PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

Eduardo Antonio Estevam Santos

LUIZ GAMA, UM INTELECTUAL DIASPÓRICO: intelectualidade, relações étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882)

DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL

SÃO PAULO 2014 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

Eduardo Antonio Estevam Santos

LUIZ GAMA, UM INTELECTUAL DIASPÓRICO: intelectualidade, relações étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882)

DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para o título de Doutor em História Social, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Heloísa de Faria Cruz.

SÃO PAULO 2014

Banca Examinadora

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Autorização

Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Eduardo Antonio Estevam Santos

Fortaleza, CE, 27 de janeiro de 2014.

Para David, João e Flora. AGRADECIMENTOS

Este é o espaço em que podemos perceber que este trabalho não seria possível sem as contribuições, os apoios e as solidariedades das pessoas e instituições abaixo relacionadas. Minha eterna gratidão a todos e todas que serão mencionados nesta página.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à professora Dra. Heloisa de Faria Cruz, que vem acompanhando minha trajetória acadêmica desde o curso de Mestrado e que entendeu e acolheu a mudança de objeto de estudo e pesquisa. Assim como pelas valiosas e imprescindíveis orientações no direcionamento do trabalho, na indicação e na reflexão de leituras e aprofundamento da pesquisa no que tange às fontes históricas.

Às professoras Maria Antonieta Antonacci, Yvone Dias Avelino e Maria Odila da Silva Dias, pelas contribuições discursivas nos aspectos teóricos e metodológicos nas disciplinas que ministraram. Aos professores Amailton Magno Azevedo e Maria do Rosário da Cunha Peixoto, pelas valiosas contribuições na banca de qualificação, as quais procurei, na medida do possível, incorporar neste trabalho.

À Betinha, secretária do programa de História, pela atenção, orientação e encaminhamento dos processos burocráticos relativos à matrícula, ao exame de proficiência e ao depósito da Tese.

Aos meus amigos de Turma Fábio Venturini, Leandro Cândido, Thiago Tremonte, Roseane Silveira de Souza, Rogério Souza Silva, José do Espírito Santos Dias Jr., Raimundo Nonato e Lindomar A. de Oliveira.

Aos amigos do universo acadêmico e extra-acadêmico, Jonas Rodrigues de Moraes, Maria José Lopes (Mazé), Mateus Fernandes, Alexandre Rusciolleli, Eduardo “Morcegão” e Edson Vieira, pelos “bate-papos” que me ajudaram em muitos momentos e de diferentes maneiras ao longo desta pesquisa. Ao amigo Elias Veras, que o reencontrei em Fortaleza, por sempre se mostrar sensível para apontar caminhos e possibilidades nesse trabalho quando com ele compartilhava minhas angústias e certezas.

À companheira Idalina M. de Freitas, que acompanhou integralmente a realização dessa Tese em meio aos nossos deslocamentos e aos nascimentos de João e de Flora. Proporcionou, entre outras coisas, muita força e uma ajuda que é impossível de qualificar.

A CAPES, pela concessão da Bolsa para o primeiro ano da pesquisa, e ao CNPq, pelos anos restantes, financiamento imprescindível para a realização dessa Tese.

Minha Mãe

Era mui bela e formosa, Era a mais linda pretinha, Da adusta Líbia rainha, E no Brasil pobre escrava! Oh, que saudades que eu tenho Dos seus mimosos carinhos, Quando c’os tenros filhinhos Ela sorrindo brincava.

Éramos dois – seus cuidados, Sonhos de sua alma bela; Ela a palmeira singela, Na fulva areia nascida. Nos roliços braços de ébano, De amor o fruto apertava, E a nossa boca juntava Um beijo seu, que era vida.

Quando o prazer entreabria Seus lábios de roixo lírio, Ela fingia o martírio Nas trevas da solidão. Os alvos dentes nevados Da liberdade eram mito, No rosto a dor do aflito, Negra a cor da escravidão.

Luiz Gama SANTOS, Eduardo A. Estevam. LUIZ GAMA, UM INTELECTUAL DIASPÓRICO: intelectualidade, relações étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882).

Resumo

Este trabalho acadêmico interpreta e analisa a trajetória e produção cultural do poeta, jornalista, maçom, abolicionista, advogado (rábula) e líder político Luiz Gama. A cidade de São Paulo foi o espaço de suas realizações, lugar por excelência para o surgimento de sua identidade política diaspórica, para os seus embates jurídicos em favor do escravizado e palco para o surgimento de posições liberal-republicanas que, para Gama, eram indissociáveis da libertação escrava. Priorizamos, nas análises de suas narrativas, o modo como Luiz Gama usava a raça, a identidade, a modernidade e a memória da escravidão para mediar a realidade social paulistana e as relações étnico- raciais. Sob a perspectiva analítica dos estudos culturais e da crítica pós- colonial, procuramos localizar Luiz Gama nos quadros de uma intelectualidade formada além do espaço nacional.

Palavras-chave: Diáspora. Identidade. Raça. Estudos culturais. Modernidade.

SANTOS, Eduardo A. Estevam. LUIZ GAMA, A DIASPORIC INTELLECTUAL: intellectuality, ethnic-racial relations and cultural production in modern São Paulo (1830-1882).

Abstract

This academic paper interprets and analyzes the trajectory and cultural production of the poet, journalist, mason, abolitionist, lawyer ("rábula") and political leader Luiz Gama. The city of São Paulo was the space for his accomplishments, quintessential place for the emergence of his political and diasporic identity, to his legal struggles on behalf of enslaved and the stage for the emergence of liberal-republican positions wich, to Gama, Gama, were inseparable from slave liberation. We prioritize, in the analysis of their narratives, how Luiz Gama used race, identity, modernity and memory of slavery to mediate the social reality of São Paulo and ethno-racial relations. Under the analytical perspective of cultural studies and postcolonial criticism, we seek to find Luiz Gama in frames of an intellectuality formed beyond the national space.

Keywords: Diaspora. Identity. Race. Cultural Studies. Modernity.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Luiz Gama, em foto de Militão Augusto de Azevedo...... 28

Figura 2 - Luiz Gama membro da sociedade associativista Recreio da Amizade...... 29

Figura 3 - Sala de aula do curso jurídico de São Paulo...... 37

Figura 4 - Vista frontal da Academia de Direito de São Paulo...... 45

Figura 5 - Noticiário sobre as ações do judiciário. Defesa de Luiz Gama...... 48

Figura 6 - Júri absolve por unanimidade réu defendido por Luiz Gama...... 49

Figura 7 - Noticiário sobre o caso da escrava Elisa...... 49

Figura 8 - Pedido de habeas-corpus requerido por Luiz Gama...... 50

Figura 9 - Ministro da Justiça recomenda averiguar o caso do menor Severiano...... 51

Figura 10 - “Comédia política”. Jornal O Polichinello...... 54

Figura 11 - Conferências Públicas do Clube Radical Paulistano...... 55

Figura 12 - Liberais versus Liberais Dissidentes...... 59

Figura 13 - José do Patrocínio, líder abolicionista, jornalista e político...... 78

Figura 14 - Notícias sobre o adoecimento de Luiz Gama...... 87

Figura 15 - Benedito Graco Pinto da Gama, filho de Luiz Gama...... 91

Figura 16 - Contribuição pessoal de Luiz Gama para libertação de escravo..99

Figura 17 - Presença de escravizados recém-chegados da África...... 105

Figura 18 - Mulher vendendo frangos para um comerciante...... 105

Figura 19 - Negros e negras circulando pelas ruas da cidade...... 106

Figura 20 - Festa em homenagem a nossa Senhora do Rosário dos Pretos..107

Figura 21 - Fachada lateral da Igreja do Rosário da Irmandade dos Homens Pretos...... 108

Figura 22 - Rua da Glória, por Militão Augusto de Azevedo...... 110 Figura 23 - Anúncio de venda de produtos com destaque para as condições assépticas do comércio...... 112

Figura 24 - Imagem em alusão ao dia de Finados...... 116

Figura 25 - Escravo negociando com o Diabo-Coxo...... 117

Figura 26 - Diálogo entre o escravizado e o Diabo-Coxo no teatro...... 118

Figura 27 - Desenho de Angelo Agostini: “De volta do Paraguai”...... 119

Figura 28 - Guerra do Paraguai, Jornal Diabo Coxo...... 120

Figura 29 - Voluntários/Involutários para a Guerra do Paraguai...... 121

Figura 30 - Guerra do Paraguai, jornal Cabrião...... 121

Figura 31 - Que defensor da Pátria!...... 122

Figura 32 - Escravos destruindo o chafariz...... 123

Figura 33 - Moisés, os escravos e o chafariz...... 124

Figura 34 - Progresso Retrógrado...... 126

Figura 35 - Trovas Burlescas entre as obras poéticas...... 137

Figura 36 - Venda de exemplares de Trovas Burlescas...... 138

Figura 37 - Os críticos entre nós!...... 142

Figura 38 - Materiais de edificar! Imagem ilustrativa do Jornal Diabo-Coxo...150

Figura 39 - Texto em formato de anúncio, Jornal Diabo-Coxo...... 151

Figura 40 - O Diabo-Coxo agradece ao jornalismo...... 166

Figura 41 - População do Brasil, 1798-1872...... 180

Figura 42 - Visita das organizações negras ao túmulo de Luiz Gama...... 186

Figura 43 - Cobertura jornalística do enterro de Luiz Gama...... 187

Figura 44 - Homenagens a Luiz Gama...... 188

Figura 45 - Gazeta da Tarde presta suas homenagens a Luiz Gama...... 189 Figura 46 - Anúncio do Clube Girondino conclamando seus sócios para homenagear Luiz Gama...... 193

Figura 47 - Nota de falecimento do jornal Correio Paulistano...... 196

Figura 48 - Divulgação de trabalhos biográficos sobre o Luiz Gama...... 196

Figura 49 - Homenagem do Semanário ilustrado Vida Paulista a Luiz Gama.203

Figura 50 - Negros e negras numa colheita de café no final do século XIX....204

Figura 51 - Jornal a A Liberdade...... 206

Figura 52 - Página inicial do jornal Getulino...... 208

Figura 53 - Jornal Getulino, seção personalidades...... 218

Figura 54 - A Redenção de Cã...... 222

Figura 55 - Anúncio: Ler a Voz da Raça, Assinar a Voz da Raça...... 223

Figura 56 - Escultura do busto de Luiz Gama...... 227

Figura 57 - Lúcio de Mendonça publica a biografia de Luiz Gama...... 238

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 14 Uma experiência singular ...... 21

CAPÍTULO I: INTELECTUALIDADES E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA CIDADE LETRADA PAULISTANA ...... 26 1.1 Luiz Gama, Liberal ...... 53 1.2 Luiz Gama, Abolicionista-Republicano ...... 62

CAPÍTULO II: LUIZ GAMA: MEMÓRIA E IDENTIDADE DIASPÓRICA ...... 85 2.1 Paulicéia Diaspórica – a memória da escravidão construindo a identidade da cidade ...... 96 2.2 A cidade sob o signo da ironia ...... 114

CAPÍTULO III: A SÁTIRA RACIAL COMO POESIA DA TRANSGRESSÃO: POÉTICAS DIASPÓRICAS COMO CONTRA-NARRATIVA A IDEIA DE RAÇA ...... 134 3.1 Vivendo as antinomias da modernidade, Renan, Civilização, Progresso e Mestiçagem ...... 173

CAPÍTULO IV: A MEMÓRIA PÚBLICA DE LUIZ GAMA ...... 181 4.1 A Memória Social de Luiz Gama, Os Negros e a Política ...... 203

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 226

FONTES ...... 233

ANEXO ...... 235 BIBLIOGRAFIA ...... 243 14

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa, de certa forma, é fruto de uma inquietação política desde os meus tempos de militância político-racial em que se pensava ser estritamente necessário tornar-se uma referência intelectual para enfrentar o discurso racista teoricamente elaborado. Éramos intelectuais orgânicos na luta por espaço, justiça e democracia racial. Pensava-se nesse tipo de formação para o enfrentamento discursivo por meio de duas frentes de luta: a primeira, no interior da própria organização político-partidária (PT - Partido dos Trabalhadores), na qual eu estava inserido, procurando introduzir na agenda do partido ações de combate ao racismo; a segunda, na crítica e na denúncia da falsa democracia racial na sociedade itabunense 1. Desde então, fiz uso dos meus conhecimentos históricos e realizei inúmeras palestras e seminários entre os anos de 1999 e 2007 como um dos coordenadores do grupo Ação Negra, que mais tarde passou a constituir-se como uma seção de uma organização nacional, o MNU – Movimento Negro Unificado. Essa era a conjuntura do final do século XX e início do século XXI, em que os líderes de organizações negras “necessariamente” tinham que apresentar um saber sistematizado de denúncia das desigualdades raciais. Mas, nesses círculos, não se cogitava, não se duvidava da capacidade cognitiva dos negros e negras, reduzindo-os a uma infra-humanidade, como no século XIX. Sendo assim, como era ser um intelectual num país estruturado sócio- historicamente sob o signo da discriminação racial? Que tensões e paradoxos estavam em jogo no campo das relações etncorraciais em meios aos projetos de construção da identidade nacional? Procuraremos responder a estas questões a partir da estrutura de sentimento e da complexa identidade de Luiz Gama como fenômenos tipicamente modernos. Reservadas as possíveis continuidades e descontinuidades históricas das discriminações raciais na história do Brasil, o fato é que, para ser um intelectual negro no século XIX, fazia-se necessário transcender 2 a

1 A cidade de Itabuna localiza-se na região sul do estado da Bahia, com uma distância aproximada de 447 quilômetros da capital do estado. 2 Ver a introdução do livro: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. 15

representação estereotipada negativa que a raciologia atribuía às capacidades cognitivas dos não europeus. As condições para ser um intelectual eram bastante limitadas e consistiam, basicamente, em ter uma educação superior, ser um letrado num país de analfabetos 3 ou um bacharel em Direito. Os dados demonstram que o domínio dos bacharéis em direito era esmagador. Segundo o censo de 1872, havia no país 968 juízes e 1.647 advogados, num total de 2.290 bacharéis 4. Os conteúdos ideológicos para formação superior provinham das epistemes europeias. A elite intelectualizada, ou a intelligentsia 5, era aquela capaz de elaborar críticas aos valores e instituições de seu tempo. A aliança entre a educação superior/formação e poder político produziu efeitos de verdade nos discursos de afirmação da construção do projeto de nação. Fazia parte do projeto de modernidade paulistana institucionalizar e materializar o conhecimento, inicialmente disperso e sob a coordenação dos jesuítas, e posteriormente, com a vinda da família real em 1808, dá-se início a “uma rede de instituições de saber 6”. O termo intelectual diaspórico é empregado aqui como resultado da experiência de deslocamentos vivenciada por milhões de africanos, não só os africanos viveram essa experiência no mundo, mas aqui interessa-nos geopoliticamente o atlântico negro, em um longo processo de interdependência cultural entre os povos, tornando suas “identidades múltiplas 7”. A diáspora tornou Luiz Gama um sujeito transculturado 8, híbrido, um sujeito da modernidade.

3 Para José Murilo de Carvalho, a educação era a marca distintiva da elite política e a superior, dava homogeneidade ideológica à elite letrada. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro das sombras: a política imperial. : Civilização Brasileira, 2003, p. 63. 4 Idem, p. 87. 5 Nessa concepção genérica de intelectual, a meu ver, não se exclui aqueles que foram capazes de elaborar um pensamento crítico mesmo fora dos quadros acadêmicos ou das epistemes do pensamento moderno. 6 Neste livro, Lilia M. Schwarcz estabelece as relações entre os cientistas, as instituições e o pensamento racial, dedicando pouca atenção ao perfil da formação do intelectual, analisado em sua obra como cientista. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo Companhia das Letras, 1993, p. 23. 7 HALL, Stuart. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003, p. 27. 8 O fenômeno da transculturação não reside apenas numa assimilação passiva, para Stuart Hall, “grupos subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir dos materiais a eles transmitidos pela cultura metropolitana.” Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003, p.31. 16

Luiz Gama apresenta formas textuais que não só refletem os conflitos políticos de seu tempo, mas que carregam consigo os dilemas da diáspora negra, da travessia atlântica. Nesta conjuntura do século XIX, a intelectualidade negra demonstra que não é mais possível “duvidar” da “capacidade poético- intelectual”, pois agora os negros já não somente letrados, mas escritores 9 também. Este trabalho parte da trajetória de vida de Luiz Gama para explorar sua presença como intelectual diaspórico naquela conjuntura. Luiz Gama, um intelectual diaspórico: intelectualidade, relações étnico- raciais e produção cultural na modernidade paulistana pretende explorar algumas dimensões que em outros estudos não mereceram tanta atenção, a partir de algumas categorias de análise próprias da crítica pós-colonial e dos estudos culturais, uma vez que “as mudanças no processo histórico alteram as interpretações da história” 10 . Diáspora, Diferença cultural e Raciologia são categorias analíticas forjadas em conjunturas políticas de descolonização e de crítica à episteme eurocêntrica. O uso dos seus conceitos nesta pesquisa não é ideologicamente determinado, mas sim em consonância com a experiência social vivenciada por este intelectual negro. Procuramos a todo o momento demonstrar como a raça era entendia e praticada por Luiz Gama. Stuart Hall, Hommi Bhabha e Paul Gilroy são alguns dos intelectuais da diáspora. Esses escritores igualmente foram marcados pelos deslocamentos, daí constituem-se em intelectuais hifenizados. Apresentam uma postura crítica a respeito da subalternização e hierarquização dos saberes não ocidentais. Para Homi Bhabha, “o objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva da posição de significação da minoria, que resiste à totalização. 11 ” Este trabalho se debruça justamente sobres as significações subjacentes à produção cultural de Luiz Gama frente à hegemonia cultural.

9 RISÉRIO, Antonio. Textos e Tribos – poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1993, p. 75. 10 Apoiando-se no historiador alemão Reinhart Koselleck, J. Carlos Reis ressalta que as obras têm sua importância na temporalidade, sempre contribuindo para as revisões posteriores, jamais sendo superadas. REIS, José Carlos. As identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 9. 11 BHABHA, Homi. O local da cultura . Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p. 228. 17

A raciologia contribui diretamente para a construção da diferença cultural. Paul Gilroy, em Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça, trata da crise da raciologia no século XX. Neste trabalho, recorro ao seu conceito, mas voltado para a sua formação nos século XVIII e XIX. Desta forma, por raciologia deve-se entender o conjunto de construções teóricas orientadas pelo gene, pela raça, codificado na cor, com suas correspondentes hierarquias raciais. Diáspora e modernidade 12 são conceitos simétricos e contraditórios. Suas conexões e interculturalidades tiveram como ponto de partida a escravidão. O elo da escravidão foi “a única conexão essencial entre os negros e os europeus 13 ”, o que nos possibilita entender as simetrias e assimetrias entre o fenômeno da diáspora e da modernidade. Com estas afirmações, queremos demonstrar que a modernidade foi resultado de um processo relacional 14 entre a América, a África e a Europa. A modernidade a um só tempo promoveu a aproximação entre os grupos étnicos, mas rejeitou o resultado desses contatos humanos: a hibridez como valor positivo no processo de afirmação dos estados nacionais. Podemos afirmar que não é possível entender o projeto modernista sem articulá-lo ao movimento diaspórico de grupos e povos, pois esse movimento possibilitou trocas culturais incomensuráveis. É justamente no centro dessas ambiguidades que identificamos na prática poética e política de Luiz Gama uma intervenção social que procurava afirmar uma africanidade em meio a uma modernização diaspórica da cidade de São Paulo.

Mulato esfolado / Que diz-se fidalgo / Porque tem de galgo / O longo focinho Não perde a catinga / De cheiro fallace [sic] / Ainda que passe / Por brazeo

12 Neste trabalho, modernismo e modernidade serão entendidos como aspectos de um mesmo fenômeno. 13 Hegel entendia que a África em sua inércia, sem movimento, não teria tido grandes relações com a história universal. Essa citação de Hegel encontra-se em GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p. 101. 14 Posição interpretativa dos estudos pós-coloniais, em que questiona a subalternidade e a passividade do outro enquanto espaço geopolítico na produção da modernidade e do capitalismo. Ver Edgardo Lander, Enrique Dussel, Arturo Escobar, Walter D. Mignolo, Aníbal Quijano, entre outros. In: LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber - eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. 18

cadinho Eu sei que pretecio / De Angola oriundo / Alegre, jocundo / Nos meus vou cortando É que não tolero / Falsários parentes / Ferrarem-me os dentes / Por brancos passando 15 .

Cabe aqui uma observação mais de ordem ideológica que semântica quanto ao termo negro que por ora utilizamos em todo o trabalho. Os negros eram representados socialmente como mestiços, mulatos, crioulos, pretos ou até mesmo negros, a depender das circunstâncias ideológicas. Mantivemos esse termo na maioria das vezes porque consideramos que agregava os demais, principalmente no aspecto que mais nos interessa, o da diferença, aquela que demarcava o lugar social do subalternizado racializado. A trajetória impar e singular de um ex-escravo que se tornou jornalista, professor, maçom, poeta e advogado em pleno período de escravidão oficial despertou os mais variados interesses analíticos nas ciências sociais e na literatura. Contudo, alguns trabalhos referentes à vida, à obra e à atuação política de Luiz Gama não apresentam uma articulação entre suas diferentes produções culturais, vida pública e o pensamento. Em seu estudo sobre a história da história intelectual no Brasil, José Murilo de Carvalho reconhece que há pouca problematização na história das ideias e que a crítica literária tem avançado muito mais. Salienta, ainda, que, no campo da história, novas abordagens substanciais poderiam emergir da “fecundação mútua entre a crítica literária e história intelectual 16 ”. Suas proposições caminham no sentido de superar as abordagens restritas e dicotômicas que ou procuravam expor as ideias do pensador em seu contexto social ou interpretar as ideias como ideologias vinculadas a interesses de grupos, classes sociais ou do Estado. Luiz Gama viveu num momento histórico em que a realidade da raça e da nação foi constantemente mediada pela linguagem. Desta forma, na nossa análise de sua produção, partimos da combinação do contexto institucional, do texto, da recepção, das ideologias,

15 Neste poema, intitulado Pacotilha, os versos apresentam um tom crítico e demonstram suas posições a respeito das relações raciais, a palavra cadinho no texto poético significa a mistura de negros e brancos. Ver: GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (texto da 1ª edição digitalizado na íntegra). 3º edição. São Paulo: Bentley Junior, 1904. Disponível em: . Acesso em: 13 de setembro de 2012. 16 Ver CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil : a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 01, p. 123-152, 1998. 19

sem nenhuma determinância principal. Não se deve buscar na produção de Luiz Gama um corpo de conhecimento coeso e orgânico, mas um pensamento como uma prática criativa, uma vez que pensar é sempre interpretar, explicar, desenvolver, decodificar, traduzir um signo 17 . Mas, para fazer-se intelectual, era necessário habitar a cidade. O mundo das letras na província paulistana imperial constituía-se num espaço diferenciado dentro do próprio município de forma que podemos chamar metaforicamente de cidade letrada 18 . A cidade foi o lugar por excelência para a formação da experiência intelectual de Luiz Gama, tanto do ponto de vista social quanto intelectual. A cidade letrada se constituiu a partir da formação de um grupo restrito, incumbido de uma série de funções de poder. Essa característica elitista para a cidade paulistana deu-se a partir da criação de instituições voltadas, entre outras funções, para desenvolver uma cultura intelectual. As instituições que promoviam a formação da cultura intelectual na cidade letrada, inicialmente, foram a Academia de Direito, fundada em 1828, que lança as bases ideológicas para o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, e o Museu do Ypiranga. A imprensa também exercera um papel dinâmico nesse processo. Grande parte dos jornais era de propriedade de bacharéis em Direito 19 . Para a pesquisadora Heloisa de Faria Cruz, especialista em imprensa, a Faculdade de Direito foi um “fator explicativo central para a continuidade e dinâmica da imprensa paulista nessas primeiras cinco décadas de sua existência. A verdade é que durante grande parte do século XIX, o jornalismo e a vida intelectual e letrada paulistana permaneceriam centrados na Academia de Direito 20 ”. É justamente nesta conjuntura letrada que Luiz Gama

17 Gilles Deleuze, citado por WILLIAMS, James. Pós-estruturalismo . Rio de Janeiro: Vozes, 2012, p.114. 18 Tomo o termo por empréstimo, o mesmo foi cunhado no ensaio A Cidade das Letras, do escritor uruguaio Angel Rama, no qual autor analisa a formação e estruturação social da América colonial a partir da relação entre as letras e a sociedade. RAMA, Angel. A Cidade das Letras. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1984 , p.41-53. 19 Por exemplo, O Diário de São Paulo era propriedade dos bacharéis em direito, Pedro Taques de Almeida Alvim, Delfino Pinheiro de Ulhoa Cintra Junior e de Henrique Schroeder. Arquivo Público do Estado de São Paulo. 20 CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890- 1915. São Paulo: EDUC; FAPESP; Arquivo do Estado de São Paulo; Imprensa Oficial, 2004, p. 47-55. 20

cria, em 1865, juntamente com o pintor e caricaturista italiano Angelo Agostini, o primeiro jornal ilustrado de São Paulo, o Diabo Coxo 21 . Gama conviveu nestas “duas” cidades, conseguiu ultrapassar as “muralhas” quase intransponíveis para uma pessoa negra. A cidade letrada se encarregava de modernizar culturalmente e “civilizar” a outra cidade. Foi a principal responsável pelas produções acadêmicas, literárias e científicas. Na política, conduzia ideologicamente o debate público por meio da imprensa. A cidade letrada especializou um grupo que se tornou responsável pela produção e reprodução da ordem social, mas em constante tensão em suas relações com as outras “cidades”. Esses intelectuais da cidade letrada, nos alerta Angel Rama: “não somente servem a um poder, como também são donos de um poder. Este inclusive pode embriagá-los até fazê-lo perder de vista que sua eficiência, sua realização só se alcança se o centro do poder real da sociedade o apóia, lhe dá força e o impõe.” 22 Repensar a cidade letrada imperial/moderna a partir da diferença cultural 23 altera consagrados pressupostos historiográficos a respeito do pensamento racial brasileiro. As hierarquias raciais estavam no interior dos processos políticos de afirmação do Estado-nação e na transição do regime monárquico para o republicano. Desta forma, o racismo, como processo cultural, é inerente à modernidade paulistana.

Uma experiência singular

21 O professor da escola de comunicação da USP, Antonio Luiz Cagnin, especialista no assunto (caricaturas na imprensa), descreve as características do periódico, ao prefaciar a edição fac-similar do Diabo Coxo: “Jornal domingueiro com 8 páginas apenas, 4 de ilustrações (caricaturas, retratos, cenas do dia-a-dia e ventos) e 4 de textos (artigos, poesias, notícias, críticas, anedotas, advinhas, etc.), dos quais se ocupava Luiz Gama e Sizenando Barreto Nabuco de Araújo, irmão de . As assinaturas não se faziam por períodos, mas pelos 12 números anuais de cada série, ao preço de 4$000 réis, na capital, e de 5$000 réis, fora dela. O número avulso custava $500 réis, valor três vezes mais alto do que o de um exemplar dos diários de então”. 22 RAMA, Angel. A Cidade das Letras. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1984, p.48. 23 Ver BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p. 228. 21

A mais fidedigna descrição da vida e trajetória deste intelectual militante foi relatada por ele mesmo, numa carta direcionada a Lúcio Mendonça redator do Almanaque Literário, datada de 25 de julho de 1880, em que objetivava publicar sua biografia. Luiz Gonzaga Pinto da Gama, ou simplesmente Luiz Gama, informa na carta 24 que nasceu na cidade de Salvador em 1830 e era filho natural de uma negra africana de nome Luiza Mahin. Aponta, ainda, que sua mãe envolvera-se em insurreições escravas e, em função disso, refugiou-se na cidade do Rio de Janeiro. Seu pai, um fidalgo rico e amante da jogatina, a quem reservara uma forte injúria, vendeu seu próprio filho como escravo a um comerciante carioca. Em 1840, Gama foi vendido a um negociante contrabandista do interior de São Paulo, que viajou com seu lote de escravos até a cidade de Santos, passando por Campinas, Jundiaí e finalmente chegando a cidade de São Paulo. Aos 18 anos de idade aprendeu a “ler e contar alguma coisa” 25 , obteve sua liberdade e prestou serviço militar por seis anos. Profissionalmente, foi escrivão e nomeado amanuense da Secretaria de Polícia. Tornou-se um rábula, advogado não formado que podia exercer a profissão por meio de uma licença, uma vez que comprovasse competência na matéria jurídica. Luiz Gama foi fundador do Diabo Coxo e escreveu para vários jornais. Foi redator de alguns periódicos de pequeno porte, colaborou, também, com uma grande quantidade de artigos em seções abertas de jornais diários de tendência republicana e abolicionista, como, por exemplo, no Correio Paulistano, na Província de São Paulo, e na Gazeta do Povo. Foi poeta e publicou o livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. Realizou dezenas de palestras em favor da abolição e tornou-se um ferrenho defensor da causa, caracterizado como um abolicionista radical em função de sua postura discursiva. Participou ativamente da construção do Partido Republicano, era um liberal convicto e negociou até o limite as possibilidades de uma abolição radical em meio a grupos conservadores.

24 MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p.19. 25 Idem, p. 24. 22

Luiz Gama faleceu em 1882, e o peso de sua atuação política e social pode ser refletido no cortejo do seu enterro. Parte do comércio da cidade de São Paulo fechou suas portas em homenagem ao ilustre político. Juízes, advogados, jornalistas e o vice-presidente da província participaram do funeral, juntamente com mais de 3 mil pessoas. A trajetória da vida pública de Luiz Gama, por si, é tentadora para a criação de memórias de vítima e/ou herói mistificado, desprezando-se o processo histórico concreto. A memória individual ou coletiva é uma representação seletiva do passado inserida num determinado contexto social. Procuramos, neste trabalho, desvendar as razões que levaram os críticos a construir estas memórias de determinada maneira 26 e ainda “procurando explorar os significados subjetivos da experiência vivida. 27 ” Na nossa abordagem, procuramos problematizar constantemente os marcos da memória de Luiz Gama, fortemente presente no imaginário social, constituindo-se como “exemplo” e referência de luta contra a opressão racial. Sua memória foi representativa para inúmeras organizações, instituições e movimentos negros, assim como inspiradora, ideologicamente, na criação de folhetins, jornais e publicações diversas em todo o Brasil. As datas comemorativas são, por excelência, momentos de recrudescimento de memórias. No ano de 1938, ano do cinquentenário da abolição, Sud Menucci, membro da Academia Paulista de Letras, publicou o trabalho biográfico, O precursor do abolicionismo no Brasil. Essa obra foi referência “obrigatória” para quem ousasse adentrar os estudos da vida e obra de Luiz Gama. Em meio às comemorações, Menucci exaltou o intelectual negro como o grande “defensor dos escravos 28 ”. Ainda que o estado atual dos estudos historiográficos tenha se apoiado em novos conceitos, problemas e documentos, não podemos considerar a obra de Sud Menucci como um trabalho datado, pois sua interpretação estava carregada de sentidos atribuídos

26 THOMSON, Alistair. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos & Abusos da História Oral. 8ª. edição. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 67. 27 Idem. 28 MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama) . São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p.160. 23

ao vivido 29 , às influências sociais, às comemorações dos cinquenta anos da abolição. Nas últimas décadas, três obras apresentaram uma envergadura analítica que lançou novos olhares sobre a vida e obra desse intelectual diaspórico, possibilitando novas perspectivas de análise e desmistificando algumas posições sobre sua vida política. São elas: Orfeu de Carapinha – a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo; Com a Palavra, Luiz Gama – poemas, artigos, cartas, máximas; e Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. Em Orfeu de Carapinha 30 , Elciene Azevedo contribuiu profundamente para os estudos que tratam da vida e obra de Luiz Gama. No processo de reconstrução da trajetória deste intelectual, a autora elaborou uma narrativa bastante abrangente por meio de documentos diversos, o que possibilitou tecer análises sobre sua produção poética, sua vida política liberal-republicana e sua identidade, tudo isso interligado às disputas políticas e às relações sociais conflitantes de uma sociedade marcada pela dominação social. Destaque-se, também, em suas análises, o envolvimento profissional de Luiz Gama nas querelas jurídicas de disputa pela propriedade escrava. Este trabalho foi de grande importância para a elaboração desta tese, pois além de permitir localizar as fontes, contribuiu também para retomar algumas questões numa outra perspectiva. Sílvio Roberto, em Gamacopéia 31 , procurou evidenciar como o texto poético de Luiz Gama foi interpretado pelas mais variadas produções biográficas e pela crítica literária. Demonstrou também como sua poesia dialogou com as expressões literárias de seu tempo. Nas suas análises a respeito do lirismo, da sátira, de suas imagens poéticas e a realidade social e nos cruzamentos de suas referências originárias da tradição ocidental com

29 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p.12. 30 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. 31 OLIVEIRA, Sílvio Roberto dos Santos. Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Tese (doutorado), 2004. 24

elementos da cultura negra, nos permitiu, a partir deste último aspecto, selecionar um conjunto de poemas que denominei de satírico-raciais. Lígia Fonseca Ferreira, estudiosa perspicaz da produção literária do Luiz Gama, dedicou-se, depois do último trabalho do Julio Romão (década de 50), na organização e reedição crítica das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino 32 , e, em Com a palavra Luiz Gama 33 , a autora reuniu todos os poemas e vários artigos jornalísticos publicados na imprensa paulista. A compilação realizada pela referida autora foi bastante útil na organização deste trabalho, fizemos uso de várias fontes pertencentes a esse material compilado. Quanto a sua obra, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, as instâncias legitimadoras 34 procuraram ver apenas no valor estético o caminho para “sacralizar” a sua produção poética. O arcabouço da crítica literária teve como instrumental o pensamento moderno, racialmente codificado 35 e, por vezes, não atentaram para as armadilhas de seus paradigmas – evolucionismo e superioridade cultural. Hoje, nos dias atuais, Beatriz Sarlo chama-nos a atenção para a posição da crítica literária. “Pode a crítica literária reclamar para si, e em sua atual variedade teórica dominante, o controle epistemológico sobre todos os discursos que tenham como objeto a literatura? 36 ” Trovas Burlescas de Getulino, mas que um reflexo da sociedade paulista, auxiliava na construção de novas reflexões a respeito das relações sócio-raciais. Sua fonte de inspiração era a experiência social paulistana, sobre a qual, Luiz Gama lançava suas enunciações projetivas e de denúncias aos costumes e valores vigentes. Esta antologia não se circunscrevia apenas a poemas de ordem racial, compunha-se com os mais variados temas, da borboleta aos valores sociais do século XIX.

32 FERREIRA, Lígia Fonseca. Primeiras Trovas Burlescas e Outros Poemas – Luiz Gama. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2000. (Coleção poetas do Brasil). 33 Idem. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. 34 Ver BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 39-44. 35 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p.30- 40. 36 SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias – intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, p. 76. 25

Desta forma, esse trabalho está dividido em quatro capítulos, que uma vez articulados permitem dar uma dimensão de conjunto da produção cultural de Luiz Gama. No primeiro, analiso a intelectualidade de Luiz Gama, como se deu sua experiência intelectual em meio às complexas transformações da modernidade política paulistana, seus embates profissionais como advogado e jornalista, assim como sua intensa luta em favor do cativo, ou seja, do escravizado. Este capítulo procura responder, ainda, como era ser um negro liberal e republicano num momento histórico em que a propriedade escrava era o centro do debate político e econômico. No segundo capítulo, Luiz Gama: memória e identidade diaspórica, refletimos sobre as formas como a diáspora foi vivida por este intelectual na cidade paulistana através de suas práticas políticas, profissionais e, principalmente, da escravidão e da memória da escravidão. O capítulo aborda, ainda, a diáspora na cidade de São Paulo, que, apesar da rigorosidade das hierarquias, a topografia dos seus espaços, propiciou contatos, trocas, interpenetrações ao mesmo tempo em que os sujeitos foram criando e dando identidades aos lugares. O terceiro capítulo, A sátira racial enquanto poesia da transgressão: poéticas diaspóricas como contra-narrativa à ideia de raça, centra-se no universo poético de Luiz Gama, desde sua experiência à crítica literária. Apresenta uma seleção de poemas, que considero satírico-raciais, que ridiculaliza, questiona e perturba as formas de pensar que prezam pela pureza racial numa modernidade mediada pela raça. O quarto e último capítulo, A memória pública de Luiz Gama, interpreta como, em diferentes momentos históricos entres diferentes grupos sociais, a sua memória mediou conflitos e por vezes personificou uma imagem de herói popular e símbolo da luta político-racial.

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CAPÍTULO I Intelectualidades e Relações Étnico- raciais na cidade letrada paulistana

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“Civilizados até o tutano! A ideia do negro bárbaro é uma invenção europeia”. Aimé Césaire, Discurso sobre o Colonialismo.

De personalidade de difícil definição, Luiz Gama viveu em meio ao turbilhão de mudanças e trocas de experiências socioculturais entre povos e indivíduos para além das fronteiras nacionais, para este momento de transformações chamaremos de modernidade. A profundidade das transformações da modernidade desestabilizou os sujeitos, tornando suas identidades complexas, fazendo-os possuir diferentes posições, por vezes contraditórias. A identidade desse sujeito da modernidade era fragmentada, contraditória e incompleta como a de qualquer indivíduo moderno. De cabelo carapinha, barba ao estilo da época e olhar altivo, a imagem abaixo (Figura 1) é a que nos resta da sua fisionomia, captada por volta da década de 80 do século XIX. Em 1881, foi publicado um artigo no jornal Gazeta da Tarde que o descrevia como o “homem mais popular de São Paulo37 ”, que “usa um simpático chapéu branco tão popular como ele” 38 ”. A sobriedade de sua postura fotográfica não corresponde ao estilo de suas narrativas a respeito da conjuntura escravista e do cotidiano do cenário político. Em seu estilo linguístico, estavam presentes a jocosidade, a sátira, a objetividade, a ironia e a comicidade, esse último recurso foi bastante explorado nos jornais Diabo Coxo, Cabrião e O Polichinelo. Versátil e multifacetado, o humor, a ironia e a objetividade por vezes achavam-se entrelaçados. Em alguns textos, Luiz Gama critica e debocha das relações de poder, pois sua intenção era a subversão dos valores sociais e políticos através do riso.

Riamo-nos; o riso é como o sol, expele a tristeza da fronte humana. Diante de uma parvoíce, em frente de um disparate, gargalhada tem sua graça.

Seriedade hoje, seriedade amanhã, seriedade sempre – aborrece. A monotonia mata. Cerveja que goteja não ajunta espuma 39 .

37 Gazeta da Tarde, 26 de março de 1881. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 38 Idem. 39 Cabrião, São Paulo, 1866, nº 03. Brasiliana USP, Brasiliana Digital, consulta em 02 de setembro de 2013. 28

Figura 1 - Luiz Gama, em foto de Militão Augusto de Azevedo. Essa foto é uma das inúmeras reproduções existente nas redes de comunicações (internet) a partir do original. A pose para a foto atende as convenções sociais de seu tempo, vestido a rigor, mantém todo o recato para o momento de ser fotografado.

Nos jornais ilustrados, satíricos e de humor, recuperava-se o papel do corpo como um significante histórico, um corpo que ri em meio a um ambiente histórico marcado pelo mandonismo e autoritarismo. Essas produções contrapunham-se ao racionalismo moderno, que transformou o corpo num “objeto” sério, objetivo, sisudo. 29

Mas o que era ser um intelectual e negro no século XIX? Quanto ao intelectual, Raymond Williams 40 , em sua vasta e profunda pesquisa sobre as palavras, procurando evidenciar como as mesmas foram historicamente construídas, atribui o significado do termo à sociedade moderna. O intelectual, nos informa o pesquisador da sociologia da cultura, como substantivo, relaciona-se ao indivíduo que se dedica a um tipo específico de trabalho que data efetivamente ao início do século XIX. Ser um intelectual negro de ascendência africana no Brasil oitocentista era, no mínimo, uma condição perplexa e embaraçosa. É justamente a condição de negro que transforma Luiz Gama num intelectual diaspórico, pois vive uma certa dualidade, encontra-se dividido entre as afirmações da particularidade racial e apelo aos universais modernos que transcendem a raça 41 . Estas são as condições gerais, abstratas, de referenciais sociais para ser um intelectual negro. Passemos, agora, para as condições concretas e subjetivas em que Luiz Gama se insere nesse mundo do pensamento crítico e reflexivo como modo de vida.

Figura 2 - Vê-se no anúncio do Jornal Correio Paulistano que Luiz Gama era membro da sociedade associativista Recreio da Amizade.

Sua participação em clube recreativo, como consta no anúncio acima, revela que, muito tempo antes do início de sua carreira intelectual, já existia uma sociabilidade e capacidade de liderança em meio à elite paulista. Seu

40 Ver WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave – um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007, p.235. 41 Teoria da Dupla Consciência, de William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963). 30

ingresso nesta Sociedade possivelmente pode estar associado à sua breve carreira militar, de onde estabeleceu relações com os militares. “Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado 42 ”. O fenômeno associativo é interpretado por alguns historiadores como prática de “solidariedade horizontal 43 ”. Da experiência dos deslocamentos forçados, da escravidão, de um universo brutal de mando/obediência para a convivência em um espaço de manifestação de “solidariedades horizontais” privadas, Luiz Gama teve que reapropiar, reconstruir, “aprender a habitar, no mínimo duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas 44 ” o seu projeto político negro. O sentido da condição intelectual em Luiz Gama está totalmente relacionado à sua experiência de vida. Sua carreira jornalística e política consistiu em trabalhar arduamente em defesa dos desvalidos (problematizaremos mais adiante os sentidos dessa proteção). Desejava fazer do jornalismo uma missão política de denúncia social. Os seus primeiros artigos publicados na principal imprensa paulista traziam, a princípio, as suas intenções com o conhecimento jurídico. Na contemporaneidade, poderíamos chamá-lo de um intelectual orgânico:

Fique-se pois sabendo, uma vez por todas, que meu grande interesse inabalável que manterei sempre, a despeito das mais fortes contrariedades, é a sustentação plena, gratuitamente feita, dos direitos dos desvalidos que correrem ao meu tênue valimento intelectual.

Está presente na formação intelectual de Luiz Gama o pensamento cristão racionalizado por meio das ideias de Ernest Renan 45 , historiador e filósofo francês, autor dos livros Vida de Jesus, escrito 1863, e La Réforme intellectuelle et de morale, em 1871. Nesse primeiro livro, Renan procurou

42 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça. In: MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama) . São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p. 24. 43 A meu ver, nestas práticas não se excluem relações de poder subjetivas. Ver JESUS, Ronaldo Pereira de. Associativismo no Brasil do Século XIX: repertório crítico dos registros de sociedades no Conselho de Estado (1860-1889). Revista de História, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 151, 2007. 44 Ver HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.89. 45 FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo , vol. 21, n.60. maio/agosto 2007. 31

apresentar a figura histórica de Jesus menos romântica e mais racional, desvinculando-o das especulações metafísicas. Apesar de ter sido batizado aos oito anos de idade numa igreja católica e declarar que sua mãe, Luíza Mahin, foi uma pagã, que “sempre recusou o batismo e a doutrina cristã 46 ”, Luiz Gama deixou-se influenciar pela dominância do pensamento racional moderno presente no modelo de religião que preconizava. O Cristo de Ernest Renan foi homem que colocou o “interesse pela humanidade” acima das “vaidades mundanas”, um indivíduo “excepcional” na história. No contexto de lutas pela abolição e pelo regime republicano, essas adjetivações que Renan atribuiu a Jesus foram filtradas por Luiz Gama e incorporadas em sua personalidade. Personalidades históricas de luta pela liberdade e pela república também faziam parte do mosaico de mártires que influenciou a vida deste intelectual negro. O primeiro era Tiradentes, que comparou 47 a Jesus Cristo – “Dois cristos exigiam dois mundos. Um divinizou a cruz, outro a forca 48 ”; e o padre Diogo Antonio Feijó, que para ele era exemplo de um Jesus libertador, ao libertar seus próprios escravos, ainda que oficialmente a igreja católica não fosse contrária à escravidão. Luiz Gama relacionava a figura histórica de Jesus Cristo com a liberdade que se contrapunha à escravidão humana. Ao descrever um rigoroso castigo físico sofrido por em escravo, comparou-o a “um Cristo negro, que se ia sacrificar pelos irmãos de todas as cores 49 ”. Suas posições e posturas radicais frente ao abolicionismo, às ideias liberais e ao republicanismo foram influenciadas pelas energias desses sujeitos históricos.

Ao positivismo da macia escravidão eu anteponho o das revoluções da liberdade; quero ser louco como John Brown, como Espártacus,

46 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, in MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p.19. 47 Sob o título A forca o Cristo da multidão, Luiz Gama teceu essas referências no periódico carioca Tiradentes no dia 21 de abril de 1882. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, pp. 174-176. A simbologia e o paralelo entre Cristo e Tiradentes foram analisados por José Murilo de Carvalho, em A formação das almas – o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.64. 48 Idem. 49 A província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p.155. 32

como Lincoln, como Jesus; detesto porém, a calma farisaica de Pilatos 50 .

Dada a sua experiência religiosa, Luiz Gama acreditava que as instituições maçônicas, a exemplo da Loja América, da qual fazia parte, poderiam contribuir fervorosamente em favor da emancipação dos cativos. Não apenas esta experiência, mas também a relação direta dos fundamentos maçônicos com a ilustração, “a utopia da fraternidade 51 ” e “a convivência intelectual entre as pessoas não obstante, diferenças sociais de origem 52 .” A maçonaria no Brasil já possuía em seu histórico a defesa da liberdade do indivíduo e dos povos. Dificilmente algum político, quer seja liberal ou conservador, da segunda metade do século XIX não tinha em sua vida política algum tipo de passagem por uma loja maçônica 53 . A abolição, afirmava Gama, “impunha em nome de Deus, da moral e da religião 54 .” Para este feito, a Loja América o apoiou, em questões de manumissão (alforria), através de “promoção das subscrições filantrópicas 55 ”. Por meio da maçonaria, dizia Gama, “tenho promovido muitas ações em favor de pessoas livres, ilegalmente mantidas em cativeiro”.

A Loja América, instalada em novembro de 1869, além de rigorosa observância das obrigações maçônicas, [...] resolveu trabalhar no intuito de promover a propagação da instrução primária e a emancipação dos escravos pelos meios legais 56 .

