Ciclo dos Fundadores da ABL Alegoria de Rodolfo Amoedo sobre José do Patrocínio O grande José do Patrocínio

João de Scantimburgo

ue tenho eu a falar sobre um negro, durante a vigência da Conferência escravidão? Pode-se falar muito ou não falar nada. Pode-se proferida na Q ABL, a 1o de atribuir o poder à palavra, que já derrubou reinos, impérios, já des- abril de 2003, truiu linhagens dinásticas inteiras e já elevou às alturas da glória não abrindo o ciclo poucos de nossos semelhantes. Podem-se invocar as palavras profe- Fundadores da ABL. ridas por um Deus, na sua peregrinação, o Deus que deu testemunho do sofrimento humano, da injustiça que nos rastreia os passos, seja a do sublime da poesia, seja a da blasfêmia dos réprobos, que os há em abundância em todas as raças e todas as latitudes deste mundo, que já não sabemos como encontrar definições diante da agonia da civili- zação, a que os saltos prodigiosos da ciência não poderão dar um li- nimento até a cura. Imagino, neste local, a Academia onde tantas vozes foram ouvi- das, menos, infelizmente, a voz de José do Patrocínio na nossa tribu- na, ele que sofreu calado, sufocando nas suas lágrimas, nos confran- gimentos de seu coração, a desgraça de sua raça, que parece ter sido

115 João de Scantimburgo fadada a viver abaixo do nível da dignidade humana, ainda que seu caráter o te- nha prestigiado. No discurso de ingresso nesta Casa, disse Mário de Alencar, seu sucessor na Cadeira 21, que “não seguiria a regra usada na biografia dos homens notáveis, de procurar nos antecedentes de família e nos atos da infân- cia a razão dos sinais e dos vestígios do destino deles”. A biografia de José do Patrocínio, se não fosse romanceada, com abundân- cia de imaginação, como a de um Victor Hugo ou de um Sthendal, nada teria que oferecesse ao curioso em sua história familiar e individual. Havia trabalha- do numa quitanda do interior e na casa paroquial de uma igreja de província, da qual o vigário era seu pai. Daí decidiu vir para a cidade grande, a vitrine cari- oca de seu tempo, quando o projetava inteligências brilhantes ou desfazia reputações duvidosas. Segundo Mário de Alencar, de quem me valho, Patrocínio deixou Campos, onde vivia a vida pachorrenta das cidades do interior, ainda hoje semelhante, sob muitos aspectos, ao seu tempo, e arranjou um emprego como aprendiz de farmácia na Santa Casa de Misericórdia, para ganhar a ínfima quantia de dois mil réis, a moeda da época. Tinha casa e comida, mas esse dinheiro não lhe vi- nha da instituição, porém dos companheiros aos quais substituía em domin- gos e dias feriados. Era com o trabalho, enquanto os companheiros folgavam, que podia ter abrigo certo e a mesa na qual se alimentava. A essa quantia mise- rável, acrescentaria dezesseis mil réis recebidos de seu pai, vigário de Campos. Tinha portanto uma escora na qual se ampararia enquanto durasse a munifi- cência obrigada pela consciência do vigário de Campos e a ajuda dos compa- nheiros da farmácia da Misericórdia do Rio de Janeiro. Homem sem passado de legenda, desses fulgurantes nomes que enchem as páginas da história, e ou são heróis, ou santos, ou poetas, ou escritores, ou ar- tistas em vária arte, que deixam nome à posteridade, para serem julgados, como o Aleijadinho em , para citar o nome mais dramático e mais genial de quantos perambulam pelas páginas da nossa história. Para estudar, Patrocínio procurou o Externato Aquino, e lá obteve o que em nossos dias se chama bolsa de estudo. Começou a estudar. Aguilhoado pela

116 O grande José do Patrocínio vocação, queria ser médico. Estava inclinado a ser um desses seres que Deus es- colheu para minorar a desgraça que colhe um ser no curso da vida. Não conse- guiu por uma série de fatores que o impediram de chegar à Faculdade de Me- dicina. Mas, contentou-se com a de Farmácia, graças aos colegas que conquis- tou com sua inteligência, sua lhaneza, e às lições particulares que ministrava nas horas vagas. De seus estudos superiores, formou-se, portanto, em Farmá- cia, vindo a ser colega do grande poeta parnasiano . Não exerceu a profissão. Não era a sua vocação. Conformou-se, resignado, com a impossibilidade de chegar a médico, e deixou na gaveta o diploma de farma- cêutico, indo para outras atividades, numa das quais seria um dos grandes no- mes do Brasil, o jornalismo. Discreto ou envergonhado, Patrocínio não revelava seu passado, de resto sobre não ter muito o que revelar de dias idos de sua infância e juventude na modesta cidade de Campos, onde passou essa quadra de sua vida. Mas não in- teressa nesta evocação de um dos grandes nomes desta Casa e, mais ainda, um dos grandes nomes do Brasil de sua época, sobretudo na época agitada da pro- paganda abolicionista, na qual seu brilho não foi ofuscado pelo de Rui Barbo- sa, , pela poesia de , e de quantos tomaram parte na vigorosa campanha pela Abolição, que tardou, mais de vinte anos depois que a Guerra de Secessão americana, com seiscentos mil mortos e feridos, li- bertou na grande nação do Norte os seus escravos, que, de resto, deixou-os abandonados, cada qual escolhendo o caminho que desejasse seguir na vida. O negro José do Patrocínio não precisou esconder nada de seus dias de Campos e dos primeiros tempos no Rio de Janeiro, pois que foram tão límpi- dos quanto sua alma, uma alma clara como um cristal, servido de um caráter cristalino como um brilhante. Sem dúvida, José do Patrocínio teve dias amar- gos e dias alegres em sua vida de menino pobre, jovem sem um horizonte a atraí-lo para atividades que enaltecem a pessoa. Dotado de uma inteligência viva, dessas que captam os acontecimentos, dis- tantes ou próximos, com lucidez, José do Patrocínio não se lançou na poesia, embora tenha poetado, nem na procura de um emprego que desse para o seu sus-

117 João de Scantimburgo tento. Iludindo-se a si próprio, preferiu a via do jornalismo, organizando um ve- ículo, a que deu o nome de Os Ferrões – um panfleto, com o qual esperava desven- dar o que fosse acessível aos leitores de jornais, principalmente no estilo com que procurou se fazer notar numa cidade onde proliferavam os panfletos, os jornais de quatro páginas sobre debates políticos. Lembra Mário de Alencar, com razão, em seu discurso de ingresso nesta Casa, que José do Patrocínio procurou imitar Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, que lançaram em Portugal As Farpas, imita- ção, em terras lusas, como os Ferrões no Brasil, das Les Guêpes, de Alphonse Kar, em Paris. Evidentemente, haveria enormes diferenças entre uma e outra publica- ção, mas, o jovem negro, no seu ímpeto de conquistar um lugar de relevo no meio jornalístico do Rio de Janeiro, fez de seu jornal um baluarte de criticas po- líticas, sociais e econômicas, em suma, o que interessasse ao público. Patrocínio foi mesmo aguerrido, tantas vezes feroz nas suas críticas, mas Os Ferrões não al- cançaram o prestígio com o qual ele sonhara – pois fora um sonho o seu ímpeto de jornalista na linha de Les Guêpes ou de As Farpas – e o jornalzinho, depois de dez números, sem progresso de venda que o sustentasse no Rio de Janeiro e um pouco em São Paulo, acabou suspendendo a tiragem, morrendo de inanição, com decepção amarga do fundador sobre a sua ambição O jornal serviu, porém, para chamar a atenção dos diretores de jornais com tiragem assegurada e freqüente no Rio de Janeiro e assinantes em São Paulo, e Patrocínio foi contratado pela Gazeta de Notícias, um dos grandes órgãos de im- prensa do Rio de Janeiro, no qual pontificava Ferreira de Araújo, até hoje um dos maiores jornalistas do Brasil, especialmente nos comentários editoriais so- bre a política e suas excentricidades, numa cidade frondeuse e politizada como sempre foi o Rio de Janeiro, ao menos até a mudança da capital para Brasília, quando Juscelino Kubitschek quis manter a palavra dada aos assistentes de um comício de sua campanha de candidato à Presidência da República. José do Patrocínio foi, em tudo, um justo. Daí, como vem num salmo, ter florescido como a palmeira, isto é, retamente, entre os seus contemporâneos. Negro, num país que fizera da escravidão a base da força econômica da qual necessitava nas lavouras de café, no ouro e outros produtos, teria que ser alvo

118 O grande José do Patrocínio de preconceito. Foi, sem dúvida, uma das vítimas desse terrível mal que assola as sociedades, mas soube superar os entraves que se lhe opunham, como de- monstrou, com rara tenacidade, na sua vida livre. Mostrou-o optando pela far- mácia, por não ter podido cursar a Medicina. Não se deixou abater quando o seu jornalzinho de gossips políticos não passou de dez números, portanto, de uma tremendo malogro, ele que punha na sua publicação a esperança de que viesse a ocupar no Rio de Janeiro um lugar de honra, portanto, destaque den- tre os órgãos de imprensa que circulavam na antiga capital do país. Patrocínio não era, porém, de desanimar. Reuniu todas as forças com as quais contava, inclusive a que o fez impor-se na sociedade do Rio de Janeiro, e continuou a sua jornada. Homem tranqüilo, consciente de seu destino, não possuía uma psicologia complexa, dessas que levam os mestres, sobretudo o Dr. Freud, a longas meditações sobre a sua composição e seus reflexos no com- portamento humano. Patrocínio era o perfeito homem de caráter e de convívio ameno. Não havia quem se lhe aproximasse ou viesse a conhecê-lo, que dele não se tornasse amigo. A amizade levou-o para o positivismo, que floresceu no Brasil com ampla atração e conquistou inúmeros adeptos, para influir na pro- clamação da República e na formação dos chefes de governo ao menos durante a primeira República, na qual predominou. Nos antecedentes do golpe de 15 de novembro de 1889, o positivismo era a filosofia que, inexplicavelmente, dominou a classe alta da política, das faculdades, da imprensa, enfim, de quan- tos estudassem o pensamento que predominava de Augusto Comte e seus cau- dalosos livros (que estão sendo reeditados, sob a direção, até há pouco tempo, até a sua morte, pelo filosofo e acadêmico francês Henri Gouhier). Mas essa decisão, tomada sem muita convicção, custou-lhe o corte dos 16 mil réis do vi- gário de Campos, evidentemente antipositivista. Também o nosso compatrio- ta Paulo Carneiro estava reunindo todos os seus papéis, sobretudo a corres- pondência, para publicá-los em livro, ainda que o positivismo, como filosofia, não mais tenha seguidores, nem as novas gerações querem saber da lei dos três estados, de resto não querem de nada saber de filosofia, que nas faculdades está sendo lecionada gratuitamente, para mantê-la no currículo.

119 João de Scantimburgo

Mas, Patrocínio desencantou-se com o positivismo e passou-se para o catoli- cismo, no qual se integrou. Estudou-o a fundo, tanto quanto o permitisse a épo- ca, e se tornou um súdito sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não foi, no en- tanto, em religião, um grande espírito, um desses astros que brilham no firma- mento da inteligência, e logo esmaecem. Manteve-se na altura a que chegou, e foi admirado e aplaudido, como escritor, como expositor e como cultor da apologé- tica cristã. Era, como disse eu acima, um modelo de sinceridade e de conduta ir- repreensível, qualidades com as quais conquistou definitivamente seus contem- porâneos no Rio de Janeiro e em outras cidades do país. Conquistou São Paulo, por exemplo, até onde chegavam os ecos de suas conferências, de seus discursos, de sua luta por seus irmãos de raça, onde era aplaudido e seguido. Se Patrocínio vivesse hoje seria, certamente, autor de novelas de uma das emissoras dedicadas a esse filão de audiência. Era folhetinista, embora não os assinasse. Mantinha-o por terem todos os jornais o indefectível folhetim, como o têm hoje algumas televisões, para segurar audiência, que, de outra for- ma, debandaria para outras emissoras ou desistiria da tela fascinante. Observando-o no seu trabalho, em que era a eficiência, Ferreira de Araújo aproveitou Patrocínio como cronista parlamentar. Foi mandado para a Câma- ra dos Deputados, com ordem para colher tudo quanto necessitasse a fim de atrair leitores. Patrocínio alcançou sucesso, porquanto sabia colher, no seu exato sentido e na oportunidade que se lhe apresentava, a intenção dos deba- tes, as intrigas entre os deputados, que as havia, como há ainda hoje, a atmosfe- ra geral da Câmara. Foi um verdadeiro sucesso. Daí ter Patrocínio se voltado para o romance, a fim de conquistar uma posição que lhe garantisse um lugar de relevo dentre os mestres da ficção no Brasil da época. O primeiro romance de Patrocínio foi Mota Coqueiro ou a Pena de Morte. Oen- redo: a condenação de um suspeito de crime. Executado, verificou-se que era um inocente. Patrocínio deveria ter dividido com outros redatores a redação do romance. Mas como se saiu admiravelmente bem, seus colegas o deixaram sozinho para, sozinho, colher os louvores de uma vitória na imprensa e na crí- tica que se fazia na época.

120 O grande José do Patrocínio

Conquistada a simpatia da imprensa e dos críticos, Patrocínio escreveu Pe- dro Espanhol, que alcançou igual sucesso, pois o nome do autor já estava feito na crítica contemporânea. Depois, o seu maior romance, provavelmente, um dos que resistiram ao tempo e pode ser lido hoje com proveito. Trata-se de Os reti- rantes, escrito em 1879, quando da grande seca do Ceará, seca tão violenta que até mesmo levou o grande poeta português Guerra Junqueiro a dedicar-lhe um poema, “A seca do Ceará”, em que ele fala da candente abóbada de um forno. Patrocínio excedeu-se nas páginas, mas o número delas não impediu o seu êxito, e a crítica não deixou de elogiá-lo, embora se referisse à extensão de seu número de páginas. Patrocínio aproveitava-se dessa posição, alcançada com o seu talento, para acudir aos interesses de seus irmãos de raça, à abolição. Deu-se inteiro à campanha nas suas várias fases. Em 1888, saiu-se vencedor. A eloqüência do tribuno, que ele veio a ser, do escritor, que ele era, do jor- nalista, comentarista dos fatos cotidianos, sobretudo da política, o seu mister. Patrocínio elevou-se acima do nível dos homens de seu tempo, formando na classe dos homens de pensamento, do que, em nossos dias denominamos, fa- zedores de opinião. Era isto o que distinguia Patrocínio dos demais compa- nheiros, com a exceção das grandes figuras de seu tempo, dentre elas as de Rui e Joaquim Nabuco, este que já despontava e se elevava como um dos grandes nomes do nosso liberalismo e do pensamento nacional. Patrocínio era dotado de rara eloqüência, e como falava sobre a Abolição sua eloqüência como que se robustecia, e os auditórios aos quais ele se dirigia empolgavam-se, voltando-se, desde logo, contra a escravidão. Foi com esse nome de eloqüente, de orador fulgurante, de apóstolo de uma grande causa, contra a qual se opunham milhares de brasileiros, com interesses econômicos vinculados à escravidão, que entrou para a História. José do Patrocínio de- monstrou estar possuído de um fogo sagrado, não lhe importando mesmo a vida, pois que a ameaça poderia sair de alguma obscura fazenda do Nordeste, ou do interior de mina de ouro de Minas Gerais, ou do bolso de um pagante de matador profissional, numa época de justiça próxima apenas dos grandes cen- tros, e eliminá-lo.

121 João de Scantimburgo

Mas Patrocínio nem cogitava que poderiam lhe tirar a vida. Até mesmo se dava conta que sua vida, abatida por um sicário, valeria mais para a causa da Abolição do que em luta para alcançar o seu ideal, que era a libertação de seus irmãos de raça e de cor. Num poema famoso e formoso, citado por Mário de Alencar no seu discurso de posse na Academia, deixou Patrocínio expressa na causa por que se batia, as lágrimas de seu coração de combatente pela invectiva contra a da Abolição:

E levantam-se mudos, taciturnos, Os mártires sombrios da avareza......

E vão postar-se em quietação de estátuas Ante o feitor, submissos, alinhados; Os cães podem, latir ante os seus donos Mas eles devem estar sempre calados.

Eis a revista! Um ato de miséria, De escárnio e de vileza acerbo misto, E que termina o escravo murmurando Junto ao senhor: louvado seja o Cristo.

Louvado seja o Cristo! – mas Seus lábios Ensinavam doçura e piedade; Não mandavam que o déspota chumbasse Uma grilheta aos pés da humanidade.

Louvado seja o Cristo! – mas nas sombras Daquela angústia longa e sobre-humana Irisava-se um arco de aliança Por todo o céu da consciência humana.

122 O grande José do Patrocínio

Louvado seja o Cristo! – Ele era doce Como aos domingos o romper da aurora; Escravo! Não é ele quem sustenta O homem torpe e vil que vos explora?

Quando se há de curar essa medonha Chega hedionda e fatal do cativeiro; E há de o trabalho sacudir os braços Lançando dos grilhões os estilhaços Longe dos céus formosos do Cruzeiro?!

José do Patrocínio, o Zé do Pato, como carinhosamente o chamavam seus amigos das letras e do jornalismo, foi um rugido que ecoou pelo Brasil inteiro, abalando a escravidão. Era um letrado, que se fizera por si mesmo, que apren- dera com sacrifício, que se formara farmacêutico com os maiores esforços pes- soais e econômicos, pois que era pobre, e como letrado fez reboar pelo Brasil a sua voz tonitruante, que, finalmente, ajudou a mover montanhas, as monta- nhas da opressão, da insensibilidade dos interessados no eito dos escravos, e não os queiram alforriados, pois que se veriam desfalcados do valor dessa força humana, que deveria ser livre, como livres vieram a ser os escravos americanos, pela Guerra Civil, que fez de Lincoln o herói nacional, a maior figura da histó- ria dos Estados Unidos. A vida de José do Patrocínio não teve lances heróicos. Não se pode comparar com os heróis da Guerra do Paraguai, ou com grandes vozes, ricas economica- mente e ricas de amor à pátria, como a de Rui e de Joaquim Nabuco. Não se lhe pode comparar , mestiço, portanto, de origem africana, como o fogoso Patrocínio, mas o nosso grande combatente, o nosso orador de grandes recursos oratórios, o nosso combatente da justa causa da Abolição foi um dos nomes que ficaram na História do Brasil, para edificação das gerações vindou- ras, e fez mais do que o Zumbi, por ter se exposto, de peito aberto, contra eventuais assassinos, de pena afiada, como os mais corajosos combatentes da

123 João de Scantimburgo imprensa, como os pobres que se erguem acima dos ricos, enfrentam o poderio da fortuna, e acabam vencendo quando justa é a causa que abraçaram. José do Patrocínio viveu pobre, mas com meios suficientes para se manter decentemente. Nos seus últimos dias na Terra, empobreceu mais, e já não ti- nha com que se manter, senão com o apoio de alguns amigos e com os jornais para os quais escrevia, a fim de obter algum dinheiro, com que se alimentava e se vestia pobremente, não raro próximo da indigência. Concluindo, tenho a maior satisfação em proclamar aqui José do Patrocí- nio um dos maiores brasileiros de seu tempo, um grande compatriota nosso, que teve uma vida aventurosa, inteiramente dedicada às grandes causas, a maior das quais a Abolição. Bendito seja o nome de José do Patrocínio.

124 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Murilo Melo Filho

esejo que minhas primeiras palavras sejam do maior e do Conferência mais sincero agradecimento ao Acadêmico Ivan Junqueira, proferida na D ABL, a 8 de abril pelo honroso convite para fazer hoje, aqui, esta alinhavada palestra de 2003, durante sobre José do Patrocínio, na celebração do sesquicentenário do seu o ciclo Fundadores nascimento, que se completará no dia 9 de outubro deste ano, e no da ABL. prosseguimento de um Ciclo de Conferências sobre os Fundadores desta Academia. Agradeço também as generosas palavras do Acadê- mico Ivan Junqueira, com as quais aqui fui apresentado, e que me emocionaram profundamente.



João Carlos Monteiro era o nome de um vigário da Cidade de Campos dos Goitacazes, no Norte Fluminense, debruçada à mar- gem direita do rio Paraíba, famosa pela sua goiabada e pela sua ca- na-de-açúcar. Murilo Melo Filho

João Carlos formara-se em Direito pela Universidade de Coimbra, era vere- ador de sua Cidade de Campos e já fora promovido a cônego. Naquele tempo, a Igreja Católica permitia que seus clérigos fossem maçons e João Carlos era o Venerável da Loja “Firme União”, coabitando as suas fun- ções de pastor das almas com os prazeres de duas mesas: a dos jogos de azar e a dos banquetes gastronômicos. Elegera-se deputado provincial, sendo também um fazendeiro e senhor de 92 escravos, que ele havia “reescravizado” como “africanos livres”. Ele já tinha 54 anos de idade quando se enfeitiçou por uma negrinha, de 13 anos, chamada Justi- na Maria, que engravidou e que, no dia 9 de outubro de 1853 – há 150 anos, por- tanto – deu à luz um bebê, com o nome de José Carlos do Patrocínio, batizado no dia 8 de novembro, dedicado ao Patrocínio da Virgem Santíssima, e que era mais um fluminense, conterrâneo aqui do Acadêmico Marcos Almir Madeira.

 Na “roda dos expostos”

Filho da escrava Justina Maria e do padre João Carlos Monteiro, Patrocínio propriamente não nasceu, porque, segundo informa o poeta campista Antônio Roberto Fernandes, diretor da Biblioteca Municipal Nilo Peçanha, simples- mente foi “exposto” numa janela do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, na época situada à Praça das Quatro Jornadas, de Campos. Na calada da noite, ele foi depositado no peitoril da janela e empurrado de modo a que ela girasse em torno de um eixo central, num movimento que cha- mava a atenção da enfermeira de plantão. Foi então recolhido, medicado e abrigado, até que aparecesse alguém – neste caso a sua própria mãe – para o adotar. Aquela “roda dos expostos” tinha sido um recurso adotado para que não se tornasse pública a sua origem incestuosa. Filho de uma união tão ilícita, tão incomum e criado numa senzala, Patrocí- nio muito cedo se revoltou contra os açoites impostos pelo padrasto aos seus irmãos negros.

126 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Sua mãe, Justina, já não era mais a preferida do Cônego João Carlos. E José do Patrocínio – o Zeca – sofria com aquela discriminação, que levara sua mãe a transformar-se numa quitandeira, envolvida com o comércio de frutas e de legumes. Aos 15 anos de idade, o menino Patrocínio não se conformava com as hu- milhações sofridas pela sua mãe, na qualidade de mais uma das muitas amásias do seu padrasto poligâmico, que sequer o havia reconhecido como filho. Aquele era um lar sem afeição, simplesmente insuportável, sob o guante de um vigário impulsivo e violento. Certo dia, o menino confessou a Justina Maria: – Mãe, quero ir embora daqui. Não agüento mais vê-la tão submissa, tão in- sultada e tão ofendida justamente por uma das outras amantes de João Carlos Monteiro. Todos quantos, algum dia, tiveram também de romper com suas famílias e suas cidades, para irem em busca de um lugar ao sol, como deve ter acontecido com alguns aqui presentes, podem imaginar facilmente o impacto causado na cabeça de Justina Maria, com aquela separação. Afinal de contas, o jovem Patrocínio era uma das poucas entidades que ain- da lhe prendia à vida. Seria muito duro e difícil para ela privar-se dele e ficar desamparada na solidão do seu cativeiro. Ia perdê-lo, mas resignava-se por ver que aquela decisão do filho era certa e lógica.

