O Drama Público de Sexualidade e política no Brasil finissecular

Novo conceito em pesquisa com acesso gratuito Richard Miskolci www.cis.org.br Fernando de Figueiredo Balieiro O que é o Consórcio de Informações Sociais? É um sistema de intercâmbio de informações que visa reforçar a infra-estrutura de pesquisa dos cien- tistas sociais. Ele resultou de um convênio entre a ANPOCS e o NADD/USP, apoiado pela Fundação Ford e coordenado pelo prof. Brasilio Sallum Jr.

Qual o objetivo principal do CIS? O CIS é um site de pesquisa para os cientistas sociais, possibilitando o acesso a bancos de dados sobre diferentes aspectos da sociedade brasileira. Os bancos de dados do acervo podem auxiliar no ensino de métodos e técnicas de pesquisa e servir como fonte de informação para a elaboração de artigos, relatórios, dissertações de mestrado e teses de doutorado.

O que o site disponibiliza para pesquisa? No site do Consórcio você terá acesso gratuito, por assunto, aos bancos de dados já incluídos em nosso acervo e a mais de 300 links para bancos de dados ou tabelas on line disponibilizados por ins- tituições brasileiras e internacionais. À Notícia e ao Brasil declaro que Questionando os julgamentos ou as conjectu- sou um homem de honra. ras sobre o “caráter” de Pompeia, é possível recons- Como posso obter dados das pesquisas incluídas no acervo do CIS? raul pompeia – 25-12-1895 tituir historicamente e analisar de forma sociológica Os bancos de dados do acervo do CIS são transferidos gratuitamente para os pesquisadores interes- o que sua tragédia oculta sobre os valores, os ideais sados. O usuário terá a sua própria senha de acesso, bastando apenas um cadastro com alguns dados Salta aos olhos este bilhete deixado pelo jovem e os fantasmas da sociedade brasileira de então. Seu pessoais. As informações fornecidas pelo usuário serão utilizadas internamente pelo CIS, sem qual- e talentoso intelectual no natal de 1895, quando lacônico bilhete suicida revela o caráter público de quer divulgação para terceiros. se matou com um tiro no coração, surpreendendo seu drama pessoal. Nele, tem como interlocutor seus contemporâneos e entrando para a história de não alguém próximo, um familiar ou amigo, mas a Como faço para disponibilizar um banco de dados no acervo do CIS? forma trágica. Nacionalista sintonizado com a ver- esfera pública unificada na referência a um jornal e tente jacobina da Primeira República, envolveu-se à nação brasileira. Exposto ao escrutínio de todos, Se você quiser participar do Consórcio de Informações Sociais disponibilizando um banco de dados, em contenda política com outros intelectuais entre envergonhado, demanda, com seu derradeiro sacri- acesse o nosso site e siga as instruções. 1892 e 1895 e, impossibilitado de se defender à al- fício, o reconhecimento social de sua honra. Basta preencher o formulário de doação no site e enviar os arquivos para o e-mail: tura dos ataques dos adversários, sucumbiu ao de- Segundo J. Pitt-Rivers (apud Rohden, 2006) [email protected] sespero. O suicídio de Raul Pompeia (1863-1895) é possível compreender a honra como o valor que terminou por corroborar as especulações sobre seu uma pessoa tem a seus olhos e aos olhos de seus Em caso de dúvidas, entre em contato conosco por e-mail: suposto caráter doentio e “esquisito”, julgamento contemporâneos por meio da confirmação de de- 1 [email protected] ou por telefone (11) 3091-1110 que marca suas narrativas biográficas e as críticas de terminadas formas de conduta. Ou seja, a honra suas obras há mais de um século. liga os ideais coletivos à sua reprodução nos com- Artigo recebido em maio/2010 portamentos individuais. A vergonha, por sua vez, Visite o nosso site, participe da expansão deste Aprovado em novembro/2010 revela-se na preocupação com a reputação, o que sistema e contribua divulgando este serviço. RBCS Vol. 26 n° 75 fevereiro/2011

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faz a pessoa sensível à pressão exercida pela opinião como parte da “imoralidade” presente na decaden- pública. Honra e vergonha não são opostas, pois a te ordem imperial. Movido por intenções de crí- falta de vergonha é que equivale à desonra. Assim, tica política, o autor acabou retratando uma nova são dois lados da mesma regra de valorização social forma de compreensão da masculinidade e das re- que define os ideais de uma sociedade, consolidan- lações afetivo-sexuais que se impunha aos homens do sua unidade. brancos da elite nacional. Além de indissociáveis, honra e vergonha variam Sua obra-prima estampava a primeira página histórica e culturalmente. Raul Pompeia, enredado do distinto jornal carioca Gazeta de Notícias, no em um rígido sistema de valores morais, buscou re- ano emblemático de 1888, apresentando as memó- cuperar a honra perdida em um drama pessoal que rias de Sérgio sobre seu tempo de aluno, naquele demonstra como – a despeito de seus idealizadores que descreve como o internato da “fina flor da mo- na teoria social – a esfera pública é um espaço de cidade brasileira”, instituição dirigida por Aristarco reforço de normas baseado na publicização do priva- Argolo de Ramos, fictício pedagogo de importan- do.2 O caráter dramático da tragédia individual nu- tes contribuições à educação nacional. O romance bla suas causas coletivas, em particular a ruptura nor- apresenta as experiências e os sentimentos do pro- mativa que se faz ao trazer a público certas suspeitas tagonista-narrador em meio à disciplina opressiva sobre a vida privada de alguém. A suspeita, nascida do diretor e seus bedéis. Contexto em que ganham do rumor e da fofoca, torna-se ameaça e – nos casos centralidade as relações afetivas entre os estudantes, mais graves – motivo de horror coletivo. No caso de apresentadas como o polo vexaminoso do qual to- Pompeia ou, para fugirmos a qualquer personalismo dos deveriam se afastar. Também expõe de forma enganador, no caso de seu drama público, a polê- contundente as violências em que se apoiava esta mica em que se envolveu tinha motivação política, pedagogia do sexo voltada à formação dos homens mas – algo que pretendemos esclarecer – se desen- das classes dominantes. volveu na gramática da sexualidade e do gênero. Narrativa densa sobre (homos)sexualidade, ela Roberto Ventura (1991) sublinha o fato curio- se insinua como um fantasma em torno do qual so de que, no Brasil de fins do século XIX, domi- giram as preocupações do diretor, a organização nava um clima acirrado de desafio e disputa políti- do internato e o verdadeiro aprendizado a que são ca no meio intelectual. Estas polêmicas traduziam submetidos os estudantes. Araripe Jr. (1978), pri- disputas simbólicas do período sobre um ideal de meiro crítico do romance, o compreendeu – em nação que se criava junto com a consolidação do tom darwinista – como um livro de resistência ao regime republicano. Um fato crucial, mas pouco meio em que Sérgio seria um resistente ao horror explorado, é que tais polêmicas se davam entre ho- da “sequestração sexual” do internato, não sem sur- mens de elite. A associação entre nação e masculi- preender o leitor com suas “mórbidas” sensações nidade vinculava-se à preocupação com o caráter íntimas, leia-se, suas menções indiretas às intera- modelar destes homens, de sua suposta missão vi- ções homoeróticas que vivera ali. Mário de Andra- ril de representar e encarnar os ideais políticos que de (1974) sublinhou o conteúdo autobiográfico do se confundiam com rígidos valores morais. Neste livro, interpretando o romance como uma obra de sistema de valores normativos, a adesão aos ideais vingança contra o ambiente educacional marcado era premiada no mesmo grau em que era temida e por uma pedagogia vivenciada pelo próprio autor. perseguida qualquer suspeita de dissidência. Perce- Dentre as análises contemporâneas, a de Alfre- be-se, assim, o enquadramento em que se inseriu do Bosi (1988) ressalta como a caracterização do Pompeia tanto em seu engajamento político quan- “meio”, discutida pelos outros críticos, toma uma to em sua criação artística. forma de interpretação histórica, sendo a violên- Raul Pompeia trouxe ao discurso literário re- cia vivida no internato, apesar de não se resumir lações “escabrosas”, na qualificação utilizada pelo a isto, representativa do Segundo Império. Mais jornal em que publicou seu romance O Ateneu recentemente, Silviano Santiago sublinhou a com- (1888), no qual descreve relações entre meninos plexidade do enredo de O Ateneu, apontando as in-

