultura sincrética; “[...] o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores burgueses, do que a sua dimensão etnográfica e a tendência em conciliar as culturas em conflito.” (FAVARETTO, 2007, p.57). Entretanto, a Tropicália também justapõe elementos culturais diversos obtendo uma amálgama em que dialogam questões de caráter artístico, ideológico e histórico, por vezes compostas por elementos conflitantes, que se situam em esferas como arcaico/moderno; local/universal coabitando o mesmo espaço e propondo devoração. Assim, subsídios como o humor e a cafonice, típicos no universo tropicalista, tornam-se efeitos; adquirem um aspecto lúdico havendo uma atitude construtiva e formadora, como percebemos no discurso de Caetano, na matéria intitulada Caetano: acontece que ele é baiano, entrevista a Décio Bar em dezembro de 1968 para a revista Realidade, ao concluir que a Tropicália nasce de uma mistura que se origina da ideia de extrapolar o subdesenvolvimento brasileiro partindo do cafona 67

de nossa cultura e originando uma fusão com o que houvesse de mais avançado, como as vestimentas de plástico e os instrumentos elétricos, tendo em vista que o artista admitia: “não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo.” (VELOSO apud BAR, 1968, p.197). A deglutição antropofágica dos escritos de Oswald aconteceria para Caetano a partir da montagem de O rei da vela realizada pelo Teatro Oficina. 29 À vista disso, a professora Marília de Andrade,30 filha de Oswald, descreve suas lembranças acerca da temporada de apresentações da companhia teatral de Zé Celso, ocorrida treze anos após a morte de seu pai, em Oswald e Maria Antonieta – Fragmentos: memórias e fantasia:

Todas as vezes em que assisti ao espetáculo, não pude conter a emoção ao perceber o entusiasmo do público. Queria que o Oswald estivesse vivo para ver seu texto aplaudido de pé. Esta encenação marcou, para mim, o primeiro reconhecimento público do Oswald, o início de sua trajetória de mito e de herói popular. (ANDRADE, 2011, p.45).

O terno relato de Marília muito se deve ao fato de que por muitos anos Oswald havia sido esquecido pelas editoras e o público leitor de seus livros era acanhado. Foi graças ao amigo Antonio Candido e aos irmãos Campos que sua obra passa a ser reeditada e chega a Zé Celso e, consequentemente, aos demais tropicalistas, por sugestão de Ruggero Jacobbi,31numa espécie de resgate do ostracismo em que se encontrava o

29 Pedro Duarte aponta que Oswald “[...] lançou uma flecha cujo verdadeiro arco, paradoxalmente, apareceria só quatro décadas mais tarde.” (DUARTE, 2018, p.119) e Zé Celso observa que “[...] Oswald dizia para a geração dos chato-boys – que a bola que ele jogou passaria por cima da cabeça deles e outros iriam pegar. E nós pegamos a bola do Oswald.” (CORRÊA apud COSTA, 2011, p.79-80). 30 Seu nome completo é Antonieta Marília de Oswald de Andrade. Antonieta homenageia sua mãe, Maria Antonieta d’Alkmin, e Marília de Oswald faz alusão ao título da obra Marília de Dirceu de Tomás Antônio Gonzaga. 31 O diretor e crítico teatral italiano indicara o texto de Oswald a Luiz Carlos Maciel que, por sua vez, sugeriu-o a Zé Celso, sendo, portanto, uma indicação indireta. 68

autor modernista.32 Sem os críticos, provavelmente, a produção de Oswald não teria sido difundida naquela época, mas, felizmente, a antropofagia, como referência para a identidade brasileira, possibilitou essa redescoberta.33 Em 1964, dez anos após a morte de Oswald, os poetas concretos dedicaram o quarto número da Revista Invenção ao paulistano e neste mesmo ano iniciava-se um período de reedições, inclusive a de Memórias sentimentais de João Miramar, com Miramar na mira, prólogo de Haroldo de Campos. Nesse texto, o crítico reflete sobre Oswald e sua produção; aponta o desconhecimento da prosa oswaldiana por parte do público e observa como foi demorada a possibilidade de reedição, longos quarenta anos após a publicação original:

Realmente, nem sempre se tem lembrado de referir esta obra divisora de águas quando se traça a evolução de nossa prosa moderna. Houve o mesmo, durante muito tempo – e com reflexos até nossos dias −, uma campanha sistemática de silêncio contra Oswald, que resultou na minimização, senão na voluntária obliteração, da

32 Do mesmo modo, posteriormente, as obras de Sousândrade e de Pedro Kilkerry também foram resgatadas pelos irmãos Campos possibilitando a divulgação e a circulação dessas produções em âmbito nacional. Leitor dos poetas concretos, Torquato auxilia na divulgação do legado de Kilkerry na coluna Geleia geral, em 19 de fevereiro de 1972, publicando uma crônica de 1913 do poeta simbolista, uma quotidiana Kodak, acrescido de uma breve nota, que pode, em parte, ser associada ao próprio Torquato por similaridade: “[...] Pedro Kilkerry – Poeta ‘maldito’ do simbolismo brasileiro, nasceu e viveu na Bahia. Morreu em 1917 e sua poesia, que não chegou a ser publicada em livro, somente agora, veio à lume, integralmente, em Re-Visão de Kilkerry, Augusto de Campos, edição do Fundo de Cultura de São Paulo. O conhecimento da obra deste grande poeta é, agora, possível, graças à publicação desse volume e é indispensável.” (NETO, 1982, p.271). 33 Para Zé Celso, no entanto, é preciso mais reconhecimento do trabalho oswaldiano, pois, segundo ele, “Oswald ainda é um desconhecido para o mundo, mas eu tenho a impressão de que o tempo fará justiça com ele. Cada geração que entra em contato com a obra dele se alimenta. Ele é uma espécie de Nietzsche brasileiro. Aliás, nós conseguimos realizar no Brasil, no tropicalismo, o que Nietzsche sonhou fazer e não conseguiu: a ópera de carnaval, o que ele queria fazer com Wagner, tanto que ele adorava Carmen, e queria realmente uma ópera solar. E isso nós conseguimos.” (CORRÊA apud COSTA, 2011, p.83). 69

importância da bagagem literária oswaldiana. (CAMPOS, 2016, p.110).

A (re)visão de O rei da vela, esquecido por três décadas, possibilitou o amplo conhecimento da combatividade oswaldiana percebida com esmero em 1967 no contexto ditatorial, período em que alegorias eram utilizadas para driblar a censura, tendo em vista que os censores, ocasionalmente, liberavam obras, canções, peças, filmes e livros, em função de baixa sabedoria, que os impossibilitava de fazerem relações artísticas com nuances políticas.34 Sendo assim, de certa forma, esses servidores do regime, autorizavam, indiretamente, que os artistas continuassem produzindo e dialogando com o público, mesmo que de modo figurado, embora a instauração ditatorial estabelecesse o medo como um sentimento generalizado na sociedade, como percebido nos textos destemidos de Carlos Heitor Cony no jornal Correio da Manhã. Reunidas em O ato e o fato: o som e a fúria do que se viu no golpe de 1964, as crônicas descrevem aqueles dias incertos e amargos, como em O ato e o fato, publicada em 11 de abril de 1964, um dia após o primeiro Ato Institucional, que suprimia a liberdade, castrava direitos e instaurava o injustificável Estado antidemocrático: “Lembro de

34 A falta de conhecimento de muitos agentes da censura e de servidores de outras esferas da ditadura civil-militar era notória e digna de escárnio, como pode ser observado nos escritos de Stanislaw Ponte Preta, nome inspirado no personagem Serafim Ponte Grande, da obra homônima de Oswald. Com sua verve debochada, Sérgio Porto, sob seu pseudônimo, denominou as declarações ditatoriais de Febeapá, Festival de besteiras que assola o país. Segundo Gaspari, a crítica era fecunda porque havia de tudo nesse cenário autoritário, inclusive a hipocrisia de criminosos foragidos: “[...] O chefe da Polícia Federal, general Riograndino Kruel, recusava-se a entregar a Censura a um serviço especializado com o argumento de que era preciso ‘evitar a propaganda subversiva através das artes’. Para tamanha tarefa o general entregara a Censura a um cupincha gaúcho, Romero Lago, que chegou ao ponto de telegrafar a todas as secretarias de Segurança determinando que impedissem filmagens de produtores estrangeiros no Brasil, ‘a fim de evitar que distorcessem a realidade nacional’. Dois anos depois, para supremo vexame da moralidade do regime, descobriu-se que o Dr. Lago era um estelionatário foragido da Justiça e se chamava Hermenildo Ramires de Godoy.” (GASPARI, 2014, p.222) e que, além disso, era responsável pelo assassinato de dois homens. Em função das “denúncias” bem humoradas de Porto, via Ponte Preta, O Pasquim, criado em 1969, nasceu dedicado ao jornalista, morto precocemente em 1968, poucos meses antes da decretação do AI-5 e a consequente ampliação da censura e da repressão. 70

passagem o óbvio. Depois de Mussolini, depois de Hitler, invocar o anticomunismo para impor uma ditadura é tolice. A história é por demais recente, nem vale a pena repeti-la aqui.” (CONY, 2014, p.35). Como o status político opressor se manteria por duas décadas, a repressão acabaria por encurtar o momento tropicalista, mas não seria capaz de minimizar o impacto cultural que ela causaria não só no Brasil, como o tempo mostraria, afinal, a transgressão artística é uma experiência de descentramento “[...] de uma disponibilidade ética transformada em discurso.” (ANTELO, 2001, p.07), que se configura como um avatar político, como considera Raúl Antelo, em Transgressão & modernidade. Na década de 60, o Brasil abrigou uma série de festivais de música realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro, que eram, em certa medida, inspirados nos festivais de San Remo da Itália e no Festival do Mercado Internacional do Disco e da Edição Musical (Midem) da França, cuja existência Torquato enfatiza positivamente no áudio resgatado recentemente:

Eu acho que as melhores coisas que apareceram em música popular no Brasil de uns três anos pra cá apareceram em festival. Eu acho que quem transforma o festival não é a estação de televisão que patrocina ele nem nada. São os compositores, os intérpretes, que procuram maneiras novas de se apresentar, procuram sons cada dia mais novos pra mostrar no festival [...]. (NETO, 1968).

A principal diferença entre os festivais brasileiros e os europeus se dava pelo mecanismo de competição que aqui existia, ou seja, os festivais não eram apenas eventos de exposição com o intuito de apresentar novos talentos para profissionais da indústria musical, mas competições com menções para os mais qualificados, inclusive com prêmios em dinheiro, dentro de algumas categorias como melhor letra e melhor arranjo. Em 1965, a TV Excelsior realizaria no Rio de Janeiro o primeiro grande festival televisionado do país e, desse modo, diante do êxito do evento, outras emissoras investiram no formato da atração e surgiram os dois festivais mais expressivos, o Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record de São Paulo, que trazia apenas artistas brasileiros, e o FIC, Festival Internacional da Canção, da TV 71

Globo do Rio de Janeiro, que, como pressupõe sua denominação, aceitava artistas estrangeiros na competição. No Festival de 1967 da TV Record, Gil e Caetano lançam, oficialmente, suas canções de “som universal”; Caetano apresentou Alegria, Alegria junto da banda argentina Beat Boys e Gil executou Domingo no parque acompanhado pelo trio paulistano , espetáculo que Torquato anteciparia em Torquato conta o festival, sem deixar de provocar os puristas nacionais, como de costume:

E está iniciada a guerra. Somente no próximo dia 23 conheceremos os vencedores. Vamos ver um bocado de coisas, inclusive como o público reagirá à canção de Caetano Veloso, que ele defenderá acompanhado por guitarras elétricas. Gilberto Gil também vai usar guitarra. [...] Os ‘Dragões da Independência do Samba’ (também chamados de ‘os precursores do passado’) são contra. Mas isso é outra guerra. (NETO, 2004, p.183). 35

Em função das diferenças estéticas e ideológicas, o clima nem sempre era ameno nos festivais musicais, como pode ser visto no documentário Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, onde é possível perceber o viés catártico da plateia, que por vezes parecia raivosa e era constituída em maioria por jovens universitários, sempre alternando apupos e aplausos em meio às apresentações. No ano seguinte, no Festival Internacional da Canção, os tropicalistas foram atacados com mais veemência, para além da rotineira acusação de alienação, ao serem tachados de vendidos ao imperialismo estadunidense, não só cultural. Ao defender a canção É proibido proibir na eliminatória do festival, Caetano, em função das calorosas vaias que recebeu, exaltou-se e acabou por eternizar o seu famoso happening, ampliado pela revolta ao ter visto, instantes antes, a desclassificação de Gil com a canção Questão de ordem. Situação que se deve, em parte, por uma questão de ordem/ por uma questão de desordem, ao fenômeno abordado por Zé Celso, quando o diretor teatral menciona em Primeiro ato, que “[...] 68 foi, acima de

35 Domingo no parque classificou-se em segundo lugar na competição e Alegria, Alegria conquistou a quarta posição. 72

tudo, uma revolução cultural que bateu no corpo. Foi um movimento de ruptura, de descolonização [...]. Era o corpo que arriscava; foi o corpo que arriscou; foi o corpo que avançou [...].” (CORRÊA, 1998, p.125), referindo-se às violações ditatoriais, mas também à revolução comportamental que o momento propiciava. Antevendo esse feito, Augusto de Campos, em A explosão de Alegria, Alegria, texto divulgado originalmente em O Estado de S. Paulo em 25 de novembro de 1967, reconhece a postura destemida e de vanguarda dos artistas baianos ao considerar que

recusando-se à falsa alternativa de optar pela ‘guerra santa’ ao iê-iê-iê ou pelo comportamento de avestruz (fingir ignorar ou desprezar o aparecimento de músicos, compositores e intérpretes, por vezes de grande sensibilidade, quando não verdadeiramente inovadores, como os Beatles, na faixa da ‘música jovem’), Caetano Veloso e Gilberto Gil, com Alegria, Alegria e Domingo no Parque, se propuseram, oswaldianamente, ‘deglutir’ o que há de novo nesses movimentos de massa e de juventude e incorporar as conquistas da moderna música popular ao seu próprio campo de pesquisa sem, por isso, abdicar dos pressupostos formais de suas composições, que se assentam, com nitidez, em raízes musicais nordestinas. (CAMPOS, 2008, p.152).

Alegria, Alegria aborda o presente em meio a um acúmulo de notícias que o jornal brasileiro incessantemente expõe, impreciso ao ser vívido, mas também fastioso, nos enchendo de alegria e preguiça. Num anúncio caótico de elementos, Caetano enumera-os lançando mão de uma linguagem carnavalesca que aglutina itens desconexos: espaçonaves, guerrilhas, caras de presidentes, bomba, bandeiras e Brigitte Bardot; abusando da técnica da colagem para ressaltar as assincronias do país de modo alegórico. Ademais, a alusão ao cotidiano da nação, ancorada na citação do cidadão que toma uma coca-cola e segue por entre fotos e nomes/ sem livros e sem fuzil/ sem nome, sem telefone/ no coração do Brasil, problematiza a comunicação massiva, a indústria cultural e a cultura como mercadoria. Dessa forma, a letra 73

menciona o refrigerante como um produto pop, oriundo de uma pátria imperialista, tornando-o uma espécie de emblema da canção e da Tropicália como um todo, enquanto produto cultural exportável, sendo, como aponta João Camillo Penna, “[...] não uma qualquer das ‘informações da modernidade’ que o bazar tropicalista incorporará dentre as suas relíquias do Brasil [...].” (PENNA, 2017, p.93). Afinal, na perspectiva tropicalista, era preciso também ressignificar o que era considerado ruim para, de certa forma, redimi-lo, tendo em conta, como citado em O tropo tropicalista, que

trata-se não apenas de associar-se a objetos estrangeiros e identificar-se com o olhar estrangeiro sobre o Brasil, mas torná-lo constitutivo da nossa identidade, e uma identidade essencialmente indigesta. Mas ao comê-lo, alquímica e antropofagicamente, transformar a náusea em supremo bem estar. (PENNA, 2017, p.95).

Sendo assim, na terceira edição de Verdade tropical, publicação comemorativa de 20 anos do lançamento original, Caetano inclui o prefácio Carmem Miranda não sabia sambar e o utiliza para se retratar da informação errônea, que consta nas duas edições anteriores, de que o termo Coca-Cola teria sido citado pela primeira vez numa canção popular brasileira em Alegria, Alegria. O fato é que a marca de refrigerante aparecera anteriormente, em 1956, em Siri jogando bola, canção de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Na letra dessa canção, os animais citados são humanizados havendo até um bode de pistola numa farda militar e a menção à marca estadunidense é feita pela ingestão exagerada de um jumento, vi um jumento beber vinte coca-cola/ ficar cheio que nem bola/ e dar um arroto de lascar, possibilitando a retificação bem humorada do tropicalista:

Na verdade, considerando que o jumento desse galope tomava vinte Coca-Colas, a de ‘Alegria, alegria’ seria, na melhor das hipóteses (isto é, se não tiver havido outra menção à Coca em alguma canção brasileira anterior à de Dantas-Gonzaga), a vigésima primeira. (VELOSO, 2017, p.11).

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Em contrapartida, a canção Domingo no parque apresenta uma distinta capacidade narrativa ao expor ao ouvinte a tragédia passional que acometeria um triângulo amoroso, composto pelo feirante José, o rei da brincadeira, pelo construtor João, o rei da confusão, e pela menina Juliana, tendo como fundo sonoro uma verdadeira assemblage com direito a ruídos, gritos e vozes (dos) mutantes. Enquanto o primeiro sucesso de Caetano cita elementos variados, provenientes do mundo urbano, cosmopolita e do pop estrangeiro, a canção de Gil constitui-se de modo bastante cinematográfico, dado que une as duas canções, embora com essências distintas, como cita Augusto de Campos:

[...] como me observou Décio Pignatari, enquanto a letra de Gil lembra as montagens eisenstenianas, com seus closes e suas ‘fusões’, [...] a de Caetano Veloso é uma ‘letra-câmara-na-mão’, mais ao modo informal e aberto de um Godard, colhendo a realidade casual ‘por entre fotos e nomes’. (CAMPOS, 2008, p.153). 36

Com visibilidade nos festivais, o “som universal” proposto pelos tropicalistas passa a ser amplamente designado pela imprensa brasileira como integrante do movimento denominado, à revelia do grupo baiano,

36 Em uma entrevista para o Jornal da Tarde, publicada na matéria Música é Gil é Pop, Música é Pop é Veloso, publicada em 20 de Outubro de 1967, Gil define suas composições e também as de Caetano como sendo música pop, no entanto, como aponta Augusto, “a expressão é discutível, porque a pop’art já tem uma semântica definida, no quadro das artes plásticas, e poderia fazer supor uma dependência que, realmente, não existe, embora haja algumas afinidades. Mas a explicação de Gil demonstra que ele sabe muito bem o que quer. Vale a pena repeti-la: ‘Música pop – diz ele – é a música que se consegue comunicar de maneira tão simples, como um cartaz de rua, um outdoor, um sinal de trânsito, uma história em quadrinhos. ’ Domingo no Parque joga palavras, música, som, ideia, numa montagem dentro dos moldes da comunicação moderna: o layout, a arrumação, a arte final. Segundo observa Gil, em Alegria, Alegria ‘as palavras com sentido de atualidade e interesse – guerrilha, Brigitte Bardot, coca-cola, caras de presidentes, espaçonaves – despertam e encaminham a percepção das pessoas para o sentido total das coisas que estão sendo ditas. E a familiaridade, o senso de participação na criação de Veloso tornam Alegria, Alegria, de repente, uma canção da consciência de toda uma classe-média urbana latino- americana.” (CAMPOS, 2008, p.155). 75

de tropicalismo. Porém, como citado anteriormente, o momento tropicalista não poderia ser caracterizado como um movimento, como o ismo sugere, e nem se restringia apenas à música por englobar outras formas de arte. Ainda em 1967, a Tropicália se mostrava receptiva e teria referências decisivas, por motivos distintos, no processo de movimentação artística empreendida naquele ano. É o caso, sobretudo, de O rei da vela, via Teatro Oficina; Terra em transe, filme de Glauber Rocha, e Tropicália, obra de Hélio Oiticica, produções concebidas em uma mesma época e percebidas como pertencentes a uma mesma lógica e/ou matriz cultural e, assim, a natureza dialógica existente entre elas possibilitou que fossem aglutinadas de modo despretensioso, mas profícuo, como referências irrefutáveis para a Tropicália e figurassem como a “santíssima trindade” da historiografia tropicalista, obras diversas, mas de igual natureza, assim como o preceito cristão. Escrita em 1933 e publicada em 1937, a peça O rei da vela evidenciava a aliança entre a decadente aristocracia rural e a burguesia composta por novos ricos num acordo espúrio para a manutenção do poder. No texto oswaldiano, Heloísa de Lesbos, de família nobre, mas falida, é noiva de Abelardo I, industrial, cuja alcunha real, que nomeia a peça, deve-se ao fato de ser proprietário de uma fábrica de velas mortuárias. No entanto, a personagem tinha por atividade principal o ofício de emprestar dinheiro a juros exorbitantes e, assim, lucrar com a morte e a fé alheia, alimentada pelo uso de velas em ritos religiosos e funerários, e com o endividamento de seus clientes numa constante exploração da morte e dos encalacrados, que eram enjaulados no escritório de usura Abelardo & Abelardo e chicoteados pelo agiota, que se comportava como um domador de feras, num panorama quase circense. A origem dos nomes do casal protagonista é remissiva aos personagens da história amorosa e trágica do casal francês do século XII, Heloísa de Paráclito e Pedro Abelardo, embora, na ficção de Oswald, não houvesse sentimento nobre entre as partes, como consta na biografia dos amantes da Idade Média, apenas uma fria tratativa de negócios. Lacaios do capital estrangeiro, o par dialoga com Mister Jones, banqueiro e capitalista estadunidense, que personifica o apreço ao poderio econômico e social ianque expressado por muitos brasileiros, conforme a constatação de Abelardo I: “[...] os países inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. [...] Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro.” (ANDRADE, 2003, p.63-4). A subserviência brasileira aos Estados Unidos também é demonstrada por uma bandeira norte-americana 76

hasteada na ilha nacional frequentada pelas personagens; representando a mansidão do povo brasileiro ao pedir bênçãos aos estrangeiros sem sombra de constrangimento, posição repetida sem ficção, no atual momento do país: quando se vê o futuro repetir o passado. Cobiçoso, Abelardo I enxergava vantagens no casamento com Heloísa, a herdeira da aristocracia rural, em franca decadência após a crise internacional de 1929 e a iminente industrialização do país, como ele explica a Abelardo II, seu alter ego. A existência do funcionário homônimo na trama faz crer que mesmo que o primeiro desapareça por meio da morte, Heloísa sempre será de Abelardo, como no referente europeu, dado que se confirmará na peça após Abelardo II roubar o patrão, tomar sua fortuna e se casar com a filha do Coronel Belarmino e Dona Cesarina. Emblema da continuidade da união entre a fortuna e os brasões, o desfecho ácido confirma a hipocrisia dos ricos e a sanha por perpetuação de poder e riqueza, contidos no seio das famílias tradicionais brasileiras; mostrando-nos que sempre haverá um sucessor no ciclo infinito de exploração, assertiva que se confirma via repetição dos nomes das personagens, patrão e funcionário, ao significar a identificação total entre eles; símiles na representação tortuosa de caráter, como fica claro na passagem em que apontam um panorama da instituição familiar brasileira, eivada de convencionalidades sociais e de falso moralismo:

ABELARDO II – A família é o ideal do homem! A propriedade também. E dona Heloísa é um anjo! ABELARDO I – Você sabe que não há outro gênero no mercado. Eu não ia me casar com a irmã mais moça que chamam por aí de garota da crise e de João dos Divãs. Nem com o irmão menor que todo mundo conhece por Totó Fruta- do-Conde! ABELARDO II – Um degenerado... ABELARDO I – Coisas que se compreendem e relevam numa velha família! Heloísa, apesar dos vícios que lhe apontam...Você sabe, toda a gente sabe. Heloísa de Lesbos! Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio, para nos casarmos. Disseram que era na Grécia. Apesar disso, ela ainda é a flor mais decente dessa velha árvore bandeirante. Uma das famílias fundamentais do Império. 77

ABELARDO II – O velho está de tanga. Entregou tudo aos credores. ABELARDO I – Que importa? Para nós, homens adiantados que só conhecemos uma coisa fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão ainda é negócio, faz vista num país medieval como o nosso! O senhor sabe que São Paulo só tem dez famílias? ABELARDO II – E o resto da população? ABELARDO I – O resto é prole. O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer é deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é novo. ABELARDO II – Se é! A burguesia só produziu um teatro de classe. A apresentação da classe. Hoje evoluímos. Chegamos à espinafração.” (ANDRADE, 2010, p.43-4).

Encenado pelo Teatro Oficina trinta anos após sua publicação, o texto de Oswald era arrasador. Até seu título, inocente numa primeira mirada, era impiedoso, mas o resgate da peça que nomeava, como considera Zé Celso,

[...] iluminou um escuro enorme do que chamamos realidade brasileira, numa síntese quase inimaginável. E ficamos bestificados quando percebemos que o teto desse edifício nos cobria também. Era a nossa mesma realidade brasileira que ele ainda iluminava. Sob ele encontramos o Oswald grosso, antropófago, cruel, implacável, negro, apreendendo tudo a partir de um cogito muito especial. ‘Esculhambo, logo existo’! (CORRÊA, 2010, p.22).

O cogito oswaldiano, que seria também tropicalista, era uma forma de expressão que no fundo constituía-se como um desejo utópico de país de futuro; que apostava que a partir do apontamento e visibilidade das mazelas brasileiras fosse possível se reinventar enquanto nação, assim como Zé Celso assinala a contribuição teatral de Oswald: “Era preciso então reinventar o teatro. E Oswald reinventou o 78

teatro.” (CORRÊA, 2010, p.22). Com direção do próprio Zé Celso,37 cenografia e figurinos de Hélio Eichbauer 38 e grande elenco, que incluía Renato Borghi como Abelardo I e Ítala Nandi como Heloísa, a montagem causou certo reboliço em função de o texto ser bastante indigesto, como sua atualidade ainda demonstra, e por sua rica metáfora em torno da vela, que explora cada brasileiro até no dia de sua morte; 39 caracteriza o patriarcado machista brasileiro, tendo a vela associada ao falo, e a pequeneza desse império, que não é da nobreza do ouro ou do petróleo, mas da reles vela, que, todavia, devido às circunstâncias da desigualdade brasileira, torna o seu portador deveras privilegiado. Nessa direção, O rei da vela impactava pelo sarcasmo e o modo crítico e virulento de se referir à sociedade, arrojado e impávido, referente internalizado pelos tropicalistas como escopo para investir contra a hipocrisia da classe média e suas lacunas estéticas, políticas e éticas. A esse respeito, a produção oswaldiana tornou-se um lastro que operava com o uso constante da ironia e o ímpeto espinafrador, como define Sábato Magaldi, em O país desmascarado, fato perceptível desde a escolha dos nomes dos integrantes da família quatrocentona de coronel Belarmino: Heloísa, que sabemos lésbica, em função da alusão à ilha grega que compõe seu nome; Joana, citada pela evidente alcunha de João dos Divãs; Totó Fruta-do-Conde, cujo apelido remete à gíria popular para indicar homossexualidade, e Perdigoto, o mais significativo epíteto dentre os irmãos, o único que constitui desvio; que nos esclarece ser um indivíduo propagador de moléstias, nesse caso, mostra-se um completo fascista avesso às esquerdas. O rei da vela, de certa forma, antecipa as ideias alegóricas da Tropicália por meio de uma leitura implacável do Brasil e de seu povo, nosso verdadeiro mito, como na acepção de Alexandre Nodari, no texto Virar o virá: virá o virar, ao mencionar que na famosa instalação de Hélio Oiticica, Tropicália, havia o aforismo A pureza é um mito,

37 Em 1971, O rei da vela se tornou filme a partir das filmagens da temporada carioca no Teatro João Caetano, mas só foi finalizado em 1982, após o exílio de José Celso, que o dirigiu em parceria com Noilton Nunes. 38 A cenografia de um ato da peça, dos três existentes, foi reproduzida na capa do disco Estrangeiro (1989) de Caetano. Inclusive, desde o fim da era tropicalista, muitos cenários de shows de Caetano e também de Chico Buarque foram assinados por Eichbauer, marido de Dedé Gadelha. 39 Conforme Abelardo I articula com sarcasmo: “[...] Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!”. (ANDRADE, 2003, p.62). 79

[...] fazendo dela o inverso dos campos de concentração nazistas, com o seu pórtico ‘O trabalho liberta’, ou seja, fazendo dela a proposição de uma vida não-fascista de que fala Foucault em referência à obra de Deleuze e Guattari. Do mesmo modo, poder-se-ia afirmar que o povo, assim hipostasiado, também é mito. (NODARI, 2017, p.11).

Ademais, dentre as obras referenciais para a Tropicália, O rei da vela configurava-se como a exposição da realidade da nação ao passo que Terra em transe revelava o Brasil e a América Latina como uma miragem que, como Glauber avalia, em O transe da América Latina, artigo de Revolução do Cinema Novo, consistiu numa “[...] tentativa de conseguir em cinema uma expressão complexa, indefinida, mas própria e autêntica a respeito de tudo que poderia ser um cinema da América Latina.” (ROCHA, 2004, p.170). Mecanismo almejado com êxito por proporcionar uma discussão cultural e sociopolítica no país que, entre outras coisas, entusiasmou os tropicalistas, pois foi a partir da exibição do filme que Caetano Veloso pensou sua contribuição à Tropicália e “[...] toda uma nova discussão sobre a cultura brasileira, especialmente aquela comprometida, ou melhor, ligada (não me agrada o outro termo, por demagógico) ao sociopolítico, foi recolocada.” (ROCHA, 2004, p.171). 40 De tal modo, Terra em transe tornou-se um marco do Cinema Novo, mas também um estopim para o momento tropicalista, pois, corroborando com Glauber, o próprio Caetano, em Verdade tropical, cita o valor do filme para essa era: “Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme

40 O cineasta também considera que Terra em transe é um filme “[...] sobre o que existe de grotesco, horroroso e pobre na América Latina. Não é filme de personagens positivos, não é filme de heróis perfeitos, que trata do conflito, da miséria, da podridão do subdesenvolvido. Podridão mental, cultural, decadência que estão presentes tanto na direita quanto na esquerda. Porque nosso subdesenvolvimento, além das febres ideológicas, é de civilização, provocado por uma opressão econômica enorme. Então, não podemos ter heróis positivos e definidos, não podemos adotar palavras de beleza, palavras ideais. Temos que afrontar nossa realidade com profunda dor, como um estudo da dor.” (ROCHA, 2004, p.172). 80

Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66- 7.” (VELOSO, 2008, p.94). A trama ocorre em um país fictício chamado Eldorado, mais precisamente na província de Alecrim, e Paulo Martins, poeta e jornalista, antigo apoiador de Porfírio Diaz, uma espécie de pai político de sua juventude, resolve lutar como pode em decorrência da situação política e social de sua terra pretendendo conter o avanço de uma empresa multinacional e apoiando a eleição do candidato populista Felipe Vieira, que anseia vencer o senador Diaz, político direitista; representante dos poderosos, que ambiciona o regime totalitário, como o ditador mexicano homônimo. Sendo assim, a narrativa de Terra em transe é iniciada pelo fim, de modo peculiar, com Vieira tendo que abandonar o cargo, que Porfírio assumiria por meio de um golpe, e com Martins sendo assassinado por não parar em uma barreira policial, numa montagem integralmente elíptica,41 para que o filme aconteça entre o instante em que o poeta é atingido e o momento em que a morte se efetiva, iniciando pela conclusão, sucedendo-se pela sequência de seu desenvolvimento e culminando com o retorno ao seu início; num movimento circular. Dessa forma, os elementos a respeito da história de Eldorado e os dados biográficos de Martins, que se tornam conhecidos pelo espectador, caracterizam-se como a principal estratégia alegórica de Glauber, visto que, como considera Jair Tadeu da Fonseca, em Poesia de

41 Em Terra em transe: alegoria e agonia, Ismail Xavier faz uma síntese dos momentos iniciais do filme de Glauber para contextualizar a obra e sua montagem: “O sonho acabou. A Revolução está fora do alcance. O político conservador, Porfírio Diaz, comandou o golpe de Estado, suprimiu as eleições e pôs um fim às aspirações políticas do líder populista Vieira e seus aliados. Paulo Martins, poeta, jornalista, conselheiro político, agoniza. Atingido pela repressão ao empreender o gesto isolado de resistência, o poeta ferido de morte revê sua trajetória política e a do país. A abertura de Terra em transe já nos ofereceu uma primeira representação da hora decisiva: trouxe a renúncia do governador Vieira, que não acatou as pressões de Paulo em favor da resistência armada, e a reação indignada do poeta, seu abandono do palácio em companhia de Sara. No trajeto, ela tentou demovê-lo do gesto suicida, mas de nada valeu a sua advertência, à Brecht: ‘Não precisamos de heróis’. O poeta lançou o carro contra a barreira dos militares aos gritos de ‘eu preciso cantar’. Sozinho nas dunas de Eldorado, mergulhou no passado e iniciou o balanço feito de explicações, delírios e imprecações, revisão de vida a compor uma agonia ‘de ópera’ que deu ensejo ao flashback de noventa minutos.” (XAVIER, 2012, p.63). 81

cinema em Terra em transe, o longa-metragem não se chama “poeta em transe”:

[...] o caso pessoal reveste-se de um alcance geral devido à alegorização: o transe do poeta, a que assistimos, é o transe da terra. Este só pode ser apreendido com os códigos em delírio, através de um estado poético capaz de permitir o livre trânsito épico-lírico entre o ‘fora’ e o ‘dentro’. Daí o protagonista ser um poeta: alguém capaz de compreender o desconcerto do mundo pelo transtorno da linguagem. (FONSECA, 2006, p.168).

Assim, a agonia de Paulo Martins, rememorada em versos e imagens em transe, dá início a uma epopeia fragmentada em torno de sua vida e de seu país, em que o roteiro, como explicitado em Brasil em tempo de cinema, por Jean-Claude Bernardet, é uma visão crítica que “[...] não só ataca os políticos como também o jovem que, com todo o seu ardor e honestidade, foi na onda dos outros e se colocou no fundo numa posição antipopular, e ataca principalmente a noção de povo que vigorava no antigo regime e era toda maculada de peleguismo.” (BERNARDET, 2007, p.152). Não por acaso, a cena em que um líder sindical ou operário sindicalizado tem a boca tapada marcando a “morte do populismo” 42 se caracteriza como a mais impactante do texto

42 Roberto Schwarz discorda dessa acepção de Caetano, como pode ser visto em Verdade tropical: um percurso de nosso tempo, texto de Martinha versus Lucrécia. A publicação de Schwarz gerou grande polêmica em 2012 em função do texto se caracterizar como uma crítica dura à autobiografia de Veloso, publicada 15 anos antes, apesar de louvar a escrita memorialista do artista, colocando-a entre as melhores da literatura nacional. Assim, a análise do crítico marxista reacendeu polêmicas e ampliou as rusgas políticas entre ele e os tropicalistas, especialmente Caetano, iniciadas à época da publicação de Cultura e política, 1964-1969. Basicamente, os tropicalistas eram criticados em função de suas relações com a cultura de massa, que para o crítico soava como algo entreguista e apolítico, e Caetano era cobrado por não ter sido enfático na denúncia contra os horrores da repressão direitista, numa atitude conformista, segundo ele. A publicação empreende a mesma lógica que Schwarz utilizou em seu texto contemporâneo à Tropicália, concluindo que o método alegórico tropicalista, assim como a alegoria oswaldiana, só aparentava ser contestadora, mas duvidosa em essência. Todavia, essa crítica aos tropicalistas não é solitária, 82

fílmico, se considerarmos o choque que ela é capaz de promover entre os espectadores, como observa Caetano:

[...] durante uma manifestação popular – um comício – o poeta, que está entre os que discursam, chama para perto de si um dos que o ouvem, operário sindicalizado, e, para mostrar quão despreparado ele está para lutar por seus direitos, tapa-lhe violentamente a boca com a mão, gritando para os demais assistentes (e para nós, na sala do cinema): ‘Isto é o povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!’. Em seguida, um homem miserável, representante da pobreza desorganizada, surge dentre a multidão tentando tomar a palavra e é calado com um cano de revólver enfiado na sua boca por um segurança do candidato. Essa imagem é reiterada em longos close-ups destacados do ritmo narrativo e desse modo se transforma num emblema. (VELOSO, 2008, p.99).

Porém, a poesia é onipresente no texto fílmico e torna-se contraponto da narração, em que num uso político, em meio à morte de Paulo Martins, surgem os versos de Balada (em memória de um poeta suicida) de Mário Faustino43: Não conseguiu firmar o nobre pacto/ entre o cosmo sangrento e a alma pura/ […] gladiador defunto, mas intacto/ (tanta violência, mas tanta ternura); e também o poema O povo ao poder de Castro Alves, A praça é do povo/ como o céu é do condor, que Paulo canta para Vieira, ao se revoltar com ele, e que surge no filme para que, metaforicamente, seja explicitado que a praça se torna do povo apenas na poesia, pois, no contexto político da trama e da realidade da

ao contrário, é mais uma dentre as tantas existentes desde os anos 60, que colocaram, como menciona Moriconi, “[...] em lados opostos um Roberto Schwarz, que viu nessa estética um traço conservador, e, no outro campo, os concretistas, adeptos de primeira hora, assim como, na vertente universitária carioca, as visões de críticos como Heloísa Buarque de Hollanda e Silviano Santiago, que endossaram a contracultura e a poesia marginal, desdobramentos, nos anos 1970, da explosão tropicalista.” (MORICONI, 2017, p.27). 43 Mário Faustino (1930-1962), poeta conterrâneo de Torquato, vitimado precocemente em uma tragédia aérea no Peru. Havia um parentesco distante entre eles: o tio de Torquato, Ernani, irmão de sua mãe, era casado com Maria Vitória, irmã de Faustino. 83

vida, a praça é baluarte e espaço dos opressores. Por isso, talvez, em outra sequência, Martins declare que “a poesia não tem sentido. Palavras... As palavras são inúteis”, mas contraditoriamente também nos diz que “eu, por exemplo, me dou ao vão exercício da poesia”, em resposta à sentença da personagem Sara: “um homem não pode se dividir assim... A política e a poesia são demais para um só homem”; porque, certamente, poesia e política não se tornam demais para muitos homens juntos. Com base nisso, a poesia de Paulo, condicionado por fins políticos, assimila-se ao filme, por estar inserido num processo econômico de produção e corresponder ao anseio de Vieira: “O país precisa de poetas. Dos bons poetas, revolucionários, como aqueles românticos do passado”, afinal, a intenção do filme seria a mesma almejada no momento tropicalista; conhecer e expressar a personalidade do Brasil por meio de sua real essência a partir de um caráter fenomenológico de redução eidética. 44 Tropicália, instalação composta pelos penetráveis PN2 – Pureza é um mito e PN3− Imagético, completa a tríade de referências iniciais do momento tropicalista surgidas no ano de 1967. Integrante da exposição coletiva Nova objetividade brasileira, exibida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a obra de Hélio Oiticica se conectaria ao momento tropicalista como referência, mas também nomearia essa cena artística de modo indireto; por meio do diretor de cinema Luiz Carlos Barreto, que após ouvir uma canção de Caetano que o artista iria nomear como Mistura fina, insiste para que o baiano batize a

44 Contudo, embora o cinema de Glauber seja uma referência inconteste, o Cinema Marginal em sua vertente à margem da margem, cuja alcunha era cinema da boca do lixo, em função de muitos de seus filmes serem produzidos na marginalizada região da Luz, área central da capital paulista, foi o que mais se aproximou, esteticamente, da era tropicalista. Em se tratando de Cinema Novo, esse encontro se dará com Câncer (1972), filme que, como aponta Ivana Bentes, na introdução de Cartas ao mundo, constitui-se como “[...] uma encruzilhada entre a pedagogia da violência glauberiana, seu impulso sádico- paternalista e o desejo de uma arte que atravessasse as fronteiras de classes, status, cultura. Nele, a classe média artística – Rogério Duarte, Odete Lara, Hugo Carvana, Pitanga, Hélio Oiticica – frequenta a marginália dos morros, sambistas, punguistas, o submundo das delegacias. Discutem com o povo a respeito de comunismo, sexo, miséria, revolução. Glauber descobre a vanguarda pelo submundo, como se Godard subisse o morro.” (BENTES, 1997, p.40).

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composição com o mesmo nome da obra de Oiticica, que ele havia visto dias antes.

Figura 3 − Tropicália de Hélio Oiticica

Os dois penetráveis consistiam em um espaço tridimensional alusivo à arquitetura da favela, orgânica e essencialmente brasileira, formando uma espécie de casa-obra composta em madeira; coberta com tecidos estampados e multicoloridos e edificada numa base de areia e pedras onde também se notava o adorno de variadas plantas tropicais. Para o público, tratava-se de uma experiência sensorial amparada no uso de elementos de diferentes texturas, que exigiam o emprego de três sentidos (visão, audição e tato), e uma crítica política à existência das habitações precárias que se avolumaram nas grandes cidades brasileiras, sobretudo nas décadas de 60 e 70, em função do êxodo rural e da 85

desigualdade social; ausência de cidadania cujas origens remontam ao século XIX como sintoma imediato da abolição da escravidão e da dificultosa inserção dos trabalhadores em atividades laborais remuneradas após séculos de atroz política escravagista. Por isso, além de crítica social e de problematização da arte, como combate ao purismo e ao elitismo, a escolha dos materiais propunha desenvolver a sensação de pisar na terra, como retrato de nossas raízes, e de encontrar-se envolto em labirintos, alusivos à experiência de percorrer os morros e as “quebradas” das comunidades, findando com o momento em que o espectador encontrava um televisor ligado ao término do percurso. O elemento imagético pretendia que o transeunte participante fosse deglutido pela televisão, modelo de comunicação moderna na época, que acenava às modernidades em um país subdesenvolvido e os seus consequentes contrastes: o tecnológico e o tropical, moderno e arcaico; abastado e desprovido. Em , Tropicália sugeria a devoração dos conflitos; das imagens opostas, tendo como objetivo a problematização da dicotomia existente entre arte/vida e arte/antiarte e pra isso, enquanto instalação, carecia da atuação do espectador para que pudesse, como aponta Favaretto, “[...] provocar a explosão do óbvio por efeito da participação.” (FAVARETTO, 2007, p.94) numa constante ressignificação dos traços culturais e da conjugação artística envolvendo crítica e experimentalismo. Indiretamente, o uso da alegoria une as três obras referenciais, citadas anteriormente, enquanto estratégia para nos dizer algo por meio de expressões que significam um ou mais sentidos do que o expresso literalmente. A figura retórica e de linguagem remonta à tradição greco- latina também em sua origem etimológica, derivação de allos, outro, e agoreuein, falar na ágora, a praça pública das cidades gregas, significando articular algo para referir-se a outra coisa, que mesmo ausente é o significado do que se quer falar, no entanto, como observa Ismail Xavier, em A alegoria segundo a tradição: retrospecto, essa definição é genérica e não esclarecedora quando se pensa o contemporâneo, mas carrega em si a ideia que consiste

[...] entre algo manifesto e um sentido não explicitado que o discurso contém de forma disfarçada. Traz, portanto, um reconhecimento de que a linguagem, se é expressão, não é imediata, havendo a mediação reconhecida de uma convenção que se interpõe entre a fala e a 86

experiência, em outras palavras, a mediação da espessura própria da linguagem em sua relação problemática com o mundo. Essa definição clássica, porém, salienta apenas o que podemos chamar de ‘intenção alegórica’ – a existência de uma atitude do falante tornada possível pelo próprio mecanismo da linguagem. (XAVIER, 2012, p.445-6).

Em função do conhecimento de que a imagem formada alegoricamente possui vários sentidos e é capaz de se diferir do símbolo de soma harmônica, o conceito de alegoria foi objeto de extensa reflexão de Walter Benjamin, a ponto de o filósofo mencioná-la como uma chave para a compreensão da modernidade e da problematização da arte. Assim, a definição utilizada por Benjamin tornou-se clássica: “As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas.” (BENJAMIN, 1984, p.200). Juízo proposto para exemplificar como a debilitada imagem da ruína pressupõe o efeito de desgaste do externo pra o interior, do lado de fora para o lado de dentro, em que, como propõe Xavier, como “[...] uma força viva do passado, ela tem também essa dimensão de desencanto, chamando a atenção para o lado perecível das coisas e, como imagem, pode ter o efeito devastador de inserir no presente um sinal de seu próprio futuro como pedra, fóssil.” (XAVIER, 2012, p.459). A alegoria linguística, ao contrário do símbolo,45 que evidencia uma visão de totalidade, consiste na representação de um outro e nunca de um todo e isso nos é imposto pelas condições históricas que temos;

45 No século XIX, a alegoria era rejeitada pelos poetas românticos e o símbolo era a forma de representação que utilizavam amplamente, como aponta Xavier: “[...] o símbolo nos oferece uma experiência particular para a qual não existe a priori um referencial teórico definido, que venha a tornar sensível; pelo contrário, ele é o ponto culminante de um movimento orgânico de expressão e cristaliza – torna manifesta – uma verdade de alcance geral (universal) a que não teríamos acesso a não ser por essa via. Ele é, portanto, o dado sensível para o qual não temos um conceito e, na qualidade de elemento deflagrador de uma nova intuição sobre a experiência, é insubstituível e intraduzível. A alegoria, ao contrário, é entendida como uma configuração sensível que, no particular, ilustra uma verdade geral que estava lá presente desde o começo.” (XAVIER, 2012, p.453).

87

“[...] somos sobreviventes de uma destruição paulatina de todos os grandes valores antigos, que foram aviltados e transformados em escombros pela mercantilização da vida.” (KONDER, 1999, p.36), como aponta Leandro Konder, em Walter Benjamin: o marxismo da melancolia, e mais precisamente, pelo próprio Benjamin, em Origem do drama barroco alemão, cerne de sua produção, “[...] como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio.” (BENJAMIN, 1984, p.200). Portanto, atualmente, a alegoria ganha ares de ruminação e rememoração e a tarefa de reminiscência é a construção dos elos que ligam o presente e o passado e, neste contexto, Konder assinala que ela funcionava para Benjamin como

o efetivo aproveitamento de toda a riqueza das experiências humanas do passado, em função das necessidades das lutas que travamos no presente. Os oprimidos de hoje só terão ânimo para combater se reassimilarem as aspirações e os anseios dos oprimidos de ontem. O que os seres humanos quiseram e não obtiveram talvez possa ser alcançado um dia. E, para que a vitória venha a ser conseguida, precisamos resgatar tudo: não só o que foi dito e feito, mas também o que foi sonhado, o que foi desejado e ficou reprimido. (KONDER, 1999, p.94).

A alegoria se fundamenta consideravelmente na crítica de Benjamin aos românticos no drama barroco alemão em que contrapondo as semelhanças e oposições entre o período barroco e o pós-guerra, tempo marcado pela decadência, o filósofo a considera relevante às mazelas modernas, sendo as alegorias representações artísticas para episódios de derrotas ou dissabores políticos, que representam a história de modo heterogêneo e fragmentado, ao contrário do símbolo, sempre utilizado na construção de imagens totalizantes. Neste caso, as obras referenciais tropicalistas se caracterizam como exemplos de trauerspiel no Brasil, pois, nessas obras, a decadência política é a representação de nosso passado colonial e neocolonial. Além disso, O rei da vela, Terra em transe e Tropicália provocam o espectador de modo catártico, sendo retirado qualquer traço de caráter contemplativo, mudando os limites das relações entre a arte e o espectador, que é também um consumidor, 88

apoiados, sobretudo, em fragmentação e justaposição, como ressalta Ismail Xavier, ao considerar que

[...] os enigmas e desconcertos são modos de interagir com o espectador que têm afinidade com interrogações geradas ao longo da história da arte pelas alegorias, da composição dos trípticos da tradição cristã à montagem de palavra e imagem nos emblemas do século XVII e à colagem do século XX. (XAVIER, 2012, p.12).

De fato, as alegorias existentes nessas obras não apresentam apenas caráter de denúncia velada e/ou escancarada ao poderio econômico-social e autoritário; constituem-se de modo mais abrangente por estarem alinhadas à consciência linguística, artística e política. No entanto, há risco implícito enquanto estratégia em função de um possível efeito colateral, ao exigir do espectador uma postura analítica e um desejo de compreensão decifradora que corre o risco de não encontrar ancoragem para tal, o que pode variar em função da pulsão alegórica empregada, mecanismo que, em essência, parece “[...] ir contra a vocação tradicional da alegoria, de caminhar do fragmento e da incompletude para a totalização.” (XAVIER, 2012, p.32). Nessa direção, as obras citadas também se assemelham, especialmente a narrativa fílmica de Glauber, à concepção benjaminiana de história, presente nas teses Sobre o conceito de História, que avalia que, a princípio, não há nenhum detalhe que não deva ser considerado, como apontado na terceira tese: “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.” (BENJAMIN, 2011, p.223). Descartando, assim, a concepção linear e contínua do tempo que consta de acontecimentos históricos eternamente fixos em algum lugar do passado porque a história, nessa visada, não valorizaria apenas os vencedores, mas também os emudecidos, os oprimidos e os vencidos historicamente pela concepção histórica vigente, como o faz Glauber em Terra em transe, afinal, como aponta Fonseca, “se a alegoria é, como diria Benjamin, uma ruína do passado, podemos afirmar, por outro lado, que ela é também uma memória do futuro.” (FONSECA, 2002, p.47). Em função disso, o filósofo, fazendo alusão à tradição messiânica e recordando tempos de desalento, enfoca a razão da esperança para 89

responder àqueles que apostavam nela como sendo uma espera por um ideal inalcançável e, neste sentido, registra na tese 17a:

Na realidade, não há um só instante que não carregue consigo a sua chance revolucionária – ela precisa apenas ser definida como uma chance específica, ou seja, como chance de uma solução inteiramente nova em face de uma tarefa inteiramente nova. Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária própria de cada instante histórico se confirma a partir da situação política. (BENJAMIN apud LÖWY, 2010, p.134). 46

Glauber, aproximando-se do caráter alegórico, como proposto em Origem do drama barroco alemão, coloca o povo que evidencia, os vitimados, com o mesmo sentimento que apresenta Paulo Martins. Assim, há uma representação crua de um povo assujeitado pelo poder, que representa o transe da terra e suas questões sociais, denotando que o populismo funciona como uma armadilha para o povo, que é incitado a falar, mas acaba reprimido de modo cruel. Há, portanto, na cena emblemática, quando Paulo Martins tapa a boca de Jerônimo, a constatação de dependência e servidão da personagem e do encorajamento seguido de repressão brutal, recorte que, como aponta Xavier, “[...] traz a lição gráfica sobre a farsa democrática encenada pelos líderes de Eldorado. O espaço da participação é aquele definido pelos donos do poder que têm no populismo o grande teatro de aparente

46 Com base nisso, Benjamin, diante do impacto do acordo germano-soviético de 1939, entre Hitler e Stalin, conduz, segundo Giorgio Agamben, “[…] sua lúcida crítica das causas que levaram à catástrofe as esquerdas europeias no primeiro pós-guerra. O tempo messiânico do hebraísmo, 'no qual cada segundo era a pequena porta pela qual podia entrar o messias', torna-se assim o modelo para uma concepção da história 'que evite toda a cumplicidade com aquela a qual os políticos continuam a ater-se'.” (AGAMBEN, 2008, p.125). Assim sendo, a instauração da sociedade sem classes, esperada por Benjamin como a um messias, acabaria com o poder da lógica da história e, por meio da justiça, instauraria um novo tempo, pois, como o filósofo também aponta na tese 17a, “[...] a sociedade sem classes não é a meta final do progresso na história, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada.” (BENJAMIN apud LÖWY, 2010, p.134). 90

inclusão do povo na esfera da política, e sua real exclusão.” (XAVIER, 2012, p.97). A agressão, elitista em seu cerne, cometida pelo poeta, assombra o espectador e lembra-nos o estado de exceção benjaminiano porque, como explana Reyes Mate, em Meia noite na história, “agora como ontem, de fato é verdade que, para os oprimidos, o estado de exceção é uma situação permanente.” (MATE, 2011, p.11), como também vemos no momento em que um homem do povo pede licença e declara: “Eu vou falar agora. Eu vou falar. Com a licença dos doutores. Seu Jerônimo faz a política da gente, mas seu Jerônimo não é o povo. O povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar.”, ao passo que recebe gritos de “extremista! extremista! extremista!” e é morto em seguida numa condição de miséria que não comporta o direito de expressão; de cobrança de política pública, pois

[...] o homem que se destacou da multidão para desfazer o teatro é punido exemplarmente, morto no ato, com toda a carga simbólica dos xingamentos de subversivo e por meio de uma montagem cênica de ‘teatro de agressão’: um segurança o amarra e lhe enfia o revólver boca adentro, o padre cobre o seu rosto com o crucifixo enquanto ouvimos tiros de canhão. (XAVIER, 2012, p.97).

Nesse contexto, Benjamin se dirige ao passado para resgatar os esquecidos e/ou aqueles que foram silenciados, como nas cenas descritas de Terra em transe, por considerar que na história nenhum fato deveria ser considerado perdido, conceituação que dialoga com Gayatri Chakravorty Spivak, a partir do questionamento-título expresso em Pode o subalterno falar? 47 Afinal, todo sujeito subordinado ao Estado e à precariedade monetária pode, de fato, falar? A autora, além de considerar que o subalterno, definitivamente, é aquele que não pode ser ouvido, salienta que posição pior que o do subalterno é o da subalterna, tendo em conta que se o homem, no contexto social que temos, não

47 No entanto, como nos aponta Sandra Almeida, no prefácio da obra de Spivak, nem todo marginalizado é de fato um subalterno sem direito à fala, pois “[...] o termo deve ser resgatado, retomando o significado que Gramsci lhe atribui ao se referir ao 'proletariado', ou seja, àquele cuja voz não pode ser ouvida.” (ALMEIDA, 2010, p.12). 91

encontra meio de fala, a subalterna encontra-se na plena obscuridade. Assim, os fragmentos benjaminianos contidos em Sobre o conceito de história são, segundo Mate, “[...] a armação teórica com que se pode interpretar de maneira nova a história e, portanto, seu tempo e o nosso.” (MATE, 2011, p.19-20) e, desse modo, percebe-se que, em contraposição ao método aditivo de postura historicista, Benjamin defende o método construtivo do historiador materialista em que “[...] o pensamento não só funciona movendo-se do efeito para a causa, do particular para o geral, do conhecido para o desconhecido e, sobretudo, como conquista do futuro.” (MATE, 2011, p.343). O processo consiste numa postura consciente de saída da órbita interpretativa em que um fato está inserido, assim como ocorre em Terra em transe, em que há uma espécie de pedagogia revolucionária, mas de visão e metodologia dialéticas, onde não há uma solução pronta para as mazelas de Eldorado, sendo a tomada de consciência dos espectadores a possível solução na tela e fora dela. Portanto, a denúncia glauberiana de nossa história encontra paralelo na tese 17, como ideologia dos vencedores, em nome da universalidade do marginal por meio de uma teoria, inspirada na monadologia de Leibniz, “[...] que explica a transformação que um acontecimento passado deve sofrer para converter-se em princípio construtivo da realidade presente [...]” (MATE, 2011, p.354), cujo objeto da memória não é um passado morto, mas uma semente prenhe de possibilidades, como define Benjamin, em que o cineasta procura por uma experiência poética enviesada, com o poeta tapando a boca do operário e com a morte do homem do povo, e onde, em certa medida, as quimeras de Paulo Martins são as ilusões de Glauber, tendo em vista que por meio das personagens

[...] e situações que alegorizam a mediação entre cultura popular e a erudita, a tradição e a modernidade, entre o povo e as instâncias políticas de poder, configura-se o artista- intelectual, porque tratar dessa questão é também traçar um retrato, às vezes disfarçado, às vezes mais direto, dessa figura, vale dizer, um auto- retrato, em que se adivinham seus dilemas, seus compromissos, suas traições, seus desejos, sua vida e sua morte, via pessoa interposta, um outro, uma personagem que é figura alegórica. (FONSECA, 2002, p.46).

92

Logo, em função da ideia de que a história está sempre em movimento, fundamental nas teses benjaminianas, é preciso compreender as referências tropicalistas alegoricamente tendo em conta que as gerações vindouras dialogam com as gerações passadas e o presente brota dos indícios e atos do pretérito. Diante disso, o próprio filósofo em seu presente, nos anos 30, retomando o passado e de olho no futuro, efetuou o mesmo gesto suicida da personagem controversa de Glauber, selando com sua morte “[...] o papel que havia atribuído a si mesmo, ou seja, o 'daquele que toca o alarme de incêndio' [...].” (MATE, 2011, p.09) e evidenciando o que talvez seja o elo mais considerável entre as teses e a narrativa fílmica, mesmo que distantes temporalmente e contextualmente, a atualidade a-contemporânea delas, pois elas retomam “[...] algo muito próximo, mas trazido de longe ou do passado: de raízes profundas que nutrem a substância das coisas.” (MATE, 2011, p.10), demonstrando que, quer se trate de passado ou futuro, se faz necessária uma postura ética, social e política em relação às vítimas oprimidas pelo poder e pela história de cunho historicista. Mencionando a história nacional, a Primeira missa no Brasil, pintura de 1971 de Glauco Rodrigues, também pode ser considerada um exemplo alegórico realizado no período pós-tropicalista. Parodiando as obras homônimas, de Vitor Meirelles e de Candido Portinari, telas de 1861 e 1948, respectivamente, o quadro representa, como pressupõe seu título, a missa celebrada após a chegada da frota portuguesa liderada por Pedro Álvares Cabral no século XVI, por meio da descrição presente na carta de Pero Vaz Caminha ao rei Dom Manuel I. Desse modo, Rodrigues polemiza ao propor essa releitura, que alude, principalmente, ao quadro de Meirelles e ao retrato do encontro entre o civilizado e o não civilizado; o moderno e o arcaico, mas também enfatiza a domesticação dos autóctones e o catolicismo imposto. 48

48 Em 2019, a escola de samba Estação Primeira de Mangueira apresentou o samba-enredo História pra ninar gente grande, composto por Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, para propor que a história brasileira não seja contada eternamente através do olhar europeu; pela narrativa oficial que menospreza os verdadeiros atores nacionais:

[...] Brasil, meu nego, Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar 93

Figura 4 − Primeira missa no Brasil

A estrutura do quadro prévio é preservada pelo artista, mas a obra pós-tropicalista destaca-se pela colocação de diversas figuras anacrônicas à cena original, como um banhista usando óculos escuros, sunga e um cocar, que poderia ser entendido como um legítimo frequentador atual das praias do país, exceto pelo uso do adorno

Na luta é que a gente se encontra Brasil, meu dengo, A Mangueira chegou Com os versos que o livro apagou Desde 1500 Tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato

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indígena; um casal de mestre-sala e porta-bandeira, personagens do carnaval brasileiro, uma iaô do candomblé e índios alheios à cerimônia religiosa, que parecem negar a perversa catequização estabelecida pelos jesuítas. Nesse contexto, no campo das canções, uma das letras mais alegóricas é Tropicália de Caetano, faixa integrante do álbum Caetano Veloso de 1968, mas que bem poderia pertencer ao disco coletivo Tropicália ou panis et circencis, lançado no mesmo ano. Além disso, dentre os nichos artísticos do momento tropicalista, a faceta musical se constitui como a mais alegórica, sempre acompanhada de performances e referências contraculturais, mesmo com a tensão da repressão crescente; com doses de melancolia, mas também de alegria numa espécie de revitalização alegórica, tal como concebida por Benjamin, em que, por via torta ou não, o estado ditatorial e a censura afloraram uma constelação, experiências e obras, num exemplo referencial para o contemporâneo do ponto de vista estético e também político. Destarte, para Augusto de Campos, além de pop, a canção de Caetano se configurava como um poema joco-sério ambientado por paródias, citações, colagens e contraposições de elementos díspares como o campo e a cidade, o primitivo e o civilizado, a palhoça e a bossa e uma acumulação de elementos eivados de associações, que remontam à bricolage de Claude Lévi-Strauss, promovendo um inventário de resíduos, e de modo criativo agenciam uma aglutinação de referenciais como Brasília, marco da arquitetura nacional; nascida sob o lema Venturis ventis e declarada patrimônio da humanidade pela Unesco em 1987:

Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões Meu nariz Eu organizo o movimento Eu oriento o carnaval Eu inauguro o monumento No planalto central Do país

Inaugurada em 1960, por meio do projeto político de Juscelino Kubitschek e a partir dos traçados de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, 95

Brasília se tornou um exemplo de modernismo racionalista, como define Mario Cámara, em Corpos pagãos: uso e figurações na cultura brasileira (1960-1980). Nascia predestinada ao posto de capital federal do país e como marco do desenvolvimento econômico e industrial, oriundo do mote 50 anos em 5, mas tornar-se-ia, estrategicamente, quartel general para o governo militar que se instalaria na esteira dos acontecimentos políticos advindos em sequência. De tal modo, Tropicália49, nome-monumento, ora entusiasta e ora irônica, acena de modo alegórico, benjaminiano, à cidade moderna, construída do zero no cerrado brasileiro, expondo o fracasso da almejada modernidade em contraponto com a ascensão do autoritarismo militar porque, como observa Carlos Basualdo, no texto Vanguarda, cultura popular e indústria cultural no Brasil,

[...] a capital supermoderna, cidade-modelo escultoricamente imposta à aridez da paisagem do Planalto Central, havia deixado de ser uma miragem construtiva atualizada pelo ímpeto desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek, para transformar-se no ameaçador centro de comando de uma opressiva ditadura militar. A ilusão de transparência própria da modernidade havia se tornado, no Brasil, subitamente opaca. (BASUALDO, 2007, p.18).

Mítica em elo com Brasília, a canção aponta para o monumento utópico de progresso, como na crônica Brasília de Clarice Lispector, contida em Para não esquecer, ao fazer alusão à invasão que a cidade sofreria na tomada de assalto pelos tiranos do pós-64 e que causaria um profundo sentimento de terra arrasada já que a cidade “foi construída sem lugar para ratos. [...] Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete invisível nos jornais. – A construção de Brasília: a de um Estado totalitário.” (LISPECTOR, 1999, p.41-2), que metamorfoseava o sonho moderno, democrático e agregador de Kubitschek, Niemeyer e Costa em realidade autoritária, evidenciando-

49 Em 2016, a canção de Caetano foi regravada em parceria com a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, com músicos da comunidade homônina da cidade de São Paulo, para tornar-se tema de abertura de Velho Chico, novela global de Benedito Ruy Barbosa e Edmara Barbosa. 96

nos que, na ordem profanatória da era tropicalista, o emprego alegórico tornava-se base de sua exegese.

97

2. Geleia geral brasileira

[...] na geleia geral brasileira, a repressão é um fenômeno muito mais amplo do que geralmente se vê. Torquato Neto em Torquatália III

Marco alegórico do momento tropicalista, o disco coletivo Tropicália ou panis et circencis apresenta forte caráter religioso, embora profano, a ponto de iniciar e terminar com orações como num eterno continuum. A primeira canção, Miserere nobis, de Gil e Capinan, solicita as preces do ouvinte: Miserere nobis/ Ora, ora, pro nobis (Tende piedade de nós/Rezem, rezem, para nós) e a última faixa, Hino do Senhor do Bonfim, canção de João Antônio Wanderley e Arthur Salles, interpretada por Caetano, Gil, Gal Costa e Os Mutantes (Rita Lee e os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista), numa devoração do catolicismo europeu funde-se aos tambores do candomblé num relicário afro-brasileiro sincrético que pede aos céus ao fim da canção: Nessa sagrada colina/ Mansão da misericórdia/ Dá-nos a graça divina/ Da justiça e da Concórdia! Em função disso, Hermano Vianna aponta que parte da crítica e do público encara com estranheza o fato de o disco- manifesto começar e findar com cunho religioso, entretanto, segundo ele,

nada me parece tão estranho assim. Se, como afirmou Caetano Veloso no seu livro Verdade tropical, os tropicalistas buscavam ‘pôr as entranhas do Brasil para fora’, é até coerente que a cirurgia tenha início com uma reza, enfrentando o espírito católico que ocupa local de tanto destaque e centralidade em nossa identidade nacional [...]. (VIANNA, 2010, p.16).

Talvez por esse motivo, a proeminência do catolicismo na identidade brasileira, haja a proposital e provocativa exaltação do sincretismo em Hino do Senhor do Bonfim, que é, como aponta Jorge Mautner, “[...] nas palavras de José Bonifácio de Andrada e Silva, a 98

Amálgama.” (MAUTNER, 2010, p.114). Afinal, por que esse hino, de Wanderley e Salles, estaria no disco coletivo da Tropicália? Mautner responde enfática e elucidativamente: “[...] porque foi na Bahia onde tudo começou e onde a essência dessa Amálgama foi forjada.” (MAUTNER, 2010, p.114). Porém, o álbum coletivo, de voz grupal, não contou com a participação apenas de baianos, nele irmanaram-se Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, José Carlos Capinan, mas também Os Mutantes, Rogério Duprat, Nara Leão e Torquato, autor da ideia de feitura do disco.

Figura 5 − Tropicália ou panis et circencis

Primeiro disco conceitual do Brasil, gravado no sintomático maio de 68, o álbum integrava às letras os arranjos de Rogério Duprat, a produção de Manoel Barenbein e um roteiro de cinema na anticapa. O texto, escrito por Caetano, satirizava, situando a Tropicália como um 99

fenômeno de popularidade e mídia. Na cena inicial, cena 3 descontinuada, personalidades (Moisés, Charles Starret, Átila, rei dos hunos, Joan Crawford, Anne Frank e Roberto Campos) dizem em coro: “O Brasil é o país do futuro”. Ao passo que Caetano responde com ironia: “Esse gênero está caindo de moda”; Capinan surge pra retrucar: “nem ideologia, nem futuro” e Tom Zé, lendo a revista Noigrandes, faz uma clara saudação aos poetas concretos. No entanto, na sequência 5, cena 10, há um tributo ainda mais límpido. Tendo New Jersey como cenário, onde João Gilberto morava na época de produção do disco, percebemos: “INTERIOR, DIA. SALA DE UMA CASA EM NEW JERSEY. PLANO AMERICANO. CÂMERA IMÓVEL. JOÃO GILBERTO E AUGUSTO DE CAMPOS SENTADOS. AUGUSTO – E o que é que eu digo a eles? JOÃO – Diga que eu estou daqui olhando pra eles”. Citar João Gilberto, além de homenagem, era uma forma de registrar o apreço dos tropicalistas pela Bossa Nova e o aval que recebiam do músico, pois o fato narrado era verídico, no âmbito de um texto claramente ficcional, como o próprio Augusto de Campos descreve em Balanço da Bossa e outras bossas, e marca, de certa forma, a continuidade da evolução da música brasileira de que falara Caetano. Atento a isso, o fato de os tropicalistas terem sido diretamente impactados na juventude pelo surgimento bossanovista e, em particular, pelo trabalho de João Gilberto, cujo álbum Chega de Saudade adquirira ares de epifania para um expressivo número de músicos, não só brasileiros. Essa referência, com ares de reverência, era apontada à época por Augusto de Campos para ilustrar que o artista baiano não havia apenas marcado a cultura brasileira por sua peculiar e inovadora batida de violão, mas também que

a lição de João – desafinando o coro dos contentes do seu tempo – é o desafio aos códigos de convenções musicais e a colocação da música popular nacional não em termos de matéria-bruta ou matéria-prima (‘macumba para turistas’, na expressão de Oswald de Andrade) mas como manifestação antropofágica, deglutidora e criadora da inteligência latino-americana. (CAMPOS, 2008, p.285).50

50 Se referindo ao modo como a abordagem tropicalista enxergava o mundo, Glauber Rocha menciona, em Tropicalismo, antropologia, mito, ideograma, 100

Em virtude disso, Caetano Veloso, no capítulo Antropofagia de Verdade tropical, afirma que antes de ter conhecido efetivamente a obra de Oswald, João Gilberto era seu grande exemplo antropofágico porque ao produzir música popular de modo sofisticado num país bastante subdesenvolvido, João partia de uma verdadeira deglutição de referenciais culturais. Como homenagem, Caetano compôs a canção A Bossa Nova é foda, faixa do disco Abraçaço de 2012, em que se refere ao mestre como bruxo de Juazeiro e à Bossa Nova como uma marca definitiva na cultura brasileira:

[...] Lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação Pura-Invenção/ Dança-da-moda. A Bossa Nova é foda. [...] A nossa vida nunca mais será igual Samba-de-roda, neo-carnaval, Rio São Francisco, Rio de Janeiro, Canavial. A Bossa Nova é foda.

Assim, o grupo baiano, que migraria pra São Paulo na era dos festivais, no qual se inclui Torquato mesmo que o poeta não fosse baiano de fato, nos proporcionou um cenário de cultura de vanguarda quando esses artistas fundem seus referenciais nordestinos, de rica expressão afro-brasileira, com São Paulo, a maior e mais industrializada cidade do país. A engenhosa combinação dos aspectos culturais dos estados da Bahia e de São Paulo, que Waly Salomão define como “[...] affair anarcoíris Bahia/Sampa.” (SALOMÃO, 2005, p.36), resultaria em uma peculiar expressão artística que tornaria a Tropicália a nossa pororoca cultural, como na definição de Paulo Leminski, associando-a ao misto de virulência e beleza própria desse fenômeno, que significa estrondo em tupi. Torquato, inclusive, um tropicalista arrebatado pela Poesia Concreta, uma perfeita tradução de São Paulo, se tornou um propagador cultural dessa proeza natural. De tal modo, a metáfora fluvial empregada pelo poeta curitibano torna-se ímpar para caracterizar esse choque entre águas de correntes opostas, formalismo concreto e texto de Revolução do Cinema Novo, que “o surrealismo para os povos latino- americanos é o tropicalismo.” (ROCHA, 2004, p.153). 101

experimentação tropicalista, mas que atreladas formam um relevante espetáculo, conforme abaliza em Paulo Leminski desconta tudo, entrevista publicada originalmente no jornal GAM de 1976, mas também publicado em Envie meu dicionário:

[...] Chamei de ‘pororoca’, num artigo, ao encontro entre a poesia concreta paulista e a tropicália baiana. Para mim, esse encontro é o mais importante acontecimento da cultura brasileira, dos últimos dez anos. A poesia concreta é cartesiana. A tropicália é brasileira. O atrito entre essas duas realidades revelou-se riquíssimo. O encontro do mar com o rio, Amazonas versus Atlântico. (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p.206-7).

Entretanto, antes da chegada dos artistas ao sudeste, a Bahia apresentava um panorama instigante, ao passo que o Estado, especialmente a capital, ia se modernizando e estabelecendo um cenário cultural que girava com intensidade em torno da Universidade da Bahia, atual Universidade Federal da Bahia, fundada nos anos 40 sob a batuta do reitor Edgar Santos, tendo papel fundamental na educação e na cultura da região num grato fenômeno que Antônio Risério denominou de avant-garde na Bahia. Através do visionário reitor, vários intelectuais e artistas europeus atuaram nos cursos de Graduação em Ciências Humanas (Música, Artes Cênicas, Dança e Artes Plásticas).51 Da mesma forma, além do notável reitorado de Edgar, também tivemos a contribuição do filósofo Agostinho da Silva ao iniciar no país um projeto para criar universidades públicas que tivessem cursos de artes e, desse modo, foram criadas a referida UFBA, a UFPB, a UFSC e a UnB, num projeto em parceria com os educadores Darcy Ribeiro e Anísio

51 Diversos nomes que, posteriormente, se tornariam muito conhecidos em suas áreas de atuação passaram pelos cursos da universidade baiana como, por exemplo, Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro, Helena Ignez e também os tropicalistas Caetano, Gil e Tom Zé, aluno de Hans Joachim Koellreutter e na Graduação em Música. 102

Teixeira,52 porém, como se podia prever, esse importante plano de concepção universitária seria interrompido em 1964 pelos militares. 53 A porção baiana era inconteste na pororoca cultural, mas, ao contrário de Leminski e de Waly Salomão, que acreditavam nesse conceito entre Bahia e São Paulo, Glauber Rocha apontara em Xyka da Sylva que esse fenômeno se dava entre a Bahia e o Rio de Janeiro, pois, para o cineasta, a fusão baiana com a capital do estado fluminense originara o Cinema Novo e também a Tropicália: “O encontro da cultura baiana com a cultura carioca – raízes do cinema novo e do tropicalismo.” (ROCHA, 2004, p.351). Rogério Duarte partilhara da mesma ideia ao considerar que “no Rio de Janeiro ocorre o momento de encontro, é lá que surge o movimento. O movimento pode ter sido urdido a nível uterino na Bahia, mas o parto é carioca. Lá é que tem a maternidade e a tecnologia para poder extrair esse rebento.” (DUARTE, 2003, p.147). De todo modo, de origem paulistana ou carioca, a composição cultural com a Bahia encontrou expressão em variados campos tornando o momento tropicalista um polo de inovação artística durante um período de conflitos culturais, políticos e sociais que resultam numa dobra, como em Miserere nobis, canção de Gil e Capinan, dos versos já não somos como na chegada/ Calados e magros, esperando o jantar, em referência à saída do Nordeste em meados dos anos 60. Sem dúvida, a era tropicalista aconteceu em variados meios artísticos, mas a música atingiu maior popularidade, abrangência e consumo, sobretudo, por seu caráter midiático; de deglutição imediata. Embora a Tropicália não estivesse propondo um novo gênero, apenas indicava a colagem de estilos numa fusão entre elementos novos e antigos, nacionais e estrangeiros, de certa maneira, a sua faceta musical podia ser lida como uma releitura da música brasileira de tradição à luz da experimentação vanguardista e dos elementos do pop internacional.

52 Tio de Rogério Duarte, Anísio foi encontrado morto em 1971 em circunstâncias suspeitas. Acredita-se que tenha sido assassinado pela repressão ditatorial. 53 A trajetória de Agostinho no Brasil e no mundo pode ser vista no documentário Agostinho da Silva – um pensamento vivo. Ademais, é lastimoso pensar como os cursos de humanas eram desprestigiados no Brasil, fato evidenciado pelo dado de que a primeira universidade brasileira (antes só tínhamos faculdades no país) foi a Universidade Federal do Paraná, fundada em 1912 sob o lema ciência e trabalho. A UFSC, projeto em que estava Agostinho, nasceu com o lema arte e ciência, no entanto, o curso de Cinema, primeiro curso superior artístico da instituição, fora iniciado apenas em 2005. 103

Muito em função disso, em É proibido proibir os baianos, Augusto de Campos enfatizava, à época, a metalinguagem musical utilizada pelos artistas num uso crítico,

[...] através da qual estão passando em revista tudo o que se produziu musicalmente no Brasil e no mundo, para criarem conscientemente o novo, em primeira mão. Por isso seus discos são uma antiantologia de imprevistos, onde tudo pode acontecer e o ouvinte vai, de choque em choque, redescobrindo tudo e reaprendendo a ‘ouvir com ouvidos livres’ tal como Oswald de Andrade proclamava em seus manifestos: ver com olhos livres’. (CAMPOS, 2008, p.261-2).

Além disso, foram os tropicalistas os responsáveis por romper as barreiras elitistas que havia entre a música erudita e a música popular, conseguindo desmantelar as separações entre alta e baixa cultura por meio de hibridismo cultural e pela capacidade de aglutinação artística numa disponibilidade para o novo, que possibilitava o trânsito com o erudito de vanguarda, através da figura do maestro Rogério Duprat, aluno de Karlheinz Stockhausen e responsável pelas inovações sonoras, psicodélicas e experimentais contidas nos álbuns tropicalistas, juntamente com o produtor musical Manoel Barenbein, caráter que expõe que a cultura, como avalia Raúl Antelo, “[...] não só integra hábitos e práticas dissímeis; ela não cessa de produzir valores heterogêneos, indigestos e de árdua absorção.” (ANTELO, 2001, p.271). Sendo assim, essa reunião resultou em uma música de produção, mas também de consumo ou de “produssumo”, como na definição de Décio Pignatari, cuja raiz era a inegável postura oswaldiana, como atenta Campos, ao considerar que o antropófago indigesto para os conservadores explodira “[...] a bomba de suas ideias revolucionárias no consumo, pela voz de Caetano e dos baianos. ‘A massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico’, previa Oswald, quando os stalinistas de sua época o acusavam de não ser entendido pelo ‘povo’.” (CAMPOS, 2008, p.263). 54

54 O crítico também considera que Oswald tinha inimigos similares aos que os tropicalistas viriam a ter no fim dos anos 60: “[...] os conservadores, os stalinistas e os nacionalóides, que, no caso da música, costumo designar por duas siglas expressivas: T.F.M. e C.C.C. (Tradicional Família Musical e 104

Dessa maneira, a Tropicália efetuou em definitivo a síntese entre a música e a poesia que vinha sendo feita desde o Modernismo e, como aponta Favaretto, a canção tropicalista passou a integrar recursos não musicais: “[...] basicamente a mise en scène e efeitos eletrônicos (microfone, alto-fidelidade, diversidade de canais de gravação, sonoridades estranhas) que ampliavam as possibilidades do arranjo, vocalização e apresentação.” (FAVARETTO, 2007, p.33-4) e o uso desses subsídios enfatizava o humor, o kitsch e o efeito cafona produzindo impactos nas alegorias cujos elementos enalteciam

[...] o corpo na canção, remetendo-a ao reencontro com a dimensão ritual da música, exaltando o que de afeto nela existe. Corpo, voz, roupa, letra, dança e música tornaram-se códigos, assimilados na canção tropicalista, cuja introdução foi tão eficaz no Brasil que se tornou uma matriz de criação para os compositores que surgiram a partir dessa época. (FAVARETTO, 2007, p.35).

