CIRCO TRANSCENDENTAL

O CIRCO MÍSTICO NA POESIA DE JORGE DE LIMA, NAS CANÇÕES DE EDU LOBO E E NA CULTURA BRASILEIRA

BY

GUILHERME TRIELLI RIBEIRO

B.A., UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 1996 M.A., UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2002 M.A., BROWN UNIVERSITY, 2006

A DISSERTATION SUBMITTED IN PARTIAL FULFILLMENT OF THE REQUIREMENTS FOR THE DEGREE OF DOCTOR OF PHILOSOPHY IN THE DEPARTMENT OF PORTUGUESE AND BRAZILIAN STUDIES AT BROWN UNIVERSITY

PROVIDENCE, RHODE ISLAND MAY 2011

© copyright 2011 by Guilherme Trielli Ribeiro

This dissertation by Guilherme Trielli Ribeiro is accepted in its present form by the Department of Portuguese and Brazilian Studies as satisfying the dissertation requirements for the degree of Doctor of Philosophy

Date ______Luiz Fernando Valente, Director

Recommended to the Graduate School

Date ______Nelson H. Vieira, Reader

Date ______Patricia Sobral, Reader

Approved by the Graduate Council

Date ______Peter M. Weber Dean of the Graduate School

iii ABSTRACT

This dissertation analyzes the connections between Jorge de Lima’s 1938 poem

“O grande circo místico” and a group of songs that Edu Lobo and Chico Buarque composed in 1983 inspired by the poem. This comparative study of the poem and the songs offers a new perspective on the works by the poet and the composers, and also allows for an interpretation of Brazilian culture that responds to classic works such as those by Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., and Antonio

Candido.

Through the specific conjunction of the circus and mysticism, both the poem and the songs function as allegories of Brazilian history. In a general sense, the mystic circus allegory favors what Walter Benjamin called a messianic conception of time and history in contrast to a notion of linear time. By representing the nation as a community of circus artists and relying on an ethics of solidarity, it underscores cultural plurality, and fluid and performative identities, as opposed to the discourses of national identity built on notions of roots, local traditions, and hierarchical representation of nationhood.

While studying the period between the publication of the poem and the recording of the songs, I detected the image of the mystic circus dispersed in other places of

Brazilian culture besides music and literature such as cinema, theater, dance, soccer, and daily spoken language, among many others. These cultural objects form a long-lasting cultural web (a topos) defined by the conjunction of mysticism and circus, which resonates with classic interpretations of Brazilian history and culture.

iv VITA

Guilherme Trielli Ribeiro was born in Belo Horizonte, in the state of Minas

Gerais, Brazil, on March 7, 1971. He received a B.A. in Portuguese from the

Faculdade de Letras at Universidade Federal de Minas Gerais in 1996. At this same institution he received a M.A. degree in Brazilian Literature in 2002 with the thesis

O ouvido armado — Murilo Mendes, poesia e música. In 2002, he started the doctoral program at the Department of Portuguese and Brazilian Studies at Brown

University, where he received a M.A. degree in 2006. Guilherme has taught

Portuguese language and Brazilian literature, music and culture at Universidade

Federal de Minas Gerais, Brown University, Harvard University and Michigan State

University.

v AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, ao Professor Luiz F. Valente, que não mediu esforços ao me orientar.

Agradeço também aos Professores Nelson H. Vieira, Patricia Sobral e Leonor

Simas-Almeida, juntamente com minhas queridas Armanda Silva e Cândida Hutter, por me acompanharem com paciência, sabedoria e generosidade durante meu percurso na Brown University.

Agradeço, pelo convívio e pela aprendizagem, aos Professores Alice

Clemente, Anani Dzidzienyo, George Monteiro, James Green, Jorge Flores,

Katherine R. Goodman, Marcos Arruda, Maria Lúcia Lepecki, Onésimo Teotônio

Almeida, Rosa Maria Perez, Rose Rosengard Subotnik e Stefan Halikowski Smith.

Aos meus familiares, amigos e colegas de jornada, sou muito grato por muitos motivos, mas sobretudo pelo afeto, o diálogo, a paciência e por ainda não terem desistido de mim.

No front americano: Adam Wilson, Adi Gold, Alejandro Mier-Langner, Ana

Castro, Ana Catarina Teixeira, Ana Letícia Fauri, Anthony Muyombe, Ben Schrag,

Bruno Carvalho, Cara Goodman, Carmen Ruiz-Sánchez, Célia Bianconi, César

Moreno, Charlotte Whittle, Clémence Jouët-Pastré, Clifford Fields, Craig Borges,

Dánisa Bonacic, Dário Borim, Doug Noverr, Emron Esplin, Elizabeth Zaita, Gabriel

Wueben, Gabriela O’Leary, Geofrey Shullenberger, Glenn Rawson, Jan Bersten,

Isabel Fêo Rodrigues, Isadora Grevan de Carvalho, Ilan Yavitz, Jamil Samalot-

Rivera, José Luis Fernandes Lorenzo, Julia Garner, Karen Modesto, Loren Haughn,

Luca Prazeres, Lucía Flombaum, Luk Chong Yeung, Manuela Duarte, Maria

vi Dolores Moreno, Marlene Esplin, Michael Baum, Michael Marder, Michael

Popchock, Yi Liu, Miquel Bota, Natália Matta, Natalie Nielson, Nicolau Sevcenko,

Nilma Santos Dominique, Marcelo Bianconi, Giampaolo Bianconi, Patricia Vieira,

Paulinho Castro, Paulo da Luz Moreira, Pepa Novell, Rogério Carvalhal, Rachel

Rothenberg, Ross Singer, Robert Newcomb, Sandra Sousa, Oscar Pérez, Patricia

Figueroa, Pedro Flombaum, Regina Rendas Baum, Rex Nielson, Rick Bernsten,

Saulo Gouveia, Silvia Goldman, Sophia Beal, Stéphanie Larrieux, Stephen Bocskay,

Susanne Bernsten, Thayse Lima, Theodora Szasz, Tony Grubbs, Vivian Haughn.

Em outros mares: Abílio Rodrigues, Adriana Abalen, Alex Fiorini,

Alexandra Montague, Alexandre Amaro, Aline Aguiar, Alice Britto Mazzini,

Alfredo Santos, Alfredo Scaff, Álvaro Neder, Anízio Vianna, Ana Negrini, Antonio

Roberto Vergueiro Ribeiro, Clóvis Marchi Testa, Cristina Trielli Ribeiro Correa,

Daniel Trielli Paiva da Silva, Débora Ribas D’Ávila, Deborah Vitorio Palermo,

Deisily de Quadros, Duval Barros, Érica Mendes, Fernanda Mourão, Fernando

Pérez, Filipe Trielli, Flávio Boaventura, Heidi Haughn, Henrique Trielli Ribeiro,

Ivelin Scaff Ferraz da Rocha, Ivens Cuiabano Scaff, Janaína Aguiar, Jérôme Dubois,

Juliana Botelho, Kaj Thonsom, Kurt Wooton, Laetitia Iturralde, Laura Almeida,

Laura Penna, Letícia Braga, Letícia Galizzi, Luiz Ferraz da Rocha, Maria del Mar

Patrón-Vasquez, Maria Gracinda Trielli, Maria Cecília de Miranda Coelho, Marcus

Vinícius de Freitas, Marcus Vinícius Trielli dos Santos, Murilo Marcondes de

Moura, Monika Pérez, Myriam Ávila, Oliver Yatsugafu, Pablo Arruda, Patricia

Soldati, Paulo de Andrade, Pedro Duarte de Andrade, Raquel Medeiros Cruz,

Renato Trielli, Ricardo Aleixo, Rodrigo Duarte, Romyna Lanza, Rosana Stefano

vii Trielli Ribeiro, Rúbia Yatsugafu, Sérgio Antonio Silva, Sérgio Alves Peixoto,

Silvana Mariani, Valquir Júnior Correa, Sérgio Soares Ferreira, Taís Scaff, Tereza

Cristina Trielli Paiva da Silva, Valéria Gauz, Vanessa Barbosa Trielli e Vera Casa

Nova.

Aos cavaleirinhos de Jorge, alegria da vida: Alice, Carolina, Lucas, Mateus,

João Pedro, Nicolas, Louis, Flora, Rafael, Vicky, Elito, Miguel Armando, Elisenda,

Lucía, Andrés, Clara, Isabel, Laura, Noé, Sandra, Isadora, Nina, Luca, Leo, Bodhi,

Victoria Sebastiana, Ruy, Alice, Bree, Augusto, Narizinho, Samuel, Olívia, Gabi,

Isabel, Bodhi, Macey, Clara, Owen, Kalila, Stefan, Miguilim, Juju, Isabela, Lívia,

Anita, Julieta, Kindzu, Luca, Mia, Daniel, Rachel, Miguel, Amanda, Larinha,

Rafael, João Pedro, Júlia, Mateus, Antonio, João, Henry, Mariana.

viii

À Marília, com amor.

ix SUMÁRIO

Introdução 1

Capítulo 1 A IMAGEM À DERIVA: HISTÓRIA E ALEGORIA EM “O GRANDE CIRCO MÍSTICO” DE JORGE DE LIMA

A Mágica e o Milagre 22

Todos cantam sua terra 28

Alegoria 37

Ficção e Biografia 44

O Poema e a Notícia 60

A Musa Surrealista 79

Figurações da História 88

História da Salvação 97

Capítulo 2 CANÇÕES PARA UM BALÉ: O GRANDE CIRCO MÍSTICO DE EDU LOBO E CHICO BUARQUE

Beatriz 103

Valsa dos Clowns 124

Opereta do Casamento 130

A História de Lily Braun 136

Meu namorado 143

A Bela e a Fera 148

Sobre Todas as Coisas 158

Ciranda da Bailarina 166

O Circo Místico 172

Na Carreira 177

x Capitulo 3 UM OUTRO PAÍS: ENSAIO SOBRE O CIRCO MÍSTICO NA CULTURA BRASILEIRA

Concepção do Balé 185

Arte, letra 188

O Contraponto Alegórico 196

Paraíso do Gentileza 200

Anjo das Pernas Tortas, Alegria do Povo 206

Circo de Letras 208

Bêbados e Equilibristas 210

Redescrição das Alegorias 213

Conclusão 231 Bibliografia 245

xi

INTRODUÇÃO

Verdadeiro materialista histórico não é aquele que segue ao longo do tempo linear infinito uma vã miragem de progresso contínuo, mas aquele que, a cada instante, é capaz de parar o tempo, pois conserva a lembrança de que a pátria original do homem é o prazer. É este o tempo experimentado nas revoluções autênticas, as quais, como recorda Benjamin, sempre foram vividas como uma suspensão do tempo e como uma interrupção da cronologia; porém, uma revolução da qual brotasse, não uma nova cronologia, mas uma mudança qualitativa do tempo (uma cairologia), seria a mais grávida de consequencias e a única que não poderia ser absorvida no refluxo da restauração. Aquele que, na epoché do prazer, recordou-se da história como a própria pátria original, levará verdadeiramente em cada coisa esta lembrança, exigirá a cada instante esta promessa: ele é o verdadeiro revolucionário e o verdadeiro vidente, livre do tempo, não no milênio, mas agora.

Giorgio Agamben, “Tempo e história”

“O grande circo místico” (A túnica inconsútil, 1938) certamente suplantou o número de leitores de outros poemas de Jorge de Lima, como “O acendedor de lampiões,” “Essa Nêga Fulô,” “O grande desastre aéreo de ontem” e o Canto IX de

Invenção de Orfeu, “Permanência de Inês,” tão citados nas antologias escolares. Ao considerarmos o número de pessoas que o leram e ainda lêem, talvez seja mais justo

1 colocá-lo ao lado de poemas de ampla divulgação, os quais, para lá de clássicos, chegam a habitar a memória coletiva. Refiro-me a textos como “Poema de sete faces,” “No meio do caminho” e “José,” de Carlos Drummond de Andrade, e

“Pneumotórax” e “Vou-me embora pra Pasárgada,” de Manuel Bandeira, para citar apenas alguns poucos poemas desses dois poetas modernistas paradigmáticos.

O sucesso de “O grande circo místico” teve início tardiamente — há exatos

45 anos após sua publicação — e deve-se ao conjunto de canções que Edu Lobo e

Chico Buarque compuseram por encomenda para o Ballet Guaíra, de Curitiba.

Desde sua gravação, em 1983, o LP O grande circo místico alcançou um grande número de ouvintes, reaparecendo em forma de CD, em 1993 e 2004. O Ballet

Guaíra viajou com a montagem durante 1983 e 1984 e, em quase 200 apresentações, foi visto por mais de 200 mil pessoas, prodígio repetido na segunda montagem do balé, realizada em 2002. Além disso, vários outros músicos regravaram e continuam a regravar canções isoladas, o que indica o grande interesse do público e dos artistas por essas canções de Chico e Edu.

O número se amplia largamente se incluirmos os leitores e ouvintes de outros países  no encarte do CD o poema vem transcrito no original e traduzido em inglês e francês. É bastante provável que, ao preparar a Anthology of Contemporary

Latin American Poetry (2007), o crítico norte-americano Dudley Fitts tenha tomado conhecimento do texto através do disco, assim como é provável que muitos leitores tenham se interessado por Jorge de Lima a partir do contato com as canções de Edu e Chico.

2 É curioso que o poema tenha ficado conhecido através da música popular sem no entanto ter se transformado em letra de canção  como aconteceu com os textos de outros autores. O caso em questão é diverso: o poema de Jorge de Lima, mantendo-se intacto enquanto texto, inspirou o ciclo de canções como um todo

(letra e música).1 O que temos a frente, portanto, não se trata apenas de canções geniais. Mas de canções que pedem a experiência de um poema. Não foi por acaso que os compositores decidiram incluí-lo ao lado das letras nos encartes do LP e do

CD e nos programas do balé, fazendo com que o texto poético funcionasse como uma espécie de contraponto das canções. Ou seja, como a sequência das canções não

é arbitrária, espera-se que o ouvinte tenha em mente o poema ou volte a ele sempre que necessário para poder acompanhar os desdobramentos narrativos do balé.

Em vista disso, podemos dizer que o estudo comparado se impõe a partir da própria relação estabelecida entre o poema e as canções e, nesse sentido, seria um equívoco tomar o poema como um objeto avulso, artefato de mera curiosidade justaposto como apêndice às canções. Ao contrário, trata-se de uma peça fundamental no processo de construção de sentido. Em , o poema não se trata da sinopse das canções, mas de um discurso em contraponto. Tanto é assim que o leitor-ouvinte depara-se com as canções e volta ao poema várias vezes, buscando identificar, por exemplo, as personagens das canções com as personagens do texto.

1 Nesta tese não serão analisadas as peças instrumentais do balé.

3 Tal como em nosso objeto de estudo, o diálogo entre música popular e poesia existe há longa data na cultura brasileira, sendo uma de suas marcas distintivas.

Como alguns estudiosos ressaltam, esse diálogo se estreitou em e teve como consequência imediata um alargamento considerável nos respectivos campos. Antonio Candido, no ensaio “A Revolução de 1930 e a Cultura,” observa a necessidade de se refletir sobre a interpenetração da música popular com a poesia erudita, “que é dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea e começou a se definir nos anos 30, com o interesse pelas coisas brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário.” (1989, 198) No ensaio “A Gaia Ciência:

Literatura e música popular no Brasil,” José Miguel Wisnik considera a interpenetração observada por Antonio Candido como um dos traços distintivos da música popular brasileira feita a partir do final da década de 50:

Dizer que a música popular brasileira é forte e bela é mais verdade do que novidade, mas pouco ajuda, dentro ou fora do Brasil, a entender aquilo que a distingue. Aparentemente, um dos seus traços mais notáveis é a permeabilidade que nela se estabeleceu a partir da bossa nova entre a chamada cultura alta e as produções populares, formando um campo de cruzamentos muito dificilmente inteligível à luz da distinção usual entre música de entretenimento e música informativa e criativa. (2004, 215)

O fenômeno da permeabilidade entre a cultura alta e as produções populares, assim como o “paradigma estético resultante dessa migração,” leva o ensaísta a comparar os cancionistas brasileiros contemporâneos (de e Tom

Jobim aos compositores de hoje) com os trovadores da época áurea da canção francesa no século 12 e, em tempos modernos, a Cole Porter, George e Ira

Gershwin, dos quais destaca o acabamento e a elegância das canções. Em suma,

Wisnik postula que

4 se constituiu no Brasil, efetivamente, uma nova forma da “gaia ciência,” isto é, um saber poético-musical que implica uma refinada educação sentimental (como aquele assim designado pelos trovadores de Toulouse no século 16, lembrando a grande tradição provençal do século 12) mas, também, uma “segunda e mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais ingênua e cem vezes mais refinada do que ela pudesse ter sido jamais” (a frase é de Nietzsche na abertura d’A Gaia Ciência). De fato, a agudeza intelectual (muitas vezes afinada com as próprias bases barrocas da formação colonial) e a “inocência na alegria” (espraiada na cultura extensiva do carnaval) saem potencializadas pelo seu rebatimento, nesta linhagem da canção popular brasileira. Noutras palavras, o fato de que o pensamento mais ‘elaborado,’ com seu lastro literário, possa ganhar vida nova nas mais elementares formas musicais e poéticas, e que essas, por sua vez, não sejam mais pobres por serem ‘elementares,’ tornou-se a matéria de uma experiência de profundas conseqüências na vida cultural brasileira das últimas décadas. (218)

O emblema do processo que desembocou na gaia ciência referida acima é Vinicius de Moraes. Poeta de desde os anos 30, passou a desempenhar gradualmente o papel de cancionista, porém não deixando jamais de atuar como poeta:

A partir do momento em que Vinicius de Moraes, poeta lírico reconhecido desde a década de 1930, migrou do livro para a canção, no final dos anos 50 e início dos 60, a fronteira entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de compositores e letristas leitores dos grandes poetas modernos, como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Manuel Bandeira, Mário de Andrade ou Cecília Meireles. (215-216)

Entre esses compositores certamente se incluem Chico Buarque, que também

é autor literário, e Edu Lobo. Além de serem leitores cultivados de poesia e de outros gêneros literários, foram parceiros do próprio Vinicius. Por isso, o balé O grande circo místico pode ser considerado um exemplo típico da gaia ciência referida acima, a canção popular brasileira. Por um lado, é fruto da leitura de um dos poetas mais importantes do modernismo brasileiro; por outro, é a requintada

5 reinvenção de um texto literário por si só já extremamente difícil e que somente a mestria absoluta dos compositores poderia realizar.

Buscarei verificar em que medida as canções de Edu e Chico e o poema de

Jorge de Lima unem duas pontas do processo formativo da gaia ciência de que fala

José Miguel Wisnik. Para tanto, é preciso considerar o seguinte ponto: se em 1928, no Ensaio sobre a música brasileira, Mário de Andrade afirmava que a música popular brasileira foi onde primeiro se manifestou o que ele definia como caráter nacional e que, portanto, ela deveria ser tomada como ponto de partida por compositores eruditos; a partir dos anos 60 não havia mais como separar de modo preciso popular e erudito, como indica José Miguel Wisnik em uma das citações acima, ao atestar a dificuldade de se distinguir a música de entretenimento e a música informativa e criativa.

É importante mencionar esse contraste porque o conceito de cultura popular se transformou sensivelmente durante o período em questão. De um modo geral, os intelectuais dos anos 30 consideravam cultura popular (ou folclore) as manifestações supostamente autênticas, geralmente originárias do mundo rural, as quais deveriam ser resgatadas e preservadas a fim de se produzir arte erudita nacional. A partir do final dos anos 50, o conceito de cultura popular tornou-se mais abrangente, incluindo também o que naquela altura Mário de Andrade designava, pejorativamente, de popularesco. Uma das diferenças entre cultura popular e popularesco consistia no grau de pureza de uma em relação à outra. Enquanto a cultura popular produzida nas zonas rurais do país era vista como intocada pelos processos de modernização, que começavam a introduzir elementos estrangeiros em

6 nossa cultura de base, o popularesco caracterizava-se, contraditoriamente, pela indefinição. Como indica Eduardo Jardim, é evidente que o projeto estético- ideológico de Mário de Andrade acaba por não coincidir com suas realizações artísticas, sobretudo quando pensamos nos momentos altos de sua poesia e em uma obra capital como Macunaíma, abertos às mais variadas misturas, do rural ao urbano, denotando a complexidade do pensamento e da personalidade do escritor paulista:

A formulação mais acabada das teses modernistas encontra-se na obra de Mário de Andrade. Foi nos textos do escritor paulista que a doutrina modernista, muitas vezes, ganhou forma, e a trajetória da sua vida refletiu o desdobramento dos ideais modernistas em todas as suas implicações. Os primeiros trabalhos de Mário de Andrade, do período da Semana de 22, já expressavam a adesão ao ideal modernizador. Pouco depois, sua posição determinou a reorientação do movimento na direção do nacionalismo. As obras da segunda metade da década de vinte e dos anos trinta corresponderam ao ambicioso programa de levantamento e de análise dos traços genuinamente nacionais da cultura. Ao mesmo tempo, amadureceu em Mário de Andrade a convicção de que a arte possui um significado coletivo e de que era preciso alertar para os males do individualismo e do formalismo. Todos esses propósitos ganharam, além disso, uma dimensão prática, pois eles nortearam a atuação de Mário de Andrade na vida pública, como foi o caso da direção do Departamento de Cultura de São Paulo, de 1935 a 1937. (11-12) 2

Mas, como sabemos, o projeto da música nacionalista, tal qual idealizado no

Ensaio sobre a música brasileira, teve grande ressonância no pensamento brasileiro, tornando-se hegemônico até os anos 50. Em síntese, o projeto de Mário, seguindo em

2 O filósofo conclui, a respeito do mesmo assunto: “Recompor a trajetória da vida de Mário de Andrade não representa, apenas, a ocasião para acompanhar a formulação dos principais tópicos do programa modernista e da sua realização ao longo dos anos. É também a oportunidade de examinar as contradições e os impasses dessa corrente de idéias. Mário de Andrade expressou a sua desilusão com o destino do modernismo em vários escritos, muitas vezes com tonalidade sombria, no período de 1938 a 1945, ano da sua morte. Seu desencanto dizia respeito à falência da inteligência em poder se aliar e servir a uma instância da vida coletiva. Mário de Andrade procurou recuperar, nesses anos, por vários caminhos, a unidade perdida. Seu esforço, porém, resultou malogrado. Cada uma a seu modo, as soluções que experimentou  a reorientação da técnica artística, a politização da arte e a experiência estética  foram conduzidas até um impasse que as tornou inviáveis. Nessa altura, teria Mário de Andrade percebido que estava presenciando o fim do ciclo modernista? Podem os gênios adivinhar na trama do tempo o momento da sua ruptura?” (12-13)

7 alguns pontos a tradição romântica, definia a identidade brasileira a partir da resultante

étnico-cultural do processo de miscigenação entre índios, negros e brancos. Era, portanto, o mestiço que deveria ser o objeto fundamental, distintivo, porque era ele o brasileiro legítimo. Ao empenharem-se na busca de uma arte nacional, muitos modernistas elegeram o mundo mestiço  não apenas do ponto de vista racial, mas sobretudo cultural

 para ocupar a posição de principal objeto da literatura e das outras artes. Tanto a cultura urbana (por sua dispersão cosmopolita, sua “ausência de caráter”) quanto cada uma das três matrizes culturais (se consideradas isoladamente) ficavam fora das discussões sobre a cultura popular nacional. Mário de Andrade afirma de modo explícito:

O compositor brasileiro tem de se basear quer como documentação quer como inspiração no folclore. Este, em muitas manifestações caracteristiquissimo, demonstra as fontes donde nasceu. O compositor por isso não pode ser nem exclusivista nem unilateral. Si exclusivista se arrisca a fazer da obra dele um fenômeno falso e falsificador. E sobretudo facilmente fatigante. Si unilateral, o artista vira antinacional: faz música amerindia, africana, portuga ou européia. Não faz música brasileira não. (2006, 23-24)

Jorge de Lima, como se sabe, recebeu muitas influências de Mário de

Andrade e passou por uma longa fase regionalista (de 1925 a 1935), durante a qual escreveu poemas baseados na observação direta da realidade, sobretudo a realidade de sua terra natal, Alagoas, a Bahia, onde concluiu parte dos estudos médicos, e o

Nordeste, em geral, por onde viajou quando jovem. Sobre esta fase, Alexei Bueno observa, na “Nota editorial” da Poesia completa de Jorge de Lima:

Em 1925, de súbito, acontece a adesão ao Modernismo, com o poema “O mundo do menino impossível,” republicado em Poemas, em 1927. Neste livro, assim como em Novos poemas, de 1929, Poemas escolhidos, de 1932, e Poemas negros, só reunidos em 1947, encontramos a segunda fase, ortodoxamente modernista, de Jorge de Lima. A temática regional, o coloquialismo da língua, o folclorismo, a enumeração de um léxico típico, do toponímico ao onomástico e ao

8 culinário, caracterizam o estilo dessa segunda fase, marcada também por um constante interesse temático pelo elemento negro, que a singulariza em relação a diversas individualidades poéticas então preocupadas com uma redescoberta do Brasil, por mais distante que tudo isso esteja, paradoxalmente, do que pelo resto do mundo significou a expressão “modernismo.” (1997, 12)

Todos os elementos mencionados acima  a temática regional, o coloquialismo da língua, o folclorismo, a enumeração de um léxico típico, do toponímico ao onomástico e ao culinário, um constante interesse temático pelo elemento negro  marcam o perfil característico tão reconhecível na poesia de

Jorge de Lima nessa fase. Entretanto, não parece correto afirmar que o poeta alagoano tenha sido um modernista ortodoxo, uma vez que sua concepção de cultura popular não separava o povo bom-rústico-ingênuo do folclore e as massas urbanas.

Para muitos dos intelectuais modernistas que acataram as diretrizes estéticas e ideológicas de Mário de Andrade, estas últimas eram vistas como um antimodelo e sua “presença democrático-anárquica no espaço da cidade (nos carnavais, nas greves, no todo-dia das ruas), espalhada pelos gramofones e rádios através do índice do em expansão, provoca estranheza e desconforto.” (Squeff & Wisnik, 1982, 131) A partir de sua adesão ao modernismo, Jorge de Lima passou a tratar de modo inclusivo a pluralidade da cultura brasileira. Sua visão, portanto, não se restringiu aos limites do nacionalismo, alinhando-se com a visão de autores como o Mário de Andrade do

Macunaíma, Oswald de Andrade (Primeiro caderno de poesia, Pau-Brasil, Serafim

Ponte Grande), Raul Bopp (Cobra Norato), Manuel Bandeira (Carnaval, Libertinagem), além de poetas da geração de 1930, como Carlos Drummond de Andrade e Murilo

Mendes.

9 O pensamento de Mário de Andrade é complexo e contraditório e não é à toa que

Jorge de Lima  também complexo e contraditório  se identifique apenas em parte com ele. Consideremos ainda alguns detalhes das propostas do programa nacionalista de

Mário  que se estendeu da música para outras áreas da cultura e que, como já foi dito anteriormente, se tornou hegemônico até a década de 1950.

José Miguel Wisnik observou que o autor de Macunaíma, referindo-se às virtudes

“autóctones” e “tradicionalmente nacionais” da música rural, dizia, no Ensaio sobre a música brasileira: “nosso populário sonoro honra a nacionalidade” e, portanto, “essa raiz, que serviria de base à pesquisa da expressão artística brasileira, deveria ser cuidadosamente separada da ‘influência deletéria do urbanismo,’ com sua tendência à degradação popularesca e à influência estrangeira.” (Squeff & Wisnik, 1982, 131) No entanto, Wisnik também ressalva:

Como sempre, o pensamento de Mário não é esquemático; ele procura nuançar o seu critério de valorização da música popular rural sobre a música urbana, nos seguintes termos: “Nas regiões mais ricas do Brasil, qualquer cidadinha do fundo sertão possui água encanada, esgoto, luz elétrica e rádio. Mas por outro lado, nas maiores cidades do país, no , no Recife, em Belém, apesar de todo o progresso, internacionalismo e cultura, encontram-se núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra. (...) Por tudo isso, não se deverá desprezar a documentação urbana. Manifestações há, e muito características, de música popular brasileira, que são especificamente urbanas, como o Choro e a Modinha. Será preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano, o que é virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o que é essencialmente popular, enfim, do que é popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais.” (131-132)

Jorge de Lima certamente não se enquadra no perfil do intelectual nacionalista ortodoxo. A prova mais evidente disso encontra-se no fato de ter escrito

10 alguns textos que apresentam a música popular urbana de maneira positiva, tais como “Retreta do vinte:”

O cabo mulato balança a batuta meneia a cabeça, acorda com a vista os bombos, as caixas, os baixos e as trompas.

(No centro da Praça o busto de D. Pedro escuta.)  Batuta pra esquerda: relincham clarins, requintas, tintins e as vozes meninas da banda do 20.

Batuta à direita: de novo os trombones e as trompas soluçam. E os bombos e as caixas: ban-ban! Vêm logo operários, meninas, cafuzas, mulatos, portugas, vem tudo pra ali. Vem tudo, parecem formigas de asas rodando, rodando em torno da luz.

Nos bancos da Praça conversas acesas, apertos, beijocas, talvezes.

D. Pedro II espia do alto. (As barbas tão alvas tão alvas nem sei!)

E os pares passeiam, parece que dançam, que dançam ciranda, em torno do Rei.

Ou o poema em prosa “Pra donde que você me leva:”

Julião se apoderou da melodia às 10 horas da noite em pleno jazz. O tema é só pretexto porque o mágico Julião  transformou o saxofone e está transformando a gente. Tudo é ritmo binário como as pernas, os braços, os olhos, os dois corações de Julião. Então o ritmo e a melodia principiaram deveras organizando um chulear de batuque e canto rotundo de cortar coração. No cume da voz está Gêge  filha de Ogum deitada se balançando; nas outras partes sonoras há outros deuses aquentando uns aos outros. Nisso o canto esguincha do saxofone como um repuxo vermelho. Julião dobra o saxofone na pança confundindo-o com o esôfago, os olhos esbugalhados, a alma inocente subindo a Escada de Jacó para dentro de Deus. Julião treme recebendo intuições, amolengando entre uma nota e outra o feitiço pendurado no pescoço.

11 Pulam de dentro do escuro do saxofone mucamas lindíssimas para cada um dos fulanos, porém o poder da música é tão lavado e tão branco, é tão estrela-d'alva que as ditas nem se atrevem a se amulherar com eles. Julião está reluzente que nem esfregado com óleo de andiroba, cada vez mais requebrado, mais impoluto e transparente, as teclas fechando as válvulas de seu corpo banzeiro, o canto se espraiando unânime, parece que tem carajuru na face, o funil do aparelho está espraiado como sua boca branca, um estenderete só. Ciscar no murundu! Chupar caxundé! Farrambambear por esse mundo! Mulatear pelas senzalas brancas! Mocar com a ocaia dos outros! Tudo isso eram gritos sinceros, mas sem maldade, porque tudo estava peneirado, sessado pela água amandigada da música. Pra donde que você me leva, poesia-uma-só? Pra donde que você me leva, mãe-d’água de uma só cacimba, Janaína de um só mar, Pedra-Pemba de um só altar?

E ainda o texto que encerra os Poemas Negros, “Olá! Negro,” em que encontramos os seguintes versos:

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro! E és tu que a alegras ainda com os teus jazzes, com os teus songs, com os teus lundus! (...) Negro, ó antigo proletário sem perdão, proletário bom, proletário bom! Blues Jazzes, songs, lundus... (...) Não basta iluminares hoje as noites dos brancos com teus jazzes, com tuas danças, com tuas gargalhadas! Olá, Negro! O dia está nascendo!

Todos esses exemplos indicam a atitude simpática de Jorge de Lima em relação à cultura popular das massas urbanas, com sua larga abertura para o , simbolizada nesses textos pela presença da música norte-americana.

12 O circo  ao qual, aliás, era associada a música urbana  é outro índice da diferença da perspectiva de Jorge de Lima em relação ao projeto nacionalista do modernismo brasileiro. Embora seja arte popular, o circo jamais se particularizou a ponto de se identificar a alguma região específica do mundo. É popular e universal ao mesmo tempo. Logo, ao tomá-lo como tema, Jorge de Lima lança mão de uma visão abrangente da cultura popular, não se restringindo às fronteiras do nacionalismo. Em outras palavras, para Jorge de Lima, o popular (particular) não exclui o universal. Esse modo de conceber a cultura é muitas vezes menosprezado pelos críticos do poeta, vendo em sua segunda fase apenas um caso típico de produção literária modernista vinculado de maneira ortodoxa ao nacionalismo.

Curiosamente, com Edu Lobo e Chico Buarque acontece o oposto, isto é, não se costuma ressaltar os laços efetivos de suas canções com o folclore, considerando- as exemplos típicos de cultura popular urbana. No entanto, ambos sempre mantiveram uma atitude simpática em relação ao folclore. Em Chico Buarque, notamos a presença da cultura popular rural, por exemplo, em sua produção para

Morte e vida severina e em suas canções feitas a partir de cirandas, tais como

“Teresinha,” “A noiva da cidade,” “Tororó.” As cantigas de base, de domínio público, fazem parte do manual de canto orfeônico organizado por Heitor Villa-

Lobos e financiado pela política nacionalista de Getúlio Vargas. São elas:

“Teresinha de Jesus,” “Tutu Marambá” e “Eu fui no Tororó.” Além disso, está presente em seu trabalho um veio de cantador nordestino, como se pode verificar em canções como “O que será,” “Paratodos,” “Se eu fosse o teu patrão” e “A violeira”

(feita em parceria com Tom Jobim). Se estas canções contêm alguns traços do

13 repente, da embolada e do baião, o maracatu pernambucano aparece em, por exemplo, “Brejo da Cruz” e “A volta do malandro.” Em algumas de suas parcerias com Edu, tais como “Meio-dia meia-lua” (“Na ilha de Lia, no barco de Rosa”),

“Casa de João de Rosa,” “Verdadeira embolada” e “Tororó” (mencionada acima), também despontam elementos da música popular rural.

Edu Lobo, por sua vez, é um dos compositores que, na esteira de Villa-Lobos e Tom Jobim, pesquisa o folclore brasileiro e o recria em suas canções, retomando de modo mais específico alguns procedimentos modernistas. Encontra-se a presença da cultura popular rural em canções como “Ponteio,” “Viola fora de moda,”

“Repente,” “Lero-lero,” “Jogo de roda,” “Zambi,” “Borandá,” “Embolada das dádivas da natureza” e muitas outras. As referências seriam tantas que a enumeração recobriria quase toda sua obra, mesmo as canções mais ligadas à estética da bossa nova. Santuza Cambraia Naves aponta para essa questão quando afirma, em uma conversa com o compositor:

Mas, você também, como compositor, conseguiu fazer uma estética muito original. E me interessa muito isso, esse seu procedimento de buscar textos musicais em Recife, por exemplo, como uma maneira de recriar, de fazer uma coisa nova. Eu gostaria de saber sobre sua maneira de lidar com esses textos musicais legados pela tradição. Essa discussão me interessa, porque eu estou estudando os músicos da sua geração e a impressão que tenho é que vocês dão continuidade a um certo gesto modernista, que começa com Villa-Lobos, de trabalhar os textos legados pela tradição, mas no sentido de recriar esses textos. (2006, 249)

Santuza refere-se ao gesto de transposição do material folclórico ao âmbito erudito mencionado anteriormente, segundo o qual o populário deveria ser deixado de lado.

Edu, no decorrer da entrevista, retoma de maneira ambígua a impressão da socióloga, ao pensar a relação de sua música com a de Villa-Lobos:

14 Se eu fosse comparar o Villa com alguém... Tem compositores pelos quais eu tenho a maior admiração, mas é como se fosse assim num exemplo que vai parecer grosseiro, mas não é... Você admira um compositor como se fosse uma bela casa, mas percebe que é um lugar onde você jamais moraria. Villa-Lobos é a casa onde eu moraria. Então, por exemplo, quando eu observo o Stravinsky, que é uma paixão da minha vida também, eu o observo como uma casa difícil para mim, para se contemplar de longe, onde eu não teria conforto. Mas é claro que o defeito não é da casa e sim do morador. O Villa- Lobos me traz todas as lembranças, com as Cirandas, que estão todas na minha cabeça. O que ele fez com essas canções populares, aí é uma outra história. É realmente uma recomposição. Ele dá essa indicação do que fazer com a música brasileira, de como ser brasileiro da melhor maneira possível e sendo absolutamente universal.(251)

Para entendermos a colocação de Edu, tomemos como exemplo o disco

Reencontro, de 1966. Nele, ao orquestrar as cirandas “Atirei o pau no gato” e

“Marcha soldado,” o cancionista reiventa o gesto de Villa-Lobos. No entanto, não se trata mais de apenas transpor para um registro culto uma peça folclórica, mas de fazer com que ela também desempenhe função desestabilizadora  como nas décadas de 20 e 30 a música popular urbana  em relação à política e à própria música. Na gravação, as cirandas não são cantadas e a ausência das letras, assim como a escolha das peças, ressoam de maneira discreta mas contundente o contexto político de então. Essas cirandas orquestradas por Edu são um excelente exemplo da atitude carnavalizante e satírica, de duplo protesto do compositor: contra a ditadura militar e contra a patrulha ideológica no âmbito da própria música popular, segundo a qual a canção de protesto deveria ser simples (harmônica e melodicamente pobre), a fim de depositar quase exclusivamente na mensagem, veiculada pela letra, seu recado. As letras ocultas das cirandas previam de modo certeiro a censura pesada que se instauraria no país a partir de 1968, enquanto a extrema sofisticação do

15 arranjo e da orquestração ia na contramão da concepção estreita de uma boa parte dos ouvintes e compositores da então dita canção de protesto.

Edu e Chico, portanto, de certa maneira recuperam o gesto modernista que inclui um olhar etnográfico misturado ao projeto de recriar os materiais de base com que trabalham e com isso poderiam ser erroneamente vistos como simpatizantes de uma perspectiva nacionalista. A grande diferença, no entanto, é que, assim como

Jorge de Lima e outros artistas modernistas, apagam as fronteiras entre cultura popular e popularesco, considerando-os partes integrantes e comunicantes do que se entende por cultura popular e mais amplamente por cultura, pois também incluem em seu horizonte a dita cultura alta. A posição que esses artistas ocupam no panorama das culturas brasileiras é a da criação cultural “individualizada,” sintetizada por da seguinte maneira:

A literatura, ou a música, ou a pintura, ou o teatro estão e não estão dentro das instituições sociais, na medida em que vivem, ao mesmo tempo, tempos diversos e não raro conflitantes, como o tempo corporal da sensibilidade e da imaginação e o tempo social da divisão do trabalho. A criação de um poema, de um romance, de um quadro, de um drama é, freqüentemente, resultado de tensões muito fortes no interior do indivíduo criador, tensões dentre as quais é modelo exemplar o compromisso (bem ou mal resolvido) entre as forças anímicas ansiosas por exprimirem-se e a tradição formal já historicizada que condiciona os modos de comunicação. A expressão pessoal e a comunicação pública são duas necessidades que acabam regulando a linguagem do criador e situando o seu trabalho na intersecção do corpo e da convenção social. Nessa luta, a obra é tanto mais rica e densa e duradoura quanto mais intensamente o criador participar da dialética que está vivendo a sua própria cultura, também ela dilacerada entre instâncias altas, internacionalizantes e instâncias populares. Obras-primas como Macunaíma de Mário de Andrade, Vidas secas de , Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa e Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto nunca poderiam ter-se produzido sem que seus autores tivessem atravessado longa e penosamente as

16 barreiras ideológicas e psicológicas que os separavam do cotidiano ou do imaginário popular. As contradições de nossa formação social estão pontualizadas no romance memorialista e regionalista de José Lins do Rego e na epopéia gaúcha de Érico Veríssimo. A classe média e a pobreza suburbana encontraram sua voz no primeiro Dyonélio Machado e nos contos de Dalton Trevisan e João Antonio. A violência burguesa combinada estrategicamente com o seu oposto e correlato simétrico, os bas-fonds grã-finos, fala pelas narrativas de Rubem Fonseca. O regionalismo não está, como supuseram alguns mal-avisados, tão morto que não seja capaz de nos romances e contos de Bernardo Élis, épico de Goiás, ou de ajustar-se às atmosferas de estranheza nas páginas sóbrias de J. J. Veiga. As pontes continuam lançadas ou em construção na música de Adoniran Barbosa, de Chico Buarque, de , de , de , de Geraldo Vandré, de , de Edu Lobo, de Sérgio Ricardo e de tantos outros. O teatro de Guarnieri, de Boal, de Oduvaldo Viana Filho, de Plínio Marcos, de tem, apesar das diferenças de orientação estética, realizado a possível mediação entre público culto e temática, se não linguagem, popular. Nas artes do espetáculo (diferentemente da arte da escrita, de consumo individualizado) fica ainda mais difícil falar de cultura erudita separada da cultura de massa e da cultura popular. A presença física, a voz, o gesto, a procura de uma comunicação interpelante e provocadora e envolvente produzem uma forma nova de arte que aspira, no fundo, a superar aquelas barreiras há tanto tempo erguidas pela divisão social. (grifo meu) (1998, 343-344)

Considerando o âmbito da criação cultural individualizada tal como exposta acima por Alfredo Bosi, observe-se que há um aspecto crítico implícito nas canções que

Edu Lobo e Chico Buarque compuseram a partir do poema de Jorge de Lima, acentuando ainda mais a intersecção do corpo e da convenção social. Efetivamente, ao retomarem o poema os compositores colocam em causa uma questão crítica fundamental: qual a importância do circo, e especificamente o circo místico, na obra de Jorge de Lima? Tal indagação nos conduz a uma releitura Jorge de Lima com olhos atentos para o motivo místico-circense e as questões que esse motivo acarreta. Concluído o levantamento das referências ao circo místico na obra do poeta, constatamos que tais referências

17 desempenham um papel decisivo na poética do autor, merecendo ser analisadas e interpretadas para que se compreendam suas funções e seu real valor. Em contrapartida, é preciso considerar o aspecto crítico que o poema, à revelia, assume em relação às canções: de que maneira o texto literário as ilumina? O circo aparece tanto em suas parcerias quanto em suas obras individuais? E mais amplamente: de que maneira O grande circo místico se relaciona com a gaia ciência da música popular brasileira? É possível afirmar que o poema e as canções do balé constituem, a seu modo, uma interpretação do Brasil?

Os ensaios a seguir resultam do desejo de descrever, analisar e interpretar essas questões, que decorrem da ideia que originou o trabalho, isto é, a hipótese de que os pontos de contato entre o poema e as canções, além de iluminarem aspectos decisivos das obras desses três artistas, permitiriam abordar a cultura brasileira a partir de um ângulo aparentemente inusitado mas ao mesmo tempo revelador, o que se confirmou, pois, como veremos, a imagem do circo desdobra-se de muitas maneiras quando considerada ao lado do arco temporal que vai de 1938, data de publicação do poema, a 1983, primeira encenação do balé.

18

PRIMEIRO CAPÍTULO

A IMAGEM À DERIVA: HISTÓRIA E ALEGORIA EM “O GRANDE CIRCO MÍSTICO” DE JORGE DE LIMA

Se os mundos dos grandes poetas podem se multiplicar, isso se deve ao fato de que são capazes de multiplicar aqueles dos que os leem. Talvez não possamos restituir inteiramente a bagagem que carregaram para dentro de seus caminhos, e talvez não estejamos à altura da aventura que nos oferecem em seu universo de palavras e letras, mas certamente estaremos diante de uma obra maior do espírito se, aos primeiros sons de seus versos, sentirmos a necessidade de continuar a escutá-los para além das imagens e ideias que nos acorrem nas primeiras linhas.

19 Newton Bignotto, “A condição humana”

20 O grande circo místico

O médico de câmara da imperatriz Teresa  Frederico Knieps resolveu que seu filho também fosse médico, mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes, com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps de que tanto se tem ocupado a imprensa. Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown, de que nasceram Marie e Oto. E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora que tinha no ventre um santo tatuado. A filha de Lily Braun  a tatuada no ventre quis entrar para um convento, mas Oto Frederico Knieps não atendeu, e Margarete continuou a dinastia do circo de que tanto se tem ocupado a imprensa. Então, Margarete tatuou o corpo sofrendo muito por amor de Deus, pois gravou em sua pele rósea a Via-Sacra do Senhor dos Passos. E nenhum tigre a ofendeu jamais; e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos, quando ela entrava nua pela jaula adentro, chorava como um recém-nascido. Seu esposo  o trapezista Ludwig  nunca mais a pôde amar, pois as gravuras sagradas afastavam a pele dela e o desejo dele. Então, o boxeur Rudolf que era ateu e era homem fera derrubou Margarete e a violou. Quando acabou, o ateu se converteu, morreu. Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps. Mas o maior milagre são as suas virgindades em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado; são as suas levitações que a plateia pensa ser truque; é a sua pureza em que ninguém acredita; são as suas mágicas em que os simples dizem que há o diabo; mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos. Marie e Hèlene se apresentam nuas, dançam no arame e deslocam de tal forma os membros que parece que os membros não são delas. A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos. Marie e Hèlene se repartem todas, se distribuem pelos homens cínicos, mas ninguém vê as almas que elas conservam puras. E quando atiram os membros para a visão dos homens, atiram as almas para a visão de Deus. Com a verdadeira história do grande circo Knieps muito pouco se tem ocupado a imprensa.

21 A Mágica e o Milagre

Em “O grande circo místico” encena-se a singular e conturbada história dos

Knieps. Desenrolando-se cronologicamente, a história abrange os sucessos de cinco gerações e, apesar de conter vários episódios, gira em torno do conflito entre Oto

Frederico Knieps e sua única filha, Margarete. Perante a iminente dissolução da dinastia, o pai não consente que sua herdeira abandone o picadeiro a fim de entrar para um convento. A contragosto, Margarete acata a determinação paterna, porém não renuncia à vocação mística, tatuando em seu corpo “a Via-Sacra do Senhor dos Passos.” Desde então, adquire a capacidade de realizar verdadeiros prodígios, como os que são mencionados no poema: afastar de si o desejo do marido, amansar o leão do circo apenas com sua presença, converter um ateu (o homem-fera) e conceber duas filhas gêmeas que herdam seus dons sobrenaturais, como a capacidade de levitar.

O drama que decorre do choque entre pai e filha situa-se em um terreno de extrema complexidade: as relações entre arte e religião em contexto moderno. Jorge de

Lima debruçara-se sobre esse assunto, pela primeira vez, num tom que resvalava no cômico, no ensaio “Todos cantam sua terra,” publicado em 1929. Em tom sério, e com implicações novas, retoma a discussão sobre a posição da arte e da religiosidade brasileiras em “O grande circo místico,” trazendo a reboque uma visão original sobre as relações entre a experiência da liberdade e a presença avassaladora do mito da não- violência na cultura brasileira.

Permanecendo distante de uma representação direta da realidade, dada a sua natureza alegórica, o poema não deixa de dialogar com as tensões vividas na cena política brasileira que viu, por exemplo, o governo de Getúlio Vargas anular a ameaça que até

22 então o Movimento Integralista representava, caso sui generis da derrota de um totalitarismo por outro  justo em 1938, ano da publicação do poema. Possuindo vínculos estreitos com a ala conservadora da Igreja Católica, o grupo de Plínio Salgado pode ser considerado um caso paradigmático do encontro entre a religião católica e uma tendência política que incluía abertamente em seu discurso e sua forma de expressão política a violência. O Estado Novo, por sua vez, desenhou e pôs em prática muitas estratégias de controle social, entre elas, a censura e a construção de uma cerrada rede de imagens da nação. Esta caracterizava-se por estar centrada num poder central e cujas diferenças, em vários casos gritantes, eram sumariamente ocultadas pela mão de ferro getulista e por uma ideologia a um só tempo agressiva e eficaz que se fundava em discursos como os de unidade nacional e modernização do país.

Entre os principais desafios enfrentados por Jorge de Lima estavam manter-se distante dos discursos totalitários (integralistas e estado-novistas, por exemplo) e oferecer um modo alternativo de se interpretar a realidade brasileira, não apenas denunciando a ideologia dominante mas propondo novos modelos de se imaginar a nação. Nesses termos, é amplamente significativo o gesto de colocar em causa, em meio a uma declarada febre patriótica, a história de uma família circense estrangeira. O motivo de matriz europeia não fugia apenas de um enquadramento nacionalista, mas também permitia pensar o Brasil a partir de um ângulo diferente, isto é, a partir de uma visão descentrada, uma visão do outro. Nesses termos, a natureza transnacional do circo ligava- se, segundo podemos deduzir da obra de Jorge de Lima, à imagem do corpo eucarístico e, assim como a Igreja Católica, formada por uma comunidade de fiéis cujas nações variam enormemente, também ele (o circo), embora em outra escala, consistia em um tipo de

23 comunidade transnacional. A passagem dessa comparação para a representação do Brasil se desenrola, então, não apenas por causa do alto contingente católico brasileiro, mas por sua própria experiência histórica, processada por diferentes etnias e matrizes culturais.

Nesse panorama, Jorge de Lima tratava-se portanto da típica pedra na botina de que falava Mário de Andrade ao designar, no Ensaio sobre a música brasileira, o músico

 e, por extensão, todo artista  que não se empenhasse em fazer música (arte) nacional. A posição complexa de Jorge de Lima na república idealizada pelo Programa

Nacionalista, assim como sua respectiva marginalização, fica patente nos senões que

Mário de Andrade atribui ao livro A túnica inconsútil, em uma resenha na qual desliza entre o elogio e a censura, justamente, neste caso, pela incorporação de elementos estrangeiros, sobretudo franceses, à poética do autor.

Voltando ao poema, observemos que a crise vivida por Margarete e, mais amplamente, pelos Knieps, baseia-se no fato de que a personagem acata a determinação paterna, permanecendo no circo e dando continuidade à dinastia, não abandonando, contudo, sua vocação religiosa, o que produz uma reorientação decisiva na trajetória da família, desde então não apenas artística mas também mística.

A fusão entre arte e religião é um dos aspectos mais controversos do poema e, mais amplamente, da própria obra de Jorge de Lima, que a partir da publicação de Tempo e Eternidade, escrito em parceria com Murilo Mendes, norteia-se pelo seguinte lema:

“Restauremos a poesia em Cristo.” Fábio de Souza Andrade observa que as duas marcas que alteraram a poesia de Jorge de Lima a partir do referido livro foram a incorporação do catolicismo e o aproveitamento de técnicas surrealistas entre os procedimentos de sua criação poética.

24 Além dos aspectos indicados acima, que circundam os sentidos gerados pela dissonância de se expor a história de uma família circense estrangeira em contexto francamente nacionalista, “O grande circo místico” também se volta para um embate que, no mesmo contexto, dividia a opinião brasileira, sobretudo a dos nacionalistas: os desdobramentos da cultura urbana, aberta a todo tipo de material, inclusive o estrangeiro, dando alento ao mercado, através dos meios de comunicação de massa (o jornal e o rádio) e da invenção de novas formas de expressão cultural.

Das discussões sobre o fetichismo na cultura e o modo como Jorge de Lima inclui em sua obra a cultura urbana decorre um outro momento decisivo do poema: o confronto entre o poeta e a imprensa. A polêmica se deve ao modo como cada um interpreta a história do circo em questão e a traduz para o público, no caso, o público brasileiro.

Conforme podemos deduzir da denúncia embutida nos versos, para Jorge de Lima a imprensa divulga insistentemente, com objetivo puramente propagandístico, uma falsa versão da história dos Knieps  uma versão que os apresenta através de um discurso marcado pelo sensacionalismo e a exaltação fetichista do exótico com o intuito de vender um produto cultural e veicular, reforçando-a, a ideologia nacionalista. O poema se contrapõe abertamente a esse discurso e espera denunciar não apenas seu fetichismo mas também seu caráter ideológico. Apontando as contradições do autoritarismo no cerne da hierarquia familiar, representados pela interdição paterna e a resistência da filha, e mostrando como a manutenção da estrutura familiar, com a declarada hierarquia patriarcal, contém os princípios de sua própria dissolução, Jorge de Lima propõe uma visão alternativa e contestadora da ideologia dominante. Não é por acaso que o desejo reprimido da filha retorna sob a forma insólita da realização de milagres em pleno

25 picadeiro. Seus números e futuramente os de suas filhas, assim como todos os eventos sobrenaturais que ocorrem nos bastidores, retorcem-se entre o que poderíamos designar como uma profanação sagrada e ao mesmo tempo uma sagrada profanação ou ainda a profanação do sagrado e a sagração do profano.

O jogo de forças implicado nesse cabo de guerra familiar recoloca a arenga entre o poeta e a imprensa num terreno de ambivalências cuja força se manifesta largamente na cultura brasileira. Em outras palavras, enquanto a imprensa explora o espetáculo a fim de multiplicar as tiragens do jornal e produzir sucessos de bilheteria, o poeta o aponta como lugar onde o público tem a oportunidade de nada menos que presenciar o próprio milagre.

Essas duas visões têm implicações radicalmente divergentes: o jornalista preocupa-se com a divulgação do entretenimento e o poeta oferece um testemunho de sua fé.

Veremos, contudo, que Jorge de Lima tem consciência e vê de modo positivo a utilização dos rituais católicos como forma de entretenimento. Para ele, o entretenimento é aceitável quando se transforma em uma porta aberta para a conversão. Nesses termos, a imagem de circo por ele proposta pode ser vista como um tipo de entretenimento que conduz à experiência transcendental, no que difere radicalmente do entretenimento vazio do jornalista. É preciso acrescentar a essa idéia o fato de que Jorge de Lima encarava a religião como meio efetivo de prática da liberdade, dados o seu inerente princípio de esperança e a extrema abrangência com que ela concebe o mundo, isto é, a partir da ideia de que a existência humana se desvela de modo a misturar a realidade imediata e o transcendental.

O ponto de inflexão da leitura reside, portanto, nos milagres realizados “fora do lugar,” isto é, dentro do espetáculo. Para o poeta, o espetacular, portanto, não se identifica

26 a uma qualidade intrínseca da arte, do artista e da própria vida moderna, vista em sua negatividade. Porque, para ele, é o milagre que, no caso, torna espetacular o espetáculo

(no caso, o espetáculo do circo, mas também o espetáculo do mundo). Ao jornalista, por sua vez, interessa a mágica, o truque, a ilusão da arte, a fábrica do artista. A visão do jornalista é exclusivamente profana e não comporta a transcendência; trata-se de uma visão destituída de qualquer possibilidade de entusiasmo autêntico e muito menos místico.