A respeito da instrução primária, uma investigação minuciosa nos jornais 57 da época revela que Luiz Gama também foi professor. Algumas “escolas populares” consistiam em espaços extraoficiais de ensino coordenado pela loja maçônica América. O ensino era gratuito e fornecia o material

50 FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 100. 51 Ver AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Maçonaria: História e Historiografia. Revista USP, São Paulo (32), 178-189, dezembro-janeiro, 1996-97, p.182. 52 Idem. 53 Ibidem. 54 Luiz Gama, Apontamentos biográficos, jornal Radical Paulistano, 24 de maio de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 55 Luiz G. P. Gama. Loja América. Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 56 Idem. 57 Correio Paulistano, São Paulo, domingo 3 de abril 1870. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 33

necessário para a aprendizagem. Segundo o anúncio publicado em abril de 1870 no jornal Correio Paulistano, a Loja matriculou 252 alunos, sendo 217 livres e 35 escravos, 222 brasileiros, 18 portugueses e 5 africanos, 3 alemães, 1 suíço, 1 espanhol e 1 italiano. Quanto aos escravos, só poderiam ser admitidos caso apresentassem autorização por escrito dos seus senhores. Para Luiz Gama, a maçonaria não se restringia apenas como espaço de espiritualidade, ampliava também suas possibilidades políticas de transformação social. Ele mesmo se encarregava de promover a divulgação das escolas populares.

Em relação ao ensino popular, ela [loja América] fundou e sustenta nesta capital uma escola noturna de primeiras letras, onde se acham matriculados 214 alunos, sendo efetivamente freqüentes 100. (...) Além dos esforços do professor, para o preenchimento de seus deveres, há o concurso dos auxílios de um dos membros da loja, o qual, durante a semana que lhe é designada, tem de assistir todas as noites à escola58 .

O empenho de Luiz Gama e da maçonaria em promoverem a instrução para negros, escravizados e demais populares repercutiu positivamente. Em artigo, cuja autoria aparece sob o pseudônimo de O Cocheiro, enviado à redação do jornal Correio Paulistano e publicado em 10 de março de 1871, o referido autor reconhece que a educação poderia tirar a cidade “da burrice em que andávamos 59 ” e caminhar nos marcos dos ideais “civilizatórios.” Sobre o papel de Luiz Gama nesse processo, afirma:

E por tratar no Sr. Luiz Gama; enquanto os homens que nos governam andam por cima cuidando dos seus negócios, ele e outros do povo criam escolas para nos ensinarem de graça, a ler, coisa de que ninguém até hoje se tem lembrado, nem mesmo os senhores frades do Seminário, que além de santos, são os homens mais sábios e caridosos que conheço 60 .

Em Luiz Gama, religiosidade, política e intervenção social encontram-se entrelaçadas. Uma análise apressada poderia indagar o porquê da presença

58 Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871. Há uma pequena divergência entre o anúncio do jornal e o texto de Luiz Gama quanto ao número de matriculados, parece-me mais precisa a informação do professor, pois o mesmo tinha informações mais atualizadas do curso. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 59 Correio Paulistano, 10 de março de 1871. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 60 Idem. 34

cristã em sua formação pessoal, uma vez que sua mãe recusara a doutrina cristã, possivelmente como protesto. Assim como suas recomendações à leitura da Bíblia, uma vez que este livro admitia a escravidão, quando interpretado literalmente, e o cristianismo não o condenava. Nota-se uma ausência total de signos da religiosidade africana, em um negro tão radical na defesa da cultura africana e da abolição, levando-se em consideração, também, o papel histórico do cristianismo no novo mundo e sua cumplicidade com a escravidão. Não desejava que seu filho se aproximasse de seitas religiosas por considerá-las místicas, primitivas, estaria aqui incluso as religiões de matrizes africanas? Entendemos que suas posições ambíguas são características das antinomias 61 da modernidade que Luiz Gama confrontou, traduziu e assimilou. 62 Os signos culturais religiosos da cultura dominante estiveram presentes em sua formação político-religiosa. Em carta dirigida ao seu filho em 1870, recomenda a leitura de dois livros: a bíblia sagrada e a Vida de Jesus por Ernesto Renan 63 .

Sê cristão e filósofo; crê unicamente na autoridade da razão, e não te alies jamais a seita alguma religiosa. Deus revela-se tão somente na razão do homem, não existe em Igreja alguma do mundo. Há dois livros cuja leitura recomendo-te: a Bíblia Sagrada e a Vida de Jesus por Ernesto Renan 64 .

Luiz Gama acreditava no pensamento liberal racional-cristão porque o considerava capaz de chegar às “verdades” do conhecimento. E o via como possibilidade de trazer a público as inconsistências e as incoerências da política e do direito escravista, apresentando “soluções” racionais, técnicas e políticas para os problemas sociais (escravidão). Em seu artigo Questão Jurídica, no qual procurava examinar as questões do Direito referentes aos tratados internacionais assinados para por fim ao tráfico de escravo, as “insuficiências de medidas legislativas”, a

61 Ver subcapítulo Modernidade, Terror e Movimentos. In: GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p. 234. 62 No artigo A morte dos deuses nos Estados Unidos, Antonio Risério discute o porquê da continuidade dos cultos de matriz africana no Brasil e sua morte literal nos Estados Unidos. RISÉRIO, Antonio. A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 123-148. 63 Luiz Gama, Carta ao filho, Benedito Graco Pinto da Gama. MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. 64 Idem. 35

“corrupção administrativa e judiciária” frente à permanência da escravidão, nota-se sua fé inabalável na autoridade da razão jurídica. Esta posição ficou mais evidente no artigo publicado no Correio Paulistano, em 1871:

Se algum dia, porém os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidas pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei a promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica, como a sanção necessária para por preceito aos salteadores fidalgos, aos contrabandistas impuros, aos juízes prevaricadores e aos falsos impudicos detentores 65 .

Uma vez que acreditava na justiça e em suas operacionalizações nos processos de libertação escrava, mas reconhecendo a necessidade da “resistência” nas situações em que o poder jurídico é corrompido, só restava a Luiz Gama o espaço do bacharelismo como campo de luta. A maioria da elite intelectualizada tinha formação superior, como bem sustenta José Murilo de Carvalho, um “elemento poderoso de unificação ideológica”, ou daí provia todo o arcabouço teórico para os futuros bacharéis. E foi justamente a partir do espaço acadêmico que se deu a profissionalização da política, ou de onde surgiu a maior parte da intelligentzia profissional liberal 66 . Em Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira, Sérgio Adorno defende a tese de que o Estado brasileiro em gestação foi um Estado de magistrados, “dominado por juízes, secundado por parlamentares e funcionários de formação profissional jurídica”. O referido autor sustenta, ainda, que o bacharel exercia um papel social de mediador entre os interesses privados e interesses públicos. Para os defensores do bacharelismo como centro da vida social, ser estudante de Direito era dedicar-se “ao jornalismo, fazer literatura, especialmente a poesia, consagrar-se ao teatro, ser bom orador, participar dos grêmios literários e políticos, das sociedades secretas e das lojas maçônicas 67 ”.

65 Luiz Gama, Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 66 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 78. 67 Idem, p.162. 36

Essas condições de ingresso à intelligentzia paulista, a priori bastante elitistas, deu ao Direito a principal porta de entrada ao universo intelectual e/ou de participação na vida social com distinção de classe. Foi nesse ambiente e em condições sociais e raciais adversas que Luiz Gama familiarizou-se e construiu seu universo ideológico político-liberal. A vida intelectual tinha na imprensa seu principal veículo de divulgação de ideias e de debates frutos de alguma produção científica. Era comum, em seus artigos jornalísticos, encontrar críticas ao sistema jurídico, como atestamos na citação anterior e, principalmente aos jurisconsultos, quanto a este último questionava bastante a qualidade de suas formações, por vezes, chamava-os de incompetentes. Do ponto de vista da formação profissional, não devemos perder de vista que as academias de Direito foram criadas muito mais para atender às exigências 68 burocráticas do emergente Estado-nação do que para a formação exclusivamente jurídica.

68 Sérgio Adorno, no capítulo O liberalismo sob as Arcadas: o confronto entre a academia formal e a academia real, apresenta detalhadamente alguns problemas no curso de formação dos bacharéis em Direito: indisciplina do corpo discente, estrutura curricular e de aprendizagem deficitária, impessoalidade nas relações do corpo docente com os estudantes, assiduidade dos professores, entre outros. p. 91-155. 37

Figura 3 - O curso jurídico de São Paulo apresentou uma série de problemas relativos ao ensino-aprendizagem e “a dispersão constituía regra pedagógica em sala de aula”. , aluno do curso em 1863, relata que: “Se dependesse de mim encurtar o resto do ano, já estava ele acabado e eu livre do Furtado [professor] e do cínico, massante e amolador Ramalho, e do obsceno e repugnante Antonio Carlos. Mas qual! Este suplício ainda durará alguns meses.” (ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp.104-105)

Suas críticas ao bacharelismo já se encontram em sua primeira produção, nas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, publicada em 1859, dez anos antes de tornar-se sistemática em seus artigos publicados nos jornais de grande circulação na cidade de São Paulo.

Se temos majestosas Faculdades, Onde imperam egrégias potestades, E, apesar das luzes dos mentores, Os burregos também saem doutores ...... É que sábio no Brasil só quer lembrança, Onde possa empantufar a larga pança! 69

Suas publicações voltaram-se, em especial, para criticar e denunciar politicamente os julgamentos arbitrários e apontar os erros de jurisprudência dos magistrados. Luiz Gama lutava por uma ética jurídica liberal que estivesse em permanente contato com o cotidiano das camadas populares, de forma que os profissionais do Direito tornassem seus “verdadeiros defensores”, frente ao quadro social de exclusão, exploração e escravidão. Acompanhava pessoalmente processos envolvendo escravizados, ainda que não fosse

69 Luiz Gama, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (texto da 1ª edição digitalizado na íntegra). www.ieb.usp.br/online/index.asp, São Paulo: Bentley Junior, 3º edição, 1904, p.267. 38

destacado para o mesmo. Suas ações na justiça aconteciam a partir da divulgação dos seus serviços. “Luiz G. P. da Gama continua a trabalhar causas da liberdade. Outro sim, responde consultas para fora da capital, tudo sem retribuição alguma 70 ”. Sua fama de advogado que lutava em prol dos escravizados foi além da província de São Paulo: “há um africano, um só, que veio da província de Minas Gerais em procura dos meus minguados esforços 71 ”. Diante desse contexto, em um artigo publicado no jornal Radical Paulistano em julho de 1869, Gama esclarece que não era graduado em jurisprudência e que jamais frequentou academias e que não costumava “intrometer-se de abelhudo em questões jurídicas 72 ”, o que não tornava diminuta sua competência em advogar em prol dos escravizados. Sempre procurava fundamentar-se previamente nas questões jurídicas para apresentar petições em favor de escravizados ilegalmente ou para criticar, por meio da imprensa, as incoerências de despachos impetrados por juízes incompetentes. Atento à observância das leis, em seu artigo Questão Jurídica 73 , Luiz Gama aponta a complementaridade das leis de 1818, 1831 e 1850 no tocante à entrada de africanos na condição de escravizados. Suas ações judiciais baseavam-se, entre outras, nas ilegalidades e arbitrariedades jurídicas que não “atentavam” para essas leis e, em função desta situação, procurava beneficiar os cativos escravos ilegalmente. Luiz Gama fazia defesa também de casos jurídicos resultantes da condicionalidade de algumas práticas de alforria, ou seja, os acordos mutuamente estabelecidos entre senhores e escravos que ao final resultaram na alforria do escravizado. O artigo Questão Jurídica é um dos seus mais longos textos publicado nos jornais. Apresenta uma análise jurídica e política dos “efeitos manumissórios da lei de 26 de janeiro de 1818, depois das de 7 de novembro

70 Correio Paulistano, 26 de novembro de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 71 Luiz Gama, Correio Paulistano, 20 de novembro de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 72 Luiz Gama, Radical Paulistano, 29 de julho de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 73 “QUESTÃO JURÍDICA”. Luiz Gama. A Província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880. Acervo da hemeroteca digital do jornal O Estado de São Paulo, consulta em 11 de janeiro 2014. 39

de 1831 e 4 de outubro de 1850 74 ”. Resolveu publicar tal análise depois das discussões referentes à concessão da ordem de habeas-corpus que solicitou a favor do preto Caetano, um africano livre, havido como escravo do senhor comendador Joaquim Policarpo Aranha, fazendeiro do município de Campinas, em 1880. O texto cita os artigos das leis 75 de 1818, 1831 e 1850 em sua integridade para chamar a atenção do leitor, no sentido de apontar para as suas respectivas ineficácias deste infame comércio 76 , principalmente na cidade de São Paulo, apontando para a força política dos traficantes no governo imperial.

Os contrabandistas conseguiam tal importância política no Império, tinha interferência tão valiosa nos atos de governo, que iam ao ponto de dissolver ministérios, como publicamente, sem réplica sem contestação, asseverou na imprensa o exmo. Sr. Conselheiro Antonio Carlos 77 .

Jaime Rodrigues em O Infame comércio destaca que com a primeira lei proibitiva do tráfico de 1831, a punição aos envolvidos com o tráfico ficava na alçada da justiça local, este procedimento deu margem na maioria das vezes, aos traficantes e compradores de escravizados de escaparem aos julgamentos. A quantidade de processos instaurados na justiça brasileira para julgar contrabandos de africanos, após 1831, é ínfima 78 . Daí tamanho alarde analítico

74 Idem. 75 No referido artigo Gama cita o primeiro parágrafo da lei da Convenção Adicional promulgada em 1818: “Todas as pessoas, de qualquer qualidade e condição que sejam, que fizerem armar e preparar navios para o resgate e compra de escravos, em qualquer dos portos da Costa d’África, situados ao Norte do Equador, incorrerão na pena de perdimento dos escravos, os quais ‘imediatamente ficarão libertos’ para terem o destino abaixo declarado...” No referente a lei de 1831, cita esta passagem: “Art. 1º - Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, ‘vindos de fora’, ficam livres. Art. 2º - Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do art. 179 do código criminal, imposta ‘aos que reduzem à escravidão pessoas livres’... “- Incorrem na mesma pena os que cientemente comprarem como escravos os que são declarados livres no art. 1º desta lei”. Por fim, quanto a lei de 1850, tece suas análises a partir de um parecer do Conselho de Estado, dentre as leis citada, faço destaque ao artigo terceiro: “É preciso constatar o desembarque, verificar a importância e tráfico, para que os escravos provenientes sejam havidos por livres!...” 76 Ver RODRIGUES, Jaime. O Infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2000 (Coleção várias histórias). 77 “QUESTÃO JURÍDICA”. Luiz Gama. A Província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880. Acervo da hemeroteca digital do jornal O Estado de São Paulo, consulta em 11 de janeiro 2014. 78 RODRIGUES, Jaime. O Infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2000 (Coleção Várias Histórias). p. 130. 40

de Luiz Gama a respeito da historicidade da legislação anti-tráfico e as cumplicidades da elite política e religiosa com o contrabando.

Os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da polícia, sem recato nem mistério; eram os africanos sem embaraço algum levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e batizados como escravos pelos reverendos, pelos escrupulosos párocos 79 .

Desta forma o direito aparece claramente na vida política de Luiz Gama como expressão de justiça social, como estratégia em meio às regras de um “jogo” no mínimo embaraçoso e conflituoso, dividido entre a “primazia da liberdade e da defesa irrestrita do direito de propriedade 80 ”. Para tanto, para sair do campo meramente retórico e ideológico, Gama via o direito como um espaço ativo capaz de diminuir a assimetria do pêndulo da balança da justiça, por isso, valorizava bastante o debate entorno da jurisprudência escrava. Em 1881, escreveu no jornal O Abolicionista um artigo intitulado Exercício de Hermenêutica, o fragmento abaixo é carregado de citações de leis e artigos de institutos jurídicos, das ordenações filipinas e da constituição imperial, o que atesta as suas fundamentações.

Considerando a ilegitimidade da escravidão, “que é contrária à natureza; visto como, por direito natural, todos nascem livres, todos são iguais”; que nada é mais digno de favor que a liberdade, pelo que, em benefício dela, muitas coisas se determinam “contra o rigor do direito”, e que são mais fortes, e de maior consideração as razões que concorrem a seu favor do que as podem fazer justo o cativeiro 81 .

Em determinado momento, cita o famoso jurista Perdigão Malheiro 82 , em referência ao direito manumissório: “o direito à liberdade, uma vez adquirido, torna-se perpétuo 83 ”. No artigo Questão Jurídica, Gama dizia que “o direito

79 “QUESTÃO JURÍDICA”. Luiz Gama. A Província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880. Acervo da hemeroteca digital do jornal O Estado de São Paulo, consulta em 11 de janeiro 2014. 80 Ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade – uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 121. 81 O Abolicionista, Rio de janeiro, 1 de julho de 1881. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 29 de agosto de 2013. 82 Autor, entre outras obras, de A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico e social de 1866. 83 O Abolicionista, Rio de janeiro, 1 de julho de 1881. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 41

nasceu com o homem, tem a sua história, conta um passado, revive no presente, e é essencialmente progressivo 84 ”. Nesta conjuntura, o direito apresenta-se com uma força política em direção ao fortalecimento da campanha abolicionista, uma posição inversa também é verdadeira 85 ; o calor da campanha tendeu a favorecer os escravizados nos momentos mais conflitantes de interpretação do direito. Gama informa que “o número de libertados por via de ações no foro desta capital, e em outros, por determinação da loja, sobe a mais de trezentos 86 ”. O Império tinha uma população escrava aproximada em 1,5 milhão pessoas 87 , e São Paulo com 156.000 (ver o quadro da página 179). Como se vê, os números demonstram que a libertação via ações judiciais poderia levar décadas, mas devemos reconhecer o peso político dessas ações na aceleração de medidas que conduziram a libertação total. A constituição imperial, ao garantir o direito de propriedade em toda a sua plenitude, procurava preservar os privilégios sociais e raciais por meio da lei. A lei, como atividade mediadora e reguladora das relações sociais escravistas, não era um mecanismo “mascarado” de domínio de classe; se fosse apenas esta a sua intenção, Luiz Gama já o teria “desconstruído”. Na verdade, nenhuma lei é

[...] manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa 88 .

E para entendermos a crença e a luta de Gama na possibilidade de uma libertação geral em todos os processos manumissórios, precisamos desconstruir a imagem do direito de sua “função ideológica”, como uma

84 “QUESTÃO JURÍDICA”. Luiz Gama. A Província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880. Acervo da hemeroteca digital do jornal O Estado de São Paulo, consulta em 11 de janeiro 2014. 85 Acreditamos que os debates jurídicos também fortaleceram teoricamente a ciência jurídica. 86 Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 25 de agosto de 2013. 87 Dados a partir de, A. M. Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil (São Paulo, 1944) II, 26, 197-198, citado por CONRAD, Robert. The destruction of Brazilian Slavery, p. 283, Censo Demográfico de 1872. 88 Ver THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores – a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.354. 42

“ideologia dominante como mera hipocrisia 89 ”. Em sua prática advocatícia cotidiana, Gama deu um novo sentido à ideologia 90 do direito. Definiu, decifrou, tornou inteligíveis as leis, no sentido de canalizá-las para os interesses políticos do grupo social no qual estava envolvido. Dentro desta perspectiva conseguiremos analisar melhor suas atividades políticas e profissionais no campo jurídico, utilizando-se da ideologia do direito como “força material 91 ”, abrindo caminho para a libertação escrava. Apesar da ausência de diploma de bacharel em Direito, Luiz Gama possuía uma autorização, uma provisão expedida a pedido do pretendente, que o tornava habilitado legalmente para o exercício da profissão. Tal condição era denominada pejorativamente de rábula, o que não correspondia com a erudição jurídica desse intelectual. Outras profissões no Brasil também tinham os seus profissionais “práticos”, a exemplo dos Dentistas. O caráter instável e aberto da legislação fazia com que a advocacia não fosse uma prerrogativa exclusiva dos bacharéis em Direito, num momento histórico em que o ato de alforriar já não depende mais de uma prerrogativa exclusiva dos senhores 92 . A legislação 93 da época deixava espaços vazios que favoreciam a iniciativa de advogados inventivos, dando possibilidades aos escravos e aos rábulas de desempenharem um papel ativo nos processos de manumissão. Intrometia-se de “abelhudo 94 ” nas questões jurídicas, como ele mesmo afirmava, mas salientando que fazia sempre um “prévio estudo de seus fundamentos”. Para Evaristo de Moraes 95 , Gama foi “um legítimo expoente da cultura jurídica

89 Idem. 90 Por ideologia entendemos como: “Os referenciais mentais – linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferente classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona”. HALL, Stuart. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003, p. 250. 91 Idem. 92 Idem, p.122. 93 Idem. p. 116-216. 94 Radical Paulistano, São Paulo, 22 de julho de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 25 de agosto de 2013. 95 Antonio Evaristo de Moraes nasceu em 1871 e faleceu em 1939. Era um mestiço, filho de mãe negra com pai branco. Além de advogado, foi um intelectual. Em 1902, contribuiu na fundação do Partido Socialista e foi o principal responsável pela sua participação na Segunda Internacional. Colaborou para a fundação da Associação Brasileira de Imprensa. Especializou- se em causas trabalhistas. Estreou no júri no ano de 1894. Defendia as associações representativas de classe operária, atuando no movimento operário como advogado. Trabalhou na defesa dos marinheiros rebelados na Revolta da Chibata, foi advogado de defesa de João Cândido. Após 23 anos de prática forense, aos quarenta e cinco de idade, veio finalmente a 43

brasileira 96 ”. Luiz Gama divide com Evaristo de Moraes a notoriedade de serem os rábulas de maior expressão: o primeiro para a cidade de São Paulo nas causas de libertação escrava, e o segundo para o Rio de Janeiro do século XX nas questões trabalhistas. Luiz Gama não poupava adjetivos para desqualificar os magistrados em processos indeferidos, e não apenas por isso, quando envolvia a liberdade escrava. Usava expressões do tipo “incapacidade intelectual”, “desazado juiz”, “incompetências”, “uma proveitosa lição de direito”, para aqueles que não condiziam com o “pergaminho de bacharel que lhe foi conferido pela mais distinta das faculdades jurídicas do Império 97 ”. Fazia questão de tornar públicas suas indignações por meio do jornal Radical Paulistano:

É mais uma prova eloqüente, exibida, em nome do bom senso revoltado, contra o fatal sistema de confiar-se cargos de judicatura a pessoas nimiamente ignorantes, despidas até dos mais comesinhos rudimentos de direito, como é seguramente o Sr. Florêncio Soares Muniz, suplente do juízo municipal no Bélem de Jundiaí 98 .

O processo de formação intelectual de Luiz Gama tem muito a dizer sobre sua personalidade crítica. Aprendeu a ler e a escrever aos 17 anos, “graças” ao encontro, amizade e favor do seu amigo Antonio Rodrigues do Prado Júnior, que na vida adulta tornou-se magistrado. Gama relata este episódio, em sua célebre carta dirigida ao seu amigo Lúcio de Mendonça. Tal encontro deu-se quando o mesmo foi preterido por compradores de escravos que, ao saberem que era baiano 99 , prontamente foi rejeitado, tendo que retornar para a hospedaria. Neste local, encontra-se com Antonio Rodrigues, jovem estudante que pretendia ser bacharel. “Fizemos amizade íntima, de

formar-se em Direito. Em 1931, ocupou um cargo técnico no Ministério de Indústria, Comércio e Trabalho. Em 1938, assumiu a cadeira de Direito Penal na Faculdade Nacional de Direito, que integrava a Universidade do Brasil. PAULA, Celia Regina do Nascimento. O Pensamento de Antonio Evaristo de Moraes e a Legislação Social. 2003. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, 2003. 96 SILVA, J. Romão da. Luis Gama e suas poesias satíricas. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1954, p. 37. 97 Luiz Gama, Radical Paulistano, 13 de novembro de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 25 de julho de 2013. 98 Luiz Gama, Radical Paulistano, 30 de setembro de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 25 de agosto de 2013. 99 Quanto ao medo de escravos baianos, ver AZEVEDO, Célia M. Marinho. Onda Negra, Medo Branco – o negro no imaginário das elites no séc. XIX. São Paulo: AnnaBlume, 2007. 44

irmãos diletos 100 ”. É possível deduzir que o seu interesse pela magistratura tenha uma orientação desse seu amigo que se tornou bacharel em Direito de “elevado mérito 101 ”. Desde então, “passava os dias lendo 102 ”, foi copista, escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antonio , de quem se tornou amigo. Como amanuense, se aproximou do conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, catedrático da Faculdade de Direito, de quem afirma ter conquistado estima e proteção, além de “boas lições de letras e de civismo. 103 ” Até 1856, foi escrivão em diversas autoridades policiais, foi nomeado amanuense, entre os anos de 1856 a1868, da Secretaria de Polícia. “Fiz-me rábula e atirei-me à tribuna criminal. Tal é hoje a minha profissão 104 ”. Foi por meio de amizades e proximidades com o universo jurídico extra- acadêmico que Luiz Gama adentrou no “bacharelismo” e na vida política profissional. A prática de escrivão, mas precisamente amanuense na Secretaria de Polícia da cidade de São Paulo, fornece os indícios de sua experiência intelectual, de suas habilidades com o mundo da escrita. O amanuense lida cotidianamente com o andamento de processos, juntando petições e escrevendo sobre mandados, ofícios, cartas e intimações, ou seja, está em contato direto com o universo jurídico. Luiz Gama conviveu com essa prática por mais de dez anos, em meio à necessidade de sobrevivência, o que lhe permitiu um sólido conhecimento. Afirmou certa vez, em tom de serenidade, que a “inteligência repele os diplomas, como Deus repele a escravidão 105 ”. Essas experiências foram fundamentais para a sua produção cultural, o que

100 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça. In: MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p. 23. 101 Idem. 102 Ibidem, p.24. 103 Ibidem, p. 25. 104 José Carlos Rodrigues formou-se em Direito e transferiu-se para os Estados Unidos, esta carta encontra-se na Biblioteca Nacional. Luiz Gama, Carta a José Carlos Rodrigues. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p.194. 105 São Paulo, Correio Paulistano, 3 de dezembro de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 25 de julho de 2013. 45

nos remete à reflexão a respeito do “significado de ser intelectual em contextos que tem negado acesso à alfabetização 106 ”.

Figura 4 - Vista frontal da Academia de Direito da província de São Paulo no Largo São Francisco.

Tinha accentuado preconceito contra os estudantes de cor, e perseguia-os implacavelmente. Começa por não admitir que lhe extendessem a mão. Uma vez deu o pé a um deles, que o queria cumprimentar. – Desaforô! Dizia. Negro não pode ser doutor. Há tantas profissões apropriadas: cozinheiro, cocheiro, sapateiro... 107

Luiz Gama também sofreu “na pele” as agruras do preconceito racial. Segundo o seu amigo jornalista Raul Pompéia, relata que Gama, em seu princípio de carreira, tentou cursar a Faculdade jurídica de São Paulo, mas as suas aspirações se depararam com ofensas grosseiras, resolvendo excluir-se

106 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p.105. 107 Fala do conselheiro Prudêncio Cabral, um dos professores da academia jurídica de São Paulo no início do século XIX. In: CRUZ, Ricardo Alexandre. Negros e Educação: as trajetórias e as estratégias de dois professores da Faculdade de Direito de São Paulo nos século XIX e XX. São Paulo: Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Educação: História, Política e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009. 46

da companhia de moços que o “apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas 108 ”. Não encontramos evidências documentais e nem mesmo passagens nos escritos de Luiz Gama que “atestem” tais informações. Quando Pompéia escreveu esse relato, já havia uma proliferação de relatos de memória sobre a trajetória desse intelectual negro. Mas o fato de não haver evidências não exclui a possibilidade de Gama ter sofrido hostilidades raciais nos seus contatos e relações com os acadêmicos do Direito. Os seus primeiros anúncios ofertando serviços “advocatícios” datam de 1869, publicados no jornal Radical Paulistano. Sua propaganda de oferta dos seus serviços disputava espaço com os mais variados anúncios, desde o corriqueiro “escravos fugidos 109 ”, passando pela “perda de carteira, de diamantes 110 ” e as imprescindíveis “consultas médicas 111 ”; mas o que interessa ressaltar é que Luiz Gama era o único rábula em meio aos diversos anúncios de bacharéis que ofertavam os seus serviços como profissionais (advogados). De início, apresentava-se de forma modesta, circunscrevendo-se apenas aos processos de alforria. “O abaixo assinado aceita, para sustentar gratuitamente perante os tribunais, todas as causas de liberdade, que os interessados lhe quiserem confiar” 112 . Alguns meses depois, amplia a oferta de serviços, apresentando-se para o encaminhamento de questões advocatícias e da burocracia administrativa.

Luiz G. P. da Gama, encarrega-se de qualquer causa, crime nos juízos desta cidade, assim como de defezas perante o jury, em qualquer município da província. Tambem se incumbe de tirar títulos ou promover a solução de qualquer pendência administrativa, nas

108 Raul Pompéia, que estudou Direito e foi membro da Caixa Emancipadora Luiz Gama, relata que: “A generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia matar as aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o suplício de Santo Estevão, e as apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se, revoltado, da companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos”. Esse texto foi escrito dois anos após a morte de Luiz Gama, no qual Raul Pompéia analisa a atuação do movimento abolicionista, com destaque para o “heroísmo” deste intelectual diaspórico. Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1884. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 109 Radical Paulistano, São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em 10 de outubro de 2012. 110 Idem. 111 Ibidem. 112 Radical Paulistano, São Paulo, segunda-feira 10 de maio de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2012. 47

repartições da capital. Pode ser procurado na casa de sua residência, à rua Vinte e Cinco de Março n.99.

Luiz Gama é um dos exemplos de intelectualidade cuja formação procedeu fora dos quadros acadêmicos, foi um dos poucos da elite intelectualizada que não possuía estudos acadêmicos. O elitismo da formação superior não era apenas um dado social, a opressão racial fazia dos bacharéis uma ilha de letrados brancos. Quando os negros conseguiam adentrar os espaços acadêmicos, tinham que conviver com os preconceitos 113 de cor nesses espaços, conforme vimos através dos depoimentos. Na condição de rábula, defendeu dezenas de processos 114 , não seria exagero considerá-lo um dos maiores defensores de escravos do século XIX. Não iremos nos deter nas especificidades e nos contextos das causas em si, mas na importância política de um ambiente histórico em que as querelas em torno dos princípios de liberdade e propriedade configuravam a arena jurídica. Entre a promulgação da lei do Ventre-Livre (1871) e a Abolição (1888), foi ascendente o número de processos judiciais envolvendo a libertação dos cativos. A lei do Ventre-Livre quebrou o monopólio da concessão de alforria, que recaía apenas sobre os senhores. O volume de ações favoráveis aos escravizados revela a atuação dos advogados influenciados pela lei, pela jurisprudência e pelos embates com a classe senhorial, esta última, apesar do seu compromisso com a ordem escravista, também promoveu uma grande demanda de processos. Por fim, a partir do entendimento do escravizado como sujeito histórico, não devemos subestimar que muitos passaram a recorrer à justiça em função das mudanças graduais das leis emancipacionistas. Luiz Gama já atuava e mobilizava-se numa campanha antiescravista no campo jurídico e político muito antes da lei de 1871.

Deve o juiz decretar a liberdade do escravo, obrigando-o a completar o preço em moeda pelos meios regulares ou ao pagamento em serviços, por contrato, lavrado no juízo dos órfãos na forma da lei;

113 Discutiremos de forma aprofundada o racismo enquanto fenômeno social no século XIX com suas fundamentações biológicas no capítulo segundo. 114 Os jornais, quando se reportavam a Luiz Gama, referiam-no como senhor, doutor ou advogado, em raríssimas situações como rábula. 48

porque “no conflito de um interesse pecuniário e da liberdade, prevalece esta 115 .”

A publicização dos julgamentos nos jornais de maior circulação, que por ora destacamos abaixo, demonstra as diferentes situações em que Luiz Gama promoveu defesas. Processos envolvendo um menor na morte de um estrangeiro, crime de homicídio, cobrança de pagamento de alforria, pedido de habeas-corpus de “indivíduos presos, como escravos fugidos”, estão em meio a centenas de processos defendidos por Luiz Gama. Nas conferências abolicionistas, em suas eloquências discursivas, falava-se que Gama tinha “conseguido arrancar mais de mil infelizes dos atrozes ferros do cativeiro 116 .”

Figura 5 117 - No noticiário sobre as ações do judiciário, lê-se: “Abriu-se ontem o tribunal do juri com 39 jurados. Entrou em julgamento o processo instaurado contra o menor Manoel de Almeida da Costa, pronunciado no art. 194 do código criminal, pela morte do italiano Luis Jordani. A defesa da causa foi confiada ao sr. Luiz Gama. O acusado foi absolvido por 8 votos”. Correio Paulistano, 18 de fevereiro de 1880.

115 “Exercício de hermenêutica”. Luiz Gama, 12 de junho de 1881. O Abolicionista, Rio de Janeiro, 01 de julho de 1881. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 116 Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 117 A partir desta figura os destaques que aparecem sobre o nome Luiz Gama tem apenas o efeito de dar evidência ao seu nome no interior dos textos/fontes jornalísticos. 49

Figura 6 - Neste noticiário sobre as ações do judiciário, lê-se na última notícia: “Foi submetido a julgamento o processo instaurado contra Joaquim Antonio da Cruz, por crime de homicídio. A defesa do réu, que o júri absolveu por unanimidade de votos, foi feita pelo advogado Sr. Luiz Gama”. Correio Paulistano, 19 de fevereiro de 1880.

Figura 7 - Neste noticiário sobre o caso da escrava Elisa, lê-se: “O Sr. Gavião Peixoto, depois da cena tão notável do flexível marmeleiro, remeteu Elisa para uma fazenda do interior. Em São Paulo porém, o Dr. Luiz Gama pôs-lhe um cravo na roda: requereu o depósito da escrava, depositando 800$ para sua alforria. O Sr. Gavião não se opôs a pretensão da alforria, mas requereu depois que lhe fosse entregue a escrava. Queria simplesmente picá-la a chicote. Havia de realizar isto, ainda quando a escrava obtivesse a alforria. Nova petição de Luiz Gama, opondo-se aquela perversa pretensão. No sábado, à tarde, recebeu o filantrápico cidadão este despacho. ‘Nas causas de arbitramento, para liberdade, não concede a lei (!!!), ao que escravo que, por tal meio, pretende libertar, e o direito de ser retirado da casa de seu senhor e depositado!’. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1880. 50

Figura 8 – Relato sobre a discussão a respeito do pedido de habeas-corpus requerida por Luiz Gama. Gazeta da tarde, Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1880.

Não podemos interpretar as atividades advocatícias de Luiz Gama como meramente profissionais e/ou simplesmente motivadas pela campanha emancipacionista/abolicionista. Há uma questão central em sua prática social: a política. Para além das alegadas argumentações baseadas no jusnaturalismo presente na maioria das defesas, a liberdade tinha um significado político para Luiz Gama. Desde quando deixou de ser escravo, de ser uma propriedade particular, Gama canalizou suas práticas para o espaço público, para o “agir em público 118 ”, e o “público é o espaço original do político 119 ”. Se a política “surge no entre-os-homens” e só se estabelece na relação, o campo jurídico, para Luiz Gama, foi o espaço por excelência para garantir direitos aos

118 Kurt Sontheimer, prefácio do livro O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 11. 119 Idem. 51

diferenciados racialmente e dotá-los de humanidade historicamente negada. A política aparece em suas ações como “chance e espaço da liberdade 120 ”

Figura 9 - O jornal noticia a recomendação ao chefe de polícia e ao presidente da província que expedissem ordens para averiguar “se era exato estar o menor Severiano reduzido à escravidão”. Logo que Luiz Gama foi informado tomou todas as providências de forma que de pronto o Severiano já estava em São Paulo, “em pleno gozo de sua liberdade, em companhia do seu tutor legal”. Gazeta da Tarde, segunda-feira, 05 de junho de 1882.

O noticiário acima informa que o ministro da justiça recomenda ao chefe de polícia que investigue se o “menor Severiano” de fato deveria permanecer escravo. Logo que o fato chegou ao conhecimento de Luiz Gama, o mesmo resolveu tomar as providências jurídicas cabíveis. Há tempos que esse intelectual diaspórico fazia da prática profissional um agir político. Não é desprovida de sentido histórico a interpretação de que Gama é um dos pioneiros da política abolicionista. Digo abolicionista e não emancipacionista, pois para aqueles que qualificam o movimento abolicionista como uma consciência nacional em suas tentativas políticas de extinção total e imediata da escravidão desencadeada na década de 80, tais característica já aparecem na consciência política diaspórica de Luiz Gama desde cedo, na sua retórica liberal e um sua prática advocatícia/abolicionista que tinham por fim integrar os negros e negras à sociedade por meio da política. O fato de ter vivido em condições adversas uma trajetória singular, de escravo à jornalista, poeta e advogado, por si só, não explica sua personalidade “turbulenta e sediciosa 121 ”. Tampouco queria demonstrar aos

120 Ibidem, p.10. 121 Em 1868, foi demitido da condição de amanuense a bem do serviço público por ser considerado “turbulento e sedicioso”. Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, publicada no 52

brancos 122 , custe o que custar, a riqueza do seu pensamento. Em sua maturidade intelectual, Luiz Gama tinha consciência da realidade social, econômica e política da escravidão e das relações raciais de seu tempo, assim como não internalizou um complexo de inferioridade provocado pelo preconceito, pela opressão racial. Suas indignações com os magistrados pedantes eram muito mais políticas que pessoais, eram críticas voltadas contra a dinâmica reacionária do processo abolicionista (leis), os costumes e valores conservadores de seu tempo. Sua vida social foi marcada por uma intensa participação pública nos debates a respeito da abolição. Produziu artigos jornalísticos sistematicamente entre os anos de 1869 a 1882 nos principais veículos de comunicação, dentre eles, o Radical Paulistano, neste jornal fez parte da comissão de redação para o ano de 1869 123 . Contribuiu também para o Correio Paulistano, Gazeta do Povo, O Ypiranga, A Província de São Paulo e a Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro). Além de ter contribuído na imprensa 124 republicana e abolicionista, Luiz Gama produziu seu próprio jornal ilustrativo, Diabo Coxo (1864-1865), e colaborou com o periódico Polichinelo e o jornal Cabrião. A primeira produção de Luiz Gama data de 1858, quando publica Trovas Burlescas de Getulino. Mas seus primeiros artigos jornalísticos só passam a ser publicados a partir de 1869. No primeiro, teve como temática central o problema do elemento servil, o texto direcionava-se ao Bispo D. A. Joaquim de Melo, conselheiro do imperador, ressaltando os seus “relevantes serviços prestados” a “esta heroica província e ao país inteiro. 125 ” Dentre suas ações sociais dignas de homenagem por Luiz Gama, estão suas pregações contra “a introdução de escravos africanos no Brasil”.

jornal Correio Paulistano em 25 de julho de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em 10 de outubro de 2012. 122 FANON. Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 27. 123 Radical Paulistano, São Paulo, 7 de outubro de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 124 Faremos uma discussão mais completa da importância social e política da imprensa no capítulo terceiro. A ênfase aqui reside apenas no caráter demonstrativo. 125 Luiz Gama, Apontamentos Biográficos, Radical Paulistano, 24 de maio de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de agosto de 2013. 53

A década de 50 do Brasil Imperial apresentava um conjunto de eventos políticos e econômicos que acelera a configuração futura das relações de trabalho e raciais, o quadro econômico, o perfil da industrialização e o ideal político de mudança do regime. Em 1850, tivemos os primeiros procedimentos legais de cessação do tráfico internacional de escravos com a Lei Eusébio de Queiroz, dado as pressões externas (leia-se inglesa) e internas, provocando grandes impactos na oferta de trabalho para as economias em ascensão, em especial o café. A promulgação da Lei de Terras (lei 601/1850) não só inaugurava uma nova concepção de propriedade fundiária, “estabelecendo o capital como mediador na aquisição da propriedade territorial 126 ” e, ao mesmo tempo em que estava atrelada às mudanças legislativas de cessação do tráfico de escravos, precisava-se controlar e impedir o acesso dos futuros libertos e imigrantes às terras devolutas. Setores ligados à produção econômica e à incipiente indústria pressionavam pela aceleração do debate sobre a propriedade escrava e o trabalho livre imigrante. No plano estritamente político, o início do II Reinado tem na centralização política, no poder moderador e no partido conservador, este último era o principal agente para a governabilidade do imperador, os principais motivos para a atuação crítica do discurso liberal, ou vê-se na prática liberal o exercício da liberdade. Luiz Gama viveu imerso nessa conjuntura política do Segundo Reinado (1840-1889), sob o governo do jovem imperador Pedro II.

1.1 Luiz Gama, Liberal

A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis. 127

126 Neste livro, José de Souza Martins apresenta a emergência da classe operária, relacionando a produção de café, relações de trabalho e industrialização. MARTINS, José de Sousa de. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora HUCITEC, 2004. p. 122. 127 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, publicada no jornal Gazeta da Tarde em 15 de dezembro de 1880. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de junho de 2013. 54

Os liberais eram, em sua maioria, jovens, coisa de estudantes 128 , sobretudo da Faculdade de Direito. Gama devia estar com mais ou menos 30 anos. Suas plataformas políticas giravam em torno da descentralização, ensino livre, polícia eletiva, abolição da guarda nacional, senado temporário e eletivo, voto direto e universal, fim do poder moderador e do conselho de estado. Os adeptos do liberalismo radical ou que identificavam o liberalismo com democracia, além de Luiz Gama, eram: Américo de Campos, Bernardino de Campos, Campos Sales, Prudente de Morais, Martinho Prado Júnior, Francisco Glicério 129 , entre outros. Alguns nomes desse grupo tiveram proeminência no século XIX e ocuparam posições chave na futura República.

Figura 10 - Na legenda lê-se: “Tudo Folga! Comédia política; que promete não ter fim.” Nas bandeiras ao fundo, lê-se “Conservismo, Viva o Rei”, no meio, “Liberalismo, Viva o Rei” e no canto direito, “Ça Ira!!!”. Luiz Gama aparece à esquerda segurando um bastão. Jornal O Polichinello, São Paulo, 01 de outubro de 1876.

No afã de avançar na defesa do ideário liberal, leia-se na disseminação das ideias republicanas, o Clube Radical Paulistano o nomeia para proferir a

128 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001, p. 514. 129 Idem, p. 510. 55

primeira “conferência radical” 130 , “orando o senhor Luiz Gonzaga Pinto da Gama sobre a extinção do poder moderador 131 ”.

Figura 11 - Jornal Radical Paulistano, 16 de julho de 1869

As qualidades de um bom orador provia de sua retórica, esta era um estilo 132 de pensamento muito comum ao político/intelectual do século XIX. Luiz Gama reunia as condições de uso da retórica como prática de persuasão, com força argumentativa e elocução que produziam efeitos na recepção do seu discurso, pois tudo isso estava encarnado em sua personalidade. Se abstrairmos um pouco da retórica como campo científico, podemos relacioná-la às práticas culturais significativas de povos africanos e indígenas, à oralidade. Muitos historiadores ainda partilham a visão de que a compreensão do processo propriamente intelectual só é possível com a atividade escriturística,

130 Radical Paulistano, São Paulo, 16 de julho de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de junho de 2013. 131 Idem. 132 Sobre a tradição da retórica no pensamento brasileiro, ver CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi , Rio de Janeiro, nº 01, p. 123-152, 1998. 56

como se o fato de não se ter a linguagem escrita como elemento mediador das práticas e construções culturais indicasse a ausência de um espírito crítico, reflexivo, transformador, propriamente intelectual 133 . A aceitação acrítica desses postulados seria uma mera presunção a-histórica. O clube radical dizia que a “distinção de classe” em seu recinto praticamente não exista e que a “igualdade era a sua divisa”. Para além da famigerada retórica liberal por igualdade, não devemos perder de vista as pressões provocadas por Luiz Gama para que a agenda liberal não desvencilhasse da perspectiva de emancipação escrava. Liberdade de imprensa, liberdade escrava e de consciência formavam o seu tripé de luta e combate aos abusos do poder imperial e ao domínio senhorial. Luiz Gama refutava prontamente quando o Imperador ameaçava a liberdade de imprensa, pois entendia que a mesma tinha “um alto e nobre princípio 134 ”. A maior parte da sua vida foi dedicada à imprensa jornalística não apenas por ser o principal veículo de comunicação da província, mas dado à sua força e ao papel ativo como mediadora dos debates políticos. Os jornais apresentavam-se como um grande potencial de transformação da realidade. Gama colaborou com artigos durante vários anos para um diário considerado conservador, o Correio Paulistano, ou o jornal “oficial” do império, de acordo com as críticas do jornal humorístico Cabrião. Para o liberalismo clássico, mais precisamente nas posições de John Locke, ser liberal é ter o direito sobre si mesmo, disposição, controle, posse, sobre a natureza, no caso brasileiro do escravo enquanto propriedade, ocupando-a e nela trabalhando 135 . Essa concepção atendia a uma experiência particular da Europa e sua universalização no tempo e espaço desprezou as diferentes temporalidades fora da história européia. A ideologia liberal também mascarava a exploração social na Europa. Luiz Gama fez uma apropriação das ideias liberais de forma seletiva e interessada, explorou ao máximo o artigo

133 Ver artigo de minha autoria: SANTOS, Eduardo Antonio Estevam. A força social da oralidade na formação urbana da cidade de Itabuna-Ba, 1967-1996. Revista Desenredos , nº07, outubro, novembro, dezembro de 2010. 134 Luiz Gama, O Imperador e a liberdade de imprensa, Correio Paulistano, 01 de novembro de 1873. 135 LANDER, Edgardo. A Colonialidade do Saber - eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005, p. 27. 57

(art.179) constitucional que definia a liberdade e igualdade como direitos inalienáveis dos homens, entre outros artigos. Procurou fazer uso das ideias liberais para interpretar e definir seus interesses de emancipação escrava. Neste trabalho, estamos muito mais preocupados em entender o significado da agenda liberal em seu sentido prático na vida de Luiz Gama do que a sua historicidade em processos históricos anteriores. Esse intelectual de ascendência africana sabia do jogo de poder entre os liberais e os conservadores, tinha plena consciência de onde provinham os limites das suas diferenças ideológicas – a propriedade escrava. Nota-se que Luiz Gama tinha um papel de destaque entre os partidários das ideias liberais, de forma que suspeitamos que o artigo (editorial) intitulado O Rei e o Partido Liberal, publicado no jornal Radical Paulistano em julho de 1869, seja de sua autoria. Caso contrário, procurou expressar também seus anseios políticos de libertação do cativo. Luiz Gama fazia parte da comissão de redação do Clube Radical 136 . A retórica dos liberais radicais era de caráter revolucionário: “Quando a estação chegar, rebentarão delas a emancipação e a liberdade 137 ”. O artigo era mais panfletário que estritamente ideológico, apresenta um retrospecto do partido liberal desde a independência até o presente momento do debate a respeito da extinção do poder moderador, procurando demonstrar no que se constitui o partido liberal através de suas práticas. O artigo138 conclui que os Radicais distinguiam-se dos Liberais por não se renderem aos interesses convencionais, ao individualismo e à falta de princípios. Acreditavam que as esperanças da pátria residiam na utopia (até então) dos liberais radicais:

Que magnífica surpresa não foi para nós o encontrar admitidas e defendidas calorosamente pelo exímio estadista em seu panfleto todos os grandes artigos do nosso programa: a abolição do poder moderador, a temporalidade do senado, a emancipação do elemento servil, a eletividade dos presidentes 139 !