E isso se deve, em alguma medida, ao fato de que a Tropicália promovia alianças; “tropicalianças”, como define Augusto de Campos, em Balanço da Bossa e outras bossas, título que se aproveita da polissemia do vocábulo balanço, que se refere ao gingado; ao movimento de vai e vem; à cadência da música, mas também se evidencia como um termo contábil que pressume perdas e ganhos numa espécie de levantamento do que ocorreu em determinado lugar e/ou espaço da música brasileira, nesse caso, da Bossa Nova e da Tropicália. Por outro lado, Hermano Vianna, no texto Políticas da Tropicália, enfatiza a visão comercial que havia na cena tropicalista ao promover fusões, aparentemente, esdrúxulas entre o cafona e o erudito, tendo em conta que no âmago tropicalista se

[...] misturava tudo que podia ser vendido, mesmo

Comando Caça Caetano). Osso atravessado na garganta da literatura brasileira, Oswald, como os compositores da Revolucionária Família Baiana, incomodava e incomoda.” (CAMPOS, 2008, p.263).

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aquilo que parecia anticomercial. Em 1968, no artigo ‘Viva a Bahia-Iá-Iá, Augusto de Campos [...] já apontava na invenção tropicalista tudo aquilo que hoje deslumbra os jornalistas e músicos internacionais: as estratégias de montagem e justaposição; a presença da música aleatória e concreta; o parentesco com a arte pop e com a bricolage de Lévi-Strauss. (VIANNA, 2007, p.137).

O antropólogo ainda observa que o método utilizado pelos tropicalistas nos anos 60, especialmente no campo musical, o da montagem e justaposição, era a utilização da técnica que hoje, mais de 50 anos depois, conhecemos como sampleamento e que, indiscutivelmente, lembra-nos o excerto do Manifesto antropófago em que Oswald sentencia: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” (ANDRADE, 1972, p.13). Entrosamento que possibilitaria aos mais antenados, contemporaneamente, a percepção e a compreensão do motivo pelo qual o então ministro Gilberto Gil se tornaria o primeiro compositor a empregar uma licença da Creative Commons, organização sem fins lucrativos, defensora do princípio de copyright transigente para a criação artística,

[...] que autoriza que uma obra seja sampleada e compartilhada digitalmente por outros músicos, inclusive para fins comerciais. Gil sabe que sempre sampleou, desde o início de sua carreira, quando não havia essa ferramenta digital chamada sampler, e reconhece que esse uso da música alheia foi fundamental para o surgimento do tropicalismo. O ministro queria relançar, sob a licença da Creative Commons, três de seus maiores sucessos −, ‘Refazenda’, ‘Refavela’ e ‘Realce’ −, que incluem no próprio título o prefixo ‘re’ e o elogio da recriação. Mas foi impedido de fazer isso pela Warner, que detém os direitos sobre os registros fonográficos dessas músicas. Diante dessa negativa, relicenciou uma canção lançada por sua própria editora, chamada Oslodum, que elogia as apropriações que as criações da cultura brasileira podem ter pelo mundo afora. 106

(VIANNA, 2007, p.139-141).

Portanto, a Tropicália, assim como a organização californiana, não pregava o lema todos os direitos reservados, ao contrário, abarcava criadores de conteúdo que ambicionavam que as propriedades intelectuais e artísticas fossem compartilhadas. Sendo assim, soa(va) improdutivo tratar do momento tropicalista sem demonstrar as relações com o mercado, inclusive a postura dos artistas frente a esse comércio, e como esse dado moldava seus construtos artísticos, pois, esse assunto, como observa Favaretto, “[...] era na ocasião um barômetro quanto à discussão das questões da participação ou da alienação dos artistas. Muitas vezes eles foram, exatamente, cunhados de alienados porque estariam fazendo o jogo do mercado.” (FAVARETTO, 2000, p.126), o que faria com que Gil, muito em função das críticas recebidas, lançasse Essa é pra tocar no rádio, canção do disco Refazenda de 1975, assumindo a clara intenção de aproximação com o comércio cultural de modo direto, sem tabus:

Essa é pra tocar no rádio Essa é pra tocar no rádio Essa é pra vencer o tédio Quando pintar Essa é um santo remédio Pro mau humor Essa é pro chofer de táxi Não cochilar Essa é pro querido ouvinte Do interior

Em relação ao fato de os tropicalistas se unirem com o comércio cultural ou estarem em evidência por meio dele, Torquato é enfático ao considerar que a oposição engajamento versus alienação era uma questão superada porque, como ele evidencia no áudio de 68,

[...] música é pra vender e é batata, não adianta, disco é feito pra vender, então tem que vender, senão não presta. Eu acho que esse negócio de 107

música engajada, sei lá, tem bem uns três anos que eu não penso em discutir isso, não gosto nem de falar; quem quiser que entenda o que a gente diz. Eu acho tudo muito simples, mas as pessoas complicam um tanto, né? ‘Caminhando e cantando e seguindo a canção’, seguindo mesmo; a canção lá na frente e eles atrás, a léguas de distância, anos de distância. Esse tipo de trabalho acho que realmente não me interessa nem um pouco. (NETO, 1968).

Inicialmente, além de letrista, Torquato era crítico musical na coluna intitulada Música popular, publicada no Jornal dos Sports entre março e setembro de 1967, e se mostrava ácido nos artigos, especialmente quando a pauta era o estilo da Jovem Guarda, ao apontar a pobreza estética das canções do iê-iê-iê como extensão da música estadunidense. Nesse primeiro momento, o estilo dos companheiros de Roberto Carlos era associado à alienação necessária para a perpetuação da ditadura civil-militar. Para o poeta, a massa de manobra, ouvinte de ritmos não politizados, endossava direta e indiretamente o Estado antidemocrático. No entanto, essa postura cerrada modifica-se nos meses subsequentes, a partir do diálogo com outros artistas, sobretudo com Rogério Duarte, Caetano e Gil, e da aposta e ênfase tropicalista na diversidade e no reconhecimento dos gêneros musicais sem distinção ou hierarquia. Por outro lado, a atmosfera de discussão contestatória existente entre a aparente oposição entre a Jovem Guarda com seus elementos do rock internacional e a música de raiz, nacionalista, despertou nos baianos o desejo de lançar mão do “som universal”,55 também referido

55 O “som universal” tropicalista levava em conta, como salienta Rogério Duarte, que havia no Brasil uma hierarquização mesquinha da arte “[...] onde se falava de música popular e música artística como dois elementos quase que opostos e a grande força do Tropicalismo foi assumir essa contradição que já se encontrava em toda a arte nacional. Em Villa-Lobos vemos isso claramente, sua música não é composta nos moldes clássicos europeus de um tema versus contratema. Não! Ele mescla centenas de temas numa espécie de carnaval alucinado e barroco que é uma das principais características no tropicalismo, essa contribuição milionária de todos os erros, o abandono de um critério acadêmico e conservador de bom gosto e mau gosto. [...] O mau gosto entra na estética e abole com o frio e branco bom-gostismo predominante, e isso gera uma revolução.” (DUARTE, 2003, p.146-7). 108

como “som livre” por certo tempo, definição da música que faziam naquele momento embrionário, que nasceria deglutindo tudo e todos, inclusive a famigerada Jovem Guarda, como veríamos em Baby, canção de Caetano, que mencionava ser necessário conhecer as canções do artista capixaba e estudar inglês para familializar-se com mais um item aglutinante, o estrangeiro:

[...] Você Precisa tomar um sorvete Na lanchonete, andar com a gente Me ver de perto Ouvir Aquela canção do Roberto [...] Você Precisa aprender inglês Precisa aprender o que eu sei E o que eu não sei mais E o que eu não sei mais

Alegria, Alegria e Tropicália de Caetano e Domingo no parque de Gil, canções que se tornaram extremamente conhecidas, precederam o momento tropicalista feito em coletivo. Ao contrário dessas canções, as faixas de Tropicália ou panis et circencis foram compostas com o objetivo de alimentar o projeto estético tropicalista em um disco único; pensado à luz da mercadoria e, consequentemente, na renovação artística e na necessidade de se reinventar em função da lógica de consumo, como salienta Gonzalo Aguilar, em Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista, ao referir que “a contradição entre obra de arte e mercadoria remonta, pelo menos, ao século XIX, mas no tropicalismo adquiriu um significado específico: o da explosão dos meios em uma sociedade periférica e o do avanço da mercadoria sobre os bens culturais.” (AGUILAR, 2005, p.146-7). Em função disso, os tropicalistas almejavam cunhar suas produções participando do mercado e da mídia e aproveitando-se do potencial político-cultural na era da reprodutibilidade técnica, como no conceito benjaminiano, mas também na época dos festivais, da expansão da televisão, com os programas de auditório, e das potencialidades do disco de vinil, long play, cuja duração superior, se comparada a suportes 109

anteriores, possibilitava o projeto disco (sequência de faixas em uma só unidade) e tudo era pensado para o consumo: a ordem das faixas, a capa do disco e o design do encarte. A capa do álbum-manifesto era debochada e crítica, criada por Rubens Gerchman com foto de Olivier Perroy, parodiando uma imagem familiar burguesa e aludindo à faixa título, Panis et circensis, de Gil e Caetano, grifada com a letra s, diferentemente do título do disco, que se baseia na célebre expressão pão e circo do poeta clássico Juvenal, que também lembra Oswald e “a contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.” (ANDRADE, 1972, p.06) ao registrar panem et circenses ao modo tropicalista.56 Panis et circensis, executada pela banda Os Mutantes, trazia um eu lírico que queria cantar, propagar sua arte iluminada de sol, mas que tropeçava nas pessoas da sala de jantar entretidas na insignificância do curso natural da existência, a vivência entre o nascer e o morrer:57

Eu quis cantar Minha canção iluminada de sol Soltei os panos, sobre os mastros no ar Soltei os tigres e os leões, nos quintais Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer

Além de soltar as feras nos bucólicos quintais das casas de família, o eu lírico apela para a passionalidade como forma de atrair a atenção frente à inércia da família tradicional brasileira:

[...] Mandei fazer De puro aço, luminoso um punhal Para matar o meu amor, e matei

56 A capa também consistia numa alusão ao disco Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band dos Beatles. 57 A relação entre nascer e morrer aparecera, anteriormente, em It’s alright, ma (I’m only bleeding), canção do álbum Bringing it all back home de 1965, de Bob Dylan: […] that he not busy being born is busy dying.

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Às cinco horas na Avenida Central Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer

No entanto, como observa Noemi Jaffe, não podemos indagar o motivo pelo qual o amor teria sido morto descritivamente às cinco horas na Avenida Central

[...] porque o que conta aqui é justamente o descontrole, o processo claro de inversão, de avessamento, de começar o jantar pelo meio, de dispensar as cerimônias de nascer e de morrer e errar o rumo dado, o que, no caso, é viver, o gesto livre e propenso ao erro, que costuma acontecer entre o nascimento e a morte. (JAFFE, 2010, p.34).

Do mesmo modo, a canção é progressista ao mencionar o plantio de maconha, por meio dos versos Mandei plantar/ Folhas de sonho no jardim do Solar, provável referência ao famoso Solar da Fossa, pensão carioca que abrigou inúmeros moradores que se tornariam artistas consagrados como, por exemplo, Paulinho da Viola, Tim Maia, Naná Vasconcelos, Leminski, Duda Machado e inclusive Caetano, e também ao metaforizar, via plantas, a necessidade de luz, de encontrar um caminho nessa casa retrógrada, de famílias conservadoras e de um país assombrado e às escuras, que de modo alegórico, segundo Gonzalo Aguilar, expõe “[...] os ossos de um esqueleto. Ou em uma interpretação mais social, é cadáver no armário de uma burguesia repressiva e reprimida [...].” (AGUILAR, 2005, p.144):

[...] Mandei plantar Folhas de sonho no jardim do Solar As folhas sabem procurar pelo sol E as raízes procurar, procurar Mas as pessoas da sala de jantar Essas pessoas da sala de jantar São as pessoas da sala de jantar 111

Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer

Geleia geral, composição torquatiana em parceria com Gil, uma das duas letras do poeta piauiense presentes no disco-manifesto, teve o título inspirado numa frase-resposta de Décio Pignatari numa discussão com Cassiano Ricardo. No debate, o escritor sugeriu que os poetas concretos precisariam diminuir seu posicionamento inflexível em relação à experimentação formal na revista Invenção, ao passo que o poeta teria proferido: “na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso!”. Com base nisso, Torquato se apropriaria de parte da expressão de Pignatari para batizar a coluna que teria no jornal Última Hora e também a canção em questão, que se articula, como um manifesto, numa espécie de matriz tropicalista ao relacionar imagens que remetem ao processo de modernização do país e figuras do imaginário popular:

Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplandecente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geleia geral brasileira Que o Jornal do Brasil anuncia Ê bumba, iê, iê, boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba, iê, iê, iê É a mesma dança, meu boi

A letra evidencia uma intrigante reunião de elementos, que se assemelha a um desfile de carnaval em que os carros alegóricos e as alas trariam de modo fragmentário temas e recortes múltiplos, a fim de revelar a síntese e, sobretudo, as contradições nacionais. Para tanto, o refrão da canção aglutina o bumba meu boi, dança folclórica popular, que versa sobre a lenda da morte e ressurreição de um boi, típica nas regiões norte e nordeste, e a música estrangeira, o iê-iê-iê oriundo do rock internacional dos anos 50 e 60, fusão aparentemente excêntrica, que leva Torquato a indagar em tom de galhofa, na sequência 5; cena 4 do roteiro da contracapa do disco, “será que o Câmara Cascudo vai 112

pensar que nós estamos querendo dizer que bumba-meu-boi e iêiêiê são a mesma dança?”. Assim, a canção tropicalista desmonta o construto de realidade brasileira e, como aponta Celso Favaretto, em Tropicália, alegoria, alegria,

[...] pela alegorização das inconsistências ideológicas, e pela desmontagem de suas imagens-ruínas colecionadas no imaginário, estilhaça-se o Brasil. A prática que dessacraliza essas imagens coincide com a que critica a canção tradicional: a atividade tropicalista opera, portanto, na linguagem da canção, sem que com isso seja recalcado o político. (FAVARETTO, 2007, p.147-8).

E, desse modo, alude a diferentes referências, como a menção oswaldiana que salta aos olhos, a alegria é a prova dos nove, mas também citações tidas como monumentos de nacionalidade como o Hino à Bandeira bilaquiano e a Canção do exílio de Gonçalves Dias:

[...] “A Alegria é a prova dos nove” A tristeza é teu porto seguro Minha terra é onde o sol é mais limpo E a Mangueira onde o samba é mais puro Tumbadora na selva selvagem Pindorama, país do futuro

Além disso, com ufanismo irônico, as relíquias do Brasil formam um elenco citado em tom declamatório caricatural e, em certa medida, debochado por se considerar que nas salas dos lares brasileiros não se veem as preciosidades nacionais e, tampouco, se mostra como elas são resquícios culturais, políticos e artísticos, figurando como elementos modernos numa colagem de fragmentos, que formam uma espécie de inventário nacional, listadas por meio da carnavalização:

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[...] É a mesma dança na sala No Canecão, na TV E quem não dança não fala Assiste a tudo e se cala Não vê no meio da sala As relíquias do Brasil: Doce mulata malvada Um LP de Sinatra Maracujá, mês de abril Santo barroco baiano Superpoder de paisano Formiplac e céu de anil Três destaques da Portela Carne-seca na janela Alguém que chora por mim Um carnaval de verdade Hospitaleira amizade Brutalidade jardim58

58 Hospitaleira amizade remete à cordialidade brasileira descrita por Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil (1936) e brutalidade jardim pertence ao fragmento 52, intitulado Indiferença, de Memórias sentimentais de João Miramar (1924):

[...] Os poetas de meu país são negros Sob bananeiras As bananeiras de meu país São palmas calmas Braços de abraços desterrados que assobiam E saias engomadas O ring das riquezas Brutalidade jardim Aclimatação [...] (ANDRADE, 2016, p.39-40).

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Dessa maneira, como no Manifesto da poesia Pau-Brasil, onde há “bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau- Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.” (ANDRADE, 1972, p.10), a canção une a floresta e a escola num diálogo entre o universo tropical e o urbano-industrial, a partir do ritmo de embolada e cadência nordestina, em uma justaposição dos termos arcaicos e modernos e entre o folclórico e os elementos da cultura de massa num desejo de carnavalização que torna sincrética a mistura do grotesco, do tragicômico, dos ritmos populares e da música erudita promovendo um legítimo caldeirão antropofágico em que “cafona, a cena tropicalista excita o riso e gera um vazio que provém da corrosão do oficialismo que controla os valores da cultura.” (FAVARETTO, 2007, p.136). Diferente de Tropicália, por exemplo, canção que opõe o arcaico e o moderno de modo crítico e, em certa medida, temeroso, Geleia geral não contém esse tom, ao contrário, é uma canção alegre que propõe a síntese tropicalista, neste caso, evidenciado pelo refrão, ao aglutinar uma dança típica brasileira com um gênero musical internacional:

[...] Plurialva, contente brejeira Miss linda Brasil diz ‘bom dia’ E outra moça também Carolina Da janela examina a folia Salve o lindo pendão dos seus olhos E a saúde que o olhar irradia Ê bumba, iê, iê, boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba, iê, iê, iê É a mesma dança, meu boi

De tal modo, Geleia geral traz uma colagem de itens e expressões, que contempla desde um hino oficial até Carolina, personagem buarqueano de olhos tristes, perpassando a Mangueira e Frank Sinatra, mas sempre reunindo a síntese dos contrários, como denomina Affonso Romano de Sant’Anna, processo que se repetiria também em Batmacumba, canção de Gil e Caetano, que ao invés do uso de macumba para turistas, próprio do nacionalismo xenófobo que 115

Oswald rejeitava, fora concebida pelos baianos para futuristas, como considerou Augusto de Campos, em Balanço da Bossa e outras bossas. A expressiva canção é exemplo máximo da fusão sincrética entre os elementos culturais estrangeiros e a macumba, culto afro-brasileiro, que se origina do vocábulo makuba, reza ou invocação em quicongo e quimbundo, conforme aponta Yeda Pessoa de Castro, em Falares africanos na Bahia, que no Brasil, “[...] se converteu em designação genérica de manifestações religiosas sincréticas de base ‘congo-angola’, às quais não faltam ingredientes católicos-kardecistas.” (RISÉRIO, 2010, p.105), como apontado em Batmakumba por Antonio Risério. Para tanto, a canção menciona Batman, 59 o super-herói dos quadrinhos criado por Bill Finger e Bob Kane no fim dos anos 30, e o iê-iê-iê, versão abrasileirada da expressão yeah empregada por bandas de rock dos anos 60, sobretudo pelos Beatles, e também faz menção a Ba, o pai de santo do candomblé, e Obá, deusa na língua iorubana e orixá, uma das mulheres de Xangô, num claro exemplo de macumba antropofágica, que une uma vertente de fé “[...] com o personagem originado na indústria cultural estrangeira dominante [...]”. (DUARTE, 2018, p.142), como considera Pedro Duarte, em Tropicália ou panis et circencis. 60

59 A cidade natal de Batman, a fictícia Gotham City, apareceria, posteriormente, na canção homônima de Jards Macalé e Capinan, defendida no IV Festival Internacional da Canção em 1969, com versos sintomáticos: [...] No céu de Gotham City há um sinal/ sistema elétrico e nervoso contra o mal. 60 O mundo pop alertava os tropicalistas da existência da reprodutibilidade técnica e Rogério Duprat era responsável pela utilização de elementos já existentes e, estrategicamente, incorporados ao registro fonográfico. Em Enquanto seu lobo não vem, por exemplo, há a execução do Hino internacional comunista e em outras canções há inúmeras colagens com sons de buzinas, conversas e até tiros de canhão. Assim, eram executados variados recortes e colagens musicais com a técnica de sampleamento de inspiração cubista, procedimento que lembra-nos o texto marcha à revisão, cujo subtítulo torquatiano é exatamente colagem: “Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra – um mundo poluído – explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentando, retalho em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas e à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas. Uma palavra é mais do que uma palavra, além de uma cilada. Elas estão no mundo e portanto explodem, bombardeadas. Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma; qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios. No princípio era o verbo e o 116

Batmacumba também faz referência direta à Poesia Concreta por meio do uso da espacialidade, cuja disposição gráfica da letra forma as asas de um morcego, mas também é possível perceber uma sombra de emblema nacional, em traços de meio losango, representando uma bandeira rasgada e/ou um país pela metade, ou até mesmo a representação da letra k, caractere estrangeiro à época de feitura da canção, que só seria incorporado ao português brasileiro em 1990, fazendo uma hipotética alusão ao kaos de Mautner, tendo em consideração que para o artista, como consta em seu depoimento presente em A forma da festa, a Tropicália “[...] é um universo paralelo ao kaos.” (MAUTNER, 2000, p.108). No entanto, concretamente, entende-se a versão gráfica da letra a partir da relação do traço religioso e cultural da macumba e do fenômeno pop, por meio do vocábulo bat, morcego em língua inglesa; que remete ao homem-morcego dos quadrinhos, resultando na construção da expressão-título que surge, como considera Risério, “[...] como um pequeno ideograma de uma noite no mundo urbano-industrial brasileiro, onde temos a projeção de um elemento pop, mass culture, em meio aos tambores de um terreiro de umbanda ou candomblé.” (RISÉRIO, 2010, p.105).

Figura 6 − Batmacumba

apocalipse, aqui será apenas uma espécie de caos no interior tenebroso da semântica. Salve-se quem puder.” (NETO, 2004, p.261). 117

Assim, a composição-evocação relaciona-se às palavras-valise e a consequente formação de vocábulos híbridos, amálgama lexical que também pode ser chamada de palavras-montagem, absorvidas via Haroldo de Campos, mas que remetem, especialmente, a Lewis Caroll, James Joyce e John Lennon em On his own write (1964) e A spaniard in the works (1965) transcriados, como no conceito haroldiano, conjuntamente pelo poeta Paulo Leminski em Um atrapalho no trabalho. Embora, no universo cultural brasileiro, exista o registro de uso desse método no oswaldiano Memórias sentimentais de João Miramar, nos contos de Guimarães Rosa, na poética de Drummond e também em canções pós-tropicalistas como Acrilírico, de Caetano e Rogério Duprat, de aparente inspiração concretista. Parte dos tropicalistas, oriunda de cidades pequenas do nordeste brasileiro, migrara para a capital baiana com o intuito de cursar o ensino médio e/ou superior, deslocamento que possibilitou a amizade com os soteropolitanos aos quais, posteriormente, uniram-se na mudança para o sudeste e, consequentemente, houve o encontro do ambiente ideal para fomentar e elaborar o momento tropicalista. São Paulo, a maior cidade industrial do país, concentrava as redes de televisão, TV Tupi e TV Record, que mais tarde seriam abaladas pela ascensão vertiginosa e duvidosa da TV Globo do Rio de Janeiro. Na mente tropicalista, a capital do estado de São Paulo era fascinante em função dos contrastes, da explosão de outdoors e também por sua dimensão geográfica e cultural, que seria traduzida no período pós-tropicalista por Caetano na canção Sampa, contida no disco Muito de 1978, onde o baiano enfatiza o deslumbramento que a grande urbe lhe causara numa ode à capital e aos artistas que a representavam como os poetas concretos, irmãos Campos e Décio Pignatari, Os Mutantes, José Agrippino de Paula e o grupo de atores do Teatro Oficina, sobretudo o diretor Zé Celso, amparando-se pelo fato de o momento tropicalista também existir em função do arranjo cultural entre os baianos e os paulistas:

[...] É que quando eu cheguei por aqui Eu nada entendi Da dura poesia concreta de tuas esquinas Da deselegância discreta de tuas meninas Ainda não havia pra mim Rita Lee A tua mais completa tradução [...] E foste um difícil começo 118

Afasto o que não conheço E quem vem de outro sonho feliz de cidade Aprende depressa a chamar-te de realidade Porque és o avesso do avesso Do avesso do avesso [...] Da feia fumaça que sobe Apagando as estrelas Eu vejo surgir teus poetas De campos, espaços Tuas oficinas de florestas Teus deuses da chuva Pan Américas de Áfricas Utópicas

Em meio à garoa paulistana, a experiência da migração do trecho nordeste/sudeste, também assombrada pela arridez do sertão, tornou-se mote de várias canções dos baianos. Os migrantes nordestinos ganham voz, por exemplo, na canção de Gil, Coragem para suportar, em No dia que eu vim-me embora,61 parceria de Caetano e Gil, e também em Mamãe, coragem, de Caetano e Torquato, segunda participação do teresinense no álbum conceitual tropicalista; interpretada por Gal Costa. A canção revela a personagem que deixa o interior com destino à metrópole e abandona seus laços familiares em busca de uma urbe que seja emblema de país moderno e industrial, oposto ao interior agrário e subdesenvolvido, por isso, logo na abertura da canção é possível ouvir uma sirene de fábrica a soar, como na entrada e saída de operários; própria de um ambiente urbano, dinâmico e com inchaço populacional. Consequentemente, a letra explicita alento à mãe que perde seu filho, ao partir de casa para a cidade escolhida, de olho na movimentação e acesso cultural dos grandes centros, em oposição à vida da matriarca nordestina sem esperança de alguma transformação, cujas tarefas domésticas e a leitura duvidosa de Elzira, a morta virgem,62 obra de

61 Canção em que o eu lírico, ao sair de casa sozinho pra capital, carrega uma mala de couro cáqui, típica entre os retirantes, assim como a que Tom Zé segura na capa do álbum coletivo, que, nesse caso, também faz referência ao homem da mala, personagem interiorana que vende produtos variados, como um mascate, mas para alavancar as vendas promove pequenos shows em praças públicas. 62 A partir dos anos 50, Elzira, a morta virgem ganhou versos em literatura de cordel por João Martins de Athayde, Antônio Teodoro dos Santos e Firmino 119

1883 de Pedro Ribeiro Vianna, e também do folhetinesco O grande industrial, publicação de 1882 de Georges Ohnet, consistiam em distração. Em outras palavras, se para a mãe restava desolação, existiria para o filho a experiência de “atravessar o Rubicão” e partir para sua cidade-lavoura, que o poeta planta pra si: 63

Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo Eu fui embora Mamãe, mamãe, não chore Eu nunca mais vou voltar por aí Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo Eu quero mesmo é isto aqui Mamãe, mamãe, não chore Pegue uns panos pra lavar Leia um romance Veja as contas do mercado Pague as prestações Ser mãe É desdobrar fibra por fibra Os corações dos filhos Seja feliz Seja feliz [...] Leia ‘Elzira, a morta virgem’ ‘O Grande Industrial’

Teixeira do Amaral. Provavelmente, a obra de Vianna é citada em função dessas adaptações porque Torquato era fã desse gênero literário de relatos orais. Assim como tinha apreço pelos aforismos de para-choques de caminhão e sua sabedoria popular. Não me acompanhe que eu não sou novela era uma das máximas preferidas do poeta. 63 O Rio de Janeiro era a cidade-lavoura de Torquato. O poeta tinha adoração pela capital fluminense e por seus personagens. No recente documentário sobre sua trajetória, Caetano menciona que Torquato seguia Drummond e Nelson Rodrigues pelas ruas cariocas sem que os escritores percebessem. Ao menos o teresinense imaginava que eles não reparassem no seu encalço admirador. 120

Mamãe, coragem também parodia Coelho Neto (“Ser mãe é desdobrar fibra por fibra/ o coração!”) acrescentando dos filhos para conotar certa crueldade ou zelo excessivo da genitora, a mãe medusa, como define Waly Salomão,64 enquanto o poeta só quer saber do que pode dar certo, como na canção Go back, dos versos só quero saber/do que pode dar certo/Não tenho tempo a perder.65 Em contrapartida, é contemporâneo à canção torquatiana o hábito de muitos pais expulsarem filhos rebeldes do âmbito domiciliar; em várias partes do mundo, entretanto, na mesma década de 60, havia um número crescente de filhos que deixavam a casa pátria voluntariamente e em busca de liberdade e independência, litígio que Bob Dylan já anunciava nos versos de The times they are a-changin, canção de 1963:

[…] Come mothers and fathers Throughout the land

64 Em função disso, em O suicídio enquanto paráfrase ou Torquato Neto esqueceu as aspas ou Torquato Marginália Neto, Waly Salomão aponta que o poeta “[...] morria de medo de ser desaprovado aos olhos da mãe medusa tirana que atendia pela graça do nome bíblico de Salomé e que semelhava em mais de um aspecto à mãe de Charles Énivrez-vous Baudelaire.” (SALOMÃO, 2005, p.58). 65 A relação familiar contida em Mamãe, coragem também é passível de comparação com outra canção de Torquato, Deus vos salve essa casa santa, dos versos, ó deus vos salve esta casa santa/onde a gente janta com nossos pais/ó deus vos salve essa mesa farta/feijão verdura ternura e paz, cuja alusão à janta e à mesa repleta de alimentos lembra-nos a sala de jantar de Panis et circenses e o embaraço do bom moço, em relação à família da namorada, de Namorinho de portão, canção de Tom Zé:

[...] Eu aguento calado Sapato, chapéu O seu papo furado Paris, lua de mel A vovó no tricô O Chacrinha, a novela O blusão do vovô Aquele tempo bom que já passou E eu de é, de sim, de foi Bom rapaz, direitinho Desse jeito não tem mais 121

And don’t criticize What you can’t understand Yours sons and your daughters Are beyond your command Your old Road is rapidly agin’ Please get out of the new one if you can’t lend your hand For the times they are a-changin’. 66

Deste modo, matar a família, metaforicamente, passa a ser recorrente na época tropicalista e pós-tropicalista e, em alguns casos, a unidade familiar passa a ser encarada como uma instituição social que, de certa forma, precisa ser repelida, como vemos, indiretamente, na “surrealista” Coração materno, de Vicente Celestino, que retrata o assassinato de uma mãe, executado pelo filho, motivado por um capricho sinistro:

Disse um campônio à sua amada: “Minha idolatrada, diga o que quer Por ti, vou matar, vou roubar Embora tristezas me causes, mulher Provar quero eu que te quero Venero teus olhos, teu porte, teu ser Mas diga, tua ordem espero Por ti não me importa matar ou morrer” E ela disse ao campônio, a brincar: “Se é verdade tua louca paixão Parte já, e pra mim vai buscar De tua mãe inteiro o coração” [...] Chega à choupana o campônio Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar Rasga-lhe o peito o demônio Tombando a velhinha aos pés do altar

66 Caetano W. Galindo propõe a seguinte tradução de Os tempos estão mudando: “Venham, mães e pais/ De todo o país/ E não critiquem/ O que vocês não entendem/ Seus filhos e filhas/Não vão mais obedecer/ Sua velha estrada envelhece veloz/ Por favor saiam da nova se não conseguem dar a mão/ Por que os tempos, eles estão mudando.” (DYLAN, 2017, p.165). 122

Tira do peito sangrando Da velha mãezinha, o pobre coração

Nesse sentido, Matou a família e foi ao cinema (1969), filme de Júlio Bressane, também sugere uma quebra de paradigma, inclusive narrativo, ao evidenciar um jovem que assassina os próprios pais numa trama de frustrações pessoais e dramas familiares; retrato doméstico, com ares rodriguianos, em que abundam conflitos, desestruturas e até crimes passionais. 67 No entanto, embora haja exemplos artísticos que confirmem essa desconstrução familiar, a canção de Torquato não é fatal nesse aspecto porque propõe um rompimento com a autoridade materna que não abole o afeto, ao contrário, a personagem anseia que a mãe enfrente com normalidade essa fratura natural e social, própria do curso da vida. Assim, Mamãe, coragem, soa como um desejo, expresso pelo uso da vírgula, que se comprova com base em seu nome por acenar claramente à peça de 1939 de Bertold Brecht, Mãe Coragem e seus filhos, montada no Brasil em 1960 com direção de Alberto D’ Aversa pelo Novo Teatro, companhia de Ruth Escobar, apesar de o poeta apontar no áudio de 68 que a anti-edipiana canção se chamara, inicialmente, Canção nordestina, e também porque nela seja perceptível um inegável dado biográfico, a relação conflituosa do poeta com a figura materna, professora Maria Salomé, em virtude de sua superproteção, como legitimado no documentário Torquato Neto – Todas as horas do fim, ao ser citado que Salomé não tinha apreço pela letra composta pelo fiho porque a via como uma menção indireta, que também a cingia, mas, sobretudo, por considerá-la mais uma despedida de Teresina, dentre tantas promovidas pelo poeta, em benefício da capital carioca:

[...] Eu tando aqui vou indo muito bem De vez em quando brinco Carnaval E vou vivendo assim: felicidade Na cidade que eu plantei pra mim E que não tem mais fim Não tem mais fim

67 Neville de Almeida fez um remake do filme de Bressane em 1991. 123

Não tem mais fim

Corroborando com o pensamento materno, algumas letras de Torquato evidenciam a saudade da terra natal, embora a narrativa afetuosa não signifique vislumbrar o retorno efetivo à cidade. É o caso, por exemplo, de A rua, parceria com Gil, que cita o regresso provisório do eu lírico apenas em caso de nostalgia e, desse modo, proporciona uma cartografia da capital piauiense ao citar lugares e personagens reais de Teresina utilizando um lirismo rememorativo, em relação às origens e vivências do poeta, além de efetuar a analogia entre o curso de sua antiga rua, morada familiar, e a direção de um rio, e aproximá-la do fluxo de memória e a agitação contínua das águas, especialmente a partir da característica que as une, a inconstância e o contrassenso de cessar:

Toda rua tem seu curso Tem seu leito de água clara Por onde passa a memória Lembrando histórias de um tempo Que não acaba De uma rua, de uma rua Eu lembro agora [...] E de meninos correndo Atrás de bandas Atrás de bandas que passavam Como o rio Parnaíba Rio manso Passava no fim da rua E molhava seus lajedos Onde a noite refletia O brilho manso O tempo claro da lua Ê, São João, ê, Pacatuba Ê, rua do Barrocão Ê, Parnaíba passando Separando a minha rua Das outras, do Maranhão De longe pensando nela Meu coração de menino 124

Bate forte como um sino Que anuncia procissão Ê, minha rua, meu povo Ê, gente que mal nasceu Das Dores, que morreu cedo Luzia, que se perdeu Macapreto, Zé Velhinho Esse menino crescido Que tem o peito ferido Anda vivo, não morreu Ê, Pacatuba Meu tempo de brincar Já foi-se embora Ê, Parnaíba Passando pela rua até agora Agora por aqui estou com vontade E eu volto pra matar essa saudade

Na composição, o curso do rio Parnaíba e as ternas lembranças juvenis funcionam como uma unidade medidora da engrenagem complexa do tempo, num modo símile àquele encontrado em Oração ao tempo, prece-canção de Caetano: És um senhor tão bonito/Quanto a cara do meu filho/Tempo, tempo, tempo, tempo/[...]Compositor de destinos/Tambor de todos os ritmos. Ademais, segundo Waly Salomão, em fala também contida no documentário de Marcus Fernando e Eduardo Ades, a produção de Torquato é o resultado da releitura brutalista, agônica e desesperada de três poetas: Carlos Drummond de Andrade, Décio Pignatari e Manuel Bandeira. Baseado nisso, é possível perceber em A rua, quando o poeta rememora pessoas do âmbito de sua vizinhança, como Das Dores, Luzia e Zé Velhinho, a afetividade estalecida do mesmo modo como ocorre em Profundamente, poema de Bandeira, contido em Libertinagem:

[...] Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo 125

Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? − Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. (BANDEIRA, 2008, p.87).

Além de marco musical, Tropicália ou panis et circencis também cumpre função sociológica ao demonstrar ser impossível aos tropicalistas promover separação artística, social e política no contexto do Brasil de 1968. No entanto, é notável a atualidade das questões suscitadas, na medida do possível, como se na Tropicália houvesse uma aura de perspicácia tornando-a capaz de operar nos tempos atuais, sendo uma referência cultural que dá voz à diversidade e ao conhecimento, de toda ordem, das ruas à academia, num construto plural e enriquecedor. Desse modo, dentre outros manifestos, o álbum dirigia a atenção à figura da mulher e ao martírio feminino, por haver uma mãe trucidada pelo filho; uma genitora que sofre a ausência do rebento, mas, principalmente, pela alusão à mulher vítima de violência machista, urbana e/ou militar, dada a conjuntura e arbitrariedades de então. Assim, Lindonéia, canção de Caetano e Gil, interpretada por Nara Leão, título inspirado em A bela Lindonéia ou a gioconda do subúrbio (1966), obra de Rubens Gerchman, apregoa claramente a brutalidade e o vilipêndio corpóreo quando havia policiais vigiando e, sobretudo, quando retrata a personagem como Lindonéia desaparecida, portanto, por meio da bela de 18 anos de Gerchman, que morre instantaneamente, se expõe a tragédia brasileira frente ao regime antidemocrático, retratando uma mulher comum, anônima, machucada, cujo desenho colado a um espelho reflete quem observa:

[...] No avesso do espelho Mas desaparecida Ela aparece na fotografia 126

Do outro lado da vida Despedaçados, atropelados Cachorros mortos nas ruas Policiais vigiando O sol batendo nas frutas Sangrando

Figura 7 − A bela Lindonéia ou a gioconda do subúrbio

Nesse contexto, Lindonéia pode ser qualquer mulher ou um simples cidadão, oprimido, desaparecido, torturado e morto num regime usurpador, seja pelo Estado ou em função da violência urbana, num panorama complexo em que a personagem “[...] parece retratar a 127

impossibilidade de expressão, o medo, a morte da cultura. Nem bonita nem feia, nossa Gioconda do subúrbio, nossa cultura, nossa gente, apanha e se cala. E morre tão jovem.” (MOSÉ, 2010, p.43), como aponta Viviane Mosé. Por esse motivo, o drama, aparentemente pessoal, retrata a tragédia do Brasil de enormes contrastes e desigualdades, de números exorbitantes em feminicídios, entretanto, as Lindonéias, do quadro e da canção, “[...] em suas diversidades como potência interpretativa, parecem, no entanto, ter em comum uma louvação às Giocondas do subúrbio, à cultura e à arte brasileiras.” (MOSÉ, 2010, p.44). Na atmosfera tropicalista, os corpos aparecem com vestimentas coloridas em meio ao sangue, assassinatos, violência e policiais vigiando, cenário que se intensifica e se torna tangível na imagem integral do álbum coletivo, que menciona, dentre outros acontecimentos, o avanço industrial e a modernização econômica do país falseada pelo poder autoritário e retrógrado instalado a partir de 64. Assim, o sangue se espraia pelo disco: a mesa de Miserere nobis é molhada de vinho e manchada de sangue; em Parque industrial, canção de Tom Zé, o jornal popular é um banco de sangue encadernado e em Enquanto seu lobo não vem, canção de Caetano, o terror se revela com mais profusão na floresta brasileira:

Vamos passear Na floresta escondida, meu amor [...] A Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas [...] Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil Vamos passear escondidos Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou Vamos por debaixo das ruas Debaixo das bombas Das bandeiras, debaixo das botas

Na floresta escondida, o eu lírico dialoga com a fábula infantil do século XIV, Chapeuzinho Vermelho, como alerta para os riscos de choque com a caterva que tomava o país, desígnio explicitamente político, que aponta que a Mangueira passa por debaixo da Avenida 128

Presidente Vargas para fazer menção indireta ao chefe de Estado do passado, ditador por certo período, de governança permeada por atos paradoxais como a admissão da basilar legislação trabalhista, mas também a assinatura de deportação de Olga Benário para a Alemanha nazista. Ademais, a canção explicita a repressão generalizada dos anos 60, evidenciada pelos versos Debaixo das bombas/ Das bandeiras, debaixo das botas, em meio ao trajeto carioca da personagem ciente das adversidades postas no caminho, tortuoso e espinhoso por conta das arbitrariedades antidemocráticas, que numa alusão ao enrijecimento ditatorial, sairia da rota de enfrentamento das ruas para debaixo da cama. Além de retrato pertinente dos métodos empregados pela ditadura civil-militar, os versos citados aludem ao slogan francês de maio de 68, sous les pavés, la plage (debaixo dos paralelepípedos, a praia), numa referência às pedras das calçadas parisienses; atiradas pelos manifestantes em direção às forças oficiais em sinal de resistência durante a primeira tentativa de implantação de um governo proletário, dito este que, acredita-se, seja inspirado no lema que Arthur Rimbaud teria criado para o levante da Comuna de Paris, debaixo do paralelepípedo tem a terra, tem a areia, tem a praia.68 Como denúncia, em meio a um ambiente sonoro bastante dissonante, a canção apresenta, através de uma colagem sonora, um coro feminino entoando os clarins da banda militar, verso de Dora de Dorival Caymmi, proferido com intensidade numa espécie de refrão para alertar o ouvinte: era do modo como descrito na letra de Caetano que, metaforicamente, a banda militar tocava. 69 No emblemático maio de 68, mês em que o disco coletivo era gravado, a letra confirmava que o passeio perigoso que o eu lírico propunha era, na verdade, nos Estados Unidos do Brasil, ironia ao apoio logístico estadunidense ao golpe de Estado de 1964, visto com detalhes em O dia que durou 21 anos, documentário de 2012 de Camilo Tavares, em que por meio de documentos oficiais fica claro o interesse que os Estados Unidos tinham, não só nos anos 60, em relação ao Brasil, país imenso, com enorme potencial econômico, de riquezas naturais e forte relevância na América

68 Em No intenso agora, filme de 2017 de João Moreira Salles, é abordada a anedota de que a frase pichada nos muros parisienses não teria sido inspirada no dito de Rimbaud, mas sim criada por um estudante durante os protestos na capital francesa em 1968. 69 Na letra de Caymmi, os clarins militares tocam apenas para anunciar a passagem da personagem-título, a rainha do frevo e do maracatu. 129

do Sul, e o papel estratégico que o embaixador americano Lincoln Gordon teve no golpe efetivamente. 70 Temendo que o Brasil tivesse uma guinada à esquerda, assim como a Cuba de Fidel Castro, e com a presença das ideias de justiça social, amparadas em reforma agrária, tributária e eleitoral de João Goulart, Gordon acreditava que as ações do presidente brasileiro e de seu cunhado Leonel Brizola levariam o país ao Comunismo, um argumento pífio, mas aceito por Kennedy e por Lyndon Johnson. Assim, em função das pressões oriundas do apoio irrestrito dos Estados Unidos, do auxílio da classe abastada, do empresariado nacional, das manifestações organizadas como a Marcha da família com Deus pela liberdade e das tropas militares estabelecidas pelo país, Goulart cederia às pressões e deixaria a presidência sem conflito armado, possibilitando que o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, fosse empossado pelo presidente do congresso, Auro Moura Andrade, e pelo presidente do STF na calada da noite; de modo inconstitucional, em função da não desistência oficial do cargo por parte de Goulart, mas com ares de legalidade, assim como também ocorreria em 2016. 71 Rapidamente, Mazzilli foi retirado do cargo interino e os militares golpistas puderam, com aval de expressiva parte da população, constituir o ciclo tenebroso de desgoverno militar, que não cessou nem mesmo com a promessa do marechal Castello Branco de assumir a presidência por tempo determinado para que, em seguida, houvesse a posse de um sucessor democraticamente eleito. Por fim, estabeleceu-se uma gestão unificada de 21 anos, com direito a aberturas e endurecimentos, de acordo com cada novo militar nomeado, mas de característica una quanto à existência da tortura como pilar da manutenção do estado hostil à democracia. Muito em função disso, o ambiente golpista possibilitou a ascensão de valores reacionários,

70 O desmonte do governo João Goulart começou a ser planejado no Salão Oval da Casa Branca em 1962 por John F. Kennedy a partir das teorias do embaixador Gordon, que acreditava que Goulart pudesse ficar no poder por meio de um golpe, como o que fizera Getúlio Vargas, em 1937. Em função disso, o governo estadunidense aprovou a Operação Brother Sam, ação militar que seria efetuada no Brasil em 1964 para retirada do presidente; descoberta pelo jornalista Marcos Sá Corrêa por meio de documentos oficiais encontrados na Biblioteca Lyndon Johnson, no Texas, em 1976. 71 O Brasil lançou mão de golpes de Estado em momentos anteriores, mas também em 2016, quando uma trama descarada atingiu a presidente Dilma Rousseff, democraticamante eleita, mas retirada da presidência sob a alegação de uso indevido de pedaladas fiscais. 130

arcaicos e também o enaltecimento de dogmas religiosos em prol da família tradicional e de uma verdadeira caça aos progressistas que geraria atrocidades, pois “quem queria caçar esquerdistas podia agora fazê-lo dentro da máquina do Estado.” (GASPARI, 2014, p.253), como observa Elio Gaspari. Como reação a esse cenário, a canção, principal expoente da Tropicália, adquire nesse momento conflituoso um importante papel estético-social e se torna um exemplo de produto crítico inserido no mercado fazendo com que a geração de artistas tropicalistas e, posteriormente, pós-tropicalistas possibilitasse que a poesia também fosse vista em outros suportes: do livro para o disco; numa cooperação entre a palavra escrita e a falada (cantada), que evidenciava os letristas, estirpe de poetas encabeçada por Torquato, artista que pensava as possibilidades do Brasil a partir da reação artística, como se percebe em sua atuação cultural entre 1964-1972, em função de sua trajetória inserida inteiramente entre o panorama do golpe e do cerceamento político, iniciada a partir do eixo de politização artística ocorrida em torno dos Centros Populares de Cultura da UNE, que o poeta passou a frequentar logo após a chegada ao Rio de Janeiro, participando das ações da militância estudantil, embora fosse apartidário, e sendo assíduo frequentador do cineclube da organização estudantil e também do Restaurante Central dos Estudantes (Calabouço). Não por acaso, as letras torquatianas aparecem após a difusão da Poesia Concreta e, também, ao apogeu de Vinicius de Moraes ao expressar a poesia também fora dos livros, período em que as ligações entre os movimentos musicais e as linhas literárias se confirmam. Afinal, após a popularização, nos anos 50, das letras de Vinicius, primeiro a desconsiderar como um problema hierárquico as diferenças de suporte entre poesia escrita no objeto livro e na canção, vários artistas iriam mesclar esses códigos artísticos, Torquato, mas também Waly Salomão, Duda Machado, Paulo Leminski, Alice Ruiz e tantos outros, poetas que, entre outras referências, foram leitores de Vinicius. 72

72 A fusão de música com poesia resgata a referência marcante do poetinha, alcunha de Vinicius, autor para quem, aos 17 anos, Torquato destina seu poema Bilhetinho sem maiores consequências, em alusão ao poema O dia da criação de Moraes:

Uma retificação, meu bom Vinicius: Você falou em 'bares repletos de homens vazios' e no entanto se esqueceu de que há bares 131

Os poemas de Torquato diferenciam-se apenas estruturalmente das letras, poesias cantadas, pois neles há frequentemente o uso dos recursos tipográficos, quebra de versos e jogos de linguagem, no entanto, a musicalidade está sempre presente, como explanado em Como é, Torquato, introdução escrita em 1973 por Augusto de Campos, que consta nas duas edições de Os últimos dias de paupéria, em que, segundo o autor, se constitui num “[...] recado, em mala direta, de poeta para poeta.” (CAMPOS, 2008, p.337-8) ao descrever o mistério das letras torquatianas: “estou pensando/ no mistério das letras de música/tão frágeis quando escritas/ tão fortes quando cantadas” (CAMPOS, 2008, p.309).

lares teatros, oficinas aviões, chiqueiros e sentinas, cheinhos (ao contrário) de homens cheios. Homens cheios (e você bem sabe) entulhados da primeira à última geração da imoralidade desta vida das cotidianas encruzilhadas e decepções da patente inconsequência disso tudo. Você se esqueceu Vinícius, meu bom, dos bares que estão repletos de homens cheios da maldade das coisas e dos fatos, dos bares que estão cheios de homens cheios da maldade insaciável dos que fazem as coisas e organizam os fatos. E você que os conhece tão de perto Vinicius “Felicidade” de Moraes não tinha o direito de esquecer essa parcela imensa de homens tristes, condenados candidatos naturais a títulos de tão alta racionalidade a deboches de tão falsa humanidade. Com uma admiração “deste tamanho”. (NETO, 2004, p.42).

132

Para José Miguel Wisnik, a canção e a poesia, distintas em se tratando da obra de Vinicius, não são dissociadas no caso do poeta piauiense por um motivo a mais, o fato das canções ocuparem um lugar central em sua poética, afinal, seu reconhecimento se dá através da música popular em face, também, de o poeta nunca ter lançado um livro formal de poesia. De fato, a produção vária do poeta, ou o que dela restou, faz com que não seja possível promover um estudo sistemático de sua obra, composta de modo anárquico e sem claros limites entre gêneros distintos, como considera Italo Moriconi em Medula e osso, ao classificar Os últimos dias de paupéria, reunião fragmentária composta de textos salvos e catalogados por outrem, como “work in progress, híbrido de poesia, prosa e proesia [...]” (MORICONI, 2017, p.25), para definir o apanhado de textualidades distintas que formam o sobrevivente pequeno universo torquatiano, que conhecemos por meio de antologias. Embora, claro, não se deixe de levar em conta, como aponta Ivo Lucchesi, que o casamento entre música e poesia não é algo esdrúxulo se considerarmos, sobretudo, a experiência grega e o fato de que “[...] algumas filiações entre os dois campos (poesia e música) se situam na origem de nosso Modernismo: Villa-Lobos musicou ‘modinha’, de Manuel Bandeira. Camargo Guarnieri musicou, adiante, a peça de Cecília Meireles, ‘cantata de São Sebastião do Rio de Janeiro’, entre outros [exemplos precursores].” (LUCCHESI, 2000, p.166). Todavia, a valorização da poesia feita como letra de música foi popularizada por Vinicius em composições com parceiros ilustres como Tom Jobim, Baden Powell e Toquinho, mas o poetinha jamais deixou de ser poeta também na vertente impressa, via livros. Torquato, ao contrário, apostou nas poesias cantadas como uma contribuição tropicalista, segmento que parecia moribundo, mas que foi reabilitado de modo inventivo, sobretudo por Caetano e Gil, de forma abrangente, como observa Augusto de Campos, porque “[...] atingiram um grande refinamento nessa modalidade de melopeia, nessa arte rara, que Pound, evocando os trovadores provençais, denomina de motz el som, isto é, a arte de combinar palavra & som.” (CAMPOS, 2008, p.292). Em 2016, a antiga discussão sobre o estatuto literário da letra de canção, analisada em separado do ritmo, melodia e harmonia musicais, ganhou fôlego com a atribuição do prêmio Nobel de Literatura ao músico Bob Dylan. Sendo “paraliterária”, a análise de letra de canção dispõe de critérios distintos da poesia em papel, pois a métrica e as rimas se ajustam ao modo como foram pensadas para serem cantadas, contudo, como aponta Valter Hugo Mãe, em Esse senhor Dylan, a comenda ao artista estadunidense causou o retorno da querela entre 133

poesia impressa e letra de canção porque “tantas vezes acusado de ser um não-cantor, muito se discutirá sobre ser um não-poeta. Contra toda a dogmática, no entanto, Dylan é um dos grandes cantores e um dos grandes poetas do mundo.” (MÃE, 2017, p.07) e, incontestavelmente, o único artista da história a ser laureado com tantos prêmios na área das artes: Oscar, Grammy, Globo de Ouro, Pulitzer e o polêmico Nobel. Certamente, a premiação da Academia Sueca remonta ao resgate da tradição oral da poesia e a ancestralidade grega e trovadoresca dessa arte e em nada leva em conta o fato de Dylan não ser um poeta formal; impresso, embora tenha lançado livros com suas letras e também a prosa poética Tarântula, publicada oficialmente em 1971, mas disponível marginalmente desde 1966, caráter que faz com que os tropicalistas se aproximem de Dylan como poetas de motz el som, autores de sólidas poesias cantadas. Let's play that, letra de Torquato musicada por Jards Macalé, é um desses exemplos poéticos, composição que parodia Poema de sete faces, de Alguma poesia (1930), de Carlos Drummond de Andrade, e os versos “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida” (ANDRADE, 2015, p.10), vertidos ao propor um anjo bem distinto do contido no texto-base: 73

Quando eu nasci Um anjo louco muito louco Veio ler a minha mão Não era um anjo barroco Era um anjo muito louco, torto Com asas de avião Eis que esse anjo me disse Apertando a minha mão Com um sorriso entre dentes Vai, bicho, desafinar O coro dos contentes Vai, bicho, desafinar O coro dos contentes Let’s play that

73Poema de sete faces foi empregado em outros exemplos intertextuais posteriores como, por exemplo, na canção Até o fim de Chico Buarque e também no poema Com licença poética, de Adélia Prado, contido em Bagagem.

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Assim, Let's play that aborda o anjo torto, como o anjo drummondiano, mas também vidente e louco, que segue desafinando o coro dos contentes, alusão ao O Guesa de Joaquim de Sousândrade, considerado por Susana Scramim, em A literatura e o mal. O arco floral Torquato Neto e Marcos Siscar, como um “[...] anjo ‘nosferatu’, que também pode ser o vampiro baudelairiano que é ao mesmo tempo algoz e vítima de seu destino, é, na sua imanência, anjo das trevas, isto é, o próprio mal.” (SCRAMIM, 2007, p.107). Mas, assim como na produção de Charles Baudelaire, na obra torquatiana, a opção pelo mal se dá na tentativa de chegar ao bem, como Sartre observou em relação à obra do poeta francês, porque propõe uma transgressão utópica que se utiliza da imagem do mal para uma finalidade comum, pois, para Sartre, a utilização do mal se torna uma estratégia de ruptura em que, como menciona Scramim, “[...] poderemos pensar que o anjo torto e a flor do mal do poeta maldito Torquato Neto reafirmam uma opção da potência da literatura e da arte na América Latina de ‘ser-não’.” (SCRAMIM, 2007, p.108). Algo similar ao que Mario Cámara aponta em El caso Torquato Neto: diversos modos de ser vampiro en Brasil en los años setenta quando cita que nos anos 60 e 70 há “[...] la adopción de lo monstruoso como ética y estética de la existencia.” (CÁMARA, 2011, p.18) e quando enfoca o texto subterrânia de Hélio Oiticica, onde o artista diz sejamos o não do não, como pode ser visto no fragmento em que Hélio relata preferir o termo subterrânia, grifado com a letra i, em prol da oralidade, ao invés da palavra inglesa underground:

[…] não quero usar “underground” (é difícil demais pro brasileiro) mas subterrânia é a glorificação do sub – atividade – homem – mundo – manifestação: não como detrimento ou glori- condição → sim: como consciência para vencer a super – paranóia – repressão – impotência – negligência do viver: marcha fúnebre → enterro e grito consciência – crítica – creativa – ativa → necessidade – do disfarce – do surrealismo-farsa – do sub-sub – da redundância → longe dos olhos → perto do coração: ou da cor da ação: debaixo da terra como rato de si mesmo: RATO é o que somos símbolo flama enterremo-nos vivos desapareçamos sejamos o não do não o nó omitido a não-omissão → creomissão → missa missão eu 135

sou o astronauta o Brasil é a lua cuja poeira mostrar-se-á ao mundo sublixo. (OITICICA, 1969).

Em 1968, para vencer a paranoia, a repressão e a impotência, como nas palavras de Oiticica, os tropicalistas podiam ser vistos nos programas de Abelardo Barbosa, comunicador de conduta tropicalista, em função das misturas grotescas, irreverentes e carnavalescas que promovia no meio televisivo, como visto anteriormente. Como observa Silviano Santiago, em Uma literatura nos trópicos,

assim como os antropófagos de São Paulo, em 28, tinham eleito o palhaço Piolin como imagem da própria agressividade burlesca, oferecendo-lhe um almoço no Mappin Stores, os tropicalistas buscavam em Chacrinha, num primeiro e definitivo gesto de desautomatização cultural, o elemento que poderia criar uma atmosfera ideal e proliferante de não-seriedade, de descompromisso com as forças da intelectualidade oficial brasileira. (SANTIAGO, 2000, p.157).

Desse modo, Gil homenageia o velho guerreiro, execrado pela direita conservadora e tido como alienado pela esquerda ortodoxa, na canção Aquele abraço, composta após deixar a prisão e na iminência de ser exilado, numa paradoxal e alegre despedida tropicalista, que soava como um recado à massa: mesmo com prisão e exílio dos tropicalistas, a Tropicália continuava representada por meio da figura cafona e divertida que comandava a massa e dava as ordens no terreiro:

[...] Chacrinha continua balançando a pança E buzinando a moça e comandando a massa E continua dando as ordens no terreiro Alô, alô, seu Chacrinha, velho guerreiro Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro Alô, alô, seu Chacrinha, velho palhaço Alô, alô, Terezinha, aquele abraço! 136

Para além das aparições televisivas em programas de sucesso, o grupo tropicalista elaborou um roteiro de programa próprio para ser exibido em rede nacional, escrito por Capinan e Torquato, intitulado Vida, paixão e banana do Tropicalismo,74 uma blague profana à Vida, paixão e morte de Cristo, idealizado como um happening para a TV Globo, mas que acabou censurado e, posteriormente, sofreu alterações de roteiro em função do script irônico e com afiadas críticas à sociedade brasileira. O elenco proposto era grandioso e contava com artistas do cinema e do teatro como Glauber Rocha e Othon Bastos e celebridades populares, principalmente do rádio, como Vicente Celestino, Linda Batista, Aracy de Almeida, Emilinha Borba e Luiz Gonzaga, além de artistas, políticos estrangeiros e membros da Academia Brasileira de Letras, rol tão grande e diversificado que se configurava como uma sátira em função da impossibilidade de se arregimentar tantas pessoas em uma única produção. O happening pretendia sepultar oficialmente o estigma do “tropicalismo como movimento”, que a mídia insistia em utilizar, e ter Zé Celso na direção da atração, mas o patrocinador, Rhodia, empresa francesa de indústria química, censurou a participação do diretor teatral por temer que o programa gerasse polêmica como todas as produções do criativo responsável pelo Teatro Oficina e, assim, as gravações foram interrompidas e só retomadas com a saída de Zé Celso da direção, função que Torquato assumiria. Deste modo, o plano original fora bastante alterado e as gravações prosseguiram na gafieira Som de Cristal na capital paulista, entretanto, um fato trágico sepultaria o intento tropicalista de vez. Vicente Celestino discordou da sequência em que se retratava a Santa Ceia com Gil no papel de Jesus Cristo e o pão sagrado representado por bananas; contrariado, Celestino abandonou as gravações e horas mais tarde faleceria infartado, tendo sua morte como mote para o fim do plano arrojado, mas também como um marco da tragédia por vir, como Gil declarou em 1997, ao relembrar como encarou a morte do artista após a encenação religiosa ao som de Miserere nobis:

Eu interpretava um Cristo alegórico. Vicente se indispôs com a coisa. Considerou uma profanação

74 O vocábulo banana faz alusão à marchinha popular, Yes, nós temos bananas, de Braguinha, compositor que também utilizava o pseudônimo João de Barro.

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intolerável e gritou lá no fundo: ‘O Cristo negro ainda posso admitir, mas as bananas representando o pão sagrado, de jeito nenhum’. Naquela mesma noite, ele morreu em um hotel de São Paulo. Fiquei impressionadíssimo. [...] Por isso, diante da morte dele, tive o sentimento profundo de que estávamos todos envolvidos em uma dimensão trágica. (GIL, 1997).75

No auge das dimensões trágicas, ocorreu o Festival Internacional da Canção de 1968, realizado pela TV Globo no Rio de Janeiro, mas com etapas eliminatórias no Tuca, Teatro da Universidade Católica, em São Paulo. Na primeira fase, Gil exibiu Questão de ordem e Caetano apresentou É proibido proibir, canção que trazia no título o lema do maio francês, sugerido por Guilherme Araújo, produtor musical e empresário tropicalista, que aconselhou o artista baiano a fazer uma canção com referência ao movimento político-cultural que acontecia na França:

[...] E eu digo não E eu digo não ao não Eu digo: É proibido proibir [...] Me dê um beijo, meu amor Eles estão nos esperando Os automóveis ardem em chamas Derrubar as prateleiras As estantes, as estátuas As vidraças, louças, livros, sim Eu digo sim E eu digo não ao não E eu digo:

75 Depois do episódio fatídico, as gravações nunca foram retomadas e o texto só foi encenado por completo na comemoração dos 30 anos da Tropicália no Museu de Arte Moderna da Bahia sob a direção de Zé Celso.

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É proibido proibir

Apresentando-se com Os Mutantes, Caetano causou um verdadeiro alvoroço e despertou a ira de boa parte da plateia, constituída em maioria por estudantes, sendo similar à agitação dos espectadores que assistiam Bob Dylan e sua guitarra elétrica no Newport Folk Festival em 1965, manifestação que levaria o artista baiano a proferir o discurso tropicalista que entraria para história:

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? [...] São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, nada, absolutamente nada. [...] Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? [...] Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. [...] O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. [...] Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! (VELOSO apud COHN, COELHO 2012, p.168-9).

Diante da plateia, a atmosfera de 68 esparzia tensão e luta, mas Caetano conseguiu transformar, de modo essencialmente tropicalista, o sofrimento em alegria por meio da decomposição da adversidade em prazer. Analogia que se deve ao fato de a canção propor a transformação do pathos em deleite e dizer sim à vida numa clara aceitação alegre da complexidade terrena que abarca também o sofrimento. Por isso, João Camillo Penna, em O tropo tropicalista, considera que o amor fati, contido em A gaia ciência de Nietzsche, seria uma proto-versão de É proibido proibir:

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Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: − assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2015, p.166).

No discurso exaltado, Caetano questionava o modo como o público presente, maioria de universitários críticos ao momento tropicalista, encarava a relação existente entre cultura, arte e política e enfatizava que a intolerância manifestada por meio de vaias e xingamentos era comparável com as atitudes do Comando de Caça aos Comunistas, que havia atacado os atores de Roda viva, sendo identificados, posteriormente, mas nunca responsabilizados pelo Estado numa prova de que a omissão sentenciava a cumplicidade. Assim sendo, como observa Süssekind,

ao vaiar ou até agredir fisicamente representantes do Tropicalismo, contra o que se insurgia a esquerda brasileira de então? Conscientemente, contra as guitarras, o uso de ritmos e palavras estrangeiras; a favor do ‘nacional’. Inconscientemente, contra a linguagem do espetáculo, utilizada pelo governo e capaz de roubar espectadores de comícios e encenações de protesto. Fingindo ignorá-la, entretanto, a arte de protesto falava no vazio. Com o Tropicalismo, ao contrário, a crítica à indústria cultural e às imagens arcaizantes ou desenvolvimentistas do país se dá no espetáculo, vira espetáculo. Ao invés de apenas receber o mundo ‘numa pequena vitrine de plástico transparente’, como chamaria a atenção Gilberto Gil na música ‘Vitrine’, tratava- se de se apropriar da vitrine. (SÜSSEKIND, 1985, p.14-5).

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Portanto, em meio à fala acalorada, Caetano quebrava todos os tabus possíveis, musicais, comportamentais, teóricos e até religiosos, ao insinuar um Deus presente no happening, pois, na concepção tropicalista, Deus estava solto entre as múltiplas religiosidades, das europeias às ameríndias, perpassando as afro-brasileiras. Por isso, Gil em recente entrevista, ‘Sem Caetano, talvez a tropicália não existisse; comigo, não existiria’, diz Gil, matéria de Claudio Leal e Rodrigo Sombra, para Ilustríssima em 09 de abril de 2017, considera, com a sabedoria que a maturidade confere, que

Deus é o nome de tudo aquilo que está fora do nosso alcance. Tudo aquilo que a gente intui, percebe, desconfia e até confia que seja a fonte de onde emanam as coisas. Deus continua sendo a grande utopia. O que Deus precisa é se livrar das religiões. Que tentam manipulá-lo, dizer que ele só pertence àquele território, que só o que o povo daquele território traduz como a verdade é a verdade. Deus precisa estar solto, como dizia Caetano na canção. (GIL, 2017).

Afinal, o Deus solto de Caetano fazia referência à máxima “Deus está morto!” (NIETZSCHE, 2015, p.138) que aparece, inicialmente, no aforismo Novas lutas no livro III de A gaia ciência, mas que retornará no aforismo 125, como a parábola do homem louco que diz: “Nós o matamos!” e, a partir disso, como aponta Paulo César de Souza, no posfácio da obra nietzschiana, “[...] põe-se a exprimir o desnorteamento, a escuridão, o vazio em que os seres humanos caíram mediante esse ato.” (SOUZA, 2015, p.308), tendo em vista que no Ocidente o desparecimento de Deus significava que já não se encontrava a divindade nas igrejas e demais instituições religiosas, pois “a sua morte significa, entre outras coisas, que não mais as igrejas, mas os shoppings centers constituem a principal referência da vida em comunidade.” (SOUZA, 2015, p.308). Ainda assim, a manifestação retrógrada dos espectadores na apresentação de Caetano motivaria Augusto de Campos na feitura de Viva a vaia, poema visual de 1972, dedicado ao baiano, que dava viva para as vaias constatando a vitalidade dos apupos e sugerindo-as como elemento real na confluência entre o público e a arte produzida, numa espécie de indicativo de solidariedade aos xingamentos enfrentados 141

pelos tropicalistas nos festivais da canção como um todo, mas também um exemplo concreto da defesa empreendida por Augusto, enquanto crítico, em relação à arte e aos artistas tropicalistas, em Balanço da Bossa e outras bossas, livro de amplo amparo à Tropicália.

Figura 8 − Viva a vaia

Fonte: Navilouca

Depois da conturbada e prolífica apresentação que originara o famoso happening tropicalista, Caetano e Gil não participaram da rodada final do FIC no Maracanãzinho, momento em que a natureza arbitrária da censura já chamava a atenção, como visto no festival da TV Record, quando alguns trechos de São, São Paulo, de Tom Zé, foram censurados como, por exemplo, em Brasília é veraneio/ em São Paulo é só trabalhar, e liberados para o festival os versos de Divino, 142

maravilhoso, composição de Caetano e Gil, na voz de Gal, o que tornava tudo extremamente aleatório, tendo em conta que a canção defendida por Gal era ainda mais pungente que a apresentada por Tom Zé:

[...] É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte [...] Atenção, tudo é perigoso Tudo é divino, maravilhoso [...] Atenção para as janelas no alto Atenção ao pisar o asfalto, o mangue Atenção para o sangue sobre o chão É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte

De todo modo, mesmo atentos e fortes, os artistas percebem que o festival da TV Record marca o início do fim dos festivais televisionados em função da interferência flagrante dos censores e com o agravamento da repressão, que faz com que muitos artistas deixem de participar e comecem a se exilar, o que acaba fazendo com que as competições entrem em decadência rapidamente, como observado em Cultura brasileira & identidade nacional, pois

durante o período 1964-1980 a censura não se define tanto pelo veto a todo e qualquer produto cultural, mas age primeiro como repressão seletiva que impossibilita a emergência de determinados tipos de pensamento ou de obras artísticas. São censuradas as peças teatrais, os filmes, os livros, mas não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O ato repressor atinge a especificidade da obra mas não a generalidade da sua produção. O movimento cultural pós-1964 se 143

caracteriza por dois momentos que não são na verdade contraditórios; por um lado ele é um período da história onde mais são produzidos e difundidos os bens culturais, por outro ele se define por uma repressão ideológica e política intensa. (ORTIZ, 2017, p.89).

Ainda nos primeiros anos da ditadura civil-militar, de viés direitista, havia relativa liberdade artística no país, como observaria Roberto Schwarz, no entanto, é necessário ter em mente que a abrangência da cultura oposicionista era limitada aos meios sociais urbanos, as médias e grandes cidades, já que a dificuldade de acesso aos meios massivos como rádio e televisão no interior era um fator limitante e alienante fazendo com que a massa brasileira, que até os anos 60 e 70 era de maioria interiorana e do campo, ficasse alheia aos reais acontecimentos nacionais. O regime tolerava, até certo ponto, os protestos artísticos porque acreditava que o público era limitado às alas progressistas da sociedade e, diante disso, a indústria cultural tornou-se uma questão na cultura brasileira e seu desenvolvimento inicial se deu de modo concomitante com o início da difusão dos meios de comunicação de massa em nível nacional, momento considerável, como menciona Ortiz, pois

[...] pela primeira vez o Estado estabelece uma política cultural em nível nacional. Surgem, assim, organismos do tipo Embrafilme, Funarte, Projeto Minerva, TV Globo, que começam a atuar como administradores culturais. Toda manifestação popular tende portanto a ser inserida num espaço de subordinação que arbitrariamente é imposto a partir do alto. (ORTIZ, 2017, p.77).

Assim, havia investimentos e expansão da indústria de comunicação, mas as mídias eram submetidas ao controle do Estado, direta ou indiretamente, por meio de integração nacional, parte da Lei de Segurança Nacional,76 que almejava o controle ideológico da sociedade

76 Jorge Mautner se juntaria aos tropicalistas no exílio londrino porque era um exilado mais antigo que eles: “Eu os encontrei pessoalmente porque fui um dos primeiros exilados [...]. Em 65 eu fui um dos primeiros, senão o primeiro, 144

através da ampliação da censura, como aponta Marcos Napolitano, em 1964: história do regime militar brasileiro,

[...] a legislação básica da censura era a Lei nº 20.493, de 1946, herdada do regime anterior, complementada pela Lei nº 5.526, de 1968, e pelo Decreto nº 1.077, de 1970. Com essas reformas, o regime politizou ainda mais a censura, mesmo mantendo o discurso clássico de vigilância da moral e dos bons costumes. Além disso, realizou um trabalho de centralização burocrática, que culmina em 1972, com a criação da Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal. [...] (NAPOLITANO, 2014, p.129-30).

O controle e censura artística geraria várias anedotas envolvendo os censores e suas sandices, como a proibição de livros sobre Cubismo, delirantemente atribuídos como apologia ao regime político cubano, e tantas outras histórias retratadas, sobretudo, no Febeapá de Stanislaw Ponte Preta, que denunciava desconhecimento, ignorância e também obscurantismos do período autoritário, como a sólida amizade com os Estados Unidos, que asseguraria o endividamento brasileiro com o Fundo Monetário Internacional e com o Banco Mundial, empréstimos que nos custariam caro por décadas, empregados numa política de modernização conservadora que primava por desenvolver o país do ponto de vista estrutural e de infraestrutura, mas de quase total abandono às políticas públicas de transformação e igualdade social. Como oposição, os tropicalistas lançavam mão do conceito de happening, amplamente realizado durante a década de 60 nos Estados Unidos, como uma forma de acontecimento que possibilitava que a arte encontrasse o acaso e quebrasse, de certa forma, o protocolo das apresentações artísticas e, também, soasse como resistência às repressões que estavam ocorrendo na América Latina. De hap, acaso, chegamos ao acontecimento, happening, e quiçá à felicidade,

escritor incluso na lei de segurança nacional e pornografia.” (MAUTNER, 2000, p.108).

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happiness,77 pois a partir da compreensão do acaso, resulta a felicidade na esfera ficcional do happening, tendo em vista a concepção de Giorgio Agamben em Magia e felicidade, texto de Profanações, já que para o filósofo, a felicidade não está “[...] reservada apenas a outros (felicidade significa, precisamente: para nós) [...].” (AGAMBEN, 2012, p.24). Entretanto, esse método de performance gerava interações positivas com a plateia, mas também provocações e polêmicas como as que envolveram os shows realizados na boate Sucata do Rio de Janeiro. Contudo, a emissora paulista TV Tupi, extinta em 1980, apostou nos tropicalistas contratando-os, Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes e Jorge Ben, para a execução do programa Divino maravilhoso, que foi ao ar pela primeira vez em 28 de outubro de 1968, contrato que duraria pouco em função da pressão dos militares, como aponta Rita Lee, em sua autobiografia:

Sem aviso prévio, a direção da emissora um dia despede os tropicalientes sem mais, ou melhor, o ‘conselho’ indireto dos milicas acabou vencendo e a TV Tupi achou por bem não forçar mais a barra. Pressão dos telespectadores, disseram. Pena não existir nenhum registro do Divino Maravilhoso. Dizem que as pérolas todas sucumbiram num incêndio e baubau. História pra lá de mal contada para quem, como eu, tem mania de conspiração. (LEE, 2016, p. 87).

No fim dos anos 60, quatro emissoras de televisão, Globo, Record, Bandeirantes e Excelsior, foram acometidas por incêndios, informação que faz com que a desconfiança de Rita se justifique inteiramente. Segundo Elio Gaspari, só no período entre 1966 e 1970 ocorreram oito casos e todos esses episódios foram, inicialmente, alardeados e tratados pela imprensa como atos de esquerda terrorista, mas a verdade passava longe da tese de ataque político-pírico, uma vez que

[...] nenhuma televisão se considerou formalmente vítima de um atentado. Como seus contratos não

77 A constatação etimológica em língua inglesa é feita por Flávia Cera em Arte- Vida-Corpo-Mundo, segundo Hélio Oiticica, tese de doutorado da autora, defendida no Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC em 2012. 146

cobriam sinistros provocados por sabotadores, elas preferiram ficar com a versão bem mais lógica dos acidentes. A TV Record já pegara fogo em 1966, e aquele fora o segundo incêndio do ano. A Globo, onde o incêndio teria começado pela explosão de um frasco de gasolina gelatinosa (explosivo jamais usado pelos grupos de esquerda, quer antes, quer depois de 1969), fez um grande negócio: ‘Para nós, isso foi simplesmente o melhor que podia acontecer. Com o incêndio, nos livramos de uma só vez de toda a velharia que atrapalhava a nossa produção. Com o dinheiro do seguro – uma bolada de quase 7 milhões de dólares – pudemos comprar tudo o que precisávamos, do jeito que queríamos, novo em folha’, relembrou anos mais tarde Walter Clark, o diretor-geral da emissora. (GASPARI, 2014, p.66- 7).