Em outras palavras, a vida religiosa almejada por Margarete não minguou perante sua permanência no circo. Ao contrário, a exterioridade do espetáculo (sua natureza de entretenimento) não significou, para ela, uma forma de expressão distante de sua vocação. Ela encontrou na vida circense um meio legítimo, embora deslocado, de realizar sua vocação. A capacidade de fazer milagres, nela e em suas filhas, não se esgota na exterioridade vazia do entretenimento puro e simples, mas se traduz em um meio de dar vazão à sua avassaladora verve mística.

Essa espécie de sublimação reparadora faz das personagens imagens exemplares de processos que se desenrolam na cultura brasileira e que o poema assinala de modo inequívoco. No entanto, sob a leveza prosaica dos versos oculta-se, como veremos, a complexidade de tais processos. Se considerássemos o eterno retorno do sagrado como uma simples evidência espetacular da potência criativa da artista, o poema ficaria restrito apenas a seu primeiro nível. Conforme essa leitura, os números sobrenaturais da artista desembocariam sempre no irrisório  leões chorando feito recém-nascidos.

Nesses termos, não haveria como distinguir do sobrenatural a ilusão, nem separar religião e arte, rito e mercado. O milagre seria ilusão e a ilusão, milagre. O jornalista

27 fazendo sensacionalismo; o poeta catequizando. Uma leitura que levasse em conta essas ambivalências, embora mais refinada, ainda seria insuficiente, uma vez que limitada à crítica da cultura de massas e ao elogio irrestrito da religião, apresentando a artista apenas como trunfo para o sucesso do circo e, de outro lado, como via para a manifestação do divino. A instrumentalização dos milagres, tanto para os fins do lucro quanto para os da conversão, colocaria as artistas em segundo plano, desempenhando um papel que não corresponde nem de longe ao que de fato desempenham quando vistas de outro ângulo, isto é, como sujeitos de uma heróica resistência, capazes de traçar de modo certeiro e inédito as linhas de sua história.

É precisamente aí que atingimos um dos pressupostos desse estudo. Mágica e milagre se atraem, se repelem e se misturam de modo ambivalente e dialógico, sendo imagens de um mesmo processo e cuja complexidade exige ser vista sob diversos ângulos e em outro nível de análise. Ao se debruçar sobre o paradoxo da mágica-milagre, Jorge de Lima desvelou, em plena década de 30, não apenas um importante topos da vida cultural brasileira, o circo místico, mas também algumas das principais linhas do destino da arte, da religião e da cultura (principalmente a música) popular no Brasil.

Todos Cantam Sua Terra

No ensaio “Todos cantam sua terra...,” que, ao lado de “Proust,” integra o volume

Dois ensaios (1929), encontra-se a primeira formulação que Jorge de Lima elaborou sobre o circo místico e que, em linhas gerais, permaneceu em sua obra, resultando em algumas inflexões decisivas. Um primeiro ponto a que a imagem do circo místico nos

28 conduz é a percepção do contraste que àquela altura existia, em contexto brasileiro, entre as religiões de matriz cristã, destacadamente o catolicismo e as vertentes protestantes, além do cardecismo e da “influente” religião laica do Positivismo. Jorge de Lima descreve da seguinte maneira o influxo de fiéis em diferentes templos:

Nas igrejas protestantes há sempre uma vazante de fiéis que faz dó, é uma vazante de conferência literária. O templo positivista do Rio de Janeiro nem por ser da humanidade e achar-se entre população mais densa e mais instruída, não arranja pessoal nem para o banco da música. (...) O templo católico é que se enche e anda sempre superlotado de manhã à noite. É uma enchente de circo. Circo divino. (1958, 1026)

Segundo o poeta, a discrepância entre a superlotação do templo católico e a minguada presença de seguidores nos demais templos deve-se a dois fatores principais: o trabalho

“montessórico” que vinha sendo feito pelos primeiros missionários da Companhia de

Jesus desde os tempos da colonização e a feição própria da cultura brasileira, segundo ele, mais afeita a uma religiosidade que se realiza entre o intervalo ambivalente que reúne o civilizado e o primitivo, colocando-os em choque e misturando-os.3

Por mais escandalosamente preconceituosa e datada que seja essa visão, que toma como verdade um suposto primitivismo da cultura brasileira e das culturas matrizes que a formaram, ela possibilita, através da complexidade dos problemas nela implicados, a criação de um complexo artístico através do qual, no final das contas, é possível interpretar de modo original a cultura brasileira. O próprio poeta faz a ressalva:

(...) nas crianças ninguém pode corrigir as criançadas da noite para o dia. Nós ainda somos crianças também em catolicismo. Não pensem que eu

3 Não cabe analisar aqui a deliberada parcialidade de Jorge de Lima em relação à complexidade do emaranhado de religiões da cultura brasileira. Para ficar em um único exemplo, lembremos que João do Rio publicara, em 1904, o revelador As religiões do Rio. A despeito da observação do poeta no que tange ao templo católico em relação aos templos protestante e positivista ser mais ou menos precisa, ele não chega a colocar em perspectiva o catolicismo e o cardecismo, já àquela altura bastante divulgado e entranhado em nossa cultura, e também não considera as religiões afro-brasileiras, que ele conhecia de perto, como sua própria obra poética confirma. É preciso, portanto, ter em conta que essas omissões consistem, no mínimo, em uma verdadeira contradição, o que, de resto, torna a posição do autor mais complexa.

29 estou desgostoso com isso. Não estou, não. Jesus até gostava era das crianças. Os escribas, os doutores do templo. Ele verificou que sabiam muito pouco. As crianças é que sabiam tudo. Que missão difícil, que foi a missão entre crianças, confiada aos missionários brasileiros! Os templos religiosos no Brasil são ainda hoje atestados do esforço catequista daqueles tempos. (1958, 1027)

Os templos aos quais se refere, os templos católicos, e o circo ficam, desse modo, associados. Em vista disso, é preciso ter em mente que quase sempre que Jorge de Lima utiliza imagens circenses ele está ao mesmo tempo atribuindo-lhes um inelutável aspecto sagrado, como é obviamente o caso, por exemplo, de “O grande circo místico.”

Ao comparar os métodos de catequese utilizados pelos missionários durante a colonização do Brasil e de outros lugares conquistados pelos portugueses, o poeta chega à conclusão de que, no caso brasileiro, o jesuíta teve que lançar mão de uma pedagogia fundada no jogo e na brincadeira, a fim de converter ao catolicismo as nações indígenas e posteriormente africanas. Eis a passagem em que o poeta apresenta essa idéia:

Os missionários que pregam no Oriente, encontram o amarelo forrado de Confúcio. Para Cristo é um passo. Os catequistas da Índia desalojam facilmente Buda de dentro do povo dos marajás. Mas o menino Jesus que São Cristóvão Colombo passou no mar para as Américas veio encontrar no Brasil o homem da machadinha de pedra. Um sujeito de entendimento pode estar apedrejando um missionário, furando os olhos dele, e pepinando o corpo todo para judiar bem dele, e muitas vezes antes de acabar o serviço, o camarada está é vencido pelo mártir, convertido, mudado e até com vontade de ser pepinado também. A história dos catequistas do Oriente está cheia destes casos. Os meus conterrâneos caetés que devoraram um bispo e mais quarenta cristãos, comiam sem conversão nenhuma tantos bispos aparecessem. Abriam a carcaça dum cristão como um menino abre um boneco, sem virar boneco. (1958, 1024)

Segundo o pensamento da época, os ditos estágios de civilização dos povos do Oriente, mais “avançados” que os dos povos indígenas do Brasil e dos africanos que posteriormente foram trazidos para cá, colocavam aqueles povos em situação de

30 superioridade civilizacional em relação aos povos que formaram o brasileiro. O poeta continua:

Parece que os outros povos amam a Deus e nós gostamos de Deus. Nós gostamos muito de Nosso Senhor. Um dia nós fomos catecúmenos. Os outros povos aceitaram o cristianismo num nível, num plano de civilização de preparo prévio que nos faltou. Cristo veio nas caravelas para o Brasil. A humildade d’Ele desceu à brabeza do indígena. Desceu, desceu, até os indígenas compreender. Os outros povos tinham muita coisa, tinham o pecado. O índio nem o pecado tinha. (1958, 1024)

Baseado nesta ideia, Jorge de Lima explica, então, o modo como os jesuítas convertiam os índios brasileiros:

E o processo mais prático, mais pedagógico, não era fazer o índio compreender a religião, era fazer o índio gostar da religião. Havia uma intenção montessórica nos processos do padre. De cinquenta léguas em torno afluíam aimorés e tamoios para assistirem a um auto dele. O Mistério de Jesus por ele composto e representado pelos índios da missão foi um sucesso de arromba entre a bugraria. Como só homens representavam no palco improvisado no meio do mato, um índio aparecia fantasiado de Nossa Senhora, enquanto outros representavam anjos, diabos, Nero, Júpiter, Guaixara, Saravana, S. Sebastião, S. Lourenço, o Cão Grande, o Gavião... Ninguém não ficava surpreso de ver Saravana de braços dados com a Virgem. Nos bastidores São Sebastião cachimbava ao lado de Júpiter. Os versos tupis soavam cadenciados, as deixas eram atendidas em cima da bucha. Anchieta autor, ponto e contra-regra, dirigia as cenas. E no fim, vencidos os diabos, os imperadores, os maus espíritos da floresta, a indiaria embasbacada e depois excitada pelo sucesso da peça, caía num frevo carnavalesco de treme-terra, cadenciado a passo de siri- congado e ritmado de tambores, bombos, caixas e saca-buchas. Era o suco. Em seguida três descargas de mosquetaria. Farta distribuição de espelhinhos e contas para os convivas, canivetinhos e estampas aos pajés, vivas a Portugal, vivas ao Brasil. Todo o mundo gostava de religião. (1958, 1024-1025)

Por um lado, este trecho do ensaio é importante não apenas por ser um desdobramento da idéia anunciada anteriormente, de circo divino, mas também porque

31 vemos aí o cerne da visão do poeta sobre a religiosidade brasileira,4 cujos traços principais aproximam-se muito da maneira como Sérgio Buarque de Holanda a descreve em Raízes do Brasil:

A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos do nosso comportamento social. Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta ‘terra remissa e algo melancólica’, de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo o ritualismo não nos é necessário. Normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades. (111-112)

Por outro lado, podemos ler as ideias de Jorge de Lima como uma miniatura de interpretação do Brasil, conforme fica sugerido pelos nove passos apresentados pelo poeta: 1) a conjunção do sagrado e do profano caracteriza a imagem principal, o circo místico; temos aí a reunião de opostos, a conciliação de contrários, em suma, os contrastes, o convívio de múltiplas lógicas que permeiam a cultura brasileira; 2) a imagem alegórica, que Jorge de Lima privilegiará a partir de sua terceira fase, vê-se aí esboçada: a religião é transmitida “hieroglificamente,” conforme o caráter alegórico do teatro de Anchieta, lido como assentamento da cultura europeia à cultura indígena; 3) o espetáculo teatral como mecanismo de doutrinação e a associação desse mecanismo com a cultura de massas (“de cinquenta léguas em torno afluíam aimorés e tamoios para assistirem a um auto dele. O Mistério de Jesus por ele composto e representado pelos

4 A sequência deste mesmo trecho também apresenta, pela primeira vez, a imagem dos palhaços de Deus, que será considerada de modo pormenorizado em um ensaio exclusivo que estou escrevendo sobre a presença do circo místico na obra de Jorge de Lima.

32 índios da missão foi um sucesso de arromba entre a bugraria”); 4) A imagem do “suco,” que valoriza, como em Gilberto Freyre, a mistura, a miscigenação, o sincretismo; 5) a cultura popular urbana associa-se à religiosidade: por isso Jorge de Lima descreve o espetáculo teatral de Anchieta como “um sucesso de arromba,” incluindo no evento propriamente dito o frevo carnavalesco de treme-terra, a dança do siri-congado, a música percussiva e dançante, que nem sequer existiam no tempo do célebre jesuíta, mas que, num recorte transversal do tempo, traduzem para o leitor moderno o modo típico de vida sacro-profano que caracteriza o modo de vida do brasileiro; 6) as descargas de mosquetaria, por sua vez, são o índice da relação de poder entre o colonizador e os nativos, relação que se manifesta, portanto, no âmbito da própria festa popular; 7) outra forma de exercício de poder é a distribuição de presentes, que vem seguida dos disparos de armas de fogo; instrumento de dominação, a gratuidade dos presentes funciona como elemento de sedução e coloca a festa em um patamar escorregadio cujo traço principal é a gangorra movida pela truculência e pela amabilidade latentes no homem cordial (que aprendeu a “gostar” de religião mas não a “compreende” de modo profundo); 8) o encerramento da festa, “vivas a Portugal, vivas ao Brasil,” também contém a tensão dos contrários: a metrópole x a colônia, o colonizador x o colonizado, a Europa x a América, o civilizado x o primitivo, etc.; as marcas cívicas (também profanas) da festa religiosa foram amplamente estudadas, cabendo lembrar aqui apenas o hábito brasileiro, amplamente entranhado em nossa vida cultural, de se cantar o “Hino Nacional” em cerimônias religiosas ou a inclusão da bandeira nacional ao lado de bandeiras do Divino ou de santos em procissões; 9) e assim Jorge de Lima chega ao efeito buscado pela festa popular, a um só tempo religiosa e profana: fazer o povo gostar de religião. Está aí

33 entrevista a célebre cordialidade brasileira, tal como a concebeu Sérgio Buarque de

Holanda.5

É preciso acrescentar ainda que no ensaio em questão o poeta propõe uma revisão da história da literatura brasileira tomando como principal ponto de inflexão o

Macunaíma, de Mário de Andrade. Em suma, Jorge de Lima considera a literatura brasileira anterior a esta obra uma literatura inautêntica, cujas únicas exceções seriam

Machado de Assis e Euclides da Cunha (daí o fato de associar a cultura brasileira à infância, explicando a escassez de obras autênticas pelo pouco tempo de vida, mesmo que esse “pouco tempo” abarque um período de vários séculos). Segundo o poeta, tal literatura, marcada por séculos de gongorismo, somente com a geração moderna, exemplificada pela paradigmática rapsódia de Mário, começou a descobrir sua expressão característica.

Apesar do exagero da simplificação e da falta de distanciamento histórico ao avaliar o movimento modernista, Jorge de Lima acaba propondo uma equação sui generis sobre a cultura brasileira, cujas incógnitas virão a determinar sua própria trajetória poética. Essa equação, em suma, relaciona a cultura brasileira, ao menos do ponto de vista religioso, às culturas primitivas, encontrando uma expressão própria, autenticamente brasileira, somente através do contato direto com a realidade do país (e nisto Jorge de

Lima não diverge de muitos outros modernistas). Em outras palavras, poderíamos dizer que, tendo uma cultura “primitiva” (ou com vários traços primitivos), o povo brasileiro ainda não seria místico, pois não atingira uma etapa civilizacional avançada, na qual a religiosidade profunda se manifestaria de maneira isolada de outras formas (profanas) de

5 A esse respeito, leia-se o quinto capítulo de Raízes do Brasil, “O homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda.

34 cultura. Daí decorre a hipótese de que o povo brasileiro não é místico mas gosta de religião. Além disso, é importante assinalar o valor positivo atribuído pelo poeta ao espetáculo do circo místico como síntese de aspectos fundamentais da cultura brasileira.

Tal espetáculo expressa a própria sociedade, com as tensões típicas entre o exercício do poder (religioso e militar) e a celebração da existência (a festa popular). A importância dessa visão consiste, entre outras coisas, na verdadeira antecipação do que desabrocharia de forma madura na cultura brasileira décadas depois: uma autêntica horizontalização do saber, tendo na música popular um índice gritante desse fenômeno. Jorge de Lima visualizava, em sua equação, não apenas canções como as de Edu Lobo e Chico Buarque, mas um florescimento que começou a se desenrolar a partir da década de 60 e que permanece em cena até hoje, trazendo o desafio e a realização de muitos aspectos do

“suco cultural” brasileiro. Quando pensamos em nossos cancionistas, por exemplo, é mais do que pertinente indagar se faz sentido, no Brasil, classificar a cultura a partir da clássica diferença entre popular e erudito. Desse modo, podemos ouvir de maneira mais acurada a própria voz do poeta e sua verve irônica, elemento fundamental tantas vezes deixado de lado pelos críticos de sua obra. O sujeito do discurso é, em “Todos cantam sua terra,” um primeiro número do palhaço de Deus. O título do ensaio, portanto, inclui o próprio poeta entre os terceiros dos quais fala, além de funcionar ironicamente em relação ao primeiro ensaio do volume, “Proust.”

Os Dois ensaios, portanto, por seu aspecto irônico, introduzem uma ambiguidade nas próprias declarações sobre a literatura e a cultura brasileiras. Estaria o poeta de fato emitindo uma opinião estritamente crítica a respeito dos assuntos sobre os quais se propôs discorrer ou, diferentemente disso, estaria experimentando, sob a ótica do

35 ensaísta, a persona de palhaço de Deus? A pergunta fica no ar, pois a ambiguidade dos textos é inextrincável. Acrescentemos apenas que o interesse pela fala brasileira liga-se ao interesse pelo inconsciente (que o poeta-palhaço de Deus aponta como as principais virtudes de Macunaíma e Em busca do tempo perdido). Ao relacionar Proust e Mário de

Andrade, Jorge de Lima acaba não apenas por indicar o território comum que os dois escritores percorrem em seus projetos literários, construindo estilos que se formam a partir do atrito entre a fala e o inconsciente, mas também dois aspectos centrais de sua própria obra. Efetivamente, Jorge de Lima jamais abandonou o projeto de representar a realidade brasileira, sendo, com isso, um modernista típico. No entanto, a realidade brasileira vista por ele não consistia na mesma realidade retratada por outros modernistas, que se interessavam por uma representação realista do país. Desde sua adesão ao modernismo, com a publicação de “O menino impossível,” Jorge de Lima retrata o país de modo indireto, isto é, via memória. Evidentemente que podemos descrever o percurso do poeta, como o fizeram Waltensir Dutra e Fábio de Souza Andrade, entre outros, através da tese da progressiva interiorização lírica. Esse modo de ler a obra de Jorge de

Lima parece-me correta, mas é preciso acrescentar-lhe um aspecto fundamental: a obra de Jorge de Lima, mesmo antes de sua adesão ao modernismo, até sua fase final, trata-se de um trabalho de interiorização lírica, uma vez que é uma obra fundada na memória.

Nesses termos, podemos afirmar que Jorge de Lima é um dos “memorialistas” mais radicais da literatura brasileira.

Discutiremos adiante a natureza da história contida em “O grande circo místico,” sendo que o poeta introduz alterações substanciais em uma história de origem, por conta das desconfigurações muitas vezes produzidas pelo jogo necessário e incessante entre

36 memória e esquecimento. Porém, mais do que mera biografia de uma família circense, o poema é um registro da fala brasileira, cujos traços permitem demonstrar o interesse do poeta pela associação livre do pensamento através, por exemplo, da justaposição de orações coordenadas (parataxe), cuja função, nesse caso, é não estancar o fluxo verbal.

Encontramos nesse traço estilístico do poema um indício de que o poeta lançou mão da técnica surrealista da escrita automática e da técnica psicanalítica da associação livre do pensamento. Ambas as técnicas, que Jorge de Lima conhecia de perto, se prestam, como sabemos, para a construção de imagens através da montagem, outra técnica cara ao poeta e também ao surrealismo e à psicanálise.

Alegoria

Um dos aspectos decisivos do poema consiste no modo como nele se produz o sentido. Em primeiro lugar, não se trata de um sentido unívoco e estável. Ao contrário, ao manusear o texto nos deparamos com muitas possibilidades de leitura e até mesmo com a necessidade de percorrer muitas trilhas fora dele. No entanto, dizer simplesmente que o poema é uma alegoria e que por isso remete a outros signos, tendo uma estrutura que pressupõe o conhecimento de elementos externos para que funcione plenamente, não resolve o problema. É preciso, antes, compreender a concepção que Jorge de Lima tinha de alegoria e depois localizar os elementos externos, mostrando como eles atuam na estrutura do texto.

Inicialmente, observemos que a concepção jorgiana de alegoria é a um só tempo devedora de uma mistura de concepções, destacadamente cristãs, por um lado, e das

37 vanguardas artísticas do princípio do século XX, por outro, cujos traços ligam sua poesia

às tradições do pensamento medieval, barroco e moderno. Como nos informam os historiadores da arte, a alegoria é antiga e, de Platão a Baudelaire e Breton, chegando aos dias de hoje, jamais saiu de cena, embora seu valor e suas funções tenham variado conforme as diferentes gerações que a empregaram. Os poetas românticos, por exemplo, consideravam-na um tipo falho de signo (um signo demasiadamente limitado), tomando como ideal um tipo de signo  o símbolo  que tinha como principal característica a universalidade  Goethe foi o responsável pela formulação e pela divulgação desse ponto de vista. A alegoria não tinha, para eles, a universalidade do símbolo, que poderia ser lido por qualquer pessoa. A alegoria, ao contrário, exigia um leitor empenhado, isto é, preparado para mergulhar em suas várias camadas de sentido e disposto a contentar-se com os fragmentos que por ventura pudesse encontrar, assumindo de antemão, a condição do melancólico, aquele que antecipadamente se sabe incapaz de apreender o objeto enquanto totalidade, tal como Walter Benjamin o entreviu.

Na Idade Média, por outro lado, a alegoria foi o tipo de signo mais utilizado por artistas, intelectuais e clérigos, uma vez que correspondia ao próprio modelo hierárquico da sociedade de então. O exemplo paradigmático de obra literária feita a partir de uma estrutura alegórica é a Divina Comédia e o próprio Dante explica sua estrutura em uma célebre carta6, descrevendo algo que é central para a compreensão da alegoria em geral e de modo específico para a compreensão da alegoria em Jorge de Lima:

6 Sobre essa carta, a Carta XIII, observa João Adolfo Hansen: “Na Carta XIII, dirigida em 1303 a seu amigo, o senhor de Verona, Can Grande dalla Scala, Dante retoma a divisão tradicional dos quatro sentidos do texto bíblico  histórico, alegórico, tropológico, anagógico  e aplica-os à explicação da Comédia. O que é inovador, pois transfere para um poema  “similitude imaginária” cujo sentido deve ser sempre literal ou meramente humano, conforme Santo Tomás  categorias que só poderiam servir para interpretar a Bíblia. A Carta, de interesse especial pelos conceitos que elabora, é elucidativa da questão, embora não

38 Para esclarecer os pontos indicados é necessário lembrar que o sentido desta obra não é único; antes, a obra pode ser descrita como , isto é, tem vários sentidos; o primeiro sentido é dado pela letra do texto, o segundo deriva do significado pelo texto. O primeiro chama-se sentido literal; o segundo, sentido alegórico, moral ou anagógico. Para que fique mais claro o procedimento, consideremos os versículos seguintes: ‘Ao sair Israel do Egito,/a casa de Jacó de um povo estrangeiro,/Judá tornou-se sagrado para ele,/e Israel foi o seu domínio’ (Salmos, 114-113). Se nos ativermos somente à letra, alude-se aqui à saída do Egito dos filhos de Israel nos tempos de Moisés; se nos ativermos à alegoria, significa-se nossa redenção realizada por Cristo; se observarmos o sentido moral, alude-se à conversão da alma desde este mundo enlutado do pecado até o estado de graça; se buscarmos o sentido anagógico, quer-se significar a saída da alma santa da escravidão dessa nossa corrupção até a liberdade da glória eterna. Embora esses sentidos místicos recebam denominações diversas, em geral, todos podem chamar-se alegóricos, por serem distintos do sentido literal ou histórico. Pois o nome alegoria provém do grego alleon, que em latim significa estranho ou distinto. (Hansen, 59-60)

Para Dante, portanto, a alegoria é um tipo de signo construído a partir de diversos níveis de sentido. É por isso que Benjamin via nas alegorias a correspondência, no reino das ideias, do que são as ruínas no reino das coisas. Jorge de Lima compartilha com

Benjamin a concepção de alegoria, que, segundo Jeanne Marie Gagnebin, traz como principais marcas a “reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao ideal de eternidade que o símbolo encarna:” (31)

Lutero se engajou deliberadamente ao estudo do sensus litteralis contra o sensus alegoricus, como o testemunha sua tradução da Bíblia. Assim tem início, com o triunfo do Renascimento, depois da Reforma, uma ‘volta ao(s) texto(s), que perdura até hoje e desloca a interpretação alegórica do seu lugar primeiro. Aos olhos deste novo pensamento científico, a interpretação alegórica não oferece nenhum fundamento seguro. (33)

A interpretação alegórica se constrói a partir de uma ligação necessariamente arbitrária entre o sentido e a imagem. “É nesta arbitrariedade da relação significante- significado que vai esbarrar a crítica moderna da alegoria, uma arbitrariedade que tem seu deva ser tomada como de autoridade crítica especial, como sugere Northrop Frye, no sentido de que fosse um projeto prévio que a Comédia ilustrasse.” (59)

39 fundamento no hiato entre sagrado e profano.” (33) É nesses termos que podemos dizer que “a alegoria ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na temporalidade e na historicidade para construir significações transitórias”

(38):

Luto e jogo, a alegoria desvela assim a dialética imanente ao Trauer-spiel e, igualmente, a que rege nossa modernidade, dividida entre a nostalgia de certezas desaparecidas e a leveza trágica do herói nietzschiano. Por certo, na idade barroca e até em Baudelaire, mesmo o jogo está impregnado de melancolia, possuído pela perda de uma regra definitiva. Isto não impede que sua produtividade abundante nasça desta perda e do reconhecimento desta perda. É na historicidade e na caducidade das nossas palavras e das nossas imagens que a criação alegórica tem as suas raízes. A alegoria nos revela, e nisto consiste sua verdade, que o sentido não nasce somente da vida, mas que ‘significação e morte amadurecem juntas’, como afirma Benjamin numa página decisiva. (38-39)

É por isso que o alegorista defronta-se sempre com um incessante trabalho de luto e jogo. “A fragmentação do real manifestada pela alegoria também é a denúncia crítica da

‘falsa aparência de totalidade’ de um mundo iluminado por uma lucidez divina” (43):

Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa (allo-agorein) que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um sentido último. A linguagem alegórica extrai sua profusão de duas fontes que se juntam num mesmo rio de imagens: da tristeza, do luto provocado pela ausência de um referente último; da liberdade lúdica, do jogo que tal ausência acarreta para quem ousa inventar novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros. (38)

No Brasil, o exemplo mais amplamente conhecido de poeta que lançou mão da alegoria em contexto moderno é Oswald de Andrade. Conforme Davi Arrigucci Jr. observa, em Humildade, paixão e morte:

O processo de montar imagens descontínuas, tão importante para várias tendências da vanguarda europeia e norte-americana  desde a immaginazione senza fili dos futuristas, dos papiers collés dos cubistas, da montagem surrealista ou das fieiras de imagens concretas dos imagistas e

40 dos ultraístas  encontrava, sob a visada tão cinematográfica de Oswald, uma base real, bem concreta e próxima, nas descontinuidades contrastantes da própria realidade brasileira. Da reorganização dos fragmentos em atrito no âmbito do poema ‘pau-brasil’, surgia a chispa generalizante da alegoria, alastrando-se em imagem total do país. (104)

O tipo de alegoria utilizada por Jorge de Lima possui muitos pontos de contato com a alegoria pau-brasil, mas diferencia-se dela sobretudo pela natureza da matéria retirada da realidade e reimaginada nos poemas. No caso de Jorge de Lima, como já foi indicado, trata-se de um material subjetivo, cujos traços não se encontram de maneira explícita na realidade exterior. A matéria-prima de Oswald de Andrade é obtida

mediante duas operações: a justaposição de elementos próprios ao Brasil- Colônia e ao Brasil burguês, e a elevação do produto  desconjuntado por definição  à dignidade de alegoria do país. Esta é a célula básica sobre a qual o poeta vai trabalhar. Note-se que a mencionada contiguidade era um dado de observação comum no dia a dia nacional, mais e antes que um resultado artístico, o que conferia certo fundamento realista à alegoria, além de explicar a força irresistível da receita oswaldiana, um verdadeiro ‘ovo de Colombo’ na acertada expressão de Paulo Prado. A nossa realidade sociológica não parava de colocar os traços burguês e pré-burguês, em configurações incontáveis, e até hoje não há como sair de casa sem dar com elas. (Schwarz, 45)

Davi Arrigucci Jr., ao comentar as ideias de Schwarz sobre a poesia de Oswald de

Andrade, afirma:

O tratamento que Oswald dá às imagens de mazelas e atrasos, gritantes nos contrastes da realidade nacional, assume uma surpreendente feição ‘otimista, até eufórica’, que se transforma em alvo da crítica ideológica do citado crítico. Este a vê como um traço do comprometimento da estética 'pau-brasil', em seu esforço para conferir relevância ao país, inserindo a experiência local no plano da cultura dos países centrais, com o 'progressismo conservador da burguesia cosmopolita do café'. A proposta de um olhar inocente, tão enfatizada por Oswald, acabaria então, fascinada pela pura presença das figuras, suprimindo-lhes muito da força contraditória e da negatividade, perdendo-se um pouco na irrealidade e no infantilismo, que só o tom de piada constante redime, em sua alta qualidade poética. (104-105)

41 A alegoria, em Jorge de Lima, sobretudo a partir da publicação de Tempo e eternidade e A túnica inconsútil, não se funda sobre o objetivismo lírico oswaldiano referido acima. O poeta praticara esse tipo de lirismo em suas primeiras realizações modernistas, como podemos constatar com a leitura de poemas como “O mundo do menino impossível,” “Nossa América” e “Essa Negra Fulô,” para ficarmos apenas com três exemplos amplamente conhecidos. Mas mesmo nesses poemas já se anuncia o pendor subjetivo da lírica jorgiana, uma vez que todos eles, assim como a maioria dos poemas desses livros iniciais, geralmente são retirados da memória da infância e, portanto, já aparecem marcados pelo trabalho do inconsciente. Em Jorge de Lima a contiguidade de elementos contraditórios é depreendida de um conceito muito mais largo e fluido de realidade, ou seja, assume como dados concretos as formações imaginárias inconscientes e inscreve no poema tanto imagens objetivas quanto imagens interiores, oníricas e surreais. Em outras palavras, não é possível observar de maneira comum as imagens de Jorge de Lima no cotidiano nacional, a não ser alguns componentes dessas imagens ou se também estendermos, como o poeta, nosso olhar para o inconsciente coletivo brasileiro. Durante uma de suas últimas entrevistas, o poeta declarou que

Invenção de Orfeu

encerra o que há no subconsciente do brasileiro, atualmente: uma mensagem social, uma mensagem humana e, sobretudo, uma grande mensagem cristã. O herói desta pretendida epopeia é, em verdade, o poeta em frente ao drama apocalíptico que vive o mundo de hoje, com os seus terrores, as suas ameaças de destruição, os seus vícios, as suas desgraças. (1997, 65)

Nesses termos, pode-se dizer que o insólito desentranhado da realidade brasileira

(entendida aqui como o inconsciente coletivo) também assume uma grande parcela de otimismo, embora sem jamais deixar de lado as componentes do terror, da destruição, dos

42 vícios, das desgraças. A idéia do poema como alegoria do país configura-se, portanto, de outro modo em Jorge de Lima, problematizando as noções eufóricas do progressismo conservador da burguesia cosmopolita do café e assumindo um teor universalista cujos traços principais, a fé católica e sua respectiva esperança na redenção, desestabilizam a imagem de nação veiculada pelo poder, uma vez que dialogam com um elevado número de aspectos disfóricos (terror, guerra, destruição etc.).

Em linhas gerais, “O grande circo místico” apresenta pelo menos três níveis de leitura. Num primeiro nível (nível literal), trata-se da história da família circense retratada, a história da dinastia Knieps. Num segundo nível, a história dessa família torna- se imagem de uma história mais ampla, mas ainda ligada a ela pelo período de tempo em que ambas se desenrolam: a história da sociedade burguesa. No terceiro nível (nível mais profundo da alegoria), os limites temporais alargam-se enormemente e a história se expande de modo radical, tornando-se nada menos do que a imagem da história humana.

Entretanto, a história representada nesse terceiro nível alegórico é constituída por um ponto de vista híbrido. Esse nível alegórico profundo, que Dante denomina como nível anagógico, é formado pela montagem de duas histórias que abarcam, em termos de extensão temporal, a própria história da humanidade: de um lado, temos a história do circo; de outro, a história humana do ponto de vista da história da salvação, segundo a visão judaico-cristã. Ambas propiciam o todo do qual decorre o sentido profundo do poema. A ideia de um circo místico expressa esse híbrido de maneira certeira e penetrante. Vemos, assim, que o olhar de Jorge de Lima não se identifica exclusivamente com a perspectiva religiosa, como muitas vezes se julga.

43 Isto posto, vejamos como a alegoria se desdobra, isto é, como se processam os três níveis de sentido (as figurações da história) no poema.

Ficção e Biografia

Um dos aspectos mais enigmáticos do poema é sua relação com a realidade. Não apenas a contenda entre o poeta e o jornalista, que consideraremos adiante mas a própria biografia da família circense em questão resulta de um deliberado enlace entre história e ficção. É que o circo referido no poema de fato existe, tendo comemorado 200 anos em

2003. O Circo Knie, ou Circo Nacional Suíço, é ainda hoje dirigido pelos descendentes do seu fundador, o austríaco Frederico Knie.7 A história da companhia encontra-se registrada nos livros Knie  Histoire d’une Dynastie de Cirque, de Alfred Häsler, no romance Les Knie, do escritor naturalista franco-suíço Edouard Rod, e no ensaio Le

Cirque Suisse, de Hubert Tièche.8 Há também um documentário produzido no ano de seu bicentenário: Knie  200 Ans de Dynastie Knie.

Transcrevo a seguir, a título de constraste, um resumo que integra o libreto da montagem do Balé Guaíra:

Em Viena, durante o reinado de Maria Teresa da Áustria, viveram os irmãos Charles e Frédéric Knie, este médico, que casou em 1783 e no ano seguinte teve um filho também chamado Frédéric, fundador da dinastia Knie ligada à arte do circo. Aos dezoito anos, estudante de medicina em Insbruck, Frédéric apaixonou-se pela acrobata de uma companhia equestre ambulante e seguiu a troupe em tournée. Interessando-se pelo trabalho dos saltimbancos, aprendeu o ofício de funambulista. Em 1806 montou sua própria companhia, viajando com uma exibição de dança e acrobacia na corda bamba. Três anos mais tarde, já com a segunda esposa (que, reclusa pelo pai em um convento, foi de lá resgatada por

7 Não encontrei até agora nenhuma explicação plausível que explique a modificação que Jorge de Lima introduziu no modo de grafar o nome da família.

8 Este ensaio é o décimo capítulo do primeiro volume do Le Grand Livre du Cirque (2 vols.), organizado por Monica J. Renevey.

44 Frédéric através de uma corda bamba), passou por momentos difíceis por causa da guerra, trabalhando apenas pela sobrevivência diária. Logo em seguida, porém, tornou-se próspero e orientou os filhos na arte circense: Charles, o mais velho, não se interessou pela profissão mas Rodolphe, Carl, Franz e Fanny seguiram a dinastia. Todos foram grandes artistas e Carl, o mais notável deles, teve filhos que continuaram o seu trabalho: Charles, Clara (casada com o funambulista Henri Blondin), Marie (esposa do clown Futelet) e Louis: os filhos deste (Frédéric, Rodolpho, Charles e Eugène), por sua vez, perpetuaram a dinastia do Circo Knie, fundando, em 1919, o Circo Nacional Suíço. O sucesso dos Knie continua, num circo famoso pela qualidade de seus animais amestrados e pela beleza de seus espetáculos. Em sua sede, às margens do lago de Zurique, a dinastia está assegurada por uma numerosa geração de pequenos Knie, treinados na melhor tradição dos antigos saltimbancos.9

A primeira coisa que salta aos olhos é a discrepância quase total entre as versões.

No poema, não há dúvida quanto a esse fato, todos os episódios são fictícios, exceto o primeiro, que ressoa tal e qual a história do grupo.10 Podemos indagar, a partir dessa primeira constatação: por que o poeta decidiu manter esse tênue lastro referencial?

Tentaremos responder a esta questão durante a análise do poema, mas, observemos desde já, a presença explícita da realidade exige que procuremos levantar dados que estão fora do texto. Deveremos permanecer dispostos a considerar muitos dados exteriores, dada a natureza alegórica do texto, que não oferece todas as informações de que necessitamos para compreendê-lo.

9 Texto extraído do libreto de O grande circo místico, de Edu Lobo e Chico Buarque, remontado pelo Ballet Teatro Guaíra em 2002 e 2003. Seu título  “Verdadeira História do Circo Místico”  dialoga com o poema através de sua declarada ironia. Não aparece no catálogo o nome do redator do resumo mas, embora o texto seja muito breve, serve como um bom ponto de partida para mostrar a disparidade entre a versão histórica do itinerário dos Knie e a versão poética elaborada por Jorge de Lima.

10 Efetivamente, o filho do médico de câmara da imperatriz Teresa conhece, em 1803, uma acrobata (que não se chama Agnes), passa a viver (sem se casar) com ela e abandona os estudos de medicina para ingressar na carreira artística. Häsler relata o episódio da seguinte maneira: “Alors qu’une troupe d’artistes séjournait à Innsbruck, l’étudiant, qui n’avait pas encore dix-neuf-ans, tomba amourex de Mlle Vilma, une écuyère fouguese annoncée comme étant Tcherkesse. Elle devait en fait s’appeler Wilhelmine Niederpaur et être originaire de Furth. Cela importait peu à Frédéric Knie. Son art à cheval, ses cheveux brun-roux, l’éclat excitant de ses yeux, la beauté de son visage et la grâce de ses gestes ravirent ses sens, au point qu’il décida aussitôt d’abandonner ses études et de se joindre à la troupe. C’était en l’an 1803.” (20)

45 Além da versão histórica com que o texto dialoga, há também as versões da imprensa, às quais o poeta se refere. Analisaremos o confronto entre o poeta e a imprensa adiante. Por ora é necessário considerar um outro conjunto de referências exteriores ao texto mas com as quais ele se relaciona, uma vez que seu sentido dialoga com tais referências. Não se trata, como seria equivocado supor, de uma insuficiência do texto. Ao contrário, sua incompletude é proposital e caracteriza sua estrutura fragmentária, típica da alegoria, tal como Walter Benjamin observa a respeito desta. Precisaremos, portanto, entrar e sair muitas vezes do texto até configurar-se com clareza seu sentido.

Esse modo peculiar de significação era particularmente caro aos surrealistas, e também a Jorge de Lima, sobretudo a partir de Tempo e Eternidade e A túnica inconsútil, livros em que começou a ensaiar um radical distanciamento da realidade. Através dele, tanto o grupo liderado por André Breton quanto o poeta brasileiro buscavam ampliar o conceito de realidade, incluindo no campo desta as dimensões do sonho, do sobrenatural, da transcendência. Desse modo, nada mais próprio do que um tipo de texto que estivesse paradoxalmente ligado à realidade, afirmando e negando-a ao mesmo tempo.11

Em vista disso, podemos dizer que o texto atua sobre a experiência do leitor de uma maneira muito peculiar: os dados colhidos fora do texto constituem parte fundamental da operação de leitura e funcionam como uma espécie de contraponto na esfera cognitiva. Ao ler os versos, após feitas as “pesquisas de campo,” a versão histórica do grupo circense em questão e as versões da imprensa giram simultaneamente, formando uma textura polifônica de sentido que, embora virtual, atua de maneira decisiva no modo de significação do texto.

11 Este procedimento poderia ser comparado à técnica do decalque de Max Ernst.

46 Vejamos como essas variações sobre um mesmo tema se relacionam, polifonicamente, primeiro de maneira isolada e depois em conjunto.

Uma primeira hipótese, como vimos, liga-se ao fato de Jorge de Lima utilizar um circo estrangeiro como forma de questionamento do nacionalismo então vigente. Como o circo, mesmo no caso do circo brasileiro, tem feição transnacional, dados os seus diferentes artistas e números, culturalmente originários de diversas culturas, Jorge de

Lima utiliza sua imagem, que é recorrente em seus livros a partir de Tempo e Eternidade

(1935), como forma de problematizar as construções de cunho nacionalista promovidas pelo governo de Getúlio Vargas e pelos intelectuais e artistas a ele ligados.12 A nação brasileira, tal como imaginada por Jorge de Lima, não estava fundada em valores como os da tradição local, das raízes luso-tropicais, do sedentarismo. Ao contrário, voltava-se para um âmbito quase nunca celebrado, para não dizer marginalizado, da cultura brasileira, cujas características assemelham-se a um modo de vida descentrado de um poder central e patriarcal e que encontra na imagem das populações itinerantes um dos seus principais meios de representação. Nesses termos, a comunidade mambembe de que se constituem os circos itinerantes dá conta de representar de um ângulo diferente a nação. No caso, trata-se de um Brasil em constante êxodo, movimento perpétuo que não permite aos grupos humanos fixarem-se à terra, a não ser por uma condição paradoxal, cujas raízes estão plantadas no próprio movimento.13

12 Para um aprofundamento a respeito do governo de Getúlio, leia-se o ensaio Getúlio Vargas, de Boris Fausto. Sobre a questão específica do nacionalismo, consulte-se o terceiro capítulo desse mesmo livro, “O Estado Novo: a modernização autoritária.”

13 Na canção “Na carreira” Edu e Chico retomam esta mesma idéia: “Apagar as pistas de que um dia / Ali já foi feliz / Criar raiz / E se arrancar”. Esse trecho da canção expressa o que Sérgio Buarque de Holanda via a respeito do dilema brasileiro: modernizar-se e deixar de ser Brasil (cortar as raízes coloniais, se arrancar) ou continuar a ser Brasil sem se modernizar (criar raiz).

47 Um dos interesses literários e filosóficos de Jorge de Lima é a noção ovidiana e cristã de metamorfose, presente em toda a sua obra. A metamorfose e o nomadismo compartilham de uma mesma lógica. Como sabemos, várias faixas da população brasileira deslocam-se no espaço, por necessidade ou opção. Com relação aos artistas mambembes, considero altamente propícia sua associação a Dionísio, tal como efetuada por Regina Horta Duarte: “Dionísio, o ambíguo, o estrangeiro, é aquele que traz a vivência do conflito e do fascinante domínio da diferença, transfigurando a existência cotidiana, dissolvendo as certezas aparentemente adquiridas e apagando os limites ilusoriamente fixados.” (27) Tal associação foi feita quando a historiadora iniciava seu importante estudo Noites Circenses (Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX). Encontramos essa mesma idéia desenvolvida em outros dois trechos importantes. No primeiro, ela afirma:

Evocamos aqui tais imagens e a figura desse deus, ao iniciarmos o presente trabalho. Dedicando-nos ao estudo dos espetáculos de circo e de teatro ambulante, que tiveram como palco a província de Minas Gerais no século XIX, acompanhou-nos a idéia da vinda desses artistas mambembes como uma invasão dionisíaca. Chegavam como deuses pagãos, fascinantes e temíveis. Transformavam o cotidiano das cidades, instaurando linhas de fuga, detonando desejos, fragmentando identidades e oferecendo caminhos e possibilidades imprevisíveis e perigosas. (27)

No segundo:

Vistos pelos meninos da época como super-homens ou seres mágicos de pele colorida, os artistas parecem situar-se entre o humano e o divino. Para os adultos, o fascínio é também contagiante. Como veremos, os homens não se preocupavam em disfarçar a paixão despertada pelas atrizes. Os galãs também dominavam a imaginação das recatadas senhoritas e senhoras. Não apenas o espaço físico da cidade era invadido, mas as relações entre os habitantes eram contagiadas pela irreverência e por tudo de diferente que aqueles saltimbancos representavam. (36)

48 Importa ainda ressaltar que o nomadismo pressupõe e se realiza na instabilidade do movimento e por isso desde há muito é vigiado e regulado pelo Estado, como atesta a historiadora em relação ao circo:

A formação de um estado imperial supervisor e burocrático se faz sentir a partir da década de 1840, com o início da montagem de um aparelho administrativo orientado para o “exercício metódico e despersonalizado das funções públicas”. Pode ser vista como a sobrecodificação de “enunciados dominantes e da ordem estabelecida de uma sociedade, das línguas e saberes dominantes, das ações e sentimentos adequados a essa ordem dos segmentos que prevalece sobre os demais”. Muito mais que uma estatização da sociedade, o movimento é direcionado para a governamentalização do Estado, com a criação de práticas voltadas para o controle da população em seus menores detalhes. Ao invés de um espaço liso percorrido de forma nômade, os espaços seriam fechados e estriados, formados por caminhos sedentários, garantindo a comunicação entre pontos bem delimitados. A partir daí, tornava-se essencial que se criassem mecanismos de controle sobre a vagabundagem e se dedicassem os esforços para a fixação da força de trabalho e a redistribuição de seus fluxos. Populações, mercadorias e valores circulariam em trajetos fixos, em direções bem determinadas, limitadoras e regulamentadoras das velocidades, relativizando os movimentos de pessoas e coisas. (45)

Portanto, a utilização da imagem do circo como representação da nação problematiza, logo de saída, a naturalização da história divulgada estrategicamente pelas ideologias ligadas ao poder. Por um lado, “O grande circo místico” é uma representação do Brasil através da identificação do brasileiro com a família estrangeira do circo em questão. Tal identificação ocorre através do modo como o poema veicula a religião, ou seja, através da ideia de uma família humana única, independentemente das diferentes nacionalidades. Por outro lado, o poema não consiste apenas na biografia da família estrangeira, mas do contato da história dessa família com o público brasileiro.

Curiosamente, nem Jorge de Lima saiu do Brasil nem o Circo Knie armou sua lona em nosso território. Esse fato indica que o poeta considerava a possibilidade de um

49 tipo extremamente abrangente de contato. A eleição de um circo europeu, justo às vésperas da Segunda Guerra Mundial, significava também a participação brasileira nos eventos da política internacional, mesmo à distância e na periferia.14 Jorge de Lima acabou não ficando conhecido como um autor de poemas de guerra, mas seus livros, nesse contexto, soaram sibilinos ao leitor europeu, conforme depoimento de Paulo Rónai:

Como a garrafa portadora de uma mensagem e atirada ao mar, de que fala Alfred de Vigny, um exemplar das poesias de Jorge de Lima aportou na Hungria em 1939 e caiu em minhas mãos. Ignoro se sobre os brasileiros do momento esses versos exerceram outra influência além da estética. Por mim, naquele turvo momento, em vésperas da guerra, eles me empolgaram, mais ainda que por sua beleza, pelo tom apocalíptico e pela atmosfera de pânico e de expectativa mística. Lá, na Europa central, a um passo da Alemanha nazista e a um minuto da guerra, descobri, estupefato, nos versos patéticos daquele poeta exótico, a intuição de nossas angústias. Falava-nos de uma ave estranha que tangiam de toda a parte, que enxotavam de todos os lares e em que todas as mãos jogavam pedras, enquanto nós vivíamos a experiência da ave. Convidava-nos para uma ilha misteriosa,

enquanto esta ilha não vai afundar, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar

— e nós sentíamos as nossas ilhas, Viena, Praga, Budapeste, afundarem-se uma por uma. Dizia-nos palavras acolhedoras:

Estrangeiro, vós me estendeis vossos braços e somos como velhos amigos passeando no cais, e olhando no mar a vela, a asa, a onda e as coisas fugitivas

— numa hora em que estávamos sendo chamados estrangeiros e perseguidos em nosso próprio país. Ao mesmo tempo, falava em desastres, perturbações, loucuras

14 Murilo Marcondes de Moura mostra como a poesia brasileira de guerra é tão efetiva quanto a poesia de autores que participaram diretamente da guerra. Podemos aplicar essa mesma idéia ao caso em questão. Embora não se trate de um poema de guerra, podemos dizer que Jorge de Lima estava antenado nos acontecimentos de então e reagia à realidade através de um dos modos que a poesia de guerra encontrou para responder à barbárie da guerra, isto é, a poesia religiosa. Nesta chave de leitura, o poeta, assim como Murilo Mendes, tenta revelar à espécie humana o aspecto transcendente da vida, que segundo seu ponto de vista consistia na comprovação, através dos milagres presenciados no picadeiro, a certeza de um fim transcendental para o ser humano. O poema, nesses termos, pode ser visto como um poema engajado, tentando através da visão religiosa alertar e sensibilizar as nações à beira da guerra a respeito do convívio pacífico pregado pela doutrina católica através do conceito de amor fraterno (caritas).

50 e mortes — fantasias sombrias para o leitor brasileiro, mas, para nós, partes integrantes da normalidade cotidiana. (47-48)

Além disso, é preciso mencionar que Jorge de Lima convivia com vários poetas que escreveram poesia de guerra, destacadamente os três Andrades (Mário, Oswald e

Carlos Drummond), Cecília Meireles e Murilo Mendes, que era seu amigo íntimo, e portanto é plausível que debatesse assuntos políticos com os amigos.

O catolicismo, sob a ótica de Jorge de Lima, é dissonante em relação a essa ideologia, cujo apagamento das diferenças é notório e até mesmo contraditório, uma vez que a própria doutrina católica, sendo ecumênica, pressupõe uma comunidade transnacional de fiéis. Disso dão testemunho as várias igrejas espalhadas pelo mundo mencionadas no Novo Testamento e o evento do Paráclito, comemorado pelos católicos no Pentecostes. Aí se encontra uma possível explicação pela omissão das religiões afro- brasileiras do ensaio “Todos cantam sua terra...” Não que Jorge de Lima achasse que o candomblé e outras religiões afrobrasileiras pudessem suplantar o catolicismo. Mas, talvez por ver o catolicismo assumindo um discurso que distorcia, no final das contas, a própria doutrina católica, além de ser a religião dominante no panorama da cultura brasileira e portanto ligada a vários aspectos da vida nacional, o que lhe interessava, independentemente do fato de ser católico, era a pesquisa da expressão brasileira e o estudo do inconsciente coletivo e, nesses termos, o catolicismo lhe aparecia como um enorme repositório de imagens vinculadas à experiência brasileira. Por sua natureza ecumênica, o catolicismo a rigor não pertence especificamente a nenhuma nação e aí reside a potência transformadora, desestabilizadora e reivindicadora de novas formas de se imaginar a nação de que falávamos. Logo, o fato de não incluir as religiões afro- brasileiras em seu quadro de discussão teórica não significa que Jorge de Lima as

51 desconhecesse ou diminuísse. Mas queria concentrar forças na discussão do próprio catolicismo e os rumos que ele então tomava no Brasil, alguns altamente reacionários e totalitários, como o catolicismo dos integralistas e o próprio catolicismo oficial, ao qual

Getúlio Vargas ofereceu inúmeros cargos durante seu governo.15

A organização de uma nova genealogia, a invenção de vários personagens e episódios, a inclusão de tendências místicas à biografia da família e a elaboração de uma narrativa quase totalmente nova são os procedimentos que fazem o poema se diferenciar de modo profundo da versão histórica. A comparação das árvores genealógicas permite visualizar com clareza os procedimentos da permuta e da invenção de personagens e caracterizá-los de um modo mais específico, associando-os a um procedimento típico da lírica moderna e caro a Jorge de Lima  a montagem.

Conforme a história do grupo, temos o seguinte esquema:

15 Vê-se, com isso, que o catolicismo de Jorge de Lima prefigurava, em plena década de 30, a Teologia da Libertação.

52

A árvore baseada nas relações de parentesco expressas no poema  relativa a seis gerações  possui configuração bastante diferente:

Através do cotejo das árvores genealógicas, vemos que Jorge de Lima lançou mão de dois procedimentos básicos que desempenham funções diversas  a invenção e a permuta de personagens.

A permuta, em primeiro lugar, introduz ressonâncias da árvore de origem na

árvore derivada. Esse princípio se instaura desde o topo da genealogia, ocupada pelo fundador da dinastia, Frederico Knie. É este personagem que dá nome à família, ocupando a posição paradigmática do patriarca. Seu prenome reaparecerá muitas vezes na

árvore histórica, como homenagens feitas ao patriarca e que significam, no arco do tempo, uma reafirmação da vocação artística da família.

53 Rudolf, que na genealogia histórica reaparece em muitas posições, consistindo um dos nomes que, como o do patriarca, se repete em diferentes gerações, entra na árvore dos

Knie por se tornar o pai das gêmeas Marie e Hèlene, na versão poética. É ele, homem- fera e boxeador, quem engravida Margarete. Se na história da dinastia, este nome está ligado à idéia da reafirmação da vocação artística da família, no poema ele surge como coadjuvante da vocação mística, representando a força bruta (irracional) da natureza humana que, ao se juntar ao sublime, produz por contraste o desenvolvimento e a reafirmação da vocação mística.

Margarete, por sua vez, na versão histórica entra para a família por se casar com

Frederico Knie, bisneto do fundador do circo. Nessa troca de papel se dá um significado decisivo, uma vez que é Margarete quem produz a ampliação da vocação estritamente artística para a vocação mística do circo. Antes dela, Lily Braun, com seu santo tatuado no ventre, era apenas uma espécie de São João Batista anunciando o ingresso da dinastia em um caminho místico. É significativo, portanto, que essa personagem ocupe um lugar de destaque na linhagem forjada pelo poeta e descenda diretamente do fundador do circo.

Dos filhos de Frederico, o patriarca da dinastia, somente Charles se casou, dando continuidade à família. No poema, Charles aparece no feminino, como Charlotte, que se casa com um clown e gera dois filhos: Marie e Oto. Marie reaparecerá no próprio poema, sendo o nome dado a uma das irmãs gêmeas, que ocupam a ponta extrema da árvore. Oto

Knieps é quem se casa com Lily Braun, gerando Margarete. Margarete, portanto, batiza uma de suas filhas com o nome da tia solteira, fato que tem implicações simbólicas que serão comentadas mais a frente. Charlotte, é preciso destacar, dá origem à predominância

54 do elemento feminino na genealogia do circo. Esse fato é da maior importância e a ele também voltaremos a seguir.

Por ora, o que importa é ver que esses deslocamentos denotam o trabalho de fragmentação e reconfiguração alegórica efetuado pelo poeta, que utilizou a história de origem sem o compromisso da mimesis. A descontinuidade entre as versões, entretanto, reforça os laços entre elas, exigindo do leitor que as considere conjuntamente, como em um contraponto. O poema, portanto, espera que o leitor se lance na direção da história para depois voltar ao âmbito poético, para que se produza o processo da significação. Em outras palavras, o texto poético impõe a comparação entre ficção e realidade. Ao refazer a história o poema não a anula nem nega, mas a coloca em outros termos, que pedem interpretação. Esse processo de leitura é desencadeado pela alegoria.