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suficiências de uma interpretação unilateral: “cada dos símbolos da monarquia – convida o leitor ao análise do romance permitia uma outra interpre- riso, sem deixar de revelar também o aspecto tene- tação, oposta ou lateral, igualmente válida e justa. broso que marca a vivência dos alunos. A atmosfera Todos os críticos iam tendo razão, sem a ter inteira- do colégio é de medo e tensão, assombrada pelo es- mente” (Santiago, 2000, p. 67). Para ele, adentrar pectro das sexualidades divergentes à norma social integralmente na obra só é possível a partir das con- que ganham – pouco a pouco – centralidade nas tradições inerentes a ela. páginas do romance. A leitura de O Ateneu, para além de sua apre- As relações entre os garotos corroboravam as ciação estética, pode ser feita de forma sociológica se valorações morais do período de Pompeia, no qual encararmos o romance como um “arquivo histórico” se vivia uma ordem política e social em decadência que revela aspectos importantes das mudanças cultu- em que as experiências subjetivas refletiam a ordem rais e políticas pelas quais passava a sociedade brasi- política corrupta. Não obstante, O Ateneu carrega leira de fins do século XIX.3 A narrativa de Pompeia também marcas de uma “nova” sociedade que se for- capta tensões e ambiguidades sociais que percorrem mava no contexto em que era publicado. Seu desfe- desde a vida dentro de um internato de elite até as cho aponta para a superação desta ordem degenerada relações mais amplas da esfera política nacional. Sua do Segundo Império: o incêndio do internato por importância é mais bem compreendida quando con- Américo. O colégio, que simbolizaria o velho, seria sideramos o período de publicação do romance, no destruído pelo novo, representado pelo aluno recém- ponto de viragem entre o Segundo Império e a pro- -chegado cujo nome evoca a república como destino clamação da República. americano. O incêndio – evocando a imagem bíblica O Ateneu era publicado diariamente, mas foi de Sodoma e Gomorra – aparece como uma catarse, interrompido a partir do dia 14 de maio de 1888, a superação da corrupta e “perversa” vivência no in- para voltar quatro dias depois com o capítulo final ternato (e na monarquia) por meio de uma “purifi- em que o internato se dissipa em chamas. Durante cação” republicana. a interrupção da narrativa, a Gazeta aparece tomada É possível acessar, por meio de O Ateneu, uma pela notícia da abolição da escravatura. No dia 18, pedagogia da sexualidade que se desenvolvia e se quando o romance volta às folhas do jornal, apre- articulava às mudanças políticas, em particular uma senta-se o episódio em que Américo, um furioso nova forma de compreensão da nação brasileira, aluno recém-matriculado, incendeia a instituição suas ameaças e desafios. Dentre eles, destacava-se prestigiada em solenidades pela princesa regente e o temor da degeneração, o qual rondava com o es- outros representantes do Império. O nome do in- pectro da recém-“descoberta” homossexualidade, as cendiário é revelador. Leila Perrone-Moisés (1988) relações entre os homens brancos de elite na socie- aponta o simbolismo da morte de Franco e a revan- dade brasileira do fin-de-siècle. che de Américo construídas a partir da oposição – Em termos foucaultianos, este período foi mar- corrente na época – entre Europa e Monarquia e cado pela emergência, em solo brasileiro, do dis- América e República. positivo histórico da sexualidade, o qual caracteriza O fogo que atravessa o educandário coincide as sociedades ocidentais modernas desde o século com a culminação dos ânimos exaltados pela no- XVII, mas no final do século XIX se baseava na in- tícia dos dias anteriores. O passado imperial e es- serção do sexo em sistemas de utilidade e regulação cravocrata, com toda sua imponência, reduz-se a social. O dispositivo tinha então várias frentes es- cinzas, imbricando a criação literária com a traje- tratégicas,4 entre as quais a que mais interessa aqui tória abolicionista e republicana de Raul Pompeia. é a crescente pedagogização do sexo da criança por Seu engajamento molda o romance, compondo a causa dos perigos morais e físicos a que suposta- caracterização, por vezes burlesca, outrora pessimis- mente estariam expostas, o que afetaria diretamente ta, de um ambiente decadente e corrupto. Assim, a coletividade. constrói suas personagens da velha ordem social de No que concerne à padronização e ao agen- forma que o poder exercido no internato – rodeado ciamento do desejo, ganharam relevância as trans-

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formações nas relações sociais entre homens, espe- xualidade. É toda esta ordem social que mostra cialmente homens brancos letrados, vistos como como no par heterossexualidade/homossexuali- depositários das esperanças da nação. Jurandir Frei- dade não há simetria, pois ele engloba díades re Costa (2004) observa que era patente a preocu- como norma/desvio, regra/exceção, centro/ pação com os então chamados “homossexualismo margem (Miskolci e Pelúcio, 2008, p. 7). de escola” e “homossexualismo de quartel”.5 De forma que obras literárias como O Ateneu (1888), Possivelmente fugindo às intenções do autor, Bom-Crioulo (1895) e até mesmo Dom Casmurro O Ateneu insere-se e retrata a formação de nos- (1900) se revelam fontes preciosas para a análise e a sa particular ordem heteronormativa, fundada na compreensão dos temores e reações que a nascente interdependência entre os polos hetero/homo. O ordem republicana buscou enfrentar.6 primeiro polo, representativo do que se considerou Sexualidade e política associam-se neste período natural, estendeu-se à esfera pública e foi tratado em que a sociedade brasileira discutia a viabilidade como sinônimo de saudável, enquanto o segundo de uma nação formada por um povo negro e mes- foi relegado à esfera privada e visto como degene- tiço. Unia-se ao amplo e conhecido debate sobre a ração. A constituição simultânea – e interdepen- miscigenação e o “branqueamento”, um processo dente – deste binário sexual fundamenta também menos visível de naturalização de certas relações em a criação de um ideal de nacionalidade viril que detrimento de outras, de forma que a história brasi- marcaria a incipiente esfera pública no que toca aos leira de então se insere – de modo particular e pouco debates políticos sobre a nação brasileira. explorado – na “naturalização” da heterossexualidade A seguir, empreenderemos uma análise que por meio do estabelecimento da homossexualidade busca explorar a maneira pela qual a sexualidade se como o princípio da diferença sexual e social, o que, constituiu como um sistema de diferenças7 no Brasil no século XX, levaria a uma nova forma de com- finissecular alicerçado tanto em um nível macro, das preensão da sexualidade baseada na individualização instituições políticas, como em um nível micro, na do desejo e na atribuição, a cada indivíduo, de uma constituição das subjetividades e dos desejos. Bus- orientação e uma identidade sexual. camos, assim, contribuir para superar uma divisão Segundo David M. Halperin, a “invenção” da entre história privada e pública, mostrando como homossexualidade, no terço final do XIX, revelou- a constituição social das subjetividades é parte in- -se fundamental na articulação da diferença, na tegrante e fundamental da história social e política. produção social do desejo e na própria compreen- Partiremos da análise de como a emergência do são da subjetividade. Aos poucos, a homo e a hete- binário interdependente da hetero/homossexuali- rossexualidade passaram a ser vistas como formas dade marcou a inteligibilidade das relações políti- mutuamente exclusivas da subjetividade, conso- cas no contexto brasileiro de fins do século XIX, lidando uma das características centrais do dispo- por meio das imbricações entre homossexualidade sitivo de sexualidade contemporâneo, qual seja, a e o temor de degeneração nacional em O Ateneu. forma como ele institui e mantém o binário hetero- A partir disso, pretendemos esclarecer as relações -homo (2000, pp. 112-113) no que hoje sintetiza- pouco exploradas entre a crítica de Pompeia à disci- mos no termo heteronormatividade. Desenvolvido plina opressiva nos colégios de elite e sua trajetória pela Teoria Queer, política marcada pela tragédia.