Assim, o momento coletivo da Tropicália foi encerrado no palco do Divino maravilhoso numa espécie de funeral, com direito a cartazes com dizeres como aqui jaz o tropicalismo, numa retomada do que os artistas haviam proposto, anteriormente, em Vida, paixão e banana do tropicalismo. Depois, Costa e Silva assinaria o Ato Institucional nº 5, instituindo uma era ainda mais assombrosa dentro do cenário ditatorial, que impunha severa censura e arbitrariedades flagrantes como o fechamento do Congresso Nacional, a suspensão dos direitos políticos, demissão de funcionários públicos, interrupção do instrumento do habeas corpus e tantos outros exemplos ditatoriais, embora o governo golpista mantivesse uma fachada democrática permitindo a existência de dois blocos politicamente opostos: ARENA (Aliança Renovadora Nacional), a favor do governo repressor, e o opositor MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Na esteira dos acontecimentos retrógrados, Caetano e Gil são presos dias depois num claro exemplo de censura artística, mas que, assustadoramente, fora encarada com normalidade por muitos setores sociais e recebida com a quietude de boa parte da população, inclusive de artistas, num caráter de tolerância e omissão para com o Estado de exceção. Sendo assim, Flávio Tavares78 aponta,

78 Flávio Tavares, jornalista e professor da UnB, preso e torturado na ditadura civil-militar, passou por longo exílio após ser libertado, com outros 14 presos 147

em Memórias do esquecimento: os segredos dos porões da ditadura, que após a tarde de 13 de dezembro, quando o governo militar passa, oficialmente, a ser uma ditadura numa sucessão de desmandos mais amplos e mais ofensivos do que em 1964, “o medo se incorporou ao cotidiano. A delação e o colaboracionismo fizeram do dedo-duro um dos suportes do regime. Começava-se a falar baixinho ou a nada dizer e a tudo calar. O bom patriota era o brasileiro com medo, domesticado pelos tambores militares.” (TAVARES, 2012, p.26). Contudo, poucos dias antes da decretação do AI-5, Torquato embarcou num cargueiro rumo a Londres na companhia de Hélio Oiticica, que participaria de uma vernissage na Whitechapel Gallery em 18 de fevereiro de 1969. Além de acompanhar o amigo, cuja obra Torquato era grande entusiasta, a partida se dava por temor do que viria e, em função disso, o poeta dissera ao artista plástico Antônio Manuel: “Vou embora porque alguma coisa vai explodir por aqui, algo vai acontecer”, como percepção de que o regime seria endurecido e se transformaria na “tropimilicadura”, como ele se referia à ditadura brasileira, como é possível se constatar nas cartas enviadas da capital britânica para o cunhado Hélio Silva.79 Na estadia em Londres,80 um políticos, em troca do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, em 1969, como pode ser visto em Hércules 56, documentário de Silvio Da-Rin. 79 Hélio menciona em Torquato Neto – Todas as horas do fim que, às vezes, demorava ou esquecia-se de responder às cartas. A demora fazia o poeta entrar na paranoia de que estava sendo lido; interceptado. Em função disso, mandava recados desaforados aos censores nas correspondências que enviava para parentes e amigos no Brasil para o caso de que eles, os possíveis leitores irregulares, estivessem lendo as cartas ao invés dos reais destinatários. 80 Nem todas as experiências de Torquato no autoexílio foram positivas, como é apontado por Frederico Coelho, em Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: “Oiticica e Torquato foram juntos, mas retornaram rompidos por questões pessoais – uma situação que perduraria por algum tempo. Pelo que se pode concluir hoje, a amizade entre os dois sofreu um forte abalo, culminando com a separação temporária. Segundo Waly Salomão, ‘Hélio e Torquato, após a exposição na Whitechapel, se desentenderam’. O compositor segue para Paris, enquanto o artista plástico permanece em Londres. Aliás, é em Londres também que ocorre o suposto rompimento entre Torquato e seus parceiros tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil. Apesar de nunca ter aparecido nenhuma evidência concreta desse rompimento – Caetano Veloso inclusive nega reiteradamente essa versão dos fatos −, isso é notório em algumas declarações de Torquato e no seu afastamento musical das atividades dos compositores baianos. As rupturas entre Torquato, Oiticica e os músicos baianos não chegavam ao ponto da desaprovação de seus trabalhos ou do desmerecimento 148

autoexílio acertado, o poeta conviveu com artistas do Exploding Galaxy, grupo multimídia liderado pelo filipino David Medalla, que dirigia junto com Paul Keeler a Signals Gallery, importante local de experimentação artística contracultural dos anos 60, experiência que possibilitaria ao poeta conhecer nomes como Yoko Ono e Jimi Hendrix. 81

de suas qualidades. Torquato e Oiticica, por exemplo, reataram em 1971 seus contatos criativos e mantiveram uma intensa troca de cartas até a morte do primeiro, em novembro de 1972. Além disso, ele nunca se furtou em elogiar os trabalhos posteriores dos compositores em suas colunas e declarações.” (COELHO, 2010, p.234-5). 81 É conhecida a história do encontro de Torquato com o músico estadunidense em Kesington, bem como a conversa que teria possibilitado ao poeta ver a morte nos olhos do artista. Hendrix, de fato, morreria pouco tempo depois e sua morte reverberaria nas anotações do poeta, que constam no diário de engenho de dentro, no fragmento 14/10: “onde, em mim, a morte de jimi hendrix repercutiu com mais violência? há mais de um ano, em londres, eu havia dito com absoluta certeza: ele vai morrer. onde, em jimi hendrix, eu vi o espectro da morte? eu havia estado com ele, carlo e noel – mais uns três sujeitos – naquele enorme apartamento de Kensington e quase não falamos nada durante todo o tempo em que fumamos haxixe e escutamos aquele álbum branco dos Beatles e mais alguns discos que não me lembro – nem poderia lembrar. por que é que eu não sei, mesmo agora, escrever qualquer coisa a mais sobre hendrix, a não ser que, naquele dia, conferi a perfeita extensão de sua música em sua cara – obedecendo à ordem com que as duas coisas me foram apresentadas? eu sei que não posso escrever jamais qualquer coisa sobre esse encontro, sobre a tremenda curtição daquela noite, etc, etc, etc. agora que o homem está morto, menos ainda. Eu não ousaria – como não ouso sequer contar esse fato aos poucos amigos que ainda tenho. Interessa agora saber o seguinte: por que, diante do impacto que o conhecimento pessoal, social com o homem produziu sobre mim, ao ponto de não conseguir, depois, pelo menos ‘recordar’ o tempo aproximado que estivemos, eu e carlo, naquele apartamento – por que – sabendo já de antemão sobre jimi hendrix, − por que ainda me surpreendi e me abalei com a notícia de sua morte, no dia dela? ou seja, voltando ao início: onde, em mim, a notícia de sua morte conseguiu repercutir ainda com violência, me pegando de ‘surpresa’? a gente sabe que toda morte nos comunica uma certa sensação de alívio, de descanso. não existe, pra mim, a menor ‘diferença’ entre o hendrix que eu ouvia antes e o que posso ouvir depois, agora, de sua morte. ele sempre foi claro demais, limpo, preto. eu disse: o homem vai morrer, e não demora mais dois anos. beneto e ana ouviram, em londres.” (NETO, 1982, p.360). O marcante encontro seria mote para a ficção Não há nada lá de Joca Reiners Terron, cujos capítulos são dispostos na publicação de modo decrescente, apresentando uma narrativa caótica e um esquema poliédrico como a figura que ilustra a capa da obra. Em dado momento, Terron reproduz o fragmento 14/10 149

No início tropicalista, ainda em 1967, as autoridades militares mantiveram-se indiferentes à Tropicália, mas as apresentações televisivas ampliaram sua expressão e visibilidade acendendo a luz vermelha no universo militar. Em paralelo a isso, as tensões com o público conservador de direita e os grupos nacionalistas de esquerda também se ampliavam com a aproximação cada vez mais palpável entre os tropicalistas, a cultura de massa e o mercado. Em função disso, Augusto de Campos recorre a Vladimir Maiakóvski como forma de ilustrar a patrulha ideológica que cercara os tropicalistas e mostrar como havia a necessidade de se propagar o combate aos conservadores, afinal, segundo o crítico,

os que querem a música ‘participante’, em formas conservadoras, folquilóricas, deveriam se lembrar do que disse o maior dos poetas participantes do nosso tempo, Vladimir Maiakóvski: ‘não pode haver arte revolucionária sem forma revolucionária’. Não adianta transformar o Chê em clichê. É claro que Maiakóvski também incomodou. Desde cedo ele já satirizava os seus ‘inquisidores’: no poema ‘Aos Juízes’ (1915) Maiakóvski imagina uma vida tropical paradisíaca no Peru até que de repente, chegam os juízes com sua tábua de proibições. (CAMPOS, 2008, p.263).82 torquatiano com pequenas alterações e no capítulo 46 há a descrição da aproximação entre o poeta e o músico: “Na noite de 14 de outubro de 1970, num apartamento imundo do bairro londrino de Kensington, cercado por hippies piolhentos vindos dos mais longínquos extremos do planeta, Torquato Neto aguarda o Grande Guitarrista. Com um spliff de haxixe numa mão, passando, depois de um gole, a garrafa de uísque a Carlo, o taitiano molambento sentado ao seu lado, Torquato Neto, em total estado de confusão mental, espera a chegada do Grande Guitarrista.” (TERRON, 2011, p.151). 82 Na menção aos versos desse poema, percebe-se, claramente, a associação que Augusto faz com os ataques aos tropicalistas: Bananas, ananás! Peitos felizes./Vinho nas vasilhas seladas.../Mas eis que de repente como praga/No Peru imperam os juízes!/[...]/Nem os meus versos escapam à censura;/São interditos, sob pena de tortura./Classificaram-nos como bebida/Espirituosa: ‘venda proibida’./[...]/Os juízes cassam os pássaros, a dança,/A mim e a vocês e ao Peru.(MAIAKÓVSKI apud CAMPOS, 2008, p.264). Torquato, avalizando a observação de Campos, escreve no artigo Três poemas de Maiakóvski, de 17 de fevereiro de 1972, uma exaltação ao poeta da revolução: “Vladimir 150

Em Cultura e política, 1964-1969, Roberto Schwarz alerta o leitor que o texto em questão fora escrito entre 1969 e 1970, portanto, haveria prognósticos errados, que os anos seguintes comprovariam, mas sua publicação integral seria válida pela escritura em simultâneo com os acontecimentos descritos e pela tentativa de expor como era o cenário político-cultural naquele momento, por isso, o crítico enfatiza a participação da massa que apoiava o Estado repressor sabendo ou não das consequências que esse apoio popular teria:

Já no pré-golpe, mediante forte aplicação de capitais e ciência publicitária, a direita conseguira ativar politicamente os sentimentos arcaicos da pequena burguesia. Tesouros de bestice rural e urbana saíram à rua, na forma das ‘marchas da família, com Deus pela Liberdade’, movimentavam petições contra divórcio, reforma agrária e comunização do clero, ou ficavam em casa mesmo, rezando o ‘Terço em Família’, espécie de rosário bélico para encorajar os generais. (SCHWARZ, 1992, p.70).

Mas, o texto crítico de Schwarz seria ainda mais pertinente porque, como observa João Camillo Penna, o autor marxista teria sido o primeiro a apontar “[...] o caráter tropológico da imagem tropicalista, ao

Maiakóvski nasceu em 1893 e suicidou-se com um tiro em 1930. Foi um dos maiores poetas dos tempos modernos e tem exercido, com sua obra, profunda influência em todo o desenvolvimento da poesia.” (NETO, 1982, p.266). Assim, a desesperança de Maiakóvski, que o levaria a ceifar a própria vida, também acometeria Torquato, encerrando a luta particular de cada um, mas não a de seus ideais, perpetuados ainda hoje, sobretudo na lembrança desses poetas, que, segundo Aderval Borges, em O fato, a coisa e alguns traços de outros troços, tinham por similaridade a pressa “[...] porque anteviam que o tempo lhes seria curto e precisavam, com urgência, fazer com que as coisas ocorressem. A afirmação-negação (‘só quero saber do que pode dar certo. certo?’), o nonsense, o deboche, a ironia agressiva e o humor mordaz estão entre os traços comuns entre ambos. Outro aspecto a se destacar: tudo o que escreveram foi sobre eles próprios, embora de modo algum tenham feito obras autobiográficas. Dizia Maiakóvski: ‘Quando pronuncio eu, estou me referindo a todos os homens.’”(BORGES, 2012, p.30-1).

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interpretá-la como alegoria, segundo a tipologia benjaminiana do Trauerspiel.” (PENNA, 2017, p.57) e o fez também enfatizando a brasilidade do momento tropicalista eclipsado naquele instante:

[...] Significando uma ideia abstrata com que nada têm a ver, os elementos de uma alegoria não são transfigurados artisticamente: persistem na sua materialidade documental, são como que escolhos da história real, que é a sua profundidade. Assim, é justamente no esforço de encontrar matéria sugestiva e datada – com a qual alegorizam a ‘ideia’ intemporal de Brasil – que os tropicalistas têm o seu melhor resultado. Daí o caráter de inventário que têm filmes, peças e canções tropicalistas, que apresentam quanta matéria possam, para que esta sofra o processo de ativação alegórica. (SCHWARZ, 1992, p.77-8).83

De tal modo, nem mesmo o (auto)exílio dos tropicalistas, faria com que a Tropicália findasse efetivamente e, tampouco, cessasse o uso de imagens alegóricas, que reverberavam na produção cultural do país, o que, por sua vez, evidencia que referir-se apenas a Caetano e Gil, expoentes de maior visibilidade, na tentativa de elucidar o momento

83 No entanto, é preciso compreender o teor de alegoria defendido por Schwarz e, em função disso, a crítica que o autor faz à Tropicália e seus artistas, como aponta Pedro Duarte, em Tropicália ou panis et circencis, ao considerar que “[...] a alegoria, para Lukács, compraz-se numa ambiguidade socialmente alienada, pela qual ela pode, ao mesmo tempo, estranhar o mundo e se integrar a ele, sem compromisso com sua transformação. O embate, aqui, é entre duas concepções de dialética: a de Benjamin, heterodoxa e interessada na tensão paradoxal entre as diferenças, é alegórica; a de Lukács, ortodoxa e interessada na superação sintética das oposições, é simbólica.” (DUARTE, 2018, p.148). Em outras palavras, a Tropicália é absolutamente benjaminiana e o uso de paródias e pastiches é a tentativa de construção de imagens dialéticas em que as oposições, moderno/arcaico, antigo/novo e presente/passado não se constituem como dados aleatórios, pois para haver êxito artístico era necessário haver tensão entre os elementos e, como aponta Rogério Duarte, os tropicalistas estavam “[...] querendo deixar de ser colonizados, seguir um pensamento que não tivesse balizas.” (DUARTE, 2003, p.138).

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tropicalista se torna injusto e inverídico, dada a gama de obras e artistas, não só baianos e músicos, que a Tropicália abarca. Gal Costa e Jorge Ben, por exemplo, ansiavam pela volta de todos, dos amigos artistas, dos militantes e também da liberdade, como demonstram em Deus é o amor, canção de Ben interpretada por Gal, numa espécie de oração alegórica, uma alegoria de exílio:

Todo mundo vai embora Mas a chuva não quer parar Ninguém mais quer ficar Só eu, sozinho, vou me molhar Mas eu tenho fé Que a chuva há de passar E aquele sol tão puro De manhãzinha bem quentinho Há de chegar E os passarinhos vão cantar Pois a alegria vai voltar E todo mundo que foi embora vai voltar

Ademais, como aponta o paramarxista Herbert Marcuse, em Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, a censura e o exílio não findavam o ímpeto artístico dos tropicalistas porque

o protesto dos jovens continuará porque é uma necessidade biológica. ‘Por natureza’, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam por Eros contra a morte e contra uma civilização que se esforça por encurtar o ‘atalho para a morte’, embora controlando os meios capazes de alongar esse percurso. Mas, na sociedade administrativa, a necessidade biológica não redunda imediatamente em ação; a organização exige contraorganização. Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política. (MARCUSE, 2015, p.xxi).

Desse modo, a relação entre o homem e o mundo não consiste em uma dicotomia, mas sim num jogo de devir em que, como aponta Marcuse, “segundo Freud, a história do homem é a história da sua repressão. A cultura coage tanto a sua existência social como a biológica, não só partes do ser humano, mas também sua própria 153

estrutura instintiva. Contudo, essa coação é a própria precondição do progresso.” (MARCUSE, 2015, p.09). Em função disso, Torquato considerava que apesar da repressão era possível agir, ocupar espaço, ser ator social, um corpo com inúmeras faces, numa travessia cine-lítero- musical porque “a realidade tem suas brechas [...].” (NETO, 1982, p.117) Ou, como aponta Augusto de Campos, se referindo, especificamente, a Caetano e Gil, mas que bem poderia ser estendido a todos os artistas tropicalistas nas particularidades de seus ofícios:

Há cronistas e compositores que pensam que o único dever do artista é bajular e badalar o gosto do público. São os defensores da música batizada de ‘gastronômica’ por Umberto Eco: dar ao público o que ele já sabe e espera inconscientemente ver repetido. Respeitar o código para ser respeitado. Na verdade, essa é a melhor maneira de iludir o público e de desrespeitá-lo. Seria fácil a Caetano e Gil cultivarem essa espécie de ‘bom comportamento’, como fazem outros compositores muito ‘participantes’, mas que mal escondem a avidez pelo aplauso ‘gastronômico’. Mas eles preferiram assumir o risco quase suicida de desagradar para despertar a adormecida consciência de liberdade dos destinatários da sua mensagem. Talvez custem a ser compreendidos. Não importa. Como disse Fernando Pessoa, ‘o amanhã é dos loucos de hoje’. E como disse Décio Pignatari, prata da casa: ‘na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e de osso’. (CAMPOS, 2008, p.268).

Nessa lógica, a Tropicália resgatava a ideia poética e, em certa medida, profética do salto de tigre em relação ao passado, imagem blakeana utilizada por Benjamin, assumindo que só haveria consistência na arte que produziam a partir da necessidade do novo, mas também do resgate do que ainda era vivo e alegre no passado. 84

84 Na tese 14 de Sobre o conceito de História, Walter Benjamin aponta que “a moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado.” (BENJAMIN, 2011, p.230). Em função disso, Michael Löwy observa, em Walter Benjamin: aviso de incêndio, que ao contrário da moda, “[...] a revolução é a interrupção 154

da eterna volta e o surgimento da mudança mais profunda. Ela é um salto dialético, fora do contínuo, inicialmente rumo ao passado e, em seguida, ao futuro. O ‘salto do tigre em direção ao passado’ consiste em salvar a herança dos oprimidos e nela se inspirar para interromper a catástrofe presente.” (LÖWY, 2010, p.120).

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3. Pureza é um mito

Torquato marca uma mudança radical, um salto qualitativo, na história disso que se chama, na falta de termo melhor, poesia brasileira. Paulo Leminski em Os últimos dias de um romântico

Apenas a matéria vida era tão fina Caetano Veloso em Cajuína

Em 1968, na geleia geral cultural e política do Brasil, os artistas e parte mais consciente da população tinham as cabeças ameaçadas e assombradas pelas lâminas afiadas do poder, tal como Dâmocles, segundo o poeta Waly Salomão. Em face disso, Rogério Duarte, multiartista e mentor tropicalista, propõe o conceito de apocalipopótese, palavra-valise composta pela fusão entre os vocábulos apocalipse e hipótese, para serenar a aura sombria daqueles tempos, anos de chumbo, em um “[...] anúncio contínuo de que todo dia é dia D, um carpe diem negativo, sob a espada de Dâmocles, embaixo do poder das armas [...].” (SALOMÃO, 2005, p.60), como visto em O suicídio enquanto paráfrase ou Torquato Neto esqueceu as aspas ou Torquato Marginália Neto. Assim, o conceito híbrido seria materializado por Rogério e Hélio Oiticica por meio de uma complexa exposição que apresentava um exemplo de arte coletiva e participativa, longe do isolamento das galerias, onde a população poderia interagir com as obras e ações artísticas propostas. O evento se deu em julho daquele ano no Aterro do Flamengo com curadoria do crítico Frederico Morais85 e era dedicado a José Celso Martinez Corrêa, em função da verve criativa e contestadora do diretor teatral, mas, sobretudo, como ato solidário aos acontecimentos recentes, o ataque durante uma apresentação de Roda Viva, peça escrita por Chico Buarque e dirigida por Zé Celso, efetuado

85 Durante a apocalipopótese, Frederico Morais e Torquato Neto deram vida a parangolés de Hélio Oiticica, trajando, respectivamente, Guevarcália, dedicada a Che Guevara, e um parangolé colorido. 156

pelo Comando de Caça aos Comunistas, uma organização paramilitar de direita, que invadira o Teatro Ruth Escobar, quebrara o cenário e espancara os atores sob a alegação de que a peça era imoral e subversiva. 86 Basicamente, Apocalipopótese ocorrera no âmbito de um evento chamado Arte no Aterro, reunindo diversos artistas de vanguarda, poucos meses antes da decretação do assombroso AI-5. Primeira manifestação artística do país nos moldes propostos, seria mote para o documentário, homônimo, de Raymundo Amado,87 que captura a interação entre o público, composto de um significativo número de crianças, e os artistas participantes: Antônio Manuel, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Passistas da Mangueira, Pedro Escosteguy, Pietrina Checcacci, Rogério Duarte, Sami Mattar, Wlademir Dias-Pino e Torquato. Durante sua realização, a expressiva reunião de artistas exalava alegria e tensão, diante da hipótese da repressão atuar subitamente, mas o clima e propósito que os unia compunha uma alegoria da repressão, como citado em A invenção de Hélio Oiticica, formada por meio do intercâmbio entre o público, as obras e performances elencadas por Celso Favaretto:

86 O enredo abordava a construção e destruição, via indústria cultural, de ídolos do mundo pop. A personagem principal, o músico Ben Silver (Benedito Silva), é devorada para representar o consumo dos ícones midiáticos na sociedade brasileira. Ácida e impetuosa para a época de chumbo, a montagem despertou a ira dos direitistas, pois, além da gravidade do ocorrido no teatro paulistano, antes de uma apresentação em Porto Alegre, soldados do Exército invadiram o hotel em que os atores estavam hospedados, espancaram todo o elenco e tentaram estuprar a atriz Elizabeth Gasper. 87 Além do filme de Amado, Apocalipopótese também originou um filme, que seria censurado, de Antônio Manuel, artista português, como Torquato cita em Espaço partido ao meio, meia oito, texto de 02 de março de 1972, da coluna Geleia geral: “Cultura & Loucura & Sambistas & Samba da Mangueira & Cage passeando & Parangolés & Caeteles Velásia Parangolé 1968 & Outros & Esses cães fazem coisas do arco da velha & num domingo Apocalipopótese apocalipse hipopótamo hipótese louca cultura manifestações planos gerais no Aterro tropicália conhecimentos e transações variadas amores novos observação e desfile, levantamento como sempre do espólio, cultura, loucura. [...] Cultura & Loucura, filme de Antônio Manuel com vários dos supracitados. Depoimentos, 1971/72. Conclusão próxima com filmagem em New York e Milão. Em cores. Breve. Rogério Duarte mais Antônio Manuel mais Antônio Luís.” (NETO, 1982, p.282). 157

[...] Ovos de Lygia Pape (‘exemplo clássico de algo puramente experimental, por isso mesmo eficaz’), propostos para serem furados, metaforizando o refazer, o reviver; as Urnas Quentes de Antonio Manuel, que, abertas a machadadas, liberavam panfletos e imagens da ditadura (‘mais do que o protesto que encerra, a ideia de mensagem é poética, iniciada no ato de martelar para abrir, quebrar e achar o cerne, possuir o código poético’); as capas de Oiticica, vestidas por passistas; os cães amestrados, sob o comando de Rogério Duarte [...]. (FAVARETTO, 2000, p.179).

Portanto, o intento de Duarte se configurou como uma tentativa de gerar experimentação, criação coletiva e de promover uma postura ética e crítica diante dos acontecimentos políticos, tendo em vista que naquele instante os artistas tropicalistas atuavam de modo contestador em um cenário demasiado vil, opondo-se à chamada patrulha ideológica da esquerda tradicional e também à repressão conservadora direitista, tarefa custosa reconhecida, posteriormente, pelo designer, em Rogério Duarte se textifica, ao fazer um relato justo sobre a Tropicália e seus partícipes e salientar que ele, Rogério, se sentia

[...] no dever de tomar a palavra para que Torquato, Glauber Rocha e Hélio Oiticica não tenham perdido, além da vida, a sua própria razão de terem existido. É uma questão até de justiça histórica. Nós que pagamos – eu com prisões e torturas; Caetano e Gil com exílio; além de Glauber, Hélio e Torquato, com a morte – merecíamos uma leitura mais profunda de nossos papéis. (DUARTE, 2003, p.137).

Reiterando essa questão, em A praia da Tropicália, presente em Armarinho de miudezas, Waly Salomão avalia a importância dos tropicalistas ao fazer referência ao fato de que eles “[...] funcionaram como sismógrafos, como antenas de gafanhotos captando abalo sísmico iminente. La terra trema, terra em transe. As sirenes apitando e a nota era um só: a fragilidade das instituições político-sociais brasileiras [...].” 158

(SALOMÃO, 2005, p.41-2). Desse modo, o contexto político-cultural em que ocorreram as produções tropicalistas teria que ser considerado em função das agruras da época, mas também por constar num Brasil que era palco de intensas transformações, como assinala Roberto Schwarz, em O pai de família e outros estudos:

Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo. O governo populista de Goulart, apesar da vasta mobilização esquerdizante a que procedera, temia a luta de classes e recuou diante da possível guerra civil. Em consequência a vitória da direita pode tomar a costumeira forma de acerto entre generais. O povo, na ocasião, mobilizado mas sem armas e organização própria, assistiu passivamente à troca de governos. Em seguida sofreu as consequências: intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral de salários, expurgo especialmente nos escalões baixos das Forças Armadas, inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução das organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus, etc. Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. (SCHWARZ, 1992, p.61-2).

Entretanto, em Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos, Flora Süssekind nota como a estratégia militar foi certeira ao permitir que os artistas e intelectuais esperneassem contra a opressão ao terem a certeza de que as manifestações artísticas e os eventuais protestos não chegariam à massa, pois

[...] os protestos eram tolerados, desde que diante do espelho. Enquanto isso, uma população convertida em plateia consome o espetáculo em 159

que se transformam o país e sua história. A utopia do ‘Brasil Grande’ dos governos militares pós-64 é construída via televisão, via linguagem do espetáculo. Sem os media e sem público, a produção artística e ensaística de esquerda se via transformada assim numa espécie de Cassandra. Podia falar sim, mas ninguém a ouvia. A não ser outras idênticas Cassandras. Por isso talvez a crítica mais aguda ao autoritarismo nesses primeiros anos tenha sido a do movimento tropicalista, francamente hostilizado pelos militantes de esquerda à época, como lembrou certa vez Caetano Veloso numa entrevista ao Leia Livros: ‘Naquela época jogaram banana em minha cara, um pau que feriu o Gil. Era muito mais violento, os estudantes de esquerda eram muito mais repressivos do que são agora. ’ (SÜSSEKIND, 1985, p.14-5).

Nesse caso, os tropicalistas destoavam da esquerda tradicional, até então dominante nas artes, sobretudo na MPB, e foram hostilizados em função da postura que adotavam, constituindo-se como “[...] uma esquerda à esquerda da esquerda.” (VELOSO, 2008, p.437), como Caetano ironiza em Verdade tropical. A aversão que os marxistas tinham em relação aos métodos político-culturais dos tropicalistas era algo que Torquato via como um paradoxo, pois todas as variantes esquerdistas eram acossadas pelo aparato ditatorial, o oponente era comum, precisavam ter voz ativa e no nosso destino mandar, como nos versos da roda viva buarqueana, logo, era um contrassenso repreender o novo, representado por artistas e conceitos arrojados, que visavam liberdade estética, mas também política. Apesar disso, da ditadura e do recorrente comportamento retrógrado encontrado no campo social e artístico, o período de efervescência e multiplicidade cultural era aproveitado por poetas como Torquato, contemporâneo, segundo o conceito de Giorgio Agamben, posto em O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Ao tecer um poema como Cogito, o poeta “não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade.” (AGAMBEN, 2009, p.63-4), estabelecendo um diálogo com o pensamento cartesiano por meio do título, que acena a cogito, ergo sum, penso, logo existo, máxima que representava para Descartes que era a 160

capacidade de pensar que dava ao homem a consciência de sua existência e não o seu existir propriamente, o estar vivo no mundo:

eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim (NETO, 2004, p.165).

O cogito torquatiano propõe a experiência na fronteira entre a vida e a morte, a existência e a não existência, em que, para tal, ocorre a valorização do instante atual e o poeta se coloca como vidente do agora e não do futuro, como seria na lógica e na racionalidade cartesiana, caráter sintomático de sua geração; que se mostra preocupada com o futuro, distinta do passado e avessa às tiranias do presente, o que os faz, em certa medida, valorizarem o aqui e agora, pois “diferente da matriz cartesiana que pôs em questão o mundo, o canto do poeta duvida do próprio cogito, da própria identidade do Eu.” (ALMEIDA, 2000, p.66), como aponta Laura de Almeida, em Um poeta na medida do impossível: trajetória de Torquato Neto. Por conseguinte, o poema aborda a constituição do sujeito e a percepção de finitude já que a presença dos vocábulos agora, nesta hora, presente, mostram que a 161

temporalidade pretendida é a do já, do instante vivenciado, onde o passado não é demonstrado e não se cogita o futuro, mecanismo que permite inferir que o poeta não apresenta traço de nostalgia e, tampouco, de utopia. Nesse sentido, em A escritura de Torquato Neto, Feliciano Bezerra aponta que Cogito apresenta uma mentalidade quiliasta, pois “o quiliasta está sempre pronto a se lançar, interessa-lhe a transformação imediata do espaço presente e do tempo presente.” (BEZERRA, 2004, p.23), atitude que o poeta desempenharia na extensão de sua breve trajetória, mas no poema, em específico, pode ser entendido a partir das quatro partes que o formam, quiçá quatro estágios de vivência: o princípio, que trata do estágio inicial do percurso do eu lírico, seguido do momento transitório sem grandes segredos e secretos dentes vampíricos; uma terceira estrofe dedicada à incompletude do presente e, por fim, a derradeira fração em que o poeta expõe sua vidência, que pressupõe o conhecimento da passagem de todas as etapas anteriores, consciente da proximidade do fim, do poema e da vida. Deste modo, o poema “formal” mais conhecido de Torquato pode ser entendido, sob a ótica cristã, como a trajetória de um quiliasta vampírico à espera do julgamento final e, a partir desse viés, o poeta, indiretamente, propõe a força do presente que, naquele instante, exigia ocupar espaço, como uma estratégia de guerrilha no campo cultural, como ele cunhava em suas colunas jornalísticas:

E agora: Eu não conheço uma resposta melhor do que esta: vamos continuar. E a primeira providência continua sendo a mesma de sempre: conquistar espaço, tomar espaço, ocupar espaço. Inventar os filmes, fornecer argumentos para os senhores historiadores que ainda vão pintar, mais tarde, depois que a vida não se extinga. Aqui como em toda parte: agora. (NETO, 1982, p.137).

Postulado que o tropicalista demonstra ainda mais num artigo da Geleia geral, de 30 de novembro de 1971, ao comparar a similaridade entre seu projeto político-cultural e o Teorema de Pier Paolo Pasolini, filme alegórico de 1968, que apresenta uma família desestruturada, enquanto instituição social, a partir da chegada de uma visita anônima, 162

quase um messias, que no transcorrer do tempo interrompe e transforma “[...] o curso das coisas banais dos dias [...]” (SALOMÃO, 2005, p.60), ao passar a se relacionar com todos os seus membros, inclusive sexualmente, ocupando todos os espaços da casa burguesa, sobretudo, emocionalmente:

O que eu chamo de 'ocupar espaço' está, de certa maneira, naquele Teorema de Pasolini. […] Ocupar espaço, num limite de 'tradução', quer dizer tomar o lugar. […] Ocupar espaço, criar situações. Ocupa-se um espaço vago como também se ocupa um lugar ocupado: everywhere. […] Ocupar espaço: espantar a caretice: tomar o lugar: manter o arco: os pés no chão: um dia depois do outro. (NETO, 1982, p.180-1).

O poema visual Tristeresina, com fotos de Maurício Cirne, composto em outubro de 1972, no prenúncio do fim, é o exemplo máximo do lema torquatiano. O poeta ocupa o corpo do poema representando a volta à origem teresinense, seu ponto inicial e final, seu deslocamento escalar. Assim, o até então retórico ocupar espaço ganha uma dimensão literal e o poeta ocupa, com seu próprio corpo, o espaço do poema, que se utiliza da técnica de palavra-valise em seu título, ao fundir o adjetivo triste e o nome Teresina, vocábulos representados manualmente em volta do corpo poético. Segundo José Miguel Wisnik, em Cajuína transcendental, o poema é “[...] caligráfico-visual em foto- cartaz” (WISNIK, 2010, p.219) e nele vemos saltar aos olhos, primeiramente, a palavra resina, em caixa alta e em três quadrantes, e sina, apenas uma vez. No entanto, em segundo plano, o termo triste, em letra cursiva, domina a composição em função da repetição ininterrupta nos quatro fragmentos visuais da obra, que sugerem leituras como triste resina, triste sina e também, em função de inferência, triste Teresina.

163

Figura 9 − Tristeresina

Fonte: Os últimos dias de paupéria

Neste painel poético, Torquato se esforça para caber no poema, parece apertado nas duas partes em que seu rosto figura, fazendo com que se tenha a impressão de que a ocupação do espaço é dolorosa, mas necessária, em seguida, some abruptamente nos evidenciado que o poeta integra e desintegra o poema caracterizando-se como o corpo na arte, como “[...] o próprio poeta sendo o corpo da poesia, o poeta sendo o poema.” (SALOMÃO, 2005, p.63), numa época que torna explícito o elo entre o sujeito e o objeto, a vida e a arte. Ademais, Tristeresina dialoga com o soneto Triste Bahia, de Gregório de Matos:

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante, 164

Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote!

(MATOS apud BOSI, 2010, p.38-9).

O poema atravessa a terra de Gregório e a exploração dos recursos naturais que a Bahia vinha sofrendo por parte dos negociantes estrangeiros no ciclo açucareiro, cuja extração das matérias-primas por forasteiros produzia necessidades e falta de recursos no campo local. Assim, a crítica gregoriana acena à degradação de seu local de origem e ao declínio da política protecionista do Estado mantida pela coroa portuguesa, que passou a ser prejudicial à nobreza luso-baiana, da qual Gregório descendia, pois D. João IV, a partir de 1640, alia-se aos brichotes, britânicos, e privilegia a máquina mercante, os estrangeiros e os grandes latifundiários da Bahia, ao passo que o “decadente” Gregório reage. Atento a isso, Caetano Veloso, antes da composição do poema torquatiano, faz uma parceria atemporal e homônima com Matos, utilizando a primeira parte do poema barroco, para integrar o álbum Transa, lançado no Brasil no início de 1972, mas gravado no ano anterior ainda no exílio londrino:

[...] Triste, ó, quão dessemelhante, triste Pastinha já foi à África Pastinha já foi à África Pra mostrar capoeira do Brasil

165

Exilado, Caetano exalta as características culturais de sua terra natal, o mesmo Estado de Gregório, mas a representa como sendo o Brasil como um todo, fazendo críticas em relação à política econômica e cultural em vigência ditatorial, assim, também menciona o cântico Pastinha já foi à África, para aludir ao mestre de capoeira que levou para o mundo a capoeira afrobaiana, modalidade que chegou a ser proibida no país até o reconhecimento cultural e esportivo alcançado na era Vargas, numa gravação que redescobre a Bahia, segundo Heloisa Buarque de Hollanda, em Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, porque se constitui como “[...] inventário e mosaico, onde o poema musicado sofre a intervenção de canções folclóricas da Bahia, ruídos eletrônicos, vozes superpostas, sons de berimbau e guitarras elétricas, situando na triste e primitiva Bahia a explosão industrial do Brasil moderno.” (HOLLANDA, 2004, p.75). 88 Dessa maneira, Gregório de Matos é deglutido pelos tropicalistas, especialmente por Caetano, e viria a ser definido por Augusto de Campos, no texto integrante de O anticrítico, Arte final para Gregório, como “[...] o primeiro antropófago experimental da nossa poesia.” (CAMPOS, 1986, p.90). No entanto, no campo crítico, há uma dissensão em relação ao caso Gregório, pois Antonio Candido o exclui de sua Formação da literatura brasileira ao considerar que no século XVII ainda não havia literatura nacional; um princípio literário. Afinal, para Candido, o fenômeno “Boca do inferno” é apenas um caso de manifestação literária, isto é, independentemente de seu valor relativo à literatura, não consta dentro da tradição literária do Brasil e nem influencia autores posteriores, requisitos principais para a existência de sistema literário na concepção do crítico. Haroldo de Campos,

88 Caetano também homenageou outro mestre de capoeira no disco Cinema transcendental, mestre Moa do Katendê (Romualdo Rosário da Costa), fundador do afoxé Badauê e também de Amigos de Katendê, por meio da gravação de uma canção de Moa, Badauê, singelo aceno para a importância da cultura negra no Brasil: Misteriosamente/ O Badauê surgiu/ Sua expressão cultural/ O povo aplaudiu. Em outra canção, Beleza pura, o baiano cita o Badauê novamente: [...] Moço lindo do Badauê/Beleza pura/ Do ilê Aiyê/ Beleza pura. Tragicamente, o homenageado foi imolado com doze facadas pelas costas em um bar de Salvador, em uma discussão política ao fim do primeiro turno das eleições de 2018, ao manifestar-se como eleitor de Fernando Haddad do Partido dos Trabalhadores. 166

entretanto, mesmo tendo sido orientando de Candido,89 discordava dessa tomada de posição porque acreditava que, se assim pensássemos, todo o Barroco seria limado da historiografia literária do país. Com base nisso, em O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos, Haroldo aponta sua discordância e evidencia que Oswald de Andrade o acompanhava em seu argumento, como pode ser visto em A sátira na literatura brasileira, texto de 1945 contido em Estética e Política, quando o modernista considera que o satirista baiano “[...] foi sem dúvida uma das maiores figuras de nossa literatura. Técnica, riqueza verbal, imaginação e independência, curiosidade e força em todos os gêneros, eis o que marca a sua obra e indica desde então os rumos da literatura nacional.” (ANDRADE, 2011, p.105-6). [grifo meu].90 Sendo assim, Tristeresina lembra o lamento barroco de Matos, transpondo-o ao cenário teresinense e seus dissabores, mas também pode ser aproximado de produções posteriores, que com ela dialogam, como o poema visual Cicatristeza, de Augusto de Campos, que reúne, num mesmo vocábulo, duas máculas: a cicatriz e a tristeza. Ademais, a cartela poética torquatiana constaria na abertura do filme O terror da Vermelha, amparado no texto-roteiro vir ver ou vir, o que demonstra, portanto, que ao se voltar para sua cidade natal, o poeta parece constatar o fim de suas possibilidades em outras capitais, as cidades que habitou,91 e torna para as suas origens, para a sua triste sina, sintetizada pelo destino que Caetano evocará em Cajuína, homenagem póstuma a Torquato:

Existirmos, a que será que se destina?

89 A tese de Haroldo de Campos, Morfologia do Macunaíma de Mário de Andrade, foi dedicada a Candido e defendida em 1972, ano da morte de Torquato. 90 Além disso, para Haroldo, “nessa aparente contradição entre presença (pregnância) poética e ausência histórica, que faz de Gregório de Matos uma espécie de demiurgo retrospectivo, abolido no passado para melhor ativar o futuro, está em jogo não apenas a questão da ‘existência’ (em termos de influência no devir factual de nossa literatura), mas, sobretudo, a da própria noção de ‘história’ que alimenta a perspectiva segundo a qual essa existência é negada, é dada como uma não-existência (enquanto valor ‘formativo’ em termos literários).” (CAMPOS, 2011, p.22). 91 A trajetória de Torquato perpassa as cidades de Teresina (PI), Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Londres e Paris. 167

Pois quando tu me deste a rosa pequenina Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina Do menino infeliz não se nos ilumina Tampouco turva-se a lágrima nordestina Apenas a matéria vida era tão fina E éramos olharmo-nos intacta retina A cajuína cristalina em Teresina

A canção-homenagem se concretiza a partir do encontro do artista baiano e Heli da Rocha Nunes, promotor público e pai de Torquato, na capital piauiense em 1978, durante a passagem do artista pela cidade na turnê de shows do disco Muito, ocasião em que o pai do menino infeliz presenteia o artista com a rosa pequenina, informação necessária para compreender os versos do tributo e fazer o ouvinte parte confidente desse encontro, como bem observa Wisnik, ao sugerir que o encantamento proporcionado por Cajuína se liga ao fato de que assim como a bebida típica do Piauí “[...] guarda a essência do caju em sua transparência, tendo decantado radicalmente a sua matéria, a canção nos faz ir ao núcleo emocional de um acontecimento do qual, no entanto, a história está subtraída.” (WISNIK, 2010, p.196). Paralelamente, a estratégia cultural torquatiana poderia também ser demonstrada no dito “PARA SER POETA/ TEM QUE SER MAIS QUE POETA” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p.52), proferido por Paulo Leminski em Epístola a Régis, carta 10 de Envie meu dicionário, afinal, como Torquato assinala em Pessoal intransferível:

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar 168

versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, 'herdeiro' da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus. E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão. (NETO, 1982, p.62).

Nesse artigo, Torquato opõe o poeta comum, de ofício técnico, com aquele que arquiteta sua arte com pujança, com intento e postura, numa rejeição à lógica compositiva de como dois e dois são quatro e, assim, menciona que destruir a linguagem e explodir com ela implica em colocar o corpo em perigo numa fusão entre o corpo do poeta e o corpo do poema, cujo fragmento destacado, como cita Mario Cámara, em Corpos pagãos, “[...] significa, em verdade, destruir a linguagem estandardizada dos poetas que não arriscam. O poeta não deve ter medo de se destruir com essa destruição, não tem que temer o risco estético da invenção nem o risco existencial que significa defender essa invenção.” (CÁMARA, 2014, p.116). Na sequência, no trecho final, o emprego do aforismo do boi ganha relevância através da imagem potente do bovino, pois o corpo evidenciado é o do animal, que o poeta aproxima do homem para fazer relação com a linguagem primitiva, o berro, como na lógica proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível..., presente em Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, quando os filósofos apontam que

a sociedade e o Estado precisam das características animais para classificar os homens; a história natural e a ciência precisam de características para classificar os próprios animais. O serialismo e o estruturalismo ora graduam características segundo suas semelhanças, ora as ordenam segundo suas diferenças. As características animais podem ser míticas ou científicas. (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.20). 169

A partir desse viés, o poeta utiliza a metáfora do matadouro para apontar para a necessidade de berrar num momento em que a lei é a do silenciamento. Berrar, nesse caso, é agir e também resistir, considerando que os porões ditatoriais são os matadouros da nação e o grito metafórico é a única resistência possível; mecanismo de luta que o poeta expõe em almondegário, texto de 15 de setembro de 1971,

[...] ponha a boca no mundo: assim não é possível. Ou então feche o riso e aperte os dentes de uma vez. Ponha a boca no mundo: somente assim é possível [...] Atenção para o refrão: tudo é perigoso etc. Atenção para o refrão: tudo é divino, maravilhoso. Atenção para o refrão: atenção para o samba exaltação. Atenção. [...] Todo dia é dia, toda hora é hora: quem samba fica. Quem não samba vai-se embora. (NETO, 2004, p.228).

Assim, em Pessoal intransferível, o poeta também parece fazer referência à linguagem rudimentar sem distinguir os homens em relação aos demais animais; seres sencientes, também detentores da capacidade de percepção da morte e do pânico aterrador que essa iminência causa, tendo a midríase como prova irrefutável da consciência do perigo e o berro como tentativa de defesa da vida, considerando que, para Nietzsche, o homem não está no cume hierárquico da natureza por constar na gênese bíblica como imagem e semelhança de Deus, pois, como aponta Barrenechea,

[...] Nietzsche afirma que o homem encontra-se no reino animal como qualquer outro ser – ‘como a formiga ou a lacrainha’ −, sua condição de ser pensante não evidencia uma posição de privilégio na natureza nem demonstra a perfeição da sua origem. O homem nada tem de divino nem de eterno, trata-se de um animal entre os animais [...]. (BARRENECHEA, 2017, p.41).

170

Evidentemente, há diferenças consideráveis entre humanos e outros animais, sobretudo intelectuais, como o inconteste dado de que a linguagem animal é incipiente frente à complexa expressão humana, no entanto, essa vantagem linguística não torna o homem diferenciado quando se mede o caráter de identidade através da capacidade de sofrer, de sentir, pois a igualdade é uma ideia moral que leva em conta os interesses de um ser, humano ou não humano, e quando esse princípio não prevalece, denomina-se como sendo especismo porque “ninguém pode negar o sofrimento, o medo ou o pânico, o terror ou o pavor que podem se apossar de certos animais e que nós, os homens, podemos testemunhar.” (DERRIDA, 2002, p.56). Partindo dessa premissa, Jacques Derrida contrapõe, em O animal que logo sou, a afirmação de Heidegger de que “o animal é pobre de mundo”, por não ter logos, dado existente porque a maior parte dos filósofos sempre amparou-se no logocentrismo antropocêntrico e, desse modo, os animais foram considerados seres inferiores, sem razão, lógica e intelecto fazendo com que o homem inventasse o vocábulo animal92 e passasse a lucrar com seu exercício de poder frente aos seres sem voz social. Imaginando-se no topo de uma pirâmide hierárquica, a humanidade segue pensando ser superior, por ser provida da capacidade de raciocinar, julgando-se apta para dominar, explorar e abater animais, tendo em vista que o homem seleciona espécies para domesticar e outras para escravizar sem dimensionar que “a crença de que a vida humana, e tão somente ela, é sacrossanta é uma forma de especismo.” (SINGER, 2013, p.28), como apontado em Libertação animal, por Peter Singer. Assim, a superioridade que o homem acredita ter ignora a possibilidade da concessão do direito ao outro, aquele que se julga inferior, talvez por isso o poeta utilize a máscara ou o aforismo do boi, que sempre retorna em seus escritos como um de seus virais, como considera Fabiano Calixto, em Um poeta não se faz com versos: tensões poéticas na obra de Torquato Neto, e que, posteriormente, também seria utilizada por Caetano, na canção Aboio, como uma forma de prece cristã:

Urbe imensa Pensa o que é e será e foi Pensa no boi

92 Assim como por meio do referencial bíblico, contido em Gênesis, nos diz a canção Man gave names to all the animals de Bob Dylan: [...] Man gave names to all the animals,/In the beginning, a long time ago. 171

Enigmática máscara boi Tem piedade

De tal modo, não por acaso, o poeta utiliza a máxima do boi como imagem para a reação ao terror também em outros momentos como, por exemplo, no roteiro de Vida, paixão e banana do tropicalismo, numa fala que seria dita pelo ator Renato Borghi: “– Qual a diferença entre um boi e a classe média? Leve os dois ao matadouro. O que mais berrar na hora da morte é o boi.” (NETO, 2004, p.72). Nesse caso, a incapacidade do animal de se defender frente ao perigo da execução é mais atuante que a letargia ou conformidade da classe média no momento castrador. Contudo, o boi, inocente, segue ao matadouro sem poder interferir em seu próprio destino, então, o poeta, metaforicamente, alerta para que o homem não seja ingênuo quando a tentativa de abate ocorrer, assim como o boi o é em função da inaptidão de frear a ação humana que lhe imputa a morte, para que a inércia não o torne indigno, pois, mesmo diante da impossibilidade de conter o homem, o animal resiste, luta para livrar-se de seu carrasco, ao contrário da classe média, que ordeiramente aceita os desmandos de quem lhe deseja tirar a pele e castrar os direitos. Além disso, conclui-se que o poeta queira nos dizer mais quando expressa a condição humana em paralelo ao boi, como forma indireta de mencionar a tortura nos porões da ditadura e o modo como os caçados pelo regime ditatorial eram animalizados com o vilipêndio de seus corpos, em face do açoite e até, em muitos casos, da morte, pois o uso do aforismo animal também aponta para uma intenção porque “falar sobre um animal ou assumir sua persona não deixa de ser também um gesto de espelhamento, de identificação com ele. Em outras palavras, o exercício da animalidade que nos habita.” (MACIEL, 2008, p.67-8), como aponta Maria Esther Maciel, em O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea. 93 A metáfora do abate também

93 A autora também considera que a temática animal abre “[...] um campo fértil para os escritores deste novo milênio que, agora, têm a tarefa de repensar a questão dos animais sob o prisma da lamentável situação de barbárie do mundo. Cabe, cada vez mais, aos ‘zooescritores’ do presente assumirem a responsabilidade ética e estética de escrever sob o impacto da certeza de que vivemos hoje num tempo em que as espécies entraram em estado de irremediável extinção, tempo em que uma reflexão incisiva sobre as práticas de crueldade contra os animais torna-se cada vez mais necessária e urgente no mundo contemporâneo. O que não garante necessariamente que tal literatura 172

sugere, para além da execução, a apropriação dos corpos humanos, quando se pensa nas execuções em regime ditatoriais e de exceção e o apagamento dos corpos via sepultamentos clandestinos, lançamentos em alto mar ou incineração, o que causa imensa consternação humana, mas no caso do abate animal, real e rotineiro, também pode ser pensado como uma barbárie.94 Em função disso, em Inimigos: uma história de amor, de Isaac Bashevis Singer, a personagem Hermann, judeu refugiado nos Estados Unidos, faz um paralelo entre o sofrimento causado aos judeus em campos de concentração e a situação dos animais abatidos para consumo humano e conclui que o fim do shoah95 e a consciência mundial de que ela se constituiu como barbárie não ocorre aos animais, já que o “holocausto animal” permanece desde os primórdios da civilização e está longe de ser cessado:

Sempre que presenciava a matança de animais e peixes, Hermann tinha o mesmo pensamento: em sua conduta com os animais, todos os homens eram nazistas. A presunção com a qual o homem podia fazer o que quisesse com outras espécies exemplificava as teorias racistas mais extremas, o princípio de que a razão está com o poder. (SINGER, 2003, p.263-4).

possa, algum dia, fechar os matadouros.” (MACIEL, 2008, p.77). Afinal, os animais sempre estiveram presentes na literatura, de Esopo até autores contemporâneos, sempre retratados com as mais variadas representações e interpretações, por meio de fábulas, animalizações ou até aludidos em obras de literatura fantástica. 94 A crítica à indústria do abate e sua similaridade com campos de concentração humanos pode ser vista em diversos documentários: Terráqueos (2005), de Shaun Monson, Paredes de vidro (2007), narrado por Paul McCartney e produzido pela PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), Domínio (2018) de Chris Delforce, e até em produções nacionais como A carne é fraca (2004), do Instituto Nina Rosa. 95 Os judeus utilizam o termo hebraico shoah, catástrofe; calamidade, como substituto para o vocábulo holocausto, porque o termo deriva do grego holokauston e significa oferta de sacrifício. Assim, em função de sua conotação religiosa, o termo possibilita alusão a um genocídio passivo, submisso à vontade divina, que não define o grande exemplo de intolerância, ódio e racismo do século XX, ocorrida de modo burocrático e organizado, que resultou na execução de milhões de cidadãos nas mãos dos nazistas entre 1933 e 1945. 173

Caetano, recentemente, posicionou-se sobre as observações de Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski sobre a proximidade do fim do mundo, contidas em Há mundo por vir? ensaio sobre os medos e os fins, ao passo das atitudes assombrosas do homem ao universo, constatando como a “guerra de Gaia” já estava presente na premissa pessimista de futuro apresentada em Tristes trópicos por Lévi-Strauss:

[...] a legião incontável de animais confinados e torturados em campos de extermínio para extração de proteína, as poderosas fábricas de metano instaladas nos estômagos dos bilhões de ruminantes ‘criados’ pelo agronegócio, as inundações e secas devastadoras criadas pelo aquecimento global, o Mar de Aral que virou deserto, as dezenas de milhares de espécies que se extinguem por ano. (CASTRO, DANOWSKI apud VELOSO, 2017, p.29).

Desse modo, percebe-se como a demonstração de força e poder praticada pelos homens ao longo dos séculos, que gera sofrimento animal ininterrupto a bilhões de seres sencientes e foge à lógica terráquea; que não faz distinção entre seres num mesmo planeta, por compartilharem os elementos naturais e fundamentais, intriga aqueles que, assim como Derrida, pensaram no que os animais imaginam ou refletem sobre os humanos, como Nietzsche alude no aforismo 224, Crítica dos animais, de A gaia ciência: “Receio que os animais vejam o homem como um semelhante que perigosamente perdeu a sadia razão animal – como o animal delirante, o animal ridente, o animal plangente, o animal infeliz.” (NIETZSCHE, 2015, p.159).96

96 Em O animal que logo sou, Derrida revela que passou a observar o não humano e a perceber que há pessoas que nunca olharam nos olhos de um animal e, assim, como evidenciado por Maria Esther Maciel, em O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea, tornaram-se “[...] incapazes de admitir que o animal possa ter um mundo específico, não necessariamente mais pobre que o humano. Isso leva o filósofo a uma outra assertiva não menos conjetural: a de que ‘o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia’.” (MACIEL, 2008, p.50). Além disso, em Literatura e animalidade, Maciel também observa que “[...] os poetas – assombrados e atraídos, ao mesmo tempo, pela estranheza animal – são aqueles que podem dar o salto à outra margem e entrar na esfera da alteridade animal, dela extraindo um saber 174

Neste contexto, Torquato aparece como um poeta de fato contemporâneo, na acepção de Agamben, porque, para o filósofo, o poeta contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo em seu tempo, mas não como mera constatação do presente. O contemporâneo se sustenta em sua era percebendo não só as luzes, mas, especialmente, o escuro, pois “[...] todos os tempos são, para quem deles experimentar contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.” (AGAMBEN, 2009, p.62-3). Além disso, para Georges Didi-Huberman, em Sobrevivência dos vaga-lumes, a tarefa de contemporaneidade, proposta por Agamben, “[...] pede ao mesmo tempo coragem – virtude política – e poesia, que é a arte de fraturar a linguagem, de quebrar as aparências, de desunir a unidade do tempo.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.70), o que, em certa medida, é esperado da figura do poeta, sob a ótica torquatiana, presente em Pessoal instransferível, uma vez que “[...] a política se encarnaria nos corpos, nos gestos e nos desejos de cada um.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.24), como resistência ao terror, como evidencia Laura de Almeida:

Numa época de poucas luzes, viver é estar em comunhão, é buscar solidariedade no outro para o desafio de cantar a palavra em meio às forças do mal – forças repressivas do regime militar. Nas ruas os corpos aproximam-se e mostram-se solidários na alegria e no perigo. Traçando os fios dos exercícios experimentais de liberdade, os jovens tecem a bandeira da resistência para enfrentar o vento forte de 68. (ALMEIDA, 2000, p.57).

Logo, enaltecendo o poder do corpo, os tropicalistas valoravam o comportamento, as vestimentas e até os cortes de cabelo, postura

possível.” (MACIEL, 2016, p.100), como ocorre em Um boi vê os homens, poema drummondiano de Claro enigma, de 1951, que dá voz a um eu-bovino que rumina suas impressões sobre os humanos e lamenta que eles sejam seletivos na sua capacidade de ver e ouvir, pois “[...] não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,/ como também parecem não enxergar o que é visível/ e comum a cada um de nós, no espaço.”

175

sintomática, como apontado em Poder-corpo, texto de Microfísica do poder, de Michel Foucault, porque “é no desenrolar de um processo político – não sei se revolucionário – que apareceu, cada vez com maior insistência, o problema do corpo. Pode-se dizer que o que aconteceu a partir de 1968 – e, provavelmente, aquilo que o preparou – era profundamente antimarxista.” (FOUCAULT, 2017, p.237). No entanto, no período ditatorial havia diferentes corpos: o corpo artístico, rebelde e contestador; construído nos meios culturais a partir do olhar espectador, mas também o corpo clandestino, exilado, vilipendiado e, especialmente, o corpo desaparecido, ainda sublimado pelo descaso e pela impunidade, num caráter de problema do corpo, tendo em vista que, segundo Gonzalo Aguilar, “nos corpos encarnaram-se as novas formas de poder: reprimir ou liberar, falar ou calar, expandir-se ou contrair-se, reafirmar o prazer ou internalizar as ameaças do terror.” (AGUILAR, 2005, p.147), como consta em Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. A partir dessa circunstância e da repressão política, que sempre perpassou o fator corpóreo, muitas pessoas foram reprimidas, incluindo os tropicalistas, presos e/ou exilados, mas Rogério Duarte fora sequestrado e barbaramente torturado, como ele rememora em 1968 duas vezes, texto de Tropicaos:

68 foi o ano da paixão. Ano em que eu vivi o meu calvário numa curiosa e tropical imitação de Cristo. Esse foi o ano da minha morte. De lá para cá o que tem se processado é uma louca e dolorosa ressurreição. [...] A nossa prisão, minha e de Ronaldo, no dia da missa de 7º dia de Edson Luís, se tornou, devido às circunstâncias, o fato mais importante do país durante esses dias, e eu fui fugazmente promovido, juntamente com meu irmão Ronaldo, à condição de herói nacional por ter denunciado pela primeira vez, de forma clara, a prática da tortura em dependências do exército, no IIº Becondiv, da Vila Militar de Realengo. O incidente envolveu pessoas muito importantes, como o general Figueiredo, então chefe do SNI, com quem estive em contato, do qual dou testemunho no relato que tentei em vão articular nos dias que se seguiram à minha prisão. (DUARTE, 2003, p.14).

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Neste contexto, em A grande porta do medo, Rogério, traumatizado, volta a esse capítulo inesquecível de sua história e sintetiza o efeito imutável da tortura ao considerar que nunca seria possível esquecer a face do torturador: “Mesmo de olhos fechados eu já não vejo o seu rosto mas eu o reconheceria mesmo entre os demônios do inferno depois do apocalipse.” (DUARTE, 2003, p.26).97 Em O autor como gesto, presente em Profanações, Agamben sugere que o autor seria um gesto, ou seja, por meio de um aceno artístico o indivíduo acabaria por colocar a sua vida nos textos:

O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na obra. Jogada, não expressa; jogada, não realizada. Por isso, o autor nada pode fazer além de continuar, na obra, não realizado e não dito. Ele é o ilegível que torna possível a leitura, o vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso. O gesto do autor é atestado na obra a que também dá vida, como uma presença incongruente e estranha [...]. Assim como o

97 A chaga da tortura, física e psicológica, é enfatizada por Duarte em sua descrição daquele momento torpe: “[...] fomos submetidos a torturas, espancamentos, interrogatórios, lavagem cerebral, todo um pacote sistemático de técnicas para desestruturar completamente uma personalidade, que eu chamei de desinformativo. Estive numa cela onde havia dezenas de placas de papelão presas num suporte de pau com o clássico desenho da caveira e as iniciais E.M., de Esquadrão da Morte. Essas placas eram sempre encontradas nos ‘presuntos desovados’ na baixada fluminense. Aquela foi uma típica ‘cela da morte’. [...] Às vezes ainda me ocorre a dúvida se não sou um fantasma daquele cara que morreu naquele ano que de fato não terminou.” (DUARTE, 2003, p.15-6). Em função disso, os períodos em que a tortura, grave violação dos Direitos Humanos, foram utilizados como forma de contenção e imposição política não devem ser jamais esquecidos, pois, como aponta Flávio Tavares, “desconhecidos estilos de comportamento se incorporavam ao controle da sociedade. O ‘dedo-duro’ e o adulador disputavam as primazias e as bem- aventuranças, apontando ‘subversivos’ ou aplaudindo despudoradamente tudo o que viesse do novo poder. Ao calor da desconfiança e da adulação, nascia um enfermiço ‘anticomunismo’, fantasmagórico e onipresente. Tudo aquilo com que o regime não concordava era rotulado de ‘comunista’, uma forma de proscrever e jogar ao lixo qualquer ideia nova ou mesmo a tradição antiga. Aos borbotões, como cogumelos na relva após a chuva, viam-se ‘comunistas’ por todos os lados. O preconceito substituiu o debate e proscreveu a realidade em si.” (TAVARES, 2012, p.157-8). 177

mímico no seu mutismo, como Arlequim na sua trapaça, ele volta infatigavelmente a se fechar no aberto que ele mesmo criou. E assim como em certos livros velhos que reproduzem ao lado do frontispício o retrato ou a fotografia do autor, nós procuramos em vão decifrar, nos seus traços enigmáticos, os motivos e o sentido da obra como o exergo intratável, que pretende ironicamente deter o seu inconfessável segredo. (AGAMBEN, 2012, p.61-2).

Sendo assim, não é acertado ler a obra torquatiana de forma demasiadamente biográfica, mas também não é possível empreender uma leitura que a contemple apenas como fragmentos literários, pois “o mesmo gesto que nega qualquer relevância à identidade do autor afirma, no entanto, a sua irredutível necessidade.” (AGAMBEN, 2012, p.55). De todo modo, se percebe uma fronteira tênue entre a vida pessoal do poeta e sua produção artística, que resulta numa constante tensão entre o lado de fora e o lado de dentro, por esse motivo não se desconsidera que Torquato participou ativamente dos acontecimentos dos anos de chumbo a partir do momento em que deixa o nordeste e muda-se para o Rio de Janeiro para finalizar o ensino médio e ingressar na universidade, caráter que ditará o modo como se dará a produção do poeta em meio à efervescência da década de 60 na antiga capital federal,98 que o tornaria um ideólogo da Tropicália e um apoiador do cinema em super-8 no auge da Marginália, num percurso que esboça os traumas da época tornando sua produção sintomática aos fatos históricos como uma espécie de resposta ao horror e ao conservadorismo. Aprovado para o curso de Jornalismo da Universidade do Brasil, atual UFRJ, passa a morar de modo improvisado na sede carioca da UNE e de lá sairia às pressas na manhã pós-golpe militar durante o incêndio que destruiria o prédio estudantil, orquestrado por militares e paramilitares, ato criminoso que seria gatilho para a ordem de extinção da UNE e de todas as organizações estudantis, proposta em junho de 1964 por Castello Branco, com o intento de despolitizar as universidades e colocar os movimentos sociais na clandestinidade. Assim, tempos depois, após o fechamento da UNE, Torquato interrompe sua graduação, que nunca retomaria, passando a trabalhar em uma

98 No último ano do colégio, o poeta foi aluno de Geraldo França de Lima, que seria o número 31 da Academia Brasileira de Letras. 178

agência de notícias, que funcionava no Aeroporto do Galeão, ofício que compartilhava com o então jovem Elio Gaspari. Além disso, em 1968, também estaria presente na icônica passeata dos cem mil, que, para o antigo colega de redação, funcionara como uma espécie de excomunhão, considerando que as marchas de 64 foram uma espécie de benção ao golpe, que indicava que naquela altura, passados quatro anos da ascensão militar, o regime perdera apoio de uma parcela da sociedade que passara a manifestar o abaixo a ditadura e o povo no poder. 99

Figura 10 − Passeata dos cem mil

99 O ato político ficou cristalizado também artisticamente: nas fotos do fotojornalista Evandro Teixeira, que, por sua vez, ficariam eternizadas no poema Diante das fotos de Evandro Teixeira de Drummond.

179

Politicamente avesso à direita, o apartamento de Torquato chegou a ser um aparelho, local utilizado por ativistas de organizações políticas para reuniões e discussões, mas de modo irregular e anárquico, sem filiações partidárias, entretanto, o poeta também comprava brigas com a esquerda tradicional e com os cineastas do Cinema Novo, por ser contra a institucionalização do cinema, o que o caracterizava, para utilizarmos a analogia do boi, como oposto a um homem de rebanho, sendo contestador e fiel aos seus princípios. Desse modo, tornou-se militante da arte e da contracultura no país, sempre bancando as pelejas que julgava necessárias, inclusive chegando a ser expulso da Sicam, Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais, por denunciar a máfia dos direitos autorais, como ele descreve em A palavra subterrânea, texto de 21 de setembro de 1971, mostrando sua indignação pela expulsão sumária:

Não me sinto feliz por ter recebido a notícia de minha expulsão da Sicam, sociedade arrecadadora e distribuidora de direitos autorais a que sempre pertenci. Menos feliz ainda em ter sido expulso por engano: nunca me referi à Sicam de maneira ‘desairosa’, nem que pudesse comprometer a segurança de nenhum dos seus (até pouco meus) cartolas. Mas andei escrevendo, aqui mesmo em UH, vários comentários rápidos sobre um problema que todos os compositores conhecem bem, pensam em combater e terminam sempre contemporizando com uns e outros e entre eles mesmos. O problema do cartolismo no direito autoral é primo legítimo do outro, mais popular. E precisa ser combatido pra que as coisas fiquem mais tranquilas, não somente lá pras bandas deles. Nunca me referi diretamente à Sicam, cujos mistérios tenho fingido ignorar: o mistério do álbum de carnaval, por exemplo. Esse e outros. Mas avisei daqui mesmo, nesta Geleia, que a Sicam trataria de encontrar um macete estatutário qualquer onde me enquadrar para efeitos de punição. Punição. Só que eu não devo satisfações à Sicam, como a Sicam me pediu (por carta) antes de me expulsar oficialmente (por carta). Aqui – e o pior é ter que dizer isto – eu sou um jornalista que, por acaso, pertencia ao quadro de sócios 180

compositores da Sicam. E um colunista meu amigo aqui de perto já havia tomado a palavra pra contar que eu não sou compositor. Agora, oficialmente: não estou mais ‘pertencendo’ a nenhuma sociedade brasileira – nem mesmo à Sicam, que é a mais ‘simpática’ delas. Era. Livre e somente jornalista, vou começar a fazer perguntas. O Álbum de Carnaval: quem é quem ali dentro? Quanto rende para a diretoria e ‘conselho fiscal’, autores de quase todas as músicas? E como são feitas as eleições para a diretoria e ‘conselho fiscal’ da Sicam? E em que nível funciona esse ‘conselho’? E esses ‘conselheiros’, como chegaram lá? Ah, ó presidente do ‘conselho’! Isso não é nada. As perguntas são interessantes, mas o quente são as respostas. E essa história de cartolas, amigo, vai render. (NETO, 2004, p.234- 5).

De modo irônico, Torquato constatava, indiretamente, que ele, os demais tropicalistas, os não conservadores e democratas não pertenciam a nenhuma sociedade brasileira na era ditatorial. Além disso, o poeta também enfrentava a patrulha ideológica situada nos meios culturais, já que, segundo seu biógrafo, Toninho Vaz, em certa ocasião, enfrentara o cartunista Jaguar:

Eles caminhavam em sentidos opostos numa calçada, em Copacabana, cada um com sua mulher, Torquato com Ana e Jaguar com Olga Savary. Torquato desviou seu rumo, tomando uma reta tangencial até se posicionar em frente a Jaguar, de quem foi logo tirando os óculos. E dizendo: − você já é cego, não precisa disso! Torceu a armação várias vezes, antes de jogar os óculos no chão e pisotear, esmagando as lentes. Fez isso e seguiu caminhando de mãos dadas com Ana, como se nada tivesse acontecido. Estava se vingando daquilo que considerava uma ‘postura machista e covarde desse pessoal de O Pasquim contra a Tropicália’. Nas páginas do tabloide, 181

Jaguar o chamava de ‘a falsa baiana’. (VAZ, 2005, p.14).

As provocações dos jornalistas começaram sendo direcionadas a Caetano Veloso e, posteriormente, foram estendidas aos demais tropicalistas porque Veloso escrevera para o jornal O Pasquim ao longo do exílio, a convite de Luiz Carlos Maciel e Tarso de Castro, o editor- chefe de então. Após a saída de Tarso e de Maciel da equipe editorial, os remanescentes passam a atacar, via jornal, o ex-colaborador e todos os envolvidos no momento tropicalista. Segundo Maciel, em Geração em transe: memórias do tempo do Tropicalismo,

o Millôr, o Jaguar, o Ziraldo e o Henfil, que já eram dados a um certo patrulhamento ideológico, adotaram abertamente a postura repressiva e resolveram encher o saco dos chamados ‘artistas odara’, grupo no qual obviamente Caetano se destacava. Inventaram o termo ‘bahiunos’, provavelmente uma criação do Millôr, se não me engano, uma mistura de baianos e hunos, para comparar os cabeludos a bárbaros de algum tipo. (MACIEL, 1996, p.240).

Os artistas envolvidos não eram bárbaros como tachavam os patrulhadores, eram militantes artísticos e adeptos da obstinação, aliás, a estética que guiava Torquato era, essencialmente, a da resistência. Nesta concepção, como avalia Gláucia Vieira Machado, em Todas as horas do fim: sobre a poesia de Torquato Neto, “[...] ocupar espaço está para a política assim como poesia está para invenção e desafinar o coro dos contentes é o resultado do processo.” (MACHADO, 2005, p.25), postura que englobava artes distintas, mas também política, afinal, na chamada sociedade do espetáculo se passa a relacionar arte e vida, sobretudo no panorama da Tropicália e da Marginália, em que no limite entre o Modernismo e o Pós-Modernismo, se encontra o cultivo de diferentes produções artísticas como a poesia intersemiótica de Torquato, mas também a narrativa de José Agrippino, o design de Rogério Duarte, as obras de Oiticica, os filmes de Glauber e tantos outros exemplos em que o elemento pop apresenta-se como elo entre 182

ícones, obras e artistas, numa atitude em que a arte contracultural figura como a diluição das vanguardas modernistas. Como base nisso, a produção torquatiana acontece em meio à tirania e ao subterrâneo ou underground, cuja filosofia era a do drop out, fazendo com que na escuridão da ditadura, o texto de Torquato surja, como também aponta Gláucia Machado, como “[...] uma bandeira contra a estagnação, pois diz várias vezes que o inimigo é o medo, e o risco deve ser corrido. Com olhar atento percorre todo o cenário da vida cultural de seu tempo e seu universo transpõe as fronteiras nacionais.” (MACHADO, 2005, p.18), caracterizando-se como um típico escrito oriundo da era tropicalista, que alvitrou uma síntese da cultura do país, pois conseguiu expor suas características e contradições num ato de libertadora identidade, de tal modo, deixou marcas estéticas, comportamentais e políticas na realidade nacional, apostando na diversidade cultural do Brasil, na pluralidade e no desejo de arar a terra, revolver antigos referenciais para a criação do novo,100 devastando o pensamento linear porque “[...] privilegiou um pensamento, uma sensibilidade, um discurso, um comportamento que tendia para o mosaico, encruzilhada de sugestas, interconexões.” (SALOMÃO, 2005, p.41), como considera Waly. Paulo Leminski, em Os últimos dias de um romântico, texto em homenagem ao poeta piauiense, aponta que “como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros.” (LEMINSKI, 1982, p.06); não lançou livros em vida. 101 Contudo, os exemplares que, efetivamente, foram lançados organizam a obra em coletâneas; a primeira edição de Os últimos dias de paupéria, uma alusão irônica ao livro Os últimos dias de Pompeia, obra de 1934, de Edward Bulwer- Lytton, foi lançada em 1973 na urgência de homenagear o poeta, logo após seu suicídio na madrugada de seu 28º aniversário. A pequena

100 Arando a terra, a Tropicália aproximou-se, em sua faceta musical, do Baião, do Samba, da Bossa Nova e também se interessou por cultivos estrangeiros, mormente, o Rock. 101 Torquato surgiria, inicialmente, através das canções e só postumamente apareceria em formato livro, porém, o poeta tinha planos de lançar uma obra impressa que se chamaria Do lado de dentro, que iria publicar na coleção Na corda bamba – transas do underground, organizada por José Álvaro nos anos 70, como ele aponta em uma carta para o amigo Hélio Oiticica: “[...] waly transou com José Álvaro editor e estou preparando agora, a jato, um livro para ser publicado logo, na mesma (nova) coleção que waly vai publicar o me segura que eu vou dar um troço. falei disso antes? acho que não. o nome do livro vai ser do lado de dentro.” (NETO, 1982, p.353). 183

edição era acompanhada de um compacto simples com a gravação de duas composições, Três da madrugada, interpretada por Gal Costa, e Todo dia é dia D, por Gilberto Gil, e sua organização foi dificultosa, pois, como aponta Edwar de Alencar Castelo Branco, em Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália,

[...] próximo ao suicídio, Torquato já vinha se matando de uma maneira muito pouco convencional: apagando-se através da incineração de seus escritos e de qualquer vestígio que pudesse lhe significar. Para Salomão, com esta operação de queima de seus textos Torquato pretendia se apagar completamente, destruir todo e qualquer texto que lhe dissesse. (BRANCO, 2005, p.156).

Torquato fizera como Virgílio, que pensara em relegar sua obra ao fogo, por julgá-la inacabada e ávida por ajustes. Então, o poeta romano, no leito de morte, teria pedido a dois amigos que queimassem a Eneida, poema encomendado pelo imperador Augusto para versar sobre o poder e a glória do Império Romano, pois a morte iminente o impediria de ajustá-la. Os amigos não acataram seu pedido, assim como Max Brod jamais incinerou os escritos do amigo Franz Kafka, salvamento que possibilitou que o poema se tornasse um expoente da literatura latina, que influenciaria Dante Alighieri a colocar o poeta como seu condutor na descida aos infernos de A divina comédia e faria da Eneida uma referência basilar para Os Lusíadas de Camões. 102 O intento de Virgílio não foi alcançado, mas Torquato teve êxito na destruição de parte de seus escritos fazendo com que o leitor e, sobretudo, o pesquisador lidem com escritos renegados, rescaldados e incompletos. Em função disso, o trabalho com sua produção torna o crítico uma espécie de arconte desse arquivo que se encontra

102 Em função disso, em A morte de Virgílio, Hermann Broch recria as últimas horas do poeta clássico até o momento em que ele cogita destruir seu poema épico: “− É minha última vontade, Plócio, que tu e Lúcio queimeis sem demora a Eneida... Não tendes o direito de negar-me isso...− Ó meu Virgílio, quantas vezes te devo assegurar que tu e nós ainda temos muito tempo à nossa frente! Por isso, tens tempo mais do que suficiente para reflexionar bem maduramente sobre teu propósito...” (BROCH, 2013, p.270). 184

fragmentado e, em certa medida, apagado, chamuscado, levando em conta que no momento em que o poeta coloca fogo em sua produção, um assassínio da escrita, se faz uma tentativa de apagamento que poderia ter privado os leitores futuros do conhecimento de seus escritos. Todavia, inegavelmente, o assassinato da escrita e o suicídio do poeta foram formas de recusa,103 mas que não devem amparar a análise de sua produção porque o suicídio é um gesto fatal antigo e recorrente, como podemos perceber no fim da Arte poética de Horácio, em relação a um poeta siciliano, que se lançara nas chamas do Etna: “Reconheça-se aos poetas o direito de morrer a seu gosto; salvar alguém contra sua vontade é o mesmo que matá-lo.” (HORÁCIO, 2003, p.68). Nesse sentido, em Amar-te a morte morrer, Paulo José Cunha, jornalista e primo de Torquato, rememora um encontro marcante com o poeta que soa revelador:

Naquela tarde de agosto de 1971, no banco traseiro de um táxi pela Avenida Atlântica, ele anunciou a decisão de morrer. Com os olhos vermelhos e pálpebras semicerradas, olhava a luz da praia: ‘Um homem deve morrer quando conclui sua obra, não há razão para continuar vivo’. Ao lado dele, pensando que aquilo não passava de retórica ou filosofia de botequim, eu ponderava: ‘Mas como saber se a obra ficou pronta? Será que alguém sabe quando a obra fica pronta?’ Torquato não respondia. Lembrava a trajetória de personagens que morreram muito jovens. ‘Veja Jesus Cristo, Jimi Hendrix, Rimbaud, Janis Joplin, esse povo. Viu? É isso: terminou o que tinha pra fazer, vai embora!’ Aos 27 anos, menos de um antes de abrir o gás, Torquato Neto falava da morte com a naturalidade de quem diz onde vai passar as férias. Pelo retrovisor eu conferia o rosto sério do motorista, atento ao nosso papo. Devia achar que éramos dois hippies drogados, cabeludos de merda, filhos

103 A partir das considerações e relatos daqueles que conviveram com Torquato, há a impressão de que escrever era uma necessidade para o poeta em meio a tantos temores, isto é, para manter-se vivo havia a obrigatoriedade da escrita assim como a necessidade narrativa de Sherazade. Quando o desejo de ceifar a vida se estabelece, Torquato passa a apagar seus vestígios. 185

de pais endinheirados que bancavam nossa porralouquice. Torquato estava alegre, apesar da dramaticidade do monólogo (que eu burramente entendia como diálogo e a cujo conteúdo não dava a mínima importância). Estava leve e decidido, e apenas navegava a bordo de um táxi que rolava por dentro da tarde. A tranquilidade dele, sei agora, derivava do fato de que a morte havia deixado de ser uma possibilidade para se converter em assentada certeza. Diante do dilema hamletiano do ‘ser ou não ser’, o ‘não ser’ se fixara como roteiro sem retorno. (CUNHA, 2012, p.09).104

Como vemos, parecia haver em Torquato a imagem da aporia, pessoal, mas também ocasionada em meio à desesperança que a ditadura civil-militar estabelecia e que feria a fidúcia na retomada democrática. Havia a busca pela ocupação do espaço, mas também a melancolia e a privação de liberdades, que extrapolavam o contexto particular, adentrando a esfera coletiva e promovendo uma busca em que, como observa Waly,

ao invés de tornar-se crítico irônico ou pagão politeísta adorador do mundo multifacetado, Torquato Neto paganinizou-se num moto- perpétuo de auto-imolação. Semelhante ao gosto do escritor japonês Mishima que medusado pela imagem de São Sebastião flechado executou o haraquiri enquanto expressão-limite da body art kamikase. O suicídio seria uma sinopse niilista haicai da vida??? (SALOMÃO, 2005, p.117-8).105

104 Por algumas horas, já que morreu pouco depois da virada do dia 09, seu aniversário de 28 anos, para o dia 10, Torquato não integrou o clube dos 27, lista de artistas mortos, coincidentemente, na mesma idade: Brian Jones (Rolling Stones), em 1969; Jimi Hendrix e Janis Joplin, mortos em 1970; Jim Morrison (The Doors), em 1971; Kurt Cobain (Nirvana), morto em 1994, e Amy Winehouse, encontrada morta em 2011. 105 Em relação ao desejo de cometer suicídio, Tom Zé diz, em Torquato Neto – Todas as horas do fim, que havia um mau elemento no hipotálamo de Torquato e, em função disso, o artista baiano lembra que, certa vez, o poeta desistiu da 186

Nessa lógica, Torquato portava-se como um samurai no trato com a poesia, considerando-a seu bushidô, e “seu daishô (par de espadas) poderia ser uma máquina de escrever, uma câmera de super-8 ou um simples lápis e um pedaço de papel.” (BEZERRA, 2004, p.67), como explicita Bezerra, mas repetindo o fim de alguns literatos, assim como Mishima, cometeu suicídio inalando o gás de aquecimento do banheiro de seu apartamento. 106 Ademais, ao dizer chega, o poeta materializa um tema caro e não um ato impensado e/ou desesperado, como aponta Cunha, pois o poeta “[...] não falava simplória, poética, hipotética ou literariamente sobre a morte: falava dela concretamente, como objetivo a ser atingido. Mesmo considerando as drogas que àquela altura consumia em quantidades industriais, a decisão da partida era antiga.” (CUNHA, 2012, p.10), e, assim, a partir dessa consideração íntima de Cunha, é possível observar como a morte perpassa toda a obra de Torquato, pois, em dado momento, o poeta menciona que a morte não é vingança, mas a trata como a indesejada, em cujo poema homônimo, nos diz:

morte quando ingeriu um frasco de Valium em São Paulo, mas pediu socorro, indiretamente, ao dizer à Ana, a esposa, o que havia feito. 106 Segundo Toninho Vaz, “ao lado do corpo foi encontrado um caderno espiral, do tipo colegial, onde Torquato escrevera seus últimos textos. Havia uma frase isolada (‘o amor é imperdoável’, atribuída a Caetano Veloso – o nome estava embaixo da frase) e uma colagem de emoções que pode também ser interpretada como um bilhete de amor e despedida: [...] FICO/ E vou ficando por causa de este/ AMOR/ Pra mim chega. [...].” (VAZ, 2005, p.200). Leminski homenageou o poeta com Coroas para Torquato, poema publicado na Revista I, editada em Belo Horizonte por Carlos Ávila, ao citar a época excessiva, sob todos os aspectos, que representa o período contracultural brasileiro:

Coroas para Torquato um dia as fórmulas fracassam a atração dos corpos cessou as almas não combinam esferas se rebelam contra a lei das superfícies quadrados se abrem dos eixos sai a perfeição das coisas feitas nas coxas abaixo o senso das proporções pertenço ao número dos que viveram uma época excessiva

187

[...] O importante é o funcionamento da máquina pensante. Essas questões de adultérios homicídios lenocínio homossexualismo, seja o que for, me comovem à falta de outro assunto. Tenho que pensar tenho que continuar pensando e ir guardando tudo, para esconder em mim o falar e o olhar e mais: a morte.