136 A comissão de redação também era composta pelos seguintes jornalistas: Américo Brasiliense, Américo de Campos, Ferreira Braga, Santos e Silva e Olímpio da Paixão. Correio Paulistano, 07 de outubro de 1869, consulta em 20 de junho de 2013. 137 Radical Paulistano, São Paulo, sexta-feira, 19 de julho de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de junho de 2013. 138 Idem. 139 Ibidem. 58

A historiografia 140 já demonstrou por demais o caráter ambíguo do liberalismo brasileiro. Ao mesmo tempo em que significava progresso, liberdade, modernização e civilização, significava também a manutenção da propriedade escrava. Para os estudos clássicos, o liberalismo no Brasil foi resultado da transposição e/ou substituição das antigas e inadequadas instituições coloniais por outra mais pertinente aos interesses das elites políticas e econômicas, ainda que “fora do lugar”. Os pesquisadores 141 caracterizaram a recepção social destas ideias de forma homogênea, de maneira que apenas os homens brancos e de posses fossem liberais e que sua interpretação obedeceria à mesma natureza para os demais grupos sociais. Os sujeitos do mundo colonial e imperial eram diversos não apenas em sua composição social, como também cultural. Se atentarmos para a observação da sociedade imperial, poderemos notar que a mesma era diversa, multifacetada e complexa. Havia inúmeras formas de consciência social, não apenas a dos grupos dominantes. Os estudos culturais pós-coloniais demonstraram que a experiência colonial gestou uma duplicidade 142 de consciência.

140 Neste trabalho, tomo por base as análises de COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo; Fundação editora da Unesp, 1999; SCHWARZ, Roberto. As Ideias Fora do Lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. Forma Literária e Processo Social nos Inícios do Romance Brasileiro. São Paulo, Livraria Duas Cidades, p. 13-28, 1977; e ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 141 Em Liberalismo: teoria e prática, Emília Viotti da Costa define a especificidade do liberalismo brasileiro como resultado das condições políticas e, sobretudo, econômicas: “sua posição periférica no mercado internacional, o sistema de clientela e patronagem, a utilização da mão- de-obra escrava e o atraso da revolução industrial – que no Brasil só ocorreu no século XX -, todas essas circunstâncias combinadas conferiam ao liberalismo brasileiro sua especificidade, definiram seu objeto e suas contradições e estabeleceram os limites de sua crítica”. Essa postura analítica apresenta o liberalismo como expressão imediata da estrutura e, ao almejar uma explicação total, como resultado do conjunto das relações sociais, menospreza-se, como observa Stuart Hall (2003, p. 152), “a natureza distinta das contradições sociais, cujas contradições que impulsionam o processo nem sempre surge do mesmo lugar”. Para uma análise de uma totalidade complexa precisa-se pensar sobre a “articulação entre as diversas contradições, sobre as distintas especificidades,” a partir dessas reflexões nota-se o quanto faz-se necessário novas pesquisas que interpretem os diferentes significados históricos dos diferentes grupos étnico-raciais no interior de uma determinada formação social. 142 MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo. A Colonialidade do Saber - eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005. p. 81. 59

Figura 12 - Dissidência do Partido Liberal. Com a bandeira liberal, José Bonifácio – o moço, ao seu lado, Carrão e Gavião Peixoto; atrás entre outros, Joaquim Floriano de Toledo, J. R. de Azevedo Marques, Antonio Prado e Manoel Dias de Toledo. Liderando os liberais dissidentes, Luiz Gama, atrás, Martim Francisco; à direita, Américo de Campos. In: CABRIÃO – semanário humorístico editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antonio Manuel dos Reis: 1866-1867. Ed. Fac-similar. Introdução de Décio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 1882, p. 41. Logo abaixo aparece um pequeno texto que acompanha o desenho: “Suspendei soldados do grande exército! A hora da vitória aproxima- se. Ante o altar sagrado da vossa soberania, depondo essas armas. Uni-vos, e unidos tecei as coroas que devem engrinaldar a fonte dos vencedores. Não procureis manchar as páginas brilhantes do vosso passado, consentindo que o inimigo calque aos pés o glorioso estandarte das liberdades públicas! Como irmãos que sois, abraçai-vos; e a frente do esquadrão dos livres, plantai o labarum da vossa soberania nos bastiões do absolutismo! A vitória! A vitória! O “Cabrião” vos saúda. Jornal Cabrião, 13 de fevereiro de 1867. Brasiliana USP, Brasiliana Digital, consulta em 02 de setembro de 2013.

Um equívoco das ciências sociais e da historiografia clássica do Brasil Império foi o de pensar as construções de ideias como se fossem particulares de um grupo ou de uma classe. Desta forma, o liberalismo como ideologia pertencia à classe dominante, ao grupo social dos fazendeiros, exportadores, comerciantes escravocratas e a certas categorias econômicas de profissionais; e uma vez consolidada, difundia-se pelas classes subalternas, estabelecendo- se a dominação ideológica. Há um problema neste posicionamento estruturalista e funcionalista da ideologia liberal, uma vez que interpreta as relações sociais sem sujeito. Desta forma, as classes ou grupos dominados aparecem nos processos históricos como agentes passivos, receptivos. Tais interpretações não levaram em conta as resistências, os desvios, as contra- tendências. Nos momentos históricos em que a recepção da retórica liberal se aproximava dessas camadas, temos evidências das diferentes apropriações das ideias liberais. O exemplo mais notável foi da notícia de uma revolução entre os negros no ano de 1821, quando os escravos souberam que estava 60

para ser promulgada a Constituição, “reuniu-se em Ouro Preto e áreas vizinhas para celebrar a liberdade tão longamente esperada 143 ”. Para compreendermos as posições políticas e ideológicas de Luiz Gama, precisamos analisar a ideologia como consciência prática, resultado do seu comportamento, sua experiência escrava, sua visão de mundo e de como fazia uso da linguagem liberal. Os historiadores dos oitocentos demonstraram o quanto a ordem social apresentava uma dialética ambígua 144 . Assim resume um dos pesquisadores desse período, José Murilo de Carvalho, em Teatro de Sombras: “uma sociedade escravocrata governada por instituições liberais e representativas; uma sociedade agrária e analfabeta dirigida por uma elite cosmopolita voltada para o modelo europeu de civilização”. Não podemos reduzir esta ambiguidade ao espaço nacional sem articulá-la ao projeto de modernidade. Precisa-se questionar, antes de tudo, a “astúcia da modernidade – suas ironias históricas, suas temporalidades disjuntivas, seus paradoxos do progresso, sua aporia de representação 145 .” A produção de Luiz Gama se insere nesse campo intelectual, político e social marcado pelas antinomias da modernidade imperial paulistana. Sua produção constituía-se numa diferença cultural, conceito desenvolvido pelo crítico pós-colonial Homi BhaBha, cujo objetivo era “rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva da posição de significação da minoria, que resiste à totalização 146 ”. O liberalismo mundial jamais foi uma experiência histórica homogênea e contínua, suas formas variaram em diferentes países, dependendo das circunstâncias sociais e conjuntura política. Podemos afirmar que houve liberalismos e, de certa forma, essas ideias se adaptaram aos lugares para os quais foram transplantadas. As ideias liberais faziam parte do projeto de modernidade. Partha Chatterjee, intelectual contemporâneo dedicado aos estudos subalternos, assim define o caráter universal e singular da modernidade: “ao nos ensinar a empregar os métodos da razão, a

143 Ver COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo; Fundação editora da Unesp, 1999, p. 137. 144 Ver CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.417. 145 Ver BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p. 244. 146 Idem, p. 228. 61

modernidade universal nos permite identificar as formas de nossa própria modernidade particular 147 .” É nesta situação que reside o emaranhado e a condição paradoxal da filiação de Luiz Gama às ideias liberais. Liberalismo no Brasil, como já afirmamos, era sinônimo de progresso, autonomia, direitos, liberdade para pensar e produzir e, para libertar-se do jugo colonial, tais ideias foram consideradas as mais propícias para a consolidação do status quo e soberania das elites. Gama fez uma leitura a contrapelo do potencial revolucionário das ideias liberais (as formas como as ideias liberais se apresentam de forma contraditória para Luiz Gama serão analisadas nos capítulos subsequentes). Poder político na sociedade imperial paulistana representava prestígio, benefícios (clientelagem como prática de dependência pessoal, favor) e manutenção do status quo. Para Boris Fausto, tanto os conservadores quanto os liberais utilizavam-se dos mesmos recursos, favores aos amigos e emprego da violência contra os adversários nos processos eleitorais. Se para a historiografia a escravidão negava as ideias liberais, Luiz Gama as usava como instrumento político para emancipação escrava. Raros foram os liberais que levaram essas ideias invertidas a cabo, no limite foram freados pelos opositores ou até mesmo internamente no partido, pois além dos profissionais liberais, os proprietários rurais também faziam composição no Partido Liberal. Luiz Gama foi enquadrado no grupo pejorativamente denominado pela elite conservadora de liberais radicais, acusados de “estimularem o ódio ‘entre as raças’ e a ‘luta de classes.” A experiência social de ser negro e ex-escravo possibilitou a Luiz Gama perceber a sua realidade por meio de uma dupla consciência: sócio-racial. A dupla consciência, conceito desenvolvido por W. E. B. Dubois, refere-se a uma consciência forjada na experiência e na memória da diáspora e na escravidão. Sua consciência racial foi construída a partir da diferença, na relação cotidiana com as demais raças. As práticas sociais de Luiz Gama e suas formas de pensar estavam diretamente relacionadas à organização socioeconômica

147 Ver CHATTERJJE, Partha. Colonialismo, Modernidade e Política. Salvador: EDUFBA, CEAO, 2004, p. 51. 62

escravagista de sua época, enquanto a experiência do vivido e a sua relação histórica e emocional, com a escravidão. “Mais do que hibridismos há que se reconhecer que há pensamentos que aprenderam a viver entre lógicas distintas, a se mover entre diferentes códigos 148 .” Não havia uma ideologia liberal “pura”, mas sim um complexo entrelaçamento de distintos discursos ideológicos 149 , muito propício para essa formação social. Assim, a influência do pensamento científico de Ernest Renan, liberal e cristão, na produção de Luiz Gama, não era resultado de uma simples “salada indigesta”, como caracterizou Thomas E. Skidmore, em Preto no Branco – raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. O próprio Luiz Gama, amante das luzes, sofreu as antinomias da modernidade. Para tanto, observa Paul Gilroy, em O Atlântico Negro, que “as realizações intelectuais e culturais das populações do atlântico negro existem em parte dentro e nem sempre contra a narrativa grandiosa do iluminismo e de seus princípios operacionais 150 ”.

1.2 Luiz Gama, Abolicionista-Republicano

No dia 23 do corrente instalou-se na cidade de São Paulo uma sociedade de propaganda abolicionista, intitulada Centro Abolicionista de São Paulo. Efetuou-se a sessão de instalação em casa do ilustre cidadão Luiz Gama. Foi aclamado presidente honorário da sociedade o cidadão Luiz Gama 151 .

Há tempos que Luiz Gama fazia do seu espaço privado um espaço público de oposição à escravidão. Sua oposição não se restringia apenas à escravidão em si, mas às formas concretas das relações raciais cotidianas dos

148 LANDER, Edgardo. A Colonialidade do Saber - eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005, p.13. 149 Em Significação, Representação, Ideologia – Althusser e os debates pós-estruturalistas, Stuart Hall apresenta criticamente as contribuição de Althusser em sua obra A favor de Marx para a análise da Ideologia. HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 171. 150 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p.113. 151 Gazeta da Tarde, terça-feira, 25 de julho de 1882. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 22 de maio de 2013. 63

negros e negras no “mundo” jurídico-social com os brancos. A homenagem como presidente honorário era totalmente provida de sentido. Apesar da consideração do brasilianista Thomas Skidmore de que Gama foi um intelectual pioneiro no pensamento abolicionista, o mesmo não dividiu com Joaquim Nabuco o status de “grande teórico e tribuno do movimento abolicionista 152 ” na historiografia e nas ciências sociais. Nabuco foi considerado o mais notável entre os teóricos abolicionistas. Branco, pernambucano, filho de uma família letrada e escravocrata, historiador, jurista, fez carreira política nacional (deputado) e internacional (diplomata), abolicionista, republicano e defensor de um projeto de Brasil democrático. Assim como Luiz Gama, Nabuco também foi leitor de Renan, dizia ser o seu “ coup de foudre intelectual 153 ”. Joaquim Nabuco, em suas memórias, dividiu os pioneiros do abolicionismo em dois grupos, o primeiro, composto por José do Patrocínio, Ferreira de Menezes, Vicente de Souza, Nicolau Pereira e João Clapp; o segundo, por André Rebouças, Gusmão Lobo e . Não há registro de Luiz Gama em suas narrativas. Essa ausência de Luiz Gama no panteão dos abolicionistas teve sua primeira manifestação crítica a partir da obra de Sud Mennuci, membro da Academia Paulista de Letras que, em meio às comemorações dos cinquenta anos da abolição, publicou o trabalho biográfico – O precursor do abolicionismo no Brasil – Luiz Gama. A ausência de proximidades entre esses dois abolicionistas foi o que causou estranhamento a Mennucci. “Eles fazem, cada um por seu lado, a respeito do outro, o mais completo e o mais inexplicável silêncio. Parece uma palavra de ordem”. Célia Maria de Azevedo também manifestou-se ao afirmar que, Nabuco demonstrou pouco apreço por Luis Gama, entre outros abolicionistas, que, conforme ele mesmo reconhecia, já batalhavam pela abolição da escravidão bem antes da lei de 1871 154 . Mais que o silêncio entre ambos, o que causava indignação a Mennucci fora a

152 Ver BEIGUELMAN, Paula. Joaquim Nabuco. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. 153 FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo , vol. 21, n.60. maio/agosto 2007, p. 274. 154 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Quem precisa de São Nabuco? Estudos Afro- Asiáticos , ano 23, nº01, p. 97, 2001. 64

“injustiça 155 ” de Joaquim Nabuco ao considerar o negro abolicionista José do Patrocínio 156 o “grande rio da abolição” e não Luiz Gama. Assim se apresenta a passagem: “Foi com Patrocínio que o povo brasileiro entrou no combate a liberdade 157 ”. É necessário fazer o reconhecimento social e intelectual de Luiz Gama não apenas por meio da historicização. Sendo assim, faz-se necessário entendermos a diferença cultural em que o mesmo está caracterizado e as temporalidades que lhe são inerentes. A produção cultural de Luiz Gama é, em si, uma política da diferença cultural em meio a uma sociedade imperial marcadamente hierarquizada e hegemonicamente eurocêntrica nos valores e nas ideias. Na segunda metade do século XIX, Joaquim Nabuco e Luiz Gama estavam irmanados na causa abolicionista. A bandeira da abolição, por vezes, aproximava liberais, conservadores e republicanos, brancos e negros, pobres e ricos. Ambos produziram e participaram dos momentos mais efervescentes da política abolicionista. Dadas as suas condições de sua saúde, acometido pelo Diabetes, Luiz Gama não chegou a participar dos debates finais sobre a abolição. Os momentos derradeiros da abolição só passaram a ser discutidos no Parlamento a partir de 1884. Durante seus estudos na província de São Paulo, onde viveu por três anos, entre os anos de 1866 e 1868 158 , Nabuco também frequentou a Loja maçônica América, mas tal proximidade não rompeu o silêncio 159 mútuo entre os dois. Apesar de não haver comunicação direta entre ambos, Luiz Gama teve muito mais proximidade com os seus familiares do que com o próprio Joaquim

155 MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil, Luiz Gama. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p.190. 156 José do Patrocínio era natural do Rio de Janeiro, tornou-se muito cedo um articulista famoso. Depois de conhecer a Princesa Isabel, fundou o jornal A Gazeta da Tarde e passou a ser chamado de O Tigre da Abolição. Ao lado de André Rebouças, criou em 1883 a Confederação Abolicionista. 157 MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil, Luiz Gama. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p.190. 158 Essas informações encontram-se em O precursor do abolicionismo no Brasil, de autoria do Sud Mennucci, cujo capítulo tem um título bastante provocativo: A injustiça de Nabuco. MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 189-193. 159 Ver a Pena audaz do jornalista Luiz Gama, In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 99. 65

Nabuco 160 . Seu irmão, Sizenando Barreto Nabuco de Araújo, juntamente com Gama, ocupava-se da assinatura do jornal Diabo Coxo, que criaram em 1865. Quanto ao pai, Nabuco de Araújo, encontramos passagens de críticas referentes à sua atuação quando era presidente da província de São Paulo.

Quando o exmo. Sr. Conselheiro Nabuco de Araújo era presidente da heróica província de São Paulo, e avultava entre os chefes prestigiosos do partido conservador, tinha idéias liberalíssimas relativamente aos africanos escravizados de modo ilícito.

As criticas às ações de Nabuco de Araújo referem-se aos navios que foram apreendidos por meio da auditoria da marinha, tendo em vista a lei de 1850 que proibia o tráfico internacional. Sabe-se que o tráfico de escravo só se tornou pirataria dado aos acordos firmados com a Inglaterra, através das famosas leis para inglês ver. Para que a mesma reconhecesse a independência do Brasil, o país deveria por fim ao comércio escravo, mas tal acordo nunca obteve efeitos práticos, de forma que a marinha inglesa teve que se utilizar da força para aprisionar navios em águas territoriais brasileiras. As autoridades brasileiras faziam a apreensão dos escravizados, mas não procuravam saber “quem as conduziu, quando, nem em que navio. 161 ” “Por diversas vezes apreenderam como escravo fugidos, pretos que depois se verificou serem africanos boçais 162 ”. Luiz Gama, ao analisar tais episódios, faz a seguinte indagação: “supõe-se caídos do céu por descuido? Ou manda ‘constatar’ que eles emergiram do solo como tanajuras em verão?” No desenrolar do acontecido, Luiz Gama aprovou com “louvor” as diligências encomendadas por Nabuco de Araújo, que declararam livres escravos africanos (boçais) apreendidos ilegalmente pelos agentes de polícia. 163 Quanto ao seu papel histórico frente à atuação político-partidária, Luiz Gama, não poupou elogios:

160 Quando da comemoração cívica do trigésimo dia do falecimento de Luiz Gama, organizada pelo Centro Abolicionista de São Paulo, na sala do teatro onde se realizou a cerimônia havia uma decoração com destaque para os nomes de abolicionistas ilustres, tais como Joaquim Nabuco, André Rebouças, José do Patrocínio, , Joaquim Serra, Vicente de Souza, Nicolau Moreira, Marcolino Moura, Saldanha Marinho, Rio Branco, entre outros. Toda a cobertura foi narrada pelo jornal Gazeta do Povo em 24 de setembro de 1882. 161 “QUESTÂO JURÍDICA”. Luiz Gama. A Província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880. Acervo da hemeroteca digital do jornal O Estado de São Paulo, consulta em 11 de janeiro 2014. 162 Idem. 163 Ibidem. 66

O exmo. Sr. Conselheiro Nabuco, que soube ser homem do seu tempo, consagrou-se inteiramente às exigências do seu partido, morreu na firmeza de suas crenças, tem ambos a mesma história. E o futuro, quando julgá-lo, sobre a lápide do seu túmulo, fazendo justiça ao seu caráter, perante a imagem da pátria, há de sagrá-lo herói.

Vamos nos concentrar nas posições díspares entre Luiz Gama e Joaquim Nabuco. Sob a perspectiva da crítica pós-colonial, torna-se importante pontuar 164 uma revisão crítica, sem estabelecer antagonismos ou binarismos entre esses intelectuais, mas procurando enfatizar a diferença cultural 165 dentro de uma totalidade complexa 166 , a formação social brasileira, como elemento central que possibilita desestabilizar a autoridade social de discursos normatizadores. A conjuntura historiográfica atual de revisão da autoridade social concebida aos cânones é bastante propícia para tal análise. Ao aproximar Luiz Gama de Joaquim Nabuco no campo da intelectualidade, procuramos descartar a concepção de que “a teoria é necessariamente a linguagem de elite, dos que são privilegiados social e culturalmente 167 ”. Desde então, sabemos que possuíam comportamentos e posições políticas diferentes, mas nem por isso podemos nos esquecer de que o projeto abolicionista em sua completude era reformista 168 , temia a revolução e nos momentos mais radicais procurava negociar algumas transformações controladas. Nabuco dizia ser refratário à postura de abolicionistas que incitavam a insurreição.

A propaganda abolicionista […] não se dirige aos escravos. Seria um […] suicídio político para o partido abolicionista incitar à insurreição ou ao crime homens sem defesa, e que ou a lei de Lynch ou a justiça pública imediatamente havia de esmagar […] Seria o sinal da morte do abolicionismo de Wilberforce, Lamartine e Garrison, que é o nosso, e o começo do abolicionismo de Catilina ou de Spartacus, ou de John Brown ...

164 Para uma análise mais ampla, ver artigo de minha autoria: Entre a Normalidade e a Diferença – o controle da libertação escrava através dos discursos abolicionistas de Luiz Gama e Joaquim Nabuco, publicado no caderno de resumos do XXVII – Simpósio Nacional de História, organizado pela Associação Nacional de História, 22 a 26 de julho de 2013, Natal-RN. 165 Homi Bhabha. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p. 228. 166 HALL, Stuart. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003, p. 152. 167 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p.43. 168 Ver esta posição de Angela Alonso In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila (Orgs). O Brasil Imperial , vol. III, 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 112. 67

Nesse ponto, podemos apontar semelhanças com o posicionamento político de Luiz Gama.

Protesto sinceramente, não só para fazer calar os meus caluniadores políticos, como aos inimigos da Loja América, que não sou nem serei jamais agente ou promotor de insurreições, porque de tais desordens ou conturbações sociais não poderá provir o menor benefício á mísera escravatura, e muito menos ao partido republicano, a que pertenço, cuja missão consiste, entre nós, em esclarecer o país.

Apesar dos seus compromissos com os acordos do Partido Republicano e preocupações com a ordem social, em Luiz Gama nota-se uma posição mais radical e desprendimento em relação ao partido. Quando passamos a analisar a continuidade dos seus esclarecimentos no Correio Paulistano, em 10 de novembro de 1871, no qual procurava rechaçar a fama de que estava “capitaneando uma tremenda insurreição de escravos”, percebemos uma posição política pessoal de enfrentamento, caso as instituições jurídicas, como ele mesmo salienta:

[...] faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei a promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica, como a sanção necessária para por preceito aos salteadores fidalgos, aos contrabandistas impuros, aos juízes prevaricadores e aos falsos impudicos detentores.

Sua fama de incitar a rebeldia escrava não era totalmente desprovida de sentido. Gama fazia um jogo político, apresentando posições mais radicais frente aos escravizados e “moderadas” frente aos abolicionistas quando se precisava “prestar contas” com os mesmos. Em suas cartas direcionadas aos amigos negros abolicionistas e jornalistas, há um diálogo mais aberto e contundente frente à abolição, enquanto em Nabuco não se nota esse tipo de ambiguidade. Na carta dirigida ao seu amigo negro e abolicionista, Ferreira de Menezes, editor do jornal Gazeta da Tarde, em 18 de dezembro de 1880, descreve “cenas de horror 169 ” sofrida por um escravizado e apresenta posições que beiram a insurreição escrava: “o escravo que mata o senhor, que cumpre

169 Luiz Gama, Carta a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 68

uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo indigno, que assassina heróis jamais se confundirão 170 ”. Nabuco desenvolveu um pensamento crítico com bastante rigor político sobre o problema da escravidão em meio à modernização econômica e social do país. Conjecturava uma sociedade democrática republicana que “integrasse” o negro ao universo social, ao “mundo dos brancos”. A propaganda abolicionista tinha que ser conduzida necessariamente por aqueles que não demonstrassem laços efetivos com os escravizados, tinha que ser uma campanha “para” e não “com” os escravos e/ou alforriados. Os escravizados eram apenas depositários dos fatos 171 , cabendo aos instruídos a interpretação sócio-histórica da escravidão, como se eles não pudessem representar 172 a si mesmos, de forma que tinham que ser representados pelo outro. A representação do negro nos discursos abolicionistas de Joaquim Nabuco era de caráter regulatório e disciplinar, cuja função era manter o inferior como inferior. Seu projeto de modernização do sistema político e social consistia numa integração racial hierarquizada e subalterna, na qual os valores da cultura branca estariam a preponderar. Nabuco teorizou a escravidão, jamais sobre o sujeito negro em seus modos de vida. A escravidão foi seu objeto de análise e a base para a construção de todo o seu edifício teórico-crítico. Em sua campanha abolicionista, discursou veementemente sobre o embrutecimento da condição humana, sobre os malefícios e os problemas (vícios) morais e sociais oriundos da escravidão: “o homem não é livre nem quando é escravo, nem quando é senhor”. Para Nabuco, arregimentar negros e incitá-los diretamente para uma campanha antiescravidão era perigoso, pois poderia provocar uma haitinização, ou seja, uma revolução negra. Seu sonho era de um país mais

170 Idem. 171 Neste ensaio, Portelli inicia relatando a experiência de Frederick Douglass, um ex-escravo nascido em Maryland (EUA), em 1817, que se tornou abolicionista, um fato análogo ao abolicionismo brasileiro. “Na forma tão atraente que ele tinha de contar de viva voz a história de sua vida, os dirigentes brancos do movimento abolicionista viram um testemunho vivo contra a escravidão; e, para torná-lo ainda mais convincente, insistiam na necessidade de que sua exposição se limitasse à dimensão objetiva, concreta, factual: “dá-nos os fatos”, lhe diziam, “e deixe que nós filosofemos”. PORTELLI, Alessandro. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo , Rio de Janeiro, vol. 1, n°. 2, p. 59-72 , 1996. 172 Epígrafe do livro de Edward Said, Orientalismo – o oriente como invenção do ocidente, tomado de empréstimo de uma passagem do livro de Karl Marx, O dezoito brumário de Luis Bonaparte. 69

branco 173 , a escravidão foi um erro histórico, uma vergonha, tanto no sentido humanitário quanto da mescla de raça. Disse que se tivesse nascido no século XVI, ter-se-ia oposto à introdução de escravos, da mesma maneira que se opunha à imigração asiática. Disse, ainda, que foi uma lástima que os holandeses 174 não tivessem permanecido no Brasil. Embora reconhecesse a importância e valor do negro para o “progresso” do país: “há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da ocupação e manutenção do nosso território pelo europeu...”; e releve sua contribuição - “a raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar de sua 175 ”, seu projeto de sociedade pós-abolição consistia na integração subordinada dessa raça que a considerava inferior.

A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor, falando coletivamente, nem criou, entre as duas raças, o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos 176 .

O importante, para os abolicionistas brancos, era preservar a “harmonia” das relações inter-raciais. Havia uma preocupação política no abolicionismo em controlar as massas escravas por meio de discursos que procuravam transformá-los em sujeitos dóceis. Essa postura era uma prática tanto de abolicionista quanto do Estado. Vejamos como se comportava a burocracia estatal quando organizações negras solicitavam autorização ao Conselho de Estado do Império para se organizar por meio de associações beneficentes. A Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor enviou, em 1874, ao Conselho de Estado o seu estatuto para ser submetido ao parecer do referido conselho. O estado moderno imperial interpretou e relatou esta ação política dos negros em um parecer em 16 de janeiro de 1875:

Os homes de cor, livres, são no Império cidadãos que não forma classe separada, e quando escravos não tem direito a associar-se. A Sociedade especial é pois dispensável e pode trazer os inconvenientes da dricação do antagonismo social e político: dispensável, porque os homens de cor devem ter e de fato tem

173 SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco - Raça e Nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp. 37-38. 174 Idem. 175 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 10. 176 Idem. 70

admissão nas Associações Nacionais, como é seu direito e muito convém à harmonia e boas relações entre os brasileiros 177 .

Os discursos de Joaquim Nabuco procuraram forjar uma população híbrida sob a dominância da cultura branca, harmoniosa e organizadamente indivisa, diante da possível iminência de uma abolição total e incorporação social dos futuros ex-escravizados, no sentido de conter os espíritos mais exaltados de revanchismo e convulsões sociais. Os discursos abolicionistas de Joaquim Nabuco, em seu conjunto, tratam de uma propositura política que, a partir de uma crítica ao sistema social como um todo: os males da escravidão, progresso técnico, ausência de uma opinião pública esclarecida, primitivismo das práticas eleitorais. Para o mesmo, fazia-se necessário superar esta realidade, esses obstáculos, em especial a escravidão, “causa de todos os vícios políticos e fraquezas sociais; um obstáculo invencível ao seu progresso 178 ”. Ao traçarmos um paralelo entre a posição de Luiz Gama e Joaquim Nabuco, notamos que este último, apesar da defesa implacável da abolição, temia o processo de “integração” dos negros, pois duvidava da possibilidade de tornar cidadãos aqueles que consideravam “uma horda de homens semibárbaros, sem direção, sem um alvo social. 179 ” Notamos que estes discursos políticos de modernização procuravam integrar numa mesma temporalidade ritmos e modos de vida assimétricos. A diáspora perturbou a visão da passagem do tempo como algo regular e homogêneo, inseriu no processo histórico temporalidades concorrenciais 180 , uma heterogeneidade de experiências sociais. Os discursos ideológicos de Joaquim Nabuco tentavam dar “normalidade” hegemônica 181 ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas das raças. Enquanto Luiz

177 Ver GOMES, Flávio. Os negros e a política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.8-9. 178 Ver BEIGUELMAN, Paula. Joaquim Nabuco. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999, p. 110. 179 AZEVEDO, Célia M. Marinho. Onda Negra, Medo Branco – o negro no imaginário das elites no séc. XIX. São Paulo: AnnaBlume, 2007, p. 58. 180 Ver O tempo da Nação. Neste capítulo, Homi BhaBha questiona as nações modernas em suas tentativas de coesão social, sem distinção das temporalidades e consequentemente negligenciando as experiências coletivas heterogêneas. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, pp.198-238. 181 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p. 239. 71

Gama pretendia enfatizar a todo o momento a natureza diferenciada da raça negra e seu papel social sem subordinações. O abolicionismo, como um conjunto de práticas voltadas para libertar os escravizados, em garantir o direito à liberdade já prescrito nas leis reformistas, teve em sua condução personalidades políticas brancas, urbanas e masculinas que dificilmente deixavam os escravos falarem por si. Esses intelectuais consideravam-se porta-vozes, a consciência representante dos desvalidos. Muitos abolicionistas jamais discursaram diretamente para negros. À proporção que a luta abolicionista se aproxima do discurso humanitário, a consciência e eloquência antiescravista ganha cada vez mais espaço social, procurando revelar a “verdade” (os efeitos) da escravidão para a sociedade. Os políticos abolicionistas comportavam-se como agentes da consciência da realidade escravista. Estas indignidades de falar pelo outro 182 , silenciando seus discursos 183 , procuravam disciplinar sujeitos para um novo regime político. Luiz Gama tinha plena consciência de sua condição de abolicionista e negro no conjunto dos discursos pela emancipação escrava. Ajudou a fundar cursos populares noturnos na cidade de São Paulo, “para alumiamento do povo, e organizarem-se as associações particulares para emancipação dos escravos”, disse isto em carta 184 dirigida ao amigo José Carlos Rodrigues, em 1870. Os abolicionistas negros constantemente eram acusados de “pregar a insurreição” contra os brancos. Em meios a esse conflito social que a propaganda abolicionista instalou, proprietários de escravos sabiam do potencial “sedicioso” dos discursos daqueles que estavam irmanados na cor. Quando José do Patrocínio e José Ferreira de Menezes, ambos abolicionistas negros, deram início às suas jornadas de conferências abolicionistas no Teatro São Luís, no Rio de Janeiro, foram acusados de atentar contra a ordem

182 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 23º edição, São Paulo: Edições Graal, 2007, p.72. 183 A palavra discurso assume aqui a seguinte acepção: “trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado pra fazê-lo”. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2010. 184 A carta encontra-se na Biblioteca Nacional, citado a partir de FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 195. 72

pública, contra o direito de propriedade e pregar o ódio contra os brancos. Os efeitos dos discursos desses dois negros abolicionistas foram publicados no jornal Gazeta do Povo em dezembro de 1880. O autor do artigo chega a solicitar a prisão dos dois abolicionistas por “dirigir injúrias” aos proprietários de escravos. Em carta ao seu amigo José Ferreira de Menezes, Luiz Gama demonstra o quanto os discursos dos abolicionistas negros eram potencialmente “perigoso” para a sobrevivência física dos senhores.

Há cenas de tanta grandeza, ou de tanta miséria, que por completas em seu gênero, não se descrevem; o mundo e o átomo por si mesmos se definem; assim, o crime e a virtude guardam a mesma proporção; assim, o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo indigno, que assassina heróis, jamais se confundirão.

Os projetos de integração dos ex-escravizados à sociedade civil tinham como objetivo também controlar todo e qualquer potencial de guerra civil. Poderíamos considerar Luiz Gama como um político radical, mas coerente com as possibilidades históricas dos negros escravizados. Aqui residem as diferenças substanciais entre o intelectual diaspórico e Joaquim Nabuco. A percepção de ambos quanto ao abolicionismo foi narrada em linguagens muito diferentes e habitavam universos de experiência social bastante distintos. Em carta dirigida a José do Patrocínio, Gama deixa evidente o peso da inferiorização que a modernidade atribuiu a todos aqueles de epiderme escura. O racismo de base biológica foi uma violência originária da modernidade. “Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime... 185 ”. Sua consciência política-racial o fazia ser solidário com o limitado número de negros abolicionistas que ganhou notoriedade e projeção nacional. Luiz Gama considerava as ações dos negros abolicionistas uma ação “desinteressada 186 ”, dado a importância da escravidão como motor do desenvolvimento do processo histórico brasileiro. A passagem abaixo é um

185 Emancipação. Gazeta do Povo, 01 de dezembro de 1880. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p.151. 186 Luiz Gama, Carta a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em 10 de outubro de 2012. 73

pouco longa, mas sintetiza pormenorizadamente o papel dos escravizados no processo histórico brasileiro:

Sim! Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areias da África, roubados, escravizados, azorragados, mutilados, arrastados neste país clássico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem família, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho, transformados em máquinas, condenados à luta de todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de ladrões impudicos, de salteadores sem nome; que tudo isso sofreram e sofrem, em face de uma sociedade opulenta, do mais sábio dos monarcas, à luz divina da santa religião católica, apostólica, romana, diante do mais generoso e mais interessado dos povos; que recebiam uma carabina envolvida em uma carta de alforria, com a obrigação de se fazerem matar à fome, à sede e à bala nos esteiros paraguaios e que nos leitos dos hospitais morriam, volvendo os olhos ao território brasileiro, os que com seu trabalho, com sua jactura, com sua própria miséria constituíram a grandeza desta nação, jamais encontraram quem, dirigindo um movimento espontâneo, desinteressado, supremo, lhes quebrasse os grilhões do cativeiro!... 187

Nessa reconstrução histórica do negro e da escravidão, Luiz Gama apresenta um novo olhar sobre o passado, sobre a memória social do trabalho escravo, contrapunha-se às narrativas históricas hegemônicas pautadas em “longas genealogias e vultos históricos, 188 ” em históricas épicas e nacionalistas. A originalidade de sua análise reside em sua postura crítica, apresentando argumentos fortes, diretos às formas brutais de vida, nas relações sociais e humanas impulsionadas pela diáspora. Inova ao apresentar termos críticos, “espoliados em seu trabalho”, posições políticas claras e objetivas, “o comércio negreiro e a classe dos escravocratas condenados à luta de todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos”. Desta forma, apresenta uma visão não colonizada e perturba o modo de escrever positivista, em um momento histórico em que a ideia dos “males da escravidão” carregava consigo um código racial preconceituoso com os modos de vida dos negros que poucos intelectuais perceberam. O texto carrega consigo uma carga emotiva e política que tenciona para um horizonte de

187 Idem. 188 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 138. 74

expectativa 189 , uma vez que aborda o passado, “tudo isso sofreram e sofrem”, querendo transformar o presente-futuro. Responde indiretamente às injunções analíticas dos ensaios da Revista do IHGB, do tipo: “Os negros representam um exemplo de grupo incivilizável 190 ” ou “As populações negras vivem no estado mais baixo de civilização humana 191 ”. Essas novas formas de narratividade apresentadas por Luiz Gama, apoiadas numa concepção de histórica crítica aos discursos que barbarizavam os negros e negras, revela a existência de contra-narrativas a uma escrita da história historicista e conservadora. Por “movimento espontâneo que quebrasse os grilhões192 ”, como se vê na carta, leia-se a campanha abolicionista-republicana. Nesse movimento, Gama procura articular sistematicamente o emancipacionismo com a causa republicana, o que estamos procurando demonstrar ao longo deste capítulo. O ideal republicano aparecia para Gama como um regime igualitário que aniquilaria os preconceitos de raça, superioridade social e de fortuna 193 . O ideal republicano não era um fato novo, eventos anteriores (Revolução de 1817, Farroupilha) serviram de inspiração para continuar o sonho do federalismo. A partir de 1870, o movimento republicano propaga-se e um dos fortes fatores que propiciou a sua eclosão foi o movimento abolicionista. O Partido Republicano Paulista (PRP), fundado em 1872, foi uma poderosa força antimonárquica. Além dos profissionais liberais, também faziam composição, nas fileiras do partido, os fazendeiros de café. No primeiro Congresso do Partido Republicano Paulista, com a presença de Luiz Gama, entre outros nomes conhecidos da luta abolicionista, foi apresentado o Manifesto Republicano, documento que consistia em apresentar os regimentos do mais

189 Para Koselleck, em relação ao tempo histórico, as “expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”, “não há expectativa sem experiência, não há experiência sem expectativa”. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-RJ, 2011, p. 307. 190 Idem, p. 111. 191 Ibidem. 192 Luiz Gama, Carta a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em 10 de outubro de 2012. 193 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001, p.515. 75

novo partido, assim como apresentar sua posição em relação ao elemento servil.

1º - Em respeito ao princípio federativo, cada província realizará a reforma da [da escravidão] de acordo com seus interesses peculiares, mais ou menos lentamente, conforme a maior ou menor facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.

2º - Em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade de fato com o princípio de liberdade, a reforma se fará tendo por base a indenização e o resgate 194 .

Ao ter conhecimento do manifesto, Luiz Gama não esteve presente no dia do lançamento, e ver que a questão da abolição seria gradual e de acordo com as peculiaridades de cada região, Gama percebera que as relações de forças eram mais fortes do que se imaginava. Desde o início de sua atuação pública na luta pela emancipação do elemento servil até o lançamento do programa do partido republicano, foram 14 anos de esforço intelectual e político sistemático pela abolição radical da escravatura. Um desalento para quem sempre atuara com posições consideradas extremas, radicais, de forma que ingressava sempre à ala radical das organizações políticas, foi membro do Partido Liberal “Radical” e do Clube Radical Republicano e constantemente era acusado de insuflar escravizados contra seus senhores. A estratégia de apresentar um programa reformista em relação à escravidão do recém-criado partido republicano era a de atrair os senhores de escravos e pisar um pouco no freio (ser menos radical) na propaganda abolicionista. Na convenção de Itu, cidade que abarcava a maior concentração de escravos, contou-se com a presença de 133 republicanos, sendo 78 fazendeiros, e os demais, os outros 55, distribuídos nas mais diversas profissões 195 . Esses republicanos queriam “fazer política com a abolição 196 ”, o abolicionismo como meio para alcançar a tão esperada proclamação da república e o federalismo que proporcionaria maior autonomia econômica para as regiões (as futuras unidades federativas). Luiz Gama, ao contrário,

194 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999, p.139-140. 195 Idem, 143. 196 SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco - Raça e Nacionalidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 31. 76

separava a natureza de ambos e compreendia a abolição como um fim em si mesmo. Protestou contra as idéias do manifesto, contra as concessões que nele faziam à opressão e ao crime. Propugnava, ousadamente, pela abolição completa, imediata e incondicional do elemento servil. Crescia na tribuna o vulto do orador. O gesto, a princípio frouxo, alargava-se, acentua-se, enérgico e inspirado. Estava quebrada a calma serenidade da sessão.

Os representantes, quase todos de pé mas dominados e mudos, ouviam a palavra fogosa, vingadora e formidável do tribuno negro. Não era já um homem, era um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia. (...) A sua opinião caiu vencida e única. Mas houve, também ali, um coração que não se alvoroçasse de entusiasmo pelo defensor dos escravos 197 .

Esse célebre relato de Lucio de Mendonça, amigo pessoal de Luiz Gama, publicado oito anos depois do lançamento oficial do Partido Republicano, é bastante condizente com a personalidade política deste intelectual negro, ainda que esteja carregado de significados a partir do momento em que foi narrado (em 1881, Gama já era um dos ícones do abolicionismo). Biógrafos, incluímos aqui o mais conhecido, o autor do clássico O precursor do abolicionismo no Brasil, Sud Mennucci, e argutos pesquisadores da vida e obra de Luiz Gama se renderam às posições de Lúcio de Mendonça acriticamente e sem aprofundamento metodológico (pesquisa) interpretaram esse depoimento como um rompimento definitivo entre Luiz Gama e o Partido Republicano. Elciene Azevedo 198 demonstrou, em Orfeu de Carapinha, com uma pesquisa mais apurada nos jornais republicanos, que o mesmo continuou participando ativamente na vida política do partido, indo a congressos, ocupando cargos, cobrando posições do partido nos processos eleitorais. Não abdicou até à morte dos “verdadeiros princípios republicanos”. Em meio às querelas do partido republicano entre a manutenção da ordem por meio de medidas reformistas para não desestabilizá-la frente ao abolicionismo radical, não podemos deixar de considerar o papel do sujeito, da

197 Lúcio de Mendonça, Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em 10 de outubro de 2012. 198 Idem. 77

agência, ou seja, a capacidade política de Luiz Gama de “interrogar e rearticular o ‘inter-esse’ da sociedade que marginaliza seus interesses 199 ” Queremos demonstrar, neste trabalho, o quanto os consensos “liberais”, através das alianças sociais de classe nas sociedades modernas, sobredeterminaram as questões de raça e diferença cultural. Gama fazia prevalecer em suas posições a importância da outridade, da alteridade, nos debates que tratavam dos rumos da nação, na luta pela implantação de um regime republicano e democrático. O lugar para um intelectual diaspórico era o dissenso, frente às forças políticas desiguais de representação cultural.

[...] eu de bom grado [a] aceitaria, se não me achasse ao lado de homens livres, criminosamente escravizados, e pleiteando contra os salteadores do mar, os piratas da costa da África.

Ao positivismo da macia escravidão eu anteponho o das revoluções da liberdade; quero ser louco como John Brown, como Espártacus, como Lincoln, como Jesus; detesto, porém, a calma farisaica de Pilatos 200 .

Luiz Gama não estava sozinho nesse empreendimento, paralelamente temos também o intelectual José do Patrocínio. O processo colonial produziu sujeitos desterritorizados e seus vínculos de solidariedade foram muito mais pelo sofrimento em comum do que por sua pigmentação201 . O objetivo desta análise de histórias paralelas entre Luiz Gama e José do Patrocínio é identificar as similaridades e diferenças em suas sensibilidades, paixões e visões políticas a respeito da abolição, tendo em vista suas experiências pessoais de subordinação racial.

199 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p. 265. 200 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999, p 186. 201 Ralph Ellison foi um negro norte-americano, escritor, romancista, crítico literário, pesquisador. Utilizamos para a nossa reflexão parte de sua reflexão sobre cultura e raça: “Nós compartilhamos um ódio pela alienação imposta a nós pelos europeus durante o processo colonial e imperial e somos vinculados mais por nosso sofrimento comum do que por nossa pigmentação.” Citado por GILROY, Paul. O atlântico negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-asiáticos, 2001, p.223. 78

Figura 13 - José do Patrocínio, líder abolicionista, jornalista e político.

Filho de uma escravizada negra com um padre branco, José Carlos do Patrocínio tinha a cor do “tijolo queimado”, conforme sua própria definição. Nascido em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em 1853, José do Patrocínio foi farmacêutico, jornalista, escritor e orador. Formado em um curso de baixo 202 prestígio social, sua carreira profissional teve menos destaque que seu ativismo político. Com a publicação do quinzenário satírico Os Ferrões (1875), Patrocínio dá início à sua carreira jornalística. Foi proprietário e dirigiu a redação do jornal Cidade do Rio. Como os jornalistas eram ao mesmo tempo

202 Ver CARVALHO, José Murilo de. A Campanha Abolicionista – José do Patrocínio. Ministério da Cultura – Fundação Nacional do Livro, 1996. 79

políticos, uma vez que se era jornalista por ser político, de forma que o jornalismo não passava de “um meio de fazer política 203 ”, seu ativismo acha-se imbricado nestes dois campos. Contribuiu para a criação da Guarda Negra – uma organização de ex-escravos que tinha a função de defender a liberdade dos negros e a figura da princesa Isabel, em meio aos conflitos generalizados entre republicanos, republicanos rancorosos por não serem indenizados e monarquistas. Luiz Gama e José do Patrocínio eram apaixonados pela causa abolicionista. Reservado os diferentes momentos e contextos específicos, apresentavam posições políticas semelhantes. Eram radicais quando se tratava da libertação dos escravizados. Partindo em defesa do seu amigo, em relação a um “contristador escrito, publicado na Província de São Paulo de hoje, contra o distinto cidadão José do Patrocínio 204 ”, Gama escreveu: “Vim [lembrar] ofensor do cidadão José do Patrocínio por que nós, os abolicionistas, animados de uma só crença, dirigidos por uma só idéia, formamos uma só família, visando um sacrifício único, cumprimos um só dever 205 ”. Patrocínio defendia uma abolição imediata sem indenização. Atuou fundamentalmente nos períodos mais efervescentes do debate sobre a indenização ou não dos senhores pela libertação oficial dos escravos. Neste período, Luiz Gama já se encontra acometido pela diabetes, ainda assim, continua em seu ativismo abolicionista, participando de comícios, debates, produzindo artigos jornalísticos e ainda participa da fundação da Caixa Emancipadora Luiz Gama de São Paulo, na qual é homenageado. Com a criação da Associação Emancipadora do Rio de Janeiro, da qual José do Patrocínio fez parte, cresce os laços de amizade política entre ambos. Na década de 80 do século XIX, Patrocínio apresentou posições políticas cambiantes ao se aproximar da Monarquia, uma vez que colocava a questão abolicionista acima das posições partidárias frente às formas de governo. Uma

203 CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi , Rio de Janeiro, nº 01, p. 141. 204 Gazeta do Povo, 01 de dezembro de 1880. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 151. 205 Idem. 80

década antes, Luiz Gama entendia que a aliança com “os partidos monárquicos em qualquer circunstância era uma suprema traição ao ideal republicano 206 ”. Gama decepcionou-se com as resoluções do manifesto republicano que, ao invés de aprovar a abolição imediata da escravidão no seu programa de ação, preferiu desvincular a propaganda republicana da abolicionista. Tanto Patrocínio quanto Luiz Gama apresentavam-se como um “Spartacus” frente ao processo de libertação escrava. Para eles, a questão da abolição era uma luta social em favor do povo escravizado, que por vezes demonstrava ser impulsionada muito mais por uma familiaridade pessoal com a escravidão do que de ordem socioeconômica. Essa imagem de um gladiador do mundo antigo corrobora com a iniciativa de Patrocínio de criação de uma “guarda negra” em defesa da garantia da libertação dos homens de cor. A carreira política de José do Patrocínio foi marcada por sua defesa a uma monarquia em crise e à princesa Isabel. Foi por demais desmoralizado e hostilizado pela imprensa republicana, “O último negro que se vendeu 207 ”, esse foi um dos destaques da imprensa. Patrocínio constantemente procurou defender-se de tais acusações e, ao mesmo tempo, denunciar as práticas racistas dos “republicanos de 14 de maio”, principalmente aqueles que haviam tomado partido da causa republicana por estarem insatisfeitos com a libertação sem indenização.