 Fugindo de campos

Patrocínio fugiu de Campos e veio para o Rio. Empregou-se na Santa Casa de Misericórdia, aqui bem perto, na Rua Santa Luzia, trabalhando na sua far- mácia, como aprendiz e como servente, a braços com remédios e purgantes e, na enfermaria, como ajudante, às voltas com cadáveres pobres e indigentes. Vai trabalhar no jornal ARepública , de Salvador de Mendonça, o fundador, nesta Academia, da minha Cadeira no 20, que acabara de publicar o “Manifes- to Republicano”, de Quintino Bocaiúva. E na Gazeta de Notícias, onde faz sua es-

127 Murilo Melo Filho tréia como o grande e admirável jornalista que viria a ser pelos anos afora. Pu- blica também seus primeiros versos, contra a inauguração de uma estátua de bronze, em homenagem ao Imperador:

Aí vês, oh! nefando aviltamento, De um despotismo cruento. Neste solo americano, Nas abas do régio bronze, Ou seja, escárnio ao invés, Os escravos curvos aos seus pés, Aos pés dum rei, dum tirano.

Patrocínio é aí amparado por João Vilanova e pelo Capitão Emiliano Rosa de Sena, que o convida para morar em sua casa e para ser o instrutor de suas fi- lhas, uma das quais, Maria Henriqueta, viria a ser justamente sua mulher e companheira pelo resto da vida. Na Gazeta de Notícias, começa a escrever artigos políticos, já pregando o abo- licionismo e usando o pseudônimo de “Proudhomme”, em homenagem a Pi- erre-Joseph Proudhom, o pai do anarquismo. Era a época em que Manuel Antônio de Almeida começava a publicar os ca- pítulos do seu Memórias de um Sargento de Milícias e José de Alencar fazia o mesmo com o seu O Guarani.

 O primeiro livro

Nesse meio tempo, um fazendeiro rico, Mota Coqueiro, e mais três capata- zes da região de Campos, eram executados com a pena de morte, sob a acusa- ção de terem assassinado uma família humilde do local. Um ano depois, Pa- trocínio recebe a carta de um padre que, às vésperas de morrer, escuta a confis- são de um lavrador, assumindo a autoria do crime.

128 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Uma onda de protestos e de revolta toma conta do Rio e Patrocínio apro- veita a história para publicar em capítulos o seu primeiro livro: Mota Coqueiro e a pena de morte. Pela Gazeta de Notícias, vai ao Ceará e, em candentes reportagens, narra o dra- ma da seca que assolou o Nordeste em 1877, com Pedro II declarando que as jóias da Coroa deviam ser vendidas, contanto que nenhum cearense morresse de fome – um assunto, aliás, que hoje, mais de 100 anos depois – continua atualíssimo e desafiante. Durante quatro meses, Patrocínio convive com os flagelados, sua miséria, pobreza, doenças, falta d’água, abandono, prostituição e morte. Voltando de lá, escreve Os retirantes, que, localizado no Nordeste, tem um padre como seu personagem central: um padre devasso e desonesto, que não era outro senão o próprio Cônego Monteiro, pai de Patrocínio. Esse Os Retirantes é o nosso primeiro livro sobre o drama das secas, precursor e pioneiro do romance regionalista do Nordeste, assim saudado pelo crítico e Acadêmico Araripe Júnior: “O Autor de Os retirantes é um escritor apaixonado, que chora e se sensibiliza quando escreve e que se exalta e se enfurece quando fala.” Já fazia dez anos que Patrocínio estava longe de sua mãe e dedica-lhe um poema:

Como outrora, ligou-se à minha infância, Liguei também a ti a mocidade, Não pela glória, que não tive nunca, Mas pelo coração, pela saudade.

Patrocínio não nutria os mesmos sentimentos pelo padrasto, e escreve a po- esia “O Padre”:

É preciso lançar por terra esse espantalho Que se diz intérprete divino.

129 Murilo Melo Filho

E, sob a máscara de moral austera, Esconde a negra vocação do abutre E os instintos sangrentos da pantera.



Patrocínio já era aí um corajoso jornalista, um panfletário, engolfado nas campanhas contra a escravatura e a favor da República. Casa-se com Maria Henriqueta, a Bibi, que tinha sido sua aluna, uma jovem branca e bonita, dez anos mais moça do que ele. O jornalista Apulcro de Castro, de péssima reputação, não perdoa Patrocí- nio. E escreve em O Corsário: “Casou-se o preto cínico da Gazeta e está muito ancho o manganão. Mas, com quem ele foi casar-se? Procurou por acaso fazer a felicidade de uma preti- nha, sua parenta? Escolheu uma dama de sua própria raça? Não. Nessa, não caiu o nosso moleque, um espertalhão, um negrinho que quis por força uma noiva, dengosa, alva e branca.”

 No Ceará, novamente

Ao Ceará, onde estivera anos antes, testemunhando a tragédia da seca, vol- taria depois, já então alcunhado de “Marechal Negro”, para solidarizar-se com os bravos jangadeiros cearenses, que, sob a liderança de Chico da Matilde, ha- viam bloqueado o porto de Fortaleza ao desembarque de qualquer navio ne- greiro. Vai à Europa, explicando sua ausência da campanha abolicionista pela ne- cessidade de conseguir informações e documentos para o seu folhetim Pedro Espanhol, que realmente lançaria pouco depois, e também em busca de melhores condições de saúde. Patrocínio estava em Paris, sendo homenageado por im- portantes intelectuais franceses, quando recebe a notícia de que a escravidão

130 Patrocínio: Um jornalista na Abolição fora abolida no Ceará. E ali mesmo faz um apelo para que Victor Hugo apóie os abolicionistas brasileiros, recebendo dele, 48 horas depois e por escrito, a seguinte mensagem:

“Uma província brasileira acaba de declarar extinta a escravatura, desfe- chando nela um golpe decisivo. Esta é uma grande notícia. Porque, antes do fim deste século, a escravatura terá desaparecido sobre a face da Terra.”

No auge da popularidade, Patrocínio resolve visitar Campos. E aí é sauda- do por um combativo orador local, muito popular e de muito sucesso, chama- do Carlos de Lacerda – (que pelo nome não se perca) – um homônimo e ante- cessor do futuro lutador e líder Deputado da Banda de Música udenista, com- panheiro aqui, do nosso estimado Acadêmico Oscar Dias Corrêa. Aí em Campos, Patrocínio experimenta uma das maiores emoções de sua vida. Tinha 32 anos e estava afastado há 17 anos dos seus conterrâneos. Du- rante um grande jantar que lhe foi oferecido, o mestre-de-cerimônias chamou para presidir a mesa uma escrava de nome Justina Maria, justamente sua mãe, com a qual ele se reencontra, em meio a muitos beijos e muitas lágrimas. Justina já estava sofrendo as dores de um quisto surgido quando ainda era jovem. Trazida pelo filho para o Rio de Janeiro, interna-se na Santa Casa de Misericórdia, em cuja farmácia, Patrocínio, aos 14 anos, tivera, como já vimos, o seu primeiro emprego. É então operada daquele quisto, já então transformado num perigoso tu- mor cancerígeno, do qual viria a falecer, cinco meses depois. Mas, pouco antes de morrer, Justina Maria ainda tem chance de embalar nos braços o seu neto: José do Patrocínio Filho, recém-nascido, e que mais tarde seria também um te- atrólogo e um razoável cronista (meio boêmio). Aquela escrava, humilhada e repudiada pelo Cônego João Carlos Monteiro, teve no seu enterro a presença de grandes homens, correligionários do seu fi- lho: Campos Sales, , , , Rui Bar-

131 Murilo Melo Filho bosa, Joaquim Nabuco, Olegário e José Mariano, Aristides Espínola, Lopes Trovão, Paula Ney e André Rebouças. A morte e o enterro de Justina abalam Patrocínio, mas não o fazem desistir da luta. Afinal, sua mãe não vira em vida o fim da escravatura, mas muitas ou- tras mães não morreriam sem assistir à sua Abolição.

 A abolição, em ascensão

A seguir, Patrocínio elege-se vereador da Cidade do Rio de Janeiro, con- quistando uma nova tribuna para a sua pregação abolicionista, que, por sinal, naqueles primeiros dias de maio de 1888, atravessa uma fase de crescente ex- pansão. Fazendeiros de São Paulo e de Minas, até então conhecidos por suas arrai- gadas convicções escravagistas, começam a alforriar seus negros. Multiplicam-se os casos de escravos fugitivos, logo recolhidos e protegidos em locais seguros. Já enfermo, Dom Pedro II embarca para a Europa, em busca de saúde, e dei- xa no trono sua filha, a Regente Isabel, aconselhando-a no embarque: “Faça a Abolição, antes que algum aventureiro a faça.” Na Gazeta de Notícias, Patrocínio escreve:

“A escravidão é um roubo. E todo dono de escravo é um ladrão. Elaéonos- so opróbrio, que o Brasil simplesmente não merece. O mais depressa possível, devemos varrê-la do nosso cenário. Não há liberdade nem independência em uma terra com 1 milhão e 500 mil escravos. De que valerá a pena instalarmos uma República numa pátria de tan- tos cativos?”

As lendas brasileiras sobre negros já eram aí enriquecidas pelo heroísmo de Henrique Dias contra os holandeses, em Pernambuco; por Zumbi dos Palma-

132 Patrocínio: Um jornalista na Abolição res, em Alagoas; pelo Quilombo Arraial dos Crioulos, em Minas; pelo esplen- dor de Chica da Silva, no Arraial do Tijuco; pela resistência de Antônio Con- selheiro na epopéia de Canudos, na Bahia; e pela tradição de “Negrinho do Pastoreio”, no . O abolicionismo passou então por duas fases bem distintas: uma até 1879, romântica, idealista, teórica, reflexiva; e outra, até 1888, bem mais prática, ob- jetiva, com os pés no chão. Funda-se aí a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, com duas alas bas- tante definidas: A primeira: aristocrática, formada por Nabuco, no Parlamento, com apoio de , André Rebouças, Coelho Neto, Luís Murat, Raul Pompéia e outros intelectuais cultos e refinados, meio filósofos e teóri- cos. A segunda: popular, constituída por Patrocínio, na rua e no meio do povo, com Lopes Trovão, Luís Gama, Paula Ney, , Ferreira de Mene- zes, e outros líderes de ação prática e extremada, tribunos populares, que se ali- mentavam na reação dos comícios.

 Uma oratória diferente

Ao revés de Nabuco, a oratória de Patrocínio nada tinha de elegante. Pelo contrário: não seguia os modelos clássicos, não fora educada pela Retórica, era desengonçada e feia, bamboleante, de gestos descoordenados. Mas, compensa- va esse desacerto com uma emoção que emanava de dentro daquele negro bai- xo, grosso, rechonchudo, quase calvo – de barba espessa e cerrada, no figurino de José de Alencar e de Alcindo Guanabara, uma barba predecessora da de Fi- del Castro e do nosso Lula – com um turbilhão de frases curtas e contunden- tes, que falavam de perto aos corações e às mentes de um público vibrátil a cada frase sua. Dir-se-ia uma centelha que se acendia e que inflamava. As palavras jorravam como se estivessem num turbilhão, em catadupas, de uma cachoeira, com uma es- plêndida faculdade criadora, imagens improvisadas e comparações imprevistas.

133 Murilo Melo Filho

O Acadêmico Olavo Bilac confessa que nunca esquecerá aquela cabeça que assomava à tribuna, transfigurada e olímpica, parecendo crescer, inchar, dila- tar-se, num torvelinho de rompantes geniais. Essas imagens brotavam do fundo de sua alma, espontâneas e repentinas, que captavam o auditório, mudo e quedo, submisso e silencioso, perplexo e de respiração suspensa, num estado de êxtase, como se estivesse bebendo cada uma de suas palavras. Os epítetos e as metáforas brotavam em cintilações de fulgores e de relâm- pagos. As multidões prostravam-se aos seus pés, dóceis e obedientes, domadas, di- ante daquele Deus de ébano. Era um tumulto feito homem, como bem definiu o Acadêmico Araripe Júnior, um orador diferente, um misto de Cícero, Mirabeau, Danton, Lincoln e Robespi- erre, que parecia estar num palco, como um ator, representando um personagem importante, que no fundo era ele mesmo. Recorda o Acadêmico Coelho Neto:

“Quem uma vez o viu na tribuna, guarda, por certo, na lembrança, a ima- gem de uma estranha figura semibárbara, quase grotesca. Não era um tribuno de escola, disciplinado e ordeiro. O seu discurso não tinha melodia: era um silvo ou um rugido. O seu gesto era desconexo. O seu olhar despendia fagulhas. Avançava, recuava, girava, re- traía-se, ficava na ponta dos pés e despejava as suas bombas.”

Há poucos minutos, o Acadêmico Marcos Almir Madeira contou-me que Coelho Neto definia Patrocínio como “um desmantelo de tormenta”.



A batalha pela Abolição da Escravatura já tinha mais de meio século e se ini- ciara antes mesmo de Patrocínio nascer.

134 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Retrato de José do Patrocínio Desenho: anônimo, s.d.

Retrato de José do Patrocínio na juventude. Desenho: anônimo, c. 1870.

135 Murilo Melo Filho

Primeiro. Ela começara no dia 7 de novembro de 1831, com a chamada “Lei Feijó”, assinada por Diogo Antônio Feijó, um sacerdote paulista, Minis- tro da Justiça da Regência Trina, que libertava os africanos chegados depois dela. Segundo. Prosseguira com a Lei Eusébio de Queirós, sancionada em 4 de setembro de 1850, que tomou o nome em homenagem ao seu Autor, nascido em Angola, Ministro da Justiça no primeiro Gabinete do Marquês de Olinda e que acabava com o tráfico dos escravos. Terceiro. Continuara com a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, apresentada pelo Visconde do Rio Branco e promulgada pela Princesa Isabel, então na Regência do Império, que libertava os nascituros, filhos nasci- dos de mãe escrava. Quarto. Seguira adiante com o Projeto Saraiva, apresentado em 13 de maio de 1885 e transformado na Lei dos Sexagenários, que tornava livres os escra- vos com mais de 60 anos. E quinto. Era concluída, a seguir, com a Lei Áurea, que tomou o no 3.353, –redigida, apresentada, discutida e aprovada na Câmara e no Senado, no espa- ço de uma semana, apenas – para ser promulgada pela Princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888, que assim cumpria o conselho deixado pelo seu pai e que, por completo, extinguia finalmente a escravidão no Brasil.

 13 de maio: dia histórico Numa crônica, Machado de Assis assim descreveu aquele 13 de maio: “Era um belo dia de sol claro e fulgurante. O povo em delírio acorreu à Rua do Ou- vidor para aclamar os líderes da campanha pela Abolição, que apareciam na sa- cada dos edifícios e aí recebiam os aplausos populares.” No interior do Paço Imperial, a cena fora rápida. Em companhia do seu marido, Gaston d’Orleans, o Conde d’Eu, um francês impopular, a Princesa Isabel entra na sala, senta-se à mesa e, com letra firme – usando uma caneta de ouro comprada numa subscrição popular – sanciona o projeto que ela própria remetera ao Parlamento, e que abolia para sempre a escravatura no Brasil.

136 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Patrocínio, que entrara na sala carregado nos ombros de populares, aproxi- ma-se da Princesa, ajoelha-se, beija-lhe as mãos e proclama: – Vossa Alteza é a querida mãe branca dos escravos e a mãe loira dos brasi- leiros. Não menos emocionado, o monarquista Joaquim Nabuco chega à janela do Palácio, esforça-se para discursar, mas, com a voz embargada, consegue apenas dizer: – Está abolida a escravidão. Não há mais escravos no Brasil. Aplausos, flores e palmas festejam suas palavras. O povo dançava nas ruas. E a Abolição chegava finalmente ao seu feliz desenlace, como o mais belo mo- vimento democrático de toda a História brasileira. Aquela conquista, que nos Estados Unidos custara o preço de uma sangren- ta guerra de cinco anos – a Guerra da Secessão – entre o Norte e o Sul, aqui no Brasil era obtida com risos e festas. As comemorações do triunfo não atraíam Patrocínio, nem o fascinavam. Não gostava das vitórias, que costumam decepar os adversários. Atingido o objetivo, preferia recolher-se. E, na companhia de Paula Ney, refugia-se na redação do seu jornal. Está cansado e exausto. Precisa dar um cochilo, mas é interrompido: – Está aí fora o Dr. Benjamim Constant, com um grupo de cegos do seu Instituto, para cumprimentá-lo. Mesmo a contragosto, Patrocínio manda-os entrar. E Benjamim Constant os apresenta: – Patrocínio, trouxe-lhe aqui os meus cegos. Eles também te querem ver. Mui- to de propósito, emprego o verbo: os meus cegos te querem ver. Patrocínio tenta agradecer a homenagem. Gagueja algumas palavras, mas não as termina. Está comovido e começa a chorar. Benjamim Constant percebe o desconforto da situação e explica: – Meus queridos filhos cegos. Nem sempre as palavras conseguem exprimir o que sentimos. Chorando, este grande homem e orador, que é José do Patro- cínio, acaba de pronunciar o seu mais belo discurso. Não o vistes nem o ouvis-

137 Murilo Melo Filho tes falar. Mas o vosso coração deve tê-lo sentido. Basta de emoções. Vamos embora. E dando o braço a cada um deles, lá se foi Benjamim Constant, com os seus cegos, cortando a multidão.

 A libertação, em vez da coroa

Dizia-se que, sancionando aquele decreto, a Princesa imaginava salvar a Monarquia, primeiro para seu pai e em seguida para ela mesma, embora o Ba- rão de Cotegipe a tivesse advertido, poucos meses antes, de que ela poderia ga- nhar a batalha da Abolição, mas seguramente perderia a guerra da Coroa. No dia 13 de maio, quando mostrou o decreto da libertação ao Conde d’Eu, seu marido, a Regente ouviu dele o seguinte conselho: – Não assine esse papel, Princesa. Este é o fim da Monarquia. V. Alteza está perdendo o trono. E ela respondeu com uma pergunta: – Que direito tenho eu, livre e batizada, de permitir que meus irmãos negros continuem escravizados, eles que, para libertá-los, só têm a mim? Não fora à-toa, nem um mero impulso pessoal, aquele beijo de Patrocínio na mão da Princesa Isabel. Por algum tempo, triunfará nele o abolicionista, mas nele também, durante algum tempo, morrerá o republicano. Sua gratidão à Princesa era total e apaixonada, a ponto de incentivar a organização de uma Guarda Negra, constituída de ex-escravos, dispostos a defender a Princesa Re- gente, contra tudo e contra todos. Segundo Patrocínio, aquela Princesa de nome extenso: Isabel, Cristina, Le- opoldina, Augusta, Micaela, Gabriela, Rafaela e Gonzaga de Bragança, quando assinou a Lei Áurea, já estava conformada de que trocava o seu Império pela li- bertação dos escravos.

138 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Minhas Senhoras e meus Senhores. Peço-lhes agora licença para descrever aqui – com mais detalhes – um epi- sódio a que o Acadêmico Ivan Junqueira se referiu, de passagem, na terça-feira da semana passada. Eram 20 horas do dia 17 de junho de 1889. Estávamos, naquela noite, no Teatro Lucinda, aqui no Rio, quando Patrocínio se vê surpreendidoeépro- vocado por outro grande orador, Silva Jardim – que depois morreria tragica- mente na cratera do Vesúvio – e que, naquele momento, com dureza, o acu- sava de ser um traidor do movimento republicano, rendido aos encantos da Princesa Isabel. Patrocínio estava no camarote em frente, murcho e cabisbaixo, semiderro- tado por aquela enxurrada de ataques. À certa altura, ensaiou uma resposta tí- mida, sem brilho e sem calor.

 A surpresa de um aparte

Paula Ney, seu fraternal amigo, esgueirou-se de sua companhia e foi lá para o meio do povão, na platéia, de onde, escondido, desferiu um aparte: – Cala a boca, negro sem-vergonha. És o último negro vendido e sujo. Aquela interrupção feriu Patrocínio intensamente. Sem saber de onde ela vinha, cuidou de respondê-la. Já agora era a fera ferida, de olhos esbugalhados, narinas acesas, o corpo trê- mulo de indignação, que se agigantava na resposta, não apenas a Silva Jardim, mas também ao desconhecido aparteante: “Negro, sou, sim, com muito orgulho. Deus deu-me a cor de Otelo, para que eu sempre honrasse os negros, dos quais tenho a honra de descender. Sim, sou um negro de nascimento, filho de um padre com uma escrava. Nada mais sou do que uma pessoa de três pês: preto, pobre e plebeu.” E prosseguiu com tanto brilho, que saiu do Teatro carregado em triunfo. Depois, no camarim, de acordo com relato do Acadêmico Osvaldo Orico, Pa- trocínio reclamou:

139 Murilo Melo Filho

– Eu só queria saber quem foi o patife que me atirou aquele desaforo. E Paula Ney, presente: – Fui eu, este seu criado. – Foste tu, mesmo? – Fui eu, sim. Querias então que eu assistisse, indiferente e omisso, à tua derrota? Os amigos são mesmo para essas ocasiões. Estavas dormindo no teu discurso. Eu vibrei um raio para te acordar. Só com os raios se despertam os titãs.”

 Desterro e ostracismo

Meus amigos. Acusado de monarquista, Patrocínio é esquecido na organização do Minis- tério republicano, que conta com seus amigos: Quintino Bocaiúva, Rui Barbo- sa e Benjamim Constant. A República já tinha mais de um ano. E não se lembrava do seu nome. So- bretudo os militares fecham a questão contra ele, por causa de sua fidelidade a Nabuco e Hilário de Gouveia, dois monarquistas radicais. Patrocínio resolve candidatar-se à Câmara pelo 2o Distrito do Rio de Janei- ro. Recebe 713 votos e é derrotado por Timóteo da Costa. Floriano rebela-se contra Deodoro e termina conquistando o poder, para iniciar uma implacável perseguição aos adversários. Patrocínio é desterrado para Cucuí – lá no Alto Rio Negro – onde ele e seu grupo enfrentam doenças, febres, fome e esquecimento. Anistiado, volta ao Rio, mas não abranda o combate a Floriano, acusan- do-o de trair a República e reaproximando-se de velhos companheiros: Rui, Bilac, Pardal Mallet, Prudente, Campos Sales, Quintino e Seabra. O seu novo jornal ACidade do Rio é fechado pelo governo, que o persegue e o ameaça de prisão. Com a posse de Prudente de Morais, Patrocínio reabre o jornal, fiel aos seus ideais republicanos, porém sem o mesmo sucesso de antes.

140 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

A fim de ocupar seu tempo, lança um projeto para construção de um ba- lão dirigível – como aqui já narrou o Acadêmico Ivan Junqueira – cheio de um gás mais leve do que o ar, e que, por isto mesmo, podia elevar-se e man- ter-se na atmosfera. Era uma réplica e um invento mais ou menos seme- lhantes ao “Pax” de Augusto Severo e ao “Demoiselle”, de Santos Du- mont, que exigia investimentos pesados e inacessíveis ao seu bolso de jor- nalista desempregado. Aprofunda seus estudos sobre aerostática, aeronáutica, mecânica e física. Aperfeiçoa o seu projeto, consegue uma patente, mas não obtém o dinheiro necessário para executá-lo. Mais uma vez, candidata-se a um cargo político, agora ao Senado, na vaga deixada por Lopes Trovão. Tem uma plataforma socialista, de apoio às camadas mais pobres. E nova- mente é derrotado. Pela terceira vez, também, afasta-se de Rui, por causa de Prudente de Mora- is: Rui, o Tartufo, contra Prudente; e Patrocínio, chamado de Aretino, a favor de Prudente. Eram dois gigantes e dois ícones do jornalismo brasileiro, que se bica- vam com muita facilidade e que iriam hostilizar-se e reaproximar-se vezes sucessivas. Também com Patrocínio nunca teve muitas afinidades. Vi- viam brigando. Certa tarde, quando os fundadores desta Academia – entre os quais ele próprio – ainda se reuniam na pequena sala do escritório de Rodrigo Octavio, à Rua da Quitanda 47, Patrocínio ali chegou e só havia uma cadeira vaga, justamente bem ao lado de Laet. Patrocínio olhou, dirigiu-se para ela, mas antes quis saber: – Afinal de contas, nós dois, hoje, estamos de bem ou estamos de mal? – Estamos de bem. – Então, posso sentar-me. Boa-tarde.