(NETO, 2004, p.52).

Assim, Torquato parece ajustado com o desejo de finitude, mas produz como forma de sobrevivência na ânsia de esconder aquilo que é presença-ausência em seus escritos. Além do mais, se considerarmos seus primeiros registros contidos em Juvenílias, por exemplo, percebe- se que o poeta, aos poucos, mata sua produção mais tradicional para apostar no novo, no imo tropicalista, até ao ponto que se decreta a morte oficial da Tropicália, entretanto, como cita Italo Moriconi, na apresentação de Torquato Neto: essencial, “creio que ansiedade e pressa, mais que tristeza ou depressão, foram os fatores decisivos no levantar a âncora para o mergulho no abismo. Como no poema ‘Le voyage’, de Baudelaire, o fim da viagem é o desejo de viagem para a morte: buscar algo novo no desconhecido.”(MORICONI, 2017, p.32), pois o poema de As flores do mal nos mostra como a morte rege o navio e o poeta invoca o inferno e o céu, sem imperar a ótica cristã, numa demonstração de que simplesmente prefere o abismo à estagnação:

[...] Uma manhã partimos com o cérebro em chamas, O coração repleto de amargos pensares, E vamos, com o ritmo batido das lâminas Ninando o infinito nosso no dos mares; [...] Ó Morte, velho Capitão, é tempo! Ergue essa poita! Esta terra é enfadonha, ó Morte! Rumo ao mar! Se o céu e o oceano são tão negros como noite, Os nossos corações vês que podem brilhar!

Lança em nós teu veneno que nos reconforta! 188

Queremos, enquanto há na alma o fogo a queimar, Mergulhar no abismo, Inferno ou Céu, que importa? Ao fundo do insabido para o novo encontrar.

(BAUDELAIRE, 2015, p.160-5).

Portanto, se percebe a morte como questão transversal na produção de Torquato, poeta que não diferenciava arte e vida, no sentido da necessidade intrínseca de produzir, e a iminência da despedida torna- se o compasso de sua poética, em que o suicídio é apenas um dado de sua trajetória ou uma citação, por vezes repetida, como considerava Waly. Em algumas anotações do Diário de engenho de dentro, título ambíguo devido ao aspecto polissêmico do vocábulo engenho, ancorado no fato do diário registrar sua internação no sanatório do bairro de Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, mas também caracterizar-se como um documento das reflexões do seu engenho interior, sua máquina pensante, ao tentar equacionar os limites do lado de dentro para combater álcool, drogas e até a loucura: “É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira. É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto.” (NETO, 2004, p.326), consideração que o poeta faz em sua passagem pelo mesmo local em que estivera Maura Lopes Cançado, autora de Hospício é Deus, obra fruto de sua internação, lançada em 1965, e também de Rogério Duarte, adepto de um internamento voluntário, que buscava uma saída existencial para os conflitos adquiridos após a prisão e as sessões de tortura. Por isso, nos diz o poeta: 107

[...] já não preciso mais (pelo menos enquanto estiver aqui) liquidar meu nome e formar nova reputação como vinha fazendo sistematicamente como parte do processo autodestrutivo em que embarquei – e do qual, certamente, jamais me safarei por completo. mas sobre isso, prefiro dar

107 Torquato era portador de embriaguez patológica e, conforme aponta seu biógrafo, “extraoficialmente, porém, em códigos secretos e restritos ao diagnóstico, os médicos falavam em esquizofrenia, além do alcoolismo.” (VAZ, 2013, p.295). 189

mais tempo ao tempo: eu sou obrigado a acreditar no meu destino. (isso é outra conversa que só rogério entenderia). tem um livro chamado: o hospício é deus. eu queria ler esse livro. foi escrito, penso, neste mesmo sanatório. vou pedir a alguém para me conseguir esse livro. (NETO, 2004, p.324).

Curiosamente, o cenário das internações voluntárias de Torquato seria dirigido por uma década, anos depois, por Edmar Oliveira, psiquiatra e amigo da capital piauiense, que atuou em O terror da Vermelha, interpretando o alter ego do poeta.108 Sem dúvida, como observa Moriconi, “o tempo de Torquato foi o tempo muito louco de ditadura e contracultura, polícia e desbunde, presídio e hospício.” (MORICONI, 2017, p.21),109 pois, além dos escritos de Torquato enquanto interno de sanatórios, outro exemplo de presídio, literal, é Me segura qu’eu vou dar um troço, proesia de Waly Salomão, que relata a passagem do poeta pelo Carandiru em São Paulo, por ter sido flagrado portando uma porção de maconha em 1970, em uma espécie de diário poético, assim como o registrado por Torquato ao verbalizar sua luta para controlar a ânsia alcoólica e lisérgica no hospital psiquiátrico.

108 Na época de Torquato, o local era conhecido como Hospital de Engenho de Dentro, mas atualmente se chama Instituto Nise da Silveira em homenagem à médica, discípula de Carl Jung, que possibilitou a reforma psiquiátrica abolindo masmorras, eletrochoques e lobotomias nas instituições do país e apostando na arteterapia como método ocupacional de modo humanizado e lúdico. Nos anos 50, Nise fundara o Museu de Imagens do Inconsciente com telas produzidas por pacientes; Leon Hirszman eternizaria o trabalho da médica nos anos 80 com o filme Imagens do inconsciente e mais recentemente o percurso da alagoana foi registrado em Nise: o coração da loucura, filme de Roberto Berliner. 109 Essa constatação faz lembrar os versos de Sérgio Sampaio em Polícia, bandido, cachorro, dentista: Eu tenho medo de polícia, de bandido, de cachorro e de dentista/Porque polícia quando chega vai batendo em quem não tem nada com isso/Porque bandido quase sempre quando atira não acerta no que mira/Porque cachorro quando ataca pode às vezes atacar o seu amigo/Porque dentista policia minha boca como se fosse bandido. Ademais, em homenagem a Torquato, Sampaio compôs a canção Que loucura: Fui internado ontem/Na cabine cento e três/Do Hospital do Engenho de Dentro/Só comigo tinham dez//Eu tô doente do peito/Eu tô doente do coração/A minha cama já virou leito/Disseram que eu perdi a razão//Eu tô maluco da ideia/Guiando carro na contramão/Saí do palco e fui pra plateia/Saí da sala e fui pro porão. 190

Assim, essas obras figuram como testemunhas, cada uma a sua maneira, dos tempos de loucura e desbunde, mas também de todos os excessos, entorpecentes e policialescos, que se configuram, como observa Torquato, em Literato cantabile, como “[...] autobiografias – precoces. Poesia, vida e morte, o coração vagabundo querendo guardar o mundo, serestas.” (NETO, 1982, p.161). 110 Em função disso, em A experiência opaca: literatura e desencanto, Florencia Garramuño aponta para a euxistênciateca de Hélio Oiticica, neologismo que aparece em 1971 em um de seus heliotapes, como um conceito que engloba o eu, a existência e a biblioteca, um arquivo dos fragmentos do real, em relação à poesia de Waly Salomão:

Uma euxistenciateca do real: o neologismo – e seu titubeio – pode servir não só para pensar a poesia de Waly Salomão, mas também toda uma miríade de práticas artísticas que sulcaram a paisagem cultural das décadas de 1970 e 1980 no Brasil e na Argentina e que estabeleceram uma série de relações problemáticas entre a noção de obra e seu fora ou exterioridade. A explosão da subjetividade, a poesia marginal, o abandono da obra como suporte pelo próprio Hélio Oiticica e por Lygia Clark – entre outros −, a proliferação de ‘formas híbridas’ e de textos-anfíbios que se sustentam no limite entre realidade e ficção são exemplos de uma forte impugnação à categoria de obra de arte como forma autônoma e distanciada do real, suplantada por práticas artísticas que se reconhecem abertas e permeadas pelo exterior, resultando atravessadas por uma forte preocupação pela relação entre arte e experiência. (GARRAMUÑO, 2012, p.21-2).

110 Coração vagabundo é uma canção de Caetano, presente no disco em parceria com Gal Costa, em que o eu lírico cita que seu coração “[...] não se cansa/De ter esperança/De um dia ser tudo o que quer” e também é título de um documentário, de Fernando Grostein Andrade, que registra uma turnê de shows de Caetano nos Estados Unidos e no Japão.

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Nesse sentido, a arte de Oiticica, Kurt Schwitters brasileiro, segundo Waly, é fundamental no momento tropicalista, conforme o próprio poeta considera em A praia da Tropicália, uma vez que, via Hélio, a Tropicália nascia,

[...] num rio de húmus generoso. É o desembocar MEÂNDRICO do atelier Ivan Serpa, do círculo Mário Pedrosa, do suplemento JB, do neoconcreto, da teoria do não-objeto, da ideia de superação do espectador, do bicho de Lygia Clark, da arquitetura das favelas, do buraco quente, das quebradas do morro da Mangueira, do Tuiuti, da Central do Brasil, dos fundos de quintais da Zona Norte, do Mangue, do Samba, da prontidão, da liamba e outras bossas. (SALOMÃO, 2005, p.35).

Sendo assim, nada mais significativo que a Tropicália registrasse a máxima pureza é um mito, em um dos penetráveis sensoriais, para demonstrar que nada no mundo, tampouco em se tratando de arte, é puro por completo; há sempre algum contato cultural e nunca haverá um isolamento efetivo, sempre existirá impureza, que aludia à impossibilidade de haver autenticidade nativa total, sobretudo em um país como o Brasil, que une as mais diversas etnias, credos, culturas, que nos aglutina em uma filosofia da cultura, como observa Pedro Duarte, em Tropicália ou panis et circencis:

[...] o que nos une não é uma identidade específica em comum, mas sim que nós devoremos toda e qualquer identidade que gostaria de permanecer exclusiva. Ou seja, nenhuma característica está definitivamente atada a esta ou àquela cultura, podendo sempre ser apropriada por outra. É uma lei do mundo, e não apenas do Brasil. Reconhecê- la é a condição para o desapego de cobranças nacionalistas ou mesmo xenófobas. (DUARTE, 2018, p.126-7).

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O aforismo exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1967 se tornaria icônico e ressoaria até hoje, principalmente em relação a Torquato, que ganhou o status de mito, de mito pop, e como tal reverbera suas contradições, no entanto, como proposto por Everardo Rocha, em O que é mito, o mito nada mais é do que uma narrativa, um discurso, “[...] é uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmo, as situações de ‘estar no mundo’ ou as relações sociais.” (ROCHA, 2012, p.07), além de se configurar como um vocábulo multíplice, que passa a ser utilizado em diversos contextos. Contudo, ao evocar Ulisses, o herói da Odisseia, Fernando Pessoa nos diz, em Mensagem, que “o mito é o nada que é tudo.” (PESSOA, 2006, p.41) por considerar que, nessa lógica, a vida ganha um status menos importante que o mito, dada a sua perenidade, e o poeta adquire um sentido de pervivência assim como o empreendido em sua obra. Nesse viés, Walter Benjamin aponta em A tarefa do tradutor, presente em Escritos sobre mito e linguagem, o conceito de Fortleben de uma obra, após sua época de produção, por meio do processo de Nachreife, o pós-amadurar. O termo Fortleben, continuar a viver, ganhou o neologismo pervivência em língua portuguesa via Haroldo de Campos para esboçar a ideia de continuação, da vida da obra, que se relaciona à teoria de crítica e tradução contida no romantismo alemão, tema da tese de doutoramento de Benjamin, pois, para o filósofo, era preciso

[...] compreender toda vida natural a partir da vida mais abrangente que é a história. E não será ao menos a “pervivência” das obras incomparavelmente mais fácil de reconhecer do que a das criaturas? A história das grandes obras de arte conhece sua descendência a partir das fontes, sua configuração na época do artista, e o período de sua ‘pervivência’, em princípio eterna, nas gerações posteriores. Quando surge, essa continuação da vida das obras recebe o nome de fama. (BENJAMIN, 2013, p.105).

Em função disso, em Medula e Osso, Italo Moriconi avalia que ao fazer a seleção de textos, que resultaria na sua antologia torquatiana, estava mais interessado na poesia de Torquato Neto no que no mito. 193

Porém, como também aponta o crítico, “[...] a poética não é inocente. Quem sabe uma nova história possa ser vislumbrada a partir da visitação/revisitação poética do mito? A aventura de Torquato foi uma aventura de vidaobra. O mito é o real.” (MORICONI, 2017, p.19).

Figura 11 − Pureza é um mito

Fonte: Os últimos dias de paupéria

Portanto, a mitografia é um impulso na obra torquatiana, mas ele deve ser revisto, assim como as hagiografias em torno do poeta, afinal, o luto ou a compaixão pelo escritor que morre jovem não pode se tornar uma barreira analítica ou causar uma supervalorização dos exemplos de vida breve, por vezes, bastante trágicos. Nesse processo, a lógica da 194

canonização é um risco. O que, segundo Flora Süssekind, em Hagiografias, é bastante evidente quando se constata a fortuna crítica de autores como Mário Faustino, Ana Cristina Cesar, Cacaso, Leminski, Caio Fernando Abreu e, claro, Torquato, mas, espantosamente,

[...] não é perceptível somente uma dominância biográfica na bibliografia referente a esses autores. Há a construção frequente (mesmo quando se produzem hagiografias malditas) de algo próximo às histórias de santos quando se toma qualquer um deles como objeto de estudo. São vidas impregnadas, a posteriori, de intencionalidade, são destinos nos quais se enxerga, nos mínimos detalhes, a marca da excepcionalidade [...]. Eleitos cujas obras são vistas como de eleitos também. Nesse sentido a perspectiva crítica parece se deixar contaminar quase sempre por esse dado hagiolátrico inicial. O que é no mínimo desconfortável. (SÜSSEKIND, 2008, p.30-1). 111

Ademais, a vida de Torquato é escolha martirológica para a leitura da vida/obra, assim como no caso de Ana Cristina, em função do mesmo desfecho, o suicídio em tenra idade, cujas análises nem sempre levam em conta a intencionalidade dos poetas. Mas, a imagem de Torquato junto ao aforismo de Oiticica, capturada na exposição da obra na Whitechapel Gallery em Londres, seria utilizada por Waly na contracapa da segunda edição de Os últimos dias de paupéria porque o dito, fatalmente,

[...] era uma auréola, uma aura, um signo acima da cabeça de Torquato Neto – a frase em cima e o

111 Flora critica as hagiografias utilizadas em demasia, mas não condena o uso de dados pessoais nas análises críticas, afinal, a própria autora os utiliza na continuidade de seu texto, que enfoca, mais detidamente, a produção de Leminski, ao passo que poetas como Torquato, Ana Cristina Cesar e Cacaso são citados brevemente em seu texto.

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homem embaixo se casam bem naquele ambiente e hora, uma simbiose perfeita. A ‘pureza é um mito’, por fim, resta uma auréola olvidada. Por fim, a recusa sistemática de qualquer mediação, de qualquer métier, de qualquer acordo, de qualquer ‘nosso jeitinho’, de qualquer jogo de cintura, de qualquer área de manobra. Consequentemente, adesão irrestrita à palidez altiva de um herói romanesco. A terminante recusa da vida filistina, acaba por cancelar a visão de que vida e pureza são termos antitéticos pois viver é se comprometer. O ideal absoluto passa a ser o anjo integralmente torto. O anjo ainda mais torto que o anjo torto do Carlos quando gauche. O Suicídio acaba sendo encarado como plenitude da ação poética, o ato poético mais completo. O Suicídio é um mito de pureza. (SALOMÃO, 2005, p.63-4).112

112 A imagem de anjo também serve como identificação para o poeta, como numa espécie de angelografia, conceito que perpassará a figura do artista, amparada também na concepção de Haroldo de Campos, que aproximava Torquato dos poetas malditos, cuja complexidade pode-se perceber na canção- homenagem Samba fatal, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, contida no álbum Previsão do tempo:

Ele acordou entre o mágico e o místico O prático e o político O profético e o poético O trágico e o tétrico Amanheceu entre estudar ou calar Fumar ou lutar Sonhar ou falar Cantar ou gritar Ele pensou entre morrer de medo Ou salvar o pelo Em guardar segredo Ou cortar o cabelo Ele saiu dizendo adeus Rezando a Deus Pensando nos seus E o fez pelos teus Heroico ou paranoico Histórico ou histérico Suicídio ou morticídio 196

Em face disso, a segunda edição do livro póstumo de Torquato, bastante ampliada, foi publicada após dez anos de sua morte, em 1982. As edições foram organizadas por Ana Maria e Waly, que batizara a obra e ajudara a selecionar o material em que Torquato colocara fogo, como o próprio Salomão assinala em Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença:

Ana e eu fizemos Os últimos dias de paupéria, pegamos o rescaldo do incêndio, as folhas chamuscadas, o que tinha sobrado do incêndio, e fizemos o livro […] com o pensamento nas novas gerações. Uma ideia utópica, uma forma boba e ingênua de crendice, mas que fez com que a obra que ele tinha realizado e renegado passasse para as novas gerações. (SALOMÃO, 2006, p.82).

Posteriormente, Torquatália, título inspirado num texto manifesto que o próprio Torquato escreveu em 1968 para o jornal O Estudo, foi lançada em dois volumes em 2003, Geleia Geral e Do Lado de Dentro, reunindo boa parte da produção torquatiana como seus textos, poemas, letras, enfim, a produção poética que consta nas duas edições de Os últimos dias de paupéria acrescida de material, até então, inédito. Os três exemplares ampliados significativamente a cada edição se tornaram a forma com que as gerações posteriores conheceram mais profundamente o trabalho e, sobretudo, o poeta, que, segundo o organizador de Torquatália, Paulo Roberto Pires, esteve sempre à margem da margem da margem e, desse modo, “este lugar tem mais a ver com a originalidade de Torquato do que com o rótulo de marginalidade heroica que foi colado sobre sua posteridade.” (PIRES, 2004, p.11), que, muitas vezes, focaliza a ideia de maldito, de poeta romântico e suicida que confundia vida e arte, estigmas que dizem pouco da complexidade da produção em questão. Nesse ínterim, a múltipla poética de Torquato foi alvo de algumas análises acadêmicas,113 no entanto, a morte antecipada e a loucura,

Seu ato de morte Foi um fato da vida 113 A bibliografia acerca de Torquato, sobretudo acadêmica, não é parca, mas está longe de ser imensurável. Torquato é mais citado do que analisado, sendo 197

estereótipo solidificado pelas passagens de Torquato por sanatórios, são também, desnecessariamente, enfocadas em alguns estudos, uma vez que, como aponta Rogério Duarte em Tropicaos,

Torquato poderia estar vivo aqui entre nós. Todos nós somos suicidas em potencial. Eu escrevi um texto em que procuro dizer isto: ‘Eu poderia ter me matado’. Embora ele tivesse uma tendência para a depressão, eu não vou negar, e suas letras falem de morte ou de fim, isto não quer dizer nada. Eu e muitos outros já escrevemos letras mais negras do que as dele e estamos aí, vivões. Não é por aí. Esta é uma pista óbvia demais. Pode ser falsa. Fundamentalmente, o que faltou a Torquato no momento mais crítico, num momento de grande dificuldade no país, foram exatamente as referências e os apoios mais sólidos. Ele se sentia sozinho. Ele não era Nosferatu. Ele era um grande poeta lírico, uma pessoa de grande delicadeza. Minha autoridade para falar sobre isso é conferida historicamente porque quando Torquato, Glauber e Hélio Oiticica se referiam a mim era sempre falando de amizade. Era sempre uma coisa amorosa. Essa autoridade é uma questão de dever, uma coisa meio trágica. É um dever meio hamletiano para com os mortos. (DUARTE, 2003, p.137).

André Bueno, por exemplo, em Pássaro de fogo no terceiro mundo: o poeta Torquato Neto, considera a morte do poeta como morte romântica. Segundo ele, o artista “[...] transferiu para seu corpo as contradições e os limites postos pela História de seu tempo. Incapaz de habitar a contradição, morreu a morte romântica. A morte errada. Nesse exato sentido, suicidado pela sociedade.” (BUENO, 2005, p.40). Então, segundo esse viés, “foi para o mundo dos conformistas e dos adaptados que Torquato Neto disse pra mim chega, ligou o gás naquela alta madrugada, e morreu a morte errada.” (BUENO, 2005, p.233), mas essa visão parece simplista, parecendo mais eficaz o foco preciso na obra de perceptível que há ainda muito a ser dito sobre sua poética, para além dos clichês e/ou da mera citação de sua obra. 198

Torquato, como explicita Duarte: “Acho que reduzir a historicidade a um determinismo psicologista é falsear a verdade, a verdade dialética e profunda de um Torquato Neto. É negar a história. Reduzir o cara é fácil. [...].” (DUARTE, 2003, p.139). Portanto, a ideia de um ingênuo romântico e desesperado soa desajustada ao se analisar o todo da produção torquatiana, pois nessa visada se percebe que nela havia seu projeto político-cultural, a ocupação do espaço, forma pouco convencional, mas compreensível porque, como aponta Luiz Carlos Maciel, em Nova Consciência: jornalismo contracultural − 1970-72, “se há uma intenção política na contracultura, ela se manifesta de maneira totalmente nova e não convencional.” (MACIEL, 1973, p.79- 80). Onde, como o próprio Torquato sinaliza em Literato cantabile, o “primeiro passo é tomar conta do espaço. Tem espaço à beça e só você sabe o que pode fazer do seu. Antes, ocupe. Depois se vire.” (NETO, 2004, p.304) e, assim, conforme Silviano Santiago assinala em Uma literatura nos trópicos, “a poesia volta a estar nos fatos e nos acontecimentos, nas peripécias inusitadas de uma vida em perigo.” (SANTIAGO, 2000, p.198). Além de tudo, considerando a declaração de Waly, quando o poeta diz que “o defensor da tese-tanque de guerra da OCUPAÇÃO DO ESPAÇO objetivo e do espaço da mídia é o mesmíssimo homem casado com a morte que opera no seu paradoxal canto do mutismo. Mutismo: inalação do vero gás da implosão” (SALOMÃO, 2005, p.69), pode-se refletir sobre a atitude autodestruidora de Torquato como o caráter destrutivo de Walter Benjamin, que se manifesta em favor da destrutividade em oposição a homens que nada produzem ou que zelam apenas pelo próprio bem-estar; conforto e comodidade, que Benjamin denomina homens-estojo, pois “o caráter destrutivo é o inimigo do homem-estojo. O homem-estojo busca sua comodidade, e a caixa é sua essência. O interior da caixa é a marca, forrada de veludo, que ele imprimiu no mundo.” (BENJAMIN, 1986, p.187). Afrontando a sociedade aveludada, o poeta abre caminhos, assim como aponta Benjamin ao considerar que “o caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir caminho, sua necessidade de ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio.” (BENJAMIN, 1986, p.187). Logo, (se) destrói criando, pois, como também considera Benjamin, em função de o opositor dos conformados ver caminhos por toda parte, “[...] ele próprio se encontra sempre numa encruzilhada” (BENJAMIN, 1986, p.188), em que a vida, ou encurtamento dela, é apenas um dado na obra do artista piauiense sincrético e multimídia, no entanto, como abaliza Leminski, a vida de 199

alguns poetas, e Torquato se insere nessa categoria, pode ser um poema porque

[...] não se escreve só com palavras. Grava-se com o corpo, o gesto, a atitude, o comportamento, sartreanamente, com as escolhas globais. Tem poetas nos quais importa, soberanamente, o que fizeram. Tem muitos onde importa, também, a peripécia contextual que cerca seu fazer e seus feitos: a gesta total, o ser-signo inteiro. (LEMINSKI, 1982, p.06).

Nesse caso, o teresinense marca os anos 60 e 70 caracterizando- se por uma verdadeira “[...] busca poética sem margem, intersemiótica e não especializada, que experimenta todas as linguagens e os veículos de comunicação” (MACHADO, 2005, p.12), como salienta Gláucia Machado, dado que o ligava ao momento tropicalista, mas que também estabeleceria vínculos com as aventuras artísticas da pós-tropicália marginal, uma vez que, como explicita Rogério Duarte, em Tropicaos, a essência tropicalista

[...] era um desejo amoroso de modernidade para o Brasil. Era todo um ponto de vista que estava, e continua, reprimido e que naquele momento histórico a gente pode veicular. [...] Foi talvez o movimento mais moderno do Brasil no sentido de que ele era um movimento ligado a uma civilização contemporânea e de massas, sem ranços, sem compromissos ou peias ideológicas com facções de esquerda, ou de direita. (DUARTE, 2003, p.137).

Diante disso, Caetano Veloso, em Verdade tropical, salienta que a palavra-chave para a compreensão do momento tropicalista é sincretismo, vocábulo complexo que também adjetiva a produção torquatiana, porque, de certa maneira, a ideia central dos tropicalistas era conhecer o antigo para produzir o novo, que se pautava no mote de Ezra Pound em ABC da Literatura, o make it new, citado, indiretamente, no artigo Baião de sempre, publicado na coluna Geleia 200

geral em 1972: “[...] não requente coisa alguma, veja de novo, faça outra vez, invente a diferença. Não tem mistério: se não tem forma nova não tem nada de novo.” (NETO, 2004, p.355). Em função disso, a coluna que o poeta manteve no jornal Última Hora, entre 1971 e 72, era um espaço de hibridização, uma amálgama de gêneros em forma de crônicas no espaço de uma coluna jornalística, para evidenciar o que de bom era feito no campo cultural naqueles tempos, pois, como destaca Demétrio, em O anjo torto, “[...] foi uma experiência de implantação de uma poética dentro do jornalismo, resultando na produção de uma forma híbrida de um texto fugidio à decantação dos gêneros – um texto jornalístico desterritorializado pela literatura: opção de ‘ocupar espaço’ [...]”. (DEMÉTRIO, 2008, p.504). Em outras palavras, Geleia geral era uma forma de trincheira, um ambiente para driblar o inimigo gigantesco da censura e da repressão, cujos textos, para Moriconi, “[...] radicalizam o estilo telegráfico da prosa de Oswald de Andrade.” (MORICONI, 2017, p.25), em função de uma recorrente comunicação lacônica e pela abolição de fronteiras estilísticas que, possivelmente, lhe possibilitaram escapar da política de silenciamento ditatorial, como também aponta Demétrio, porque o jornalismo torquatiano

[...] sobreviveu durante a asfixia ditatorial porque permitiu-se ser vampirizado pela literatura, por sua poética, transformou-se em seu igual por natureza, daí, seguindo a primeira das proposições de Ítalo Calvino, nunca ter sido um recomeço, porque toda literatura e toda poética contêm a leveza de Ícaro que voa rumo à luz do sol sem jamais voltar, querendo cada vez mais afastar-se, desterritorializar-se, assumindo como direção o vetor centrífugo da linguagem em seu devir poético, mesmo que com asas de morcego. Nas palavras de Waly Salomão, ‘Torquato Neto explodiu todas as possíveis pontes para o regresso’. A ‘Geleia Geral’ foi o registro desse percurso sem volta, de uma desterritorialização completa e radical de um Sísifo que tentou ser Ícaro. A pedra pesou demais e lhe arrancou as asas no labirinto íngreme e sem saída, no alto da colina, à beira do precipício. (DEMÉTRIO, 2008, p.505). 201

Por isso, radicalizando a forma, conteúdo dos escritos e lançando mão de passagens enigmáticas, preteriu o olhar repressor, pouco especializado, não chegando a ser preso pela censura avidamente presente nas redações dos principais jornais da época. No entanto, o poeta criou polêmicas significativas executando uma espécie de militância verborrágica que, como salienta Waly, “[...] se constituiu no mais vibrante vento durante a ditadura militar; enquanto as forças cegas indomadas soltas, enquanto a retórica tradicional da velha esquerda lamentava fazer escuro, Torquato desatinava e desafinava o coro dos contentes.” (SALOMÃO, 2005, p.56) constituindo-se como agente de um grande caldeirão do jornalismo brasileiro, que incorporava os mais variados temas, como nas colunas de Música Popular e O Sol, publicados em 1967 no Jornal dos Sports, e no Plug, suplemento do Correio da Manhã, em 1971, sendo, acima de tudo, um exemplo de periodismo disseminador. Cordiais saudações, cumprimento rotineiro existente em seus artigos, muitas vezes era explicitado de modo irônico e dava o tom de que o jornalismo era, inicialmente, um meio provisório, uma forma de trabalho economicamente necessária para Torquato. 114 Desse modo, conclui-se, como assinala Paulo Roberto Pires, que a imprensa era para o poeta e “[...] na cabeça tropicalista mais um item no lixão da indústria cultural pedindo para ser reciclado, reprocessado, engolido e transformado.” (PIRES, 2004, p.10) porque o revolucionário estava nas ruas, como na concepção de Hélio Oiticica, que previa que o museu é o mundo, pois a transformação, não só artística, estava em movimento na vida cotidiana e, assim,

Torquato subverte o estereótipo da crônica jornalística informativa de diluição imediata: entre uma música de Ismael Silva e tradução de Dante

114 Em 1967, o poeta trabalhou na preparação de press release para a gravadora Philips Records, que, posteriormente, se tornaria a Polygram e no setor de propaganda da Editora Abril. Abandonou esses empregos e depois foi contratado pelo Jornal dos Sports, trabalho que o poeta menciona em sua letra Geleia geral, com os versos A Geleia geral brasileira/ Que o Jornal do Brasil anuncia, e Caetano Veloso expõe em Alegria, Alegria com o verso O Sol nas bancas de revista, fazendo alusão ao suplemento O Sol do Jornal dos Sports, em que Dedé Gadelha, noiva de Caetano na época, trabalhava juntamente com Torquato e que seria objeto do documentário O Sol – Caminhando contra o vento (2006) de Tetê Moraes. 202

por Augusto de Campos, ele faz suas confissões e apresenta flashes da vida cotidiana. E consegue, assim, um hibridismo de produção de linguagens ao fazer no jornal um mosaico onde convive a diferença e a diversidade: cartas, críticas, traduções, notícias, confidências e poemas aparecem marcados por sua técnica de chistes e elipses. (MACHADO, 2005, p.93).

A estética do fragmento também caracterizou seu estilo, efetuado por meio de montagem, colagem e bricolagem, e se acentuou, principalmente, na sua mais duradoura coluna na grande imprensa, engessada pela censura, que, segundo observa o organizador de Torquatália, tornou-se “[…] mais do que um oásis de liberdade, uma aberração.” (PIRES, 2004, p.18), ampliada pelo uso da alegoria tropicalista feita de fragmentos, elementos disjuntivos, que apostava nos aforismos, conforme citado em Os abutres, tendo em vista que

[...] o trecho é valorizado enquanto o todo é relegado para segundo plano. Não é por acaso que estamos de novo diante daquele mesmo fragmentário que foi a marca registrada de Machado de Assis, de Oswald de Andrade e, um pouco mais longe, de Nietzsche. O aforismo contém a verdade. (SANTIAGO, 2000, p.131).

Neste sentido, na era que contemplava os opostos, o conservadorismo exacerbado e o desbunde, Torquato alfinetava constantemente em seus artigos e desempenhava um papel bastante considerável na geração tropicalista desbundada, mas letrada, segundo Ana Cristina Cesar, porque com essa geração em geral que “[...] dança no Brasil a questão da militância na cultura, o compromisso do engajamento político cultural, seus fantasmas sérios.” (CESAR, 1999, p.235), para tanto, Laura de Almeida cita a efemeridade e senso de oportunidade que o poeta empreende em seu espaço jornalístico

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ao estabelecer um contato direto com o público pela escrita diária da coluna, Torquato sente-se vivo e encontra sentido para resistir às pressões da censura. O cronista não desconhece que o tempo de resistência no espaço da coluna é curto e, por isso, trata de vivê-lo de modo intenso. Falando muito para registrar um pouco de tudo, quer impedir que o baixo astral tome conta da paisagem. Dizendo sim a todos os exercícios experimentais livres e alternativos, faz da linguagem a notícia da Geleia Geral brasileira. (ALMEIDA, 2000, p.100).

Em Domingou, canção em parceria com Gil, o poeta acena que [...] o jornal de manhã chega cedo/ Mas não traz o que eu quero saber/As notícias que leio conheço/Já sabia antes mesmo de ler por isso faz o que aponta Teresinha Queiroz, em Imprevisíveis significados, prefácio de Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália: “[...] incentiva e aconselha no sentido do aproveitamento incessante de brechas e fraturas sociais, encoraja os leitores para que enfrentem o medo. Evidencia o seu esforço para praticar o heroísmo a cada dia, na tentativa de domesticar seus próprios pavores.” (QUEIROZ, 2005, p.32). Assim, Cordiais saudações, publicado em 19 de agosto de 1971, texto inicial de sua coluna mais famosa, iniciava propondo o caráter citado ao mencionar a movimentação que Caetano, ainda no exílio, causara num retorno breve ao Brasil:115

Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama: você pode chamar isso tudo como bem quiser. Há muitos nomes à disposição de quem queira dar nomes ao fogo, no meio do

115 Caetano veio ao Brasil em agosto de 1971, após uma intermediação junto aos militares efetuada pela irmã Maria Bethânia, para participar de uma festa dos pais na Bahia. No entanto, foi detido pelas autoridades ainda no aeroporto e levado para um interrogatório de seis horas de duração e inúmeras ameaças. Ao fim, conseguiu o direito de ir a Salvador, objetivo da viagem, mas foi escoltado por agentes da Polícia Federal durante toda a estadia, terminantemente proibido de conceder entrevistas e obrigado a fazer duas apresentações na TV Globo para aparentar normalidade. 204

redemoinho, entre os becos da tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado no meio de apartamentos. [...] Caetano Veloso, Emanuel Viana Telles, é um que não está esperando por nada – ele deve saber, com certeza, que o princípio está sempre no fim, e é por isso que ele deixa sangrar, do lado de fora, do lado de dentro. Está vivo, novamente passando entre as coisas e sabendo que tudo só é possível no meio do fogo – e cai no fogo sabendo que vai se queimar. (Oswald de Andrade está sendo editado agora pelo Instituto Nacional do Livro, não é?) Caetano veio aqui fazer um programa de televisão e ninguém, que me conste, parece ter compreendido o sentido profundo dessa viagem e desse programa. É apenas uma viagem e um programa, e é fantástico demais. Eu li nos jornais, e alguns amigos me informaram, que Caetano ‘está mudado’. Prefiro compreender que Caetano está novamente dançando no palco da televisão. E prefiro, para continuar compreendendo, lembrar que Caetano dança muito bem no palco da televisão. A mesma plateia que vaiava aplaude agora, e isso é o que já não tem mais tanta importância: Caetano Veloso é um ídolo do Brasil, hoje. (NETO, 1982, p.23).

De tal modo, era preciso dar sequência ao que a Tropicália tinha lançado mão a partir do Estado ditatorial, a alegoria barroca do Brasil e a carnavalização paródica, para relacionar-se com um país que precisava administrar a contradição entre a franca modernização e o atraso intelectual e educacional, dado que Gonzalo Aguilar enfatiza em Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista, já que em função de seu caráter experimental, que consiste em expor o corpo aos lares brasileiros, por meio, sobretudo, da televisão, o exílio de enorme repercussão de Caetano e Gil era “[...] o corolário dessa experimentação e a exibição das forças repressivas que tal consumo gozoso do corpo havia despertado.” (AGUILAR, 2005, p.151), que muito se deve ao pensamento benjaminiano, como Ismail Xavier observa em O cinema brasileiro moderno:

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A matriz benjaminiana inspirou nova reflexão sobre as vicissitudes da revolução brasileira – essa que o golpe de 1964 travou – e sua representação nas artes. A experiência então recente de malogro podia ser associada à constelação de momentos da história em que movimentos promissores sofreram solução de continuidade, trazendo à tona as ‘interrupções’ e a face descontínua da história quando esta é observada do ponto de vista dos vencidos, dos projetos abortados. A colagem tropicalista apresentaria um inventário das descontinuidades da história dos vencidos, cujo termo final seria a crise do sujeito no mundo contemporâneo, em especial a morte de dois sujeitos históricos: a do proletariado no seio da cultura de massas e a das nações no seio da globalização. (XAVIER, 2011, p.31).

De modo ousado, no meio do redemoinho, Torquato cita nesse artigo as dificuldades encontradas pelo artista, mas o faz pensando com o princípio de resistência e deixando claro que sua produção, que se pode chamar como bem quiser, não é passível de caracterização, não sendo, em hipótese alguma, homogênea. Contudo, a diária Geleia geral foi bastante efêmera, terminando sua jornada em 11 de março de 1972, com Inéditas de Luiz Melodia, transcrição das canções do artista carioca, Estácio, eu e você, Feras que viram116 e Farrapo humano, canção que se torna anunciação do que viria ocorrer com o poeta oito meses depois:

[...] Eu choro tanto me escondo e não digo viro um farrapo, tento o suicídio com caco de telha, com caco de vidro: só falo na certa repleta de felicidade me calo ouvindo seu nome por entre a cidade não choro só só zango eu fico no lugar; Estou muito acabado tão abatido minha companheira que venha comigo

116 Posteriormente, a canção foi gravada como Feras que virão. 206

mas estou pra estourar, estourar, estourar

A canção derradeira, que encerra o jornalismo torquatiano, era homônima ao título recebido no Brasil para The lost weekend, filme de 1945, de Billy Wilder, que evidencia a saga de Don Birman, personagem que sonha ser escritor, mas tem a vida arrasada pelo álcool, texto fílmico que seria utilizado por Silviano Santiago como metáfora para os astros dos anos 70, na análise de Caetano Veloso enquanto superastro, quando salienta que “o superastro vive em toda a sua plenitude e contradição comunitária os 365 dias do carnaval e da máscara alheia.” (SANTIAGO, 2000, p.148). A poética de Torquato operava com os liames da cultura do país sempre de modo dilacerado, cujo discurso muitas vezes manifestava-se pelo retorno, pela repetição poética, de ideias, conceitos, excertos; fragmentos celulares que vão e voltam numa “[...] burilação temática e textual [...].” (BEZERRA, 2004, p.12), como define Bezerra, que pode ser entendida como um desassossego poético, possibilitado pelo encanto e desencanto com as palavras, poliedros de faces infinitas, segundo o poeta. No lado de dentro e no lado de fora, a palavra era a matriz de todas as artes e a poesia não era apenas um tipo textual, era arma de confronto social, mas, principalmente, um efeito do seu tempo, afinal, o poeta alicerçou sua poética calcado na realidade brasileira e, além disso, como aponta Romulo Valle Salvino, em Torquato Neto: o homem no matadouro, há na produção do piauiense “[...] uma consciência dilacerada, uma percepção de que algo se estilhaçava, que, se a faz pesada, cheia de uma seriedade talvez excessiva (mesmo quando faz graça), dá-lhe também essa alta definição estética e ética que a faz sobressair diante do que produziu grande parte de seus contemporâneos.” (SALVINO, 2002, p.107). Entretanto, em Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença, fala de Waly Salomão num ciclo de palestras promovido pelo Itaú Cultural, que resultou no livro Anos 70: trajetórias, o poeta pondera que “palavras são ferramentas frágeis e a recepção nunca vem e se vem é parca.” (SALOMÃO, 2006, p.83), pensamento que se depara ao de Paulo Leminski ao defender a ideia de haver, necessariamente, poesia no leitor,117 como ele enfatiza em Poesia no receptor, presente

117 Abordei a questão poesia no leitor em minha dissertação de mestrado, Poética de Paulo Leminski: peripécias de um investigador do sentido no 207

em Anseios crípticos, pois “poeta não é só quem faz poesia. É também quem tem sensibilidade para entender e curtir poesia. Mesmo que nunca tenha arriscado um verso. Quem não tem senso de humor, nunca vai entender a piada. [...] Tem que ter tanta poesia no receptor quanto no emissor.” (LEMINSKI, 1986, p.92). 118 Considerando isso, desde Platão, pode-se se perceber o poeta, dentre tantas facetas possíveis, como um ser desajustado; aquele que não se adapta às regras, sociais, políticas, comportamentais e, nesse sentido, Torquato era desobediente às generalizações e aos autoritarismos, em certa medida, situava-se em desacordo com as questões de seu tempo. Por isso, no período pós-tropicalista, o poeta apropria-se da figura vampírica, pois, além de ser uma imagem transgressora e impactante, o vampiro apresenta a capacidade de resistir mesmo que forçosamente nas sombras, caráter não só poético como essencialmente político, afinal, para além do apreço do poeta pela imagem vampiresca, bastante difundida na literatura e no cinema, teria o poeta se utilizado dessa imagem se os tempos fossem outros; mais leves e menos repressivos? Assim, podemos pensar, como observa Maria Lucia de Barros Camargo, em Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar,

[...] em espelhos que não refletem a imagem de seu criador, mas apenas as múltiplas imagens do(s) outro(s): outras falas, outros criadores. Afinal, diz a lenda que os vampiros não podem ver seu reflexo. Não conseguem jamais ter a própria imagem num espelho. Como construir sua identidade, se no espelho só aparece o outro? Como olhar para si mesmo, se não pela mediação do outro? Constrói-se o triângulo: o eu, o outro, a obra. (CAMARGO, 2003, p.150).

Com efeito, para Pignatari, em O que é comunicação poética, o poeta, que vem do grego poietes e significa aquele que faz, é aquele que tem por ofício, aquele que faz linguagem e é, aqui, que, segundo o torvelinho das formas e das ideias, defendida no Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC em 2013. 118 O poeta faz menção ao dito de Brecht: “Quem não tem senso de humor nunca vai entender a dialética”. 208

ensaísta, reside a principal fonte do mistério, já que como dizia Charles Sanders Peirce, “o poeta faz linguagem para generalizar e regenerar sentimentos.” (PEIRCE apud PIGNATARI, 2006, p.10), incessante mediação que acaba provando um possível caráter de identificação existente na poesia, visto que o poeta nos diz aquilo que não sabemos dizer, mas que nos é próximo, porque, como indaga Leminski, “[...] afinal, para que servem os poetas a não ser para escrever melhor, mais fundo, mais exato, mais inesquecível que todo mundo?” (LEMINSKI, 2001, p.54). Isto é, é preciso não perder de vista a real utilidade da poesia, que é a capacidade de nos ensinar “[...] a subverter permanentemente o já visto, no encalço da renovação e do aperfeiçoamento ilimitado, em eterno confronto com o simulacro de ‘perfeição’ imposto pela ideia sectária e utilitarista de uma sociedade esvaziada de memória, consagrada ao consumo e à descartabilidade de todas as coisas.” (MOISÉS, 2007, p.38),119 e muito em função disso, Torquato, por vezes, cita O lutador, de Drummond, direta ou indiretamente:

Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali.

119 Sendo assim, o poeta, de certa forma, norteia culturas, conforme aponta Pignatari: “O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo. O poeta é radical (do latim, radix, radicis = raiz): ele trabalha as raízes da linguagem. Com isso, o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos. É por isso que um poema parece falar de tudo e de nada, ao mesmo tempo. É por isso que um (bom) poema não se esgota: ele cria modelos de sensibilidade. É por isso que um poema, sendo um ser concreto de linguagem, parece o mais abstrato dos seres. É por isso que um poema é criação pura – por mais impura que seja. É como uma pessoa, ou como a vida: por melhor que você a explique, a explicação nunca pode substituí-la.” (PIGNATARI, 2006, p.11-2).

209

Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. [...] Lutar com palavras parece sem fruto. Não têm carne e sangue... Entretanto, luto. [...]

(ANDRADE, 2015, p.89).

Poema metalinguístico, publicado em José (1942), O lutador aborda a criação poética, desenrolada através de reflexão da linguagem e, sobretudo, da unidade da palavra, temática que pode ser vista, por exemplo, no poema baudelairiano O sol, contido em As flores do mal, em que o poeta francês aponta: Exercerei a sós a minha estranha esgrima,/ Buscando em cada canto os acasos da rima, /Tropeçando em palavras como nas calçadas,/ Topando imagens desde há muito já sonhadas. A esgrima pressupõe o duelo que o poeta trava com as palavras na ânsia de produzir seus versos e Drummond explicita que a peleja é uma luta inútil, mas que a cada nascer do dia se insiste em lutar mesmo diante da grandiosidade do adversário e a consciência de sua inferioridade. Ademais, o combatente ressalta a força das palavras e a impossibilidade de encantá-las, mas com garra e frieza consegue reuni- las para manutenção de seu ofício. Em função disso, declara que com submissão às palavras é possível usufruir delas, mas diante das ágeis adversárias não basta nem ameaça e sevícia para que elas retornem ao centro da praça, a linha de raciocínio do poeta. Demonstrando subserviência, o poeta tenta persuadi-las, mas as palavras são esnobes e podem ser ardilosas. A luta parece vã, embora haja momentos em que ele acredite na rendição, mas, no entanto, a sensação é fugaz, sendo 210

apenas o instante de entreabrir os olhos e tudo se evapora, tendo em conta que, como aponta Antonio Candido em Vários escritos,

as palavras parecem entidades rebeldes e múltiplas, que o poeta procura atrair, mas que fogem sempre, quer ele as acaricie, quer as maltrate. É uma luta desigual e inglória, contra objetos imponderáveis que se desfazem ao contacto, mas que fascinam, e aos quais o poeta não consegue renunciar. (CANDIDO, 1970, p.116).

Assim, Drummond desmistifica a poesia como sendo algo divino e fruto de inspiração e evidencia que fazer versos é um ofício que depende da contínua luta com os vocábulos, ou seja, o poeta aponta a fragilidade do homem diante das palavras e mostra o quão escravo delas o é, fazendo com que, em certa medida, a função poética ganhe ares de lunatismo, como na concepção de Waly:

sem ser profeta e sem profetismo, a voz do poeta é voz clamando no deserto, se é que se pode excluir profetismo desse tipo de fala, e ao mesmo tempo a gente tem de continuar tocando. Ser poeta é um tipo de ilusão, um lunatismo, mas é uma demência similar à de qualquer pessoa dada a livros, e o nome dessa doença é quixotismo. (SALOMÃO, 2006, p.84).120

Diante disso, ponderando as agruras contextuais de seu tempo e a consideração de Rogério Duarte, em Tropicaos, de que “Torquato era um Dom Quixote, ele era um magrelinho que se lançava contra os moinhos de vento com uma coragem total.” (DUARTE, 2003, p.139), percebemos como a poesia é sua gênese, o cerne de sua produção, encarada como “[...] mãe das artes & das manhas em geral [...]”.

120 Contudo, Waly pretendia fazer do quixotismo uma epidemia, afinal, em 2003, ao se tornar secretário nacional do livro na gestão ministerial de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, sua principal proposta era a inclusão de um livro na cesta básica brasileira. 211

(NETO, 1982, p.396), como apontado por Aderval Borges, porque o poeta

[...] não só defendeu o experimentalismo como procurou mostrar as vias prováveis. Sua poesia desbundou da lírica drummondiana para rumos diversos: poemas canções, poemas manifestos, poemas colagens, poemas com palavras destaque, poemas de imagens, poemas filmes, etc. No fundo o objetivo era um só: a expressão com máxima tensão significante, mesmo quando as escolhas provinham de motivações ocasionais. Não escreveu isto à toa: ‘Um poeta que perde a fé nas palavras zera suas possibilidades. (BORGES, 2012, p.26).

Torquato agregava ideias e referências numa verdadeira operação cultural multimeios, que envolvia a militância cultural à margem do mercado tradicional, mas, especialmente, a batalha diária com a linguagem, afinal, para o poeta, a poesia está contida em segmentos variados, como afirmaria Paulo Leminski em seu texto-homenagem, considerando que poesia “[...] não apenas se lê nos livros, mas se escuta nas canções, nos discos, nos rádios, na TV, na vida, enfim.” (LEMINSKI, 1982, p.06). E faz do poeta, necessariamente, intersemiótico, considerando que poesia é, antes de tudo, ação entre códigos e o ecletismo e a mistura de referenciais acaba por enriquecê-la, mormente num caso como o de Torquato, que atua num momento tão vário, essencialmente contracultural, que, como observa Feliciano Bezerra, em A escritura de Torquato Neto,

suas operações partem da linguagem e, como ‘não há linguagem sem corpo’, sua escritura poética é ele mesmo corporificado. Com enorme potência estética, a escritura constitui um corpo criador de linguagem. Uma linguagem que dinamiza fragmentos (partes desse corpo), mobiliza e tensiona estilhaços, carrega cada partícula de significação expressiva. Essa tensão decorre dos valores artísticos assumidos pelo poeta, que se coloca à prova pelo exercício da constante experimentação de meios e linguagens. Porém, 212

não importa o meio utilizado, sua força sempre provém da poesia. (BEZERRA, 2004, p.11).

Portanto, não por acaso, Torquato cita, em um poema sem título, os versos “meu coração é um pedaço de papel/riscado/rasgado/queimado/malvado/por aí mesmo despedaçado.” (NETO, 1982, p.335), igualando sua pulsão de vida ao papel, objeto em que se escreve, mas também se macula, como se o escrito, e também o ato de escrever, fosse sua condição de existência; evidenciando que a escrita em um pedaço de papel mostra fragilidade e certo dilaceramento, mas também desprendimento que se ampara em qualquer meio, até num simples naco de papel, mas expõe, essencialmente, que o poeta só pulsa ao escrever e, assim, segundo Moriconi, “[...] sua poética se abre em flor. Abre-se em flor para dentro de si própria, fazendo com que tudo que Torquato escreva a partir daí se articule e se remeta, em autêntica bricolagem estética [...].” (MORICONI, 2017, p.27), apresentada em variadas vertentes, mas sempre traduzindo uma voz em transe e transição pelo mundo, sem limites poéticos.

213

4. Marginália: contracultura made in Brazil

– Por que é que a gente tem que ser marginal ou cidadão? Diga, Zezé. − É pra ter a ilusão de que pode escolher, viu, Dodó. Tom Zé e Odair Cabeça de Poeta em Dodó e Zezé

Em Vida, paixão e banana do Tropicalismo, Capinan e Torquato definem a Tropicália, a última vanguarda na cultura brasileira; hoje já cinquentenária, em seu enterro alegórico.121 Segundo o roteiro televisivo, caberia ao locutor dizer ao público: “O Tropicalismo é uma forma antropofágica de relação com a cultura, senhores e senhoras. Devoramos a cultura que nos foi dada para exprimirmos nossos valores culturais.” (NETO, 1982, p.297). O intuito desse programa de televisão seria encerrar o momento tropicalista, mas mesmo não tendo sido exibido como o programado, em função das filmagens não concluídas, a Tropicália acabou se tornando uma espécie de Osíris por reviver em diversas manifestações culturais posteriores. 122

121 Capinan e Torquato trabalharam juntos, mas logo se distanciaram, havendo certa disputa entre os poetas integrantes do projeto de disco coletivo tropicalista. Inclusive, em carta para Hélio Oiticica, que hoje pertence ao acervo do Projeto HO, Torquato registra sua antipatia pelo baiano: “[...] o chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobre coisa alguma. Todo mundo virou uma espécie de Capinan (esse é o único de quem eu não gosto mesmo: é muito burro e mesquinho), e o que eu chamo de conformismo geral, é isso mesmo, a burrice, a queimação de fumo o dia inteiro, como se isso fosse curtição, aqui é escapismo, vanguardismo de Capinan que é o geral, enfim, poesia sem poesia, papo furado, ninguém está em jogo, uma droga. Tudo parado, odeio.” (NETO, 2004, p.233), correspondência só conhecida graças ao esforço arquivístico de Oiticica, que arquivava cópias das cartas que enviava juntamente com a correspondência que recebia, empenho que o distanciava de Torquato. 122 Paulo Leminski, em Poesia a gente encontra em toda parte (um passeio poético por três civilizações remotas), afirma que “todo texto é, desde o princípio, um osíris, um morto, destinado a ressuscitar à luz do ritual de sucessivas leituras, traduções e interpretações [...].” (LEMINSKI, 1997, p.29). O mesmo ocorre com a Tropicália, sobretudo em sua face musical, que reverbera de modo mais perceptível em muitos e novos trabalhos de artistas tributários desse momento cultural. 214

Num curto espaço de tempo se deu o nascimento e a morte, posta como marco de um propósito, do momento artístico que causaria um abalo estético-político sem precedentes, que Feliciano Bezerra define como a “[...] última estação de uma via-sacra sacrílega à devoção da arte brasileira [...].” (BEZERRA, 2004, p.43). De certa forma, a Marginália, a contracultura nos moldes nacionais, tornou-se sua principal signatária, mas a verdade é que a Tropicália vem sendo revisitada, atualizada e ressignificada desde o fim dos anos 60 de diversas maneiras e em distintos meios ou, como constata Celso Favaretto no documentário Futuro do pretérito: Tropicalismo now!, de Ninho Moraes, esse momento artístico configura-se, passado tanto tempo, ainda de modo cíclico; sempre retorna porque, segundo o pesquisador, “[...] talvez em momentos em que a música, ou em outras artes, um certo conformismo se estabelece, uma certa padronização renitente volta ciclicamente e o tropicalismo é novamente lembrado pelo seu caráter de ruptura, seu caráter de intervenção.” 123 Como uma espécie de coletivo, a Tropicália teve breve duração, findou no fim do ano que não terminou, junto da decretação do ato institucional ditatorial mais severo, mas ficara suspensa depois de um longo ano de sobressaltos e marcos culturais, como citado, cronologicamente, por Frederico Coelho em Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970:

[...] em janeiro, os músicos baianos mudam-se para São Paulo; em fevereiro, Nelson Motta lança a ‘cruzada tropicalista’ em sua coluna do jornal Última Hora; em março, Oiticica escreve seu texto sobre a Tropicália, rompendo com o modismo do nome; em abril, iniciam-se os contatos entre Oiticica, Torquato, Caetano e o resto do grupo tropicalista; em maio, os músicos iniciam as gravações do disco coletivo Tropicalia ou Panis et circencis, e Rogério Duarte passa a morar com Oiticica no Jardim Botânico; em

123 Nesse mesmo documentário, há uma colagem com a participação do diretor Ninho Moraes no Programa na Brasa, apresentado por China na MTV, em que o apresentador pergunta ao diretor: “Como a Tropicália está presente em nossas vidas?”. “Está em tudo que é feito depois de 67, 68”, responde Moraes.

215

junho, Caetano, Gil e Torquato participam do debate organizado na FAU, em São Paulo, onde são hostilizados por estudantes de esquerda ao lado dos poetas Décio Pignatari e Augusto de Campos; em julho, Oiticica e Rogério trabalham intensamente nas obras do primeiro e promovem diversos eventos no Aterro do Flamengo e no MAM/RJ; em agosto, ambos filmam Câncer com Glauber Rocha; em setembro, Caetano, Gil e Os Mutantes são vaiados nas suas apresentações no FIC de São Paulo; em outubro, promovem o show polêmico na boate Sucata com a bandeira Seja marginal, seja herói de Oiticica em seu cenário; em novembro, iniciam as gravações do programa Divino Maravilhoso na TV Tupi; e, em dezembro, o AI-5 prende alguns nomes do movimento, enquanto outros se exilam antes da prisão. (COELHO, 2010, p.192-3).

Em contrapartida, seu espírito passou a ser percebido em uma gama de artistas considerados pós-tropicalistas, muitos deles integrantes da contracultura made, made, made in Brazil, como no refrão de Parque industrial, de Tom Zé, especialmente pela constestação política, e, assim, no fim da década de 60 e início dos anos 70, a vivência tropicalista foi uma forte referência para os jovens urbanos que começaram a se interessar pela contracultura. Contudo, os artistas da osírica Tropicália eram, muitas vezes, criticados pela ausência de oposição efetiva, atuante, contra a ditadura civil-militar, no entanto, propunham maneiras não convencionais de resistência e afronta ao poder autoritário no momento em que o regime endurece ainda mais a censura e passa a monitorar e silenciar artistas. Nessa época, muitos filmes e peças de teatro foram proibidos e a produção musical era alvo constante dos censores sendo submetida, antes das gravações, obrigatoriamente, ao serviço de censura federal para serem analisadas. Chico Buarque, que se exilou na Itália entre 1969 e 70, teve inúmeras canções proibidas, mas na volta ao Brasil, bastante admoestado, chega a submeter suas canções sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide, no entanto, Apesar de você passa, inicialmente, pelo crivo da censura em 1971, embora, posteriormente, restasse proibida, porém consagrando-se como uma das mais belas críticas ao 216

regime, sagazmente disfarçada em queixa de um enamorado com dor de cotovelo:

[...] Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem discussão, não [...] Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia [...] Quando chegar o momento Esse meu sofrimento Vou cobrar com juros, juro Todo esse amor reprimido Esse grito contido Este samba no escuro Você que inventou a tristeza Ora, tenha a fineza De desinventar Você vai pagar e é dobrado Cada lágrima rolada Nesse meu penar

Apesar da infame tirania, o amanhã se tecia na necessidade dos artistas de aproveitar as brechas e as frestas da censura e, assim, como no ideal torquatiano, continuar ocupando espaço. Curiosamente, por não serem associados à música de protesto, os tropicalistas foram menos censurados, formalmente. No entanto, Gil compôs com Chico a canção Cálice, que foi gravada pelo carioca em 1978, às vésperas da lei da anistia, canção que também se tornaria uma das mais emblemáticas críticas ao governo opressor, utilizando a aproximação sonora entre uma pequena taça e cale-se, do verbo calar:

Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue 217

[...] Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta

Antes disso, durante o governo Médici (1969-1974), o mais autoritário, ocorreu o chamado milagre econômico, crescimento exponencial dos anos de chumbo, com aparente estabilidade, que ampliava a alienação da população em relação aos porões ditatoriais, e a elevação da desigualdade socioeconômica, principalmente em função da abissal concentração de renda e da crença ufanista de um Brasil grande e potente.124 O regime opressivo aproveitou-se da vitória do país na Copa do Mundo de 70, na Cidade do México, para forjar uma imagem positiva do regime utilizando o hino Pra frente, Brasil, entoado pela torcida brasileira, e de imagens do jogador Pelé espalhadas em outdoors com frases apelativas como ninguém segura mais este país. Entretanto, a era Médici também destinava um lema aos opositores do regime: Brasil, ame-o ou deixe-o, que era slogan de extensão ao Love it or leave it, utilizado nos Estados Unidos contra os que protestavam opondo-se à guerra do Vietña, mas Gil tratou de parodiar esse dito em O seu amor, faixa de Doces Bárbaros, projeto paralelo, homônimo, que teve

124 A execução de projetos faraônicos durante o chamado milagre econômico ocorreu à custa de uma enorme dívida, não só financeira. Obras grandiosas como a Rodovia Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói e a Usina Hidrelétrica de Itaipu foram realizadas, mas trouxeram, irmanadas com o desenvolvimento, esquemas de lavagem de dinheiro, corrupção, descaso ambiental e genocídios, sobretudo de índios e quilombolas. Ademais, as empreiteiras que participaram de esquemas corruptos no período entre 1964 e 1985 são as mesmas envolvidas nos escândalos atuais investigados na Operação Lava Jato. Em função disso, Caetano, Gil, Tom Zé e os herdeiros de Hélio Oiticica não permitiram que a Odebrecht Realizações Imobiliárias utilizasse o nome Tropicália em um condomínio de luxo, em 2012, em Salvador. O projeto ainda previa dois prédios anexos ao condomínio: um se chamaria Alegria, em alusão à canção de Caetano, e o outro Divino Maravilhoso fazendo menção à canção de Caetano e Gil. Diante da negativa dos tropicalistas, que necessitou de uma ação judicial para impedir o uso dos nomes, o empreendimento foi batizado como Parque Tropical. Ironicamente, a Tropicália, que nos anos 60 propunha a mercantilização da arte, viu-se na iminência de ser mercantilizada no caso Odebrecht. 218

juntamente com Gal Costa e os irmãos de Santo Amaro da Purificação, Caetano Veloso e Maria Bethânia: O seu amor/Ame-o e deixe-o/Livre para amar. Assim, Gil, de certa maneira, ridicularizava com bastante perspicácia o lema ditatorial por meio da substituição da conjunção alternativa ou pela conjunção aditiva e promovendo com isso uma brusca mudança de sentido, que fazia com que, despretensiosamente, o artista substituísse o maniqueísmo da conotação original, possessivo, vil e autoritário, típico do regime de exceção, por uma acepção generosa e democrática de amor livre. Em função das arbitrariedades, a ditadura faria com que muitos brasileiros fossem para o exílio, forçado ou voluntário, com receio de prisões e torturas, afinal, como relembra Flávio Tavares, antes mesmo do terror de 1964, o choque elétrico era um método corriqueiro utilizado pelas polícias do país para obtenção de confissões contra presos pobres, suspeitos ou autores de crimes cotidianos, mas a sofisticação do recurso, com requintes perversos, passou a ser empregada para presos políticos, efetuando-se também uma policialização das Forças Armadas e não uma militarização das polícias, isto é, “[...] o delegado Sérgio Fleury não ficou parecido com um oficial do Exército. Eram oficiais do Exército que ficavam parecidos com ele.” (GASPARI, 2014, p.69). 125 Repressão, como observa Zé Celso em Primeiro ato, que, além de barbárie corpórea, resultava num mecanismo de lavagem cerebral e desinformação “[...] para que pessoas, fatos e atos desapareçam da memória social e não cheguem aos que não participaram diretamente da explosão da época. É sempre assim: as classes dominantes vão tentar cortar o fio da história das lutas dos provisoriamente dominados.” (CORRÊA, 1998, p.125). Por isso, no fio da história brasileira, a nação foi devastada por inúmeros atos retrógrados como as cassações de mandatos, prisões de centenas de pessoas por falsos atos subversivos e

125 O uso revoltante da técnica da tortura é enfatizado por Tavares ao considerar que esse suplício é “[...] o método de interrogatório usual das ditaduras e o fato de ser exercida por psicopatas sádicos não lhe tira a característica de instrumento para um determinado fim. Ao contrário: sempre se entrega a tarefa a um especialista com as melhores qualificações. Quem não reúna todas as condições não é o indicado. Na vida diária se procede assim. Nas catacumbas da tortura, também. O sadismo perverso não é visto como doença que inabilite um sargento, um oficial ou um policial para torturar. Ao contrário, é a credencial para torná-lo apto a torturar. É uma condição inata – sine qua non −, tal qual a um classificador de perfumes se exige olfato apurado.” (TAVARES, 2012, p.246). 219

toda sorte de medidas antidemocráticas tomadas e reiteradas até 1985, no governo de João Figueiredo. Nesse cenário, era valioso o papel progressista dos artistas tropicalistas e pós-tropicalistas, que ao efetuarem críticas políticas e culturais de modo agregador, possibilitavam uma forma de combate à ditadura, vista também na reatualização da essência tropicalista nos dias atuais, herança percebida nos mais distintos ambientes artísticos, quando vivemos, novamente, tempos nebulosos. Louvação, parceria com Gil, é um exemplo torquatiano de canção com acentuado viés político:

Vou fazer a louvação, louvação, louvação Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado. Meu povo, preste atenção, atenção, atenção. Repare se estou errado. Louvando o que bem merece, Deixo o que é ruim de lado. E louvo, pra começar, Da vida o que é bem maior: Louvo a esperança da gente Na vida, pra ser melhor. [...] Louvo agora e louvo sempre O que grande sempre é: [...] Louvo a paz pra haver na terra, Louvo o amor que espanta a guerra, Louvo a amizade do amigo Que comigo há de morrer Louvo a vida merecida De quem morre pra viver, Louvo a luta repetida Da vida, pra não morrer. [...] Louvo a canção que se canta Pra chamar a primavera Louvo quem canta e não canta Porque não sabe cantar Mas que cantará na certa Quando, enfim, se apresentar O dia certo e preciso 220

De toda a gente cantar.

Na canção, o eu poético se dirige ao povo, do qual ele próprio faz parte, dado perceptível no momento em que chama a atenção do ouvinte e indaga se está errado; em seguida, professa uma espécie de crítica ao imobilismo político e dá voz, possivelmente, aos egressos do movimento estudantil universitário que partiram para a luta armada. 126 Ademais, o estado hostil à democracia possibilitava um número expressivo de exilados, pessoas de diferentes círculos, cuja soma

126 Em A ditadura envergonhada, Gaspari observa ser uma anedota a afirmação social de que os esquerdistas foram os primeiros a pegar em armas, pois “o terrorismo político entrou na política brasileira na década de 1960 pelas mãos da direita. Antes mesmo da deposição de João Goulart, e sem nenhuma relação direta com as conspirações para derrubá-lo, militantes da extrema direita e oficiais do Exército atacaram a tiros o Congresso da UNE que se realizava em julho de 1962 no hotel Quitandinha, em Petrópolis. Dois automóveis dispararam contra estudantes que estavam nos jardins, ferindo dois deles. A operação foi creditada ao Movimento Anti-Comunista, o MAC, e dela participou um major do Exército. Desde 1963 existia em São Paulo um Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, formado por jovens ligados a políticos conservadores e a militares que a essa altura tangenciavam conspirações.” (GASPARI, 2014, p.251). Em relação ao braço armado esquerdista, o autor aponta, em A ditadura escancarada, que o sequestro do embaixador Elbrick foi o grande feito da luta armada porque houve desmoralização da ditadura, “[...] tanto pela publicidade que a audácia do lance atraiu como pela humilhação imposta aos chefes militares, que, tendo atropelado a Constituição, viram-se encurralados por alguns jovens de trabuco na mão.” (GASPARI, 2014, p.99). Entretanto, as organizações armadas, que apostavam nas guerrilhas urbanas e rurais, “[...] entraram em colapso porque tinham a repressão atrás e nada pela frente. Até o início do segundo semestre de 1970 assaltaram cerca de trezentos bancos, carros-fortes e empresas. Conseguiram graus variáveis de prosperidade. As ‘expropriações’ renderam-lhes por volta de 1,7 milhão de dólares, e a VAR- Palmares ficou milionária com os 2,6 milhões do cofre de Adhemar de Barros. Valiam-se de conexões externas, ora em Cuba, ora na Argélia, e também na China. A ALN mandou a Havana o equivalente a um terço de seus quadros. Tiveram o dinheiro, o suporte e o sonho comum do foco rural. Enquanto chineses e cubanos estabeleceram suas bases rurais tomando a terra em combates, as siglas brasileiras estabeleceram-se no campo pela via legítima da propriedade fundiária, comprando fazendas com o dinheiro arrecadado nos assaltos. Fora desse padrão, estavam apenas o brizolismo, em Caparaó, e o PC do B, no Araguaia. Nele ficaram o MR-8 no Paraná, a VAR no vale do Ribeira, e a ALN no sul do Pará, Goiás e Maranhão.” (GASPARI, 2014, p.195-6). 221

destacava os artistas, políticos oposicionistas, acadêmicos, líderes estudantis e de movimentos sociais. Glauber Rocha, Zé Celso, Hélio Oiticica e Torquato são exemplos de artistas que buscaram trabalho e refúgio no exterior. Todo dia é dia D, por exemplo, canção de Carlos Pinto e Torquato, foi escrita no auge da repressão dos anos de chumbo:

Desde que saí de casa Trouxe a viagem da volta Gravada na minha mão Enterrada no umbigo Dentro e fora assim comigo Minha própria condução Todo dia é o dia dela Pode não ser pode ser Abro a porta e a janela Todo dia é dia D Há urubus no telhado E a carne seca é servida Um escorpião encravado Na sua própria ferida Não escapa, só escapo Pela porta da saída Todo dia é o mesmo dia De amar-te, a morte, morrer Todo dia menos dia Mais dia é dia D

Em Ideologia da cultura brasileira (1933-1974), Carlos Guilherme Mota aponta que nos anos 70 “[...] vivíamos no mundo das trevas, sombras, medo e – pior de tudo – mediocridade e desinformação.” (MOTA, 2014, p.08).127 Assim, a canção torquatiana

127 Mota faz essa constatação levando em consideração outros dados que não os óbvios, isto é, a desgraça brasileira nesse momento extrapolava a censura e o Estado antidemocrático como um todo, tragédias por si só, mas que são ainda mais profundas se considerarmos que “[...] de Norte a Sul do país, predominava a face mais festejada da ‘Cultura Brasileira’, a oficial, alimentada pelo regime militar e seus apaniguados civis, ornamentada com as ideias de Gilberto Freyre, 222

era composta num período em que Mario Cámara, em El caso Torquato Neto: diversos modos de ser vampiro en Brasil en los años setenta, caracteriza como “[...] años de vampiros en Brasil.” (CÁMARA, 2011, p.09), visto que esses seres míticos, sombrios e reclusos, representariam o momento político, mas também da arte e, consequentemente, dos artistas, sufocados pela repressão, que levaria muitos deles para a cena exílica, ou seja, naquele período, a figura do vampiro tornara-se extremamente sintomática porque, essencialmente, o vampiro é um morto-vivo. Nem morto e nem vivo em plenitude, entretanto, o alimentar-se do vampiro gera símiles e lhes garante a imortalidade, afinal, com ela, a impossibilidade de morte efetiva, ocorre transformação e recriação. Portanto, para além da atuação vampiresca, morte e vida dialogavam incessantemente no imaginário torquatiano, por isso a mítica vampírica constituía certa ambiguidade em relação a Torquato, que tinha, também, a imagem do escorpião atrelada a si em função da famosa canção, que apresenta a metáfora do escorpião em seus versos e, desse modo, salienta o juízo de que, segundo a lenda, o escorpião mata e também se suicida com seu próprio veneno, se estiver sem saída, num círculo de fogo, por exemplo. Segundo Ana Maria, viúva de Torquato, o poeta teria pensado nessa imagem a partir de The wild bunch, western estadunidense, que ganhou o título de Meu ódio será tua herança na versão brasileira, filme de 1969 de Sam Peckinpah, que mostra, no início, um grupo de crianças empurrando dois escorpiões para dentro de um formigueiro, um círculo de fogo, um destino sem saída. De tal modo, nascimento e morte sob o signo de escorpião tornaram a satisfeito da vida em sua varanda de Apipucos. Saboreando a adoção pelo regime militar de seu pitoresco discurso luso-tropicalista, suas teses harmoniosas sobre a ‘democracia racial’ sustentavam o sistema pedagógico- cultural e político que servia bem ao projeto do ‘Brasil potência emergente’, com a insuportável ideologia da (mal-conceituada) cordialidade e do jeitinho, tudo justificando o sucesso do ‘milagre econômico’ brasileiro, cujos resultados podem, hoje como ontem, ser encontrados nos presídios lotados, na violência urbana e rural, na ascensão de uma burguesia grosseira e mal-educada ao poder econômico-financeiro, político e educacional deste país. Mais precisamente, de uma lúmpen-burguesia e um lúmpen-proletariado que hoje encontram seu lugar ao sol, sem projeto histórico-social denso e moderno. E justificados pelo sucesso do tal ‘milagre’, o brutal aperto da censura, a institucionalização da tortura, dos ‘esquadrões da morte’, dos ‘justiceiros’, o desaparecimento de cidadãos e o aplastamento da inteligência crítica.” (MOTA, 2014, p.08).

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translação desse aracnídeo amalgamada à imagem do poeta e, além disso, passaram a evidenciar o fechamento do círculo em que Thanatos vence Eros e há a instalação do poder autoritário que se constitui como “a viagem de ida encontrando a viagem de volta, o fim no começo, o começo no fim, a imagem do escorpião cercado pelo fogo da História mordendo a própria ferida impondo-se, soberana.” (BUENO, 2005, p.173), como explicita André Bueno, em Pássaro de fogo no terceiro mundo: o poeta Torquato Neto e sua época, mas também denota que quer no exílio, ou na angústia frente à vivência sob o poderio ditatorial, todo dia é dia D, sempre. Nessas condições, a pós-tropicália fazia o uso do mal também de modo alegórico, assim como aponta Aguilar, em relação à canção Tropicália de Caetano, porque o monumento tropicalista, não por acaso, apresentava um jardim em que os urubus passeavam a tarde inteira entre os girassóis e o sopro da vida era substituído pela lufada da morte, que “[...] anima a estátua alegórica, rodeada de urubus e fossas [...].” (AGUILAR, 2005, p.145), onde os urubus e os girassóis são, respectivamente, a tristeza e a alegria; morte e vida. Em Resistência da poesia, Jean-Luc Nancy vê a poesia como potência da linguagem e acredita que ela “[...] não tem exatamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um sentido a cada momento ausente, e transferido para longe. O sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre por fazer.” (NANCY, 2005, p.10). Por isso, a prática poética também, de certa forma, é vampiresca, lançando mão intensamente do método intertextual num texto que acredita no palimpsesto, oriundo de Jorge Luis Borges, ou como aponta Camargo, referindo-se especificamente ao caso de Ana Cristina Cesar, há nesses autores uma “[...] constatação da impossibilidade do ‘novo’, da inexistência da originalidade absoluta. Novo será o modo de desentranhar a própria palavra tecida na palavra alheia. Novo será o modo de ler.” (CAMARGO, 2003, p.144), que possibilita uma ladroagem de versos e temas, as vampiragens, que se diferem da antropofagia, pois “[...] os modelos (vítimas?) não precisam ser destruídos na paródia. Não há necessidade de deglutição total, de devoração.” (CAMARGO, 2003, p.150). No entanto, diferente da prática do canibalismo, a antropofagia “[...] não devora corpos; ela produz corpos.” (ANTELO, 2001, p.273), como observado em Transgressão & modernidade por Raúl Antelo. Assim, amalgamando essas imagens, o poeta torna-se um vampiro resistente na luta entre morte/vida, mas que, ao final, sucumbe como o escorpião, presa de si mesmo, já que como considera Camargo,

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[...] o vampiro suga o sangue de sua vítima para manter-se em sua ambígua forma de ser: morto- vivo. Nem morto, nem vivo. Ou ambos, e simultaneamente. Por sua vez, o erótico e primitivo ato de sugar (o sangue, o leite) produz duas consequências: ao mesmo tempo em que nutre o vampiro, transforma o ‘vampirado’ em outro ser dúbio, outro morto-vivo, um símile. Em última instância, garante aos dois a imortalidade: não há morte; há transformação, há recriação. Ao sugar gêneros, frases e palavras para nutrir-se, dá- lhes outra vida. Dá-lhes o seu próprio modo de ser. Identificam-se apesar das diferenças. (CAMARGO, 2003, p.150).

Com isso, após o exílio voluntário na Europa, o poeta volta ao Brasil já rompido com o grupo baiano e encontra uma forma importante de expressão nos cineastas marginais que adviria como um apoio para suas aspirações no cinema underground durante o apogeu do super 8mm e a plena vigência da ditadura. Um desses projetos de tentar combater o poder da mídia tradicional, na maioria das vezes a serviço de interesses predeterminados, ocorria por meio do cinema e da bitola fílmica amplamente defendida por Torquato, a quem Maciel se refere, em Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo, como companheiro contracultural, ao considerar também que

o Super-8 mostrava-se como uma alternativa não só contra o cinemão como contra o próprio Cinema Novo, que já era considerado pela novíssima geração uma fase superada de nosso cinema. Desenvolveu-se assim o movimento do Cinema Udigrudi, como a grande imprensa o batizou. O nome era, digamos, um tanto imbecil, já que ninguém, nem no Brasil, fala ‘udigrudi’ tentando falar underground. Devia ser pelo menos ‘andergraundi’, não é? [...]. (MACIEL, 1996, p.249).