Além disso, a permuta é um princípio que gera algumas ambiguidades decisivas no texto. Por exemplo, ela pressupõe a inserção de signos da realidade empírica no corpo do poema. Não se trata de cópia, mas de fragmentação. A realidade se fragmenta, mas está presente. Esse princípio, como sabemos, foi introduzido na arte moderna primeiramente pelo cubismo. Em uma tela cubista, um dado objeto aparece em sua totalidade, embora as partes do todo estejam dispersas em uma nova configuração. Esse processo é muito similar à permuta utilizada no poema por Jorge de Lima. A diferença fundamental é o fato de que o poeta não recupera a totalidade do referente, que se vê reduzido a um número de partes  ruínas  que não corresponde ao todo do objeto retratado. A subtração de várias partes  no caso, personagens e sequências narrativas

 é compensada pela invenção de outras. Temos, assim, a formação de um objeto híbrido, composto de signos relativamente factuais e de signos marcadamente fictícios.

55 Ainda quanto à permuta, observemos que ela produz um efeito contraditório no

âmbito temporal do texto. É que a genealogia contém um aspecto cronológico fortemente marcado, tendo como base a organização das gerações conforme seus desdobramentos na linha do tempo. Entretanto, ao trocar a posição das personagens na estrutura de parentesco, o poeta lança mão da ideia paradoxal de uma descontinuidade hereditária. É evidente que o nome do patriarca (Frederico Knieps) continua sendo o ponto de partida.

Mas, para além desse ponto, tudo é diverso. Ressaltemos que essa contradição não vem à tona de imediato, após as primeiras leituras do poema, exceto em casos excepcionais, ou seja, o caso de leitores que cheguem ao texto munidos de conhecimento prévio em relação à história dos Knie. Em geral, a contradição temporal entre o sucessivo e o simultâneo aparece depois do convívio com o texto e a pesquisa histórica.

Devemos, então, buscar compreender o sentido dessa contradição, capital para a interpretação do texto. Observemos que esta necessidade aponta, mais uma vez, para o caráter alegórico do poema. É justamente por ser uma alegoria que o poema conduz o olhar para fora de si. Ou seja, o texto se relaciona de maneira estrutural com elementos externos, dependendo deles para significar.

Quanto ao aspecto temporal, o jogo contraditório entre o cronológico e o descontínuo indica uma multiplicidade de conceitos sobre o tempo e, junto com ela, os diversos enredos e sentidos que se sobrepõem, polifonicamente, nos níveis alegóricos do texto. Em outras palavras, o poema reconfigura ludicamente a realidade. Ao designar diferentes posições para os personagens, o poeta redistribui os papéis desempenhados no drama familiar. Essa reconfiguração produz efeitos insólitos e redireciona o sentido da história. Embaralhar os papéis e também os tempos, uma vez que a árvore pressupõe uma

56 ordem cronológica, diz respeito a um elemento que acarreta uma diferença fundamental em relação à história de origem: o misticismo. É através dessa nova perspectiva conferida

à história dos Knie  a perspectiva mística  que atua o procedimento da invenção. A permuta que foi comentada acima também é, evidentemente, uma espécie de invenção.

Mas a invenção no sentido estrito de criação (não de uma ordem nova, um novo arranjo, mas de dados novos) ocorre em função do misticismo, que desponta no poema de diversas maneiras.

Uma das maneiras mais evidentes de manifestação do misticismo é através das imagens visuais que encontramos nas tatuagens do ventre de Lili Braun e do corpo de

Margarete, além das passagens sobrenaturais que caracterizam alguns episódios da vida privada e alguns números circenses da companhia, entre eles, o reconhecimento da vocação de Margarete, a conversão e a morte do homem-fera, a reação pacífica do leão perante Margarete e a levitação das gêmeas Marie e Hèlene.

Se no poema a perspectiva mística se impõe, na biografia do grupo ela aparece somente de passagem. Ocorrem em poucas passagens, sobretudo estas duas: o rapto de

Antonia Stauffer do convento em que seu pai a colocara a fim de afastá-la do namorado,

Frederico Knie, então já inserido na vida mambembe, e os anos de penúria que eles, depois de casados, juntamente com os filhos, atravessaram. Observe-se que o episódio do convento é reproduzido de forma espelhada (invertida) no poema. Quando Margarete pede ao pai para entrar no convento ele a proíbe e a obriga a se casar. Antonia Stauffer se livra da reclusão do convento e Margarete “foge” do casamento, mantendo-se firme em sua vocação. A penúria, por sua vez, remonta ao misticismo de um modo mais oblíquo, através do conceito de renúncia e vida humilde, que, como sabemos, fazem parte de

57 várias ordens religiosas, não apenas cristãs. Renunciar ao passado, renunciar aos bens materiais, renunciar ao conforto, renunciar ao ego. No campo das doutrinas cristãs talvez seja o franciscanismo a ordem religiosa que melhor exemplifique o conceito de renúncia.

É, portanto, nessa espécie de gesto franciscano por parte de Frederico Knie, em primeiro lugar, e depois dele e da família de artistas que constituiu, que se encontra talvez um outro elemento da biografia que Jorge de Lima aproveitou para elaborar o poema.

Lembre-se que a renúncia de Frederico Knie à carreira de médico implica na renúncia à própria classe social na qual nasceu e se criou, a burguesia, além de todos os privilégios a ela relacionados, nisto, aliás, aproximando-se muito da opção radical de São Francisco de

Assis que, como sabemos, abandonou uma vida aristocrática e mundana para dedicar-se a uma vida humilde e inteiramente devotada a Deus.

O aspecto místico relaciona-se ao destino trágico da dinastia Knie e se dá da seguinte maneira. A partir do choque entre os desígnios do fundador do circo e os desígnios divinos, a dinastia passa por uma transformação radical que atua tanto na arte quanto na vida. Margarete é a personagem que, a bem dizer, introduz na dinastia o elemento místico, embora esse elemento tenha sido anunciado anteriormente, na figura do santo tatuado no ventre de Lily Braun. É a partir de Margarete que se inicia um caminho sem volta na história da família, caminho que vai na direção de uma vocação ao mesmo tempo artística e mística, a qual passa a se renovar e fortalecer de geração em geração.

O poeta, portanto, ao tomar conhecimento da história do Circo Knie, parece tê-la considerado a partir de uma dimensão alegórica, privilegiada quando a recriou poeticamente. O desafio do poeta se traduziu em mostrar ao leitor o que vislumbrou na

58 história de uma família particular, isto é, a história da salvação. Eis aí um ponto de contato entre a visão de Jorge de Lima e a visão barroca, que também considerava a história uma manifestação da história divina. Tal visão reaparece em várias imagens do poema e a maneira com que se manifesta é correlata de sua essência humilde  as imagens de humildade, nesse caso, estão ligadas ao elemento místico. O respeito de

Margarete pela ordem do pai e o temor a Deus, ao tatuar o corpo. Margarete, em sua dupla resignação, é figura exemplar e hiperbólica da humildade. Além dessas duas determinações contraditórias, que ela acata de modo humilde, transforma em espetáculo de circo a encenação figurada de sacrifícios bíblicos, tais como o de Isaac e o de Cristo.

A personagem, portanto, desempenha o papel do mártir. O perigo iminente do contato humano com a fera é anulado por milagre, eis a essência e a magia do número realizado por Margarete no picadeiro. Esse número também ressoa outras histórias ligadas à tradição judaico-cristã, tais como a do profeta Daniel na cova dos leões e os mártires cristãos devorados por leões nas arenas romanas. Este último caso, aliás, também possui ressonâncias com a história do circo, pois, como se sabe, esse holocausto era assistido como espetáculo circense pelos habitantes de Roma.

Voltaremos ainda ao problema da representação do sacrifício e da humildade quando formos tratar da estrutura alegórica do poema, para a qual a permuta e a invenção consideradas aqui apontam.

59 O Poema e a Notícia

Feito o contraste entre o poema e o resumo biográfico do Circo Knie, consideremos agora a relação entre o texto poético e o texto com o qual ele dialoga: a notícia de jornal. Esta outra etapa comparativa é necessária em vista de tal conexão estar inscrita no próprio poema. Por três vezes o poeta se refere às versões da imprensa em repetições que, pode-se dizer, assumem o papel de bordão. Além desses ritornelos, Jorge de Lima chega a utilizar ironicamente alguns elementos do estilo jornalístico, por exemplo, incorporando ao texto uma considerável dose de objetivismo de reportagem  a despeito da inclusão de passagens surreais. A história conturbada da família circense e o extraordinário de alguns números realizados no picadeiro também são, pelo assunto e as imagens selecionadas, semelhantes aos artigos de coluna social, nos quais é comum se exercer o sensacionalismo fetichizante da notícia. Observe-se também a semelhança do título do poema com uma chamada de propaganda, que nos jornais apareceria em caixa- alta, encabeçando a notícia. Simulando a notícia de jornal, o poema no entanto não se iguala a ela, pois vai muito além da informação e da propaganda. Logo, é preciso avaliar como nele se enuncia o compromisso com a realidade imediata (um dos traços distintivos do jornalismo), além de buscar compreender sua estrutura enquanto discurso poético, cujos elementos começaram a ser indicados anteriormente.

Uma primeira questão: o poema foi tirado das notícias de jornal a que se refere ou se contrapõe a elas de modo radical? Essa pergunta vem a reboque da ambiguidade instaurada pelas referências contraditórias à imprensa. Ou seja: por um lado, o poema dá a entender que resulta de uma operação semelhante à que Manuel Bandeira utilizou ao escrever o célebre “Poema tirado de uma notícia de jornal,” isto é, desentranhar o texto

60 poético do texto jornalístico; por outro, temos a impressão de que o poeta tratou de modo completamente livre um material de base, desfigurando-o a ponto de torná-lo outro ou dele tomando apenas uma parcela mínima, tal como fez em relação à biografia dos Knie.

Antes de passarmos ao desenvolvimento dessa questão, é necessário anunciar um dos limites deste ensaio, isto é, a impossibilidade de realizar consultas em arquivos brasileiros e europeus a fim de procurar referências ao Circo Knie nos noticiários da

época em que o poema foi escrito. Por uma série de razões que não cabe mencionar aqui, tive que restringir minha pesquisa ao poema propriamente dito e ao material que pude conseguir em bibliotecas americanas e através do contato de amigos no Brasil. Porém, há pelo menos uma consideração que, embora não sirva como justificativa para essa lacuna da pesquisa, pode de certa maneira relativizar o referido limite: trata-se do fato de que tanto Jorge de Lima quanto o Circo Knie jamais estabeleceram contato direto um com , uma vez que o poeta nunca esteve fora de seu país de origem e o circo nunca montou picadeiro em chão brasileiro.

Em vista disso, há um grão de verdade em supor que as notícias às quais o poeta se refere muito provavelmente eram matéria de jornais europeus. É provável, ainda, que

Jorge de Lima assinasse ou adquirisse esporadicamente alguns noticiários europeus  o que não seria difícil, naquela altura, com o poeta já instalado no Rio de Janeiro, uma vez que as notícias vindas do estrangeiro primeiro aportavam na então capital federal. Além do interesse que os brasileiros sempre cultivaram pela Europa, os anos 30 lhes estreitaram ainda mais as relações por causa das tensões que precederam a Segunda Guerra Mundial, no âmbito político, e o desdobramento das vanguardas artísticas no período entre-guerras, entre outros fatores.

61 Esse fato abre alas para a hipótese de que o interlocutor do poema  a princípio o leitor brasileiro  tivesse acesso regular ao cotidiano europeu através de jornais, revistas, livros e do rádio e, portanto, conhecesse de antemão as versões da imprensa sobre o renomado circo suíço a que se refere o poeta. Embora tais notícias talvez contenham alguns dados decisivos, os quais somente poderão vir à tona quando tivermos acesso a elas, o poema contém a crítica de alguns aspectos do discurso jornalístico com o qual dialoga, relacionando-se de modo declarado com o conjunto das notícias que precederam e circundam o poema. Sabemos, sobretudo, que a imprensa divulgou de modo exaustivo a história do Circo Knie, além de, ao que parece, ter explorado, dos bastidores ao espetáculo, seus aspectos pitorescos. Isto vem indicado nos versos em que o poeta se refere à imprensa: “a dinastia de circo Knieps / de que tanto se tem ocupado a imprensa”

(grifo meu). Evidentemente temos acesso ao discurso jornalístico por via indireta, através do ponto de vista do poeta e, portanto, durante a análise não devemos esquecer que ele se opõe aos jornalistas, os quais, segundo ele, não oferecerem ao público leitor textos empenhados em revelar, como ele, a verdadeira história dos Knie. O intensificador grifado acima (o vocábulo tanto) aponta justamente para o excesso de matérias publicadas a respeito do circo, índice gritante da exploração sensacionalista dos episódios privados da família Knieps e do espetáculo propriamente dito.

A repetição exaustiva de uma dada informação, sabemos, é um dos métodos básicos empregados pela propaganda quando se trata de despertar no consumidor o desejo de adquirir uma determinada mercadoria. O caráter estrategicamente compulsivo desse procedimento atua tanto sobre o inconsciente quanto sobre a consciência do indivíduo e acaba por ocultar aspectos centrais do significado da mercadoria (no caso, um

62 espetáculo circense e a vida privada dos artistas). O desvio ideológico que oculta o significado da obra de arte a transporta para o rol das mercadorias comuns, que, ao lado de tantas outras, circulam conforme a lógica da mercadoria. Nesses termos, o poema é uma crítica mordaz à sociedade do espetáculo, tal como a definiu Debord. O ataque à imprensa consiste em mostrar como os jornalistas e a propaganda muitas vezes buscam induzir no leitor um comportamento fetichista em relação a um determinado objeto  no caso, o circo  e o manipula, fazendo com que observe e deseje o dado objeto de modo unilateral, ao qual não chegaria se alcançasse os sentidos verdadeiramente artísticos (e transcendentes) da obra de arte, justamente por circunscrevê-la no âmbito restrito e regressivo do fetichismo e da ideologia16. A imprensa estava empenhada em tornar o

Circo Knieps o circo da vez, o circo da moda, anunciando-o como o espetáculo imperdível que deveria ser consumido a qualquer custo. Para tanto, explora os detalhes aberrantes da biografia dos artistas e os números bizarros da companhia, apresentando-os sob a ótica do excêntrico e do insólito. Acrescente-se a isso o procedimento da repetição exaustiva como princípio básico da propaganda e entenderemos sem demora a ideologia a que a imprensa está aliada. O poeta combate frontalmente e sem piedade tal ideologia, pois, como é sabido, o excesso de informação falsa e sua repetição excessiva iludem e desorientam o espectador. Em vista disso, podemos dizer que a ambição do poeta é transpor a história do circo em questão para um estágio de quase completo ineditismo, realizando, desse modo, a contrapelo da imprensa, um trabalho de resistência. Pode-se dizer, por isso, que o poeta utiliza o princípio da notícia contra a própria notícia.

16 Com isso, Jorge de Lima demonstra ter uma visão precisa das questões que envolvem a imprensa e as ideologias ligadas ao poder, tal como indica Benedict Anderson ao expor o conceito de capitalismo tipográfico (print capitalism) em Comunidades imaginadas.

63 Isto posto, vejamos de que maneira é possível interpretar a ligação do poema com as notícias de jornal. Um primeiro aspecto a ser observado consiste nos múltiplos sentidos que as duas primeiras referências à imprensa contêm. A voz do eu lírico aponta pelo menos para duas constatações: primeiro, que o poema utiliza matéria da imprensa, a qual o leitor supostamente já conhece; segundo, que a matéria tem sido explorada excessivamente. A repetição quase literal dos versos (únicos que se repetem no poema) de certa maneira imita o princípio repetitivo do sensacionalismo das notícias que o poeta critica  o excesso, acrescente-se ao que já foi indicado, é a evidência do desgaste da notícia e, portanto, contém uma denúncia e uma condenação por parte do poeta em relação à imprensa. Além disso, a repetição das referências à imprensa dá a entender que o poema se insere em uma cadeia de notícias previamente instaurada e que deve envolver o próprio poema, que desponta, por assim dizer, do meio dessas notícias. Essa rede de repetições é, por definição, inerente ao mundo da notícia e da propaganda  fato curioso, uma vez que um dos princípios da reportagem é justamente a novidade. Mas ela (a cadeia de repetições) também pode ser lida como a denúncia da invisibilidade causada pelo excesso (muita luz cega). Nesse caso, o fato do poeta se dispor a fazer um texto poético a partir de uma notícia de jornal tornada vazia por se repetir à exaustão significa, entre outras coisas, uma tentativa de dar visibilidade a uma notícia que ele acha fundamental e que no entanto foi obscurecida pelo modo insistente e distorcido de sua divulgação. Tal dinâmica está inscrita no próprio corpo do texto. Os comentários sobre a imprensa se repetem, praticamente sem variações, entremeados à narrativa da história do circo em que, de certo modo, nada se repete. Tais ambiguidades  que, como veremos, se juntam a outras  recolocam a questão inicial: o conteúdo é criação livre ou foi retirado das

64 notícias? O poema imita o jornal para criticá-lo e denunciar que, no fundo, ele está a serviço do capital ou inventa algo completamente novo?

Para devassarmos essas questões, é preciso ter em conta que as repetições referidas acima produzem uma tensão decisiva: se o poeta está utilizando um material que passou previamente pelas mãos da imprensa e ao mesmo tempo a está recriminando pelo modo como utiliza esse mesmo material, para que, afinal de contas, escreveu o poema? Essa questão de certo modo está respondida no fim do poema, quando aparece a terceira (e última) referência à imprensa, cujo sentido inverte o significado das duas referências anteriores: “Com a verdadeira história do grande circo Knieps / muito pouco se tem ocupado a imprensa” (grifo meu). A inversão é explícita: de tanto passa-se a muito pouco. No entanto, essa transformação não consiste apenas em uma simples contradição.

Ela estabelece uma contradição da qual depende a estrutura do poema: se o poeta está reaproveitando o material da imprensa, o que há de novo, em sua versão, que lhe permite inverter o sinal anteriormente atribuído à atuação da imprensa? Em outras palavras, que informação nova e decisiva o poema veicula?

Esse enigma parece estar ligado ao modo de ver e relatar a história do circo em questão, sobre o qual nos lançaremos depois de avaliar o confronto entre o poeta e a imprensa. Por ora, observe-se que o poeta, de modo categórico e desafiador, termina por designar sua versão como verdadeira. Tal declaração repõe, mais uma vez, um dos termos da pergunta feita acima: o poema foi tirado das notícias de jornal ou se contrapõe a elas? A princípio, digamos que o poema parece ser uma tradução livre da história que tomou como base nos jornais ou em qualquer outra parte e, portanto, difere de modo radical das versões divulgadas pela imprensa. Nesse sentido, o poema simula os jornais

65 apenas em sua aparência (em sua linguagem), sendo que, no fundo, constrói uma história totalmente diversa.

Essa ambiguidade estrutural parece insolúvel e agrega ao poema uma rede de tensões que, por todos os lados e a todo instante, exige a participação do leitor, direcionando-se à sua experiência de modo transformador  produzindo conhecimento

 e, portanto, diverso do efeito empobrecedor e alienante dos jornais. Se, conforme

Benjamin, os jornais na modernidade contribuem para a turvação e o aniquilamento da experiência, o poema, apesar de (e justamente por) encenar a linguagem jornalística, quer entrar em contato com a experiência profunda do leitor e alterá-la. A subjetividade profunda para a qual Jorge de Lima se encaminhava na fase em que escreveu “O grande circo místico” também alcança, paradoxalmente, o território do leitor  e esse é um dado político da poética do autor que merece maior atenção por parte da crítica. A aparente objetividade do poema é, na verdade, apenas um dos aspectos do texto e uma estratégia engenhosa para cativar a atenção do leitor e viabilizar para ele um meio de entrar em contato com a possibilidade efetiva de adquirir experiência. Isto se dá, porque há um lado obscuro (um sentido oculto) que precisa ser vislumbrado para que possamos efetivamente desvendar as camadas profundas do sentido. Logo, o poeta procura realizar uma transformação qualitativa no modo de ver do leitor porque o sentido do poema aponta justamente para a capacidade de ver. É evidente, seria possível argumentar, que, nesses termos, o poema contém implicitamente algo do gesto do doutrinador. Entretanto, é preciso ter em mente que, em Jorge de Lima, a visão religiosa tem quase sempre o contrapeso do surrealismo e do engajamento social e, logo, o poeta exige que o leiamos de diversos ângulos, caso não queiramos perder de vista a justa dimensão de sua obra. Se

66 ele quer convencer e converter o leitor de que o circo em questão é místico e, a partir desse fato, mostrar como o contexto histórico impede o espectador/leitor de ver os milagres realizados no picadeiro e na vida privada dessa família circense, não deixa de também abrir perspectivas novas em seu imaginário, as quais exigem uma espécie de reeducação dos sentidos ou, mais precisamente, uma reeducação sentimental e estética.

Ou seja, a visão religiosa não exclui a visão surreal, uma informando a outra e gerando ambiguidades que as transformam em categorias permeáveis, vasos comunicantes, que não devem nunca ser considerados de modo apenas literal, a despeito de empobrecer grandemente a poética do autor e o sentido do poema que estamos estudando. É certo que o poeta, através da história do circo místico, repito, está indiretamente querendo apontar ao leitor nada menos que a existência de Deus (como uma pessoa de fé que expõe um milagre como argumento perante o olhar desconfiado do incrédulo), mas, ao fazê-lo, utiliza procedimentos que atuam sobre a subjetividade do leitor de modo bastante diverso da pura doutrinação, a começar pela pela construção de um texto alegórico, um texto repleto de ambiguidades e descontinuidades que exigem a participação ativa do leitor e em consequência buscando alcançar, no limite, a experiência da liberdade.

Retomando o que dizíamos anteriormente, o poema se contrapõe a uma grande variedade de versões. Logo, além de constatar que os jornais divulgam exaustivamente a história do referido circo, o poeta denuncia que eles a distorcem. Daí se deduz que a versão apresentada pelo poema se distingue das demais. Em vista disso, podemos dizer que nas entrelinhas do texto poético apresenta-se figuradamente o contexto em que se desenrola o confronto entre o poeta e a imprensa. A severa denúncia lançada pelo poeta coloca-o na posição daquele que revela a verdadeira história do renomado circo e se

67 contrapõe à massa de falsificações produzida pelos jornais. A expressão “muito pouco” utilizada no último verso trata-se, como se vê, de um declarado eufemismo. Pois, como fica implícito, é o poeta quem se baseou na verdadeira história para recontá-la. Desse modo, as declarações sobre a imprensa situadas no primeiro terço do poema funcionam em chave irônica: vê-se que o tom coloquial das referências à imprensa, que poderia ser ouvido apenas como índice de uma constatação distanciada sobre a imprensa, na verdade

é atravessado pelos acentos de uma ironia ácida. Isto se confirma e reforça pelo inusitado metro dos versos 5, 14 e 47, todos dodecassílabos, com os quais o poeta critica a imprensa, conferindo a ela um certo ar de formalidade de metro e cadência tradicionais para justamente denunciar sua atividade fraudulenta.

Isto posto, suponhamos que o leitor dos anos 30 de fato conhecesse as versões da imprensa (caso esse dado, insistamos nesse ponto, não seja pura armação do poeta…). Ao ler o poema e não identificar nele os episódios narrados nas notícias de jornal, as primeiras declarações sobre a imprensa seriam irônicas logo de saída e a diferença dos pontos de vista poderia ser intuída a partir da discrepância entre as versões. Mas acontece que o poeta preferiu não colocar as coisas (apenas) em termos de ponto de vista. Ao contrário, mergulhou no intrincado problema da verdade. Esse fato desencadeia muitas outras questões que se enunciam no poema e que devem ser consideradas para que dele façamos uma apreciação justa.

Observe-se, a princípio, que a carga irônica do poema não se anula após a leitura do último verso e o fato de ter sido designado como verdadeira versão da história pode ser (mais) uma sutil armadilha irônica do texto. Pois o poeta talvez esteja utilizando a palavra ‘verdadeira’ de modo figurado, como quem procura, entre o riso e a auto-

68 complacência, conferir autoridade para a ficção de seu próprio relato. Esse recurso, aliás,

é recorrente entre narradores orais sempre que há necessidade de conferir autoridade a suas histórias. É o caso de histórias com enredo maravilhoso (impossíveis de ocorrer na realidade) contadas por um narrador que afirma ter sido sua testemunha ocular.

A dicção jornalística que o poema de certo modo mimetiza é também um recurso paródico-irônico utilizado com o intuito de denunciar a gritante parcialidade da imprensa, o caráter ideologicamente marcado de seu discurso. A dicção algo jornalística do poema pode ser verificada nas frases em sequência direta, no vocabulário simples, na exploração do extraordinário, no uso da hipérbole, enfim, no objetivismo difuso do texto. Os versos do poema, portanto, são coerentes com a paródia a que se lança: o poema é narrativo e breve como uma notícia de jornal. Logo, seu discurso prosaico funciona como imagem paródica da linguagem jornalística e de uma notícia de jornal.

Uma outra forma de entender a verdade que o poeta afirma ter revelado é através da clássica arenga entre poesia e história. Para Aristóteles, como sabemos, a diferença entre esta e aquela reside nas divergentes matérias por elas utilizadas, sendo ofício do historiador narrar o que aconteceu e do poeta, o que poderia acontecer. É evidente que os planos da verossimilhança e da necessidade que, segundo o filósofo grego, asseguram a possibilidade da representação poética, na poesia de Jorge de Lima encontram-se grandemente modificados, uma vez que os fatos que ocorrem no poema não poderiam se dar na realidade, quando entendida em termos clássicos, mas a partir da ótica surrealista com que uma das tendências da lírica moderna as empregou. O choro humano do leão, a conversão e a morte subsequente do ateu, a levitação das irmãs gêmeas são fenômenos completamente normais sob o olhar surreal e órfico. Feita essa ressalva, podemos agora

69 afirmar que o poeta (ficcionista) reclama para a sua versão a qualidade de “verdadeira”, tomando para si a tarefa de narrar o que aconteceu. Desse modo, o poeta inverte o esquema aristotélico de diferenciação entre poesia e história. Coloca a poesia (a ficção) como testemunha dos fatos (o que acontece) e lança a história (sob a máscara multifacetada da imprensa) no campo da invenção de mitos (o que poderia acontecer). A objetividade e a racionalidade não chegam à verdade. Ser distanciado não basta. Não é somente através da racionalidade que se chega à verdade. O poeta está envolvido e por isso toca a verdade.

As observações acima nos conduzem à problemática relação entre o jornal e o livro, tal como discutida por Benedict Anderson, em Comunidades imaginadas. Numa passagem decisiva, encontramos as seguintes ideias:

Qual é a principal convenção literária do jornal? Se olharmos uma primeira página qualquer do New York Times, por exemplo, teremos matérias sobre dissidentes soviéticos, a fome em Mali, um assassinato medonho, um golpe no Iraque, a descoberta de um fóssil raro no Zimbábue e um discurso de Mitterrand. Por que esses fatos estão justapostos dessa maneira? O que liga uns aos outros? Não um mero capricho. Mas é óbvio que a maioria deles ocorre de modo independente, sem que os agentes se conheçam ou saibam o que os outros estão fazendo. A arbitrariedade na inclusão e justaposição deles (uma edição posterior irá substituir Mitterrand por uma vitória no beisebol) mostra que o vínculo entre eles é imaginado. Esse vínculo imaginário provém de duas fontes indiretamente relacionadas. A primeira é a simples coincidência cronológica. A data no alto do jornal, o seu emblema mais importante, fornece a principal conexão — o avanço constante do tempo vazio e homogêneo. Dentro desse tempo, “o mundo” caminha inexoravelmente em frente. O sinal disso: se, depois de dois dias de reportagem sobre a fome, Mali desaparece das páginas do New York Times por meses a fio, os leitores não vão imaginar nem por um momento que Mali tenha sumido ou que a fome tenha liquidado todos os seus habitantes. O formato romanesco do jornal lhes garante que, em algum lugar lá fora, o “personagem” Mali continua a existir em silêncio, esperando pela próxima aparição no enredo. A segunda fonte do vínculo imaginário consiste na relação entre o jornal, como uma forma de livro, e o mercado. (...) Num sentido bem

70 específico, o livro foi a primeira mercadoria industrial com produção em série ao estilo moderno. Esse sentido ficará mais claro se compararmos o livro com outros produtos industriais daqueles tempos, como tecidos, tijolos ou açúcar. Pois essas mercadorias são medidas em quantidades matemáticas (peças, cargas ou libras). Uma libra de açúcar é apenas uma quantidade, um volume prático, não um objeto em si. Já o livro — e aqui ele prefigura os bens duráveis de nossa época — é um objeto distinto, contido em si mesmo, reproduzido fielmente em larga escala. Uma libra de açúcar escorre e se junta à libra seguinte; cada livro tem a sua auto- suficiência de anacoreta. (Não é de se admirar que as bibliotecas, coleções pessoais de mercadorias produzidas em série, já fossem um fenômeno corrente no século XVI, em centros urbanos como Paris. (65-67)

Jorge de Lima lança mão do caráter arbitrário da justaposição das notícias (entre elas a do Circo Knieps) para denunciar o vínculo imaginário (fictício) do jornal, cujas duas fontes (a simples coincidência cronológica e a relação entre o jornal e o mercado) caem por terra quando contrapostas à montagem alegórica que serve de base ao poema e que pressupõe um tipo de interação bastante diverso com o leitor. Tratam-se, na verdade, de concepções antagônicas de linguagem, embora sejam aparentemente tão próximas. A montagem efetuada pelo jornalista aponta sempre para a “comunidade imaginada secular, historicamente regulada pelo relógio”; a montagem do poeta anuncia um outro tipo de temporalidade, uma temporalidade que não se prende ao tempo mecânico do relógio, uma temporalidade que converte a história em devir, história marcada pela concepção messiânica do tempo, tal como Walter Benjamin a definiu. Nesses termos, uma mesma notícia (no caso, o espetáculo do Circo Knieps) assume consequências completamente diversas: para o jornalista é uma notícia entre outras, no fluxo inexorável da história vista como progresso infinito; para o poeta, a notícia se destaca das demais, produzindo uma ruptura no tempo e conduzindo desse modo o leitor-espectador ao cerne da transcendência, ou seja, ao contato com uma imagem que apresenta a descontinuidade do tempo como abertura para o milagre e a visão do paraíso. É por isso que podemos dizer

71 que o jornalista está imerso numa concepção linear do tempo enquanto o poeta no tempo messiâni‘c’co17 (uma simultaneidade de passado e futuro, em um presente instantâneo).

Nos versos finais do poema, ocorrem eventos decisivos: após o relato sobre a levitação das irmãs gêmeas — que por si só já é impactante — deparamo-nos com uma declaração que inverte o sentido do que antes fora afirmado sobre a imprensa. Ao instaurar uma das contradições fundamentais do poema, a última declaração sobre a imprensa se impõe à reflexão do leitor, intensificando a perplexidade causada pela observação das irmãs em levitação. De certa maneira, o poema requisita a participação do leitor, atuando em sua imaginação, despertando o desejo de assistir ao espetáculo. Pode- se dizer que o poema introduz elementos novos na experiência do leitor e a poesia mística, associada ao surrealismo, torna-se o meio que Jorge de Lima utiliza para abrir caminho na percepção do leitor.

Isto posto, podemos ver agora que Jorge de Lima se contrapõe à cerimônia de massa que a leitura do jornal consiste e, com isso, critica o consumo da obsolescência instrínseca dos bens duráveis modernos. Esta ideia nos leva a uma outra série de observações de Benedict Anderson a respeito da função do jornal na vida moderna:

(...) o jornal é apenas uma “forma extrema” do livro, um livro vendido em escala colossal, mas de popularidade efêmera. Será que podemos dizer: best-sellers por um dia? Mas a obsolescência do jornal no dia seguinte à sua edição — é curioso que uma das primeiras mercadorias de produção em série já prenunciasse a obsolescência intrínseca dos bens duráveis modernos — cria, e justamente por essa mesma razão, uma extraordinária cerimônia de massa: o consumo (a “criação de imagens”) quase totalmente simultâneo do jornal-como-ficção. Sabemos que as edições matutinas e vespertinas vão ser maciçamente consumidas entre esta e aquela hora, apenas neste, e não naquele dia. (Compare-se com o açúcar, que é usado num fluxo contínuo e sem controle de horário; ele pode empedrar, mas não perde a validade.) O significado dessa cerimônia de massa — Hegel observou que os jornais são, para o homem moderno, um substituto das

17 Walter Benjamin, Illuminations, 265.

72 orações matinais — é paradoxal. Ela é realizada no silêncio da privacidade, nos escaninhos do cérebro. E no entanto cada participante dessa cerimônia tem clara consciência de que ela está sendo repetida simultaneamente por milhares (ou milhões) de pessoas cuja existência lhe é indubitável, mas cuja identidade lhe é totalmente desconhecida. Além disso, essa cerimônia é incessantemente repetida a intervalos diários, ou duas vezes por dia, ao longo de todo o calendário. Podemos conceber uma figura mais clara da comunidade imaginada secular, historicamente regulada pelo relógio? Ao mesmo tempo, o leitor do jornal, ao ver réplicas idênticas sendo consumidas no metrô, no barbeiro ou no bairro em que mora, reassegura-se continuamente das raízes visíveis do mundo imaginado na vida cotidiana. (...) a ficção se infiltra contínua e silenciosa na realidade, criando aquela admirável confiança da comunidade no anonimato que constitui a marca registrada das nações modernas. (67-69)

Em outras palavras, o poema resulta de uma operação baseada em uma nova atitude estética, a qual possibilita ao poeta colher poesia em objetos os mais diversos e inesperados, como de uma história desgastada pela imprensa. Jorge de Lima compartilhava com Oswald, Bandeira, Drummond e outros modernistas “o fascínio pela matéria tomada, à primeira vista diretamente, da realidade brasileira” (Davi Arrigucci

Jr.). Como restaurador da poesia em Cristo, o poeta se colocava em um estado de permanente escuta, sempre aberto e atento para os ‘sinais de Deus’ consignados nos recados que poderiam surgir onde menos se esperava, mesmo num âmbito estritamente profano. Nesse sentido, o poema é similar ao objet trouvé dadaísta, retirado da matéria cotidiana, heterogênea e prosaica, de repente transformada em arte. Da história desgastada e barateada pela imprensa, o poeta retira uma versão não apenas surpreendente mas que assume as características de obra literária, capaz de ressonâncias que vão muito além da exploração do episódico e inusitado, atuando sobre a experiência do leitor. Em vista disso, poderíamos pensar no poema como sendo fruto de uma espécie de objetivação do lirismo, o poeta voltado para o mundo, entregue ao outro, não mais em busca de exprimir as zonas profundas de sua subjetividade, atitude que marcou de modo

73 decisivo a lírica de alguns dos mais importantes poetas modernistas brasileiros, como

Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.

Entretanto, Jorge de Lima traça uma trajetória inversa à dos poetas citados e em um poema como “O grande circo místico” encontram-se misturadas tanto a objetividade de sua fase regionalista quanto a subjetividade radical do orfismo de sua última fase.

Essa mistura do objetivo com o subjetivo, um dos traços que caracterizaram a terceira fase da poesia de Jorge de Lima, seguramente determinou alguns rumos da poesia brasileira sensíveis até hoje. Embora o poeta estivesse então voltado para as pesquisas que o levariam a desenvolver uma escrita voltada para o lado noturno e inconsciente do sujeito, através da técnica da sondagem, tinha em comum com o objetivismo lírico de alguns de seus contemporâneos o alargamento da linguagem poética até zonas que antes eram consideradas campo exclusivo de outros gêneros literários, além de incorporar sistematicamente aspectos da língua falada.

Davi Arrigucci Jr., durante a análise do “Poema retirado de uma notícia de jornal,” de Manuel Bandeira, observa que essa ampliação do campo poético começara há muito tempo fora do Brasil:

No âmbito internacional, já vinham de muitos anos, como se sabe, as relações próximas entre a poesia e certos canais da modernização, como o jornal e a publicidade, com suas atrações de réclames e affiches, com o magnetismo de anúncios e notícias onde a novidade dos fatos se confundia à das mercadorias, estampando-se como vitrines nesse espaço comum das metrópoles do capitalismo ocidental, irradiando-se até um país periférico como o Brasil. A verdade é que então a lírica se abria à novidade da experiência do homem na cidade moderna. (93)

No mesmo ensaio, Davi Arrigucci Jr. comenta a análise da obra de Baudelaire feita por Walter Benjamin  que certamente nos interessa aqui  e mostra como o

74 filósofo relaciona a poesia lírica e a experiência problemática do indivíduo que mora na metrópole moderna:

Deve-se perguntar como a poesia lírica poderia se fundar sobre uma experiência em que o choque se tornou norma, afirma Walter Benjamin, ao analisar a obra de Baudelaire. O apelo ao leitor, no poema inicial de Les fleurs du mal, indiciava a dificuldade que, nos meados do século, a poesia lírica enfrentava diante do público: Baudelaire desejava ser compreendido e seu livro conhecerá o último sucesso de massa; no entanto, já a essa altura a lírica só excepcionalmente mantém um contacto efetivo com a experiência do leitor. Esta havia se transformado em sua própria estrutura, e Benjamin busca justamente compreender a transformação por que passara a experiência do "hypocrite lecteur", com que o poeta sem disfarce se identificava, na abertura de sua obra. Encontra então no jornal um dos indícios daquela alteração profunda, que no momento do despertar da modernidade já definiria os rumos futuros da lírica na direção que aqui importa.

O crítico mostra também como “a questão colocada por Benjamin se baseava com certeza nas mudanças fundamentais ocorridas na vida mental dos indivíduos nas metrópoles do mundo moderno, com o avanço do capitalismo e as transformações da existência material:”

Benjamin aproxima a noção de experiência da duração bergsoniana, tal como aparece em Matière et mémoire, e, levando em conta a crítica implícita de Proust a Bergson, também da noção de memória involuntária no romancista, em contraste com a memória voluntária, dependente da inteligência. Comentando o puro acaso que regeria, segundo Proust, as imagens que um indivíduo recebe de si mesmo, ao se assenhorear de sua própria experiência, observa como os eventos de nossa vida interior não têm, por natureza, um caráter inelutavelmente privado, somente o adquirindo na medida em que diminuem as chances de se incorporar os acontecimentos exteriores à experiência pessoal. O jornal representaria, exatamente, um dos índices dessa diminuição no espaço da vida moderna. Seu fito seria o oposto, ou seja, o de impedir a incorporação à nossa própria experiência das informações que ele fornece. Aponta como os princípios da informação jornalística  novidade, brevidade, clareza e, sobretudo, a ausência de correlação entre as notícias, consideradas isoladamente  contribuem para esse efeito, lembrando ainda as observações de Karl Kraus, no mesmo sentido.18

18 O crítico resume as observações de Karl Krauss da seguinte maneira: “O distanciamento do narrador, máximo na anedota lendária do folclore, que nisto ainda lembra o afastamento do mundo do mito, se repete

75

Há ainda um trecho da exposição do crítico paulista que gostaria de destacar, por ser fundamental para compreendermos a dimensão do problema implícito na contenda entre o poeta e a imprensa em “O grande circo místico”:

A barreira entre a informação e a experiência seria a mesma que impede ainda a entrada dos acontecimentos noticiados no domínio da tradição, os quais, por isso mesmo, não serviriam como matéria-prima do narrador tradicional, carreador da substância viva acumulada na memória das gerações. Aparando os choques da novidade cotidiana, o jornal sustaria assim o processo pelo qual um leitor poderia narrar um fato, se o tivesse assimilado à sua própria vida. Substituindo a forma tradicional da comunicação que permite ao narrador oral contar histórias, a predominância da informação seria um índice decisivo da degradação crescente da experiência no mundo moderno. Degradação responsável, igualmente, pela crise da comunicação na lírica, conforme se verifica em Baudelaire e vai se acentuando nos modernos, que, sintomaticamente, incorporam em seus versos os traços dessa relação problemática com o jornal, na qual se espelham as dificuldades da poesia na modernidade. (94- 95)

Em resumo, poderíamos afirmar com Laforgue, a respeito das consequências do jornal sobre a experiência do homem moderno: “o bombardeio dos fatos não atinge a interioridade privada de quem os lê.” (Arrigucci, 95) Jorge de Lima endossaria essa formulação e é a partir da perspectiva nela implícita que ele discute, através de sua lírica, esse problema. “O grande circo místico” é um dos exemplos mais evidentes desse engajamento do poeta contra os mecanismos que degradam a experiência do homem moderno.

aqui em outra chave, próxima, urbana e moderna. O mythos primitivo, dado tradicional da providência divina, com o qual se deveria compor a narrativa, conforme o conselho de Aristóteles, é agora a novidade prosaica e cotidiana do jornal: numa ‘era ímpia’ como a nossa, dizia Karl Kraus, a providência é a imprensa, com sua suposta onisciência elevada em objeto de convicção, com sua missão de propagar o espírito, mas, ao mesmo tempo, de destruir também toda capacidade de assimilação da matéria nova que divulga. O narrador ausente é sinal da objetividade isenta e ainda da transformação da experiência, matéria- prima do narrador tradicional, em pura informação, compreensível em si mesma e por si mesma, esgotável no ato da leitura  fósforo apagado no instante que segue a chama da novidade.” (107)

76 Retomando a leitura do poema a partir das noções expostas acima, podemos ver o gesto ao mesmo tempo construtivo e político do poeta: escolher uma notícia desgastada e buscar transformá-la em experiência pessoal. Em outras palavras, a imprensa impediria o leitor de incorporar à sua experiência a notícia sobre o circo e o poeta buscaria reverter a situação, convidando o leitor a um passeio em sua própria subjetividade, oferecendo-lhe um meio (o poema) através do qual seria possível ganhar experiência.

O poeta expõe, por exemplo, o modo como a linguagem jornalística atua. Para isso, lança mão da paródia. Efetivamente o poema contém alguns dos princípios capitais da informação jornalística (novidade, brevidade e clareza) e aponta, sob a forma do comentário ambivalente, para a ausência de correlação entre as notícias (a notícia veiculada pelo poema em contraste com a notícia veiculada pelos jornais). Além disso, há um outro aspecto paródico relacionado ao jornalismo: o poema-notícia se apresenta, no livro, em posição de descontinuidade, tal como uma notícia no jornal. O poeta menciona o excessivo número de aparições da mesma notícia (a história do Circo Knieps). Tal excesso pressupõe a ausência de correlação entre a notícia sobre o circo e as demais notícias que ocupam o espaço dos jornais. Nesses termos, embora a notícia sobre o circo esteja inscrita em uma série de publicações que de certa maneira deveriam ressaltá-la, a multiplicação das outras notícias acaba por torná-la ao mesmo tempo opaca, discreta. É de se perguntar se a história do circo Knieps, antes do poeta transformá-la, não teria deixado de ser notícia, perdendo seu estatuto informativo, para se tornar predominantemente propaganda. Isto é, se teria deixado de ser assunto para se tornar pura mercadoria. Essa transformação que se processa na essência da informação acaba por

77 lançá-la nas malhas da publicidade. A repetição, nesse sentido, atua de diferente modo sobre o interesse do leitor.

Um dos poetas que pesquisou a linguagem jornalística e a incorporou em seus escritos foi o poeta franco-suíço Blaise Cendrars. A importância decisiva de sua presença no contexto brasileiro foi evidenciada no estudo A aventura brasileira de Blaise

Cendrars, de Alexandre Eulalio. Davi Arrigucci Jr. destaca a influência de Cendrars sobre os modernistas brasileiros no mesmo ensaio mencionado anteriormente:

A novidade da poesia de Cendrars naqueles anos decerto não poderia passar despercebida dos brasileiros, alguns dos quais trabalhavam em direções próximas às dele, como era o caso de Oswald. Além disso, a presença física do inquieto poeta franco-suíço entre nós só faria intensificar o contacto com aquela obra marcada pela experimentação de novos caminhos, obra que parecia encarnar na pesquisa estética o mesmo movimento da paixão pela viagem que siderava o autor de Du monde entier. (97)

A influência de Cendrars sobre Jorge de Lima, embora indireta, foi tão decisiva quanto sobre outros autores brasileiros com quem conviveu, destacadamente Manuel

Bandeira, Mário e Oswald de Andrade. Uma das aproximações mais fortes entre

Cendrars e Jorge de Lima, além da relação entre poesia e jornal, é a paixão que ambos nutriam pela viagem. Essa paixão, que assume proporções épicas em Invenção de Orfeu, já está presente no primeiro livro de Jorge de Lima, de certa forma atravessando toda a sua obra. O apagamento dos limites entre os gêneros literários, notório em Cendrars, também comparece em Jorge de Lima: em ambos o épico mistura-se ao lírico.

Acrescente-se a essa enumeração das lições cendrarsianas ainda a técnica de associação de imagens sem trava intelectual, que foi decisiva para a maior parte de nossos poetas, entre os quais se incluem Mário e Oswald de Andrade, Raul Bopp, Luís Aranha, Manuel

Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Jorge de Lima.

78 Todos esses aspectos da influência de Cendrars decorrem do choque de sua presença em um cenário cultural então marcado por um forte domínio dos ideais parnasianos e simbolistas do princípio do século XX:

A poesia, produto nobre do espírito, dependia de uma idéia elevada de inspiração, de um vocabulário escolhido e raro, de temas antecipadamente poéticos, de um desgarramento idealista de toda referência à realidade imediata, aspirando à pureza da linguagem da música, conforme a herança do Simbolismo. Por outro lado, a idéia mais clara de poesia então corrente era ainda a do soneto parnasiano, com suas regras estritas de versificação, seu fascínio do mundo greco-latino, sua retórica altissonante, seu culto do material nobre e da palavra escultórica. (Arrigucci Jr., 102)

Pode-se dizer, em suma, que a partir da geração de 22, com a qual Cendrars se relacionou, ocorre uma recusa radical de todo “lirismo que não é libertação,” para utilizar a formulação lapidar de Bandeira, formulação que resume um dos traços mais salientes do modernismo brasileiro e ao qual Jorge de Lima esteve efetivamente ligado.

A Musa Surrealista

Quanto à comparação das genealogias, poderíamos ainda dizer que “O grande circo místico” é um poema que, ao relatar a vida de uma família circense, reproduz a estrutura patriarcal de muitas sociedades humanas. Entretanto, isto se daria somente se considerássemos de modo isolado e exclusivo o fato de um indivíduo do sexo masculino ter fundado a dinastia. Quando consideramos as personagens femininas do texto, vemos que a figura paterna acaba por não imprimir à família uma estrutura estritamente patriarcal, mesmo sendo ele, o patriarca, que produz a interdição em relação ao desejo da filha. Se o nome do circo é baseado no nome do pai, é através da vertente feminina da família, conforme a versão poética, que se imprime o misticismo que passará a

79 caracterizar o grupo. A estrutura familiar, portanto, é no mínimo ambivalente, pois também está centrada, como veremos, na linhagem feminina.

Como vimos, tanto nos bastidores quanto no picadeiro, a narrativa se distribui entre vários personagens. A importância de seus papéis parece gerar um declarado equilíbrio entre os personagens. Não é à toa que o desenvolvimento narrativo da história familiar funciona como um espetáculo de circo, isto é, sob a forma do mosaico. Esse equilíbrio atenuaria ou até mesmo tornaria imprópria a interpretação da estrutura familiar como um patriarcado ou um matriarcado. Entretanto, a impressão de equilíbrio é apenas parcial, uma vez que o poema efetivamente destaca as personagens femininas, que, de geração em geração, se distinguem das demais por principiarem e manterem viva a vocação mística da companhia. O valor das personagens femininas reside no fato de servirem de sustentação a uma linhagem religiosa misturada a uma linhagem artística, consubstanciando esta última e, logo, tornando-a ambígua.

A importância dada às personagens femininas aponta para um aspecto decisivo da poética de Jorge de Lima, a visão surrealista, que ele adotou a partir de Tempo e

Eternidade e na qual a mulher assume lugar de destaque. Segundo Fiona Bradley, “o surrealismo parecia explorar as mulheres ao mesmo tempo em que as apoiava:”

Uma das manifestações visuais mais impressionantes disso é a popularidade do manequim, uma imagem que ingressou no surrealismo por meio da obra de De Chirico e foi largamente explorada em pinturas e esculturas, representando a mulher como musa. Sem cabeça (e portanto “maravilhosamente” criativa, liberta das restrições da racionalidade, pois “perdera a cabeça”), frequentemente sem braços e sempre manipulável, o manequim está presente na imagética surrealista como prova da obsessão dos artistas, que, à moda de Pigmalião, idealizavam a mulher como um ser perfeito que poderia levá-los até mais perto do coração de seus desejos. (47)

80 Embora Jorge de Lima não mantivesse exatamente a mesma postura diante da mulher, esta assumiu em sua obra, assim como na dos surrealistas, lugar de destaque. Em “O grande circo místico” podemos dizer que as personagens femininas exercem a mesma função da Mulher andando, de Giacometti: “A mulher está andando, conduzindo tanto seu criador como o espectador até o almejado maravilhoso  um estado a salvo da tirania da mente racional.” (47) O papel da mulher é decisivo tanto no poema quanto nas obras que Jorge de Lima vinha escrevendo desde os anos 20. Em Anunciação e encontro de Mira-Celi, Livro de sonetos e Invenção de Orfeu, é a musa que conduz o artista através da selva escura da subjetividade. Uma particularidade da musa, que desponta de maneira enfática em “O grande circo místico”, é a multiplicidade de suas feições. Não se trata, no poema, como nos outros livros, de uma musa exclusiva, única. Ela se metamorfoseia vertiginosamente, provocando uma espécie de instabilidade plástica e uma fragmentação do sentido que, entretanto, reforçam a idéia de um fio condutor oculto (uma túnica inconsútil), que o poeta identifica e busca revelar. Trata-se da idéia de que tudo está ligado, mesmo sob a aparência da descontinuidade. Esse princípio da poesia de Jorge de Lima certamente descende da doutrina baudelairiana das correspondências, relacionando-se, junto com ela, à noção cristã das metamorfoses e à idéia de que tudo está ligado, cara aos pensadores do neoplatonismo, como Plotino. Esta noção, conforme Fábio de Souza Andrade anota em O engenheiro noturno, deve-se a uma crise metafísica na obra de Jorge de Lima:

Na imagem da Túnica Inconsútil  “amplo vestuário do mundo, mas sem costura  ele [Roger Bastide] enxerga a possibilidade de apreender, no espaço, a idéia de “uma unidade essencial absoluta”, da Eternidade: “permanecendo no mundo da multiplicidade e abolindo as fronteiras que separam os objetos”. Eis aí a fonte cristã da idéia das metamorfoses, casamento perfeito com a idéia da unidade do fluxo  aparentemente

81 descontínuo  de imagens brotando do inconsciente que o surrealismo busca recriar, livre de constrangimentos da ordem na realidade cotidiana. (39-40)

A genealogia representa de maneira altamente precisa o mundo de multiplicidade de que fala Bastide e a concentração nas personagens femininas encena a abolição das

“fronteiras que separam os objetos.” O poema, portanto, aponta para a idéia de uma unidade essencial absoluta, ligada ao misticismo. Assim como no surrealismo, a musa de

Jorge de Lima tem várias encarnações. Veremos como até mesmo a idealização da mulher, que alguns estudiosos interpretam como um ponto de contato entre o surrealismo e as cantigas provençais da Idade Média, está presente no poema e nas canções. Por ora, consideremos mais alguns pontos a respeito da presença feminina no surrealismo, a fim de iluminar aspectos específicos da poesia de Jorge de Lima.

A revista La Révolution Surréaliste publicou, em dezembro de 1929, “uma fotomontagem combinando a pintura de Magritte A mulher escondida e retratos 3 x 4 dos surrealistas parisienses do sexo masculino.” (46) Essa fotomontagem se liga a uma outra, publicada no primeiro número da revista, “na qual um retrato de Germaine Berton é contraposto a outras fotos 3 x 4 dos membros do grupo surrealista:”

Berton era uma anarquista que tinha assassinado Maurice Plateau, líder de uma seção do movimento católico Action Française. Os surrealistas a celebraram como uma força transformadora; como legenda para seu retrato, escolheram uma frase do poeta do século XIX Charles Baudelaire: “A mulher é o ser que projeta a maior sombra ou a maior luz em nossos sonhos. (46)

A formulação de Baudelaire resgatada pelos surrealistas para ilustrar o episódio que envolveu a anarquista e o líder católico conduz diretamente à poética de Jorge de Lima, uma vez que a imagem do “engenheiro noturno”, que descreve o trabalho do poeta em sua última fase, relaciona-se diretamente à idéia de projetar sombra e luz (contraste,

82 perspectiva, nuance) nos sonhos. A mulher, que na citação de Baudelaire se traduz como o elemento que produz movimento e vida no universo onírico, assume função análoga nos sonhos do engenheiro noturno, sempre guiado pela musa. Sobre o significado dessas ilustrações, Fiona Bradley faz algumas observações certeiras:

Em ambas as ilustrações, a mulher é apresentada como um ser mais próximo da desejada irracionalidade do sonho do que o homem. A imagem da tela de Magritte implica que os homens estejam procurando a mulher, seguindo-a, enquanto ela lhes dá as costas e penetra na “floresta” criativa do maravilhoso. Todos os homens são escritores e artistas, e a mulher, concebida no interior de um jogo verbal e visual, opera como uma musa que pode conduzir os homens até a criatividade artística. (46-47)

Nesses termos, embora todas as personagens do poema sejam artistas, são as mulheres que conduzem o circo para a experiência mística, que pode ser lida como imagem da criatividade artística. Por outro lado, podemos dizer que os leitores são conduzidos ao centro surrealista do poema, da mesma forma que, em 1938 (mesmo ano da publicação do poema), os visitantes da Exposição Surrealista Internacional “eram guiados até a presença da imaginação surrealista por uma longa fileira de manequins de loja, cada um vestido e distorcido por um artista diferente” (Bradley, 48). Não há manequins no poema e no entanto é preciso relembrar que estes são representações da mulher, aproximando-a da boneca  “o manequim surrealista relaciona-se de perto com a boneca” (Bradley, 48)

 e das bonecas do “ideal” obsceno de Bellmer sobre a feminilidade adolescente e os fetiches em forma de bonecas e brinquedos de criança. A boneca liga a representação da mulher a um tema caro a Jorge de Lima e central no poema que estamos estudando: a infância. As irmãs gêmeas, Marie e Hélène, portanto, relacionam-se diretamente com a musa surreal, que tinha muito de boneca:

O ideal da feminilidade de Breton, por exemplo, era a femme-enfant (mulher-criança, ninfeta). Reunindo em si mesma dois seres com acesso

83 privilegiado ao maravilhoso, a femme-enfant, jovem, ingênua e sempre conectada com seu inconsciente, desempenhava um papel que poderia ser adaptado, ou imposto, a mulheres reais ou imaginadas. (...) Em 1927, a capa de La Révolution Surréaliste trazia estampada a fotografia de uma femme-enfant. Vestindo um uniforme escolar, numa carteira infantil, ela anota o que é ditado por alguém ou por sua própria imaginação. No ano seguinte Breton conheceu Nadja. (48)

Algumas musas de Jorge de Lima também são mulheres-meninas, como a estudante e Nadja referidas acima. Em “O grande circo místico,” veremos, as gêmeas desempenham papel decisivo em relação à manutenção da predominância feminina dentro da dinastia Knieps. Mas, ao atingir a fase final de sua poesia, marcada pelos elementos órficos, é a figura da musa morta, que atravessa o Livro de sonetos e Invenção de Orfeu, como a personagem Inês de Castro, Eurídice, Beatriz e a infanta defunta que retorna em várias passagens do livro.