O modo como os republicanos de 14 de maio estão dirigindo a propaganda contra as instituições vigentes tem provocado em toda parte do país a maior indignação. Desnaturado o sagrado ideal da República, servem-se dele como a arma de vingança contra a Monarquia, os quais não queriam e não querem ainda agora se conformar com a igualdade de todos os brasileiros. Contra os homens de cor são vulcânicas as explosões de ódio 208 .

Para José do Patrocínio, a defesa circunstancial da monarquia foi a forma encontrada para assegurar a abolição e defender sua proponente (a princesa). Daí concluirmos “hipoteticamente” que, se Luiz Gama tivesse

206 AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999, p.169. 207 Ver CARVALHO, José Murilo de. A Campanha Abolicionista – José do Patrocínio. Ministério da Cultura – Fundação Nacional do Livro, 1996. 208 Ver GOMES, Flávio. Os negros e a política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 21. 81

assistido à abolição oficial realizada pelo governo monárquico, não teria, à semelhança de Patrocínio, posições ambíguas de apoio ao regime quando manifestou sua posição de uma abolição geral e irrestrita sem indenizações? A campanha abolicionista, ou melhor, as lutas contra a escravidão, possibilitaram ações políticas coletivas em que determinados negros construíram um espaço independente e autônomo de forma a demonstrarem suas forças e potência simbólica 209 de suas convicções ideológicas e prática política. Nota-se, nos intelectuais negros, a partir de suas experiências de lutas compartilhadas, uma identidade de interesses entre si e contra aqueles cujos interesses étnicos diferem ou se opõem dos seus 210 . Através dos seus discursos sediciosos, assim o qualifica um escravocrata em 1880, de suas oratórias, suas retóricas, Gama e Patrocínio, entre outros abolicionistas negros, foram corroendo toda a verdade construída em “possuir escravos legitimamente adquiridos 211 ”. Utilizaram-se do contra-discurso, de uma argumentação que foi invertida por outra, num jogo discursivo em que “tudo o que é feito por palavras pode ser desfeito pelas palavras 212 ”. José do Patrocínio e Luiz Gama viveram a experiência emocional e social da escravidão e dos conflitos raciais gestados pela modernidade. Suas concepções políticas eram fragmentadas de modo a acomodar elementos heterogêneos, estavam muito mais fundamentadas na “middle passage 213 do que no sonho de transformação revolucionária 214 ”.

209 Para uma análise aprofundada destas questões, ver GILROY, Paul. Modernidade, Terror e Movimentos, In: O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. 210 Faço uso da reflexão de E. P. Thompson quando da definição de classe como resultado de experiências comuns adaptando-o ao contexto da análise deste estudo. THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1. A árvore da liberdade . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 10. 211 A carta do senhor proprietário de escravos contra as conferências abolicionistas publicada no jornal encontra-se transcrita em uma nota de rodapé no livro FEREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 151. 212 FIORIN, José Luiz. A arte da persuasão. Revista Discutindo Língua Portuguesa, Edição nº04, Ano I. São Paulo: Editora Escala, p. 18-21, 2007. 213 O nome Passagem do Meio ou Middle Passage é bastante recorrente na literatura de língua inglesa, é uma alusão à travessia do oceano Atlântico pelos negros da diáspora. 214 Ver GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p. 368. 82

Luiz Gama viveu numa experiência de tempo e espaço compartilhado por milhares de pessoas de cor, a esta experiência, como já afirmamos, denominamos de modernidade, resultado do empreendimento colonial e da diáspora 215 . Ser moderno era fazer parte de um universo que aproximava as pessoas, mas repeliam-se suas diferenças raciais, promovendo uma unidade paradoxal. Coube ao pensamento raciológico, ao qual a modernidade deu o estatuto de ciência, a elaboração teórica que justificava os perigos das mesclas de raças. Luiz Gama conviveu com as angústias da modernidade. Mas a diáspora também provocou, entre os negros, uma solidariedade (metafísica da raça) para além de suas condições de escravizados, transcendendo os limites do estado-nação, ainda que presa à raciologia. Em sua luta pela defesa do direito à liberdade “de um miserável africano 216 ”, cuja cor era “um defeito 217 ”, Luiz Gama procurava estender o campo limítrofe da cidadania e da identidade nacional. As análises sobre o perfil intelectual de Luiz Gama procuraram ressaltar, principalmente, entre outras abordagens, a produção de um sujeito no contexto da modernidade diaspórica que produziu “figuras complexas de diferença e identidade 218 ”. E, por constituí-se num sujeito do “entre-lugar”, híbrido, desterritorializado, resultado do processo de tradução cultural provocado pela diáspora, constructo da modernidade, não poderíamos nos ater em perspectivas nacionais. Esse trabalho, a partir do campo de investigação aberto por Paul Gilroy aos historiadores da cultura, procurou assumir o Atlântico como uma unidade de análise para as discussões do mundo moderno, em oposição a posições nacionalistas ou etnicamente absolutas. Ser negro e intelectual ao mesmo tempo era cruzar identidades e papéis sociais que a sociedade imperial considerava assimétricos dado a centralidade da raça na cultura política. A historiografia sempre pautou o movimento intelectual da sociedade imperial numa relação direta com as classes e em

215 Utilizo, nesta passagem das reflexões de Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, e do Paul Gilroy, O Atlântico Negro. 216 Luiz Gama, Foro da Capital, Radical Paulistano, 13 de novembro de 1869. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Nacional Digital do Brasil, consulta em 20 de junho de 2013. 217 Luiz Gama, Emancipação, Gazeta do Povo, 01 de dezembro de 1880. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 151. 218 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988, p 19. 83

suas ideologias correspondentes, na dicotomia centro-periferia e em seu descompasso e ambiguidades com a realidade ou na mera imitação e/ou apropriação de ideias estrangeiras. Todas essas formas de consciência da elite letrada voltavam-se para suas origens europeias. Num processo de luta interpretativa, sociólogos e historiadores estavam muito mais preocupados se tais recepções foram originais ou não, numa cultura nacional unificada, do que no seu processo de articulação e desarticulação de signos que a modernidade impôs à sociedade imperial. Essa sociedade, vista de forma complexa, abria caminho para o atlântico negro como espaço de trocas, relações e formação da dupla consciência na cultura política negra.

Mulato esfolado/ Que diz-se fidalgo / Porque tem de galgo /O longo focinho, Não perde a catinga / De cheiro fallace [sic]/ Ainda que passe / Por brazeo cadinho

Eu sei que pretecio / De Angola oriundo / Alegre, jocundo / Nos meus vou cortando; É que não tolero / Falsários parentes / Ferrarem-me os dentes / Por brancos passando 219 .

As narrativas de Luiz Gama, por vezes, apontam para uma interculturalidade para além da “fronteira fechada do Estado-nação 220 ”. Esse intelectual diaspórico nos deixou um legado em suas interpretações da sociedade imperial escravista: a modernização da economia e da política, em meio às relações de poder, jamais conteve as múltiplas formas de resistências e luta daqueles cuja cor, como ele dizia, “encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade 221 ”.

219 MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p. 96. 220 GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. São Paulo: AnnaBlume, 2007, p. 141. 221 Luiz Gama, Emancipação, Gazeta do Povo, 01 de dezembro de 1880, In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 151. 84

CAPÍTULO II Luiz Gama: memória e identidade diaspórica

85

“Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”.

Martin Heidegger

Os estudos culturais interpretam a diáspora como um fenômeno histórico da modernidade, como uma estrutura de sentimento. O sujeito diaspórico é aquele que viveu a experiência das transformações culturais dos tempos modernos, refere-se àqueles que sofreram um processo de hibridização, não necessariamente circunscrito às misturas raciais, mas um processo mais amplo, de “tradução cultural que nunca se completa, uma vez que está em constante negociação 222 ”. Esses sujeitos “são obrigados a negociar com as novas culturas que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades 223 ”. Como categoria de análise, as teorizações sobre a diáspora 224 foram elaboradas na virada do século XX pelos estudos culturais e pós-coloniais tendo por base o contexto geopolítico das lutas pela independência no Terceiro Mundo e a exploração econômica dos países ricos sobre os pobres. Faço uso, neste capítulo, do seu sentido estrito. Por ora, pretendo demonstrar como a diáspora aparece nos modos de vida dos sujeitos negros em meio às fronteiras rígidas da cidade letrada paulistana. Como Luiz Gama imaginava efetivamente o seu pertencimento, as relações raciais, sua luta na construção de outro modelo de “comunidade imaginada 225 ” à luz da experiência da diáspora.

222 Ver HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.88. 223 Idem. 224 A definição do conceito diáspora , segundo o Dicionário de relações étnicas e raciais , vem dos antigos termos gregos dia (através, por meio de) e speirõ (dispersão, disseminar ou dispersar) e está associada às ideias de migração e colonização da Ásia Menor e do Mediterrâneo (800 a 600 a.C). De acordo com Cashmore, na tradução grega do Deuteronômio, a palavra designa, também, maldição, visto sua referência à dispersão dos judeus exilados da Palestina depois da conquista babilônica. Neste estudo, as referências históricas estão associadas à diáspora africana que teve maior intensidade entre os séculos XVI e XVIII, resultado do deslocamento forçado de mais de 20 milhões de africanos para locais como as Américas (incluindo EUA, Canadá, Caribe, América Central, América do Sul), Europa e Ásia, em grande parte motivado pela escravidão e pelo tráfico negreiro pelo Atlântico. 225 As referências são as noções empregadas por Benedict Anderson ao processo construção das nações no século XIX. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 86

Sendo assim, procuraremos descrever e interpretar como a diáspora foi vivida por Luiz Gama e em que momentos suas “re-identificações simbólicas 226 ” com a cultura de “origem” africana foram projetadas no campo das disputas políticas para se afirmarem como parte constituinte da identidade nacional. Nosso ponto de partida para entendermos como suas práticas sociais e mentais (estrutura de sentimento) foram mediadas pelas formas de produção e organização sócio-política é o seu artigo autobiográfico 227 , que escrevera a pedido do jornalista Lúcio de Mendonça e publicado no Almanaque Literário de São Paulo em 25 de julho de 1880 e no jornal Gazeta da Tarde, com sede no Rio de Janeiro.

Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelos ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes, e que sempre eu os trouxe de memória 228 .

Luiz Gama construiu esta memória para desconstruir as “memórias” especulativas a respeito de sua trajetória de vida. Visava, também, procurar explorar os significados subjetivos da construção dessa memória e, ao mesmo tempo, refletir sobre sua experiência diaspórica. Podemos notar que a escolha do contexto para sua publicação foi bastante propício no sentido de se fundar uma referência, um marco de memória. A carta foi escrita em 1880 e só publicado em 1881. Neste período Gama já era indiscutivelmente uma referência paulista na campanha abolicionista, o que contrastava com sua saúde, marcada pelo diabetes.

226 HALL, Stuart. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p.57. 227 A carta encontra-se em sua íntegra no anexo desta tese. 228 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, publicada no jornal Correio Paulistano em 25 de julho de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional, www.hemerotecadigital.bn.br , consulta realizada em 10 de outubro de 2012. 87

Figura 14 – Notícia sobre o estado de saúde de Luiz Gama. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro,17 de novembro de 1880.

A instabilidade de sua saúde pode ser um dos fortes indícios de sua necessidade em escrever uma “carta-memória”. Em outros momentos, foi o próprio Gama quem relatou em carta os aspectos do seu quadro clínico ao seu amigo jornalista Ferreira de Menezes, residente no Rio de Janeiro. Sua produção ficou reduzida, pois passava o tempo dividido entre o repouso médico e o ofício de jornalista e político.

Daqui, a despeito das melhoras que experimento, ainda pouco saio à tarde, para não contrariar as prescrições do meu escrupuloso médico e excelente amigo, Dr. Jaime Serva.

Descanso dos labores e elocubrações da manhã, e preparo o espírito para as lutas do dia seguinte 229 .

Quanto às narrativas da carta-memória, os biógrafos de Luiz Gama sempre procuraram comprovar os fatos apresentados da mesma, na medida em que a documentação pode rastrear. Desde Sud Mennucci, com O precursor do abolicionismo no Brasil; passando por J. Romão da Silva, com Luiz Gama e suas poesias satíricas; aos trabalhos mais recentes da Elciene Azevedo, Orfeu de Carapinha, e de Lígia Fonseca Ferreira, Com a palavra, Luiz Gama; tem havido um esforço para se “comprovar seus elementos mais controversos 230 .”

229 Carta de Luiz Gama a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: em 10 de outubro de 2012. 230 Refiro-me às críticas da pesquisadora Hebe Matos aos biógrafos de Luiz Gama que “não contestam a narrativa da carta a Lúcio de Mendonça” e que “não são capazes de comprovar seus elementos mais controversos”, embora reconheça que não seja fundamental a sua comprovação, pondera ao destacar que se pode “sublinhar o aspecto simbólico da narrativa”. 88

As indagações de alguns pesquisadores sobre a existência de sua mãe, Luiza Mahin, ou a respeito da identidade de seu pai, um fidalgo de origem portuguesa, ou ainda como Luiz Gama conseguiu as “provas de inconcussas de sua liberdade”, são apenas alguns exemplos. A busca pela veracidade ou comprovação dos elementos que a narrativa autobiográfica nos oferece não pode ficar restrita a documentações seriais. A diáspora, ao promover a confluência de um conjunto heterogêneo de valores culturais, faz necessário ao pesquisador estar atento aos rastros/resíduos das práticas destes sujeitos. Não basta apenas um esforço minucioso em decodificar e contextualizar documentos 231 seriais.

Os africanos, vítimas do tráfico para as Américas, transportaram consigo para além da Imensidão das Águas o rastro/resíduo de seus deuses, de seus costumes, de suas linguagens. Confrontados à implacável desordem do colono, eles conheceram essa genialidade, atada aos sofrimentos que suportaram, de fertilizar esses rastros/resíduos, criando, melhor do que sínteses, resultante das quais adquiriram o segredo 232 .

É justamente dentro dessa perspectiva que esse trabalho procura reconstruir a trajetória de Luiz Gama por meio da materialização dos rastros/resíduos dos modos de vida afro-brasileiros nos espaços públicos e simbólicos da cidade. Amadou Hampaté Bâ, especialista em tradição e memória africana, nos mostra, em seu texto A tradição viva, a importância da tradição oral em relação à história africana. Afirma que a herança de conhecimento de todas as espécies reside na memória da última geração de grandes depositários, estes sujeitos são a memória viva da África. Seu testemunho é o próprio valor do homem,

MATOS, Hebe. Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista no Brasil. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial, vol. III, 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.27-28. 231 Nesse sentido, propõe-se um novo paradigma, ir além da documentação escrita, ao contrário do que sugere Chalhoub, ao seguir as trilhas metodológicas do historiador Carlo Ginzburg. Ainda que proponha ir além da dicotomia racional/irracional, a sua técnica de investigação fica presa à documentação, aos registros escritos. Ver: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade – uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 16. 232 Ver GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: Ed. UFJF, 2005. p. 84. 89

[...] o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído a verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e palavra 233 .

O próprio Luiz Gama resolveu participar dessa cadeia de transmissão, pois, ao produzir uma memória através da palavra para desfazer as “verdades pueris que me dizem respeito”, queria construir uma memória coletiva. Vários trechos da carta já haviam sido escritos de uma forma diferente em outros momentos de sua vida, em meio aos debates que travou em sua campanha abolicionista. Acompanhando o volume de artigos publicados nos jornais, em especial no Radical Paulistano e no Correio Paulistano, percebe-se que é possível reconstituir sua vida por meio desses fragmentos. Sobre sua infância, descreve, em 1870: “eu ainda hoje, ao cabo de 30 anos, vejo algumas ruas da Bahia, as casas demolidas pelo incêndio de 37, e os lugares em que brinquei com as crianças da minha idade 234 ”. Luiz Gama, antes mesmo de escrever, precisou recordar os fatos de sua própria experiência vivida e alguns que lhes foram narrados. A memória, como um mecanismo de seleção, não é apenas uma gravação 235 . O momento, as escolhas e seus interesses particulares determinaram a produção da sua memória de formas diferentes. Isto fica evidente quando passamos a analisar a memória de sua carreira profissional e os motivos que o levaram à demissão. Em 1870, apresentava-se desta forma, em carta dirigida ao seu amigo José Carlos Rodrigues: “Fui demitido do lugar de amanuense da [repartição] de Polícia, por sustentar demandas em favor de gente livre posta em cativeiro indébito!”. Enquanto em 1880, dizia na célebre carta:

Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que por turbulento e sedicioso fui demitido a bem do serviço público, pelos conservadores, que então haviam subido ao poder.

233 BÂ, Amadou Hampate. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (editor). História Geral da África. Vol.1. Metodologia e Pré-História da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 168. 234 Carta de Luiz Gama a José Carlos Rodrigues, São Paulo, 26 de novembro de 1870. O documento encontra-se na Biblioteca Nacional. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p.196. 235 HOBSBAWN, Eric. A outra história: algumas reflexões. In: KRANTZ, Frederick (org.). A outra história . Rio de Janeiro, Zahar, 1990. p. 23.

90

O elemento fundamental permanece na memória: a demissão do cargo de amanuense. Em sua carta-memória, Luiz Gama não faz referências e nem muito menos canaliza sua narrativa para a campanha abolicionista, que neste momento prolifera-se às associações emancipadoras e aos fundos de emancipação. Enquanto em 1870, período em que atuou sistematicamente como advogado em favor dos escravizados, atribui sua demissão à sua luta em favor de pessoas livres escravas injustamente, em 1880 substitui esse argumento pela ação de políticos conservadores. Gama escreveu várias cartas, em apenas duas aparecem os aspectos mais subjetivos de sua vida familiar. Dez anos antes da escrita da carta “encomendada” por Lúcio de Mendonça, Gama havia redigido uma especificamente para o seu filho, Benedito Graco Pinto da Gama. Escreveu num momento em que estava sob ameaça de assassinato. Mais uma vez, Gama registra sua intenção em deixar uma carta-testemunho. “Trabalha por ti e com esforço inquebrantável para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame Estados Unidos do Brasil 236 ”. Nas cartas, a dimensão entre a intimidade privada e o espaço público encontra-se bem imbricada. A memória da diáspora faz manter viva a determinação de construir uma nova formação social e política que supere o terror da dominação humana por meio da escravidão. A carta, entre outras produções, para muitos pesquisadores foi o ponto de partida para se traçar/analisar a construção de sua identidade étnica basicamente a partir de sua experiência escrava. A produção social de sua identidade foi interpretada com base em suas descrições a respeito da sua mãe, “sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina (Nagô de Nação)”; e da forte presença em sua memória da mesma 237 , “dotada de

236 Carta de Luiz Gama ao filho Benedito Graco Pinto da Gama, 23 de setembro de 1870. Foi publicado no Jornal do Comércio em 21 de junho de 1930. FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p. 193. 237 Há um esforço dos historiadores em localizar Luiz Mahin no interior do levante dos Malês em 1835 a partir da informação de Luiz Gama de que sua mãe envolvera-se “em planos de insurreição escrava”. Vejamos o que afirma o especialista da Revolta dos Malês: “O personagem Luiz Mahin, então, resulta de um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito literário. A rigor, o que dela se conhece tem pouca fundamentação histórica. O que mais se aproxima da história é o pouco que sobre ela escreveu o filho Luiz Gama. Do que este revelou, o envolvimento da mãe em 1835 é até possível, embora os documentos sobre a 91

atividade”, e que “foi presa sob suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos”, conforme seu próprio depoimento. O seu filho, Benedito Graco Pinto da Gama, era de uma tez (epiderme) semelhante a sua.

Figura 15 - Benedito Graco Pinto da Gama foi militar. “Entre os soldados-alunos vimos Benedito Gama, filho de Luiz Gama. O pai defende com o melhor do seu talento, com a palavra e com a pena, os escravos: o filho aprende a defender a pátria e essa gloriosa bandeira brasileira que o pai trabalha para que mais gente ampare sob as suas dobras”. Gazeta da Tarde, 13 de janeiro de 1881.

As suas críticas às definições de brancura, a exemplo que apresenta na carta, “meu pai, não ouso afirmar que fosse branco...”, quase nunca foi

revolta não o confirmem e indiquem como altamente improvável seu papel de liderança”. Ver REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 303. 92

explorada pelos pesquisadores. Para Elciene Azevedo, em Orfeu da Caparinha, Gama forjou uma identidade étnica abrangente, de forma que aparecem em suas narrativas várias Áfricas. Uma vez que não se detém em uma determinada etnia, este seria um dos seus referenciais para a construção de sua identidade.

Luiz Gama dá a este impulso um sentido muito particular: resgatando uma origem africana comum, que superava não só as diferenças étnicas, mas também as distinções entre brancos e negros criadas pelo regime escravista 238 .

Entendemos que Gama procurou dar uma resposta a um discurso hegemônico branco de “brasilidade”, que procurava negar a todo custo “uma origem africana comum”. Se a “constituição de uma identidade social é um ato de poder 239 ”, Gama, procurou desestabilizar esse poder a partir dos marcos da constituição da diferença. Neste trabalho, defendemos a tese de que tomar uma posição-de-sujeito (identidade racial) era uma preocupação secundária em Luiz Gama, a identidade negra aparece a todo o momento num discurso a contrapelo. Embora apresente referências 240 étnicas africanas na formação da identidade brasileira, “desprezam a vovó que é preta-mina”, ou ainda “não tolero falsário parentes,” mostra-se mais preocupado em criticar a “origem refinada” que a elite atribui à sua formação, que por ora analisamos no segundo capítulo deste trabalho. O conceito, ou, mais precisamente, a ideia de identificação da modernidade, envolvia um trabalho discursivo de fechamento e de marcação de fronteiras simbólicas 241 . Para consolidar esse processo de identificação, fazia necessário deixar de fora o exterior que a constituía. Neste sentido, a identificação em Luiz Gama era uma fronteira em aberto. Por isso, construiu sua contra-narrativa, dando ênfase numa luta pelo reconhecimento da ascendência africana na identidade étnica brasileira, e, sobretudo, que essa

238 Ver AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. p. 75. 239 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 110. 240 No terceiro capítulo desta Tese, A sátira racial como poesia da transgressão: poéticas diaspóricas como contra-narrativa à ideia de raça, apresentam-se mais referências. 241 Idem, p.106. 93

ascendência não conduziria necessariamente a uma identidade negra e sim numa crioulização, “porque tudo é bodarrada”, como ele mesmo afirmara. Com esta posição, não procuramos esvaziar todo o processo subjetivo da percepção de sua identidade. Identidade e diferença estão numa relação muito estreita. “As identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela 242 ”. A diáspora, como um fenômeno da modernidade, teve implicações profundas na construção simbólica e discursiva da diferença, na invenção do outro. Foi a partir do projeto de modernidade, em suas tentativas de elevar o homem ao nível de princípio ordenador de todas as coisas 243 , cujo expoente filosófico encontra-se em Francis Bacon, que por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com precisamente com aquilo que falta 244 , que se forjou uma hierarquia das identidades étnicas. Vejamos alguns exemplos históricos: os povos indígenas, identificados como os negros da terra, e os negros, não se reconheciam nesta identidade forjada pelo outro. A identidade do dominador, mais precisamente do europeu, ou do seu paralelo na América colonial, de uma elite crioula, “funcionava” como ponto de identificação justamente por causa de sua “capacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar o diferente em ‘exterior’, em abjeto 245 ”. Luiz tinha consciência do processo de construção repressiva da identidade negra. “Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, um estigma de um crime... 246 ”. Esse modelo de identidade só conseguia se afirmar por meio da repressão daquilo que o ameaça 247 e, consequentemente, estabelecendo uma hierarquia entre dois pólos, resultantes de relações de poder. É justamente esta “ameaça” que se constituiu o seu

242 Ibidem. 243 GOMEZ-CASTRO, Santiago de. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, Edgardo (org). A Colonialidade do Saber - eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005. p. 170. 244 Idem. 245 Ver HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis (RJ): Vozes, 2009, p.110. 246 Emancipação. Gazeta do Povo, 01 de dezembro de 1880. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p.151. 247 E. Laclau, citado por HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis (RJ): Vozes, 2009, p.110. 94

objeto de teorização. Concordamos com o Julio Romão da Silva quando afirma que Luiz Gama foi singular na crítica ao preconceito racial.

[...] ninguém penetrou mais fundo na psicologia de uma sociedade presumida e preconceituosa, diagnosticando-lhe tão habilmente a alma enferma, ninguém melhor do que ele fabricou ‘carapuças para gente de grande tom 248 .

São bastante recorrentes as indagações de Luiz Gama quanto às definições de brancura, em suma quando se trata da busca pela autenticidade racial. “Os brancos que tanto orgulho tem de sua cor devem lembrar-se que as pérolas mais finas são produzidas na lama”, produziu esta sentença quando colaborava com máximas para o jornal O polichinelo 249 . Essas representações, esses narcisismos com a brancura, aparecem sob protesto de que há uma verdade que não pode ser revelada, ou tem-se o medo se reconhecer-se enquanto tal. “Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmações, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas...” A mestiçagem provocada pela diáspora era a ameaça, a “verdade” que a elite recusava reconhecer. Era no universo da própria intelectualidade paulistana que Luiz Gama encontrava os exemplos mais sintomáticos para a elaboração de suas contra- narrativas à ideia de pureza racial. Francisco de Assis Vieira Bueno 250 , ou simplesmente Vieira Bueno, como ficou conhecido a partir de sua autobiografia em que narra as transformações da cidade de São Paulo durante o seu período de vida (1816- 1908), praticamente todo o século XIX, foi bacharel em Direito e Juiz em Taubaté. Ao fim de sua vida, comprou uma fazenda e neste lugar resolveu escrever suas reminiscências, publicada em 1891, nas quais narra detalhes da vida cotidiana e os modos de vida da elite paulista. Em seu texto, apresenta as

248 Ver SILVA, J. Romão da. Luis Gama e suas poesias satíricas. Rio de Janeiro: Livraria- Editora Casa do Estudante do Brasil, 1954. p. 61. 249 O Polichinelo, nº 22, 10 de setembro de 1876. Arquivo Público do Estado de São Paulo, coleção digitalizada, Disponível em: < www.arquivoestado.sp.gov.br >. Acesso em: 14 de novembro de 2013. 250 Não encontramos evidências de suas relações com Luiz Gama. 95

impossibilidades de relações interétnicas na “aristocracia” paulista, o que possibilitava o caráter distinto da mesma. Vejamos:

As antigas famílias paulistas de puro sangue, mesmo não sendo opulentas (e poucas se contavam relativamente opulentas) eram profundamente umbuidas d’um alto sentimento de própria estima, que lhes dava certo cunho aristocrático, pela severidade e recato dos costumes; pelo escrúpulo na escolha das alianças matrimoniais, quanto ao puritanismo da raça; pela honrabilidade do caráter; pela probidade dos negócios; tudo isso acrisolado por um absoluto predomínio das crenças religiosas 251 .

Gama apresentava a diferença racial como uma forma de pressão, para descaracterizar esse sentimento de “auto-estima” que seria peculiar a um determinado grupo étnico dado as suas características biológicas. Era no limiar, nos interstícios de seus textos políticos, que encontramos as críticas mais contundentes ao elitismo de base raciológica. “Eu”, dizia Luiz Gama, “que não pertenço ao luminoso grêmio dos divinos purpurados 252 ”, era desta forma que zombava da aristocracia. E, quanto à elite presunçosa, criticava: “os aristocratas zombam prazenteiros das misérias do povo”, enquanto estes aguardam “o dia solene da regeneração nacional 253 ”, ou seja, o advento do regime republicano. A invenção de uma identidade mítica de uma nobreza baseada numa linhagem de “puro sangue”, em seus velhos troncos, “mais idealizados que reais 254 ”, constituíam “o cerne do preconceito contra negros e imigrantes 255 ”.

2.1 Paulicéia Diaspórica – a memória da escravidão construindo a identidade da cidade

251 Ver MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. p. 56. 252 Foro da Capital. Radical Paulistano, 13 de novembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 9 de outubro de 2012. 253 Pela última vez. Correio Paulistano, 03 de dezembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 8 de outubro de 2012. 254 CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. População e sociedade em São Paulo no século XIX. In: PORTA, Paula. História da Cidade de São Paulo: a cidade no Império (1823-1889). São Paulo: Paz e Terra, 2004. Volume 2. p. 20. 255 Idem. 96

Em uma entrevista a respeito da escravidão negra nas Américas, o maior astro, ou assim considerado pela crítica musical, da música pop contemporânea, Michael Jackson, apresentou a seguinte análise crítica a respeito desta experiência histórica:

A escravidão foi uma coisa terrível, mas quando os negros na América finalmente saíram do jugo daquele sistema massacrante, estavam mais fortes. Sabiam o que era ter o espírito aleijado por pessoas que estavam controlando sua vida. Jamais deixaram que isto acontecesse novamente. Eu admiro esse tipo de resistência. As pessoas que a possuem, assumem posição e colocam seu sangue e sua alma naquilo em que acreditam 256 .

A ideia de um espírito de resistência e de uma força advinda da escravidão como forma de luta contra a manutenção das formas de espoliações sublinha muito bem o conjunto das práticas políticas de Luiz Gama. Escreveu, certa vez, na coluna máximas à pressa do jornal O Polichinelo: “Nas pugnas sangrentas são heróis os que vencem e os que morrem: escravos são todos os que se deixam vencer”257 . O terror da modernidade deixou uma memória ativa, ainda presente em particular nos afrodescendentes e socialmente na contemporaneidade. Na verdade, a modernidade diaspórica estabeleceu cruzamentos entre “todas as fronteiras de geografia e etnia, de classe e nacionalidade, de religião e de ideologia 258 ” no mundo atlântico. “Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires 259 ”, disse Luiz Gama, em sua carta/memória. A escravidão em si forneceu um rico legado para o pensamento político de Luiz Gama. Ele não foi um intelectual indiferente ou distanciado das brutalidades sofridas pelos escravizados que circulavam, que habitavam a

256 Utilizada como epígrafe para o capítulo Uma história para não se passar adiante: a memória viva e o sublime escravo. In: GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. p. 351. 257 O Polichinelo, nº 33, 19 de novembro de 1876. Arquivo Público do Estado de São Paulo, coleção digitalizada. Disponível em: < www.arquivoestado.sp.gov.br >. Acesso em: 14 de novembro de 2013. 258 Marshall Berman, citado por GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. p. 110. 259 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, publicada no jornal Correio Paulistano em 25 de julho de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponivel em: . Acesso em: 7 de outubro de 2012. 97

cidade. Disse, certa vez, em uma de suas cartas dedicada ao amigo Ferreira de Menezes: “Se fosse possível saber o dia em que se fez o primeiro escravo, ele deveria ser luto para a humanidade 260 ”. Diante do fato da existência, na cidade de São Paulo, de muitos africanos que foram importados depois da lei proibitiva do tráfico promulgada em 1831, e da Lei Nabuco de Araújo, aprovada em 1854, que estabelecia sanções para as autoridades que encobrissem o contrabando de escravos, perguntava-se: “deverão os amigos da humanidade, os defensores da moral cruzar os braços diante de tão abomináveis delitos?261 ”. São justamente suas proximidades e ações em favor de escravizados, forros, brancos pobres e prostitutas que permitiram uma solidariedade diaspórica. Sobre suas proximidades com os escravizados, isto não se deveu apenas em função da causa abolicionista. Durante anos procurou por sua mãe, Luíza Mahin, uma africana da Costa da Mina, na cidade do Rio de Janeiro. “Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar 262 ”. Esses contatos permitiram a Luiz Gama conhecer de perto os anseios e a realidade cotidiana dos escravizados, ainda que vivesse essa realidade na sua infância e adolescência.

Em 1862, soube, por uns pretos minas, que conheciam-na e que deram-me sinais certos que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma ‘casa de dar fortuna’, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Em opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados’ fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores 263 .

Foi justamente esta realidade dos seus “informantes”, as perseguições sofridas na cidade, que se tornou seu objeto de luta política: a defesa dos africanos livres injustamente escravizados.

260 “Trechos de uma Carta”. Luiz Gama. São Paulo, dezembro de 1880. Gazeta da Tarde, 28 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 7 de outubro de 2012. 261 Escândalos. Radical Paulistano, 30 de setembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 6 de outubro de 2012. 262 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, publicada no jornal Correio Paulistano em 25 de julho de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 263 Idem. 98

A procura por sua mãe na cidade do Rio o fez conviver com uma situação no mínimo embaraçosa. Gama tinha apenas 7 (sete) anos de idade quando sua mãe, “...veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou 264 ”. A informação de que ela era uma preta mina por si só não era o suficiente para encontrá-la. Em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Debret informa que:

Os negros mais comuns no Rio de Janeiro são das seguintes nações: benguela, mina, guenguela, mina nagô, mina nabijo, rebolo, cossange, mina calava, cabina de água doce, cabina moçuda, congo, Moçambique. Estas últimas compreendem um certo número de nações vendidas num mesmo ponto da costa, como a astre 265 .

Os minas foram escravos provenientes da Costa do Ouro ou Costa da Mina, sua presença tornou-se significante a partir do século XVIII. Mas sua origem tornou-se ambígua de acordo com a região. Vejamos: na Bahia, os minas são os africanos provenientes da Costa do Ouro, enquanto no Rio, referia-se aos escravos não-bantos, isto é os sudaneses. Mas a denominação também poderia referir-se aos oriundos do Ashanti, local originário da etnia 266 . Temos ainda as etnias que foram construções identitárias posteriores, ou seja, etnias da diáspora, aquelas resultado de construções imaginárias,

[...] que passam a constituir etnias tão importante culturalmente como se africanas fossem, mas que na verdade não tinham realidade na África em período que precede o tráfico 267 .

Entre memórias e contatos cotidianos com os escravizados, Luiz Gama foi criando laços na paulicéia que referendavam cada vez mais seu projeto político antiescravista e antirracista. Quer seja aclamado por uns ou odiado por outros na sociedade escravocrata paulista, o fato é que sua vida pública e sua personalidade política foram marcadas por uma “invejável posição que ocupava na sociedade paulistana 268 ”. Gama notabilizou-se pela acidez de suas críticas a esse “sistema massacrante”. Em carta ao seu amigo negro jornalista, Ferreira de

264 Ibidem. 265 Debret, citado por BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor – diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis, (RJ): Editora Vozes, 2012. p.85. 266 Idem, p.85-86. 267 Ibidem, 86. 268 A Morte de Luiz Gama. Gazeta do Povo, 24 de agosto de 1882. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 217. 99

Menezes, em 1880, disse: “miseráveis; ignoram que mais glorioso é morrer livre numa forca, ou dilacerado pelos cães na praça pública, do que banquetear-se com os Neros na escravidão 269 ”.

Figura 16 - Contribuição pessoal de Luiz Gama para libertação de escravo. Gazeta da Tarde, 15 de Janeiro de 1881.

Traçaremos, nesse momento, os aspectos físicos e simbólicos da cidade de São Paulo, em suas relações raciais, vivenciado por Luiz Gama. Praticamente costuma-se dividir o processo de urbanização da cidade de São Paulo em dois momentos díspares. O primeiro seria aquele marcado por resíduos do período colonial, caracterizando-a como uma “comunidade”, “arraial de bandeirantes e tropeiros”, com seu modesto comércio em meio a uma economia de subsistência. Estas posições são resultado de interpretações históricas (Richard M. Morse), permeadas por relatos de viajantes estrangeiros (Saint-Hilaire). A vida social nesta jovem cidade, cujo desenvolvimento ainda não apresentava os seus aspectos complexos e anárquicos, apresentava um grau de proximidades sociais que era resultado deste nível de evolução urbana, ou seja, ainda não era possível viver as formas de dominação patrimonialista associadas à economia agroexportadora 270 . As relações eram abertamente marcadas por fronteiras tênues e por uma dominação vertical.

269 Carta de Luiz Gama a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 270 FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007. p. 153. 100

A província, em suas primeiras décadas do século XIX, achava-se dividida, em seu plano urbano, em três freguesias centrais, Sé, Santa Efigênia e Brás, secundadas por outras, tais como a Penha, Nossa Senhora do Ó e algumas distantes do centro, Santo Amaro, Cotia, Embu, São Bernardo 271 . O segundo momento histórico da cidade de São Paulo tem o seu início por volta de 1830, caracteriza-se pelo surgimento de algumas instituições (Academia de Direito) e, principalmente, por uma agroindústria cafeeira que “permitiu a formação de hierarquias sociais mais nítidas 272 .” Foi nesta fase histórica que Luiz Gama viveu intensamente, estabeleceu sentidos e perspectivas frente aos dilemas e conjunturas que se apresentavam na paulicéia. Gama nos informa em sua carta/memória que chegou à cidade de São Paulo em 1848, depois de um longo périplo que o comércio de escravos lhe imputou. De Salvador foi para o Rio de Janeiro, depois vendido a um negociante e contrabandista da cidade de “Lorena nesta Província 273 ”. “Como já disse, tinha eu apenas 10 (dez) anos; e fiz toda a viagem de Santos até Campinas 274 .” A cidade de São Paulo apresenta-se como um campo de possibilidades para sua sobrevivência pessoal. Na década de 50, dá início a uma breve carreira militar, mas foi com a vida letrada que Luiz Gama perturbou o cenário intelectual e político paulistano.

Em 1848, sabendo eu ler contar alguma coisa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antonio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça 275 .

271 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 80. 272 CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. População e sociedade em São Paulo no século XIX. In: PORTA, Paula. História da Cidade de São Paulo: a cidade no Império (1823-1889). São Paulo: Paz e Terra, 2004. Volume 2. p.15. 273 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, publicada no jornal Correio Paulistano em 25 de julho de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 274 Idem. 275 Ibidem. 101

Em carta 276 ao seu amigo José Carlos Rodrigues, Luiz Gama nos informa que morava confortavelmente, em 1870, nas proximidades do Vale Anhangabaú: “moro à margem do Rio Tamanduateí em uma nova e excelente casa de campo 277 ”. Mas suas condições econômicas no início da década de 70 não eram satisfatórias, disse ao filho, sem se desprender do seu tom filosófico: “não se atemorize da extrema pobreza que lego-lhe, porque a miséria é o mais brilhante apanágio da virtude 278 ”. Gama viveu em diferentes espaços da cidade. Em 1880, nos relata que morava com sua família no Brás e, mais uma vez, descreve as condições graciosas do lugar, o que permite afirmarmos que gostava de contemplar a natureza.

Estou em nossa pitoresca choupana do Brás, sob ramas verdejantes de frondosas figueiras, vergadas sob o peso de vistosos frutos, cercado de flores olorosas, no mesmo lugar onde, no começo deste ano, como árabes felizes, passamos horas festivas, entre sorrisos inocentes, para desculpar ou esquecer humanas impurezas.279

Raul Pompéia, seu amigo pessoal, que costumava visitá-lo em sua casa, em seu artigo em homenagem a Luiz Gama, dizia que o mesmo gostava de “pássaros, flores e crianças, a fraqueza sublime dos fortes... 280 ”. Disse ainda, que sua casa era “cheia de gaiolas; mais de vinte contavam-se. Um cardeal de estimação, muitos canários... 281 ”, e que pelas “janelas da sala de jantar enfiava- se a vista para um grande jardim... 282 ”. Poderia existir um lugar mais bucólico para o registro de suas memórias em relação às “humanas impurezas” da diáspora? Voltando aos nossos propósitos analíticos a respeito da formação sociocultural diásporica no perfil da cidade de São Paulo, queremos situar a

276 Somente através das cartas podemos perceber as narrativas de Luiz Gama confessando seus segredos e/ou informações mais íntimas, uma vez que sempre fora reservado para comentar a respeito de suas questões pessoais. 277 Carta de Luiz Gama a José Carlos Rodrigues. 26 de novembro de 1870. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p.196. 278 Ibidem, p. 193 279 Luiz Gama. Carta a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 280 Raul Pompéia. Última página da vida de um grande homem. Gazeta de Notícias, 10 de setembro de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 281 Idem. 282 Ibidem. 102

memória escrava e as práticas dos sujeitos racializados como pontos de referência na anatomia da sociedade paulistana. Partimos de uma preocupação histórica 283 a respeito do papel e da importância da diáspora na formação social de São Paulo. Pretendemos extrapolar as interpretações ideológicas que posicionavam os negros em um mundo fechado e os brancos igualmente em um mundo, “pronto”, “acabado”, o mundo dos brancos. O discurso racial (preconceito) fazia com que grupos sociais criassem uma imagem fechada de si mesmo. De um lado, tinha-se um “nós”, que não partilhava experiências em comum com os “outros”, os demais grupos sociais, fazendo com que a cor fosse (e era), em São Paulo, “um ponto de referência para situar os indivíduos na estrutura social 284 ”. Na verdade, em termos históricos, as práticas culturais desses grupos sociais demonstraram ser interdependentes. O espaço paulistano era plural, jamais chegou a constituir-se em algo unitário e homogêneo, em seu conjunto, uma totalidade complexa. O “mundo africano” também tinha as suas diferenças linguísticas e culturais, apesar do racismo invalidar e colocá-los todos numa vala comum. Em parte, a diáspora contribuiu para que essas culturas estivessem, nesse momento histórico, imbricadas, tanto a negra quanto a branca. O empenho deste trabalho é mostrar a luta política contra um “nacionalismo defensivo 285 ” que se propôs afirmar um monolitismo cultural. Com a diáspora, “as identidades se tornam

283 Florestan Fernandes parte da preocupação histórica do papel e da importância do negro como fator humano na formação social de São Paulo. Sua preocupação maior são as questões da vida material, em que os negros aparecem em desvantagens abissais. Tece fortes análises críticas sobre o problema racial, que evidencia uma verdadeira assimetria na divisão social do trabalho e relações sociais. Combateu o pensamento social dominante de que “o negro exerceu e continuará a exercer uma influência deletéria sobre os costumes e a moralidade dos brancos”. A pesquisa de Florestan Fernandes visava determinar os fatores econômicos, sociais, políticos e culturais, sobretudo os econômicos, que apontavam para um quadro desfavorável dos negros nas relações étnico-raciais da sociedade paulistana. O Negro no mundo dos Brancos apresenta uma visão estruturalista em que há pouco espaço para se perceber os sentidos que os sujeitos dão às mudanças históricas. Quando o livro foi produzido, O Negro no mundo dos Brancos, patrocinado pela UNESCO, exista um contexto que o referendava, o pós-guerra e o seu legado, o terror nazista. A realidade miscigenada brasileira foi o “laboratório” para a realização de pesquisas que apontassem caminhos que não mais conduzissem a um holocausto de base racial, daí o interesse da Unesco em financiar pesquisas que apontassem para novos caminhos. 284 Roger Bastide e Florestan Fernandes citado por CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. População e sociedade em São Paulo no século XIX. In: PORTA, Paula. História da Cidade de São Paulo: a cidade no Império (1823-1889). São Paulo: Paz e Terra, 2004. Volume 2. p. 15. 285 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. p. 30. 103

múltiplas 286 ”. Há tempos que a diáspora colocou elementos culturais diferentes em presença uns dos outros e que sabemos pormenorizadamente que os “componentes culturais africanos e negros foram normalmente inferiorizados 287 ”. Os embates culturais do século XIX são justamente contra esse resíduo “amargo, incontrolável 288 ”, no sentido de se restabelecer um equilíbrio, embora as forças fossem desiguais, entre os elementos colocados em presença uns dos outros. Luiz Gama nos apresenta, em sua luta política, uma prática de revalorização das heranças africanas, o que ficou evidenciado nesse trabalho (no terceiro capítulo) nos poemas “satírico-raciais”.

A crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação “se intervalorizem”, ou seja, que não haja degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura, seja, internamente, isto é, de dentro para fora, seja externamente, de fora para dentro 289 .

Foi a confluência desses elementos culturais que permitiu a condução para um processo de crioulização, que por vezes, não se intervalorizara. Robert W. Slenes nos informa que, entre os séculos XVIII e 1850, um enorme contingente de africanos foi introduzido no Brasil. Esse influxo foi direcionado para as regiões de grande lavoura, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. A maior parte dos escravizados distribuía-se em treze localidades paulistas de economias variadas, 54% dos escravos eram africanos. Já nos casos de Bananal e Campinas, respectivamente 78% e 69% dos escravizados eram africanos. Slenes observa que boa parte dos escravos adultos nascidos no Brasil, tanto em Campinas como São Paulo e Rio de Janeiro consistia em filhos de africanos.

Enfim, em ambas as províncias, especialmente em seus municípios de grande lavoura, e sobretudo em suas fazendas de café e engenhos de açúcar, existia até meados do século uma escravidão africana, no sentido mais literal da palavra 290 .

286 HALL, STUART. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003. p. 26. 287 GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: Ed. UFJF, 2005. p. 21. 288 Idem. 289 Ibidem, p. 22. 290 SLENES, Robert W. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP , nº12, p. 55, 1991-1992. 104

Robert Slenes nota que houve uma formação da identidade bantu comum entre os escravizados, que teve início “no suplício da viagem para a costa 291 .” E observa ainda que nas regiões de áreas rurais do Rio de Janeiro e de São Paulo as condições foram favoráveis para o surgimento de uma identidade comum entre os escravizados africanos. “Se a escravidão no centro- sul era africana, isto vale dizer que era bantu” 292 . Essa presença africana direta ia de encontro com os projetos políticos da elite de construção de uma nação brasileira com pureza de sangue. Os estudos de Slenes nos proporciona pensar o quanto a diáspora mudou a paisagem paulistana.

Não devemos subestimar as possibilidades dos africanos de manterem vivas suas identidades originais; contudo na labuta diária, na luta contra os (des) mandos do senhor, na procura de parceiros para a vida afetiva, necessariamente eles haveriam de formar laços com pessoas de outras origens, redesenhando as fronteiras entre etnias 293 .