Sendo assim, o período comportava vários projetos de mídia alternativa, sobretudo jornais impressos, devido ao custo mais acessível 225

e ao controle exercido contra as mídias tradicionais, que ajudou a florescer a imprensa alternativa, dita nanica erroneamente, pois os jornais mais destacados nesses moldes, O Pasquim e Opinião, lançados em 1972, vendiam absurdamente nas bancas do país tendo “[...] uma circulação superior à das revistas Veja e Manchete somadas. Podiam ser frugais, não nanicos.” (GASPARI, 2014, p.223), como observa Gaspari. No entanto, a partir desse momento, Torquato mergulha cada vez mais em solidão e amargura e começa um período de produção quase autofágica em que os textos passam a ser solipsistas em função do “baixo astral”, das internações e da “barra pesada”, culminando na despedida por meio de uma carta-poema, em que ele se define como uma grande múmia que só pensa em múmias, cuja palavra FICO, grafada em maiúsculas, marca o fim da trajetória do poeta, que é, como explanado por Viviana Bosi, em Torquato Neto: “começa na lua cheia e termina antes do fim”, “[...] sintomática dos desejos irrealizáveis de uma geração. Outro projeto de país venceu, e os derrotados ficaram à margem: tanto os radicais apaixonados que morreram na guerrilha quanto alguns artistas inquietos quedaram paralisados nos embates dos anos 70 [...].” (BOSI, 2014, p.51). Em Contracomunicação, Décio Pignatari cita que “a poesia de Mallarmé, como a que dela advém, de um modo ou de outro, incluindo boa parte da poesia concreta, é uma poesia-onça: traz na própria pele as suas pegadas.” (PIGNATARI, 2004, p.103) e, assim, em certa medida, aplica-se essa mesma consideração em relação à última fase do poeta, evidenciada, por exemplo, em só escapo pela porta da saída, verso de Todo dia é dia D, cuja letra enfatiza o sujeito acossado, que lembra sua canção de 1966, em parceria com Edu Lobo, Pra dizer adeus, que é ambígua quanto ao adeus, podendo ser mote de uma separação amorosa, mas também de despedida da vida:

Adeus Vou pra não voltar E aonde quer que eu vá Sei que vou sozinho Tão sozinho, amor Nem é bom pensar Que eu não volto mais Desse meu caminho Ah, Pena eu não saber Como te contar 226

Que o amor foi tanto E no entanto eu queria dizer Vem Eu só sei dizer Vem Nem que seja só Pra dizer adeus

Todavia, a expatriação, autoritária ou por força das circunstâncias, também se mostrou traumática para os artistas desse período. Nine out of ten, canção de Caetano, expressa a angústia do exílio, sofrido, mas que permitia continuarem vivos e produzindo, como visto no verso I walk down Portobello road to the sound of reggae/ I’m alive.128 Contudo, juntamente com a repressão, voraz no início dos anos 70, o Brasil ia vendo a contracultura florescer, afinal, era a época do desbunde, que “[...] não pode ser definido como se fosse um conceito e muito menos como se tratasse de uma regra de comportamento. É antes um espetáculo em que se irmanam uma atitude artística de vida e uma atitude existencial de arte, confundindo-se.” (SANTIAGO, 2000, p.149), segundo Silviano Santiago. Pode-se dizer que a contracultura figurava como um momento de intensa reflexão, produto de postura contestatória, que vinha se desenvolvendo desde o século XIX, a partir da contenda econômica marxista, dos aspectos psicológicos e de psique freudianos e a filosofia da vida de cunho existencialista, vistos em Nietzsche e Kierkegaard, questões que somadas formaram um verdadeiro escopo contracultural, que segundo Luiz Carlos Maciel,

[...] herdou tudo isso e aceitou tudo, levando ainda mais longe porque na contracultura da economia,

128 Essa canção também faz uma importante citação ao reggae, ritmo jamaicano surgido nos anos 60, que se espalhou pelo mundo, posteriormente. Quando os baianos retornam ao Brasil, o gênero já havia se difundido, e Gil gravaria a primeira canção desse molde no país, Rato miúdo, de Jorge Alfredo Guimarães, cineasta baiano, gravada para o álbum Refazenda. No entanto, a canção foi censurada na época, retirada do disco e divulgada apenas em 2016. Caso tivesse constado efetivamente no disco, teria sido o primeiro reggae brasileiro a ser gravado e distribuído. A censura ocorreu, sobretudo, em função do refrão: [...] por ter sido julgado incapaz, definitivamente, podendo exercer atividades civis.

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a sociedade, a política, a arte, a psicologia foram contestadas, a própria posição do ser humano em face do universo e do ser, a própria religião foi contestada. Não para ser simplesmente negada, o que a contestação política já tinha assumido, mas para levar a experiência religiosa em outros níveis, vê-la de outra maneira. Aí que a contracultura aceitou e trabalhou com a tradição ocultista do ocidente, as religiões orientais, e toda essa massa de contestações variadas e de várias direções abriram o espaço para uma liberdade individual muito grande, tanto no nível filosófico quanto no nível estético, ou seja, em todos os níveis. A real identidade foi pulverizada pela contracultura. Não havia nada que fosse substancial e que pudesse ou devesse ser obedecido, que não pudesse ser contestado. (MACIEL apud CYNTRÃO, 2000, p.132).

O desbunde foi inovador, nesse sentido, sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde ecoava contra o establishment, a Guerra do Vietnã, o sistema político e a sociedade conservadora num mecanismo antiautoritário, que agregava tensões sociais, na busca por direitos civis em relação à sexualidade, ao direito das mulheres e igualdade racial. De cunho anti-ideológico e apoiado por integrantes da nova esquerda, os adeptos promoviam a queima dos certificados de alistamento, o que os tornava outsiders, e encaminhavam-se para teorias de Timothy Leary, professor de Psicologia da Universidade de Harvad, que se tornou um ícone apologista ao uso de substâncias alucinógenas como o LSD, ao conseguir adeptos com o slogan turn on, tune in and drop out, criado por Marshall McLuhan. No Brasil, o desbunde, bastante criativo, surgiu se opondo à repressão, ao moralismo e a todo tipo de conservadorismo. No entanto, também teve de enfrentar a esquerda ortodoxa e/ou marxista que o condenava sistematicamente atacando-o como sintoma e reflexo de alienação, o que tornou sua existência ainda mais anárquica e subversiva, pois, devido à origem, principalmente estadunidense, era muito criticado e incompreendido por aqueles que não percebiam seu viés revolucionário, em função de caretice, por parte dos direitistas e pelo radicalismo oriundo dos marxistas fervorosos. A coluna Underground, do jornal O Pasquim, de Maciel, considerado o 228

guru da contracultura nacional, era a principal expressão jornalística desse grupo, para quem o underground era uma saída na continuação da jornada de ocupação dos espaços, mas que não almejavam pegar em armas. A partir da volta definitiva do exílio, os baianos se chocaram com o cenário nacional ainda mais embrutecido, momento em que a oposição adepta da guerrilha e da luta armada já havia sido liquidada por meio de prisões, exílio e assassinatos, o que deu ampla marcha para a desilusão política e agravamento dos problemas sociais. Em meio a isso, grande parte da juventude voltou-se para o uso de entorpecentes e recorreu à psicanálise e às filosofias orientais, uma vez que se constatava naquela época um novo modo de viver, subterrâneo, adepto da filosofia do drop out, como visto em Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália:

[...] cair fora é a palavra de ordem de vastos setores da juventude nos anos sessenta: escapar das identidades, andando na contramão do progresso e fazendo um retorno à natureza. Um retorno que se fazia não exatamente no sentido de sair das cidades, mas, antes, no sentido de redefinir a pólis e, portanto, aquilo que é próprio dela – a política. (BRANCO, 2005, p.73).

Após a carnavalização da Tropicália, o fluir pós-tropicalista da Marginália embrenha-se no advento da quaresma, como aponta Affonso Romano de Sant’anna, em Música popular e moderna poesia brasileira. Nessa passagem, da festa carnavalesca para o ciclo pascal, inicia-se uma crescente busca mística, uso de substâncias para a expansão da mente e inspirações artísticas muito influenciadas pela figura de Leary, que nortearia a contracultura também no Brasil, eclipsado por um interesse místico pelo oriente, confirmado na canção Oriente de Gil,129 pelo zen budismo, i-ching, tarô, macrobiótica e também vegetarianismo e veganismo. O disco A tábua de esmeralda, de

129 Claro exemplo de misticismo pós-tropicalista de Gil: Se oriente, rapaz/Pela constelação do Cruzeiro do Sul/Se oriente, rapaz/Pela constatação de que a aranha/Vive do que tece/Vê se não esquece/Pela simples razão de que tudo merece/Consideração/[...]/Determine, rapaz/Onde vai ser seu curso de pós- graduação/Se oriente, rapaz/Pela rotação da Terra em torno do Sol/Sorridente, rapaz/Pela continuidade do sonho de Adão. 229

Jorge Ben, é exemplo alquímico-musical que elucida esse período assim como Krig-ha, bandolo!,130 de Raul Seixas, artista baiano que importa a ideia de sociedade alternativa para o país e que promove uma verdadeira reunião político-cultural aos moldes tropicalistas num mesmo disco, vide a presença de Jesus Cristo, Jimi Hendrix, Júlio César, Lampião, Al Capone e Frank Sinatra, aglomero pós-tropicalista que, segundo Sant’anna, seria sintetizada na canção Cachorro Urubu, parceria de Seixas e Paulo Coelho, dos versos Baby, a história é a mesma/Aprendi na quaresma/Depois do carnaval, característica que corroborava, por meio de uma postura anárquica e de abusos alucinógenos, uma espécide de flagelação do corpo em meio à carnavalização, “[...] mas o que era vitalmente carnaval parece ter-se mesclado com a quaresma num exorcismo histórico e psicanalítico.” (SANT’ANNA, 2013, p.80). De tal modo, a partir da referência tropicalista, o início dos anos 70 seria sinônimo de indústria cultural e cultura do contra num período em que já não havia mais hegemonia esquerdista, em grande parte desarticulada politicamente, entretanto, segundo Ana Cristina Cesar, em Literatura marginal e o comportamento desviante, a Tropicália entusiasmaria sua sectária porque

[...] é a expressão de uma crise, uma opção estética que inclui um projeto de vida, em que o comportamento passa a ser elemento crítico, subvertendo a ordem mesma do cotidiano e marcando os traços que vão influenciar de maneira decisiva as tendências literárias marginais. O tropicalismo revaloriza a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento. [...] As preocupações com o corpo, o erotismo, as drogas, a subversão de valores apareciam como demonstração da insatisfação com um momento em que a permanência do regime de restrição promovia a inquietação, a dúvida e a crise da intelectualidade. (CESAR, 1999, p.214).

130 O título é uma referência ao grito de guerra de Tarzan, personagem fictícia de Edgar Rice Burroughs, que figura como uma adaptação moderna da mitológica tradição de humanos criados por coletivos de animais. Originalmente, a expressão utilizada na tribo de macacos de Tarzan era Kreegah bundolo e significava um alerta de perigo. 230

O Estado, via repressão e censura, interferia na produção cultural e atuava ferrenhamente nos corpos de artistas, jornalistas, intelectuais, professores e toda ala progressista da população, direta e indiretamente, utilizando técnicas de coerção e extermínio oposicionista na extensão dos anos de chumbo, período de extrema violência nas prisões e de anarquia nos quartéis, conforme aponta Gaspari, em A ditadura escancarada, reiterando coincidemente o que diz um hierarca de Saló ou os 120 dias de Sodoma, filme pasoliniano: “A única anarquia verdadeira é a do poder.” Os corpos eram vilipendiados na arte e na vida tomando maior proporção após a criação dos DOIS,131 destacamentos de operações de informações, e da expansão dos DOPS, delegacias de ordem política e social, sendo a prática e a defesa do método de tortura o maior desastre das Forças Armadas.132 A crueldade não atingia apenas militantes opositores do Estado de exceção, mas a todos que se encontrassem partícipes de alguma situação de sujeição frente aos que detinham o poder. 133

131 Como observado em A ditadura escancarada, “seria muita ingenuidade acreditar que os generais Emílio Médici e Orlando Geisel criaram os DOIS (destacamentos de operações de informações) sem terem percebido que a sigla se confundia com a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo doer. Por mais de dez anos essas três letras foram símbolo da truculência, criminalidade e anarquia do regime militar.” (GASPARI, 2014, p.177). Aliás, Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, generais articuladores da ditadura civil-militar, optaram pelo desmonte ditatorial após duas décadas “[...] porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande bagunça.” (GASPARI, 2014, p.43). 132 O Jornal da Tarde publicou em 27 de maio de 1970 uma fala de Dom Helder Câmara no Palácio dos Esportes em Paris, que se tornaria emblemática, para um público de 10 mil pessoas: “[...] ‘A tortura é um crime que deve ser abolido. Os culpados de traição ao povo brasileiro não são os que falam, mas sim os que persistem no emprego da tortura. Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria e a tortura a desonra’.” (GASPARI, 2014, p.295-6). 133 Como pode ser percebido por meio, por exemplo, da execução de aspirantes do 1º BIB, Batalhão de Infantaria Blindada, na mesma época, 1971, em que Rubens Beyrodt Paiva, deputado federal cassado em 1964, foi torturado e assassinado por agentes da ditadura e o corpo nunca foi encontrado: “[...] o chefe da 2ª Seção do estado-maior do 1º BIB, capitão Dalgio Miranda Niebus, de 29 anos, investigava a existência de uma boca de fumo no quartel. Ajudado por um tenente, três sargentos e dois cabos, prendera ilegalmente quinze soldados e os interrogara no Arquivo, uma construção a quatrocentos metros de distância do corpo de guarda do batalhão. Bateram neles com canos de ferro, 231

Nesse período, a oposição se dividia em alguns nichos: os presos pela ditadura, os exilados que continuavam militando nos países para os quais foram deportados, mormente Uruguai e Chile (até o início da Operação Condor), México, Cuba, França e Argélia, e os contrários ao regime que vivenciavam o desbunde da marginália cultural num momento de modernização autoritária que marcaria, segundo Cámara, “[...] a perda da dimensão coletiva e crítica do ‘momento tropicalista’[...], a arte teria se convertido em uma atividade noturna e o artista num sujeito isolado.” (CÁMARA, 2014, p.122-3). Nas universidades, a ideia de desbunde foi introduzida nos anos 70 por Heloisa Buarque de Hollanda, por meio da tese Impressões de viagem, CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, que aborda a produção literária do fim dos anos 50 até o término do AI-5 em dezembro de 1978, publicação que ocorre com a cultura em processo e observa a participação engajada dos centros populares de cultura, da Tropicália, da Marginália e o que viria a ser reconhecido como Poesia Marginal. Com essa publicação, mostrava-se a inquietação dos artistas, que reverberaria infinitamente até a atualidade, dando ênfase aos movimentos culturais e políticos também da Europa e dos Estados Unidos que envolvia os hippies, os Beatles e Bob Dylan. Além, é claro, do surgimento dos cabelos grandes, do colorido das roupas e, principalmente, da recusa dos padrões de bom comportamento que não agradava a esquerda tradicional, pois, segundo Heloisa, os artistas marginais recusavam o populismo, valorizavam a cultura de massa e a crítica ao comportamento. Sendo assim, os jovens deixaram crescer os cabelos e as ideias, num momento histórico em que, como observa

açoites e palmatórias feitas no serviço de carpintaria do quartel, uma das quais desenhada pelo capitão Niebus. Deram-lhes choques elétricos e esmagaram os pés dos presos numa prensa manual. Na tarde de 12 de janeiro, dois dos soldados estavam mortos. Informado do caso, Gladstone determinou que se simulasse uma fuga arrombando-se o teto do Arquivo e dando-se sumiço aos cadáveres. Um foi degolado e o outro, incinerado. No dia seguinte morreu um terceiro soldado. O quarto, cuja cabeça fora colocada na prensa, morreria dias depois no Hospital Central do Exército. Pelo menos um deles agonizou no Arquivo, implorando assistência, mas o médico da unidade se recusou a socorrê-lo. Todos tinham a mesma idade: dezenove anos.” (GASPARI, 2014, p.326).

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Gaspari, ainda se ansiava por uma série de conquistas e evoluções sociais que eram perceptíveis porque

quando o Marechal Castello Branco entrou no palácio do Planalto, levou para o governo um mundo em que Kerouac seria um homossexual bêbado, Ginsberg um judeu doido, Huxley um inglês excêntrico, Wright Mills um exibicionista, Marcuse um alemão perigoso, King um ingênuo sonhador e Fanon, um negro desconhecido. Estavam todos muito longe da lógica do poder, do minucioso cálculo das forças econômicas e militares. Eram marginais num mundo arrumado cujos problemas, se os tinha aqui e ali, deveriam ser resolvidos através daquele vagaroso processo de evolução em que manda quem pode e obedece quem tem juízo. Tratava-se de um mundo onde a igualdade racial era uma aspiração filosófica, o homossexualismo uma anomalia e a condição feminina, um estuário procriador, amoroso e doméstico. (GASPARI, 2014, p.215).

Portanto, trata-se de um mundo ainda refém de conservadorismo e preconceito em larga escala e, em função disso, Torquato escreve, em Na segunda se volta ao trabalho, sobre como ele próprio era malvisto por sua postura e seus cabelos grandes:

Pois eu vou contar uma história. Sem pé nem cabeça: você sabe com quem está falando? Eu respondi que não e a autoridade mostrou-se ofendidíssima. Foi por isso que explicou assim: − Polícia. Ora, eu agradeci, mostrei meus documentos, o cara conferiu que tudo era legal e estava em ordem e em seguida iluminou-se: − Ora, bicho, esse teu cabelo está muito grande. Aí eu fui alugar um apartamento para morar. Quem não precisa de um? Quando a gente mora só e tem quem convide, a gente aceita e evita o vexame. Mas quando a gente tem família, o jeito é 233

aquele mesmo: primeiro enfrentar os porteiros olhando desconfiadíssimos para a minha cara enquanto entrega as chaves. Vai a descarta: − Acho que nem adianta olhar. Parece que já está alugado. Pelo telefone os caras não me veem, de modo que a informação é batata. − É conversa do porteiro. − Aí eu fui lá, acertar a transa, assinar os papéis e tal. Aí o cara olhou para a minha. Aí ele conferiu muito e aí ele decidiu: − Tem gente na frente. Aí eu saí na rua. Primeiro na Tijuca, onde as pessoas se divertem olhando. Depois na cidade, onde as pessoas me cercaram na Rua da Assembleia e gritavam corta o cabelo dele e tal. A gente pensa: vou tomar muita pancada dessa gente. Eles olham com ódio para o meu troféu. Meu cabelo grande e bonito espanta, espanta não, agride (a tal palavra) e eu me garanto que eu não corto. História de cabelos... Um cara suado e de gravata, cara de ódio, passa por mim na Conde de Bonfim, cara de uns quarenta anos, cara de pai de família classe média típico nacional, passa no seu fusquinhasinho e quando me vê dá um berro: − Cachorro cabeludo. Inteiramente maluco, o cara. Doido de pedra. Ou não? Desci do ônibus e saí andando pela Gomes Freire. Vinha uma senhora gorda fazendo compras com um garoto pequeno e um tipo – filho com jeitão de funcionário sei lá de quê. De longe, enquanto eu vinha, eles já sorriam e cochichavam tramando. Eu vi. Bem na minha frente os três pararam e a vanguarda do movimento adiantou-se – era o garotinho. − É homem ou mulher? Eu respondi. − Mulher. O rapazinho, o outro, gritou. Atenção: gritou. − Cala a boca, cabeludo desgraçado. A mulher deu uma gargalhada e eu passei. 234

Inteiramente malucos, doidos varridos, doidos de pedra. Ou não? Aí, crianças, a gente declara novamente: são uns malucos. São uns loucos. São uns totalitaristas: cabeludo não entra. São uns chatos, são loucos, totalmente loucos, e perigosos. É assim que eles estão: doidos, malucos, loucos e perigosos. Ou não? (NETO, 1982, p.199-200).

Nesse artigo, de 1971, Torquato descreve com sensata dose de indignação e dandismo os percalços de ser ou estar cabeludo nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, que lembra-nos, de certa forma, a convergência ocorrida em muitos momentos históricos entre a representação da figura do artista e do marginal. Em muitos casos, apartados da sociedade e fora dos padrões, artistas foram estereotipados como malditos, sobretudo pintores e poetas do século XIX, considerados dândis, flâneurs e/ou gauches. No texto torquatiano, percebe-se que o poeta expõe como era, naquele momento ditatorial, a repressão conservadora àqueles que não se encaixavam nos moldes comportamentais que a ditadura, não só de costumes, impunha. Com sua magreza e certo ar andrógino, provido pela cabeleira, Torquato ouvia toda sorte de desaforos nas ruas. Se o poeta perambulasse, atualmente, com as mesmas características físicas, talvez os longos cabelos já não fossem motivo para ataques, mas, certamente, seria alvo de tradicionalismo e falso moralismo, afinal, conceitos retrógrados são difíceis de erradicar, perpetuam-se de geração em geração, entretanto, naqueles tempos, as madeixas estavam diretamente atreladas à contracultura e faziam referência ao movimento beat generation, que queria distância dos squares, os quadrados, que aqui foram chamados de caretas, os inimigos do novo, os retrógrados, e como é notório, os tropicalistas e os pós-tropicalistas adoravam o novo, caráter que explica, em parte, a perseguição narrada pelo poeta. Ao lado da repressão política estava a censura moral e um discurso de legitimação autoritária, cuja tese era de que o Comunismo abalava os fundamentos da família, encaminhava os jovens para a obscuridade e a transgressão levando-os à subversão. Era preciso preservar a moral, os bons costumes e, inclusive, manter vestimentas comportadas e cabelos bem cortados, mesmo que os indivíduos arraigados a essas formalidades fossem, em maioria, hipócritas e 235

imorais, ou seja, “o período assistirá a um cerco sem precedentes à juventude e ao gosto jovem, e este cerco se dará especialmente em torno dos cabeludos. Usar cabelos compridos, no período, não é apenas deselegante, é acima de tudo obsceno e imoral” (BRANCO, 2005, p.89), como menciona Castelo Branco. Porém, essa espécie de perseguição social só logra êxito em função da participação da população, seja direta ou indiretamente, como censores do novo, como na conjuntura da história narrada por Torquato, onde é a criança a vanguarda do movimento intolerante de costumes. Nesse viés, o corpo e o comportamento serão enfatizados assim como foram, inicialmente, no momento tropicalista porque, segundo Heloisa, a Tropicália “[...] começa a sugerir uma preocupação com o aqui e agora, começa a pensar a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento, rompendo com o tom grave e a falta de flexibilidade da prática política vigente” (HOLLANDA, 2004, p.70) e, para isso, a arte utilizará a estética alegórica, uma das marcas da modernidade, como cerne para o debate em torno da industrialização e da modernização do país, tendo em conta que a alegoria benjaminiana privilegiava o plural, a diversidade e

no mundo alegórico, o universo concreto aparece então desvalorizado: seus elementos valem uns pelos outros, nada merece uma fisionomia fixa. A alegoria desta forma denuncia uma atitude ambivalente em face da realidade. Podemos dizer nesse sentido que o procedimento alegórico é fundamentalmente crítico: não se prestando à construção de naturezas estáticas, ele mostra uma profunda desconfiança da realidade e da linguagem. (HOLLANDA, 2004, p.67).

Nesse ambiente, surgem os jornais e revistas da imprensa alternativa fazendo da era do desbunde e da curtição uma possibilidade para edição de vários periódicos arrojados como Flor do mal, Verbo encantado, Bondinho e, também, a Navilouca. Torquato, além do trabalho em jornais tradicionais, também participou de publicações dessa linhagem, isto é, por necessidade de labor ou por precisão criativa, o poeta transitava por esses dois mercados, o oficial e o paralelo, círculo que abandonava a objetividade da imprensa tradicional lançando mão da subjetividade artística, característica que, como observa Heloisa, era 236

visível em O Pasquim, periódico que introduz no Brasil as entrevistas extensas e sem pauta prévia, que englobavam assuntos variados e contavam com edição textual feita por meio de transcrição e sem copydesk, sendo um grande aporte cultural porque

é ainda no Pasquim que a informação da contracultura vai encontrar talvez a sua mais importante ‘tribuna’, na página Underground produzida por Luiz Carlos Maciel, cuja atuação no período pós-tropicalista é fundamental. Acompanhando os debates do processo cultural desde o período ‘cepecista’, ele utiliza sua formação marxista e existencialista criticada pelos elementos da contracultura, de que se torna o principal divulgador. Sua página no Pasquim reflete e dá o clima dos debates, onde o materialismo dialético aparece ao lado das drogas, da psicanálise, do rock, das novidades novaiorquinas e do desbunde tropical. (HOLLANDA, 2004, p.72-3).

Outro ícone jornalístico que também envolvia Maciel era a Flor do mal, projeto do jornalista com Rogério Duarte, Tite de Lemos e Torquato Mendonça, inspirado no título de Baudelaire,134 que teve apenas cinco números e, obviamente, não vendeu como O Pasquim, semanário que circulou entre 1969 e 1991. A arte da Flor do mal era pensada por Ana, esposa de Torquato, ofício que possibilitava, por vezes, a presença do poeta na redação de O Pasquim, onde funcionava, informalmente, a criação da Flor, mas sem nunca ter sido um

134 Flor do mal também é título de uma canção de Vicente Celestino. Ademais, a flor é um elemento não sublime na poesia modernista brasileira e, além disso, como aponta Scramim, “[...] coexistem na poesia de Torquato: um Baudelaire com seu modo singular de ver a flor, isto é, vê-la na imanência do mal, que está nas encarnações da flor e dos versos que dizem que os poetas têm a palavra silenciada pelas doenças do mal, como no poema: ‘A poesia é a mãe das artes’ [...] Bem como um Mallarmé e sua pesquisa por uma sintaxe poética impura está no poema ‘A matéria. O material, 3 estudos de som, para ritmo’ [...] E a máquina expressionista de Bertold Brecht com ‘[...] Mamãe Mamãe não chore [...]. No entanto, a poesia de Torquato não faz senão emperrar cada uma dessas máquinas. (SCRAMIM, 2007, p.109-110).” 237

colaborador propriamente, embora a censura o preocupasse em relação à produção e a permanência dos meios massivos alternativos e da imprensa como um todo, como ele aponta em carta para Hélio Oiticica:

[...] a censura está de olho e os generais da moda devem fazer o possível para atrapalhar a coisa. Um deles deu entrevista, semana passada (e entrevista distribuída pela Agência Nacional), pra dar a seguinte sugesta: depois da morte do Lamarca, os terroristas estão fudidos como combatentes de fato etc. e – imagine – ‘passarão a ‘atacar’ através de jornais, cinema, teatro etc’. Que tal? Está foda, meu filho, mas nem por isso. Tiros no saco. Calcule. (NETO, 2004, p.251).135

Contudo, o primeiro número do jornal contracultural teve a participação indireta de Torquato, tendo em vista que a foto de uma menina sorridente, que serviu de capa, foi recolhida pelo poeta no chão da redação do jornal em que ele trabalhava efetivamente, o Última Hora, certamente desprezada pelo autor do clique, pois, segundo Maciel, “[...] ficamos encantados com o sorriso da criança; parecia expressar a pureza espiritual que buscávamos, de maneira que nós a publicamos na capa da Flor e nem sequer o fotógrafo que a tinha feito reclamou crédito, já devia ter esquecido da própria foto.” (MACIEL, 1996, p.246). A menina negra e pobre, cuja fotografia original a mostrava nua da cintura pra cima e, em função de provável censura, necessitou-se de recorte na imagem, havia desaparecido e, posteriormente, soube-se que fora assassinada em Belford Roxo, região

135 Torquato menciona a repressão intensificada a partir da execução de Carlos Lamarca, capitão do exército que abandonara sua função para tornar-se um dos comandantes da VPR, organização guerrilheira de combate à ditadura, vinte dias após a morte do guerrilheiro ocorrida no interior da Bahia em 17 de setembro de 1971 quando militava pelo MR-8. Segundo Gaspari, “no dia seguinte o presidente Médici conferia a fisionomia do morto em sua mesa no Planalto. Lamarca tinha os olhos abertos. O epitáfio daquela figura seca, descalça e rota, semelhante na ruína ao Antonio Conselheiro exumado, parecia ter sido escrito quase vinte anos antes pelo poeta Mário Faustino: ‘Gladiador defunto, mas intacto’.” (GASPARI, 2014, p.363).

238

metropolitana da capital fluminense, num claro exemplo de violência urbana brasileira, que como considera Susana Scramim, em A literatura e o mal – O arco floral Torquato Neto e Marcos Siscar, capítulo de Literatura do presente: história e anacronismo dos textos, expõe por meio da foto da menina morta “[...] pela violência intemporal brasileira uma duplicação da imagem do mal na literatura, que foi produzida por uma atenção distraída de Torquato Neto que a resgatou de um cesto de lixo para colocá-la na capa do primeiro número de Flor do Mal.” (SCRAMIM, 2007, p.105).

Figura 12 − Flor do mal

Nos anos 70, além dos jornais alternativos, era notável a gama de revistas literárias em circulação e como elas contribuíram para a proliferação do poético, como ilustra Paulo Leminski, em O veneno das revistas da invenção, presente em Anseios Crípticos 2:

239

Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de uma ‘Navilouca’? A força construtivista de uma ‘Pólem’, ‘Muda’ ou de um ‘Código’? O safado pique juvenil de um ‘Almanaque Biotônico Vitalidade’? A radicalidade de um ‘Pólo Cultural/ Inventiva’, de Curitiba? A fúria pornô de um ‘Jornal Dobrabil’? E toda uma revoada de publicações (‘Flor do Mal’, ‘Gandaia’, ‘Quac’, ‘Arjuna’), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao sucesso ou ao Nada. (LEMINSKI, 2001, p.89).

Oriundas de review, as revistas existem no Brasil desde o século XIX.136 Unem o efêmero do jornal, diário, e o eterno do livro encadernado e sua circulação só se tornou realidade por meio do advento da imprensa, amparada, de certa forma, na tipografia iniciada no século XV, que possibilitou a reprodutibilidade dos textos, como é enfatizado em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica por Walter Benjamin:

Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita. Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de

136 No dicionário, a definição de revista é publicação periódica. Em função disso, a capa da Navilouca ironiza com o adendo “primeira edição única”. Gracejo semelhante faz a poeta Ana Cristina Cesar, em Correspondência completa, com o escrito “2ª edição”, isto é, a obra apresenta “[...] um irônico ‘2ª edição’ dessa correspondência que se completa num único texto.” (CAMARGO, 2003, p.21), como aponta Maria Lucia de Barros Camargo. 240

importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. (BENJAMIN, 2011, p.166).

Neste contexto, as revistas desempenharam importante papel no curso da história e de seus movimentos culturais. Entretanto, as publicações de poesia no Brasil, com algumas exceções, surgiram e desapareceram com poucos números lançados. Talvez isso tenha ocorrido porque, como aponta Omar Khouri, em Revistas na era pós- verso, a duração se dará enquanto a revista ainda tiver razão de existir, no entanto, “[...] a importância no todo do contexto em que foi produzida, vai depender do grau de informação que tiver traduzido e da penetração que chegou a ter no meio que pretendeu atingir.” (KHOURI, 2003, p.18). Todavia, a propagação de cultura e parte do pensamento nacional se deve a esse tipo de publicação essencial no país porque, não por acaso, muitos dos principais textos brasileiros do último século surgiram em periódicos culturais, como lembra Sergio Cohn, na apresentação de Revistas de invenção, ao elencar alguns desses textos basilares:

[...] ‘Manifesto antropófago’, de Oswald de Andrade (Revista de Antropofagia), ‘A estética da fome’, de Glauber Rocha (Revista Civilização Brasileira), ‘Cinema: trajetória do subdesenvolvimento’, de Paulo Emílio Salles Gomes (Argumento), ‘Experimentar o experimental’, de Hélio Oiticica (Navilouca), e ‘Manifesto da música nova’ (Invenção), entre tantos outros. (COHN, 2011, p.11).

Ademais, as revistas são lugares de experimentação, ou poderiam ser, e não de repetição já que são fontes de exposição e estudo do poético na recente história cultural brasileira ao formarem uma espécie de banco de dados ou acervo fragmentado da produção e do elenco de poetas atuantes no conflituoso período dos anos 60 e 70. Muito em função disso, em entrevista a Tarso de Melo, Carlito Azevedo, poeta e editor da revista Inimigo rumor, reitera seu apreço pelas revistas de experimentação: “Gosto dessas revistas efêmeras, de um ou dois números. Elas têm uma função de guerrilha na vida da poesia.” (AZEVEDO apud MELO, 2003, p.14). Inegavelmente, efêmera e 241

experimental configuram-se como adjetivos para a Navilouca, almanaque dos aqualocos, planejadamente composta em uma edição única, organizada por Torquato e Waly Salomão.

Figura 13 − Navilouca

Em Armarinho de miudezas, Waly explica a origem do nome escolhido para a publicação, que alude ao barco bêbado de Rimbaud, texto-ícone escrito quando o poeta francês ainda era adolescente e que é, como observa Augusto de Campos, em Rimbaud livre, 242

[...] um biopoema, varado por um sopro cósmico e premonitório, que infunde uma dramaticidade implacável à holovisão do navio-poeta. Como negar a congruência do poema com os futuros passos da vida de Rimbaud – suas viagens disparatadas, sua ruptura com o mundo civilizado da Europa, seu isolamento final, sua renúncia à poesia, seu silêncio – projetados na alegoria do barco anárquico, vidência ratificada pela vivência? (CAMPOS, 2013, p.15-6).

Outrossim, o poeta baiano comenta como se deu a feitura e os percalços para a difusão da Navilouca, o barco embriagado brasileiro, título de origem foucaultiana, mas que teria, segundo o poeta, ficado encalhado na areia movediça do início dos anos 70 mesmo depois do salto torquatiano para fora da vida, pois o almanaque idealizado pelos poetas ficou parado, mesmo já fotolitado, porque não havia verba para a impressão e distribuição. A embarcação zarpa apenas em 1974 quando Caetano Veloso consegue convencer André Midani, chefe da Polygram, a colaborar financeiramente para a aguardada impressão da arremetida revista, cuja programação visual, bastante arrojada para a época, seria executada por Óscar Ramos e Luciano Figueiredo e com Ana Maria à frente da diagramação. Assim, a revista finalmente zarpou com uma diversidade de artistas, acurados tripulantes concretos, tropicalistas, marginais e simpatizantes: os editores Torquato e Waly, Caetano Veloso, Rogério Duarte, Jorge Salomão, Hélio Oiticica, Ivan Cardoso, Chacal, Luiz Otávio Pimentel, Óscar Ramos, Lygia Clark, Stephen Berg, Duda Machado, Luciano Figueiredo, Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, encontro de grande valia para a cultura nacional considerando que a revista “[...] foi um encontro de águas: de um rigor geométrico a um informalismo aparentemente descuidado, do marginal e do que estava à margem da margem [...]. Esse espírito e essa gráfica comparecem, em parte, em publicações posteriores, ou seja, Navilouca foi uma espécie de matriz” (KHOURI, 2003, p.25), como conclui Khouri, já que a partir dessa publicação, várias outras surgiram entusiasmadas por ela como a revista Pólem, editada por Susana de Moraes e Duda Machado, e Muda, publicação também de número único, batizada por Paulo Leminski, editada por Antonio Risério e Régis Bonvicino. 243

Como vemos nas 17 fotografias que compõem a capa da Navilouca, artistas das duas décadas anteriores à revista foram acolhidos afetivamente em pleno início dos anos 70 “se constituindo em uma sorte de manifesto transgeracional” (CÁMARA, 2014, p.137) situado no contexto da proliferação das revistas independentes, que entre as décadas de 60 e 80 teve uma significativa variedade de publicações, embora a enorme maioria tivesse tido curta duração e circulação restrita às principais capitais, em função da censura, mas também por dificuldades financeiras e editoriais. Navilouca, por sua vez, nasceu com a pretensão de ser única, pois os editores assim a pensaram estética e editorialmente, talvez, como uma solução para as agruras que saberiam que enfrentariam caso, hipoteticamente, houvesse o desejo de continuidade; de lançamento de demais números e, assim, a Navilouca tornou-se um produto literário setentista bastante sofisticado para uma produção alternativa, perceptível no arrojo conceitual de diagramação, montagem, programação visual e reunião de ícones da poesia contemporânea e de vanguarda. Pouco antes de sua morte, o poeta piauiense registrara o projeto do almanaque no artigo Notas variadíssimas pedindo paciência ao futuro leitor: “Aguardem: Navilouca pintará breve. Uma transação muito da pesada. Basta um pouco de paciência.” (NETO, 2004, p.358) e, de tal modo, a revista se materializaria numa grandiosa dispersão coletiva inspirada, segundo Heloisa Buarque de Hollanda, na embarcação stultifera navis, “[...] que na Idade Média circundava a costa recolhendo os idiotas da família, desgarrados e fora de ordem” (HOLLANDA, 2004, p.83), contando com a diversidade dos artistas partícipes e tornando-se uma espécie de “nau da loucura no mar das ideias,” 137 porque abarcava

[...] também a intelectualidade desgarrada, louca, cuja marginalidade é vivida e definida por conceitos produzidos pela ordem institucional; seus viajantes estão, portanto, fora, mas ao mesmo tempo dentro do sistema. Essa ambiguidade é evidente no próprio projeto da revista: aos textos marcados pela fragmentação e pela crítica anárquica junta-se o trabalho de Luciano e Oscar

137 Verso da canção Joquim (Joey), transcriação de Vitor Ramil para Joey, de Bob Dylan e Jacques Levy, baseada na vida de Joaquim Fonseca, inventor amador. 244

num tratamento gráfico dos mais sofisticados, tecnicamente equiparando-se, neste nível, às revistas industriais. Navilouca evidencia a atitude básica pós-tropicalista de mexer, brincar e introduzir elementos de resistência e desorganização nos canais legitimados do sistema. Assim, o fator técnica é preservado, mas, simultaneamente, subvertido. (HOLLANDA, 2004, p.83).

Portanto, a alusão ao texto Stultifera Navis, de Michel Foucault, contido no livro História da Loucura, é mais do que apropriada tendo em vista que o filósofo aponta para a situação do louco em meio à nau e ao mar infinito: “Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais leve, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada.” (FOUCAULT, 2013, p.12), assim como eram os artistas mergulhados em um país de águas agitadas que pareciam loucos ao contestarem as políticas culturais e o modo como a vida nacional era conduzida durante o período ditatorial. Além disso, a imersão também é própria porque a loucura é capaz de fascinar o homem, mormente um poeta que passou por internações psiquiátricas para o combate às drogas e tenha dedicado parte de seu tempo e de seu tratamento aos escritos confessionais dos diários sanatoriais, em que, como analisa Foucault,

[...] as imagens fantásticas que ela faz surgir não são aparências fugidias que logo desaparecem da superfície das coisas. Por um estranho paradoxo, aquilo que nasce do mais singular delírio já estava oculto, como um segredo, como uma inacessível verdade, nas entranhas da terra. Quando o homem desdobra o arbitrário de sua loucura, encontra a sombria necessidade do mundo; [...]. (FOUCAULT, 2013, p.22).

No texto-homenagem Waly Salomão (1943-2003), Carlito Azevedo faz considerações sobre a obra poética de Waly, mas também enaltece a Navilouca considerando que a publicação “[...] foi a melhor 245

revista de poesia do momento. As outras, e eram muitas então, por interessantes que fossem, ainda eram muito bem comportadas perto dessa máquina [...].” (AZEVEDO, 2003, p.242), predicado exaltado pelo poeta que deriva, essencialmente, da ousadia da publicação que, consequentemente, se deve ao fato de que o conteúdo da revista era fruto de escolhas; de eleição, de gestos críticos, opções feitas por meio de afinidades eletivas dos poetas editores, que arcam, no entanto, com o peso de que publicações desse quilate acabam, infelizmente, sendo feitas para um público, em certa medida, mais especializado e para poetas, afinal, como explicita Carlos Ávila,

[...] a poesia chegou ao fim do século XX com um ‘auditório menor’, mais seletivo e especializado (muitas vezes apenas poetas leem poetas!). Não se pode desconhecer, porém, que a poesia nunca foi uma arte de massa, ou para as massas, isto é, ela nunca contou com grandes auditórios, característica que se acentuou com o passar do tempo e com a evolução de sua linguagem. (ÁVILA, 2002, p.102).

Dessa maneira, essa questão reverbera até a atualidade, porque, embora com bastante produtividade, a poesia atual, descendente das desbravadoras publicações de outrora, parece formada por pequenas ilhas, isto é, em meio a toda uma produção existente, a poesia prossegue sendo um produto de pouca circulação; “[...] continua se ilhando, pertence a um domínio restrito a pouco mais de um grupo de especialistas.” (POLITO, 2003, p.67), como explicitado em Notas sobre a poesia no Brasil a partir dos anos 70, texto de Ronald Polito. Portanto, no cenário brasileiro parece haver grupos de poetas e revistas que produzem em solidão, mesmo que qualitativamente, onde não há uma integração entre esses nichos de poetas e editores, apenas o diálogo existente entre os eleitos de cada grupo; entre determinados poetas e as revistas nas quais transitam. Em virtude disso, Luis Dolhnikoff assinala que

[...] falta à poesia brasileira ser de fato intelectual (o que não é o mesmo que ser mais 246

intelectualizada). Ou seja, sem abandonar suas principais características (pois não se trata nem de ser panfletária, nem de ser popularesca), lograr ter uma presença sensível para além da ante-sala do seu próprio clube poético (incluindo os ‘boletins’ periódicos nos cadernos culturais). (DOLHNIKOFF, 2001, p.114).

Em outras palavras, o que se vê parece mais próximo de pequenos embates entre autores e editores na esfera pessoal do que polêmicas oriundas de projetos estéticos e políticos distintos. Em virtude disso, em muitos casos, os textos parecem explicativos e não críticas, propriamente, somente choques pessoais em que não há debate e/ou diálogo real e, assim, ao que tudo indica, como também aponta Dolhnikoff, Décio Pignatari estava certo quando “[...] afirmou há tempos que a poesia estava se transformando em algo semelhante aos clubes de xadrez. Um pequeno mundo subdivido em associações e muito significativo para os envolvidos, mas quase inexistente para os demais mortais.” (DOLHNIKOFF, 2001, p.106). Régis Bonvicino e Tatiana Longo dos Santos, editores da revista Sibila, salientam que com uma entrevista realizada com Luciano Figueiredo, para o sétimo número da publicação, era feita “[...] uma pequena homenagem de Sibila à revista Navilouca, que, nos anos 70, correu riscos e foi porta-voz de inovações importantes para a época, realçando-se, nela, as presenças de Oiticica, Lygia Clark e Torquato Neto.” (BONVICINO; SANTOS, 2004, p.08). 138 Sendo assim, em Na trilha da Navilouca, entrevista concedida por Figueiredo a Eucanaã Ferraz e Roberto Conduru em 2004, o artista plástico explicitava que

[...] para se entender uma articulação de grupo como foi Navilouca, é preciso entender isso que imediatamente precede sua articulação: quase tudo que se produz em arte e cultura no Brasil nos anos 1960/70 é parte do conflito ideológico, muito rico e muito esquizofrênico, que marcou e marca

138 Posteriormente, uma nova entrevista foi realizada com Luciano Figueiredo para a Sibila virtual: http://sibila.com.br/arte-risco/figueiredo-reve-oiticica- torquato-e-a-tropicalia/4497. 247

até hoje a produção artística do país. (FIGUEIREDO, 2004, p.189-90).

Em função disso, além de uma revista; um almanaque, a Navilouca é também um manifesto, único e fragmentário, que como também salienta Figueiredo, continha uma estratégia:

Foi um projeto que imaginava uma forma condensada de processos expressivos que pudesse produzir ‘terremotos clandestinos’, como dizia Haroldo de Campos, superando esse conflito cultural da esquerda e propondo um repertório de ideias mais receptivas a tudo que estava acontecendo no resto do mundo, como o movimento jovem, underground, que renovava os ambientes culturais de maneira muito forte. Navilouca queria ter uma posição diferenciada. Ou seja, era uma posição que queria afirmar as individualidades dos processos criativos. Se você olhar para o leque de participantes, verá que há uma tentativa de sinalizar para diferentes campos, configurando uma interdisciplinaridade muito selvagem. (FIGUEIREDO, 2004, p.190-2).

Além de homenagem à Navilouca, a revista Sibila, no exemplar número dois, em função dos 30 anos da morte de Torquato completados em 2002, resgatara uma entrevista do próprio poeta, publicada no jornal Opinião, em 31 de Janeiro de 1971, e também publicara o ensaio Torquato Neto: o homem no matadouro, de Romulo Valle Salvino, salientando o momento de crise, política e de produção e recepção de poesia, que o poeta enfrentava. Assim considera Salvino no ensaio citado:

Torquato atirou-se tão intensamente em seu tempo – esse tempo de crise, dividido entre um novo individualismo e a necessidade de participação, entre o esgotamento das vanguardas históricas e 248

as exigências de um novo mercado cultural – que refletir sobre a sua obra e sobre a sua morte talvez seja um bom modo de pensar também sobre a diferença entre esses momentos tão diferentes – distantes não tanto pela passagem dos anos quanto pelas mudanças cada vez mais rápidas de um mundo que talvez tenha perdido ou ganhado algo pelo caminho (o que não quer dizer que não devamos muito àqueles moços cabeludos, de roupas coloridas e extravagantes – talvez, apenas, nós os tenhamos traído em algum momento, nós que só existimos por causa deles). De que Torquato tinha noção desse momento de crise em que vivia não deixam dúvidas os seus escritos. (SALVINO, 2002, p.89-90).

De fato, na vivência da crise social e política dos anos de chumbo, Navilouca apresentava alguns poemas visuais problematizadores. Um deles, de autoria de Torquato, é composto por uma sequência de duas fotos dispostas num quadrante em que há sobreposto em linha negra um emblema abstrato que se assemelha ao símbolo de adição acrescido de um risco transversal no quadrante superior esquerdo formando a representação do número 4, o quadro de um plano na lógica do enquadramento fotográfico, e na vertical há os vocábulos, escritos em branco, Aqui Ali Aqui Ali e na horizontal vir ver ou vir. Assim, o poema constitui-se por meio dos quatro quadrantes, formando um único quadro, e as duas fotos aparecem duplicadas com o ângulo da câmera em plongéé expondo um cadáver caído de costas com uma arma ao lado e três latas de querosene para transporte de água. Diante disso, o poema invoca, visualmente, o sensacionalismo midiático com a exposição de corpos vilipendiados, mas também pode ser lido como crítica no contexto da ditadura, denotando que a violência urbana ou policialesca estivesse aqui ali aqui ali repetidamente como sinônimo de em todo lugar e, em função disso, fosse primordial estar atento ao vir ver e ou vir ou ao viver e ouvir.

249

Figura 14 – Vir ver ou vir

Fonte: Navilouca

Todavia, Navilouca apresenta cadáveres em alusão à repressão e à violência, mas no mesmo cenário também enaltece a vivacidade dos corpos, expostos ao sol e ao mar, numa analogia com a denúncia ao autoritarismo, mas como resistência a ela, como ocorrera com a Tropicália, uma alegria em meio ao desgosto, pois

às estratégias de desubjetivação exercidas pela ditadura – a reclusão, a tortura, a perseguição – se opõem gestos de desidentificação, que constituem uma modalidade diferente das tradicionais resistências frente aos dispositivos de poder. Os integrantes de Navilouca, longe da opção militarista da guerrilha, assim como do flower power, não oferecem outra coisa que um tipo de 250

inação – ilustrada pelos corpos que deitam sobre a areia – e o vazio. (CÁMARA, 2014, p.147).

Figura 15 – Corpo(s) da Navilouca

Fonte: Navilouca

Por isso, em Poder e alegria, texto de Nas malhas da letra, Silviano Santiago enfatiza a lição dionisíaca e nietzschiana que se consagra como “[...] grito de alegria na cultura brasileira pós-64 [...].” (SANTIAGO, 2002, p.25), que ecoava no mesmo momento em que o 251

corpo, artístico e social, era dilacerado pelo viés repressivo e censor do poderio militar, sendo a alegria uma forma de afirmação oposta às forças do terror por ser mais que preciso transformar o corpo sofrido em corpo alegre na nau da loucura pós-tropicalista, sentimento que, como também nos diz Santiago, “[...] desabrochou tanto no deboche quanto na gargalhada, tanto na paródia e no circo quanto no corpo humano que buscava a plenitude de prazer e gozo na própria dor.” (SANTIAGO, 2002, p.26). Sendo assim, a era contracultural brasileira era cenário de um posicionamento ímpar dos artistas porque possibilitava tanto a crítica ao regime em voga quanto ao projeto nacional-popular, proposto pela esquerda tradicional, atitude que os fazia serem tachados de subversivos e alienados nessas duas esferas políticas. Nesse período, os baianos se relacionam com os poetas concretos, o rock passa a ser um ritmo de vida, e não apenas um gênero musical, e a radicalização no uso de drogas começa a propiciar passagens por hospícios e a contabilizar alguns suicídios, como nos diz Heloisa, ao apontar que

[...] a partir da radicalização do uso de tóxicos e da exacerbação das experiências sensoriais e emocionais, vimos um sem-número de casos de internamento, desintegrações e até suicídios, bem pouco literários. Essa alta incidência de entradas em hospitais – e isso é sério – é um dos pontos de diferença entre a atitude vanguardista, prudente e ‘artística’, e os pós-tropicalistas que levavam suas opções estéticas para o centro mesmo de suas experiências existenciais. (HOLLANDA, 2004, p.78).

Considerando que os experimentos existencialistas estavam em profusão, Silviano, em seu texto de 1972, Caetano Veloso enquanto superastro, define a vivência do desbunde no horizonte contracultural: “Levar a arte para o palco da vida. Levar a vida para a realidade do palco. Representar no palco a realidade da vida. Representar na vida a realidade do palco” (SANTIAGO, 2000, p.149), mecanismo que o ensaísta aborda pensando na imagem de Chacrinha e na experiência do público com a TV ao deparar-se com artistas que mesclavam arte e vida, 252

indicando que a identificação por via televisiva acabou por promover uma específica valorização do país porque

de repente, descentralizou-se a cultura brasileira da cultura institucionalizada, da cultura aceita e aplaudida pelos ‘intelectuais’ e pelas universidades, pelas academias de letras e pelos suplementos literários. Transferiu-se o interesse para o humilde e o marginalizado até então pela cultura sofisticada dos grandes centros. Assim é que, de um primeiro momento de vergonha diante do ‘bárbaro e nosso’ (Oswald de Andrade), passou-se, em seguida, a engrandecer aquilo mesmo de que se tinha vergonha – o Brasil tropical e pitoresco, o Brasil do folclore e dos cartões-postais, Brasil pra estrangeiro, exportado em forma de palmeira, bananeira, terno branco, Carmen Miranda, Zé Carioca etc.. (SANTIAGO, 2000, p.157).

Por isso, abalando o cancioneiro brasileiro e apropriando-se de diversos elementos externos à canção como performance, interpretação e capa de disco, ou seja, elementos intertextuais que extrapolam a relação música-letra, a era tropicalista e pós-tropicalista aflorou uma brasilidade musical que superou um possível clichê em torno do Samba e da Bossa Nova demonstrando riqueza internamente, mas também no exterior, o que se constata por meio do crescente interesse que obteve desde o fim dos anos 60 e que parece ainda maior atualmente, quase tendo um caráter mítico, afinal,

[...] estrategicamente, tal conquista impõe o reconhecimento de que, pelo menos no campo da música popular, o Brasil saiu do estigma do exotismo para o profissionalismo competente. Isto é algo patente: no âmbito cultural, nenhuma outra linguagem obteve, sequer, êxito próximo ao atingido pela música. Nem mesmo o regime militar que, durante 21 anos, manteve o exercício da liberdade sob severo controle foi capaz de impedir o vigor rítmico-lítero-musical brasileiro, 253

apesar das centenas de composições censuradas. (LUCCHESI, 2000, p.167).

Ademais, os artistas contraculturais jamais negaram a tradição, ao contrário, promoveram uma espécie de revisão da tradição que acabou por fomentar a função crítica da produção artística no país mesclando e reinterpretando artistas distintos, alguns esquecidos, outros considerados comerciais e também os estrangeiros, fato que é posto em voga antes mesmo do momento tropicalista em si, haja vista a declaração de Caetano em um debate da Revista Civilização Brasileira em 1966:

[...] João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira, deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez. [...] Não me considero saudosista e não proponho uma volta àquele momento e sim uma retomada das melhores conquistas (as mais profundas) desse momento. (VELOSO apud FAVARETTO, 2007, p.40).

Como parte do processo de florescer, de seguir adiante, as roupas, as cores, a performance, enfim, os elementos visuais e cênicos foram fundamentais para o momento tropicalista e pós-tropicalista assim como foram os aspectos físicos de viés político, como os cabelos compridos, que Santiago exemplifica utilizando a imagem de superastro de Caetano:

O corpo é tão importante quanto a voz; a roupa é tão importante quanto a letra; o movimento é tão importante quanto a música. O corpo está para a voz, assim como a roupa está para a letra e a dança para a música. [...] Mudando e recriando a imagem de número para número, Caetano preenchia de maneira inesperada as seis categorias com que trabalha basicamente: corpo, voz, roupa, letra, dança e música. (SANTIAGO, 2000, p.158- 9).

254

No palco, o corpo surge com roupas extravagantes pensadas e adquiridas pelo empresário Guilherme Araújo, o maquiavélico criador de mitos, como define o crítico Tárik de Souza, cuja preocupação com o figurino dos artistas lhe rendeu a alcunha de Brian Epstein brasileiro, e o vestuário, em essência, caracteriza a complexa transgressão, como assinalada por Raúl Antelo, uma vez que

aporética, a transgressão não profana um objeto aurático já que tudo perdeu qualquer espécie de aura na sociedade contemporânea. [...] a transgressão retoma e retoca a tarefa baudelairiana de glorificar o culto das imagens e, nesse movimento de pura violência que exalta imagens desprovidas de sacralidade, a transgressão se volta contra aquilo que a prende, contestação que se dá não no sentido dialético de uma superação do estágio prévio mas no âmbito de uma exasperação [...]. Como não se guia pela razão de um corpo biológico, a transgressão atende a pulsões de um corpo erógeno; não se define como reflexão sobre o homem que trabalha mas como analítica do ser que fala. Não é uma filosofia da história mas uma filosofia de linguagem. (ANTELO, 2001, p.16).

Logo, o espectador passa a fazer parte do happening, do espetáculo maior, como nas peças de Zé Celso, nas obras de Vergara e Lygia Clark e nos parangolés de Oiticica numa postura que valoriza todas as atitudes artísticas, sobretudo corporais, tendo em conta que, como também considera Santiago, “a integração arte-vida, arte-cidade, arte-corpo, alarga as possibilidades do objeto artístico, pois o próprio corpo se oferece como criação, o corpo do artista ou o corpo dos outros, dos participantes (não mais simples espectadores).” (SANTIAGO, 2000, p.161). Como um ideário, a contracultura se espalhou pelo globo em diferentes contextos e com bandeiras distintas, mas em terras brasileiras se exilou no litoral, em especial, para contestar o estilo de vida das grandes cidades ganhando guarida no Nordeste com seu carnaval e cultura praiana e afro-brasileira. Após o exílio, Caetano e Gil tornam-se personalidades desse cenário, mormente no carnaval baiano, em que Caetano passa a ter seu próprio trio elétrico em forma de espaçonave, a 255

Caetanave, e Gil participa do afoxé Filhos de Gandhy, bloco mais antigo de Salvador, iniciado em 1949, mas que andava esquecido até a era do desbunde resgatá-lo e Gil lhe fazer uma homenagem homônima com Filhos de Gandhi, canção que convida todos os orixás para assistirem ao desfile do grupo, verdadeiro emblema baiano, gravada no disco Gil Jorge: Ogum Xangô, em parceria com Jorge Ben em 1975:

[...] Iansã, Iemanjá, chama Xangô Oxossi também Manda descer pra ver Filhos de Gandhi Mercador, Cavaleiro de Bagdá Oh, filhos de Obá Manda descer pra ver Filhos de Gandhi

A partir desse viés, se percebe como após o efêmero momento tropicalista e o período de exílio, os artistas aproximaram-se com ainda mais intensidade das raízes afro-brasileiras resgatando insígnias nacionais, principalmente do candomblé. Em 1976, o projeto paralelo dos Doces Bárbaros concretizou-se como o ápice desse resgate mesclando também elementos contraculturais internacionais, catolicismo e astrologia. Assim, bárbaros, decidiram invadir a Roma tupiniquim apresentando-se por todas as capitais brasileiras139 como Os mais doces bárbaros, canção de Caetano:

Com amor no coração Preparamos a invasão Cheios de felicidade Entramos na cidade amada [...] Alto astral, altas transas, lindas canções

139 A passagem por Florianópolis seria conturbada pela prisão de Gil e de Chiquinho Azevedo, baterista da banda de apoio, por porte de maconha, fato que pode ser visto no documentário Os doces bárbaros de Jom Tob Azulay. 256

Afoxés, astronaves, aves, cordões Avançando através dos grossos portões Nossos planos são muito bons Com a espada de Ogum E a benção de Olorum Como um raio de Iansã Rasgamos a manhã vermelha Tudo ainda é tal e qual E no entanto nada igual Nós cantamos de verdade E é sempre outra cidade velha

Destarte, a turnê da banda foi um emblema contracultural no Brasil estabelecendo-se como expressão artística da juventude e ao invocar novos ares num cenário castrador, que se preocupava demasiadamente em estabelecer apenas deveres, se abnegando da manutenção dos direitos constituídos. Ao contrário, o desbunde era sinônimo de alto astral, altas transas, lindas canções e a era contracultural seguia com a aposta no sincretismo como marca brasileira sempre optando por aludir às liberdades, individuais e coletivas, e com a defesa dos emblemas das religiões de matriz africana devido ao constante caráter de intolerância religiosa e cultural existente no país.140 Por isso, no fim da década, próximo da abertura política, Gil faria uma versão em português, Não chore mais, de No woman, no cry, eternizada por Bob Marley:

Bem que eu me lembro Da gente sentado ali Na grama do aterro, sob o sol Ob-observando hipócritas Disfarçados, rodando ao redor Amigos presos Amigos sumindo assim

140 Em Pierre Fatumbi Verger: mensageiro entre dois mundos (1998), documentário de Luiz Buarque de Hollanda, Gil narra a importância da matriz africana, sobretudo do candomblé, para a Bahia e para o Brasil, a partir da vida do etnólogo e fotógrafo francês que se tornou babalaô. 257

Pra nunca mais Tais recordações Retratos do mal em si Melhor é deixar pra trás Não, não chore mais Não, não chore mais

Nessa canção, Gil mescla as agruras enfrentadas pelos rastas na favela jamaicana de Trenchtown, em função das dreadlocks e do hábito de não cortar ou pentear os cabelos, a rejeição à babilônica sociedade capitalista e o uso de maconha em rituais religiosos com o cenário amplamente repressor da ditadura brasileira, citando os hippies do Aterro do Flamengo e a coação ditatorial como um todo, aludindo às vítimas diretas do desgoverno militar: Amigos presos/ Amigos sumindo assim/ Pra nunca mais. Gil e Caetano conquistaram imenso prestígio ao longo das décadas de 70 e 80 e se apropriaram de diferentes ritmos como o Reggae, Disco e Soul, além de promoverem um verdadeiro entrelaçamento entre a cultura de massa e a arte erudita. A década de 90, por sua vez, seria tempo de revisitação ao momento artístico que cunharam, cujo ápice foi a feitura do disco Tropicália 2 em comemoração ao aniversário tropicalista, que fora divulgado com uma grande turnê pelo Brasil, Estados Unidos e Europa. Originalmente, a ideia de Caetano era lançar um disco para comemorar os 25 anos da Tropicália e o cinquentenário dele próprio e de Gil em 1992. No entanto, a agenda lotada dos artistas não permitiu que o projeto se concretizasse ainda naquele ano, então, o álbum acabou sendo lançado em 1993, aos 26 anos da Tropicália, conjuntura que Caetano celebrou com galhofa divertindo-se com o fato de que o tributo se concretizava de modo bastante tropicalista em função da ausência de uma data precisa. Tropicália 2 soava detentor de certa nostalgia, mas também consistia em uma forma de confirmação da vitalidade tropicalista trazendo uma mistura que contemplava o Samba, o Baião e o Rock, fórmula contracultural já consagrada, acrescida do Rap e do Samba- Reggae. Deste modo, o disco nasceu não apenas como homenagem, um projeto nostálgico, consistiu em uma retomada artística com grandes doses de crítica social vista, por exemplo, em Haiti, parceria dos baianos, como um modo de atualização do momento tropicalista à luz das mazelas sociais de então, que pode ser dimensionada nos seguintes versos: 258

Quando você for convidado pra subir no adro Da Fundação Casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos) E aos quase brancos, pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados E não importa se olhos do mundo inteiro Possam estar por um momento voltados para o largo Onde os escravos eram castigados E hoje um batuque, um batuque Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária em dia de parada E a grandeza épica de um povo em formação Nos atrai, nos deslumbra e estimula Não importa nada, nem o traço do sobrado Nem a lente do Fantástico nem o disco de Paul Simon Ninguém, ninguém é cidadão Se você for ver a festa do Pelô, e se você não for Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui – O Haiti não é aqui

Em síntese, Haiti chama a atenção pelo desconcertante canto falado e pela denúncia do racismo mal disfarçado tão presente no Brasil, nação, paradoxalmente, constituída de maioria parda; multiracial, mas que sofre constantemente uma tentativa revoltante de branqueamento proferida pela elite e também por desprovidos, que endossam discursos vis na tentativa de (auto) aceitação social. Ademais, a aura do disco em nada se parece com um remake e/ou mais do mesmo, isto é, Caetano e Gil mostraram como a crítica e o experimentalismo instaurados na Tropicália ainda são atuais,141 figurando para o público contemporâneo

141 Contudo, nesse disco não há mais o status de momento e de projeto coletivo, pois na ocasião de feitura de Tropicália 2 já tínhamos a dissolução da banda Os Mutantes e o óbito de Torquato e Nara Leão. Rogério Duprat faleceria em 2006.

259

como a maior expressão contracultural nacional, afinal, tornou-se um referencial, especialmente na música, contando com uma extensa lista de herdeiros bastante heterogênea: Novos Baianos, Zé Ramalho, Raul Seixas, Chico César e tantos outros artistas culminando até mesmo com Mamonas Assassinas, banda de brega-rock de meteórico sucesso e popularidade em meados dos anos 90, ao passo que se pode dizer que a tendência contracultural também encontrou abrigo em artistas que não eram descendentes diretos da Tropicália e, além disso, como observa Lucchesi, a matriz tropicalista propagada em essência pelos pós- tropicalistas “[...] ofereceu, como legado, a demonstração de que a abertura de novos caminhos, somando-se aos já conhecidos, só faz fortalecer a construção de uma cultura. Não foram poucos os que assimilaram essa percepção.” (LUCCHESI apud CYNTRÃO, 2000, p.170). Em geral, a Tropicália não fez o sucesso internacional que a Bossa Nova alcançou, mas, em certa medida e tardiamente, tornou-se a última poesia de exportação brasileira a conquistar o mundo, como no conceito oswaldiano. Mas aqui, sobretudo, deixou seu legado visível, por exemplo, no mangue beat pernambucano, que produziu uma mistura crítica entre o arcaico e o contemporâneo aos moldes do que Oswald apontava em 22, referencialidade que seu principal expoente, Chico Science & Nação Zumbi, deixa clara em seus dois álbuns, Da lama ao caos e Afrociberdelia, discos anteriores à morte trágica de Science em 1997, como nos versos de Manguetown:

Tô enfiado na lama É um bairro sujo Onde os urubus têm casas E eu não tenho asas Mas estou aqui em minha casa Onde os urubus têm asas Vou pintando, segurando a parede no mangue do meu quintal Manguetown Andando por entre os becos, andando em coletivos Ninguém foge ao cheiro sujo da lama da Manguetown Andando por entre os becos, andando em coletivos Ninguém foge à vida suja dos dias da Manguetown.

Da mesma forma, como consequência referencial, a Marginália 260

reatualiza a gaia ciência, o saber alegre tropicalista de outrora, como analisa Luiz Tatit, no prefácio de Tropicália, alegoria, alegria, de Celso Favaretto, ao considerar que

de fato, a alegria – a prova dos nove −, disseminada pelo movimento em forma de descobertas, paródias, comentários ou de inversão carnavalesca dos valores, é a fração intensa e onipresente que entra diretamente na composição global da alegoria tropicalista. É a parte paradoxal – em constante conflito com a melancolia, o escárnio e a corrosão – que só encontra harmonia e coerência no todo. (TATIT, 2007, p.13).

Em função disso, Tatit faz considerações acerca das diferenças entre os discos Tropicália ou panis et circencis, que denomina de Tropicália 1 para se fazer entender, e Tropicália 2, apontando que a década de 60 introduz a fratura e que o álbum dos anos 90, época mais democrática, propõe a sutura:

Tropicália 1 nasceu num país enrijecido por maniqueísmos que se infiltravam nos setores artísticos coibindo diversas formas de criação. Em relação a essa ordem, nítida e definida, o tropicalismo introduziu a fratura. Tropicália 2 foi concebida num Brasil democrático, heterogêneo e avançado sob certos aspectos (como o estético, por exemplo), mas incapaz de equacionar seus problemas e de conciliar suas diferenças num projeto de alcance internacional. Em resposta a este estado de desagregação, Caetano e Gil propuseram a sutura (expressa nas amplas durações melódicas e no apelo ao ‘pensa-te’ – como em Aboio e no refrão de Haiti). (TATIT, 2007, p.11-2).

Trata-se, em suma, da existência de dois países distintos quando se pensa no momento tropicalista de 68 apresentado em seu disco coletivo e a nação de Tropicália 2, afinal, as décadas em que esses 261

álbuns foram produzidos não foram as melhores em vários sentidos, especialmente político e economicamente. É extremamente relevante o fato de haver democracia nos anos 90, mas também é importante o contexto de que tínhamos exacerbada miséria e uma mesquinha, quase nula, atenção aos problemas sociais, que se sucederam e até foram ampliados após a redemocratização, acentuados pelas consequências do abalo de um necessário impedimento presidencial e de um posterior governo de status neoliberal, ambos indiferentes às questões primordiais do país. Contudo, talvez a retomada tropicalista mais expressiva dos anos 90 tenha sido o caso Tom Zé, que esteve distante da mídia por décadas até ser aclamado internacionalmente. Enquanto os tropicalistas mais conhecidos desfrutavam de crítica positiva e grande público, o artista continuou produzindo, com modesto reconhecimento, embora desenvolvesse uma das maiores experimentações artísticas da era pós- tropicalista numa constante síntese de elementos de vanguarda, trajetória totalmente errante em termos de apelo comercial, mas bastante autêntica e inovadora, cuja redescoberta por parte do público, mormente estrangeiro, se deve a David Byrne, vocalista da extinta banda novaiorquina Talking Heads, como afirma o próprio Tom Zé em Tropicalista lenta luta, ao considerar que Byrne “[...] criou pra mim uma nova vida e me tirou da sepultura onde eu fora enterrado na divisão do espólio do Tropicalismo.” (ZÉ, 2011, p.35). 142 Em suma, a Tropicália e a Marginália se constituem em uma espécie de força; de pilar para a cultura popular do país. O momento, batizado a partir da obra de Hélio Oiticica como nome-monumento, se estabeleceria como significação artística de fins dos anos 60 e como ressignificação dessa cena atualmente. Por seu caráter análogo à obra de Oiticica, dialogaria com os mesmos elementos de brasilidade, celebrando-os e os contestando, já que a era tropicalista “[...] estaria

142 Em 1988, em uma loja de discos do Rio de Janeiro, o artista adquiriu Estudando o samba (1975) imaginando tratar-se de um álbum tradicional desse gênero brasileiro. Diante de seu encantamento com o disco, promove uma compilação, que incluiria faixas de Todos os olhos (1973), lançando-a pelo selo próprio Luaka Bop nos Estados Unidos. Assim, a seleção byrneana das canções de Tom Zé recebeu críticas positivas mundo afora e, consequentemente, o baiano de Irará ressurgiu com a admiração e aval até de Hans-Joachim Koellreutter, que havia sido seu professor no curso de Música da Universidade Federal da Bahia, como o musicólogo menciona em Tom Zé ou quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século (2000), documentário com direção de Carla Gallo. 262

inspirada, por um lado, naquilo que os clichês da brasilidade constituem, assumidos como tais em uma adoção ao mesmo tempo irônica e celebradora; e por outro, na experiência de ‘caminhar pelos morros, pela favela’ [...].” (BASUALDO, 2007, p.17), aglutinando uma série de artistas sob seu manto num período fértil brasileiro que, nas palavras de Carlos Basualdo, em Vanguarda, cultura popular e indústria cultural no Brasil, estava

[...] em vias de desenvolvimento, com uma população mestiça e uma cultura popular riquíssima na qual confluem influências indígenas, africanas e europeias, no contexto de um governo repressivo, que impunha o padrão nascente de um desenvolvimento industrial acelerado a uma sociedade já marcada por diferenças sociais abismais e uma distribuição da riqueza absolutamente carente de equidade. Tratava-se de um projeto de vanguarda que, em determinadas instâncias, buscaria dialogar com a nascente indústria cultural, de forma a evitar tornar-se exclusivo e elitista. (BASUALDO, 2007, p.13).

Como síntese, Basualdo também utiliza a imagem de Caetano Veloso cantando Alegria, Alegria no III Festival da Record, em outubro de 1967, para rememorar as ressonâncias desse acontecimento para a arte brasileira:

Vê-lo é recordar os Beatles, o maio francês ainda por vir, as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos, as minissaias, Andy Warhol, a Primavera de Praga, as manifestações estudantis contra a ditadura no Brasil e na Argentina, a resistência armada, a repressão, a tortura, o terrorismo de Estado. Tudo está ali, potencialmente, contido, nesses gestos. ‘Por que não’ sintetiza a tentativa de um grupo de artistas, escritores e cineastas de situar a cultura brasileira em um contexto mundial, com relação às mudanças revolucionárias de fim dos anos 60. É a tentativa 263

de buscar o lugar do Brasil nesse mundo, de devolver o mundo ao Brasil e o Brasil ao mundo – ‘Aqui é o fim do mundo’, denunciará Torquato Neto na voz de Gilberto Gil pouco menos de um ano depois. (BASUALDO, 2007, p.14-5).

Mas, é possível estabelecer o início e o fim do momento tropicalista, que desaguaria na Marginália, se pensarmos que o momento artístico inicia em abril de 1967 na mostra do MAM do Rio de Janeiro e que termina com o exílio forçado de Gil e Caetano. Nesse caso, essa era chegava ao fim depois de um ano bastante intenso com inúmeras atividades artísticas que a mídia propagava nas rádios, jornais e televisão, isto é, a ditadura acabaria por fraturar a Tropicália enquanto experiência coletiva alavancando, como reação à repressão, a figura do marginal associada à postura política, pois “[...] como provocação, podemos sugerir que em vez de os marginais serem necessariamente os ‘pós-tropicalistas’, os tropicalistas passam a ser, em outra perspectiva, os ‘pré-marginais’.” (COELHO, 2010, p.292), assim como Oiticica equacionava a relação entre o artista e o marginal, como sinônimos, que, como também nota Basualdo, era

[...] uma marginalidade que sentia como a oportunidade de obter uma ‘surpreendente liberdade de ação’. Essa atração pela marginalidade provinha do desejo de situar-se fora das limitações de classe. Para Herbert Marcuse, de quem era um leitor apaixonado, os intelectuais eram marginais enquanto possuíssem a capacidade de situar-se fora do trabalho produtivo alienante. [...] pelo menos para Oiticica, a marginalidade é desde sempre constitutiva do projeto tropicalista. Há tropicalismo enquanto exista a possibilidade de que o trabalho criativo não seja absorvido completamente pela lógica do capital e reconvertido em trabalho alienante. (BASUALDO, 2007, p.23-4).

Anteriormente, em 1966, Oiticica havia criado uma obra em homenagem a Cara de Cavalo, alcunha de Manoel Moreira, bandido morto em 1964 a tiros, cuja execução foi feita pela organização 264

extraoficial Scuderie Le Cocq, um esquadrão da morte composto por policiais do Rio de Janeiro em homenagem ao detetive Milton Le Cocq, morto pelo mesmo bandido num confronto que envolvia lucros em jogos de azar e bicheiros cariocas. A obra, Bólide caixa 18 poema caixa 2, homenagem a Cara de Cavalo, testemunha a violência policial em face do corpo do bandido, no entanto, a violência é externa à obra, pois, como aponta Gonzalo Aguilar em Hélio Oiticica, a asa branca do êxtase, “[...] esse é o estatuto que a violência terá na arte dos anos 1960. A violência já não pode ser contida (representada) pela arte, e sim somente sua presença questiona a arte, abre-a e até pode chegar a diluí- la ou despedaçá-la.” (AGUILAR, 2016, p.15).

Figura 16 − Bólide para Cara de Cavalo

265

Por meio da bólide, Oiticica expõe as vísceras do cadáver para mostrar a ferida que o esquadrão da morte abre, aos olhos de todos, no corpo e na sociedade cerceada, atitude que marca a primeira vez que um corpo humano aparece no conjunto artístico de Hélio, inauguração que traria um cadáver cheio de orifícios; vilipendiado pela violência sintomática dos anos de chumbo. Porém, de modo ainda mais amplo, a série de bólides seria central no conjunto da obra de Oiticica, a partir da transformação do tabu em totem, quando abdica da imagem do corpo inerte dando espaço à dança corpórea, numa preleção determinante porque

a lição que Oiticica encontra na foto do bandido abatido nunca será esquecida e é diversa da que todos os artistas dessa época extraíram de fotos ou situações similares: a melhor forma de homenagear esse corpo crivado não é com a dor e o luto eterno nem com a celebração da vítima caída em combate, e sim com o corpo dançante vivo que nos envolve em suas dobras. Politiza-se o corpo ao enchê-lo de vida (porque a política agora é uma questão de vida ou morte). (AGUILAR, 2016, p.16).

Na bandeira Seja marginal, seja herói, obra bastante conhecida de Oiticica, o bandido morto é Alcir Figueira da Silva, que evoca uma espécie de onde queres bandido, sou herói, da canção O quereres, de Caetano, faixa do álbum Totalmente demais de 1986, que se tornou tema de abertura de novela global mais recentemente. Além da dualidade lógica de marginal versus herói, é perceptível a relação ao que está condenado ou que fora preterido pela sociedade e, em certa medida, também uma resposta, à margem, ao slogan bandido bom é bandido morto. 143 Da mesma forma, a bandeira faz uma proposital inversão de valores, santificando o bandido e fazendo alusão ao martírio cristão, afinal, o estandarte, baseado na iconografia cristã, remete, por exemplo, ao apóstolo Pedro, primeiro bispo de Roma e, assim, o primeiro Papa,

143 Sivuca, um dos executores de Cara de Cavalo, foi, posteriormente, eleito e reeleito deputado estadual no Rio de Janeiro utilizando como mote de campanha o reprovável bordão bandido bom é bandido morto, dito tão em voga, atualmente. 266

contido em A crucificação de São Pedro, de Michelangelo, que evidencia a posição crística, de braços abertos.

Figura 17 − Seja marginal, seja herói

Figura 18 − A crucificação de São Pedro

267

Por outro lado, a bandeira-poema não retrata a morte de Cara de Cavalo, como inúmeras fontes apontam, e sim a foto retirada de uma notícia de jornal, reproduzida em serigrafia, do óbito de Alcir, bandido que na fuga de um assalto a banco, ao perceber que estava sendo perseguido pela polícia, descarta o roubo e se suicida. Alcir e Manoel, acredita-se, eram aparentados de José Miranda Rosa, vulgo Mineirinho, bandido morto pela Polícia Militar em 1962 com 13 tiros, que Oiticica homenageou no Bólide B44 Caixa 2I, obra que contém uma foto e um poema que diz por que a impossibilidade?/ o crime/ a existência na busca/ querer ser..., e que também foi retratado por Aurélio Teixeira no filme Mineirinho, vivo ou morto, de 1967, e pela crônica Mineirinho, de Clarice Lispector, presente em Para não esquecer, em que a autora nos diz:

É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar porque está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. (LISPECTOR, 1999, p.123-4).

De tal modo, Clarice narra o conflituoso choque de sentimentos diante da barbárie pontuando um senso humanitário, que não aparecera na autoridade policial, e enfatizando a chave rimbaudiana ao se colocar no lugar do outro de modo antropofágico, se considerarmos a figura do poeta francês como uma espécie de antropófago, em função do conhecido dito je est un autre, escrito em carta para Paul Demeny em 15 de maio de 1871, porque eu sou um outro figura como um intento de livrar o artista do sentimento de insatisfação ou culpa em relação aos seus escritos e pulsões artísticas e promover a verdadeira libertação das 268

amarras na arte e na vida, pois é também a partir do outro que observamos, refletimos e incorporamos ou afastamos ações e/ou exemplos,144 como descreve Lispector:

[...] há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. (LISPECTOR, 1999, p.124).