141 Murilo Melo Filho

 A cadeira 21

José do Patrocínio foi o fundador da nossa Cadeira no 21 – depois chamada de “a Cadeira da Liberdade” – que teve como patrono Joaquim Serra e, como sucessores, acadêmicos de direita e de esquerda, em eleições pendulares, que bem atestam a nossa índole apartidária: Mário de Alencar e Olegário Mariano, de direita; Álvaro Moreyra, de esquerda; , de direita; Dias Go- mes, de esquerda; , de direita, até o atual ocupante, Paulo Co- elho, enfim, um radical de centro. Patrocínio não foi o que hoje se chamaria propriamente de um escritor. Além dos romances Mota Coqueiro e Os retirantes e do folhetim Pedro Espanhol, não teve pretensão nem tempo de produzir uma obra literária realmente importante. Esses seus três livros estão esgotadíssimos; deles existem hoje talvez dois ou três exemplares e bem que se poderia encontrar um editor interessado em re- publicá-los. Seria desejável também que se reunissem os seus artigos publicados nas três “Gazetas” da época: a “de Notícias”,a“da Tarde”ea“do Rio”, e se editassem os seus discursos pronunciados na campanha da Abolição. Os seus discursos, pronunciados por um dos maiores “meetingueiros” e “palanqueiros” de toda a oratória brasileira, poderiam até servir como subsí- dios para ilustrar a nossa variada bibliografia sobre a escravidão, que teve seus pontos altos em Castro Alves, com “Navio Negreiro” e “Vozes d’África”; em Bernardo Guimarães, com Escrava Isaura; em Machado, com o poema “Sabina”; em , com Aescrava ”; em Aluísio Azevedo, com O cortiço e O mulato, passando por Júlio Ribeiro, com Acarne ; por Coelho Neto, com Aconquista e O rei negro; por Luís Guimarães Júnior, com “Os es- cravos”; com “O banzo”; Vicente de Carvalho, com “Fugindo ao cativeiro”; até chegar a Jorge de Lima, com “Essa nega Fulô”; a , com “Sangue africano”; a Leonardo Mota, com “Violei- ros do Norte”; a Luís da Câmara Cascudo, com Lendas brasileiras; e a Pedro Calmon, com História de Castro Alves.

142 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Minhas Senhoras e meus Senhores. Revoltado porque Sílvio Romero não cumprira a promessa de fazer uma conferência a favor da Abolição, Patrocínio não o desculpa e mantém com ele uma das mais violentas polêmicas de toda a nossa literatura. Escreveu então:

“Trata-se de um ‘teuto maníaco’ de Sergipe, que se chamava Sílvio Vascon- celos da Silveira Ramos, mas que depois passou a chamar-se Sílvio Romero. Há vinte dias, encontrei-me com ele e ouvi dos seus lábios grossos e arroxea- dos, apesar de arianos, a confirmação de que não fizera a conferência por ainda estar doente. – Você é um miserável, um traste, um vilão muito ordinário, um pedante com fumaças de filósofo, um “chichisbéu” da literatura, um belchior da juris- prudência, um macaco de e um Satanás do materialismo, que se ajoelhou diante do catolicismo triunfante no Colégio Pedro II. Chamou-me ignorante, porque não tenho o hábito de andar citando auto- res alemães. O que hei de discutir com o Sr. Sílvio ex-Vasconcelos da Silveira? Este é o juízo que faço a seu respeito, oh! lazarento. Está respondido.”

 52 anos de uma vida

Patrocínio viveu apenas 52 anos. Atravessou toda a segunda metade do sé- culo XIX, porque, tendo nascido em 1853 – portanto, há um século e meio – morreu em 1905, sendo contemporâneo da sucessão dos vários gabinetes par- lamentaristas, naquela gangorra que movimentou a maior parte do Segundo Reinado de Pedro II: os gabinetes conservadores chefiados pelo Visconde do Rio Branco, pelo Marquês de Olinda e pelo Duque de Caxias, sucedidos pelos gabinetes liberais de Sinimbu, Saraiva, Lafaiete, Martinho Campos, Parana- guá, Sousa Dantas e novamente Saraiva, que devolveram o poder aos conserva- dores Cotegipe e João Alfredo, culminando com o gabinete liberal de Ouro Preto, já nos estertores da monarquia parlamentarista e no advento do presi- dencialismo republicano.

143 Murilo Melo Filho

Quando começou o novo século, em 1901, Patrocínio tinha apenas 47 anos de idade. Mas, já estava velho e cansado. Suas colaborações para a Gazeta do Rio eram cada vez mais raras e esparsas. Ele já se transformara também num boêmio notívago, amante das madruga- das e aproveitador de sua imensa popularidade junto às mulheres, sobretudo as charmosas francesas de então. Enquanto Santos Dumont tem êxito em Paris com o seu “14-Bis”, o barra- cão de Patrocínio, no qual estava sendo construído o seu avião, aqui no Rio, é destroçado por violenta tempestade. O projeto do seu invento era reduzido pelo temporal a uma sucata de ferros retorcidos. Sua situação financeira é cada vez mais grave. E mais difícil. Vende sua casa na Rua Riachuelo, faz empréstimos, torna-se novamente um escravo, desta vez, dos agiotas. Vai morar numa humilde casinha no Engenho de Dentro e volta a escrever, já então usando novo pseudônimo, que não era mais o Proudhome, o Zeca Pato, o Notus Ferrão, o Pax Vobis ou o Pombo Correio, mas sim Justino Monteiro, uma combinação do nome do seu padrasto João Carlos Monteiro com o de sua mãe Justina Maria. E escreveu: “Cheguei a ser um conviva da ge- nialidade e um íntimo da realeza. Fiz-me à custa de muita luta e de muita per- sistência. Mas, não merecia o fim que estou tendo.” O jornal O Estado de S. Paulo faz uma campanha de donativos em seu favor, que José do Patrocínio Filho repele com uma carta altiva, dizendo que seu pai não estava precisando de esmolas. Com o assunto nos jornais, o quitandeiro suspendeu o fornecimento de fru- tas e o farmacêutico já não mais lhe fiava os remédios.

 A saúde de mal a pior

Seu estado de saúde vai de mal a pior. Uma tuberculose, que há mais de um ano e meio se instalara em seus pulmões, agrava-se por uma vida desregrada e extravagante e o torna fraco, magro e anêmico.

144 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

Minhas Senhoras e meus Senhores. Não quiseram os desígnios da vida que Patrocínio tivesse uma origem feliz. Ele foi extraído de uma barriga humilde e escrava, dando-lhe à pele uma cor es- cura, cercando-lhe a infância de todas as desgraças, com a privação da paterni- dade legítima e os sofrimentos do seu povo escravizado. Quiseram que no seu sangue e nos seus nervos se acumulassem as revoltas da gente martirizada, contra a maldade dos opressores, toda a longa e trágica odisséia do sacrifício africano.

O Acadêmico Olavo Bilac escreveu:

“A raça negra viu aparecer o profeta esperado, dentro de um furacão de trovões e de flores, acendendo cóleras, cicatrizando feridas, despedaçando grilhões, fulmi- nando orgulhos e ateando a fogueira em que o Brasil haveria de purificar-se. Ao chegar a hora da erupção daquela cólera vingadora, os brasileiros estre- meceram, abalados e tomados de uma comoção entontecida. Nunca houvera, até então, no Brasil, uma voz que soasse tão alto e que ferisse tão fundo.”

 Incontida força da emoção

Senhores Acadêmicos. Informa o Osvaldo Orico que, a Patrocínio, “pouco importavam amizades, estimas, conselhos e advertências. Na hora do combate, ele se transformava numa visão animalesca do combatente. E só retornava a si mesmo, quando tra- zia, da arena áspera e crua, o troféu da vitória preso nos dentes”. De acordo com Raymundo Magalhães Jr., Patrocínio “era uma incontida força emotiva, singularizando um destino. Cessada a luta, voltava a ser o ho- mem bom e hospitaleiro, simples e cordial, em cujo espírito brincavam a doçu- ra de uma criança e a indulgência de uma etnia afetiva. Seus braços levanta- vam-se em protestos e em agradecimentos. Numa das mãos, um raio. Na outra mão, uma rosa.”

145 Murilo Melo Filho

Dele disse o nosso confrade Joaquim Nabuco: “Ele foi a alma da Abolição, uma alma democrática, aliada a uma outra alma dinástica, que foi a Princesa Isabel.” Filinto de Almeida, o grande amigo lusitano, consagrou Patrocínio em be- los alexandrinos, como esta quintilha:

Ó luz sonora, luz articulada e viva, Que pelos tempos vens clamando e iluminando. Luz espiritual que da alma se deriva. Verbo, libertador de uma raça cativa. Mesmo depois de morto, tu continuarás vibrando.



Senhor Presidente. Senhores Acadêmicos. Senhoras Acadêmicas, Senhores Acadêmicos de Campos. Meus Amigos.

Concluindo, devo dizer que corria o dia 30 de janeiro de 1905, um domin- go de sol vibrante e de verão senegalesco. Patrocínio, que tinha pouco mais de meio século de idade, estava escreven- do para ANotícia , a mão, em cinco tiras, um artigo sobre a organização de uma Sociedade Protetora dos Animais. E dizia: “Tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma e que sofrem conscientemente as revoltas contra a injustiça humana, porque...” Aí, interrompeu a escrita e não terminou a frase. Levantou-se e correu para o banheiro, já engolfado no sangue da sua úl- tima hemoptise. O médico legista atestou-lhe a causa mortis: uma ruptura no aneurisma da aorta.

146 Patrocínio: Um jornalista na Abolição

 Do enterro ao despejo

Seu enterro foi custeado pelo governo, que pagou funerais solenes, coches de gala, cavalos cobertos de luto, marchas fúnebres, embalsamamento do cor- po e crepe nos lampiões. Oito dias depois – segundo me informou há pouco tempo o Acadêmico – sua família tinha de desocupar a casa em que ele morre - ra, escorraçada por um mandato de despejo. Patrocínio morreu como vivera, batendo-se por uma Sociedade Protetora e defendendo os fracos, num último apelo em favor dos animais. Ele não se arrependia do bem que fizera e transformou em piedade o pró- prio sofrimento, para se compadecer da sorte de todas as criaturas que sofrem. Nasceu padecendo, mas morreu amando, perdoando e sorrindo. Assim, morria o campeão de duas grandes bandeiras: a da Aboliçãoeada República. Morria, talvez, um dos maiores oradores brasileiros de todos os tempos. Morria um plantador da Liberdade, um defensor do Direito, um apóstolo da Lei, um advogado das causas populares, um jornalista de batalhas memorá- veis, um líder contra a ditadura de Floriano, um inimigo das oligarquias e dos senhores de engenho, um liberal dos direitos sociais, um paladino dos negros e dos escravos, o redentor de uma raça, um entusiasta de temas heróicos, uma bravura de procedimento, um ribombar de protestos, um poço de eloqüência e de talento. Morria o sonhador de um Brasil forte, próspero, industrialmente rico e so- cialmente justo. Morria um inesquecível brasileiro, chamado simplesmente: JOSÉ CAR- LOS DO PATROCÍNIO.

147 Inglês de Sousa (1853-1918) Acervo o Arquivo da ABL O ficcionista Inglês de Sousa

Oscar Dias Corrêa

vida de Herculano Marcos Inglês de Sousa é marcada por Conferência duas fases distintas: na primeira, o ficcionista, o primeiro proferida na A ABL, a 29 de naturalista brasileiro, publicando seus livros no período que começa abril de 2003, em 1876, estudante de Direito em São Paulo, com O cacaulista ese durante o ciclo encerra com os Contos amazônicos, em 1892; e o segundo, o jurista dos Fundadores da ABL. estudos de Direito Comercial, em 1897, com Os Títulos ao Portador, no Rio de Janeiro. , a quem citei no meu discurso de posse nesta Academia, lembrando Renan disse, em prefácio ao discurso de Rodrigo Octavio Filho, no centenário de Inglês de Sousa:

Renan falava da má vontade com que se considerava a manifes- tação de mestria em domínios opostos, e poderíamos estender o seu conceito a domínios apenas diferentes. A crítica, ou o aplauso público, não parece favorecer os regimes poligâmicos, em matéria de atividade intelectual. Prefere, ou parece preferir, a disciplina e

149 Oscar Dias Corrêa

a rigidez da monogamia, o gênero único, a atividade uniforme, que valoriza e prestigia o conjunto da obra realizada.

Aconteceu isso com Inglês de Sousa, grande ficcionista, de quem se esque- ceram os romances, ignorados hoje do grande público, e o grande jurista, que acabou por predominar, talvez, digo eu, porque os juristas sejam menos desu- nidos e menos senhores de sua glória do que os ficcionistas. Olívio Montenegro comenta:

Com Inglês de Sousa verifica-se um caso que não é comum na história dos literatos brasileiros – foi literato, jurista e homem de Estado, ao mes- mo tempo, tendo exercido o governo das províncias do Espírito Santo e do Sergipe. E ainda hoje o seu nome é mais conhecido como jurista do que como autor de ficção. Talvez porque a ficção no Brasil nunca fosse le- vada tão a sério como as letras jurídicas. Até pelo contrário: no homem político do Brasil o gosto pela ficção literária sempre foi olhado com as maiores reservas, quase depreciado, como uma falta de compostura, uma espécie de boemia do espírito que não se casasse bem com a circunspecção e a dignidade das altas funções administrativas.1

Prefiro não aquilatar da justeza da afirmação, mas o certo é que Inglês de Sousa não teve o reconhecimento que sua obra merecia. Nesta oportunidade e nesta Academia, não nos ocuparemos, senão de pas- sagem, com o grande jurista, que inovou com seus estudos em Os Títulos ao Por- tador no Direito Brasileiro. A obra, que se inicia com alentada Introdução, “síntese histórica” da matéria, desde os hebreus até o século XVII, tem configuração de obra moderna e, mais, pela fluência e exatidão da linguagem, excede o co- mum dos livros jurídicos. A exposição é viva e atual, e vêem-se alusões a temas modernos, ressaltando aspectos econômicos (Seção 1a), como os problemas do crédito e da poupan-

1O romance brasileiro, J. Olympio, 2a ed., pp. 99-100.

150 O ficcionista Inglês de Sousa

ça, expressamente referidos (item 60) e todos os mais que o aprofundamento do tema exigia, demonstrando, demais disso, amplo e apurado conhecimento da bibliografia alienígena então existente. Do grande jurista, disse Rodrigo Octavio, depois de apresentar-lhe o filho: “Este é um padrão de sabedoria e austeridade.” E o biógrafo assim remata:

Eu bem conheci o Mestre Inglês de Sousa. A aparência fria, reservada, distante e severa, que, aliada ao seu grande saber e autoridade, a todos infun- dia respeito, vinha, dir-se-ia, de uma possível e remota ascendência britâni- ca, que o nome de família – Inglês – faria presumir. Entretanto, um melhor conhecimento de suas origens revela que a família – Inglês – é portuguesa, argárvia (sic) de quatro costados e já conhecida nas Espanhas muito antes do descobrimento do Brasil.2

Do grande advogado disse , que lhe sucedeu nesta Casa:

Advogado durante cerca de quarenta anos, Inglês de Sousa não conhe- ceu a estreiteza e secura da inteligência profissional. [...] A advocacia não foi para ele o ato quase maquinal que se passa entre a banca e o foro, entre a clientela e o mundo judiciário; [...] Ela não o privou do convívio nobili- tante dos belos ideais; tampouco lhe afrouxou a austeridade ou diminuiu a tensão aos escrúpulos com que discernia as causas propostas ao seu pa- trocínio. O causídico admirado pelo talento e a proficiência, ainda mais porventura se impunha pela ética irrepreensível. Da advocacia, tão larga- mente exercida, desde o consultório em Santos até o Rio, onde se estabe- leceu com a fundação da República, havia ele de tirar elementos para uma alta reputação, que veio a culminar, por saber, moralidade e consciência, na fama do jurisconsulto.3

2 Rodrigo Octavio Filho, Inglês de Sousa – 1o centenário de seu nascimento. Rio de Janeiro, Editora Companhia Brasileira de Artes Gráficas, p. 11. 3 Discursos Acadêmicos, v. 5, pp. 98-99.

151 Oscar Dias Corrêa

A publicação de Os Títulos ao Portador assegura-lhe projeção nacionaleotor- na jurisconsulto de fama e prestígio, sendo indicado para Diretor da Faculda- de de Ciências Jurídicas e Sociais e Presidente do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, qualidade na qual presidiu o Primeiro Congresso Jurí- dico Nacional. Convidado, mais de uma vez, para o Supremo Tribunal, não aceitou a indi- cação, “por motivos de ordem pessoal”. E “convidado pelo Ministro Rivadá- via Correia para organizar o novo Código Comercial, apresenta-o, dentro de 11 meses, com notáveis emendas aditivas, que o transformam em Código uno de Direito Privado, de que era convicto partidário. Realiza Inglês de Sousa a primeira codificação integral de todo o direito privado”.4 Isto, podemos dizer agora, com o novo Código Civil, em vigor a partir de 1/1/2003, que, em parte, a realiza, efetivamente. Representou o Brasil no Congresso Pan-Americano, em maio de 1916, com Pandiá Calógeras, e depois presidiu o Conselho Diretor da Caixa Econômica. Depois de exercer o jornalismo em São Paulo, sobretudo em Santos, onde mo- rava o pai, Dr. Marcos, Juiz de Direito da Comarca, o Conselheiro Saraiva nome- ou-o, aos 27 anos, Presidente de Sergipe. Rodrigo Octavio Filho narra episódio das eleições quando um chefe político do interior, Coronel Fraga, lhe diz:

“– Vim buscar a força. – Que força? – perguntou Inglês de Sousa. – A força militar; é preciso mostrar aos eleitores que estamos de cima. Ago- ra o prestígio é nosso. É ou não é? Inglês de Sousa, muito mais moço do que o Coronel Fraga, achando graça no pedido, manifestou-lhe o seu respeito, e disse, incisivo: – Não dou força nenhuma. As instruções do Presidente do Conselho são claras. Nada de força, nada de violência. As eleições devem ser as mais honestas...

4 Ob. cit., p. 28.

152 O ficcionista Inglês de Sousa

O coronel ficou bestificado. Podia esperar tudo, menos aquela resposta. Mas não desistiu e disse: – Está bem, Presidente. Se o senhor não me pode dar força, eu quero, ao menos, um clarim. Diante do espanto do Presidente, o Coronel Fraga acrescentou: – Eu não quero um homem que toque clarim, não senhor. Eu quero somen- te o clarim, o instrumento... Inglês de Sousa ordenou fosse entregue um clarim ao desapontado coronel, que mandou ensinar os principais toque militares ao pajem que o acompanha- va. E quando este se manifestou perito em clarinadas, o coronel retornou via- gem para a sua cidadezinha natal, onde precisava impor, definitivamente, o seu prestígio político. Calculou as coisas para chegar às portas da cidade antes do dia amanhecer. E mandou que o improvisado corneteiro soprasse a plenos pul- mões o clarim da vitória... A população acordou espantada com aquela inter- venção militar. O coronel escondeu o clarim numa moita, entrou em sua cida- de e foi dizendo a todos, amigos e inimigos políticos: – A força aí está cercando a cidade. Vocês não ouviram os toques de clarim? Pois é: o prestígio agora é nosso. E havemos de realizar a mais honesta das elei- ções... Parece, conclui Rodrigo Octavio Filho, que a terra do Coronel Fraga foi a única, de Sergipe, que não deu, naquela eleição, um único voto a candidato oposicionista...”5 Tendo-se demitido da Presidência de Sergipe, foi nomeado Presidente do Espírito Santo; e, eleito novamente deputado provincial por São Paulo, profe- re seu parecer, “obra monumental”, sobre o Código Comercial; volta a Santos “e entrega-se de corpo e alma à advocacia”. Em 1891, publica, em Santos, O missionário, na tipografia do Diário de Santos, “de que era proprietário”.6

5 Ob. cit., pp. 25-26. 6 Ob. cit., p. 26.

153 Oscar Dias Corrêa

A passeio no Rio de Janeiro, é convidado pelo Marechal Deodoro para go- vernador do Amazonas. E Silva Jardim e Aníbal Falcão o indicam para gover- nador de Pernambuco, recusando Inglês de Sousa ambas as indicações. Volta para São Paulo; morrendo-lhe uma filha de seis anos, tem a saúde abalada e, a conselho médico, muda-se para o Rio de Janeiro, em julho de 1892. Aqui exerce ativamente a cátedra e a advocacia, e, em 1893, publica os Contos amazônicos. Mas, nesta Academia, dedicar-nos-emos ao ficcionista, dos mais poderosos de nossa literatura, ainda que, pela ausência de seus livros nas estantes das li- vrarias e bibliotecas, tudo ajudado pela grande, irremediável e trágica desme- mória nacional, seja um desconhecido, nem mesmo ilustre... se lhe não guar- dam o nome e as obras. Nascido em 28 de dezembro de 1853, faz 150 anos, em Óbidos, Pará, era filho do Desembargador Marcos Rodrigues de Sousa (que, quando juiz no Amazonas, hospedou Agassiz, em viagem ao Brasil, na sua passagem por Pa- rintins; terminou a carreira como desembargador da Relação de São Paulo) e de D. Henriqueta Inglês de Sousa, de nobre ascendência algarvia, como assina- la Rodrigo Octavio Filho. A ascendência paterna, não menos ilustre, inclui, no século XVIII, Pedro e Ma- ria Dolzani, do norte da Itália, que se dedicaram, em Óbidos, à criação de gado. Sua filha, Carlota Dolzani, casou com Silvestre José Rodrigues Sousa, de sangue português, envolvido com sua fazenda e a política local (e que aparece como Capi- tão Silvestre no conto “O Donativo do Capitão Silvestre”, dos Contos amazônicos), que são os pais de Marcos, e avós de Inglês de Sousa, o que explica que seus livros tenham sido publicados com o pseudônimo de “Luiz Dolzani”, estudante ainda na Faculdade de Direito de São Paulo, quando surgiu O cacaulista, em 1876. De Óbidos, onde passou os primeiros anos da infância, Inglês de Sousa foi para o Maranhão, matriculando-se no Instituto de Humanidades, diz Rodrigo Octavio Filho (a quem estamos seguindo na lembrança de seus dados biográfi- cos), onde sentiu o primeiro contato com a literatura, quando um colega lhe leu algumas passagens do Dom Quixote. “Foi realmente esse o seu primeiro con-

154 O ficcionista Inglês de Sousa tato com a literatura de ficção. Ficou fascinado.” A propósito, convém lem- brar, Taunaycuidou ver no O missionário de Inglês de Sousa, senão reminiscên- cia, alguma afinidade com a maior de todas as novelas. “O Dom Quixote foi para Inglês de Sousa o livro revelação.”7 E a nós nos parece que o estilo de O coronel Sangrado lembra o “ingenioso hidalgo de la Mancha”. Em 1867 veio para o Rio de Janeiro, e matriculou-se no Colégio Perseve- rança, começando aí sua inclinação pelas letras. Adoecendo, convalesce na casa do Conselheiro José Vicente Jorge, Diretor Geral da Secretaria do Império. “Leu então e de um trago, sofregamente, muito de Shakespeare, Hugo e Her- culano. [...] Em 1870 viajou para , onde completou os preparatórios e matriculou-se na Faculdade de Direito.” Aí viveu “intensíssima vida inte- lectual, vastas leituras, freqüência aos teatros, longas conversas e intermináveis discussões sobre religião, filosofia, exegese, história, sociologia e literatura. O romantismo dos seus 18 anos não teria forças para resistir ao choque das novas idéias”. Já no segundo ano de Direito, “combatendo as pieguices de Amoreni- nha, de Macedo, e o indianismo de Alencar”, escreveu o primeiro romance, O cacaulista, nos moldes do alsaciano Erckmann-Chartrian (1872). Seguiram- se-lhe a História de um pescador e O coronel Sangrado, escritos em São Paulo, em cuja Faculdade cursou o quinto ano de Direito e se formou em 1876. No ano seguinte casou-se com D. Carlota Emília Peixoto, sobrinha-bisneta de José Bonifácio, dedicada companheira de toda a vida. Diplomado em Direito, em 1876, nesse mesmo ano publica História de um pescador e O coronel Sangrado; em 1891, O missionário (escrito em 1888); e, em 1892, Contos amazônicos. Esses livros firmaram-lhe a reputação literária, à época, e com eles conquis- tou lugar nos meios intelectuais do Rio de Janeiro. Aqui chegando, em 15 de novembro de 1896 comparece à primeira sessão da Academia Brasileira de Le- tras, na redação da Revista Brasileira, e em 1897 participa da fundação da ABL, “de cujos Estatutos foi o principal Redator”.8