Também não devemos nos esquecer que uma das principais pautas políticas de Gama foi a denúncia de escravização de africanos que adentraram portos brasileiros após a proibição do tráfico internacional.

As vozes dos abolicionistas tem posto em relevo um fato altamente criminoso e assaz defendido, há muitos anos, pelas nossas indignas autoridades. É o fato que a maior parte dos escravos africanos existentes no Brasil foram importados depois da lei proibitiva do tráfico promulgada em 1831. Começam, amendrontados pela opinião, os possuidores de africanos a vendê-los para lugares distantes dos de sua residência 294 .

São essas novas solidariedades, criadas principalmente através dos espaços de circulação, que possibilitaram a Luiz Gama estabelecer contatos e interações. A forte presença de africanos já era objeto de suas ações denunciativas. “Podemos afirmar que em idênticas circunstâncias existem muitos africanos nesta cidade, com conhecimento das autoridades, que são as principais protetoras de crime tão horroroso” 295 .

291 Idem. 292 Ibidem. 293 SLENES, Robert W. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP , nº 12, p. 57, 1991-1992. 294 Escândalos. Radical Paulistano, 30 de setembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 5 de outubro de 2012. 295 Idem. 105

Figura 17 - Anúncio publicado no jornal Farol Paulistano em 03 de outubro 1830, em que atesta a presença de escravizados recém-chegados da África, um ano antes da extinção do tráfico internacional de escravos.

Nas ruas, alamedas e praças da cidade, em suas áreas de circulação e encontros públicos, havia uma movimentação de escravizados africanos, crioulos, de “homens livres humildes: tropeiros, vendeiros, lavradores 296 ”; em meio aos passeios de pessoas da elite, cuja “elegância” e exposição de uma indumentária diferenciada demarcavam suas distinções de classe.

Figura 18 - Uma mulher vendendo frangos para um comerciante. As cenas de ruas do final do século em que os sujeitos miscigenados transitavam, chamavam a atenção do fotógrafo de origem italiana Vincenzo Pastore.

296 MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. p. 62. 106

Esta era a paisagem social, o espaço público em que as ruas eram dominadas pela diferença. A cidade tinha, em seu cotidiano, como se pode observar a partir da descrição de Saint-Hilaire, “mulheres negras lavando roupa na várzea do Carmo e na Santa Efigência” 297 . Para Rugendas, em Viagem Pitorescas através do Brasil, era possível detectar “membros de quase todas as tribos da África 298 ”, posição um pouco exagerada, mas que espelha a diversidade de grupos étnicos africanos. Esta é também uma das conclusões de Richard M. Morse, “raças e nacionalidades haviam sido absorvidas em seu núcleo 299 ”.

Figura 19 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

Os exemplos mais sintomáticos desses amálgamas culturais são as tensões entre os embates de valores culturais, provocados essencialmente

297 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei – legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: Fapesp, 1997. p. 63. 298 SLENES, Robert W. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP , nº12, p. 48, 1991-1992. 299 MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970, p. 69. 107

pela racialização da cultura. Temos como exemplo os cerimoniais negros, que eram perseguidos desde os tempos coloniais.

Figura 20 - Festa em homenagem a nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

No início do século XIX, tais interdições foram suprimidas, a exemplo da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário. No início do século, esta era considerada a mais importante que se realizava em honra da padroeira dos negros, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Após o cerimonial dentro da igreja, os “negros com suas vestes coloridas, reuniam-se em frente à igreja, para uma dança animada 300 ”.

300 MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. p. 65. 108

Figura 21 - Fachada lateral da Igreja do Rosário da Irmandade dos Homens Pretos.

As irmandades negras, em seus aspectos religiosos, enquanto congregações devocionais constituíam-se como comunidades de sentimentos que possibilitavam compartilhar histórias de um passado africano, de costumes em comum, reconstruindo suas identidades. Foram nesses espaços que se criaram estratégias de enfrentamento às assimetrias das relações de poder cultural. As irmandades eram responsáveis pela organização formal dos cantos, novenas, festas, assim como nas despesas referentes às datas comemorativas do calendário litúrgico. Esses sujeitos participavam ativamente da vida social religiosa da cidade. Mas carregavam consigo o estigma social de que suas manifestações eram de “pretos em seus barbados folguedos 301 ”. O convívio com o diferente professando a mesma fé não estava isento de preconceitos. Vejamos, na seção Comunicado do jornal Correio Paulistano do 01 de março de 1855, um artigo assinado sob o pseudônimo Um Velho . Este se indigna pela falta de “respeito” que alguns fiéis cometeram na procissão de Cinza.

Tivemos vergonha de ver, Sr. redator, um espetáculo o mais deplorável, e significativa de como vai a religião em nossa terra. Essa chusma de moleques pretos e pretas seguiam em desordem, dando um cínico espetáculo à polícia.

301 Em artigo assinado por Um Espreitador no jornal Farol Paulistano, em que faz uma série de reflexões sobre o sistema constitucional e a prática absolutista de d. Pedro I, o mesmo faz a seguinte comparação: “[...] e que lá no outro mundo satanaz permita às nobres almas de nossos sonámbulos absolutistas manifestarem seu prazer por isso, concedendo-lhes, como a pretos em seus bárbaros folguedos, que tomando suas enormes corcundas em companhia de bons jesuítas, inquisitores e congregacionista, ornados todos em suas fitas azuis, cruzezinhas e cordões ou fitas pretas, festejem com o ritual do servilismo o rendoso cativeiro que sempre desejaram”. Farol Paulistano, 05 de dezembro de 1827. 109

Não se exagera aqui: virão todos que, desde o pendão até a tropa, grossas turmas de preto se enfileiravam, revelando um completo desprezo ao ato 302 .

A proximidade, o contato e mais “as danças animadas”, as formas como os corpos negros manifestavam sua espiritualidade eram motivo de escárnio. O texto diz ainda que quando a Ordem Franciscana organizava o evento tinha-se uma “grande honra 303 ” em acompanhar a procissão. Para o autor, tal situação acontecia, também, em virtude da “inércia das próprias irmandades ou Ordens que não policiam as procissões, dando lugar ao que todos vimos 304 ”. O medo expresso em seu texto era de que esse espaço de contato, de trocas culturais, pudesse rebaixar o momento civilizatório que a cidade estava vivenciando. Dizia: “na época civilizadora o cidadão se rebaixa, nivelando-se com o povilhéo, que acompanha a festa religiosa 305 ”. A presença constante e o movimento intenso de transeuntes negros (as) nas ruas da cidade, quer seja na condição de vendedoras, de serviçais escravas (os) ou forras (os) ou trabalhadores, permitiu a criação de “territórios negros” – pontos de encontros, de trocas, de negociações, de conversas. O bairro da Glória tinha uma presença e significados peculiares para as comunidades negras nas últimas décadas do século XIX, afirma Nicolau Sevcenko em seu artigo A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. Os sujeitos mais populares desta porção geográfica da cidade eram negros como Chico Gago, o Preto Badaró, o Baduíra (Pai Zarabinda), o Chico Mimi. Os memorialistas e cronistas apontam que o Chico Gago era um dos responsáveis pela organização das celebrações de cunho religioso. O Badaró é descrito como um sujeito errante que perambulava pelos becos da Glória, do Bexiga, do Lavapés, Cambuci e do Morro do Piolho. Ele era um ex-combatente na guerra do Paraguai,

[...] dotado de uma extraordinária cultura oral e contador de casos irresistível, esse rapsodo tornava suas narrativas sobre as peripécias

302 Correio Paulistano, 01 de março de 1855. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 07 de outubro de 2012. 303 Idem. 304 Ibidem. 305 Ibidem. 110

dos batalhões negros nas guerras do Prata numa autêntica epopéia afro-americana 306 .

Quanto ao Pai de Santo Baduíra, os relatos apontam que era respeitadíssimo, tinha uma tenda na região do Lavapé, Caminho do Cambuci. Esse afrodescendente tinha uma religiosidade traduzida com fortes apegos ao cristianismo. Tinha um forte prestígio social, de forma que sua reputação atravessava toda a cidade e por todas as classes, conforme os relatos das crônicas.

As damas se achegavam à sua tenda com a identidade discretamente encoberta, tal como, aliás, as senhoras e cavalheiros que visitavam os babalorixás do Morro do Castelo, marco fundador do Rio de Janeiro, arrasado no começo do século XX 307 .

O candomblé liga simbolicamente os afro-brasileiros às estruturas religiosas africanas, vínculos com uma ancestralidade, forjando, assim, uma identidade compartilhada. “As comunidades afro-brasileiras criaram um ritual de memória ligado a um passado africano, mas um passado distinto e unicamente brasileiro 308 ”.

Figura 22 - Rua da Glória, por Militão Augusto de Azevedo.

306 SEVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. Revista USP , São Paulo, nº 63, p. 16-35, setembro/novembro de 2004. p. 21. 307 Idem. 308 KIDDY, Elizabeth W. Quem é o rei do Congo? Um novo olhar sobre os reis africanos e afro- brasileiros no Brasil. In: HEYWOOD, Linda. M. (organizadora). Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2012. p. 165-166. 111

A profundidade das transformações, das mudanças na cidade só passou a acontecer de forma sistemática a partir de 1870, mas ainda assim de forma paulatinas e nem sempre os citadinos acompanharam da mesma forma o ritmo dessas transformações materiais. O espaço social era altamente demarcado, as famílias abastadas viviam confinadas em chácaras ou sobrados, ficando as ruas ocupadas por escravos que brigavam nos chafarizes, quitandeiras loquazes, tropeiros, tipos populares de bêbados e débeis mentais e, à noitinha, mundanas. 309 Os mercados eram três em sua totalidade: o do Brás, situado na praça da Concórdia, o mercado São João e o mercado Grande. O último possuía a maior freguesia da cidade. Nestes locais, era possível adquirir os ervanários africanos, de uso curativo e religioso (para as obrigações religiosas). O Beco das Minas, cujo nome indica de antemão a origem das escravas (da nação Mina), é apontado pelos pesquisadores como um local de excluídos e transgressores 310 . Abrigava residência de negras quitandeiras, onde era possível visualizar traços vivos 311 de costumes africanos. Aqui, faz-se necessário uma breve reflexão a respeito das condições topográficas da cidade em suas primeiras décadas que foram delineando o seu traçado urbanístico e os espaços de identidade étnica. Há uma unanimidade entre as narrativas dos viajantes e dos historiadores quanto aos aspectos sertanistas e rústicos da cidade de São Paulo nos oitocentos. Povoado “primitivo”, arraial, entreposto comercial, imatura e embrionária, uma cidade pequena e isolada no plano, estas são as descrições que a caracterizam. Essas feições corroboravam para sua fisionomia, a cidade possuía ruas estreitas, que se cruzavam, e muitos becos. Segundo as descrições de Saint-

309 Nesta descrição, Morse interpreta os transeuntes em seus aspectos “negativos”, como sujeitos que perturbam a ordem pública, de forma a desprezar outros aspectos de sociabilidade. MORSE, Richard. São Paulo: raízes oitocentistas da metrópole, citado por CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. População e sociedade em São Paulo no século XIX. In: PORTA, Paula. História da Cidade de São Paulo: a cidade no Império (1823-1889). São Paulo: Paz e Terra, 2004. Volume 2. p.18. 310 CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. População e sociedade em São Paulo no século XIX. In: PORTA, Paula. História da Cidade de São Paulo: a cidade no Império (1823-1889). São Paulo: Paz e Terra, 2004, volume 2, p. 39. 311 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.157. 112

Hilare, “acanhadas e construídas sem um traçado geral 312 ” e as constantes reivindicações de melhorias e “a aperfeiçoamento de estradas 313 ” atestam a urbanização precária da cidade. Nesses pontos focais (os Becos), reuniam-se grupos de escravos, forros, imigrantes pobres, pessoas do povo, para beber nas vendas, que se multiplicavam com o crescimento da cidade. Para os escravos que tinham uma vida social nos centros, tais como lavar roupas ou vender nas ruas, eram alugados quartos conforme o combinado entre o proprietário e o locador, com o objetivo de supervisionar os trabalhos dos escravizados. Nesses espaços, nem sempre o “intercâmbio” era colaborativo e dialógico. Os becos, como espaços dos deserdados, eram, por excelência, os locais de possibilidades para se formar os “sujeitos do entre-lugares 314 ”, de intercâmbio de valores e significados. As ruas e becos eram espaços de crioulização, mas por vezes marcados pelas hostilidades raciais e pelo medo do outro racializado. Em um artigo publicado no principal veículo de comunicação escrita da cidade, o Farol Paulistano, em 13 de fevereiro de 1830, o juiz de paz José Carlos Pereira de Almeida Torres pede providências policiais para a segurança individual dos cidadãos no tocante aos pretos, pardos cativos e libertos que “costumão andar armados tanto de dia como de noite 315 ”. Era uma questão de segurança pública o controle disciplinar sobre dos “filhos” da diáspora.

Figura 23 - Anúncio de venda de produtos com destaque para as condições assépticas do comércio, em que os negros trabalham com “o maior asseio possível”. Farol Paulistano em 23 de maio de 1831.

312 KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanências nas Províncias do Sul do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980. p. 206. 313 Farol Paulistano dia 23 de janeiro de 1830. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 314 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988. p. 20. 315 Farol Paulistano 13 de fevereiro de 1830. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 113

Dados demográficos apontam uma população de 31.824 habitantes para a cidade de São Paulo no ano de 1854, sendo 23.834 livres e 7.068 escravos 316 . Os bairros do norte e sul da Sé eram os que mais concentravam escravos e pessoas livres pobres 317 . As mulheres forras dominavam as ruas juntamente com as escravas e participavam do comércio local. As mulheres eram as que mais ficavam suscetíveis à repressão policial, “eram constantemente presas, forçadas a assinar termos de bem viver e a pagar multas 318 ”. A “Ignácia Alves de Siqueira, e suas três filhas, Francisca, Anna e Maria 319 ” foram indiciadas “por se portarem com escândalo da povoação, admitindo em sua casa batuques, jogos e escravos 320 ”. Luiz Gama advogou em favor de mulheres prostituídas, exigindo a alforria das mesmas. Tomava por base jurídica uma lei pombalina que obrigava o proprietário que prostituísse sua escrava a revendê-la para outro senhor 321 . Gama defendeu, também, mulheres forras quitandeiras. Quando da proibição da venda de seus produtos nas ruas do centro da cidade em 1873 322 , o rábula alegou o direito histórico adquirido com a prática do comercio de rua.

2.2 A cidade sob o signo da ironia

“Sou o Diabo-coxo: quem há que desconheça na vida social, meu vasto poderio? Percorro o mundo inteiro, ora pedestre humilde, ora atirado aos lombos de um palafrem sombrio 323 ”. Esta é a breve apresentação do Diabo- coxo à sociedade paulistana. Esse jornal era singular nessa sociedade. Foi através dele que a elite teve acesso ao primeiro jornal ilustrado. “A fruição da

316 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei – legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: Fapesp, 1997. p. 62. 317 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.119. 318 Idem, p.168. 319 Ibidem. 320 Ibidem, p. 168. 321 Ibidem, p.169. Com base em documentos históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a pesquisadora nos informa que: Luiz Gama “abriu inúmeros processos, exigindo alforria de escravas prostituídas, para o que alegava precedentes jurídicos do século anterior”. 322 Ibidem. 323 Diabo Coxo, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. 114

imagem era, até então, privilégio dos poucos que tinham muitas posses 324 ”. Em seu curto espaço de existência, provocou debates e criou inimigos, mas sem perder a jocosidade, Luiz Gama, refutava os ataques sobre a sobrevivência do jornal:

Os inimigos do Diabo, que não são santos propalam por aí, que ele vai desaparecer.

Calunias, injúrias, armas que lhes são familiares, não chegarão a ofender o Diabo-coxo.

Não seria a Redação capaz de contrair um compromisso dessa ordem, sem a certeza de levá-lo ao fim.

Não folguem já: esperem.

Rirá duas vezes quem rir por último: é o ditado 325 .

Com o jornal O Cabrião (1866-1867) não foi diferente. Nascido em 1866 com um projeto editorial semelhante ao Diabo-Coxo, do qual Luiz Gama também fez parte, no mês de seu lançamento, ao mesmo tempo em que agradece ao público “o acolhimento generoso que há recebido na capital e no interior da província 326 ,” rebate as críticas da Revista Comércio que o qualificou de “jornalzinho 327 ”.

O Cabrião está certo de que, com tal apoio, pode fazer um grande serviço a província, arrostando a guerra surda e terrível, que lhe fazer aqueles futuros queimadores de gente, abrindo os olhos aos que ainda não conhecem tais bichinhos, e arrancando a máscara aos especuladores, que vendem os direitos sagrados do povo ás tais referidas serpentes, por prato de lentinhas 328 .

Um dos assuntos principais do Cabrião era a atividade política que, através de um humorismo intelectualizado, criava o espaço da denúncia. Para

324 Antonio Luiz Cagnin em prefácio da versão livro do jornal Diabo-coxo. In: Diabo Coxo, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 09. 325 Diabo Coxo, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. 326 O Cabrião, São Paulo, nº 04. Brasiliana USP, Brasiliana Digital, consulta em 02 de setembro de 2013. 327 Idem. 328 Ibidem. 115

Délio Freitas, “em geral a sátira política tem vida efêmera e exige um conhecimento das pessoas visadas e do ambiente que as cria 329 ”. Gama parece não abandonar sua veia satírica, humorística e irônica das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, no entanto, elas estão presentes em sua produção cultural. Contra a seriedade paulistana impregnada interiormente 330 de violências, intimidações, autoritarismos, preconceitos e mandonismos, Gama apresentava o riso para por abaixo essas “máscaras”, revelando outras verdades que se exprimiam nesse novo projeto editorial. No jornal Polichinelo (1876), Gama mantém o mesmo estilo do Diabo- Coxo, valorizando os debates e os conflitos políticos, ao mesmo tempo em que analisa os valores sociais da cidade.

Vai fundar-se em São Paulo uma folha de caricaturas, redigidas pelos Srs. Antonio Carlos e Luiz Gama. A parte artística está a cargo do nosso conhecido pintor Huscar de Vergara, que já em tempo desenhou aqui em várias folhas.

O Polichinello, é nome do nosso colega a quem antecipamos os nossos cumprimentos 331 .

Nestes tipos de noticiários mais, que nos jornais comerciais da imprensa diária, se constituiu uma fala pública, coletiva, que costura a visão/intervenção de um grupo produtor, no qual Luís Gama tem papel relevante. Portanto, a partir de seus materiais – poemas, crônicas, caricaturas etc., é possível dialogar com visões, posições e sentidos atribuídos ao vivido aos quais Gama assina ou compartilha e endossa. Em Diabo-Coxo, Cabrião e o Polichinelo, a cidade de São Paulo da segunda metade do século XIX é representada através da caricatura e dos mais diversos recursos linguísticos (versos, sonetos, metáforas, ironias),

[...] em que se procura destacar as modificações introduzidas pelas primeiras intervenções urbanas da cidade, observando os sinais da

329 CABRIÃO – semanário humorístico editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antonio Manuel dos Reis: 1866-1867. Ed. Fac-similar. Introdução de Décio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 1882, p. 40. 330 Utilizo-me das reflexões de BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 83-84. 331 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10 de março de 1876. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 26 de novembro de 2013. 116

modernidade, que influirão as percepções de nossos caricaturistas e a composição de um imaginário social da/sobre cidade 332 .

Com essas produções, entre outras existentes neste período histórico, São Paulo não só “aprendeu” a rir como passou a viver uma experiência ampliada de liberdade. Com o Diabo-Coxo, Cabrião e O Polichinelo, há uma nova cidade letrada, um novo projeto editorial que não media esforços em insultar “atrozmente o corpo acadêmico,” como fazia o Cabrião. Seus redatores reconheciam que, para alcançar um maior espaço e uma maior tiragem, demandava “muito dinheiro e muitos sacrifícios 333 ”. As formas como os grandes jornais reagiam às críticas destes “pasquim”, a exemplo do Jornal do Comércio, revelam, de certa forma, a importância deste tipo de jornal. No fundo, o que existia era uma disputa por espaço e, principalmente, conflitos políticos.

Figura 24 - Imagem em alusão ao dia de Finados. Cabrião, 04 de novembro de 1866.

332 BRÁS, Ciro Gallotta. São Paulo aprende a rir – imprensa humorística entre 1839-1876. São Paulo: Tese de Doutorado, Programa de Estudos Pós-graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006, p. 25. 333 “Alguns de nossos assinantes que pensão que o Cabrião, vive de perfeita saúde, sem o auxílio pecuniário, temos a dizer que não é tanto assim”. Cabrião, 16 de junho de 1867. 117

Os jornais ilustrados foram bastante provocativos dado ao seu conteúdo e à sua forma e, principalmente, à força das caricaturas. Essas caricaturas foram objeto de processos judiciais. O Diário de São Paulo considerou “ofensiva e grosseira” o desenho em alusão ao dia de finados (figura 24), movendo processo contra o Cabrião, pois atentava, segundo o Diário, contra “a moral e a religião 334 ”. Contudo, Luiz Gama fez parte de um projeto político editorial que estabeleceu um verdadeiro conflito de valores na paulicéia. As imagens selecionadas abaixo, dos jornais Diabo-Coxo, Cabrião e O Polichinelo, procuram evidenciar o papel da caricatura, do desenho intercalado aos textos, no processo de mediação da realidade política e escravista paulistana.

Figura 25 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

O cotidiano das relações raciais foi explorado sob os traços de Angelo Agostini, seguidos de textos de Luiz Gama, em que os negros e negras

334 BRÁS, Ciro Gallotta. São Paulo aprende a rir – imprensa humorística entre 1839-1876. 2006. Tese (Doutorado em História) - Programa de Estudos Pós-graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. p. 35. 118

aparecem nas mais variadas situações. Nesta, o diabo-coxo, na imagem de um burro, negocia com um negro um produto supostamente roubado. Aqui, o escravizado, em sua esperteza, não é um mero objeto sem capacidade criativa da maquinaria do comércio escravista.

Figura 26 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

No jornal Diabo-coxo, Gama interpreta o cotidiano das relações raciais de forma crítica, se posiciona frente às relações verticais de poder racial, apresentando esses sujeitos como uma força ativa frente às disputas políticas. Por vezes, as imagens dos negros e negras são usadas para ridicularizar uma determinada conjuntura política, esses sujeitos aparecem como parte ilustrativa de sua sátira política. Nota-se uma valorização dos personagens negros circulando “livremente” pela cidade. Em O poeta do lápis, Marcelo Balaban nos informa que o trabalho artístico de Angelo Agostini ainda apresentava um traçado rudimentar, o que contrastava com os quadros que pintava; estes eram bem mais elaborados. Agostini estava em início de carreira, não tinha a mínima ideia que seria um grande caricaturista, sendo assim, seus desenhos eram simples, marcados 119

pela ausência de detalhes que lhes conferissem um realismo 335 . Em suas representações gráficas (desenhos), a imagem do negro aparece padronizada, por vezes apresentando lábios grossos, nariz achatado, cabelo carapinha, sempre em forma caricatural, enquanto no branco há uma variedade de estilos. Ainda assim, o poeta do lápis e o intelectual diaspórico se aproximaram e juntamente com Sinzenando Barreto Nabuco de Araújo 336 fundam o jornal Diabo-coxo. Agostini denunciava os horrores da escravidão “em um desenho forte carregado de um sentimento de revolta 337 ”, o que seria sua grande marca em seus trabalhos artísticos 338 .

Figura 27 - Desenho de Angelo Agostini, cujo título é: “De volta do Paraguai”. BALABAN, 2005, p. 58.

335 Ver BALABAN, Marcelo. O poeta do lápis – a trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial – São Paulo e Rio de Janeiro, 1864-1888. 2005. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. p. 65. 336 Sizenando Barreto Nabuco de Araújo (1842-1892), recém-formado pela Academia de São Paulo, dedicou-se à literatura dramática. É de sua autoria A túnica de Nessus levado à cena na inauguração do Teatro de São José, na capital paulista. Antonio Barreto do Amaral, História dos Velhos Teatros de São Paulo, citado por Décio Freire dos Santos. In: CABRIÃO – semanário humorístico editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antonio Manuel dos Reis: 1866-1867. Ed. Fac-similar. Introdução de Décio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 1882, p. 22. 337 Idem, p. 58. 338 Ibidem. 120

Angelo fez do seu traçado caricatural uma arma política a favor da abolição e do regime republicano, de forma que contribuiu energicamente. O início de sua carreira confunde-se com a principal questão internacional da época, a guerra do Paraguai. A imagem acima foi uma das mais citadas nos textos que procuram analisar o perfil político de Angelo Agostini, pois ocupa lugar de destaque na construção de sua memória 339 . A imagem do soldado negro, que tem como título “a volta do voluntário”, expressa por demais as contradições de uma nação que envia soldados para uma guerra 340 que objetivava “libertar” um povo de um “tirano”, mas que convivia oficialmente com uma forma de exploração humana secular, a guerra da escravidão. Herman Lima, em a História da Caricatura no Brasil, observa que a

[...] luta pela a abolição dá inegavelmente aos caricaturistas e em particular a Angelo Agostini as armas mais poderosas contra a monarquia. Não é possível sequer citar as dezenas e dezenas de charge com que o intrépido combatente da boa causa vergastou, anos a fio, o vergonhoso regime do cativeiro, tolerado tantos anos pela complacência do governo, atrás das marchas e contramarchas de seus estadistas, no sentido da libertado dos negros 341 .

Figura 28 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

339 BALABAN, Marcelo. O poeta do lápis – a trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial – São Paulo e Rio de Janeiro, 1864-1888. 2005. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. p. 58. 340 O jornal Cabrião dedicou várias matérias à Guerra do Paraguai. Nos seus 51 números, a guerra foi localizada 55 vezes em caricaturas, desenhos e mapas. In: CABRIÃO – semanário humorístico editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antonio Manuel dos Reis: 1866-1867. Ed. Fac-similar. Introdução de Décio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 1882, p. 32. 341 Idem. 121

Figura 29 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

Figura 30 - Na legenda, lê-se: “Entremos. Vamos pedir aos senhores deputados que intervenham com o governo para que se acabe a guerra, que nos faz tanto sofrer. Protestamos pelas violências que contra nós praticam os recrutas e designados que andam refugiados em nossos matos! Que direito tem eles de perfeguir-nos? Por acaso somos paraguaios? Não!... Somos brasileiros! Nossos direitos devem ser respeitados e garantidos na forma da constituição do império!” Cabrião, 05 de maio de 1867. Brasiliana USP, Brasiliana Digital, consulta em 02 de setembro de 2013. 122

Figura 31 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

Gama também demonstrou seus desapontamentos em relação a participação dos escravizados na guerra contra o Paraguai: “...que recebiam uma carabina envolvida em uma carta de alforria, com a obrigação de se fazerem matar à fome, à sede e à bala nos esteiros paraguaios e que nos leitos dos hospitais morriam, volvendo os olhos ao território brasileiro... 342 ”

Os outros aspectos e situações em que os negros aparecem são as ruas, os espaços públicos de aglutinações coletivas. O jornal Diabo-Coxo apresentava vários espaços, por vezes os pontos mais focais dos territórios negros, de forma que se destacam os conflitos nos chafarizes (da

342 Luiz Gama, Carta a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em 10 de outubro de 2012. 123

Misericórdia 343 ), entre outros lugares. A falta d’água é registrada pelo jornal Diabo-coxo através de uma imagem que expressa o conflito, a ação violenta de negros e negras carregadores de água procurando destruir o chafariz.

Figura 32 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

343 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 120. 124

Figura 33 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

No seu jornal domingueiro Diabo-Coxo, Luiz Gama tinha mais liberdade para penetrar no âmago das relações sociais e políticas, explorando por meio de crônicas, com o auxílio dos desenhos de Ângelo Agostini, as contradições mais recônditas do progresso paulistano e a escravidão. Logo em seu primeiro número de veiculação, o “Diabo” alerta o leitor – “Oh! Espírito pueril, o estudo desta comédia social é necessário 344 ”. As desventuras do desenvolvimento da paulicéia na segunda metade do século XIX foram retratadas comicamente no poema abaixo, intitulado O progresso e S. Paulo:

O compadre, o tal “São Paulo” É “político” Não crê? Pois olhe que o acredito, E digo a razão por que:

Não é mentira, compadre! Sinceramente confesso Que este santo padroeiro Se não teve – tem “progresso”

344 Diabo Coxo, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 02. 125

Veja lá como na “Sé” Não querendo estar sozinho Convidou ao outro apóstolo “São Pedro” para vizinho.

Uma “cadeia” era pouco Pra servir de detenção: Foi à luz, e forjou outra Chamando-a de – “Correção”.

Não quis que houvesse um só “credo” Neste país de doutores; Pôs em campo as duas hostes, “Liberais – Conservadores”.

O “Correio Paulistano” Não bastava pra polêmica; E foi à “Direita – rua” Fundar a “imprensa Acadêmica”.

D’uma “Crença” de papel Outra “Crença” fez brotar; Muitos lêem as duas “Crenças” Sem “crença” de as assinar.

Era pouco um só “teatro”, Outro maior fez erguer; E além da estrada de ferro A de “rodagem” quer ter!

Dizem também que das “lojas” É freguês e santo membro Quando não vai na “Amizade” Vai a “sete de setembro”. Mesmo a respeito de “bancos” Faz as suas transações; Por isso, conta e desconta No “Mauá” nos “Gaviões”.

Enfim, se na freguesia Do norte, o céu faz-se azul, O céu se torna de negro Na freguesia do sul.

Creia, compadre, que o santo É santo de idéias lactas! Não sei se gosta de “ligas” Mas gosta das “duplicatas 345 ”.

345 Diabo Coxo, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. 126

Figura 34 - Imagem ilustrativa do Jornal Diabo-Coxo

No poema em homenagem à cidade de São Paulo, sob o título “Parabéns, Oh! Pauliceia”, atrela-se o espírito bravio bandeirante como força capaz de superar suas grandes crises. Luiz Gama insiste na relação entre modernidade paulista e escravidão, como uma questão ainda mal ou não resolvida.

Que importa a guerra estrangeira?

Que importa quebras bancárias? Que importa o insulto a bandeira, E outras cosinhas varias?... Não és tu valente e brava? Não dizes – não ser escrava. Nem suportar vis mandões?... Não há bombas, falcatruas, Anda o divino nas ruas,... Subam ao ar os rojões! 346

O poema acima refere-se a duas grandes crises que marcaram a década de 60 do século XIX, o conflito internacional no qual o Brasil teve uma participação desastrosa e o sistema financeiro. As altas despesas com a participação brasileira na Guerra do Paraguai promoveram, indiretamente, constantes aumentos do custo de vida para a população. A segunda crise refere-se ao surgimento das leis hipotecárias que estimularam os empréstimos

346 Idem. 127

a longo prazo e a constante instabilidade do incipiente sistema financeiro. As antinomias da modernização paulista e seu espírito “desbravador” são ironizados no trecho – “Não dizes – não ser escrava”. Depreende-se, nestes poemas e em outras passagens já relatadas neste trabalho, que Luiz Gama estava tenazmente comprometido com a ideia de fazer a sociedade liberal paulistana cumprir suas promessas políticas. No jornal Diabo-Coxo, Gama apresentou, também, suas mais contundentes críticas ao sistema político e, em geral, à escravidão. Ele observa que tais crises não podem ser solucionadas dentro de uma mesma moldura política. Gama tece suas análises sobre o crescimento da cidade de São Paulo sob o ponto de vista do que hoje conceituamos como diáspora, porque esta lança uma luz, ilumina uma visão crítica a partir dos elos que a escravidão estabeleceu com o progresso capitalista e com a burocracia estatal.

A escravatura, essa monstruosidade social não tem aqui uma causa política, que a justifique; originou-se no roubo, é obra de salteadores; e para sua nefasta existência concorreram – ministros, senadores, deputados, conselheiros de estado, magistrados, militares, funcionários de todas as classes, por interesse próprio, pela desídia, pela corrupção, pela venalidade 347 .

Em uma crônica, sob o título Anúncio, do jornal Diabo-Coxo, Gama cria um sujeito fictício altamente letrado, um renomado cientista que veio “orgulhosamente” ao Brasil patentear o seu mais novo “invento”. O “Mr. Argus Leon Crapaud, químico, matemático, geógrafo, historiador, retórico, poeta, formado em cirurgia, botânica, estética e mais outras ingrediencias proveitosas...”, era altamente conceituado e tinha uma grande estima pelo Brasil. E dado o seu grau de progresso, o Brasil era de fazer inveja à velha Europa, “pela justesa de suas instituições, que muito sobrepujam as da civilizada Europa e ainda mais pela aplicação de suas leis”, observa Mr. Argus Leon. Ainda de acordo com suas impressões, esse país possuía políticos que eram “mais liberais que a própria liberdade”. Maravilhado enfim com esse lugar, Mr. Argus Leon descreve como se opera essa liberdade. Nesse país

347 “Carta ao Dr. Ferreira de Menezes”. Luiz Gama. Gazeta da Tarde, 04 de janeiro de 1881. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 128

[...] libérrimo, onde os negros estremecem de prazer sob as amenas ficções de casca de boi, os africanos livres são escravos, ganham-se eleições liberalmente a ponta da baioneta, aposentam-se magistrados venais, amarram-se voluntários para o exército e prega-se o despotismo no próprio parlamento [...]348 .

É com todo esse sarcasmo que o Mr. Argus Leon Crapaud apresenta, a olho nu, “perante a suntuosa Paulicéia a descoberta do motu-continuo, achado tão maravilhoso quão simples”. Tal inventividade é tão complexa e ao mesmo tempo absurda que, para uma melhor compreensão da mesma, faz-se necessário citá-la em sua integridade:

Atravesse-se pelo centro de uma viga de qualquer madeira cortada uma lua própria uma cana roliça de ferro à feição de eixo móvel, coloquem-se as extremidades da predita cana sobre os topos semicirculares de outras duas vigas de altura conveniente, à guisa de esteios, espetados no chão com a ponta para cima; ponha-se sobre a viga eixada um cão da terra nova convenientemente adestrado; faça- se com que ele percorra com regularidade a viga de uma a outra extremidade, ela balançar-se-a no espaço eternamente sem auxílio de combustível, ou qualquer outro motor periódico. 349

Mr. Argus Leon Crapaud afirma que foi movido por amor “por este vasto pais de capricórnio, que ama e adora 350 ” que “abandonou sua pátria, família, parentes, amigos, haveres e uma reputação européia, que começava a consolidar-se, para vir ao Brasil glorifical-o com o seu invento 351 ”. Nesta crônica, bastante imaginativa, Luiz Gama repudia a narrativa liberal do mundo moderno, mais especificamente como esta era vivenciada no Brasil e na cidade de São Paulo. Para Gama, os paradoxos do liberalismo residiam basicamente na escravidão. Intelectuais negros, tais como, W. E. B. Du Bois, Frederic Douglas e Richard Wright 352 , que apesar de suas diferentes percepções no tempo e no espaço, e particularmente os mais próximos da experiência escrava, adotavam uma abordagem crítica a fim de apresentar uma fissura no “tempo homogêneo vazio” da política liberal. O projeto de modernidade em Luiz Gama não poderia acomodar práticas escravistas, por

348 Diabo Coxo, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p.06. 349 Idem. 350 Ibidem. 351 Ibidem. 352 Ver GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. p. 368. 129

isso combatia essa estreita intimidade entre um autoritarismo liberal e a escravidão. Intelectuais negros do século XIX, ao reescreverem a modernidade, “compartilhavam a percepção de que o mundo moderno estava fragmentado ao longo de eixos constituídos pelo conflito racial e poderia acomodar modos de vida social assíncronos e heterogêneos 353 ”. Mr. Argus, ao afirmar jocosamente que as qualidades das instituições políticas brasileiras “sobrepujam” as europeias, apresenta, neste sentido, uma crítica ao tempo monumental. Sua consciência de tempo é disjuntiva e questiona o modo como a política liberal escravista acomoda práticas políticas diferentes. No invento de Mr. Argus, o cão percorreria de um extremo a outro, circulando a partir de um eixo, se movimentando, mais sem sair do círculo. Aqui, invento e inventor, por mais especialistas que sejam cientificamente falando, não seriam capazes de “resolver” o problema da modernização do sistema político e da democratização das instituições políticas. A crônica subverte a concepção das primeiras exposições universais de invenções e descobertas que teve o seu início em 1851, em Londres. Os locais para exibição pública dos inventos foram sempre cidades europeias, exceto Nova York, consideradas epicentro da modernidade. Paradoxalmente, Mr. Argus escolhe justamente a cidade de São Paulo. Em uma de suas cartas destinada a Ferreira de Menezes, Luiz Gama expressa suas angústias com a política vigente.

É um conjunto de liberais, conservadores e republicanos; embora na atualidade, sob o ponto de vista prático, fora do palavreado costumeiro os qualificativos políticos careçam de realidade, porque corre o tempo de Muricy, em que cada qual cuida de si; e as agregações partidárias não passem de menções de romeiros, com destino ao poder, que se ajustam, para com maior segurança, atravessarem desertos cabedelos; há com tudo, aparências delicadas, dignidades calculadas, e formalidades melindrosas, que não podem ser preteridas. As exterioridades políticas são como o dogma; todo o seu valor provém do mistério; mas o venera, mas o idolatra quem menos o entende 354 .

353 Idem, p.368. 354 Gazeta da Tarde, domingo, 23 de janeiro de 1881. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 130

É recorrente, em Luiz Gama, a apresentação de uma modernidade mediada pela histórica da escravidão. Percebe-se uma incompletude da modernidade, que bloqueia a participação negra como sujeitos ativos. Estes seriam capazes de apontar novas perspectivas para a “construção” de um novo homem (não-racializado) a partir de suas críticas contundentes aos erros catastróficos da modernização. Nesse momento, faz-se necessário situar a posição de Luiz Gama frente à modernidade. Como sujeito diaspórico, Gama viveu intensamente o projeto de modernidade, tinha consciência do seu tempo, principalmente em relação ao passado. Sua consciência de modernidade era permeada por um sentimento e interpretação em que as linhas entre passado e presente “continuam a ser uma fonte de tensões fundamentais 355 ”. A diáspora aparece como resposta a estas tensões, questionando a modernidade racionalizada e o ser que ajudou a constituir o ser racializado. Gama é um caso emblemático de como os diferentes conjuntos de idéias da modernidade não aparecem apenas como um desajuste entre os sistemas de pensamento importados e a realidade brasileira 356 . Acompanhando de perto a trajetória política de Luiz Gama, principalmente em seu ativismo, é tentador adjetivá-lo como um militante da causa, como fundador de um movimento pela e da negritude, nos molde que o conhecemos nos tempos atuais. Gama, em suas articulações, não procurava “organizar” socialmente a consciência racial do seu grupo, muito pelo contrário, diante de um conjunto de práticas diferentes e experiências de vida radicalmente distintas, ainda que a raça procurasse homogeneizá-los, atuou de várias maneiras possíveis para integrar o negro a uma sociedade que considerava híbrida em sua composição social, negando a todo o momento a pertinência do discurso racial inferiorizante. Diáspora, memória e esperança. Em 1867, Luiz Gama, juntamente com Américo Brasílio de Campos, José Joaquim de Oliveira, Ciriato Antonio dos Santos e Silva, Antonio José Cardoso, Lourenço de Almeida e Antonio José de Mesquita, fundaram a associação Sociedade Esperança. Gama fazia parte do

355 Ibidem, p. 369. 356 Ver ALONSO, Angela. Apropriação de idéias no segundo reinado. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila (Orgs). O Brasil Imperial, vol. III, 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 86. 131

conselho diretor. O nome é bastante sugestivo em alusão à memória da diáspora e da escravidão ainda latente neste contexto histórico. A sede da instituição localizava-se na freguesia da Santa Efigênia, considerava-se “uma associação fraternal e filantrópica 357 ”, “com o fim de libertar escravos, por meios pecuniários 358 ”. No dia de criação da entidade, Luiz Gama ficou encarregado de empossar o conselho diretor e presidir todo o ato solene. O jornal Correio Paulistano saudou a todos os “instituidores desta associação essencialmente humanitária, que se mostram decididos a levar ao mais alto grau de prosperidade, contando exclusivamente com os esforços populares 359 ”. Luiz Gama tinha uma profunda admiração e identidade com a cidade, ainda que em alguns momentos constituísse numa ameaça à ordem escravocrata, quando foi perseguido e ameaçado de morte. “Tenho consciência de haver prestado relevante serviço a esta heróica província e ao país inteiro 360 ”. Sua fama, sua notoriedade profissional e política ultrapassaram as fronteiras geográficas da cidade. “Há um africano, um só, que veio da província de Minas Gerais em procura dos meus minguados esforços 361 ”. Seus esforços consistiam em erradicar a escravidão da cidade, dentro do seu campo de forças políticas. Atento às arbitrariedades dos jurisconsultos, Gama procurava denunciar publicamente a apreensão de escravos fugidos, que depois se verificou serem africanos boçais 362 .

Quando o exmo. Sr. Conselheiro Nabuco de Araújo era presidente da heróica provínvia de São Paulo, e avultava entre os chefes prestigiosos do partido conservador, tinha idéias liberalíssimas relativamente aos africanos escravizados de modo ilícito.

Chegou até a solicitar do imperador D. Pedro II, uma representação.

357 Correio Paulistano, 21 de março de 1867. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 358 Idem. 359 Ibidem 360 Apontamentos biográficos. Radical Paulistano, 24 de maio de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 361 Um novo Alexandre. Correio Paulistano, 20 de novembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 362 Luiz Gama, Questão Jurídica, A Província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p.157. 132

Senhor [sic] Luiz Gonzaga Pinto da Gama, residente na cidade de São Paulo, vem perante vossa majestade imperial implorar providências administrativas, a fim de que não continuem na privação de sua liberdade os libertos constantes da relação inclusa 363 .

Nesta representação dirigida ao imperador, Gama descreve que a Ordem Carmelita concedeu alforria a setenta e oitos indivíduos que residiam em Minas Gerais, cinco destes libertos conseguiram chegar à cidade de São Paulo 364 . Gama parte da presença desses sujeitos na cidade para fazer a crítica política e aos abusos da lei:

[...] são eles os representantes destas graves ocorrências, destas monstruosas transgressões do Direito, destes crimes extraordinários cometidos à face da autoridade pública, com menoscabo da lei e desprezo da moral 365 .

O republicanismo, para Luiz Gama, era uma importante instituição política capaz de garantir a democracia e minar com o “servilismo político”. São Paulo se apresentava, nesse momento, como o grande estandarte liberal. “E a província de São Paulo, ocupando a vanguarda, vai ensinando 366 às suas Irmãs a trilha imprévia que ela própria meditando explora 367 ”. Neste momento histórico, São Paulo vive a expansão da produção cafeeira e os republicanos paulistas viam no federalismo a possibilidade de liberdade para os produtores negociarem diretamente com o comércio exterior. Essa posição de “vanguarda” aprofunda as contradições com o regime monárquico, torna o Partido

363 Uma representação ao Imperador D. Pedro II. Luiz Gama. Gazeta da Tarde, 08 de agosto de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 364 Idem. 365 Ibidem. 366 A respeito do seu amor filial pela cidade de São Paulo, neste momento, o vertiginoso crescimento da cidade faz despertar sentimentos bairristas presente nos seus habitantes. O seu amigo pessoal, Ferreira de Menezes, escreveu em 1887 um artigo logo após a inauguração da estada de ferro São Paulo-Rio, comentando o comportamento dos paulistas: “O paulista, pela iniciativa é poeta, poeta do progresso, poeta prático. Seus versos são estes: boas estradas, máquinas, navegação, lavoura, melhoramentos”. “Ama-se (a si mesmo) e por isso é bairrista como nenhum povo. A seus olhos a primeira qualidade que pode por graça de Deus tocar a uma criatura é ser Paulista”. “O amor próprio alcança já o sonho de independência”. DOLHNIKOFF, Miriam; CAMPOS, Flávio. Manual do Candidato: História do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Ministério das Relações Exteriores, 2001. p. 98. 367 Carta de Luiz Gama a José Carlos Rodrigues, 26 de novembro de 1870. FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p.195. 133

Republicano Paulista mais coeso e aprofunda suas críticas à centralização do regime. Nesta cidade diaspórica, Luiz Gama não viveu uma experiência intelectual apartada, transitou pelas duas cidades, pela cidade letrada e pela cidade mestiça-popular, construiu suas críticas e suas intervenções a partir destes lugares.

A presença das práticas culturais africanas e afrodescendentes na cidade de São Paulo sempre teve que viver nas fronteiras da autorização social. Essas fronteiras não era o ponto onde essas culturas encerravam-se, mas o ponto onde uma cultura afro-brasileira fez-se emergir e se estabelecer em sua concretude. Essas fronteiras, esses entre-lugares, forçaram a cidade a reavaliar o significado de sua unidade política e ideológica quanto às suas “purezas” culturais.

134

CAPÍTULO III A sátira racial como poesia da transgressão: poéticas diaspóricas como contra-narrativa a ideia de raça.

135

“A liberdade requer um mundo de outros. Mas, o que acontece quando os outros não nos oferecem reconhecimento?” Lewis R. Gordon

Primeiras Trovas Burlescas de Getulino constituiu-se no único livro de Luiz Gama. A primeira edição 368 foi lançada em dezembro de 1859, em São Paulo, pela tipografia Dois de Dezembro; e a segunda, “correta e aumentada 369 ”, como adverte o autor, no Rio de Janeiro pela tipografia de Pinheiro & Cia., em 1861. Neste volume, estão incluídas 13 poesias de José Bonifácio de Andrada (o Moço), datadas de 1850 e oferecidas a Luiz Gama. Com Primeiras Trovas Burlescas, esse intelectual diaspórico adentra o restrito círculo das letras da cidade imperial paulistana. Aos 29 (vinte e nove) anos de idade, apresenta à sociedade uma obra antológica que expressa, entre outras questões, a experiência de quem viveu as clivagens raciais em meio às relações sociais hierárquicas. Trovas Burlescas ampliou um espaço socialmente restrito aos negros, daí a centralidade desse capítulo em analisar o lugar de enunciação deste sujeito diaspórico e, ao mesmo tempo, estabelecer as conexões entre raça, relações de poder e a epistemologia moderna. Esta obra burlesca foi o primeiro trabalho intelectual de Luiz Gama. A sátira social e política era intrínseca à sua complexa personalidade. O decênio que antecede o lançamento do livro foi marcado por intensas agitações em sua juventude. Foi demitido “a bem do serviço público”, acusado de causar “turbulência” e “sedição”, e foi obrigado a dar baixa compulsoriamente em 1854 por “insubordinação”, uma vez que ameaçou um oficial insolente que o insultou. Quando escravo, já carregava o estigma de insurreto, foi repelido por muitos

368 GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. 3º edição. São Paulo: Bentley Junior, 1904. Faço uso desta edição, versão digitalizada na íntegra pelo Instituto de Estudos Brasileiros. Disponível em: < www.ieb.usp.br/online/index.asp >. Acesso em: 24 de junho de 2013. A edição original encontra-se na biblioteca municipal Mario de Andrade da cidade de São Paulo. 369 Como consta na capa da segunda edição de Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. Rio de Janeiro: tipografia de Pinheiro & Cia., 1861. A terceira edição data de 1904, com 234 páginas ilustradas, editada pela Bentley Júnior na cidade de São Paulo, com prefácio de Coelho Neto. A quarta, em 1944, pela Editora Cultura, organizada por Fernando de Góis. A quinta edição foi organizada por J. Romão da Silva em 1954, pela editora Livraria Casa do Estudante. Considera-se como última edição a preparada por Lígia Fonseca Ferreira, Primeiras Trovas Burlescas & outros poemas, de 1999. 136

compradores “pelo simples fato de ser eu ‘baiano 370 ”, o que “valeu-me a pecha!”, exclama, em seu pertinente estilo jocoso. Analisando as condições que o levaram à demissão do cargo de amanuense, em seu artigo publicado mais de dez anos após o acontecido, nota-se sua postura crítica frente às relações verticais de poder:

Em nenhuma destas disposições acha-se estabelecida à obrigação de tratarem os empregados subalternos com subserviente vassalagem os seus superiores; e menos ainda a qualquer outro funcionário ou magistrado de diversa hierarquia 371 .