Hélio, portanto, por meio da flâmula artística, propõe a anfibologia do marginal/herói e do bandido/vítima e, em função disso, casos como esse, percebidos quase profeticamente pelo artista, adiantavam a fusão entre a violência urbana, criminal e policial via Estado. Num mesmo caráter de ilegalidade, que nos anos 60 era representado por essa união, agora, beirando 2020, vemos o ápice quase incontornável, ou seja, o que vivemos atualmente é lição aprendida da era ditatorial e do apogeu das milícias, organizações ilegítimas com membros legais, oriundos das forças militares ou civis; de grupos de extermínio paramilitares, numa completa onda de violência que vitima cidadãos comuns todos os dias, mas também faz vítimas políticas em função da vivência em uma espécie de ditadura híbrida, judiciária, midiática e parlamentar, como a que vitima, em março de 2018, a vereadora carioca Marielle Franco do PSOL, Partido Socialismo e Liberdade, executada na capital fluminense juntamente com seu

144 Rimbaud renega a poesia aos 21 anos e torna-se um homo sacer com crimes até morrer bastante enfermo aos 37 anos. Assim como Torquato, a figura do poeta é mítica e sua poética é de difícil classificação, no entanto, suas biografias se aproximam em função de um dado em comum: a data de falecimento. Em 09/11/1891, Rimbaud dita à irmã sua última carta e em 10/11/1891, o poeta falece 81 anos antes de Torquato, que, igualmente, deixaria uma epístola derradeira.

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motorista, Anderson Gomes, sendo um caso de execução por forças milicianas por motivações políticas. Assim, nesse caso recente, percebemos com as forças militares e paramilitares ainda agem com truculência e inadequação como a vista também em março, mas de 1968, cinco décadas antes, com o assassinato de Edson Luís de Lima Souto, secundarista de 17 anos, morto por um policial militar aspirante, que se tornaria um emblema, pois, como aponta Gaspari,

pela primeira vez desde 1964 surgia um cadáver na luta entre o regime e os estudantes. Os jovens – alguns deles ligados a organizações clandestinas – impuseram à polícia uma derrota inicial e decisiva. Conquistaram o cadáver. A PM tentou levá-lo para o Instituto Médico-Legal, mas os estudantes foram para a Assembleia Legislativa, usando-o como aríete. Sem camisa, Edson Luis foi colocado sobre uma mesa. No dia seguinte o Rio de Janeiro acordou com aquele garoto morto nas primeiras páginas dos jornais. ‘Assassinato’, gritava o Correio da Manhã. Ele haveria de se tornar a encruzilhada de todas as raivas. (GASPARI, 2014, p.275-6).

Em outras palavras, esses casos, distantes apenas temporalmente, nos mostram que o tempo, tempo rei pouco existencialista da canção de Gil, que constata que tudo agora mesmo pode estar por um segundo, não trouxe mudanças positivas, ao contrário, quando se verifica que as grandes cidades brasileiras tornaram-se anticidades ou cidades-pânico, como diria Paul Virilio, e as comunidades, morros e favelas, por exemplo, tornaram-se muito mais complexas do que eram nos anos 60 e 70 quando frequentadas pelos artistas tropicalistas e contraculturais, tendo em vista que, como aponta Coelho,

atualmente, sua população é uma amálgama de lideranças comunitárias, pastores religiosos, traficantes, trabalhadores, rappers, universitários, milicianos, internautas, escritores etc. E os artistas e intelectuais, por sua vez, já não comungam da mesma relação com a realidade desses locais e dos marginais. Com a escalada incessante da violência 270

urbana, fica cada vez mais distante o ideal de heroísmo marginal proclamado pela bandeira de Oiticica em 1968. (COELHO, 2010, p.294).

No entanto, a partir da experiência e da vivência violenta, Oiticica priorizará o corpo humano vivo, em movimento, vestindo os parangolés ou transitando entre as instalações. Em função disso, o artista resolve colocar o bloco na rua, como na acepção de Sérgio Sampaio, com o uso do corpo e o desfile dos parangolés, uma antimoda, tendo como precursor o New look de Flávio de Carvalho.

Figura 19 − New look

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Traje masculino que continha uma saia, concebido por Flávio para o homem dos trópicos em 1956, o new look fora exposto pelo artista nas ruas da cidade de São Paulo numa época em que essa peça de vestuário era tida no Brasil como exclusivamente feminina, em função disso, o desfile fazia parte do estudo do artista conhecido como Experiência nº3, sucessora da produção anterior, a Experiência nº 2, quando Flávio manifestou-se artisticamente numa procissão de corpus christi, em 1931, seguindo no sentido contrário ao fluxo de pessoas como uma espécie de afronta à liturgia católica, cujo objetivo era perceber como as pessoas reagiriam a essa quebra de paradigma. Por isso, segundo Raúl Antelo, Flávio efetivamente se opõe ao dogma e ao decreto trajando um chapéu no contrafluxo do cortejo, mas tal ato quase resultaria em linchamento em razão da fúria dos devotos, caráter que endossaria dois argumentos, o de Caetano ao alertar que o brasileiro para o bem ou para o mal, em geral, é devoto, e o de Haroldo de Campos ao considerar o estudo prático de Flávio como o primeiro happening brasileiro. De modo conceitual, a figura do marginal se torna basilar na obra de Oiticica como afirmação de reação a uma sociedade cerceada e extremamente desigual e, também, porque a afirmação da marginalidade se inicia a partir de sua amizade com a população da favela da Mangueira e da escola de samba homônima, ou seja, o artista sobe o morro e acaba por fundir seus referenciais eruditos com a cultura popular marginalizada. Em contrapartida, há várias outras alusões ao marginal em diferentes contextos na arte brasileira como, por exemplo, os variados modelos de malandros dos sambas antigos, o filme O bandido da luz vermelha de Rogério Sganzerla, a canção Charles, anjo 45 de Jorge Ben e também no conceito da canção Marginália II de Gil e Torquato:

Eu, brasileiro, confesso Minha culpa meu pecado Meu sonho desesperado Meu bem guardado segredo Minha aflição Eu, brasileiro, confesso Minha culpa meu degredo Pão seco de cada dia Tropical melancolia Negra solidão: 272

Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Ou lá

Marginália II é uma alegoria do subdesenvolvimento, como no título da obra clássica de Ismail Xavier, movida pela força da verdade impulsionada por seu refrão, aqui é o fim do mundo, verso de Jorge de Lima.145 A canção evidencia a pobreza e se opõe à ideia pátria de berço esplêndido, pois a miséria, o subdesenvolvimento e até a não crença de melhora em relação a uma perspectiva histórica que coloque o país em posição mais adequada e justa transparecem na letra torquatiana. Paradoxalmente, o eu poético soa melancólico e irônico ao mesmo tempo e a finitude do “mundo Brasil” se articula com a visão fatalista de Terra em transe ao apresentar uma imagem alegórica de um país de enorme atraso e contraste, sobretudo econômico e social, também acossado pela política repressiva:

Aqui o Terceiro Mundo Pede a bênção e vai dormir Entre cascatas palmeiras Araçás e bananeiras Ao canto da juriti Aqui meu pânico e glória Aqui meu laço e cadeia Conheço bem minha história Começa na lua cheia E termina antes do fim [...] Minha terra tem palmeiras Onde sopra o vento forte Da fome do medo e muito Principalmente Da morte

145 Em Reichenbachianas brasileiras: a cinepoesia corsária de Carlos Reichenbach, Jair Tadeu da Fonseca aponta, de modo inédito, a origem desse verso: “[...] citação apocalíptica do ‘Canto da desaparição’, presente em Invenção de Orfeu, obra extraordinária de Jorge de Lima.” (FONSECA, 2012, p.188-9). 273

Ademais, a canção faz referência ao idílico verso do poema Canção do exílio de Gonçalves Dias, Minha terra tem palmeiras, que exalta valores naturais dentro de um contexto romântico, mas como um erro de pertencimento em que o Eu, brasileiro, confesso descreve seu espaço por meio de uma crítica arraigada que sentencia que Aqui é o fim do mundo, mas não se trata de um exílio geográfico e sim de degredo punitivo e social. Entretanto, ao nos classificar enquanto nação do Terceiro Mundo, o poeta é crítico ao constatar a servilidade excessiva do povo frente aos países abonados ou dominadores e expõe isso com o ácido verso Pede a benção e vai dormir, como sintoma de rebaixamento, conformidade e acovardamento, que se opunha à postura torquatiana, ao manter o (im) pulso de resistência mesmo diante do autoritarismo político. Contudo, a década de 70 também estabeleceria o termo marginal em definitivo na literatura, principalmente na poesia à margem em relação ao mercado editorial, que acabaria referenciando boa parte da poesia e dos poetas dos anos 70 e 80. No entanto, a marginalidade encontrada nos poetas da geração mimeógrafo, dos tropicalistas e também pós-tropicalistas não é, como salienta Silviano Santiago, em Os abutres, “[...] a marginalidade de um Álvares de Azevedo com as noites na taverna e o culto a Satã, mas o marginalismo criativo que dificulta a entrada do escritor para a história da literatura pátria. Marginalismo não tanto temático, mas um marginalismo de linguagem, de silêncio [...].” (SANTIAGO, 2000, p.135), ou, ainda, como aponta Paulo Leminski, em Poesia: a paixão da linguagem, uma marginalidade oriunda da condição original do poeta que

[...] seria, mais ou menos, um ser dotado de erro, e daí essa tradição de marginalidade, essa tradição, moderna, romântica, do século XIX pra cá, do poeta como marginal, do poeta como bandido, do poeta como banido, perseguido, enfim, em condições, digamos, socialmente adversas, negativas. (LEMINSKI, 2009, p.323-4).

O termo marginal, como aponta Maria Lucia de Barros Camargo, em Atrás dos olhos pardos, pode ser pensado sob diversas formas e aspectos: “[...] comportamental, político, estético, econômico.” (CAMARGO, 2003, p.29). Porém, a designação na poesia brasileira 274

deve-se, principalmente, pelo modo de produção e veiculação das obras de seus representantes, pois os livros eram produzidos de modo artesanal e independente em relação às editoras convencionais. Assim, “frente ao bloqueio sistemático das editoras, um circuito paralelo de produção e distribuição independente vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia.” (HOLLANDA, 2007, p.09), isto é, diante da marginalização propiciada pelas inúmeras dificuldades de acesso às editoras comerciais, os autores percebiam-se à margem do mercado tradicional de livros e pequenas tiragens eram passadas de mão em mão e com os autores participando de cada etapa produtiva: criação, diagramação, impressão e, inclusive, comercialização, como visto em 26 poetas hoje, livro de Heloisa Buarque de Hollanda. Todavia, para além da produção poética propriamente, esse modo de produtividade talvez seja a melhor contribuição da poesia marginal ao panorama literário brasileiro, pois a postura contracultural possibilitou, indiretamente, como observa Flora Süssekind, em Literatura e vida literária,

outro sistema de edição, outro público e uma poesia em que se imprimem simultaneamente o rosto do autor e o perfil cúmplice daquele que folheia o seu livro num bar ou numa entrada de teatro, que detém referências afetivo-culturais próximas às suas e que é capaz de reconhecer o próprio cotidiano no que lê. (SÜSSEKIND, 1985, p.72).

Por outro lado, enquadrar, de modo policialesco, autores e/ou artistas em grupos ou gerações não consiste em uma atitude acertada por resultar numa classificação no mínimo incômoda. Em relação a isso, Waly Salomão vocifera em sua fala no ciclo de palestras do Itaú Cultural:

Sinto-me muito preso, muito mal, DESASSOSSEGADO, em uma situação de desamparo, na categoria anos 70 ou poesia marginal. Nunca me senti bem, eu acho que é um presilhão, acho uma camisa-de-força, sempre achei, sempre declarei. [...] Acho que o artista tem 275

até quase como uma imposição – como é que chama? −, uma pulsão para a acronologia, para não se acomodar na gaveta anos 60 ou anos 70 ou anos 80 ou anos 90, nesse baú de ossos da cronologia, do tempo assim medido. (SALOMÃO, 2006, p.79).

Afinal, poesia e/ou poeta marginal se torna um rótulo irrestrito; título impreciso, assim como o controverso vocábulo tropicalismo, como observado por Leminski, em Tudo, de novo, texto de Anseios Crípticos, ao abordar o momento literário setentista como descendente da Poesia Concreta e das Tropicálias, referindo-se à totalidade da era tropicalista, ao considerar que

[...] a única coisa de ‘marginal’ que essa poesia tinha era uma dificuldade inicial de edição e uma certa repugnância nos meios universitários, coisas que, aliás, sempre caracterizaram a poesia, enquanto antidiscurso, contrafala e descomunicação. Nem precisa dizer que a ‘poesia marginal’ (seja lá o que isso signifique) está dentro de uma estética urbana e industrial. Uma estética da novidade.” (LEMINSKI, 1986, p.47).

Uma inovação artística assim como suas antecessoras, Tropicália e Marginália, sobretudo porque a contribuição desses momentos culturais é também comportamental e sociológica. Em função disso, para Basualdo, o final alegórico da era tropicalista ocorre no momento em que Oiticica traduz para o inglês o Manifesto antropófago oswaldiano, em dezembro de 1972, quando o artista já residia nos Estados Unidos, pois a tradução desse texto seminal faz pensar que a Pós-Tropicália “[...] terminaria então tal como havia começado: com o desejo de inscrever a cultura brasileira em um horizonte de internacionalismo que se manifestaria, no fim das contas, em um alto de invenção interpretativa destinado a repensá-la – e reformulá-la – em sua totalidade.” (BASUALDO, 2007, p.25). E, assim, seguindo o pensamento de Basualdo, se encerraria como o infinito, voltando às origens, demonstrando laço e também lastro cultural em função da 276

penetração na sociedade, popularidade e efeito de consumo ao impactar a cultura de massa como um todo incluindo moda, mídia e publicidade. Entretanto, o primeiro Modernismo serviu de referencial à era tropicalista, mas cabe observar as diferenças existentes em relação às condições históricas entre o começo do século XX e os anos 60, pois a antropofagia oswaldiana é a justificação da Tropicália, como diria Augusto de Campos, porque se considera que Oswald “[...] contrapõe ao que denomina a cultura ‘messiânica’, fundada na autoridade paterna, na propriedade privada e no Estado, a cultura ‘antropofágica’, correspondente à sociedade matriarcal e sem classes, que deverá ressurgir com o progresso tecnológico [...].” (CAMPOS, 2008, p.287). No entanto, no período modernista, havia esperança e otimismo de crescimento amparado, sobretudo, no desenvolvimentismo urbano- industrial, que, posteriormente, teria a Brasília do período Kubitschek como exemplo máximo, mesmo com a consciência da miséria alastrada e do imenso atraso tecnológico. O início dos anos 60, pré-tropicalista, pressupõe outra atmosfera em função da ditadura civil-militar, que diminuiria o país por meio de irregularidades e atos vergonhosos como repressão, tortura e corrupção desenfreada, portanto, como analisa Süssekind, aponta para uma realidade bem mais dura tendo em vista o início da institucionalização ditatorial em que

[...] a modernização industrial, os índices de crescimento e urbanização e o investimento maciço em tecnologia, aliados a uma ordem autoritária e a uma política inflacionária, tinham como contrapartida perceptível uma dissolução da cidadania, um endividamento externo crescente e uma altíssima concentração de renda, que intensificavam as desigualdades sociais e a crise urbana. (SÜSSEKIND, 2007, p.37).

Nesse contexto, os tropicalistas superaram o desencanto com os descompassos históricos promovendo a satirização e a aposta nos elementos de massa e meios massivos populares como forma de promover as manifestações culturais nacionais mesmo diante de um cenário político alarmante. Antes da ditadura, havia uma espécie de otimismo nas artes muito em função da crença e da expectativa em se aplacar as desigualdades sociais, mas com a perpetuação do regime autoritário, o otimismo minorou, embora trazendo consigo o que 277

Silviano Santiago denominou de reação dionisíaca e nietzschiana, que culminaria no florescimento artístico pós-golpe, pois passava a ser uma necessidade fazer crítica à realidade do país, como aponta Celso Favaretto, em Tropicália: a explosão do óbvio, para “[...] articular a resistência política face às restrições da liberdade de expressão impostas pelo regime militar. Mas, antes de tudo, tratava-se de levar adiante o trabalho de renovação que vinha impulsionando o desejo de modernidade artístico-cultural, desde o início da década de 1950.” (FAVARETTO, 2007, p.81). Num cenário entrecortado pelas mazelas políticas e conflitos estéticos, o momento tropicalista e pós-tropicalista transitava entre tanta violência, mas tanta ternura, como no poema de Faustino, passando longe da denúncia simplista de fatos ou mero elenco de dilemas, tendo em vista que nessa era a “[...] experimentação e participação constituem um único movimento, implicando uma ordem do simbólico e uma imagem da arte como a atividade em que não se distinguem os modos de efetivar programas estéticos e exigências ético-políticas.” (FAVARETTO, 2007, p.82). Pois, como resistência, rearticulou pensamentos oriundos do passado modernista, especialmente reavivando a antropofagia oswaldiana, equacionou a mescla entre o cinema e referenciais estrangeiros como Godard, os Beatles e as nuances mais efusivas da cultura pop com o processo industrial e o aclamado tempo desenvolvimentista, invocou a Bossa Nova, a Poesia Concreta, o Neoconcretismo e o Teatro Oficina, usina fértil de Zé Celso, agregando e, mais que isso, embaralhando todos esses referenciais confundindo a crítica e suscitando discussões por meio da fusão de política, antropologia e folclore numa tentativa de investigação da cultura e da realidade nacional fazendo, como nos diz a canção Tô, de Tom Zé e Elton Medeiros, Tô te explicando / Pra te confundir / Tô te confundindo/ Pra te esclarecer/ Tô iluminando/ Pra poder cegar / Tô ficando cego/ Pra poder guiar. A relevância desse momento artístico, inclusive internacional, se deve, em grande parte, à carga midiática implícita, pois a mídia e o audiovisual serviram de aporte tecnológico para a divulgação e expansão da Tropicália e da Marginália, já que o disco, a televisão, o rádio, o jornal e o cinema possibilitaram também a relação com o mercado sendo, como observa Ivana Bentes, em Multitropicalismo, cine-sensação e dispositivos teóricos, “[...] ao mesmo tempo incorporado à cultura de massa, absorvido por diferentes campos e discursos, numa metadeglutição” (BENTES, 2007, p.99), justificada porque na segunda metade da década de 60 houve um incremento na 278

indústria cultural muito ocasionado pelo desenvolvimento do audiovisual e da propaganda, que coincidem com a implementação de faculdades de comunicação pelo país, e a expansão do mercado cultural que acontecia na esteira da modernização e da urbanização. Assim, fomentava-se a cultura de massa e ampliava-se a sociedade de consumo via propaganda e nessa nova consciência a maior expressão estética seria justamente a tropicalista, que ocorria e desaguaria num momento em que se vivencia e evidencia o movimento hippie, a psicodelia, a revolução comportamental e a cultura da droga. A passagem do The Living Theatre pelo Brasil no início dos anos 70 confirmava esse cenário,146 assim, a perda da aura, a ausência de separação entre arte culta, elevada, aurática e a arte de consumo, cotidiana; própria da pop art estadunidense frutifica na era tropicalista como elo com a ideia de produção e devoração artística constante como mercadoria também. 147 A relação sensorial inerente à arte tropicalista já se anunciava na obra-monumento de Oiticica, Tropicália, penetrável ímpar nas artes

146 O grupo teatral de Judith Malina e Julian Beck veio ao Brasil após o convite de Zé Celso e Renato Borghi; ao se apresentarem em Minas Gerais foram presos acusados de subversão, posse e tráfico de drogas. Presos no DOPS por meses, o caso ganhou repercurssão mundial e houve vários pedidos de soltura, direcionados à ditadura brasileira, inclusive de personalidades mundiais como, por exemplo, John Lennon, Bob Dylan, Sartre, Foucault, Godard e Pasolini, pressão internacional que culminaria com a expulsão do grupo do território brasileiro. 147 Já que como nota Xavier, “no bojo da revolução comportamental, são patentes as derivações mais somáticas de uma cultura da autenticidade, ativada desde o pós-guerra pelo existencialismo e retomada pelos jovens em sua crítica ao senso comum e aos limites da linguagem e do decoro burguês (hipocrisia do poder, ladainha dos pais). Tal cultura, até 1968, guardou relações mais ou menos tensas (que não excluíram pontos de convergência) com os segmentos militantes da juventude (movimento estudantil, partidos, organizações revolucionárias). Depois do AI-5, constituiu uma matriz vigorosa de expressão, não propriamente de uma fuga pura e simples do político, como muitos querem, mas de um estilo de oposição à ordem em que a dimensão da cultura veio a primeiro plano e, por isso mesmo, articulou muito diretamente as transgressões do cotidiano com a produção artística. Tal como ocorrera com a fase do underground americano, ainda influenciada pela geração beat (década de 50), essa expressão do que chamo aqui subculturas vem se articular, no Brasil de 1969-70, a um momento de iconoclastia radical bem ao estilo da antiarte, deflagrada, pela primeira vez, na Europa no período da Primeira Guerra Mundial.” (XAVIER, 2012, p.55-6).

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plásticas, que continha previamente os elementos necessários ao momento artístico através de atributos

[...] sensoriais, imagéticos, cinéticos e metacríticos caros ao cinema moderno, destacando-se os procedimentos de linguagem que exigem um novo posicionamento do espectador: distante e crítico, por um lado, e simultaneamente imerso, devorado pelo ambiente, siderado pelo espetáculo das sensações e ‘atrações’, por outro. (BENTES, 2007, p.99).

No entanto, as mídias também foram paradoxais porque a televisão, nesse momento, era também uma espécie de porta-voz ditatorial e a informação, invariavelmente, poderia ser censurada e remodelada ao crivo dos poderosos. Porém, esse meio possibilitará mostrar as mudanças comportamentais da juventude e servirá como vitrine, por isso, não por acaso, é um aparelho televisivo que vemos no fim da instalação de Oiticica com o intuito de estabelecer uma relação profícua com a televisão percebida como espaço para “[...] publicização e performance do próprio tropicalismo, objeto da crítica e do desejo.” (BENTES, 2007, p.100). Em outras palavras, o momento tropicalista utilizou-se bastante da mídia televisiva, mas o diálogo com o cinema também foi benfazejo, sobretudo no período entre 1967 e 1972, cujos maiores exemplos são Terra em transe (1967), de Glauber, O bandido da luz vermelha (1968), de Sganzerla, e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, além, é claro, da importância política dos inúmeros filmes marginais vanguardistas do universo underground, que continham uma relação de interlocução e ruptura com os filmes cinemanovistas, mas não contavam com ampla divulgação e exibição, ligação que Glauber percebera como parte de um verdadeiro projeto político-cultural ao declarar, em entrevista para a Revista Manchete em 1968, que “[...] o tropicalismo nos liberta das manias europeias e nos lança no pânico carnavalesco do nosso Brasil, onde a bossa convive com a palhoça. Somente da consciência em chagas nascerá alguma coisa.” Assim sendo, se pensarmos a obra de Glauber, como detentora de um viés tropicalista, embora não filiado propriamente, é profícua a ponderação de Bentes: “Se podemos falar de tropicalismo em Terra em 280

transe, trata-se de um tropicalismo trágico e dilacerado, um carnaval desesperado.” (BENTES, 2007, p.104).148 Porém, talvez o tom tropicalista seja mais facilmente percebido em Di-Glauber, filme de 1977, em que o cineasta registra o velório do pintor Di Cavalcanti e faz do ritual pós-morte um verdadeiro carnaval ao lançar mão de uma colagem polifônica em que aparece lendo poemas e notícias jornalísticas, gritando e cantando em meio aos presentes à cerimônia numa quebra de paradigmas comportamentais utilizados em atos de despedida, que se constitui

[...] numa das mais brilhantes reversões cinematográficas da irreversibilidade do fim. Tudo isso, pela intertextualidade, pela carnavalização, pela edição do som e mixagem alucinante de trechos musicais e sonoros, vozes múltiplas e a fusão de opostos, como as marchinhas contagiantes de Lamartine Babo sobre o rosto cadavérico de Di. (BENTES, 2007, p.106).

148 O corpo, elemento fundamental da era tropicalista, também era importante na obra de Glauber, embora com sentido distinto, como bem observa Bentes, “ao contrário da sexualidade e do corpo nas orgias dionisíacas e liberadoras do teatro de José Celso, ou nas performances lúdicas e políticas dos corpos em ação nos shows de rock, do iê-iê-iê e dos tropicalistas, o corpo no cinema de Glauber é martirizado, massacrado, num gozo trágico, corpo em pânico, sexualidade que beira o desastre. É preciso lembrar que, para além do discurso de liberação sexual e de consciência corporal dos anos 60 e 70, todo o período da ditadura militar no Brasil e na América Latina foi um teatro lúgubre de corpos torturados e destruídos.” (BENTES, 2007, p.104). A mídia e sua condição de batalha ideológica ou, como propõe Bentes, “[...] como campo de batalha da modernidade.” (BENTES, 2007, p.105), tão enfatizada na Marginália pós-tropicalista, também se faz presente no filme glauberiano, pois “o cidadão, o ‘tropicopolitano’, faz da mídia seu novo hábitat. Essa relação vital, e não apenas crítica e moralizadora com os meios de comunicação, é marcante no tropicalismo como um todo e aparece em várias músicas da Tropicália [...] O ‘tropicopolitano’ passeia entre signos, num ímpeto celebratório que se afasta da melancolia tropical, e encontra a exaltação, a cine-sensação, o excesso de estímulos traduzidos como perplexidade e desespero em Terra em transe.” (BENTES, 2007, p.105-6).

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O método e o dispositivo teórico utilizado pelos tropicalistas para aglutinar referenciais era justamente o da carnavalização, que deriva de Bakhtin e também de Oswald, em que o pensador russo aborda o carnaval da Idade Média como um ritual de clara expressão cultural e o escritor brasileiro apropria-se do conceito de canibalismo autóctone, praticado por tribos indígenas, como capacidade de transformar a barbárie da execução humana em algo mágico e eivado de simbologias. Assim, Macunaíma, texto fílmico de Joaquim Pedro, é um exímio cruzamento entre o Cinema Novo e a Tropicália ao versar sobre o folclore brasileiro amparando-se na obra homônima e heterogênea de Mário de Andrade, pautada por uma linguagem peculiar e por uma cisão em duas vertentes espaciais, do mato virgem à cidade e da cidade até a tragédia final, intersecção que permite o contato com a máquina-cidade, chegada de Macunaíma na pele de um retirante a São Paulo, terra dos elementos modernos, eletrodomésticos e bugigangas atípicas da atmosfera interiorana, que marca a perda da ingenuidade da personagem que é emblema do país, herói da nossa gente, nas palavras de Darcy Ribeiro, porque “[...] veste a carne que nos veste; porque é a carapuça que nos cabe” (RIBEIRO, 1988, p. XIX), pois o brasileiro de Mário e Joaquim Pedro “[...] é o do carnaval, da caçoada folclórica, da gente que, cantando, dançando, ironizando, rindo – inocente e sem medo – se vinga de quem, além de oprimi-lo e explorá-lo, ainda quer fazer sua cabeça.” (RIBEIRO, 1988, p.XIX). Ademais, a personagem-título é polêmica, mas norteadora porque “[...] é o discurso em que Mário nos mostra, matreiro, o caminho não ruibarbósico nem pauloprádico, de nos exercermos como intelectuais de nosso povo mestiçado na carne e na alma, desde sempre, à véspera de realizar suas potencialidades.” (RIBEIRO, 1988, p. XVIII). Sendo assim, o Cinema Novo resgata algumas propostas modernistas como a de Mário, tangente à cultura popular brasileira, pois tanto o Modernismo como o Cinema Novo foram, como aponta Randal Johnson, em Literatura e cinema – Macunaíma: do Modernismo na literatura ao Cinema Novo, “tentativas de descolonizar a cultura brasileira” (JOHNSON, 1982, p.43), vasta e, especialmente, multiracial, que Joaquim Pedro enfatiza por meio de uma comédia extremamente popular, a quinta maior bilheteria entre os filmes nacionais lançados em 1969, pretendendo uma visada crítica no tocante à realidade nacional, sob a ótica do Brasil do fim dos anos 60, que, como aponta Bentes,

[...] atualiza, informado pela contracultura e pelo 282

contexto político adverso, a questão da originalidade nacional. O filme afasta-se da ‘comoção lírica’ diante do índio, da modinha, do samba, da sanfona e da macumba. É cúmplice, mas ao mesmo tempo satiriza, desconstrói o caipira, o folclore, o regionalismo. Insere nesse folclore tradicional o novo folclore urbano: a televisão, a música popular da Jovem Guarda, mulheres hipersexualizadas, hippies, malandragem e rebeldia. O filme combina personagens que saíram literalmente de narrativas folclóricas tradicionais (Saci Pererê, Curupira, entidades da floresta, pajés) com tipos sociais novos: a estudante-guerrilheira, o capitalista selvagem, o malandro-otário brasileiro. (BENTES, 2007, p.111-2).

De tal modo, o diretor retoma em sua rapsódia do herói sem nenhum caráter a imagem dos eletrodomésticos contida em Brasília: contradições de uma cidade nova de 1967. O curta de Joaquim Pedro conta com a narração de Ferreira Gullar e se revela, inicialmente, uma ode à construção da capital federal, que recua com um corte radical, crítica ferrenha, no momento em que o diretor dá voz à população que vivencia a cidade, abandonando as imagens majestosas que endossam a exuberância cartográfica da cidade monumental. Em sequência, a pobreza das cidades-satélites ganha contornos nas imagens em câmera na mão, que registram a realidade dos operários e estudantes, todos migrantes, e, principalmente, ao criticar imageticamente e com voz off que “ao expelir de seu seio os homens humildes que a construíram [...], Brasília encarna o conflito básico da arte brasileira: fora do alcance da maioria do povo.” Isto faz com que a ideia inicial de Niemeyer e Lúcio Costa de fazer com que todos, ricos e pobres, habitassem as mesmas superquadras mostre-se estéril, ao registrar uma feira com eletrodomésticos sendo expostos de modo improvisado em cima de um caminhão no meio de uma rua empoeirada, pois, desse modo, Andrade mostra que

[...] a cidade modernista não escapa ao sucateamento progressivo da miséria programada pela industrialização e antenada com ela. Os 283

mesmos eletrodomésticos reaparecem no fim de Macunaíma e ao longo do filme, misturados com objetos vindos do mundo mágico indígena, da cultura pop internacional e da arte de vanguarda. As relíquias do Brasil empilhadas no supermercado da cultura. (BENTES, 2007, p.112).

Porém, o mais legítimo representante da tropical melancolia talvez seja Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Júnior, filme alegórico com canções tropicalistas e direção musical de Rogério Duprat, que apresenta a união entre arcaísmos e modernismos no país do futuro, terceiro-mundista, sobrevivente da Terceira Guerra Mundial. Ambicionando o idílico sonho de que em 2000 haveria progresso e o enterro do subdesenvolvimento, o filme, dedicado à memória dos povos desenvolvidos que desapareceram com a grande Guerra Nuclear de 1989, é um misto de ficção científica e mote pós-apocalíptico que acompanha a peregrinação de uma família por um país devastado que migra para o norte, numa oposição aos retirantes brasileiros que percorriam o caminho inverso, e acaba no lugarejo de Me Esqueci, promessa messiânica amparada num foguete que o militarismo aposta como emblema nacional, que mesmo em meio aos escombros percebe- se que em suas cercanias “[...] não desapareceram as autoridades e símbolos do poder nacional militar, ainda no comando do pós- apocalipse.” (BENTES, 2007, p.117). Assim, a hecatombe de Brasil ano 2000 traz o inesperado: a morte dos civilizados e a sobrevivência do periférico em que “terminada a Terceira Guerra Mundial, cabe ao Brasil ser palco de uma experiência sui generis, a qual termina por se configurar, não como redenção, mas como reiteração do fracasso, mesmo na ausência dos entraves externos que tanto ocuparam o pensamento nacionalista.” (XAVIER, 2012, p.199). Com efeito, o cinema contracultural buscava uma forma de síntese entre crítica e fruição, que a baixa margem de exibição em salas de cinema e público reduzido impossibilitava, mas que foi possível à vertente musical da Tropicália em função do efeito mercadológico amparado pela grande mídia de rádio, televisão e também dos importantes festivais, aparato de que o cinema autoral não dispunha. A Marginália, por sua vez, abrigava tropicalistas de outrora, mas também era composta pelos artistas mais distantes do mercado, sem grande reconhecimento de massa, uma espécie de “lado b”, do qual Torquato 284

passou a ser um dos exemplares juntamente com Rogério Duarte e Tom Zé, nomes cuja trajetória associa-se à postura marginal, underground e/ou experimental como as de José Agrippino de Paula e Ivan Cardoso, por exemplo. Do mesmo modo, se percebe nessa vertente uma espécie de multitropicalismo com subdivisões em que O bandido da luz vermelha, filme de cinema de Rogério Sganzerla, como anunciado no letreiro inicial, constitui-se em exemplo máximo, síntese entre o marginal e a Marginália, utilizando uma montagem carnavalesca e uma narrativa polifônica com uso de paródia, pastiche, citação, colagem e intertextualidade. No entanto, na linha de ruptura, marginalidade e referência tropical, há filmes ainda mais subterrâneos, pouco conhecidos do grande público, mas esteticamente únicos e inquietantes no sentido catártico como Hitler, terceiro mundo de José Agrippino de Paula, Meteorango kid de André Luiz Oliveira, Sem essa, aranha de Rogério Sganzerla, Câncer de Glauber Rocha, A margem de Ozualdo Candeias e toda a produção de José Mojica Marins, cineasta que atua desde 1958, sempre sendo uma referência não só enquanto figura marginal, mas pelo emprego do desprendimento técnico utilizado espontaneamente que propicia, segundo Fernão Ramos, em Cinema marginal (1968/1973): a representação em seu limite, uma atração pelo horror, que supera o terror, em que o abjeto e o grostesco se unem e

[...] as personagens se submetem a códigos preexistentes e artificiais de conduta −, assim como um estilo de interpretação próprio e invariável, cria em torno de si uma mística própria. Bangue-bangue, western do Terceiro Mundo, policial: o Brasil tem um mestre do horror, um mestre além dos mais autenticamente subdesenvolvidos, com todas as características do lixo tropical cultuado pelos marginais. Mojica constitui uma espécie de síntese espontânea daquilo que o Cinema Marginal buscava mais ardorosamente mostrar em seus filmes. (RAMOS, 1987, p.86-7).

De repercussão imediata, a faceta musical da Tropicália teve amplo alcance na época de produção e, também, contemporaneamente. Ao contrário, o cinema experimental dos anos contraculturais não 285

obteve o mesmo efeito, embora apresentasse uma grande potência artística, e tenha sido, como alude Bentes,

[...] capaz de criar uma linha potencial dentro do cinema e da cultura brasileira, uma dobra no tropicalismo, com temas e procedimentos comuns, mas radicalizando e valorando o estranho, a violência, uma brasilidade agressiva, fragmentada, estilhaçada, caótica, de ‘segunda mão’, mistura desequilibrada de celebração e autodepreciação. (BENTES, 2007, p.122).

Com o passar do tempo, percebe-se, pois, que vaiada nos festivais musicais, a Tropicália passou a ser celebrada em museus mundo a fora e sendo apontada com status referencial por variados artistas e críticos, inclusive internacionais. Tal alcance se deve, sobretudo, pela capacidade de questionar e descentralizar a cultura, como declara Jorge Mautner, em Fragmentos de sabonete e outros fragmentos, ao apontar que a herança tropicalista é marca da cultura brasileira e

hoje em dia, seus frutos: do campo às cidades (Refazenda?), a diluição de importância piramidal do eixo Rio-São Paulo, seguido por mil florações culturais por todo o Brasil, do Guaíba ao Amazonas da pororoca, de Curitiba a Brasília, de São Salvador a Recife, na horizontal e na vertical, a quebra de vários tabus e totens etc., tudo culminando numa direção que é a descentralização, a simultaneidade dos fenômenos; ex.: a internacionalização cada vez maior e ao mesmo tempo o aprofundamento cada vez maior nas raízes locais, biogeneticamente e arquetipicamente brasileiras. Ouviu, Tinhorão? A simultaneidade faz com que, ao aumentar a influência estrangeira, se aprofundem e se adensem as raízes. (MAUTNER, 1995, p.55).

E, no entanto, sendo lúdica, a era tropicalista soube dialogar com o dominante, formas artísticas, culturais e políticas, e romper a 286

dicotomia entre indústria e vanguarda de modo bastante político, ocupando o mercado e fazendo apologia à diversidade cultural. Assim, como observa Francisco Alambert, em A realidade tropical, “mais do que meramente ‘ideologia’, o realismo tropicalista se tornou hegemonia.” (ALAMBERT, 2012, p.143) e o auge dessa primazia ocorreu em 2003 com Gil ocupando o cargo de Ministro da Cultura e com a participação de Caetano na cerimônia do Oscar, em parceria com Lila Downs, cantando Burn it blue, canção de Elliot Goldenthal e Julie Taymor, trilha do filme Frida, cinebiografia da pintora Frida Kahlo, pois, com esses holofotes, o gene tropicalista “[...] chegava aonde sempre quis chegar, ao topo da indústria cultural.” (ALAMBERT, 2012, p.149). Em outras palavras, a era tropicalista configurou-se como alta expressão de brasilidade e um momento de elevada experimentação, portanto, de vanguarda, com extensa atividade político-cultural cuja atuação, em termos de subversão, pode ser comparada a Carlos Marighella,149 isto é, talvez os tropicalistas fizessem em cultura o que o revolucionário baiano tentara fazer em política, já que guardavam um

149 Marighella tinha apoio da esquerda brasileira, mas também europeia. Segundo Gaspari, Godard “[...] chegou a destinar à ALN uma parte do dinheiro que ganhou com o filme Vento do leste. O pintor catalão Joan Miró vendeu alguns desenhos para custear a movimentação de um guerrilheiro que passava por Roma.” (GASPARI, 2014, p.147-8). Contudo, a tortura dos freis Fernando de Brito e Ivo Lesbaupin, realizada no Cenimar (Ministério da Marinha) aos cuidados do delegado Fleury, como pode ser visto no filme Batismo de sangue, produziu as informações necessárias para o bote a Marighella em São Paulo e, então, a emboscada empreendida pelos militares foi bem sucedida: “Marighella levou cinco tiros. Um, disparado à queima-roupa, seccionou-lhe a aorta. [...] menos de uma hora depois, as emissoras que transmitiam o jogo Corinthians x Santos deram a notícia. No intervalo, o serviço de alto-falantes do estádio do Pacaembu pediu a atenção das torcidas e informou: ‘Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella. Num aparelho de Vila Formosa, Carlos Lamarca chorava diante da televisão. Como na cena final de Deus e o diabo na terra do sol, morria Corisco e surgia Antonio das Mortes, ‘matador de cangaceiros’. À figura mítica do chefe guerrilheiro, morto numa trama banal, impunha-se a força de Fleury. A esquerda perdera o patrono da luta armada, elo entre o pensamento radical do PCB e a ilusão armada do final dos anos 1960. A ditadura ganhara no delegado um símbolo para a repressão.” (GASPARI, 2014, p.155) e, com isso, também ficou claro que “havia uma relação entre o clero de esquerda e o marighelismo, mas também havia uma associação entre a militância católica de direita e o porão.” (GASPARI, 2014, p.273).

287

sonho, como na canção-homenagem Um comunista, que Caetano dedica ao líder baiano:

Um mulato baiano Muito alto e mulato Filho de um italiano E de uma preta hauçá Foi aprendendo a ler Olhando o mundo à volta E prestando atenção No que não estava à vista: Assim nasce um comunista. Um mulato baiano Que morreu em São Paulo Baleado por homens Do poder militar [...] Os comunistas guardavam um sonho Os comunistas, os comunistas

O momento artístico floresceu amparado também pela demanda contestatória de atos espúrios ditatoriais que os tropicalistas e pós- tropicalistas contestavam com certa virulência. Muito em função disso, vários artistas desse escopo foram presos, torturados e/ou exilados, como os já citados casos de Rogério Duarte, Gil, Caetano e Waly, mas também Zé Celso e Mautner, que em 1966, após o lançamento de Vigarista Jorge, foi obrigado pelo DOPS paulista a deixar o Brasil. Posteriormente, ao conhecer o artista no exílio londrino, Caetano teria se impressionado com a canção Vampiro e, ainda mais, ao saber que ela era bastante anterior às canções iniciais da Tropicália como Alegria, Alegria e Domingo no parque, isto é, para o baiano, o trabalho de Mautner, que até então era conhecido apenas como escritor, soava como uma profecia ao que viria a ser a faceta musical tropicalista, que pregava a atemporalidade da cultura e só ganharia reconhecimento da crítica estrangeira tardiamente, pois muitos críticos demoraram mais de três décadas para entender o momento tropicalista, seu desdobramento contracultural e a dimensão desse viés artístico para o Brasil. Na atual indústria cultural, a Tropicália parece sempre se reconfigurar tendo a premissa de que no âmbito musical, o nicho mais 288

expressivo, o eixo Rio-São Paulo tenha se dissolvido, pois em qualquer lugar do país é possível produzir música, sobretudo pela possibilidade tecnológica e pela transformação dos formatos de divulgação artística, preponderantemente via internet atualmente, atingindo proporções inimagináveis, caráter que se encontra ao modo pelo qual os tropicalistas pensaram a cultura de massa, de maneira bastante benjaminiana, considerando a técnica e a experiência como mediação possível entre a cultura e as massas, pois, para o filósofo alemão, a aproximação das massas à arte é significativa, sendo uma forma de transformação social realmente efetiva. A lógica tropicalista previa a ressignificação cultural e a incorporação das diferenças em detrimento ao discurso e ao caráter hegemônico porque a cultura sobrevive mesmo diante das hegemonias de mercado, como considerado em Sobrevivência dos vaga-lumes, quando Didi-Huberman menciona a sobrevivência artística como caráter anacrônico, em que a arte aparece e reaparece na história, e a Tropicália, sem dúvida, fora uma urgência histórica essencialmente atemporal e nunca uma arte linear e tradicional, que não parou de ser evocada. Afinal, ainda assistimos os seus desdobramentos como o lançamento de Tropicália 2 em 1993, a publicação de Verdade tropical em 1997, o resgate de Tom Zé efetuado por Byrne ao longo dos anos 90, a ascensão ministerial de Gil em 2003, a exposição Tropicália: uma revolução na cultura brasileira nos Estados Unidos em 2006, o lançamento de dois documentários sobre o tema em 2012, Futuro do Pretérito: Tropicalismo now! e Tropicália, além da feitura do disco Tropicália lixo lógico, disco-tese de Tom Zé sobre o momento tropicalista, álbum independente que figura como uma espécie de continuação de estudos sobre os gêneros musicais brasileiros já que o músico já havia lançado Estudando o Samba, Estudando o Pagode e Estudando a Bossa. No disco, Tom Zé considera que o berçário dos “analfatóteles” na “creche tropical” era composto por ele, Caetano, Gil, Rogério Duarte, Gal Costa, Glauber Rocha, Capinan e Torquato e os gatilhos disparadores para a existência da Tropicália na vida adulta seriam Oiticica, Zé Celso, Oswald, Agrippino, Os Mutantes e a atmosfera do rock internacional. Desse modo, discorda da ideia de que o momento artístico não existiria sem o contato com os artistas do eixo Rio-São Paulo porque acredita que a Tropicália nasceu verdadeiramente do cerne do lixo lógico. Segundo sua tese, sendo nordestinos, inicialmente, os tropicalistas foram expostos ao modo de pensar árabe e não ao dos europeus, afinal, a Península Ibérica fora, ao longo dos séculos, dominada por esse grupo étnico. Assim, os portugueses que colonizaram 289

o nordeste brasileiro traziam essa visão de mundo, que não previa o pensamento aristotélico e racionalista, mas o posterior contato com o pensamento de Aristóteles os fazia jogarem fora todo o conhecimento adquirido anteriormente para o hipotálamo, isto é, tudo que seria desprezado pelo córtex migraria para lá e resultaria no lixo lógico, o pensamento a partir de outra lógica, a dos árabes. Em contrapartida, todo esse conhecimento teria ficado adormecido no hipotálamo até os anos 60 e a soma entre os baianos, artistas do sudeste e ao contexto político e social promoveram a reinvasão ao córtex por parte do lixo lógico, ou seja, diante do cenário ditatorial, os partícipes da Tropicália perceberam que era necessário mesclar os ensinamentos do interior do país com sua verve de tradição oral e uni-los ao pop e ao pensamento aristotélico formando a amálgama original da Tropicália. 150 Ademais, Tom Zé leva em conta que a língua portuguesa é um prolongamento do latim levado pelos romanos para a Península Ibérica a partir do século III a.C, anteriormente habitada pelos iberos, celtas, fenícios, gregos e cartagineses, assim, o latim adveio por meio da criação de escolas, igrejas e demais formas de organização social até que os peninsulares adotassem o uso do latim vulgar em definitivo, sendo só a partir do século VIII, com a invasão dos árabes, que algumas povoações tornaram-se, consequentemente, moçárabes, “misto árabe”, ao mesclaram linguagens e costumes, exceto religião, que se manteve cristã, conjuntura exemplificada nos versos de Tropicália lixo lógico:

150 A resistência inicial ao conhecimento aristotélico seria similar à contida no poema leminskiano:

CURVA PSICODÉLICA a mente salta dos trilhos LÓGICA ARISTOTÉLICA não legarei a meus filhos

(LEMINSKI, 2013, p.89).

Afinal, além da psicodelia e das drogas, o poema também faz outra alusão clara com o verso final não legarei a meus filhos: a da célebre frase machadiana, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, “[...] − não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (ASSIS, 2018, p.243), que Leminski, marotamente, transforma em algo parecido com tive filhos, não legarei a lógica aristotélica a eles. 290

[...] Não era melhor, tampouco pior, Apenas outra e diferente a concepção Que na creche dos analfatóteles regia Nossa moçárabe estrutura de pensar. Mas na escola, primo dia, Conhecemos Aristotes, Que o seu grande pacote De pensar oferecia. Não recusamos Suas equações Mas, por curiosidade, fez-se habitual Resolver também com nossas armas a questão – Uma moçárabe possível solução Tudo bem, que legal, Resultado quase igual, Mas a diferença que restou O lixo lógico criou.

Por isso, Tom Zé acredita que os baianos, Torquato entraria nesse campo como um baiano de coração, alçaram o país da Idade Média levando-o para a Segunda Revolução Industrial, percebida por meio da televisão, da semiótica, da publicidade e pelo processamento de dados, através do diálogo da cultura brasileira com elementos revolucionários estrangeiros como o pop, o cinema europeu e até os Beatles e os Rolling Stones, como ele enfatiza na canção Tropicalea jacta est, que canta em parceria com Mallu Magalhães:

[...] Era urgente/ sair da tunda Levar a gente/para a Segunda Revolução Industrial Pa-ra-rá capacitados para a nova folia: Tecnologia Tecnologia. Domingo no parque sem documento Com Juliana – vagando contra o vento 291

Saímos da nossa Idade Média nessa nau Diretamente para a era do pré-sal. [...] Torquato Neto/ do Piauí Pinta no verso/ do céu daqui Aquela manhã que se inicia Desfolha a bandeira e renuncia Puta filia Puta filia.

Como vemos, o artista de Irará parece sentir necessidade de explicar o passado para mostrar como a Tropicália e, consequentemente, a Marginália ainda são presentes e como são utéis para pensarmos o tempo atual, afinal, foram respostas a um intenso momento nebuloso em forma de arte, cultura e política, pois por meio da alegoria, da antropofagia e do pessimismo alegre, promoveram o sampleamento, a carnavalização e a canibalização das artes, que, atualmente, como mea- culpa, leva a pensar se a postura tropicalista e pós-tropicalista não concedeu, indiretamente, o aval ao mercado capitalista do tudo pode que, inclui também, o lixão cultural. No entanto, a visão do artista aposta na era tropicalista como reciclagem cultural, postura que vai ao encontro com a consideração de Raúl Antelo, em Políticas canibais: do antropofágico ao antropoemético, quando o autor observa que a apropriação e a reciclagem artística nunca recusam o outro, ao contrário, esse procedimento sempre opta pela devoração, caráter até mais amplo do que a própria postura antropofágica, muito em função da atualidade, que agrega uma globalização intensa, fato não vivenciado por Oswald. Assim sendo, é possível apontar a razão de Torquato quando o poeta nos diz em Torquatália III: “[...] tropicália/marginália. mas você não vê que o buraco fica mais embaixo e por isso estamos aí, bicho. a tropicália é a medida mais justa do possível, no coração surrealista do brasil.” (NETO, 2004, p.63) porque essa era renovou o cenário estético brasileiro e propôs uma forma nova para os costumes que desaguaram em variados nichos sociais. Atualmente, a mesma hipócrita censura aos costumes comportamentais e estéticos, que vimos nas ditaduras latino-americanas dos anos 60, 70 e 80, retorna travestida com falsa religiosidade, tentando interferir na produção de arte, até barrando exposições, perversidade dos interessados em um Estado castrador que manipula, por ganância monetária e poderio, os mais desinformados aproveitando-se de suas 292

crenças e isso nos mostra a força e a necessidade dos artistas contraculturais, que promovem a insubordinação ao estabelecido abrindo inúmeras possibilidades artísticas. Os parangolés, por exemplo, não são apenas capas coloridas, mas uma possibilidade de potência do corpo que a veste, que lhe dá vida e movimento, atitude que está no horizonte do possível, assim como na fala de Torquato ao caracterizar a era tropicalista, do mesmo modo como foram as transformações econômicas e sociais do Brasil dos últimos tempos, a partir dos anos 2000, as mais justas, embora nem sempre o possível seja o ideal, mas que representam a materialização de um sonho de Brasil, algo que nenhuma censura pode cessar, afinal, como aponta Bhabha,

se hibridismo é heresia, blasfemar é sonhar. Sonhar não com o passado ou o presente, e nem com o presente contínuo; não é o sonho nostálgico da tradição nem o sonho utópico do progresso moderno; é o sonho da tradução, como sur-vivre, como ‘sobrevivência’, como Derrida traduz o ‘tempo’ do conceito benjaminiano da sobrevida da tradução, o ato de viver nas fronteiras. (BHABHA, 1998, p.311).

Portanto, tudo que foi produzido no passado não precisa ser esquecido, ao contrário, necessita ser atualizado, pois, como aponta Duarte, “[...] não há síntese por vir do tempo histórico, há uma atuação presente dele através de suas inúmeras tensões passadas e futuras” (DUARTE, 2018, p.17), porque, de certa maneira, se explica os anos atuais a partir dos anos contraculturais, ou seja, se volta ao passado com as categorias de futuro, especialmente em relação ao corpo, que adquire uma visibilidade e uma força nos anos 70 que nos faz conceder um novo espectro para o corpo atual, que passa a ser marco de resistência e não uma forma, um recipiente do ser, confirmando que a explosão tropicalista foi breve, mas intensa, atualizando referenciais anteriores sob a ótica polêmica do então, pois, como aponta Favaretto, nesse período

[...] a colocação do aspecto estético e do aspecto mercadoria no mesmo plano faz parte do processo de dessacralização, da estratégia que dialetiza o 293

sistema de produção de arte no Brasil por distanciamento-aproximação do objeto- mercadoria. Esta posição destoava de outras, quer de esquerda, quer de direita, que, embora com justificativas diversas, condenavam, unanimemente, o envolvimento comercial da arte, considerado naquele momento como compromisso com a indústria cultural. (FAVARETTO, 2007, p.140).

Para além de momento-chave para a cultura brasileira, é importante perceber como a era tropicalista pode ser lida na atualidade e como ainda é viável, atingindo uma espécie de universalidade artística e promovendo uma perpetuação naquilo que tocou culturalmente, pois, como propõe Anazildo Vasconcellos da Silva, a Tropicália

não foi um Big-bang mas um Big-crunch. [...] Não vemos direito o movimento tropicalista, ou outro qualquer, porque pensamos que a explosão foi para fora, como uma bomba, mas não foi. A explosão foi como a do universo, para dentro. Com o big-bang o universo entrou em expansão e nós estamos dentro dele. (SILVA, 2000, p.156-7).

Além disso, não tivemos mais nenhum momento e/ou movimento artístico no Brasil de lá pra cá, de modo que ainda estamos, indiretamente ou não, sob a vigência tropicalista e contracultural, embora essa era já detenha um passado; possua um cânone cultural, como nos versos de Caetano em Saudosismo: 151

151 Os versos aludem à canção Fotografia, de 1959, de Tom Jobim:

Eu, você, nós dois Aqui neste terraço à beira-mar O sol já vai caindo E o seu olhar Parece acompanhar a cor do mar Você tem que ir embora A tarde cai 294

Eu, você, nós dois Já temos um passado, meu amor [...] Eu, você João girando na vitrola sem parar E o mundo dissonante que nós dois Tentamos inventar, tentamos inventar Tentamos inventar, tentamos

Portanto, é incrível perceber como a figura de Torquato está atrelada a todo esse passado-presente ou futuro do pretérito, como no título do documentário de Moraes, sem que seu nome seja lembrado de imediato, de certa forma, regido pela máxima do roteiro do disco- manifesto tropicalista, na sequência 5, cena 9: “as coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.” Aprender a partir do que está posto, inclusive, como aponta Moriconi, apropriar-se da trajetória de Torquato que “[...] esteve no olho do furacão e encarnou as sucessivas e velozes metamorfoses sofridas por toda uma geração cultural durante um período vertiginoso.” (MORICONI, 2017, p.24), sempre se reinventando a partir das mais variadas referências, do modernismo paulista de Oswald, passando pelo modernismo drummondiano, ao vanguardismo concretista e a transgressão marginal com todas as suas invenções contraculturais identificadas como tropicalistas ou marginais, variações de um mesmo conceito, a proliferação da cultura brasileira de modo plural e sincrético.

Em cores se desfaz Escureceu O sol caiu no mar E a primeira luz lá embaixo se acendeu Você e eu 295

5. Terror & terrir sob o signo do vampiro

Nosferatu de Murnau desce, via Ivan Cardoso, no Brasil empesteado e se apossa tanto tanto de Torquato que vira sua logomarca definitiva, Nostorquatu. Waly Salomão em O suicídio enquanto paráfrase ou Torquato Neto esqueceu as aspas ou Torquato Marginália Neto

Sinistro Ivan: enquanto curte a película do seu terrir, entrega-nos à sanha do terror do tempo que nos tira a pele. Décio Pignatari em A marca do terrir

A partir do projeto político-cultural de ocupação do espaço de Torquato, cinéfilo contumaz, se percebe a sétima arte como a sua última trincheira, que se inicia na música e na poesia, se estabelece no jornalismo cultural, resvala na televisão e finda no cinema, que propunha sair da passividade de acesso apenas à cultura cinematográfica mainstream e passar a produzir seus próprios filmes. Por isso, o último ato do poeta se dá nesse meio artístico, lugar de predomínio da linguagem visual e que pode, opcionalmente, ser liberto das palavras, de tal modo, em Marcha à revisão, o poeta aponta que “as palavras inutilizadas são armas mortas e a linguagem de ontem impõe a ordem de hoje. [...]. Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema.” (NETO, 1982, p.98). Assim, como armas, as palavras nortearam todas as ações de Torquato nas mais variadas linguagens, afinal, a produção do poeta consistiu em letras, poemas, poemas visuais, artigos jornalísticos, manifestos tropicalistas, roteiros de TV, artigos de cinema, direção e atuação em filmes, edição da revista Navilouca, correspondências e diários pessoais. Contudo, em Material para divulgação, artigo de 19 de outubro de 1971, Torquato constata o poder das imagens em detrimento às palavras:

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Escrever não vale quase nada para as transas difíceis desse tempo, amizade. Palavras são poliedros de faces infinitas e a coisa é transparente – a luz de cada face distorce a transa original, dá todos os sentidos de uma vez, não é suficientemente clara, nunca. Nem eficaz, é óbvio. Depende apenas de transar com a imagem, chega de metáforas, queremos a imagem nua e crua que se vê na rua, a imagem – imagem sem mais reticências, verdadeira. [...] Quem vai documentar isso? Quem vai guardar as imagens que o cinema dos cinemas não exibe? Quem vai nessa? Quem vai dar para depois as imagens da festa dessas cores nas ruas do país e nos corpos do beco? Invente. Uma câmera na mão e o Brasil no olho: documente isso, amizade. Não estamos do lado de fora e do lado de fora é a mesma transa: underground, subterrânea, etc. A realidade tem suas brechas, olhe por elas, fotografe, filme, curta dizendo isso. Tem sua beleza: a paisagem não sustenta o teu lirismo, pode mais do que ele, campa com ele e isso é bonito. Organizar arquivos da imagem brasileira desses tempos, cada qual guardando seus filminhos, até que o filme todo esteja pronto. Planos gerais, retratos da paisagem geral, arquivos vivos, as fachadas, os beijos, punhaladas: documentar tudo, podes crer: é isso. (NETO, 1982, p.117-8).

Pois, como ele mesmo previa, a necessidade era a mãe da invenção e seu ofício passou a necessitar, numa dialética de construção e destruição, de formular-se de outra forma, por meio da linguagem do cinema, vocábulo oriundo do grego kinema, que significa movimento, termo que alude à técnica artística de fixar e reproduzir imagens que suscitam a impressão de movimento, referindo-se ao seu impacto e percepção. Em função disso, Walter Benjamin propõe, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, uma espécie de inventário histórico da arte na modernidade discorrendo sobre a influência das técnicas de reprodução e a sua recepção até o início do século XX e, nisso, o texto benjaminiano é crucial, pois o filósofo alemão foi um dos primeiros autores a abordar as mudanças artísticas em função da 297

influência das mídias e de como esses meios técnicos, como o cinema, entusiasmaram a arte e a cultura através, sobretudo, da percepção. Desse modo, o texto é uma afirmação da cultura de massa e seus meios massivos e, consequentemente, das novas tecnologias uma vez que, como aponta Detlev Schöttker, pesquisador da obra de Benjamin, o escrito

defende a tese de que as formas de exposição da fotografia e do cinema modificaram a arte e sua recepção: no caso da fotografia, pela reprodução ampla de obras existentes (reprodução), bem como pelas imagens de uma realidade que não pode ser captada a olho nu (o inconsciente óptico); no caso do cinema, graças à aceleração da sequência de imagens (montagem), bem como às formas de apresentação (lente de aumento e tomadas em primeiro plano). O caminho leva da percepção contemplativa da obra de arte autêntica e original à percepção distraída de cópias amplamente disseminadas. (SCHÖTTKER, 2012, p.65).

Portanto, Benjamin considera que a obra de arte tradicional, única, autêntica, é substituída pela moderna e reprodutível, ou seja, a reprodutibilidade técnica geraria a perda da autenticidade e da aura da arte e/ou obra, pois o filósofo expõe que o espectador não apreende imagens reais, mas imagens de um dispositivo, da câmera, que, diferentemente de pinturas originais, por exemplo, vistas por poucos, os filmes são objetos de uma recepção coletiva simultânea onde a câmera ativa o inconsciente ótico já que

uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho. O cinema não realiza essa tarefa apenas pelo modo com que o homem se representa diante do aparelho, mas pelo modo com que ele representa o mundo, graças a esse aparelho. Através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e de sua investigação dos ambientes 298

mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência, e por outro assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade. (BENJAMIN, 2011, p.189).152

Porém, o cinema é um ambiente de liberdade exigente porque “a associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda.” (BENJAMIN, 2011, p.192). Por esse motivo, a narrativa fílmica oferece uma forma neutra de ver as coisas, pois, como observa Tânia Pellegrini, em Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações, “[...] embora a câmera não reproduza exatamente o processo fisiológico da visão, ela captura realidades visuais que, até um certo ponto, podem estar livres da interpretação da mente humana.” (PELLEGRINI, 2003, p.26) e, do mesmo modo, o filme, assim como fora a fotografia, estaria isento de emoções, apresentaria uma perspectiva mais objetiva e “[...] captaria aspectos insuspeitos do movimento e da paisagem, 'invisíveis a olho nu'.” (PELLEGRINI, 2003, p.27), como também observa Benjamin, em sua Pequena história da fotografia:

A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude,

152 Como aponta Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha, “a aura seria portanto como um espaçamento tramado do olhante e do olhado, do olhante pelo olhado. Um paradigma visual que Benjamin apresentava antes de tudo como um poder da distância [...]” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.147) já que a aura é próxima e distante simultaneamente.

299

através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. (BENJAMIN, 2011, p.94).

E, em função disso, a fotografia nos revela o inconsciente ótico e a câmera não se faz totalmente neutra, pois, como também alerta Pellegrini, sempre haverá alguém por trás da câmera que

[...] seleciona, recorta e combina, extraindo uma nova síntese do material desordenado que o mundo visível oferece. Portanto, 'a técnica mais exata ainda pode conferir às suas criações um valor mágico' e, apesar de toda a perícia do olho por trás da câmera, como afirma Benjamin, cada um pode descortinar o acaso, 'a realidade [que] chamuscou a imagem'. (PELLEGRINI, 2003, p.27).

Esse parêntese, digressivo, mostra como o cinema é a perda da aura para Benjamin, mas, paradoxalmente, como a aura do cinema 153 confere força à imagem de Torquato a partir de seus trabalhos no início dos anos 70, que se ligam essencialmente ao cinema por intermédio das críticas no jornal Última Hora, às experiências em superoito e, sobretudo, à realização de seu filme, O terror da Vermelha, como roteirista, ator e diretor, texto fílmico que pode ser entendido como um filme em aberto, fruto da máxima divulgada por Glauber de que é necessário uma câmera na mão e uma ideia na cabeça,154 uma obra que

153 Para Didi-Huberman, aurático “[...] seria o objeto cuja aparição desdobra, para além de sua própria visibilidade, o que devemos denominar suas imagens, suas imagens em constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como outras tantas figuras associadas, que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra do inconsciente. E essa memória, é claro, está para o tempo linear assim como a visualidade aurática para a visibilidade ‘objetiva’: ou seja, todos os tempos nela serão trançados, feitos e desfeitos, contraditos e superdimensionados.” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.149). 154 Glauber aponta em Saraceni César Paulo, texto de Revolução do Cinema Novo, que Saraceni é o verdadeiro autor da máxima o cinema novo é uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Além disso, o cineasta carioca também 300

se estabelece via intenção, amparada por um roteiro prévio e material fílmico bruto, como Italo Moriconi assinala em Medula e Osso, ao considerar que a produção torquatiana nesse momento forma

[...] um conjunto poético, um conjunto de poética em transe. Se como criador Torquato, desde o início, praticou a estética pós-moderna da apropriação dos versos e ecos que lhe eram dados pela cultura, a literária e a popular, nesse momento vertiginoso concentra-se em performar cada hora do fim. Vidaobra. (MORICONI, 2017, p.31).

Autor de cinema altamente experimental, que abriria caminho às realizações superoitistas que tomariam a década de 70, Torquato tornou- se num curto espaço de tempo um grande impulsionador do gênero, que faz com que a montagem se torne mais abrangente que um mero procedimento cinematográfico. Assim, como aponta Silvio Ricardo Demétrio, em O terror da Vermelha: estética da agressão e rigor formal de Torquato Neto no cinema,

o cinema é então vampirizado pelo poeta que extrai de suas possibilidades arteriais o fluido vital que vai nutrir o rigor formal de sua poética- moviola. Desde a letra de Geleia Geral, quando nesta são enumeradas as ‘relíquias do Brasil’ até no estilo de texto jornalístico singular inventado por Torquato Neto, tudo na sua produção pode ser entendido como resultante de procedimentos que exploram a montagem em suas possibilidades estéticas. O corte que seleciona e a sutura que coloca em contiguidade elementos díspares, provocando a colisão destas representações, como sugere Eisenstein, e desferindo com isto um choque produtor de uma metáfora absoluta na dirigiu um documentário em homenagem ao poeta piauiense: O anjo Torquato Neto.

301

consciência do leitor-espectador. (DEMÉTRIO, 2004, p.10).

Atente-se que as participações cinematográficas do poeta foram pontuais, mas a devoção ao cinema foi, sem dúvida, uma parte importantíssima em sua geleia geral e as experiências fílmicas consistiram numa espécie de contralinguagem. Além disso, em suas colunas, Torquato tinha o cinema como pauta constante e sempre criava polêmicas em função delas, como, por exemplo, o embate do cinema underground com o Cinema Novo. De fato, após retornar da Europa, Torquato passou a fazer críticas aos cineastas cinemanovistas, incluindo Glauber, por ser contrário à institucionalização do cinema obediente às políticas culturais da ditadura civil-militar, via circuitos comerciais de cinema por meio da Embrafilme, Empresa Brasileira de Filmes, criada em 1969 para gerenciamento, produção e distribuição de audiovisual por intermédio do Estado. Afinal, o Cinema Marginal existia de modo independente, sem dinheiro público ou do empresariado privado. As críticas políticas também atingiam o INC, Instituto Nacional de Cinema, mas essa postura crítica não denotava repulsa aos filmes cinemanovistas, ao contrário, todos os cineastas marginais tinham referências oriundas dessa coligação cinematográfica.155 Entretanto, em função das querelas político-culturais, o poeta passa a apostar no Cinema Marginal e no uso do super-8, bítola que, como aponta Moriconi, “[...] Torquato encarava como a possibilidade de uma tomada de poder sobre o cinema por qualquer pessoa, como que prenunciando o mundo de hoje, em que cada smartphone é uma câmera na mão.” (MORICONI, 2017, p.30). A suposta briga 156 com os baianos e com os integrantes do Cinema Novo o fez se aproximar ainda mais dos cineastas marginais,

155 Paulo José Cunha, primo do poeta, menciona em Torquato Neto – Todas as horas do fim, que Torquato adorava Glauber e o Cinema Novo, mas passa a criticá-los politicamente ao mesmo tempo em que se apaixona pelo Super 8, bitola a que quase ninguém dava importância. 156 A ida de Torquato para Londres no fim de 68, juntamente com Oiticica, desencadeou seu afastamento do grupo baiano. Gil acredita que foi um distanciamento natural, típico entre aqueles que não mais se veem cotidianamente, ao passo que Caetano sempre negou uma possível briga entre eles. No recente documentário sobre a trajetória do poeta, Gil volta a citar essa questão dizendo que o afastamento dos baianos em relação a Torquato foi de fato natural. O exílio teria ampliado a distância entre eles e o suicídio 302

que apesar das desventuras, sobretudo financeiras, levou às telas diversidade, de modo bastante transgressor, com doses de experimentação e ousadia, pois, de modo contracultural, esse cinema à margem e marginalizado continha referências várias, que iniciavam no underground nova-iorquino, como o Flaming creatures, de Jack Smith, passavam pelos filmes de Godard e pelas chanchadas brasileiras e culminava com a referência máxima de Zé do Caixão, que como também observa Moriconi, constitui-se de “um cinema ‘sujo’, em contraste com o glamour coloridíssimo do cinemão industrial. No lugar do pop, o trash. No lugar do trash, o terceiro mundo. No lugar do terceiro mundo, a paródia. O avesso do avesso do avesso.” (MORICONI, 2017, p.30). Antes disso, no entanto, aos 16 anos, o poeta trabalhou como assistente informal em Barravento,157 filme de Glauber, que Torquato conhecera nos cineclubes de Salvador, fato que lhe orgulhava, como aponta seu biógrafo: “Certa vez, durante uma entrevista a um jornal de Teresina, ele disse com orgulho que, efetivamente, chegou a atuar como diretor de cena na sequência dos tambores, ‘ajudando Glauber’.” (VAZ, 2013, p.64). Também atuou com Duda Machado158 em Moleques de

impossibilitou a retomada da amizade que havia antes. Além disso, Gil observa que a postura de Torquato era mais contracultural que a dele próprio e que a de Caetano era mais midiática, sobretudo após a volta do exílio, e nisso, de certa forma, eles discordavam. 157 Barravento, originalmente, não foi uma ideia de Glauber. O projeto inicial era de Luis Paulino dos Santos, que em função de uma briga abandonou o projeto e Glauber o assumiu. No entanto, o ícone do Cinema Novo alterou consideravelmente o roteiro inicial. Segundo Luiz Carlos Maciel, em Geração em transe: memórias do tempo do Tropicalismo, mesmo de modo conturbado, Barravento foi o primeiro longa de Glauber, que “é um filme bonito e forte, embora estruturalmente instável, meio desequilibrado. A história avança meio aos trancos e barrancos, entre muitas cenas de candomblé. Glauber havia filmado tantas cenas de candomblé que, na época, Chico de Assis espalhava a piada que, na estreia do filme, Glauber apareceu na cabine de projeção oferecendo ao projecionista mais uma lata inteira de filme só com novas cenas de candomblé.” (MACIEL, 1996, p.89-90). Ademais, segundo Caetano, em Verdade tropical, o início de Terra em transe se dá ao som do mesmo cântico afro que consta em Barravento. 158 A família de Torquato era amiga de Luiz Machado, teresinense que firmara residência em Salvador, que se tornaria pai do poeta Duda Machado. Quando se mudou para Salvador, Torquato e Duda se conheceram e se tornaram grandes amigos. 303

rua, curta metragem em 16 milímetros de Alvinho Guimarães,159 com trilha de Caetano Veloso, e em 1964, já morando no Rio de Janeiro, foi figurante de Canalha em crise, filme de Miguel Borges, cineasta piauiense, estrelado por Joffre Soares e Tereza Rachel, em que Torquato aparece no bar Café Lamas como um típico malandro jogando sinuca e com um cigarro entre os dedos. Segundo seu biógrafo, o poeta “[...] acompanhou a produção e finalização do filme, que seria apreendido pela censura e liberado dois anos mais tarde, com vários cortes. Cortes de palavras e imagens. Censura.” (VAZ, 2013, p.105). Nessa época, o poeta também atuou no teatro como ator na peça Gracias, Señor, na montagem carioca dirigida por Zé Celso no Teatro Tereza Rachel, que tinha como assistente o irmão mais jovem de Zé, Luís Antônio Martinez Corrêa, que foi, anos depois, brutalmente assassinado num crime homofóbico. Mais tarde, em 1971, participou de Nosferato no Brasil, seu trabalho fílmico mais conhecido; também esteve em Adão e Eva do paraíso ao consumo, obra com direção coletiva entre os amigos do poeta, Noronha, Edmar Oliveira, Carlos Galvão e Arnaldo, e no curta Helô e Dirce, de Luiz Otávio Pimentel. No ano seguinte, atuou e dirigiu o filme O terror da Vermelha,160 rodado em Teresina, filme que não chegou a montar e tampouco vê-lo finalizado, o que o torna, de certa forma, uma produção inacabada, montada postumamente em 1973 por Carlos Galvão, amparado no poema-roteiro deixado pelo poeta. Ademais, também participou de A múmia volta a atacar, de Ivan Cardoso, película que não chegou a ser concluída porque como o diretor afirma, jocosamente, diversos motivos “[...] impediram a finalização das filmagens bem como o alto custo das bandagens...”. (CARDOSO; LUCCHETTI, 1990, p.366). Basicamente, o desenvolvimento dos filmes em super-8 se relaciona com a Eastman Kodak Company, empresa dedicada à comercialização de equipamentos e apetrechos fotográficos, pois o lançamento desse produto em 1965, como uma evolução da bitola de 8mm, criada para fins domésticos e com cartuchos que possibilitavam apenas 3 minutos de duração, alterou a lógica de filmagem, produção e exibição dos filmes de baixo orçamento por ser bastante distinta da empregada em outros formatos superiores em tamanho e em valores. Dessa maneira, o alto custo para se providenciar cópias dos filmes

159 A canção Deus vos salve a casa santa, musicada por Caetano Veloso, foi dedicada ao amigo Alvinho. 160 Vermelha é um bairro da capital piauiense. 304

superoitistas tornava a obra detentora apenas dos rolos originais, que eram montados manualmente se fazendo cortes e emendas nas películas, logo, a exibição tornava-se restrita e inviável para um hipotético circuito de distribuição e exibição. Em outras palavras, o cinema superoitista era work in progress, assim como é a totalidade da produção de Torquato, e figura como uma espécie de guerrilha cultural em razão das dificuldades e precariedades envolvidas, logo, o material cinematográfico que abarca Torquato, atuando ou dirigindo, apresenta baixa qualidade técnica e se perdeu ou restou sem condições de restauro. 161 Adão e Eva do paraíso ao consumo, um dos filmes perdidos do universo torquatiano, era um curta-metragem de aproximadamente 10 minutos de duração que aludia aos personagens bíblicos, pais da

161 Muito em função disso, no documentário Torquato Neto – Todas as horas do fim, os diretores optaram por lançar um efeito de envelhecimento nas imagens coletadas em depoimentos atuais para que não destoassem das antigas obtidas em gravações em super-8. Além disso, em decorrência da escassez de registros com imagens do poeta, a história de vida de Torquato é contada a partir de filmes produzidos na época em que ele atuou culturalmente acrescidos de alguns posteriores, mas de temática contracultural. Assim, vários filmes foram utilizados na montagem: O terror da Vermelha (1972) de Torquato Neto; Nosferato no Brasil (1971) de Ivan Cardoso; O padre e as moças (1972) de Ivan Cardoso; O bandido da luz vermelha (1968) de Rogério Sganzerla; Vidas secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na terra do sol (1964) de Glauber Rocha; Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Andrade; Helô e Dirce (1971) de Luiz Otávio Pimentel; Apocalipopótese (1968) de Raymundo Amado; Infinita Tropicália (1986) de Adilson Ruiz; Sentença de Deus (1972) de Ivan Cardoso; A múmia volta a atacar (1972) de Ivan Cardoso; Hitler IIIº mundo (1968) de José Agrippino de Paula; Todo dia é dia D (1978) de Henrique Faulhaber e Sérgio Pantoja; Terra em transe (1967) de Glauber Rocha; Meteorango kid (1970) de André Luiz Oliveira; Jornal do sertão (1970) de Geraldo Sarno; Vitalino Lampião (1969) de Geraldo Sarno; Orgia ou o homem que deu cria (1970) de João Silvério Trevisan; Couro de gato (1961) de Joaquim Pedro de Andrade; Tabu (1982) de Júlio Bressane; Transplante de mãe (1969) de Sebastião de Souza; O demiurgo (1972) de Jorge Mautner; Fênix (1980) de Silvio Da-Rin; H.O (1979) de Ivan Cardoso; Os cafajestes (1962) de Ruy Guerra; Bang bang (1971) de Andrea Tonacci; A família do barulho (1970) de Júlio Bressane; A lira do delírio (1978) de Walter Lima Júnior; Coração materno (1973/4) de Haroldo Barradas; Miss Dora (1974) de Edmar Oliveira e A opinião pública (1966) de Arnaldo Jabor. 305

humanidade, instigados pela serpente de Gênesis, mas estabelecia o paraíso numa das coroas do rio Poti em Teresina. 162

Figura 20 − Still de Adão e Eva do paraíso ao consumo

Nesse filme, uma paródia da parábola bíblica, Adão é interpretado por Torquato e Eva é representada por Claudete Miranda Dias, professora do curso de História da Universidade Federal do Piauí, personagem que surge após Adão sentir-se só e perceber que os animais constituem família, o que faz Adão arrancar e lançar uma de suas costelas ao rio para que Eva surja das águas. De certa maneira, a narrativa se pretendia linear, numa releitura bíblica, mas não havia a figura de Deus e a sociedade de consumo era a representação diabólica

162 Coroas são as ilhas existentes nos rios Parnaíba e Poti durante a época de estiagem. Antigamente, as famílias de Teresina costumavam frequentar o local para entretenimento. 306

da trama. Passado algum tempo, Eva, como a serpente, impulsiona Adão a sair do paraíso e cruzar a margem do rio, que desembocava no comércio central de Teresina, como emblema do consumo, ao passo que o casal aparece adquirindo vestimentas na loja de roupas serpente, mas antes, como aponta Edwar Castelo Branco, em Travessuras em superoito milímetros: o cinema em liberdade de Torquato Neto, a câmera “[...] fecha no para-brisa traseiro de um fusca – um dos veículos que passam sobre a ponte naquele momento – e enfatiza um adesivo com os dizeres: ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’.” (BRANCO, 2010, p.21-2). No trecho final, o tédio no casamento, o cansaço do ritmo de trabalho e os desentendimentos conjugais aludem à vida moderna e seus dilemas, que se distanciam do paraíso bíblico, e o filme se encerra com a hodierna sentença: “toda sociedade tem o fim que merece”. Infelizmente, o que há sobre esse filme, atualmente, são os relatos das pessoas que participaram direta ou indiretamente de sua feitura e fotografias de Antônio de Noronha Filho, captadas em 1972 durante as filmagens, que pertencem a Claudete Dias, Carlos Galvão e Arnaldo Albuquerque, pois a obra foi montada postumamente e não dispunha de cópias como quase todos os filmes superoitistas dos anos 70 e acabou extraviado na mala de uma amiga do poeta numa conexão Rio-Londres, que o levaria para a capital inglesa para providenciar a sonoplastia do texto fílmico. No entanto, antes do sumiço definitivo, a obra foi exibida em 1973 em Teresina sob o prisma da audição simultânea de The dark side of the moon, álbum da banda britânica Pink Floyd, lançado no mesmo ano, como trilha sonora. 163 Em condições técnicas similares, Helô e Dirce, de Luiz Otávio Pimentel, com elenco formado pelo próprio diretor e também por Torquato, Zé Português e Paulo Suply (Paulão), faz em seu título uma referência à expressão “falou e disse”, utilizada pelos desbundados dos anos 70. Nele, dois travestis, Torquato e Zé Português, transitam pelas ruas do Rio de Janeiro até que aparecem dançando ao som de Deus e o Diabo, de Caetano, com cartazes manuais que anunciam o nome do filme, Zé Português segura o cartaz que está escrito Helô e Torquato anuncia Dirce, estratégia de uso de letreiros e cartazes que remonta ao conceito de palavra-cenário desenvolvido pelo próprio Luiz Otávio, que o autor explica no texto Para Luciano & Oscar de Lop, publicado por

163 As trilhas sonoras no cinema super-8, em geral, são ilegais em se tratando de direitos autorais, pois, normalmente, os discos eram executados em paralelo às exibições dos filmes porque a bitola não permitia a inserção de som, a captação direta de som. 307

Torquato na Geleia geral, e que o poeta iria utilizar em O terror da Vermelha: “Em 70 falei também sobre a palavra-cenário, ou seja, a palavra não como cortina da ação, mas a própria palavra transformando a ação por efeito de redundância (estocástica) ou por destruição do vivido-cena.” (PIMENTEL, 1982, p.258). Na sequência, bastante ousada para a época de feitura do filme, as personagens se beijam, depois aparecem fumando um cigarro General fazendo, numa mensagem cifrada, com que o general Médici vire fumaça. A partir daí, as travestis seguem flertando até que surge uma espécie de cafetão e as agride barbaramente instaurando um clima carregado de violência que apresenta uma crescente quando, em seguida; num contragolpe, atacam o personagem opressor e o esfaqueiam ao som de Filme de terror, de Sérgio Sampaio, nos mostrando que há dentro da folia um filme de terror/ dura um ano inteiro o filme de terror.