[...] o conceito de heteronormatividade sinteti- za o conjunto de normas prescritas, mesmo que “Há mulheres no Ateneu!”: o espectro da não explicitadas, que marcam toda a ordem so- degeneração sexual na elite brasileira cial e não apenas no que concerne à escolha de parceiro amoroso; alude, também, ao conjunto O diagnóstico de degeneração nacional emer- de instituições, estruturas de compreensão e giu na crise do Segundo Império, contrastando orientação prática que se apoiam na heterosse- com as expectativas de progresso encarnadas no

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projeto republicano já em gestação após a déca- corpora princípios deterministas do darwinismo da de 1870.8 A obra literária de Raul Pompeia é social9 muito difundidos em seu tempo pela lite- criada neste período, marcada por um contexto de ratura naturalista. A incorporação deste referencial declínio da ordem imperial e suas bases escravistas sustentava-se em uma crítica ao status quo monár- em meio à formação de centros urbanos com po- quico, responsabilizando-o pelo cenário pessimista pulações relativamente independentes dos setores que se diagnosticava no contexto nacional. senhoriais (Costa, 1999). Na palestra de Dr. Claudio, a análise dos des- Segundo Dain Borges (2005), a produção literá- caminhos da nação desloca-se da perspectiva he- ria brasileira e nosso nascente pensamento social de gemônica marcada pelo determinismo racial ou fins dos oitocentos são marcados por um diagnóstico climático para uma crítica moral do Império (cf. social de degeneração que expressava temores de de- O Ateneu, p. 45). Silviano Santiago (2000) salien- cadência moral, política e “racial”. A degeneração era ta que Dr. Claudio escapa às descrições pessimistas uma noção controversa, imprecisa e difundida in- que o narrador faz das demais personagens,10 pois ternacionalmente nos diversos campos do saber: ora seus discursos expressam muito da visão de Pom- se referia ao meio social como um todo, ora servia peia sobre a Monarquia. No entanto, esta crítica re- para identificar indivíduos que ameaçariam a ordem publicana manifesta-se sobretudo por outros meios, estabelecida. O debate sobre a miscigenação e o es- em especial a forma como a experiência pedagógica pectro da sexualidade fora da norma relacionavam-se no internato é vivida com terror, assim como o au- com estes respectivos “significados” da degenerescên- tor vincula a caricatura despótica de Aristarco com cia. De forma esquemática, enquanto a miscigena- símbolos do regime. Sua figura poderosa é cons- ção evocava as preocupações com o futuro de nosso tantemente desacreditada em passagens que o asso- povo, em especial as classes populares, a homossexu- ciam comicamente às instituições imperiais, como alidade constituía-se como espectro dentro da elite. na solenidade da distribuição bienal dos prêmios Em 1882, o ainda estudante da Faculdade de escolares, na qual ganha um busto coroado. Direito de São Paulo publica a novela Jóias da co- A caracterização satírica e despótica do dire- roa na qual o diagnóstico de degeneração é o fio tor acompanha a composição de um ambiente de condutor. O enredo constitui uma paródia do inu- terror no colégio onde, em vez dos castigos físicos, sitado roubo de jóias na corte que tomou as pági- infligia um controle exaustivo que marcava com o nas da imprensa. As personagens e os lugares são medo a vivência dos alunos. O temor insinuava-se construídos de forma a garantir aos leitores uma não apenas pela tirania de Aristarco, mas por sua fácil identificação com o acontecimento real. No capacidade de imbuir nos meninos o horror ao es- desenrolar do enredo, o escandaloso caso que vai pectro da perversão que os ameaçaria. O “meio” es- parar na polícia é abafado, pois surgem indícios de colar é entendido por Sérgio como um “ouriço in- que o provável ladrão possui vínculos com Duque vertido”, no qual se torna uma tarefa árdua escapar de Bragantina – personagem inspirada em Pedro II. da “explosão divergente dos dardos”, simbolizando Além de corrupto, o Duque é descrito como asque- as influências perniciosas do ambiente. roso em seu comportamento adúltero. Nas páginas Destacam-se as “paixões, fraquezas e vergo- finais, a personagem é impedida por sua esposa de nhas” (O Ateneu, p.59) que se materializam nas in- travar relações sexuais com uma moça que – sem terações afetivo-sexuais entre os alunos do interna- saber – na verdade, era sua filha bastarda. to. Relações entendidas sob a lente da “perversão” O Ateneu também é repleto de noções presen- ou “imoralidade” pela direção da escola e mesmo tes no pensamento social e literário de seu período. pelos meninos. Enquanto em Jóias da coroa a cons- Descrições sobre a perversão, a corrupção e a imo- trução da degeneração se associa a uma sexualidade ralidade são recorrentes na narrativa e, à primeira incestuosa vinculada ao imperador, em O Ateneu vista, correspondem estritamente às relações que se ela se apresenta nas manifestações de afetividade estabelecem dentro do microcosmo do internato. entre meninos. Em todo o romance, apenas um O repertório linguístico explorado pelo autor in- caso amoroso chega ao conhecimento de Aristar-

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co. O diretor ameaça punir os envolvidos, mas, em mencioná-la diretamente. Até seus defensores pre- descrição evidentemente irônica do narrador, acaba feriam chamá-la de “o amor que não ousa dizer seu absolvendo os “réus da moralidade” para salvaguar- nome”, de forma que seu interdito os levava a vi- dar as finanças da instituição. venciarem apenas na vida privada e de forma ocul- A sexualidade expressa o contexto imperial ta, portanto no reino do segredo que – no século “perverso” em O Ateneu, um contexto no qual a po- XX – passaríamos a denominar “armário”.13 laridade normal/patológico, amparada pelas ciên­ O interdito à homossexualidade estrutura o cias biológicas, vem substituir um regime de ver- romance por meio da regulação subjetiva dos meni- dade antes assentado na religião, constituindo uma nos. Aristarco, desde o dia da matrícula de Sérgio, nova inteligibilidade.11 As ciências médicas, que se sinaliza sua principal preocupação com os internos: tornavam hegemônicas na leitura e intervenção na a “imoralidade”. Palavra pronunciada com “ento- esfera social, criavam novas categorias “perversas” nação especial, comprimida e terrível, que nunca que serviam de limite para o que era considerado mais esquece quem a ouviu dos seus lábios” (O Ate- normal. Identidades, corpos, subjetividades e até neu, p. 9), ela passaria a dominar os pensamentos mesmo instituições passavam a ser categorizadas e de Sérgio: “Zumbia-me aos ouvidos a palavra ater- controladas a partir desta díade interdependente. rada de Aristarco [...]” (Idem, p. 13). No entanto, o A invenção da identidade homossexual foi as- terror que ela evocava demora a se tornar explícito pecto fundamental neste processo. Como categoria em um processo em que o inominável se tornava psiquiátrica, ela se tornou um dos principais sím- ainda mais aterrador em seu potencial de abjeção. bolos do patológico e o limite constitutivo do nor- A ameaça da “imoralidade” contra a qual o mal. A partir de sua criação, é possível dizer que o pedagogo dirigia rigorosamente seu internato es- binário normal/patológico desdobra-se em hetero/ truturava seu sistema de vigilância exaustivo. Este homo dentro de um esquema de interdependência controle constitui o núcleo do que Foucault (2007) que garante inteligibilidade (ou seja, aceitação ou denominou pedagogia do sexo, a qual visaria evitar rechaço) social. Tal esquema fundamenta-se em pa- os pretensos perigos degenerativos da sexualidade ralelo com outros binarismos como puro/impuro, infantil. Em O Ateneu, esta nova pedagogia baseada moral/imoral, limpo/sujo, progresso/decadência. no medo revela o aprendizado da recusa do desejo A saturação de sexo no internato não só apre- que passara a ser associado ao reino do patológico. senta as formas de regulação da sexualidade no De forma mais clara, o aprendizado inovador coor- período, como também corrobora as representa- denado por Aristarco buscava inculcar, como imo- ções correntes sobre a monarquia em decadência.12 ral e abjeta, o que a sexologia do período começava Nesta linha, a categoria sexualidade funciona não a chamar de homossexualidade. apenas como criadora de identidades sociais, mas Segundo Halperin (2002), o controle das rela- como categoria de conhecimento que se dirige tam- ções amorosas ou sexuais entre homens se intensi- bém a instituições políticas. Daí afirmarmos que ficava por meio de sua recente associação simbólica está presente em O Ateneu a “homossexualização” com a ideia de inversão de gênero.14 No Ociden- do Segundo Império, relacionando “imoralidade” e te como um todo, e de forma particular em nosso instituições monárquicas. país, a “invenção” contemporânea da homossexu- O espectro da homossexualidade masculina alidade como algo repugnante e ameaçador, em que rondava a elite branca no Brasil tinha parale- suma, como abjeta, dependeu de sua identificação lo em outras partes do Ocidente. Na Inglaterra e forçada com uma masculinidade “corrompida” pelo na Alemanha, por exemplo, ela passara a ser cri- efeminamento, a qual encarnaria a imoralidade a minalizada e patologizada, reforçando as relações que se refere Aristarco, a temida “perversão” sexual.15 entre direito e medicina no que toca ao controle Compreende-se por que, em O Ateneu, feminizar e e à delimitação da sexualidade. Seu caráter não era perverter são sinônimos. apenas indesejável, antes fonte de verdadeiro hor- Logo no início da entrada de Sérgio no inter- ror e repulsa perceptível na forma como se evitava nato, ele recebe os conselhos de seu experiente cole-