7 Rodrigo Octavio Filho, ob. cit., p. 20. 8 Josué Montello, O presidente Machado de Assis, p. 34.

155 Oscar Dias Corrêa

O mais interessante e estranho é que, a partir daí, sua obra é toda jurídica: em 1898, Títulos ao Portador; em 1903, Projeto de Código Comercial e Projeto de Direito Privado; talvez porque, abrindo banca de advogado, lecionando Direito Co- mercial e Marítimo, e presidindo o Instituto dos Advogados Brasileiros, a vida lhe impunha dedicação a esses temas, aos quais se entregou, até vir a falecer, em 6 de setembro de 1918. Não foi, pois, sem razão que Inglês de Sousa entrou para a ABL: era ele, à época, reconhecida expressão da ficção brasileira, e sua obra, ainda hoje, embora esquecida, o recomenda como uma das figuras mais admiráveis do romance bra- sileiro. E que se elegeu Tesoureiro da Academia, ao lado do Presidente Machado de Assis. A impressão causada pela riqueza dos seus romances amazônicos se es- pelha na afirmação de Josué Montello, de que de “suas obras O coronel Sangrado, embora correspondendo a uma narração completa, entrosa-se com O cacaulista, de que constitui desdobramento. História de um pescador, conforme indicação de seu prefácio, articular-se-ia a outros romances da série Cenas da Vida do Ama- zonas, sem prejuízo de sua ação distinta”.9 O curioso, continua Josué, é que, “apesar de terem como cenário a Amazônia, esses romances fixam mais o ho- mem que a selva, como se esta, com a sua opulência, não interessasse ao roman- cista, que desejava apenas surpreender e apreender o elemento humano, nas suas lutas e nas suas fraquezas, nos seus caracteres e nas suas determinações”.10 Aí está, a meu ver, a grande virtude, sobretudo de O coronel Sangrado, que, com Montello e Lúcia Miguel-Pereira, considero a obra fundamental da fic- ção de Inglês de Sousa: a intensa vida das figuras do romance prepondera sobre a força da natureza. Mas a preparação dele está em O cacaulista, escrito em Recife (é datado de Recife, 24/06/1875) e publicado em Santos, em 1876. Volume de estréia, experimenta a pena na fixação da trama do romance, no desenho da paisagem e no debuxo das personagens. O próprio autor, Luiz Dolzani, pseudônimo que adota, em 23/12/76 apresentando a obra, diz que “o romance que se vai ler

9 Ob. cit., p. 74. 10 Idem, p. 74.

156 O ficcionista Inglês de Sousa foi escrito em 1875, na cidade do Recife, quando o autor cursava o quarto ano da Faculdade de Direito”. E completa: “Fazendo parte da coleção – Cenas da Vida do Amazonas – não é completo, como verá o leitor, e os episódios que nele se narram hão de ter o seu complemento no Coronel Sangrado, romance que brevemente sairá à luz.” O Amazonas é o cenário, sobretudo as plantações de cacau, onde se desen- volve a história e onde se movem as figuras que criou. Já se pressente a força da introspecção do romancista e o seu poder descritivo e narrativo. Dedica-o ao pai, Marcos Antônio de Sousa, “Cavaleiro da Ordem de Cris- to, Juiz de Direito da Comarca de Santos (Ao primeiro amigo a primeira obra)”. Conta a história das lutas dos cacaulistas, em especial da Fazenda S. Miguel, propriedade de D. Ana, viúva do português João Faria e, sobretudo, mãe de Miguel de Faria, filho do casal, centro do romance. Em torno dele se tece o enredo, que serve ao autor para os cenários da vida amazônica, as terras do cacau, e envolve a disputa da fazenda de João Faria, onde mora a viúva Ana, mãe de Miguel, e sobre as quais avança o Tenente Ri- beiro, padrinho de Ritinha, amiga de infância de Miguel. A duplicidade da situação deste, tendendo para Ritinha e detestando o Tenen- te; a esperteza deste, valendo-se dessa duplicidade, enriquecem a história e permi- tem a Inglês de Sousa pintar a vida da região, ao mesmo tempo em que lhe possibi- lita como que a introdução à cena política de O coronel Sangrado. Esse cenário lhe ser- ve ao largo uso de suas virtudes literárias e à urdidura da trama romanesca. Segue-se-lhe O coronel Sangrado. É lê-lo, ainda hoje, e gozar-lhe a malícia do jogo político, que descreve com ironia e sarcasmo, movendo as personagens com argúcia e finura, com tal realismo que se pode sentir a presença palpitante delas nas cenas do livro. Romance de costumes políticos, nada fica a dever aos que vieram depois dele; pelo contrário, nos personagens mistura a esperteza e o sarcasmo, conju- ga a ignorância e a arrogância, a graça e a matreirice, a timidez e a pureza, e consegue, no meio da disputa política, insinuar a paixão amorosa agressiva e dominadora. Espanta, a quem viveu a comédia política, a história da luta entre

157 Oscar Dias Corrêa conservadores e liberais por volta de 1870, como Inglês de Sousa pôde retra- tá-la no Amazonas, com as mesmas tintas com que se pintariam no Sudeste. E, mais ainda, a riqueza da vida subjetiva dos personagens, figuras brasileiras de todas as regiões: o Coronel Sangrado, chefe ignorante e arrogante, julgando-se superior a todos, “dono do pedaço” (como se diz hoje), Napoleão, que pre- tendia não ter Waterloo; o Capitão Matias, o boticário Anselmo, o escrivão Ferreira e toda uma paisagem humana conhecida e atuante. A filha do Coronel Sangrado, a “feiarrona” Mariquinhas, alvoroçada com o retorno de Miguel de Faria, escorraçado pelo chefe liberal, Tenente Ribeiro; o reencontro de Miguel com Rita, filha ou afilhada de Ribeiro, a “cunhantã” da meninice de Miguel, e já então mulher do Alferes Pedro Moreira Bentes; e sobretudo o Capitão Antônio Batista, suplente de juiz municipal, de grande influência no partido conservador da localidade, todos concorrem para a ines- timável importância do desenrolar da história. A partir desses personagens desenvolve-se o romance, que inclui todas as ar- timanhas, malícias, petas, traições que a luta política local pode oferecer: onde os ódios são mais enraizados, e o vizinho é amigo ou inimigo do vizinho, e tudo faz por ele ou contra ele. Inglês de Sousa tece o romance com estilo vivo, fluente, veste-o de verve e ironia, aflorando os sentimentos mais nobres e as atitudes mais chãs, ingredi- entes da autêntica farsa eleitoral daquela época. Dele diz Bella Jozef, na excelente “Apresentação” que escreveu para o volu- me 72 da coleção Novos Clássicos:

Seu estilo é, na maioria das vezes, escorreito e sóbrio, compraz-se na esco- lha do termo justo e do vocábulo preciso, o que lhe dá encanto e espontanei- dade. [...] É uma linguagem coloquial, procurando cingir-se ao vocabulário vivo da região. Freqüentemente recorre ao estilo indireto livre no diálogo e monólogo mental como meio favorito de fazer ouvir, falar e pensar seus personagens.11

11 Agir, 1963, p. 12.

158 O ficcionista Inglês de Sousa

E assinala que Aurélio Buarque de Holanda, lembrando Eça de Queirós, afirmou ter Inglês de Sousa “o mesmo ritmo sereno e ondulante, o mesmo es- praiamento das palavras com breve estação nos incidentes para terminar com dois adjetivos de sentido e efeito sônico bem contrastante, a aliança do trivial e do raro, o jogo dos elementos díspares”. Josué Montello, no estudo que dedica a “A ficção naturalista”, em Ahistória da literatura no Brasil, coordenada por Afrânio Coutinho, discorda em parte, quando assinala:

Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa, Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha, as quatro figuras representativas do Naturalismo brasileiro, inclinaram-se pela cópia da realidade, com um ou outro traço de tinta violenta e crua. Aos qua- tro faltou a ironia corrosiva com que Eça, na pintura da sociedade portugue- sa, atendeu a seus propósitos de demolição. Em compensação, souberam dispor da observação meticulosa, por vezes apaixonada, que, se não serviu a atrair a atenção para a reforma do mundo burguês, pelo menos fixou indele- velmente alguns instantes brasileiros, com aquela fidelidade nítida que faz do romance o espelho do tempo e da vida.12

Se a apreciação, a nosso ver, colhe quanto a O missionário,emO coronel Sangra- do há passagens do melhor de Eça, no tom e no estilo. No Inquérito promovido por João do Rio no Momento Literário, “Inglês de Sousa afirmou que os autores que mais contribuíram para a sua formação lite- rária foram Erckmann-Chartrian, Balzac, Dickens, Flaubert e Daudet”. E João do Rio acrescenta: “Nessa relação não figuram, assim, Émile Zola, que parece ter-lhe inspirado o argumento de O missionário, e Eça de Queirós, que o impres- sionou com o ritmo de seu estilo”. E Josué pergunta: “Por que Erckmann- Chartrian?” Ele mesmo responde:

12 Ob. cit., p. 68.

159 Oscar Dias Corrêa

Hábeis fixadores de tipos e costumes alsacianos, Erckmann-Chartrian deixaram obra copiosa no conto, no romance e no teatro. Antes que Zola empolgasse o público parisiense, eram eles que dominavam esse público, com o Realismo comedido de suas narrativas singelas. Seu mérito derivava da fidelidade com que transplantavam da vida real para o papel literário as paisagens e as figuras da Alsácia.13

Mas, o romance tido como marco na obra de Inglês de Sousa é O missionário, que lhe assegura o lugar na coorte dos nossos primeiros naturalistas, como lhe chama Peregrino Júnior, “literatura de índole regionalista na Amazônia”: “Na primeira fase, de Inglês de Sousa e José Veríssimo – a dos homens da terra – mais fidelidade ao real, mais autenticidade, um comovido amor à gente e aos seus costumes.”14 Explica-se: como não haveriam Inglês de Sousa e José Veríssimo, por coin- cidência, ambos de Óbidos, de espelhar o sentimento nativo? O Missionário pa- rece a Peregrino Júnior “romance denso e forte, mas prolixo, monótono, enfa- donho, sem grande vivacidade. Contudo, um documento exato e minucioso da vida amazônica”. Considera que “sem dúvida, mais palpitantes e concisos, são os seus Contos da Amazônia”.15 Parece que o crítico não teve à mão O cacaulista, nem O coronel Sangrado, mas há muito de verdade no seu comentário quanto a O missionário, quando lhe ex- proba o excesso naturalista de pormenores, ainda que se exceda quando o con- sidera cansativo e tedioso. O próprio Inglês de Sousa, tempos depois, em resposta a inquérito de João do Rio, no Momento Literário, escreveria, textualmente:

Das poucas obras que hei publicado, prefiro O missionário, ainda que a sua fatura não corresponda ao meu modo atual de ver e sentir a natureza. O O

13 Ob. cit., p. 73. 14 In: Coutinho, Afrânio, A literatura no Brasil, t. III, p. 227. 15 Ibidem, p. 228.

160 O ficcionista Inglês de Sousa

missionário é espesso e palavroso; tem, pelo menos, cem páginas a mais. To- davia, ainda hoje escreveria alguns capítulos como o da viagem do Padre, o dia do Chico Fidêncio, o enterro do Totônio Bernardino.

O que acontece é que, à época, Inglês de Sousa, depois de ter elaborado, com êxito, o romance vivo, ligeiro, mordaz, que é O coronel Sangrado, julgou de- ver comprovar sua aptidão para a expressão mais densa, carregada, ao gosto naturalista do momento, o que fez em O missionário. Josué Montello diz que o “livro é grande e derramado”, vendo na preocu- pação naturalista a influência de Zola e do anticlericalismo de Eça em O crime do Padre Amaro. Bella Jozef, ao contrário, afirma que “não há sentimento anticlericalista n’O Missionário, apesar da idéia fixa no romance naturalista. Neste sentido afasta-se totalmente de Zola e outros romancistas da época. Ao contrário deles, o cléri- go é ser humano e não obrigatoriamente repulsivo”. Suas intenções, envenena- das desde a origem por um sentimento anticristão, a saber, o orgulho e a pre- sunção (conforme assinalou Sérgio Buarque de Holanda, baseado, aliás, no próprio texto do livro) teriam de ruir em face dos imperativos da herança e do meio. “Sua queda não decorre tanto da impossibilidade de cumprir aqueles de- veres sagrados em condições adversas do meio social, como das bases fragíli- mas em que eles realmente assentavam, o que evidencia, a nosso ver, a religiosi- dade de Inglês de Sousa. Um ímpio não teria problemas de fé, como o autor. O que faz o Padre Antônio de Morais pecar é sua pouca fé, o falso conceito de santidade e misticismo, produto a ambição e da vaidade.”16 Na verdade, pode dizer-se que haverá n’O Missionário a inspiração de Cer- vantes para as figuras do Padre Antônio de Morais e de Macário, o sacristão, que lembram o Quixote e Sancho. Padre Antônio, cavaleiro da fé, que a pre- tende ver implantada na terra dos Mundurucus, à margem do Canumã, e idea- liza a conversão dos silvícolas, “conquistando fama imorredoura, que levaria

16 Bella Jozef, ob. cit., p. 17.

161 Oscar Dias Corrêa seu nome à remota posteridade, com os de Francisco Xavier e José de Anchie- ta”.17 Macário, assombrado e enfatuado pela proximidade do Padre, fica bem no papel de fiel escudeiro, como aliás lembra José Veríssimo: “... um Sancho Pança bem local, bem original, uma boa criação do Sr. Inglês de Sousa.” De passagem se diga que a crítica de Veríssimo é das mais exatas, porque alia ao conhecimento crítico a visão da vida local, também ele, como Inglês de Sousa, nascido em Óbidos. Analisa o romance detidamente, recorda-lhe os cenários e as personagens, para dizer: “O livro è um dos melhores, ao meu parecer, da nossa ficção em prosa,” embora lhe assinale um defeito: “A desproporção entre o as- sunto e o desenvolvimento que lhe deu o autor. O drama parece-me pequeno para tão grande cenário, o painel demasiado vasto para a pintura.” A análise de Veríssimo parece-nos consistente, quando conclui:

Não creio que o naturalismo tenha produzido no Brasil obra superior a esta; mas nela mesma, estou em que o reconhecerá o próprio autor, deixou os vícios inerentes aos preconceitos das escolas. Na explicação, por exem- plo, dos motivos do Padre Antônio de Moraes, há talvez demasiada minú- cia, rebuscada análise, sobeja interpretação. Recorre também o romancista a noções científicas para robustecer a sua análise psicológica da alma e dos móveis da ação do seu protagonista, o que se me afigura um erro.18

Olívio Montenegro (ob. cit., loc. cit.) começa o estudo da obra de Inglês de Sousa dizendo que “há livros que são como certa espécie de gente: tem um destino caipora. Livros cheios das melhores virtudes, do ponto de vista inte- lectual e artístico, e não se sabe porque não se apercebem deles. Não apanham a menor popularidade”, para concluir que O Missionário é “o romance mais or- ganicamente vivo e completo de quantos podemos filiar à escola naturalista do Brasil”, embora mal tratado pela crítica, o que comprova no exame percuciente que faz, concluindo:

17 O missionário. Ed. Topbooks, 1998, p 133. 18 Estudos de literatura brasileira, vol. III. Garnier Editor, p. 31.

162 O ficcionista Inglês de Sousa

No livro de Inglês de Sousa o homem não sofre no meio da paisagem que o cerca: nem a paisagem parece diminuída ao contato do homem. Ele colocou a paisagem no seu justo plano, no plano que lhe cabe em todo o romance que é o fundo de quadro. O plano alto e que domina o resto da vida do homem é o da vida do padre Antônio Ribeiro de Morais, o missio- nário.

Mas nada como ler a obra. Ou melhor, as obras, porque não há como não ler O cacaulista, História de um pescador, O coronel Sangrado, O missionário eosContos amazônicos. Os Contos amazônicos, de 1893, reeditam o estilo mais livre de O cacaulista e O coronel Sangrado, sem a densidade da linguagem de O missionário, nas longas di- gressões que o Padre Antônio, de Silves, estabelece consigo mesmo, até a re- gião perdida dos Mundurucus. Dedicado a Sílvio Romero, misturam fatos e abusões da região, não faltan- do os lances patrióticos de “Voluntário”, na guerra contra o Paraguai, e de “Rebelde”, nas lutas da cabanagem, reaparecendo em “Feiticeira”, em perso- nagens de O cacaulista e O coronel Sangrado, como Miguel de Faria, Padre João e o boticário Anselmo; ou no “Acauan”, na intensidade da narrativa, que sublima o drama da antiga Vila de S. João Batista de Faro. O estilo toma, às vezes, o tom irreverentemente delicioso de O coronel Sangra- do, quando anatematiza, no conto “Amor de Maria” a “maldita política” que, diz ele, dividiu a população, azedou os ânimos, avivou a intriga, e tornou insu- portável a vida nos lugarejos à beira do rio”, para afirmar:

Depois que o povo começou a tomar a sério esse negócio de partidos, que os doutores do Pará e do Rio de Janeiro inventaram como meio de vida, numa aldeola de trinta casas as famílias odeiam-se e descompõem-se; os ho- mens mais sérios tornam-se patifes refinados e tudo vai que é de tirar a cora- gem e dar vontade de abalar destes ótimos climas, destas grandiosas regiões paraenses, ao pé das quais os outros países são como miniaturas mesqui-

163 Oscar Dias Corrêa

nhas. Sem conhecerem a força dos vocábulos, o fazendeiro Morais é liberal e o capitão Jacinto é conservador.19 Ou refere: “Alma generosa do povo brasileiro, quão mal apreciada és pelos eternos faladores da Câmara dos Deputados!”20 E não poupa os ingleses: Saindo do seu mutismo tradicional, o escrivão Ferreira contava numa roda de senhores que os ingleses não querem saber de santos, que adoram uma cabeça de cavalo, e se divertem socando as ventas aos amigos, para lhes aliviar com essa amistosa operação o cérebro sujeito a congestões violentas, pelo vapor da cerveja que sobe do estômago.21

Mas, não falta a Mariquinhas, a mais gentil rapariga de Vila Bela! Era uma donzela de dezoito anos, alta e robusta, de tez morena, de olhos negros, meu Deus! de cabelos azulados como asas de anum! Era impossível ver aquele narizinho, bem feito, aquela mimosa boca, úmida e rubra, parecendo feita de polpa de melancia, as mão- zinhas de princesa, os pés da Borralheira, impossível ver aquelas perfeições todas sem ficar de queixo no chão, encantado e seduzido!...22

E vai num crescendo que só a leitura de “Amor de Maria” propicia. Mas, não devo exceder-me mais. Quaisquer tenham sido as influências que recebeu, sua obra merece, ainda hoje, ser lida, porque poucas existem, em nossa literatura, com as qualidades que apresenta, e tão bem espelhando a terra e a gente. É interessante dizer que, por mais longínquas possam ser as origens e fontes dos seus romances, topamos, no Sudeste, com algumas das personagens que brotaram no cenário amazônico e que ressurgem com a nitidez das que Inglês de Sousa nos legou.

19 Contos amazônicos, Laemmert & C. Editores,1893, pp. 59-60. 20 Ibidem, p., 103. 21 Ibidem, p. 104. 22 Ibidem, pp.57-58.

164 O ficcionista Inglês de Sousa

Àquelas influências confessadas acrescentaria Cervantes, como lembrou Tau- nay, nas figuras do Padre Antônio de Morais e do sacristão Macário, Quixote e Sancho, bem como no estilo fluente, mordaz, satírico de O coronel Sangrado. Mas, prezados Confrades, são críticos literários muitos dos que aqui estão, consagrados pela obra; eu, leitor de muitas leituras e algum proveito, lhes direi apenas que é hora de reeditar Inglês de Sousa, para que se lhe faça justiça, dan- do-lhe lugar na galeria dos grandes autores brasileiros. Repetirei o que disse Rodrigo Octavio Filho, ao final de sua conferência, há cinqüenta anos:

A maior homenagem que se poderia prestar à sua memória seria o ree- ditar-lhe a obra. Esperemos que isso aconteça, para que o seu espírito de homem de letras e jurista recupere o lugar que lhe compete em nossa vida cultural.23

Este o nosso objetivo ao resumir, nestas notas, nossa apreciação, renovando as homenagens que todos os brasileiros devemos a Inglês de Sousa, pela obra literária e jurídica que nos deixou, e que a posteridade, estou certo, não se es- quivará de preservar e honrar, como esta Academia Brasileira de Letras, hoje, com ufania, faz.

23 Ibidem, p. 40.

165 Valentim Magalhães (1853-1909) Acervo do Arquivo da ABL O fundador Valentim Magalhães

Alberto Venancio Filho

Conferência pronunciada na Academia Academia Brasileira de Letras prossegue na série de conferênci- Brasileira de as dedicadas ao centenário de falecimento dos fundadores, am- Letras, a 15 de A abril de 2003, pliando a iniciativa da gestão do saudoso Presidente Austregésilo de durante o ciclo Athayde de homenagear o centenário de nascimento dos acadêmicos. Fundadores da Se examinarmos a relação dos quarenta fundadores de nossa Insti- ABL. tuição, veremos que eram na época figuras expressivas do meio inte- lectual, mas o decorrer do tempo acarretou o esquecimento de alguns deles, cuja obra não teve permanência para chegar aos nossos dias. No ano passado ocorreu o centenário de morte de Urbano Duarte, funda- dor da Cadeira no 12, que passou no esquecimento, e o mesmo acon- teceria com Valentim Magalhães, não fosse a feliz iniciativa do Presi- dente e do Secretário-Geral Ivan Junqueira. Desses fundadores, duas exceções se apresentaram então, a con- firmar a escolha, Carlos Magalhães de Azeredo, com apenas vinte e

167 Alberto Venancio Filho sete anos, que mal iniciava uma dedicada carreira literária, e Graça Aranha, que até então não escrevera nenhum livro, apenas o prefácio para a obra de Fausto Cardoso Concepção monística do Universo, porém vivia no ambiente da Revista Brasi- leira e cinco anos depois despontaria com a publicação de Canaã.

 O acadêmico

Antônio Valentim da Costa Magalhães foi o fundador da Cadeira no 7e escolheu como patrono Castro Alves. A escolha dos patronos se deu em fase posterior, muitas delas por critério de mérito, como Machado de Assis a José de Alencar, e outros por caráter pessoal que atendia também o crité- rio do mérito, como o de por Franklin Dória. Outras fo- ram de caráter regionalista, como a de Maciel Monteiro por Joaquim Na- buco, e Luís Murat escolheu por pura amizade . É curio- so que Rui Barbosa, ao invés de escolher um jurista afinado com suas ativi- dades principais, tenha se voltado para um jornalista – – e há o caso de Raul Pompéia, escolhido por dois fundadores: Domício da Gama e Rodrigo Octavio, cabendo àquele a preferência e Rodrigo Octavio optando por Tavares Bastos. Valentim Magalhães escolhe um poeta, um dos maiores, Castro Alves, dan- do a entender que na atividade intelectual gostaria de ser considerado como poeta. Na fase prévia de organização da Academia, fundada por Lúcio de Mendonça, Valentim Magalhães não consta entre os dez acadêmicos que seriam nomeados pelo Governo, nem nos vinte a serem eleitos, e nem nos dez restantes que seriam correspondentes. Afastada a criação da Casa como órgão do governo, reúnem-se na sala da Revista Brasileira para a fun- dação, em 15 de dezembro de 1896, quinze pessoas, entre as quais Va- lentim Magalhães. É de supor que sua presença tenha sido por influência de Lúcio de Mendonça, de quem era particular amigo e com quem mante- ve extensa correspondência.

