Ciclo Dos Fundadores Da ABL Alegoria De Rodolfo Amoedo Sobre José Do Patrocínio O Grande José Do Patrocínio
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Ciclo dos Fundadores da ABL Alegoria de Rodolfo Amoedo sobre José do Patrocínio O grande José do Patrocínio João de Scantimburgo ue tenho eu a falar sobre um negro, durante a vigência da Conferência escravidão? Pode-se falar muito ou não falar nada. Pode-se proferida na Q ABL, a 1o de atribuir o poder à palavra, que já derrubou reinos, impérios, já des- abril de 2003, truiu linhagens dinásticas inteiras e já elevou às alturas da glória não abrindo o ciclo poucos de nossos semelhantes. Podem-se invocar as palavras profe- Fundadores da ABL. ridas por um Deus, na sua peregrinação, o Deus que deu testemunho do sofrimento humano, da injustiça que nos rastreia os passos, seja a do sublime da poesia, seja a da blasfêmia dos réprobos, que os há em abundância em todas as raças e todas as latitudes deste mundo, que já não sabemos como encontrar definições diante da agonia da civili- zação, a que os saltos prodigiosos da ciência não poderão dar um li- nimento até a cura. Imagino, neste local, a Academia onde tantas vozes foram ouvi- das, menos, infelizmente, a voz de José do Patrocínio na nossa tribu- na, ele que sofreu calado, sufocando nas suas lágrimas, nos confran- gimentos de seu coração, a desgraça de sua raça, que parece ter sido 115 João de Scantimburgo fadada a viver abaixo do nível da dignidade humana, ainda que seu caráter o te- nha prestigiado. No discurso de ingresso nesta Casa, disse Mário de Alencar, seu sucessor na Cadeira 21, que “não seguiria a regra usada na biografia dos homens notáveis, de procurar nos antecedentes de família e nos atos da infân- cia a razão dos sinais e dos vestígios do destino deles”. A biografia de José do Patrocínio, se não fosse romanceada, com abundân- cia de imaginação, como a de um Victor Hugo ou de um Sthendal, nada teria que oferecesse ao curioso em sua história familiar e individual. Havia trabalha- do numa quitanda do interior e na casa paroquial de uma igreja de província, da qual o vigário era seu pai. Daí decidiu vir para a cidade grande, a vitrine cari- oca de seu tempo, quando o Rio de Janeiro projetava inteligências brilhantes ou desfazia reputações duvidosas. Segundo Mário de Alencar, de quem me valho, Patrocínio deixou Campos, onde vivia a vida pachorrenta das cidades do interior, ainda hoje semelhante, sob muitos aspectos, ao seu tempo, e arranjou um emprego como aprendiz de farmácia na Santa Casa de Misericórdia, para ganhar a ínfima quantia de dois mil réis, a moeda da época. Tinha casa e comida, mas esse dinheiro não lhe vi- nha da instituição, porém dos companheiros aos quais substituía em domin- gos e dias feriados. Era com o trabalho, enquanto os companheiros folgavam, que podia ter abrigo certo e a mesa na qual se alimentava. A essa quantia mise- rável, acrescentaria dezesseis mil réis recebidos de seu pai, vigário de Campos. Tinha portanto uma escora na qual se ampararia enquanto durasse a munifi- cência obrigada pela consciência do vigário de Campos e a ajuda dos compa- nheiros da farmácia da Misericórdia do Rio de Janeiro. Homem sem passado de legenda, desses fulgurantes nomes que enchem as páginas da história, e ou são heróis, ou santos, ou poetas, ou escritores, ou ar- tistas em vária arte, que deixam nome à posteridade, para serem julgados, como o Aleijadinho em Minas Gerais, para citar o nome mais dramático e mais genial de quantos perambulam pelas páginas da nossa história. Para estudar, Patrocínio procurou o Externato Aquino, e lá obteve o que em nossos dias se chama bolsa de estudo. Começou a estudar. Aguilhoado pela 116 O grande José do Patrocínio vocação, queria ser médico. Estava inclinado a ser um desses seres que Deus es- colheu para minorar a desgraça que colhe um ser no curso da vida. Não conse- guiu por uma série de fatores que o impediram de chegar à Faculdade de Me- dicina. Mas, contentou-se com a de Farmácia, graças aos colegas que conquis- tou com sua inteligência, sua lhaneza, e às lições particulares que ministrava nas horas vagas. De seus estudos superiores, formou-se, portanto, em Farmá- cia, vindo a ser colega do grande poeta parnasiano Alberto de Oliveira. Não exerceu a profissão. Não era a sua vocação. Conformou-se, resignado, com a impossibilidade de chegar a médico, e deixou na gaveta o diploma de farma- cêutico, indo para outras atividades, numa das quais seria um dos grandes no- mes do Brasil, o jornalismo. Discreto ou envergonhado, Patrocínio não revelava seu passado, de resto sobre não ter muito o que revelar de dias idos de sua infância e juventude na modesta cidade de Campos, onde passou essa quadra de sua