A musa morta, com toda a negatividade que contém, não deixa de desempenhar o papel de propiciadora da criação. Esse fato nos conduz à “contribuição freudiana para a concepção surrealista de mulher como musa com dotes de revelação.” Segundo Fiona

Bradley, tal contribuição vem da análise de Freud do conto alemão “Gradiva: uma fantasia pompeana,” de Wilhelm Jensen:

Nele, Gradiva é uma menina retratada num relevo grego que se torna a obsessão do jovem arqueólogo Norbert Hanold. (...) Hanold sonha que Gradiva foi enterrada viva em meio aos escombros de Pompéia, e viaja para lá com o objetivo de tentar encontrar algum traço de sua existência. (...) Zöe-Gradiva é uma femme-enfant. Reúne elementos da mulher e da infância, e seu papel é ajudar Hanold a resolver os mistérios do inconsciente. Ela é um lugar de intercâmbio entre o sonho e a realidade; como tal, era venerada pelos surrealistas. (48-49)

A ensaísta também acrescenta:

Na terminologia surrealista, Gradiva tornou-se ‘aquela que avança’, em virtude da obsessão de Hanold pelo seu jeito de andar e também porque os surrealistas a viam como a mulher que levava Hanold adiante por meio do

84 autodescobrimento. O olhar dela era forte o bastante para perfurar os muros que na história são símbolos (Hanold afinal é um arqueólogo) das defesas que o adulto ergue contra vontades e desejos reprimidos da infância. (49)

Encontramos nessa passagem a imagem e o papel da musa, tal qual aparecem na obra de

Jorge de Lima. No poema em questão, trata-se de uma musa que se desloca de geração em geração, contendo, de modo implícito, a idéia de morte (é necessário que uma dê o lugar a outra). Como pano de fundo, temos a seguinte situação: embora a família tente impor a arte como único horizonte provável da existência, buscando manter a família voltada exclusivamente para a tradição circense, a vocação mística, que se mostra irrefreável, acaba por se inscrever na própria essência da arte  daí o poeta designar como místico o circo. Se as personagens místicas acabam por não interromper a linhagem circense, esta, por sua vez, não tem como impedir o aparecimento e os desdobramentos da sua vocação religiosa. Essas forças contraditórias resultam em uma inusitada rua de mão dupla entre o profano e o sagrado que possui inúmeras ressonâncias neste poema e na obra do poeta. Desse modo, podemos dizer que “O grande circo místico” contém um princípio que é uma das marcas distintivas da lírica de Jorge de Lima: as metamorfoses da musa. Em Anunciação e encontro de Mira-Celi, por exemplo, o poeta dá diversos nomes à musa “para que ninguém a acompanhe”, anuncia astuciosamente que ela morreu,

“para que ninguém a convide”. Afirma também que quase sempre a transforma, “para distribuí-la”, tal como já se anunciava no célebre “Essa Negra Fulô.”

Em “O grande circo místico,” a variação das musas guarda um fundo comum

(espécie de túnica inconsútil), a religiosidade  esse tipo de fio invisível que liga as musas também reaparece no Livro de sonetos e na Invenção de Orfeu. O poema tem várias musas, como vimos, e são elas que sustentam a linhagem sagrada do circo,

85 transmitindo, de geração a geração, o recado místico. É através delas que o poeta interpreta a vertente mística do circo. Todas essas metamorfoses, entretanto, não se dão sem violência, que passa a se relacionar com o universo da musa, conferindo ao poema um aspecto noturno e trágico que precisam ser levados em conta durante a leitura do poema.

Efetivamente, a violência é um dos signos que atravessam o poema de muitas maneiras, consistindo, portanto, em um aspecto decisivo. A primeira manifestação

(indireta) de violência encontra-se, a princípio, fora do texto e corresponde à quebra da linhagem médica da família Knieps, que possibilitou ao fundador do circo ingressar na vida artística. Nesses termos, o abandono dos estudos de medicina pode ser interpretado como um gesto de violência porque equivale a uma ruptura em relação às determinações paternas, que, por sua vez, também já continham um elemento de violência básico.

Posteriormente, o circo já em curso, ocorre outra ruptura violenta no âmbito da hierarquia familiar. O caso se dá quando a dinastia do circo se vê ameaçada pela manifestação da vocação religiosa de Margarete. Perante a possibilidade de ver a dinastia do circo desfeita, o pai comete uma dupla violência: além de proibi-la de ingressar na vida religiosa, obriga-a a se casar com um dos artistas do circo (o clown).

As imposições familiares aplicadas a Margarete não conseguem, entretanto, represar a força da vocação, que rebate com redobrada violência as imposições paternas.

A personagem acata as ordens do pai mas não renuncia à religião, acabando por transformar o picadeiro e os bastidores do circo em palco para seu próprio itinerário místico. A primeira atitude tomada por Margarete é tatuar em seu corpo os Passos da

Paixão de Cristo. Esse fato funciona como um ritual de passagem em que a personagem

86 confirma os votos religiosos: as tatuagens funcionam como uma espécie de hábito perene.

A partir do momento em que Margarete decide apresentar-se nua, para que todos vejam suas tatuagens, produz-se uma reviravolta irreversível no espetáculo do circo e na vida da família.

No âmbito da intimidade, o marido, tocado pela visão sacra que o corpo tatuado da mulher transmite, decide respeitar sua castidade. No picadeiro, apresenta-se um novo número, marcado de uma só vez pelo sobrenatural, o erótico e o místico. Certamente o número elaborado por Margarete se tornou, desde que surgiu, a primeira grande atração do circo na condição de místico. Trata-se do número em que a artista entra nua na jaula do leão, que, em vez de atacá-la ou rugir, chora feito criança recém-nascida. O fato é que o número pode ser lido como uma espécie de anunciação da gravidez e da “santidade” da atriz. Um aspecto que merece ser destacado é o poder órfico que a atriz incorpora desde então. Em vez do canto, entretanto, é através da imagem visual, do corpo coberto de tatuagens, que ela amansa as feras e cativa os espectadores.

Um outro ato de violência ocorre nos bastidores do circo. Atraído de modo irresistível por Margarete, Rudolf, o homem-fera, a assedia e a estupra. Esse ato de extrema violência também é rebatido pela força mística ligada à personagem: terminado o estupro, o ateu se converte e morre. Além disso, Margarete engravida e gera duas filhas,

Marie e Hèlene. Logo, a violência contra a mulher é rebatida por uma violência mística avassaladora. Existe aí um elemento trágico da maior importância para a interpretação do poema: a conjunção entre arte e mística, que no caso do circo em questão poderia levar a uma interrupção da dinastia, sofrem um processo de atração e repulsa incontornável e,

87 através dessa contradição interna, mantêm viva a linhagem. Em outras palavras é como se para o circo em questão fosse inevitável tornar-se místico para não acabar.

Em vista do que foi considerado até aqui, podemos dizer que o poema é resultado da montagem entre um fragmento retirado da história do circo e uma sequência inteiramente inventada pelo poeta. O procedimento da montagem também se verifica na reunião dos episódios da vida privada e dos números circenses (marcados pelo signo ambivalente da violência e do maravilhoso), além dos comentários do poeta sobre a imprensa. Uma outra montagem consiste na mistura dos elementos exclusivamente artísticos com os elementos místicos da dinastia. Nesse âmbito, as tatuagens (de Lily

Braun e Margarete) devem ser consideradas montagens dentro de montagens. Ainda em relação ao poema, podemos dizer que a “linhagem descontínua” da família circense trata- se, portanto, de um signo paradoxal: a ilusão da linearidade gerada pela genealogia convive com a descontinuidade dos episódios. Observe-se, enfim, que entre o poema e as versões da imprensa, estudadas anteriormente, dá-se uma última montagem (nese caso, virtual)  uma colagem figurada, no plano da recepção do poema (o poeta x a imprensa).

Figurações da História

A história do Circo Knie coincide aproximadamente com a história da sociedade burguesa. Trata-se, portanto, de uma história também ligada à contemporaneidade e esse fato é um dos elementos que confere atualidade às discussões contidas no poema. Desde os movimentos que produziram a Revolução Francesa — o tempo da imperatriz Teresa

— até os acontecimentos que desencadeariam a Segunda Guerra Mundial, chegando aos

88 dias de hoje, o projeto do Esclarecimento passou de um momento afirmativo para um negativo. Pelos idos de 1930 a dialética do esclarecimento19 atravessava uma fase de profundas contradições, uma vez que os avanços da ciência entravam em uma franca dissonância com a mentalidade regressiva, calcada em comportamentos irracionais típicos da dita sociedade de massas. Além disso, Benedict Anderson inscreve nesse mesmo período o declínio da fé religiosa e ascensão do secularismo racionalista:

(...) o século XVIII, na Europa Ocidental, marca não só o amanhecer da era do nacionalismo, mas também o anoitecer dos modos de pensamentos religiosos. O século do Iluminismo, do secularismo racionalista, trouxe consigo suas próprias trevas modernas. A fé religiosa declinou, mas o sofrimento que ela ajudava a apaziguar não desapareceu. A desintegração do paraíso: nada torna a fatalidade mais arbitrária. O absurdo da salvação: nada torna mais necessário um outro estilo de continuidade. Então foi preciso que houvesse uma transformação secular da fatalidade em continuidade, da contingência em significado. Como veremos, poucas coisas se mostraram (se mostram) mais adequadas a essa finalidade do que a idéia de nação. Admite-se normalmente que os estados nacionais são “novos” e “históricos”, ao passo que as nações a que eles dão expressão política sempre assomam de um passado imemorial, e ainda mais importante, seguem rumo a um futuro ilimitado. É a magia do nacionalismo que converte o acaso em destino. Podemos dizer com Debray: “Sim, é puro acaso que eu tenha nascido francês; mas, afinal, a França é eterna.” (38-39)

Os aspectos místicos inseridos no poema podem ser interpretados como traços de uma arte que pretendeu problematizar a visão acima. Ao não se curvar às imposições do mercado, inclusive às imposições do mercado de uma modernidade secular, Jorge de

Lima aponta a questão controversa da sobrevida religiosa em meio ao mundo dessacralizado pela ciência. Senha de algo que resiste, a arte de Jorge de Lima, mesmo associando-se à religião, torna-se dissonante e difícil, conforme a inclinação da arte moderna em geral. É por isso que, para ele, a questão do nacionalismo, central no

19 Embora o termo Iluminismo seja mais comum, utilizo esclarecimento por relacioná-lo ao pensamento de Theodor Adorno e o modo como seus tradutores brasileiros o traduzem.

89 pensamento moderno, sempre foi vista com desconfiança. A conversão de valores religiosos por valores seculares apareciam para o poeta como um engodo, uma vez que a ciência jamais deu conta de oferecer respostas satisfatórias às indagações acerca da morte. Benedict Anderson aponta a “desvantagem do pensamento evolucionário/progressivo”, com “sua aversão quase heraclitiana a qualquer idéia de continuidade”, observando:

(...) a religião se interessa pelos vínculos entre os mortos e os ainda não- nascidos, pelo mistério da re-generação. Quem vive a concepção e o nascimento do seu próprio filho sem apreender difusamente uma mescla de ligação, acaso e necessidade em linguagem de “continuidade”? (37)

Esta indagação liga-se ao fato de que:

O grande mérito das concepções religiosas tradicionais (o qual, naturalmente não deve ser confundido com o papel delas na legitimação de sistemas específicos de dominação e exploração) é a sua preocupação com o homem-no-universo, o homem enquanto espécie e contingência da vida. A extraordinária sobrevivência do budismo, do cristianismo ou do islamismo ao longo de milênios, e em dezenas de formações sociais diferentes, comprova uma capacidade de resposta imaginativa ao tremendo peso do sofrimento humano  a doença, a mutilação, a dor, a velhice, a morte. (36-37)

O circo retratado no poema, portanto, teria uma explicação lógica e propagandística (ou manipuladora: a transformação da arte em puro produto de mercado) por parte da imprensa (ligado ao mundo técnico-científico), enquanto o poeta reafirmaria seu caráter intrinsecamente mágico, milagroso, transcendente. Assim como Stravinski, também Jorge de Lima cairia nas malhas da crítica adorniana, uma vez que sua visão religiosa do mundo poderia ser classificada pelo filósofo como regressiva (o que, em termos adornianos, significava uma volta ao animismo religioso), não correspondendo aos princípios iluministas, fundados na Razão. Entretanto, o próprio pensamento de

Adorno ofereceria uma alternativa para se aceitar uma posição que levasse em conta a

90 especificidade da fé religiosa de Jorge de Lima: a crítica radical à indústria cultural que está embutida no poema, mesmo que esta crítica se dê através do misticismo. Nesses termos, a propaganda que a imprensa faz do Circo Knie leva a supor que ela está explorando o que nele há de exótico e não o que nele efetivamente se dá ou poderia se dar como transcendência. Tanto a exploração da biografia dos artistas quanto a leitura propagandística dos números do espetáculo funcionam como exemplo das distorções produzidas pelos meios de comunicação de massa quando se trata de fazer circular no mercado algum produto cultural, como hoje o grande número de revistas e programas de televisão dedicados a comentar a vida pessoal dos artistas. Observe-se também o tom grandiloquente com que se anuncia algum produto cultural novo, ou mesmo velho, quando se tem o intuito de mantê-lo nas prateleiras do mercado.

O livro em que “O grande circo místico” aparece, A túnica inconsútil (1938), foi publicado num momento em que o Brasil e o mundo passavam por um período de extrema tensão política. Na Europa se acirravam os nacionalismos de fundo fascista e os episódios que resultariam na Segunda Guerra Mundial; no Brasil, o Estado Novo, implantado um ano antes, acentuava fortemente as tendências centralizadoras do governo, em muitos aspectos similares às dos totalitarismos que então assolavam vários países europeus. No entanto, como o historiador Boris Fausto assinala, é importante destacar as diferenças entre os cenários políticos brasileiro e europeu:

Paradoxalmente, apesar de certa afinidade ideológica, que poderia facilitar a maior aproximação com os alemães, as relações entre Brasil e Alemanha sofreram um abalo em 1938. Nesse ano, o regime estabilizou-se, eliminando da cena política a única força que ainda escapava ao seu controle: o integralismo. Ao mesmo tempo que marcava sua distância com o fascismo nacional, o Estado Novo investia contra os grupos nazistas existentes no Sul do país. Um agente alemão, líder do Partido Nazista no Rio Grande do Sul, foi preso. O embaixador da Alemanha foi declarado

91 persona no grata e viu-se forçado a deixar o Brasil. Depois, superou-se o atrito, mas suas marcas ficaram.20

No tempo do Estado Novo, o circo poderia ser visto, embora de maneira sutil, como um símbolo de resistência. Por um lado, seu caráter eminentemente multicultural e transnacional se choca com os ideais nacionalistas do governo de Getúlio Vargas. Por outro lado, ele continua sendo um dos espaços mais frequentados pelo povo e pelos intelectuais que desde a década de 20 se interessavam por cultura popular e pelas vanguardas literárias, como o Surrealismo. Inspirar-se na história de um circo suíço sob um cenário marcadamente nacionalista constitui, portanto, um gesto contestador.

Colocava em causa, no mínimo, uma posição que protestava contra a hegemonia do nacionalismo dentro do país.

O poema produz uma dissonância profundamente aguda formada pela justaposição dos dois contextos históricos que delimitam a curva de tempo em que se desenrola a história dos Knieps, dois momentos dramáticos da história moderna, europeia e brasileira: a Revolução Francesa/Inconfidência Mineira e as vésperas da Segunda

Guerra Mundial/fortalecimento do Estado Novo.

Nesse intervalo histórico, o circo adquiriu suas feições modernas. Muitos estudiosos consideram o empresário Phillip Astley o pai do circo moderno, justamente por ter sido ele quem primeiro montou uma estrutura com picadeiro.21

20 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp/FDE, 1999. 381.

21 “Atribui-se ao suboficial da cavalaria inglesa, Philip Astley, a criação do circo moderno. Ele construiu um edifício permanente em Londres, em Westminster Bridge, chamado Anfiteatro Astley. A iniciativa se estendeu para outros centros ingleses e também a Paris. No período, foram construídos outros edifícios com a mesma finalidade, a exemplo daquele criado por Charles Hughes, o Royal Circus, principal concorrente de Astley, na Inglaterra.” Mário Fernando Bolognesi. Palhaços. São Paulo: Unesp, 2003. 31.

92 Independentemente das discussões sobre a origem do circo moderno, o fato é que o circo como o conhecemos hoje ganhou forma no tempo da imperatriz Teresa. Esse fato

é da maior importância porque toca em um aspecto central da dinâmica social europeia, que assumiu configurações novas quando a cultura burguesa passou a exercer seu domínio. Nesse momento nascia o que Guy Debord viria a designar como como “a sociedade do espetáculo”. Não parece acaso, portanto, que um artista/empresário tenha pressentido e se posicionado de maneira paradigmática em relação ao sistema capitalista que então se instaurava com a invenção da companhia circense.

Avaliando desse ângulo a decisão de Frederico Knie, podemos dizer que ele também foi a seu modo um visionário, antecipando através de sua posição a crítica de alguns aspectos da sociedade do espetáculo: desistiu de uma profissão tradicionalmente ligada à sua classe social, ingressando em uma outra, que guardava uma relação de complexa contiguidade com a alvorada capitalista. É como se ele acompanhasse o próprio movimento da história, enquanto os desígnios paternos o conduzissem a uma espécie de retrocesso (reificação) pela manutenção do status quo. A diferença consiste no fato de que o mundo do espetáculo no qual Frederico passou a atuar, hoje em dia dá a impressão de ter tomado conta de todos os âmbitos da vida. A lógica política e social do mundo contemporâneo entrou numa dinâmica em que busca obsessivamente tornar necessário que todos os aspectos da vida estejam informados de acontecimentos espetaculares, e isto se liga aos mecanismos de poder que conduzem os homens a um tão ilusório quanto insaciável desejo de consumo. O gesto aparentemente inusitado e com certeza corajoso e revolucionário do jovem Frederico Knie coloca-o à frente de seu tempo: ele significou a proeminência da vocação e dos direitos da subjetividade sobre a

93 submissão às imposições geradas pela cristalização dos papéis e das classes sociais.

Quantos jovens, sobretudo burgueses, desde o tempo da imperatriz Teresa, sacrificam seus ideais em troca do prestígio e da segurança econômica de certas profissões que a sociedade capitalista estrategicamente mantém na crista da onda? Frederico Knie não sucumbiu a essa pressão e o mundo do espetáculo em que ingressou continha já naquela altura as fissuras que tornam complexo o mundo da arte e da sociedade de hoje em dia.

No entanto, a história dos Knie, tal como enunciada pelo poeta, não se restringe apenas aos períodos históricos mencionados até aqui. O poema figura a história da própria humanidade (alguns estudiosos afirmam que a história do circo é tão velha quanto ela), seja do ponto de vista da arte, seja religioso. O arco temporal se estende ao máximo.

Não se sabe ao certo como o circo se originou. Uma das hipóteses consiste na necessidade natural, produzida pela curiosidade humana e seu desejo de saber até onde vão seus limites, de realizar saltos acrobáticos, equilibrar-se sobre uma corda, contorcer- se, manusear malabares, voar. Para Julio Revolledo Cárdenas, a necessidade/vontade de realizar tais atividades são tão prementes quanto a necessidade de dançar, cantar ou tocar um instrumento. Outras atividades que com o tempo deram origem a números circenses estão ligadas ao universo do trabalho: “através de diversas atividades que o homem realizava para sua subsistência foi desenvolvendo certas capacidades que acabou por desempenhar com mais habilidade que a maioria.”22 O historiador também menciona as corridas e acrobacias com escadas realizadas pelos apanhadores de maçãs durante a Idade

Média e por fim observa: “cada número teve um processo histórico, mas com o passar do tempo, todos foram criando laços com a magia e a fantasia, uma vez que todo número de

22 Cárdenas, Julio Revolledo. La Fabulosa Historia del Circo en México. Ciudad del México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 2004. 29.

94 circo enquanto proeza encerra os próprios sonhos dos homens.”23 Estas observações chamam atenção sobre os processos históricos que transformaram algumas atividades humanas em números de circo. Tais atividades ligavam-se a um estrito desejo de expressão ou então foram desvios tomados a partir da rotina de trabalho.24 De uma forma ou de outra, os números circenses preservam até hoje uma dinâmica estrutural que recupera para o espectador todos os passos que o artista dá até chegar ao limite. Desse modo, os números partem do mais simples para atingir, somente no final de sua apresentação, o mais complexo, o que aos olhos do espectador parece incrível, maravilhoso. Cárdenas também atesta:

Quer dizer, um ato ou número de circo é uma soma de exercícios que vão do mais simples ao mais complexo, a fim de que o público reconheça e aplauda cada uma das metas que o artista se impõe durante a exposição de seu trabalho. O espectador vibra tanto quanto o expositor ou artista, ainda que subjetivamente se identifique com aquele que está realizando um exercício assombroso, e intui a dificuldade do que está executando e sente diretamente as possibilidades e os limites a que está sujeita a nossa humana condição; finalmente se emociona, se agita e aplaude os sucessos da série de evoluções  exercícios  que o artista se impôs durante sua atuação. Se acontece do artista falhar, o público aplaude da mesma maneira pelo seu esforço, porque entende que os seres humanos podem errar na tentativa, e não se está observando uma fita que se repete, mas cada atuação implica seu próprio risco ou perigo e o espectador entende, além do mais, que como humanos somos vulneráveis. Mas é claro que a maior complexidade do exercício, maior será a façanha e a grandeza do artista. (29)

“O grande circo místico” também se desdobra conforme um movimento que vai do simples ao complexo. Primeiro, o poeta narra como começou a história da família Knie.

Com o desenrolar do poema, entretanto, os eventos vão se tornando mais complexos e voltados para o espetáculo propriamente dito. Isso se verifica no conteúdo da narrativa,

23 Cárdenas, Julio. 29.

24 A esse respeito, leia-se o clássico: Huizinga, Joan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1971.

95 que passa da anedota familiar para o relato de alguns números de picadeiro. Assim, o poema possui dois planos, que se caracterizam pela presença de episódios familiares ou números. Um elemento que deve ser levado em conta ao analisar esses planos é o fato de que o poeta transcreveu somente os números realizados pelas personagens que se ligam de modo mais direto ao misticismo, ou seja, Lily Braun, Margarete e as irmãs Marie e

Hèlene. Essa constatação tem muitas ressonâncias e vou indicar apenas algumas.

Ora, o Circo Knie como um todo é designado como místico, conforme o título do poema. Entretanto, o tom coloquial de sua primeira parte faz supor que algo extraordinário injetou o aspecto místico no destino dessa família de artistas. Esse episódio trata-se marcadamente da conversão de Margarete, que pede a autorização paterna para ingressar num convento e dele não recebe o consentimento. Passado algum tempo, ela decide tatuar o corpo com os passos de Cristo. É claro que já havia um indício de misticismo no ventre de sua mãe, tatuado com um santo, mas é com ela que a força mística começa a atuar de modo efetivo na história da família. Lembremos que

Margarete, por causa da vocação religiosa, poderia ter interrompido a dinastia.

Antes de ser mencionado o primeiro número de Margarete, é referida a crise conjugal durante a qual o trapezista Ludwig, marido de Margarete, a repudia por causa das tatuagens. Essa metamorfose do corpo da atriz em uma espécie de “corpo místico” é a indicação clara de que ela não renunciara à vocação religiosa. Ao contrário, inscrevera-a no próprio corpo e na arte de domar leões. A tatuagem, que ela então passa a exibir durante os espetáculos, é uma narrativa dentro da narrativa, uma complexidade a mais. O compromisso religioso fez com que o corpo de Margarete adquirisse uma aura divina, encantamento, força mística, e ela passou a se apresentar nua, para deixar à mostra a

96 mensagem inscrita em seu corpo. As tatuagens místicas lhe concederam poderes sobrenaturais e ao entrar na jaula do leão ele chora como um recém-nascido. Este fenômeno, precipitado pela visão do corpo tatuado de Margarete, nos conduz ao sobrenatural, ao surreal. A presença da nudez feminina (que vai se repetir no número de suas filhas) é comum na arte surrealista e carrega diversos significados, conforme vimos.

Por ora, observemos que a experiência mística liga-se ao circo de diversas maneiras. Talvez a mais direta seja a experiência dos limites. Os artistas de circo querem sempre ultrapassar os limites e assim atingir a visão do maravilhoso. A dificuldade dos números preenche uma gama de efeitos que vai da expressão de susto e surpresa ao riso desbragado do espectador. Todos os artistas, com seus prodígios, movimentam a emoção do espectador em alguma direção específica (a tensão, a contemplação, o humor, a compaixão, o delírio, o êxtase…). A experiência do limite se liga à história da humanidade de várias maneiras, tendo consequências negativas ou positivas conforme a situação.

História da Salvação

Com “O grande circo místico,” o poeta, ao contrário da imprensa, deseja indicar ao leitor os milagres (sinais de Deus) que ele vê inscritos na história do Circo Knie. Ele espera alterar nosso modo de ver o espetáculo do mundo. Como se estivéssemos cegos e precisássemos da in(ter)venção poética para finalmente podermos ver, conhecer.

Vislumbramos, assim, uma dimensão utópica que se processa, para utilizarmos mais uma

97 vez a expressão de Dante, no nível anagógico do poema: a comunicação do particular com o universal  na história de um dado circo, a história da salvação.

O poema retrata a história de um circo, tomando como base sua genealogia. A genealogia possui uma estrutura cronológica. Sua sequência causa a impressão, portanto, de narrativa sem acidentes, sem vindas e idas no tempo. O poema, entretanto, contém alguns aspectos que declaradamente distam de tudo o que se liga à passagem regular do tempo. Assim como o romance biográfico, o tipo de narrativa que a genealogia faz brotar carece, em geral, de “enredo,” amarras narrativas, intriga. Isto permite ao poeta a construção paradoxal: o casamento da montagem com a cronologia. Ou seja, a técnica da montagem conduz a uma concepção fragmentária do tempo, ao contrário da sequência linear de toda biografia, que remete a um desenho linear do tempo. A colagem, por outro lado, ressalta o caráter algo aleatório de toda biografia. É claro que o poeta destaca trechos muito breves da vida dos Knie, eliminando um número incalculável de episódios mencionados em outras publicações sobre eles. Se o poeta tivesse reunido mais eventos, poderia ter escrito um conto, uma novela ou até mesmo um romance. Mas ele recortou do passado apenas lampejos. Cada geração está representada por poucos personagens e versos.

A estrutura fragmentária, derivada da montagem, faz com que o poema se assemelhe ao próprio espetáculo circense.

Cada fragmento dessa montagem guarda uma parcela de analogia com outras narrativas, das mais diversas procedências, e sobretudo bíblicas, mas também a vida cotidiana, os jornais, os poemas épicos, a Divina Comédia, a tradição literária ibero- americana etc… A primeira parte do poema, por exemplo, pode ser lida como uma

98 recriação da cena da Grande Queda25 e, assim por diante, que anuncia o Messias

(o santo tatuado no ventre de Lily Braun), a Via-Sacra (as tatuagens de Margarete) e a

Nova Aliança, a Eucaristia (as gêmeas que levitam e se repartem todas).

As personagens femininas assumem papel central. É nelas que se inscrevem as marcas divinas. O ventre de uma, tatuado com um santo; o corpo de outra, inteiro tatuado com as cenas da Via-Sacra; os corpos sem tatuagens, sem costuras, das irmãs gêmeas  trajando, em sua nudez, uma túnica inconsútil.

A oposição da tatuagem ao corpo intacto deixa no ar algumas questões. O corpo e as imagens nele tatuadas são, a seu modo, uma montagem. Corpo tatuado, corpo metamorfoseado, justaposição de imagem e corpo. No poema, o corpo intacto das gêmeas oculta a percepção imediata da vocação religiosa das personagens. É claro que a idéia de virgindade é atuante, através do conceito de corpo intacto, puro. A imagem da túnica inconsútil, que não tem costuras, também apresenta a característica de não dar a ver de imediato sua essência divina. Entretanto, a túnica já foi comparada ao fenômeno da multiplicação do corpo de Cristo, na eucaristia. As irmãs gêmeas encarnam justamente essa potência criativa, essa multiplicação sagrada. Ora, a história do circo narrada no poema trata-se de uma versão alegórica da história da salvação. O anúncio, a paixão e a ressurreição de Cristo estão cifrados na vida e nos números apresentados pelas personagens femininas. O lema de Jorge de Lima e Murilo Mendes  “restaurar a poesia em Cristo”  aí desponta com todas as letras. Repare-se bem que sua idéia é restaurar a poesia, a qual nos traz de volta um pouco da eternidade perdida. Esta analogia, barrocamente retorcida, se estabelece da seguinte maneira: Cristo, que possibilitou a nova

25 O poema se enquadra entre as narrativas que Northorp Frye relaciona ao Código dos Códigos.

99 aliança do homem com Deus, permite a recuperação de fragmentos do paraíso perdido através de seu próprio corpo, multiplicado na eucaristia, traduzida pela imagem das gêmeas, representação do próprio Cristo.

Mencionemos ainda o problema da aparência na imagem alegórica, aliás tão caro ao cultismo barroco de todos os tempos. É que esse tipo de imagem não é direta: parece uma coisa, sendo na verdade outra. A associação do conceito de multiplicação ao fenômeno biológico que gera irmãos gêmeos é óbvia. Por serem gêmeas idênticas e artistas de circo, as irmãs Marie e Hèlene podem ser comparadas à multiplicação eucarística: quando se apresentam, Marie e Hèlene oferecem a ilusão de serem uma única pessoa milagrosamente duplicada. A diferenciação produzida por seus diferentes nomes e personalidades não está inscrita em seus corpos, o olho do espectador confunde as irmãs, não sabe diferenciar uma da outra. Vê as irmãs como se elas fossem de fato iguais. A ilusão da multiplicação da pessoa funciona como imagem da repartição do pão no ritual eucarístico. Todo dogma, como sabemos, não tem como ser lido pela razão, mas pode ser visualizado, como, por exemplo, a história da salvação em “O grande circo místico.”26

26 A respeito desse poema, assim como das canções que serão analisadas a seguir, recomendo a leitura do estudo Em cena, o grande teatro do mundo, de Jorge de Lima (2008), de Deisily de Quadros. Nele a crítica abordou o modo como se deu a transposição cênica das canções, mantendo sempre como ponto de referência o poema e tendo como pano de fundo a cena teatral de Curitiba e a história do Brasil. Ao analisar as canções a partir dos dois espetáculos de dança realizados pela companhia do Teatro Ballet Guaíra, respectivamente em 1983 e 2002, a ensaísta lançou mão da estética da recepção e da sociologia da leitura, discutindo pontos centrais da poesia de Jorge de Lima e das canções de Edu Lobo e Chico Buarque, como o problema da relação entre a linguagem figurada e a censura, o misticismmo e o papel da cultura popular na cultura brasileira. Acho particularmente reveladoras as análises em espelho das canções, isto é, a leitura comparada dos sentidos deflagrados pelos diferentes modos de leitura que se depreendem das coreografias de 1983 e 2002. As variações decorrentes das referidas montagens consistem em algo intrínseco ao próprio poema que, como vimos, discute de maneira explícita o problema da interpretação, via o confronto entre o poeta e a imprensa, que apresentam diferentes versões de uma mesma história. Nesses termos o aparato teórico adotado pela crítica possui uma inelutável relação de afinidade com o poema, o que é um achado  é inegável que o tenha sugerido , mesmo que em seu estudo não tenha se debruçado sobre esse aspecto.

100

SEGUNDO CAPÍTULO

CANÇÕES PARA UM BALÉ: O GRANDE CIRCO MÍSTICO DE EDU LOBO E

CHICO BUARQUE

É um caso insólito e maravilhoso: na nossa cultura, as canções têm um destino que ultrapassa toda a urgência das contingências — ultrapassa, em tantos casos para sempre, o momento específico de sua criação —, sem perder jamais a contingência dessa urgência, ao mesmo tempo coletiva e intransferivelmente pessoal. O fato é o seguinte: ninguém seria quem é, no Brasil, sem conhecer as canções — mesmo aqueles poucos que são indiferentes à música, mas nem por isso menos tocados por ela na construção de um lugar para se viver.

Arthur Nestrovski, Aquela canção

101 A escuta de um disco de canções costuma se dar apenas através da fruição auditiva. Mas também pode ser acompanhada pela leitura simultânea do encarte do disco.

No caso em questão, a primeira opção colocaria o ouvinte diante de uma peça de colorido exuberante e temas que cativam à primeira escuta. Caso o ouvinte decida acompanhar a obra lendo simultaneamente o encarte, “Abertura do circo”  fato curiosíssimo e nada aleatório  acaba ocupando a função de acompanhamento para o poema de Jorge de

Lima. Isto não vem indicado de modo explícito no CD, mas fica implícito na sequência de ações realizadas pelo ouvinte. Colocar o disco no aparelho, abrir o encarte e seguir as canções letra por letra. O poema é a primeira “letra” inscrita no encarte, ocupando o espaço das costas da capa e a primeira página da sequência. Logo, a “Abertura” pode perfeitamente se desenrolar enquanto lemos o poema.

O impacto dessa montagem é enorme e só mesmo realizando uma espécie de avaliação crítica dessa leitura, que coloca o leitor-ouvinte em situação de performance, será possível considerar os efeitos poéticos que brotam dessa ligação insólita. Ouvimos- lemos durante a “Abertura” a origem do espetáculo, que aparentemente se oferece em tom jocoso-lírico como sinopse. No entanto, logo na segunda canção, “Beatriz”, constatamos que o trailer não desfez o suspense da história, uma vez que no poema- roteiro nenhuma Beatriz é mencionada. Além disso, repare-se que a leitura silenciosa do poema ou a leitura acompanhada da “Abertura” conduzem a experiências muito distintas.

Talvez a primeira forma de leitura não revele de imediato o tom circense, o tom de anúncio de espetáculo latente no poema, como vimos a propósito da utilização de procedimentos jornalísticos por Jorge de Lima. Ajustar à seriedade mística do poema a afetação cômica dos mestres de cerimônia circenses é uma tarefa difícil de realizar pois

102 exige uma grande experiência dramática e manejo entoativo. Mas tomando como base a

“Abertura” fica pelo menos um pouco mais fácil imaginar os malabarismos entoativos exigidos pelo poema. De resto, como vimos durante sua análise, as categorias circo e místico de certo modo consistem em um oxímoro. Sua tensão também se faz sentir  como não poderia deixar de ser  na dificuldade de vocalizar o texto (incluindo na vocalização a leitura silenciosa, mas que dê conta de ouvir internamente as curvas entoativas justas).

Beatriz

Olha Será que ela é moça Será que ela é triste Será que é o contrário Será que é pintura O rosto da atriz Se ela dança no sétimo céu Se ela acredita que é outro país E se ela só decora o seu papel E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha Será que é de louça Será que é de éter Será que é loucura Será que é cenário A casa da atriz Se ela mora num arranha-céu E se as paredes são feitas de giz E se ela chora num quarto de hotel E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva para sempre, Beatriz Me ensina a não andar com os pés no chão Para sempre é sempre por um triz

103 Ai, diz quantos desastres tem na minha mão Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha Será que é uma estrela Será que é mentira Será que é comédia Será que é divina A vida da atriz Se ela um dia despencar do céu E se os pagantes exigirem bis E se um arcanjo passar o chapéu E se eu pudesse entrar na sua vida

“Beatriz”, por muitas razões, é uma canção incomum. Esta constatação é tão evidente quanto pobre. Evidente porque talvez não haja desacordo sobre sua beleza desconcertante, a um só tempo delicada e arrebatadora (espetacular, sublime). Pobre porque indicar sua beleza equivale a apontar o óbvio, lugar-comum macerado por um batalhão de ouvintes e intérpretes. Desde que veio a público, a canção tornou-se um clássico da música popular brasileira. E com certeza foi a canção mais regravada do balé, sendo um dos momentos mais altos da parceria entre Edu e Chico. Embora as emissoras de rádio insistam em não colocá-la no ar, sabe-se lá por que razões, a canção é altamente conhecida e ocupa um lugar de destaque na memória coletiva brasileira.

Numa primeira escuta, a primeira coisa que se destaca é a presença inusitada da personagem, que não aparece no poema de Jorge de Lima. O próprio Chico revela, durante uma conversa com Edu, num trecho do documentário Saltimbancos (2006), que levou muito tempo para fazer a letra dessa canção, que originalmente fora composta para a personagem Agnes. Não encontrando meios de elaborar versos que tratassem do encontro decisivo entre a personagem e o jovem que abandonou os estudos de medicina por causa dela, fundando a dinastia do circo, Frederico Knieps, Chico ouviu o que a

104 intuição lhe ditava e elegeu a famosa personagem de Dante para ocupar o lugar da personagem que se recusava terminantemente a aparecer na letra da canção.

Essa escolha trouxe a reboque muitas implicações tanto para o balé quanto para o estudo do motivo do circo na obra de Jorge de Lima. No âmbito do balé, Beatriz introduz logo de saída o princípio da descontinuidade entre as canções e o poema. É certo, como veremos, que as canções, em linhas gerais, seguem um roteiro elaborado a partir da sequência narrativa do poema. Contudo, quando consideradas isoladamente refratam a linearidade do plano geral. Essa dissonância entre as partes e o todo é recorrente e desde já deve ser tomada como um dos principais traços da transcriação, tradução intersemiótica, adaptação livre ou como quer que denominemos o trabalho de criação efetuado por Edu e Chico. No que diz respeito à presença do circo na obra de Jorge de

Lima, a substituição de Agnes por Beatriz recupera, ao que tudo indica, inadvertidamente, alguns dos aspectos centrais da poética do poeta alagoano relacionados

à figura da musa, entre eles, a multiplicidade e a permeabilidade, o papel proeminente reservado a ela na iniciação ao universo onírico e sua figura, que muitas vezes aparece sob a figura morte, como imagem do mundo às avessas e ao mesmo tempo fantástico, no qual o poeta, como Orfeu, se lança. A concepção de uma musa movediça se anuncia, como vimos, em A túnica inconsútil, e no próprio poema “O grande circo místico,” ganhando enorme amplitude em Anunciação e Encontro de Mira-Celi, Livro de sonetos e

Invenção de Orfeu. Logo, quando trocou uma das musas do poema, Chico acabou sendo profundamente coerente não apenas com o próprio poema mas, de modo mais abrangente, com a poética de Jorge de Lima.

105 Vimos que o princípio da metamorfose aplicado à musa, para Jorge de Lima, tinha um fundo ao mesmo tempo cristão e surrealista. A canção “Beatriz” recupera esse princípio e retoma também a noção de musa como guia (noção eminentemente surrealista, como indicamos durante a leitura do poema). Podemos dizer ainda que, como no poema, as personagens centrais do balé são as personagens femininas, o que se anuncia desde esta primeira canção. São elas que mantêm teso o invisível cordão místico- narrativo-poético-existencial da família-companhia. Curiosamente, as outras personagens do poema não são denominadas nas letras das canções, o que lhes confere um caráter de anonimato afim da condição humilde do artista mambembe, traço que já se apresentava na obra de Jorge de Lima mas que foi ressaltado por Edu e Chico. Apenas Lily Braun é mencionada no título de uma canção. Desse modo, Beatriz é o único nome que desponta no corpo das letras e esse fato reforça o caráter de exceção da personagem, mas também imprime ao conjunto das canções uma espécie de reverberação que se propaga de modo inexorável. Não é à toa que, no balé, ela representa o nascedouro da vocação mística da companhia e sua presença é de tal forma arrebatadora que todas as outras personagens desempenham papéis vinculados a ela. O impacto de Beatriz é desmesuradamente mais contundente do que o de Lily Braun com seu santo tatuado no ventre ou até mesmo

Margarete e suas filhas. Esse fato, entretanto, não anula o processo das metamorfoses da musa e, se Beatriz assume um papel proeminente, as outras personagens femininas confirmam, a cada geração, o veio místico impulsionado pela matriarca da dinastia.

Esse dado é comparável aos dados biográficos da companhia sob alguns aspectos, sobretudo a experiência que levou o jovem Frederico Knieps a abandonar os estudos de medicina para acompanhar uma artista mambembe. Nesse episódio vejo um dos possíveis

106 nexos que levaram Chico Buarque a Beatriz ou, ao contrário, que a trouxeram até ele.

Guardadas as devidas diferenças, sobretudo de estilo, o episódio é similar ao que se passou com Dante ao ver pela primeira vez Beatriz. O próprio poeta relata o memorável encontro na Vita Nuova, recriando-o depois na Divina Comédia. A relação se estabelece a partir do profundo impacto gerado pela visão da mulher desde o primeiro instante amada.

O arrebatamento do poeta pela visão fulminante da mulher amada está presente com todas a letras na letra da canção que ora lemos.

Utilizando os conceitos de figura e alegoria, caros a Dante e a Jorge de Lima, podemos dizer que Agnes é figura de Beatriz. A construção do texto permite levantar um problema da maior importância para a leitura da canção: em verdade, a personagem

Beatriz não se trata inteiramente da personagem de Dante. É evidente que as várias referências à Divina Comédia que aparecem na letra da canção (sétimo céu, comédia, divina, entre outras,) confirmam a relação entre elas. Mas a personagem da canção tem identidade própria, a começar pelo fato de ser atriz e estar ligada ao universo da arte, da representação, do circo. O ouvinte, que durante a canção veste a máscara de Frederico

Knieps, vê Beatriz em um momento, por si só já especial, em que ela está atuando. Ao que tudo indica ela está realizando um número aéreo, isto é, de trapézio ou corda bamba.

Esses fatores devem ser levados em conta porque dizem respeito ao modo como Edu e

Chico transpuseram para as canções, e esta canção em particular, o universo místico- circense do poema. A propósito, no balé o misticismo tem uma qualidade diferente do misticismo do poema. Neste trata-se de um misticismo propriamente dito, ligado à religiosidade do poeta; naquele trata-se de um misticismo encenado  o que não quer dizer falso , afim do universo da arte. A intensidade com que se manifesta, entretanto,

107 é muito maior nas canções, que ironicamente sintetizam, como veremos, uma visão agnóstica da existência. Talvez seja o contraste entre a certeza da fé e a dúvida do agnóstico onde atue essa diferença de intensidade. Como discutiremos adiante, a visão agnóstica parece conter um aspecto trágico muito diferente do homem de fé.

O fato de ser atriz coloca em cena a dimensão humana, demasiadamente humana, de Beatriz. Embora ela se identifique, por vários motivos, com a personagem de Dante, é preciso destacar que a etimologia de seu nome contém um percurso que, no contexto do balé, assume conotações que vão além das que se ligam à Beatriz da Divina Comédia. Efetivamente, Beatriz significa ‘a que traz ’. A mesma raiz originou palavras como beato (santo), beatitude

(santidade), beatífica etc. No caso de Dante, a personagem, de acordo com o destino inscrito no próprio nome, conduz o poeta para o caminho do bem. No começo da

Divina Comédia, Dante relata seu espanto perante o fato de que se encontrava perdido, no meio de uma selva osccura. Por intermédio de Beatriz, ele é resgatado e passa, a partir de então, a se alinhar às virtudes. Algo similar ocorre no poema e na canção. No poema o jovem descobre sua verdadeira vocação e abandona sem titubear a carreira de medicina. Na canção é apresentado apenas o momento da visão beatífica, por assim dizer, ficando fora de cena o contexto em que se passa o encontro. Há imagens, contudo, que apontam para a visão concreta (não-onírica, não-idealizada) da personagem, por exemplo, a série de indagações sobre a condição da personagem (“Será que ela é moça” etc.). A despeito desse aspecto mundano, a personagem da canção produz efeitos semelhantes aos de Beatriz sobre Dante, propiciando à personagem Agnes, do poema, o poder de ocasionar uma radical

108 torção no destino do jovem estudante de medicina, juntando-se a ele e abrindo passagem para a fundação da dinastia circense.

Por todas essas razões, a personagem da canção poderia ser classificada como uma personagem complexa (ou uma personagem-phármacon, para estabelecermos uma analogia com a noção wisnikiana de palavras-phármacon),27 cujas ambivalências residem em sua própria condição de artista circense e mística.

Acrescente-se a isso o fato de que o personagem masculino, que na verdade é quem atribui a Beatriz suas qualidades, também se trata de um personagem complexo, tocado a um só tempo pelo profano e o sagrado. Isto fica evidente no modo como ele reage à visão da mulher, misturando o etéreo ao mundano, o baixo corporal ao espiritual, a imagem concreta e a metáfora absoluta, em suma, céu e chão, circo místico. Por um lado, podemos dizer que esta é uma das diferenças entre a canção e o poema, uma vez que o fundador da dinastia, em Jorge de Lima, não apresenta nenhum traço propriamente místico, a não ser por via indireta, pela possibilidade de lermos seu itinerário como figura imperfeita do filho pródigo, pois nesse caso o filho jamais retornará à casa paterna Por outro lado, podemos apresentar o

27 Segundo José Miguel Wisnik, trata-se de “uma família de palavras que se caracterizam por dizer algo e ao mesmo tempo o seu contrário, palavras em cujo duplo sentido antitético Freud chegou a ver uma vinculação primordial da linguagem com o inconsciente, na medida em que tocam o núcleo ambivalente em que forças opostas coexistem sem se negar. São palavras em que o excesso que elas designam, no limite indizível, revira no seu contrário, como “bárbaro” e “formidável,” palavras-fármacon, ao mesmo tempo veneno e remédio, a exemplo de “merda,” que, no seu uso como amuleto teatral (trocado entre os atores antes do início do espetáculo), incorpora a menção-tabu ao fracasso  materializado no dejeto caótico- malcheiroso , tomando-a como irradiadora força, imantação e voto de sucesso. Palavras assim, semanticamente oscilantes, deixariam entrever o quanto toda significação é virtualmente equívoca, flutuando e deslizando num eixo de polaridades cujo sinal pode se inverter, a depender do acento que nela se imprima e do recado que a atravesse. Assim também certos palavrões emblemáticos, que servem para expressar estados opostos: “filho-da-mãe,” “filho-da-puta” e “puta-que-o-pariu” podem implicar aviltamento e estigmatização, ao mesmo tempo que euforia e entusiasmoo intenso. As palavras-fármacon são palavras que pendulam sobre o paradoxo e o excesso, transformando em totem aquelas zonas-tabu em que as dualidades opositivas vacilamo nó inexorável entre morte e vida, potencializado no veneno-remédio; o nó inextrincável de que a mãe, interditada, fez sexo.” (2004, 131-132)

109 personagem masculino como um ponto de contato inequívoco entre o poema e a canção, se considerarmos o impacto causado pela contemplação da mulher em ambos os casos (o poeta e o personagem). Em outras palavras, Edu Lobo e Chico

Buarque inscrevem no personagem que canta a visão de Beatriz o que o poeta indica a partir das personagens femininas como um todo. A ambivalência dos personagens, portanto, também se encontra na própria relação entre o poema e as canções, o que gera um campo de sentidos complexos com textura polifônica, vozes que se dizem e contradizem, formando, em seu desenrolar, um intrincado diálogo, um verdadeiro contraponto intersemiótico barroco-moderno.

É preciso dizer, ainda, que também encontramos na Beatriz de Edu e Chico algumas discussões fundamentais que giram em torno da Beatriz de Dante, tais como a ideia da inexorabilidade do amor, a visão do amor como um acidente,28 o papel da liberdade e sua relação com o princípio de esperança, o exílio, o ‘dolce stil nuovo’, o sermo humilis e a reflexão sobre a condição humana. Passemos em revista alguns desses pontos, a fim de compreendermos mais a fundo a canção.

Na Divina Comédia, encontramos a ideia de que “o terrível do amor é que não podemos escapar de seus efeitos quando ele se apresenta. O impacto da visão da amada é tamanho que todo o controle imposto pela razão para a operação do intelecto se esvai diante de um fenômeno que a natureza comanda segundo suas próprias leis. A essência do amor é o desejo, que não conhece limites.” (Bignotto,

28 “A evocação amorosa se torna aos poucos algo muito poderoso. (...) A morte de Beatriz irá transportar o poeta para outras esferas. (...) Aos poucos esse amor, que Dante assumira como algo acidental, significando com isso que só existe se tocar diretamente os sentidos  ‘pois o amor não possui um ser em-si como uma substância, mas é um acidente em uma substância’ , esse amor vai revelando outros mundos, fazendo do anjo desenhado pelo poeta em seus dias de esquecimento um habitante real do paraíso.” (Bignotto, 92)

110 93). Nesse comentário estão sintetizados alguns aspectos centrais de Dante, sobretudo no que tange à inexorabilidade do amor e ao papel da liberdade. A passagem para a canção se dá de maneira quase direta: o personagem contempla

Beatriz e não tem como ‘escapar a seus efeitos.’ Nesses termos, o modo como o personagem reage diante da visão estonteante da mulher, isto é, ouvindo o fluxo de perguntas que se desdobram em seu pensamento, como num monólogo interior, reflete o esforço inútil depreendido pela razão a fim de manter o controle. No entanto as leis da natureza, do desejo, ‘que não conhece limites,’ é o que acaba se impondo. Frederico não tem como fugir do amor que passa a sentir por Beatriz a partir do instante que a vê. O nocaute desencadeado pelo amor, portanto, anula qualquer possibilidade de controle racional da situação:

Em sua obra Vita nuova, quando pela primeira vez toma contato com Beatriz, a visão de sua doce figura é o primeiro sinal da presença do amor. O amor se mostra, portanto, pelos sentidos, mas também pela evocação. O poeta vê Beatriz passando pelas ruas de Florença, e essa experiência, ou esse ‘acontecimento’, como prefere Auerbach, é um fato decisivo para a construção da tópica amorosa do poeta.” (Bignotto, 91)

Na canção também se enlaçam a experiência sensível e a contemplação mística. Trata-se de uma visão ambivalente da condição humana a partir da experiência da contemplação do amor. O princípio de realidade se delineia conforme a figura da dúvida, o ceticismo do olhar elaborando um sem-número de questões: ‘Será que ela é moça?,’ ‘será que ela é triste?,’ ‘será que é o contrário’ etc. Da incerteza o sujeito atinge a afirmação total, a certeza máxima na contundente afirmativa, puro princípio de prazer: ‘sim, me leva para sempre Beatriz.’ A perenidade da comunhão sugerida na expressão ‘para sempre’ não significa apenas o

111 desejo de se casar, mas o desejo de manter aceso o princípio de esperança, sem o qual a condição humana estaria condenada ao inferno, para continuarmos na trilha de Dante: “A presença de sua amada é um ‘princípio de esperança’ que ilumina o trajeto todo do poeta.” (Bignotto, 88) É por isso que os pedidos do personagem dirigidos a Beatriz soam como oração, pois se é de fato possível transformar-se, então é porque o princípio de esperança atua: “me ensina a não andar com os pés no chão.” A oração (religiosa e linguística) é polissêmica: significa tanto a contemplação amorosa quanto o número circense, conectados ao número aéreo da atriz (trapezista, equilibrista etc.). A fé, no entanto, retorna ao estágio de ceticismo na última parte da canção, em que se retoma o mesmo desenho melódico-harmônico das duas primeiras partes e na letra enuncia-se uma nova série de dúvidas.

As observações feitas acima nos levam a um outro ponto de contato entre

Dante e a história dos Knieps: a indefinição da vida do jovem estudante de medicina e do poeta. A marca da poesia de Dante é “a indefinição de sua vida aos trinta e cinco anos, a dificuldade da procura da virtude, pois esse parece ser o caminho do qual ele se perdeu sem nem mesmo se dar conta.” (Bignotto, 87) Esse aspecto da experiência do poeta, a indefinição da vida, ressoa na história do fundador da dinastia Knieps. Um aspecto fundamental dessa comparação reside na dúvida quanto ao fato de ambos os personagens estarem à procura de algo, quando se viram na obscuridade. No caso de Dante, logo no início da Divina Comédia “ele sugere que havia perdido a diritta via, que no curso de seus anos deveria ter-lhe conduzido para a virtude.” (87) O que o levou a perder-se do caminho? “É precisamente essa perda

112 do caminho que torna o poema tão fascinante.” (87) Porque, acrescentemos, ela relaciona-se com a própria condição humana.

Em termos semióticos,29 as sequências em que sujeito e objeto encontram-se distanciados caracterizam-se pelo processo cancional da tematização. No nível linguístico, é quando o sujeito se refere ao objeto como a uma terceira pessoa. A figura entoativa é feita a partir do contraste entre a exclamação e a interrogação: a sensação simultânea de afirmação e dúvida potencializa o grau de surpresa e de desconcerto por que o sujeito passa ao observar Beatriz. Ele acredita no que vê (é arrebatado pela visão beatífica) e ao mesmo tempo duvida do que vê (é tomado de assalto por uma série infindável de dúvidas a respeito da atriz). A repetição da mesma célula melódica reforça essa ambiguidade do sujeito, caso típico da “visão cordial,” cuja ambiguidade é pressentida na entoação ao mesmo tempo séria e jocosa.