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ga Rebelo: “Os gênios fazem aqui dois sexos, como exaustivo dos alunos; forma-se uma “pirâmide hie- se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, in- rárquica” começando pelo diretor e passando pelos gênuos, sem sangue, são brandamente impelidos professores, bedéis e alunos vigilantes que cons- para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, tituem uma vigilância quase completa. É visível pervertidos como meninas ao desamparo”. A partir como nos envolvimentos amorosos de Sérgio com de então, o colega mais experiente cita aqueles que alguns de seus colegas faz-se necessário fugir dos compartilham “vícios” e “perversões” e, entre eles, mecanismos disciplinares. Durante seu primeiro repara em um: “‘Esse que passou por nós, olhando envolvimento avalia: “Sanches, como os mal-inten- muito, é o Candido, com aqueles modos de mu- cionados, fugia dos lugares concorridos. Gostava lher, aquele arzinho de quem saiu da cama, com de vaguear comigo, à noite, antes da ceia, cruzando preguiça nos olhos... Este sujeito... Há de ser seu cem vezes o pátio de pouca luz, cingindo-me ner- conhecido’”. Ressalta, enfim: “‘Olhe; um conselho; vosamente, estreitamente até levantar-me do chão” faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos per- (Idem, p. 22). dem-se’” (Idem, p. 14). A vigilância escolar revela-se meio importante Candido ganha destaque com o desenrolar do para a consolidação da heteronormatividade não enredo, quando Aristarco descobre uma carta re- apenas por meio da interdição das relações entre veladora de seu romance com o colega Emílio, em os meninos, antes pelo estabelecimento do binário que assinava Candida. O diretor convoca os estu- hetero/homo, de forma a tornar o primeiro natu- dantes e expõe publicamente o caso “imoral”: “Te- ral e respeitável por meio da construção do que nho a alma triste senhores! A imoralidade entrou supostamente o ameaçaria como algo repugnante nesta casa! Recusei-me a dar crédito, rendi-me à e impuro. Assim, a homossexualidade, pelos meios evidência... Ah! Mas nada me escapa... tenho cem os mais diversos, não seria (nem poderia) ser real- olhos. Se são capazes, iludam-me! Está em meu po- mente eliminada, antes relegada às sombras e ao der um nome de mulher! Há mulheres no Ateneu, segredo constituindo os limites negativos da deseja- meus senhores!” (Idem, p. 65, grifo nosso). da heterossexualidade, a qual adquiria visibilidade, No horário do almoço do dia seguinte, Aristar- respeito e, por isso mesmo, era incentivada e ensi- co, seguido de professores, bedéis e criados curiosos, nada de forma a mascarar seu caráter compulsório. começa a empreender o processo de investigação do Além disso, o aprendizado da heterossexualidade “caso Cândido”. Chama os envolvidos: “‘Levante- confundia-se com um adestramento de gênero em -se, Sr. Cândido Lima... Apresento-lhes, meus se- que o “homem de verdade” deveria não apenas se nhores, a Sra. D. Cândida’, acrescentou com uma relacionar com mulheres, mas, antes de tudo, estar ironia desanimada... ‘Levante-se, Sr. Emílio Touri- no topo de uma hierarquia de poder, ser domina- nho... Este é o cúmplice, meus senhores!’”. E em dor, viril, em suma, sinônimos da época que consti- seguida, chamou os “auxiliares”: “‘Estes são os acó- tuíam a masculinidade em si mesma. litos da vergonha, os co-réus do silêncio!’”(Idem, As duas primeiras relações de Sérgio com ou- p. 67). A atenção é focada no aluno Cândido. O tros garotos tinham em comum o fato de serem próprio Emílio só é citado esta única vez e descri- relações de proteção marcadas por uma hierarquia to como cúmplice. Mesmo tendo em conta que a entre os envolvidos. Sanches era vigilante e conta- relação homoerótica em si era “imoral” e digna de va com sabre de pau. Sérgio, protegido, sentia-se punição, a figura feminizada de Cândido era enten- como parte do “sexo artificial da fraqueza” sobre o dida como mais vexaminosa, corroborando as teses qual alertara Rebelo. A relação entre os dois se es- de inversão aceitas no período. Em outras passagens vazia após a tentativa de aproximação de Sanches, a figura feminina nos meninos era apresentada pelo que é descrita com repulsa (Idem, p. 22). A segun- narrador como “erro de conformação”, “corruptas” da relação se dá com Bento Alves, um estudante ou “decaídas”. valente que detivera um assassino no internato. A Visando combater a homossexualidade, a or- relação entre os dois era marcada pela proteção de ganização do internato ambiciona um controle Bento: “no recreio não andávamos juntos; mas eu

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via de longe o amigo, atento, seguindo-me o seu sua amizade como “uma situação prolongada de ve- olhar como um cão de guarda”; “soube depois que xame”, como um “sacrifício” até a relação terminar ameaçava torcer o pescoço a quem pensasse apenas de forma violenta, em um ataque violento de Ben- em me ofender; seu irmão adotivo!” (Idem, p. 44). to contra Sérgio, aquele por quem nutria desejo e, A díade masculino e feminino molda estas relações após o caso Cândida, encarnava a temida abjeção de proteção como corrobora a confissão de Sérgio (Pompeia, O Ateneu, p. 66). sobre seus sentimentos por Bento: “estimei-o femi- Percebe-se, literalmente em ação, o resulta- ninamente, porque era grande, forte, bravo; porque do da pedagogia do sexo a que eram submetidos podia me valer; porque me respeitava, quase tími- os meninos de nossa elite. A relação entre eles não do, como se não tivesse ânimo de ser amigo” (Idem, apenas cessa, mas é recusada com nojo e violência, ibidem). deixando entrever a formação subjetiva de Bento. Estas relações entre meninos marcadas por Judith Butler elucida: “o sujeito é constituído atra- uma hierarquia de gênero (masculino/feminino) vés da força da exclusão e da abjeção, uma força eram comuns na época entre adultos e constituíam que produz um exterior constitutivo relativamen- a díade formada por homens viris, chamados de te ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, fanchonos, com os “frescos”, uma identidade social ‘dentro’ do sujeito, como seu próprio e fundante que vinculava padrões de gênero com comporta- repúdio” (1999, p. 156). É este o cerne “abjeto” mento sexual. James N. Green descreve os que en- constituído em Sérgio que emerge diante dos olhos carnavam esta figura como aqueles que “passariam de seu antigo protetor, Bento Alves, de forma que a usar roupas e estilos que serviam de indicativos seu repúdio do “efeminamento” que vê no outro de suas predileções sexuais e projetavam imagens (Sérgio) marca também sua adesão à masculinidade efeminadas a fim de veicular sua disponibilida- hegemônica. de para interações sexuais com outros homens” Após esse episódio central em sua “formação”, (2000, p. 106). Na época, a figura do “fresco” era Sérgio inicia uma terceira relação marcante em sua recorrente em charges de jornal ou mesmo em vida de estudante. Egbert é o aluno com quem Sér- teses médicas, enquanto, curiosamente, há uma gio passaria a se envolver profundamente em uma quase ausência de documentos sobre os fanchonos: relação distinta das anteriores por ser marcada pela “A aparente masculinidade dos fanchonos os pro- mutualidade. Entre eles, não havia um protetor e tegia das prisões e dos médicos, advogados e outros um protegido. As ideias da igualdade e da recipro- voyeurs responsáveis pela maior parte da documen- cidade definem a relação entre os amigos O( Ate- tação escrita sobre homoerotismo na belle époque neu, p. 70). brasileira” (Idem, p. 71). A relação entre Sérgio e Egbert dava-se nos li- O Ateneu permite acessar como certas relações mites da amizade apaixonada.17 Por que tal proxi- entre jovens se desenrolavam e as categorizações midade não causou estranheza entre os colegas? Por sociais acionadas para as compreender. Um pon- que não virou chacota dos outros alunos? Por que to alto da narrativa é quando se explicita a aver- não tinham que variar de atitude diante de bedéis, são dirigida a elas. Trata-se do momento em que tampouco se preocuparem com o aparato discipli- a relação entre Sérgio e Bento Alves é abalada pelo nar do colégio, buscando lugares escondidos? Se a caso Cândido, e depois, se transforma considera- organização disciplinar do colégio visava combater velmente. Vemos em formação, o que foi chamado a “imoralidade” que se manifestava nas relações en- por Sedgwick de homofobia,16 a recusa subjetiva do tre garotos, por que tal relação não foi incluída no desejo homoerótico que marcou as relações entre rol de preocupações de Aristarco? Sérgio e Bento Alves – assim como a anterior com Como afirma Sedgwick (1985), o que se con- Sanches – por meio da incorporação do desprezo sidera como sexual é variável de sociedade para so- social perante sua manifestação. A compreensão do ciedade segundo suas relações de poder. Em um erotismo entre homens como o reino do impuro e contexto no qual as relações entre pessoas do mesmo do abjeto leva os que o vivenciam a interpretarem sexo eram inteligíveis a partir da polaridade mascu-