vida. Mas não in- teressa nesta evocação de um dos grandes nomes desta Casa e, mais ainda, um dos grandes nomes do Brasil de sua época, sobretudo na época agitada da pro- paganda abolicionista, na qual seu brilho não foi ofuscado pelo de Rui Barbo- sa, Joaquim Nabuco, pela poesia de Castro Alves, e de quantos tomaram parte na vigorosa campanha pela Abolição, que tardou, mais de vinte anos depois que a Guerra de Secessão americana, com seiscentos mil mortos e feridos, li- bertou na grande nação do Norte os seus escravos, que, de resto, deixou-os abandonados, cada qual escolhendo o caminho que desejasse seguir na vida. O negro José do Patrocínio não precisou esconder nada de seus dias de Campos e dos primeiros tempos no Rio de Janeiro, pois que foram tão límpi- dos quanto sua alma, uma alma clara como um cristal, servido de um caráter cristalino como um brilhante. Sem dúvida, José do Patrocínio teve dias amar- gos e dias alegres em sua vida de menino pobre, jovem sem um horizonte a atraí-lo para atividades que enaltecem a pessoa. Dotado de uma inteligência viva, dessas que captam os acontecimentos, dis- tantes ou próximos, com lucidez, José do Patrocínio não se lançou na poesia, embora tenha poetado, nem na procura de um emprego que desse para o seu sus- 117 João de Scantimburgo tento. Iludindo-se a si próprio, preferiu a via do jornalismo, organizando um ve- ículo, a que deu o nome de Os Ferrões – um panfleto, com o qual esperava desven- dar o que fosse acessível aos leitores de jornais, principalmente no estilo com que procurou se fazer notar numa cidade onde proliferavam os panfletos, os jornais de quatro páginas sobre debates políticos. Lembra Mário de Alencar, com razão, em seu discurso de ingresso nesta Casa, que José do Patrocínio procurou imitar Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, que lançaram em Portugal As Farpas, imita- ção, em terras lusas, como os Ferrões no Brasil, das Les Guêpes, de Alphonse Kar, em Paris. Evidentemente, haveria enormes diferenças entre uma e outra publica- ção, mas, o jovem negro, no seu ímpeto de conquistar um lugar de relevo no meio jornalístico do Rio de Janeiro, fez de seu jornal um baluarte de criticas po- líticas, sociais e econômicas, em suma, o que interessasse ao público. Patrocínio foi mesmo aguerrido, tantas vezes feroz nas suas críticas, mas Os Ferrões não al- cançaram o prestígio com o qual ele sonhara – pois fora um sonho o seu ímpeto de jornalista na linha de Les Guêpes ou de As Farpas – e o jornalzinho, depois de dez números, sem progresso de venda que o sustentasse no Rio de Janeiro e um pouco em São Paulo, acabou suspendendo a tiragem, morrendo de inanição, com decepção amarga do fundador sobre a sua ambição O jornal serviu, porém, para chamar a atenção dos diretores de jornais com tiragem assegurada e freqüente no Rio de Janeiro e assinantes em São Paulo, e Patrocínio foi contratado pela Gazeta de Notícias, um dos grandes órgãos de im- prensa do Rio de Janeiro, no qual pontificava Ferreira de Araújo, até hoje um dos maiores jornalistas do Brasil, especialmente nos comentários editoriais so- bre a política e suas excentricidades, numa cidade frondeuse e politizada como sempre foi o Rio de Janeiro, ao menos até a mudança da capital para Brasília, quando Juscelino Kubitschek quis manter a palavra dada aos assistentes de um comício de sua campanha de candidato à Presidência da República. José do Patrocínio foi, em tudo, um justo. Daí, como vem num salmo, ter florescido como a palmeira, isto é, retamente, entre os seus contemporâneos. Negro, num país que fizera da escravidão a base da força econômica da qual necessitava nas lavouras de café, no ouro e outros produtos, teria que ser alvo 118 O grande José do Patrocínio de preconceito. Foi, sem dúvida, uma das vítimas desse terrível mal que assola as sociedades, mas soube superar os entraves que se lhe opunham, como de- monstrou, com rara tenacidade, na sua vida livre. Mostrou-o optando pela far- mácia, por não ter podido cursar a Medicina. Não se deixou abater quando o seu jornalzinho de gossips políticos não passou de dez números, portanto, de uma tremendo malogro, ele que punha na sua publicação a esperança de que viesse a ocupar no Rio de Janeiro um lugar de honra, portanto, destaque den- tre os órgãos de imprensa que circulavam na antiga capital do país. Patrocínio não era, porém, de desanimar. Reuniu todas as forças com as quais contava, inclusive a que o fez impor-se na sociedade do Rio de Janeiro, e continuou a sua jornada. Homem tranqüilo, consciente de seu destino, não possuía uma psicologia complexa, dessas que levam os mestres, sobretudo o Dr. Freud, a longas meditações sobre a sua composição e seus reflexos no com- portamento humano.