Na terceira parte da canção sujeito e objeto se unem, a começar do “sim” que abre a seção. A tessitura se expande e as notas longas ocorrem reiteradas vezes,

29 Não espero utilizar aqui o modelo semiótico de A. J. Greimas de maneira rigorosa, mas apenas indicar alguns de seus aspectos, sobretudo os que dizem respeito aos desenvolvimentos alcançados por Luiz Tatit em seus estudos sobre a canção. A explicação mais concisa da semiótica da canção encontra-se no ensaio “Cajuína Transcendental”, de José Miguel Wisnik. Transcrevo-o na íntegra: “As ideias de Luiz Tatit, que fornecem um novo e original modelo para a análise das relações entre melodia e letra, estão contidas em O cancionista – Composição de Canções no Brasil (São Paulo: Edusp, 1996) e em Semiótica da Canção (São Paulo: Escuta, 1994). O primeiro livro desenvolve análises da s dicções e de canções de um conjunto representativo de autores; o segundo é mais cerradamente teórico. Segundo Tatit, na tematização predominam os ataques consonantais e a regularidade interna dos motivos melódicos e rítmicos, enfatizando um objeto decantado. Na passionalização, predominam o alongamento das vogais e o tensionamento do campo das alturas, enfatizando o próprio sujeito colhido na instância emocional das distâncias e aproximações, encontros e desencontros. A figurativização encena no ritmo e na medida as instabilidades características da fala. Os três modos não se excluem nas canções, mas se combinam com predominância maior de um ou de outro. (2004, 270-271)

113 caracterizando o trecho como passional. O verbo “olhar” da primeira parte, que também funciona como componente passional na canção, embora seja apenas um detalhe, uma vez que as partes em que aparece são predominantemente temáticas, contém, em germe, o contraste fundamental da canção, que aparece com a terceira parte. Entretanto, esse breve momento passional paradoxalmente adquire um desdobramento algo temático, uma vez que acontece muitas vezes na melodia, ao final de cada frase (mo-ça, tris-te, con-trá-rio etc.). Todas as sílabas grifadas são prolongadas por Milton Nascimento, que não segue à risca o ritmo da melodia previsto na partitura, imprimindo síncopes que tematizam a figura da própria surpresa. Em contraste, a terceira parte termina com palavras oxítonas (que geralmente contém a vogal i), ressoando o nome Beatriz. Quando a palavra oxítona acontece nas outras partes, dá-se a inflexão de uma região a outra. A passagem de uma região intermediária para uma região aguda (que termina sempre com palavras oxítonas) produz uma intensificação da ambiguidade que se conclui na questão mais decisiva da canção: “e se eu pudesse entrar na sua vida?”

Por tudo isso, essa canção corresponde, logo ao começo, ao clímax do balé e, portanto, há algo surpreendente no modo como as canções se dispõem. Ou seja, após a abertura, “Beatriz” é justamente o ponto mais alto. Isso lembra o próprio poema, que menciona o gesto radical, a renúncia à medicina do jovem Frederico Knie, mas vai muito além, revelando, desde o início a fusão entre arte e misticismo.

A relação entre as canções de Chico Buarque e Edu Lobo e a poesia dos trovadores medievais já foi apontada mais de uma vez e as observações que farei a seguir não são, portanto, inteiramente novas, esperando no entanto iluminar alguns

114 aspectos de ‘Beatriz’, que se trata de uma canção em que alguns dos traços mais importantes da arte trovadoresca despontam de modo efetivo, a começar pelo fato de se tratar, como vimos, de uma personagem tomada de empréstimo a Dante, que, por sua vez, tinha profundas relações com a poesia trovadoresca:

Dante fala de sua amada e a conduz ao centro de sua vida e de suas esperanças em poeta que sabe o valor das musas e que abriu uma nova clareira no mundo da poesia. Com efeito, quando ainda na juventude escreve a Vita nuova, ele se faz herdeiro de uma poesia renovada no curso do século XIII pela influência da poesia provençal e pelo acento italiano que ela ganhara com os poemas de autores como Guido Guinizzelli e Guido Cavalcanti.” (Bignotto, 89)

A Beatriz da canção traz muitos pontos em comum com a personagem do

Vita Nuova, sendo, a seu modo, elevada e etérea, causando um impacto decisivo no sujeito que a vê pela primeira vez e que desde então é arrebatado pelo que vê, a tal ponto de não ser mais um simples observador, tornando-se um sujeito tocado pelo amor (em termos provençais, tornando-se coitado, condição do sujeito enamorado).

A visão da mulher, que o poeta reconhece imediatamente como a mulher amada, tem muito da experiência mística.30

Esse aspecto contém, talvez, a semelhança mais contundente entre a musa de

Dante e a personagem da canção. É preciso observar, no entanto, que a visão da

30 “Os poetas provençais fizeram das amadas seres elevados e etéreos. No jogo complexo de suas referências e de suas alusões inventaram um mundo para poucos, um código que dava acesso, àqueles que o conheciam, a um universo único de signficados. De fato, como já observou Auerbach, tratava-se de uma aristocracia do espírito, que admitia muito dificilmente o acesso a seus lugares e a seus valores. O coração puro estava reservado a uma nobreza, que não desprezava o acento social de seus membros, mas que os distinguia ainda mais por suas qualidades morais e sua capacidade de aceder a domínios transcendentes, distantes das preocupações corriqueiras dos homens. Por isso sua poesia era marcada pelo otimismo e por um tom cavalheiresco, que casava bem com uma sociedade que tinha por referência a organização feudal do corpo social. A poesia provençal se confundia com a procura da pureza mística e, por isso, fazia da busca de um coração nobre uma obra de amor muito superior aos simples enlaces entre os amantes. Nesse caminho os provençais nos legaram uma poesia na qual a busca da forma perfeita, e o uso das línguas vulgares, confundia-se com a afirmação de uma distância quase intransponível entre os poucos eleitos e os homens comuns.” (Bignotto, 89)

115 mulher como um ente elevado e etéreo, no caso da canção de Edu e Chico, relaciona-se ao fato de que ela é uma atriz, uma atriz circense que é vista no momento em que atua, em um número aéreo (de trapézio ou corda bamba), o que a coloca em uma posição literalmente elevada e etérea em relação ao observador, sendo que esse fato evidentemente não diminui o arrebatamento amoroso que acomete o sujeito.

Nesses termos, podemos dizer que a canção coloca em destaque (através do processo da tematização x passionalização) os planos distintos da artista e do observador, que, não sendo artista, aparece como espectador. Trata-se portanto da representação de uma cena observada pelo olhar de um espectador específico. A atriz apresenta um número cuja complexidade intrínseca (suas referências e alusões internas) talvez passe desapercebido ao espectador. A complexidade, no caso, consiste na sobreposição do enlace amoroso e ao mesmo tempo estético projetados pelo observador arrebatado pela visão. É assim que um verdadeiro universo de significados, para utilizarmos a expressão empregada por Newton Bignotto, se desdobra perante o olhar e no entanto permanece fechado.

Tal como o código cerrado da poesia provençal, que somente se revelava a iniciados, o espetáculo observado pelo sujeito, por sua ambivalência artística e sentimental, aparecia como enigma. Daí o tom interrogativo e as inúmeras suposições que atravessam a canção do começo ao fim, marcando-a com a ambiguidade de uma certeza (o enamoramento arrebatador) e a dúvida radical e exclamativa sobre a possibilidade da realização do amor deflagrado num repente.

Ocorre aí uma encenação da própria poesia provençal, deslocando para a amada o

116 código que antes era dominado pelo poeta (e por ele utilizado como meio de sedução). Não é à toa que os papéis também estão invertidos, uma vez que a amada desempenha um número artístico, ocupando o lugar do poeta (o trovador, o jogral), e o poeta se coloca na posição do espectador. Logo, o que está em jogo é a experiência do espectador que se apaixona pela artista.

No entanto, o apaixonar-se não se dá apenas em termos de fruição estética, mas também em termos de devaneio amoroso. O espectador dirige à atriz inúmeras indagações de ordem pessoal e atinge por um instante (que equivale à terceira parte da canção) o tão sonhado encontro, transpondo a amada para a posição de segunda pessoa do discurso (canal aberto entre o enunciador e o enunciatário), o que confere

à passagem o sentido de uma junção (passionalização), ao contrário das outras partes em que o sujeito, como em um monólogo, refere-se à amada utilizando a terceira pessoa (tematização). “A aristocracia do espírito, que admitia muito dificilmente o acesso a seus lugares e a seus valores,” tal como Auerbach observou sobre os poetas provençais, assume na canção um outro sentido: a atriz também assume a posição dessa aristocracia, apresentando-se como um enigma desafiador para o espectador (que tem a certeza do amor, mas todas as dúvidas quanto à possibilidade de realização desse amor). Nisso a fórmula que se deduz da canção acaba por produzir, por outra via, a mesma distância entre a mulher amada e o sujeito enamorado encenada na poesia provençal. Mas as relações entre a canção e a cantiga provençal não terminam aí, porque a canção de Edu e Chico também contém um ‘jogo complexo de referências e alusões’ que permite considerá-los herdeiros diretos dos migliores fabros de Provença.

117 É preciso tomar cuidado justamente com essa armadilha ao lermos a canção, pois ela contém referências muito sutis e que devem ser levadas em consideração durante a análise. Uma delas é o modo como os cancionistas organizam a referência

à Divina Comédia e ao universo de Dante de modo geral. Ora, isto se dá através da modalidade coloquial do português falado no Brasil e, nesses termos, a observação que aparentemente está focalizada apenas na descrição da mulher amada assume o caráter de observação do espetáculo (fruição estética).

É ao ver o número realizado por Beatriz que o espectador utiliza imagens referentes a Dante. Assim, podemos dizer que o nome da personagem é, muito provavelmente, um nome atribuído pelo personagem-espectador a partir da experiência arrebatadora por ele vivida ao observar a atriz da qual não sabe o nome.

No momento em que deita os olhos sobre a atriz, o sujeito sofre um forte impacto, verbalizado na expressão interjectiva do espanto de quem vê e precisa confirmar o acontecimento utilizando o próprio verbo que exprime a ação em que o suspende, isto é, olhar. O modo imperativo e coloquial com que o verbo é utilizado dá conta desse deslumbre inicial do observador, que é pego de surpresa pela visão numinosa da mulher imediatamente amada. Trata-se portanto de uma expressão exclamativa que tem como sinônimo interjeições como “Nossa Senhora,” “Virgem Maria,” “Meu

Deus,” “Ó, gente,” entre outras. Todas essas fórmulas exclamativas são utilizadas em situações de surpresa repentina, situações que provocam no sujeito uma suspensão radical e imediata.

Todos esses aspectos são reforçados pelo motivo melódico e harmônico da canção. A sílaba ‘o-’ se prolonga e desemboca em ‘-lha’, mais curta e mais grave.

118 Na harmonia, esta sílaba repousa sobre o acorde fundamental enquanto aquela é acompanhada por um acorde suspensivo. Logo, o motivo melódico-harmônico da interjeição (o verbo funcionando em modo imperativo) recupera o desenho entoativo da exclamação e inaugura o tom predominante da canção: a surpresa, a suspensão produzida no íntimo do observador.

Curiosamente, as interjeições que servem de sinônimo a ‘olha’ alinham-se ao imaginário provençal, que via a mulher através da imagem de “Nossa Senhora.”

Este é um outro detalhe que reforça a relação entre a canção de Edu e Chico e as cantigas provençais. Além disso, a canção também discute, a seu modo, a ideia de que o coração do poeta deveria ser um coração puro, “reservado a uma nobreza, que não desprezava o acento social de seus membros, mas que os distinguia ainda mais por suas qualidades morais e sua capacidade de aceder a domínios transcendentes, distantes das preocupações corriqueiras dos homens.” (Bignotto, 94) Ora, o coração do personagem, que a canção desvela, é puro e nobre apenas no sentido da liberdade radical a que se entrega e não em relação aos padrões morais que a poesia provençal ligava ao cavalheiresco (e isto, como veremos, pode ser lido como outra referência sutil a Dante).

O derramamento extremamente livre a que se entrega o espectador (que ele provavelmente jamais deixaria vir à tona de modo explícito, a não ser no contexto da clínica psicanalítica ou em momentos lúdicos onde acontecem processos como o da carnavalização) revela algo da maior importância: esse espectador identifica-se ao homem cordial sérgio-buarquiano, com todas as ambivalências e contradições que ele possa ter e efetivamente tem. Do mesmo modo como ele é capaz das

119 delicadezas mais surpreendentes, pode revelar-se também como o mais grosseiro.

Essa ambivalência do sujeito encontra-se no cerne da linguagem utilizada por ele, aparecendo logo de saída, na primeira indagação (por mais sublime que ela pareça) que ele coloca: “será que ela é moça?”. Dada a distância com que observa a atriz, a pergunta pode repousar em seu sentido literal: “será que ela é jovem?” Mas significa também: “será que ela é casada?”; ou ainda: “será que ela é virgem?” Todos esses sentidos giram em torno de uma herança medieval ainda viva em contexto moderno, mas colocam a condição da mulher em outros termos: da altura inacessível da santa

(como na cantiga provençal) à mulher tangível, mortal e, em última instância, profana. Curiosamente, a canção consegue fazer essa transposição sem perder o aspecto de elevação da mulher. Um dos elementos que contribui para isso é, como já vimos, a representação do número aéreo realizado pela atriz.

Mas também é decisiva a visão desmistificada da mulher, que permite vê-la como efetivamente uma pessoa de carne e osso, humana. Essa visão contém um modo novo de ver a mulher (um modo elevado em comparação a uma visão simplesmente machista). Isto não exclui, no entanto, a visão grosseira (do baixo corporal) da mulher como objeto. É como se no homem cordial convivessem, sem se resolver, o alto e o baixo, a cabeça e os quadris.

O contato do sujeito com a mulher, mediado pelo olhar e, portanto, distanciado, lembra outra canção brasileira paradigmática, também composta segundo os princípios da tematização e da passionalização: “Garota de Ipanema”. A mulher que passa de Tom Jobim e Vinicius de Moraes tem muito de mulher objeto, isto é, uma mulher a um só tempo idealizada e concreta. Mas também guarda

120 elementos que a elevam a outra condição, porque, no final das contas, a canção termina por ser uma declaração de amor e não apenas uma cantada. Em “Garota de

Ipanema” a conjunção se dá apenas em hipótese. Em “Beatriz” o sujeito efetivamente visualiza um encontro, uma vida a dois (que aparece nas repetições da pergunta básica da canção: “e se eu pudesse entrar na sua vida?”. Além disso, a forma das duas canções é a mesma, ou seja, AABA.

O fato de podermos interpretar o nome Beatriz como uma designação efetuada pelo espectador que a observa em estado de suspensão amorosa retoma um aspecto central do poema e da poética de Jorge de Lima, ao qual a canção acaba, assim, por referir-se. Quanto ao poema trata-se do fato de que a personagem Inês, na verdade, não foi efetivamente substituída por Beatriz. Com esta canção, vimos que

Edu e Chico estão retratando um ponto de inflexão decisivo na vida do personagem

Frederico Knieps, fundador da dinastia circense em questão. Trata-se da passagem em que ele se apaixona por uma artista mambembe e decide abandonar a medicina

(carreira para a qual estava se formando). Foi a partir desse encontro revelador que o jovem teve coragem para abandonar os estudos e a posição de prestígio que a futura profissão lhe concederia  o que, de resto, ele herdaria do próprio pai, que era médico de câmara da Imperatriz Teresa. É o aspecto místico de transformação radical que se processa no interior do jovem Frederico que permite dizer que de alguma forma o circo que viria a fundar já era desde então um circo místico, a despeito de futuramente ele proibir a filha de entrar para um convento. A canção portanto retrata o encontro de Frederico e Inês. O aspecto ligado à poética de Jorge de Lima diz respeito ao papel órfico de nomear que ele procurava na linguagem.

121 Nesses termos, podemos dizer que o personagem inscreve um sopro novo, dá vita nuova ao nome Beatriz. Ao realizarem essa operação poética, Edu e Chico colocam em relação o episódio biográfico contido no poema e o episódio biográfico de

Dante, mencionado no começo da Vida nova:

Desde o meu nascimento, nove vezes o céu de luz havia retornado ao mesmo ponto, em seu giro, quando aos meus olhos surgiu, pela primeira vez, a senhora gloriosa da minha mente, que por muitos foi chamada de Beatriz, mesmo antes de a conhecerem pelo nome. Ela já estava nesta vida terrena tanto tempo quanto tempo leva o céu estrelado a mover-se um duodécimo de grau em direção ao oriente, de forma que mal completara nove anos quando apareceu diante de mim  e eu assim a via ao final dos meus nove anos. Como era distinto, humilde e honesto aquele encarnado de seu vestido, com cinto e adereços adequados aos seus poucos anos! Naquele momento, devo dizer que o espírito da vida, que habita a mais secreta câmara do coração, começou a agitar-se tanto que se manifestava de modo terrível em minhas menores pulsões e pulsações; e foi assim, a tremer, que disse estas palavras: “Aí está um espírito mais forte do que eu e que vem dominar-me.” Foi então que o espírito animado, que habita a alta câmara onde se abrigam as percepções de todos os espíritos sensitivos, sentiu-se tomado de maravilhoso espanto e, dirigindo-se particularmente aos espíritos da visão, disse estas palavras: “Esta aparição é a sua salvação encarnada.” Nesse ponto, o espírito natural, que habita aquela parte onde se ministra o nosso alimento, começou a chorar, dizendo: “Pobre de mim, que muitas interrupções terei de suportar!” Dali em diante, o Amor tomou conta da minha alma, que logo se dispôs a desposá-lo: em relação a mim, foi ganhando tanta firmeza e poderio, pela virtude que lhe transmitia a minha imaginação, que nada mais me restava senão atender aos seus menores desejos. Ordenava-me, muitas vezes, que eu fosse ver aquela menina-anja: saía à sua procura e muitas vezes a vi, quando menino; sua nobre figura e sua louvável conduta me levavam a dizer as palavras de Homero: “Não parecia filha de gente mortal, mas de um deus.” Embora a sua imagem, que sempre estava comigo, pudesse parecer um orgulhoso triunfo do amor que me dominava, revestia-se ela de uma virtude tão nobre que jamais consenti que o Amor de mim se apossasse sem o fiel conselho da razão, naquelas coisas onde fosse conveniente ouvi-la. Mas, como delongar-me sobre ações e paixões de tão verde juventude pode parecer um divagar de fábula, deixo isto de lado e, passando por cima de muitas coisas nascidas de um tal falar,

122 volto-me para aquelas palavras que estão escritas na minha memória em letras e parágrafos maiores. (21-22)

A citação é longa, mas permite ilustrar de modo preciso o momento em que o personagem da canção de Edu e Chico vê a mulher e imediatamente a identifica à mulher amada, utilizando o nome da musa de Dante para nomeá-la por causa da relação de identidade que se estabelece entre os dois episódios. É Beatriz a salvação de Dante; é Beatriz a salvação de Frederico Knieps. Lembremos que Beatriz também é um nome fictício utilizado pelo poeta para nomear a mulher amada: “O nome Beatriz quer dizer: aquela que emite beatitude, santidade, salvação.”

(Pignatari, 87)

Como Newton Bignotto indica no ensaio sobre Dante referido anteriormente,

“os provençais nos legaram uma poesia na qual a busca da forma perfeita, e o uso das línguas vulgares, confundia-se com a afirmação de uma distância quase intransponível entre os poucos eleitos e os homens comuns”. No entanto, “ao migrar para a Itália essa poesia levou consigo as experiências formais e o acento místico, mas perdeu sua inflexão aristocrática e cavalheiresca.” (89) Esse aspecto, recuperado por Dante na Divina Comédia, trata-se de outro ponto de contato entre a posição do poeta e dos cancionistas, isto é, a aproximação do dolce stil nuovo italiano.

Ao conceber o amor como “produto da alma sensível,” Guido Cavalcanti contribuía para subtrair à poesia sua inflexão aristocrática e cavalheiresca:

a figura da musa se desprega de um conjunto de referências sucessivas a elementos da natureza, para produzir uma ideia trágica do amor. Servindo-se de conceitos aristotélicos e por vezes averroístas para sustentar sua visão de mundo, o poeta faz do amor o produto da alma sensível. O intelecto dura para sempre, mas a parte sensitiva da alma,

123 em contato direto com as coisas terrenas, é a responsável pelos acidentes que compõem a vida amorosa.” (Bignotto, 95)

O intelecto e a alma são os dois aspectos que para ele colocam o indivíduo diante da experiência cindida entre a razão perpétua e a parte sensitiva da alma, que desencadeia os acidentes da vida amorosa. Nesses termos, a canção de Chico e Edu tem pontos de ligação com a poesia de Guido Cavalcanti. Essa tradição, assim como a rica tradição do cancioneiro medieval ibérico, é herdada diretamente da Bossa

Nova, para a qual, como na famosa canção de Tom Jobim, “fundamental é mesmo o amor,” cuidando, por isso, de “coisas que só o coração pode entender.” Esse tema encontra-se representado na canção de Edu e Chico: “diz se é perigoso a gente ser feliz;” “diz quantos desastres tem na minha mão.” Aliás, isso está posto na própria canção como um todo, pois “a presença da amada deixa o poeta perdido em seus sentidos.” (90)

Valsa dos Clowns

Em toda canção O palhaço é um charlatão Esparrama tanta gargalhada Da boca pra fora Dizem que seu coração pintado Toda tarde de domingo chora

Abra o coração Do palhaço da canção Eis que salta outro farrapo humano E morre na coxia Dentro do seu coração de pano Um palhaço alegre se anuncia

124 A nova atração Tem um jovem coração Que apertado por estreito laço Amanhece partido Dentro dele sai mais um palhaço Que é um palhaço com olhar caído

E esse charlatão Vai cantar sua canção Que comove toda a arquibancada Com tanta agonia Dentro dele um coração folgado Cantarola uma outra melodia

Em toda canção O palhaço é um charlatão E esse charlatão Vai cantar uma canção

De “Beatriz” a “Valsa dos clowns,” dá-se um salto temporal que é necessário explicitar. Como vimos, a personagem Beatriz e o momento expresso na canção a ela dedicada remontam ao episódio que propiciou a fundação do circo  o encontro da equilibrista Agnes e Frederico Knieps. No relato do poeta, esse encontro decisivo terminou em casamento, do qual nasceu uma filha, Charlote. Esta personagem, primeira descendente do casal que fundou a dinastia, casa-se com um clown e com ele tem dois filhos, Marie e Oto. Logo, não devemos perdê-la de vista ao analisar a valsa em questão.

Observe-se também que, na sequência narrativa do poema, após as bodas de Charlote com o clown, a próxima união é a de seu filho Oto com Lily Braun. Esse terceiro casamento da linhagem Knieps vem mencionado na canção “História de Lily Braun.”

Logo, a “Opereta do Casamento,” embora apareça depois da canção dedicada ao clown, só pode ter sido baseada nas núpcias deste com Charlote. Há um detalhe, na valsa sobre a qual estamos começando a refletir, que confirma a impressão anterior: a marca do plural indicada no título. Essa marca é decisiva para compreendermos a cena, pois ela sugere,

125 de modo indireto, uma aproximação lúdica e amorosa entre Charlote e um grupo de clowns. Não temos como saber se Charlote participa ou apenas assiste ao número dos clowns. Mas é certo que ela termina por escolher um deles para se casar.

Sabe-se que a escolha amorosa contém aspectos lúdicos, entre os quais destacam- se fatores como o acaso. A canção representa as tensões implicadas no jogo amoroso.

Nela, como indicarei adiante, encontram-se cifradas, a partir de um ponto de vista marcado pelo riso, as várias etapas da conquista amorosa. É significativo que a canção tenha sido interpretada por uma cantora (Jane Duboc), pois o papel de enunciar tal percurso assume sentidos que, no contexto do balé, permitem que identifiquemos à voz da cantora a voz de Charlote.

Um aspecto decisivo, e desde já cômico, é o fato de que “Valsa dos Clowns” se trata de uma canção ao mesmo tempo amorosa e metalinguística. Ela foi construída a partir de definições e observações sobre a natureza dos clowns, relacionando-os, ainda, ao universo da canção, o que aproxima a figura do palhaço à do cancionista (em suas múltiplas variações: compositor, cantor, ouvinte etc). Vejamos como isto ocorre na primeira estrofe:

Em toda canção O palhaço é um charlatão Esparrama tanta gargalhada Da boca pra fora Dizem que seu coração pintado Toda tarde de domingo chora

Logo de saída o palhaço é definido como um charlatão. Isto se deve ao fato de nele, que

é ator, tudo, do riso ao choro, é representação. As gargalhadas por ele esparramadas são

‘da boca pra fora’ e o seu coração artificial (‘pintado’) chora pontualmente (‘toda tarde de domingo’). O espaço em que ele realiza tais números é a canção (‘em toda canção’).

126 Temos aqui, portanto, uma advertência enunciada por um sujeito que conhece de perto a arte dos clowns. E não apenas o aspecto fictício de suas encenações, mas também a potência sedutora nelas encerrada. A letra e a melodia veiculam uma forte carga emotiva que se direciona do emissor para o objeto. Em outras palavras, a personagem feminina que emite opinião sobre os clowns não o faz com distanciamento, mas, ao contrário, de modo passional. As definições são categóricas e transmitem uma carga ambivalente de ternura e desencanto. Essas modalidades emotivas se fazem sensíveis, por exemplo, na primeira afirmativa (dois primeiros versos), que descarta a possibilidade de que em algum contexto o palhaço não represente, não atue. Ele é sempre um charlatão, um ator.

Esta palavra, como sabemos, possui acentos negativos e no entanto, como veremos, no

âmbito desta canção também assume conotação afetiva. Isto indica que a personagem que elaborou tal juízo sobre os palhaços já sofreu algum tipo de envolvimento e de desilusão relacionados a eles. Por ser categórica e enfática, a declaração assume valor hiperbólico, típico dos sujeitos movidos por uma atitude passional. A denúncia sobre a natureza dos clowns se volta contra a personagem que a enuncia.

A carga passional que se rebate entre sujeito e objeto, fazendo com que eles passem a incorporar, em espelho, as mesmas características, lembra o caso clássico das personagens que sentem simultaneamente atração e repulsa uma pela outra, sendo incapazes de ver ou admitir os laços amorosos que as ligam. Este é o caso, para darmos apenas um exemplo, de Beatriz e Benedito, personagens da comédia Muito barulho por nada (Much ado about nothing), de Shakespeare. Esse espelhamento, contudo, não se mantém apenas entre a personagem e o clown. Ele também se desdobra entre os próprios

127 clowns, que, conforme o julgamento implícito na letra, são todos farinha do mesmo circo.

E esta constatação vem expressa na segunda estrofe:

Abra o coração Do palhaço da canção Eis que salta outro farrapo humano E morre na coxia Dentro do seu coração de pano Um palhaço alegre se anuncia

A intensidade passional aumenta e a personagem se volta para o interlocutor e ordena que ele próprio confirme a veracidade das declarações feitas na primeira estrofe. Para tanto, é preciso abrir ‘o coração / do palhaço da canção’ e observar o que acontece. Esses versos contêm uma ação inusitada, uma vez que a expressão ‘abrir o coração,’ em sua acepção comum, sempre se dá como uma ação praticada pelo “dono” do coração (‘abra o seu coração.’ ‘abro o meu coração’). A inversão (outro espelhamento) faz com que o verbo

‘abrir’ assuma os papéis de verbos como ‘desbravar,’ ‘descobrir,’ ‘conquistar,’ todos eles passíveis de serem utilizados em contexto amoroso. E na sequência encontra-se um corte que pode ser tanto uma elipse quanto uma nova configuração dos atributos do palhaço mencionados anteriormente. Em outras palavras, o terceiro verso desta estrofe pode ser interpretado como uma mudança brusca no discurso, indicando um terceiro personagem

(um segundo palhaço, um outro, diferente do ‘palhaço da canção’ mencionado no começo). A aparição desse segundo palhaço é referida de modo sorrateiro, como sua própria aparição (‘Eis que salta outro farrapo humano / E morre na coxia’). Fica sugerido, nesse caso, a formação de um triângulo amoroso entre a personagem que dá sua sua opinião sobre os clowns, o primeiro palhaço e o segundo (‘o palhaço alegre’). Por outro lado, o terceiro verso pode ser considerado como um desdobramento ainda da imagem do mesmo palhaço. Nesse caso, a incapacidade de não representar do palhaço teria se

128 confirmado, a despeito de seu coração ter sido devassado pela mulher. Nesses termos, o palhaço estaria atado a uma trágica incapacidade de amar, gerada por sua irrefreável necessidade de fingir. O outro farrapo humano que salta e morre na coxia, então, corresponderia à imagem de um palhaço que se refaz de modo espontâneo e mágico.

Desse modo, a cena implícita nos versos dessa estrofe pode ser descrita, figuradamente, como a cena de um crime passional, temática explorada à exaustão pelo melodrama. O verbo da expressão ‘Abrir o coração’ assume, então, o sentido de ‘apunhalar’. Entretanto, o poder de resistência do palhaço é sobrenatural e ele renasce dos próprios farrapos.

Nesse contexto, ‘morrer na coxia’ (imagem da morte) não significa o desaparecimento do palhaço. Ele ‘se esconde no escuro’ para logo após reaparecer, sob a figura de um outro palhaço (o palhaço alegre, a nova atração da estrofe seguinte).

A multiplicação dos palhaços  um palhaço saindo de outro, cômico mis en abîme  constitui um hilário ilusionismo que desestabiliza jocosamente o poder de decisão de Charlote, que se vê obrigada a escolher seu futuro companheiro aleatoriamente. Isso explica em parte sua irritação perante os clowns. Daí os juízos que emite sobre o palhaço ressoarem de modo elegante e sutil a ideia de que ‘os palhaços, como os homens, são todos iguais.’ E, se ‘os palhaços são todos iguais,’ como escolher entre eles um companheiro? Em vista disso, podemos dizer que o nonsense é um dos traços principais dessa canção e transpõe para o universo do clown uma das máximas de

Oswald de Andrade: amor/humor.

129 Opereta do Casamento

Nem assaz alhures e antanho Era um evento tamanho A sagração nupcial Vinha a noiva de gargantilha Caçoleta e rendilha Diadema e torçal

Mas se houvesse algum embaraço Dera a moça um mau passo Quanto horror e desdém Ela ia parar no convento Ia dormir ao relento Ou deitar nos trilhos do trem

Do pudor da noiva a bandeira Após a noite primeira Desfraldava-se ao sol A sua virtude escarlate Igual brasão de tomate Enobrecendo o lençol

Mas se não houvesse tal mancha É que outra mancha mais ancha Se ocultava por trás E o rapaz pagava o malogro Com a vendeta do sogro Ou com a malícia dos mortais

“Oh meu pai, oh meu pai, por favor Condenai o nosso amor De langor e luxúria! Mas poupai, oh meu pai Nosso filho Da fúria do Senhor!”

O guri nasceu apressado Nem um mês de casado Tinha quem o gerou Quando o pai caiu nos infernos Foi nos braços maternos Que ele se dependurou

130 Quando a mãe caiu na sarjeta Foi seguindo a opereta Na garupa do avô Quando o avô caiu do cavalo Foi chorar no intervalo E mais um ato começou

Palhaço, corista Trapézio, dançarina Maestro, cortina É fé na flauta e pé na pista

A “Opereta do Casamento” é um pequeno tratado sobre a história burguesa a partir das relações entre o público e o privado discutidas da perspectiva dos ritos nupciais. São burgueses os costumes descritos na canção, assim como os valores neles implicados, e dizem respeito a um tempo já afastado na história, sobretudo o século

XVIII, que assistiu aos primeiros levantes burgueses que resultaram em mudanças sociais efetivas, mas também o XIX. A canção recupera esse dado temporal organizando o relato em forma de texto memorialístico. No entanto, presentifica o passado através da vivacidade da narrativa, que soa como uma história que corre de boca em boca. O domínio público, aliás, se vê figurado no coro misto que canta a canção. Pode-se dizer que a narrativa do casamento de Charlote e o clown deixou de ser particular e se tornou uma história coletiva, anônima e exemplar. Devido a esse fato, em parte, ao ouvir esta canção temos a impressão estar diante de um conto popular, de uma lenda. O fundo moral da história reforça a impressão de peça folclórica, colhida diretamente do baú sapiencial da tradição.

A história se divide em duas partes, entremeadas por um intervalo lírico. A primeira parte é composta por duas cenas: o casamento (retratado nas duas primeiras estrofes) e a apresentação da bandeira da noiva (o lençol conjugal) ‘após a noite primeira’

(narrada na terceira e na quarta estrofes). Como consta na própria letra da canção, ‘Era

131 um evento tamanho / A sagração nupcial,’ e nesse evento a figura em destaque era a noiva. Tanto é assim que ela é a única personagem referida de modo explícito nas três primeiras estrofes. A figura do noivo aparece apenas na quarta estrofe (segunda parte da segunda cena). O casamento e a apresentação da bandeira da noiva são descritos por contraste, através da comparação com o que poderia acontecer caso ambos os rituais não fossem seguidos à risca. As consequências passíveis de serem geradas pelo desrespeito às normas sociais, por parte dos noivos, são enumerados na canção (segunda e quarta estrofes):

Mas se houvesse algum embaraço Dera a moça um mau passo Quanto horror e desdém Ela ia parar no convento Ia dormir ao relento Ou deitar nos trilhos do trem

(...)

Mas se não houvesse tal mancha É que outra mancha mais ancha Se ocultava por trás E o rapaz pagava o malogro Com a vendeta do sogro Ou com a malícia dos mortais

Repare-se que a palavra ‘embaraço’ utilizada na segunda estrofe contém uma ambivalência fundada no duplo sentido da palavra que em português significa

‘constrangimento’ e em espanhol, ‘gravidez.’ O aspecto multicultural da expressão que funde o português e o espanhol, além de apontar para a origem comum dessas duas línguas e ser afim do universo circense, que é marcado pelo aspecto transnacional dos artistas, é também um modo de figurar o engenho discursivo do povo ao falar da vida alheia. A malícia idiomática dos mortais também desponta na expressão ‘mau passo,’ que

132 em linguagem figurada, significa a ação que causa o embaraço referido pouco atrás. As duas expressões (‘embaraço’ e ‘mau passo’), eufemismos a berrar nos aterros da canção, rimam e maliciosamente riem no som e no sentido. Na quarta estrofe o esquema das rimas se intensifica, introduzindo a rima interna (mancha-mancha-ancha). O requinte vem aí disfarçado em trajes de rima pobre. No entanto, repare-se que não se trata apenas de uma repetição sem sentido de sons, embora a sequência produza um efeito algo nonsense sobre o ouvinte. Mas a hipótese apresentada nos três primeiros versos da estrofe é encenada (figurativizada) na reiteração desses sons. A palavra ‘mancha’ é repetida literalmente e depois retorna na palavra ‘ancha’, que, nesse contexto, significa ‘maior’  repare-se na sutiliza da relação de sentido entre o significante, que fica menor, e o significado, que aponta o maior tamanho. Ora, a perda da consoante nasal bilabial /m/ faz da palavra ‘mancha’ uma palavra com sentido totalmente diferente. Entretanto os termos continuam ligados, uma vez que ‘ancha’ confere um atributo específico, de valor negativo, a ‘mancha’. A mancha que a tradição espera encontrar na bandeira da noiva tem valor positivo: significa que a noiva casou virgem. A mácula sobre o lençol, portanto, é um signo visual que confirma a perda da virgindade da noiva (‘virtude escarlate,’ ‘brasão de tomate’). No entanto, se o lençol fosse desfraldado e estivesse lívido, então, é porque a regra moral tinha sido transgredida. O segundo caso gera consequências drásticas para os noivos. A noiva é forçada a ir para um convento, a viver na rua ou se matar; ao noivo resta pagar o malogro com ‘a vendeta do sogro’ ou com ‘a malícia dos mortais.’

Até aqui a narrativa se desenrola de modo distanciado, o objeto sempre em terceira pessoa. Mas a quinta estrofe introduz um elemento novo: o sujeito deixa de ser a coletividade e dá lugar a um casal que se dirige a um interlocutor (o pai da noiva),

133 implorando-lhe que poupe o filho deles. O trecho, coerentemente, deixa de ser cantado pelo coro e o lugar é cedido aos dois solistas que desempenham o papel dos noivos.

Nesse intermezzo lírico, o ouvinte toma conhecimento de que o casal que está se dirigindo ao pai da noiva infringiu as normas, tendo mantido relações antes da sagração nupcial e, como fica evidente na estrofe seguinte, até mesmo gerado um filho que já estava a caminho. O trecho possui uma outra feição em relação às outras partes da canção e se destaca como um momento de parada, de intensa efusão lírica e dramaticidade. As tensões passionais atuam de maneira vigorosa e o sentido das palavras enlaça o sagrado e o profano. O trecho parece uma oração dirigida a dois sujeitos: o pai terreno e o Senhor do céu (esta ambiguidade aparece, por exemplo, na utilização de letras minúsculas para grafar a palavra pai e da maiúscula ao se escrever Senhor).31 Essa ambiguidade, como vimos, é um dos elementos centrais do poema de Jorge de Lima e se vê resgatado na canção. Os vocativos ‘oh meu pai, oh meu pai,’ acompanhados dos pedidos de condenação de si próprios e de poupar seu filho das penas previstas, assumem a forma da súplica religiosa.

Na sexta e na sétima estrofes a canção retoma as feições iniciais, mas com a presença de um novo personagem: o filho do casal (que no poema, lembremos, corresponde a Oto, que irá se casar com Lily Braun). A história narrada na primeira parte, então, é recontada a partir desse personagem. A transgressão cometida pelos noivos vem

à tona nos três primeiros versos:

O guri nasceu apressado Nem um mês de casado Tinha quem o gerou

31 Esse é um pequeno exemplo, mas bastante eloquente, do fato de que os cancionistas esperam que as canções não sejam apenas ouvidas, mas que também se acompanhe a letra e que se volte sempre ao poema de Jorge de Lima.

134

Encontramos aí, de modo explícito, a razão da fúria do pai da noiva que o casal tentou aplacar através da calorosa súplica do intermezzo: o fato de ter nascido um mês após o casamento. Os versos seguintes apresentam a sequência das medidas tomadas pelo avô do guri: primeiramente expulsou (ou matou?) o genro (que ‘cai nos infernos’); 2) em seguida expulsou de casa a filha (que ‘caiu na sargeta’); e, por último, 3) passou a cuidar do neto

(que ‘seguiu a opereta / Na garupa do avô’). Em vista desse desfecho, concluímos que o avô acatou as súplicas da filha e do genro: poupou o neto e os condenou.

O menino passou de braço em braço: do pai para mãe e desta para o avô. Mas um dia o avô ‘caiu do cavalo / E mais um ato começou.’ Nos versos seguintes apresenta-se a história de Oto:

O guri nasceu apressado

(...)

Foi nos braços maternos Que ele se dependurou

(...)

Foi seguindo a opereta Na garupa do avô

(...)

Foi chorar no intervalo E mais um ato começou

A sequência dos acontecimentos na vida do personagem são descritos através da perspectiva do menino, como podemos constatar através das imagens do referido trecho:

1) dependurar-se nos braços paternos e depois nos braços maternos; 2) seguir a opereta na garupa do avô; 3) chorar. O choro no final da sequência e a agilidade malabarística com

135 que o menino interage com os demais personagens sugere que a opereta seja, na verdade, um número circense, também melodramático, como a “Valsa dos clowns.” Poderíamos ainda perguntar: a imagem ‘caiu do cavalo’ significa que o avô morreu ou simplesmente que cai do cavalo durante o número? O choro do menino, nesses termos, também assume uma ambivalência: ele chora porque caiu do cavalo junto com o avô (ele estava em sua garupa) ou chora porque o avô morreu? Do nascimento até o momento em que ele perde o avô, o tempo passa-se numa velocidade vertiginosa, como se fosse um número de circo

(a própria letra, insistamos, dá margem para essa hipótese). De certa maneira, a canção contém duas histórias: a história de Charlote com o clown e a história de Oto. A canção também apresenta semelhanças musicais em relação a “Abertura do Circo” e “Na

Carreira.”

A História de Lily Braun

Como num romance O homem dos meus sonhos Me apareceu no dancing Era mais um Só que num relance Os seus olhos me chuparam Feito um zoom Ele me comia Com aqueles olhos De comer fotografia Eu disse cheese E de close em close Fui perdendo a pose E até sorri, feliz

136 E voltou Me ofereceu um drinque Me chamou de anjo azul Minha visão Foi desde então ficando flou

Como no cinema Me mandava às vezes Uma rosa e um poema Foco de luz Eu, feito uma gema Me desmilinguindo toda Ao som do blues

Abusou do scotch Disse que meu corpo Era só dele aquela noite Eu disse please Xale no decote Disparei com as faces Rubras e febris

E voltou No derradeiro show Com dez poemas e um buquê Eu disse adeus Já vou com os meus Numa turnê

Como amar esposa Disse ele que agora Só me amava como esposa Não como star Me amassou as rosas Me queimou as fotos Me beijou no altar

Nunca mais romance Nunca mais cinema Nunca mais drinque no dancing Nunca mais cheese Nunca uma espelunca Uma rosa nunca Nunca mais feliz

137 Todo mundo já ouviu a história. Um homem e uma mulher, por acaso, cruzam o caminho um do outro e passam a não ter mais dúvidas quanto ao fato de que o impossível

 amor à primeira vista  às vezes acontece. A partir de então são conduzidos, não sem tropeços, aos pés da santa cruz. Porém, ao primeiro sol da vida a dois, o encanto se desfaz e a roda do mundo os lança num cotidiano desencantado, no qual a única coisa que resta, talvez, é fincar raízes nos jardins do vivido.

Na canção, a história é narrada do ponto de vista da personagem feminina, Lily

Braun, e segue letra por letra o modelo acima. As imagens concatenam-se  a própria letra diz  ‘como num romance,’ ‘como no cinema.’ Trata-se de um discurso em primeira pessoa e isto explica as várias marcas formais relativas à primeira pessoa, mesmo quando a narradora se refere à terceira pessoa: ‘o homem dos meus sonhos,’ ‘me apareceu,’ ‘os seus olhos me chuparam,’ ‘ele me comia,’ ‘me ofereceu um drinque,’ ‘me chamou de anjo azul,’ ‘disse que meu corpo,’ ‘só me amava como esposa.’ Esse detalhe tem especial importância, pois está ligado a um aspecto figurativo da letra. A utilização dos possessivos aparece de modo acumulado no clímax da canção e depois não retorna mais:

Me amassou as rosas Me queimou as fotos Me beijou no altar

Não é por acaso que na estrofe seguinte não aparecem as personagens da canção, a não ser de modo indireto, através dos flashbacks detonados pelas palavras utilizadas anteriormente:

Nunca mais romance Nunca mais cinema Nunca mais drinque no dancing Nunca mais cheese

138 Nunca uma espelunca Uma rosa nunca Nunca mais feliz

Se nas outras estrofes os traços do discurso apresentavam as personagens como que fundidas uma na outra, representando com isso o envolvimento passional entre elas, nesta última sua ausência é notória. Nela predomina uma negatividade extrema. A palavra ‘nunca’ retorna de verso em verso, isolada ou como parte da expressão ‘nunca mais,’ além de ressoar na rima formada com ‘espelunca.’ O desencanto é total e a estrofe funciona como anti-clímax de diversas maneiras: pela monotonia melódica e harmônica, intensificadas pela repetição exaustiva da palavra ‘nunca’ e da expressão ‘nunca mais,’ pelo caráter fragmentário das imagens em contraposição à tensão narrativa das estrofes anteriores. Há, contudo, uma espécie de clímax de fundo nessa estrofe. É que a expressão

'nunca mais' forma com palavras pinçadas em estrofes anteriores, como foi dito, imagens desconexas. Essas imagens recontam, de um outro ponto de vista, a primeira parte da história.

Recapitulando, vimos que nas sete primeiras estrofes Lily Braun e Oto passaram por um percurso de crescente euforia, o qual culminou em seu casamento. Entretanto, a estrofe final ilumina de modo diferente o modo como a narrativa está organizada.

Observe-se que as seis primeiras estrofes são simétricas: a primeira, a segunda, a quarta e a quinta contêm sete versos cada uma; a terceira e a sexta, cinco versos. Elas formam, assim, as duas primeiras partes da canção  A (1-2-3) e B (4-5-6) , instaurando um padrão formal que se vê interrompido na sétima estrofe. Esta estrofe é seguida de uma parte instrumental. A oitava estrofe também segue o padrão das estrofes de sete versos, mas sua posição nega o padrão da primeira parte, o qual deveria se fechar por uma estrofe

139 de cinco versos. Peter Dietrich, em “A história de Lily Braun: valores de absoluto e de universo,” afirma:

Esta canção apresenta uma forma bastante complexa. Após uma introdução com solo de trompete, temos a apresentação  seguida da re- exposição  de um tema com a forma AAB. A partir deste ponto podemos perceber uma ruptura: o tema não será mais exposto da mesma maneira até o final da peça. Após uma pequena ponte, temos a reapresentação apenas das partes A, com variação (designada por A’  estudaremos este caso mais adiante). Depois de uma seção de improviso de guitarra, observamos um interlúdio orquestrado e o retorno da parte A’. A coda é composta por um solo orquestrado e vocalizes na região aguda. A forma da canção poderia ser representada pelo seguinte esquema:

intro - AAB - AAB - ponte - A’A’ - improviso - interlúdio - A’ - coda

A descrição formal da canção aponta para um fato muito curioso, do qual depende o sentido do todo: o padrão estrófico (melódico e harmônico) figurativiza duas etapas contraditórias da história de Lily Braun e Oto, ou seja, nas seis primeiras estrofes o jogo amoroso se dá conforme uma lógica passional, que desencadeia as estratégias da conquista amorosa e os momentos de atração e repulsa que a sedução implica. Esse jogo está representado na letra e segue um padrão tradicional de comportamento. O homem vê a mulher e passa a desejá-la. A mulher, por sua vez, idealiza e vê no homem o homem dos seus sonhos. Curiosamente, ela identifica desde o primeiro instante o olho predador desse homem, que deseja somente a posse do corpo (‘os seus olhos me chuparam / feito um zoom;’ ‘ele me comia / com aqueles olhos / de comer fotografia’). Depois desse primeiro encontro, o homem volta com uma nova estratégia (‘me ofereceu um drinque,’

‘me chamou de anjo azul.’) A partir de então incrementou gradualmente os signos com que tentava conquistar a mulher, enviando, de vez em quando, rosas e poemas. Mas o romance tem um momento de atrito, devido a uma noite de bebedeira (‘abusou do

140 scotch’), e o personagem perde a compostura (‘disse que meu corpo / era só dele aquela noite.’) A mulher, então, recua:

Xale no decote Disparei com as faces Rubras e febris

Oto então retorna e torna hiperbólicos os signos da conquista, oferecendo a Lily Braun

‘dez poemas e um buquê.’ A atriz, entretanto, o dispensa:

Eu disse adeus Já vou com os meus Numa turnê

Até esse momento o controle é mantido pela mulher. Sua estratégia é privar Oto de seu convívio. Entretanto, a história tem um desenlace inesperado e ele acaba conquistando Lily Braun. A partir de então, é a figura masculina que domina a relação. A ilusão romântica que ele causara na mulher através do oferecimento de rosas e poemas  ilusão que possibilitou a conquista amorosa  não se sustenta mais. O próprio casamento, por mais contraditório que pareça, consiste em uma das ações realizadas no sentido de destruir tal ilusão:

Como amar esposa Disse ele que agora Só me amava como esposa Não como star Me amassou as rosas Me queimou as fotos Me beijou no altar

O personagem não amava mais a parceira na condição de ‘star,’ justamente a condição afim da esperança que ela depositava no amor conjugal.

O princípio que entra em jogo, portanto, é a morte, simbolizada pela mudança do papel da mulher  de atriz a mulher. Isto não significa que ela tenha deixado a vida

141 artística de lado, como fica patente no próprio fato de ser ela quem canta a canção e narra a história. Um dos sentidos dessa mudança de papel na relação amorosa consiste na conversão do princípio de morte em princípio de realidade, quando anteriormente o papel de Lily Braun estava vinculado quase exclusivamente ao princípio de prazer.

Os diferentes papéis desempenhados pela personagem feminina também se aplicam ao personagem masculino. Antes de se casar ele de certa forma também era artista: escrevia poemas, enviava rosas, fotografava, ‘encenava’ perante a câmera de cinema. Os namorados viviam como num cinematográfico romance.

A forma da canção figurativiza, dizíamos atrás, esse percurso narrativo. A sétima e a oitava estrofes, que deveriam fechar a história com o tradicional happy end dos contos hollywoodianos de fadas de todos os tempos, cumprem um papel muito diferente. A ausência da estrofe de cinco versos  que nas outras partes continham as tensões que levavam adiante o processo da conquista amorosa  é substituída por um trecho instrumental, inserido entre as estrofes de sete versos e retomado novamente ao final. A falta do terceiro elemento gera monotonia, que reflete a narrativa. A monotonia sugerida pelas imagens vê-se redobrada na monotonia melódica, inflexão que indica a decomposição da história de Lily Braun, que pode ser descrita como uma história de um gradual desencanto amoroso, cujo percurso abrange a paixão inicial e se encerra na monotonia conjugal.

142 Meu Namorado

Ele vai me possuindo Não me possuindo Num canto qualquer É como as águas fluindo Fluindo até o fim É bem assim que ele me quer Meu namorado Meu namorado Minha morada É onde for morar você

Ele vai me iluminando Não iluminando Um atalho sequer Sei que ele vai me guiando Guiando de mansinho Pro caminho que eu quiser Meu namorado Meu namorado Minha morada é onde for morar você

Vejo meu bem com seus olhos E é com meus olhos Que o meu bem me vê

A canção “Meu namorado,” ao agregar amor profano e amor místico, assemelha- se ao célebre Cântico dos Cânticos, poema bíblico erroneamente atribuído a Salomão.

Nele a história de amor passada entre um casal jovem serve como símile ao amor de Deus pelo povo escolhido.32 O poema33 lança mão de imagens provindas do universo pastoril,

32 Na verdade, há quatro diferentes interpretações do poema (alegórica, cultual, dramática e naturalista): “1. A interpretação alegórica remonta ao menos ao séc. I d.C. e neutraliza o escândalo desta poesia erótica. Interpreta as relações entre o jovem e a moça quer de maneira histórica, quer mística. No primeiro caso, duas possibilidades se apresentam: ou se trata do confronto entre o povo de Deus e outro povo, em algum momento da história, ou então se trata da relação entre o Senhor e seu povo. A interpretação mística oferece também dois caminhos: um, coletivo, que diz respeito a Deus e Israel, Cristo e a Igreja ou Cristo e a Humanidade; o outro, individual, relacionando Deus ou Cristo e a alma huma, ou mesmo o Espírito Snto e Maria, ou ainda, Salomão e a Sabedoria. 2. A interpretação cultual vê no Cântico a tradução de uma liturgia pagã do Oriente Médio em honra de um deus que morre e vai aos ínferos procurar sua amante, a deusa do amor e da guerra: eles são representaos pelo rei e pela grã-sacerdotisa, cujo casamento sagrado simboliza a união e provoca a renovação da fecundidade no Ano Novo. Também aqui esvazia-se de certo modo o escândalo do erotismo, porque a união sexual não tem finalidade em si mesma, mas está a serviço de uma

143 ligado ao modo de vida dos primeiros judeus. A canção reaproveita esse aspecto estilístico, utilizando imagens do mundo natural, como as águas de um rio, ‘fluindo até o fim.’ Além da metáfora composta a partir da imagem da natureza, fica sugerido o nomadismo de uma sociedade que depende da atividade pastoril. Essa ideia encontra-se na imagem do amado (pastor) como o guia da amada (rebanho).

No que diz respeito ao poema de Jorge de Lima, o sujeito do discurso corresponde

à filha de Oto e Lily Braun  Margarete. Na canção, a personagem revela, em êxtase, sua completa entrega ao Namorado. Entrega de tal modo completa, que o ele é ao mesmo tempo objeto e interlocutor, como podemos confirmar na estrutura híbrida das duas estrofes e no jogo de espelhos da coda. As estrofes são formadas a partir da justaposição de um momento explicativo, no qual a amada relata a maneira como o namorado a causa religiosa. Essa liturgia teria sido adaptada à teologia de Israel, assim como a festa agrária dos Pães sem Fermento foi reinterpretada para exprimir a fé histórica da Páscoa. 3. A interpretação dramática aceita a realidade sexual do Cântico, mas esvazia aquilo que teme ser escândalo, trazendo para o primeiro plano a fidelidade, sobretudo se há aqui não dois, mas três personagens:assiste-se ao drma da pastorinha fiel ao seu pastor a despeito de Salomão, que a quer raptar. Projeta-se sobre o apetite erótico inegável descrédito. 4 A interpretação naturalista vê no Cântico uma coletânea de canções de amor, ao modo das canções de amor egípcias ou de cantos populares árabes, ou sujeita a uma ordenação conforme o esquema das núpcias sírias que se realizavam ainda no fim do século passado na Transjordânia e no Líbano. Alguns vêem noCântico nada mais que uma composição literária profana. Outros falam do sentido moral de um amor honesto. 5. Pode-se talvez propor uma quinta interpretação, levando em consideração vários elementos das anteriores. Os dois grupos de teses mencionados se confrontam da seguinte maneira: para 1 e 2, o sentido primeiro é sagrado e alegórico, e ao esquecer-se este sentido cai-se numa leitura sexual e profana; para as teses 3 e 4, o sentido primeiro é sexual e profano, mas para evitá-lo recorre-se à alegoria. Contudo, é bem possível que o amor de que fala o Cântico seja ao mesmo tempo sexual e sagrado, e a negação de um destes dois aspectos teria conduzido, num caso, ao sentido profano e, no outro, ao sentido alegórico. Nesta hipótese, o Cântico descreve o amor humano como tendo um fim em si mesmo, na boa obra que é a criação de Deus  quase como um comentário a Gn 2,23-24. Para tanto, o Cântico incorpora mais ou menos conscientemente os elementos da liturgia pagã do casamento sagrado, mas desmitizando-os radicalmente, a fim de mostrar que o verdadeiro papel do amor não é unir religiosamente a terra ao céu, mas sim unir duas criaturas que Deus criou complementares. E ele descreve este amor carnal autêntico (Pr 2,16-17; Ml 2,14) com a linguagem da aliança, para mostrar no amor de Deus para com seu povo o modelo de todo amor humano  da mesma forma como Paulo o dirá em Ef 5,25. Destarte, o sentido espiritual do Cântico está no seu sentido literal, ao descrever o amor humano na linguagem do amor divino, para demitizar o amor pagão.” (A Bíblia, São Paulo, Edições Loyola, 1995, 844.)

33 “A linguagem e o estilo parecem bastante tardios e fazem pensar na época persa (séc. V a.C.) ou mesmo no período helenístico (séc. III). Por outro lado, é preciso ressaltar o grande número de arcaísmos. Destarte é possível que o Cântico, mesmo se de composição tardia, contenha elementos antigos. Entretanto, seu autor certamente não é Salomão.” (A Bíblia, 845)

144 conquista, e um momento vocativo, no qual a amada se dirige diretamente ao amado, selando os votos de compromisso e entregando-se a ele (‘minha morada / é onde for morar você’). Na coda, o espelhamento entre o olhar dos amantes forma a figura da união espiritual, que se dá através da contemplação mútua, momento de suspensão de tudo o que está envolta e realização de uma total concentração no eflúvio amoroso. Nesse momento, os amantes tornam-se um, retomando a velha imagem platônica do amor perfeito. É por isso que o contato se dá de um modo que dispensa o contato físico  o olhar. Até nisso, o hibridismo das estrofes se confirma. As imagens do começo referem- se ao amor carnal, como sugere um dos sentidos do verbo ‘possuir,’ isto é, intercurso sexual. Chico Buarque, aliás, utiliza esse mesmo verbo na canção “O meu amor,” da

Ópera do Malandro. A semelhaça, por oposição, entre essas canções é surpreendente. O amor carnal contém várias imagens ligadas ao prazer e à violência (traço freyriano das canções de Chico). Nas imagens de “Meu namorado” não há nenhuma referência à violência, a não ser se entendermos como violência o excesso de delicadeza e sublime implicadas entre os namorados da canção e do poema bíblico.