168 O fundador Valentim Magalhães

Na segunda reunião de 23 de dezembro a que comparecem apenas onze pessoas, está presente novamente Valentim Magalhães. E na terceira reunião em 28, Rui Barbosa, Filinto de Almeida e Valentim Magalhães justificam a ausência em carta, quando é aprovado o projeto de estatuto. Na sessão de 4 de janeiro de 1897, da eleição da diretoria, não esteve pre- sente Valentim Magalhães, nem na sessão de 18 de janeiro, mas na sessão de 28 de janeiro, em que se completa a eleição dos quarenta acadêmicos, compa- rece Valentim Magalhães. Curiosamente nem Lúcio de Mendonça nem Valentim Magalhães assistem à sessão inaugural de 20 de julho de 1897 e justificaram a ausência por carta, alegando enfermidade. Ocorreu algum incidente que magoou o fundador, sen- do acompanhado por Valentim Magalhães? Valentim Magalhães passa a freqüentar a Casa a partir da sessão de 16 de maio de 1898 e as sessões de 6 e 16 de junho, e nessa sessão é nomeado, junto com Graça Aranha e Lúcio de Mendonça para compor comissão que iria estu- dar as propostas de sócios correspondentes. Comparece a várias sessões de 1898, 1 de julho, de 8 de agosto, 1 de outubro, 3 de outubro, eleição do Barão do Rio Branco, 30 de outubro, e 2 de dezembro. Há um período de ausência, incluindo a posse de Domício da Gama em 1 de julho de 1900, que se inter- rompe com a presença na sessão de 15 de maio de 1902, última a que compa- rece. E na sessão de 27 de maio de 1903 a ata declara laconicamente: “O Presi- dente Machado de Assis abriu a sessão e comunicou à Academia o falecimento de Valentim Magalhães.” Dos membros fundadores pode-se concluir que foram pessoas dedicadas à atividade literária, e muitos deles jovens, como Valentim Magalhães que em 1897 teria trinta e sete anos, mas já apresentava uma produção literária signifi- cativa, o mesmo ocorrendo com a grande maioria dos fundadores, embora no futuro muitos, como Valentim Magalhães, tivessem ficado na obscuridade. Valentim Magalhães foi sucedido por , que no discurso de posse traçou-lhe o perfil completo e exaustivo, que guardaria parelha na su- cessão da cadeira, em idênticos estudos, com os discursos de Afrânio Peixoto

169 Alberto Venancio Filho sobre o autor de Os sertões,eodeAfonso Pena Júnior sobre o autor de Aesfinge , ambos sem qualquer referência ao fundador. Coube ao meu mestre e nosso saudoso confrade Hermes Lima, sucedendo a Afonso Pena Júnior, traçar na síntese primorosa do seu estilo o retrato de nos- so homenageado de hoje:

O fundador Valentim Magalhães, morto na casa dos quarenta anos, foi tão vário e dispersivo que sua existência lembra uma torrente sem caminho. Prógono da “Idéia Nova” que na época vagamente sintetizava o movimen- to renovador da cultura, das letras e das artes, dotado de talento e ardendo na ânsia de viver, gozou de notoriedade e prestígio, produziu muito, porém improvisou demais. Ao sabor de solicitações contraditórias, cedo por elas é devorado como se não lhe tivesse sobrado tempo para colocar na faixa de seu destino a quota pessoal de realismo e disciplina que seu nome e sua vo- cação de escritor estavam a exigir.

O sucessor Pontes de Miranda limitou-se à reduzida síntese biográfica, e a nossa colega Dinah Silveira de Queiroz vinculou a figura do patrono Castro Alves ao fundador:

É ele, é Castro Alves, aquele jovem tão belo com sua larga testa, seus olhos fundos, seus cabelos fortes como se tivessem movimento, vivos na disparada de seus poemas, de sua “Vozes d’África”, que estaria agora in- fluindo com sua profunda vocação todos os que se abrigaram à cadeira número sete desta Academia como patrono. E por um desses prodígios da bênção de padrinho imprimiria a nós, seus pupilos, uma direção. Eis aqui Valentim Magalhães, um dos fundadores da Academia que, em 1879, re- cita: “Ó luz, Ó liberdade! Não estás longe, não! Vens perto da verdade. Pois que o trabalhador começa a meditar!” O espírito revolucionário que poderia defluir também do sentido da obra de Castro Alves, acrescenta Valentim certa maneira satírica para estudar os escritores que lhe foram

170 O fundador Valentim Magalhães

contemporâneos e... “Entre nós, quando um poeta e um prosador, ao cabo de haver-se arruinado a editar-se a si próprio, e de haver obrigado bom número de cidadãos incautos a ficar com as suas obras... de graça e de estar farto de se ouvir chamar célebre pelas gazetas – julga-se em caminho da notoriedade, para fora do reposteiro negro da obscuridade, passa um dia, inesperadamente, pelo amargo desengano, pela decepção de ouvir pergun- tar-lhe um dos seus colegas de repartição ou um dos seus habituais com- panheiros do café, do bonde ou da charutaria: – Como? Pois também você é literato? Não sabia. Aquele ‘também’ é característico e, como sintoma, vale bem um império.

E o nosso confrade e amigo Sergio Corrêa da Costa, atual ocupante da ca- deira, vinculou-o aos objetivos da Academia:

O fundador da cadeira – Valentim Magalhães – revelou sempre intensa preocupação com o Brasil e sua cultura, seja na liderança intelectual que exerceu, seja na continuada prática do jornalismo, em que fixou temas e as- pectos da nossa realidade social e política, até então escassamente aprecia- dos. Seu empenho junto aos demais fundadores desta Academia, no sentido de dar à Instituição um cunho nacional, eminentemente representativo das tendências e características de todas as regiões do País, confirma esse traço marcante que procuro assinalar.

 O início

Valentim Magalhães era filho legítimo de Antônio Valentim da Costa Magalhães e de D. Maria Custódia Alves Meira, aquele de nacionalidade portuguesa e esta carioca e filha de negociantes abastados do Rio de Janeiro. Nasceu nesta capital, a 16 de janeiro de 1859, na antiga Rua Conde d’Eu, hoje Frei Caneca, 58, num domingo, e alguns meses depois era batizado na Igreja de Santo Antônio dos Pobres, e recebeu o nome de Antônio.

171 Alberto Venancio Filho

Tinha um ano de idade apenas quando se viu órfão de mãe, mas não lhe fal- taram os cuidados do pai, por ele criado e educado; e com seus tios Dr. João Alves Meira e D. Maria Quitéria Alves Meira aprendeu as primeiras letras. Depois de cursar por algum tempo as aulas do Colégio Fábio Reis, fez os seus estudos preparatórios no antigo internato de São Francisco de Paula, sito no Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes), no mesmo edifício onde funcio- nou mais tarde o Clube Naval. No livro Alma há uma página evocativa da figura bondosa do Cônego Bel- monte, velho diretor do Colégio, recordando com saudades aqueles primeiros tempos. Os jornais tinham noticiado o falecimento do mestre, e isto despertou na alma do antigo discípulo uma recordação da infância. Valentim Magalhães manifestou desde cedo pendor para as letras e já aos treze anos colaborava em alguns jornais de província. Em 1876, com dezessete anos, seguiu para São Paulo e no ano seguinte matricula-se na Faculdade de Direito. Rui Barbosa, chegando a São Paulo para concluir o curso de Direito, escreveu a um parente na Bahia: “Estou en- golfado na vida acadêmica.” A vida acadêmica não era a freqüência às aulas e o estudo dos manuais, mas sobretudo a participação nos clubes literários, nos jornais estudantis, nos grêmios abolicionistas e republicanos, nas lojas maçônicas. Foi essa vida acadêmica que Valentim Magalhães encontrou ao fixar-se em São Paulo. Logo no primeiro ano foi eleito redator do Labarum, com Eduardo Prado, e colaborou na República, órgão do Club Republicano Acadêmico, a que se havia filiado. Nessa última folha, dirigido então por Lúcio de Mendonça e Manhães de Campos, publicou Valentim os seus primeiros folhetins chisto- sos e críticos. Nesse mesmo ano, além de um poemeto elegíaco sobre o general Osório, publicou ele, em colaboração com Silva Jardim, um livro em prosa e verso, Idéi- as de moço, rematando com um conto fantástico “O grito na treva”, escrito a duas penas, no gosto byroniano, à maneira da Noite na taverna de Álvares de Azevedo.

172 O fundador Valentim Magalhães

Os poetas mais festejados na Academia naquele tempo eram Teófilo Dias, Afonso Celso, Assis Brasil e Valentim Magalhães; mas em 1879 a nomeada deste último superara o estreito círculo acadêmico com a publicação dos Can- tos e lutas, livro de poesias que a imprensa acolheu com aplausos. E desde então, integrando o jornalismo, começou a escrever nos jornais de maior importância e maior circulação de São Paulo e da capital: a Província de S. Paulo,oCorreio Pau- listano, a Gazeta de Notícias, a Gazeta da Tarde, o Globo. Em 1880 colabora com a Evolução, folha republicana e federalista, dirigida por Júlio de Castilhos e Assis Brasil, com cooperação de Pereira da Costa, Alcides Lima, Antônio Mercado, Teófilo Dias, Homero Batista, Pedro Lessa e outros estudantes. Tendo ido a São Paulo em março apenas para se matricu- lar no quarto ano, permaneceu toda a época letiva fora daquela cidade. Publi- cou então vários contos e poesias e escreveu folhetins na Gazeta de Notícias, e esta lhe editou o poemeto “Colombo e Nenê” para distribuição como prêmio aos assinantes; freqüentou as rodas literárias da capital, onde o espírito e o talento lhe fizeram adquirir inúmeros amigos e admiradores; e, gozando das larguezas proporcionadas pela recente lei do “ensino livre”, só voltou a São Paulo em novembro, para prestar os exames, nos quais foi plenamente aprovado, apesar de não haver assistido às respectivas aulas. Em 1881, Valentim Magalhães fundou em São Paulo a Comédia, de que foi redator, primeiro com Silva Jardim, e depois com Eduardo Prado. A Comédia era de publicação diária e durou pouco menos de três meses, de 2 de março a 23 de maio. A turma que se formou em 1881 contou figuras expressivas: Francisco de Paula Paiva Baracho, juiz em São Paulo; Aristides de Araújo Maia, deputado à Constituinte Republicana; Job Marcondes de Rezende, advogado, Manoel José Villaça e Arlindo Ernesto Ferreira Guerra, magistrados de alto concei- to; Estevam Leão Bourroul, justamente cognominado o Veuillot Brasileiro;Jú- lio Prates de Castilhos, o político rio-grandense; Raphael Corrêa da Silva Sobrinho e João Braz de Oliveira Arruda, lentes da Faculdade; João Passos, que, por muitos anos, exerceu com brilho as funções de procurador-geral do

173 Alberto Venancio Filho

Estado de São Paulo; João Antônio de Oliveira César; Isaías Martins de Alme- ida e Leopoldo Teixeira Leite, advogados afamados; Manoel Ignácio Carva- lho de Mendonça, eminente civilista, a quem se devem a Doutrina e Prática das Obrigações, Rio e Águas Correntes e Contratos no Direito Civil Brasileiro; Theófilo Dias de Mesquita e Eduardo Paulo da Silva Prado. Diz Euclides:

Destacara-se (Valentim) notavelmente, granjeando invejável nomeada entre conterrâneos que se chamavam Júlio de Castilhos, Silva Jardim, Bar- ros Cassal, Teófilo Dias, Eduardo Prado, Raul Pompéia, Lúcio de Men- donça, Assis Brasil, Afonso Celso, Fontoura Xavier, Augusto de Lima, Alcides Lima, Alberto Sales, Pedro Lessa, Luís Murat, Júlio de Mesquita, Raimundo Correia. Ora, Valentim foi a figura representativa no meio de tão díspares ten- dências, por isto mesmo que lhe faltou sempre uma diretriz à atividade dis- persiva.

Spencer Vampré, falando dessa fase, diria: “Valentim Magalhães, espírito vibrante e combatido de poeta, de jornalista, e de crítico”, e dele transcreve:

A nau da vida

Veleja a nau da Vida... De repente : – “Mais um!” brada Saturno, e às ondas lança O cadáver de um ano... Docemente Desliga o barco, ao sopro da Esperança. Canta, na tolda, a Juventude ardente; Chora a Velhice, e invalida descansa; E a Morte, – nuvem negra –, indiferente, Por sobre as águas pérfidas avança. – “Mais um!” repete o nauta apavorado; Como um fúnebre pêndulo, oscilando

174 O fundador Valentim Magalhães

Na dúvida, que o punge e que o tortura; – E enquanto ao sol da vida, rutilando, Lhe aquece e beija o crânio atordoado Vai-se-lhe abrindo aos pés a sepultura.

Sá Viana, nos Esboços críticos da Faculdade de Direito de São Paulo em 1879, relatou com ironia a situação do corpo discente, falando dos “estudantes que são to- dos que vão diariamente ao convento ou mesmo que lá não vão, mas pagam a matrícula à Fazenda Nacional. Classe que representa poucos, pois a aridez e força dos estudos fazem recuar grupos numerosos que se limitam a adquirir conhecimento geral. Nesse grupo está Valentim Magalhães”. Considera Sá Viana que, de todos os ramos da literatura na Faculdade de São Paulo, era a poesia que merecia o devido cultivo e aponta dois estudantes que pensavam na mesma coisa, a poesia, Raimundo Correia e Valentim Maga- lhães. E deste último comenta: “É moço inteligente, podia ser bom estudante de direito se se dedicasse com mais seriedade ao estudo, mas não, é poeta.” Diz Euclides da Cunha:

Os primeiros quinze anos de Valentim Magalhães coincidem com uma fase de profundas mudanças da nossa existência política. De 1860, ao le- vantar-se o preamar democrático, simbolizado em Teófilo Otoni e rugindo na “Mentira de Bronze” de Pedro Luiz, a 1870 e 1875, quando a monar- quia perdeu, uma após a outra, as muletas da aristocracia territorial e da Igreja – foi tão intensiva a decomposição do antigo regime que o simples enfeixar as frases acerbas dos maiores chefes de seus partidos é uma missão de Tácito, e não se compreende que se perdesse tanto tempo para reali- zar-se o passeio marcial de 15 de novembro de 1889. Assim, a juventude do escritor aparelhava-se para a vida, quando em torno à sociedade se alterava, apercebendo-se de novos elementos para existir; e isto precisamente no cenário mais revolto de uma tal meta- morfose.

175 Alberto Venancio Filho

A geração de que Valentim Magalhães foi a figura mais representativa, devia ser o que foi: fecunda, inquieta, brilhantemente anárquica, tonteando no desequilíbrio de um progresso mental precipitado a destoar de um esta- do emocional que não poderia mudar com a mesma rapidez; e a sua vida, a sua carreira literária vertiginosa, toda disposta a nobilíssimas tentativas re- duzidas a belíssimos preâmbulos, a nossa própria vida literária, impaciente e doidejante, brilhando fugazmente à superfície das coisas, inapta às análi- ses fecundas pelo muito ofuscar-se com as lantejoulas das generalizações precipitadas.

Formado, volta ao Rio. Em carta a Lúcio de Mendonça diria: “No dia 15 de maio de 1882 devo partir com a família – mulher e filho – para a cidade de Piraí que V. conhece bem; aí vou trabalhar com o meu grande, com meu maior amigo, o tio José Alves Meira, que V. também conhece e estima, certamente.” A estada foi curta e retornou em pouco tempo para se desdobrar em vários empregos. Em dezembro de 1883 mudava de planos: “Tomei uma decisão heróica. E aqui me tens. Mudei-me do teu berço para o meu berço. Não é que eu lá não arranjasse a vida às 500 maravilhas (mil seria exagero) o foro ainda rende bastante, além disso eu trabalhava como o Meira, meu protetor e meu amigo.” E queixando-se da profissão: “Aquilo de só ver o nariz dos escrivães, as ore- lhas dos juízes, as unhas dos colegas, a cauda dos políticos – aquilo matava-me lentamente. Não trepidei, abracei o Meira, disse um adeus ao teu berço e cá es- tou. Fiz bem? Fiz mal? Não o sei.” E falando das novas atividades: “É preciso que saibas que ganhando dez réis de mel coado, sou entretanto um dos homens apensionados desta cidade he- róica. Tenho a Gazeta, tenho a Semana, tenho a Escola Normal (onde finjo ensi- nar pedagogia); tenho os exames de português na instrução pública, tenho uma advocacia manhosa, tenho inúmeros cacetes, tenho o diabo.” Em confidência a Lúcio: “Se eu tivesse ficado em tua terra, ganharia a mes- ma importância, mas não pude suportar aquilo. Voei de lá para aqui e, embora

176 O fundador Valentim Magalhães não folgadamente, vou indo. Trabalho muito, é verdade, mas ao menos ando com o espírito arejado, leve, satisfeito.” Fundou em 1885 ASemana e este periódico, estritamente literário, fez o mi- lagre de durar numa primeira fase três anos. Mas para isto, à parte um concur- so notável, em que se extremavam Urbano Duarte, Raul Pompéia, Alfredo Sousa e Luís Rosa, despendeu o melhor da sua atividade e quanto lhe adviera da herança paterna. Mas não vacilou ante a ruína. “Iludia-se quem lhe medisse a fortaleza pela volubilidade. Era um caráter varonil blindado de uma joviali- dade heróica. Tinha esse recato do sofrimento que é a única expressão simpáti- ca do orgulho. Os seus melhores amigos jamais lhe divisaram desânimos.” Tive ocasião de compulsar a coleção quase completa que a Biblioteca da Academia possui de ASemana e verificar a alta qualidade do periódico, com ex- celente apresentação gráfica, publicação certa, seções variadas, sem falar no ex- celente corpo de colaboradores. Ao lançar o primeiro número da ASemana em 3 de janeiro de 1885, diria Valentim Magalhães:

Dissemos nos prospectos com que anunciamos a criação desta folha: “A Semana constitui uma novidade para o público. E acreditamos não havermos enganado o público.” As razões que tínhamos e temos para pensar que ASe- mana é uma novidade são as seguintes, apontadas nos prospectos: Não é propriamente uma revista, como as que até hoje tem havido. Publicação hebdomadária, terá, no entanto, o caráter de um jornal diário. O seu fim único será este: – fazer a história completa e fiel da semana, de- corrida, dando a nota do dia. Para isso terá seções em que se ocupará com tudo quanto tenha sido feito na semana em ciências, artes, letras, comércio, indústria, costumes, religião, etc., oferecendo aos leitores uma curta notícia, satisfatória e imparcial, de todos os fatos que em todos esses ramos de ativi- dade se tiverem realizado nos sete dias decorridos. No intuito de auxiliar os jovens escritores de talento, aceitará ASemana qualquer trabalho literário em harmonia com a sua índole e o seu programa,

177 Alberto Venancio Filho

publicando-o e pagando-o ao seu autor, de conformidade com a tabela da folha. A primeira das condições para a aceitação desses trabalhos será a res- ponsabilidade de seus autores.

Sobre o andamento de ASemana escrevia Valentim a Lúcio de Mendonça em junho de 1885: “Estamos precisadíssimos de dinheiro. A coisa vai bem, mas de fora das províncias, onde contamos grande número de assinantes, su- perior aos da Corte, pouco dinheiro tem vindo. E isto é o diabo atualmente em que nos metemos em grandes despesas: tipografia, casa na Rua do Ouvidor, etc. Tem paciência meu velho, e arranja-me esse par de botas ... pecuniárias.”

Em dezembro de 1897 comentava o fracasso em carta ao mesmo destinatá- rio: “Obrigado pelos teus pêsames pela degringolade da ASemana . Apesar dos pesares, ainda me julguei feliz vendendo tudo por uma tuta e meia, assumindo a responsabilidade das dívidas passivas, que são muitas, e perdendo todo o di- nheiro que ali enterrei, porque mesmo assim, não me estourou a folha nas mãos, passei-a adiante, desobriguei-me com os assinantes e não fiz inteiro fias- co. Ao contrário, parece-me que consegui sair-me bem de tão terrível aperto. Agradeço-te cordialmente, meu bom e bravo Lúcio, o muito que pela minha pobre Semana fizeste. Rei morto, rei posto. Vou meter-me noutra!”

Desde o primeiro número havia uma seção História dos sete dias, comen- tando os fatos da semana, inicialmente sempre assinada por Valentim Maga- lhães e em números subseqüentes com outras assinaturas, que parecem ser pse- udônimos do diretor, como Valmor N.N., José Reis Filho. A revista teve vários endereços: a Travessa do Ouvidor, 36, sobrado; Rua do Ourives, 51; e afinal Rua da Quitanda, 34, bem próximo do escritório de Rodrigo Octavio nos altos da Farmácia Araújo Pena, onde se realizaram as primeiras sessões da Academia. Valentim Magalhães era o redator chefe e seus redatores, todos futuros acadêmicos: Filinto de Almeida, Aluísio Azevedo, Luís Murat e Urbano Du-

178 O fundador Valentim Magalhães arte. A colaboração era a mais variada. Machado de Assis foi um colaborador eventual e Capistrano de Abreu escreveu sobre temas históricos. ASemana realizou um concurso sobre o maior poeta brasileiro, sendo vence- dor Gonçalves Dias e em segundo lugar Castro Alves, e manteve por certo pe- ríodo a seção Galeria de Elogios Mútuos, em que um escritor escrevia a bio- grafia do outro. A Semana reaparece em julho de 1895, sob a direção de Valentim Maga- lhães e Max Fleiuss (1868-1943). O prospecto de lançamento, assinado pelo primeiro, dizia, entre outras coisas:

O que foi este periódico, que, sob minha direção, existiu nesta capital de janeiro de 1885 a novembro de 1887, sabe-o todo o Brasil, cujo movimen- to literário representou durante aquele período [...] A sua influência sobre o movimento literário e artístico do Brasil foi tão patente [...] que acredito que a notícia do ressurgimento d’ASemana será recebida com vivo júbilo e geral aprovação.

Afirmava então ser oportuno o aparecimento:

Há quatro anos que o espírito público vive absorvido, ocupado, oprimi- do pela Política, com opor uma obsessão pesada e funesta. As letras retraíram-se quase completamente e o nível intelectual tem des- cido de modo inquietante, perceptível aos olhos menos sagazes [...] As incertezas e atribulações do atual momento político vão produzindo sobre a alma nacional uma depressão tão funda e penosa, que é tempo de abrir-lhe um respiradouro, de rasgar-lhe uma janela, aonde ela venha haurir um ar puro, álacre, oxigenado vigorosamente pelas serenas produções da li- teratura contemporânea. ASemana terá agora os mesmos colaboradores de então, além dos escrito- res novos que a queiram honrar com as suas produções. Não terá preven- ções, nem coteries, nem preconceitos literários. Procurará ser moderna, sem

179 Alberto Venancio Filho

acompanhar contudo as extravagâncias e despropósitos nascidos na sede de ser novo, de ser original por qualquer modo. A Semana apareceu em 1885 pela mesma razão por que vai reaparecer em 1893: porque o estado cultural dos espíritos determinava esse fato na- quele momento histórico.