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lino/feminino, a entre Sérgio e Egbert não era com- “tornar-se homem e não se perverter”, o qual era preendida enquanto provida de erotismo. Isto indica concretizado nas afirmações de virilidade entre os que, no final do século XIX, a relação entre homens alunos que buscavam afastar o espectro do efemina- era vista como sexualmente perigosa quando “desi- mento, aproximando-se de uma masculinidade he- gual”, pois apenas na desigualdade entre os gêneros gemônica, ou seja, daquela socialmente valorizada residiria o erotismo. Enfim, o que se temia não eram e que subordina outras formas de masculinidade.18 as relações em si, antes o modelo em que elas se da- Nesse sentido, a educação no internato revela-se a vam no que toca ao poder. Relações de proteção re- construção da virilidade por meio de um mimetis- legavam um dos homens à inferioridade associada ao mo de violências que, em nossa sociedade, segun- feminino e, por isso, eram perseguidas. do Daniel Welzer-Lang, se inicia subjetivamente e, Em fins do XIX, em todo o Ocidente, há re- progressivamente, se dirige a outros homens (2001, gistro de que as amizades masculinas passaram a ser p. 463).19 progressivamente fiscalizadas. Foucault afirma que a Retrato revelador desse aprendizado, o roman- decadência histórica da amizade masculina está liga- ce fornece elementos para compreender o tom vio- da à emergência da problemática homossexual, ao lento das polêmicas da época, assim como elucida surgimento da questão “o que dois homens fazem as regras dentro das quais estas disputas se desen- quando estão juntos?” (2004, pp. 272-273). A sus- rolavam. Em um sistema de valores em que honra peita de que pudessem fazer sexo ou, pior, se apaixo- era indissociável de virilidade, ou seja, dos padrões narem, se instalara no seio das relações entre homens de gênero e sexualidade vigentes, a disputa política e passara a definir seus limites por meio do espectro mesclava-se à contenda elitista sobre conformação e da homossexualidade, cuja recusa subjetiva passaria representatividade em relação aos ideais normativos a ser o fundamento da heteronormatividade. que definiriam a nação brasileira. A conjunção entre masculinidade feminiza- da e homossexualidade verificou-se muito mais abrangente do que um meio regulador das relações Em defesa da honra: o suicídio de Pompeia afetivas entre homens. A identificação e o contro- le de um Outro feminizado, pervertido e “imoral” As demandas de virilidade retratadas em O se relacionava diretamente com a construção da Ateneu auxiliam a compreender o drama público identidade masculina hegemônica. O Ateneu é do- que – de forma trágica – marcou os últimos anos cumento importante para a compreensão de como da vida de seu autor. Pompeia adentrou na esfera de a abjeção foi construída pelo fantasma do efemina- polêmicas marcada por ofensas e pela violência em mento de forma que a criação de um Outro abjeto que se tecia o debate intelectual e político da época, permitiu – de forma menos visível – a criação do posicionando-se como defensor público do presi- sujeito hegemônico. dente . O abjeto é algo de si próprio pelo que alguém A criação de um romance em que desenvolve- sente horror ou repulsa como se fosse sujo ou im- ra uma crítica à monarquia por meio de um retra- puro, a ponto de que o contato com isto seja te- to da educação da elite nacional expôs Pompeia à mido como contaminador e nauseante. No caso da desconfiança de seus contemporâneos. Superada a formação dos meninos, este caráter abjeto era atri- monarquia, mantinha-se a mesma elite, permitindo buído ao desejo por alguém do mesmo sexo, já que que seu romance fosse lido como resultado de expe- até mesmo a insinuação da homossexualidade equi- riência biográfica do autor, verdadeiro produto de valia à ameaça do “efeminamento” e, portanto, da “revolta” contra sua própria classe. O que tornava condenação social. Assim, sua formação dentro da tal vivência motivo de suspeita era a forma explíci- masculinidade dependia da incorporação do nojo ta com que o romance apresentava as violentas de- por esta forma de desejo. mandas sociais de virilidade da sociedade brasileira Tal repúdio pode ser percebido no conselho de fins dos oitocentos em um contexto em que a do experiente colega Rebelo ao novato Sérgio de consolidação de uma masculinidade hegemônica