A vida da personagem, portanto, oscila entre pensar no amado e a ele dirigir-se, do que resulta um estado de perene comunhão, um êxtase perpétuo, gozo místico. Nesse sentido, podemos dizer que o êxtase de Margarete se dá sob a forma de um tipo inusitado e paradoxal de arrebatamento  um arrebatamento sereno. No entanto, a forma que o

êxtase assume na canção aproxima-se de um outro ideal místico, vindo à tona junta com o cristianismo: o estilo humilde. A figura paradigmática desse novo ideal, para além de

Cristo, é São Francisco de Assis. E também uma santa católica profundamente ligada ao imaginário brasileiro e aos nossos poetas modernistas, Santa Teresinha:

145 Para o modernismo brasileiro, que procurava interiorizar todos os aspectos da realidade nacional, dando-lhe uma presença viva, através da recriação da linguagem, a projeção da figura de Santa Teresinha na sentimentalidade popular foi da maior importância.34

Jorge de Lima, ao que parece, foi o primeiro a referir-se à santa utilizando o diminutivo. Bandeira, Drummond, Murilo Mendes e Ribeiro Couto, para citar apenas alguns, também lhe renderam homenagens poéticas. Este último, tendo recebido uma graça  a cura da tuberculose , escreveu um livro sobre ela. Entre os modernistas, talvez seja Manuel Bandeira o poeta que mais se associa ao ideal teresiano do caminho pequeno, fato que se pode verificar em seu estilo humilde, que, entre outras coisas, busca desentranhar da linguagem coloquial o sublime.

Chico Buarque é leitor de Manuel Bandeira  que chegou a conhecer pessoalmente  e suas canções possuem fortes vínculos com o imaginário do poeta.

Além disso, há um outro poeta, o qual, aliás, responsável pela apresentação de Chico a

Bandeira, que também compartilha o ideal teresiano e franciscano de humildade: Vinicius de Moraes. E sua poesia liga-se diretamente à canção que estamos considerando.

“Minha namorada” é uma das canções mais conhecidas de Vinicius e foi feita em parceria com Carlos Lyra. Considero esta canção, a partir do título, um duplo da canção de Edu e Chico. Embora a letra não seja parecida em termos formais, nem a melodia dela se aproxime, o modo como o eu lírico se dirige à mulher e o que ele espera dela é muito semelhante ao da canção que estamos analisando. Na canção de Edu e Chico, a imagem

‘ele vai me guiando / guiando de mansinho / pro caminho que eu quiser’ revela uma total delicadeza: não há nenhum tipo de violência por parte do amado em relação à mulher; é ela quem escolhe os caminhos (como o rebanho os pastos). A letra da canção de Vinicius

34 Alexandre Eulalio, “Presença de Santa Teresinha nas letras e artes no Brasil,” Remate de Males. 132.

146 e Carlos Lyra, por sua vez, diz coisas semelhantes, mas do ponto de vista masculino. Eis a letra da canção:

Se você quer ser minha namorada Ai que linda namorada Você poderia ser Se quiser ser somente minha Exatamente essa coisinha Essa coisa toda minha Que ninguém mais pode ter Você tem que me fazer Um juramento De só ter um pensamento Ser só minha até morrer E também de não perder esse jeitinho De falar devagarinho Essas histórias de você E de repente me fazer muito carinho E chorar bem de mansinho Sem ninguém saber porque

E se mais do que minha namorada Você quer ser minha amada Minha amada, mas amada pra valer Aquela amada pelo amor predestinada Sem a qual a vida é nada Sem a qual se quer morrer Você tem que vir comigo Em meu caminho E talvez o meu caminho Seja triste pra você Os seus olhos tem que ser só dos meus olhos E os seus braços o meu ninho No silêncio de depois E você tem de ser a estrela derradeira Minha amiga e companheira No infinito de nós dois

Os pontos de contato são tantos, que é possível pensar na canção de Edu e Chico como uma canção-resposta, a qual, num plano virtual, formaria ao lado da canção de partida (“Minha namorada”) um texto que recuperaria o Cântico dos Cânticos enquanto totalidade, uma vez que apresenta figuradamente o diálogo dos amantes nele contido. O

147 procedimento da canção-resposta não é inédito na história da música popular brasileira:

“Dom de iludir” (“Pra que mentir”), “Sampa” (“Ronda”), “Eu preciso aprender a só ser”

(“Eu preciso aprender a ser só”), entre tantas outras. Os próprios Edu e Chico fizeram canções desse tipo: “Bancarrota blues” (“Quem dá mais”), “Nego maluco” (“Nega maluca”) etc. O jogo entre profano e sagrado também permite relacionar a canção ao universo das cantigas medievais galego-portuguesas, uma vez que elas, sobretudo as cantigas de amigo, conjugavam a voz de um eu lírico feminino, elementos bucólicos e visão religiosa.

Em relação ao poema “O grande circo místico,” a canção introduz um desdobramento narrativo dissonante, uma vez que retrata a personagem em um momento de êxtase: a conversão de Margarete e o tempo que ela passou junto ao “namorado” antes de revelar à família sua vocação religiosa. Não fosse assim, a canção não teria como se fundar no valor da serenidade. Como vimos, a partir do momento que o pai a proíbe de abandonar o circo, Margarete começa a passar por uma espécie de martírio: 1) continuar sendo artista; 2) ter de se casar; 3) ser violentada e conceber; 4) dar à luz duas filhas gêmeas.

A Bela e a Fera

Ouve a declaração, oh bela De um sonhador titã Um que dá nó em paralela E almoça rolimã O homem mais forte do planeta Tórax de superman Tórax de superman E coração de poeta

148

Não brilharia a estrela, oh bela Sem noite por detrás Tua beleza de gazela Sob o meu corpo é mais Uma centelha num graveto Queima canaviais Queima canaviais Quase que eu fiz um soneto

Mais que na lua ou no cometa Ou na constelação O sangue impresso na gazeta Tem mais inspiração No bucho do analfabeto Letras de macarrão Letras de macarrão Fazem poema concreto

Oh bela, gera a primavera Aciona o teu condão Oh bela, faz da besta fera Um príncipe cristão Recebe o teu poeta, oh bela Abre teu coração Abre teu coração Ou eu arrombo a janela

Como o próprio título sugere, esta canção dialoga com o conto popular homônimo e refere-se à cena entre Margarete e Rudolf, o boxeur. O conto e o poema, contudo, possuem programas narrativos diversos. No conto, a Bela, após uma longa fase de medo e repulsa, afeiçoa-se pela Fera e acaba se apaixonando por ela, o que conduz a história para um final feliz, tendo inclusive, em seu desfecho, a metamorfose da Fera, que na verdade era um príncipe encantado. No poema, a distância entre os personagens não é ultrapassada nem mesmo através da violência (‘estupro,’ ‘conversão’ e ‘morte’). Todos esses processos não produzem o efeito de união entre Margarete e Rudolf, que, como sabemos, não acabam juntos, a ser não através de suas filhas, consequência do estupro.

149 Quando é violada, Margarete já está casada com o trapezista Ludwig, o que de certo modo exponencializa a violência, uma vez que a personagem também é violada por ter que se manter casada mesmo tendo anunciado sua conversão e o desejo de abandonar a vida secular.

Talvez o elemento em comum que mais se destaca entre Margarete e Rudolf sejam as transformações que o contato entre eles acarreta. A concepção de Margarete, seguida da conversão e da morte do homem-fera figuram o desenvolvimento narrativo implicado no poema. Essas transformações, observe-se, não ocorrem sem violência. A truculência da fera está presente na forma como se dirige à bela, culminando na ameaça anunciada no final da canção:

Abre teu coração Ou eu arrombo a janela

A declaração amorosa contida no primeiro verso da canção assume, portanto, um acento negativo. Essa passagem se insinua em toda a extensão da letra e da música, em signos que comportam as imagens poéticas e os aspectos melódico-harmônicos. Nesse sentido, um aspecto musical que chama atenção para a extrema truculência da fera é a repetição exaustiva de uma mesma melodia e de uma mesma harmonia durante as quatro estrofes. A monotonia dessa repetição praticamente sem variações figura a insistência com que a fera assedia a bela. A modulação que ocorre na terceira estrofe não quebra a monotonia, intensifica-a, conferindo um tom de exclamação ainda mais áspero à voz da fera. Do ponto de vista da letra, a lógica de contrastes com que a fera argumenta desnuda o enlace entre o galanteio e a violência. No entanto, as imagens utilizadas por Rudolf fazem parte de um vocabulário contraditório, feito da mistura entre brutalidade e

150 delicadeza, figurando a todo instante o estado de conjunção que o sujeito do discurso espera que se realize. Os contrastes aparecem no próprio modo como se apresenta:

Ouve a declaração, oh bela De um sonhador titã Um que dá nó em paralela E almoça rolimã O homem mais forte do planeta Tórax de superman Tórax de superman E coração de poeta

Os contrastes são muitos. Dos atributos psicológicos ‘um sonhador titã’ aos físicos ‘tórax de superman e coração de poeta,’ encontramos as dualidades que caracterizam o homem-fera. A capacidade mágica e abstrata de ‘dar nó em paralela’ se contrapõe, por sua leveza e encantamento, à rudeza de ‘almoçar rolimã.’ Temos aí, lado a lado, uma dissonância formada a partir da capacidade de formar imagens como a da miniscata, o símbolo matemático do infinito (que se deve ao engenho humano) e a capacidade de mastigar e digerir rolimã (relacionada à fera). As duas imagens, contudo, são imagens que representam a anormalidade do personagem que as realiza. Os acentos valorativos variam do positivo ao negativo conforme o ponto de vista, uma vez que ambas ações podem ser vistas como números de circo. Tais números, inclusive, lembram os artistas ambulantes que realizam números bizarros como os comedores de gilete, os engolidores de espadas e pregos, os cuspidores de fogo etc. A imagem do ‘sonhador titã’ ecoa no ‘tórax de superman’ e no ‘coração de poeta,’ uma vez que ao titã e ao superman

 que, aliás, rimam  se associa a imagem da força sobrenatural, incomum, e ao sonhador e ao poeta, a figura da imaginação sobrenatural, incomum. Em outras palavras, a fera está expondo seus atributos à bela. Tais atributos consistem na força física (‘o homem mais forte do planeta’) e no engenho intelectual, justamente duas categorias que

151 não costumam associar-se. Entretanto, conforme fica implícito pelas comparações que aparecem na sequência, os atributos que a fera expõe não dizem respeito à ausência de beleza em sua fisionomia. Eis aí um elemento trágico da psicologia da fera: sua aparência, apesar de sua força física e sua capacidade poética, afasta a bela. Acentuando drasticamente a tragicidade da situação, a bela não está interessada no aspecto físico ou intelectual de ninguém, seja do homem-fera ou de qualquer outro ser humano, uma vez que seu ‘namorado’ encontra-se no plano espiritual (daí ela também repudiar seu marido,

Ludwig).

Depois de se apresentar, a fera passa a estabelecer conexões entre imagens contrastantes, a fim de convencer a bela, da imagem central da canção:

Tua beleza de gazela Sob o meu corpo é mais

Esta imagem, assim como as outras imagens da canção, apresentam um significativo teor bucólico  e esse fato talvez seja a indicação de mais um dos artifícios da fera. Além do atributo com que define a beleza da amada (‘beleza de gazela’), há também:

Não brilharia a estrela, oh bela Sem noite por detrás (...) Uma centelha num graveto Queima canaviais (...) Mais que na lua ou no cometa Ou na constelação

Esses elementos contrastantes, além de funcionarem como lógica de sedução, contêm uma ponta de declarada ironia, que faz parte da inteligência aguda e da psicologia conturbada da fera. A ironia comparece, por exemplo, na observação aparentemente distanciada mas repleta de mordacidade:

152 Quase que eu fiz um soneto

O fato é que a fera não fez um soneto, embora afirme ter coração de poeta e se declare por imagens. Sua disposição não estava voltada para a escrita e sua verve oratória é empregada em função de seduzir a bela. Fazer um soneto seria equivalente a colocar seu desejo no plano dos sentimentos sublimes. A fera escarnece desse tipo de ideal e sua retórica volta-se inteiramente para a realização do desejo material. Outro argumento que ele utiliza para figurar seu desprezo pelo amor sublime e reforçar seu foco sobre o plano da atração física está contido nesta observação:

No bucho do analfabeto Letras de macarrão Letras de macarrão Fazem poema concreto

O soneto e o poema concreto, que ele seria capaz de fazer mas recusa, representam um ideal amoroso ao qual ele não se liga. Por isso ele zomba (como no conto popular) de todo sentimento elevado que possa lhe ocorrer. A seus olhos é um absurdo o fato de quase ter feito um soneto, assim como é insólito o poema concreto feito no bucho do analfabeto. Dessa vez a fera utiliza a figura de um terceiro, o analfabeto, como forma de indicar pejorativamente o tipo de experiência que leva alguém a escrever um poema, experiência longe da qual ele, homem-fera, espera manter distância. Um dos modos mais refinados da tradição poética (o poema concreto) é associado a uma imagem escatológica.

Há uma certa rudeza no modo da fera valorizar a poesia, segundo a qual o soneto é superior ao poema concreto. Tanto é assim que, no momento em que se viu balançado pela bela, quase fez um soneto. Mas depois, quando caiu em si, e focalizou sua atenção na tarefa de seduzi-la, lançou mão de um outro ideal estético para realizar a imagem negativa. A agressividade também está presente na expressão ‘no bucho do analfabeto,’

153 que guarda conexões com um linguajar popular ligado ao grotesco e à condição de miséria e alienação de vários segmentos da sociedade. Observe-se ainda, que a oposição gerada entre ‘analfabeto’ e ‘poema concreto.’ A condição de analfabeto impede a realização do poema e, contudo, o poema se realiza em suas entranhas a partir da ingestão do alimento. E aí encontra-se mais uma das sutilezas surpreendentes da fera. Porque, para lá do aspecto escatológico do trecho, aparece aí um forte elemento de crítica social. O analfabetismo, como sabemos, está associado de maneira radical à questão da fome e da exploração. A fera está dizendo, por inversão do dito popular, que ‘literatura enche barriga.’ A questão é que, no caso, a literatura é identificada ao próprio alimento.

Bastariam esses aspectos para considerarmos excelente a associação, altamente ambígua e, portanto, plena de poeticidade. Mas a fera vai além: utiliza a imagem como forma de se referir à própria situação em que se encontra. Em outras palavras, não quer fazer poemas

à bela, mas ‘comê-la.’ Esse fato carrega a imagem de conotações antropofágicas. Não me refiro à antropofagia moderna, mas à romântica, imaginada por nossos primeiros baudelairianos.

Antonio Candido, em um ensaio que estuda a maneira como uma geração de poetas românticos brasileiros leu e incorporou Baudelaire, cita um soneto de Carvalho

Júnior, intitulado “Antropofagia,” que se relaciona diretamente ao tipo de imagem que a fera está utilizando:

Mulher! ao ver-te nua, as formas opulentas Indecisas luzindo à noite sobre o leito, Como um bando voraz de lúbricas jumentas Instintos canibais refervem-me no peito.

Como a besta feroz a dilatar as ventas Mede a presa infeliz por dar-lhe o bote a jeito, Do meu fúlgido olhar às chispas odientas

154 Envolvo-te e, convulso, ao seio meu te estreito:

E ao longo do teu corpo elástico, onduloso, Corpo de cascavel, elétrico, escamoso, Em toda essa extensão pululam meus desejos,

 Os átomos sutis,  os vermes sensuais, Cevando a seu talante as fomes bestiais Nessas carnes febris,  esplêndidos sobejos!

Antonio Candido observa, ainda:

A equiparação do desejo a animais ferozes foi indicada por Péricles Eugênio da Silva Ramos como própria do nosso Realismo Poético. Nós a encontramos com efeito em outros poetas do tempo, como Teófilo Dias e Fontoura Xavier, baudelairianos mais completos e matizados, além de poetas melhores que o seu amigo Carvalho Júnior. E, para seguir falando nessa curiosa tendência, extrapolação do modelo baudelairiano, lembremos que a sua manifestação mais vistosa é “A Matilha,” de Teófilo Dias  uma caçada simbólica onde os cães do desejo, lançados numa carreira desenfreada, alcançam afinal a presa, isto é, a posse, numa imagem que deixa expostas as componentes de violência do amor, quando

(...) da presa, enfim, nos músculos cansados, Cravam com avidez os dentes afiados.

Mas o ponto culminante é alcançado por Fontoura Xavier (poeta que sempre teve gosto pelo humorismo), ao explorar a ambiguidade contida em português no verbo “comer”  ao mesmo tempo alimentação e ato sexual. A tensão erótica de Carvalho Júnior e Teófilo Dias (que incorporam as pulsões de Baudelaire) se abre aqui em piada franca e, ao mesmo tempo, expressiva como manifestação de uma certa lógica poética que vai até o nonsense. O poema (composto provavelmente entre 1876 e 1878) se chama “Roast-beef” (como ainda se escrevia “rosbife”), e depois de ter descrito o esplendor carnal da mulher, num verdadeiro desafio às normas românticas, conclui por um verso inesperado e divertidíssimo:

E sinto fervilhar-me o pego dos desejos De um Tântalo faminto em face de um roast-beef!

Com relação a esta tendência que poderíamos chamar canibal ou (com base no soneto de Carvalho Júnior, e sem nenhuma referência ao sentido que o termo viria a adquirir no Modernismo) antropofágica, lembremos que na obra de Baudelaire o verbo manger aparece, com ambiguidade que lembra as conotações portuguesas, pelo menos em dois contextos, de violência crescente:

155

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine Qui vous mangera de baisers. (“Une charogne”)

Ainsi qu’un débauché pauvre qui baise et mange Le sein martyrisé d’une antique catin. (“Au lecteur”)

Enquanto o primeiro caso corresponde a uma locução corrente em francês, o segundo é mais raro e evoca os elementos sádicos d’As flores do mal, podendo ter estimulado a hipertrofia do amor-devoração, entendido em vários planos de significado, que ocorre no Realismo Poético brasileiro. (1989, 329-331)

Além da imagem do amor-devoração, a terceira estrofe contém mais uma forma de agressividade:

O sangue impresso na gazeta Tem mais inspiração

Esses versos funcionam como uma espécie de ameaça velada à bela. Quando a imagem surge, em meio às comparações, ocasiona um aumento de tensão entre o emissor e a interlocutora, que a essa altura parece estar acuada. Qual o sentido da imagem? O homem-fera está ameaçando a vítima com a imagem do crime que cometeria contra ela própria?

Na próxima estrofe, a bela se vê cada vez mais sem espaço. Esse fato é figurado pelas repetições do vocativo. Enquanto na primeira e na segunda estrofes o vocativo aparece apenas nos versos inciais  e na terceira estrofe não se inclui nenhum vocativo

, na última estrofe o vocativo aparece três vezes. Nessa estrofe, é retomado o modo imperativo com que a canção se abre. A enumeração se dá conforme uma tensão crescente: gera, aciona, faz, recebe, abre, abre. Todas as imagens se sintetizam na última ordem: ‘abre teu coração.’ A esse fim, relacionam-se: ‘gera a primavera,’ ‘aciona o teu

156 condão,’ ‘faz da besta fera / um príncipe cristão,’ ‘recebe o teu poeta’ e, por duas vezes,

‘abre teu coração.’ Essa sequência de ordens, que se confundem com o pedido, culmina com um último contraste. A ambiguidade entre ‘pedir’ e ‘ordenar’ se desfaz quando o homem-fera conclui, com o verso ‘ou eu arrombo a janela.’ A bela, portanto, não tem escolha. O encurralamento da vítima vem figurado na aceleração dos vocativos, na repetição das ordens-pedido, e na intensificação das imagens com que a fera tenta iludi- la. Todas as imagens, aqui são guardam valores positivos: a primavera, o condão, a transformação da besta fera em príncipe cristão, o poeta, o coração aberto. Há um elemento do conto de fadas que aparece aí: a metamorfose da fera em príncipe. Esse argumento é um dos mais contundentes, uma vez que se liga ao ideal religioso da bela. A forma condicional com que o discurso se organiza representa o próprio ato cometido.

Margarete é estuprada. Entretanto, o feitiço volta-se contra o feiticeiro e tudo o que a fera pediu à bela aconteceu. Margarete ‘recebeu o poeta’ (foi estuprada), ‘acionou seu condão’ (o homem-fera se converteu) e ‘gerou a primavera’ (concebeu as gêmeas). O coração do homem-fera, portanto, que ‘se abriu’  como na imagem da “Valsa dos clowns”  em sentido duplo. O crime passional que a fera anunciava versos atrás recai sobre ela própria, de modo sobrenatural. A centelha (a bela) queimou canaviais (a fera).

A estrela (a bela) brilha sob a noite (a fera).

Essa refração que termina pela aniquilação da fera tem sua contrapartida numa segunda etapa do martírio de Margarete. Ela dará à luz duas meninas. A violação de sua castidade, entretanto, não anulou sua vocação mística. Ao contrário, intensificou-a. Na canção seguinte, “Sobre todas as coisas,” ela sofrerá novo assédio, o qual no entanto não chegará a se realizar.

157 Sobre Todas as Coisas

Pelo amor de Deus Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém Abandonado pelo amor de Deus

Ao Nosso Senhor Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor Se tudo foi criado  o macho, a fêmea, o bicho, a flor Criado pra adorar o Criador

E se o Criador Inventou a criatura por favor Se do barro fez alguém com tanto amor Para amar Nosso Senhor

Não, Nosso Senhor Não há de ter lançado em movimento terra e céu Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel Pra circular em torno ao Criador

Ou será que o Deus Que criou nosso desejo é tão cruel Mostra os vales onde jorra o leite e o mel E esses vales são de Deus

Pelo amor de Deus Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém Abandonado pelo amor de Deus

“Sobre todas as coisas” encena os apelos de Ludwig, o trapezista, que, inconformado com o repúdio da mulher  Margarete , insiste para ela ceder. Na versão do balé, a sequência do poema encontra-se alterada, uma vez que a personagem é violada depois que o marido se afasta. Uma outra diferença consiste no fato de que

Ludwig desiste de ter relações íntimas com a esposa depois que ela tatua o corpo. Na canção não há referências a esse fato e a ênfase recai sobre a atitude cerceadora do

158 marido. Mais uma vez, portanto, Margarete se vê assediada. Mas dessa vez o sedutor lança mão de um discurso ainda mais perverso que o do homem-fera, ou seja, um discurso construído a partir de argumentos místicos, os quais, utilizando as mesmas armas com que a vítima se defenderia, enuncia-se como irrefutável. Nesses termos, as canções de Edu e Chico e o poema de Jorge de Lima possuem um lastro insólito mas efetivo com os poetas metafísicos ingleses: o ‘sensuous thought.’35 Além disso, trata-se de uma canção onde um erotismo refinado (e velado) vincula-se a uma fremente súplica de amor, como notou Adélia Bezerra de Meneses (2006, 96). Por isso, nessa canção a personagem não é vítima da truculência masculina em termos de violência física. Mas certamente sofre uma forte pressão psicológica, comparável, talvez, a uma requintada e angustiante tortura psicológica. O homem não demonstra o menor escrúpulo ao empregar os nomes de Deus em vão, isto é, como instrumento de sedução. Sua perversidade formula equações lógicas de forma aguda e complexa, reconfigurando imagens bíblicas aparentemente em função da realização estrita de seu desejo de possuir a mulher.

Exemplo disso é a variação do sentido da expressão ‘pelo amor de Deus.’ Na primeira vez em que a expressão se vê utilizada, logo no primeiro verso da canção, tem o sentido de uma invocação. Quando ela reaparece, no final da estrofe, no verso

35 Aíla de Oliveira Gomes, experiente e conceituada tradutora, afirma, na esteira de T. S. Eliot: “Mesmo os poemas de mais genuíno caráter lírico dos grandes metafísicos são marcadamente argumentativos. Nem por isso, entretanto, pode-se chamar a seus autores, enquanto poetas, de intelectuais, pois não se trata, em suas obras, de uma intelectualidade expressa em versos, mas de pensamentos ou raciocínios embebidos de vivência emocional, de sensualidade, ou de contemplação poética  uma coisa gerando outra. Em poetas antes vistos como frios e excêntricos intelectuais, Eliot descobre um amálgama muito típico de paixão e pensamento; demonstra que na obra deles o que é ordinariamente captável apenas pelo intelecto é trazido para a apreensão dos sentidos, assim o que é ordinariamente apenas sentido torna-se matéria de pensamento, sem deixar de ser sentimento. Tal como os dramaturgos-poetas da época imediatamente anterior, ou contemporâneos deles, os poetas metafísicos, observa Eliot, ‘uma sensibilidade capaz de devorar qualquer espécie de experiência.” O homem comum ‘apaixona-se ou lê Spinoza, e estas experiências nada têm a ver uma com a outra, ou com o ruído da máquina de escrever, ou com o odor que vem da cozinha; entretanto, na mente do poeta perfeitamente equipado para seu mister, tais experiências estarão sempre formando todos.” (11)

159 ‘Abandonado pelo amor de Deus,’ a expressão assume um significado completamente diferente: veicula a imagem do sujeito abandonado por Deus e pela mulher. Nos dois casos, entretanto, a expressão é ambígua, alternando as funções sintáticas entre o vocativo (interjeição) e o predicado (objeto indireto). Os valores semânticos também oscilam: do apelo exclamativo em tom negativo de advertência e do objeto designado (o amor de Deus) que, segundo a lógica do piropeiro, não deveria, a rigor, afastar de si a mulher. A música reforça essas oscilações através dos acentos entoativos da curva melódica, os quais possuem semelhança tanto com a exclamação quanto com a afirmativa.

Ainda na primeira estrofe, o sujeito da canção tenta convencer a interlocutora lançando mão de uma pergunta que expõe uma situação duplamente disjuntiva: 1) a distância entre marido e mulher (expressa pela falta de intimidade física); e 2) a distância entre a mulher e Deus, causada por sua conduta supostamente pecaminosa (o repúdio do marido). Através do espelhamento entre os olhares de Deus e da mulher, o homem apresenta a questão:

Pelo amor de Deus Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém Abandonado pelo amor de Deus

Segundo a lógica expressa nessa estrofe, a mulher, por estar cega, é duplamente contraditória: não vê o pecado (‘desprezar quem lhe quer bem’) e não vê a reação de

Deus (que ‘até fica zangado’) perante o pecado de ter abandonado alguém por ‘amar a

Deus.’ Nas contradições também ocorre o espelhamento que se dá entre os olhares. O argumento é extremamente malicioso, pois, para convencer a mulher, revela, de um ponto

160 de vista ubíquo, o que ela não consegue ver por si própria. A ubiquidade, entretanto, não se relaciona ao olhar de Deus, mas ao olhar do próprio homem, que, como em Jorge de

Lima, afirma implicitamente: “Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria.” (1997, 351) Isto nos leva a crer que ele utiliza a própria ubiquidade como instrumento de sedução, uma vez que sua observações-perguntas também transmitem para a mulher o poder do olhar abrangente. Desse modo, o sujeito estabelece uma primeira aproximação, que, apesar de simbólica, de certa maneira coloca marido e mulher em pé de igualdade. Ele, portanto, realiza, no plano do discurso, o desejo de conjunção com a mulher.

Sob o olhar masculino, portanto, o pecado da mulher assume vastas proporções, equiparando-se aos pecados capitais. Isto gera a intensidade dramática do argumento e em contrapartida, apesar do tom escuro e da gravidade da exposição, descortina-se, ao fundo, a possibilidade da reparação do erro, sobretudo pela alteração da olhar feminino, que deixa de ser ingênuo e passa a ocupar a posição dos que sabem distinguir entre o bem e o mal. Impossível não lembrar, nesse momento, do episódio bíblico da tentação de Eva

(Gênesis), que parece estar cifrado na canção. Conforme esse episódio, Adão e Eva tomam conhecimento de sua nudez somente após comer o fruto proibido. Como sabemos, o fato de cobrir as partes íntimas diante de Deus é o indício através do qual Ele descobre o pecado cometido pelo casal e imediatamente os expulsa do paraíso.

O pecado da mulher, tal como definido pelas observações masculinas, consiste em

‘desprezar quem lhe quer bem’ e não ver que Deus ‘até fica zangado’ por causa do abandono desse alguém que quer bem à mulher. O valor implícito nessa formulação tem acentos declaradamente negativos: a vaidade, o narcisismo, o egoísmo. Em outras palavras, o homem está afirmando que Deus não aprova a atitude de abandonar alguém

161 por Sua causa. O fato da mulher viver exclusivamente para Deus é interpretado pelo homem como um equívoco (um pecado). Em linhas gerais, o homem sugere que Deus não fez as coisas para circularem em torno de Si, uma vez que, sendo Deus, ele não possui defeitos. O homem argumenta, portanto, que a ideia de perfeição exclui os valores negativos mencionados acima. Logo, é pecado amar a Deus com exclusividade, como a mulher.

Todas as outras estrofes reafirmam a ideia apresentada acima. Na segunda estrofe, ele se dirige à mulher de maneira enfática, sugerindo que ela pergunte diretamente a

Deus, sobre a veracidade de suas observações:

Ao Nosso Senhor Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor Se tudo foi criado  o macho, a fêmea, o bicho, a flor Criado pra adorar o Criador

A ideia central  e perversa  da estrofe é: “pergunte ao Nosso Senhor se tudo foi criado para alimentar Sua própria vaidade.” A perversidade diz respeito ao argumento que busca corroer por dentro, através da dúvida, o amor místico, a devoção da mulher. A mesma pergunta se prolonga, em espelho, na terceira estrofe:

E se o Criador Inventou a criatura por favor Se do barro fez alguém com tanto amor Para amar Nosso Senhor

Todas as expressões e palavras que se referem a Deus (‘Nosso Senhor,’ ‘Ele’ e

‘Criador’) aparecem em posições simétricas. ‘Nosso Senhor’ está no primeiro verso da segunda estrofe e no último da terceira; ‘Criador’ no último da segunda e no primeiro da terceira; ‘Ele’ é o sujeito do verbo ‘produzir’ no segundo verso da segunda estrofe e é o sujeito oculto de um verbo sinônimo, ‘fazer,’ no terceiro verso da terceira estrofe. Além

162 desses espelhamentos, todos os versos rimam em -or, ressoando as expressões ‘Nosso

Senhor’ e ‘Criador.’ Não é por acaso que todas as outras palavras que encerram os versos dessas estrofes possuam acentos positivos: ‘esplendor,’ ‘flor,’ ‘favor’ (empregado no sentido de ‘caridade’) e ‘amor.’ Nessas estrofes novamente encontramos imagens do

Gênesis: o percurso narrativo bíblico é figurado na segunda estrofe: 1) a criação da luz a partir das trevas; e 2) a criação de tudo (representada de forma regressiva, ou seja, do macho à fêmea, do bicho à flor). A enumeração também contém uma comparação sutil entre macho e bicho, e entre fêmea e flor. Como se vê, as analogias de fundo figuram a diferença entre os gêneros, marcando fonética e semanticamente algumas oposições. O macho e o bicho, aproximados pelas consoantes bilabias e as fricativas das sílabas finais, também estão unidos, via simbólica, pela ideia de que o macho tem um comportamento mais agressivo; a fêmea e a flor representam, nesse esquema, a delicadeza, tanto pela maior fluência das consoantes quanto pelo ritmo menos óbvio das palavras (formadas por diferentes números de sílabas) e, além disso, pela fragilidade e a beleza figuradas pelas aliterações entre fêmea e flor. Do ponto de vista fonético funcionam como oposições: os sons repetidos no primeiro par recaem sobre a última sílaba enquanto os do segundo par, sobre a primeira. Além disso, do ponto de vista morfológico, macho e bicho são palavras do gênero masculino e fêmea e flor, do feminino. Na terceira estrofe o foco recai exclusivamente sobre a cena da criação do ser humano, feito do barro ‘com tanto amor.’

As ambivalências das palavras e expressões da primeira estrofe condensam-se no verso

‘Se do barro fez alguém com tanto amor.’ O sintagma ‘com tanto amor’ refere-se simultaneamente a ‘Criador’ e a ‘alguém.’ E isto se liga ao argumento inicial: se o amor da mulher é abundante (por determinação do próprio Deus), então ela deve doá-lo a

163 'quem lhe quer bem' e não exclusivamente ao Criador. As ambivalências também aparecem sob a forma dos espelhamentos (as simetrias, as rimas, as aliterações, as inversões, a conversão de substantivos em verbos  como amor/amar  e dos substantivos em derivados  Criador/criatura).

A quarta e a quinta estrofes também são simétricas, como a segunda e a terceira.

Em verdade, elas são variações do motivo da criação (o esplendor produzido nas trevas):

Não, Nosso Senhor Não há de ter lançado em movimento terra e céu Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel Pra circular em torno ao Criador36

Ou será que o Deus Que criou nosso desejo é tão cruel Mostra os vales onde jorra o leite e o mel E esses vales são de Deus

Nessa espécie de terceira etapa da canção, ocorre uma mudança fundamental: o sujeito, estrategicamente, deixa de confrontar a mulher e, em vez de instigá-la a resolver junto ao próprio Criador as equações por ele propostas, passa a apresentar-lhe de modo direto suas formulações, dando a entender que elas são precisas e transparentes. A primeira cena retomada por ele é a do Big-Bang, o desencadear do movimento da terra e do céu, ‘estrelas percorrendo o firmamento em carrossel.’ Os espelhamentos reaparecem no nível do discurso e a terceira pessoa, Nosso Senhor, não terá praticado ação de criar tudo ‘pra circular em torno ao Criador.’ Os termos variam, no nível do discurso, mas do

36 Adélia Bezerra de Meneses, com olhar certeiro, traz para a discussão mais um ponto de contato entre a poesia de Dante e as canções de Edu e Chico: “Convoca-se o Criador, para questioná-lo sobre os objetivos últimos de sua obra; e inserindo o amor humano dentro do Plano da Criação, ecoam aqui (especificamente na quarta estrofe) os acordes da Divina comédia, em que Dante fala daquela força ‘que move o sol e as outras estrelas.’ Por outro lado, a pergunta retórica da última estrofe abriga uma metáfora  ‘vales onde jorra o leite e o mel’  que, dado o contexto, mais que a um Eldorado, alude a uma geografia corporal, num registro inequivocamente erótico. Trata-se de uma fremente súplica passional, em que se questiona até o Criador.” (96-97)

164 ponto de vista narrativa coincidem: Nosso Senhor e Criador desempenham diferentes funções sintáticas mas correspondem à mesma pessoa do discurso (ele).

Repare-se, também, nas conexões formais estabelecidas entre ‘Ao Nosso Senhor’

(segunda estrofe) e ‘Não, Nosso Senhor’ (quarta estrofe); e entre ‘E se o Criador’

(terceira estrofe) e ‘Ou será que o deus’ (quinta estrofe). Essas conexões produzem o efeito de coesão formal e ao mesmo tempo dão passagem aos elementos negativos que se acentuam consideravelmente na quinta estrofe. O aparecimento da palavra ‘deus’ grafada com inicial minúscula desata um processo de dessacralização que pretende atuar no imaginário da interlocutora, plantando a dúvida quanto a existência de Deus, agora com inicial maiúscula. A figuração dessa estratégia completa-se nos outros termos da pergunta: será que esse deus, que criou nosso desejo, é tão cruel  cruel a ponto de mostrar ‘os vales onde jorra o leite e o mel, e esses vales serem de Deus’? O deus (com minúscula), portanto, contrapõe-se ao Deus (com maiúscula), sugerindo que Este criou o homem e aquele criou o desejo. A palavra deus (com minúscula), nesse contexto, funcionando por oposição a Deus, funciona, a despeito de sua identidade fonética, como figura diabólica. Nessa passagem, aliás, está figurada o episódio de uma das tentações de

Cristo, além de retomar a imagem do paraíso contida no Velho Testamento.

Evidentemente a identidade sonora dos termos não autoriza que consideremos de maneira direta o termo ‘deus’ como equivalente a ‘diabo.’ Trata-se talvez da mistura entre as culturas pagã e cristã, comum, por exemplo, em boa parte da literatura clássica (Camões, por exemplo) e moderna (como Jorge de Lima). Por outro lado, esse deus pode ser identificado à própria mulher, que, por analogia, pode ser lida como as deusas pagãs do amor, Vênus e Afrodite. Dessa forma, o sujeito dirige-se a uma terceira pessoa quando na

165 verdade está se referindo à interlocutora. Esse “deus” acaba ouvindo uma confissão amorosa. No entanto, esse deus-mulher inspira amor no eu lírico sem no entanto se interessar por ele, mantendo-se fiel ao Amor divino. A figura da mulher representada aí tem a ver com a figura idealizada da mulher nas cantigas de amor medievais: trata-se da figura da santa.

Ciranda da Bailarina

Procurando bem Todo mundo tem pereba Marca de bexiga ou vacina E tem piriri, tem lombriga, tem ameba Só a bailarina que não tem E não tem coceira Berruga nem frieira Nem falta de maneira Ela não tem

Futucando bem Todo mundo tem piolho Ou tem cheiro de creolina Todo mundo tem um irmão meio zarolho Só a bailarina que não tem Nem unha encardida Nem dente com comida Nem casca de ferida Ela não tem

Não livra ninguém Todo mundo tem remela Quando acorda às seis da matina Teve escarlatina Ou tem febre amarela Só a bailarina que não tem Medo de subir, gente Medo da cair, gente Medo de vertigem

166 Quem não tem

Confessando bem Todo mundo faz pecado Logo assim que a missa termina Todo mundo tem um primeiro namorado Só a bailarina que não tem Sujo atrás da orelha Bigode de groselha Calcinha um pouco velha Ela não tem

O padre também Pode até ficar vermelho Se o vento levanta a batina Reparando bem, todo mundo tem [pentelho] Só a bailarina que não tem Sala sem mobília Goteira na vasilha Problema na família Quem não tem

Procurando bem Todo mundo tem...

Conforme o paralelo que estamos estabelecendo entre as canções e o poema, as personagens retratadas na “Ciranda da bailarina” correspondem às irmãs gêmeas, Marie e

Helène, filhas de Margarete e Rudolf, o homem-fera. Concebidas em um ato de extrema violência, as meninas contudo parecem não ter sido atingidas por nenhuma espécie de mácula  ao contrário, afastam a maldade só pelo fato de existirem sob o signo do duplo, realidade que se apresenta ao olhar como ilusão e que por isso nos remete ao um universo de exceção, onde atua o maravilhoso, a dádiva, o milagre. A canção foi construída a partir de imagens que acentuam de modo enfático o dom de iludir das irmãs, apresentando-as através da ideia de perfeição, o que imediatamente nos remete a essa espécie de vocação híbrida (mística e artística) por elas herdada. É que, além de serem perfeitamente idênticas e idênticas perfeitas, a um só tempo místicas e bailarinas, as

167 irmãs possuem um outro atributo que as transporta para um patamar ainda mais elevado na escala da perfeição: o fato de serem meninas. No campo da mística cristã, é comum associar a infância a um certo ideal de perfeição, uma vez que a inocência, a ingenuidade e a pureza das crianças consistem em valores ligados à noção de um mundo sem pecado.

Em um trecho do Novo Testamento, quase sempre citado em rituais ligados à infância, é o próprio Jesus quem declara: “Deixai as crianças, não as impeçais de virem a mim, pois o

Reino dos céus é para aqueles que são como elas.” No campo da arte e até mesmo do senso comum, a figura da bailarina costuma ser associada a um certo ideal de perfeição, tendo por isso a dança se transformado em uma das atividades tradicionalmente ligadas ao universo da educação feminina. Para o senso comum a bailarina é vista como um modelo de perfeição a ser buscado, uma vez que sintetiza as virtudes com que a sociedade (burguesa) constrói a imagem da mulher  beleza, graça, leveza, capacidade de se expressar por gestos (para evidentemente deixar para o homem o domínio da palavra). Além desse dado cultural, lembremos que os surrealistas consideravam a mulher, e sobretudo a femme-enfant, personagem fundamental da estética e modo de vida que propunham. Durante a leitura do poema de Jorge de Lima, vimos como a mulher, para ele e para os surrealistas, representava a figura de quem conduz os homens no caminho do autoconhecimento. Estando mais próxima da irracionalidade do sonho, ‘ela pode conduzir os homens até a criatividade artística’ (Bradley, 47). O ideal bretoniano da feminilidade é a femme-enfant, que reúne ‘em si mesma dois seres com acesso privilegiado ao maravilhoso.’ (48)

A canção estrutura-se a partir de uma ideia bastante simples: apontar a perfeição da bailarina através dos defeitos alheios. Nesse sentido, podemos dizer que a canção

168 contém um aspecto marcadamente irônico, o que faz o sentido oscilar entre o elogio e a difamação. Os dois últimos versos apresentam o alicerce irônico da canção:

Procurando bem Todo mundo tem...

Todas as estrofes foram formuladas a partir dessa célula lógica, que se resume na seguinte ideia: todo mundo tem imperfeições, mesmo que elas não sejam aparentes. Por isso, basta procurar por elas. Entretanto a regra, apesar de estipulada empiricamente, não

é completamente universal por causa de uma exceção: a bailarina. Por ser perfeita, ela não se iguala aos outros seres humanos. Esta ideia está expressa no único verso que se repete em todas as estrofes, sempre na mesma posição, exceto uma vez: ‘só a bailarina que não tem.’ Com este termo, a equação se completa e se complexifica, constatando que todos seriam iguais, caso a perfeição da bailarina não fosse um fato:

Procurando bem Todo mundo tem... Só a bailarina que não tem

As estrofes se desenvolvem a partir desse modelo, instaurando um padrão que só não é monótono por causa do clima cômico e insólito gerado pela enumeração caótica dos defeitos de toda gente e as modulações harmônicas. A estrofe em que aparece o padre

é a única em que se altera o modelo seguido pelas outras estrofes e funciona como uma exclamação, espécie de observação que torna irrefutável o modelo teórico construído informalmente pela observação e os comentários maliciosos de todos. Por isso, a estrofe começa dizendo que ‘até o padre comete erros’ (‘o padre também’). Além disso, é preciso lembrar que uma série de imperfeições está ligada ao universo infantil e cotidiano e por isso as mazelas enumeradas tem algo de ‘inocentes,’ do ponto de vista moral, ou estão ligadas a doenças e secreções produzidas pelo corpo que as crianças vão descobrindo

169 pouco a pouco, conforme vão ficando adultas (escarlatina, piolho, remela, febre amarela etc.) O padre, que na hierarquia católica ocupa a posição mais baixa (equivalente ao soldado no campo militar) é quem tem contato com as crianças, administrando-lhes, por exemplo, aulas de catecismo. Por isso, esse personagem coerentemente faz parte das imagens do cotidiano  e pode estar aí de modo malicioso, sendo figura de um dos muitos males que acometem as crianças. Conforme a letra, se for possível observar o personagem como ele de fato é (o que seria propiciado pelo ‘vento,’ que lhe retiraria momentaneamente a máscara, a fantasia, isto é, a batina), ficaria claro que até ele tem imperfeições. As crianças em roda, como se vê, estão ‘falando mal’ até do padre. O sentido geral dos versos relacionados ao padre apontam para a ‘vergonha’ que ele sentiria caso um vento lhe levantasse a batina. A conotação sexual contida na imagem é evidente.

A exposição quase total do baixo corporal remete às partes que levam o padre a cometer

‘pecados.’ Esse assunto é tradicional em nossa cultura e é um tema de extrema importância relativo ao sacerdócio no catolicismo, uma vez que é exigido dos clérigos que eles se mantenham castos. Mas há ainda um outro sentido, ligado aos religiosos no contexto histórico em que a canção foi feita. A palavra vermelha, além de indicar a reação somática desencadeada pelo sentimento da vergonha, também é utilizada para designar o ‘comunista.’ Logo, a canção sugere algo como: ‘há um comunista por trás da batina.’ Isso tem a ver com a Teologia da Libertação que estava em voga e que ligava algumas alas da esquerda ao movimento revolucionário não apenas no Brasil mas em toda a América Latina. O padre, nesses termos, receberia um crédito por parte dos cancionistas e as crianças revelariam de modo inocente (tanto pelo comentário sobre a sexualidade quanto sobre a opção política do padre) quão cedo os valores culturais de

170 uma sociedade são inculcados no indivíduo. Falar mal do padre é também falar mal da bailarina (imagem das irmãs gêmeas) e é possível encontrar nessa analogia o mesmo fundo alegórico do poema: assim como o padre é o representante de Cristo, as irmãs também o são (daí, como vimos durante a leitura do poema de Jorge de Lima, a sua figura poder ser comparada ao Corpo Místico). A diferença entre elas e o padre reforçaria essa hipótese, uma vez que coloca o padre em pé de igualdade com os demais enquanto as irmãs permanecem incorrompidas.

A título de conclusão, observe-se que a ciranda é uma forma que depende tanto da música quanto da dança. É canção e coreografia ao mesmo tempo. Dessa forma, as crianças que estão falando mal da bailarina se aproximam dela através da dança. Por um lado, guardam elementos infantis da ingenuidade  que se confirmam até mesmo no fato de expressarem de modo aberto (sem vergonha) seus pensamentos maldosos. Dessa forma, podemos dizer que elas dançam  como a bailarina de que falam  porque também têm traços de perfeição. Por outro lado, a dança praticada durante a ciranda também assume um valor negativo, de caricatura. Isso explica a simplicidade coreográfica de uma dança de roda, que confirma plasticamente a malícia dos comentários. Nesse caso, as crianças estão imitando sarcasticamente a bailarina. Digamos ainda que tamanha inveja também deve ter sido aumentada pelo fato das irmãs serem gêmeas, o que de certa forma já lhes confere um caráter de exceção, tornado hiperbólico pelo fato de serem bailarinas.

171 O Circo Místico

Não Não sei se é um truque banal Se um invisível cordão Sustenta a vida real

Cordas de uma orquestra Sombras de um artista Palcos de um planeta E as dançarinas no grande final

Chove tanta flor Que, sem refletir Um ardoroso espectador Vira colibri

Qual Não sei se é nova ilusão Se após o salto mortal Existe outra encarnação

Membros de um elenco Malas de um destino Partes de uma orquestra Duas meninas no imenso vagão

Negro refletor Flores de organdi E o grito do homem voador Ao cair em si

Não sei se é vida real Um invisível cordão Após o salto mortal

A canção “O circo místico” não tem como ser considerada sem que levemos em conta a divergência entre o ponto de vista que ela expressa e o ponto de vista implícito no poema. Este, como vimos, parte do pressuposto de que a existência continua após a morte, enquanto aquela não tem certeza se é bem assim. A dúvida expõe o problema da imortalidade da alma e o deixa suspenso, ocasionando uma intrincada teia de suposições

172 que não se desfaz quando a canção se fecha. Nesses termos, podemos dizer que esse ir além de si mesma introduz na canção uma dissonância fundamental: as dúvidas não se desfazem apesar da sobrevida que, a rigor, deveria desfazê-las. Essa contradição é representada tanto pelas perguntas não respondidas quanto pela continuação sob a forma de outra canção  significativamente intitulada “Na carreira.” A imagem ocorre entre as canções e fica evidente quando justapomos o último verso da canção  ‘após o salto mortal’  ao título da canção seguinte, ‘na carreira’ (o que vale como ‘a vida continua’).

A primeira estrofe apresenta o problema central da canção:

Não Não sei se é um truque banal Se um invisível cordão Sustenta a vida real

O fato de ‘não saber’ algo (no caso, se a vida continua após a morte) coloca o sujeito em uma posição vulnerável perante a transcendência. Sua humildade é grande, pois confessa

‘não saber.’ Como se dissesse que a crença na vida após a morte talvez seja um ‘truque banal,’ uma ilusão, ‘invisível cordão’ sustentando ‘a vida real.’ A dimensão metafísica dessa primeira estrofe ressoa em todos os poros da canção e abre alas para a analogia entre a ‘vida real’ e o número das irmãs gêmeas, que se passa no plano da arte (ou da

‘vida ficcional’). Nesses termos, a primeira estrofe pode ser tomada como as observações estabelecidas por um espectador que, assistindo ao número das gêmeas, não está certo se o que vê é mesmo real, tão surpreendente o que elas realizam no picadeiro.

A canção segue as etapas do número por elas apresentado. Há basicamente dois momentos. O primeiro é retratado nas três primeiras estrofes (a entrada das irmãs) e o segundo, nas três seguintes (o trapézio). Trata-se do ‘grande final,’ como fica indicado na segunda estrofe. Com o desenrolar do número, o espectador vai colecionando as imagens

173 Cordas de uma orquestra Sombras de um artista Palcos de um planeta E as dançarinas no grande final

Elas fazem algumas evoluções:

Chove tanta flor Que, sem refletir Um ardoroso espectador Vira colibri

O entusiasmo do espectador (que pode ser o próprio sujeito da canção como a plateia como um todo) é transformado em contemplação serena, tamanha a capacidade órfica das meninas. Existe aí um toque de conto de fadas, se tomarmos ao pé da letra os dois

últimos versos, imaginando a metamorfose do espectador em colibri. De uma forma ou de outra, destaca-se o poder de encantação das dançarinas. Pressentimos nessa passagem a transformação do ruído em silêncio: no entusiasmo do ‘ardoroso espectador’ está implícita uma pulsão desgovernada que se extravasa através da embriaguez dionisíaca e da irracionalidade incontrolável da plateia. As dançarinas, entretanto, têm o poder órfico

(ligado ao dom apolíneo da ordem) de transformar a estrondosa violência dionísiaca em serena delicadeza apolínea. Essa primeira etapa do grande final, recupera o bis da plateia do poema: ‘a plateia bisa seios, sovacos’ etc.

Após um momento de epifania (quando o espectador vira colibri), o espetáculo continua e a dúvida reaparece:

Qual Não sei se é nova ilusão Se após o salto mortal Existe outra encarnação

Essa dúvida do sujeito da canção retoma o verso do poema em que diz que ‘as crianças acreditam nas dançarinas, nos milagres que elas fazem.’ O sujeito está na posição dos que

174 olham de binóculo as virgindades das meninas, desconfiando dos milagres que elas realizam. A dúvida sobre a vida após a morte é colocada em termos mais específicos e, como não poderia deixar de ser, ambivalentes: não se sabe ‘se após o salto mortal existe outra encarnação.’ Temos assim a ideia da reencarnação, mas apenas em termos de possibilidade, pois não é possível confirmar  limite da condição humana  se após o salto mortal o espetáculo continuará, se haverá mais evoluções, no sentido espiritual e acrobático. Logo, o espectador está conectado passionalmente ao objeto e, movido, não quer que o espetáculo (a vida) acabe. Mas aqui há a interrupção e surgem imagens fragmentárias que remetem à partida do circo, figuração da morte e trabalho de luto:

Membros de um elenco Malas de um destino Partes de uma orquestra Duas meninas no imenso vagão

Observe-se que a fragmentação também ocorre na polissemia das imagens. ‘Membros de um elenco’ significa tanto os integrantes de um elenco quanto as partes do corpo dos artistas. Referidas, assim, dão a ideia dupla de uma trupe em viagem e, por outro lado, de corpos fragmentados, mortos, devido a algum desastre, tal como no poema de Jorge de

Lima “O grande desastre aéreo de ontem.” O verso ‘partes de uma orquestra’ também tem um significado duplo: pode ser lido como os ‘fragmentos de uma orquestra’

(destruída por um desastre, pela morte, pela separação) e também as ‘páginas de música’ com que os músicos se orientam (a partitura contém a música inteira; a parte contém somente a linha a ser tocada por um instrumento específico). Reaparecem as meninas. O imenso vagão também é polissêmico: pode designar tanto um vagão de trem quanto um espaço vazio  as meninas isoladas, seres de exceção, as meninas no meio do picadeiro

(imenso vagão), a grande atração.

175 A coda reafirma o olhar de dúvida:

Não sei se é vida real Um invisível cordão Após o salto mortal

O loop da letra l, que aparece uma vez em cada verso da coda e está disperso por toda a canção, figurativiza graficamente a imagem do salto mortal: a escrita manual da letra contém esse loop, tal como o que as trapezistas descrevem ao realizar o salto mortal: l.

Além disso, o som fechado da vogal /u/, adotado na pronúncia brasileira do l, tem conotações ligadas à ideia de morte, escuridão etc., como demonstra Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia.

A canção pode ser lida como a representação da própria vida dos artistas. Ela pode ser considerada uma versão sublime do que “Na carreira” é chão, cômico. Do sonho

(“O circo místico”) à realidade cotidiana (“Na carreira”). A vida do espetáculo e o espetáculo da vida. E jamais dizer adeus.

176 Na Carreira

Pintar, vestir Virar uma aguardente Para a próxima função Rezar, cuspir Surgir repentinamente Na frente do telão Mais um dia, mais uma cidade Pra se apaixonar Querer casar Pedir a mão

Saltar, sair Partir pé ante pé Antes do povo despertar Pular, zunir Como um furtivo amante Antes do dia clarear Apagar as pistas de que um dia Ali já foi feliz Criar raiz E se arrancar

Hora de ir embora Quando o corpo quer ficar Toda alma de artista quer partir Arte de deixar algum lugar Quando não se tem pra onde ir

Chegar, sorrir Mentir feito um mascate Quando desce na estação Parar, ouvir Sentir que tatibitati Que bate o coração Mais um dia, mais uma cidade Para enlouquecer O bem-querer O turbilhão

Bocas, quantas bocas A cidade vai abrir Pruma alma de artista se entregar Palmas pro artista confundir Pernas pro artista tropeçar

177

Voar, fugir Como o rei dos ciganos Quando junta os cobres seus Chorar, ganir Como o mais pobre dos pobres Dos pobres dos plebeus Ir deixando a pele em cada palco E não olhar pra trás E nem jamais Jamais dizer Adeus

A primeira coisa que a canção “Na carreira” desperta no ouvinte é a sensação de realidade. Antes mesmo da melodia e da letra entrarem em cena, a orquestra num piscar de olhos passa de uma tessitura timbrística a outra, onde o ritmo ganha relevo. Podemos dizer, por imagem, que a orquestra em questão de poucos segundos vai do fiat lux ao trem onde a trupe viaja. A referência ao Trenzinho do caipira, de Villa-Lovos e Pacific 231, de

Arthur Honegger se faz sensível e produz um elemento descritivo nesse começo. O próprio Edu Lobo revela esse aspecto da canção:

Lembra de uma canção que fecha o Circo, Na carreira? Pois é, na introdução eu queria um trem saindo da estação. Eu queria uma coisa meio parecida com o que o Villa fez no Trenzinho do Caipira. E tem uma peça sinfônica do [Arthur] Honegger, chamada Pacific e um número que eu não vou lembrar agora, um número de um trem, de uma locomotiva [Pacific 231]. Eu me lembro que ficava mostrando isso para o Chiquinho de Moraes, aqui em casa, e pedia um trem saindo da estação, mas sem nenhum som eletrônico, sem nenhum ruído. A orquestra emulando esses ruídos. Sabe, a máquina ligando, o apito, a fumaça. (...) E o trem saiu da estação exatamente do jeito que eu queria. (Naves, 2006, 264)

A justaposição é abrupta e desde logo detona a impressão de velocidade. Quando o canto inicia, o trem da canção corre a todo vapor. A velocidade também está presente na letra e na melodia da canção. O tempo verbal predominante é o infinitivo, o que apresenta a ação de modo resumido e direto, sem tempo para devaneios,

178 desenvolvimentos de ideias e prolongações líricas como acontece nas outras canções.