Ao reiniciar a nova fase de ASemana em 1895, já contando com um eficiente administrador, Valentim Magalhães atribuía o insucesso da fase anterior à fal- ta de capital para os melhoramentos: “Não chegavam as assinaturas e os anún- cios para fazer face às despesas excessivas. Tive de sacrificar o meu bolsinho. Esgotado ele e sem elementos novos para a luta, desanimei e passei a folha adi- ante. Poucas semanas depois finava a probrezinha.” Mas afirmava ser ASemana “a única de minhas obras de que imodestamente me orgulho”. Nessa nova fase, o periódico vai durar até junho de 1897. Entre as suas pro- moções de 1895 figurou o concurso entre os leitores para saber quis “os seis melhores romances escritos em língua portuguesa”, com o seguinte resultado:

1o lugar – Os Maias 2o lugar – O primo Basílio 3o lugar – Memórias póstumas de Brás Cubas 4o lugar – Arelíquia 5o lugar – Amão e a luva 6o lugar – O Ateneu

Vendo na Semana uma capela de elogio mútuo, tacitamente antipática aos valores emergentes das novas gerações, Luís Murat e Artur Azevedo fundaram a Vida Moderna, episódio relatado por Coelho Neto, anos mais tarde, nas pági- nas de Aconquista . Valentim Magalhães tinha uma produção febril. Em 1886 escreveu Vinte contos; em 1887, Horas alegres; publicou, refundidas em 1888, as Notas à margem; em 1889, Escritores e Escritos... “Vede: não há a solução mais breve no duodecê-

180 O fundador Valentim Magalhães nio que percorremos. Não se pula uma data sem pular-se um livro. O escritor violou doze vezes seguidas o nonum primatur in anno...” Diz Euclides, comentando o período:

De 1889 a 1895 houve aparente descanso. A República, feita numa ma- drugada, criara a ilusão de grandes coisas feitas da noite para o dia. Valentim, como todos, vacilou na vertigem geral. Ordinariamente se acredita que o em- polgasse o anseio da fortuna fácil, naquela quadra que a ironia popular ferre- teou com o nome de ‘encilhamento’. Com efeito, salvante alguns artigos es- porádicos, o incansável homem de letras parecia mudado num infatigável ho- mem de negócios. E fundou – como toda a gente – uma companhia. Mas considerai como o sonhador desdenhou as voltas retorcidas dos ci- frões e alinhou parcelas como se alinhasse versos; aquela ‘Educadora’, que se transformou depois numa vulgar companhia de seguros, era uma fantasia comercial. Não segurava vidas, segurava inteligências; e o segurado, ao invés de um ajuste sinistro com a morte, a troco de alguns contos de réis, garantia a educação dos filhos. O devaneio mercantil não vingou.

Na expressão de Caio Prado Júnior sobre o Encilhamento:

A quase totalidade das novas empresas era fantástica e não tinha existên- cia senão no papel. Organizavam-se apenas com o fito de emitir ações e des- pejá-las no mercado de títulos, onde passavam de mão em mão em valoriza- ções sucessivas. Chegaram a faltar nomes apropriados para designar novas sociedades, e inventavam-se as mais extravagantes denominações. A transformação terá sido tão brusca e completa que revemos as próprias classes e os mesmos indivíduos mais representativos da monarquia, dantes ocu- pados com a polícia e funções similares, e no máximo com uma longínqua e so- branceira direção de suas propriedades rurais, mudados subitamente em ativos especuladores e negocistas. Ninguém escapará aos novos imperativos da época.

181 Alberto Venancio Filho

Assim ocorreu com Valentim Magalhães, que dedicado à literatura e ao jor- nalismo, se abalançou a criar uma companhia de seguros, “A Educadora”, com fins de garantir a educação dos jovens. Não é preciso dizer que esse empreendi- mento teve completo fracasso. Também o futuro Acadêmico Emílio de Mene- zes empenhou-se nessa aventura, da qual redundou apenas um sólido prejuízo. Cabe relatar episódio curioso ocorrido com nosso confrade e decano, o Acadê- mico Josué Montello. Certa vez Afonso Pena Júnior, diretor de bancos e de com- panhias de seguros, pediu-lhe que falasse a um grupo de empresários no Dia Inter- nacional do Seguro. Josué Montello fez então uma explanação da vida e obra de Valentim Magalhães, com grande espanto dos presentes, para afinal declarar que escolhera essa figura, pois fora fundador de uma companhia de seguros. Passado este interregno Valentim reavivou-se, e no qüinqüênio de 1895-1900 continuou a marcar os anos pelos livros e opúsculos: em 1895, Fi- losofia de algibeira; Bric-à-Brac, em 96; em 97, o seu primeiro romance, Flor de san- gue; Alma e Rimário, em 98-99 – deixando prontos quatro outros: Fora da Pátria, Na brecha, Novos contos e Outono, que lhe demarcariam, na mesma progressão, os quatro últimos anos de existência... Valentim Magalhães foi jornalista, escritor, poeta, contista, teatrólogo, ro- mancista e deixou uma vasta produção literária, nesta conferência só sendo possível analisar as principais.

 O poeta

Na juventude e especialmente na poesia foi o mentor da Idéia Nova, movi- mento que não teve grande repercussão, mas que representava uma idéia de re- novação do ambiente intelectual. No ensaio ANova Geração , refere-se Machado de Assis a dois poetas, Fon- toura Xavier (de que cita poesias avulsas e um opúsculo, “O Régio Saltimban- co”) e Valentim Magalhães, que já a essa altura havia publicado os livros Idéias de moço (1878), em colaboração com Silva Jardim, a quem pertence a parte em prosa, e Cantos e lutas (1879), nos quais seguira a corrente socialista. Registrou Machado de Assis:

182 O fundador Valentim Magalhães

O primeiro livro de Valentim Magalhães sabemos já que na opinião dele, a Idéia Nova é o céu deserto, a oficina e a escola cantando alegres, o mal se- pultado, Deus na consciência, o bem no coração, e próximas a liberdade e a justiça. Não é só na primeira página que o poeta nos diz isto; repete-o no “Prenúncio da aurora”, “No futuro”, “Mais um soldado”, é sempre a mes- ma idéia, diferentemente redigida, com igual vocabulário. Pode-se imaginar o tom e as promessas de todas essas composições. Numa delas o poeta afi- ança alívio às almas que padecem, pão aos operários, liberdade aos escravos, porque o reinado da justiça está próximo. Noutra parte, anunciando que pegou da espada e vem juntar-se aos com- batentes, diz que as legiões do passado estão sendo dizimadas, e que o dog- ma, o privilégio, o despotismo, a dor vacilam à voz da justiça. Nessa contra- dição, que o poeta busca dissimular e explicar, há um vestígio da incerteza que, a espaços, encontramos na geração nova, – alguma coisa que parece re- mota da consciência e nitidez de um sentimento exclusivo. É a feição desta quadra transitória. Quer o Sr. Valentim Magalhães que lhe diga? Essa idéia, a que empres- tou alguns belos versos, não tem por si nem a verdade nem a verossimilhan- ça; é um lugar-comum, que já a escola hugoísta nos metrificava há muitos anos. Hoje está bastante desacreditada. Tem o Sr. Valentim Magalhães o verso fácil e flexível; o estilo mostra por vezes certo vigor, mas carece ainda de uma correção, que o poeta acaba- rá por lhe dar. Creio que cede, em excesso, a admirações exclusivas. As idéi- as dele são geralmente de empréstimo; e o poeta não as realça por um modo de ver próprio e novo. Crítica severa, mas necessária, porque o Sr. Valentim Magalhães é dos que têm direito e obrigação de a exigir.

Silva Jardim, com quem escreveu Idéias de moço (1868) afirma: “Valentim Magalhães é um petroleiro, vive embriagado pelas idéias modernas, roncando contra o obscurantismo, a inquisição, os reis, e os padres, seduzido pela casta idéia, a liberdade.”

183 Alberto Venancio Filho

Como poeta, segundo Raimundo Corrêa, “Valentim Magalhães, em segui- da ao lirismo dos verdes anos e da primeira adolescência, fez-se adepto fervo- roso da escola social. Esta escola poética que, com vários corifeus ilustres no Brasil e em Portugal, tentou substituir ao subjetivismo exagerado dos românti- cos o seu objetivismo abstrato e por demais palavroso, esteve muito em voga entre nós, até à época do centenário de Camões, acontecimento que veio dar à literatura nacional uma nova e mais segura orientação. Por esse tempo foi que Valentim publicou os seus Cantos e lutas, obra adap- tada aos moldes daquela escola. Três são as poesias que a crítica destacou aí com mais vivos elogios: “Os dois edifícios”, “O herói moderno” e “Prenúncio de aurora”. A primeira delas acabou por figurar em várias antologias escolares, pare- cendo que a este fim mesmo é que estava destinada; a segunda foi excluída, pelo autor, do seu Rimário; e a última é ainda hoje um dos melhores spéci- mens da escola.”

Sílvio Romero, na História da Literatura Brasileira, adotando espírito classifica- tório, trata dos vários períodos da poesia, e aponta na reação ao Romantismo (1872 ou 1873 em diante) uma poesia realista, uma vez social, revolucionária outras, e incluía junto com Valentim Magalhães, Carvalho Júnior, Fontoura Xavier, Lúcio de Mendonça, Augusto de Lima, aos quais se prende . Descrevendo a Idéia Nova, Euclides esclarece:

Não maravilha que a nova geração, do avançar aforrado, não soubesse, afinal para onde seguir. Apenas um exíguo grupo se destacou: arregimentou-se em torno de um filósofo; e afastou-se. Ninguém mais o viu – e mal se sabe que ele ainda existe, reduzido a dois homens admiráveis, que falam às vezes, mas que se não ouvem, de tão longe lhes vem a voz, tão longe eles ficaram no território ideal de uma utopia, no dualismo da positividade e do sonho...

184 O fundador Valentim Magalhães

O resto ficou numa fronteira indecisa a tatear dentro de uma miragem que, à falta de melhor nome, se chamou durante muito tempo a Idéia Nova. Que era a Idéia Nova? Eu poderia responder-vos que era uma coisa muito velha, uma curiosa infantilidade de cabelos brancos, ou uma novidade de cem anos – mas prefiro a palavra de um poeta do tempo. Escutemo-lo:

Está deserto o céu. No grande isolamento, Palpita ensangüentado o sol – um coração... Mas os deuses de Homero, o Jeová sangrento, Alá e Jesus Cristo, os deuses onde estão? Morreram. Era tempo. Agora encara a terra: Ressoa alegre a forja e sai da Escola um hino. O gênio enterra o mal em uma negra cova. Deus habita a consciência. O coração descerra Aos ósculos do Bem o cálix purpurino. Vem perto a Liberdade. É isto a Idéia Nova.

Os versos são de 1879 e o poeta, à volta dos vinte anos, chamava-se Antônio Valentim da Costa Magalhães.

Valentim, na nota final de Rimário, último livro de poesia (1900), escreveu, referindo-se à esposa: “Nos Cantos e lutas,emAlma e neste livro encontram-se, palpitantes, os vestígios e os influxos de minha ventura doméstica, hoje extin- ta. Não é à memória d’Ela própria, viva, presente, inapagável, como existe e existirá, sempre, no meu espírito e no meu coração. Este livro abre por um ade- us, em 1878, o de um curto afastamento, e termina com um adeus, em 1899, o da Morte, o do afastamento infindável. Estas datas marcam a alvoradaeanoi- te de um dia de primavera luminoso e flóreo, e, por isso mesmo, demasiado rá- pido, – a minha mocidade!”

185 Alberto Venancio Filho

O que finaliza aí, porém, não é somente a mocidade do poeta, é a sua pró- pria vida, pois ele não tardou muito em seguir ao túmulo a esposa idolatrada. Rimário (1878-1899), publicado em 1900, último livro de poesia, é a sínte- se da produção poética de mais de vinte anos, escoimada dos versos que exclu- iu. Nas notas fala do sucesso do primeiro livro, Cantos e lutas, da absorção pela prosa:

Fui sendo esquecido como poeta, passei de moda. [...] A princípio fui gê- nio, mas tarde coisa nenhuma, hoje César, João Fernandes amanhã. Passaram muitos anos e passaram alguns lustros. Bons ou maus, os meus livros de prosa foram sucedendo-se, empilhando-se. Ultimamente lem- brou-me juntar-lhes, para que não houvesse essa falha na minha obra total, o livro, ainda por fazer, dos meus versos feitos. Não alimento ilusões sobre a sorte deste livro. Nele vai a minha mocida- de, a melhor porção da minha existência, o mais forte do meu cérebro, o mais puro do meu coração. É a minha vida que passa cantando, cantando suas aspirações e seus sonhos, seus desenganos e suas paixões, seus gozos e seus martírios.

É desse livro o poema a Machado de Assis:

Honremos altamente esse que ensina Asubjugar os metros revoltosos; Esse que torna os ares sonoros Com a doce voz da lira peregrina; Esse que da poesia os puros gozos Liberalmente aos corações propina; E tem da forma a religião divina Apostolado aos crentes sequiosos; Esse que arranca aos rígidos vocábulos Amúsica rebelde e fugidia;

186 O fundador Valentim Magalhães

Que da língua os diamantes corta e lavra E tange à rima os áureos tintinabulos. Honra ao mestre da Prosa e da Poesia, Ao vencedor da Idéia e da Palavra!

 O contista

Em 1882 publicou os Quadros e contos, segundo Euclides “livro promete- dor, onde refulgem páginas descritivas de excepcional colorido, avivadas to- das daquela galanteria do escrever, que raro o abandona – e que se acaso o abandona é para tornar maior. Realmente, joeirando-se todos os seus versos escritos em 1883, talvez nos restassem apenas três sonetos; mas estas 42 li- nhas perduram nas nossas letras como a expressão mais eloqüente de uma sa- udade ao mesmo passo excruciante e encantadora na sua tocante singeleza. Falecera-lhe o pai extremosíssimo, e Valentim, que até então escrevera para toda a parte, num insofregado anelo da consideração coletiva, – surpreendi- do pela desdita, confiou, chorando, a alma da sua esposa, aquele poema de duas páginas, ‘O nosso morto’.” Quadros e contos é, na opinião de Wilson Martins, uma reunião de contos propriamente ditos (nenhum deles “naturalista”, no sentido exato da pala- vra, mas todos de intenção “realista” evidente) e de páginas que poderíamos denominar de crônicas, na acepção mais vaga do vocábulo. Dentre estas últi- mas, a mais impressionante é a desmistificação da vida acadêmica e, em parti- cular, da legendária Academia de São Paulo, a propósito da cerimônia de co- lação de grau:

A colação de grau não se realiza em um só dia para todos os bacharelan- dos; mas dia a dia, e a quatro, depois de haverem prestado no derradeiro ato as derradeiras parvulezas jurídicas. Para essas festas acadêmicas não interrompe os seus deliciosos hábitos de inveterada porcaria.

187 Alberto Venancio Filho

O velho convento conserva as suas vidraças bordadas a pedra, trabalho da re- volução de 71, a negra e abundante varíola que lhe sarapinta as paredes, traba- lho do tempo, as suas fealdades clássicas, as suas enfermidades sujas e legendári- as [...] Continua, – isto agora quanto ao interior – a estender sob as arcarias de- gringolantes e gafadas o mesmo estilo de corredores: preciosos depósitos dos escarros de 20 gerações de bacharéis, que aí se acumulam – os escarros e não os bacharéis – em gloriosas máculas escuras [...] A sala designada para o ato não se enfeita, não se apelintra, não se lava; não é varrida ao menos [...]. Escapou-me observar que não há em todo o edifício da academia uma sala especial, que digo eu?... um banco, um reles banco de pinho, para rece- ber as famílias que concorrem ao ato, enquanto o esperam. As senhoras, em grande tenue, conservam-se de pé, gentilmente alinhadas à parede, sendo for- çadas a ter suspensas pelas pontas dos dedos as pomposas traînes dos vesti- dos ricos, a fim de não inutilizá-los, pousando-os no chão [...]. Enquanto com todo o vagar, a portas fechadas, se lavra a ata e se prepa- ram as coisas para a cerimônia, toda essa pobre gente amarrota-se, abafa, de- sespera e sua; os homens sinistramente vermelhos, abotoados na suas redin- gotes, enforcados nos seus colarinhos novos e nas suas gravatas brancas, dessorando mau humor e péssima pomada húngara.

E assim prossegue a página terrível, com que nos curar para sempre de to- das as idealizações póstumas que se vieram acumulando desde o período ro- mântico sob as “arcadas” do Largo de São Francisco; período estudado com idênticas conclusões em meu livro Das Arcadas ao bacharelismo. “Os contos do volume são convencionais e indecisos entre o sentimentalismo romântico e algumas ‘notações’ que se querem realistas, mas pertencentes, na verdade, àquele ‘realismo’ do monstruoso e do grotesco em que o romantismo tam- bém se comprazia.”

Notas à margem – diz Euclides – recordam uma escaramuça agitadíssima, es- tonteadora, sem rumos, à caça do imprevisto, onde não há triunfos nem reve-

188 O fundador Valentim Magalhães ses, e os recontros e os adversários se travam e se distinguem fugitivos, a relan- ços e aos resvalos, um reconhecimento armado que não para… Porém, o que ali falta no compasso das idéias, sobra na propriedade do dizer e num desvela- do apuro de linguagem, que influíram consideravelmente em nosso meio. Mu- ita gente, entre nós, começou a escrever melhor, sob as reprimendas gráceis da- quele infatigável caçador de solecismos e persistente fiscal de pronomes insu- bordinados. Ao mesmo passo na imprensa diária acentuou-se melhor esta for- ma literária facílima, que é o artigo do jornal, onde a medida e a intensidade das idéias têm de ceder, não já aos dúbios contornos, capazes de ajustá-las ao maior número possível de critérios, nos limites de uma atenção de quartos de hora, senão também à fluidez de expressão, que lhes permita insinuarem-se nas nossas preocupações, encantando-nos um momento um momento – e passan- do sem deixarem traços. Vou agitar alguns conceitos falíveis. Revendo estes volumes, o que para logo se põe de manifesto é uma falta de unidade pasmosa. O escritor muda no volver das páginas.

Novamente Euclides:

Nos Cantos e lutas, escuta-se, ao toar solene dos alexandrinos, o lirismo humanista que Pedro Luís divulgara desde 62. De feito, a inspiração não lha diluem lágrimas: é robusta, impessoal, re- fulgente – e a sua

[...] grande musa austera e sacrossanta, que para o céu azul os olhos a levanta banhados no fulgor virgíneo da verdade, era sem dúvida sincera.

Mas esta linguagem, cantando herculeamente as odes imortais, nunca mais se repetiu. Ao contrário, a poesia filosófica (e falo assim por obedecer à moda, porque uma tal poesia se me afigura tão absurda quanto uma geo-

189 Alberto Venancio Filho

metria lírica ou a astronomia romanceada de Flammarion), a poesia ‘social’, em que tanto importa o subordinar-se a expressão à verdade, teve depois em Valentim um irrequieto adversário.

No livro Notas à margem, Valentim Magalhães incluiu uma crônica, lamen- tando que ao enterro do grande jurista Teixeira de Freitas só tenham compare- cido quatro pessoas. Machado de Assis glosou o comentário, dizendo também a escassez de amigos e colegas no enterro de José de Alencar, que “também era jurisconsulto, romancista, orador e político. Não era só isto: era o chefe da nossa literatura”. E atribuía a ausência com ironia à falta de calças pretas. De Alma, livro de contos, diz Raimundo Corrêa:

Mas para os que, como eu, preferem a todos os trabalhos de Valentim Magalhães os que ele escreveu no estilo familiar, as suas melhores páginas estão talvez nesse encantador livrinho – Alma. “O primeiro dente”, “O pri- meiro nome” e “Noites eternas” são com efeito três peregrinos poemas em prosa; e, quando os leio, suponho que o autor seria inimitável, inexcedível nesse gênero íntimo. Pondo de lado todos os discursos e conferências que fez, didáticas e literárias, muitos artigos de polêmica e inúmeros escritos dispersos por vários jornais, para considerar exclusivamente o que ele che- gou a reunir em volume, não se pode negar que, com respeito ao prosador, este seu legado, só por si, constitui uma obra vasta e multifária, pela infini- dade de assuntos que abrange.

 O ensaísta

José Veríssimo, escrevendo no início da República, diz que as letras não exerciam qualquer influência nos movimentos de idéias: “Em nosso país os movimentos de ordem espiritual, longe de atuarem sobre os fenômenos sociais, destes recebem impulsão e vida.” Havia, registra ele, “uma sensível atmosfera nacionalista depois da proclamação da República, mas o movimento literário era pobre”. E acrescentava Valentim Magalhães:

190 O fundador Valentim Magalhães

Literatura sem livros, literatura de folhetos, posso também chamar àquela que ora temos. Escassíssima, a nossa produção literária quase que se resume hoje exclusivamente no conto, na fantasia ligeira e desvaliosa, na poesia, ou melhor, em alguns versos publicados nas folhas diárias ou em efêmeras revis- tas. O romance, a crítica, a filosofia, a história, os estudos literários, o drama, este principalmente, morrem verdadeiramente à mingua de produção. A mes- ma literatura política [...] não dá senão raros e mesquinhos frutos.

Segundo Wilson Martins:

Constituído, como os Estudos brasileiros de José Veríssimo, de artigos es- critos para diversos períodos desde 1881, o livro Escritores e escritos de Valen- tim Magalhães oferece curioso documento sobre a nossa vida intelectual nesse período. Mencionemos, antes de mais nada, que começa com um elo- gio da Forma – “Ninguém que almeje passar por poeta tem mais o direito de ignorar os preceitos gerais da arte do verso.”

Adepto do culto da forma, dizia Valentim Magalhães:

“Essa religião não tem entre nós mais que meia dúzia de sacerdotes. E esses mesmos celebram as cerimônias do seu culto, praticam os divinos mistérios de sua seita no meio de uma multidão de ignorantes, que lhes não entende o Latim, e que só aplaude os versejadores pesadões, aqueles que apenas conhecem da Poesia este princípio: escrever em linhas curtas. Felizmente ainda temos alguns descendentes da raça divina dos helenos, ainda temos alguns poetas... que se dão à árdua e deliciosa tarefa de procu- rar a forma perfeita. Pesam as palavras em balanças microscópicas, me- dem-nas, estudam-nas, combinam-nas, como um alquimista fantástico fa- zendo ouro; estudam Lecomte (sic), Gautier e Banville, como se foram tratados de botânica e de mineralogia, e fazem o que tanto aconselhava o poeta da Comédia da Morte e tanto recomenda o – lêem os dicionários.

191 Alberto Venancio Filho

Nos Escritores e escritos, afirma Euclides, “desponta-lhe o antagonismo em di- zeres concisos, golpeantes”: “Em literatura a forma é quase tudo. Especial- mente em poesia. É preciso ter como Teodoro de Banville o sentimento das palavras... A Forma! Eis o grande, o milagroso talismã! Quem o possui atraves- sa a vida sem conhecer impossíveis caprichos do seu gênio.”

A “Forma” lá está com F maiúsculo. É o fetichismo do vocábulo. Com efeito, poucas vezes na língua portuguesa a palavra foi tão voluntariosa no violentar idéias, transfigurado-as ou emparelhando-as nas mais bizarras antíteses.