O ato de sua demissão teve forte repercussão social de forma que sua personalidade mordaz e sua veia satírica foram ganhando fama.

“Consta-me que algumas pessoas julgaram apócrifa a portaria de minha demissão, e forjada por gaiatice, para injuriar-se o bom senso e a ilustração do Sr. Dr. Chefe de Polícia 372 ”.

Essa reconstrução não é para afirmar que sua obra foi fruto desta fase turbulenta, mas para realçar que a escolha da poesia satírica como estilo e recurso literário para ridicularizar uma sociedade culturalmente letrada, autoritária e escravocrata, apresentou-se mais pertinente a sua personalidade. Só foi possível o lançamento de Trovas Burlescas, financeiramente falando, graças ao seu cargo de funcionário público, entre os anos de 1855 e 1859, da Secretaria de Polícia da cidade de São Paulo e ao emprego de escrivão do delegado conselheiro Furtado de Mendonça em alguns autos crimes 373 . Em 1865, Trovas Burlescas era vendida no escritório do jornal Correio Paulistano por 2$000 réis; este preço se mantém até 1879. Durante todo esse período, sua obra foi anunciada no jornal Correio Paulistano.

370 São Paulo, 25 de julho de 1880, Carta a Lúcio de Mendonça. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 371 São Paulo, Correio Paulistano, 21 de novembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 372 Idem. 373 Elciene Azevedo realizou esta descoberta a partir de suas investigações nos processos autos-crimes da capital do 1º cartório. In: AZEVEDO, Alciene. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. p.190. 137

Figura 35 - Trovas Burlescas entre as obras poéticas. A obra de Luiz Gama tinha um preço bastante modesto frente às obras dos escritores Bocage (18$000), Alvares de Azevedo (12$000) e Contos de Gonçalves Dias (5$000 réis). Correio Paulistano, 27 de maio de 1865. 138

Após a perda do serviço público, Luiz Gama procura equilibrar o seu orçamento como tipógrafo em 1865, no Ipiranga e no Cabrião (1866-1867), na área jurídica e, por vezes, nas atividades jornalísticas. Nelson Werneck Sodré, em A história da imprensa no Brasil, nos informa que apesar do jornal Diabo Coxo ter sido bem recebido, chegando a ser comparado à Semana Ilustrada, que existia desde 1860, “foi impossível mantê-lo, pelas dificuldades financeiras 374 ”. O jornal Cabrião custava 500 réis apenas, o preço de um almoço 375 . Gama começa a atuar sistematicamente como rábula/advogado a partir do ano de 1868. A renda da carreira de advogado é complementada com a venda da segunda edição de Trovas Burlescas. Encontramos o seguinte anúncio publicado no Correio Paulistano de 12 de fevereiro de 1870:

Poesias joviaes e satyricas por Luiz Gama. Os ultimos exemplares da segunda edição, enriquecidas com bellissimos canticos do exm. conselheiro José Bonifacio. Vende-se nesta typographia a 2$000 376 .

Figura 36 - Correio Paulistano, 17 de fevereiro de 1870.

374 Ver SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1966. p. 235. 375 É o que informa Délio Freire dos Santos na introdução à edição fac-similar do Cabrião. Antonio Luiz Cagnin em prefácio da versão livro do jornal Diabo-coxo. In: Diabo Coxo, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 13. 376 Grafia conforme o texto original. Os anúncios aparecem em vários dias do mês de fevereiro no jornal Correio Paulistano de 1870. 139

O pesquisador Eduardo de Assis Duarte, em seu artigo Literatura afro- brasileira: um conceito em construção, em que analisa os critérios que configuram e/ou diferenciam uma produção brasileira de descendentes de africanos do conjunto das letras nacionais, aponta que a literatura afro- brasileira no início do século XXI vive o seu momento “extremamente rico em realizações e descobertas. 377 ” O referido autor afirma, ainda, que Luiz Gama divide com Maria Firmina dos Reis, esta última afrodescendente maranhense, o status de escritores “pioneiros” da literatura afro-brasileira. Lígia Fonseca Ferreira 378 o considera como o primeiro poeta afro-brasileiro. Essas afirmações são contrarias a de Edson Carneiro, que em sua obra Antologia do negro brasileiro 379 , escrito em 1950, sustenta que Henrique Dias, que viveu no século XVII em Pernambuco, foi o primeiro negro letrado. A busca por um “começo” só tem sentido num contexto histórico-cultural de silenciamento ou de negação da capacidade poética dos escravos e/ou dos seus descendentes pelos historiadores da literatura brasileira. Procuraremos evidenciar o surgimento de múltiplas raízes para não cairmos na tentação de uma linearidade poético- literária afrodescendente. Enfim, o fato é que na segunda metade do século XIX já se apresentava um “razoável contingente de não-brancos letrados380 ”, e o atual estado da arte dos estudos literários afrodescententes em suas “descobertas” tem se debruçado para fazer emergir esses sujeitos silenciados”. Não é função desse estudo analisar o pioneirismo ou não de Luiz Gama, mas o da análise de sua produção dentro de um processo histórico específico,

377 DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea , nº 31, Brasília, p. 11, janeiro-junho, 2008. 378 Atualmente uma das principais referências nos estudos biográficos de Luiz Gama, tendo publicado vários artigos dentre eles: Luiz Gama: um abolicionista leitor de Reinan. Revista de estudos Avançados (USP) , nº 60, disponível on-line: www.scielo.br/scielo.php?pid=s010 , consulta em 20 de dezembro de 2011. Dois livros: Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011; e Com a Palavra Luiz Gama – poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2011. 379 Ver RISÉRIO, Antonio. Textos e Tribos – poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1993. p. 75. 380 Ibidem, p. 75. É importante destacar, também, a proliferação de campos de estudos étnico- raciais presentes nos programas de pós-graduação em todo o país, o que tem possibilitado o aparecimento de pesquisas que introduzem novos sujeitos sociais ao conhecimento histórico. Destaco o trabalho biográfico da Maria das Graças, resultado de uma pesquisa de doutoramento sobre o negro baiano Manuel Querino, que foi artista, político, professor e intelectual. LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas - Bahia: 1851-1923. São Paulo: AnnaBlume, 2009. 140

ao mesmo tempo em que ele foi forjando sua própria produção cultural. Podemos notar, tanto no seu processo de alfabetização quanto em seu empenho em tornar-se um homem negro letrado, um forte esforço em adentrar o universo da vida cultural de uma nação em construção, de “uma nação à procura de identidade 381 ”. Numa sociedade duramente marcada pelas hostilidades raciais, cuja missão era civilizar o outro, o diferente, para ter acesso à cidade letrada tinha que provar ter uma razoável instrução humanista e científica, uma vez que o tipo de sujeito requerido pelo projeto de modernidade era o homem, branco, pai de família, católico, proprietário, letrado e heterossexual 382 . A escrita em Luiz Gama era uma arma, um exercício que procurava responder (ou corresponder) às injunções de uma sociedade escravista marcada pela hierarquização racial. Zilá Bernd, em Introdução à literatura negra, nos indaga sobre “O que é literatura negra?”. Para não cairmos num essencialismo etnocêntrico, devemos reconhecer que a sensibilidade artística não é inerente 383 a nenhum grupo étnico-racial. A questão é que a poesia negra cria o seu espaço, o seu território representativo, “no próprio processo discursivo da sua indagação 384 ”, é onde aparece o “eu enunciador” quando esses sujeitos reterritorializavam o sistema poético de representações.

Nesse sentido, é preciso sublinhar que o conceito de literatura negra não se atrela nem à cor da pele do autor nem apenas à temática por ele utilizada, mas emerge da própria evidência textual cuja consistência é dada pelo surgimento de um eu enunciador que se quer negro. Assumir a condição negra e enunciar o discurso em primeira pessoa parece ser o aporte maior trazido por essa literatura, constituindo-se em um de seus marcadores estilísticos mais expressivos 385 .

Esse “eu enunciador” é uma subjetividade criativa, é o próprio desejo de Luiz Gama de elaborar uma leitura e interpretação das relações étnico-raciais

381 BOSI, Alfredo. Cultura. In: CARVALHO, José Murilo (coordenador). A construção nacional 1830-1889 . Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. p. 232. 382 Posição interpretativa de Santiago Castro Gomes em sua análise a respeito da invenção do outro na América latina no século XIX. In: LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber – eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociais, 2005. p. 173. 383 BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1988. p. 21. 384 Idem, p.12. 385 Ibidem, p. 22. 141

através da prática poética. Uma consciência que enuncia uma identidade ignorada: “Quero que o mundo me encarando veja, Um retumbante Orfeu de Carapinha”. Uma África, cujas relações de descendência são negadas, “Entre os netos da Ginga, meus parentes”; identifica uma origem nobre, contra a ideia de um povo sem história, “Minha mãe, que é de proa alcantilada, vem de raça dos reis mais afamados”. Anuncia abertamente suas origens, “Se eu que pretecio, D’Angola oriundo”. O surgimento desse sujeito-de-enunciação aparece num campo de disputas políticas de afirmação de uma identidade. Gama dá aos poemas satírico-raciais uma significação política, resultado de uma experiência real de subalternização racial, lançando fortes ataques a um modelo de branquitude que está fechado na sua brancura 386 . A complexidade da dominação racial é refletida por meio do seu eu enunciador , mas revela e expressa também a “consciência de toda a comunidade à qual pertence 387 ”. Ao exprimir os dramas e os conflitos dos negros e negras, mas sem desprender das exigências literárias, o eu-lírico-enunciador de Luiz Gama também aparece em alguns momentos como um nós (comunidade negra) quando expressa os dilemas, os desejos e os modos de vida da coletividade negra. Os temas abordados, escravidão, liberdade, áfrica, a cidade, os heróis, são os que mais evidenciam o nós da enunciação.

Hoje triste já não trinas, Como outrora nos palmares; Hoje, escravo, nos solares Não te embala a dúlia brisa; Nem se casa aos teus gorjeios - Pelas negras rochas calvas – Da cascata que desliza.

Porém, não podemos considerá-lo como um porta-voz do grupo, no sentido militante das organizações negras do século XX, que por ora já afirmamos. O seu fazer poético amplificou o seu drama existencial conferindo- lhe um alcance político, “pois ele passa a representar a condenação não apenas daquele ato isolado, mas da sociedade que o autoriza 388 ”.

386 FANON, Fanon. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 27. 387 BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1988. p. 29. 388 Idem, p.42. 142

Em seus escritos, Luiz Gama tinha o corriqueiro gesto de “anunciar a singeleza” de seus versos e solicitar complacência de seus leitores. Essa postura está presente no primeiro poema do livro, denominado Protase, que em linhas gerais anuncia o perfil satírico do autor e o processo de construção de suas trovas burlescas.

Figura 37 - Imagem do jornal Diabo-Coxo.

Embora Gama demonstrasse plena convicção ideológica de sua particularidade racial através do seu ativismo e de sua produção jornalística, pode-se notar toda uma sensibilidade em relação aos juízos sociais e filosóficos 389 que colocavam em dúvida a capacidade cognitiva dos negros. Isto

389 Hegel considerava os africanos não apenas pré-históricos como também pré-políticos. GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. São Paulo: AnnaBlume, 2007. p. 79. 143

fica evidente na abertura da Primeiras Trovas Burlescas por meio da epígrafe de autoria do dramaturgo português Faustino Xavier de Novais: “Contudo se os vir alguém/Que deles zombe, de mim/Defende-me, e dize assim!/Cada qual dá o quem tem”. Que juntamente com o verso “Grosseiras produções d’inculta mente,/Em horas de pachorra construídas;/Mas filhas de um bestunto que não rende,/Torpe lisonja às almas fementidas 390 ” não expressam apenas um “fingimento poemático” que “dissimula uma pretensão, de ausência de domínio técnico”, como quer sugerir o pesquisador Jorge de Souza Araújo 391 . Na análise do conjunto de suas produções, notamos que essa preocupação diante da cultura letrada de seu tempo não estava apenas no campo literário. A sua inquietação ou procura insistente de justificação, de ajustar-se aos cânones 392 , também aparece em seus escritos jornalísticos, em outra natureza de produção, muito diversa do campo literário.

Fique-se, pois, sabendo, uma vez por todas, que o meu grande interesse, interesse inabalável que manterei sempre, a despeito das mais fortes contrariedades, é a sustentação plena, gratuitamente feita, dos direitos dos desvalidos que correrem ao meu tênue valimento intelectual 393 .

Os pesquisadores Jorge de Souza Araújo, em Retrós de Espelhos: o romantismo brasileiro com lentes de aumento, e Elciene Azevedo, em Orfeu de Carapinha, perceberam essa “dissimulação” intelectual apenas na obra Trovas Burlescas de Getulino. Na verdade, essa “preocupação” também perpassa em outros tipos de produção e, dez anos depois do seu primeiro livro, ele ainda persistia com a ideia que possuía “um tênue valimento intelectual”.

Homem obscuro por nascimento e condição social, e de apoucada inteligência jamais cogitei, no meu exílio natural, que a cega fatalidade pudesse um dia arrastar-me à imprensa, nestes afortunados tempos de venturas constitucionais, para diante de uma população ilustrada como é seguramente a desta moderna Atenas brasileira, sustentar os direitos conculcados de pobres infelizes, vítimas arrastadas ao bárbaro sacrifício do cativeiro, pelos ingênuos

390 Luiz Gama, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (texto da 1ª edição digitalizado na íntegra). www.ieb.usp.br/online/index.asp, São Paulo: Bentley Junior, 3º edição, 1904. 391 ARAUJO, Jorge de Souza. Retrós de espelhos: o romantismo brasileiro com lentes de aumento. Ilhéus (Ba): Editus, 2011, p. 477. 392 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento – o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010, p.2. 393 Luiz Gama. Radical Paulistano, 29 de julho de 1869. Arquivo Público do Estado de São Paulo. 144

caprichos e pela paternal caridade dos civilizados cristãos de hoje, em face de homens notáveis, jurisconsultos reconhecidos e acreditados legalmente a quem o supremo e quase divino governo do país, em hora abençoada, confiou o sagrado sacerdócio da honrosa judicatura. 394

“Foi o colono que fez e continua a fazer o colonizado 395 ”. Como sujeito colonizado, Gama se vê em meio a um conflito de valores entre o projeto civilizador moderno e o “embrutecimento” do cativeiro. Desde sua tenra idade, já estava claro para ele que esse mundo escolhido, “semeador de interdições 396 ”, tinha que ser sistematicamente questionado de forma crítica. O tom da sua escrita, além de combatente, tinha um estilo estratégico no qual assumia os seus limites se propondo a inverter os sentidos, o que não “chega ser irritante 397 ”. A escravidão não produziu apenas violências físicas porque a colonização em si é um fenômeno violento. A diáspora também produziu violências simbólicas.

A violência com a qual se afirmou a supremacia dos valores brancos, a agressividade que impregnou o confronto vitorioso desses valores com os modos de vida ou de pensamento dos colonizados fazem com que, por uma justa contrapartida, o colonizado tenha um riso irônico quando se evocam diante dele esses valores 398 .

A África está presente na prática social da escrita de Luiz Gama. Não há uma dicotomia entre oralidade e escrita, a oralidade sobrevive em seu ato de escrever.

Lundu para Viola Meu yoyô mecê não vê Uma imensa novidade?

394 “Questão de liberdade”. Luiz Gama. Correio Paulistano, sábado 13 de março de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 395 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2005. p. 52. 396 Idem. 397 “É sintomático, portanto, que Luiz Gama o tempo todo faça questão de evidenciar – em um tom tão cheio de humildade que chega a ser irritante - que sabia que seu lugar não era entre os homens de letras porque, afinal de contas, era um negro que havia sido escravo. Sua crítica se fazia, assim, por dentro da lógica de domínio senhorial, colocando-se exatamente na posição em que um senhor gostaria de vê-lo, sem ferir diretamente ou transgredir os domínios da dependência”. AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha – A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. p. 56. 398 No capítulo Sobre a Violência, o contexto das reflexões de Fanon é o movimento africano de descolonização, mas são altamente pertinentes para a nossa análise. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2005, p. 60. 145

Nhonhô Mendes já nos deu Mil progressos na cidade.

Deu-nos ruas espaçosas Luminarias pardacentas Deu-nos águas cristalinas E calçadas lamacentas.

Minhas gente venham ver O luzir desta tetéia Resplandece e sobresai A famosa Paulicéia

Nhonhô Mendes ordenou Numa lei municipal, Que brilhasse com fulgor Esta nossa Capital.

Deu-nos luz e querosene Não precisa mais do gás Pois que viva nhonhô Mendes Que é sincero, bom rapaz.

Minhas gentes venham ver Etc. etc. etc. 399

Não devemos perder de vista o quanto o mesmo valorizava a oratória e fazia da retórica uma de suas “armas” para os embates políticos e jurídicos. Por vezes, sua escrita denota uma fala, uma exposição pública oral, refletindo sua mundividência, e há uma recorrência a um discurso profético com apelos à tradição oral, como se vê as citações abaixo:

Descanse, porém, o Sr. Dr. Rego Freitas, porque eu protesto perante o país inteiro de obrigá-lo a cingir à lei, respeitar o direito e cumprir estritamente o seu dever para o que é pago com o suor do povo, que é o ouro da Nação 400 .

Nas épocas por vir, os sábios astrônomos, os Aragos do futuro hão de notá-los entre os planetas: os sóis produzem mundos 401 .

Através dos versos, Gama explora, em tom irônico e crítico ao mesmo tempo, o racismo acadêmico e epistemológico. Em tom satírico, apresenta-nos o lugar de um sujeito diaspórico, desterritorializado, impossibilitados de

399 Diabo Coxo, nº 07, São Paulo, 1864-1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. 400 Radical Paulistano, 13 de novembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 401 Luiz Gama, Carta a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 146

produzir e consumir ciência, dado a sua capacidade intelectual e de sua condição humana.

Ciências e letras Não são para ti; Pretinho da Costa Não é gente aqui.

Desculpa, meu caro amigo, Eu nada te posso dar; Na terra que rege o branco, Nos privam té de pensar!... 402

Para Gonzáles Stephan 403 , os cidadãos latino-americanos foram forjados através de três práticas disciplinares no século XIX: as constituições, os manuais de urbanidade e as gramáticas do idioma. Amparando-se no teórico uruguaio Angel Rama, Beatriz Gonzáles Stephan “constata que estas tecnologias de subjetivação possuem um denominador comum: sua legitimidade repousa na escrita”. A autora sustenta, ainda, que

[...] escrever era um exercício que, no século XIX, respondia a necessidade de ordenar e instaurar a lógica da ‘civilização’ e que antecipava o sonho modernizador das elites criollas.

A intelectualidade diaspórica de Luiz Gama reside na quebra da simetria e da “cumplicidade entre língua, literatura, cultura e nação com a ordem geopolítica e as fronteiras geográficas 404 ”. Uma vez que “língua e literatura faziam parte de uma ideologia de Estado 405 ”, cujo objetivo era manter a sociedade brasileira indivisa e harmônica 406 , de certa forma, ainda que apresentasse posturas políticas nacionalistas, Gama apresenta uma literatura

402 Luiz Gama, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (texto da 1ª edição digitalizado na íntegra). www.ieb.usp.br/online/index.asp, São Paulo: Bentley Junior, 3º edição, 1904, p.46 e 47. 403 In: LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber – eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociais, 2005, p.173. 404 Asseguro-me das posições críticas e analíticas do antropólogo Walter Mignolo em seu trabalho Histórias locais, projetos globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, em que defende a tese de que num mundo transnacional não se deve vincular a língua, a literatura, cultura e território às ideologias nacionais. Sendo assim, sustenta que se deve “redefinir os estudos literários e discutir as questões resultantes da expansão ocidental e das interconexões globais desde o fim do século XV”, que apontem para estudos transimperiais, transcoloniais, transnacionais e culturais. MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais, Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 299. 405 Idem. 406 Ver parecer do Estado do Imperial negando o direito dos negros associarem em entidades de socorro mútuo, citado no capítulo primeiro. 147

negra, mais precisamente uma antologia de cunho satírico-racial, que perturba a construção de uma comunidade imaginária homogênea que é, segundo Benedict Anderson, a nação. Imbuído de uma dupla consciência, ainda assim Luiz Gama não mediu esforços para adentrar nesse grupo social especializado, dos que manejavam a pena com funções de poder 407 . Esse grupo social é denominado por Sérgio Adorno de publicistas acadêmicos por sua natureza bacharelesca, por girar em torno da Academia de Direito de São Paulo. Os mesmos dotavam de amplo espaço para as suas publicações, num momento em que as produções literárias, científicas e jornalísticas conviviam num mesmo espaço. Os locais para publicação eram os seguintes 408 : Ensaios Literários (1846), O Arrebol (1849), Revista Mensal do Ensino Filosófico Paulistano (1851), O Acaiaba (1852), Ensaios Literários do Ateneu Paulistano (1852), O Guaianá (1856), Revista Paulista (1857), O Acadêmico do Sul (1857), Memórias da Associação Culto à Ciência (1859), revista da Academia de São Paulo (1859), Ensaios Literários do Club Científico (1859), O Kaleidoscópio (1860), O Timbira (1860), Revista Mensal do Instituto Científico (1862), Imprensa Acadêmica (1864), Tribuna Liberal (1867), Radical Paulistano (1869) e a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838). Esses, entre outros, foram espaços que materializavam as ideias da cidade letrada. Sua pena mordaz surge nesta condição paradoxal, neste ambiente de antinomias da era moderna, mas que procura responder contra as arbitrariedades de uma modernidade mediada pela raça 409 . Para tal, fez uso da sátira, que segundo a edição de 1813 do Dicionário de Língua Portuguesa, de Antônio de Moraes Silva, constituiu-se como um “poema censório dos costumes, e defeitos, públicos, ou de algum particular 410 ”. Esse estilo estava

407 Para Angel Rama, esses sujeitos eram portadores de uma importância capital no momento da formação e estruturação social da América colonial, a partir da relação entre as letras e a sociedade. RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1984, p. 43. 408 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 175-176. 409 GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. São Paulo: AnnaBlume, 2007. p. 79. 410 SILVA, Antônio de Moraes. Dicionário de Língua Portuguesa. Edição fac-similar da segunda edição de 1813, Rio de Janeiro: Oficinas S. A Lith-Typografia Fluminense, 1922. p. 370. 148

muito em voga entre os “moços” formados na academia de Direito. É importante destacar que o poema satírico só veio a ser explorado de modo significativo 411 com a segunda geração romântica, a partir da obra Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. Apesar de ser bastante utilizada, a sátira não era tão valorizada como gênero literário. Ao estabelecermos um paralelo entre produção literária e raça no Brasil oitocentista, procuramos ressaltar o peso que esta última apresenta no contexto da produção cultural e vida política da segunda metade do século XIX. Os postulados a respeito da raça já estavam plenamente estabelecidos nos séculos da colonização, apesar de constituírem-se como um resíduo colonial, o momento histórico de Luiz Gama apresenta uma configuração e modelo cultural próprio, com formas particulares e únicas no trato com as desventuras da raça. Paul Gilroy, citando os estudos da Nancy Stepan sobre raça e ciência, observa que “antes da consolidação do racismo científico no século XIX, o termo ‘raça’” foi “empregado quase no mesmo sentido em que a palavra ‘cultura’ é empregada hoje 412 ,” ou seja, uma relação intrínseca entre raça e modos de vida. Não é desta forma que a raça aparece na produção intelectual de Luiz Gama, temos evidência da mesma muito mais como uma categoria política de representação e identificação do que sua fixidez com o comportamento de um povo. Grande parte dos seus biógrafos deixou-se levar pelo discurso raciológico. Sud Mennucci foi um deles. Sud, um dos mais importantes biógrafos do seu período, considerava que Primeiras Trovas Burlescas se deveu muito mais pela “fulgurante inteligência daquele preto 413 ” que pela “roupagem artística que trouxera o sucesso do livro414 .” Para Mennucci, Gama queria demonstrar a riqueza do seu pensamento. Assim enfatiza o acadêmico, membro da academia de letras de São Paulo, quando publicou a biografia: “o livro constituía um veemente libelo da raça desprezada, que demonstrava,

411 CAMILO, Vagner. Risos entre pares – poesia e comicidade no romantismo brasileiro (2ª geração). 1993. Dissertação (Mestrado em Linguagem) - Programa de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas, Campinas, 1993. p. 19. 412 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p. 43. 413 MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p.62. 414 Idem. 149

assim, a sua capacidade de ascensão 415 ”. O indivíduo e a raça aparecem de forma indissociável na representação do seu grupo étnico. Mennucci teceu suas considerações em 1938, numa época em que a raça e o fascismo estavam umbilicalmente interligados, em que a raça despertava fascínio para as estratégias políticas de poder e conhecimento. Mil oitocentos e setenta assinala, no Brasil, a introdução 416 de teorias de pensamento tais como o positivismo, o darwinismo, o evolucionismo, que, consequentemente, tiveram um papel central no desenvolvimento dos estudos históricos, sociológicos, literários e, principalmente, etnográficos. Antes mesmo do “sucesso” nos meios acadêmicos e sociais dos postulados que afirmavam que “as raças humanas, enquanto ‘espécies diversas’, deveriam ver na hibridação um fenômeno a ser evitado 417 ”, Luiz Gama negava veementemente esse constructo da modernidade através da sua imaginação poética, que atentava muito mais para a relação 418 que a exclusão do outro. Ao contrário do pensamento raciológico com suas previsibilidades, Gama, em suas reflexões apresenta, uma contra-narrativa, uma sensibilidade estética para com os contatos e as relações étnicorraciais vistas de baixo, como possibilidade histórica de crioulização 419 numa nação em processo de afirmação identitária.

415 Ibidem, p. 63. 416 Esta data é defendida por SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 417 Idem, p.57. 418 O filósofo caribenho Édouard Glissant desenvolveu o conceito de relação na contemporaneidade a partir de uma profunda reflexão filosófica tendo em vista os conflitos étnicos e culturais em fins do século XX: “para que haja relação é preciso que haja duas ou várias identidades ou entidades donas de si e que aceitem transformar-se ao permutar com o outro”. GLISSANT Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora (MG): Editora UFJF, 2005. p. 52. 419 Édouard Glissant defende a tese de que “as culturas do mundo colocadas em contato umas com as outras de maneira fulminante e absolutamente consciente transformam-se, permutando entre si, através de choques irremissíveis, de guerras impiedosas, mas também através de avanços de consciência e de esperança que nos permitem dizer – sem ser utópicos e mesmo sendo-o – que as humanidades de hoje estão abandonando dificilmente algo em que se obstinavam há muito tempo – a crença de que a identidade de um ser só é validade e reconhecível se for exclusiva, diferente da identidade de todos os outros seres possíveis.” GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora (MG): Editora UFJF, 2005, p. 18. 150

Figura 38 - Imagem ilustrativa do Jornal Diabo-Coxo.

Na ilustração acima, o Diabo-Coxo, personagem do jornal que leva o seu nome, interroga um escravo numa rua da paulicéia. O diálogo tem como título “materiais de edificar”:

- “O que estás fazendo aí, moleque?”

- “Apanhando bosta para o meu sinhô”.

Os negros e as negras construíram, racialmente falando, um país para outros. O domínio senhorial assentado não só sobre o direito de propriedade, mas sobre os fundamentos racionais justificadores das hierarquias raciais, é ridicularizado e, nesse momento, podemos notar uma crítica política direta à elite senhorial e às relações raciais hierárquicas. Gama demonstrou um particular apreço pelo poema Saudades do Escravo, de José Bonifácio de Andrada (o Moço), e pelo mesmo ter ofertado e 151

compartilhado uma de suas produções para compor a ontologia Trovas Burlescas em sua primeira edição.

Esta bela produção [Saudades do escravo] foi-nos dada pelo seu ilustre autor o Exmo. Sr. Dr. José Bonifácio de Andrada e Silva; publicamo-la na frente de nosso obscuro volume para nos servir de Abracadabra, nos mares tempestuosos das censuras e nas hórridas ambages do sórdido egoísmo dos monopolistas.

Escravo – não, não morri Nos ferros da escravidão; Lá nos palmares vivi, Tenho livre o coração! Nas minhas carnes rasgadas, Nas faces ensangüentadas Sinto as torturas de cá; Deste corpo desgraçado Meu espírito soltado Não partiu – ficou-me lá!...

Quanto ao tema da escravidão, Gama demonstra um grande apreço por posições que apontam para um espírito bravio e de resistência dos escravizados.

Figura 39 - Texto em formato de anúncio, Jornal Diabo-Coxo.

O anúncio escrito nesta imprensa humorística é uma verdadeira contra- narrativa crítica aos anúncios em geral que solicitam contratação de escravos, em um período em que a historiografia ainda não reconhece a existência do abolicionismo e em que raros liberais assumiam uma posição tão contundente quanto aos escravizados. Mostra-se a favor da abolição radical, mas que de certa forma estas posições contribuíram para a emancipação gradual: seis anos depois foi promulgada a lei do Ventre Livre. O anúncio entrelaça, em seu 152

“duelo a marradas”, a Europa, questionando por que não contrata para tal serviço o branco europeu, e a África, a quem pede mais respeito no que tange à descendência e à influência cultural africana. Ao mesmo tempo em que tenciona as relações raciais entre negros e brancos. A experiência social de Luiz Gama como negro e ex-escravo, aliada à sua intelectualidade, lhe possibilita perceber a realidade sócio-histórica imperial por meio de uma dupla consciência: social e racial. A dupla consciência, conceito desenvolvido por W. E. B. Dubois 420 , refere-se a uma consciência forjada na experiência e na memória da diáspora e na escravidão.

À frente parvalhões, heróis Quixotes/ Borrachudos Barões da traficância/ Quero ao templo levar de grão Sumano/ Estas arcas pejadas de ignorância 421 .

Os versos aqui selecionados constituem-se numa antologia que se sustenta nas contradições de classe e de raça da sociedade escravista paulistana e brasileira. Interpreta as relações sociais de dominação vigente, entre outros temas não necessariamente políticos, a exemplo das poesias líricas carregadas de uma sensibilidade apaixonada (íntima). Por meio de uma linguagem satírica, critica-se a estrutura social hierárquica e autoritária, assim como o seu funcionamento. Jorge de Souza Araújo, em seu trabalho, confere a Primeiras Trovas Burlescas lugar de destaque

[...] no elenco de nossos epigramistas mais notáveis, cuja estirpe, na literatura brasileira, tem em Gregório de Matos uma indisputada primazia e excelências na linguagem da burla e da sátira [...] 422

Jorge de Souza Araújo, em seus estudos sobre o movimento romântico e seus protagonistas, reconhece no poema Farmacopéia “o gênio satírico de Luiz Gama para além do ressentimento epidérmico 423 ”. Creio que não se trata de mero “ressentimento”, mais de viver uma modernidade que o dividia entre

420 Ver o capítulo “Anime o viajante cansado”: W.E.B. Du Bois, a Alemanha e a política da (des) territorialização. GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro- Asiáticos, 2001. p. 223-280. 421 Luiz Gama, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (texto da 1ª edição digitalizado na íntegra). www.ieb.usp.br/online/index.asp, São Paulo: Bentley Junior, 3º edição, 1904, p. 11. 422 Ver ARAUJO, Jorge de Souza. Retrós de Espelhos: o romantismo brasileiro com lentes de aumento. Ilhéus (Ba): Editus, 2011. p 476. 423 Idem, p. 477. 153

as afirmações da particularidade racial e apelo aos universais modernos que transcendem a raça, por ora já ressaltados no capítulo anterior. O romantismo tinha em seu seio um grupo particular de letrados que reunia estudantes de Direito da cidade de São Paulo. A Revista da Sociedade Filomática conclamava seus apreciadores a produzir poemas locais, inspirados na natureza. Assim expressa Justiniano José da Rocha, em 1833:

Quando porém atento a que nossas paisagens, os costumes de nossos camponeses, em uma palavra, a natureza virgem d’América, inda oferecem quadros tão virgens como ela ao poeta que os quiser pintar; quando me lembro que o azulado Céu dos Trópicos ainda não foi cantado, que nem um só vate fez descansar seus amantes à sombra amena de nossas mangueiras, arevo-me a esperar que nossa poesia, majestosa, rica, variada, e brilhante, como a natureza que a inspira, nada terá que invejar às sediças descrições Européias de Corydons e tircis deitados sempre debaixo de cansadas faias 424 .

Contudo, nem todos os poetas românticos levaram a cabo essa ordem de discurso estético. A terceira geração dos românticos caracterizou-se pela militância política e social. A linguagem pretensamente conservadora do pensamento romântico que procurava naturalizar o diferente sentenciou o índio ao passado, a “uma imagem do passado e, portanto, não apresentava qualquer ameaça a ordem vigente, sobretudo à escravatura 425 ”. Luiz Gama apresenta o diferente, a imagem do negro, de forma politizada, perturbadora, ameaçadora ao status quo, à hegemonia da branquitude. Os caminhos norteadores para inspiração poética romântica, como postula a Revista da Sociedade Filomática 426 , apresentava uma noção imperialista da cultura local, principalmente quando se refere aos camponeses como extensão da natureza. A natureza, em seu exotismo, despertava mais interesse que a alteridade 427 . As imagens dos sujeitos (índios e negros), no pensamento romântico, ao

424 Ver ARAUJO, Jorge de Souza. Retrós de Espelhos: o romantismo brasileiro com lentes de aumento. Ilhéus (Ba): Editus, 2011. p. 21. 425 Dante Moreira Leite em O caráter nacional brasileiro, citado por ARAUJO, Jorge de Souza. Retrós de Espelhos: o romantismo brasileiro com lentes de aumento. Ilhéus (Ba): Editus, 2011. p.26. 426 Criada pelos acadêmicos da Faculdade de Direito de São Paulo, Carlos Carneiro de Campos, Francisco Bernardino Ribeiro e José Inácio Silveira da Mota. ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 174. 427 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001. p. 21. 154

realizar uma “franca apologia do colonizador 428 ”, falavam pelo outro, procuravam refundar o mito fundador imprescindível para a formação da identidade nacional. Para a filósofa Marilena Chauí, o

[...] mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo 429 .

Luiz Gama fez emergir ou tornou necessária, na historiografia romântica, uma nova linguagem poética da nação. Uma linguagem extraoficial que possibilitasse falar para o outro da sua existência430 . A partir de Trovas Burlescas de Getulino, as relações raciais passam a constituir um tema literário de forma crítica. Para os sujeitos de cor que vivenciaram os efeitos da experiência colonial, “falar” era “existir absolutamente para o outro 431 ”. Luiz Gama viveu uma experiência singular e histórica ao autorrepresentar-se. Isso não implica endossarmos o dogma de autorrepresentação em que somente os negros poderiam falar de si como parte integrante de grupo social subordinado racialmente. Neste sentido, as reflexões de Edward Said corroboram com a nossa posição:

[...] capacidade de representar, retratar, caracterizar e figurar não está simplesmente à disposição de qualquer membro de qualquer sociedade; além disso, o ‘o que’ e o ‘como’ na representação das ‘coisas’, mesmo admitindo uma considerável liberdade individual, são circunscritos e socialmente regulados 432 .

O espaço em que Luiz Gama adentrou o autorizou a expressar a visão de mundo de si e de todo um segmento sócio-racial alijado da produção literária. A ideia do negro coisificado 433 contribuía para o não reconhecimento

428 Bosi, Alfredo. In: ARAUJO, Jorge de Souza. Retrós de Espelhos: o romantismo brasileiro com lentes de aumento. Ilhéus (Ba): Editus, 2011. p. 25. 429 CHAUÍ, Marilena. Brasil – mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. p.09. 430 FANON. Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 33. 431 Idem. 432 SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011, p. 143. 433 Para Joaquim Nabuco, foi a escravidão que tornou uma “massa pensante em estado puramente animal”, surgindo, assim, o escravo coisificado. Na verdade, a coisificação escrava aparece na historiografia, em 1860, na obra de Perdigão Malheiro. Para Sidney Chalhoub: “O problema da coisificação dos escravos ganha então uma dimensão mais abrangente. A definição legal do escravo como ‘coisa’ se transforma também uma condição social, havendo 155

de suas capacidades poéticas. Primeiras Trovas Burlescas abre o espaço do outro em meio às relações de dominação, ganha o seu poder de significar, “de estabelecer seu próprio discurso institucional e oposicional 434 ”. A força persuasiva do texto criativo 435 de Luiz Gama provém da sua experiência social diaspórica, de sua posição como sujeito desterritorializado, do entre-lugar, esses são os locais, os terrenos da literatura negra 436 que fornecem os materiais para a representação poética dos negros em seus desejos reprimidos historicamente. Uma vez que a consciência de si e para si só existe diante de outra consciência de si, conforme a dialética hegeliana, como fica o reconhecimento da capacidade poética dos negros? Sabemos que a liberdade requer um mundo de outros, mas o que acontece quando esses outros não nos oferecem reconhecimentos? Essa é a pergunta feita por Lewis Gordon 437 que usamos como epígrafe no início deste capítulo, a qual expressa por demais a nossa inquietação. Durante muito tempo, o pensamento crítico-literário brasileiro, mergulhado no colonialismo cultural europeu, universalizando juízos estéticos travestidos de etnocentrismo, não ofereceu reconhecimento do outro em suas potencialidades literárias. No momento histórico em que a propriedade escrava era o centro do debate político público e privado, surge um negro com uma produção que procura satirizar esta realidade objetiva. Luiz Gama usava a linguagem do riso como uma contra-narrativa que procurava desmascarar a “corrupção administrativa e judiciária 438 ” através da “verdade revelada por meio do riso 439 ”. A força criadora do riso, nos assevera Mikhail Bakhtin,

aqui a pretensão de apreender ou de descrever a experiência histórica dos negros”. Esta posição está no seu livro: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade – uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.42. 434 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988. p.59. 435 RISÉRIO, Antonio. Textos e tribos – poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1993. p. 20. 436 Ver DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira – um conceito em construção. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº 31, Brasília, janeiro-junho, 2008, pp. 11-23. 437 Encontra-se no prefácio do contundente livro: FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 16. 438 Luiz Gama, Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871. Arquivo Público do Estado de São Paulo. 439 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento – o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010. p.81. Analisando ritos, espetáculos, festas, obras cômicas orais ou escritas e outras manifestações da cultura popular, Bakhtin procura elaborar 156

[...] jamais poderia ser um instrumento de opressão e embrutecimento do povo. Ninguém conseguiu jamais torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu sempre uma arma de liberação nas mãos do povo 440 .

O riso tem um valor particular numa sociedade escravista, pois desorienta, contesta a autoridade senhorial. O riso em Luiz Gama aparece como sarcasmo, contra a falta de seriedade das leis abolicionistas. A crítica literária 441 compreendeu de forma muito limitada a estética da obra Trovas Burlescas de Getulino. Os críticos, em sua maioria, a consideraram uma obra de pouco valor 442 estético; esta consideração era mais preponderante que seu valor político. Gama subverte as expressões poéticas da cultura ocidental:

Poesia clássica Poesia negra Musas gregas e romanas musa da Guiné Cor clara cor de azeviche Mármore branco granito denegrido Lira/flauta/trompa cabaço/ d’uruncungo/marimba Ciência européia ciência da candimba Forma épica/ objeto épico forma épica/objeto satírico 443

O valor estético não é o único determinante da sacralização de uma obra, nos adverte Zilá Bernd. São as instâncias legitimadoras que decidem o futuro de uma obra, elas possuem uma influência decisiva na admissão ou na sua exclusão na história literária 444 . A sua hipótese é de que “quanto maior o potencial revolucionário e desagregador da ordem vigente que uma obra uma visão do mundo marcada pelo riso, subversão dos valores oficiais, caráter renovador e contestador da ordem vigente. Com base nesse universo, ele faz uma leitura de Rabelais original e esclarecedora. Ainda, estabelece parâmetros para pensarmos a produção literária em seu conjunto. 440 Idem, p.81. 441 Analisando o lugar da poesia de Luiz Gama, que ora ocupa a posição de cânone, ora é destratado, é possível vê-lo no panteão dos literatos na História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero e, ao mesmo tempo, vê-lo como “mero arremedo formal das estrofes, sobre costumes e defeitos da época,” em Antologia dos Poetas Brasileiros, de . Entre os literatos contemporâneos, destaca-se , ao minimizar a importância literária de Gama em História da Literatura Brasileira, rendendo-lhe apenas uma nota de rodapé para toda a sua produção. Enfim, as querelas em torno da estética literária de Luiz Gama fazem parte da construção moderna do seu perfil intelectual, reservando apenas sua relevância política, por seu “ativismo radical”. 442 J. Romão da Silva, ao analisar Trovas Burlescas de Getulino, afirma que a poesia de Gama “não era expressão literária da melhor qualidade”. Enquanto Manuel Bandeira considerava-a como “mero aremedo formal das estrofes, sobre costumes e defeitos da época,” em Antologia dos Poetas Brasileiros. 443 OLIVEIRA, Sílvio Roberto dos Santos. Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. 2001. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2004. p.214. 444 BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.40. 157

contiver, tanto maior será o risco de que uma das instâncias 445 ”, “venha obstacularizar seu percurso e sua conservação 446 ”. Sendo assim, apoiando-se nas reflexões da Zilá, o espaço consagrado a Luiz Gama não está vinculado somente ao valor estético, mas à capacidade que suas produções tiveram no seu momento histórico de defrontar-se com sua própria realidade racial, “de revelar as caras escondidas atrás das máscaras 447 ”. No prefácio à 3ª edição de Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (1904), Coelho Neto 448 escreveu que o verso de Luiz Gama

[...] se não prima pela beleza de forma, se não cintila em lavores de arte, se a rima, por vezes, é paupérrima, é livre como a flecha, silva, vai direto ao alvo, crava-se e fica vibrando.

Gama tinha pretensões para além da literatura, fez uso político da mesma como atividade estética mediadora, pois tinha em vista os conflitos das relações interétnicas, entre outros assuntos. Não devemos esquecer que o público leitor de sua obra era preponderantemente branco, e Gama tinha profunda consciência desse fato. O próprio título da obra Trovas Burlescas remete à sua intenção de comicidade e seus poemas indicam suas pretensões em não se tornar um cânone. Nesse sentido, procuramos ressaltar, nas análises dos poemas selecionados, a sátira racial, a força com que procurava expressar os dilemas da raça, a poesia como processo discursivo, em suas implicações políticas e, principalmente, desvelando os códigos raciais subjacentes ao projeto de nação e da modernidade que por ora está sendo construído. Luiz Gama não tinha dúvidas do peso atribuído a todos aqueles de epiderme escura nas estruturas econômicas:

[...] esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam; que esta cor convencional da escravidão, como supõem

445 Idem, p.41. 446 Ibidem. 447 Ibidem, p. 45. 448 Coelho Neto nasceu no Rio de Janeiro, em 1864, foi romancista, crítico, teatrólogo e membro da Academia Brasileira de Letras. Quando prefaciou Trovas Burlescas, já possuía uma notoriedade literária e política. Participou da campanha abolicionista ao lado do seu amigo José do Patrocínio e, em 1899, escreveu o romance A Conquista. Foi deputado federal pelo Maranhão em 1907 e em 1928 foi eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros. Coelho Neto foi uma dessas instâncias legitimadoras, cujo comentário crítico pode ser dividido entre a estética (ausência de beleza na forma) e o político (vai direto ao alvo). 158

os especuladores, à semelhança da terra, ao través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade 449 .

Para Sérgio Adorno 450 , a literatura ocupou espaço de destaque na estetização do pensamento político. A produção literária foi um instrumento para promover o processo “civilizatório” em direção a uma ruptura com os resquícios do período colonial. Até a publicação das Primeiras Trovas Burlescas, o indianismo era “moda, social e intelectualmente entre as elites 451 ” e, na mesma década em que Gonçalves Dias vulgariza a poesia indianista, Luiz Gama satiriza a ideia de raça e dá proeminência valorativa, estética e política a cultura africana. Num certo sentido, sua poesia pretendia promover uma revolução simbólica, ao menos em sua intenção, ao voltar-se para as bases das estruturas mentais da sociedade e ao apresentar poemas com proposições reflexivas nos modos de ver e pensar o outro racialmente, num momento em que há um “privilégio da ideologia indianista como formadora da identidade brasileira, em detrimento da aceitação de uma contribuição negra 452 ”. Luiz Gama se apresenta como um intelectual com a voz da imaginação 453 , fez apelo ao devir, à memória, à tradição, à saudade, ao sentir- se desterritorializado. Conviveu com a experiência do “exílio 454 ” e da “perda 455 ”, fazendo-o sentir “estrangeiro” e “familiar 456 ” no espaço que habita. Mais do que poemas introspectivos, Gama apresenta, em suas produções, os efeitos físicos e psicológicos sobre aqueles que vivenciaram o horror da escravidão, cuja identidade foi forjada no mundo moderno ocidental. Na recorrência a Luiz Vaz de Camões, em sua monumental obra Os Lusíadas, notamos que aí está sua principal fonte de inspiração para o estilo épico e uso de imagens heróicas.

449 Luiz Gama. Gazeta do povo, 01 de dezembro de 1880. Arquivo Público do Estado de São Paulo. 450 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder – o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 157-234. 451 SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco - raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976. p.22. 452 MARTINS, Heitor. Luiz Gama e consciência negra na literatura brasileira. Afro-Ásia , Salvador, nº 17, p. 88, 1996. p.88. 453 TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 142. 454 HALL, STUART. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003. p. 393. 455 Idem. 456 Ibidem. 159

Sebastianismo e diaspóra, apesar de constituírem-se como eventos históricos díspares, apresentam aspectos em comum – no tocante a ideia de um passado que pode ser recuperado, a dor e o sofrimento a partir de um sentimento de perda.