Todas as ações parecem estar sendo feitas às pressas, como nos afazeres cotidianos quando não pensamos muito e vamos realizando a tarefa. Tudo acontece num repente.

A agitação se intensifica pelas vozes de Edu e Chico desencontradas durante os primeiros versos da canção. Além de reforçar a impressão de velocidade, fragmentando o tempo em segmentos menores do que o previsto pelos versos e pela melodia, esse modo peculiar de contraponto acaba funcionando como figura do que a própria letra expressa, ou seja, a vida agitada dos artistas do circo. Há sempre muitas coisas a fazer, não se pode perder tempo. Entretanto, como veremos, a canção tem uma narrativa implícita.

A primeira estrofe representa o momento exato que precede o espetáculo. Os preparativos para entrar em cena e o nervosismo natural que precede esse momento (os grandes momentos da vida dos artistas) estão representados nos quatro primeiros versos:

Pintar, vestir Virar uma aguardente Para a próxima função Rezar, cuspir

O sujeito continua a descrição de como é a vida de artista, narrando a entrada em cena e os eventos que se passam além do espetáculo:

Surgir repentinamente Na frente do telão Mais um dia, mais uma cidade Pra se apaixonar Querer casar Pedir a mão

O espetáculo propriamente dito não é descrito. Assim que o artista surge perante o público, ‘na frente do telão,’ passa imediatamente a se referir, com certa ponta de ironia

(entre o tédio e o contar vantagem), o resultado de tudo  ‘mais um dia, mais uma

179 cidade’ e mais um envolvimento amoroso com o qual se ilude ou ilude alguém (aliás, efeito ligado ao próprio espetáculo).

Na próxima estrofe, os artistas partem às escondidas, ‘pé ante pé,’ enquanto a cidade ainda dorme. A imagem se repete duas vezes de modo variado e reproduz a narrativa da primeira estrofe. Isto é, primeiro refere-se ao sono dos espectadores e depois se compara a ‘um furtivo amante’ que parte antes do dia (a amada/o amado) clarear

(acordar). Essa estrofe, por conta dessas imagens, pode ser classificada como uma pequena ‘alba,’ canção tradicional dos trovadores que representa a separação dos amantes ao clarear do dia (como na famosa cena de Romeu e Julieta). O modo com que o artista atua (furtivamente), o partir às escondidas, o liga à imagem do fugitivo, do clandestino, do marginal. Além desses sentidos todos, entra em cena novamente a velocidade, pois furtivo também significa ‘rápido.’ Logo, esse amante, discreto e ligeiro, que liga à figura do marginal, parece estar em fuga. Aí novamente um possível modo de interpretar o modo como Edu e Chico cantam: figuração da fuga (em sentido duplo: a do artista- amante, no plano narrativo, e a da música, no plano discursivo):

Saltar, sair Partir pé ante pé Antes do povo despertar Pular, zunir Como um furtivo amante Antes do dia clarear

As imagens do final da estrofe reforçam a ideia de marginalidade, sobretudo a ação de

‘apagar as pistas’ do crime por ele cometido (a felicidade):

Apagar as pistas de que um dia Ali já foi feliz Criar raiz E se arrancar

180 Os dois últimos versos, que aproveitam o duplo sentido das expressões ‘criar raiz’ e ‘se arrancar,’ funcionam como uma espécie de conclusão para a narrativa contada até aqui. É como uma pílula-paradoxo que explica visualmente o processo narrado anteriormente.

Na próxima estrofe a linha melódica e harmônica mudam, trata-se de uma estrofe onde se explica o que é a vida de artista de um outro ponto de vista, agora não mais narrativo, mas filosófico, contemplativo, digressivo. É o momento digressivo da canção.

Como as fórmulas do saber tradicional, o trecho contém definições sobre como agir e sobre a alma de artista:

Hora de ir embora Quando o corpo quer ficar Toda alma de artista quer partir Arte de deixar algum lugar Quando não se tem pra onde ir

As três estrofes finais da canção são uma variação das anteriores. Na quarta estrofe, narra-se a chegada dos artistas em uma estação. A figura do artista é comparada à do mascate, do mentiroso, do charlatão. E ao mesmo tempo retorna o motivo amoroso:

‘sentir que tatibitati / que bate o coração.’ Novamente aparece o verso ‘mais um dia, mais uma cidade,’ único que se repete idêntico em toda a canção:

Chegar, sorrir Mentir feito um mascate Quando desce na estação Parar, ouvir Sentir que tatibitati Que bate o coração Mais um dia, mais uma cidade Para enlouquecer O bem-querer O turbilhão

Nessa segunda metade da canção ocorre um deslocamento da estrofe digressiva, que passa a ser a estrofe intermediária:

181 Bocas, quantas bocas A cidade vai abrir Pruma alma de artista se entregar Palmas pro artista confundir Pernas pro artista tropeçar

A última estrofe a velocidade e a intensidade lírica se intensificam:

Voar, fugir Como o rei dos ciganos Quando junta os cobres seus Chorar, ganir Como o mais pobre dos pobres Dos pobres dos plebeus Ir deixando a pele em cada palco E não olhar pra trás E nem jamais Jamais dizer Adeus

Nessa última estrofe a imagem do artista-ladrão reaparece e se confunde com a dos ciganos e dos plebeus. O nomadismo dos artistas mambembes encontra nos ciganos um termo de comparação. O modo como são tratados pela sociedade fica expresso nas imagens que veiculam o choro e o ganido, que traduzem sinteticamente o valor que a sociedade burguesa lhes atribui, comparando-os  os mais pobres dos plebeus  a cães e cobras. No entanto, o ato de ir deixando a pele em cada palco também pode ser visto como um elogio boppiano do artista mambembe. Além de Cobra Norato, que possui inúmeros pontos de contato com a poética de Jorge de Lima  entre outras coisas, o surrealismo, a mística, o folclore, o circo, a representação do Brasil  a canção se fecha

 leiamos novamente o trecho  com uma enigmática referência a Orfeu:

Não olhar pra trás e nem jamais jamais dizer adeus

182 Esta referência, assim como outras, serão discutidas no próximo capítulo, no qual estudaremos mais de perto as relações entre o poema e as canções.

183

TERCEIRO CAPÍTULO

UM OUTRO PAÍS: ENSAIO SOBRE O CIRCO MÍSTICO NA CULTURA BRASILEIRA

A extraordinária complexificação do país e do mundo adensa, embaralha e emaranha linhas que foram mais claras, embora contraditórias e contrárias entre si, aos olhos dos intérpretes do Brasil na década de 30. Sobre esse imponente coro dos contrários basta notar, por exemplo, que, enquanto a primeira página de Raízes do Brasil diz que “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra,” a de Casa Grande & senzala diz enfaticamente que o Brasil é a “prova definitiva” da aptidão da colonização portuguesa para a vida tropical, e a de Formação do Brasil contemporâneo diz que “o Brasil não é senão um episódio, um pequeno detalhe” no “quadro imenso” da mundialização dos mercados como empreitada da Europa sobre a América, a África e a Ásia. Conseguimos a proeza de ser, portanto, a um só tempo aptos e adaptados, atados e atrasados, e desencontrados de nós mesmos. Mas é justamente, a meu ver, o desvelamento dessas linhas cruzadas que esses intérpretes traçaram, unificando o campo do seu pensamento, que os atualiza perante o conturbado quadro novo que se desloca. Pois um Brasil em movimento irresolvido, maior do que eles, se pergunta e diz através deles.

José Miguel Wisnik, Veneno remédio — O futebol e o Brasil

184 Concepção do Balé

Tudo começou com uma almofada ganha de uma amiga chamada Grace. Nela estavam escritos alguns versos de “O grande circo místico,” de Jorge de Lima. Interessado em conhecer o resto, fui atrás da obra do poeta e não teve jeito, aquele circo entrou em minha vida. Primeiro, fiz muitos desenhos e costurei à mão bonecos inspirados em Oto, Lily Braun, Charlote, Ludwig, Rudolf, nas gêmeas Marie e Hèlene, etc. Comecei, então, a pensar na possibilidade de transformar o poema em peça teatral, ópera ou mesmo balé. Quando estávamos em Curitiba finalizando Jogos de Dança (música de Edu Lobo, coreografia de Clyde Morgan, cenários e figurinos por mim desenhados), Edu perguntou se eu tinha alguma ideia para um novo trabalho. O Ballet Guaíra estava pedindo uma nova obra. “Eu tenho”  falei na hora  “‘O grande circo místico’!” Aprovada a ideia, convidamos Chico Buarque para escrever as letras. O resto... só ouvindo este CD. (Naum Alves de Souza, 2002)

É curioso como o poema de Jorge de Lima desencadeou a concepção do balé e refletiu posteriormente nas canções. Primeiro, o aspecto narrativo, que fez Naum

Alves de Souza ficar interessado em conhecer o resto da história que a amiga, scherazadianamente, deixara incompleta na almofada. Depois, a beleza impactante que levou o artista a desenhar37 e fazer bonecos a partir das cenas e dos personagens do texto. Por último, a ideia de transformar o poema em peça teatral, ópera ou balé, que já revelava a vocação de se desdobrar em outras artes da história peculiar desse circo.

Com relação ao primeiro aspecto, podemos acrescentar que a almofada  objeto em torno do qual circula a noção de repouso  conduziu o artista justamente para o lado oposto, colocando em causa a necessidade de sair em busca da versão completa do poema. O impulso para a pesquisa, como vimos durante a análise do

37 Vários desses desenhos foram incluídos no encarte como ilustração das canções.

185 poema, é algo inerente ao próprio texto, pelo fato de sermos lançados em várias direções pela alegoria.

Em outras palavras, o contato com o poema deflagrou o processo de uma inelutável febre criativa no artista e, nesses termos, a almofada é uma espécie de presente de grego e só podia mesmo ter sido oferecido por uma amiga chamada

Grace, cujo nome possui vasos comunicantes com o divino e a comicidade dos clowns. Além disso, a vocação de se desdobrar em outras artes diz respeito ao próprio circo, em que encontramos uma espécie de ‘arte total,’ uma vez que o espetáculo circense contém números de diversos campos artísticos (teatro, música, dança etc.). A ideia requisitada por Edu Lobo, portanto, abria as portas para o fluxo criativo do texto continuar a se transformar, assumindo um aspecto cênico (do livro para a cena).

Recapitulando: o trecho de um poema inscrito numa almofada — uma centelha — despertou o interesse de um artista. O poema completo gerou uma perplexidade mais intensa que a que causara em Mário Faustino, uma vez que levou

Naum Alves de Souza a desdobrar o poema (desenhos, bonecos, roteiro, cenário). O entusiasmo não se esgotou na confecção dos objetos e o artista passou a “pensar na possibilidade de transformar o poema em peça teatral, ópera ou mesmo balé,” buscando ampliar a descoberta para o âmbito da criação coletiva.

Logo, encontramos nesse processo uma intrincada rede de recados: do poema

à almofada; desta aos desenhos e bonecos e às canções e ao balé. Como veremos adiante, essa rede tem muitas implicações no âmbito da cultura brasileira, podendo ser vista como um meio de se interpretar o país. Observe-se ainda, o pedido de Edu

186 feito a Naum  de uma ideia para um novo trabalho  aponta para a característica de Jorge de Lima apontada por Mário de Andrade na resenha sobre A túnica inconsútil citada anteriormente: o predomínio da imaginação sobre a invenção. O fato de preferir compor por encomenda, como Edu Lobo revela durante uma entrevista concedida a Santuza Cambraia, indica uma afinidade com o poeta e nos leva a ver as canções como o resultado do mesmo fenômeno apontado por Mário em relação a Jorge de Lima:

Eu acho que tenho dificuldade de compor sem motivo, quer dizer, sem mote; eu sou meio ruim nisso. Eu acho que é uma limitação que tenho, eu brigo muito com isso. Se tiver três projetos, eu produzo alucinadamente. Agora, se não tiver, é uma espécie de preguiça que se estabelece, eu passo a ser ouvinte, me distraio. Tem uma história do Cole Porter que é engraçada. Teriam perguntado a ele: “Como é que o senhor compõe? O senhor vai para a sua casa não sei onde e aí tem que estar tudo em silêncio às três da manhã, o que é que coloca o senhor in motion?” Ele respondeu: “A call from the producer.” E é assim também comigo: o telefonema quebra a preguiça, a letargia. (Naves, 258)

A predominância da imaginação sobre a invenção não desvaloriza o papel do criador. A capacidade de imaginação, que Mário apontava em Jorge de Lima, também está presente em Naum, Edu e Chico. Partindo de um material de base, os três criaram obras realmente novas.

Isto posto, é necessário observar que uma obra do porte de O grande circo místico não se explica apenas pelos eventos que levaram um grupo de artistas a produzi-la. Sua ligação com a cultura brasileira é profunda e ampla e, portanto, devemos tentar compreender o contexto histórico em que foi produzida. Essa tarefa possibilitará visualizar de maneira mais precisa a própria obra e contribuirá com muitos dados para o trabalho de interpretação e comparativo a que nos propomos.

187 Arte, letra

Ao realizar a análise das canções surgiram várias observações a respeito da história contida no poema que lhes serviu de base. Como vimos, embora haja uma sequência narrativa que, em linhas gerais, respeita a sequência de origem, não houve compromisso, por parte dos compositores, em incluir nas canções os mesmos episódios do poema. Esse fato gerou uma narrativa de difícil apreensão e marcada por um ritmo totalmente diverso do que encontramos no poema.

Neste capítulo, retomaremos ambas as narrativas a fim de compará-las e avaliar quais as implicações culturais do que permaneceu e do que foi alterado pelos compositores.

O primeiro ponto a ser observado é que a história “narrada” pelas canções depende e não depende, a um só tempo, da narrativa contida no poema. Isto explica não apenas a necessidade de se transcrever o poema de Jorge de Lima no encarte do disco mas também relaciona-se à estrutura alegórica das canções, cujo sentido pressupõe o diálogo com componentes externos, os quais devem ser levados em conta durante o processo de leitura.

Portanto, podemos dizer, quanto à “necessidade da transcrição,” que trata-se de uma necessidade contraditória, pois é possível ouvir as canções de maneira isolada, quer dizer, sem contrastá-las com o poema. Nesse caso, entretanto, o ouvinte inevitavelmente limita-se a um único nível de sentido, o qual corresponde à superfície, um nível literal.

Nele, é altamente provável que muito do aspecto narrativo do conjunto não chegue sequer a ser cogitado, a não ser por um esforço de imaginação. Esse patamar de sentido talvez possa ser lido tomando como base a própria estrutura em mosaico do espetáculo circense.

188 Nesses termos, as canções se desenrolariam como diferentes números no picadeiro e sua unidade estaria garantida pela contiguidade de cada número — sua montagem —, mais do que pelos elementos que as ligam. É legítima uma leitura como esta, mas ela deixa de fora uma parcela considerável de sentidos que as canções deflagram. Por exemplo, perde- se o acesso ao capital contraponto alegórico formado pelo constante ir e vir entre o poema e as canções e, imbricado nele, os inúmeros diálogos que se estabelecem entre arte e história, e entre história e cultura, em sentido amplo. Fazer o poema circular ao lado das canções, portanto, vai muito além de um gesto ilustrativo. Ou seja: com a transcrição do poema, os compositores não esperam indicar ao leitor apenas a origem das canções.

Querem, muito além, fazê-las dialogar com sua origem. Ficamos, assim, diante de uma inequívoca montagem, cujos autores são responsáveis pela fabricação de um signo híbrido. Os desenhos de Naum Alves de Souza são a terceira componente desse hibridismo sígnico, ao qual poderíamos acrescentar ainda uma quarta componente fundamental: a coreografia.

Ficaremos restritos, no entanto, à análise das componentes literárias e musicais desse signo híbrido. Logo, a “necessidade da transcrição,” à qual nos referíamos anteriormente, trata-se de uma opção estética. Um ponto importante a ser destacado em relação aO grande circo místico é a natureza plural de sua autoria. Jorge de Lima, Naum

Alves de Souza, Edu Lobo, Chico Buarque e os coreógrafos do Balé Guaíra: são, todos eles, autores da obra. Nesses termos, podemos comparar a aproximação dos diferentes signos sob a rubrica O grande circo místico ao ideal surrealista de arte coletiva, também fortemente marcado pela política. Estamos diante de um esforço coletivo, uma empreitada de saltimbancos, cujo efeito direto é a produção de uma obra. A autoria dessa

189 obra configura-se necessariamente a partir de um logro complexo, que diz respeito à própria estrutura híbrida da obra. O fato é que todos esses artistas tornam-se parceiros, uma vez que suas contribuições isoladas formam uma rede que se remete a si mesma de modo simultâneo. Logo, o poema atua sobre o sentido das canções assim como estas sobre o sentido do poema, para ficarmos apenas nas artes consideradas no móvel deste estudo.

Esse nível de leitura não se dá quando tomamos cada uma das obras isoladamente, o que sublinha a ideia de que O grande circo místico é uma obra de natureza alegórica. O descentramento autoral da obra produz a imagem de uma sociedade regida por uma lógica da coletividade (uma sociedade democrática) cujos traços, efetivamente igualitários, diz respeito a uma utopia comungada por todos esses artistas e que se choca quando contraposta à experiência política brasileira profunda. Se tomarmos a composição da obra como um vasto gesto coletivo veremos que ela ressoa no contexto eufórico da reabertura política do país como uma contrapartida crítico-alegórica dos eventos históricos que então se desenrolavam. Nesses termos, o engajamento dos artistas num projeto coletivo de composição contém uma perspectiva democrática que naquele momento esperava-se (re)introduzir no país. Essa perspectiva era em grande parte responsável por eventos como o da anistia ou da diminuição progressiva do papel da censura e também encontrava ressonância no movimento das Diretas Já, para citarmos apenas poucos exemplos. No entanto, o que a obra realizou — a construção de uma comunidade e uma obra efetivamente democráticas — o país ainda não viu realizar-se de maneira plena.

190 O segundo ponto a considerar diz respeito aos diálogos entre o poema e a canção em termos de suas respectivas narrativas. Recapitulando o que consideramos no primeiro capítulo, podemos resumir a narrativa do poema da seguinte maneira: 1) o estudante de medicina Frederico Knieps assiste a um espetáculo mambembe e se apaixona pela equilibrista Agnes; 2) desistindo de seguir a carreira paterna  o jovem era filho de um importante médico austríaco , Frederico se une à equilibrista e funda uma dinastia circense; 3) sua filha, Charlotte, casa-se com um clown e com ele tem dois filhos —

Marie e Oto; 4) este casa-se com a dançarina Lili Braun, que tinha um santo tatuado no ventre, e com ela tem uma filha — Margarete; 5) Margarete  não sabemos se antes ou depois de estar casada com o equilibrista Ludwig  sente um chamado místico e anuncia o desejo de entrar para um convento; 6) seu pai, Oto, não consente que ela abandone o circo e interrompa a dinastia; 7) ela acata a ordem paterna mas decide tatuar em seu corpo a Via Sacra; 8) desde então passa a realizar verdadeiros milagres tanto no picadeiro quanto nos bastidores do circo; 9) embora as tatuagens no seu corpo tenham afastado o desejo de seu marido, não afastaram o do boxeur e homem-fera Rudolf, que a assedia, viola e consequentemente engravida; 10) logo após cometer o hediondo ato, converte-se e morre; 11) o violento episódio entre o homem-fera e Margarete acaba por produzir a continuação da dinastia místico-circense, porque suas filhas, as irmãs gêmeas Marie e

Hèlene, herdam o poder de realizar prodígios, como o da levitação, tornando-se a grande atração do circo.

Vemos aí que o modo como Jorge de Lima narra a história dos Knieps volta-se para a questão da continuidade, eminentemente religiosa, tal como Benedict Anderson indica, em Comunidades Imaginadas:

191 (...) a religião se interessa pelos vínculos entre os mortos e os ainda não- nascidos, pelo mistério da re-generação. Quem vive a concepção e o nascimento do seu próprio filho sem apreender difusamente uma mescla de ligação, acaso e necessidade em linguagem de “continuidade”? (Aqui, de novo, a desvantagem do pensamento evolucionário/progressivo é sua aversão quase heraclitiana a qualquer ideia de continuidade.) (37)

É pensando nos mesmos vínculos mencionados acima que Jorge de Lima relaciona os personagens que dão sequência à dinastia, centrando-se no drama desencadeado pelo despertar místico de Margarete e a recusa paterna, assim como na continuidade levada à cabo pelas filhas de Margarete. No poema isso fica mais claro porque a história se divide em três blocos, cabendo à Margarete um terço dos versos

(trecho intermediário), outro terço cabe a suas filhas (trecho final) e o terceiro terço aos demais personagens (começo do poema). O objetivo narrativo do poeta, portanto, consiste em relatar o modo como o circo se tornou e continua místico, divergindo das versões da imprensa, que provavelmente fazem circular uma imagem centrada nos aspectos exteriores e mercadológicos do espetáculo.

Nas canções o objetivo é outro — elas alteram a perspectiva religiosa por uma perspectiva agnóstica — e por isso, entre outras coisas, as porções narrativas se distribuem mais igualmente entre os personagens. Em resumo, cada canção traz encapsulada uma cena específica do enredo, às vezes produzindo saltos muito distantes no tempo:

1) Beatriz – recriação lírica do momento em que Frederico se apaixona por

Agnes. A canção retrata o momento em que o jovem estudante de medicina

assiste, alumbrado, o número da equilibrista;

2) Valsa dos clowns – esta canção trata da história entre Charlotte e o clown. A

canção narra o modo aleatório como ela escolheu o marido;

192 3) Opereta do casamento – esta canção narra o relacionamento escandaloso entre

Charlotte e o clown. Além de se casar grávida, o nascimento de seu filho, Oto, ocorre um mês após o casamento. O avô de Oto, Frederico, expulsa o genro e a filha, assumindo a função de criar o neto. No fim da canção vemos os dois em um número equestre;

4) A história de Lili Braun – a canção narra, do ponto de vista da personagem feminina, a história entre ela e Oto, desde o momento em que se viram pela primeira vez até o cotidiano da vida conjugal;

5) Meu Namorado – encena o despertar religioso de Margarete, filha de Lili

Braun e Oto. A canção, eminentemente lírica, apresenta, segundo o modelo do

Cântico dos Cânticos, um diálogo entre a personagem e seu Namorado;

6) Sobre todas as coisas – o marido assedia a esposa, mas apesar de sua poderosa e perversa oratória, vê-se impotente e, portanto, alienado da esposa;

7) A bela e a fera – cena do assédio e violentação de Margarete por Rudolf, o homem-fera;

8) Ciranda da bailarina – a perfeição das gêmeas é colocada em questão pelas crianças da plateia;

9) O circo místico – resumo da história (esta canção se constrói a partir de fragmentos biográficos e de uma meditação sobre a existência);

10) Na carreira – novo resumo da história (espécie de duplo da canção anterior); nesta canção a biografia também é recontada de modo fragmentário e aparecem viagens, casos amorosos, números de circo e efetua-se uma meditação sobre a existência. As duas últimas canções formam, por assim dizer, uma “coda

193 bipartida”. O profano, do ponto de vista místico. O místico, do ponto de vista

profano.

Independentemente do roteiro do balé, a multiplicidade de vozes que as canções encenam produz resultados muito diferentes do poema. Para começo de conversa, trata-se da história narrada de diferentes pontos de vista e a partir de cenas específicas. Quer dizer, os personagens não tem a intenção de contar a história do circo ao qual pertencem.

Mas é a história mesma que se apresenta através das cenas que as canções atualizam.

Nesses termos a história dos Knieps não é recontada em termos narrativos mas cênicos.

Até mesmo as duas últimas canções, que contêm fragmentos da história, não pretendem relatar o enredo como um todo, daí serem meditações sobre a vida circense e a existência.

A narrativa, que é encenada coreograficamente, portanto, não comparece de modo explícito no corpo das canções. Logo, trata-se da história vislumbrada a partir de um ponto de vista interno e altamente fragmentário. É nos encontros entre os personagens e nos dramas por eles vividos, e apenas aí, que se insinua a biografia contida no poema. Os cancionistas, nesses termos, adotam uma posição distanciada em relação à diatribe entre o poeta e a imprensa. Essa querela não está em causa no âmbito cancional. Todos os fuxicos e comentários feitos à vida dos artistas da companhia são produzidos pelo espectador ou pelo povo que mora nas cercanias do circo (como é o caso da “Opereta do casamento,” cujo coro funciona como a ‘boca do povo’).

Se a questão entre o poeta e a imprensa está excluída, então, a própria questão do embate entre a visão religiosa e a visão profana não se coloca nos mesmos termos em que aparece no poema. Ela está presente, sim, mas de maneira interna, transformada em visão agnóstica. A profusão de pontos de vista contribui, em parte, para a pulverização de uma

194 visão dicotômica do problema. Mas o outro fator que contribui de modo decisivo para a mudança de perspectiva é a própria natureza das imagens cancionais. A variedade de formas, gêneros e timbres, assim como as imagens poéticas propriamente ditas não admitem uma tomada de posição unilateral. A tessitura é polifônica tal qual o ponto de vista agnóstico, que, por se pautar em uma opinião declaradamente suspensiva ao problema da continuidade, oferece a possibilidade de uma representação também suspensiva (reticente) do problema pelas canções. Não se trata de definir se a vida continua após a morte mas enfatizar o limite humano perante essa questão. Afinal de contas, afirmar ou negar a referida continuidade são gestos que recaem sempre em campo ficcional. Portanto, a posição que interessa aos cancionistas funda-se na dúvida e em uma conduta suspensiva, como podemos atestar de maneira clara através das duas últimas canções, mas também das demais. Evidentemente, os personagens muitas vezes caem em contradição. No entanto suas contradições são marcas que indicam sua posição suspensiva. Nesses termos, a coda bipartida do final dá bem a medida dessa posição aberta, de difícil aceitação e cujas características aproximam os compositores de um autor como Guimarães Rosa, por exemplo. Trata-se de colocar as questões em um lugar inusual: o lugar da dúvida radical e a aceitação trágica do limite humano. A opção pela dúvida coloca o sujeito em uma espécie de itinerância perpétua, tal como os artistas circenses. Daí a total adequação do motivo (o circo místico) à perspectiva adotada pelos cancionistas. O nomadismo, que se funda no movimento contínuo, é avesso a qualquer tipo de certeza cristalizada.

195 O Contraponto Alegórico

No quase meio século  45 anos  que se passou entre o poema e as canções desenrolaram-se muitos acontecimentos que marcaram profundamente o Brasil e o mundo. Em âmbito internacional, destacam-se a Segunda Guerra Mundial, a Revolução

Cubana, a Guerra do Vietnã, a independência da Índia, a criação do Estado de Israel, a divisão da Alemanha em dois blocos, a proclamação da República Popular da China, a

Guerra da Coreia, a independência da Argélia, a chegada do homem à Lua, a Revolução dos Cravos; em contexto brasileiro, a tentativa de golpe integralista (1938), a instituição do salário mínimo (1940), a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1942), a renúncia de Getúlio Vargas (1945), o suicídio de Getúlio Vargas (1954), o governo de JK

(1956-1960), a inauguração de Brasília (1960), a posse e a renúncia de Jânio Quadros

(1961), a instalação da ditadura militar (1964), a instituição do AI-5 (1968), o começo de um processo de distensão gradual da ditadura (1978), o fim do AI-5 (1978), a aprovação da lei de anistia (1979), a concessão de registro ao PT (1982), o início do movimento pelas Diretas Já (1983).

Perante tantos acontecimentos, talvez não seja possível observar, à primeira vista, algumas simetrias surpreendentes que permitem associar os dois extremos desse período histórico. A inversão numérica dos dois últimos algarismos da demarcação temporal  de 1938 a 1983 , fruto deliberado do acaso, aponta para um espelhamento efetivo no nível dos processos históricos que então se desenrolavam, pelo menos no que diz respeito

à experiência brasileira. Consideremos alguns pontos: 1) quando o poema foi publicado uma ditadura se intensificava no país (o Estado Novo getulista fora instaurado em 1937); o balé veio a público quando uma outra ditadura — a ditadura militar — encontrava-se

196 em pleno processo de distensão, sendo que 1983 é o ano em que ocorreram as primeiras manifestações do movimento pelas Diretas Já; 2) as medidas econômicas e políticas de

Getúlio Vargas, iniciadas em 1930 resultam em uma considerável mudança para o país, as quais encontraram o auge de seus efeitos durante o governo JK; a ditadura militar iniciada em 1964, por sua vez, a despeito de ter dado sequência às políticas getulistas de industrialização, gerando nos anos 70 o surto de modernização que ficou conhecido como o milagre brasileiro, representou, sob muitos aspectos, um retrocesso político em nossa história, criando gerações despreparadas para o exercício efetivo da cidadania e contribuindo para acentuar a desigualdade social e a impunidade, que se acentuariam de maneira galopante a partir da década de 1980, quando justa e sintomaticamente se dava a abertura política no país. No meio exato desse período marcado por ditaduras, deu-se a tão aclamada era JK, democrática e de relativa estabilidade política. Jorge de Lima morreu em 1953, um ano antes de Juscelino ser eleito. No último ano de seu mandato,

1960, ano da fundação de Brasília, Edu e Chico já haviam descoberto a Bossa Nova e davam seus primeiros passos como compositores aprendizes, preparando o terreno para a profissionalização que se daria sobretudo a partir do contato com o teatro e dos festivais da canção que começaram a ser realizados em 1965.

Tais simetrias não são fortuitas. Revelam que na experiência histórica brasileira desse período ocorreu uma alternância significativa entre regimes autoritários e democráticos, os quais podem ser lidos como sintoma de um processo que se dá em nível profundo e que se manifesta sob a forma da instabilidade política. Chico Buarque, em uma entrevista na qual, entre outras coisas, faz um balanço do governo Lula e sua

197 respectiva defesa,38 comenta que talvez o ex-presidente tenha sido o governante mais atacado de todos os tempos na história do Brasil. Conforme fica expresso na fala de

Chico, alguns dos ataques ao governo de Lula eram pertinentes, mas a forma como os descontentes se manifestavam, sobretudo em relação ao então presidente, indicava um fato que, segundo o compositor, era alarmante: o espírito da ditadura continuava vivo. É de se perguntar, portanto, se o povo brasileiro já entrou de fato no tão divulgado estágio histórico regido pelo princípio da democracia e pelo exercício efetivo da cidadania.

Como sabemos, os índices crescentes de violência e desigualdade social apontam para o lado contrário, embora sejam ao mesmo tempo um inequívoco sintoma de que é ncessário transformar o quadro social opressor e autoritário da cultura brasileira. Nesses termos, a violência pode ser lida como uma clara resposta à desigualdade social e a inúmeros outros pontos de tensão (a impunidade, o racismo, a fome etc.) que se reproduzem na realidade brasileira. As tranformações têm caráter de urgência e ocorrem lentamente, à deriva da história oficial, o que acentua ainda mais o choque entre as malhas do controle social e necessidade de mudança.

Em suma, as discussões que envolvem história e destino fazem parte central do período em questão, que pode ser considerado um dos períodos em que o Brasil procurou assumir o papel de sujeito de sua própria história e em larga medida se deparou com vários obstáculos. Durante a década de 1930, as mudanças foram grandes, mas não chegaram a alterar a estrutura do país, conforme Antonio Candido indicou num ensaio decisivo:

De maneira geral a repercussão do movimento revolucionário de 1930 na cultura foi positiva. Comparada com a de antes, a situação nova representou grande progresso, embora tenha sido pouco, em face do que se

38 A entrevista foi publicada no caderno “Ilustrada” da Folha de São Paulo, em 06 de maio de 2006.

198 esperaria de uma verdadeira revolução. Se pensarmos no “povo pobre” (como diria Joaquim Manuel de Macedo), ou seja, a maioria absoluta da Nação, foi quase nada. Mesmo pondo entre parênteses as modificações que poderiam ter ocorrido na estrutura econômica e social, para ele o que se impunha era a implantação real da instrução primária, com possibilidade de acesso futuro aos outros níveis; e ela continuou a atingi-lo apenas de raspão. Mas se pensarmos nas camadas intermediárias (que aumentaram de volume e participação social depois de 1930), a melhora foi sensível graças à difusão do ensino médio e técnico, que aumentou as suas possibilidades de afirmação e realização, de acordo com as necessidades novas do desenvolvimento econômico. Se, finalmente, pensarmos nas chamadas elites, verificaremos o grande incremento de oportunidades para ampliar e aprofundar a experiência cultural, inclusive com aquisição de um corte progressista por alguns dos seus setores. (1989, 194)

Os 50 anos em 5 de Juscelino também não foram impactantes o bastante para alterar a estrutura da sociedade brasileira. O milagre brasileiro dos anos 70 e o período da ditadura como um todo certamente fizeram o país marcar passo em muitos aspectos, apostando em um ideal que vem sendo severamente criticado desde o século XIX. No entanto, é inegável que a sociedade esteja se transformando. Um dos meios de visualizarmos as mudanças consiste na análise dos deslocamentos da imagem do circo místico na cultura brasileira.

Todos os fatos históricos mencionados acima dialogam de modos específicos com a alegoria do circo místico tal como utilizada por Jorge de Lima e por Edu Lobo e Chico

Buarque. Para o poeta, como vimos, tratava-se de questionar a hegemonia nacionalista, lançando mão de uma comunidade imaginada a partir da referência religiosa, no caso, católica. Nesses termos, a história do outro (o circo estrangeiro) também se torna a história de si, ambas coincidindo (no nível anagógico de que fala Dante) com a história da salvação. É por isso que Jorge de Lima enfatiza tanto o milagre, que lhe parece o meio mais propício de testemunhar sua fé. Edu e Chico, por sua vez, acentuam o aspecto de

199 trabalho comunitário do circo e deduzem acentos deliberadamente agnósticos da alegoria tal como imaginada pelo poeta. No contexto da reabertura política dos princípio da década de 80 no Brasil, a re-encenção da alegoria elaborada por Jorge de Lima coloca o circo místico em um plano deliberadamente coletivo. Não se trata mais de um poeta a contar a história de uma família circense e a buscar a sensibilização de seus leitores, via o relato do milagre, para uma visão transcendental da existência. Nas canções, por um lado, são os próprios personagens que trazem à tona seus pontos de vista e seus dramas, colocando em outros termos (em termos de relação de poder) o aspecto religioso. Por outro, são os artistas dando um exemplo concreto da experiência de criação coletiva, o que ressoa a experiência política de então sem no entanto funcionar como seu espelho, uma vez que o que na arte se deu de modo efetivo, na política deslizou para o figurado.

Paraíso do Gentileza

Depois de assistir ao filme O circo (1966), de Arnaldo Jabor, dei-me conta, com grande surpresa, de que o motivo do circo místico não estava restrito à obra de

Jorge de Lima e às canções de Edu Lobo e Chico Buarque. O filme de Jabor, primeiro circo místico da contracultura brasileira, contém passagens enfáticas a respeito de como no Brasil circo e misticismo podem andar juntos. Na edição da filmografia de Jabor recentemente editada, O circo foi incluído no mesmo DVD de

Opinião pública (1967), primeiro longa-metragem do diretor. Guardam em comum o fato de terem sido feitos no mesmo contexto histórico e possuírem um fundo político, que se explica pela ligação do diretor com alguns aspectos do pensamento

200 da esquerda que naquela altura mantinha uma atitude de resistência à ditadura militar implantada no país em 1964.

Jabor comenta que decidiu fazer o documentário sobre o circo quando notou que se escolhesse algum tema ligado diretamente à política poderia sofrer retalhos por parte do governo. Segundo ele, o tema do filme  o circo  não ofereceria motivos para tanto. Além disso, o documentário pressupunha um certo distanciamento por parte do diretor, que pretendia se posicionar frente ao objeto com um olhar etnográfico e antropológico, marcas do cinema-verdade então em voga e também praticado por outros diretores ligados ao Cinema Novo.

No entanto, o filme, a despeito do suposto distanciamento crítico do cineasta, apresentava, desde o contexto histórico em que foi feito, muitas chances de ser interpretado como uma alegoria de resistência. Isto se dá em vários níveis, a começar pela escolha de um circo decadente, marcado pela precariedade material e o estado de quase completa marginalidade por parte de seus artistas. Os sinais da ruína são expostos a todo instante, da contratação dos artistas à montagem do picadeiro. Uma das cenas, por exemplo, mostra um dos funcionários costurando uma lona já cheia de remendos. A penúria do circo retratado é exposta durante o filme inteiro e associa-se à pobreza da própria população do subúrbio em que está instalado.

Por razões como essas, a película poderia facilmente ser associada à estética da fome e às alegorias que vinham sendo produzidas pelo Cinema Novo. Outras afinidades também poderiam ser apontadas, como as teorias de sobre a pedagogia do oprimido, as ideias de literatura e subdesenvolvimento, de Antonio

201 Candido, as construções antropológicas de , sociológicas de Florestan

Fernandes e econômicas de , que buscavam explicar o país de um

ângulo novo e questionador.

Nesses termos, a escolha do objeto e do modo de representá-lo fornecem, logo de saída, uma visão sobre o Brasil, visão que continha de maneira figurada mas contundente uma denúncia sobre a realidade do país. O registro da vida humilde dos artistas e da plateia expõe de maneira discretamente hiperbólica a condição dos oprimidos e, por extensão, a grande disparidade de classes existente no país. Isto se dá pelos valores ligados ao conceito de resistência  a necessidade da arte assumindo uma função levada ao extremo pelos artistas e pelos espectadores que, apesar de não viverem em condições materiais favoráveis, continuam, não sem dificuldades, mantendo viva uma das artes populares mais antigas. Assim, o filme de Jabor é também um retrato sobre a capacidade de resistência da cultura popular.

Um outro aspecto que facilmente poderia ter sido associado ao contexto político da época é a violência que tradicionalmente faz parte do espetáculo circense. No filme, a plateia quase vai abaixo de tanto rir quando alguns palhaços se agridem no picadeiro. São várias as formas de violência no circo, tão várias talvez quanto na própria realidade: a agressão física, a humilhação, o racismo. Esse fator, portanto, funciona como representação do que se vivia no cenário político de então: a falta de liberdade de expressão, a tortura, a desigualdade social, a impunidade...

Além disso, esses traços de violência, que em determinados contextos históricos se tornam mais evidentes, possuem um fundo ancestral na cultura brasileira que talvez o circo — e especialmente o circo místico — seja uma figura privilegiada para

202 repensá-lo. Esse fundo ancestral de violência foi estudado, por exemplo, por Sérgio

Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala,

Sobrados e Mocambos), Caio Prado Júnior (Formação econômica do Brasil), Darcy

Ribeiro (O Povo Brasileiro) e José Miguel Wisnik (Veneno Remédio  O Futebol e o Brasil). Este último pensador, em um ensaio sobre Guimarães Rosa, elabora uma observação sobre o problema da violência cordial, que se aplica integralmente ao caso do circo místico (de Jabor e todos os demais):

Uma leitura superficial de Primeiras Estórias poderia concluir que o país se urbaniza e distende, e que a violência do sertão sem lei perde chão histórico, caminhando para uma resolução pacificadora na civilidade. O que se dá de fato, em alguma medida a definir, mas de nenhum modo em caráter conclusivo. O que é mais marcante, especialmente nos contos em que se interrogam os destinos da violência sertaneja, é que a urbanização incuba os fundamentos da violência que imperou e continua imperando no sertão, inclusive porque essa sempre foi inseparável daquela, como são inseparáveis, embora contrapostos, a cidade e o sertão. As narrativas deixam no ar essa latência: num momento de euforia modernizante no Brasil, as cidades são ainda e sempre sertão, e no mundo cidadão a inconclusividade da lei, sua (não-)fundação, permanece espetando como questão e problema. (2004, 150)

O circo permite considerar a violência ancestral que marca a cultura brasileira de um ângulo abrangente, pois de certa maneira exclui a oposição entre cidade e sertão. Recortando o país como uma comunidade nômade, não é possível associá-lo nem à cidade nem ao sertão: ele pertence a ambos. Por isso, o circo funciona como uma espécie de costura invisível (uma túnica inconsútil) do país. À margem da margem, os fermentos da cultura atuam de maneira discreta mas decisiva. Do ângulo do circo o país pode ser visto como de um belvedere. No picadeiro desenrolam-se, de forma livre, os processos que atuam no plano da história.

203 Há ainda um outro aspecto do filme da maior importância para a contextualizar o período entre 1964-1984, entendido, aqui, como o contexto histórico do balé O grande circo místico. Trata-se do trecho final, em que aparecem imagens de um circo incendiado em Niterói e um personagem que a partir de então se tornou um personagem urbano largamente conhecido no Rio de Janeiro e em

Niterói, em cujas ruas perambulou durante 35 anos: o profeta Gentileza. O cineasta consegue registrar momentos dramáticos da história coletiva e do personagem. O incêndio no circo — as imagens das vítimas são contundentes e desoladoras — teve quase 400 mortos. Esse desastre teve como resultado a conversão de José Datrino, que naquela ocasião era um empresário bem-sucedido, casado e pai de cinco filhos.

Um dia pós o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói, em 17 de dezembro de 1961, Gentileza se converteu e começou a seguir um caminho místico:

O episódio do circo tem uma importância fundamental na mitopoética e na linguagem nascente de Gentileza. O acabamento trágico do circo queimado cria as bases para um novo recomeço de mundo, sob a intervenção do Profeta. Sua figura inusitada e exótica deve, em grande parte, ao circo, sua motivação estética e formal. (Guelman, 28)

Cinco anos após o incidente, o filme mostra algumas imagens de um

Gentileza em êxtase, inscrevendo e cantando palavras ligadas às visões místicas que então lhe acometiam no caminhão que guardou para si e que instalou no terreno do circo incendiado. Estacionado no local exato onde ocorrera o incêndio, é possível assistir ao fervor religioso com que Gentileza prepara o caminhão  como em um picadeiro a céu aberto  para a peregrinação que em poucos dias daria início:

Depurou o local, transformando-o num grande jardim circular. Abriu poço “onde corria água limpinha,” fez horta e cercou o terreno, denominando-o “paraíso do Gentileza” e ali assumiu a sua missão “de ser o consolador de todos aqueles que perderam seus entes queridos.”

204 Gentileza acabou permanecendo quatro anos naquele sítio. O vínculo criado entre o Profeta recém surgido e o circo queimado, espalhou definitivamente, a ‘lenda’ de que ele teria perdido toda a família na tragédia do circo. Nunca, em vida, Gentileza pôde libertar-se dessa versão, que ele tanto refutava. (2001, 28)

Essa é uma outra forma do espetáculo circense dentro do filme e mostra como o destino do místico pode algumas vezes ligar-se ao circo, certamente o primeiro circo místico que veio à luz na época da contracultura no Brasil.

Logo após esse momento, surgem imagens de Gentileza em peregrinação pelas ruas do Rio de Janeiro. Podemos observar então um personagem já com menos ligações com sua vida profana (na cena do caminhão ele ainda parece um homem comum). A barba crescida, os cabelos compridos, a magreza e modo de se vestir durante as décadas de 60 e 70 remetem imediatamente à figura de um hippie. Além disso, ele passa a se autodenominar profeta, passando a anunciar o Evangelho de forma arrebatada. No entanto sua figura oscila entre a delicadeza do gesto de oferecer flores aos passantes e a forma contundente e agressiva com que outras vezes se dirige ao público. Ambos estados de espírito foram registrados pelo cineasta e podemos ver tanto um Gentileza sorridente e sereno quanto enfurecido a dar fortes pancadas em um ônibus coletivo anunciando aos gritos o fim do mundo.

O percurso de Gentileza contém um ideal de renúncia e desprendimento profundamente revolucionário e cujo sentido aponta para a desestabilização das comunidades sedentárias, como uma grande parcela da sociedade brasileira. Os hippies, por um lado, e a Teologia da Libertação, por outro, guardadas as devidas diferenças de doutrina e repercussão entre esses movimentos, viam-se sintetizadas nesse personagem místico circense. Por tudo isso, o filme é um primeiro indício de

205 que o circo místico pode ser lido como um recado à deriva na cultura brasileira. Em constante deslocamento essa imagem reaparecerá em outros lugares da cultura, o que nos leva a repensá-la em termos mais amplos do que a relação exclusiva entre as obras de Jorge de Lima, Edu Lobo e Chico Buarque. Ao que parece, o circo místico

é uma espécie de imagem-phármacon, fazendo circular na cultura brasileira um recado até hoje ainda não ouvido em toda a sua abrangência. Sendo marca da própria cultura brasileira, sintetisa noções que possibilitam interpretar o país como um grande circo místico.

O período que liga o filme ao balé, entretanto, viu ainda outras manifestações cinematográficas desse mesmo motivo  o circo místico , o que reforça a hipótese de que ele é um meio particular de se imaginar a nação. Ainda no âmbito do cinema temos Bye bye Brasil, de Cacá Diegues, O Santo Guerreiro contra o

Dragão da Maldade, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Idade da Terra, de Gláuber

Rocha. Todos esses filmes de contêm elementos místicos e circenses, sobretudo se considerarmos o caráter bufo de alguns personagens (como Corisco e Antonio das

Mortes, por exemplo).

Anjo de Pernas Tortas, Alegria do Povo

Por incrível que pareça, a junção de circo e misticismo também comparece em uma das formas de expressão cultural mais significativas do Brasil: o futebol. O jogador que sintetiza a imagem do circo místico é eloquente, embora ao mesmo tempo trate-se de um daqueles óbvios ululantes rodrigueanos — Garrincha. Esse

206 jogador, que por tantos atributos era de fato excepcional, sintetiza em sua figura, de maneira insólita, mas inequívoca, o místico e o circense. Esse fato vem às claras quando associamos os dois codinomes utilizados popularmente para designar esse herói da nossa gente: ‘anjo das pernas tortas’ e ‘alegria do povo.’ Ora, esses dois apelidos revelam a ligação do jogador com os valores por eles articulados. Em outras palavras, o anjo de pernas retorcidamente barrocas, ao jogar, efetivamente era, como um Carlitos do gramado, a alegria do povo. O atributo divino o aponta como um ser de exceção, portador de um elemento sobrenatural que tem a aparência de defeito físico (as pernas tortas) mas que funciona como arma imbatível perante o adversário. O outro, o atributo profano  a alegria , reforça o caráter de exceção do jogador, que, em campo, parecia brincar, ligando-se, por isso, ao universo do clown. Essa característica rendeu-lhe muitos problemas por parte dos treinadores que tentavam regular seu modo de jogar. Mas também rendeu problemas, muito mais numerosos e incontornáveis, aos marcadores que jamais teriam como lidar com a lógica desconcertante dos seus dribles. No campo, além de aterrorizar o adversário e inventar funções táticas inovadoras, os dribles de Garrincha iam muito além do jogo propriamente dito, funcionando como um número cômico. O milagre das jogadas, que só poderiam mesmo ser realizadas por um ‘anjo,’ não estava separado, portanto, do caráter histriônico desse mesmo personagem.

207 Circo de Letras

A imagem do circo místico também se encontra em outros autores da literatura brasileira. Cruz e Sousa, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Raul

Bopp, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Murilo

Rubião, João Guimarães Rosa, Mário Faustino, Francisco Alvim, Ana C., Eudoro

Augusto, Cacaso, Chacal e Ariano Suassuna, entre outros. Indicarei a seguir apenas alguns breves exemplos.

Murilo Rubião insere tanto o circo quanto o misticismo em vários de seus contos, tanto temática quanto estilisticamente, como “O ex-mágico da Taberna

Minhota,” “O pirotécnico Zacarias,” “Teleco, o coelhinho,” “A casa do girassol vermelho,” “Os dragões” e “Marina,” entre outros. Embora alguns desses contos tenham sido publicados originalmente em 1946, ano da estreia literária do autor, todos eles foram sendo reescritos com o passar dos anos.

Em Guimarães Rosa, a aproximação entre o místico e o circense é sensível a partir do próprio estilo, atingindo também a estruturação narrativa. No último livro publicado em vida pelo autor  Tutaméia (1967)  deparamo-nos com a síntese em questão tanto em um conto como “Palhaço da boca verde” como em outras passagens do livro, como, por exemplo, a encenação cômica do Natal, em

“Presepe,” ou o conto “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi”. Alguns contos podem ser analisados como integrados à lógica do espetáculo circense — “Nós, os temulentos,” “O outro ou o outro,” “Quadrinho de estória,”

“Rebimba, o bom,” e “Retrato de cavalo,” por exemplo.

208 Os poetas marginais (Waly Salomão, Cacaso, Chico Alvim, Ana C., Eudoro

Augusto, Zuca Sardan, Chacal, Armando Freitas Filho, entre outros) fizeram algumas vezes poesia com temas místicos. Como estavam associados à poesia pau- brasil oswaldiana, via poema-piada e representação alegórica do país (o que fez deles continuadores dos processos que ligavam os poetas modernos ao lirismo dos clowns), quando exploram o terreno místico produzem quase sempre “circos místicos.” Além disso, ligavam-se ao Circo Voador, inaugurado no Rio de Janeiro em 1982, o que chamava atenção para o caráter performático de alguns desses poetas, além de trazer no nome uma relação explícita com o circo.

Entre os poetas dessa geração, Chacal e Cacaso foram os que mais escreveram sobre o circo, incorporando também alguns elementos místicos  sobretudo este último. Na obra de Chacal encontramos “Espere baby não desespere”

(América, 1975), “Antropófago,” “Lá lá lá” e “Alô, é Quampa?” (Quampérius,

1977), “Vida de artista” (Boca roxa, 1979) e “Número da paixão” (Drops de abril,

1983). Das imagens que utilizam signos de circo de modo figurado à referência direta  em “Lá lá lá” é mencionado o circo que pegou fogo em Niterói em 1961

, Chacal mostra-se sensível aos motivos do circo e do misticismo (com relação a este, sobretudo em Quampérius). Poeta fundamental da poesia brasileira, Chacal introduziu elementos da performance no texto poético e vice-versa, tornando-se o poeta-performer mais notável de sua geração.

A presença do circo místico, embora discreta, atravessa praticamente toda a obra de Cacaso, de Segunda classe (1975) a Mar de mineiro (1982). Se considerarmos a presença indireta desse motivo, uma presença recebida diretamente

209 de Jorge de Lima, deveremos incluir na lista A palavra cerzida (1967). Aqui estão os poemas em que aparecem referências diretas ao motivo em questão: “Circo”39 e

“Início das aulas” (Segunda classe, 1975), “Papo furado,” “Na corda bamba,”

“Coincidência” e “Sucesso na geral” (Na corda bamba, 1978), “Venus Brazil” e

“Juízo Final” (Mar de mineiro, 1982). O universo místico aparece de modo mais intenso no primeiro livro de Cacaso, A palavra cerzida (1967). Nesse livro, poemas como “O arlequim,” “Alucinações” e “Alegorias” resultam da pesquisa que o jovem poeta realizava em relação a Jorge de Lima e Murilo Mendes, que buscou fundir, numa impressionante síntese, que não se ressente da influência. Até mesmo a figura de Orfeu aparece, de modo explícito, no quarto soneto das “Alucinações” (ao todo são nove sonetos).

Bêbados e Equilibristas

Na música popular brasileira feita a partir da década de sessenta, circo e mística deram-se as mãos de muitas maneiras e em alguns momentos, que não foram poucos, ganharam projeção nacional, embora a discussão sobre o motivo tenha ficado à margem. Exemplos: “Aquele abraço” (Gilberto Gil), “Gran Circo” (Milton

Nascimento e Márcio Borges), “Fé cega, faca amolada” (Milton Nascimento e

Ronaldo Bastos), “Circo Marimbondo” (Milton Nascimento), “Pão e Água” (Lô

Borges, Márcio Borges e Roger Mota), Mágico e Circense (), “O circo” (Roberto de Carvalho e ), “O circo chegou” (Jorge Benjor) e “O

39 Este poema é de Luis Olavo Fontes, que dividiu o livro com Cacaso, sendo que na edição original, num gesto surrealista, os poetas decidiram não indicar a autoria dos textos.

210 bêbado e a equilibrista” (João Bosco e Aldir Blanc), inspirada em Chaplin e transformada em hino da reabertura política. “Falso brilhante”, também composta por João e Aldir, originou um espetáculo de no qual havia muitos elementos de circo, o palco sendo um picadeiro e os músicos atuando a partir de personagens, como por exemplo o grupo de clowns que acompanhava a cantora na interpretação de “Gracias a la vida”, da compositora chilena Violeta Parra. Em uma das capas do disco que gravou em 1971, Elis aparece vestida de palhaço. A cantora voltaria ainda uma vez ao motivo do circo em 1980, no especial gravado para a televisão Elis Regina Carvalho Costa, onde a artista emprega de modo inequívoco a imagem do circo como representação do Brasil. Anos mais tarde, em 1986, o programa de fim de ano de Roberto Carlos retoma essa mesma ideia, tendo como subtítulo uma imagem muito significativa para o que estamos indicando aqui —

“Um circo chamado Brasil”. Nesse subtítulo encontra-se a síntese do que se passava no plano da música popular brasileira em termos de imaginar a nação como um circo.

Cinema transcendental (1979), de Caetano Veloso é um dos discos mais importantes para a discussão sobre a rede de circos místicos na cultura brasileira.