 O romancista

Em 1897 Valentim de Magalhães publicou seu único romance: Flor de san- gue. Diz no prefácio:

Nesses quatro lustros de atividade mental, tenho feito um pouco de tudo – versos, folhetins, contos, panfletos, crítica, biografia, artigos de todo gê- nero, teatro, que sei eu? e tenho construído com parte desses materiais para mais de uma dúzia de livros. A crítica tem me reconhecido, com munificência que me há penhorado, um espírito vivaz, variável, curioso; uma atividade indefesa; um certo amor à língua vernácula, e daí pronunciado carinho no escrevê-la e um estilo cor- reto e agradável; porém não tem ocultado o seu pesar por me não ver aba- lançar-me a isso que chamam os críticos “obra de fôlego”, ou “trabalho sé- rio” – um poema, um romance, um livro de crítica profunda. Ora, eu devo confessar que essa censura me calou sempre no espírito por havê-la formu- lado muitas vezes a mim próprio. Mas as necessidades inadiáveis da vida material, tão pesadas para um pai de família pobre neste terra em que das le- tras ainda não se pode viver exclusivamente, impediram-me sempre de levar por diante esse projeto, cem vezes formulado e não poucas começado a exe-

192 O fundador Valentim Magalhães

cutar. O tempo que me deixavam livre as ocupações de que provinha o pão quotidiano e o meu estado de saúde, precário sempre, chegavam apenas para escrever o conto, a notícia crítica, a crônica faceta, o artiguinho diário a que me comprometera em um ou vários jornais; não havia possibilidade de realizar o meu sonho, satisfazendo a exigência dos críticos – escrever uma obra de fôlego. Sem parágrafo escrevi-o sempre de uma assentada, capítulo por capítulo, e, acabado, relia-o, corrigia-o, mandava copiá-lo por um secretário, conferia a cópia e remetia-a aos tipógrafos. Se conto este pormenores é para explicar as muitas imperfeições de for- ma que sou o primeiro a reconhecer, tais como a vulgaridade de algumas frases, a fraqueza de certas expressões, o banal de vários títulos de capítulos (e dei-lhes títulos por uma conveniência pessoal: para orientar-me em cada capítulo do estado, do ponto em que ficara o enredo, a composição), um ou outro galicismo, como “golpe de vista”, e outros defeitos mais. O capítulo que primeiro escrevi, com a intenção de fazê-lo o primeiro li- vro, foi o quinto da segunda parte – um dos últimos: eu havia principiado pelo fim! Não resolvi fazer um romance naturalista, nem de aventuras, nem de psi- cologia, nem simbolista, nem idealista; resolvi simplesmente fazer um roman- ce. E ele foi-me saindo dos bicos da pena com um certo feitio, uma certa fisi- onomia, um certo caráter, que não tentarei definir e ainda menos explicar. Se todavia me interpelasse alguém sobre tal ponto, diria que para o seu autor é o meu romance filiado à escola da verdade, a única, que como os Goucourt, acredito real e fecunda em Arte. Todos os tipos que nele fiz mo- ver-se, e não sei se viver, encontrei-os na vida social, não só fluminense, não só brasileira, mas de todos os países.

O romance Flor de sangue descreve a vida amorosa de uma senhora da alta burguesia, Corina, e está dividido em duas partes, cada uma terminando com um suicídio, o primeiro, do amante, que era filho adotivo do marido, e o se-

193 Alberto Venancio Filho gundo, do marido ao saber muito mais tarde da relação da esposa com o filho adotivo. O suicídio está presente também no “Soneto de um suicida”:

(ALucindo Filho ) Mata-me a dura lei da vária Natureza Que nos faz desejar o que nos é proibido; O fruto do pecado e o mais apetecido, E o crime é um belo ornato as graças da Beleza.

O dístico – Mão toque e do mal a certeza São dois imãs fatais, a que anda o amor vencido; Os direitos cruéis do amante e do marido Aumentam da paixão a tempestade acesa.

Morro porque te quero e não podes ser minha, Separa-nos um muro estúpido e fatal, Quando, no entanto, o amor, a rir, nos avizinha.

Suplício sobre-humano e delícia infernal, Que todos podem ver mas ninguém adivinha: – Morro porque és o bem e desejar-te é o mal.

É interessante salientar que o personagem principal do livro, Fernando Go- mes, é um beneficiário do Encilhamento, o autor certamente transmitindo a experiência pessoal para descrever os episódios, e é curioso apontar o teor da errata: em lugar de “bosque nemoroso”, “bosque umbroso”; ao invés de “es- tourar os miolos”, “cortar o pescoço”. José Veríssimo, em Estudos de literatura brasileira coloca o livro no Naturalismo pelo tema e à literatura apressada de folhetim pela execução, aponta “indecên- cias e imoralidades” e “quase nenhuma qualidade literária”.

194 O fundador Valentim Magalhães

Com outro julgamento, Euclides contesta: “Nada direi do livro malogrado, onde, entretanto, um velho tema se remoça com uma cativante originalidade de desfecho. Considero apenas que a crítica desaçaimada, que o estraçalhou até à errata final, não disse mais do que o próprio romancista, no prefácio.” Raimundo Corrêa viu injustiça, por vezes, na severidade dos críticos, a qual se acrescentava à “diatribe malévola dos desafetos”. Escreve Machado de Assis:

Flor de sangue pode dizer-se que é o sucesso do dia. Ninguém ignora que Valentim Magalhães é dos mais ativos espíritos da sua geração. Tem sido jornalista, cronista, contista, crítico, poeta, e, quando preciso, orador. Há vinte anos que escreve, dispersando-se por vários gêneros, com igual ardor e curiosidade. Quem sabe? Naturalmente nem tudo o que escreveu terá o mesmo valor. Tudo é que as obras sejam feitas com o fôlego próprio e de cada um, e com materiais que resistam. Que Valentim Magalhães pode compor obras de maior fôlego, é certo. Na Flor de sangue o que o prejudicou foi querer fazer longo e depressa. A ação, aliás vulgar, não dava para tanto; mal chegaria à metade. Há muita coisa parasita, muita repetida, e muita que não valia a pena trazer da vida ao livro. Quanto à pressa, a que o au- tor nobremente atribui os defeitos de estilo e de linguagem, é causa ain- da de outras imperfeições. Não insisto; aí fica o bastante para mostrar o apreço em que tenho o ta- lento de Valentim Magalhães, dizendo-lhe alguma coisa do que me parece bom e menos bom na Flor de sangue. Que há no livro certo movimento, é fora de dúvida; e esta qualidade em romancista vale muito. Verdadeiramente os defeitos principais deste romance são dos que a vontade do autor pode cor- rigir nas outras obras que nos der, e que lhe peço sejam feitas sem nenhuma idéia de grande fôlego.

195 Alberto Venancio Filho

Na classificação do romance e do conto, Sílvio Romero, na História da litera- tura brasileira, indica o meio naturalista da cidade (1860/1884), inicialmente com Manuel de Almeida, Carneiro Vilela e Celso Magalhães, ao qual se pren- dem com Valentim Magalhães, Afonso Celso, Xavier Marques e Domício da Gama. Finalmente, ao tratar da crítica comenta:

Em nosso quadro esquemático, foram somente contemplados os críticos por temperamento os que fizeram da difícil arte de Sainte-Beuve a sua pro- fissão espiritual, e postos fora os pretensos críticos de arribação, sujeitos adventícios, que por capricho de momento, confundindo crítica com des- forra ou desabafo ocasional, foram levados alguma vez a exercer a discussão polemista, sempre com desaso. É o caso de Alencar nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, Franklin Tá- vora nas Cartas de Simprônio a Cincinato, Joaquim Nabuco no que escreveu contra Alencar, e Valentim Magalhães no que publicou contra os Últimos ar- pejos, livro de poesias de Sílvio Romero.

 O polemista

Na arena jornalística, Valentim Magalhães digladiou com intrépidos pole- mistas, como Ferreira de Araújo, Carlos de Laet e Sílvio Romero, adversários dignos dele. Mas de permeio se metiam, às vezes, indivíduos que só desejavam ganhar fama à sua custa, e outros que aproveitavam covardemente o ensejo para o ferirem pelas costas. E, quantas vezes, por quem nem sequer o conhecia de perto foi ele gratuitamente agredido! Entretanto, Valentim não esmoreceu jamais. Diria a Lúcio de Mendonça: “Tenho pintado o bode como tens visto. Ulti- mamente com o Sílvio (Romero) era preciso sová-lo. Sovei-o e me parece que em regra.” Tratava-se do livro Notas à margem dos “Últimos arpejos” – crítica ao li- vro de versos de Sílvio. Eis a resposta de Sílvio Romero:

196 O fundador Valentim Magalhães

Valentim Magalhães! – Famoso homem de letras em verdade... Foi du- rante mais de vinte anos o porta-bandeira da oposição tenaz, implacável, ir- redutível, contra tudo que se pensou e se fez na Escola do Recife nas últi- mas décadas do século passado. Guerra foi essa cuja constância, nunca des- mentida, só podia rivalizar com a sua própria sem razão, sempre provada. – Os serviços prestados às letras e ao pensamento nacional por uma legião in- teira de combatentes da idéia, entre outros, os Tobias Barretos, os Viveiros de Castro, um Martins Júnior, um Sousa Pinto ... não têm chegado para de- sarmar a odiosidade sistemática a uns, as censuras infundadas a outros, os esquecimentos calculados a estes, as meias simpatias àqueles, e até os feste- jos suspeitos de certos renegados que por qualquer motivo caíram nas gra- ças de determinados críticos, que se arrogam nesta boa terra a função de dis- tribuir os títulos e louvores espirituais. Adolfo Caminha, no romance Tentação, fez o louvor da província, o casal de provincianos que se desloca para o Rio e aqui só encontra a falsidade e a hipocrisia. Nessa obra, Adolfo Caminha quis vingar-se de Valentim Maga- lhães, ao “fazer-lhe a caricatura, freqüentemente insultuosa e desafiadora, no tipo de Valdevino Manhães, diretor da Revista Literária e autor de muitís- simos livros, de muitíssimas obras, entre as quais o poema herói-cômico “Juca Pirão”, paródia ao Y-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. A intenção de desforra fez reviver o polemista que parecia espreitar em Caminha os movi- mentos do romancista, com o intuito de atenuar-lhe a força e desviar-lhe a vocação”.

 O teatrólogo

Valentim Magalhães também se dedicou ao teatro: Doutores e Inácia do Couto, paródia à tragédia de D. Inês de Castro, incluídas no livro Teatro (1888); Oim- pério da lei e O país do café, incluídas no livro Horas alegres, e em colaboração com Filinto de Almeida O Grão Galeoto e No seio da Morte, ambas tradução de D. José Echegaray, também em colaboração com Filinto de Almeida, e Amulher-homem ,

197 Alberto Venancio Filho entre outras. As peças eram mais para serem lidas do que representadas, e não tiveram grande repercussão. Este comentário é confirmado pela análise de Ro- nald de Carvalho:

A literatura dramática brasileira, depois de , Macedo Alen- car, França Júnior e Agrário de Menezes, se não deixa de existir pelo volume da produção, minguou pelo caráter cênico das obras aparecidas. O ato ligeiro, a burleta, a comédia trivial, a revista popular e anedótica de Artur Azevedo, Valentim Magalhães, Moreira Sampaio e muitíssimos outros, todos empe- nhados, aliás, em “educar” o gosto do nosso público, “envenenado pelo dra- malhão romântico” não conseguiram qualquer processo sensível para o nosso teatro decadente. Ficamos, ao contrário, com um teatro fútil e parasitário, imitado ou simplesmente traduzido do francês, menos nacional que nunca, apesar dos propósitos e das intenções regeneradoras de que estava inçado.

Afinal, cabe o comentário de Raimundo Corrêa sobre o diletante:

Há bastantes anos que ele abrilhanta assiduamente as colunas do nosso jor- nalismo; a sua pena destra e nervosa não só pelo folhetim chistoso tem volatea- do, mas também pela poesia, pela sátira, pelo teatro e pela crítica, deslizando sem dificuldades nos assuntos mais graves, como nos mais leves assuntos, e quase que não há esfera de atividade literária para a qual se não ache voltada al- guma das múltiplas faces do seu belo talento, nem departamento nenhuma das letras onde a sua passagem não tenha ficado mais ou menos assinalada por al- gum bom serviço. Essa complexidade cerebral, rara e invejável aliás, é, no entanto, por uns visos de puro diletantismo, o que mais do que tudo o tem prejudicado, de- primindo aos olhos da crítica mal prevenida o seu real e contestável mereci- mento. Que é que o faz não persistir por muito tempo e mais atiradamente num só terreno? Será aquele suposto diletantismo, ou bem uma outra causa que me-

198 O fundador Valentim Magalhães lhor se pode investigar no próprio temperamento do escritor. Dir-se-á que, em tratando um assunto qualquer, logo o desvia dele a sugestão de um novo e di- ferente assunto em que também não persiste mais do que no primeiro. O exer- cício ansioso e febril de uma atividade assim distribuída em tão várias direções simultaneamente lhe não permite, ao incansável trabalhador, levantar edifício bem sólido em terreno nenhum. Quantos há, porém, de merecimento inegável embora, que cultivando um só gênero exclusivamente, não têm conseguido neles êxito igual ao de Valen- tim Magalhães no cultivo simultâneo de muito?

Acrescenta Euclides:

Resumo o meu juízo: toda a obra literária de Valentim Magalhães pode ter o título único de um de seus livros – Bric-à-brac. E a este propósito ouça- mo-lo na esplêndida volubilidade de seu estilo disserto, referindo-se àquele livro sem cuidar que fazia toda a sua psicologia literária: [...] Pois esta obra é isto mesmo; é um amontoado de curiosidades literá- rias, e objetos de arte escrita... Junto a um conto comovido e sincero, um trecho da sátira mordaz e irreverente; em seguida a um grito de entusiasmo, uma caricatura a traço largo; depois de um surto amplo de fantasia capri- chosa, um quadro exato e minucioso da vida social – Bric-à-brac. De manhã à noite, em um só dia, o homem percorre toda a gama sentimental – enter- nece-se e lacrimeja; encoleriza-se e ruge; alegra-se e ri; enfara-se e boceja; enamora-se e canta; indigna-se e satiriza...

 A figura humana A esse respeito diz Euclides:

Expressiva é aquela admiração delirante. Valentim Magalhães era excep- cionalmente afetivo. Tudo lhe denuncia um nobre espírito impropriado a agir sem os estímulos de uma ardente simpatia, vinculando-o às outras almas.

199 Alberto Venancio Filho

Esta literatura associada que, em geral, a exemplo dos Goncourts, exige a base da consangüinidade, ele a praticou como nenhum outro, reunindo um ir- mão legítimo, Henrique Magalhães (com quem escreveu uma paródia à Morte de D. João), a Silva Jardim, a Filinto de Almeida e Alfredo Souza, nos laços da mesma fraternidade. Não se conhece um livro sem uma dedicatória. São rarís- simos os seus escritos dispersos, cujos títulos não tenham logo abaixo um pa- rêntesis guardando o nome de um amigo. A admiração, que é o sintoma mais lisonjeiro de um caráter, rompia-lhe sempre num enorme exagero. Admirou daquele jeito Guerra Junqueira; admirou Camilo Castelo Branco, “polígrafo indefeso, formidável, único”; admirou Ramalho Ortigão, “um mestre, senhor de todas as verdades do mundo moderno...”; admirou Machado de Assis, esse que arranca aos rígidos vocábulos a música rebelde e fugidia... admirou os seus próprios companheiros. Sendo preeminente na “nova gera- ção”, não desdenhou fazer-se o garboso mestre sala, para apresentá-la ao país. E o país conheceu-a, em grande parte, através da sua palavra carinhosa. Não preciso exemplificar. No círculo daquela afabilidade irradiante e avassaladora caíram os que chegavam pouco depois, desde Coelho Neto, Medeiros e Albu- querque e Olavo Bilac até aos mais obscuros escrevedores da província. A al- guns cantou em verso, desde Carvalho Júnior, desaparecido tão moço e a quem conhecemos apenas como um meinsinger loiro, alegre e extravagante, até alguém que não preciso nomear, tão conhecido nosso é o

... que esculpido Tem, sonhos, dores, alegrias E é príncipe do Reino Unido Das Harmonias.”

200 O fundador Valentim Magalhães

Da capacidade de fazer amigos, mesmo à distância, aponte-se o depoimento de Xavier Marques no discurso de posse nesta Casa:

Um dos fundadores desta Casa, Valentim Magalhães, cuja memória nesta ocasião me é grato evocar, fez que eu, certa vez, cativo de sua insistência, lhe pro- metesse candidatar-me à primeira vaga que se abrisse na Academia. De ânimo leve, um tanto fascinado, prometi. Mas apenas acabara de fazê-lo, tamanhos se me afiguraram os óbices por vencer na íngreme subida a que me convidava o amigo, que achei conveniente ir-me logo afeiçoando à idéia de uma evasiva, com qualquer pretexto, no momento oportuno, isto é, no momento crítico. Valentim Magalhães possuía, aprimorado, no melhor sentido da expres- são, o espírito de camaradagem. Nunca lhe pude ouvir as razões que o in- duziram a considerar plausível a minha entrada, desde aquela época, para a Academia. Pessoalmente nunca nos conhecemos. E somente em honra do seu caráter afetivo assinalo a simpatia com que sempre me distinguiu o au- tor que, dezenove anos antes, estreara nas letras sob os auspícios de sua bri- lhante nomeada. O tempo, para quem eu, com tão pouca fé pessoal e desvalido de “estro” ha- via apelado, deu a mais desconcertante resposta aos meus desígnios. Em março de 1903 dizia-me em carta o saudoso acadêmico: “Escreva-me, dando-me no- tícias suas, e decida-se a apresentar-se à primeira vaga da Academia Brasileira.” Em menos de dois meses, em 17 de maio, verificava-se a vaga. Era a de Valen- tim Magalhães... Assim é que fui candidato, sem ilusões, quando razão não tinha para esperar senão um junto revés: candidato por um desses motivos irraciocinados do sen- timento, que às vezes nos levam a arcar com aparências audazes e emprestam colorido extravagante, pretensioso, no caso, às ações mais inocentes. Esta reminiscência é uma homenagem do coração devida àquele que, embo- ra trocando pela justiça a liberalidade, primeiro cogitou de franquear-me este egrégio cenáculo. Por exígua que seja, eu não a podia negar-lhe.

201 Alberto Venancio Filho

E para EuclIdes:

A linha acentuada do caráter de Valentim ia de uma alevantada altivez a uma robusta alacridade que o forrava aos rancores – embora não lhe faça a grave injustiça de acreditar que ele fosse incapaz do ódio, que é muitas vezes a forma heróica da bondade. Mas este nunca lhe repontou nas polêmicas acirradas que travou e no mais aceso das quais lhe refulgia a graça amortecendo ou falseando os mais violentos golpes. Foi, porém, o mais breve dos triunfos. Não que ao escritor diminuísse o engenho, senão porque o surpreendeu um período anômalo da existência política.

Dele citemos, afinal um auto-retrato aos vinte e seis anos:

Mas o que queres tu, meu Lúcio? Eu sou um nervoso, vivo pelos nervos; preciso de atividade, de vibração, de variedade de aspectos, de área larga e principalmente de carne fresca, de carne de vaca. Sofria de uma dispepsia atroz, que a absoluta ausência de meio literário e de distrações agravavam medonhamente.

 Conclusão

No dia 13 de maio de 1903, à tarde, Raimundo Corrêa foi a Santa Teresa em visita a Filinto de Almeida, e a esposa deste velho camarada recebeu-o, tris- te e apreensivo, com a notícia de que Valentim Magalhães estava gravemente enfermo. Momentos depois chegou Filinto e partiram juntos, inquietos, para a casa do comum amigo, que morava no Rio Comprido. Aí viram-no prostrado no seu leito, vindo a falecer no dia 17 de maio.

202 203 Silva Ramos (1853-1930) Acervo do Arquivo da ABL Silva Ramos: mestre da língua

Na passagem do sesquicentenário de seu nascimento (6.3.1853 – 15.12.1930)

Evanildo Bechara

último 6 de março assinalou a passagem do sesquicentená- Conferência rio de nascimento de um dos fundadores desta Casa, José proferida na O ABL, a 6 de Júlio da Silva Ramos, vindo ao mundo, como quase tudo parece in- maio de 2003, dicar, na cidade do Recife, em 1853. durante o ciclo Digo ‘como quase tudo parece indicar’ sua naturalidade recifense, Fundadores da ABL. porque assim sempre a proclamou Silva Ramos, diante da curiosidade de netos, intrigados que estavam do carregado sotaque lusitano que o avô conservou pela vida fora. Para corroborar essa pequena ponta de desconfiança existem alguns dados relevantes que um futuro biógrafo seu terá de examinar com mais profundidade, entre os quais trago à luz dois. Do arquivo da Universidade de Coimbra chegou-me a certi- dão de batismo do nosso homenageado,1 onde se declara que o ato re- ligioso ocorreu aos 19 de junho de 1853, na Igreja da Conceição Nova de Lisboa e que o pequerrucho José Júlio, filho de João da Silva Ramos e de Emília Augusta Apolinário Ramos nascera em Lisboa.

1 Devo a pesquisa à minha colega Maria Aparecida Ribeiro, professora da Universidade de Coimbra e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros.

205

O outro dado, não intrigante como o anterior mas também não desde- nhável, consiste na omissão do nome do nosso acadêmico no Dicionário Bibli- ográfico Brasileiro de Sacramento Blake, que não deixa de arrolar, em dois mo- mentos, o pai pernambucano. É bem verdade que contamos com possível in- completude, lembrada pelo próprio operoso bibliófilo; mas estranha que faltasse informação de um já professor do Colégio Pedro II (1898), de cujo pai se ocupara Sacramento Blake com boa largueza de informações. Mas não fostes convidados a esta sessão para uma escavação de ordem bi- ográfica do nosso ilustre homenageado, e sim para revivermos juntos os consagrados méritos que o guindaram ao quadro dos trinta primeiros que pensaram e arquitetaram a construção deste cenáculo acadêmico, cada vez mais respeitado e amado do povo brasileiro, como síntese harmoniosa de sua pujança cultural e literária. Acostumado e afeito às tertúlias literárias de sua longa permanência em Coimbra e em Lisboa, e causeur cintilante que era, as reuniões da Academia, ao lado de poetas, romancistas, críticos e jornalistas, traziam-lhe à lembran- ça e à saudade os doces momentos de convivência com João de Deus, Guerra Junqueira, Cesário Verde e muitos outros. De tal modo lhe eram gradas as sessões acadêmicas, que se inscreve entre os mais assíduos. Para terdes uma idéia dessa assiduidade, basta-vos dizer que das 89 realizadas entre 1896 e 1908, sob a presidência de Machado de Assis, assistiu a 69, juntamente com João Ribeiro, só atrás de José Veríssimo, com 79, e do presidente, com pre- sença quase integral.2 Sua doação à Casa e o talento que seus confrades lhe conferiam devem, certamente, ter pesado para que fosse, na sessão de 18 de janeiro de 1897, eleito para ocupar o cargo de 2o Secretário com vista a integrar a primeira di- retoria completa, juntamente com o 1o Secretário, Rodrigo Octavio.

2 Estatística levantada na tese de Cláudio Cezar Henriques Atas da Academia Brasileira de Letras – Presidência Machado de Assis. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001. (Coleção Austregésilo de Athayde, vol. 2.)

206 Silva Ramos: mestre da língua

Nas homenagens que justamente lhe foram tributadas in memoriam,noseu falecimento, ocorrido em 1930 e no transcurso do 1o centenário de nascimen- to, em 1953, os pontos de exaltação incidiram na sua produção de poeta, jor- nalista e tradutor, embora não lhe fossem esquecidos os méritos de excelente filólogo e exímio professor de Língua Portuguesa. Sobre Silva Ramos recaíam os votos da crítica de então elogiando o delica- do poeta romântico com ressalto de sua veia lírica, denunciada na epígrafe de Alfredo de Musset “L’amour est tout... Aimer est le grand point...” com que abria seu único livro de versos, Adejos, publicado em Coimbra, em 1871, regis- trando-lhe os arroubos juvenis dos dezesseis aos dezoito anos. Ressalta- va-se-lhe também o cronista encoberto no pseudônimo Julio Valmor de ASe - mana e outros órgãos da imprensa fluminense e, com não menos ênfase, o pro- fessor de nomeada, estimulador de estilistas e incentivador de futuros cultores do idioma. Os dotes de sua poesia, é bem verdade, foram exageradamente exaltados pelo paulista que lhe sucedeu nesta Casa, o inspirado autor de Vida e Morte do Bandeirante, Alcântara Machado. Outro ocupante da mesma cadeira n.º 37, ses- senta e sete anos depois, com o peso de sua autoridade de excelente poeta, me- lhor os ajuizou. Eis as palavras do nosso confrade Ivan Junqueira no seu dis- curso de posse, acerca de Adejos:

[...] esses versos de Silva Ramos, além de irremediavelmente datados, re- fletem antes, ou tão-somente, os arroubos de um espírito ainda em ebulição e as fundas influências que recebeu em Coimbra, as quais seriam decisivas para a sua sólida formação de gramático e filólogo.3

Todos os discípulos que tiveram a honra de lhe assistir às aulas são unâni- mes em aludir ao amor ao idioma que inoculava em seus ouvintes, à interpreta-

3 Discurso de Posse de Ivan Junqueira e Discurso de Recepção de . Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2000, p. 11.