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pressupunha a identificação abjeta de seu Outro, o uma maior preocupação com sua imagem pública degenerado, isto é, o homossexual como efeminado e o desprezo reservado àqueles que deixam entrever ou “invertido”. desvios morais ou falhas em sua organização inter- Retrato não intencional desse processo, O Ate- na. Assim, compreende-se como o criador de um neu fora recebido por muitos como uma ofensa à romance que colocava em xeque a capacidade da elite e como uma denúncia de sua corrupção in- elite brasileira de se autodisciplinar e corresponder terna. Pompeia era um entusiasta da vertente jaco- às demandas de exemplaridade no comando políti- binista da Primeira República, ou seja, defendia a co despertava suspeita dentro de sua classe e passava participação popular na política e o estilo de go- a viver sob a ameaça de perder seu reconhecimento. vernar quase ditatorial de Floriano Peixoto. Essas A honra dos homens de elite era indissociável posições fizeram com que, para muitos, ele adqui- do reconhecimento de seu papel modelar, sua ade- risse um status suspeito, algo visível na forma como, são indiscutível aos ideais coletivos, dentre os quais em 8 de outubro de 1890, O Estado de São Paulo se destacava o nacionalismo. Pedro Paulo de Olivei- noticiou a futura participação do cronista caracte- ra postula que a construção de uma masculinidade rizado como o “esquisito novelista do Ateneu”. Nas moderna viril é resultado de complexas elaborações biografias mais antigas, como a de Rodrigo Octavio culturais, dentre as quais destaca “a formação do Es- (1978), até a mais recente de Camil Capaz (2001), tado nacional moderno e a criação de instituições Raul Pompeia aparece como uma criatura estranha; específicas, como os exércitos, resultando nos pro- desde suas características físicas como portador de cessos de disciplinarização e brutalização dos agentes um estrabismo exagerado, passando pelo seu reca- nelas envolvidos” (2004, p. 19). Este ideal moderno to sexual até a sua sensibilidade aguçada, os quais é produto de uma série de deslocamentos do mo- eram associados ao seu radicalismo político, seu delo medieval de masculinidade relacionado com os nacionalismo exaltado e seu florianismo convicto. duelos entre os nobres e sua relação com a honra, Os contemporâneos caracterizavam Pompeia “bem como à coragem e o sangue-frio para defen- como nervoso, radical e estranho, de forma que sua dê-la” (Idem, p. 23). No século XIX, criou-se uma imagem como “anormal” e suscetível permitia dis- imbricação entre masculinidade e nacionalismo de sociá-los do autor de O Ateneu. Segundo Ari Adut, forma que o sacrifício pela pátria se tornou um ates- denúncias e escândalos adquirem potencial mortí- tado máximo de masculinidade, notadamente em fero devido à forma como os envolvidos reagem à períodos de guerras: “A capacidade de suportar os ameaça de contaminação, ou seja, do espectro da flagelos da guerra, como dor, fome, frio, mutilações, vergonha que – no caso – respingava naqueles que encarando impassivelmente a concreta possibilidade partilhavam com o talentoso escritor do valor máxi- da morte, só poderia ser mantida se estivesse presen- mo da nacionalidade como sinônimo de virilidade, te a ideia de que o verdadeiro homem viril era aque- ou seja, masculinidade heterossexual. Formados em le que colocasse sua força de resistência a serviço de colégios similares ou apoiadores de dietas educacio- uma causa de maior valor [...]” (Idem, p. 31) nais que associavam a formação “viril” com a pró- Esta concepção de masculinidade viril impu- pria construção do caráter nacional encarnado na nha-se no Brasil em meio a contendas políticas e elite intelectual e política, não era de se estranhar intelectuais de caráter enganosamente personalis- que seus contemporâneos buscassem apresentá-lo tas: “polêmicas surgidas de questões secundárias como “patológico”. se desviavam para debates de erudição e defesas Como dito anteriormente, vigorava uma com- da honra, em que o desafiante buscava provar sua preensão da política associada à conformação aos ‘superioridade’ sobre o oponente” (Ventura, 1991, valores morais da época, mas, refinando esta cons- p. 79). A defesa da honra era algo que se colocava tatação a partir da análise empreendida até aqui, com muita força: “das ameaças e xingamentos, os isto se dava no enquadramento de relações de po- adversários chegavam a processos de difamação nos der intra-elite. O alto status das elites dão significa- tribunais e mesmo ao suicídio, recurso extremo na ção maior aos seus atos e transgressões, daí também defesa da honra ultrajada” (Idem, ibidem).

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À primeira vista, essas histórias poderiam ser identidades sexuais do masturbador e do incestuoso interpretadas como resultado de nosso atraso insti- maculando a honra dos envolvidos. Encontraram- tucional, afinal as instituições burguesas, que per- -se nos dias seguintes: “houve safanões de parte a mitiriam canais formais para a compensação dos parte, insultos, e a intervenção pronta dos amigos conflitos, ainda não estavam consolidadas. Mas que afastaram os brigadores, conduzindo-os para um olhar comparativo com o que se passava em longe do local” (Capaz, 2001, p. 197). A afirmação outros países, como a Inglaterra, permite perceber da masculinidade viril era a forma de espantar o que – na verdade – o que se passava nestas paragens espectro da desonra. “Só a sangue isso pode acabar” tropicais se inseria no fenômeno dos escândalos e (Octavio, 1978, p. 214), teria dito Pompeia a seu dramas públicos, os quais são regidos por uma ló- amigo Rodrigo Octavio e logo o duelo foi marcado. gica coletivista e definidos pelo exercício da justiça No passado, segundo Oliveira, o que impor- popular.20 Honra, virilidade e nacionalismo passa- tava nos duelos, antes da vitória, era a bravura do vam a ser associadas e reconhecíveis de forma que enfrentamento: “As disputas muitas vezes deixavam qualquer suspeita sobre um desvio da norma sexual marcas e cicatrizes para o resto da vida. Alguns não expunha o homem à ameaça de uma nova forma de escondiam o orgulho de possuí-las e assim, não raro, desonra pública, a vergonha como marca da abje- elas se transformavam em verdadeiros troféus, ins- ção sexual. critos nos corpos, símbolos de sua dignidade, ates- Vivia-se o período de edificação da recente Re- tado de destemor obtido e valorizado, inclusive, pública. Pompeia, nacionalista fervoroso, posicio- pelos perdedores” (2004, p. 25). Com o aburgue- nava-se em prol da unidade nacional em face dos samento da sociedade, a permanência dos duelos interesses econômicos de países estrangeiros e das se rearticula: “a ênfase na bravura, na ousadia e no “ameaças” separatistas internas por meio da defesa destemor desloca-se paulatinamente para a questão apaixonada de Floriano Peixoto. Assim se desenrola da firmeza, do autocontrole e da contenção” Idem( , sua polêmica com e Luís Murat, críti- ibidem). Assim, aparecem novos códigos, como o cos do governo do “marechal de ferro”. aperto de mãos no final do ritual. A polêmica teve início em 1892 quando Pom- No dia da realização do duelo entre Pompeia peia defende Floriano no episódio em que reprimiu e Bilac, o comandante Francisco de Matos, uma violentamente a “Revolta da Armada” – promovida testemunha escolhida, fez apelo para que os duelis- por unidades da marinha contra o governo, que se tas não começassem o embate. Houve um aperto uniram aos federalistas do Rio Grande do Sul – na de mãos sinalizando um acordo e, a despeito dos Fortaleza de Santa Cruz de Santa Catarina. Em ânimos terem se esfriado, biógrafos afirmam que o resposta, Olavo Bilac publicou artigo no jornal O florianista persistiu sentindo-se desonrado até que Combate ofendendo o jovem escritor: “Talvez seja a polêmica se reativasse após o enterro do ex-presi- amolecimento cerebral, pois que Raul Pompeia dente Floriano em 29 de setembro de 1895, no qual masturba-se e gosta de, altas horas da noite, numa Pompeia proferiu discurso apologético a seu nacio- cama fresca, à meia luz de veilleuse mortiça, recordar, nalismo. Isto foi reconhecido como um desrespeito amoroso e sensual, todas as beldades que viu duran- ao presidente em vigor, . te o seu dia, contanto em seguida as tábuas do teto Não tardou para que Pompeia fosse demitido onde elas vaporosamente valsam” (Acervo da Biblio- do cargo de diretor da Biblioteca Nacional e Olavo teca Nacional, 9/3/1892). Pompeia defendeu-se em Bilac escrevesse, em tom sarcástico e ofensivo, sobre artigo do Jornal do Commercio, revidando a ofensa: o fato. Pompeia defendeu-se no jornal O Paiz, no “o ataque foi bem digno de uns tipos, alheados do dia 3 de outubro, divulgando um resumo de seu respeito humano, licenciados, marcados, sagrados – discurso e afirmando que não ofendera o presiden- para tudo – pelo estigma preliminar do incesto” te e teria versado unicamente sobre proposições de (Idem, 15/3/1892). natureza doutrinária. A divergência política foi trazida ao discur- Luís Murat, em artigo intitulado “Um louco so na gramática da sexualidade com referência às no cemitério” no jornal O Commércio de São Paulo,