Nele há, por exemplo, três “orações”  “Lua de São Jorge,” “Oração ao tempo” e

“Elegia”  cada uma dessas canções é mística a seu modo: a reza popular, a meditação filosófica e a metafísica barroca. Neste último caso, o misticismo é explícito, uma vez que a letra da canção foi desentranhada de um poema de John

Donne antropofagicamente transcriado em poesia e bolero por e

Péricles Cavalcanti). Além dessa relação explícita com a mística, o disco ainda

211 contém uma canção que reúne o circo e o misticismo, além de outros elementos da cultura brasileira, numa espécie de retrato-relâmpago do país: “Os meninos dançam.”40

Outro disco decisivo dessa mesma época é Arca de Noé. Nele o patriarca da gaia ciência da música popular brasileira, Vinicius de Moraes, reúne alguns parceiros e intérpretes, legando ao nosso cancioneiro o que pode ser considerado seu testamento poético-musical. Esse trabalho, que precedeu sua morte, deu a deixa para vários outros trabalhos que se relacionavam com o disco, além de se inserir nesse prodigioso “momento místico-circense” da música popular brasileira através da temática bíblica.

Missa dos quilombos (1982), de Milton Nascimento, embora não contenha o motivo do circo e seja mais estritamente místico, forma com Luar  A gente precisa ver o luar (1980) e Um Banda Um (1982), ambos de Gilberto Gil, que também apresentam grande carga mística, , Arca de Noé e O grande circo místico, além do conjunto monumental das canções e programas de música mencionados acima, uma espécie de retrato poliédrico do país na passagem da década de 70 para a de 80.

Todos esses trabalhos, juntamente com O grande circo místico, formam uma constelação na qual a imagem do circo místico pulsa de forma inelutável. Nesses termos, as canções de Edu Lobo e Chico Buarque em questão explicitam algo que estava latente no campo da canção e, mais amplamente, da cultura brasileira,

40 A esta canção, aliás, pertence a imagem que utilizei ao nomear esta tese — “circo transcendental.”

212 formando um topos cultural que, como veremos adiante, dialoga com as interpretações do Brasil.

Redescrição das alegorias

Recapitulemos alguns pontos. As canções do balé O Grande Circo Místico foram compostas por Edu Lobo e Chico Buarque em 1982 e gravadas no ano seguinte.

Tornaram-se desde então um sucesso absoluto de vendas, sendo reeditadas, em forma de CD, em 1993, pela Velas, e, em 2004, pela Dubas. A montagem do espetáculo, realizada pela companhia de dança do Teatro Ballet Guaíra, circulou pelo país durante 1983 e 1984 e, em quase 200 apresentações, foi vista por mais de

200 mil pessoas. Houve também uma segunda montagem, em 2002, que implicou na gravação ao vivo de um novo CD e uma turnê que alcançou mais espectadores ainda.

As canções caíram de tal forma no gosto popular, que vários músicos continuam a regravá-las. Em vista disso, podemos dizer, sem medo de errar: as canções do circo místico nasceram clássicas. Mas, além do fato de serem peças fundamentais da música popular brasileira  ou talvez justamente pelo fato de o serem , elas continuam vivas porque através delas pulsam questões decisivas da vida brasileira.

Numa primeira aproximação, podemos dizer que talvez a maior parte dessas questões estejam ligadas ao modo como o circo  e especificamente o circo místico

 se manifesta na cultura brasileira. Em geral, o circo não aparece em primeiro

213 plano quando indagamos sobre as manifestações culturais mais características do

Brasil. O que logo salta aos olhos são certamente o futebol, o carnaval e a música popular. No entanto, existe um vasto número de companhias circenses espalhadas pelo país, companhias que recortam o território nacional em perene itinerância e que levam a experiência do maravilhoso a inúmeros espectadores há mais de dois séculos. A grande maioria dos circos brasileiros é nômade e possui características próprias quando comparada aos circos fixos. As companhias nômades geralmente são pequenas e tem no palhaço sua figura central, além de estruturarem seu espetáculo a partir de uma forma também nômade, isto é, que se modifica de tempos em tempos, dependendo dos tipos de artistas que vai agregando ao espetáculo durante o itinerário. As companhias sedentárias, ao contrário, possuem uma estrutura mais estável, baseada na apresentação de números. As companhias pequenas geralmente são formadas apenas por artistas enquanto as grandes incluem animais adestrados.

Os fatores que determinam a exclusão do circo da cultura oficial, embora ainda pouco estudados, certamente relacionam-se até hoje às medidas políticas que o marginalizaram no século XIX. Como foi mencionado anteriormente, tais fatores foram analisados por Regina Horta Duarte em Noites Circenses (Espetáculos de

Circo e Teatro em Minas Gerais no século XIX). Entre eles, destacam-se a capacidade de desestabilizar a vida na cidade, com o choque entre as potencialidades dionisíacas do nomadismo circense e o sedentarismo oficial implantado pelo Estado:

A formação de um estado imperial supervisor e burocrático se faz sentir a partir da década de 1840, com o início da montagem de um

214 aparelho administrativo orientado para o “exercício metódico e despersonalizado das funções públicas.” Pode ser vista como a sobrecodificação de “enunciados dominantes e da ordem estabelecida de uma sociedade, das línguas e saberes dominantes, das ações e sentimentos adequados a essa ordem dos segmentos que prevalece sobre os demais.” Muito mais que uma estatização da sociedade, o movimento é direcionado para a governamentalização do Estado, com a criação de práticas voltadas para o controle da população em seus menores detalhes. Ao invés de um espaço liso percorrido de forma nômade, os espaços seriam fechados e estriados, formados por caminhos sedentários, garantindo a comunicação entre pontos bem delimitados. A partir daí, tornava-se essencial que se criassem mecanismos de controle sobre a vagabundagem e se dedicassem os esforços para a fixação da força de trabalho e a redistribuição de seus fluxos. Populações, mercadorias e valores circulariam em trajetos fixos, em direções bem determinadas, limitadoras e regulamentadoras das velocidades, relativizando os movimentos de pessoas e coisas. (Horta, 45)

Arriscando um modo de situar o problema, podemos dizer que a concepção de história veiculada pelo circo não se enquadra na concepção oficial de história da sociedade contemporânea, neoliberal e globalizada. A concepção de história dos neoliberais diz respeito ao tempo linear, que Walter Benjamin via como o tempo vazio da flecha, o progressismo da ciência. Nesses termos, a concepção contemporânea de história veiculada pela experiência místico-circense diferencia-se, desde a modernidade, do imanentismo barroco, tal como Benjamin demonstra em A origem do drama barroco alemão e em seus ensaios sobre Baudelaire e Kafka. A concepção de história encenada pelo circo, ao contrário do que pretendem a ciência e as políticas perpetradas pela nação moderna, define-se como tempo messiânico. É certo que a visão de história embutida no circo também possui um aspecto cíclico, típico das sociedades nômades, pois eles voltam a passar pelos mesmos lugares, de tempos em tempos, e isso poderia nos levar a considerar que a concepção do tempo circense diz respeito a uma concepção da história como natureza e, nesse sentido,

215 também ligada à imanência, como no Barroco. No entanto, o que se coloca, através do circo, é a experiência messiânica, que pode ser vislumbrada através de figuras

(no sentido de Auerbach e no sentido que Jorge de Lima imprimiu na Invenção de

Orfeu) que retornam periodicamente mas ao acaso. Em outras palavras, é certo que as figuras retornam “ciclicamente,” mas sua irregularidade (imprevisibilidade) faz com que o retorno venha acompanhado de um sentido que destrói a sensação de pura repetição e, portanto, não resultam em repetição propriamente dita, mas sim em instabilidade, surpresa, variação, despertar. Tanto é assim que os circos retornam sem hora marcada, quando menos se espera, conferindo aos espectadores a experiência paradoxal de um devir que se manifesta num repente, por acaso:

Universo glorificador da ilusão e do simulacro, o circo não assume nenhuma função social, nem lhe é atribuída qualquer missão civilizadora. Ninguém lhe assinala “um papel, uma função, um sentido,” restando-lhe a licença de “não ser nada mais que um jogo insensato.” Constrastando com um mundo utilitário e prático em que tudo possui “um valor de uso ou de troca,” a entrada do palhaço abre, “na plenitude sufocante das significações aceitas,” uma brecha através da qual poderá “correr um vento de inquietude e de vida.” Desde sua chegada e em cada momento de espetáculo, os circenses tinham, como únicas propostas, cultuar o riso, o sonho, a fluidez e a mutação constante de homens e animais, numa criatividade intensa e cativante. Numa ininterrupta pulsação de desejos e de criações surpreendentes, começava o espetáculo, com a simples intenção do gozo do “respeitável público.” Ali, este poderia abandonar ou afrouxar os comportamentos exigidos de senhoras e senhores educadamente civilizados. (Horta, 184-185)

O fato de não se saber quando o circo retorna faz toda a diferença, porque essa imprevisibilidade foge aos padrões que o mundo administrado tenta imprimir a todo custo à vida contemporânea. Em vista disso, também podemos comparar as aparições periódicas e imprevistas do circo com as situações que Guy Debord entreviu como meio de se refletir e desconstruir aqueles mesmos padrões. Essa

216 concepção messiânica da história (também latente nas teorias de Debord sobre a sociedade do espetáculo) faz com que o circo assuma, no Brasil, um aspecto de exceção, ou seja, uma arte que foge ao comportamento esperado (e imposto) pela cultura oficial e põe o espectador em contato praticamente direto com a possibilidade de transformação, transcendência, como acontecia já nos séculos

XVIII e XIX em território nacional:

Os anseios despertados pelos saltimbancos detonam várias linhas dicotômicas da vida dos habitantes da cidade. Acenavam com possibilidades de uma vida de trajetos, de constante alargamento de contornos e fronteiras, em oposição à família, ao trabalho fixador, à vida estabelecida em um lar imóvel, numa só cidade: esse o especial motivo de tantos temores, de tantos desejos. (Horta, p. 87)

E assim chegamos ao outro termo, místico, sem o qual o circo brasileiro não pode ser vislumbrado de maneira ampla. O termo em questão possui pelo menos três acepções importantes para se compreender o fenômeno que procuro descrever a seguir. O dicionário Houaiss registra três importantes acepções da palavra místico:

(1) sobrenatural, espiritual; (2) de natureza composta; misturado; misto; e (3) apetitoso, muito bom, ótimo, excelente.

A acepção religiosa, que é a primeira que vem à tona, exprime dois aspectos da visão de Jorge de Lima, autor do poema que serviu de base e contraponto para as canções: a religiosidade e a estética. O aspecto religioso é bastante óbvio, uma vez que Jorge de Lima foi poeta católico, sobretudo a partir do contexto em que escreveu A túnica inconsútil, livro de que faz parte “O grande circo místico.” O livro anterior, Tempo e eternidade, cuja autoria divide com Murilo Mendes, lança o lema: “Restauremos a poesia em Cristo.” No entanto, vimos que o projeto religioso não surge isolado em sua obra e nem é suficiente para explicá-la, mas acompanha a

217 introjeção de vários elementos do Surrealismo e a manutenção da bagagem acumulada pelo poeta até então. Nesses termos, o espiritual, que por um lado se liga ao veio religioso de sua poesia, por outro, relaciona-se com a estética surrealista. O próprio surrealismo era designado, a princípio, por sobrenaturalismo. Não é à toa que Anna Balakian nomeou dois importantes livros sobre essa corrente como

Surrealism: the road to the absolute e The literary origins of surrealism (A new mysticism in French poetry).

De uma maneira ou de outra, o aspecto central reside no fato de que se tratava, então, de uma ampliação radical do universo de referência de Jorge de

Lima, que abandonou uma espécie de olhar etnográfico-realista, restrito à realidade imediata, sobretudo brasileira, e passou a encarar o real de modo altamente abrangente, incluindo nele o inconsciente (individual e coletivo) e o surreal propriamente dito. Em compensação, a abertura para a complexidade desse campo ilimitado de possibilidades acabou por produzir na poesia de Jorge de Lima um fechamento radical. A partir de então sua poesia se tornou, qual os textos dos surrealistas franceses e dos poetas metafísicos ingleses, uma espécie de livro místico, cujo sentido oculto, permaneceria inacessível à maioria dos leitores. A falta de porosidade de certo tipo de literatura mística, que torna obscura a palavra, é alcançada, no caso de Jorge de Lima, sobretudo a partir do adensamento da imagem poético através de procedimentos como a alegoria. No entanto, em contexto moderno, a alegoria não pretendia exatamente servir como ponte entre a imagem e a coisa significada, como no Barroco e na Idade Média. A alegoria, em Jorge de Lima e outros poetas modernos, não reencontra, ao significar, um referente último — pelo

218 menos, não como contraditoriamente queria o próprio poeta, que via no subsolo de

Invenção de Orfeu uma mensagem cristã. Em Jorge de Lima, a significação produzida pela alegoria patina e devolve ao leitor a palavra enquanto um resistente enigma, linguagem qual nascedouro de imagens, palavra em estado de infans, quase exclusiva pulsação libidinal.

Esse fechamento para os sentidos comuns dos termos não significa uma subtração total do sentido, mas seu deslocamento para zonas de imperfeição e descontinuidade, que operam fora dos domínios estritos da razão, como a dança, o futebol, a música popular (o lugar fora das ideias, colhido por José Miguel Wisnik no último parágrafo de Formação do Brasil contemporâneo):

Intrigantemente, esse parágrafo final — um caso raro, se não único, de linguagem figurada e reticente no autor da Formação do Brasil contemporâneo — constitui-se, mais na identificação do déficit político da parte do escravo, e do ponto cego pelo qual o sistema escravista se reproduzia, num sinal de menos que sinaliza um algo mais: os escravos não falavam ideias, mas falavam um lugar fora das ideias. “Florestas,” “estepes” e “desertos” podem ser lidos figuradamente, se interpretamos bem a alusão a certa “linguagem mais familiar e acessível,” como gestualidade, dança, música, religião — inominadas ações extra-ideológicas —, ações simbólicas e materiais não despidas de beleza ou violência. O ensaísta reconhece aí a sobra de uma dimensão a-histórica ou fora da história ocidental moderna que lhe serve de parâmetro para a análise do “sentido da colonização.” Assim, o livro de Caio Prado Júnior tem, entre outros méritos, o de apontar, em última instância, ainda que indiretamente, para aquilo que ele mesmo silencia: as vozes caladas da população escrava, que habitam uma outra temporalidade. (2008, 412)

O fechamento alegórico (dado pela montagem no cerne da significação) faz a linguagem falar desse lugar fora das ideias ao qual se refere Wisnik. No poema, como vimos, há vários níveis de sentido que se desdobram em contraponto e que funcionam, como no próprio espetáculo circense, como uma tessitura de vozes em

219 fuga cuja apreensão exige iniciação em uma outra lógica, uma lógica que se processa em dimensão a-histórica ou fora da história ocidental moderna. A alegoria, em Jorge de Lima, portanto, habita aquela outra temporalidade indicada por Caio Prado Júnior, a temporalidade das vozes caladas da população escrava.

Sua cerrada polifonia, a qual precisa ser ouvida (“decifrada”) em vários níveis e não através do isolamento das vozes que a constituem, integra uma faixa cultural tão larga e profunda quanto marginalizada.

Edu Lobo e Chico Buarque retomam esse aspecto da alegoria jorgiana mas a colocam em outra órbita. Nas canções, o fechamento místico se inscreve, a princípio, na relação descontínua e dissonante que elas mantêm com o poema. A narrativa que o texto poético encena contrasta, por exemplo, com o lirismo das canções (mesmo que as canções, consideradas isoladamente, contenham pequenas narrativas). Em outras palavras, a narrativa do poema não se reproduz na sequência das canções, a não ser de maneira indireta, oculta. Os nexos entre as canções e o poema ficam a encargo do ouvinte/leitor. Nisto os objetos em questão podem ser considerados um organismo, uma máquina gerando sentidos incessantemente. Logo, funcionam como uma alegoria aberta. Isto é, remetem, em moto-contínuo, um ao outro e, no entanto, os nexos que os ligam nunca se revelam totalmente, refazendo- se, transformando-se. Frente a isso, o intérprete acaba tendo que assumir o papel de senhor das significações, isto é, do próprio alegorista, e passa a buscar (e eventualmente a vislumbrar) sentido em tudo. Muito do mistério (fechamento, sentido obscuro, encantamento) do circo místico tem a ver com essa participação

(mesmo que ela se dê a contragosto) do espectador-intérprete.

220 Isto posto, podemos dizer que há um sentido farmacológico do circo místico que desponta, de modo um pouco menos obscuro, na ambivalência de um verdadeiro vocabulário circense utilizado na fala cotidiana brasileira, tais como palhaço, equilibrista, mágico, trapezista, picadeiro, domar a fera, fazer milagre, estar na lona etc. O triste episódio ligado à crise da aviação brasileira ocorrido em 2007 — a queda de um Airbus da TAM — e, mais amplamente, as manifestações relacionadas

à crise do governo Lula servem como exemplos um tanto eloquentes do que estou querendo indicar. Os narizes de palhaço que foram utilizados na passeata feita em sinal de luto e protesto guardavam pelo menos dois sentidos, além de se confundir com as pesseatas anti-Lula: (1) o desejo de desqualificar os responsáveis pela tragédia — sobretudo o presidente do país — designando-os como palhaços e (2) a identificação com as vítimas. No primeiro caso, o palhaço serve para apontar a irresponsabilidade dos responsáveis pela tragédia; no segundo, assume a função de ponte entre os sobreviventes e os mortos (como que dizendo, nós sofremos como palhaços no picadeiro). Essa ambiguidade é de tal forma permeável, que fica impossível separar um sentido do outro.

A segunda acepção de místico — o que é misturado — remonta, a princípio,

às próprias características do circo. Nesses termos, o circo identifica-se com a canção popular, o futebol, o carnaval e a culinária, entre outros aspectos da cultura brasileira. Esta segunda acepção relaciona-se com o caráter efetivamente mestiço do brasileiro, onde a alta e a baixa cultura se entrelaçam, sem prejuízo para as partes, e onde ocorre, enfim, a “relação autêntica intra-humana,” de que fala Vilém-Flusser a respeito do futebol brasileiro, mas que também podemos aplicar ao caso do circo. A

221 relação autêntica intra-humana pode ser lida, no circo, e na cultura brasileira, em paralelo, de muitas maneiras. Por exemplo, através do processo de aclimatação do futebol no Brasil:

Por outro lado, o futebol no Brasil age sobre esse artigo de luxo importado que é o futebol britânico, dando-lhe outra configuração e outra destinação, em paralelo e contraponto com a música popular. No samba e no futebol, negros, brancos e mulatos, habitando uma certa zona de indeterminação criada pela herança do escravismo miscigenante, lidam com a prontidão e outras bossas, com seu saldo não verbal e ambivalente, num campo em que o fio da navalha da inclusão e da exclusão se transforma num estilo de ritmar, de entoar e de jogar. (Wisnik, 406)

A terceira acepção de místico — apetitoso, ótimo, excelente — é a menos usada, mas faz pensar em algo central relativo ao circo: sua dimensão de entretenimento, a qual contém, ao mesmo tempo, a ideia de lazer e de empresa, ócio e negócio. O termo atualmente derivou para divino. É comum ouvirmos que algo

(um doce, por exemplo,) está ou é divino, o que resultaria em ‘esse doce está místico’ ou ‘esse doce está divino.’ No livro de José Guilherme Magnani, o circo é visto como um dos principais meios de diversão na periferia das grandes cidades.

Além disso, o circo moderno é marcadamente uma miniatura da empresa capitalista.

Nesses termos, sua imagem pode ser interpretada — no paralelo entre o circo místico e o Brasil — através do ponto de vista de Caio Prado Júnior, isto é, como uma “empresa colonial conjugada a uma sociedade amorfa.” (Wisnik, 2008, 417)

O fato curioso é que o circo, apesar de estar ligado ao entretenimento, e ser uma das diversões mais praticadas no país, ainda assim permanece à margem — no entanto, é como se o circo estivesse sempre aí, como uma entidade atemporal, ligada

à infância e ao inconsciente coletivo. O circo, no Brasil, é praticamente o negativo

222 do futebol. Ninguém pensa muito no circo, embora todo mundo vá ao circo. Jorge de

Lima apresenta esse fato de modo especular, uma vez que utiliza imagens do circo de modo substancial apenas a partir do momento em que sua poesia se interioriza mais aprofundadamente. No processo de interiorização lírica, o circo desempenha papel central, ocupando lugar de destaque na poesia que se abre para a totalidade, que é uma das maneiras de se imaginar a transcendência.

Retomando uma das ideias acima, vejamos que a invisibilidade generalizada do circo é um fenômeno que diz respeito à própria origem do circo no Brasil. A rede de entretenimento que corre paralela ao entretenimento da indústria cultural existe a despeito dela e em diálogo cerrado com ela, tal como o cordel, o bumba-meu-boi, as cavalhadas, os reisados e outras festas populares. Isto porque a cultura popular que não consiste em cultura individualizada é relegada a segundo plano pela mídia, mas nem por isso deixa de funcionar de maneira orgânica na cultura brasileira.

Esse fato tem enormes consequências para a experiência brasileira, ocupando uma parcela considerável de sociabilidade, ao mesmo tempo dentro e fora do modo capitalista de produção. Essa existência, por assim dizer, “folclórica” do circo, que o mantém forçosamente à margem, ao mesmo tempo assegura sua autonomia (mesmo que muito relativa) no sistema de produção do país. Ocupando a periferia do capitalismo, pode-se dizer que o circo é uma espécie de Brasil dentro do próprio

Brasil, periferia da periferia. E em sua estrutura encontra-se cifrado o próprio modo de ser do brasileiro. O grande número de circos que circulam pelo território nacional contêm um modelo econômico ainda a ser explorado, no qual uma multiplicidade de microempresas nômades aponta talvez uma saída possível para a questão tão

223 debatida na sociedade brasileira da desigualdade social. A condição mais ou menos igualitária dos circos brasileiros aponta para uma inelutável sociedade alternativa em plena vigência, espécie de múltiplas Canudos organizadas em unidades mínimas, isto é, em “famílias” (dinastias).

Nesses termos, o circo místico ressoa uma das interpretações mais fortes da sociedade brasileira: a antropologia de Gilberto Freyre. A questão da sociedade patriarcal é central para o circo (e, como vimos, Jorge de Lima toca no cerne dessa questão). Podemos dizer que nos circos-famílias reconfigura-se o que no período colonial se desenrolou entre a casa grande e a senzala, sendo a um só tempo o repositório inconsciente do período da formação da sociedade brasileira e sua superação por uma via indireta, diferente do que ocorreu com o processo desencadeado pela instauração de sobrados e mucambos. A violência sadomasoquista lusotropical, que segundo Freyre é a marca principal das relações coloniais, atua fortemente nos circos, embora não funcione exatamente da mesma maneira como no Brasil-colônia. Antes de tudo, é preciso dizer que a maior parte dos aspectos antropológicos das relações interpessoais do Brasil-colônia tais como vistos e analisados por Gilberto Freyre, no circo, está em função sobretudo do espetáculo. Daí, por exemplo, a violência relacionada ao universo do palhaço, que tanto pode ser praticada quanto sofrida por ele. São muito proeminentes os aspectos de violência no circo, violência não apenas física mas moral, como o preconceito racial e de gênero. No entanto, é preciso ver que o alto índice de violência no circo está atrelado ao espetáculo, mesmo que se trate efetivamente de violência (o mesmo fenômeno também acontece no futebol). Dando-se no contexto do espetáculo

224 assume um significado antropológico de alcance mais amplo, porque contém, de saída, um sistema duplo de significação (arte e vida imbricadas e iluminando uma a outra). O caráter mestiço do circo brasileiro (tal como no futebol, na música popular, na literatura, na culinária etc.) é inegável e por isso pode-se dizer que ele (o circo) encarna com todas as letras o mito da democracia racial idealizado por

Gilberto Freyre.

Consideremos ainda um outro aspecto da primeira acepção de místico mencionada anteriormente. Seu elemento antepositivo mist- possui uma ligação com o verbo múo, que em grego quer dizer ‘fechar-se; fechar (especialmente os olhos ou a boca)’ e é proveniente de mu-, fonema onomatopaico que simboliza um som inarticulado e por isso ligado à palavra mudo. O fechar-se contido no circo místico, como vimos, tem a ver com a alegoria, que subtrai às palavras seu sentido comum e as faz significar coisas diversas. Em ambos os casos (no poema e no ciclo de canções), vimos que a imagem aponta para o próprio país. No entanto este também aponta para aquela, uma vez que mantém os olhos e a boca fechados a seu respeito.

Esse fechamento se potencializa justamente pelo fato de ser mútuo, tal como acontece entre as canções e o poema. Curiosamente, uma série de artistas e intelectuais mostra-se sensível a esse “outro país”, tão próximo e tão enigmaticamente desconhecido, como por exemplo, na literatura, Euclydes da

Cunha, com Os sertões, chegando a Milton Hatoum, com Dois irmãos. Outro exemplo é Mário de Andrade, que sofreu o impacto dessa fissura durante os anos de turista aprendiz, transcrevendo dramaticamente o abismo entre os dois Brasis paradigmáticos (o litoral e o sertão) que viu com seus próprios olhos e introduziu

225 em seus escritos. É o caso de se insistir em Macunaíma como um exemplo de vaso comunicante entre a literatura e o circo místico, pois, como vimos, o herói tem vários aspectos de clown, além de estar ligado ao mito religioso indígena, deslocando-se incessantemente no tempo e no espaço. Oswald de Andrade, que juntamente com Mário, Tarsila e outros intelectuais que frequentavam o circo, também utilizou elementos circenses em Serafim Ponte Grande, tendo novamente na figura do palhaço a tônica. Cobra Norato, de Raul Bopp, também tem muito de circense nos deslocamentos contínuos e nas diversas peles usadas por seu protagonista. É o caso de se indagar se esses autores não realizaram, a seu modo, uma primeira etapa da homologia entre o Brasil e o circo místico já naquela altura, isto é, na década de 20 e princípios da década de 30.

A despeito de chegar a uma conclusão, é importante notar que, afinal de contas, o circo, e especialmente o circo místico, continua a ser, na experiência brasileira, um universo praticamente paralelo, o qual se desenrola no anonimato, à margem da história oficial. Sendo o ponto de onde emanam, simultaneamente, todos esses sentidos, podemos dizer que o circo místico é também um circo transcendental, pois transpõe sua condição de quase completo anonimato e aparente insipiência para alcançar a condição de objeto autônomo, signo tanto propício quanto legítimo de se interpretar a cultura brasileira. Além disso, e confirmando esse primeiro salto, ele também penetra outras formas de cultura (a literatura, as artes plásticas, a música, a dança, o cinema) e multiplica, no tempo e no espaço, o lastro hermenêutico que lhe é intrínseco. Numa terceira volta, o circo transcendental permite ler a si próprio enquanto místico. Ou seja, vai além do sentido comum, ou,

226 como queria Mallarmé, confere “um sentido novo às palavras da tribo,” no caso, através da alegoria, indo além do senso comum. Sendo entretenimento, não deixa de se abrir para a transcendência. Exemplos paradigmático de antropofagia cultural, não se trata, aqui, da aniquilação do outro, mas de sua admissão talvez mais profunda.

Consideremos, enfim, o fato de que em determinados lugares da cultura brasileira o circo se caracteriza por sua qualidade de místico. Seguindo as reflexões esboçadas acima, em torno das três acepções da imagem (milagre, mistura e entretenimento), teríamos, então, uma faixa do fazer cultural do país que toca em elementos fundamentais de nossa experiência histórica. O milagre é vislumbrado desde as visões do paraíso dos relatos de viagem do século XVI e chega aos escritos do surrealismo à brasileira de Jorge de Lima, por exemplo. A mistura, que faz parte do próprio circo, encontra na sociedade brasileira um duplo. O entretenimento ressoa o país na periferia do capitalismo. Além disso, os projetos de Jorge de Lima,

Edu Lobo e Chico Buarque têm como um de seus principais pontos de contato a simpatia pelos oprimidos, os desvalidos, os anônimos. Essa escolha significa também uma forma de lidar com a questão da identidade (aliás, este é um dos temas do romance Budapeste, em que Chico discute o problema da identidade clandestina através da figura do duplo do escritor, o ghost writer). Em Jorge de Lima, a alegoria assume outra função, uma vez que não se relacionava a princípio com a realidade em sentido estrito. O poeta sempre esteve, sim, empenhado em representar, recriar literariamente a realidade brasileira. Mas a realidade imediata, a partir de um certo ponto, passou a ser apenas um componente em função da representação de algo mais amplo, uma vez que ele a expandira para a

227 surrealidade. Daí a progressiva interiorização lírica, que faz, entre outras coisas, que o poeta leia a própria realidade como alegoria, o mundo como representação. Em Edu e

Chico, diferentemente, o modo alegórico de compor e interpretar as canções se impunha como um inusual mas legítimo olhar “realista.”

O fato de encontrarmos na imagem do circo místico diversas conexões com as interpretações do Brasil traz à tona uma questão intrigante: por que essa imagem, que como vimos é uma imagem tão presente em diversos lugares da cultura brasileira, permanece à margem quando pode servir de trilha para uma nova maneira de se imaginar a nação? Talvez o circo místico insista, qual o futebol brasileiro, como o emplasto Brás

Cubas que deu certo. Esta formulação sobre o futebol, pensada por José Miguel Wisnik, também é propícia para se refletir sobre o circo místico:

Para além do bem e do mal, o futebol brasileiro insiste, desafiadora e ironicamente, como o emplasto Brás Cubas que deu certo. Quando os sinais legíveis do Brasil são interpretados no mundo como levemente inconsequentes no seu chamado ao prazer, ao mesmo tempo em que o país, regido pelos frívolos e os graves — “as duas colunas máximas da opinião” —, se torna superficial e pesado, ele testemunha ainda, ou testemunhou, junto com a música popular, e não descolado da literatura, uma das mais originais propostas do nosso esboço de civilização: a respiração fora do produtivismo sem trégua, a capacidade de comunicação entre lógicas múltiplas, e a leveza profunda. (2008, 430).

Reunindo as três marcas principais do nosso esboço de civilização mencionadas acima — a respiração fora do produtivismo sem trégua, a capacidade de comunicação entre lógicas múltiplas, e a leveza profunda —, o circo místico é ainda um signo itinerante cujo recado tem se desdobrado no panorama da cultura brasileira e se oferecido como enigma e possibilidade de se reimaginar a nação conforme uma lógica identitária diversa do que as políticas do país endossam. Tal como o estrangeiro, o nômade, cercado de mistério, o circo místico

228 surge à frente da sociedade estabelecida como aquele que “sugere o desconhecido, o proibido, o proscrito.” Representante de um outro, emissário de forças desconhecidas e hostis, aquele que vem de longe faz com que cada habitante veja nele o questionamento dos papéis sociais. Apresenta, ainda, facetas estranhas e surpreendentes para os demais. (Horta, 37-38)

O aspecto central desse tipo de devir, como atesta Regina Duarte Horta, “é a definição do nômade a partir do movimento.” A historiadora utiliza, para mostrar como essa lógica conceitua o nomadismo afirmativamente — “ou seja, a partir do que ele é, de suas especificidades e singularidades” — (Horta, 38-39), a seguinte passagem de Gilles Deleuze e Felix Guattari:

O errante é aquele que mantém sua característica essencial, que é a de deslocar-se continuamente. Sua constância no ininterrupto ato de percorrer espaços sem delimitá-los, mas simplesmente localizando-os, distribuindo-se de forma heterogênea em espaços livres e não circunscritos faz do nômade o próprio homem da desterritorialização, deslocando-se numa terra que “tende a devir simples solo ou suporte.” (27)

A lógica nômade coloca em causa um questionamento profundo da sedentarização e do esquadrinhamento das relações sociais vigentes na sociedade brasileira desde o século XIX. Situando-se na contramão da tendência à fixação, os artistas mambembes abrem espaço para refletir sobre a posição das comunidades sedentárias. Acenando com novas possibilidades e deflagrando novos horizontes, instauram uma zona decisiva de diferença. Sua emergência associa-se à

(in)visibilidade de uma população desclassificada que não cessa de pulsar nos mais diversos pontos do território nacional. As providências e soluções que decorrem desta vasta faixa populacional — ligada ao “mundo da desordem” — não dá sinais de esgotamento e se desloca sempre que o Estado procura enquadrá-la com suas políticas de governo. O controle dessa esfera é difícil e, a rigor, praticamente

229 impossível — “o que não tem governo nem nunca terá”, para citarmos a famosa canção de Chico Buarque. O combate a seus radicalismos e potencialidades acaba deixando de lado o fato capital de que os desclassificados atuam, na maior parte das vezes, conforme uma outra lógica, cujas características podem servir de base para uma nova forma de se pensar o dilema brasileiro.

230

CONCLUSÃO

O circo místico pode ser lido, em síntese, como um signo privilegiado para se refletir sobre a cultura brasileira, tanto a partir de momentos e lugares específicos quanto da totalidade de suas variações no tempo e no espaço. No primeiro caso, vimos como Jorge de Lima, Edu Lobo e Chico Buarque, lançando mão do circo místico enquanto alegoria, produziram diferentes modos de se retratar do país. Jorge de Lima divergiu do discurso dominante nacionalista através de um olhar que imaginava o brasileiro a partir de sua inclusão numa comunidade de fiéis constituída por diferentes etnias, línguas e culturas. Edu Lobo e Chico Buarque, por sua vez, mesmo tendo sido reticentes quanto à questão da fé religiosa ao introduzirem na alegoria um ponto de vista agnóstico, alinharam-se a Jorge de Lima no que a imagem do circo místico pressupõe e assume como comunidade marcada pela pluralidade cultural. Esse fato se comprova, nas canções, pela variedade dos pontos de vista (cada personagem tem sua própria visão de mundo), pela multiplicidade de vozes (cada personagem é interpretado por um cantor específico) e pela heterogeneidade de gêneros inscrita nas canções (valsa, blues, marcha etc.), que fazem a alegoria apontar de modo inequívoco para a importância da atuação

231 coletiva, tal como entendida, por exemplo, no musical infantil Os saltimbancos

(1977), de Enríquez e Bardotti, transcriado por Chico Buarque anos antes. No segundo caso  o de uma experiência panorâmica da história , pudemos observar como o signo se manifesta em diversos lugares da cultura (o cinema, a performance e o futebol, além da própria literatura e da própria canção), formando um complexo cultural  um topos  cujo recado insiste na possibilidade de se interpretar o país através de uma lógica fundada na imprevisibilidade e no desabrochar de reconfigurações plurais desse mesmo signo.

Esses dois modos de se refletir sobre a cultura brasileira nos conduzem a alguns pontos específicos: em determinados contextos, a imagem do circo místico é tomada como alegoria e acaba por apontar para uma comunidade marcada pela diferença e pelo contato na diferença; no panorama, o circo místico revela-se como um topos, despontando em diversos tempos e lugares da cultura brasileira, abrindo a trilha para a uma experiência concreta da concepção benjaminiana da história, experiência que decorre de um tempo messiânico, ou, como afirma Agamben, na primeira epígrafe utilizada nesta tese, um tempo vivido enquanto agora, cuja marca principal é o prazer, com toda a carga de imprevisibilidade e transformação  dionisíacas  que ele acarreta. Nesses termos, por mais acentuadas que se insinuem as distâncias entre Jorge de Lima, Edu Lobo e Chico Buarque, podemos dizer que eles convergem para um ponto em comum: a utopia. O poeta, interpretando a história dos Knieps como um sinal de Deus, imagina a poesia como um meio privilegiado de recuperar para o leitor ruínas do paraíso, o que teria o efeito, contraditório e revolucionário, de desfrutar no fluxo da história, via imagem poética,

232 fragmentos da eternidade. Os compositores, por sua vez, realizando um trabalho coletivo, demonstram, através da realização artística, a possibilidade de uma comunidade efetivamente igualitária.

Talvez não seja equivocado afirmar que as diferenças entre os artistas estudados não negam uma aproximação, por parte de todos eles, de uma visão da cultura que se quer abrangente ao máximo, estabelecendo pontos de contato inequívocos com a pluralidade da própria cultura brasileira, e sobretudo com a inclusão de uma vasta faixa populacional que vive à margem e que, para eles, como para nós, é de fundamental importância. Nesses termos, isto é, na contramão da história, Jorge, Edu e Chico veem no circo místico um meio legítimo e eficaz de conceituar e figurar afirmativamente o nomadismo, dando voz ao homem, por assim dizer, da desterritorialização.

Em Jorge de Lima, por força da visão religiosa, os mambembes associam-se ao próprio povo eleito de Deus  no caso, a comunidade católica , que desde a

Queda vive a experiência perpétua do êxodo, do exílio e da diáspora. No caso particular do circo, o poeta lê como figuras do episódio da expulsão do paraíso os próprios números de picadeiro  sobretudo as inevitáveis quedas dos clowns e trapezistas , tendo a existência, desse modo, um aspecto de fatalidade trágica, o que não anula, como vimos, a forte carga de esperança e possibilidades de transformação contidas em sua poesia. Em Edu Lobo e Chico Buarque, os mambembes, além de serem vistos como emissários de forças desconhecidas e hostis, ligadas a uma inequívoca força transformadora latente na cultura, possuem uma profunda complexidade psicológica que os singulariza, a despeito do trabalho

233 em mutirão por eles efetuado. Os mambembes tornam-se, assim, personagens paradoxais, sendo a um só tempo — condição ideal do cidadão — indivíduo e coletividade.

Em relação à experiência histórica brasileira, o circo místico foi, em 1938, uma imagem que, a despeito de seus contundentes questionamentos, permaneceu quase completamente à margem, sendo mencionada, fora do âmbito do volume de

Jorge de Lima e seu restrito círculo de leitores, apenas de passagem em uma resenha de Mário de Andrade sobre A túnica inconsútil. Em 1983, ao contrário, a imagem ficou amplamente conhecida, inclusive alcançando visibilidade internacional, uma vez que os discos de Edu e Chico são comercializados no exterior e a montagem do

Ballet Guaíra excursionou por outros países. Em ambos os casos, no entanto, não houve, por parte da crítica, nenhum pronunciamento sobre a imagem do circo místico enquanto alegoria do Brasil, o que reforça a hipótese de que ela se situa de modo especular em relação à invisibilidade da vigorosa e espessa faixa populacional que retrata. A partir de algumas imagens de “Brejo da Cruz,” de Chico Buarque, poderíamos dizer que os habitantes da referida faixa populacional, tal como os personagens da canção, cruzam os céus do Brasil, assumem formas mil, permancendo, sob desarmados olhos, invisíveis:

Mas há milhões desses seres Que se disfarçam tão bem Que ninguém pergunta De onde essa gente vem

Apesar de seus personagens se situarem à margem da cultura oficial, O grande circo místico teve pelo menos duas consequências decisivas sobre a obra de

Edu Lobo e Chico Buarque: 1) a concretização de uma pareceria que até então tinha

234 se dado apenas de modo indireto e 2) a produção de novos trabalhos em conjunto, incluindo a produção de algumas canções isoladas. Passados mais de vinte e cinco anos, ainda se manifesta de modo intenso o impacto causado por esse primeiro conjunto monumental de canções. Não apenas as reedições do disco mas também as novas montagens do balé e as incessantes regravações das canções por intérpretes os mais variados evidenciam sua importância. O grande número de intérpretes de certo modo já estava contido no próprio original, que, como vimos, contou com a colaboração de Milton Nascimento, Jane Duboc, , Simone, ,

Gilberto Gil e Zizi Possi, além dos próprios compositores e dos vários músicos que atuaram sob a batuta do fenomenal orquestrador e mestre Chiquinho de Morais. Essa profusão de interpretações revela que a obra continua dando o que cantar, como sempre endossou o maestro soberano de Edu e Chico  Tom Jobim , que além de ter acompanhado de perto a aproximação dos cancionistas, gravou com eles algumas canções da lavra nova, tais como “Choro bandido” e “Valsa brasileira.” Tom Jobim, aliás, se dispôs a tocar até mesmo as canções em estágio de criação, como aconteceu com “Beatriz”, da qual realizou uma gravação caseira, recuperada no CD de 2004.

Os outros trabalhos que Edu e Chico vêm realizando em parceria ainda não tiveram o mesmo impacto de O grande circo místico, apesar de manterem o mesmo nível de acabamento estético. Em 1985, compuseram canções para a peça O corsário do Rei, de . Aí aparece novamente o tema da viagem, ligado à vida de artista, além de canções “místicas:” “Choro bandido,” “Opereta do moribundo,” “Salmo,” “Show bis,” “Verdadeira embolada,” “Tango de Nancy.”

Durante 1987 e 1988, reuniram-se para novamente compor um balé  Dança da

235 meia-lua. Dessa vez, como das outras, vieram à luz canções geniais como “Casa de

João de Rosa,” “Frevo diabo,” “Meio-dia, meia-lua,” “Tororó,” “A permuta dos santos,” “Tablados,” “Valsa brasileira.” Seu mais recente trabalho voltou-se para a produção do musical Cambaio, que estreou em 2001, sob a direção musical de

Lenine.

Em relação à obra de Jorge de Lima, o balé deixou em aberto alguns desdobramentos decisivos. O mais notável deles deve-se ao aspecto crítico implícito nas canções, que abre alas para uma releitura da obra de Jorge de Lima através do motivo do circo místico. A não exclusão da cultura popular em uma obra da qual ela transborda é um gesto de afirmação crítica que se choca com a tendência geral que, a partir dos anos 50, passara a considerar a obra do poeta quase exclusivamente sob a ótica da alta cultura — não significando, no entanto, que todos os críticos tivessem a mesma opinião sobre o valor da obra do poeta alagoano. A esse respeito é paradigmática a visão negativa  e equivocada  dos poetas concretos em contraposição aos elogios enfáticos de Mário Faustino  também equivocados no seu silêncio sobre a presença exuberante da cultura popular na lírica final de Jorge de Lima. Discrepâncias à parte, o que importa destacar é o fato de ter havido a tendência de se olhar para Jorge de Lima pela via exclusiva da alta cultura. Foi o que também fizeram os poetas como o já citado Mário Faustino, além de Ana

Cristina Cesar, Roberto Piva, Cacaso e Francisco Alvim, entre outros, que se interessaram pelo legado jorgiano e levaram adiante o seu surrealismo à brasileira.

No âmbito da crítica acadêmica, encontramos quase os mesmos desdobramentos que se deram entre os poetas. Mário Faustino (“Revendo Jorge de Lima”), ainda uma

236 vez, é um exemplo central, pois além de poeta e um dos principais herdeiros de lírica órfica jorgiana, era também crítico literário. Mas enumeremos também alguns outros críticos importantes do poeta, todos enfatizando sua ligação com a tradição

épica e lírica da poesia erudita ocidental: Luiz Busatto (Montagem em Invenção de

Orfeu), Dirce Côrtes Riedel (Leitura de Invenção de Orfeu), Fábio de Souza

Andrade (O engenheiro noturno). A despeito das diferenças de perspectiva entre esses críticos, talvez atue de modo geral e implícito um tipo de visão da obra de

Jorge de Lima como objeto estrito da alta cultura (“não contaminada” pela cultura popular) e muito provavelmente as avaliações como a tão propalada irregularidade da obra de Jorge de Lima tem a ver com a contundente mistura de âmbitos culturais efetuada pelo poeta. Talvez as “falhas” da Invenção de Orfeu sejam, ao contrário, fruto justamente do trabalho abrangente com a forma, o que inclui a consubstanciação de formas cultas e formas “incultas” (retiradas da cultura popular), como por exemplo o cordel e os romanceiros. Portanto, Edu Lobo e Chico

Buarque  insistamos neste ponto  dão margem a um novo modo de ler Jorge de

Lima, assumindo um olhar que, por exemplo, esteja disposto a vasculhar a presença do circo em um livro como Invenção de Orfeu.

Não coube incluir nesta tese as anotações tomadas a respeito do motivo do circo místico na obra de Jorge de Lima e tampouco desenvolver de modo pormenorizado a manifestação desse mesmo motivo na cultura brasileira. Ao

237 transferi-los para um momento futuro da pesquisa, espero que o todo tenha ficado mais coeso. Além disso, espero ter explicitado de modo convincente o aspecto crítico das canções, que são, em última instância, responsáveis por indicar a possibilidade de se ler a obra de Jorge de Lima e a cultura brasileira via circo místico.

A propósito, esta imagem torna-se abundante em Jorge de Lima conforme o seu processo de interiorização lírica. Numa fórmula precária (pelo que oculta do resto da obra) mas curiosa (pela capacidade de descrever a poesia do autor), podemos dizer que quanto mais interior tanto mais místico-circense é a poesia de

Jorge de Lima. Do ponto de vista literário, também seria possível realizar uma interpretação do Brasil através da análise e da comparação de obras que utilizam esse mesmo motivo, tomado em sentido literal ou figurado, tais como Macunaíma,

Serafim Ponte Grande e Cobra Norato, além de poemas, contos esparsos e procedimentos poéticos de outros autores modernistas, como o lirismo libertino e libertário dos clowns de Shakespeare empregado por Manuel Bandeira e a transposição lírica da estética chapliniana realizada por Carlos Drummond de

Andrade.

O fato de concentrar-se apenas sobre um poema de Jorge de Lima e dez canções de Edu Lobo e Chico Buarque permitiu que a tese não se indefinisse entre o ensaio crítico e o trabalho de realizar uma antologia. Além disso, havia a motivação de verificar se o motivo do circo místico, considerado isoladamente, permitiria discutir a cultura de modo abrangente, o que se comprovou durante as análises do poema e das canções. Apesar de ter corrido o risco de resultar num trabalho de

238 cunho predominantemente estilístico, a tese, por causa do próprio objeto de estudo, também acabou por se debruçar no difícil diálogo entre diversas áreas do saber, como a literatura, a música, a psicanálise e a história.

O circo e o misticismo têm uma presença duradoura na história da humanidade e possuem um enorme leque de significados, podendo tornar irrisória qualquer tentativa particular de interpretação ou reconfiguração estética. Ou seja, a poesia, a música e qualquer outra arte que os tome como motivo de criação poderá sempre cair no irrisório, sobretudo quando forem uma tentativa de retratar uma experiência histórica particular como, no caso, a brasileira. Além disso, é da própria natureza do circo e do misticismo a transnacionalidade e uma enorme variedade artística, o que dificulta ainda mais sua tradução para uma cultura particular. Tendo a convicção de que a poesia e a canção incluem-se entre as mais recuadas e radicais experiências do ser humano, parti sempre de exemplos individuais, procurando voltar ao geral apenas quando o poema e as canções exigissem. Desse modo, espero ter mostrado que eles puderam formular respostas originais, mesmo diante de uma imagem constituída por dois elementos tão macerados por diversas culturas e

épocas.

Nesse sentido, os ensaios reunidos nesta tese decorrem de um modo de conceber a canção e a poesia, e da maneira de estudá-las, para o qual fui sensibilizado desde o curso de graduação, na Universidade Federal de Minas Gerais, e que se fortaleceu durante a pós-graduação, com os estudos realizados na Brown

University. Segundo esta visão, o poema e sobretudo a canção popular brasileira são objetos que encarnam da maneira mais radical a permeabilidade entre diversos

239 âmbitos culturais, formando — como afirma José Miguel Wisnik sobre a canção — um campo prodigioso de cruzamentos:

Está implícito ou explícito em certas linhas da canção um modo de sinalizar a cultura do país que além de ser uma forma de expressão vem a ser também, como veremos, um modo de pensar — ou, se quisermos, uma das formas da riflessione brasiliana. (2004, 215)

Nesse campo, caracterizado por providenciais e peculiares misturas, é possível deparar-se com a simultaneidade e a diferença sem prejuízo do rigor técnico e da qualidade estética. Retornando ainda uma vez às palavras de Wisnik, vejo em certa parcela da poesia brasileira — como é o caso de Jorge de Lima — algo que também ocorre no campo da canção:

No terceiro capítulo, observemos ainda, ficou indicada a importância do motivo do circo místico na cultura brasileira. Sua presença se manifesta em diferentes pontos do tempo e do espaço, sendo possível, por exemplo, recuarmos ao descobrimento do Brasil. Alice Viveiros de Castro destaca na carta de Caminha a figura surpreendente de um palhaço, Diogo Dias, e o modo integrador como ele interagiu com os índios:

Diogo Dias foi uma figura importante neste início das relações entre portugueses e índios. Além de fazer a primeira festa do Brasil, logo depois da primeira Missa, foi designado pelo capitão Pedro Álvares Cabral para participar de diversas missões de contato com os índios ‘por ser homem alegre, com que eles folgavam,’ como diz Caminha. (85)

240 Ao lado desse ritual profano (no qual se associaram a música, a dança e a acrobacia), um ritual sagrado (a primeira missa) também colocou em contato portugueses e índios. Esse fato mostra que circo e misticismo andaram juntos desde o mais remoto momento do Brasil-colônia. Sendo contíguos num primeiro momento, qual os povos que ali se deparavam, circo e misticismo viriam a se entrelaçar, misturar, miscigenar, conforme o desenrolar da história.

Poderíamos também avançar no tempo, encontrando no espetáculo Rua da

Amargura (1994), do Grupo Galpão, a confirmação da vitalidade da imagem do circo místico na cultura brasileira. Dirigida por Gabriel Vilela, a montagem — um mergulho no universo da interpretação melodramática do circo-teatro — é baseada na peça O

Mártir do Calvário, do teatrólogo português Eduardo Garrido, estreada no Rio de Janeiro em 1902. Ou, ainda, vendo essa mesma imagem reaparecer, agora de modo explícito, no samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, em 2002, na série dos notáveis desenhos feitos por Sandra Martinelli, no longa-metragem que está sendo filmado por Cacá Diegues e, enfim, na terceira montagem do balé que vem sendo produzida.

Com relação ao cineasta, devemos observar que não é a única vez que o circo místico comparece em seus filmes. No belíssimo A grande cidade (1970) a imagem do circo místico é sugerida, por exemplo, na cena final, em que o personagem Calunga

(Antonio Pitanga) efetua uma prodigiosa pantomima que transpõe para a linguagem cinematográfica o poema final do Canto I de Invenção de Orfeu (1952), de Jorge de

Lima:

241 Nessa geografia, eis o pantomimo. Ah! o pantomimo! Múltiplo imitando mitos, seres e coisas. Pessoalmente. Convictamente é tudo em potencial. Mais vale convicção que essa teoria, que aquele dicionário, e aquela Cólquida. Mímico racional. Ah! o pantomimo  esse intuitivo. Monstro e semideus. Ele povoa a ilha, ele dança a ilha. Ele heroíza a ilha, ele epopeíza. Desarticulação fulanamente. Muda dramaturgia se possesso, se fábula, se intui, se histrião, se bufo. Ah! coribante ilógico, aliás lógico, linguagem transparente, angústia  a face, flexíveis olhos, membros palavreando. Desarticulação, libertação. Ó contingência: desarticular, dançar, parecer livre, exteriormente; e ser-se mudo, e ser-se bailarino, nós bailarinos, todos uns funâmbulos, todos uns fulanos. Então, dancei-me. Perpétuo Orfeu e tudo. Pulo e chão. Polichinelo, polichão dessa ilha. (90-91)

Esse poema anuncia uma série de outras imagens relacionadas ao circo místico que aparecem na Invenção de Orfeu, imagens relacionadas sobretudo ao clown órfico visto como palhaço de Deus. A associação entre o pantomimo e Orfeu — ‘perpétuo

Orfeu’ — adianta também o fato de que o personagem mítico irá se metamorfosear no decorrer dos cantos, assumindo muitas máscaras e expressando-se por muitas vozes, inclusive a do próprio poeta, que introduziu no livro várias passagens autobiográficas, inclusive algumas ligadas ao circo. A associação entre o pantomimo e Orfeu é insólita porque, embora ambos tenham o poder de comover o público, os modos de expressão por eles utilizados os diferencia. Os instrumentos de Orfeu são a palavra e a lira (a canção) e os do pantomimo são os gestos, exceto a voz (o teatro mudo e a dança). Os ‘papéis’ por eles desempenhados também diferem. Enquanto Orfeu encena-se a si mesmo, o

242 pantomimo é múltiplo e nunca se associa a si próprio, imitando ‘mitos, seres e coisas.’

Ao aproximá-lo de Orfeu, portanto, Jorge de Lima e Cacá Diegues tornam permeáveis os atributos de um e outro.

A capacidade de criar, através do canto e dos gestos, dinamiza-se na ‘geografia’

 a ilha  em que o pantomimo atua. Tal geografia trata-se de uma das imagens centrais do livro e remonta a duas ilhas bastante conhecidas e frequentadas por Jorge de

Lima: a camoniana Ilha dos Amores e a Utopia de Thomas Morus. Estas duas ilhas fazem parte da bagagem intertextual da Invenção de Orfeu e do filme A grande cidade, formando uma conexão que fica por analisar. Por ora, observemos apenas que a mesma

‘geografia’ mencionada no poema retorna em outros momentos do livro e nem sempre se trata de uma ilha deserta, podendo ser comparada com o picadeiro, que esvazia-se e se preenche conforme o desenrolar do espetáculo. Além disso, o número do pantomimo é representado apenas por ele, mas desencadeia um batalhão de imagens. Seu número, assim, funciona como uma espécie de prólogo do poema e epílogo do filme. A posição de encerramento ocupada pelo poema no Canto I e pela cena no filme permite interpretá-los como uma espécie de coda dos poemas anteriores incluídos no mesmo canto e como espécie de anúncio do que virá nos cantos posteriores, assim como o final de A grande cidade sinalizando outros filmes do diretor, entre eles, Bye bye Brasil (1980), Orfeu

(1999) e o filme que está sendo rodado atualmente. Lembremos, também, que Cacá

Diegues já estava ligado ao motivo do circo místico, mesmo que por via indireta, pelo fato de ter sido o montador de O circo (1966), de Arnaldo Jabor, que, como argumentamos anteriormente, trata-se, talvez, da primeira aparição da imagem do circo místico na contracultura brasileira, ou pelo menos no cinema da contracultura brasileira.

243 Enfim, fica por se realizar um estudo comparado entre a leitura da cultura brasileira através da antropofagia oswaldiana que se impôs a partir da década de 60, via concretos e tropicalistas, e uma leitura que se pode desdobrar através do olhar místico- circense jorgiano. Uma questão que poderia endereçar tal estudo é: por que a imagem do circo místico permanece à margem, apesar de sintetizar de modo inequívoco tantas conexões com as interpretações clássicas e contemporâneas do Brasil? Talvez possamos encontrar uma primeira explicação na própria marginalidade a que se obrigou o circo, por um lado, e um determinado tipo de misticismo, por outro. Essa marginalidade corre paralela, não por acaso, à própria marginalidade da imagem do circo místico na obra de

Jorge de Lima. Duas frentes de trabalho, portanto, insinuam-se, cada qual a ser desenvolvida em seus respectivos campos — a obra de Jorge de Lima e a cultura brasileira —, no entanto, sem excluir a rica polifonia que se revolve entre esses campos diversos e sua clandestina e vigorosa promessa de felicidade.

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