Ó musa de Guiné, cor de azeviche Estátua de granito denegrido, Ante quem o Leão se põe rendido, Despido do furor de atroz braveza; Empresta-me o cabaço d´urucungo, Ensina-me a brandir tua marimba, Inspira-me a ciência da candimba, Às vias me conduz d´alta grandeza

Ressalta a beleza negra, a mulher negra, ao tempo que sua imagem era carregada de representações estereotipadas, tal atitude foi no mínimo desafiadora para a tradição literária.

Quando a brisa veloz, por entre anáguas Espaneja as cambraias escondidas, Deixando ver aos olhos cobiçosos As lisas pernas de ébano luzidas

No poema Quem sou Eu?, Luiz Gama apresenta uma contundente crítica política ao sistema de identificação 457 e diferenciação social e, em tom satírico, debocha de todas as formas e sistemas de hierarquizações, concluindo que tudo está “misturado”. Contra a imagem de uma superioridade étnica, construída pelo discurso colonial, em que os brancos sentiam necessidade constante em manter, para preservar seus privilégios étnicos, Gama responde que as identidades são híbridas: “em todos há meus parentes”. Podemos notar, também no poema Quem sou Eu?, suas primeiras inquietações quanto ao sistema judiciário, que anos mais tarde marcará sua carreira jornalística, política e de rábula, assim como suas atuações nos

457 O naturalista sueco Carl Lineu, em seu livro O sistema da natureza, apresentou, no século XVIII, depois de inúmeras viagens (América do norte, do sul, China), as características do homo sapiens: a) Europeu: claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas. Governado por leis. b) Africano: negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governado pelo capricho. In: PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru (SP): EDUSC, 1999. p. 68. 160

tribunais defendendo os escravizados envolvidos em querelas de alforria. Do ponto de vista literário, Zilá Bernd afirma que o poema

[...] vai no contrafluxo das escolas literárias do século XIX por revogar, no campo poético, o sistema de hierarquia social que exigia respeito e reverência à nobreza e a outros representantes da classe dominante 458 .

A autora apoia-se nas reflexões de Bakthin, em seu livro Problemas da poética de Dostoiévski, quando diz que: “Elimina-se toda distância entre os homens e entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre os homens 459 ”.

Não tolero magistrado, Que do brio descuidado, Vende a lei, trai a justiça - Faz a todos injustiça – Com rigor deprime o pobre, Presta abrigo ao rico, ao nobre E só acha horrendo crime No mendigo, que deprime.

Luiz Gama apresenta, no poema Quem sou eu?, uma epígrafe de Augusto Emílio Zaluar, que partilha da mesma pergunta interrogativa:

Quem sou eu? Que importa quem? Sou um trovador proscrito, Que trago na fronte escrito Esta palavra – Ninguém!

Para Luiz Gama, a miscigenação era algo tão complexo que o simples termo negro, branco ou mestiço parece não resolver ou dar conta dessa complexidade, daí a insurgente indagação, Quem sou eu?, ao mesmo tempo em que responde às ofensas ridicularizadoras dos escravocratas chamando- os 460 de bode. O episódio que teria causado a ofensa nunca foi relato por Luiz Gama ou ao menos não encontramos evidências mais precisas. O que se tem são relatos transmitidos a partir a publicação de Sud Menucci, resultado de memórias de “pessoas que se recordam do grande negro, ou que conviveram

458 BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 53. 459 Idem. 460 MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p.93 e 94. 161

com outras que o conheceram”. Verídico ou não, o fato é que Luiz Gama responde por meio de versos a essa prática social preconceituosa. Segundo esse autor, tudo aconteceu quando numa audiência em que Luiz Gama, como advogado, teve necessidade de ouvir o Brigadeiro Carneiro Leão, “homem que gostava de se referir com visível prazer a sua aristocrática ascendência, e que fazia sempre que calhava, e mesmo quando não calhava alusões ao seu brazão, o negro interrompeu o depoente para esclarecer um ponto, da seguinte forma 461 ”:

- Então, o primo afirma que viu... - Quem é o primo? – indagou o brigadeiro, estupefato com aquela falta de respeito. - O senhor, naturalmente, - insistiu Gama. - Mas, primo de quem? - Ora, meu, de certo. - Seu primo? – explodiu o fidalgo num assomo de cólera. Mas baseado em que parentesco? Homessa! – concluiu risonho o advogado. – Eu sempre ouvi dizer que bode e carneiro são parentes. E parentes chegados 462 ”.

Gama posiciona-se criticamente frente a esta representação estereotipada dos negros. Quem sou eu? ou a Bodarrada conferiu a Luiz Gama o “direito de ingressar a galeria dos vates satíricos do Brasil 463 ”, observa um dos mais importantes críticos literários brasileiro, Silvio Romero. Este é um dos primeiros a lançar uma tradição 464 crítica a respeito de Gama. As abordagens satíricas às misturas raciais nas letras tiveram seu maior expoente no período colonial com Gregório de Matos, nos Milagres do Brasil, o Boca do Inferno, expressa sua particular “ojeriza a negros e mulatos, aos quais por via de regra chama de cães 465 ”.

[...] ser mulato, ter sangue de carrapato, seu estoraque do Congo cheirar-lhe o corpo a mondongo, é cifra de perfeição,

461 Idem. 462 Ibidem. 463 Citado por SILVA, J. Romão da. Luis Gama e suas poesias satíricas. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1954, p.96. 464 Posição de Silvio Roberto. OLIVEIRA, Sílvio Roberto dos Santos. Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. 2001. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2004. p. 181. 465 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998. p. 103. 162

milagres do Brasil são 466 .

O racismo de Gregório corresponde aos estatutos de limpeza ou pureza de sangue 467 que vigoravam em Portugal e nas colônias desde o século XVI.

Pois eu por limpo e por branco Fui na Bahia mofino ...... Não sei para que é nascer Neste Brasil empestado Um homem branco e honrado Sem outra raça 468 .

Gregório foi uma inspiração para Luiz Gama. No poema Retrato de um sabichão, Gama faz uso de um poema de Gregório em sua epígrafe.

Vá de retrato Por consoantes, Que eu sou Timantes De um nariz de Tucano cor de Pato.

O racismo vivenciado por Luiz Gama é um residual da política das “raças infectas”, agora concentrado nos critérios biologizantes da raciologia moderna. Enquanto para Gregório a “pureza” negava a miscigenação, para Gama, era a miscigenação que negava a ideia de superioridade racial.

Sabemos que até mesmo nos dias atuais a questão ainda permanece emblemática, como observa o músico Caetano Veloso: “penso que a confusão racial brasileira revela uma miscigenação profunda 469 ”. É justamente dessa confusão que surge a necessidade de pensar o hibridismo 470 . Para Homi Bhabha, as sociedades que passaram pela experiência histórica da colonização viveram plenamente sob o signo da ironia. A colonização, ao promover num mesmo espaço uma justaposição de um “conjunto de valores

466 Idem, p.104. 467 Ver verbete Racismo analisado por Ronaldo Vainfas In: Dicionário do Brasil Colonial. São Paulo: Editora Objetiva, 2000, pp.500-501. 468 Ibidem, p.103. 469 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 500. 470 SOUZA, Lynn Mario T. Menezes. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: ABDALA, Benjamim Jr. (org.). Margens da Cultura – mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Editora Boitempo, 2004. p.114. 163

contraditórios e conflitantes 471 ”, onde “cada conjunto questionava e relativizava o outro 472 ”, instaurava no “nativo”, uma consciência aguda da ironia.

Se negro sou, ou sou bode Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda casta Pois que a espécie é muito vasta... Há cinzentos, há rajados, Baios, pambas, malhadas, Bodes negros, bodes brancos E, sejamos todos francos, Uns plebeus e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Bodes sábios importantes E também alguns tratantes... Aqui, nesta boa terra, Marram todos, tudo berra; Nobres, condes e duquesas, Ricas damas e marquesas Deputados, senadores, Gentis-homens, vereadores, Belas damas emproadas De nobreza empantufadas; Repinpados principotes Orgulhosos fidalgotes Frades, bispos, cardeiais, Fanfarrões imperiais, Gentes pobres, nobres gentes Em todos há meus parentes.

Por mais estratificada que fosse a sociedade paulistana, ninguém escapava da bodarrada . Esse poema quer fazer demonstrar que os papéis e as relações sociais entre os indivíduos não poderiam ser sustentados pela superioridade/inferioridade racial, uma vez que a cor se apresenta como um significante vazio. Há um chamamento social para se repensar o lugar do preconceito de cor numa sociedade miscigenada. Há tempos, no século XIX, que os viajantes viam o Brasil como um grande “laboratório racial”. Louis Agassiz, viajante suíço que esteve no Brasil em 1865, por exemplo, era bastante taxativo quanto à experiência histórica da mistura de raças. Assim descreve em seus relatos de viagem 473 :

471 Idem. 472 Ibdem. 473 Foi na era moderna que os europeus se posicionaram como centro do mundo, esta é uma posição da pesquisadora Mary Louise Pratt, em Os olhos do império – relatos de viagem e transculturação. Nesse livro, a autora interpreta esta posição europeia, por meio dos relatos de viagem, analisando criticamente as narrativas para além das descrições geográficas e 164

[...] que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por mal-entendida filantropia a botar abaixo todas as barreiras que a separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia e mental 474 .

O medo da miscigenação está evidenciado na própria expressão de uso cotidiano no século XIX: bode. O termo tem fortes referências a uma imagem emblemática do imaginário social, a figura do diabo475 . A mescla das raças teria gerado uma raça “diabólica”. Aqui, a comicidade debocha dos argumentos científicos monogenistas 476 dominantes no século XIX, que acreditavam que a humanidade era una e que o entrelaçamento entre diferentes grupos humanos poderia degenerá-los, argumento que contribuía para as preocupações atemorizantes da intelectualidade branca. Luiz Gama lança um olhar político 477 sobre a miscigenação, mais diretamente no modo como a sociedade representava a alteridade, posicionando-se com autonomia crítica, como protagonista e sujeito histórico. Neste aspecto, faz sentido a posição do crítico literário Silvio Romero, quando afirma que a cor da pele, para Luiz Gama, “nunca foi um embaraço à generosidade de seu coração e à atividade de sua inteligência”.

Nos domínios de Plutão, Guarda um bode o Alcorão; Nos lundus e nas modinhas São cantadas as bodinhas: Pois se todos têm rabicho , Para que tanto capricho? Haja paz, haja alegria, Folgue e brinque a bodaria; Cesse, pois, a matinada,

botânicas. Foram nas zonas de contato que os europeus criaram a representação de si mesmo e do mundo. PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru (SP): EDUSC, 1999. 474 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001. p. 25. 475 Para alguns pesquisadores, a figura do Diabo estaria presente desde a fundação do Brasil. Ronaldo Vainfas, especialista em história colonial, explica que foi o Frei Vicente do Salvador o primeiro a interpretar o surgimento da palavra. “A explicação de que a Terra da Vera Cruz e Santa Cruz ganhou o nome de Brasil por causa do pau de cor abrasada e vermelha e isto por que o Diabo, que perdera o controle sobre a velha cristandade européia, acharia refúgio na América”. VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Juliana Beatriz. Brasil de todos os santos. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2002. p. 09. 476 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 48.

165

Porque tudo é bodarrada !

Nota-se um elogio irônico ao “inferno” da miscigenação, saudado tanto nos espaços de divertimento afro-brasileiro (lundus) quanto nos espaços culturais de origem europeia, enfim, na cultura popular. Diabo, bode, cabrião, eram expressões correntes nas produções de Luiz Gama. O seu primeiro jornal ilustrado tinha o nome de Diabo-Coxo 478 . O Cabrião 479 também foi um jornal com o qual contribuiu imensamente na criação e produção. A figura do diabo aparece em seus textos como “agente moralizador, crítico da sociedade e dos seus erros” 480 . O diabo como personagem, nas produções de Luiz Gama, tem a função de “desmascarar e castigar a esses entes criminosos ou ridículos, estúpidos ou orgulhosos”. É nesse tom que o personagem Diabo-Coxo cumprimenta os seus leitores na primeira página do jornal.

478 Para Antonio Luiz Cagnin, a inspiração para esse nome veio do romance Le Diable Boiteux que obteve um grande sucesso no século XVIII. O livro conta a história de Asmodeu, o coxo, pobre diabo preso numa garrafa. Ao ser libertado por um estudante, concedeu ao jovem o poder de ver, através dos tetos e das paredes das casas, o que se passava com as pessoas no seu interior. Prefácio da versão livro do jornal Diabo-coxo. In: Diabo Coxo, São Paulo, 1864- 1865. Redigido por Luiz Gama; ilustrado por Angelo Agostini. Ed. Fac-similar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 14. 479 Para Délio Freire dos Santos, esse nome deve sua origem à “influência dos romances- folhetins franceses, tanto os de Sue, como os de Frederico Soulié e os de Dumas-Maquet, criando personagens universalmente conhecidos como D’Artagnan, foi mundo grande entre o nosso povo. Mas, o principal personagem do romance-folhetim era o famigerado ‘Cabrion’”. CABRIÃO – semanário humorístico editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antonio Manuel dos Reis: 1866 -1867. Ed. Fac-similar. Introdução de Décio Freire dos Santos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 1882. p. 24-25. 480 GAMA, Luiz. Diabo Coxo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p.14. 166

Figura 40 - Imagem ilustrativa do jornal Diabo-Coxo.

Em Luiz Gama, “os males da escravidão 481 ”, ou “fardo do homem branco 482 ”, precisava ser transposto do mero status de herança colonial para a condição de encaminhamentos políticos pragmáticos voltados aos “que com seu trabalho, com sua jactura, com sua própria miséria constituíram a grandeza desta nação 483 ”. Gama tinha plena consciência da presença física e cultural dos negros como resultado de uma longa experiência histórica de poder e exploração. Diante desta situação, o Estado-nação brasileiro, em seu processo de construção e afirmação, que por ora Luiz Gama participou ativamente, não poderia “resultar” numa cultura monolítica e unitária que rejeitasse os “contatos” raciais com sua política de destratamento e uniformização das

481 Expressão por demais utilizada por NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. São Paulo: Publifolha, 2000. (Coleção grandes nomes do pensamento brasileiro). 482 Tomo de empréstimo parte do título do livro da pesquisadora DIAS, Maria Odila Leite da Silva. O fardo do homem branco: Southey, o Historiador do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. 483 Luiz Gama. Carta a Ferreira de Menezes. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 167

culturas. Nesse sentido, endossamos a posição dos críticos pós-coloniais quando reivindicam uma unidade de análise que transcenda as “abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas 484 ” para se entender as formações e transformações sócio-culturais na era moderna, buscando superar os estudos centrados nas narrativas de homogeneidade culturais. Para o renomado crítico literário Antonio Cândido, em seu texto seminal Literatura Negra como forma de resistência, Luiz Gama foi um dos poucos intelectuais do século XIX que lançou ataques diretos à “definição de brancura 485 ”. Em seu mais famoso texto, a autobiografia dirigida ao seu amigo jornalista Lúcio de Mendonça, em 1880, Luiz Gama põe em dúvida as certezas da pureza racial, como já salientamos. Dizia: “Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas 486 ”. Procurava romper com as proposições sobre raça consideradas “verdadeiras”, apresentando posições críticas que desconstruíam o seu arcabouço discursivo. Esse intelectual diaspórico teve a coragem de dizer a verdade ao saber constituído, fazendo uso dos principais instrumentos de comunicação do século XIX. Na economia política da verdade, fazendo-se uso do conceito do Michel Foucault, a verdade racial era “centrada na forma do discurso científico 487 ” e nas “instituições que o produzem 488 ”. Não é o objetivo dessa tese tecer proposituras que conduzam a posições ideológicas que remetam a Luiz Gama a “fundação” do movimento pela negritude, nos moldes que conhecemos na contemporaneidade. Ainda que ressaltemos que, em 1868, quando Luiz Gama foi colaborador do jornal O Ipiranga, assinava sob o pseudônimo de “Afro 489 ”, o termo é uma referência

484 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p.57. 485 Texto apresentado em 21 de maio de 1995, em São Paulo. In: FERREIRA, Lígia F. Primeiras trovas burlescas & outros poemas – Luiz Gama. São Paulo (SP): Editora Martins Fontes, 2000, p. LXVIII. 486 Luiz Gama. Carta a Lúcio de Mendonça. In: MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, pp. 19-26. 487 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p.13. 488 Idem. 489 “Neste ano de 1868, conheci Luiz Gama. Vi-o se bem me lembra, a primeira vez, na tipografia do diário liberal O Ypiranga, de propriedade e redação do meu irmão Salvador de Mendonça e do Dr. José Maria de Andrade. Ali era eu revisor de provas e empregava os ócios do estudo em aprender a arte tipográfica: também Luiz Gama era aprendiz de compositor, 168

direta à africanidade. Em 1880, alguns dos seus amigos abolicionistas o reconheciam como “mulato”: “o ilustre advogado, mulato de São Paulo... 490 ” Para Silvio Roberto, em sua tese de doutoramento em estudos da linguagem - Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama -, Luiz Gama não elaborou um projeto que forjasse a negritude 491 , interpretação que também é corroborada por Lígia Fonseca Ferreira em seu artigo “Negritude”, “Negridade”, “Negrícia”: enquete sémantique et historique sur trois concepts-voyageur. Por mais que a positivação da ideia de raça conduza à subalternização do outro no Brasil, não há uma continuidade histórica das práticas discriminatórias. A conjuntura vivida por Luiz Gama apresentava uma configuração e modelo cultural próprio. Para Stuart Hall, ainda que existam mecanismos gerais que se associam às práticas do racismo,

[...] em cada sociedade, o racismo tem uma história específica que se apresenta de forma específica, particular e única, e essas especificidades influenciam sua dinâmica e tem efeitos reais, que diferem entre uma sociedade e outra 492 .

Ainda que Luiz Gama não forjasse um projeto de negritude, não podemos deixar de perceber sua constante luta em “defesa dos valores africanos e da diáspora negra 493 ”, que, de certa forma, retrucou de frente com as definições científicas do pensamento moderno e do cotidiano de um ser negro com todos os seus sectarismos e absolutismos raciais. “Foi, antes de tudo, um apóstolo a serviço de uma causa 494 ”, afirma Júlio Romão da Silva, responsável pela quinta publicação de Trovas Burlescas de Getulino.

praticamente do foro, e colaborador da folha, onde assinava com o pseudônimo Afro”. Lúcio de Mendonça relatando como conheceu Luiz Gama. São Gonçalo, Minas, 21 de agosto de 1880. Gazeta da Tarde, 490 Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 26 de outubro de 2013. 491 OLIVEIRA, Sílvio Roberto dos Santos. Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. 2001. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2004. p. 215. 492 HALL, Stuart. Raça, Cultura e Comunicações – olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. Projeto História: revista do Programa de estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: EDUC, revista nº 31, p. 18, 2005. 493 GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: Ed. UFJF, 2005. p. 148. 494 SILVA, J. Romão da. Luis Gama e suas poesias satíricas. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1954, p.70. 169

Analisando-o criticamente, foi o seu momento histórico que definiu sua insurgência por uma política negra. O que os movimentos posteriores de luta pela negritude fizeram, na verdade, foi uma construção narrativa e discursiva a partir de uma representação seletiva da memória social de Luiz Gama. Sendo que as razões que os levaram a construir essa memória de uma determinada maneira são mais condizentes ao seu contexto social do que qualquer outra possibilidade de um prenúncio profético de organizações políticas de luta por justiça e democracia racial. No poema Lá vai o verso , percebemos o quanto a diáspora africana alimentou o seu imaginário, a formação de si e de sua consciência do social. A poética, enfatiza o filósofo Édouard Glissant, “não é uma arte do sonho ou da ilusão, mas sim uma maneira de conceber-se a si mesmo, de conceber a relação consigo mesmo e com o outro e expressá-la. Toda poética constitui uma rede” 495 .

Alta noute, sentindo o meu bestunto Pejado, qual vulcão de flama ardente, Leve pluma empunhei, incontinenti O fio das ideias fui traçando. As ninfas invoquei para que vissem Do meu estro voraz o ardimento; E depois, revoando ao firmamento, Fossem do Vate o nome apregoado

Ó musa de Guiné, cor de azeviche Estátua de granito denegrido, Ante quem o Leão se põe rendido, Despido do furor de atroz braveza; Empresta-me o cabaço d´urucungo, Ensina-me a brandir tua marimba, Inspira-me a ciência da candimba, Às vias me conduz d´alta grandeza.

Quero a glória abater de antigos vates. Do tempo dos heróis armipotentes; Os homens, Camões – aurifulgentes, Decantando os Barões da minha Pátria! Quero gravar em lúcidas colunas Obscuro poder da parvoíce, E a fama levar da vil sandice Às longíquas regiões da velha Báctria! Quero que o mundo me encarando veja, Um retumbante Orfeu de carapinha Que a Lira desprezando, por mesquinha, Ao som decanta de Marimba augusta; E, qual outro Arion entre os Delfins,

495 Idem, p.159. 170

Os ávidos piratas embaindo – As ferrenhas palhetas vai brandindo, Com estilo que preza a Líbia adusta.

Com sabença profunda irei cantando Altos feitos da gente luminosa, Que a trapaça movendo portentosa À mente assombra, e pasma à natureza! Espertos eleitores de encomenda, Deputados, Ministros, Senadores, Galfarros [,] Diplomatas – chuchadores, De quem reza a cartilha de esperteza.

Caducas Tartarugas – desfrutáveis, Velharrões tabaquentos – sem juízo, Irrisórios fidalgos – de improviso, Finórios traficantes – patriotas; Espertos maganões, de mão ligeira, Emproados juízes de trapaça, E outros que de honrados tem fumaça, Mas que são refinados agiotas. Nem eu próprio à festança escaparei; Com foros de Africano fidalgote, Montado num Barão com ar de zote – Ao rufo do tambor, e dos zabumbas, Ao som de mil aplausos retumbantes, Entre os netos da Ginga, meus parentes, Pulando de prazer e de contentes – Nas danças entrarei d’altas caiumbas.

O imaginário afro-diaspórico de Luiz Gama estrutura a sua construção simbólica de africanidade e suas relações com o Brasil. Édouard Glissant acredita numa poética que redimensione as relações sociais, uma literatura que crie um novo imaginário. O pensamento moderno 496 criou uma concepção da identidade com raiz única que exclui o outro. Em sua poética, Luiz Gama explora uma identidade, não de raiz única, mas que vai de encontro a outras raízes. No poema Minha Mãe, as condições subjetivas da diáspora e as condições objetivas da escravidão se entrelaçam para dar sentido à relação íntima com sua progenitora. A partir de suas relações fragmentadas e apartadas pela escravidão, reconstrói, por meio da memória, a condição de sua mãe numa África imaginada e imaginária e sua realidade no Brasil. “De rainha na Líbia a escrava no Brasil”. Expressa, também, as impossibilidades de viver conforme o modo de vida africano de outrora à escravidão devido à sua cor.

496 Pesquisadores dos estudos culturais, a exemplo do Edward Said em Cultura e Imperialismo, afirmam que a literatura ocidental, os cânones ocidentais, precedeu e permitiu, através de sua estética, a exploração e a submissão do mundo. 171

“Da liberdade eram mito / Negra a Cor da escravidão”. Observava que sua mãe dedicava-se a rezar, “uma prece infinita”, dado as “nossas crenças perdidas” nesta “terra do cativeiro”. Não só neste poema como em sua carta-memória, Gama tem adjetivado sua mãe como geniosa, suave, insofrida, vingativa e dotada de atividade. Esta última qualidade teria sido em função de sua provável participação numa insurreição escrava na Bahia. Percebe-se claramente que o intelectual diaspórico deixou-se influenciar por essas construções de forma que a sua personalidade apresenta características similares. Essa relação emocional criada em suas narrativas alimentava a formação de sua identidade política.

Minha Mãe Era mui bela e formosa, Era a mais linda pretinha, Da adusta Líbia rainha, E no Brasil pobre escrava! Oh, que saudades que eu tenho Dos seus mimosos carinhos, Quando c’os tenros filhinhos Ela sorrindo brincava.

Éramos dois – seus cuidados, Sonhos de sua alma bela; Ela a palmeira singela, Na fulva areia nascida. Nos roliços braços de ébano, De amor o fruto apertava, E a nossa boca juntava Um beijo seu, que era vida.

Quando o prazer entreabria Seus lábios de roixo lírio, Ela fingia o martírio Nas trevas da solidão. Os alvos dentes nevados Da liberdade eram mito, No rosto a dor do aflito, Negra a cor da escravidão.

Os olhos negros, altivos, Dois astros eram luzentes; Eram estrelas cadentes Por corpo humano sustidas. Foram espelhos brilhantes Da nossa vida primeira, Foram a luz derradeira Das nossas crenças perdidas.

Tão terna como a saudade No frio chão das campinas, Tão meiga como as boninas 172

Aos raios do sol de Abril. No gesto grave e sombria, Como a vaga que flutua, Plácida a mente – era a Lua Refletindo em Céus de anil.

Suave o gênio, qual rosa Ao despontar da alvorada, Quando treme enamorada Ao sopro d’aura fagueira. Brandinha a voz sonorosa, Sentida como a Rolinha, Gemendo triste sozinha, Ao som da aragem faceira.

Escuro e ledo o semblante, De encantos sorria a fronte, - Baça nuvem no horizonte Das ondas surgindo à flor; Tinha o coração de santa, Era seu peito de Arcanjo, Mais pura n’alma que um Anjo, Aos pés de seu Criador.

Se junto à Cruz penitente, A Deus orava contrita, Tinha uma prece infinita Como o dobrar do sineiro; As lágrimas que brotavam Eram pérolas sentidas, Dos lindos olhos vertidas Na terra do cativeiro.

Luiz Gama recupera aspectos da cultura afro-brasileira por meio de memórias, rastros, resíduos, presentes na linguagem, no cotidiano. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino apresenta um léxico vocabular híbrido, no qual estão presentes palavras do cotidiano popular e fortes referências à África: marimba, urucungo, candimba, azeviche, musa da Guiné. Faz um jogo entre as línguas, demonstrando a hibridez da formação linguística brasileira. Luiz Gama pensou e escreveu entre as línguas, este ato é conceituado por Walter Mignolo como linguajamento, uma língua que não se resume a regras sintáticas, semânticas e fonéticas, mas que “são estratégias para orientar e manipular os domínios sociais de interação 497 ”; em resumo, o linguajamento é uma prática cultural e luta pelo poder 498 no que tange à hierarquização das línguas.

497 MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais, Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 309. 498 Idem, p. 310. 173

Pode-se perceber, por meio dos versos, o que esse intelectual diaspórico entendia como identidade, seu processo e principalmente sua condição relacional e como os sujeitos se identificavam (autoimagem).

Se os nobres d’terra, empanturrados, Em Guiné tem parentes enterrados, E, cedendo a prosápia, ou duros vícios, Esquecem os negrinhos seus patrícios; Se mulatos de cor esbranquiçada, Já se julgam de origem refinada, E, curvos à mania que os domina, Desprezam a vovó que é preta-mina: Não te espantes, ó leitor da novidade, Pois que tudo no Brasil é raridade 499 ”.

Luiz Gama apresentava uma imagem poética de uma história social híbrida que ameaçava a autoridade cultural ao questionar a ideia de uma identidade pura ou da subalternização da participação negra. O questionamento sobre as identidades racializadas sob a supremacia racial branca procurava perturbar a imagem construída da nação, cuja participação negra era apenas exaltada em seus aspectos funcionais e econômicos. O abolicionista Joaquim Nabuco era partidário desse tipo de interpretação, quando afirmava que o negro foi o “principal instrumento da ocupação e manutenção do nosso território”. O que, a cabo, os poemas com viés racial apresentam são as problemáticas da percepção subjetiva de pertencimento e da cultura. A diáspora como categoria de análise permite-nos desconstruir a imagem da nação uniforme e de pertencimento enraizado. A diáspora apresenta o complexo entrelaçamento de povos e culturas, “as metamorfoses da identidade individual que desafiam a pureza nas ‘zonas de contato’500 ”. Afirmamos que a sátira racial foi uma prática poética transgressora, tendo em vista o lugar de aparecimento desta produção. Uma sociedade letrada cujo discurso racial, quer seja político ou literário, era altamente controlado, dado os seus “poderes e perigos 501 ”, visando “dominar seus

499 MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p. 97. 500 GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. – São Paulo: AnnaBlume, 2007. p. 145. 501 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Editora Loyola, 2010. p. 08. 174

acontecimentos aleatórios, esquivar sua pesada e temível materialidade 502 ”, haja vista o temor da miscigenação em seus aspectos civilizatórios e revolucionários.

3.1 Vivendo as antinomias da modernidade, Renan, Civilização, Progresso e Mestiçagem

Este trabalho apresenta um conjunto de contra-narrativas de Luiz Gama, metodologicamente selecionadas, contrárias ao projeto de modernidade. As contradições vividas por um sujeito que vivenciou a experiência da diáspora, que a todo o momento sentia-se num “entre-lugar”, conforme suas próprias palavras, “diante de uma população ilustrada como é seguramente a desta moderna Atenas brasileira”. Viveu em um contexto histórico-cultural em que a idéia de raça constituía-se como um princípio ativo, dinâmico, que constituía a realidade social 503 . Essa “população ilustrada” a que Gama se refere via nos estudos clássicos um padrão de referência superior e universal. Os sujeitos diaspóricos, ainda que compartilhem com os conhecimentos da ilustração, questionavam de certa forma o seu “extremo eurocentrismo 504 ” e o seu alegado universalismo 505 ”. Do ponto de vista ético, esses questionamentos aparecem, principalmente, nas representações europeias do outro (do estrangeiro) ao negar a sua condição humana. Luiz Gama admirava Renan, aquele que pensava que a raça branca era “o povo destinado a se tornar senhor do mundo 506 ”. Mas, nota-se, em sua produção cultural, que esse intelectual diaspórico fez uma leitura altamente seletiva de forma a não reproduzir seus postulados etnocêntricos quanto às diferenças raciais. Talvez tenha se dedicado a uma leitura com mais entusiasmo, dada a sua propagação e, principalmente, aos aspectos religiosos

502 Idem. 503 GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. – São Paulo: AnnaBlume, 2007. p. 81. 504 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 92. 505 Idem. 506 TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros – a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1993, vol. 2. p. 101. 175

do que com espírito crítico, ou simplesmente ignorou o Renan teórico 507 . Sobre as misturas raciais, Renan era enfático: “pondo de lado as raças absolutamente inferiores, cuja mistura com as grandes raças apenas envenena a espécie humana”. Hierarquizou os grupos humanos a partir das religiões:

O mundo inteiro excetuando-se a Índia, a China, o Japão e os povos totalmente selvagens, adotou as religiões semíticas. O mundo civilizado conta apenas com os judeus, os cristãos e os muçulmanos.

Tendo uma grande aceitação das reflexões francesas sobre a diversidade humana, Renan, que foi uma das principais referências para a intelectualidade oitocentista, tinha uma grande recepção no Brasil. Para Thomas E. Skidmore, os temas positivismo, evolucionismo e materialismo eram estudados intensivamente e, “lia-se, com ardor intelectual508 ”, Comte, Darwin, Haeckel, Taine e Renan. Em relação à modernização 509 social e econômica, Renan era um dos principais pensadores que inspirava na construção de projetos para uma política científica no Império, com sua obra La Réforme intellectuelle et moral. Para Edward Said, em Cultura e Imperialismo 510 , Renan, com suas ideias positivistas, desenvolveu e acentuou posições essencialistas na cultura europeia, proclamando que os europeus deviam dominar os não europeus. No contexto histórico-cultural de Luiz Gama, o imaginário da modernidade tinha em seu bojo algumas noções e dimensões complexas de progresso e de uma história universal 511 . Uma visão universal da história associada à ideia de progresso a partir da qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas. Outro ponto nevrálgico na concepção de modernidade era a “necessária

507 FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. São Paulo: Revista de Estudos Avançados , 21 (nº 60), 2007, p. 285. 508 SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco - Raça e Nacionalidade no pensamento brasileiro . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 26. 509 ALONSO, Angela. Apropriação de idéias no Segundo Reinado. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila (Orgs). O Brasil Imperial , vol. III, 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 102. 510 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 173. 511 LANDER, Edgardo. Ciências Sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: A Colonialidade do Saber - eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005. p. 33. 176

superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz (ciência) em relação a todos os outros conhecimentos 512 ”. De um modo geral, a modernidade, neste ambiente histórico, está associada à Ilustração e ao desenvolvimento material. Para uma melhor compreensão, compartilho da classificação analítica de Edgardo Lander, em Saberes coloniais e eurocêntricos.

Em primeiro lugar está a suposição da existência de um metarrelato universal que leva a todas as culturas e a todos os povos do primitivo e tradicional até o moderno. A sociedade industrial liberal é a expressão mais avançada desse processo histórico, e por essa razão define o modelo que define a sociedade moderna.

Em segundo lugar as formas do conhecimento desenvolvidas para a compreensão dessa sociedade se converteram nas únicas formas válidas, objetivas e universais de conhecimento 513 .

Luiz Gama, como um ser racializado e objeto de racializações, tinha que confrontar em sua prática intelectual esses dois conjuntos de valores heterogêneos, o de uma herança diaspórica recebida com o conhecimento ilustrado hegemônico. Para dar prosseguimento sistemático e centralizado à reconstrução histórica do país, a cidade letrada criou mais uma instituição, esta de importância capital para tal projeto, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “O Brasil independente, portanto, precisava da história e dos historiadores para se oferecer um passado e abrir-se um futuro,” enfatiza o historiador José Carlos Reis 514 . Esse grupo social especializado, os pesquisadores do IHGB, teve a incumbência de pensar o futuro, uma vez que “é o futuro que nos impele de volta passado 515 ”. E o futuro da nação que atormentava a elite letrada era a sua composição étnico-racial. Esta foi uma das preocupações que motivou o IHGB a promover um estudo a respeito. O botânico e viajante alemão Karl Philipp Von Martius venceu o concurso de monografias promovido pelo IHGB sob a temática “Como se deve escrever a história do Brasil”, em 1845, apresentando pela

512 Ibidem, p. 34. 513 p. 34 514 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 26. 515 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 37. 177

primeira vez em nível teórico-ideológico as bases dos estudos das relações étnico-raciais. Martius, juntamente com o zoólogo Johann Baptist Von Spix, empreenderam uma viagem pelo Brasil que teve início em 1817 e terminou em 1820, sendo percorridos mais de 10 mil quilômetros 516 . A tese central dos estudos de Marcius era o “problema” das mesclas de raças, a miscigenação de grupos raciais díspares poderia provocar um rebaixamento da cultural nacional e convulsões sociais. Tal assertiva estava em consonância com os projetos de consolidação do estado nacional, que procurava, por meio da força, realizar os “ajustes” interetnicos ou “por um ponto final na dispersão da diáspora 517 ”. O Brasil, para Marcius, era um caso singular na história das relações raciais. Dentre os apontamentos formulados por Marcius estava a construção de uma história e de uma geografia regional, mas que possibilitasse o reconhecimento da nação em sua totalidade e indivisa. Uma questão remetia de forma específica às relações sociais em seus aspectos miscigenados:

Devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidos as condições para o aperfeiçoamento das três raças que nesse país são colocadas uma, ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga e que devem servir mutuamente de meio e fim 518 .

Marcius sugere, ainda, este preocupante questionamento social e raciológico: “O Brasil teria tido um desenvolvimento diferente sem a introdução dos negros escravos?”. Esta indagação foi respondida por vários intelectuais 519 em diferentes perspectivas, dentre eles Varnhagen, Joaquim Nabuco, Gilberto Freire. Nabuco sonhava um país mais branco 520 . Para ele, a escravidão foi um erro histórico, uma vergonha, tanto no sentido humanitário quanto da mescla de raça. Disse ainda que, se tivesse nascido no século XVI, ter-se-ia oposto à introdução de escravos 521 . Todos os demais pesquisadores que se debruçaram

516 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001. p. 21. 517 GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. – São Paulo: AnnaBlume, 2007. p.152. 518 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem Preto nem Branco, muito pelo contrário, cor e raça na intimidade. In: NOVAIS, Fernando A. (coord.). História da vida privada no Brasil – contrastes e intimidades contemporâneas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.178. 519 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 27. 520 Posição apresentada por SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco - raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976. p. 37. 521 Idem. 178

sobre os alicerces implantados por Von Martius elaboraram construções críticas discursivas alheias aos posicionamentos dos intelectuais negros. Os negros sequer foram reconhecidos como intelectuais na produção historiográfica oitocentista. O que se propõe, nesse trabalho de interpretação histórica, é problematizar a diferença cultural e discutir politicamente por que a capacidade cognitiva dos negros e negras foi obscurecida pelo pensamento moderno. Nisto, os

[...] historiadores, sociólogos e teóricos da política nem sempre perceberam o significado dessas contraculturas modernas, por vezes escondidas, formadas em experiências longas e brutais de subordinação racializada através da escravidão e do colonialismo 522 .

Von Martius especulava a partir das inquietações do IHGB, pois “os guardiões” da história oficial objetivavam construir uma história da nação, da qual “encontrava-se congregada no instituto boa parte da geração romântica – de Gonçalves Magalhães a Gonçalves Dias, que carregavam consigo esse senso de dever patriótico 523 ”. Gama, que trafegava na contramão da literatura oitocentista, apresentava vários contrapontos às previsões pessimistas de Von Martius, principalmente em seus poemas sátirico-racais. Ele não teve contato com os trabalhos de Von Martius e tampouco procurou responder às suas indagações, mas, diante da importância atribuída aos estudos do botânico alemão pela historiografia e da negativa da mesma em reconhecer uma intelectualidade negra que contrariava tais posicionamentos, nesta tese queremos trazer à tona as análises críticas e teóricas dos sujeitos que viveram direta ou indiretamente a diáspora africana. A pergunta, uma vez direcionada a Luiz Gama, não faria tanto sentido. De resto, responderia: Sim, o Brasil teria um desenvolvimento diferente! Mas a grande questão para Gama eram os efeitos da presença, do amálgama do processo das proximidades dos grupos e/ou indivíduos racialmente diferentes.

522 GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. – São Paulo: AnnaBlume, 2007, p.31. 523 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 102. 179

“Raça no Brasil jamais foi um termo neutro 524 ”. Além dessa afirmação, a antropóloga Lilia Schwarcz sustenta, ainda, que a realidade mestiça da população brasileira “parecia atestar a falência da nação 525 ”. O contexto de criação e publicação do livro Trovas Burlescas tem no ano de 1850 “o grande divisor de águas na vida política e social do império 526 ”. Mudanças macro-estruturais, tais como a lei de terras, fim do tráfico internacional, mudanças no dinamismo da economia em função das leis emancipacionistas, crescente urbanização, tiveram repercussões nas relações sociais, mais precisamente nas relações étnico-raciais. A história social tem registrado dezenas de estudos que apontam para as tensões sociais e individuais (entre desejos e aversões) do cotidiano das relações étnico-raciais, tanto em seus aspectos privados quanto públicos527 . O quadro 528 abaixo mostra a densidade demográfica do Brasil segundo a cor a partir de critérios estabelecidos pela autorrepresentação, ou seja, optou- se pela representação de cor com base nos usos e costumes do cotidiano. Nota-se uma grande diminuição da população escrava, dado a cessação do tráfico internacional e ao aumento de alforrias, entre outros fatores, ao longo do Brasil monárquico. É importante destacar para os nossos estudos que São

524 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem Preto nem Branco, muito pelo contrário, cor e raça na intimidade. In: NOVAIS, Fernando A. (coord.). História da vida privada no Brasil – contrastes e intimidades contemporâneas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.177. 525 Idem. 526 CHALHOUB, Sidney. População e Sociedade In: CARVALHO, José Murilo de. (coord.) A construção Nacional 1830-1889. Rio de Janeiro: Fundación Mapfre e Editora Ojetiva, 2012. p. 38. 527 Existem dezenas de trabalhos que abordam essas tensões resultantes da urbanização e comércio ambulante. Dias apresenta, entre outras tensões, os conflitos entre as mulheres negras vendedoras ambulantes e as autoridades municipais. Estas últimas temiam os contatos entre os (as) escravos (as) e os (as) escravos (as) forros (as), pois tais contatos poderiam gerar uma insegurança na cidade. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Escravas e Forras de tabuleiros. In: Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995. p. 155-169. 528 Os demógrafos atualmente apresentam severas críticas quanto aos critérios utilizados para a coleta do quesito cor no primeiro censo demográfico do Brasil. “Nele, a cor da população brasileira é estabelecida para todos os quesitos, como subtópico da condição social, estão dividida entre livres e escravos. Os termos escolhidos para classificar a população foram: branco, preto, pardo e caboclo. Pardos são compreendidos como resultantes da união de pretos e brancos; cablocos são os indígenas e seus descendentes. Considerando que os termos branco, preto e pardo são cores e caboclo possui raiz na origem racial, o Censo de 1872 parece ter usado um critério misto de fenótipos e descendência para a caracterização racial da população”. PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos censos brasileiros. Revista USP , São Paulo, nº40, 1998-1999. p. 124. 180

Paulo possuía a terceira 529 maior população escrava do país, pouco mais de cento e cinquenta e seis mil. Um fato singular da escravidão brasileira frente ao trabalho escravo nas Américas é que, ao mesmo tempo em que um número significativo de pessoas cativas obtinha alforrias, a escravidão persistia 530 .

População do Brasil, 1798-1872, por raça e condição

1798 % 1817-1818 % 1872 % Brancos 1.010.000 31,1 1.043.000 27,3 3.787.289 38,1 Pardos Livres 406.000 12,5 585.500 15,3 4.245.428 42,8 Índios 250.00 7,7 259.400 6,8 386.955 3,9 Total Livres 1.666.000 51,3 1.887.900 49,4 8.419.672 Escravos Mulatos 221.000 6,8 202.000 5,3 477.504 4,8 Escravos Negros 1.361.000 41,9 1.728.000 45,3 1.033.302 10,4 Total Escravos 1.582.000 48,7 1.930.000 50,6 1.510.806 15,2 População Total 3.248.000 3.817.900 9.930.478 100,00 100,00 100,00 Figura 41 - Fonte: A. M. Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil (São Paulo, 1944) II, 26, 197-198, citado por Robert Conrad, The destruction of Brazilian Slavery, p. 283, Censo Demográfico de 1872.

Esse acentuado aumento da população livre foi um reflexo direto da lenta e gradual promulgação de leis que procuravam minar a instituição da escravidão de acordo com as “possibilidades” políticas, dada as correlações de forças entre os grupos envolvidos. Os números fornecem dados objetivos com os quais prontamente podemos mensurar a distribuição desses grupos étnicos ao longo dos anos. O que o mesmo não pode mensurar são os efeitos dos “contatos” dessa crescente população livre com o grupo social que ocupava lugar de destaque na hierarquia das raças. Este capítulo procurou demonstrar que, através da escrita satírica de Luiz Gama, mediada por um pensamento diaspórico, ele contribuiu para

529 Segundo dados do censo de 1872: Minas Gerais em primeiro, com 370.459 escravos; São Paulo, com 156.612; e o Rio de Janeiro em segundo, com 292.637. 530 Posição de CHALHOUB, Sidney. População e Sociedade In: CARVALHO, José Murilo de. (coord.) A construção Nacional 1830-1889. Rio de Janeiro: Fundación Mapfre e Editora Objetiva, 2012. p. 44. 181

reconfigurar a cartografia do pertencimento racial no momento histórico em que o pensamento literário buscava enraizamentos ao idealizar imagens-símbolos de nacionalidade. A mistura racial e a mescla cultural de questões problemáticas passaram a ser uma realidade revelada pela poética satírica- racial de Luiz Gama.

182

CAPÍTULO IV A Memória Pública de Luiz Gama

183

“Somente terá o dom de avivar a fagulha da esperança no passado o historiador que estiver firmemente convencido de que nem mesmo os mortos estarão a salvo do inimigo se este vencer. E este inimigo não tem deixado de ser vitorioso”.

Walter Benjamin

Em relação aos usos da memória social 531 de Luiz Gama, podemos notar sua presença em dois espaços muito significativos: nos cerimoniais comemorativos 532 e nas práticas políticas para mobilização de ações antirracistas. Desta forma, este capítulo divide-se em dois para interpretar como, em diferentes momentos, foi usada a memória de Luiz Gama para mediar a projeção de sua imagem como herói popular ou como instrumento de luta. Dentre as modalidades de conhecimento que as sociedades têm com o seu passado, temos a história e a memória. A primeira processa-se através de uma operação historiográfica que, a partir de uma prova documental, constrói suas explicações; a segunda baseia-se em testemunhos considerados admissíveis e que podem dar acesso a “acontecimentos considerados históricos 533 ”. A memória social pode conferir uma “presença ao passado, às vezes ou amiúde mais poderosa do que a estabelecem os livros de história 534 .” Para além das concorrências entre história e memória, Roger Chartier aponta que o saber histórico pode contribuir para dissipar ilusões ou os desconhecimentos que desorientaram as memórias coletivas. Mas estas, a exemplo das comemorações e institucionalização dos lugares de memória, podem dar origem a pesquisas originais 535 .