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defende o afastamento de Pompeia e conclui seu estrabismo, mas, acima de tudo, em manifestações artigo de forma desmoralizadora nos padrões da “mentais” como histeria, egoísmo exagerado, pes- época, voltando ao assunto do duelo não ocorrido. simismo, impulsividade e falta absoluta de noção Sobre a defesa de um governo autoritário, como o sobre o certo e o errado (Hawkins, 1997, p. 219; de Floriano, Murat opinou: “Ora, já vê o Sr. Dr. Miskolci, 2005, p. 18). Raul Pompeia, que essas bravatas demagógicas não Longe de assumir esta perspectiva afinada com lhe ficam bem. O que me parece é que se trata de as teorias psiquiátricas daquele tempo, ressaltamos um caso de doença moral. O jacobinismo é um fe- como estes modelos de inteligibilidade faziam parte nômeno mórbido, tão profundamente característi- de amplas pressões sociais que o predispuseram ao co como o do niilismo russo” (Acervo da Biblioteca suicídio. A imagem pública do escritor de O Ate- Nacional, 16/10/1895). neu encontrava-se fragilizada, especialmente nos A ofensa aqui é construída de forma a unir últimos momentos de sua vida. Não combater um covardia e “jacobinismo” como expressões de uma ofensor aceitando uma trégua antecipada e depois doença moral que teria Raul Pompeia. Apenas em não ter a oportunidade de responder a uma ofensa dezembro o escritor teve ciência do artigo na fo- de covardia que circulou em proeminente jornal da lha paulistana. Rodrigo Octavio (1978) afirma ter imprensa nacional significava não ser “viril” como o autor escrito uma réplica violenta entregue no se esperaria de um homem público como Pom- dia 24 de dezembro e não publicada pelo Jornal do peia. Além disso, a afronta à sua masculinidade Commercio. O escritor, sentindo-se rejeitado pelas associava-se a um temor da época corroborado pela gazetas e humilhado publicamente, mata-se no dia revelação feita décadas depois por seu único amigo de Natal. O suicídio do autor corroborou interpre- próximo, Rodrigo Octavio, de que o jovem procu- tações doentias sobre sua pessoa, como na matéria rara o ilustre médico Dr. Alfredo Camilo Valdetaro do Jornal do Commercio publicada um dia após sua e tivera atestada “manifesta e irremediável deformi- morte: dade sexual” (1978, p. 199). Vale contextualizar o ano da morte de Pom- Em Raul Pompeia, havia effetivamente –, e peia: 1895. Em 25 de maio deste mesmo ano Os- quantos o conhecerão poderão bem, dar tes- car Wilde foi condenado por “homossexualismo” temunho disto –, uma vibratilidade nervosa a dois anos de prisão com trabalhos forçados. Ao excessiva, superaguda, quase mórbida. A sua mesmo tempo que o caso se tornou internacional- retina intellectual era de uma impressionabili- mente conhecido, introduzindo o tópico homosse- dade exaggerada, e para os pontos affectados xual na esfera pública, no Brasil, foi lançado Bom desta visão em que se retratarão as cousas e fac- crioulo, polêmico romance de Adolfo Caminha que tos, prodigosamente augmentados, elle se con- narra a relação consumada sexualmente entre um centrava inteiramente, deixando-se absorver, branco e um negro. O livro escandalizou o público aniquilar por completo (Acervo da Biblioteca letrado ao explicitar de forma associada os temores Nacional). sociais de sexualidade homoerótica e inter-racial. Culminando ano tão profícuo em escândalo, ocor- A figura doentia atribuída ao escritor permi- re o suicídio de Pompeia, autor cuja principal obra tia associar suas distintas experiências como ativista evidenciara controversas relações entre sexualidade engajado ligado às figuras mais radicais do abolicio- e política. nismo paulista, nacionalista e florianista fervoroso Luiz Labre, no quarto aniversário da morte com o autor de um romance que retratara os “des- do escritor, publicou artigo no folhetim O Archi- vios” na formação de nossos homens de elite. Aque- vo Illustrado (Arquivo do Centro de Estudo Afrâ- le que diagnosticara a monarquia como degenerada nio Cuoutinho, UFRJ, 25/12/1899), revelando teve, por fim, este diagnóstico voltado contra si “infâmias” direcionadas a Pompeia em seu círculo mesmo, já que a figura do degenerado – acreditava- próximo, as quais, juntamente com o ofensivo ar- -se – seria reconhecível em estigmas físicos como tigo de Luís Murat, também teriam contribuído

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para a sua morte prematura. Pompeia era alvo de portância reprodutiva; a socialização das condutas escárnio dentro de seu grupo de amigos. Por que de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso a perseguição a um autor e cronista tão respeitado (Foucault, 2007, pp. 99-100). por seu trabalho? As acusações “em tom de brinca- 5 Um estudo sobre as relações entre homens nas For- deira” apontavam para uma característica sui generis ças Armadas brasileiras do período é encontrado em do autor na visão de seus amigos: nunca havia se Beattie (2004). envolvido com mulheres.21 Seus biógrafos ressal- 6 Em pesquisas associadas ao projeto temático Ciên- tam seu caráter persecutório dentro dos ambientes cias, Literatura e Nação, criamos estudos sobre cada masculinos de que participava. Noutra lente, hoje uma destas obras. Sobre Dom Casmurro, ver Miskolci (2009a); a respeito de Bom Crioulo, ver Lara (2009), e reconheceríamos o abuso moral sofrido pelo talen- sobre O Ateneu, ver Balieiro (2009). toso jovem. A pressão social para incorporar a masculinida- 7 Utilizamos aqui o conceito de diferença como relação social, referindo-se “à maneira como [...] é constituída de hegemônica fincada em uma vida heterossexual e organizada em relações sistemáticas através de discur- termina por se materializar no maior ato de violên- sos econômicos, culturais e políticos e práticas institu- cia contra si mesmo. Neste drama público, o que cionais” (Brah, 2006. 362). menos interessa é saber a real sexualidade do escri- 8 Sobre a formação de uma geração de crítica e con- tor, antes a força do espectro da degeneração sexual testação ao status quo imperial em 1870, ver Alonso na elite brasileira de então. Diante dele, o autor de (2002), Ventura (1991) e Schwarcz (1993). Sobre a O Ateneu buscou – por meio do suicídio – virilizar- trajetória de Raul Pompeia e sua relação com esta ge- -se e resgatar a sua honra. Muitos artigos de jornal ração, ver Balieiro (2009). no dia seguinte destacaram o caráter “honrado” 9 O pensamento darwinista social difundiu diagnósti- da pessoa do escritor brasileiro e enfatizaram sua cos deterministas sobre a sociedade do século XIX e, importância nacional, julgamento que não apagou de forma geral, explicava a suposta decadência social essa mancha de sangue em nossa história. como resultado de influências de grupos ou indiví- duos desviantes. Sobre o darwinismo social, consulte Hawkins (1997). A respeito de sua recepção brasileira Notas há extensa bibliografia, da qual destacamos Alonso (2002) e Borges (2005).

1 Da literatura sobre honra, destacamos a coletânea 10 Nas palavras do crítico: “sem exagero diríamos que é de Peristiany e Pitt-Rivers (1992) e Peristiani (1971 o único personagem sem rosto na galeria do Ateneu, já [1965]). Em português, destaca-se o ensaio bibliográ- um privilégio, e talvez o único personagem que nunca fico “Para que serve o conceito de honra, ainda hoje?”, faz nada, apenas fala, e é certamente o único persona- de Fabíola Rohden (2006). gem masculino, adulto, que mantém estreito contato com Sérgio e que nunca recebe deste uma crítica se- 2 Para uma critica das teorias sobre a esfera pública – quer” (Santiago, 2000, pp. 94-95). como as de Jürgen Habermas e Richard Sennett – consulte o elucidativo artigo de Ari Adut (2005). 11 Antes que um dado natural e evidente, a presunção da normalidade ou patologia é resultado de discursos e 3 Alinhamo-nos, portanto, à perspectiva teórico-me- práticas sociais. Sobre a questão, ver Miskolci (2005). todológica inaugurada pelos estudos culturais e des- dobrada nos saberes subalternos, ou seja, os estudos 12 Borges (2005) ressalta que o termo degeneração se pós-coloniais e pela teoria Queer, os quais focam na tornou jargão republicano para referir-se pejorati- cultura – e em especial em obras artísticas – como vamente às instituições imperiais. James N. Green arquivo de experiências históricas ignoradas. Sobre es- (2000) demonstra como a associação entre “sexualida- tes saberes, consulte Miskolci (2009), Costa (2006) e de perversa” e Império estavam presentes no período Adelman (2009). republicano. 4 As frentes estratégicas do dispositivo de sexualidade 13 No estudo clássico sobre o “armário” que funda a descritas por Foucault eram, além da pedagogia do teoria Queer reluzem as palavras de Eve Kosofsky sexo que exploraremos neste artigo, a saturação do Sedgwick: “Ao final do século XIX, quando virou voz corpo feminino pela sexualidade devido à sua im- corrente – tão óbvio para a Rainha Vitória como para