207 Evanildo Bechara

ção reveladora das excelências lingüísticas escondidas nos textos literários e a vivacidade com que, no sotaque lusitano, emprestava à leitura de trechos lite- rários recolhidos na mais clássica e de bom gosto seleta escolar, a Antologia Na- cional de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Silva Ramos perscrutava os meios estéticos de expressão utilizados nos tex- tos literários, reconhecendo-lhes e decifrando-lhes ‘a indocilidade com que eles recebiam a rigidez de normas inflexíveis’, para trazermos aqui uma frase feliz do saudoso Barbosa Lima Sobrinho, em saudação à passagem do centená- rio do ilustre filólogo.4 Neste sentido são extremamente reveladores os depoimentos de seus nume- rosos alunos, entre os quais lembrarei apenas dois, o de e o de Sousa da Silveira, ambos filólogos que, já adultos, recordavam as aulas do nosso homenageado a crianças do 1o ano da turma de 1897 do Ginásio Nacio- nal, denominação, àquela fase republicana, do Colégio Pedro II.

Ainda hoje recordo – diz-nos Bandeira – a maravilhosa lição que foi a leitura que fez da “Última corrida real de touros em Salvaterra”: não só te- nho bem presente na memória o quadro objetivo da sala de aula, a atitude dos colegas, a figura subitamente remoçada do mestre, a voz com todas as suas inflexões mais peculiares, como também todas as imagens interiores evocadas pelo surto eloqüente da leitura: o garbo e esplendor da ilustre Casa de Marialva ficou para sempre dentro de mim como um painel brilhante. Na verdade em um ponto da minha consciência quedou armado um redon- del definitivo para essa última corrida de touros em Salvaterra, a qual nunca deixou de ser uma das festas preferidas da minha imaginação. A tal ponto, que longe de ser a última, passou a ser a eterna corrida de touros, eterna e única, pois foi a primeira que vi – porque positivamente a vi! – e me fez achar insípidas, mesquinhas, labregamente plebéias as verdadeiras touradas

4 Discurso do Presidente, Sr. Barbosa Lima Sobrinho. Sessão de 28 de maio de 1953. In: Revista da Academia Brasileira de Letras, ano 52, vol. 85. Anais de 1953. Rio de Janeiro: ABL, 1953, pp. 237-240.

208 Silva Ramos: mestre da língua

a que assisti depois com os olhos do corpo e não com os da imaginação ex- citada pelo gosto literário do mestre.5

O testemunho de Sousa da Silveira revela-nos o filólogo que aceita aquela indocilidade à rigidez de regras inflexíveis a que atrás referi. Falando a Home- ro Senna acerca do mestre, lembra Sousa fatos de língua que já denunciam a ar- gúcia do futuro comentador de textos:

Nesse primeiro ano do Ginásio encontro, entre os professores, Silva Ra- mos, de saliente e forte personalidade, embora disfarçada pela sua modéstia e encantadora simplicidade. Posso dizer que foi ele quem primeiro me cha- mou a atenção para as belezas do idioma que falamos e para os recursos do estilo. Lembra-me, por exemplo, que em classe fazia ressaltar as onomato- péias que se encontram na célebre página de Camilo referente ao suplício da Marquesa de Távora. Na “Última corrida de touros em Salvaterra”, de Re- belo da Silva, entre muitas outras coisas, o velho mestre salientava a impres- são de ansiedade que, em certa altura, se traduz pela sucessão de períodos curtos. Também não me esquecerei jamais de que nos versos de Gonçalves de Magalhães, relativos à descrição do Amazonas, indicou-nos o efeito dos dois proparoxítonos usados pelo poeta para sugerirem a idéia de largura e vastidão do rio:

Baliza natural, ao norte avulta O das águas gigante caudaloso Que pela terra alarga-se vastíssimo.

Ora... outro professor, a respeito de tais versos, nos teria dito que os nos- sos românticos não se preocupavam muito com a correção da língua e colo- cavam desordenadamente os pronomes. Censuraria, com certeza, Maga-

5 Manuel Bandeira, Poesia e Prosa. Vol. II, Prosa, pp. 1167-1168. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958.

209 Evanildo Bechara

lhães por ter colocado o pronome átono depois do verbo na oração subor- dinada relativa e ainda por cima depois de um adjunto adverbial. E não seria de admirar que, se fosse versejador, sugerisse aos alunos uma emenda, subs- tituindo um verso, como o de Magalhães, belo e sugestivo, por outro corre- tíssimo, do ponto de vista gramatical, mas sem nenhum poder de expressão. Foi com Silva Ramos que adquiri o gosto do gênero de comentários que te- nho feito à obra de alguns autores nossos e portugueses, de que pode servir de exemplo a edição crítica que organizei das poesias de ... Esses comentários têm suas raízes nas lições do querido professor, o qual lançou em meu espírito sementes que frutificaram... Sabia fazer com que os alunos tomassem gosto pelo estudo da língua. E o mais importante... é que lecionou à nossa turma apenas durante o ano de 1897. Mesmo assim, pôde influir fortemente em meu espírito.6

Na oportunidade deste sesquicentenário desejo mostrar-vos, em modesto bosquejo, um Silva Ramos eminentemente filólogo, no mais amplo sentido de que se reveste o termo, com um embasamento teórico que raramente se encon- tra nos seus contemporâneos, numa época de formação superior autodidata dentro de um momento histórico altamente renovador nos métodos de estudo

6 Apud Maximiano de Carvalho e Silva, Sousa da Silveira. O Homem e a Obra. Sua Contribuição à Crítica Textual no Brasil. Rio de Janeiro: Presença / Pró-Memória / Instituto Nacional do Livro, 1984, pp. 11-12. Também a este mesmo propósito se manifesta M. Bandeira em carta a Alphonsus de Guimaraens Filho, de 21 de fevereiro de 1942: “Não tenho no entanto a felicidade de estar fazendo sonetos tão bonitos como esses que você me mandou. Imperfeições e deficiências? Sinceramente não encontro nenhumas. O primeiro verso do primeiro soneto tem onze sílabas; e o quarto verso do primeiro e do segundo soneto só tem nove. Mas depois da minha antologia romântica e da edição de Casimiro, do Sousa da Silveira, um grande poeta e grande versejador como você não tem que dar satisfações a ninguém: nós é que temos de descobrir, como eu e o Silveira fizemos, os motivos secretos intuitivos que levam os poetas de verdade a pôr versos de 11 e 9 sílabas no meio de decassílabos. No caso dos seus sonetos estão transparentes os tais motivos, e quando você morrer (o que espera seja daqui a uns sessenta e tantos anos) e se fizer uma edição crítica de suas obras poéticas há de aparecer um Sousa da Silveira para o interpretar e defender das possíveis cavalgaduras do fim do século XX ... (Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Itinerários. Cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1974, pp. 84-85.)

210 Silva Ramos: mestre da língua científico da linguagem e das línguas, especialmente modernas, cujo marco de- flagrador, nas pegadas de Frederico Diez, se acha assinalado, em Portugal, a partir de 1869, com a produção pioneira de Francisco Adolfo Coelho e, no Brasil, em 1878, com a Gramática Histórica, de Pacheco da Silva Júnior e, em 1881, com a Gramática Portuguesa, de Júlio Ribeiro. Silva Ramos, sem nos deixar uma obra orgânica sobre nossa língua, estava a par dos princípios metodológicos mais correntes no seu tempo, princípios me- todológicos a que chamava “estudos positivos dos fatos da linguagem [...] que constituem a ciência das línguas”.7 Sabia a posição mais correta e operacional em que deviam ficar tais princípios na tarefa de ensinar a língua a jovens estu- dantes ginasianos: por trás do mestre, orientando e disciplinando seu discurso lingüístico e metalingüístico, e não fazendo desses princípios e das questões complexas que envolvem o assunto da aula. Graças ao empenho e iniciativa editorial de Laudelino Freire, podemos contar hoje com uma coletânea de prosa, poesia e algumas lições de Língua Portuguesa, vinda à luz em 1922, intitulada Pela Vida Fora. Caberá à Academia, no prosseguimento da homenagem de hoje, reeditar em breve essa coletânea, acrescida de outras lições esparsas em jornais e revistas, além de um opúsculo que pouco parece na sua bibliografia, AReforma Ortográfica e a AcademiaBrasileira de Letras (1926). Expôs seu ideário didático-pedagógico em mais de uma oportunidade; lem- brarei uma de suas lições no artigo que escreveu para o número inicial da Revista de Cultura, do Padre Tomás Fontes, em 1927, com o título de “Em ar de con- versa”:

Toda nação tem o seu código de bem falar e escrever em que se instruem os naturais até aos quinze ou aos dezesseis anos, e cada qual procura expri- mir-se de acordo com ele, abandonando os problemas da língua aos filólo- gos e aos gramáticos a quem compete destrinçá-los.

7 Silva Ramos, Pela Vida Fora. Rio de Janeiro: Edição da Revista de Língua Portuguesa, 1922, pp. 75.

211 Evanildo Bechara

Entre nós, que sucede? Os estudantes de português e muitos dos que es- crevem para o público descuram inteiramente da gramática elementar para se interessarem pelas questões transcendentais: a função do reflexivo se,se ele pode ou não figurar como sujeito, o emprego do infinitivo pessoal e do impessoal, qual o sujeito do verbo haver impessoal e outras que tais cousas abstrusas que nada adiantam na prática.

O apuro científico de Silva Ramos está presente em muitas de suas declara- ções sobre fatos da língua; um mergulho nelas, por superficial que seja, nos re- vela o princípio ou os princípios em que se assentam. Quando se alude ao mes- tre, logo acodem à lembrança palavras suas que se tornaram clássicas e assumi- ram até certo ar anedótico, como aquela afirmação: “Eu não sei como se colo- cam os pronomes, pela razão muito natural que não sou eu quem os coloca, eles é que se colocam por si mesmos, e onde caem, aí ficam.”8 Por trás deste comentário aparentemente inocente, há um punhado de prin- cípios metodológicos que cabe trazer à luz para análise. O primeiro deles é, novidade àquela quadra dos estudos de linguagem, a introdução dos fatores de fonética sintática e de entoação frasal como motivadores de fatos de distribui- ção de termos oracionais, especialmente do jogo de vocábulos tônicos e átonos no boleio da frase. Não se tratava mais da famosa explicação por atração dessa ou daquela palavra, mas sim pelos fenômenos de entoação, tema então recente entre estudos de fonética praticados especialmente pelos lingüistas alemães, revelados de maneira inovadora por M. Said Ali, em artigo na Revista Brasileira, a 1 de março de 1895, de cuja lição só Silva Ramos soube extrair orientação para seu magistério, pois não a vemos exarada nas melhores e mais correntes gramáticas da época, que ainda insistiam na improdutiva e falsa teoria da atra- ção vocabular. Ainda nas pegadas de Said Ali e como corolário da nova teoria da entoação frasal, pôde Silva Ramos compreender que, estando a distribuição dos prono-

8 Id., ibid., p. 119.

212 Silva Ramos: mestre da língua mes oblíquos sujeita ao ritmo frasal e que esse ritmo era diferente entre brasile- iros e portugueses, natural seria que a colocação não coincidisse nos dois espa- ços geográficos – o americano e o europeu. E mais: que o brasileiro teria direi- to a esse uso, recriminado pelos portugueses. Eis lição de Silva Ramos, em 1914, comentando os Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa, de Mário Barreto:

Acreditamos, entretanto, que, quando o professor Mário Barreto se dis- puser a tratar o assunto com a amplitude que ele comporta, a conclusão a que terá de chegar, necessariamente, em face dos princípios da ciência que tanto acata e venera, é que a situação do pronome átono na proposição, tan- to no Brasil como em Portugal, é determinada exclusivamente pelo ritmo, diferente numa e noutra região, consoante a tonicidade e o valor dos fone- mas que não condizem aquém e além-mar. O fenômeno é puramente de som, daquela fonética de que fala Brug- mann, que considera a frase como “uma unidade fonética completa em si mesma.9

Em 1907, na prova escrita do concurso a que se submeteu para preenchi- mento de cátedra do Colégio de Pedro II, não fora diferente a sua lição:

Seja como for, o regulador único da distribuição dos pronomes átonos na locução brasileira é igualmente o ritmo, governado por princípios de que os naturais do Brasil não têm a mínima consciência, como os que nasceram em Portugal não a têm dos que regulam a cadência da locução portuguesa. Ora, tentar reduzir o ritmo, o número, a cadência da linguagem brasileira ao ritmo, ao número, à cadência da linguagem portuguesa é irracionável em- preendimento. [...] Ora, dependendo exclusivamente a situação dos pronomes átonos brasi- leiros da fonética peculiar ao Brasil, como se pôde originar essa preocupa-

9 Id., ibid., p. 82.

213 Evanildo Bechara

ção dos gramáticos e mestres do vernáculo, entre nós, de estabelecerem re- gras para a colocação daqueles elementos, de acordo com os hábitos do fa- lar português, a ponto de ter o assunto servido de tema para uma tese de concurso no Colégio de Pedro II? Essa singularidade veio a gerar-se da maneira seguinte: José Feliciano de Castilho, português, a cujo ouvido mal toava a construção brasileira, lem- brou-se de censurar a José de Alencar pela forma por que ele usava colocar os pronomes. Ora, se o ilustre escritor e crítico se tivesse limitado a afirmar que a fraseologia do autor de Iracema se afastava, nesse particular, dos bons modos da língua vernácula, nada haveria que lhe opor: ele, porém, não se fi- cou por aí: pretendeu sustentar, de clássicos em punho, que sempre eles obedeceram a uma norma, na maneira como colocavam os pronomes; e en- trou a deduzir regras. Foi o que o perdeu. Alencar defendeu-se galharda- mente. Choveram de todos os lados contestações. A autoridade contrapu- nha-se autoridade, a citação retorquia-se com citação. Castilho quase perde a cabeça [...] Os nossos gramáticos correram açodados a sancionar a doutri- na de Castilho, estabelecendo regras que todas padeciam de fraqueza orgâ- nica, visto como repousavam todas em considerações reportadas à sintaxe e à morfologia, que nada têm que ver com a espécie: atração para o sujeito, afinidade para as subordinativas, solicitação por parte das negativas, e que- jandas relações, que deviam embaraçar muito seriamente [...] os que têm por ofício manipular os acepipes literários.10

A visão científica com que Silva Ramos investigava a linguagem e os fatos da língua portuguesa habilitara-o a tratar com a superioridade que não se en- contrava nos gramáticos da sua época, ainda os mais bem informados, a exis- tência das variedades de uma mesma língua histórica, diversificadas em dife- renças cronológicas, regionais, sociais e estilísticas, em todas as dimensões de concretização dos seus atos de língua. Está claro que se encontram em estu-

10 Id., ibid., pp. 222-224.

214 Silva Ramos: mestre da língua diosos de todas as épocas percucientes intuições dessas variedades, mas não fazem delas emprego operacional e funcional. Considerar uma língua não como um bloco homogêneo e unitário, mas como um diassistema, vale dizer, um complexo conjunto de variedades, é conceito bem moderno na ciência das línguas. Silva Ramos, estilista e funcionalista avant la lettre, tirava partido dessa realidade nos artigos sobre que doutrinava os adultos e nas lições em que instruía os alunos. Como as grandes figuras, estava a par das doutrinas em que se havia educa- do, mas não deixava de procurar aperfeiçoar conceitos e métodos. Assim é que a lingüística antes do seu tempo se caracterizara pelas raízes do método evolu- cionista e naturalista, segundo cujos preceitos as línguas eram emparelhadas aos organismos vivos, sob a égide das ciências naturais, que nasciam, cresciam, se desenvolviam e morriam independentes da vontade dos homens. Recebeu também Silva Ramos as luzes do método histórico-comparativo alemão e a ele acrescentou o ideário sociocultural da escola do americano Whitney. E mais avante acrescentou, já no final da vida e da ocupação magis- terial, os ensinamentos incipientes do psicologismo francês de Ferdinando Brunot, em La Pensée et la Langue, saído em 1922. Registrem-se diferenças de visão da linguagem e das línguas nos dois excer- tos seguintes; o primeiro, datado de 1918, tipicamente fiel a um ideário natu- ralista em que a linguagem é uma proprietária biológica do homem. Neste sen- tido, vê como um processo fatalista de evolução as diferenças que se vão crian- do entre o português do Brasil e o português de Portugal, que haverão de favo- recer o surgimento de um dialeto brasileiro independente:

O que particularmente nos poderia interessar a nós brasileiros, como se depreende das consultas endereçadas freqüentemente aos professores de português, era saber se está próxima ou remota a emancipação do dialeto brasileiro, a ponto de se tornar língua independente. A dialetação, como bem sabeis, é um fenômeno natural que a ninguém é dado acelerar ou retardar, por maior autoridade que se arrogue; ao tempo, e

215 Evanildo Bechara

só ao tempo, é que compete produzi-lo. As línguas românicas foram diale- tos do latim, um dos dialetos por sua vez do ramo itálico, dialeto ele pró- prio da língua dos árias; não pode haver, portanto, dúvida mínima, para quem aprendeu na aula de lógica a induzir, que o idioma brasileiro, de diale- to português que ainda é, chegará a ser um dia a língua própria do Brasil. Que poderão, entretanto, fazer os mestres neste momento histórico da vida do português na nossa terra? Ir legitimando pouco a pouco, com a autoridade das nossas gramáticas, as diferenciações que se vão operando entre nós, das quais a mais sensível é a das formas casuais dos pronomes pessoais regidos por verbos de significa- ção transitiva e que nem sempre coincidem lá e cá; além da fatalidade foné- tica que origina necessariamente a deslocação dos pronomes átonos na fra- se, o que tanto horripila o ouvido afeiçoado à modulação de além-mar. Consentiremos que os nossos alunos nos venham dizer que assistiram festas, responderam cartas, obedeceram ordens, perdoaram colegas e que, em compen- sação, assegurem aos mestres que lhes estimam, que se lhes não visitam com freqüência, é que receiam incomodar-lhes e que se lhes não saudaram na rua, foi que lhes não viram? Por mim, falece-me autoridade para sancionar tais regências, nem acredi- to que qualquer dos meus colegas se abalance a tanto. E, contudo, o que ne- nhum de nós teria coragem de fazer, hão de consegui-lo os anos que se vão dobando lentamente.11

Em outro tom é o seguinte comentário, de 1919:

A língua não é um ser independente, não se pode desagregar de todos os outros aspectos da atividade social a que está intimamente ligada, para se considerar em abstrato; é uma resultante necessária da vida coletiva nas suas infinitas modalidades. Se conseguirmos, portanto, assimilar as virtudes das

11 Id., ibid., pp. 178-179.

216 Silva Ramos: mestre da língua

atenienses, ático será o nosso dizer; se persistirmos em importar, à mistura com os hábitos de elegância, os vícios, elegantes ou não, dos bárbaros e civi- lizados, proliferarão os barbarismos [= estrangeirismos], e se levarmos a desídia ao extremo de nos abandonarmos, como os habitantes de Soles, se- gregados da Grécia culta num recanto da Cilícia, não há fugir aos solecis- mos e acabaremos todos por falar como a mucama que tanto me irritou. É fatal.12



Por fim, cabe-nos falar da maior batalha que Silva Ramos travou nesta Casa: a batalha da ortografia, a cuja vitória final chegou muitos anos depois de morto, pelo peso científico dos princípios defendidos nos recuados anos de 1915. Todas as discussões havidas nesta Academia sobre sistematização orto- gráfica, iniciadas com a proposta de Medeiros e Albuquerque aprovada na sessão de 11 de junho de 1907, se caracterizaram por um empirismo e, como conseqüência, por soluções que transgrediam muito do progresso já conse- guido lá fora sobre os fundamentos científicos em que se deveria assentar um tão razoável quanto possível sistema de representação na escrita do plano fô- nico da língua. As primeiras luzes no domínio do português vieram com o aparecimento, em 1904, da Ortografia Nacional, elaborada pelo competente foneticista e ortó- grafo lusitano Gonçalves Viana. Aperfeiçoadas as suas recomendações com a eliminação de alguns exotismos, as propostas de Viana serviram de base para a reforma oficial da ortografia portuguesa de 1911. No Brasil, esta reforma sim- plificadora recebeu o beneplácito de Silva Ramos no seio da Academia, e no magistério pela acolhida de Mário Barreto, Sousa da Silveira, Antenor Nas-

12 Id., ibid., pp. 119-120.

217 Evanildo Bechara centes, Clóvis Monteiro e Jaques Raimundo, para ficarmos apenas com os mais representativos professores do Rio de Janeiro. Aceitando os argumentos técnicos do nosso homenageado, acolhe esta Casa sua proposta de adoção da reforma portuguesa na sessão de 11 de novembro de 1915. Essas núpcias entre as duas Academias duraram pouco, pois, em 1919, resolveram nossos confrades de então abandonar o acordo, pondo por terra tudo o que se havia deliberado sobre a magna questão ortográfica. O re- trocesso muito magoou a Silva Ramos, que resolveu não mais tratar do assun- to com seus pares. O argumento que nesta Casa se levantou contra a proposta incidia numa falsa razão ainda hoje trazida à baila em debates dessa natureza: a lusitanidade da pronúncia respeitada pelo acordo e tão natural ao autor de Pela Vida Fora. Havendo diferenças visíveis na pronúncia de brasileiros e portugueses, era im- possível um sistema gráfico único para as duas nações, justificavam. Ora, falso o argumento, porque o sistema ortográfico não é essencialmente fonético mas fonológico, isto é, só leva em conta as unidades fônicas que têm valor lingüístico distintivo. Vale isto dizer que um vocábulo como menino, dire- tor ou também pode ser proferido diferentemente nas diversas regiões do Brasil e de Portugal, mas só será representado na escrita, cá e lá, de uma única maneira. E aí reside efetivamente a só responsabilidade de um sistema ortográfico. O fato ocorre com toda língua espalhada no vasto território nacional ou entre nações diferentes – como o espanhol, o francês, o inglês, o russo ou o árabe, por exemplo –, mas para esses idiomas existe apenas um modo de se grafar a grande maioria de seus vocábulos. Entre brasileiros e portugueses ainda não se chegou a uma razoável unidade porque se tem insistido em que o sistema ortográfico – argumento nem sem- pre verdadeiro – com a utilização excessiva de notações gráficas (como acen- tos, consoantes mudas e até o hífen) leva o falante a pronunciar “corretamen- te” as palavras dentro da diversidade fonética existente em todo o espaço da lusofonia. Aqui está o calcanhar de Aquiles que tem impedido a tão sonhada unidade gráfica no seio da Academia Brasileira de Letras e da Academia das

218 Silva Ramos: mestre da língua

Ciências de Lisboa: quer-se uma unidade e se ameaça ela com os fatores da di- versidade. A proposta de 1915 de Silva Ramos e dos confrades que a subscreveram, adotando o sistema oficial português, assinalaria o primeiro passo no sentido da pretendida unificação. Posta em prática por largo tempo, viriam fatalmente as emendas para se alcançar a unidade a que tanto aspiramos como um dos fa- tores de difusão da língua portuguesa no mundo. Os argumentos de Silva Ramos contra propostas menos científicas acaba- ram vitoriosos com a aprovação do Formulário Ortográfico de 1943, revisto em pequenas alterações de 1971, que consubstanciava a velha lição de Gonçalves Viana. De todo este percurso intelectual e acadêmico de Silva Ramos como filólo- go abalizado e como mestre da língua exemplar resta-nos, nesta passagem do sesquicentenário de nascimento, assumir o compromisso de levar avante sua obra e suas lições.

219