Figura 21 − Helô e Dirce

308

Em seguida, de modo erótico, a personagem de Torquato aparece deslizando uma faca pelo corpo de Zé Português até que o fere e também se golpeia, castração mútua, como é citado no cartaz fílmico contido na revista Navilouca, por intermédio da lâmina, da gilete, um ícone para a geração de artistas pós-tropicalistas porque é um emblema marginal, que consiste em arma entre os travestis, instrumento para macerar cocaína e também gíria para definir bissexuais, como figura em Lamber o fio da gilete: gélida gelatina gelete, de Hélio Oiticica, texto datado de 03 de fevereiro de 1972; também publicado na revista navierrática, como proferia Haroldo de Campos, posteriormente. O intrigante subtítulo fazia alusão ao medo, ao terror da época através do adjetivo gélida e gelete consistia em um neologismo de Waly Salomão, que pretendia unir a geleia, da frase de Pignatari eternizada por Torquato, e a gilete, a arma da marginalidade marginalizada. Nesse texto, Oiticica aponta como essa imagem é pertinente às artes e como ela marca a postura artística contracultural: “PER- VERSÃO da ‘sadia’ arte brasileira: thanks god! Versão perversa da ‘impossibilidade de ser neutro’ em questões estéticas: não compatível com o clima de compatibilidade de – FA-TAL − a GELETE.” (OITICICA, 1974). Além disso, com efeito, o Cinema Marginal propunha o sangue que manchava a lâmina como abjeto, desse modo, o horror, o grotesco e a fragmentação narrativa eram utilizados para prender a atenção do espectador já que em filmes comerciais, normalmente, o espectador torna-se sujeito passivo na profusão de imagens e narrativas convencionais, caso bem distinto do fragmentado Helô e Dirce de Pimentel. Do mesmo modo, O terror da Vermelha,164 exibido publicamente pela primeira vez em 2001 na mostra Marginália 70 – o experimentalismo no super-8, evento do projeto Anos 70: trajetórias do Itaú Cultural, se baseava no conceito de palavras-cenário de Luiz Otávio e no poema-roteiro vir/ver/ou vir, título composto com aliteração quase cesariana, que aparece na íntegra no início do filme, seguido pelo título

164 O título O terror da Vermelha aparece escrito com efeito de sangue escorrendo, figurando do mesmo modo que a capa de Sociedade da grã-ordem kavernista apresenta sessão das dez, disco coletivo de 1971, de autoria de Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Edy Star, que também se repetiria no design do disco Eu quero botar meu bloco na rua, de 1973, de Sérgio Sampaio. 309

e pela listagem de nomes do elenco. 165 As filmagens foram realizadas em meados de 1972, quando Torquato viaja para sua cidade natal para o último tratamento de desintoxicação no sanatório Meduna, materializando o curta que seria seu único e desejado filme, fato que ele cita em carta para Oiticica, em que fala, também, sobre a necessidade que supera o desejo, pois Torquato quis muito fazer um filme e não o viu montado, tinha ideia de lançar um livro e não o fez, fazendo com que, como sabemos, ambas as produções, livro e filme, tenham se tornado póstumas, montadas e organizadas por pessoas próximas, de modo que todo o seu trabalho, na maneira como o encontramos hoje, possui uma forma inacabada ou, ao menos, uma sensação de inacabamento que supera a ocorrência de parte de sua obra ter sido consumida pelas chamas anteriormente, ao tentar, como aponta Moriconi, “[...] eliminar sua identidade: sua condição, sua veleidade de poeta. Era o cancelamento de si. O avesso de si.” (MORICONI, 2017, p.20). Basicamente, O terror da Vermelha traduz a história de um faroesteiro que assassina os transeuntes que cruzam seu caminho pelas ruas de Teresina. O protagonista, interpretado por Edmar Oliveira,166 que, ironicamente, se tornaria psiquiatra e diretor do sanatório de Engenho de Dentro, aproxima-se de um alter ego de Torquato, um ser magro e cabeludo, e o elenco, peculiarmente, é composto de amigos e parentes do poeta, inclusive seus pais, Heli e Salomé, únicos personagens que, sintomaticamente, não morrem na narrativa fílmica, se opondo ao clássico de Bressane. Desse modo, o enredo é em parte biográfico e afetivo, pois retrata Teresina, parentes, amigos e a si mesmo, denotando não haver separação entre a estética e sua vida, práxis vital, como tampouco havia em todo o seu projeto artístico, porém, o filme não é objetivo, apenas a montagem segue, na medida do possível, a sequência estabelecida previamente no roteiro. Primeiramente, vemos o cabeludo serial killer nas margens do rio Poti desfilando sua boina e esfregando os dedos nos lábios,

165 Edmar Oliveira, Conceição Galvão, Geraldo Cabeludo, Claudete Dias, Torquato Neto, Etim, Durvalino Couto, Paulo José Cunha, Herondina, Edmilson, Carlos Galvão, Xico Ferreira, Arnaldo, Albuquerque, Heli e Saló. 166 Além disso, em parceria com o Ministério da Saúde, Edmar colaborou para a reforma psiquiátrica e o combate à perversidade do uso de terapias retrógradas, torturantes e devastadoras, postura que também possibilitou o fechamento do Meduna, avanço de saúde psíquica e de combate a abusos na esfera manicomial que se pretende retroceder no Brasil atual, almejando o retorno de manicômios e o uso de eletrochoques. 310

características que denotam algumas referências: os cabelos compridos utilizados na contracultura como gesto de manifestação política; a boina como alusão a Che Guevara, el hombre muerto, da canção Soy loco por ti, América;167 e a referência a Acossado (1960), filme de Jean-Luc Godard, em que o protagonista Michel Poiccard, interpretado por Jean- Paul Belmondo, faz o mesmo gesto com os dedos, que por sua vez constitui menção ao personagem de Humphrey Bogart, de A trágica farsa (1956), filme noir de Mark Robson. Fã, a menção indireta a Godard por parte de Torquato não seria fato inédito, pois em Cinemateca, artigo de 12 de junho de 1971 do Plug, caderno do jornal Correio da Manhã, o poeta mencionara o diretor quando registrara a participação de Glauber em Vento do leste, filme godardiano:

[...] Aconteceu que Glauber consentiu em aparecer numa sequência do filme que Godard rodava para os italianos, o badalado e inédito Vento leste. E se os Cahiers publicaram, posso contar aqui. Vem Glauber Rocha, por uma estrada poeirenta. Em primeiro plano a estrada termina numa encruzilhada onde uma adolescente espera pelo cineasta com uma câmera Arreflex nas mãos. Aproxima-se, entrega-lhe a câmera e pergunta, muito doce: ‘Para onde marcha o cinema político? Glauber recebe a oferenda e responde cantando o refrão da cantiga de Gilberto Gil e Caetano Veloso: Tudo é perigoso Tudo é divino – maravilhoso. E parte. Rodado o plano, Godard ficou curtindo ao lado de Cohn Bendit e Glauber Rocha seguiu para a África muito a fim de fazer O leão de sete cabeças. Depois foi para os arredores de

167 Soy loco por ti, América, de Gil e Capinan, durante muito tempo foi creditada erroneamente como sendo letra de autoria de Torquato. Faz homenagem a Che Guevara, líder que havia sido morto pouco antes da feitura da canção, uma espécie de rumba tropicalista: [...] Soy loco por ti de amores/El nombre del hombre muerto/Ya no se puede decirlo/Quién sabe/Antes que o dia arrebente/Antes que o dia arrebente/El nombre del hombre muerto/Antes que a definitiva noite/Se espalhe em Latinoamérica/El nombre del hombre es pueblo/El nombre del hombre es pueblo. 311

Barcelona e filmou Cabeças cortadas, com o qual desafiou a ira das esquerdas críticas francesa e italiana, seu pedestal, no festival antigamente contestatório de Veneza. (NETO, 2004, p.187-8).

No filme de 1969, o polivalente cineasta baiano surge atuando, diante de uma encruzilhada, declamando os versos de Divino maravilhoso com os braços abertos e os dedos representando o v de paz & amor, segundo os hippies, e de vitória, conforme o viés político, assim, em cena, por meio da canção, é preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte, aponta o caminho do cinema terceiro- mundista a uma personagem, que lhe indaga sobre qual seria a direção do cinema político, o acenando como sendo perigoso, mas divino e maravilhoso, poético e político. Com efeito, metaforicamente, O terror da Vermelha ocupava espaço enquanto resistência, mas, literalmente, o ambiente geográfico ocupado era a cidade de Teresina, preenchimento do lugar afetivo, por mais conservador e provinciano que o fosse, afinal, Torquato tinha um amor mal correspondido com a capital piauiense por amá-la com a certeza de que o sentimento nobre não era recíproco. Interiorana, a população o achava um marginal, e, assim, a série de assassinatos do filme apresenta-se como uma forma de rompimento com a retrógrada sociedade teresinense. No decorrer da trama, o serial killer percorre a cidade em busca de vítimas que, posteriormente, ataca e estrangula. Assim, há a descontinuidade entre uma cena e outra e entre um assassinato e outro de modo que a narrativa acontece por meio de esquetes separadas e em cada parte há um título; são pequenas narrativas dentro da narrativa principal ou histórias dentro de um enredo mais amplo com personagens do âmbito particular do poeta num esforço de inventário afetivo. O próprio Torquato é esganado numa praça principal enquanto lê um jornal, dado que também pode ser entendido como uma possível referência a Acossado, já que Godard também figura em uma cena do famoso longa-metragem da nouvelle vague, interpretando um transeunte que compra um jornal, identifica o fugitivo Michel Poiccard estampado na capa do periódico, ao avistar a personagem na rua à espera da companheira Patrícia Franchini, interpretada por Jean Seberg, e avisa a polícia como numa evidência ao espectador de que é o diretor quem traça o destino final da personagem. Ademais, no fim, numa estrutura 312

temporal antiteleológica, uma vítima é estrangulada na saída do Hospital Getúlio Vargas,168 mesma unidade hospitalar em que o poeta nasce, e são mostradas imagens da cidade, a musa tórrida, até a nova exibição do poema-roteiro e dos caracteres da trilha sonora, que foi escolhida livremente por Galvão, em função de o poeta não ter feito nenhuma indicação a seu respeito, assim, a trilha foi composta basicamente por clássicos de rock. No entanto, outra trilha, com letras de Torquato, foi selecionada pela viúva Ana Maria em 2001 e exibida na mostra Marginália 70: o experimentalismo no super-8 tornando O terror da Vermelha um filme com duas trilhas distintas e cuja montagem faz o esforço de tentar fechar a obra, promover um encadeamento coerente, mas que, entretanto, não cessa a sensação de incompletude por parte do espectador, o que o torna um típico filme marginal, pois o Cinema Marginal é antiteleológico por natureza, resultando num cinema enigmático que é “[...] afinado ao alegorismo moderno e sua recusa de síntese” (XAVIER, 2012, p.36), caráter que, muitas vezes, ignora o processo narrativo e a composição de início, meio e fim, isto é, “a antiteleologia se internaliza e se torna princípio formal” (XAVIER, 2012, p.37), que se dá numa perspectiva política dentro de um cinema experimental que, entre outras coisas, se choca ou conflita com nuances do mercado formal. Em um texto sem título, que consta em Os últimos dias de paupéria, Torquato observa que produziu o material fílmico com jovens conterrâneos, que desenvolviam o jornal Gramma, e que, a princípio, o filme se chamaria O terror da Vermelha e ele se constituía por meio de um material que percorria “[...] um fio de acontecimento, matéria de memória de uma só pessoa em equipe percorrendo roteiro de lugares, quintais, paisagens [...].” (NETO, 1982, p.339). Assim sendo, o roteiro

168 Torquato nasceu a fórceps e com um ferimento na cabeça causado pelo parto não convencional. Segundo seu biógrafo, o poeta veio ao mundo ferido e traumatizado. O poema Motivo, escrito na Bahia em 09 de novembro de 1961, no aniversário de 17 anos, menciona o modo violento com que o poeta veio ao mundo: “[...] Parto fórceps./ Minha mãe quase que morre./ Quase que eu morro./ Médicoburro!/ ______Como foi que César nasceu?/______Com uma cesariana?/E eu?/ Parto fórceps... a ferros.../ (Seriam os ferros da escravidão eterna?/ Não quero ser romântico, não)/ Acho que vou ser existencialista./ Mas aí serei escravo da vida.../ ...que pena!” (NETO, 2012, p.48).

313

escrito em versos se assemelha ao dispositivo delirante de Hélio Oiticica, baseado em organização e delírio:

Oiticica monta um dispositivo delirante constituído de duas séries, a da produção artística e a do discurso; em ambas ressalta a coerência. Interessante é o efeito de logicidade do discurso que se monta à medida que Hélio vai acrescentando dados, informações, teorias, discussões. Discurso delirante, efeito dessa logicidade, nele o programa avança negando e incorporando. Em Oiticica operam deslocamentos, subordinando-se as rupturas à continuidade: um ‘programa in progress’ no qual se manifesta, paulatinamente, o sentido das efetuações; das diversas posições do experimental. Todo o trajeto é um único desenvolvimento. (FAVARETTO, 2000, p.18).

Inclusive, o processo de criação de Torquato é bastante similar ao de Oiticica quando se pensa que o artista plástico definia suas próprias regras de criação, de referências e de crítica e unia paixão e invenção em suas criações. Aliás, “a invenção, sua Beatriz, perseguida no evolver de uma experimentação que não se fixa, desdobra a tensão de conceitual e sensível, de construção e desconstrução, de organização e delírio” (FAVARETTO, 2000, p.16), como citado por Celso Favaretto, em A invenção de Hélio Oiticica, e, dessa maneira, o roteiro em forma de poema se configura como o cerne, a alma desse filme, que como aponta Moriconi, torna-se “raiz-antena, raiz antenada. Bonito documento poético desse apego à província natal, contraface do sonho-vivência elétrica da metrópole [...].” (MORICONI, 2017, p.25):

VIR VER OU VIR

a coroa do rio poti em Teresina lá no piauí. areia palmeiras de babaçu e céu e água e muito longe, depois, um caso de amor um casal uns e outros. 314

procuro para todos os lados – localizo e reconheço, meu chicote na mão e os outros: a hora da novela o terror da vermelha o problema sem solução a quadratura do círculo o demônio a águia o número do mistério dos elementos os quintais da minha terra é a minha vida; o faroesteiro da cidade verde

estás doido então? (sousândrade). ela me vê e corre, praça joão luís ferreira. esfaqueado num jardim estudante encontrado morto

ando pelas ruas tudo de repente é novo para mim. a grama. o meu caso de amor, que persigo, esses meninos me matam na praça do liceu. conversa com gilberto Gil e recomeço a vir ver ou aqui onde herondina faz o show na estação da estrada de ferro teresina – são luís um dia de amanhã ali onde etim é sangrado

TRISTERESINA

uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques eis tudo. observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto saio, uma vez ferido de morte e me salvei o primeiro filme – todos cantam sua terra também vou cantar a minha

VIAGEM/LÍNGUA/VIALINGUAGEM

um documento secreto enquanto a feiticeira não me vê e eu pareço um louco pela rua e um dia eu encontrei um cara muito legal que eu me amarrei e nós ficamos muito amigos eu o via o dia inteiro e a poucos conheci tão bem. 315

VER

e deu-se que um dia o matei, por merecimento. sou um homem desesperado andando à margem do rio parnaíba.

BOIJARDIM DA NOITE

este jardim é guardado pelo barão. um comercial da pitu, hommage, à saúde de luiz otávio. o médico e o monstro. hospital getúlio vargas. morte no jardim. paulo josé, meu primo, estudante de comunicação em brasília, morre segurando bravamente seu rolling stone da semana

sol a pino e conceição

VIR correndo sol a pino pela avenida

TERESINA

zona tórrida musa advir

uma ponta de filme – calças amarelas quarto número seis sete cidades (NETO, 1982, p.345-6).

Inegavelmente, o roteiro apresenta uma narrativa fragmentária e errática, a partir da cartografia de Teresina sob o prisma da desterritorialização do poeta, que nasce na cidade verde, codinome teresinense criado por Coelho Neto, mas habitara outras capitais, numa tentativa de restaurar laços com a cidade natal, zona tórrida musa advir.169 Além disso, o poeta elenca uma série de referências como, por exemplo, a citação de Sete Cidades, Parque Nacional no Piauí, com construções rochosas e pinturas rupestres; a menção à Pitu, empresa

169 Construto amparado no verso Musa da zona-tórrida, citado em O guesa, de Sousândrade. 316

pernambucana produtora de cachaça; o uso de estás doido então?, referência a Sousândrade, poeta maranhense esquecido por décadas e autor do poema épico O Guesa, que alude a um índio andino que migra para Nova York para fugir do sacrifício; seria oferecido aos deuses, e se ambienta em Wall Street, menção que talvez se deva ao fato de que ao voltar para São Luís no fim da vida o poeta passou a ser considerado louco e Torquato era um admirador da loucura. No poema-roteiro há outras citações literárias como Todos cantam sua terra/ também vou cantar a minha, que remete aos versos de Casimiro de Abreu, pertencente ao poema Minha terra de As primaveras, único livro publicado em vida do poeta que morreria de tuberculose no Rio de Janeiro com apenas 23 anos, e a citação a O médico e o monstro (1886), livro de Robert Louis Stevenson. Da mesma forma, em O terror da Vermelha, o serial killer nos remete ao vampiro de Nosferato no Brasil, gravado no ano anterior, em função dos dois protagonistas perambularem a cidade-cenário em busca de suas vítimas, restando distinta apenas a ambientação, que se trata do Rio de Janeiro no caso do filme de Ivan Cardoso. Ademais, nos dois filmes, o roteiro se constitui em uma sequência de pequenas narrativas que apresenta um anti-herói como protagonista, o vampiro e o serial killer, aterrorizando suas vítimas citadinas, dado enfatizado por Moriconi quando aponta que

o vampiro, a múmia, são mortos-vivos misóginos, são as figuras que obcecam Torquato nesse período. Seu vampiro (em Nosferato) e seu serial killer (em O terror) percorrem como autômatos cidades sem fim. Ele vive e encena a experiência liminar do morto-vivo. É como se o cinema o desencarnasse. (MORICONI, 2017, p.31-2).170

170 Assim como os dentes da figura vampírica figuram em Cogito, o vampiro já aparecia em Poema de natal (Com o perdão de C.D.A), no fragmento 14 do poema de 1962, contido em Juvenílias:

[...] montava na besta (besta fera que nunca esquecia), e saía assim, ao ermo pasto das desgraças. e que allah nos visse! o vampiro do dia cavalgava em sereno corcel e tudo mais, 317

Os vampiros, assim como os poetas, desafiam o tempo e a arte desde sempre, mas, sobretudo no século XX, quando são abraçados pelo imaginário coletivo e pela arte pop dessa era. Surgiram nos países eslavos e sua imagem se consolidou no século XVII em toda a Europa, no entanto, segundo Martha Argel e Humberto Moura Neto, em O vampiro antes de Drácula,

quando surgiu, o vampiro não era um fantasma ou uma assombração. Ele era real, e servia a um propósito: explicar fatos reais para os quais a ciência, ou a falta dela, não tinha uma explicação convencional. O mito do vampiro pode ter nascido da conjunção de dois componentes. Por um lado, a necessidade de explicar o alastramento de certas epidemias numa época e lugar onde não se conheciam os mecanismos de contágio; por outro, o desconhecimento do processo de decomposição cadavérica. (ARGEL; NETO, 2008, p.19-20).

a besta – o caminho o pasto – a vida o vampiro – a sombra, e tudo o mais se transformava em negras noites com esquinas e com guardas caminhando pelos becos.

(NETO, 2012, p.88-9).

Que, por sua vez, como o próprio título evidencia, trata-se de uma alusão ao poeta itabirano e a figura da pedra no meio do caminho: faço que chuto as pedras do caminho mas sei que elas persistem ou se adiantam e vão me esperar na frente para que eu novamente faça que as chuto. [...]

(NETO, 2012, p.76-7).

318

Não à toa, a temática vampiresca se alastrou pelas artes não sendo diferente com a imagem de vampiro tropicalista atrelada a Torquato, o vampiro dos anos 70, praieiro e solar, que se constitui de modo tão potente e emblemático que nunca mais se desligou do poeta, como reflete Demétrio: “talvez porque assim se produza a fonte das reverberações de outras imagens que constituíram a mística cult que envolve o nome do poeta, principalmente a imagem drummondiana do anjo torto e, por derivação direta, a eleição do marginal como herói (seguindo o estandarte de Hélio Oiticica)”. (DEMÉTRIO, 2004, p.01). Como se vê, o vampiro é um devir marginal que atua por contágio, a imagem, oriunda da literatura e do cinema, representava o poeta na era contracultural com um corpo vampírico particular, artístico, mas também coletivo em que, como observa Cámara, “o vampiro-artista podia ser algoz e vítima, enquanto o inimigo fosse nebuloso, difuso entre uma indústria cultural de esquerda que se afiançava, e a censura e a repressão levadas adiante pela ditadura militar brasileira.” (CÁMARA, 2014, p.136). Todavia, em Torquato Neto, a mítica vampírica é bem mais que uma metáfora do medo porque o vampiro representa, também, de certa forma, um modo de resistência já que essa figura assombrosa caracteriza-se como uma vontade, um desejo de existir e resistir mesmo frente à subvida, ao submundo ditatorial, pois o vampiro-poeta é, de algum modo, atormentado pela aura do entorno, mas insiste na produção underground, em que em meio à vontade de escapar do martírio, da vigilância e do terror paralisante da censura, a produção do poeta

[...] constrói-se em fragmentos, cujos significados remetem ao mundo de dentro e ao mundo de fora, com toda a gama de significações possíveis para o dentro – do país e do sujeito, e para o fora – do sujeito e do Estado centralizado e autoritário. Os fragmentos lidam com o dentro e o fora da cultura, da política, especialmente da política subterrânea, pondo em relevo as subjetividades em disputa. Não é sem significados a forte presença da palavra medo nos escritos do poeta, sobretudo na proximidade de trechos cujas entrelinhas remetem à onipresença da censura – ora proibindo, ora liberando. A censura é a ausência mais presente de todos os seus textos e, particularmente, da correspondência com os amigos. O medo de Torquato exponencia a 319

censura tentacular, que é vista como alcançando todas as instâncias do social – a vida pessoal, as roupas, os cabelos, as artes, os escritos, o cinema. Torquato relembra de maneira infatigável a necessidade de construir e ocupar brechas, de ampliar espaços, de experimentar novos arranjos e táticas [...]. (QUEIROZ, 2005, p.33).

Ademais, em Nosferato no Brasil, em que o vampiro europeu é devorado antropofagicamente e surge aclimatado ao país, especialmente ao verão carioca, são lançadas técnicas vampirescas de ocupação do espaço e, como aponta Demétrio, “dessa maneira é reforçado um aspecto singular da imagem do vampiro enquanto símbolo: Torquato Neto se torna um morto-vivo no sentido de que paira sobre sua obra o signo da incompletude produzida pela iminência dos inéditos.” (DEMÉTRIO, 2004, p.03). O filme marginal de Ivan, assim como Nosferatu171 de Murnau, é também um filme mudo e superoitista, o que caracteriza baixo custo de produção e maior experimentalismo, e que também se constitui a partir de uma forma artística liberta de amarras, pois, como considera o diretor, “[...] o Super 8 era um veículo de libertação. Não teria nem conhecimento, nem grana, para fazer cinema de outra forma.” (CARDOSO, 2008, p.74-5). Como um tropeço, um tropo tropicalista, a obra foi gravada com uma câmera Yashica doméstica ao longo de 10 dias em outubro de 1971, resultando em planos curtos e de clichês de filmes de vampiro, filmados em diferentes ângulos e com uma linguagem similar a empregada no cinema mudo convencional. Misto de terror e comédia, foi captado à luz do dia, por limitações técnicas e financeiras, trazendo a advertência onde se vê dia, veja-se noite, inspirada em um poema de Affonso Ávila, que dizia onde se vê isso, veja-se aquilo, demonstrando a ligação referencial de Ivan com a Poesia Concreta, oriunda da série que começou a produzir a partir dos anos 70,

171 Drácula, de Stoker, popularizou o termo Nosferatu que foi “[...] copiado de um artigo de 1885, em que a inglesa Emily Gerard afirmava ser esse o nome dado ao vampiro na Romênia. No entanto, a palavra não existia em romeno (nem em qualquer outra língua conhecida) e certamente resultou de uma transcrição mal feita de alguma outra coisa que Gerard ouviu enquanto estava na Transilvânia. De qualquer modo, a palavra ‘pegou’, e, hoje em dia, muita gente acredita que Nosferatu é um nome tradicional e folclórico para os mortos- vivos.” (ARGEL; NETO, 2008, p.303). 320

as Quotidianas Kodaks, título extraído de um conjunto de crônicas que o poeta simbolista Pedro Kilkerry, redescoberto e publicado por Augusto de Campos, em ReVisão de Kilkerry, escrevia em jornais da Bahia.

Figura 22 − Nosferato no Brasil

Nosferato no Brasil era um legítimo representante do terrir, termo cunhado por Haroldo de Campos, que denominaria esse gênero híbrido em que por meio de colagens mesclam-se elementos do terror, 321

clássicos da literatura e do cinema mundial, humor, mas também erotismo, cafonice kitsch e estética grotesca inspirada, sobretudo, em Zé do Caixão ou Coffin Joe, referência máxima, que, como aponta Pignatari, com uma máscara do terror, “[...] carnavaliza a própria paixão terrorífica, que diz terroriso, mais do que terrir.” (PIGNATARI, 2008, p.15). Em função disso, Haroldo de Campos define o filme de Cardoso no ensaio Nosferato, publicado no jornal Correio da Manhã, como “[...] uma festa antropofágica de linguagem. Que deixa a marca: o dente do vampiro (de matéria plástica) na jugular esclerosada do cinema sério.” (CAMPOS, 1990, p.38) e Mario Cámara estabelece a personagem principal como um “[...] vampiro tropical, que pasea su erotismo por las playas de Copacabana y que no inspira terror en la platea, sino que construye en ella nuevos enlaces comunitarios y afectivos. Desde esa nueva platea, marginal e inoperante, se pueden leer, como lo hace Haroldo, las sobredeterminaciones culturales que carga sobre sí la figura del vampiro [...].” (CÁMARA, 2011, p.29). Numa transfusão de sangue criativo, o vampiro europeu é contaminado pela tropicalidade carioca e promove contaminações vampíricas a cada contato com uma nova vítima, que no cartaz fílmico é representada pela jornalista Scarlet Moon de Chevalier, e faz com que o vampiro adquira uma iconografia pop através de outra tonalidade da personagem clássica. Assim, a logomarca torquatiana, de Nosferato vampirizado, segundo Décio Pignatari, é condição refletida na canção em parceria com Caetano Veloso, Ai de mim, Copacabana, dos versos Você olha nos meus olhos e não vê nada/ é assim mesmo/ que eu quero ser olhado,172 numa relação que evoca a fala de Stephen Dedalus do Ulisses joyceano, que o filósofo Georges Didi-Huberman retoma em O que vemos, o que nos olha, ao considerar que “o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha.” (DIDI- HUBERMAN, 2010, p.29). A imagem vampírica de Torquato se amplia através de seus escritos jornalísticos, pois o poeta cita os vampiros em sua coluna encartada no jornal Última Hora, nos anos 71 e 72 e, assim, em Mais conversa fiada, artigo de 2 de novembro de 1971, Torquato escreve: “[...] Eu me confesso e digo, antes e depois: pelo sinal da Santa Cruz,

172 Os versos foram inspirados em For no one, do álbum Revolver (1966) dos Beatles, canção gravada por Caetano Veloso no disco Qualquer coisa, de 1975: [...] And in her eyes you see nothing /No sign of love behind the tears/Cried for no one/ A love that should have lasted years. 322

livrai-nos Deus, nosso senhor, dos nossos inimigos. E Vergara me responde: mas é preciso não fazer confusão. Ivan Cardoso me anima com seu filme de vampiro, logo a mim, vidrado em vampiros [...]” (NETO, 2004, p.287).173 O tema se repete em Literato cantabile, artigo de 16 de novembro de 1971, onde o poeta declara: “[...] Eu, pessoalmente, acredito em vampiros. O beijo frio, os dentes quentes, um gosto de mel.” (NETO, 2004, p.306). Além disso, há várias citações ao filme de Ivan Cardoso em seus artigos jornalísticos, como em Por dentro e por fora, de 25 de setembro de 1971, em que o poeta avisa aos leitores: “[...] Ivan Cardoso estará concluindo, este fim de semana, as filmagens de Nosferato no Brasil, o superquente superoito incrementado na base do vampiro muito louco.” (NETO, 2004, p.241) e também pelo poema homenagem nosferatu: nós/torquato de Haroldo de Campos, referência que evidencia, principalmente, “[...] la potencia creativa y el potencial destructivo.” (CÁMARA, 2011, p.18) presente no complexo Torquato. Nosferatu: nós/torquato, poema homenagem escrito por Haroldo em 1974, publicado na segunda edição de Os últimos dias de paupéria, “[...] traduz com maestria a fusão quase total de sujeito- objeto, reivindicada pelo poeta, na invenção do epíteto 'Nostorquato'” (ANDRADE, 2002, p.110) e a visualidade é um importante fator a ser observado no poema haroldiano porque ao formar uma cruz, objeto utilizado para imobilizar vampiros, segundo a lenda, remete a uma possível crucificação, no entanto, ainda há a possibilidade de aludir a um dente canino e também de formar uma estaca, artefato empregado para assassinar um morto-vivo vampirado.

173 Torquato se refere ao artista plástico Carlos Vergara. 323

Figura 23 − Nosferatu: nós/torquato

A visualidade em forma de estaca propõe ao menos três segmentações, visuais e conceituais, a repetição do vocábulo putresco, pútrido, por três vezes, que denota a ênfase em uma origem rasa; uma segunda parte onde há as referências ao tema do poema, o vampiro Torquato, como já nos diz o título, e o último trecho que enfatiza a morte por asfixia representada pelo horresco referens, horrível referente. Assim, o poema perpassa a trajetória do vampiro, o nascimento quimérico, a vivência vampírica e trevosa e o fim trágico asfixiante simulado pela exclusão de uma letra a cada verso do vocábulo resco, que pode ser oriundo de putresco e/ou também de horresco, pútrido e 324

horrível, e denota a asfixia do vampiro, perpassando o desenvolvimento do vampiro-poeta do início de sua trajetória até o fim funesto próprio de um “[...] vampiro condenado e marginalizado, sem espaço para a sua existência.” (CÁMARA, 2014, p.134) em que o modo como findaria não seria aleatório, como apontam Argel e Neto, porque

até o modo tradicional de despachar o vampiro, trespassando-o com uma estaca, tem base científica. A perfuração é a forma mais rápida de reverter ao volume normal um corpo inchado por gases. Ao ser estaqueado, o vampiro pode gemer ou gritar, pois a pressão da estaca no peito força o gás pela glote, que manifesta a ‘queixa’ do morto- vivo. O impulso de tentar explicar a qualquer custo fenômenos inexplicáveis gerou seres fantásticos nas mais diversas sociedades ao redor do mundo. Por exemplo: em muitas culturas, aparecem entes sobrenaturais (como o boto, na Amazônia, e o trauco, na ilha de Chiloé, no Chile) que atacam e engravidam donzelas inocentes, saída bastante conveniente para minimizar os efeitos embaraçosos de uma situação irrefutável. (ARGEL; NETO, 2008, p.20-1).174

A crença de que os mortos podem voltar para aterrorizar os vivos atravessa os tempos por via de crendices científicas e mitos. No entanto, em todas essas narrativas, os fantasmas carregam as más intenções sempre, inevitavelmente. A partir do século XIX, Drácula, imortalizado por Bram Stoker, passou a ser uma das principais figuras desse imaginário, perpetuado em subsequentes edições do romance homônimo, que inspirou muitos cineastas, posteriormente. Para o público, a figura do vampiro é basicamente aquela que suga à noite o sangue de quem dorme e pode provocar-lhe a morte, imagem cultivada pelas artes que, invariavelmente, aproximam o público dessa personagem, que, acredita-se, não tolera a cruz, o alho e a luz diurna e permanece ao longo do dia em seu caixão ou caixa de terra onde dorme de olhos abertos em sua condição de morto-vivo, sempre pálido, com

174 Em A rua, Torquato apresenta essa temática a partir da personagem Luzia: [...] ê, minha rua, meu povo/ê, gente que mal nasceu/das Dores que morreu cedo/Luzia que se perdeu. 325

caninos salientes e pontudos, lábios bem vermelhos e unhas compridas, características que nos remetem às distintas lendas existentes em torno dessa figura mítica que muito se delineia, certamente, a partir da imagem do romance de 1897, que narra a história do conde húngaro175 centenário, que parte dos Cárpatos para a Inglaterra, em busca de sangue novo. Invariavelmente, o ser vampirado leva consigo uma enorme popularidade mundial porque atualmente “[...] seria impossível tentar eliminar do seio da cultura globalizada o morto-vivo tomador de sangue. Já não resta dúvida de que, finalmente o vampiro atingiu a imortalidade.” (ARGEL; NETO, 2008, p.308). Como aponta Claude Lecouteux, em História dos vampiros: autópsia de um mito, a lista de autores que escreveram histórias de vampiros é vasta, assim como a de cineastas que abordaram o mito.176 Além do clássico Drácula, pode-se referir também as suas consequentes adaptações fílmicas, sobretudo a de

175 No momento de escritura do livro, a Transilvânia pertencia ao Império Austro-Húngaro, logo, o conde não seria romeno. 176 Segundo Lecouteux, muitos nomes envolveram-se pelas histórias de vampiros: “[...] Prosper Mérimée (1827), com La guzla, Baudelaire, Byron, Coleridge, Felix Dahn, Alexandre Dumas, Hans Heinz Ewers e Théophile Gautier, para citar apenas alguns. Quanto à história cinematográfica do vampiro, esta começa em 1913 com The Vampire [O Vampiro], de Robert Vignola, e recebe seus títulos de nobreza com Nosferatu, uma sinfonia do horror, de W. Murnau (1922), no qual a vítima prende o monstro até o raiar do dia, que o mata. De 1930 a 1940, nada menos que sete filmes abordaram o assunto, quase um por ano! E, a partir de 1943, houve um fluxo contínuo; todos nós pudemos ver, pelo menos uma vez desde 1958, Christopher Lee no papel de vampiro. Tratado com seriedade ou de modo humorístico, como fez Roman Polanski em A dança dos vampiros (1967), o tema teve sucesso fenomenal – 58 filmes entre 1913 e 1970 −, o que prova que se trata de um assunto que preocupa os homens, aquele grande questionamento: o que acontece depois da morte? Desde 1994, todos podem conseguir o videocassete de Drácula (1992), de Francis Ford Coppola, e estremecer confortavelmente em casa, e na quinta-feira, 3 de dezembro de 1998, o canal de televisão France 3 exibia Entrevista com o vampiro (1994), de Neil Jordan, filme inspirado no romance gótico homônimo de Anne Rice (1976). O filão cinematográfico parece inesgotável e vem produzindo o que há de melhor e de pior. Assim, foi possível ver o vampiro integrado ao faroeste em 1965 – Billy the Kid contra Drácula – e à história romana – Hércules e os vampiros (1962) e Maciste contra o vampiro (1961).” (LECOUTEUX, 2005, p.11-2).

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Nosferatu, uma sinfonia de horror (1922) de Friedrich Wilhelm Murnau, que adaptou livremente a obra de Stoker por não possuir os direitos do livro; Drácula (1931) de Tod Browning; Nosferatu, o vampiro da noite (1979) de Werner Herzog, e Drácula (1992) de Francis Ford Coppola. Neste contexto, as representações maléficas figuravam como uma forma de enfrentar e afrontar as sociedades puritanas do século XIX e XX e enfocar uma busca, despudorada e amoral, pelo prazer. Sem embargo, a figura do vampiro sempre foi mais presente na Europa, as aparições só seriam mais corriqueiras no Brasil na segunda metade do século XX, pois

em língua portuguesa, durante o século XIX, o vampiro aparece apenas em breves menções. O brasileiro João Cardoso de Menezes e Souza falou de ‘sanguessugas’ e ‘morcegos hematófagos’ numa nota do romance versificado ‘Octávio e Branca’ (1849), que constitui a primeira menção a vampiros na literatura brasileira. Em 1897, o português Gomes Leal trouxe à luz ‘O estrangeiro vampiro’, uma metáfora do neocolonialismo europeu onde uma vampira dilapida a fortuna de um nobre decadente, sugando-lhe também o sangue. [...] Embora Byron tenha influenciado uma fase do Romantismo brasileiro, caracterizado por poetas como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, afirmou Cid Vale Ferreira que ‘o vampirismo sempre se manteve à margem da história da poesia nacional, pontuando aparições breves e incipientes’. Ele aparece como metáfora ou sob a forma de mulheres fatais. Por exemplo, no poema ‘Anjos da meia-noite’ (em Espumas flutuantes, 1870), o poeta Castro Alves referiu-se a Fabíola como ‘filha da noite’ e ‘loira fidalga infiel dos infernais castelos!’. O vampiro só viria mesmo a fincar pé em solo brasileiro através do cinema, quando o século XX já ia bastante adiantado. (ARGEL; NETO, 2008, p.49).177

177 Como também apontam Argel e Neto, “a conexão entre o vampiro e morcego já estava presente desde Varney, na década de 1840, mas Stoker foi o primeiro a transformar seu desmorto em ‘um grande morcego’, metamorfose que depois seria encampada pelo cinema. Uma curiosidade: em Drácula, há referências aos 327

Jorge Mautner conceberia a canção Vampiro em 1958, que apareceria pela primeira vez no filme de sua direção, O demiurgo, filmado em Londres durante o exílio e, posteriormente, seria gravada por Caetano Veloso no disco Cinema transcendental (1979) e pelo próprio autor em Árvore da vida (1988). Ao declarar Eu uso óculos escuros/ para minhas lágrimas esconder/ e quando você vem para o meu lado/ ai, as lágrimas começam a correr, a canção de Mautner, de certa forma, se aproxima da figura vampírica de Torquato, que se escondia por trás da capa preta e dos óculos escuros no verão brasileiro, incorporando humor ao personagem vampírico tropical que passeava a beira-mar a léguas de distância da gélida Transilvânia, configurando-se com um vampiro bastante escrachado. No entanto, ao transitar pelas ruas movimentadas da capital fluminense, o poeta se assemelharia a um flâneur vagando entre a multidão tendo em vista que esse tipo literário do século XIX, arquétipo moderno, “[...] é acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade. Por isso busca a multidão; e não é preciso ir muito longe para achar a razão por que se esconde nela.” (BENJAMIN, 2000, p.45), segundo Walter Benjamin, em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. A temática do vampiro também foi utilizada por Mautner em Quero ser locomotiva, canção de Pra iluminar a cidade, disco de 1972, em que a letra nos diz: Eu quero ser como um triste vampiro/ Voando pela cidade/ Fazendo vum, vum.../ Com minha capa sombria/ com a mente tão fria/ Atrás da felicidade e, anteriormente, em 1970, o próprio Mautner encarnaria um vampiro em Carnaval na lama, filme inacabado de Rogério Sganzerla, e a figura mítica também iria figurar em O vampiro de Copacabana, filme de 1976 de Xavier de Oliveira, e ainda na canção homônima de Jards Macalé lançada em 2019, em parceria com Kiko Dinucci, presente no álbum Besta fera. Neste contexto, outro exemplo brasileiro da presença do mito vampírico em nossas artes é o da canção Doce vampiro (1979), de Rita Lee, que sugere: Venha me beijar, meu doce vampiro/ Na luz do luar/ Venha sugar o calor/ de dentro do meu sangue, vermelho/ Tão vivo tão eterno, veneno/ Que mata a sua sede/ Que me bebe quente/ como um licor/ Brindando a morte e fazendo amor e o da produção literária do curitibano recluso Dalton Trevisan, que publicou O vampiro de Curitiba, obra de 1965, que morcegos-vampiros sul-americanos, que podem ter se inspirado, de forma indireta, nos relatos de Charles Darwin, citados num artigo de jornal que Stoker consultou. O contato de Darwin com esses morcegos deu-se no Brasil, durante sua breve estada no Rio de Janeiro, em 1832.” (ARGEL; NETO, 2008, p.302). 328

enfatiza o protótipo vampírico já que, segundo o autor, “[...] no fundo de cada filho de família dorme um vampiro.” (TREVISAN, 1998, p.11). Em função disso, é possível aproximar as canções de Mautner e de Rita Lee com a obra de Trevisan, pelo fato de fazerem alusão ao vampiro de pulsão sexual acentuada, como pode ser dimensionado em “[...] ó curvas, ó delícias ‒ concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro ‒ os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até.” (TREVISAN, 1998, p.14), isto é, tanto o vampiro de Mautner, que suspira na canção do fim dos anos 50 com [...] eu fico embriagado de você/ eu fico embriagado de paixão/ no meu corpo o sangue não corre, não, corre fogo e lava de vulcão, quanto o carinhoso vampiro de Rita e a personagem Nelsinho dos contos de Trevisan enfocam o erotismo de “[...] una voluntad de contagio.” (CÁMARA, 2011, p.48), como define Mario Cámara, e acabam por entremear pulsões de vida, Eros, e de morte, Thanatos. 178 Portanto, a abordagem artística da temática vampírica em romances, filmes e canções propicia o enfoque em questões inerentes ao ser humano como doença, morte, sexualidade e religiosidade porque o vampiro, “[...] faz parte da história desconhecida da humanidade, desempenha um papel e tem uma função; não brotou do nada no século XVII ou XVIII. Ele se inscreve num conjunto complexo de representações da morte e da vida, que sobreviveu até nossos dias [...].” (LECOUTEUX, 2005, p.15), como observado por Lecouteux. Dessa maneira, para Deleuze e Guattari, o escritor e/ou poeta é um feiticeiro porque escrever é um devir e, além disso, são os feiticeiros que sabem “[...] que os lobisomens são bandos, os vampiros também, e que esses bandos transformam-se uns nos outros.” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.22), o que pode marcar um posicionamento político quando se tem em conta que

desde 1741, o termo ‘vampiro’ assume na Inglaterra o sentido de ‘tirano que suga a vida de seu povo’, e Voltaire, depois, afirma que ‘os verdadeiros vampiros são os monges, que comem à custa dos reis e dos povos’. Karl Marx vê os capitalistas como sugadores de sangue, e em Jonathan, os vampiros não morrem (1970) Hans

178 Além dos exemplos citados, outro vampiro conhecido nacionalmente foi a personagem do humorista Chico Anysio, Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, famoso nos anos 80 e 90. 329

W. Geissendörfer, identifica Drácula com Hitler triunfante – uma maneira de dizer que as ideias nacional-socialistas são tão imortais quanto esses monstros −, enquanto Hans Heinz Ewers, em Vampiro (1921), assimila os não-mortos aos judeus. Como observa muito justamente Klaus M. Schmidt: ‘Em virtude de sua natureza, Drácula, o anticristo, possui o poder de suscitar infinitas associações positivas e negativas’. (LECOUTEUX, 2005, p.12).

Na atualidade, os políticos também são vistos como sanguessugas e/ou vampiros, afinal, a figura vampírica aparece frequentemente na indústria cultural por meio de desenhos, filmes, séries, livros, jogos, mas também como emblema de poder. Isso se deve ao fato de que no mundo político, mais especificamente a partir do século XVIII, o vampiro passou a ser associado a um parasita usurpador acirrando o conflito entre burgueses e proletários. No Brasil, atualmente, o vampiro é associado ao ex-presidente não eleito, Michel Temer, em função de suas medidas impopulares tomadas após o escandaloso golpe para a retirada da presidente Dilma Rousseff. 179 A ascensão do poderio de Temer e da malta que possibilitou o golpe numa tomada de poder vampiresca, formada por deputados, senadores e magistrados, caracterizam, nas palavras de Caetano, “[...] notícias da pequeneza política e da incompetência econômica que está aí a mostrar um país que não se respeita.” (VELOSO, 2017, p.28), o que contrasta com a eloquência e respeitabilidade das artes do Brasil no exterior. Inclusive, o país e o mundo acompanharam a crítica escancarada a Temer e seus asseclas no carnaval de 2018 a partir do desfile carnavalesco proposto pela escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti, com o enredo Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?,180 fazendo alusão a todo tipo de sujeição, dos primórdios da humanidade até os dias atuais, mostrando como a assinatura da Lei Áurea não significou a completa libertação do povo

179 Após a confirmação do impeachment de Dilma, o Estado democrático fica suspenso e como crítica a esse desgoverno, o Teatro Oficina encena uma paródia de As bacantes, de Eurípedes, propondo Penteu como a representação de Temer, que acaba devorado pelas bacantes em um banquete antropofágico. 180 O samba enredo é de Claudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal e trazia um refrão potente: Meu Deus! Meu Deus!, se eu chorar não leve a mal, pela luz do candeeiro, liberte o cativeiro social. 330

negro e pobre, pois com o preceito tivemos a liberdade dos escravos, mas por meio das desigualdades sociais milhões de pessoas ainda são escravizadas com trabalho em canaviais, jornadas de labor excessivo e até na retirada de direitos como a reforma trabalhista e a reforma da previdência, propostas pelo governo espúrio, culminando com a crítica aberta ao trazer para o desfile um carro alegórico com direito a presidente vampiro neoliberal, representado, ironicamente, por um professor de História.

Figura 24 − Vampiro neoliberalista

Fonte: Mídia Ninja

A escola também colocou no sambódromo da Marquês de Sapucaí ou, oficialmente, Passarela Professor Darcy Ribeiro, projeto de 331

Oscar Niemeyer executado no governo estadual de Leonel Brizola, uma ala manipulada por mãos gigantes, composta de manifestantes fantoches, que batiam panelas trajados com camisetas amarelas, em alusão às camisas da CBF utilizadas nas manifestações pró- impeachment, e com boias em formato de patos, que representavam a campanha feita pela Fiesp, entidade apoiadora do golpe de Estado.

Figura 25 − Manifestoches

Fonte: Mídia Ninja

A costura histórica promovida pela Paraíso do Tuiuti envolvendo escravidão, racismo e precarização do trabalho, mazelas ampliadas pelas reformas de Temer, ficou em segundo lugar na competição carnavalesca sendo derrotada apenas pela Beija-Flor, desse modo, a posição entre as primeiras colocadas possibilitava à escola o desfile das campeãs alguns dias após a apuração de notas, entretanto, a agremiação foi proibida de desfilar com a representação da faixa presidencial do vampiro 332

neoliberalista num claro ato de censura, pois o desgoverno Temer, marcado pela retirada de direitos civis e trabalhistas, deu ordens extraoficiais para que a faixa não aparecesse no desfile das campeãs, diretriz que ocorreu um dia após o início da intervenção militar no estado do Rio de Janeiro assinada pelo presidente em exercício. Não obstante, muito antes do uso da figura do vampiro ser utilizada como referência ao presidente não eleito, o vampiro se apossaria da imagem de Torquato, sob a sombria década de 70 empesteada pelo regime ditatorial, por intermédio do cinema, enquanto metáfora para o obscuro da época, sobretudo como forma de resistência, num período em que o signo era inédito no cinema produzido no Brasil. Dessa forma, Ivan Cardoso não propunha diluição e sim invenção, pois ao contrário do que ocorre, por exemplo, em O poeta do castelo, obra de Joaquim Pedro de Andrade, que recria o cotidiano do poeta Manuel Bandeira enquanto ele mesmo, Torquato apareceria no cinema como um vampiro tropical em que o demonismo da figura vampírica não aparece, isto é, o filme, como aponta Lucio Agra, em Monstrutivismo: reta e curva das vanguardas, “[...] desfaz seu caráter europeu, sombrio, e imprime-lhe a marca antropofágica [...]”. (AGRA, 2010, p.97-8). Assim, no super-8 de Ivan, não reside apenas o poético, mas também o poeta, no caso, um dos primeiros intersemióticos nacionais e um poeta bastante interessado em cinema brasileiro, que o defendia, invariavelmente, em vários artigos jornalísticos, como o publicado na Geleia geral de 28 de agosto de 1971, em que discorre em defesa da bitola fílmica que considerava libertadora, em As travessuras de superoito:

Superoito é moda? É. E é também cinema. Tem gente que já está nessa firme e não está exatamente só brincando. Em minha opinião, está fazendo o possível, quando é possível. Aqui, então, nem se fala: superoito está nas bocas e Ivan Cardoso, por exemplo, vai experimentando. Bom e barato. [...] Superoito não tem jeito, use e abuse. Planos gerais, panorâmicas, detalhes. Se eu compreendi direito, nada melhor do que curtir de superoito, vampiresco, fresco, mudo. (NETO, 1982, p.36).

333

Por ser uma espécie de paródia cômica de Nosferatu, uma sinfonia de horror, o cineasta apropria-se do vampiro alemão deglutindo-o com comicidade e elaborando um vampiro praiano, forma bastante “esculhambada” de vampirismo, embora, a princípio, Ivan não tivesse a intenção de fazer rir, como ele mesmo declara: “Não tinha feito de maneira nenhuma para ser engraçado, mas riam muito do Ricardo Horta e do Zé Português. Nas cenas do Torquato na praia, o pessoal caía na gargalhada.” (CARDOSO, 2008, p.103), afinal, o filme é uma produção entre amigos, entre o cineasta e os ivamps, alcunha dada por Waly Salomão ao grupo de atores amadores de Nosferato no Brasil, que se constitui, em verdade, como aponta Lucio Agra, como

[...] filme da patota, das Dunas da Gal/Dunas do Barato, é o filme de um grupo restrito que reclama seu direito de exposição em uma época que estigmatizava sistematicamente o grupo ‘hippie’. [...] É um grupo que certamente pertence à ‘cultura das bordas’, no sentido de que recusa os procedimentos culturais de então (contracultura) e se posiciona em zona nebulosa, misturando a estética de massas, o ‘primitivismo’ popular e referências ‘eruditas’. [...] A postura do grupo representava a única alternativa de protesto contra o regime militar além da luta armada [...]. (AGRA, 2010, p.98-9).

Entretanto, a escolha por Nosferatu era uma incógnita até para o próprio Ivan, ao considerar não saber o motivo da escolha da personagem, pois, segundo ele, “[...] nem me lembro por que cheguei à conclusão de que o Torquato seria o Nosferato. O Torquato era muito cabeludo e o Nosferatu, pelo menos o do Murnau, era um vampiro careca.” (CARDOSO, 2008, p.90). Sendo assim, o vampiro brasileiro em nada se parece com o alemão, interpretado por Max Schreck, imponente e expressionista, nem ao menos fisicamente. O fato é que a farta cabeleira de Torquato fazia parte da crítica política da época, como cita Ana Cristina Cesar, em Literatura marginal e o comportamento desviante, uma vez que

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usando cabelos longos, roupas extravagantes, atitudes inesperadas, a crítica política dos jovens [...] passa a ter uma dimensão de recusa de padrões de bom comportamento, seja ela artística ou existencial. Esse dado é uma novidade importante em relação ao modo de fazer política da esquerda tradicional, em que a prática revolucionária deixa de lado os aspectos existenciais e de comportamento, fazendo-se grave, séria, sagrada, conceitual e deserotizada. (CESAR, 1999, p.214).

Destarte, a obra de Ivan figura como uma continuidade das vanguardas e um exemplo de ruptura, dada a natureza do cinema experimental, seus desdobramentos do experimentalismo, fazendo um cinema de invenção baseado no monstrutivismo, “[...] estética da montagem (cubista/construtiva) e da junção caótica (dadaísta, tropicalista, marginal), onde os subprodutos do corte são o produto final.” (AGRA, 2010, p.97) e o filme acontece, como define Haroldo,

na mandíbula devoradora de sua ‘bricolagem’ (para usar o termo com que Lévi-Strauss define as operações da ‘lógica concreta’ própria do ‘pensamento selvagem’, produtora de artefatos de artefatos), entra a mais incrível parafernália: desde o brutalismo ‘pastelão’ até a morbidez expressionista, do lirismo pastoral ao erotismo à escandinava, do metafilme sofisticado à lanterna mágica de aniversário em família, tudo mastigado em molho chacrinesco de televisão colorida: Godard e Zé do Caixão rebobinando uma película de Murnau. (CAMPOS, 1990, p.38).

Nesse sentido, a película que surge na tela com o título manchado em tinta vermelha, representando sangue, apresenta uma característica peculiar, não há coerência na montagem e, assim, como define Agra, “[...] o fragmento expõe-se como corte/ ferida aberta/ chaga sem solução.” (AGRA, 2010, p.89) e apresenta-nos o Nosferato brasileiro, ou, como aponta Haroldo, Nostorquato, como um vampiro “[...] ensolarado, malandro e desinibido, tropicalizado em cores berrantes, 335

para inveja de seus cinzentos colegas dos castelos dos Cárpatos.” (CAMPOS, 1990, p.37) e, especialmente, sendo uma espécie de atualização do antropófago naquele momento de referências modernistas. Em Bárbaro, nosso, Ana Cristina Cesar aponta que Humberto Mauro, cineasta mineiro, “[...] não é um intelectual, é um contador de histórias, que brinca com objetos, inventa sua eficácia cinematográfica e mexe com literatura como quem conta histórias, encena personagens.” (CESAR, 1999, p.30). De certa maneira, podemos associar essas mesmas características citadas por Ana Cristina a Ivan Cardoso, pois, como declara o próprio cineasta, a teoria cinematográfica nunca lhe atraiu: “Nunca quis frequentar nenhuma escola de arte. Era contra aprender cinema em escola. Achava que você aprendia na prática.” (CARDOSO, 2008, p.64). Neste ponto, o filme de Ivan aproxima-se do que diz Antonin Artaud, ao referir-se ao A concha e o clérigo (1928), 181 filme com roteiro de sua autoria e direção de Germaine Dulac, quando considera que “a concha e o clérigo, antes de ser um filme, é um esforço ou uma ideia.” (ARTAUD, 2004, p.179) já que, de certa forma, sua consideração pode ser aplicada a Nosferato no Brasil porque, como considera Ivan,

venho de uma outra escola. Após ter sido assistente de Rogério Sganzerla, em Sem Essa, Aranha, e trabalhado em alguns filmes de Julinho Bressane, aprendi a fazer Cinema em Super-8, que é uma espécie de ‘aprenda sem mestre’. Por essas coincidências, por esses acasos, venho do Cinema Mudo (apesar de ter começado nos anos 70, Super-8 era mudo, ou melhor, o Super-8 falado era tão complicado quanto o 16 ou 35mm)... De maneira que sou o último cineasta oriundo do Cinema Mudo, com ‘uma ideia na cabeça e uma câmera na mão’, vindo de uma experiência extremamente lúdica e doméstica, que foi a série Quotidianas Kodaks, quando fizemos Nosferato no Brasil, Sentença de Deus, A Múmia Volta a Atacar e Chuva de Brotos [...]. (CARDOSO, 1990, p.19-20).

181 A concha e o clérigo foi o único roteiro de Artaud que virou filme, entretanto, o resultado final, proposto por Dulac, cineasta de vanguarda, não agradou Artaud, que considerou que a diretora teria desfigurado seu roteiro. 336

Nesse contexto, com esse filme, como cita Hélio Oiticica, “[...] acabou a época da criação de tipos fixos definidos no cinema/NOSFERATO é cinema sem drama anarrativo.” (OITICICA, 1990, p.39), pois, para o artista,

[...] NARRAÇÃO seria o q já foi e já não é mais há tempos: tudo o q de esteticamente retrógrado existe tende a reaver representação narrativa (como pintores q querem ‘salvar a pintura’ ou cineastas q pensam q cinema é ficção narrativo-literária) NÃONARRAÇÃO é NÃO DISCURSO NÃO FOTOGRAFIA ‘ARTÍSTICA’. NÃO ‘AUDIOVISUAL’: trilha de som é continuidade pontuada de interferência acidental improvisada na estrutura gravada do rádio q é juntada à sequência projetada de slides de modo acidental e não como sublinhamento da mesma − é play-invenção. (OITICICA apud FAVARETTO, 2000, p.212).

A “nãonarração” de Oiticica rejeita qualquer indício de efeito naturalista na montagem cinematográfica e pode ser aplicada ao filme de Ivan porque, segundo Celso Favaretto, em A invenção de Hélio Oiticica, para o artista, esse marco do cinema de invenção é um exemplo de

[...] ‘cinema sem drama, anarrativo’, pois os personagens não fixam tipos, as sequências não determinam significados fechados, o resultado não se subordina a uma história contada. Comparando o efeito do filme com o dos Parangolés, Oiticica considera-os ‘protótipos’ de linguagem destinada a deslocar o espectador de cinema. Assim como a capa não é um objeto, mas um núcleo participativo, o filme (as nãonarrações em geral) não é uma ‘obra’ a ser ‘assistida’. Produzindo 337

efeitos de desconexão de imagens, diálogos e sons, o filme de Ivan Cardoso opera simultaneidades, deslocando a sequência narrativa e, assim, a continuidade da percepção- entendimento. Para Oiticica, a relação espectador- cinema sofre uma mudança básica: como na televisão, ele ‘absorve por mosaicos’; é participante no preencher lacunas estruturais’ e nas interferências acidentais. (FAVARETTO, 2000, p.213).

Ademais, no texto Nosferato, presente na revista Navilouca, Oiticica faz comparações entre a personagem vampírica e seus parangolés, que parecem evocar a peça de Luigi Pirandello, Seis personagens à procura de um autor, pois nos diz: “[...] relação entre NOSFERATO e meu PARANGOLÉ: os personagens não são personagens à procura de um ator /como as capas não são objetos d’arte: são /simultaneidade-protótipos q anulam o conceito de estilo.” (OITICICA, 1990, p.39). Desse modo, em função de sua anarratividade, como propõe Hélio, o filme é bastante poético, um poético-político, embora nem um pouco panfletário, em que sua potência experimental resiste a uma possível dependência cultural e/ou referencial ou, ainda, como aponta Ivan, “[...] os meus filmes Super 8, embora sejam totalmente udigrudi, são contemporâneos à época que foram feitos. São filmes da época e não filmes de época.” (CARDOSO, 2008, p.38). Nosferato no Brasil é dividido em dois momentos: a primeira parte retrata a “Budapeste” do século XIX, em preto e branco, imprimindo um tom clássico oriundo dos filmes de vampiros. A segunda, em película colorida, retrata o Rio de Janeiro dos anos 70, lugar escolhido pela personagem à procura de moçoilas para atacar, em que “o cineasta, por sua vez, câmera-cúmplice do vampiro, câmera- vampiro, coleta as cenas em espiral que não finaliza (o ‘fim’ é abrupto)” (AGRA, 2010, p.98), numa narrativa fílmica bufa e nonsense, mas justificada, como cita Agra, pois “a clausura temporal é rompida sob tácita consideração de que o vampiro tem vida eterna e, portanto, pode transpor-se à atualidade de então (1971) no Brasil.” (AGRA, 2010, p.97). Além disso, é composto de micronarrativas em que Torquato na pele de Nosferato ataca suas vítimas pela cidade, inclusive na praia, com sunga e capa preta, após a degustação de água de coco, dados que sugerem que Ivan faz a natureza aparecer em sua obra de outro modo, e 338

não como Murnau, que, como explicita Lotte H. Eisner, em A tela demoníaca,

a natureza participa do drama: por uma montagem sensível, o ímpeto das ondas faz prever a aproximação do vampiro, a iminência da desgraça que fulminará a cidade. Sobre todas as paisagens – colinas sombrias, florestas espessas, céus de nuvens recortadas anunciando tempestade – paira, como indica Balazs, a grande sombra do sobrenatural. (EISNER, 2002, p.74).

O filme não se divide em cinco atos, assim como seu principal referencial, aposta na independência da série de micronarrativas fílmicas, que compõem o todo da obra, e, assim, o vampírico, o vampiro-empírico, segundo Haroldo de Campos, “[...] vai levando a dente carótidas e outros vasos, num aprendizado por contato direto, vampirizando a torto e a direito, onde e como pode, operando com os meios da circunstância, e logo cercado por um séquito badalante de recém-conversos vampiros de barba e vampiretes de biquíni: os e as ivamps.” (CAMPOS, 1990, p.37). Todavia, a obra também pode ser subdividida em dois níveis: um primeiro que contemple o cartaz do filme e abertura plástica feita por Ivan e, em outro nível, a película propriamente. O cartaz de divulgação foi feito por Óscar Ramos e Luciano Figueiredo e está presente na revista Navilouca: almanaque dos aqualoucos, publicação em que Ivan figurou como autor da maior parte das fotos exibidas, incluíndo o fotograma plástico bastante inventivo, contracapa da revista, composto por um círculo negro rasgado por uma gilete, de cujo centro surge o sangue, ou seja, a obra representa um objeto central que é, como aponta Cámara, “[...] atravessado por uma anomalia [...]” (CÁMARA, 2014, p.140), tal qual o Brasil da época. 182

182 O corte feito por Ivan também remete ao O cão andaluz, filme de Luis Buñuel e Salvador Dalí, onde vemos o seccionamento de um globo ocular por meio de uma navalha.

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Figura 26 − Contracapa da Navilouca

Fonte: Navilouca

Em face disso, pode-se entender que os anos 60 e 70 tiveram várias formas de vampirização, como Flora Süssekind aponta em Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60:

Deglutição, devoração, perspectiva antropofágica que, no entanto, seriam redefinidas também. E revisitadas por formas diversas de ‘vampirização’. ‘Eu senti que o vampiro em mim tinha morrido e que comigo morria ali toda uma dinastia de 340

vampiros’, comentaria José Celso, sobre o seu desânimo depois da proibição de Gracias, Señor, em junho de 1972. Renato Borghi, ator do Oficina, chegaria a planejar, a certa altura, a montagem de uma peça que se chamaria Os vampiros, e na qual contaria com a colaboração de Hélio Oiticica. (SÜSSEKIND, 2007, p.51).

Da mesma forma, Ivana Bentes aponta o uso da figura do vampiro ao citar uma personagem vista em Meteorango Kid, herói intergalático, de André Luiz Oliveira, diretor que dedica o filme ao seu cabelo, certamente como marco contracultural, por ser a personagem uma espécie de vampiro fracassado já que, em vão, aparece na trama tentando atacar pescoços indefesos, fazendo uso da figura monstruosa aludindo a referências industriais como a de Batman e trágicas como a de Nosferatu numa alusão ao mundo pop, pura alegoria, que para Benjamin, “[...] não é uma retórica ilustrativa através da imagem, mas expressão, como a linguagem, e também a escrita.” (BENJAMIN, 2013, p.173). Assim, Ivan Cardoso, como forma de expressão, recorre à alegoria, pois “falar alegoricamente significa, pelo uso de uma linguagem literal, acessível a todos, remeter a outro nível de significação: dizer uma coisa para significar outra.” (ROUANET apud BENJAMIN, 1984, p.37), ou seja, a figura do vampiro, indiretamente, remete o espectador para outro nível de significação e, ao contrário do símbolo, que evidencia uma visão de totalidade, a alegoria consiste na representação de um outro, que pode ser rimbaudiano, e nunca de um todo porque, como salienta Süssekind, “tais vampirizações-em-série sublinhariam tanto uma perda da dimensão coletiva, ritual, da devoração, no novo contexto político, quanto uma redefinição de status do artista (não mais antropófago, mas uma espécie ávida de morto-vivo) e de sua atividade (cujo caráter é agora secreto, noturno) no Brasil dos anos 70” (SÜSSEKIND, 2007, p.54) como forma de se colocar como um morto-vivo frente às restrições e ao cerceamento imposto pelo Estado, que sugara as forças da nação. Por outro lado, Flora Süssekind aponta, em Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos, que o leitor-vampiro existia na literatura dos anos 70 e seria o ledor ávido pelas narrativas tristes e pelas cenas sangrentas da tortura e/ou leitores que, decifrando obras com os relatos do horror sofrido se penitenciariam pelo alheamento do golpe 341

que marcaria tantas pessoas, pois

esta ávida leitura da experiência carcerária ou da narrativa dos sofrimentos alheios parece apontar no sentido de um grande mea culpa da classe média que apoiou o golpe militar de 1964 e sua subsequente militarização da sociedade brasileira e, desencantada, começa a se penitenciar ficcionalmente pela repetida leitura de suas consequências. Ou, caminho inverso, trata-se de uma outra geração de leitores cujo conhecimento da história recente do país, fragmentário e contraditório, se procura ordenar e reinterpretar com base nas versões não oficiais a que se começa a ter acesso com o aparecimento de um volume maior de publicações de depoimentos, memórias e romances políticos. O que ocorre sobretudo a partir de 1975. (SÜSSEKIND, 1985, p.44).

Muito em função disso, Nosferato no Brasil traz a inscrição sem sangue não se faz história nos minutos finais, uma ambiguidade, já que sem sangue não se faz histórias de vampiros, mas que, certamente, trata- se de uma alusão à repressão no país. Neste contexto, a mítica vampírica é mais que uma translação do medo, embora, como salienta Cámara, “não cabem dúvidas de que de um ponto de vista teratológico, o vampiro é um monstro e, como tal, representa o outro, o mal encarnado, como a mandrágora, o homem lobo ou os povos malditos. A monstruosidade costuma possuir, além de uma dimensão simbólica, uma encarnação física.” (CÁMARA, 2014, p.124). Contudo, no fim da trama, além do trágico, há escracho em algumas cenas cômicas como quando a personagem de Torquato lança uma olhadela para a câmera, em citação ao filme de Murnau, ato bastante inovador que se caracteriza como uma quebra de paradigma em se tratando de cinema, assim como quando na iminência da volta para a Europa, Nosferato, no Aeroporto do Galeão, acena da janela do avião se despedindo do espectador, atitude que abona espírito cômico do início ao fim da trama. Em suma, a imagem vampírica que perfaz o sentido do humor acontece através de uma paródia sem qualquer exigência narrativa porque, como aponta Tânia Pellegrini, “a imagem tem, portanto, seus próprios códigos de interação com o espectador, diversos daqueles que a 342

palavra escrita estabelece com o seu leitor.” (PELLEGRINI, 2003, p.16), numa narrativa bem brasileira, típica dos anos contraculturais, que lança mão da cine-escrita como forma de catarse, pois, como aponta Jacques Aumont,

escrever em imagens, o velho sonho recorrente de todo o século XX, começando pelas suas vanguardas ‘históricas’, deve adquirir, assim, sempre, formas complexas, a partir do momento em que se pretende igualar e até imitar a escrita em suas possibilidades de linguagem – racionais, lógicas, conceituais −, mas a equivalência jamais é realizada até o fim: na ‘cine-escrita’, sempre entra uma grande parcela de metáfora. Por isso, a relação entre linguagem e imagem que se mexe pareceu mais imediata – e talvez tenha sido buscada mais imediatamente e mais cedo – no campo não lógico, mas poético. (AUMONT, 2004, p.90).

Afinal, em meio ao caos e o labirinto da existência, Nosferato no Brasil opera na síntese entre a mistura de linguagens, imagens e referências com o objetivo de intervir culturalmente mediante ressignificação, com experimentalismo e crítica, num período histórico conturbado e sombrio em que era preciso falar do país nem que fosse alegoricamente por meio de um filme mudo e marginal registrado pelo cine-olho de Ivan Cardoso. 183

183 Em homenagem a Torquato, Ivan dirigiu o documentário Torquato Neto: o anjo torto da Tropicália. 343

6. Tropical melancolia184

Era uma vez um homem e o seu tempo Botas de sangue nas roupas de Lorca Olho de frente a cara do presente e sei Que vou ouvir a mesma história porca Não há motivo para festa: Ora esta! Belchior em Conheço o meu lugar

Só não sofreu Quem não viu Não entendeu Quem não quis Taiguara em Outra cena

O mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu José Saramago em O ano da morte de Ricardo Reis

A era tropicalista apropriou-se de signos primitivistas e modernos, tornando-os relíquias do Brasil, sem que houvesse distinção ou escala de valores. Assim, repensando o conceito de originalidade e pondo em xeque a ideia cerrada de nacional, os tropicalistas e marginais abriram caminho para que se pensasse a arte brasileira no contexto da globalização e se evidenciasse o embate de interpretações do Brasil resituando os mitos culturais, aglutinando elementos antagônicos,

184 Verso de Marginália II (Gilberto Gil/ Torquato Neto). É interessante ressaltar que a alegoria, no viés benjaminiano, é uma espécie de contraparte da melancolia porque em função de sua “transitoriedade” torna-se melancólica em sua essência fragmentária; o indíviduo se sente impotente frente ao destino e nota-se portador de uma tristeza profunda, mas permanente. 344

arcaicos e contemporâneos, e relativizando as posições ideológicas na esfera político-cultural do país,185 que convivia com a crítica direitista, de setores da esquerda tradicional e a repressão ditatorial, elementos de um cenário bastante instável e agressivo, afinal, como diz Tom Zé, em depoimento contido em Tropicália, documentário de Marcelo Machado, “numa ditadura, pensar é crime!”, ainda mais quando se pensa fora dos padrões de convencionalidade porque, como aponta Favaretto,

o trabalho dos tropicalistas figurou-se como desarticulação das ideologias, que na arte e na cultura visavam interpretar a realidade nacional. Os tropicalistas assumiram as contradições da modernização em curso sem escamotear as ambiguidades implícitas em qualquer tomada de posição. Sua técnica consistia em fazer incidir as contradições na sociedade nos seus procedimentos artísticos, rompendo com isso o discurso explicitamente político para concentrar-se numa atitude brutalista que revelasse o Brasil com olhos novos, confundindo os níveis em que se situavam as discussões culturais correntes. (FAVARETTO, 2000, p.121).

Em anos de complexidade, a Tropicália e a Marginália possibilitaram um amplo trabalho artístico executado de modo político,

185 Como proposto por Jair Tadeu da Fonseca, em A Tropicália, a ditadura e além: Glauber Rocha, Torquato Neto e Waly Salomão, a alegoria tropicalista não deve ser vista “[...] como conjunto de metáforas do Brasil, como se nisso não houvesse mediações, mas como alegoria das interpretações do país.” (FONSECA, 2015, p.24). Principalmente porque, como também explicita Fonseca, “[...] seria um erro crer que tudo na cultura brasileira deva girar em torno de um tropicalismo, pois mesmo este termo é enganoso por dar a entender que aí haja filiação a uma tendência ou doutrina, sendo por isso preferível a ele o termo alegórico Tropicália, por indicar pluralidade e referência a uma terra ou um povo. [...] tais proposições alegóricas reformulam o telurismo, revolvem e reavivam seu solo cansado, mas ainda fértil, mesmo porque a Tropicália é uma alegoria mesológica, ou seja, relativa ao meio ambiente, sem apresentar, entretanto, a carga determinista de tantas interpretações naturalistas e ditas científicas da cultura, porque é justamente alegoria e não mesologia.” (FONSECA, 2015, p.25). 345

mas sem panfletagem ou verniz partidário, notável, como também considera Favaretto, “[...] ao produzir a linguagem de mistura, que corrói as ideologias em conflito e rompe o círculo do bom gosto ou das formas eleitas, dialetizando a produção cultural.” (FAVARETTO, 2007, p.143), dado que também se aplica à produção de Torquato Neto, compreendida com mais eficácia quando se valoriza a criatividade e invenção, mas, sobretudo, quando se analisa os meandros políticos e culturais contemporâneos ao poeta, que constituíam uma força produtiva, que passou a reverberar ainda mais após sua morte, em função disso, esta tese aborda o batismo tropicalista via Oiticica, a morte via ditadura civil-militar e a ressurreição entre a cultura e o consumo, síntese das relíquias do Brasil, ao passo que os tropicalistas e pós- tropicalistas tornaram-se oráculos culturais para os pesquisadores do agora, em função da imensa vitrine contracultural. Assim sendo, rememoro que entre 1º de abril de 1964, início do golpe civil-militar, e 05 de outubro de 1988, promulgação da nova Constituição do Brasil, inúmeras violações dos Direitos Humanos e das liberdades individuais ocorreram no país, tais como prisões ilegais, humilhações, torturas, perseguições políticas, espionagens, desaparecimentos, suicídios e execuções. Tratar desse período não se caracteriza como um remexer curioso por mazelas nacionais, mas como uma tentativa de aludir ao seu verdadeiro lugar, sem invenções e tramas urdidas, com o intuito de contribuição ao futuro, afinal, sem olhar o passado não é possível se comprometer com o presente e, consequentemente, não se prima pelo construto do futuro. Sendo necessário destacar a memória histórica e dialogar com o tempo: olhar para o futuro com o corpo no presente, mas a cabeça no passado, de modo similar ao que Benjamin, na tese nove de Sobre o conceito de história, aponta sobre o Angelus novus, quadro de Paul Klee, como uma alegoria da história, onde arraigado ao passado, o anjo, assim como o homem contemporâneo, volta-se para trás, com os olhos, enquanto seu corpo aponta para o futuro, contexto em que o quadro “[...] representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado.” (BENJAMIN, 2011, p.226). O golpe de primeiro de abril, coincidentemente também o dia da mentira, sempre lembrado pelas Forças Armadas como revolução de 31 de março para legitimar o governo militar e institucionalizar o regime por meio da repressão e do arcabouço jurídico que o amparava enganosamente, jamais deve ser esquecido e, tampouco, as mudanças e 346

ações culturais que ocorrem a partir de sua origem. Pois, apesar do golpe, e muito em função dele, como uma reação, os tempos dali em diante foram de intensa atividade cultural. Ao tratar da Tropicália, da Marginália e da produção torquatiana, numa relação que evidencia o homem e seu tempo, como no verso de Belchior, é impossível não traçar uma cartografia que contemple a ditadura civil-militar brasileira em relação ao que ela representou no momento em curso, mas também os resquícios tão banais da atualidade, pois, para além das vítimas de fato, o Estado de exceção nos deixou como legado a institucionalização da violência de Estado como potência antidemocrática, mas também como mola de contestação histórica e artística. Atualmente, vivemos um período também conturbado, em que o terrorismo de Estado, utilizado amplamente à época, passou a ser considerado por uma significativa parcela da população como aceitável e gerou passividade, fruto de conformismo, desconhecimento e desinteresse, por parte de milhões. Assim, vivenciamos uma minimização efetiva do período em que se fez escuro, com a deposição do presidente João Goulart, e também nos anos subsequentes, quando a economia, a política, a cultura e a sociedade sofreram um grande abalo com o regime autoritariamente imposto, que cobraria caro ao país, inclusive com o sangue derramado de muitos cidadãos, e o seu legado seria persistente, beirando ao eterno. Em relação ao início do regime não democrático, não há divergências, mas o mesmo não ocorre com seu fim institucional. Há os que defendem seu término em 1979, com a revogação dos atos institucionais, acrescido de alguns anos de transição; há aqueles que datam seu fim em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves, que não assumiria em função do óbito sendo substituído por José Sarney, e também aqueles que só a consideram finita a partir da aprovação da Constituição Cidadã de 1988.186 Mas, independente da oficialidade de

186 Os estudos em torno do golpe militar contêm versões e visões divergentes. O golpe de 1964 é visto como sendo fruto exclusivo das Forças Militares, versão que parece incompleta perante a comprovada participação de civis na desestabilização e conspiração do governo de João Goulart; como uma coligação entre civis e militares, visão defendida nesta tese, e até como um movimento contrarrevolucionário chamado falaciosamente de Revolução de 1964, versão bastante ilusória, mas que encontra defensores também em âmbito acadêmico. Em 2018, momento de polarização entre a democracia e o protofascismo, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Antônio Dias Toffoli, nomeou, publicamente, o golpe e a ditadura civil-militar brasileira como “movimento de 64”. 347

seu término, o fato é que sua existência e, sobretudo a sua permanência, só foram possíveis por meio da articulação política estadunidense, via embaixada no Brasil, da sanha de parte dos militares pelo poder e pelo apoio da sociedade, principalmente das elites e da classe média, interessadas na perpetuação da divisão de classes. Porém, é necessário ponderar, como Marcelo Rubens Paiva,187 em Ainda estou aqui, sobre a não generalização dos militares, pois muitos deles foram perseguidos e destituídos pelas Forças Armadas:

Sabemos muito bem que o terror que reinou no país foi obra de parte dos militares. Sabemos muito bem que não se fazem generalizações em acirramento ideológico. Militares foram os que mais sofreram nas mãos dos militares durante a ditadura. Muitos foram presos, expulsos, humilhados, exilados, torturados e mortos. Aliás, grande parte dos que combateram a ditadura militar, desde o seu começo, foram militares contrários ao regime. Muitos caíram na luta armada. Fundaram até uma organização clandestina, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de sargentos, tenentes e capitães descontentes. Sabemos que a ‘linha dura’ manchou o nome da instituição que lutou na Guerra do Paraguai, proclamou a República, lutou contra o nazifascismo na Itália e se levantou em nome da democracia em 1945. Sempre soubemos que o nosso inimigo não vestia farda. Era um regime, não uma carreira. (PAIVA, 2015, p.41).