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Freud – que conhecimento significa conhecimento Bibliografia sexual e segredos, segredos sexuais, o efeito gradual- mente reificante dessa recusa significou que se havia ADELMAN, Miriam. (2009), A voz e a escuta: en- desenvolvido, de fato, uma sexualidade particular, dis- contros e desencontros entre a teoria feminista e tintamente constituída como segredo” (2007, p. 30). a sociologia contemporânea. Curitiba, Blucher. 14 Halperin (2002) afirma que antes da invenção médi- ADUT, Ari. (2005), “A theory of scandal: Victo- co-legal da homossexualidade, no terço final do século rians, homosexuality, and the fall of Oscar XIX, existia um sistema de hierarquização baseado em padrões de gênero que relegava a posições marginais Wilde”. American Journal of Sociology, 111 (1): não todos homens que se relacionavam com outros 213-248. homens, antes o efeminado e o invertido. A invenção ALMEIDA, Miguel Vale de. (2000), Senhores de si: do homossexual teria transformado a compreensão uma interpretação antropológica da masculinida- das relações entre homens e instituído uma hierarquia de. Lisboa, Fim de Século. a partir do desejo baseada no binário hetero/homos- ALONSO, Ângela. (2002), Idéias em movimento: sexual. a geração 1870 na crise do Brasil Império. São 15 Desde o saber médico do século XIX, como as teorias Paulo, Paz e Terra. do sexólogo austríaco Richard von Krafft-Ebing, o ANDRADE, Mário de. (1974), “O Ateneu”. As- perverso seria o invertido, aquele que carregaria em si pectos da literatura brasileira. 5 ed., São Paulo, atributos de gênero do sexo oposto e práticas sexuais Martins, pp. 173-184. passivas. ARARIPE JUNIOR, Tristao de Alencar. (1978), 16 Segundo Rogério Diniz Junqueira (2007), a hetero- Araripe Junior: teoria, crítica e história literária. normatividade é a matriz, fonte que gera e justifica o Org. . /São Paulo, preconceito, a discriminação e a violência envolvidas Livros Tecnicos e Cientificos/Edusp, 1978. nas expressões de homofobia, as quais costumam se dirigir contra pessoas cujas expressões de gênero não BALIEIRO, Fernando de F. (2009), A pedagogia do se enquadram nas normas. sexo em O Ateneu: o dispositivo de sexualidade no 17 Halperin (2000, p. 100) sublinha a persistência histó- internato da “fina flor da mocidade brasileira”. rica, previamente à invenção da categoria homossexu- São Carlos, dissertação de mestrado, Sociolo- al, de laços afetivos íntimos entre homens, particular- gia-UFSCar, mimeo. mente em contextos elitizados. BEATTIE, Peter M. (2004), “Ser homem pobre, 18 Sobre o conceito de masculinidade hegemônica, ver livre e honrado: a sodomia e os praças nas For- Kimmel (1998) e Almeida (2000). ças Armadas brasileiras (1860-1930)”, in Cel- 19 Sérgio, após os conselhos de Rebelo, se dá conta do so Castro, Vitor Izecksohn e Hendrik Kraay quanto deve lutar para não se transformar em um dos (orgs.), Nova história militar brasileira, Rio de “perversos” descritos pelo colega, e afirmar-se viril por Janerio, FGV/Bom Texto, pp. 269-299. meio da violência foi uma das primeiras exigências (cf. BORGES, Dain. (2005) “‘Inchado, feio, preguiçoso O Ateneu, p. 14). e inerte’: a degeneração no pensamento social 20 Em contraste com questões “privadas”, as quais se brasileiro, 1880-1940”. Trad. Richard Miskolci. inserem na justiça legal, individualista e baseada no Teoria & Pesquisa, São Carlos, Programa de Pós- critério das provas. -Graduação em Ciências Sociais, pp. 43-70. 21 Daí, provavelmente, o primeiro ataque de Olavo Bilac BOSI, Alfredo. (1978), Araripe Junior: teoria, cri- nos jornais o ter associado à figura do masturbador, tica e historia literaria. Rio de Janeiro, Livros imagem que o emasculava e, também, evocava dis- Tecnicos e Cientificos. cursos da época que associavam masturbação adulta e . (1988) “O Ateneu, opacidade e des- propensão à degeneração sexual ou à loucura. No sé- truição”, in , Céu, inferno: ensaios culo XX, nas Cinco Lições de Psicanálise de Sigmund de crítica literária e ideológica, São Paulo, Ática, Freud, a masturbação adulta já evocaria suspeitas de homossexualidade. pp. 33-57. BOURDIEU, Pierre. (2002), A dominação mascu- lina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

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O Drama Público de Raul THE PUBLIC DRAMA OF RAUL LE DRAME PUBLIQUE DE Pompeia: Sexualidade POMPEIA: SEXUALITY AND Raul Pompeia: SexualiTÉ eT e Política no Brasil POLITICS IN FIN-DE-SIECLE PolITIQUE AU BrÉsil À la fin finissecular du XIXe SIÈCLE

Richard Miskolci e Fernando de Richard Miskolci and Fernando de Richard Miskolci et Fernando de Figueiredo Balieiro Figueiredo Balieiro Figueiredo Balieiro

Palavras-chave: Sexualidade; Público/ Keywords: Sexuality; Public/private; Mots-clés: Sexualité; Public/privé; Théo- privado; Teoria Queer; Raul Pompeia; Queer theory; Raul Pompeia; Homo- rie Queer; Raul Pompeia; Homosexualité. Homossexualidade. sexuality.

A partir do suicídio de Raul Pompeia, Taking Raul Pompeia’s suicide as our Nous avons, à partir du suicide de Raul buscamos compreender como sua traje- starting point, we aim at understand- Pompeia, cherché à comprendre de tória intelectual e política revela relações ing how his intellectual and political quelle façon sa trajectoire intellectuelle pouco reconhecidas entre a sexualidade e trajectory reveals unimagined relations et politique dévoile des rapports peu a esfera pública no contexto brasileiro de between sexuality and the public sphere reconnus entre la sexualité et la sphère fins do século XIX. Autor de O Ateneu within the Brazilian context at the turn publique dans le contexte brésilien de la (1888), o jovem republicano, desenvol- of the 19th century. Author of the novel fin du XIXe siècle. L’auteur deO Ateneu veu uma crítica do Império por meio de O Ateneu (1888), the young Republi- (L’Athénée, 1888), jeune républicain, uma história dos descaminhos morais can developed a critique of the Empire a développé une critique de l’Empire que marcavam a formação da elite nacio- through a story about the moral devi- par une histoire des égarements moraux nal. Na República, no entanto, Pompeia ance that marked the education of the qui marquaient la formation de l’élite viu sua obra e seu engajamento político nation´s elites. Pompeia saw his work nationale. Néanmoins, c’est sous la Ré- voltarem-se contra ele pela suspeita de and his political commitment within the publique que Pompeia a témoigné son uma sexualidade dissidente, o que o ame- Republican regime turn against himself, œuvre et son engagement politique se açava com a desonra pública. Desenvol- resulting from suspicions of a connection tourner contre lui, dû au soupçon d’une vemos uma análise sociológica e histórica between political and sexual dissent that sexualité dissidente qui le menaçait du que analisa as normas de gênero e sexua- threatened him with public shame. This déshonneur public. Nous avons déve- lidade que compunham o sistema de va- historical and sociological analysis recon- loppé un abordage sociologique et his- lores morais em que se davam as relações stitutes the gender and sexual norms that torique qui analyse les normes de genre entre indivíduo e sociedade no Brasil, made up the moral value system in which et de sexualité qui composaient le sys- borrando as elusivas fronteiras entre pú- relations between individual and society tème des valeurs morales dans lesquelles blico e privado, acontecimento histórico in Brazil unfolded. We analyze Pompeia’s avaient lieu les rapports entre l’individu e experiência subjetiva. drama by erasing the elusive borderlines et la société au Brésil, maculant les fron- amongst public and private lives, histori- tières élusives entre le public et le privé, cal events, and subjective experience. entre le fait historique et l’expérience subjective.

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