Considerando isso, rememorar a segunda ditadura brasileira é tarefa mais rica do que se poderia imaginar por sabermos que infinitas pautas passam ou perpassam esse período nacional, a modernização, o desenvolvimento econômico, as lutas sociais, o fortalecimento cultural e educacional, fatos que talvez ajudem a compreender a atualidade em torno do tema ditatorial brasileiro décadas após seu início, pois, como salienta Ridenti, “em 1987, o debate sobre o Estado Novo de 1937 não tinha nem de longe a mesma repercussão que hoje ainda tem o golpe de

187 Escritor, dramaturgo, jornalista e filho do desaparecido político Rubens Beyrodt Paiva. 348

1964. Afinal, as bases da sociedade em que vivemos foram construídas a partir dali.” (RIDENTI, 2014, p.44-5). A distância temporal, passadas pouco mais de cinco décadas do golpe, propicia um olhar menos passional e mais objetivo sobre esse período histórico e político, embora nessa visada esteja ajustada cada vez mais o repúdio ao autoritarismo, à censura e à violência, que emanaram nas décadas de 60 e 70 no Brasil. Entretanto, rememorar é preciso para evitar a repetição e consolidar a intenção de superá-la não se deixando virar a página em relação à ditadura, afinal, necessitamos da consolidação da cidadania e da compreensão da estrutura rizomática ditatorial à época e de seu atual legado. Sem dúvida, o regime ditatorial brasileiro perdurou muito mais do que se imaginava, mas houve luta para derrubá-lo, a partir de sua instalação, por diversos grupos e movimentos de distintos nichos e ideologias, desde projetos nacionalistas como o de Leonel Brizola até a revolução socialista, por intermédio da luta armada ou não, pois em prol da extinção da ditadura e com o anseio de restaurar a democracia, a oposição armada teve várias iniciativas, embora frustradas, como a guerrilha da Serra do Caparaó, ações da ALN e da VPR e também a guerrilha do Araguaia, em que derrotadas, como aponta Ridenti, “o governo não hesitou em prender, torturar, matar e exilar seus adversários, especialmente aqueles ligados a organizações clandestinas, armadas ou não.” (RIDENTI, 2014, p.34). Além disso, durante o governo Geisel, após o extermínio no Araguaia de toda a oposição armada, o regime passou a reprimir duramente os partidos de esquerda, desarticulando os líderes e dirigentes partidários com prisões e assassinatos. Todos os setores da sociedade sofreram abalos, passamos por transformações nos dados de população campesina e urbana, por exemplo, quando o país, segundo o censo de 1970, passa de uma nação majoritariamente rural para um país de maioria urbana, porém, essas modificações sociais no campo e nas urbes, perpetuadas de modo não planejado e ignorado pelas políticas públicas, resultaria em enormes problemas sociais, já que as migrações do campo para as cidades não cessaram com o fim do período militar, sendo o regime, para além das prisões, torturas e mortes, também um desserviço social, como evidenciado em Mudanças sociais no período militar (1964-1985), texto de Francisco Vidal Luna e Herbert Klein, presente em A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964, pois

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a rápida industrialização e a intensa urbanização provocaram o mais intenso processo de mobilidade social da história brasileira, com o surgimento de uma nova elite industrial e gerencial, a partir de uma sociedade ainda agrícola e com baixo padrão educacional. A industrialização também resultou em intensas migrações das áreas pobres para as zonas mais ricas do Brasil. Com rápido e desordenado crescimento das regiões metropolitanas. A incapacidade de atender de forma adequada à forte demanda por habitação e saneamento explica parte dos assentamentos precários encontrados ainda hoje na periferia das grandes cidades brasileiras. (LUNA; KLEIN, 2014, p.66-7).

Nos dias de hoje, o modo como funcionam nossas estruturas jurídicas, políticas, econômicas e educacionais, fatalmente, são heranças ditatoriais, e é evidente que, assim sendo, esse regime aproxima-se diretamente da população, pois, como observa Rodrigo Patto Sá Motta, em A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da cultura política, “o regime militar é fenômeno próximo de nós. Ele faz parte do espaço de experiência de muitos brasileiros, e o seu legado marca mesmo quem não viveu aqueles anos ou ignora completamente esse passado recente.” (MOTTA, 2014, p.48). Para além do Estado de exceção, paradoxalmente, Edson Teles e Vladimir Safatle, na apresentação de O que resta da ditadura, abordam a tentativa de sepultar o período ditatorial, pois há inúmeros casos na História de pretensões de apagamento na ânsia dos fatos deixarem de assombrar o presente. No Brasil, o intento vai do silêncio abissal à negação dos acontecimentos como “maneira de remeter as raízes dos impasses do presente a um passado longínquo (a realidade escravocrata, o clientelismo português etc.), isto para, sistematicamente, não ver o que o passado recente produziu. Como se fôssemos vítimas de um certo ‘astigmatismo histórico’.” (TELES; SAFATLE, 2014, p.09). O que propõem os autores, e nisso se baseou o seminário realizado na USP em 2008 que resultaria na referida publicação, é exprimir como esse passado ainda é presente, embora, muitas vezes, seja referido como algo superado ou mais gravemente como se nunca tivesse existido. Nessa lógica do ocultamento, ouve-se, para além da negação, o dito de que se a ditadura brasileira existiu não ocorreu como as demais, que assolaram 350

diversas outras nações; seria uma exceção, entretanto, ela foi mesmo uma exceção, mas não como muitos acreditam, afinal, o Brasil é o único país da América Latina sem memória consolidada dos horrores praticados e também o único em que a tortura não cessou com o fim do regime autoritário. Ao contrário, atualmente, há mais casos de práticas de tortura em delegacias e prisões do que as que ocorreram na época oficialmente repressiva. Além disso, há espanto

[...] quando vemos o Brasil como o único país sul- americano onde torturadores nunca foram julgados, onde não houve justiça de transição, onde o Exército não fez um mea culpa de seus pendores golpistas; quando ouvimos sistematicamente oficiais na ativa e na reserva fazerem elogios inacreditáveis à ditadura militar; quando lembramos que 25 anos depois do fim da ditadura convivemos com o ocultamento de cadáveres daqueles que morreram nas mãos das Forças Armadas; então começamos a ver, de maneira um pouco mais clara, o que significa exatamente ‘violência’. Pois nenhuma palavra melhor do que ‘violência’ descreve esta maneira que tem o passado ditatorial de permanecer como um fantasma a assombrar e contaminar o presente. (TELES; SAFATLE, 2014, p.10-1).

Ademais, há um sentido ainda mais amplo para a dita exceção brasileira, pois ela também se dava pela capacidade do regime de transformar as leis apenas em aparência; havia eleições entre partidos opostos, publicações editoriais, shows, lançamentos de discos, peças teatrais, filmes, mas sempre submetidos a uma entidade arbitrária que fazia tudo acontecer ou se dissolver a partir de conveniências e interesses, e a lei, o ordenamento jurídico, era posta em suspensão e isso perdura em nossa semidemocracia, por mais excêntrico que pareça, que em muitos aspectos repete as lições aprendidas nos anos 60, como na canção E a revolução, do álbum Cena beatnik, de 2001, de Nei Lisboa:188

188 Irmão caçula do catarinense Luiz Eurico Tejera Lisboa, primeiro desaparecido político da ditadura de 64, morto a tiros em 1972 na pensão em que morava no Bairro da Liberdade, em São Paulo. Em 1979, o corpo foi 351

68 foi barra Plena ditadura Plena resistência Plena Tropicália Plena confusão [...] Difícil de aceitar Que o mal tenha o poder De escrever na história Um final tão infeliz 68 foi bala E mais bala foi 71 e 2 e... Mais bala foi depois Sempre alguém sumindo de casa Torturado, morto, Mutilado pelo Estado ao bel prazer Boiando no Rio da Prata Guerrilheiros, jornalistas, Marinheiros, padres e bebês Boiando no Rio da Prata Visto num jazigo vago Ou num muro de Santiago Ou jogado numa vala comum [...] Mas duro é perceber Se eu fosse te falar Do Brasil de agora Que seria tão igual Miséria encontrado enterrado no cemitério Dom Bosco, em Perus, sob o nome de Nelson Bueno, codinome que utilizava na militância esquerdista. Desde 1993, inaugurado pela então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, há na necrópole um memorial às vítimas, mais de mil, sepultadas clandestinamente. No local, onde o Estado depositou em valas comuns os presos políticos e a população pobre e marginalizada, vítimas de abuso de poder, há os dizeres: “Aqui os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos.”.

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Doença Polícia brutal Luxúria Mentira Autoridade sem moral Viu? 68 foi barra Como é 2001

Afinal, como a figura mitológica, Hidra de Lerna, cujas sete cabeças, se decepadas, renasciam, a ditadura possui a imensa capacidade de, indiretamente, se regenerar e se propagar fazendo-se constatar que o alarme de incêndio soa todos os dias porque ainda convivemos, estruturalmente, com resquícios autoritários no aparelho jurídico, no parlamento, nos modelos educacionais, nas leis, no modo de agir de parte das polícias e, ainda mais grave, nas atitudes individuais que atentam contra a real democracia e liberdade efetiva de todos e todas, pois a sala de jantar abriga os ranços políticos dos privilegiados e é bem verdade que desde a redemocratização há uma dificuldade absoluta de aceite e incorporação do princípio fundamental de igualdade racial, étnica, social e de gênero na sociedade brasileira. Nos anos de chumbo, o híbrido dragão-serpente de sete cabeças teve olhos para tudo que fosse contestador, da Tropicália à guerilha,189 em função disso, em 1964: história do regime militar brasileiro, Marcos Napolitano observa que, entre 1969 e 1979, a censura do regime foi bem mais intensa que nos primeiros anos do pós-golpe. Além disso, as prisões, desaparecimentos, mortes e torturas nos fizeram mergulhar num período inóspito de dor e medo em que as figuras tropicalistas e

189 Sabe-se que Caetano, por exemplo, foi investigado pelo SNI, Serviço Nacional de Informações, idealizado pelo General Golbery do Couto e Silva, desde 1965. O SNI tinha grande alcance, segundo aponta Elio Gaspari, em A ditadura envergonhada: “Pela estrutura logística, o SNI ficou entre os dez mais bem-equipados serviços de informações do mundo. Seu poder de alavancagem política foi superior ao da CIA, do Intelligence Service, ou mesmo da KGB. O serviço soviético, em 72 anos de existência, conseguiu fazer um só secretário-geral do Partido Comunista, Yuri Andropov, em 1982. Só um ex- chefe da CIA (George Bush) chegou à Presidência dos Estados Unidos. Em vinte anos, durante os quais o SNI foi chefiado por cinco generais, dois deles, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo, chegaram à Presidência da República”. (GASPARI, 2014, p.171). 353

marginais foram também marcos de resistência. Todavia, um dado bastante triste da memória social é a falta de real noção do que foi, de fato, esse momento na história do país e todas as heranças que ela nos proporcionou, inclusive, a técnica empregada pelo Estado, executada por parte policial e militar na época, prospera nas zonas periféricas das grandes cidades até a atualidade afetando diretamente a população mais pobre, formada em maioria por jovens e negros, que, estatisticamente, se percebe assassinada aos borbotões. No entanto, é cada vez mais notório, exceto entre especializados e informados, o desconhecimento que há na sociedade brasileira em relação ao horror autoritário e ainda mais grave é a política de reprodução de inverdades alardeadas pela mídia dentro do esquema de transformar cidadãos contrários ao regime em bandidos e foras da lei, consequentemente, ser contrário à ditadura, se indignar, bradar em defesa da democracia, ter real percepção do que ocorrera era e é bastante pesado para quem se acomete pelo senso de justiça. Por outro lado, a cegueira de boa parte da população pode ser ilustrada por meio do conto Pais e filhos, de Bernardo Kucinski,190 presente em Você vai voltar pra mim e outros contos:

190 Jornalista e professor, Bernardo Kucinski teve a irmã, Ana Rosa, e o cunhado, Wilson Silva, torturados e mortos na ditadura. Sua obra K: relato de uma busca se ocupa do desaparecimento de seus familiares que, hoje, sabe-se foram sequestrados e executados barbaramente em 1974, embora ainda figurem como desaparecidos políticos. O livro, literário, se constitui de modo ficcional embora apresente algumas doses de testemunho, pois a obra é como aponta o próprio autor em sua abertura: “Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.”. Assim, percebemos como a dor foi transformada em literatura, como aponta Maria Rita Kehl, em A ironia e a dor, ao indagar: “Quando termina a escrita de um trauma? Quantos anos, ou décadas, são necessários para que um fato traumático se incorpore à memória social sem machucar nem se banalizar? Os sobreviventes, ou descendentes de sobreviventes do Holocausto, ainda não fecharam essa conta. Contrariando a impossibilidade, prevista por Adorno, de se escrever poesia/literatura depois de Auschwitz, o trauma da vida e da morte nos lager não cessou de produzir romances, poemas, memórias e autobiografias, nas sete décadas que nos separam do fim da Segunda Guerra Mundial. Passado um tempo subjetivo em que silêncio e estupor são as únicas reações possíveis ante o evento traumático, as vítimas e testemunhas se põem a falar. Ou a escrever. Não é um capricho: é uma necessidade. É preciso compartilhar o acontecido com o outro, os outros. O pesadelo recorrente de Primo Levi, de que ao voltar para casa ninguém acreditaria no seu testemunho, não pode se realizar. As vítimas de todas as experiências de terror sentem necessidade de incluir cada terrível fragmento do Real no campo coletivo da 354

O dr. Nicolau Junqueira, médico-cirurgião de prestígio, aplaudiu o golpe que derrubou o presidente João Goulart, acusado pelos militares de querer implantar o comunismo no Brasil. Foi dos primeiros daquele bairro de palacetes em São Paulo a doar uma joia da família à campanha do ouro para o bem do Brasil. Fez questão de dar o exemplo. Contra o comunismo faria tudo. Quando o jornal publicou o nome de seu filho Augusto como suspeito de participação num atentado, ficou possesso. Junto ao nome Augusto Junqueira, como para não deixar dúvidas, estava o de Ernesto Del Rio, o melhor amigo de faculdade do filho, rapaz franzino de uma família do interior, que frequentemente almoçava com eles. A custo localizou-os escondidos na tia Laura, a quem Augusto era muito apegado. Pai e filho brigaram feio, a pior das rixas que vinham se tornando frequentes entre os dois. Os rapazes negaram participação no atentado. O pai acusou o filho de molecagem e desrespeito à família. Ordenou que se apresentasse à polícia dizendo-se arrependido de pertencer a uma organização que praticava a violência e que não tinha nada a ver com o atentado. Disse para contarem tudo o que sabiam. Quando o filho alegou que na polícia torturavam os presos, ele respondeu, peremptório, que isso era mentira, calúnia dos comunistas. Nossos militares, disse ele ao Augusto e ao Ernesto, têm formação cívica, inspirada na filosofia positivista. Aqui não se tortura, ao contrário do que fazem em Cuba, disse convicto. Lá, sim, é que se prende, se tortura; lá não há habeas corpus, nenhum respeito aos direitos da pessoa. O dr. Junqueira era turrão; não admitia contestação às suas ideias. Na juventude, simpatizara com o fascismo. Acreditava que cada um se faz por seu valor pessoal, como ele, que se tornara médico pelo próprio esforço. O Augusto, seu filho favorito, virar comunista era totalmente linguagem, como forma de diluir a dor individual na cadeia de sentido que recobre a vida social.” (KEHL, 2014, p.15-6).

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inaceitável –i-n-a-c-e-i-t-á-v-e-l− repetiu. Sujava o nome de toda a família. Vá imediatamente à polícia, ele insistiu, antes que a polícia venha a você. Apresente-se, diga que você foi enganado pelos comunistas, que você é filho do cirurgião doutor Nicolau Junqueira, que você está arrependido e que seu pai o aconselhou a se entregar. Vá, meu filho, vá que eu garanto que você vai ser tratado com respeito. (KUCINSKI, 2014, p.91-2).

Em muitos casos, passados e atuais, o desejo de contestar a verdade pode ser compreendido através da alegoria da caverna, contida no livro VII de A República, quando Platão evidencia que os habitantes da caverna, que abrange o mundo inteiro, só acreditam naquilo que lhes é aprazível; que querem acreditar, enxergando só as sombras e rejeitando a veracidade do real, que, por conseguinte, é enfatizada por Nietzsche em Novas lutas, de A gaia ciência, quando constata a morte de Deus: “Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra!” (NIETZSCHE, 2015, p.126). Em Tortura e sintoma social, Maria Rita Kehl também aponta as marcas que a impunidade, posta num acontecimento como o da ditadura, provoca na sociedade em longo prazo, quando considera que “o ‘esquecimento’ da tortura produz, a meu ver, a naturalização da violência como grave sintoma social no Brasil. [...] A impunidade não produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz.” (KEHL, 2014, p.124). 191 Assim, fechar os olhos e virar a página, como a maior parte da população fez e faz, não resolve os problemas da nação, ao contrário, abre precedentes para a repetição porque a política do silêncio e, consequentemente, do esquecimento torna-se a mais alarmante em se tratando de traumas sociais e causa danos imensuráveis, como observa

191 Brazil: a report on torture, documentário de 1971, apresenta depoimentos de brasileiros torturados e exilados no Chile em troca do embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela VPR. Narrando as torturas sofridas e encenando como se davam as sevícias corporais, os exilados fazem a primeira denúncia em imagens das práticas de suplício utilizadas no Brasil. 356

Kehl, pois “quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras.” (KEHL, 2014, p.126). Percebe-se, pois, que o que Kehl enfatiza é a necessidade de se atentar, mais detidamente, às experiências-limite, como a tortura, espólio de parte da atual polícia brasileira, que nunca abandonou as técnicas aprendidas com os golpistas, e de combate ao argumento da tortura como mal necessário assim como a displicência histórica que permite indulgências aos torturadores do passado e do presente. 192

192 Em relação à memória e ao esquecimento e em sua consequente relação com a ignorância e a indiferença, já que sabemos, como no provérbio árabe, “que a ignorância é vizinha da maldade”, Jeanne Marie Gagnebin aponta em O preço de uma reconciliação extorquida que “na África do Sul, quando saiu da prisão – onde ficou 27 anos −, Nelson Mandela instituiu a ‘Comissão Verdade e Reconciliação’, que trabalhou durante três anos, de 1995 a 1998, para tornar públicos os crimes cometidos durante o período do apartheid, ouvir as vítimas e os criminosos, isto é, narrar, na medida do narrável, o que aconteceu e, depois, anistiar – ou não – os culpados. No Brasil, o próprio governo militar promulgou, em 1979, a Lei de Anistia, que deveria impor o esquecimento dos crimes de tortura dos agentes do Estado e, também, numa inclusão posterior, de ‘terrorismo’ de esquerda, crimes não diferenciados entre eles, portanto.” (GAGNEBIN, 2014, p.178). O fato é que, enquanto política pública, a anistia, ou a pseudoanistia, não foi nada mais que um desserviço nada original, afinal, como salienta Gagnebin, “[...] políticas de anistia, promulgadas em várias circunstâncias por vários estados, servem, no máximo (e é isso a que geralmente pretendem), a tornar possível uma sobrevivência imediata do conjunto da nação enquanto tal, mas não garantem uma coexistência em comum duradoura. Essas políticas são antigas, não são nenhuma invenção de militares brasileiros, argentinos ou chilenos. Ricouer cita a famosa anistia promulgada em Atenas em 403 a.C., depois da vitória dos democratas sobre a oligarquia e o governo dos Trinta Tiranos. Todos os cidadãos atenienses tiveram a obrigação de jurar que não lembrariam em público das infelicidades e dos males do passado, para tentar evitar o desastre da sedição (stasis) interna e do consequente enfraquecimento diante dos inimigos externos. Somente assim os membros da cidade podiam reconstruir um mínimo de paz cívica, condição da retomada da vida em comum. O mesmo objetivo é visado pelo Edito de Nantes, promulgado pelo rei francês Henrique IV, em 1598, depois das guerras fratricidas de religião, que opuseram católicos e protestantes. Ambos os exemplos são claros: a proclamação da anistia intenta a possibilidade de reconstrução de um mínimo de convivência entre duas frações importantes da nação dilacerada.” (GAGNEBIN, 2014, p.179-80). O que a autora propõe, amparada em Ricouer, é que a anistia não pode ser definitiva, afinal, se constitui de uma manipulação da 357

Portanto, como aponta Torquato, “[...] a repressão é um fenômeno muito mais amplo do que geralmente se vê. [...]” (NETO, 2004, p.63), por isso, o poeta demonstra em Literato cantabile como o expressar-se, via linguagem, pode caracterizar-se como sinônimo de cilada num momento de cerceamento político:

agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto pode ser o fim do seu início agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em minha orla os pássaros de sempre cantam assim, do precipício: a guerra acabou quem perdeu agradeça a quem ganhou. não se fala. não é permitido mudar de ideia. é proibido. não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos memória pública travestida de jurídica, de legal, mas é uma solução pouco justa e nada durável, uma vez que “o silêncio sobre os mortos e torturados do passado, da ditadura, acostuma a silenciar sobre os mortos e os torturados de hoje. Todos encarnam, mesmo que sob formas diversas, a figura sinistra ‘daquele que é reduzido à vida nua, isto é, de um homem que não é mais homem – ou melhor, que pode ser morto sem que seu assassinato seja castigado’, assim a definição do Homo Sacer por Giorgio Agamben. O não saber sobre os mortos do passado instaura na memória um lugar de indeterminação cuja transposição atual se encontra nesses espaços indeterminados de exceção, situados no seio do próprio corpo social – e cuja existência nem sequer é percebida. [...] O preço do silêncio imposto a respeito do passado não é ‘só’ a dor dos sobreviventes: também se paga por nossa resignação e impotência. Urge passar da resignação não só à indignação, mas a uma resistência efetiva, sem ressentimento, mas com a tenacidade e a vivacidade da vida.” (GAGNEBIN, 2014, p.185-6).

358

está vetado qualquer movimento do corpo ou onde que alhures. toda palavra envolve o precipício e os literatos foram todos para o hospício. e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca. agora não se fala nada, sim. fim. a guerra acabou e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

(NETO, 1982, p.392).

Como vemos, o poema menciona o aniquilamento da experiência e os versos nos apontam uma derrota iminente quando o poeta nos mostra como a ruína é coletiva, trágica e histórica. Em função disso, em As ciladas do trauma: considerações sobre história e poesia nos anos 1970, Beatriz Vieira confirma o arrasamento que a ce(n)sura ditatorial proporcionou às nossas artes e à nossa história já que

o teor testemunhal que se encontra na poesia surgida no Brasil nos anos 1970 – tendo em vista, como Adorno, que as formações líricas trazem simultaneamente algo de social e de pessoal, não sendo mera expressão de experiências individuais, nem mero reflexo da sociedade, mas um mergulho no individuado que supera essa dicotomia e expressa ‘uma corrente subterrânea coletiva’, de modo que o ‘poema mesmo [pode ser] tomado como relógio solar histórico-filosófico’ de um tempo-espaço – permite-nos vislumbrar a dimensão traumática da experiência histórica sob a ditadura civil-militar. Os poemas da época, como os de Torquato, remetem a um processo de interrupção e mudança na dinâmica da cultura brasileira de grande proporção e peculiaridade. As perdas e as transformações inimagináveis, produzidas pela violenta cesura que a ditadura efetuou na experiência sociopolítica e cultural em curso no país nas décadas de 1950-1960, não foram de todo assimiladas e elaboradas pela sociedade brasileira, uma vez que o luto social 359

requerido torna-se ainda mais difícil nesta cultura que tende à carnavalização e à autoidentificação pela alegria. (VIEIRA, 2014, p.156-7).

Assim, Torquato produzia uma obra sintomática, no âmbito pessoal e cultural, fruto de um período de fulgor artístico e desbunde, mas também viés político; de resistência, principalmente. Em face disso, a arte brasileira apresentava-se num momento de grande originalidade artística ferida por um enorme trauma coletivo, que deságuaria na cena tropicalista e contracultural, uma necessidade imperativa de falar para e do país em meio as mais variadas polêmicas que, no caso específico de Torquato, se constitui de vidaobra, como propõe Moriconi, que perfazem um ciclo de rupturas da linguagem e da vida. No entanto, diante de tudo que sabemos em relação aos anos vampirescos do Brasil, sobretudo as tentativas de subordinar toda a sociedade aos desmandos das Forças Militares, expostas, principalmente, em dois relatórios, Brasil nunca mais, apoiado pela Arquidiocese de São Paulo, que se tornou livro em 1985, e o Relatório da comissão nacional da verdade, publicação divulgada em 2014, que investigou as violações dos Direitos Humanos na história recente fazendo a exumação de inúmeros corpos vilipendiados. Ainda assim, é escandaloso perceber como há inúmeros saudosos da ditadura, indivíduos com enorme apreço pela ocasião, que repetem, sem pudores, que a repressão brasileira foi branda demais por prender e matar pouco em relação às ditaduras latino-americanas, sem levar em conta que o aspecto quantitativo não diminui o caráter violento e autoritário desse momento histórico. Nesse caso, os nostálgicos e órfãos do golpe militar sempre alegaram que houve grande desenvolvimento econômico nessa era, que teria tornado o Brasil a décima economia do mundo à época, mas omitem que o salto expressivo se deu à custa de arrocho salarial, concentração de renda e dívida externa de enormes proporções, que os governos civis tiveram enorme dificuldade de reversão tornando a expressão milagre econômico uma verdadeira falácia, duro golpe a médio e em longo prazo na economia brasileira,193

193 Como vemos na obra de Gaspari, todos os partícipes da perpetuação do Estado autoritário foram culpados, também, pela derrocada econômica brasileira porque “cada setor interessado na desmobilização saqueou um pedaço das instituições nacionais. Todos fizeram isso acreditando que no final sobrariam instrumentos suficientes para assegurar-lhes uma parcela de poder. Assim, políticos sem voto saquearam as eleições diretas. Parlamentares sem opinião 360

pois em 1980, por exemplo, a inflação figurava em 110,2% e no ano de 1984 atingiria um número inimaginável, 223,9%, conforme a tabela de dados econômicos do Brasil entre 1960 e 1984, divulgada pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 194 Para além da repressão, o governo militar difundia a propaganda governista com clichês de prosperidade e desenvolvimento e com o alardeamento paranoico e abstrato de uma guerra contra a ameaça comunista. Amparado pelo Capitalismo ianque, o Brasil seguia dependente da economia estadunidense, com baixo poder tecnológico e cada vez mais desigual, economicamente e socialmente. Neste cenário, também reside o famoso aforismo do boi proposto por Torquato, que o poeta ironiza em Por hoje, acabou: “[...] leve um boi e um homem ao tal matadouro. O que berrar menos merece morrer. É o boi.” (NETO, 2004, p.306),195 situando o matadouro como sinônimo ditatorial e o boi como emblema da classe média, o admirável gado novo, como na canção de Zé Ramalho, que endossara e/ou se conformara com o regime, tendo em conta que, como aponta Fabiano Calixto, em Um poeta não se faz com versos: tensões poéticas na obra de Torquato Neto,

a inconsciência bruta do boi é mais carregada da noção do perigo que a consciência letárgica da classe média. A lei da natureza, da parte do boi, não permite nenhuma negociação com o carrasco, mas ainda assim, o animal resiste. A classe média, tungaram a inviolabilidade dos mandatos. Guildas patronais surrupiaram a liberdade sindical. Grandes montadoras do ABC paulista submetiam ao DOPS nomes de funcionários que contratavam. Terminada a tosa, a elite brasileira aniquilara-se.” (GASPARI, 2014, p.230). 194 Tabela citada por Marcos Napolitano em 1964: história do regime militar brasileiro. 195 Segundo Calixto, na produção de Torquato há um grupo de temas ou motes que funcionam como virais, onde o vocábulo é o mesmo, mas nunca com o sentido totalmente idêntico ao encontrado em outro momento e que a partir de uma célula-mãe se multiplica e se modifica. Esses elementos são vários, mas os mais frequentes são o boi no matadouro, os vampiros, o conceito de que o poeta é mãe das artes e a ocupação do espaço, que “[...] são constantemente utilizados e reutilizados dentro de vários textos, funcionando, deste modo, como vírus, modificando, em cada ocorrência, o sentido do texto original. Os múltiplos campos de enunciação em que o poeta atua podem ser pensados como células hospedeiras as quais os vírus infectam.” (CALIXTO, 2012, p.62). 361

nesta crítica que o poeta lhe dedica, aceita o carinho do ceifador cordeiramente. Os papéis se invertem, e a dimensão humana troca de lugar. A única coisa que a classe média pode fazer é subornar e, assim, faz a manutenção do jogo sujo, afinal a tragédia social não lhe diz respeito. (CALIXTO, 2012, p.46).

Para o poeta, possivelmente, a população necessitava ser mais aguerrida e acreditar na poesia, na concepção poética, afinal, o poeta, para Torquato, não é, necessariamente, aquele que escreve versos, pois poesia em sua raiz grega é ação de fazer algo, logo, o poeta é aquele que é nobre e luta por alguma coisa, tem coragem de dizer algo na contramão, e, sobretudo, aquele que tem olhos abertos e ajuda, indiretamente, a recriar o mundo, pois em Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões, Alfredo Bosi considera que

[...] poesia não é discurso verificável, quer histórico, quer científico; que poesia não é dogma nem ensinamento moral; nem, na outra ponta, é ‘sentimento na sua imediatidade’. Nem pura ideia, nem pura emoção, mas expressão de um conhecimento intuitivo cujo sentido é dado pelo pathos que o provocou e o sustém. (BOSI, 2010, p.09).

Em função disso, em Literato cantabile, de 16 de novembro de 1971, o poeta sentencia: “* Poesia. Acredite na poesia e viva. E viva ela. Morra por ela se você se liga, mas, por favor, não traia. O poeta que trai sua poesia é um infeliz completo e morto. Resista, criatura.” (NETO, 2004, p.305) e, assim, a produção torquatiana tornou-se essencialmente política levando a experimentação aos limites e tornando-se um marco da vivência tropicalista e pós-tropicalista. Marginal, Torquato, atualmente, é nome de rua, de condomínio, de campus universitário, mas ainda é pouco estudado, sendo uma presença-ausência ou, conforme a mirada, uma ausência-presença, mas não no sentido dado aos desaparecidos políticos, cuja ausência dos corpos impede a superação do luto, mas sim como força artística, sempre presente mesmo que não 362

nomeado, isto é, mais que papel literário ou cultural, a produção torquatiana representa o sentimento de uma geração proposto da forma mais democrática possível, sem amarras de nenhuma ordem, pois, como salienta Lucchesi, “em nenhum outro momento da história cultural brasileira, a mensagem questionadora e estetizada, a respeito do que somos e do que não somos, foi passada para tantos.” (LUCCHESI apud CYNTRÃO, 2000, p.170-1) porque a era tropicalista propunha uma estética vanguardista com o intento de evolução artística, mas, mais que isso, também pretendia promover uma visão crítica e abrangente da nação num entrecruzamento de perspectivas sincréticas. Posteriormente, no exercício da democracia dos anos 2000 e com a fresca lembrança da trágica política neoliberal que assolara o Brasil, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) inicia a afirmação da política da memória através de marcos institucionais, como o projeto Memórias reveladas, Memorial da resistência e implantação da Comissão Nacional da Verdade, criada por meio da Lei 12528/2011, mas instituída em 16 de maio de 2012 no governo subsequente,196 numa parceria entre o Governo Federal, entidades de Direitos Humanos e vítimas do regime; sobreviventes e familiares, que propunha remexer nos anos de exceção que afetaram o país através de atrocidades variadas. Daniel Aarão Reis, em A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista, relembra que no governo Lula as Forças Armadas perdem o protagonismo que tiveram em governos anteriores como o de Getúlio Vargas, de JK e, logicamente, os governos militares oriundos do golpe de 64. 197 Afinal, num governo que evidenciou

196 A comissão objetivava apurar as violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988; seus membros, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari e Rosa Maria Cardoso da Cunha, entregaram o relatório final, composto em três volumes, à Presidente da República em 10 de dezembro de 2014 em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, buscando elucidar a barbárie e a opressão política ocorrida desde o Governo Vargas perpassando, sobretudo, os anos vampirescos. 197 Em Lula: anotações para um perfil, Eric Nepomuceno observa que nas eleições de 2002, o sindicalista foi eleito com 52.793.364 votos, quase 20 milhões a mais que seu concorrente do PSDB, desse modo, “[...] naquela altura, os eleitores de Lula tinham dado a ele, em números absolutos, a segunda maior votação da história em todo o mundo. Perdia apenas – ironias do destino – para Ronald Reagan, que nas eleições norte-americanas de 1984 havia conseguido 54.455.472 votos no complicado sistema eleitoral daquele país.” (NEPOMUCENO, 2018, p.167). Além disso, a época de Lula na presidência foi 363

políticas de distribuição de renda, inúmeros programas sociais e primou pelo diálogo entre lideranças empresariais, trabalhadores e movimentos sociais,

o grande emudecido – ou os grandes ausentes – nesse cenário são as Forças Armadas, o Exército em particular, sem prejuízo de intervenções de emergência, consideradas indispensáveis e valiosas, mas sempre específicas. [...] Em contrapartida, todas as tentativas de esclarecer fatos e episódios do período ditatorial têm enfrentado resistência por parte de autoridades militares, que se negam a entregar os arquivos ou a colaborar. De sorte que, pela primeira vez na história da cultura política do nacional-estatismo, os militares perderam o papel de protagonista explícito. (REIS, 2014, p.27-8).

Em 2004, a abertura dos arquivos da repressão repercutiu amplamente na mídia, na ocasião em que o Correio Braziliense publicara supostas fotos inéditas de Vladimir Herzog na prisão, entretanto, como aponta Napolitano, o dado não se confirmou, pois, “de fato, a foto mostrava uma pessoa nua, de lado, com as mãos cobrindo o rosto, semelhante a Herzog. Posteriormente, a foto foi oficialmente de enormes avanços nos mais variados setores porque, como salienta Nepomuceno, “não houve praticamente nenhum – nenhum – setor ou segmento da sociedade que não tenha sido alvo de algum programa de governo. De levar luz ao campo à criação de universidades; de programas sociais que beneficiam milhões de famílias marginalizadas à defesa da criação de empregos; da distribuição de renda à quitação da histórica dívida com o Fundo Monetário Internacional; da oferta de bolsas de estudo e aperfeiçoamento no exterior à abertura de novos incentivos para as artes e a cultura, nada ficou incólume naqueles anos de vertigem. E as ações não pararam por aí. Avançaram para um programa de aceleração do crescimento, e o pré-sal, e o programa de construção de moradias populares, e uma ação de política externa sem precedentes, enfim, uma voragem ao revés, que, em vez de destruir, construiu.” (NEPOMUCENO, 2018, p.174). Dessa forma, a era Lula se destacou pelo crescimento econômico alinhado à inclusão social e foi um imenso sucesso tornando o presidente uma figura extremamente popular com índice de aprovação em 86%, após dois mandatos, com a geração expressiva de empregos e a saída de milhões de brasileiros da linha da miséria. 364

declarada como não sendo do jornalista assassinado em 1975, e sim de um padre canadense (Leopold D’Astous).” (NAPOLITANO, 2014, p.328). Em função dessa reportagem, especificamente, o Centro de Comunicação Social do Exército emitiu uma nota que parecia ter sido redigida ainda nos anos sombrios, isto é, o texto trazia um discurso que tentava defender a isenção dos feitos atrozes do período ditatorial. Vale a longa citação para ilustrar a escusa que o Exército brasileiro utilizou para justificar seus atos passados: 198

1. Desde meados da década de 60 até início dos anos 70 ocorreu no Brasil um movimento subversivo, que, atuando a mando de conhecidos centros de irradiação do movimento comunista internacional, pretendia derrubar, pela força, o governo brasileiro legalmente constituído. À época, o Exército brasileiro, obedecendo ao clamor popular, integrou, juntamente com as demais Forças Armadas, a Polícia Federal e as polícias militares e civis estaduais, uma força de pacificação, que logrou retornar o Brasil à normalidade. As medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas. Dentro dessas medidas, sentiu-se a necessidade da criação de uma estrutura, com vistas a apoiar, em operação e inteligência, as atividades necessárias para desestruturar os movimentos radicais e ilegais. O movimento de 1964, fruto de clamor popular, criou, sem dúvidas, condições para a construção de um novo Brasil, em ambiente de paz e segurança. Fortaleceu a economia, promoveu fantástica expansão e integração da estrutura produtiva e fomentou mecanismos de proteção e qualificação social. Nesse novo ambiente de amadurecimento político, a estrutura criada tornou-se obsoleta e desnecessária na atual ordem

198 Nota extraída de 1964: história do regime militar brasileiro de Marcos Napolitano. 365

vigente. Dessa forma, e dentro da política de atualização doutrinária da Força Terrestre, no Exército brasileiro não existe nenhuma estrutura que tenha herdado as funções daqueles órgãos. 2. Quanto às mortes que teriam ocorrido durante as operações, o Ministério da Defesa tem, insistentemente, enfatizado que não há documentos históricos que as comprovem, tendo em vista que os registros operacionais e da atividade de inteligência da época foram destruídos em virtude de determinação legal. Tal fato é amparado pela vigência, até 08 de janeiro de 1991, do antigo Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS), que permitia que qualquer documento sigiloso, após a acurada análise, fosse destruído por ordem da autoridade que o produzira, caso fosse julgado que já tinha cumprido sua finalidade. Depoimentos divulgados pela mídia, de terceiros ou documentos porventura guardados em arquivos pessoais não são de responsabilidade das Forças Armadas. 3. Coerente com seu posicionamento, e cioso de seus deveres constitucionais, o Exército brasileiro, bem como as forças coirmãs, vêm demonstrando total identidade com o espírito da Lei da Anistia, cujo objetivo foi proporcionar ao nosso país um ambiente pacífico e ordeiro, propício para a consolidação da democracia e ao nosso desenvolvimento, livre de ressentimentos e capaz de inibir a reabertura de feridas que precisam ser, definitivamente, cicatrizadas. Por esse motivo considera os fatos como parte da história do Brasil. Mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao que aconteceu naquele período histórico, considera ação pequena reavivar revanchismos ou estimular discussões estéreis sobre conjunturas passadas, que a nada conduzem.

A nota provocou um imenso mal-estar entre o presidente da República, um antigo e agora atual preso político, e o Exército brasileiro. Em função disso, no dia 19 de outubro, um dia após a 366

primeira nota, o general Francisco Roberto de Albuquerque emitiu uma retratação na tentativa de tornar a apologia mais palatável: 199

O Exército Brasileiro é uma instituição que prima pela consolidação do poder da democracia brasileira. O Exército lamenta a morte do jornalista Vladimir Herzog. Cumpre relembrar que, à época, este fato foi um dos motivadores do afastamento do comandante militar da área, por determinação do presidente Geisel. Portanto, para o bem da democracia e comprometido com as leis do nosso país, o Exército não quer ficar reavivando fatos de um passado trágico que ocorreram no Brasil. Entendo que a forma pela qual esse assunto foi abordado não foi apropriada, e que somente a ausência de uma discussão interna mais profunda sobre o tema pôde fazer com que uma nota do Centro de Comunicação Social do Exército não condizente com o momento histórico atual fosse publicada. Reitero ao senhor presidente da República e ao senhor ministro da Defesa a convicção de que o Exército não foge aos seus compromissos de fortalecimento da democracia brasileira.

Por fim, após o episódio das notas, um dos atos dos militares da reserva, em contrapartida à Comissão Nacional da Verdade, foi propor um comitê paralelo para organizar em definitivo o Orvil, livro ao contrário, cuja organização foi iniciada nos anos 80 e, posteriormente, batizada de As tentativas de tomada do poder, como resposta ao Brasil: nunca mais, de Dom Paulo Evaristo Arns, para insistir na culpa dos manifestantes e na repressão apenas com caráter reativo no combate à população vista como ameaça à ditadura direitista mesmo que não houvesse o mesmo poder ofensivo, visto que até os que optaram pela luta armada não dispunham de contingente e nem treinamento necessário para obter êxito frente às Forças Armadas, dado que se comprova pela desproporção do número de torturados e mortos frente ao número de óbitos gerados a partir das ações armadas da sociedade civil

199 Nota extraída de 1964: história do regime militar brasileiro. 367

esquerdista, mesmo havendo entre eles a participação de ex-oficiais das Forças Armadas, contrários ao golpe e à ditadura civil-militar. Desse modo, a Comissão Nacional da Verdade foi criada para que os fatos sombrios desse período nacional fossem de fato catalogados e a história brasileira pudesse ser reescrita de modo apropriado primando pela veracidade dos fatos. Sem poder de punição, mas com o intuito de ajustar a narrativa documental histórica brasileira se propunha a instauração de uma política de memória para investigar as responsabilidades do Estado com enfoque ao esclarecimento do paradeiro dos desaparecidos políticos e a apuração de responsabilidades nas violações de Direitos Humanos, sendo o intuito principal, como aponta Napolitano, uma forma de

[...] produzir uma verdade que correspondesse aos fatos objetivos da repressão, e não aos fatos alegados pelas ‘verdades oficiais’ das ditaduras, que sempre negaram qualquer tortura ou desaparecimentos forçados de militantes. Quando muito se falava em ‘excessos’ de alguns agentes sem controle, mas jamais os Estados envolvidos assumiram as práticas criminosas que abrigaram. Na ausência de arquivos oficiais que documentassem as violências, a forma mais óbvia era promover e incentivar o testemunho dos sobreviventes. Assim, o testemunho se transformou, a um só tempo, em peça jurídica e documento histórico para recompor a verdade. (NAPOLITANO, 2014, p.320-1).

Em referência aos que tiveram suas vidas ceifadas ou transformadas pelo trauma, é preciso honrar a batalha da memória e ocupar esse espaço, como diria Torquato, vivo e pulsante. Não deixar esquecer para não se repetir, afinal, o trabalho de investigação foi elaborado sob a gestão de uma presidente que nos anos nebulosos fora presa e torturada e que, posteriormente, em seu segundo mandato, em 2016, seria impedida e retirada da presidência da República em um novo golpe, dessa vez político e jurídico, sob a alegação de prática de crimes de responsabilidade, golpe e teatro armado que não é fato inédito e nem original, como pondera Michael Löwy, em Da tragédia à farsa: o golpe de 2016 no Brasil: 368

Se observarmos a história mundial nos últimos dois séculos, o que predomina é o Estado de exceção. A democracia é que foi excepcional. De uma forma ou de outra, fica claro que ela é um peso grande para o Estado, para as classes dominantes e para o capital financeiro. A democracia atrapalha, ela não facilita o trabalho da política capitalista. [...] Isso mostra que a democracia já não está mais sendo útil, que ela está atrapalhando a implantação das políticas neoliberais. (LÖWY, 2016, p.61).

No golpe de 64, os militares bradavam que estavam fazendo a revolução numa clara inversão do que esse vocábulo significa: modificação de um Estado opressor, político e/ou econômico. Assim, também lidaram com o termo democracia já que diziam estarem perpetrando a ditadura para garantir a liberdade, o desenvolvimento pleno do país e afugentar os comunistas e demais subversivos. Como observa Beatriz Vieira, em A palavra perplexa: experiência histórica e poesia no Brasil nos anos 1970, Walter Benjamin dizia “[...] que todo documento de cultura é também um documento de barbárie e que esta afeta igualmente a transmissão cultural, que corre o risco de ter seu conteúdo reduzido por interesses privados e setoriais, restringindo-se portanto seu alcance público.”(VIEIRA, 2011, p.296) e, em função disso, se percebe, por exemplo, como há uma atualidade impressionante em Almoço no estrangeiro, poema de Roberto Schwarz, publicado na revista Anima em abril/maio de 1976, que se referia ao período pós-64 e aos exilados do país:

O Brasil mudou Não é mais como antes quando tudo terminava em abraço. Agora tem uma cicatriz. Em qualquer encontro ou jantar a diferença entre os que foram contra e os que foram a favor pode aparecer.

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Sendo assim, podemos perceber como a arte atua como um sismógrafo para a história e como ela pode atuar como fonte para se decodificar o que ocorre(u), dado de extrema importância para sabermos decifrar os seus sinais porque, como invocado por Benjamin e aludido por Garramuño, “[...] não se trata de imaginar ou de buscar a ‘origem’ das catástrofes presentes no passado, mas de fazê-la explodir, assim como sua pretendida continuidade histórica [...].” (GARRAMUÑO, 2012, p.136). Portanto, como a Tropicália e a Marginália foram momentos amplamente significativos culturalmente e, de certa forma, espaços ocupados e de resistência, Hermano Vianna, em Políticas da Tropicália, é esperançoso ao falar do legado e do futuro que as referências tropicalistas emanam:

[...] chega em boa hora o interesse do resto do mundo pelo tropicalismo. Talvez nosso afã por paradoxos sobreviva de novas maneiras, esperançosamente não menos confusas, em outras paisagens, incluindo aquelas bem pouco tropicais. Talvez os softwares livres do ministro Gilberto Gil criem um ciberespaço onde o espírito tropicalista se reproduza em inteligências artificiais e virtuais, na periferia de um novo império americano que o rock amado com tanto custo por determinados jovens baianos nos anos 60 nem sequer podia imaginar. [...] Que cada canto do mundo encontre sua própria maneira de bagunçar as certezas via tropicalismo. (VIANNA, 2007, p.142).200

200 Vianna menciona o momento em que Lula convida Gilberto Gil para ocupar o cargo de ministro e faz um aviso ao leitor ao explicar o quão importante fora essa decisão: “Os tropicalistas, nos anos 60, algumas vezes inconscientemente, fizeram uma inteligentíssima bricolagem de ideias oriundas de momentos muito particulares e importantes – alguns conhecidos então em pequenos círculos (como a própria antropofagia cultural) – da história do modernismo brasileiro e do modernismo internacional. E fizeram isso na frente das câmeras de televisão, como novos ídolos de massa. A jogada foi tão perfeita que até hoje os movimentos artísticos que surgem no Brasil ficam sempre parecendo um apêndice na história tropicalista, ainda que se posicionem contra essa história. O mundo quer entrar agora nessa onda tropicalista [...] Sejam todos bem-vindos, mas tenham sempre em mente: não há caminho de volta. Que ninguém se engane: o tropicalismo não é um multiculturalismo criado nos trópicos, não é o elogio politicamente correto da diversidade cultural, não é a alternativa terceiro- 370

Desse modo, a gestão ministerial de Gil foi a primeira a promover um diálogo entre a produção cultural do país e as novas tecnologias, que contemplavam audiovisual, internet e a reprodutibilidade digital como um todo, sendo, assim, o primeiro ministério a executar a cartilha tropicalista, que, além disso, propunha a valorização da cultura existente em cada região brasileira sem a ideia de levar cultura, do eixo Rio/São Paulo, aos rincões, pois se pretendia a valorização do que já era produzido em cada canto do Brasil, através do Projeto pontos de cultura, cuja ideia-base era a criação de formas de circulação das artes existentes e a divulgação estratégica do micro para o macro e nunca o contrário. No discurso de posse no MinC, Gil disse à população que a função do ministério era fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país, ideia essa que era uma ampliação do projeto desenvolvido pelo artista anos antes, quando presidiu a Fundação Gregório de Matos, em 1987, em Salvador, como secretário de cultura. Muito em função disso, no documentário Futuro do pretérito: Tropicalismo now, José Miguel Wisnik se pergunta em que medida Gil como ministro da cultura era o Tropicalismo no poder cultural. De retórica afirmativa, essa consideração ilustra bem a força que emana desse momento tão significativo na arte brasileira, que enfrentou a ira dos militares numa época vampiresca e deixou marcas definitivas na cultura nacional num período que atingia a todos a partir de uma modernização autoritária, de uma administração errada de industrialização e urbanização e uma política econômica injusta que só fazia ampliar as desigualdades sociais, apartando o cidadão comum do direito à cidadania. Na introdução de Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972), organizado por Carlos Basualdo, Santuza Cambraia Naves e Frederico Oliveira Coelho, os autores consideram que mundista contra a globalização neoliberal, não é uma injeção de energia exótica (e ‘não-ocidental’) para revitalizar o mercado das artes internacionais – que agora se alimenta de novidades do ‘resto do mundo’, tentando se livrar da culpa ‘imperialista’. É melhor ouvir bem o que Gil disse nos jornais: o povo sabe que está indo para o governo um tropicalista – em outras palavras (entre muitos outros significados): nunca vou ser um militante de esquerda bem comportado; nunca vou ser um nativo facilmente manipulável por tendências estético- políticas da moda; nunca vou me adequar a uma cartilha.” (VIANNA, 2007, p.134).

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o momento tropicalista e pós-tropicalista, bastante expressivo em amplos meios culturais, possibilitou um legado que não se destina só à arte: “Talvez esse seja o maior legado do movimento tropicalista para a cultura brasileira e mundial: a incorporação criativa da diferença e a busca constante de novas informações na elaboração de uma cultura local, porém universal.” (NAVES; COELHO, 2007, p.203). Afinal, a era tropicalista constitui-se como momento do ponto de vista histórico e cultural, mas também é movimento no sentido da dispersão, da capacidade influenciadora que exerceu nos artistas que se seguiram e, agora, com novos motivos para ocupar espaço, como no mote torquatiano, ao passo que

talvez essa seja a melhor metáfora para descrever a ação tropicalista: o destampar incessante de garrafas, para deixar todos os gênios, bons e maus, à mostra, bem visíveis. Nisso pode residir uma certa irresponsabilidade. Quem vai apagar o fogo? Quem vai prender de volta o gênio que passou a agir como serial killer? Os tropicalistas seguiram muito à risca, e correndo muitos riscos, o lema de Hölderlin: ‘Mas onde há o perigo, ali cresce também o que salva’. E assim passaram a usar na sua arte aquilo mesmo que antes tinha lhes causado horror, ou era considerado desprezível. (VIANNA, 2007, p.136).

É notável que a Tropicália e a Marginália desencadearam uma coragem sintomática das épocas trevosas, que exigem postura dos artistas, caráter ainda necessário, dada as manifestações em relação à ditadura civil-militar que assolou o país por 21 anos, as agitações culturais, a tortura e a repressão terem produzido uma memória social que parecia ser coletiva, mas que fatos atuais, manifestações clamando pela volta da ditadura nas eleições de 2014 e também em 2018, denotam que essa memória não é unânime, levando-nos a um novo golpe, mais sofisticado, mas igualmente vil, como aponta Lula:

Acho que no Brasil, lamentavelmente, a democracia não é regra, é exceção. E isso é triste, porque eu jamais imaginei, depois de 1988, que a 372

gente teria outro golpe. Eles civilizaram o golpe, modernizaram o golpe; ou seja, antes você tinha guerra civil, agora não precisa mais ter guerra civil. Não precisa dar um golpe militar. Você faz dentro da lei: constrói a maioria, consegue ganhar a opinião pública, tem a imprensa para prestar o serviço. A imprensa presta o serviço, você, então, cria uma maioria da sociedade contra o governo, cria uma maioria dos parlamentares contra o governo e dá legalidade a tudo. E acontece o que estamos vendo no Brasil. (SILVA, 2018, p.105).

Assim, boa parte da população parece anêmica das coisas reais, como no verso de Belchior, por isso, Caetano observa que todas as descrições e esclarecimentos feitos por Elio Gaspari, que abordam e explicam o mundo de corrupção que foi a ditadura civil-militar brasileira, o faz ter “[...] pena desses pobres coitados que vão à rua pedir a volta da ditadura contra a corrupção: Lula e Dilma foram os únicos que deixaram o Ministério Público e a PF trabalharem em paz por muito tempo [...].” (VELOSO, 2017, p.22). 201 Ademais, para além do golpe de 2016, enquanto armação atroz, tivemos inúmeras consequências políticas oriundas desse passo antidemocrático, sobretudo, da construção de uma direita feroz que sai do armário e que assume raivosamente suas ideias antipopulares e que, certamente, mudará a forma da política feita no Brasil dando palanque para grupos mais radicais, que envolvem

201 Em Controle de natalidade, Luis Fernando Veríssimo aponta para uma chaga histórica do país: “As histórias oficiais política e econômica do Brasil nem sempre reconhecem esse empenho deliberado de proteger privilégio e poder do patriciado brasileiro, preferindo atribuir nossa tragédia social a alguma espécie de danação, culpa do nosso caráter, ou mesmo do legado daqueles nossos ‘descobridores’ portugueses, quando não ao tamanho de nosso território ou ao nosso clima. Mas a desigualdade brasileira não é uma fatalidade, tem autores identificáveis, pais conhecidos. Através da história, ela vem sendo mantida, principalmente, pelo que pode ser chamado de controle de natalidade de qualquer opção de esquerda, proibida de nascer ou se criar. Até onde a casta dominante está disposta a ir para evitar que a esquerda prolifere, nós já vimos. Os gritos de dor dos torturados pela ditadura de 1964 ainda ecoam em porões abandonados. E 1964 é apenas um exemplo do que tem sido uma constante histórica.” (VERÍSSIMO, 2018, p.09). 373

desde neoliberais a armamentistas.202 Nas eleições de 2014 e também em 2016 no processo de impedimento da presidente eleita se viu toda uma coligação de reacionários, conservadores, neoliberais e saudosistas ditatoriais que se repetiria nas eleições presidenciais de 2018. Impulsionada pelo sucesso do impeachment, à custa de um atropelo parlamentar travestido de legalidade jurídica e pela ação ultrajante da maioria dos parlamentares, se viu aflorar uma esquerdofobia nas massas, que beirou ao universo kafkiano, amparado nas trincheiras midiáticas que a grande mídia, descarada e indecente, alicerçou, especialmente através das redes sociais e da mídia virtual. 203 Atente-se que o fim das eleições em 2014, com a reeleição de Dilma, acabava com um ciclo político. Afinal, o pleito, disputado no segundo turno contra o candidato peessedebista, ocorreu num cenário eleitoral extremamente tóxico e com a decepção das forças conservadoras que tinham, após meses de ataque à presidente e ao seu partido, a quase certeza da vitória. O fato é que a oposição ao Partido dos Trabalhadores não conseguiu a maioria do voto popular e, nesse momento, a elite política insatisfeita passou a considerar uma alternativa favorável a eles: a trama para a destituição da reeleita e o fim do ciclo de governos do Partido dos Trabalhadores porque, para esses opositores, se não fosse via eleições, a era petista findaria de qualquer modo e para

202 Desde a redemocratização nos anos 80 não se via tantos adeptos das direitas no país. Como aponta Löwy, a situação do mundo agrava-se com a ascensão da extrema direita e seus conceitos retrógrados, pois “no caso do Brasil, temos um golpe pseudolegal, supostamente dentro do Estado de direito, mas com uma restrição cada vez maior dos direitos. Há ainda essa tendência bem preocupante, não só na América Latina como também na Europa de uma extrema-direita que está se aproveitando dessa conjuntura e que se apresenta como um sério candidato ao poder. Se isso se confirmar, o pouco que nos resta da democracia vai desaparecer.” (LÖWY, 2016, p.62). 203 Em relação às possibilidades que a internet pode nos trazer, Gil compôs a canção Pela internet em 1996 em alusão à canção considerada o primeiro samba brasileiro, Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida. Os anos subsequentes confirmaram o uso e a expansão das redes e por isso Gil voltou ao tema internético em 2018 com Pela internet 2, mas agora também tentando compreender o fenômeno do ódio gratuito disseminado nas redes e a consequente ausência de punição aos haters, que teriam matado ou desejado a morte do artista inúmeras vezes, principalmente, em função de seu passado ministerial na era Lula.

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isso o partido perdedor se uniu a aliados de ocasião, que incluía o vice- presidente da chapa de Dilma, o peemedebista Michel Temer, grande parte da mídia corporativa, a maioria do Congresso e articulação política que, neste caso, ficou a cargo também de Wellington Moreira Franco, o amigo de infância de Torquato, assim, como aponta o professor Luis Felipe Miguel, em A democracia à beira do abismo,

formou-se uma ampla aliança, que reuniu desde grupos empresariais nacionais intolerantes às moderadas medidas de distribuição de renda então em vigor até conglomerados internacionais atraídos pela perspectiva de desnacionalização de setores-chave da economia. Mobilizou-se, também, o ressentimento da classe média (incluídos aí setores da burocracia estatal, que paradoxalmente haviam ganhado muito ao longo dos governos petistas) contra o que ela percebia como redução de sua diferença em relação aos pobres. Os meios de comunicação cumpriram o papel de sempre, demonizando os grupos políticos à esquerda e propugnando saídas moralistas e autoritárias. A fraqueza moral do vice-presidente era o ingrediente final; para ocupar a cadeira que não lhe pertencia, ele se dispôs a realizar o programa dos idealizadores do golpe. (MIGUEL, 2018, p.11).

Portanto, para usurpar a presidência e assim encerrar a hegemonia de vitórias conquistadas pelos esquerdistas e, mormente, frear todas as ações sociais promovidas, a concepção e a execução do golpe tornou-se a saída mais baixa e eficaz, como também observa Miguel:

Assim como ocorreu em 1964, mas agora por outros métodos, obter a Presidência era apenas um passo, necessário e simbólico, para implantar um programa de acelerado retrocesso social. É o programa que está em curso: passa pelo congelamento do investimento público em políticas sociais (aprovado no fim de 2016), pelo desmanche dos direitos trabalhistas (aprovado no 375

início de 2017), por diferentes medidas de desnacionalização da economia e por uma severa restrição no acesso dos trabalhadores à aposentadoria [...]. (MIGUEL, 2018, p.12).

Nesse cenário de intenso retrocesso, a ideologia da direita e o jogo midiático imputaram ao Partido dos Trabalhadores a culpa exclusiva pela crise econômica – que é também internacional – e por todos os esquemas de corrupção existentes na esfera política esquecendo-se de que esses mesmos esquemas foram fundados anteriormente e continuados por integrantes de todos os demais partidos políticos. O fenômeno de caça aos corruptos, desencadeado, sobretudo, pela Operação Lava Jato,204 idealiza uma perseguição aos corrompidos de descarada seleção partidária, isto é, para políticos de determinadas siglas, a punição rigorosa não é necessária. Ao que parece, nesse álbum emporcalhado por variados crimes e falta de ética generalizada, a figura cobiçada é sempre esquerdista, cenário que remonta ao fato de que a classe média tradicional e os endinheirados, representantes das elites, não estavam acostumados a dividir os espaços públicos com cidadãos menos abastados nos aeroportos, shoppings e universidades. Em função disso, como ressalva Jessé Souza, em A radiografia do golpe,

204 A Operação Lava Jato faz o que propõe o seu nome, afinal, com esse método, não se limpa a sujeira interna de um veículo, e por ser apenas higienização aparente não atinge as entranhas da sujeira, nesse caso, das esferas do poder. Além disso, a forma de investigação e condenação antecipada mostrada em tempo real pela mídia se estendeu para outras operações da Polícia Federal. O modus operandi discutível fez, em 02 de Outubro de 2017, sua primeira vítima fatal, o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que cometeu suicídio dias depois de ter sido preso com outros professores e servidores de modo autoritário e desnecessário, pois nem mesmo depoimentos foram colhidos antes do encarceramento, supostamente referente a desvios de dinheiro investigados na Operação Ouvidos Moucos. Acusado de obstruir a justiça, o reitor foi levado à Polícia Federal e, posteriormente, ao presídio estadual sem materialização de provas. Dias após a soltura e a proibição de adentrar o campus universitário, sucumbiu à pressão e ao julgamento social. Ironicamente, seu ato se deu em um local bastante movimentado, Beiramar Shopping, alimentando ainda mais o circo midiático que se instaurara, mas marcando com a morte um gesto político. 376

o ataque cerrado da mídia manipuladora ao PT e o ataque concatenado a Lula não foram, portanto, ataques a pessoas ou a partidos específicos. Foram ataques a uma política bem-sucedida de inclusão das classes populares que Lula e o PT representaram. Inclusão social essa que, malgrado todas as falhas que se possa apontar, teve significado histórico que não será esquecido. [...] o combate seletivo à corrupção pela imprensa e seus aliados no aparelho de Estado foi mero pretexto para combater uma política redistributiva. A imprensa comprada e sócia do saque feito pelo 1% de endinheirados a toda a população se uniu a interesses corporativos de todo tipo para derrubar um governo unicamente por sua vocação comparativamente mais popular. Se a corrupção fosse o problema real ter-se-ia dado ênfase aos aspectos institucionais que evitassem a compra da política pelo dinheiro, com a defesa do financiamento público de eleições à frente. (SOUZA, 2016, p.85-6).

A onda conservadora e classista que assola o país ressente-se, por exemplo, do acesso de pobres, negros e índios ao ambiente acadêmico, da ascensão da mulher no mercado de trabalho, da presença de gays nas ruas e demais vitórias sociais, principalmente porque nunca tivemos tantas conquistas nesse aspecto, muito em função de políticas públicas implementadas por políticos esquerdistas, gerando incômodo e retornando como norma ressentida e autoritária numa nação que não sabe equacionar os direitos previstos na Constituição cidadã e democrática. Como aponta Rogério Duarte, 1968 foi o ano da paixão e a atualidade figura como a era da ressurreição, artística e política, para que haja vozes para promover, novamente, a ocupação do espaço porque agora a antidemocracia é mais que assombro ou resquício institucional; o momento comporta, novamente, o Festival de Besteiras que assola o país e a chama autoritária. Todavia, como nos disse o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, História pra ninar gente grande,205 que exaltou, no carnaval 2019, literalmente, a bandeira das nossas origens, índios, negros e pobres, na perpetuação da resistência é preciso um salve

205 Nesse desfile, a agremiação carioca também homenageou a vereadora Marielle Franco. 377

para “quem foi de aço nos anos de chumbo” porque o viés reacionário almeja a destruição educacional e o controle da arte, dos costumes e dos corpos, mas o carnaval é a subversão em essência e a liberdade político- cultural se manterá, afinal, como diria Torquato, “[...] as palavras, eu aprendi novamente, não são armas inúteis.” (NETO, 2004, p.288).

Figura 27 − Bandeira brasileira: índios, negros e pobres

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Os últimos tempos apontaram para o fato de que o Brasil não possui memória consolidada acerca do período antidemocrático e ainda há muitas vozes nas salas de jantar dos lares brasileiros ecoando e almejando silenciar as narrativas sérias e reverter o ressentimento via direitismos e conservadorismos frágeis. A desmemória configura-se em brecha para a ascensão da politização do ressentimento que produz civis e militares ávidos pelo poder, agora democrático, mas desigual, que ascende, sobretudo, com o auxílio do populismo teocrático que fantasia o tempo passado querendo a volta a uma era, pensada como ideal, que abafa as mudanças e movimentos sociais naturais ao passar dos tempos. Assim, o orgulho de ser de direita e o menosprezo aos pobres e aos cidadãos das periferias nunca foi tão altivo, fazendo com que a história pareça, de certa forma, se repetir, como analisa Löwy:

Em 1964, grandes manifestações ‘da família com Deus pela liberdade’ prepararam o terreno para o golpe contra o presidente João Goulart; hoje, multidões ‘patrióticas’ influenciadas pela imprensa submissa se mobilizaram para exigir a destituição de Dilma, em alguns casos chegando a pedir o retorno dos militares... Formadas essencialmente por brancos (os brasileiros são em maioria negros ou mestiços) de classe média, essas multidões foram convencidas pela mídia de que, nesse caso, o que está em jogo é ‘o combate à corrupção’. (LÖWY, 2016, p.66).206

206 Assim como ocorreria em 2016, em que o povo repetia, sem medir as consequências, de que se tiraria Dilma para depois tirar os políticos corruptos, aconteceu no golpe que retiraria Jango do poder, como considera Gaspari: “Nas altas horas da noite de 31 de março o golpe tinha uma bandeira: tirar Jango do poder, para combinar o resto depois. Já a defesa do governo caíra numa posição canhestra. Tratava-se de manter Jango no palácio, sem se saber direito para quê, nem em benefício de quem. As poucas forças conservadoras que, por razões de conveniência, ainda estavam associadas ao presidente, dispunham de meios para ajudá-lo, mas não tinham um propósito para mantê-lo no poder. As forças da esquerda, que tinham o propósito, não tinham os meios. A árvore do regime constitucional começava a dar sinais de que cairia para a direita.” (GASPARI, 2014, p.88). E, assim, o golpe possibilitou que os generais retirassem dos brasileiros o direito de votar; de escolher seus representantes, sobretudo o do presidente da República, cargo máximo que o generalato revezou por mais de duas décadas, pois “eram poucos os oficiais das Forças Armadas capazes de 379

Torquato não gostava da burguesia tola, mas também não se ajustava à esquerda careta, adepta do reacionarismo cultural e social, em função disso, é no apoio que grande parte da população deu ao lado direitista da história que também reside o aforismo do boi torquatiano, pois, como salienta Souza, “os tolos são a classe média e, mais ainda, a parte do povo que saiu às ruas para funcionar como base social para esse banquete do privilégio de alguns, acreditando, efetivamente, que estava renovando o país. Não faltou aviso.” (SOUZA, 2016, p.133). No entanto, o processo de impeachment e as eleições de 2018 tornaram visível a proliferação, aos montes, de uma massa de cidadãos de origem pobre avalizando argumentos elitistas, percebendo-se uma multidão dos ditos pobres de direita com comportamento sadomasoquista, lambendo os pés daqueles que os açoitam historicamente, e o mais grave se daria, posteriormente, porque

com o golpe consumado, todos os interesses que se articularam partem direto para a rapina e para o saque do espólio. Vender as riquezas brasileiras, o petróleo à frente, cortar os gastos sociais, posto que o que vale agora é apenas o interesse do 1% mais rico, e fazer a festa da turma da ‘privataria’. Os pobres voltam ao esquecimento, à marginalidade e aos salários de escravos por serviços à classe média e às empresas dos endinheirados. Tudo como antes no quartel de Abrantes. (SOUZA, 2016, p.131-2).

Assim, de modo patente, percebemos uma espécie de criminalização das esquerdas onde é visível a seletividade empreendida aceitar a ideia de que o voto de um mendigo vale tanto quanto o de um general.” (GASPARI, 2014, p.117). Ademais, em 1964, o jornal Última Hora expôs o golpe e no dia da deposição de João Goulart teve as redações do Rio e Recife depredadas. O dono, Samuel Wainer, se exilou no Chile e teve de vender o empreendimento em 1971. Na deposição de Dilma, não houve a atuação de um meio físico como o Última Hora, mas sim o jornalismo virtual e independente como, por exemplo, o realizado pela Mídia Ninja e o Jornalistas Livres que num esforço descomunal denunciaram o golpe de Temer e os esquemas políticos que o sustentaram.

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pelos órgãos do Estado e pela grande mídia apontando todos os escândalos de corrupção como sendo fruto exclusivo dos partidos esquerdistas, aos quais a imprensa conivente chama de organizações criminosas, e que culmina com a prisão, sem provas, do ex-presidente Lula, já que, nesse ato, não se condena apenas o cidadão que fora presidente da República, se macula a recente democracia e se flerta com a instauração antidemocrática e autoritária, resultando num conjunto gravíssimo para o Estado de Direito e para legalidade de igualdade perante a lei, pois o lawfare contra Lula se aproxima de um Estado de exceção quando ignora a presunção de inocência, o que do ponto de vista jurídico é bastante inquietante, pois, segundo Rafael Valim, em O caso Lula e o fracasso da justiça brasileira, a Constituição Federal de 1988, “[...] em seu art. 5º, inc. XXXIX, proclama um princípio universal do direito penal, qual seja: ‘Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal’. [...] Significa que os órgãos do Estado encarregados da apuração e da punição dos crimes não podem ‘criar’ hipóteses não previstas em lei.” (VALIM, 2018, p.182). Há, portanto, dois golpes na história recente brasileira que ainda reverberam, o primeiro, civil-militar, sabemos o que ocasionou ao país e ainda causa; e o segundo, atual e cínico, o tempo dirá como afetará a democracia e a população, especialmente a mais pobre, parda e periférica, no entanto, esses eventos foram previsíveis e farsescos, como aponta Löwy, pois “citando Hegel, Marx escreveu no 18 de brumário de Luís Bonaparte que os acontecimentos históricos se repetem duas vezes: primeiro como tragédia, segundo como farsa.” (LÖWY, 2016, p.64- 5).207 Como vemos, diante de tal cenário desolador, é um erro gravíssimo omitir para esquecer, sobretudo historicamente, partindo do pressuposto de que não há aprendizado com o esquecimento e sim com a lembrança, clara e coeva, por mais vis que sejam os fatos, embora a elite brasileira sempre tenha empreendido a missão de omitir:

207 Nesse teatro lúgubre, há uma trama de interesses e “o principal componente dessa aliança de partidos de direita é o bloco parlamentar (não partidário) conhecido como ‘a bancada BBB’: da ‘Bala’ (deputados ligados à Polícia Militar, aos esquadrões da morte e às milícias privadas), do ‘Boi’ (grandes proprietários de terra, criadores de gado) e da ‘Bíblia’ (neopentecostais integristas, homofóbicos e misóginos).” (LÖWY, 2016, p.64-5).

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Todos os nossos papéis da escravidão foram queimados, supostamente para nos esquecermos dela. A nossa anistia do esquecimento teve o mesmo sentido. Quem esquece o erro está destinado a repeti-lo indefinidamente. [...] Nossa desigualdade, seja pela indiferença de uma elite vampiresca e míope, seja pelo desprezo de uma classe média boçal e tola, é uma continuidade direta com a escravidão nunca assumida efetivamente e nunca criticada em sua continuidade até os dias de hoje. Os golpes sucessivos, toda vez que a maioria oprimida ganha voz, significam o eterno retorno dessa indiferença e desse desprezo. O reprimido sempre volta se não for encarado de frente e transformado. (SOUZA, 2016, p.136-7).

Diante das atuais ameaças fascistóides, há a sensação de que Torquato, décadas antes, parecia profetizar a desgraça nacional em Poema do aviso final, contido na safra de inéditos e publicado em O fato e a coisa:

É preciso que haja alguma coisa alimentando o meu povo: uma vontade uma certeza uma qualquer esperança.

É preciso que alguma coisa atraia a vida ou a morte: ou tudo será posto de lado e na procura da vida a morte virá na frente e abrirá caminhos.

É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço: ou a dignidade humana se afirmará 382

a machadadas.

(NETO, 2012, p.98).

De tal modo, o poeta se utiliza da imagem próxima do apocalíptico juízo final, forte elemento da tradição judaico-cristã, para propagar uma forma de sobrevivência no fim dos tempos, esse tempo sacral que ele emprega num tom premonitório e profanador, que pode ser visto sob a ótica benjaminiana, quando se percebe que cada instante pode carregar o juízo final, sendo o momento da verdade e da justiça, como na tese 3 de Sobre o conceito da História: “[...] Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final.” (BENJAMIN, 2011, p.223).208 Coincidentemente, o poema parece invocar a frase célebre atribuída ao pacifista Mahatma Gandhi quando o indiano diz ao mundo que “de olho por olho, a humanidade acabará cega”; que a via de abertura por meio de violência, representada pelas machadadas, não se configura como o caminho mais plausível, mormente, na lembrança dos golpes sofridos, militar e de Estado, e na dureza da realidade desigual do Brasil, do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas/ da força da grana

208 Como aponta Michael Löwy, em Walter Benjamin: aviso de incêndio, “[...] se é evidente que a história não se repete e que nossa época não lembra muito os anos 1930, parece difícil acreditar, à luz da experiência do final do século XX, que as guerras, os conflitos étnicos, os massacres pertençam a um passado longínquo. Ou que o racismo, a xenofobia, o próprio fascismo não representem mais um perigo para a democracia. A essas ameaças de catástrofe, que lembram as do passado, poderíamos acrescentar outras mais novas: por exemplo, a possibilidade de um desastre ecológico maior, colocando em risco a própria sobrevivência da espécie humana – uma forma de destruição provocada pela ‘tempestade que se denomina progresso’, que Benjamin, apesar de sua reflexão crítica sobre a dominação/exploração da natureza, não podia prever. Ou ainda, a possibilidade de novas formas de barbárie, imprevisíveis, não como as do passado, que podem ser produzidas ao longo do século, enquanto as sociedades modernas continuarem submissas às relações de desigualdade e de exclusão.” (LÖWY, 2010, p.152).

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que ergue e destrói coisas belas, da Sampa de Caetano, cuja atmosfera claustrofóbica lembra um trecho de O artigo do dia, publicado em 22 de agosto de 1967, no Jornal dos Sports, por Torquato, que parece mais atual do que nunca: “quanta tolice andam dizendo e escrevendo por aí, quanta deturpação dos fatos, quanta covardia, quanta autopromoção mal disfarçada. Quanta coisa esquisita.” (NETO, 2004, p.163). Logo, pelo visto, de algum modo, os tempos não são bem outros, continuam vampirescos e agravam-se por carregarem o germe do alarmante protofascismo. Contudo, torna-se vital lembrar que no retorno dos tempos sombrios, quando a voz do poeta soa em ecos, é preciso se permitir a volta no tempo-espaço torquatiano para nos alentarmos especialmente agora, na cíclica iminência do perigo, porque, como percebe Viviana Bosi, em Torquato Neto: “começa na lua cheia e termina antes do fim”, “[...] ao manter viva a memória de sua ferroada e de sua ferida, podemos nos inocular seu veneno salutar refeito em vacina, forte em reflexão, dor e alegria [...].” (BOSI, 2014, p.51), que, como diria o poeta, se configura como risco, pessoal e intransferível.

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Farrapo humano. Direção de Billy Wildner. Estados Unidos, 1945.

Futuro do pretérito: Tropicalismo now! Direção de Ninho Moraes. São Paulo: Vitrine Filmes, 2012.

Helô e Dirce. Direção de Luiz Otávio Pimentel. Rio de Janeiro, 1971.

Hércules 56. Direção de Silvio Da-Rin. Rio de Janeiro: A e A, 2006.

Jards Macalé – um morcego na porta principal. Direção de Marco Abujamra e João Pimentel. Rio de Janeiro: Dona Rosa Filmes, 2008.

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Matou a família e foi ao cinema. Direção de Júlio Bressane. Rio de Janeiro, 1969.

Meteorango kid: herói intergalático. Direção de André Luiz Oliveira. Salvador, 1969.

Meu ódio será tua herança. Direção de Sam Peckinpah. Estados Unidos, 1969.

No intenso agora. Direção de João Moreira Salles. Rio de Janeiro: Bretz Filmes, 2017.

Nosferato no Brasil. Direção de Ivan Cardoso. Rio de Janeiro, 1971.

Nosferatu, uma sinfonia de horror. Direção de Friedrich Wilhelm Murnau. Alemanha, 1922.

O bandido da luz vermelha. Direção de Rogério Sganzerla. São Paulo: Mercúrio, 1968.

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O demiurgo. Direção de Jorge Mautner. Inglaterra, 1970.

Os doces bárbaros. Direção de Jom Tob Azulay. Rio de Janeiro: A e B Produções, 1978.

O terror da Vermelha. Direção de Torquato Neto. Teresina, 1972.

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Rashomon. Direção de Akira Kurosawa. Japão, 1950.

Rogério Duarte, o tropikaoslista. Direção de José Walter Lima. São Paulo: 02 Play, 2016.

Teorema. Direção de Pier Paolo Pasolini. Itália, 1968.

Terra em transe. Direção de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Mapa Filmes, 1967.

Terráqueos. Direção de Shaun Monson. Estados Unidos, 2005.

Tom Zé ou quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século. Direção de Carla Gallo. São Paulo: Rumos Cinema e Vídeo, 1999.

Torquato Neto – Todas as horas do fim. Direção de Marcus Fernando e Eduardo Ades. São Paulo: Vitrine Filmes, 2017.

Tropicália. Direção de Marcelo Machado. São Paulo: Bossa Nova Films, 2012.

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