531 Em tempos em que o social “perdeu” espaço para o cultural, de uma forma que a “história cultural se tornou um dos campos mais vigorosos e debatidos do âmbito histórico”, o uso do termo memória social está associado às interpretações de Paul Connerton em seu livro Como as sociedades recordam, quando questiona a teoria de Halbwachs no que se refere à transmissão e conservação da memória no interior dos grupos. O autor propõe um enfoque menos usual, que consiste na análise da memória incorporada, isto é, transmitida pelo corpo, por performances, rituais comemorativos. 532 Compartilho das reflexões de CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Oeiras (Portugal): Celta Editora, 1993. 533 Ver CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009. p. 21. 534 Idem. 535 Ibidem, p. 24. 184

Em nossas reflexões e interpretações, não pretendemos estabelecer uma oposição entre a história e a memória, e sim pontuar que a memória é um objeto da história. Sendo a memória “subjetiva, um brinquedo das emoções, complacente com seus caprichos, fortificando-se em seu próprio entusiasmo 536 ”, cabe à história uma postura analítica, reflexiva e sujeita à prova empírica. A memória pessoal de Luiz Gama, ou seja, aquela em que o mesmo relata e descreve sua trajetória pessoal, seu passado, não se refere apenas ao seu “eu” em seus aspectos mais subjetivos. A experiência da escravidão, ou a diáspora propriamente dita, promoveu uma relação intersticial entre o psíquico e o social, de forma a perturbar a simetria entre público e privado 537 . A memória pessoal de Luiz Gama revela que “o oculto pode ser rico e múltiplo em situações de intimidade 538 ”. Como a memória nunca é transmitida de modo atemporal pela tradição, de modo que a mesma é progressivamente alterada de geração em geração 539 , criamos, no entanto, as seguintes situações: Como os diferentes segmentos e grupos sociais fizeram uso da memória de Luiz Gama? Como foi transmitida? Como foi redescoberta? Em que momentos e por que se foram construindo narrativas, a partir da memória, para eliminar tudo que pudesse desunir os indivíduos do ponto de visto étnico-racial? Ou, em que momentos foi instrumento de luta, uma força simbólica que deu suporte ideológico para luta contra as formas de opressão racial? Ou ainda “como as memórias de conflito também são conflitos de memória 540 ”? Procurarei responder a estes questionamentos dentro de um universo discursivo de que a memória individual não está separada da memória social, e que esta última pode-se encontrar de forma compartilhada ou fragmentada, tendo em vista um controle, uma hierarquia, enfim, as relações de poder na ordem social vigente. De uma forma

536 Ver SAMUEL, Raphael. Teatros de memória. Projeto História: revista do Programa de estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, revista nº 14, fevereiro de 1997. p. 44. 537 Ver BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988. p. 31. 538 ARENDT, Hannah, citado por em BHABHA, Idem. p. 31. 539 Ver SAMUEL, Raphael. Teatros de memória. Projeto História: revista do Programa de estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, revista nº 14, fevereiro de 1997. p. 44. 540 Ian McBride, citado por BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 90. 185

geral, este capítulo procurará refletir a respeito dos significados políticos da memória social de Luiz Gama como força ativa e dinâmica que molda o comportamento social. “Nos gênesis a morte é um fato transitório e necessário; a vida é a lei perpétua da transformação da eterna matéria 541 ,” escreveu Luiz Gama em uma de suas máximas no jornal O Polichinelo. Um dos sentidos da memória é a lembrança que se pretende eternizar. Luiz Gama faleceu em 24 de agosto de 1882, na cidade de São Paulo, aos 52 anos de idade. O seu enterro mobilizou vários segmentos e milhares de pessoas. Foi solicitado aos comerciantes que fechassem os seus estabelecimentos a partir das três horas da tarde “como demonstração de profundo pesar pelo inesperado passamento do grande cidadão 542 ”. As pessoas acompanharam a pé o cortejo fúnebre do Brás até o cemitério municipal. Além de populares, estiveram presentes representantes de importantes organizações políticas da cidade, tais como a Loja Maçônica América e Sete de Setembro, Centro Abolicionista de São Paulo, Caixa Emancipadora Luiz Gama, Clubes Paulistano de Engenharia e Indústria, Girondinos e Ginástico Portuguesa. Também acompanhou o enterro a Irmandade Nossa Senhora dos Remédios 543 .

Em alguns pontos da cidade, por onde devia passar o cadáver, era grande a aglomeração do povo, assim como nos taludes do Carmo, largo do mesmo nome e calçadas adjacentes, formando o prestito uma massa compacta de povo ao chegar a rua Direita, destacando- se no sequito, muitas mulheres e populares que davam evidente mostra de sincero sentimentos nas lágrimas com que pranteavam o morto 544 .

O enterro 545 em si tornou-se um evento, uma procissão cívica, tal como se anunciava nos jornais, onde as pessoas puderam manifestar suas emoções.

541 O Polichinelo, nº 23, 17 de setembro de 1876. Arquivo Público do Estado de São Paulo, coleção digitalizada. Disponível em: . Acesso em: 14 de novembro de 2013. 542 Correio Paulistano, 26 de agosto de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 14 de outubro de 2013. 543 Idem. 544 Idem. 545 O número de pessoas que participaram do enterro foi muito grande e a circulação das mesmas foi intensa, de forma que se registraram alguns estragos em jazigos de particulares e quadros gerais. Correio Paulistano, 23 de setembro de 1883. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 14 de outubro de 2012. 186

A partir desse momento, temos início ao conjunto de práticas comemorativas. A partir de 1883, algumas associações negras passaram a organizar visitas cívicas ao túmulo de Luiz Gama, onde as memórias passam a localizar-se.

Figura 42 - No dia 13 de maio de 1932, o jornal paulista Folha da Noite noticiou a programação do 44º aniversário da abolição da escravatura: “Sob o patrocinio da ‘Frente Negra Brasileira’, à grande data de hoje foram reservadas estas homenagens: Missa, na igreja de Nossa Senhora dos Remedios, às 7 horas, em acção de graças pela aleluia, pela resurreição triunfal da raça. Após a missa, concentração geral na sede central da ‘Frente Negra Brasileira’, á rua da Liberdade, n. 196, até ás 9 horas. Visita tradicional ao tumulo de Luiz Gama, José Bonifacio, o Moço, Antonio Bento, na necrópole da Consolação. Canto do Hino da Gente Negra. Á noite no seu salão nobre, a ‘Frente Negra Brasileira’ inaugurará solene e festivamente um retrato de José do Patrocinio, trabalho valioso em "crayon" do artista negro Olavo Xavier. - O jogo que anualmente faz parte das comemorações, entre os quadros Branco e Preto, fica adiado para o dia 25.” Disponível em: . Acesso em: 27 de dezembro de 2013.

A organização de cerimoniais em honra a Luiz Gama, a construção de monumentos e as narrativas jornalísticas constituíram-se em espaços materiais e simbólicos que deram início à existência de referências a uma memória social. As nossas memórias estão localizadas no interior dos espaços materiais e mentais do grupo, insistia Maurice Halbwachs, em Memória Coletiva. 546

546 CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Oeiras (Portugal): Celta editora, 1993. p. 45. 187

Figura 43 - Cobertura do enterro pelo jornal Correio Paulistano, um dia após o sepultamento, na qual se evidencia uma grande presença de populares. 188

Figura 44 - No dia do sepultamento, o jornal Gazeta de Notícias da cidade do Rio de Janeiro preferiu prestar homenagens, dando ênfase às suas lutas em favor dos cativos. 189

Figura 45 - O jornal Gazeta da Tarde presta suas homenagens no mesmo dia do sepultamento. Lê-se no interior do texto: “A esta hora a pobreza e os escravos de São Paulo deve sentir o coração constrangido pela enorme perda que acabam de sofrer”. 190

A imprensa, ao prestar homenagens a Luiz Gama, procurou enfatizar a sua surpreendente trajetória: de escravo a um respeitado abolicionista. Para o jornal Gazeta de Notícias, Gama foi uma “lenda”, que viveu uma “história sobrenatural”, digna de um “romance inverossímel”. Foi o “mais laborioso dos abolicionistas militante”, que

Tendo sido de condição escrava, libertou-se; tendo vivido na ignorância, procurou ilustrar o seu espírito, e uma vez conseguido arma-as que deram força e vida ao seu talento – empregou-as sempre, incansável, tenazmente, contra a escravidão e a favor daqueles que sofriam.

Nas homenagens, a intelectualidade de Luiz Gama aparece atrelada a um objetivo concreto, a uma causa que lhe era inerente e ao seu comportamento, pois era um “homem de tempora superior”. Essas concepções ajudaram a construir uma imagem preponderante, a de abolicionista. Ele foi o militante político que fez uso de sua erudição e da “palavra inspirada no tribunal, com seus argumentos inatacáveis nos autos, com sua própria bolsa, com todas as armas de que podia dispor, porque ele era, antes de tudo, o defensor dos escravos”. O jornal Gazeta da Tarde sobressaltou suas atuações nos júris que, através das “palavras, o timbre, a atitude” comovia “extraordinariamente o auditório e os juízes”. Essas visões restritas da prática intelectual de Luiz Gama, excetuando sua produção cultural e política diversificada, ajudaram a consolidar a imagem de abolicionista, mas nunca como um intelectual em sua completude. Um dos primeiros atos “cívicos” de ritualização da memória deste renomado intelectual foi a campanha organizada no sentido de promover uma ajuda “humanitária 547 ” para a sua família. O objetivo era arrecadar donativos para a aquisição de um patrimônio destinado à família de Luiz Gama. O rito consistiu num passeio público que saiu do teatro São José, às 04 (quatro) da tarde do domingo, em direção ao Jardim Público, passando pelas ruas Imperador, Imperatriz, Boa Vista e Senador Florencio de Abreu. Uma comissão de senhoras ficou incumbida de receber os donativos; o valor angariado por

547 Correio Paulistano, 05 de setembro de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 13 de outubro de 2012. 191

esta ação foi de 1:200$000. Esta foi uma das campanhas “filantrópicas 548 ” realizadas pelo Clube Girondino, dentre outras que consistiram na arrecadação da venda de jornais e da entrega pública (foi realizado um evento) dos donativos 549 à família de Luiz Gama. Um aglomerado heterogêneo de instituições também fez parte da campanha pública em favor da ajuda financeira à família de Luiz Gama. Além do Clube Girondino, participaram o Real Clube Ginástico Português, o Clube Germânia, o Círculo Operário Italiano, a Sociedade Francesa 14 de julho, o Congresso Recreativo, a Sociedade Portuguesa de Beneficência, a Sociedade Salamanquia, a Caixa Emancipadora Luiz Gama, as bandas de música do Corpo Policial Permanente, Instituto de Educando Artífices, Instituto Dona Ana Rosa, o Recreio Paulista e a Lyra Brasileira. Não é possível registrar aqui todas as atividades in memoriam a Luiz Gama realizadas na cidade de São Paulo e no Rio de Janeiro no de 1882. Dado seu imenso prestígio no meio popular e intelectual, foram inúmeras as homenagens. Analisaremos aquelas em houve uma maior mobilização e divulgação nos jornais. Trinta dias após seu falecimento, realizou-se mais uma “solenidade comemorativa 550 ”. Sob a orquestra do hino nacional e da abolição, o senhor Assis Brasil, em nome do Centro Abolicionista de São Paulo, pronunciou “um brilhante discurso sobre a vida do falecido cidadão551 ”, entre outras autoridades civis e políticas. O jornal Gazeta do Povo noticiou esse evento de forma mais ampla, num texto bastante extenso, dedicando parte significativa desta página do jornal. Descreve desde a ornamentação do Teatro, “achava-se decorada com sumo gosto”, “destacando-se em cada camarote” os nomes de abolicionistas ilustres, tais como Joaquim Nabuco, André Rebouças, José do Patrocínio, Joaquim

548 Correio Paulistano, 27 de agosto de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 12 de outubro de 2012 549 Idem. 550 Correio Paulistano, 25 de agosto de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 11 de outubro de 2012. 551 Idem. Mais uma vez, o dinheiro arrecadado com as entradas do Teatro foi revertido para a família de Luiz Gama. 192

Serra, Vicente de Souza, Nicolau Moreira, Marcolino Moura, Castro Alves, Saldanha Marinho, Rio Branco 552 . Ao final da reportagem, o jornal parabeniza o Centro Abolicionista pela “nobre iniciativa e brilhante êxito da esplêndida e merecida apoteose 553 ” para “honrar a memória do primeiro abolicionista brasileiro 554 ”. Um ano após o falecimento, foi realizada a primeira “procissão cívica” em direção ao túmulo de Luiz Gama, em 24 de agosto de 1883. Raul Pompéia descreveu o ato como “uma solenidade profundamente significativa 555 ” desse “grande brasileiro 556 ”. Raul presenciou o evento e fez a seguinte descrição:

Vinte estandartes, dominando uma multidão de cerca de quatro mil pessoas, numerosas bandas de músicas, espontaneidade, animação... e uma procissão verdadeiramente respeitável atravessava a cidade de São Paulo e partia, caminho do cemitério, no remoto arrabalde da Consolação 557 .

Essas manifestações foram organizadas por entidades de classe e por instituições da elite paulista. Nota-se, na arquitetura dos eventos, naqueles que patrocinaram as cerimônias, uma determinada intencionalidade em controlar os meios de transmissão da memória pública de Luiz Gama. E percebe-se, também, o quanto foi ampliando a participação popular a cada evento, de forma que cada vez mais esta memória vai se encontrando dividida. No conjunto de todas as atividades, nos meses e anos subsequentes ao falecimento, para celebrar a memória deste renomado intelectual há uma intencionalidade em prolongar no tempo os feitos de um sujeito que fora resultado da produção cultural de seu contexto histórico, daí a constante necessidade em se produzir textos, mitos, uma ideia de um herói fundador, quando se postulava que ele foi o primeiro abolicionista, e monumentos. A especificidade de uma prática cultural é lançada para todo e qualquer tempo e espaço através da lembrança do “herói da raça”.

552 Gazeta do Povo, 24 de setembro de 1882. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 240. 553 Idem. 554 Ibidem. 555 Raul Pompéia, “Luiz Gama”. Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1884. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 556 Idem. 557 Idem. 193

Figura 46 - Anúncio do C. G. – Clube Girondino, publicado no jornal Correio Paulistano em 22 de agosto de 1883, conclamando seus sócios para homenagear Luiz Gama por completar um ano de falecido. Solicita-se que compareçam parlamentados.

Para quem foi tão perseguido, considerado radical, turbulento, sedicioso, e que nos momentos mais tênues do debate abolicionista pregou por uma insurreição escrava, agora, se vê “amado” por todos. Fizeram do ritual, da cerimônia de enterro, uma forma de suprimir seu lado mais conflitivo e emblemático. O passado é sempre conflituoso 558 e a história sempre desconfia de reconstituições que não coloquem em seu centro um olhar político 559 sobre as lembranças. Os enterros são ritos extremamente emotivos, faz-nos demonstrar os sentimentos mais expressivos. Paul Connerton, em Como as sociedades recordam, nos adverte que os ritos não são algo meramente formal, são atos expressivos em virtude de sua regularidade notória. “Os ritos tem a capacidade

558 Ver SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 9. 559 Faço uso da categoria analítica “olhar político”, da crítica cultural Beatriz Sarlo, que assim a descreve: “Assim, olhar politicamente é por as dissidências no centro do foco, o traço oposicionista da arte frente aos discursos (a ideologia, a moral, a estética) estabelecidos. Um olhar político aguça a percepção das diferenças como qualidades alternativas frente às linhas respaldadas pela tradição estética ou pela inércia (ligada ao sucesso e à felicidade) do mercado. Porque, de alguma maneira, olhar politicamente a arte supõe descobrir as fissuras no consolidado, as rupturas que podem indicar a mudança tanto nas estéticas quanto no sistema de relações entre a arte, a cultura em suas formas prático institucionais e a sociedade. SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias – intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 2005. p. 60. 194

de conferir valor e sentido à vida daqueles que os executam 560 ”. Queremos articular os rituais alusivos à morte de Luiz Gama às representações imaginárias, simbólicas, de forma que seja possível perceber a “invenção” de um novo Luiz Gama. Para uma reflexão sobre imaginário, recorremos a Cornelius Castoriadis, em A instituição imaginária da sociedade. Neste livro, o autor defende que

O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos “realidade” e “racionalidade” são seus produtos 561 .

A produção imaginária de Luiz Gama visava atender a diferentes interesses num quadro de relações sociais em que a abolição e a campanha republicana eram campo de disputa, de poder político. Precisava-se de um “herói” para a luta política pelo republicanismo, de um símbolo para a justiça social.

Luiz Gama, o ilustre advogado, mulato, de São Paulo, é um liberto; bem longe de ser, como o Sr. De Cotegipe, hediondo algoz de sua raça, é pelo contrário, o mais generoso e devotado apóstolo da liberdade e da abolição; o protetor evangélico dos míseros africanos e seus infelizes descendentes 562 .

Esse é o tipo de construção imaginária que aparece com Lúcio de Mendonça, jornalista e amigo pessoal de Luiz Gama, que já incitara a construção de uma imagem de “um grande” representante da causa republicana. A memória de Gama o transformou momentaneamente no “apóstolo da nossa idéia 563 ” ou no “apostolo da república 564 ”, como afirmavam

560 Ver Paul, CONNERTON. Como as sociedades recordam. Oeiras (Portugal): Celta editora, 1993. p. 53. 561 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1882. p.13. 562 Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 563 Ça Ira, 23 de setembro de 1882. Órgão da Caixa Emancipadora Luiz Gama. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 238. 564 A morte de Luiz Gama. Gazeta do Povo, 24 de agosto de 1882. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 218. 195

os republicanos. Raul Pompéia também contribui neste sentido, quando afirmava que, com sua morte, o abolicionismo entrou numa nova fase 565 . Diante de um inimigo comum, os republicanos passavam a fazer uso de uma imagem construída para combater a monarquia. O movimento republicano era bastante heterogêneo em sua composição social, seus interesses eram diversos, abrangia escravocratas, abolicionistas, militares, civis, fazendeiros, estudantes, profissionais liberais, pequenos comerciantes, daí que a ideia de povo, de pátria, tinha o propósito de unir a todos, evitando embaraços 566 . A imagem de Luiz Gama como um “herói popular republicano” fazia com que a propaganda republicana se aproximasse da comunidade negra. Nesse momento histórico em que se objetiva instaurar um novo regime e “não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico 567 ”, Luiz Gama, ao menos momentaneamente, foi o “herói” de uma luta inconclusa.

Os republicanos brasileiros, a toda hora abocanhados pela recordação injuriosa de meia dúzia de apostasias, das que negrejam na crônica de todos os partidos, se quisessem com um nome só, que é um alto exemplo de honrada perseverança, tapar a boca aos detratores, podiam lançar-lhes o belo e puro nome que coroa esta página [Luiz Gama] 568 .

A produção de um perfil político da memória de Luiz Gama foi criada para alimentar o jogo, o debate político republicano e abolicionista e os jornais. Mais que mediar esse campo de disputa, interessava-se, também, na audiência como forma de aumentar o seu poder de difusão e influência. Os jornais da época, Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias, Cruzeiro, Gazeta do Povo e o Correio Paulistano, tiveram grande influência na mediação 569 da memória social de Luiz Gama. Havia uma disputa na cobertura jornalística. A

565 Raul Pompéia, “Luiz Gama”. Gazeta de Notícias, 24 de agosto de 1884. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 566 CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 48. 567 Idem, p. 55. 568 Lúcio de Mendonça. Gazeta da Tarde, 15 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 569 Sobre a importância dos meios midiáticos no processo de mediação de memórias, ver SARLO, Beatriz. Tempo Passado – cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 92. 196

notoriedade social desse intelectual diaspórico despertou um grande interesse do público em acompanhar pelo noticiário da imprensa os cerimoniais do falecimento. O jornal Gazeta do Povo fez questão assinalar que foi o único 570 órgão da imprensa que se fez representar na solenidade organizada pelo Centro Abolicionista de São Paulo em memória do “ilustre 571 ” finado Luiz Gama. O jornal Gazeta do Povo criou uma seção chamada Luiz Gama – homenagens e comemorações. O Correio Paulistano, para quem Luiz Gama colaborou por mais de vinte anos com artigos, debates, informações e polêmicas a seu respeito, que direta ou indiretamente contribuiu para aumentar o poder de comunicação deste jornal, noticiou sua morte através de um breve anúncio, somente dias depois passou a dar início a uma série de reportagens.

Figura 47 - A nota de falecimento do jornal Correio Paulistano publicada no dia 25 de agosto de 1882, ocupava o canto inferior da segunda página, sendo que as matérias em destaque eram: “Desobstrução do Rio Parnaíba” e o “O Rei dos Banqueiros”. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012.

A morte de Luiz Gama marca o início de uma nova história, e o modo como foi recordado nos jornais procurava estabelecer um ponto de partida, uma referência, uma memória monumental.

570 Luiz Gama – comemoração cívica do trigésimo dia do falecimento do grande brasileiro. Gazeta do Povo, 24 de setembro de 1882. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 241. 571 Idem. 197

Figura 48 - Começa-se a divulgar trabalhos biográficos sobre Luiz Gama, Correio Paulistano, 20 de outubro de 1882.

Silvio Romero, esse renomado crítico literário de aguçada percepção sociológica, também contribuiu para a construção mítica de herói.

Eu disse, uma vez, que a escravidão nacional nunca havia produzido um Terêncio, um Epitecto, ou siquer, um Spártaco. Há agora, uma exceção a fazer: a escravidão, entre nós, produziu Luiz Gama, que teve muito de Terêncio, de Epitecto e de Spartaco 572 .

Inúmeros foram os poemas publicados nos jornais em homenagem a Luiz Gama. Por meio desse gênero textual, dos versos, há uma supervalorização de sua personalidade política.

Baixou à tumba o titânico valente Heróico lutador da santa liberdade Dos filhos oprimidos de face bronzeada, Deixando para sempre estética saudade!

Baixou sereno! Jamais o esquecimento Varrerá a glória de seu nome merecida!... Dos povos na memória eterna tem asilo Os feitos do homem que a muitos deu guarida

No foro autonômico dos livres! – Qual leão Luta, esgrime, despedaça vis cadeias Da cruenta, exânime, infame ecravidão!..

Mas o anjo da morte respeita suas idéias, Embora lhe encravasse a gélida coroa! Seu nome é vinculado na justa abolição! 573

“Entram-me de súbito por casa, dizendo: - Morreu Luiz Gama! 574 ”. Foi desta maneira que o jovem Raul Pompéia ficou sabendo do falecimento do seu melhor amigo. O primeiro trabalho biográfico popularizado em jornais ficou a cargo deste jornalista. Merecem destaque as formas como foram construídas suas narrativas; dentre os artigos jornalísticos, foi o mais eloquente. Sempre tomava como referência a postura política desse intelectual diaspórico para mediar com bastante rigor crítico a questão abolicionista e republicana.

572 ROMERO, Silvio. História da literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1943. p. 118. 573 À memória de Luiz Gama. Belarmino Indalécio de Souza. A Província de São Paulo, 29 de agosto de 1882. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 225. 574 Última página da vida de um grande homem. Raul Pompéia. Gazeta de Notícias, 10 de setembro de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 198

Raul Pompéia foi jornalista, colaborador do jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, poeta, contista, novelista, cronista e romancista. Em 1881, matricula-se na Faculdade de Direito da cidade de São Paulo, ambiente que propiciou seu ingresso na “cidade letrada” e nos círculos políticos de ideias reformistas. Participou ativamente da campanha abolicionista e foi membro e fundador da Caixa Emancipadora Luiz Gama. Uma de suas obras mais conhecida é o romance naturalista/realista O Ateneu, que só veio a público em 1888. Para o crítico literário Alfredo Bosi, esta obra é um “romance confessional sem par em toda a nossa literatura oitocentista 575 ”. O romance é autobiográfico, narrado em primeira pessoa. Podemos notar que Raul Pompéia já apresentava os indícios de um estilo literário que lhe dará proeminência em seus textos jornalísticos, nos artigos que escrevera sobre Luiz Gama. Última página na vida de um grande homem, artigo seminal de autoria deste jovem jornalista, é o mais proeminente entre os textos sobre a memória de Luiz Gama. Com seu estilo literário impecável, é possível notar aspectos de uma narrativa observadora, sem distanciamento entre o observado e a análise, apresentando-se como um narrador-protagonista, sem isenção e distanciamento. O trecho abaixo intenta demonstrar a riqueza e a estética de suas narrativas.

Eu sentia uma ternura por aquele modo franco e descuidoso, com pretenções à brutalidade, e desmaiando em doçura insinuante, paternal. Gostava daquela rudez granítica, recortada em arestas selvagens, porque sentia cachoeiras pelas pedras, uma cascatinha vítrea e sonora. O conjunto cativava-me.

Depois, não que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação como que pede esmola; outros, mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor; outros... inúmeros... E Luiz Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente; e a todos satisfazia, praticando as mais angélicas ações, por entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento 576 .

575 BOSI, Alfredo. Cultura. In: CARVALHO, José Murilo de. A construção nacional, 1830- 1889. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. p. 265. 576 Última página da vida de um grande homem. Raul Pompéia. Gazeta de Notícias, 10 de setembro de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 199

Essas características literárias também estão presentes em sua obra O Ateneu. Nesta, tendo em vista seus aspectos memorialistas, o autor usou como subtítulo “crônicas de saudades 577 ”. Dada a sua proximidade com Luiz Gama, Raul foi responsável por revelar os detalhes mais íntimos da vida pessoal desse intelectual negro (conforme demonstramos no segundo capítulo). Acompanhou-o até os momentos finais de sua vida. “Lembrei-me de que Luiz Gama já não descia as escadas do escritório, sem que o amparassem 578 ”. Raul descreve o momento em que conheceu seu ilustre amigo.

À primeira vez que viu-me, mandou-me sentar a uma pequena mesa do seu escritório e ditou-me uma carta. Achei esplêndida aquela familiaridade repentina. A história de Luiz Gama, tão minha conhecida, veio-me à mente como um raio e combinou-se admiravelmente com aquele rasgo de intimidade. Ao fim da primeira palestra, já o homem chamava-me você. Era adorável... 579

Nos relatos biográficos de , Luiz Gama foi “O herói... 580 ”, como ele mesmo o descreve, pois “fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauri-se no próprio ardor... 581 .” Somente a morte para o surpreender “no meio da ação582 ”. Nos registros memorialistas de Raul, está fortemente presente o empenho de Gama na causa abolicionista e republicana. Pelos idos de 1884, trouxe a lembrança, as restrições que os escravocratas impuseram ao programa, ao manifesto republicano de 1870. De forma que “rasgou o véu de reserva com que disfarçava a dor que o pungia à vista dos seus irmãos de raça torturados na escravidão 583 ”. Sua decepção com os caminhos trilhados pelo partido republicano o fizera afastar-se dos compromissos políticos do mesmo, segundo Raul Pompéia.

577 CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura brasileira – história e antologia, das origens ao realismo. São Paulo: Difel (Difusão Editorial), 1985. p. 349. 578 Última página da vida de um grande homem. Raul Pompéia. Gazeta de Notícias, 10 de setembro de 1882. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 579 Idem. 580 Ibidem. 581 Ibidem. 582 Luiz Gama. Raul Pompéia. Gazeta de Notícias (RJ), 24 de agosto de 1884. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 583 Idem. 200

A questão a saber, para os propósitos deste trabalho, é o quanto a questão da diferença racial imposta pela modernidade foi subtraída da memória social de Luiz Gama que se instituiu nos anos subsequentes à sua morte. As narrativas de memória da elite letrada dissolveu o negro no popular, como um todo homogêneo. Consolidou-se uma imagem de um Luiz Gama defensor das causas populares. Enfim, Luiz Gama foi o “pai dos pobres, dos desprovidos dos favores da fortuna e das graças do poder 584 ”, como bem sintetiza Rangel Pestana 585 em seus registros de memória. E quanto à questão da raça em si, aos ataques que Luiz Gama lançou às definições de brancura em meio aos debates do perfil étnico almejado para a formação nacional, há um silenciamento ou sua negação. Esta foi uma das características do tom do debate político a esse respeito no final século XIX. A memória que Pompéia quer tornar pública na sociedade não “alcança” o esforço intelectual de Gama em questionar a conversão de pessoas em purezas raciais. Não só Pompéia, assim como todos os outros artigos jornalísticos (o que o esforço da pesquisa alcançou), não trazem à tona a consciência histórica da questão racial para além do espaço nacional, como um fenômeno diaspórico através das relações África-Brasil e vice-versa. Há ligeiras pinceladas quando se menciona a raça para se referir aos negros, mas sem problematizações, a exemplo de Lúcio de Mendonça, quando dizia: “o protetor evangélico dos míseros africanos e seus infelizes descendentes” apenas para qualificá-lo. A questão da subalternização dos negros e negras em função de sua cor de pele, fazendo-se uso da memória de Luiz Gama, emerge a partir de um outro segmento social, os movimentos e organizações negras. Até que ponto a narrativa discursiva de Raul Pompéia enquadra-se nas formas políticas predominantes de controle social, ou seja, de reformas dentro da ordem? Negava-se a todo custo qualquer possibilidade de ódio racial, divulgava-se cada vez mais uma imagem de uma nação indivisa, de uma “família” brasileira contra os perigos de uma “africanização”. Como se vê na

584 “Luiz Gama”. Rangel Pestana. A Província de São Paulo, 25 de agosto de 1882. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 220. 585 Foi político, deputado pela província de São Paulo, jornalista, jurista, formado em Direito pela Faculdade de São Paulo. 201

posição de um deputado paulista, em depoimento da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo: (O escravo) É parte da família brasileira, é o nosso companheiro e amigo. Tem o riso nos lábios junto ao berço de nossos filhos, como lágrimas no túmulo de nossos pais! Participa de nossas alegrias como de nossas tristezas 586 .

Paulatinamente, foi-se constituindo uma série de leituras políticas sobre novas possibilidades da campanha abolicionista. Com a morte de Gama, atribui-se a Antonio Bento a liderança 587 do movimento abolicionista paulista. Este era formado em Direito, foi promotor, juiz e fundou o jornal A Redenção, principal órgão da imprensa voltado para a causa abolicionista. Bento era conhecido pelo seu incentivo e promoção de fugas em massa de escravos. O seu jornal

[...] expressava uma postura ambígua, com artigos propondo um estado de transição para o liberto e outros incluindo os escravos de como proceder em caso de alforria condicional, considerada legítima desde que registrada em cartório 588 .

O fenômeno da abolição da escravatura não aconteceu da forma como Luiz Gama preconizava. Esse intelectual diaspórico, que estivera na vanguarda do movimento abolicionista, jamais conseguiria prevê os desdobramentos desse conflito étnico-político. O pós-abolição não foi acompanhado de mudanças que provocassem impactos nas condições de vida dos ex- escravizados. Não existia nenhum projeto em curso dotado de força política

586 AZEVEDO, Célia M. Marinho. Onda Negra, Medo Branco – o negro no imaginário das elites no séc. XIX. São Paulo: AnnaBlume, 2007, p.139. 587 Antonio Silva Jardim (1860-1891), ou simplesmente Silva Jardim, foi advogado, jornalista e político. Também foi um daqueles que compartilhou o espírito de luta, de agitador social, com Luiz Gama. Para José Murilo de Carvalho, Silva Jardim teve como mestre Luiz Gama. O vulcão, o radical, o pregador da república jacobina, esses eram os seus adjetivos políticos. Silva Jardim fez parte de um abaixo-assinado que, juntamente com um coletivo de advogados, declararou que “de hoje em diante, não se incumbem absolutamente do patrocínio de causas algumas, contrárias a liberdade de escravos, tanto das que forem iniciadas como das que estiverem já em andamento (Gazeta da Tarde, 30 de outubro de 1886)”. Silva Jardim, assim como Luiz Gama não dissociava a Abolição da República, e foi a partir da experiência, da prática jurídica-política-abolicionista que se tornou um propagandista republicano. Ver CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 46. 588 Idem, p. 220. 202

que preconizasse “uma reforma geral da sociedade, de modo que o ex-escravo nela pudesse ingressar como cidadão pleno 589 ”.

589 RISÉRIO, Antonio. Utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo (SP): Editora 34, 2007. p. 345. 203

Figura 49 - Homenagem do Semanário ilustrado Vida Paulista a Luiz Gama e Antonio Bento. Maio de 1904. Coleção Emanuel Araújo.

204

Figura 50 - Negros e negras numa colheita de café no final do século XIX, Acervo Fundação Brasileira Nacional, RJ.

Agora, nesse contexto, os negros e negras passam a conviver com o outro lado da escravidão, com os seus efeitos sociais, com os preconceitos, o que não significa que não existissem anteriormente, mas que agora revestem- se de uma nova faceta na condição de libertos. Sem um projeto estrutural de integração, foram condenados à marginalidade social e, numa sociedade liberal-republicana competitiva, cujo trabalho assalariado exigia qualificação nesta nova fase capitalista, quando esses sujeitos não conseguiam ocupar espaço no mercado de trabalho, nessa nova vida urbano-industrial, eram culpados por seus próprios fracassos. O jornal abolicionista A Redenção noticiava, em 1897, o “desaparecimento” dos negros em São Paulo:

[...] afirmam os pessimistas e antigos escravocratas que a raça preta desapareceu deste Estado porque, abusando da liberdade e entregando-se ao vício da embriaguez tem morrido 590 .

Esta visão acrítica, somada às anedotas populares do tipo: “Branco quando morre/ Foi à morte que o levou/ Negro quando morre/ Foi a cachaça que matou 591 ”, corroboravam para realçar a raça com toda sua força para reforçar uma “inerência” do negro com a inferioridade, a pobreza e a preguiça.

590 Ver SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano – São Paulo e Pobreza, 1890-1915. São Paulo: Editora Annablume, FAPESP, 2003, p.44. 591 Idem, p.45. 205

“A estrada bloqueada, a ausência de oportunidades, a falta de perspectiva 592 ” forneceram “as condições objetivas para a emergência de um protesto negro 593 ”. A memória de Luiz Gama foi importante na inspiração de estratégias de luta para denunciar as humilhações e intolerâncias.

4.1 A Memória Social de Luiz Gama, Os Negros e a Política

No século XX, temos o surgimento de veículos de imprensa ideologicamente determinados pela raça. Numa sociedade divida em classes antagônicas e hierarquicamente racializada, havia um controle dos meios de difusão de ideias e de informações 594 por determinados grupos sociais e/ou instituições, que se verifica ao longo do desenvolvimento da imprensa em geral. A imprensa negra insere-se no campo de luta de produção e mediação de informações e conhecimentos numa relação dialética com a sociedade. Uma imprensa interessada na divulgação dos fatos relativos aos sujeitos de cor, que só tratava de questões raciais e sociais, na avaliação de Roger Bastide 595 . Ou podemos definir, ainda, como um jornalismo racial politicamente engajado. A imprensa negra, no início do século XX, tinha a raça e o preconceito como temas centrais. Mais do que o registro de acontecimentos relativos à prática do preconceito, a sua inserção histórica se deu como uma força ativa 596 , atuando na constituição de novas ações políticas e, principalmente, na ênfase da necessidade de um novo modo de vida negro, baseado na instrução educacional e em novos valores.

592 Idem p.353. 593 Ibidem. 594 SODRÉ, em seu texto introdutório, atrela o controle dos meios de difusão como reflexo do desenvolvimento capitalista. Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1966, p. 01. 595 RISÉRIO, Antonio. Utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo (SP): Editora 34, 2007. p. 359. 596 Sobre a imprensa em geral, ver CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, nº 35, p. 255-272, dez. 2007. 206

Figura 51 - Exemplo de jornal que compõe a imprensa negra, no sub-título a referência é direta ao público leitor: “órgão destinado a classe de cor...” Do final do século XIX ao início do XX, temos o sugimento dos seguintes jornais: Treze de Maio (1888), A Pátria (1889), O Exemplo (1892), A Redenção (1899), O Baluarte (1903), O Propugnador (1907), A Pérola (1911), Combate (1912), O Patrocínio (1913), O Menelick (1915), Binóculo (1915), A Princesa do Oeste (1915), A Rua (1916), O Kosmos (1922), O Clarim da Alvorada (1924), Tribuna Negra (1928), Progresso (1928), Quilombo (1929), Chibata (1932), entre outros 597 .

597 Ver GOMES, Flávio. Os negros e a política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 28. Para um quadro completo dos jornais que circulavam em São Paulo, ver LIMA, Alex Benjamin. Em tintas negras: narrativas da história nas páginas de A Voz da Raça. Artigo apresentado no 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2009. 207

O jornal Getulino foi aquele que procurou “preservar” a memória dos embates raciais vivido por Luiz Gama. Criado na cidade de Campinas, no dia 29 de julho de 1923, e encerrando suas publicaçãoes em 1926, tinha como nome oficial Getulino – órgão para a defesa dos interesses dos homens pretos. Sua periodicidade era semanal, circulava aos domingos e o seu caderno possuia 04 (quatro) páginas. A redação ficava a cargo dos jovens negros Lino Guedes e Gervásio de Moraes. Em linhas gerais, o jornal procurava denunciar as condições de vida dos negros e negras após a abolição e a luta para a sua inserção como cidadão pleno de direitos na sociedade brasileira. Noticiava, também, fatos de violência racial nos Estados Unidos e constantemente fazia comparações e/ou distinções entre as práticas discriminatórias deste país e o Brasil. Foi contrário à possível imigração norte-americana (estadunidense), pois considerava prejudicial à solução do problema do negro no Brasil. Quanto à escravidão, esta que deixou resíduos amargos, cujos efeitos não foram possíveis apagar de uma só vez, era apontada pelo jornal como a raíz de todos os males. Não era contrário à miscigenação, à “fusão das raças”, e a considerava importante para a afirmação da pluralidade da nação brasileira. O jornal destinava espaço para anúncios os mais variados possíveis e artigos. Realizava, ainda, concursos de beleza e publicava as fotos das vencedoras.

208

Figura 52 - Página inicial do Getulino, publicação do dia 13 de maio de 1926. Em função da data, nesse caderno há uma série de análises ao dia da Abolição e sobre a Princesa Isabel. 209

A cidade de Campinas desempenhou um grande papel no jornalismo de cor 598 . Luiz Gama chegou nesta cidade quando ainda era vítima do comércio de escravos.

Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda a viagem de Santos até Campinas. Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e por todos repelido, como se repelem coisas ruins, pelo simples fato de ser eu ‘baiano’. Valeu-me a pecha! 599

Para os jovens negros campineiros que criaram o jornal Getulino, Luiz Gama não era apenas familiar dado à sua trajetória pela cidade. Existia algo mais substancial para inspirar esses jovens editores. Em linhas gerais, o jornal visava dar continuidade às lutas pela emancipação dos negros e negras iniciadas por Luiz Gama. Consideravam-no um mestre, cujos ensinamentos precisavam ser seguidos. “É nosso escopo continuar a obra do grande mestre, trabalhando arduamente para emancipar em todos os sentidos a nossa outrora infeliz raça 600 ”. A memória social de Luiz Gama criou uma cadeia de tradição de luta negra. Emancipação, neste momento, adquire uma nova conotação histórica. Se no momento histórico vivido por Gama a ideia de emanciparção estava estritamente ligada à abolição, à libertação formal, concreta, para a imprensa negra, emancipar o negro era desaliená-lo dos discursos inferiorizantes criados no período escravista. Sendo assim, só restava um caminho a seguir.

Seguindo o caminho da educação chegaremos a segunda etapa da grande ascensão que está destinado ao negro, e assim seremos capazes de prosseguir com galhardia e denodo na senda da humanidade como homens tão homens como os de outras raças 601 .

598 Roger Bastide, citado por GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 23. 599 Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça. In: MENUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p. 22. 600 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p.147. 601 Getulino, 21 de outubro de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 149. 210

A concepção de emancipar-se através do conhecimento estava presa aos quadros do pensamento moderno/ iluminista, mas intentava-se subvertê-lo. Condenados pela diferença instituída pela modernidade diaspórica fazendo com que o “conhecimento e o poder” produzissem verdades sobre a raça, reduzindo os negros e negras a uma infra-humanidade602 , o Getulino, através de suas narrativas, pressionava para a construção de um novo conhecimento que de fato reconstruísse a humanidade do negro. Ainda assim, tanto em Luiz Gama quanto no Getulino não há um repúdio ao iluminismo europeu.

Queremos a a prosperidade da raça negra, lucraremos para que a inteligência do homem de cor seja aproveitada para que o seu caráter iluminado pela fulgurante luz da instrução seja [ilegível] e que tem tudo [ilegível] Futuro 603 .

Quando Luiz Gama contribuiu com a criação e divulgação das escolas populares, inclusive ministrando aulas, o conhecimento ou a instrução primária voltada para as camadas pobres “era um princípio elementar do progresso e da civilização604 ”, necessário para “aperfeiçoar o espírito humano605 ”. Gama não estabelecia uma relação direta entre instrução e a raça negra. Dizia, “erguem- se vagarosamente as escolas públicas para alumiamento do povo... 606 ”. As escolas surgem no século XIX pelo imperativo jurídico da modernização 607 , a própria alfabetização era um dispositivo de saber/poder

602 Em sua obra Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça, Paul Gilroy nos apresenta “uma constelação alternativa de conceitos”. Como ele mesmo afirma, são eles: “raciologia, nanopolítica, infra-humanidade, humanismo planetário que, conforme minhas esperanças contribuiria para por a discussão num outro patamar e para acelerar a desnaturalização da ‘raça’, o que ainda acredito ser uma tarefa de urgência. GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. – São Paulo: AnnaBlume, 2007. p.16. 603 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 69. 604 Artigo “Santo Antonio da Alegria”, Correio Paulistano, 22 de setembro de 1974. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 605 Idem. 606 Carta a José Rodrigues. Luiz Gama, 26 de novembro de 1870. In: FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. p. 195. 607 Ver Santiago Castro-Gomes, Ciências Sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber – eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociais, 2005. p.172. 211

que, uma vez administrada pelo poder estatal, criava-perfis de subjetividade 608 . Para além do poder disciplinar dos sistemas escolares, devemos pensar também como esse fenômeno aparece para os grupos racialmente subordinados, tendo em vista que as promessas da modernidade em universalizar o conhecimento foram progressivamente ampliadas. A educação, embora indispensável para o projeto de modernidade, tinha o seu acesso estritamente limitado e, por vezes, negado aos negros e negras.

Na primeira fase, a população é coagida ao analfabetismo e aí mantida pelo terror. Na segunda, onde a porta para a alfabeitzação não está fechada por sanções legais, a sobrevivência pode exigir o domínio de expressões linguísticas e verbais especialmente codificadas fora do campo da palavra escrita 609 .

Foram essas exigências que os editores do Getulino procuraram difundir para a coletividade negra, fazendo crer que sua sobrevivência dependia do letramento. Ter ciência dos códigos linguísticos dominantes parecia ser a única saída apresentada pelos editores para alcançar a cidadania. Em seu projeto elitista, o Getulino menosprezava a existência de um conjunto de experiências muito distinto e heterogêneo da população negra. Tais exigências estavam muito mais presas a uma ideologia do negro “bem sucedido”, pelo status, pela posição social, situação que poderia negar as ideias preconceituosas sobre os mesmos. Há uma preocupação constante com a autovalorização e com o ideal do ego 610 , toda vez que faz referência ao branco, advém questão de valor, de mérito 611 . Para o Getulino, era preciso valorizar o inferiorizado. A política racial na qual o jornal estava engajada procurava demonstrar aos brancos a riqueza do pensamento negro, a “potência respeitável do seu espírito” 612 . Seu objetivo era a emancipação moral do negro e o seu desenvolvimento intelectual. Afirmava que a educação cívica e moral das crianças era uma missão da mulher para com a pátria.

608 Idem. 609 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. p. 244. 610 FANON. Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p.176. 611 Idem. 612 Ibidem, p.27. 212

Este jornal pretende nivelar a situação dos brasileiros pretos à dos brancos. [...] O Getulino intenta completar a obra de Luiz Gama, e de seus companheiros de luta, porque, para bem se dizer o homem preto no Brasil, apesar de livre, ainda continua algemado ao vil preconceito, que tudo apavora e desvirtua 613 .

Pregava a educação como forma de melhorar a condição do negro e a do Brasil como um todo. Acreditavam que os negros e negras seriam reconhecidos positivamente por sua “perserverança nos estudos, no trabalho honesto 614 ”, e se forem “unidos 615 ”. Enfim, “não podemos reduzir as expectativas políticas da população negra no início do século XX aos jornais da imprensa negra 616 ”. Esses jovens “letrados de cor” apostavam que uma educação cívica, e pela educação em si, eliminaria-se o preconceito. Diziam, “...sem a luz da instrução, seremos os eternos escravos de nós mesmos 617 ”. Socialmente, pretendia civilizar a “comunidade negra”, mostrando-lhe o caminho que deveria trilhar, como se ela própria não fosse capaz de compreender os seus reais interesses. O Getulino apresentava um modelo cultural, o qual deveria ser assimilado pela população negra. “A senzala e a escola são pólos que se repelem 618 ”. A escravidão embruteceu tanto o branco quanto o negro. Acabar com a escravidão não foi o suficiente, ainda era necessário destruir a sua obra 619 . Neste sentido, os editores do Getulino partilhavam de um pensamento alicerçado no século XIX, uma visão colonizada que atribui o comportamento social dos negros e negras aos efeitos do regime escravocrata. Os representantes da imprensa negra não

613 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). Campinas (SP): Tese de Doutorado em História Social defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012, p. 73. 614 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 146. 615 Idem. 616 GOMES, Flávio. Os negros e a política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 29. 617 Getulino, 14 de setembro de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 155. 618 RISÉRIO, Antonio. Utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo (SP): Editora 34, 2007, p. 349. 619 Citando Joaquim Nabuco. Idem, p. 350. 213

percebiam o dilema em que estavam envolvidos: ao mesmo tempo em que estavam interessados em descolonizar o pensamento, preservavam valores culturais eurocêntricos, em detrimento de suas reais práticas.

O elemento estrangeiro que aponta às nossas plagas é portador de uma outra educação [...], traz na bagagem outras energias, que nós os brasileiros brancos, pardos e pretos não temos atualmente [...]. O Brasileiro branco deixou-se vencer pelo elemento estrangeiro, devido a sua indolência característica [...] devido à péssima educação do passado, onde ele apenas aprendeu a receber e gastar o fruto do trabalho escravo [...]. O Brasileiro negro, esse é naturalmente inimigo do trabalho, é indolente e preguiçoso, mas não por sua culpa. O nosso negro é atavicamente uma vítima do passado e do viciado cativeiro de quatrocentos anos 620 .

O projeto de modernização política e econômica da década de 20 pretendia combater os modos de vida que resistiam às mudanças sociais, ao Brasil moderno que lutava contra o Brasil arcaico. O comportamento social desses sujeitos demonstrava uma relação antagônica com a modernização. Mas o que estava por trás dos “hábitos indolentes”, não afeitos às racionalizações da produção capitalista? O “atraso” “legitimava as intervenções de uma vanguarda capitalista 621 ”, esclare Mary Louise Pratt, em Os olhos do império – relatos de viagem e transculturação:

Ideologicamente, a tarefa da vanguarda é a de reinventar uma América como atrasada e negligenciada, de forma a enquadrar seus cenários e sociedades não capitalistas como manifestamente carentes da exploração racionalizada trazida pelos europeus 622 .

O contexto sobre o qual a Pratt teoriza é o colonial, mas a reflexão é pertinente para as regiões de capitalismo “atraso” ou “dependente”. Uma vez que o discurso colonial estabeleceu, em suas narrativas, a dicotomia entre civilizados e nativos, sendo estes últimos “seres reduzidos e incompletos que padecem da incapacidade de se tornar o que os europeus já são, ou de se transformar naquilo que os europeus pretendem que eles sejam 623 ”, a aversão ao trabalho fazia parte dos olhos do império, do olhar do branco num longo

620 O Getulino, nº 06, 02 de setembro de 1923. AZEVEDO, Célia M. Marinho. Onda Negra, Medo Branco – o negro no imaginário das elites no séc. XIX. São Paulo: AnnaBlume, 2007. p. 221. 621 PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru (SP): EDUSC, 1999. p. 262. 622 Idem. 623 Ibidem. 214

processo de contrução de representações e do imaginário sobre os não europeus. O negro como inimigo natural do trabalho faz parte da linguagem do projeto de modernidade como uma missão civilizadora. Os negros da cidade de São Paulo muitas vezes foram desprezados e marginalizados para o trabalho produtivo devido a esses tipos de imagem presentes no imaginário social. Daí a preferência pela mão de obra “qualificada” imigrante. O título do trabalho do pesquisador Carlos José, Nem tudo era italiano – São Paulo e Pobreza, já é revelador e nos mostra o quanto o trabalhador nacional foi preterido em função desses tipos de imagens. A força persuasiva dessa relação direta entre escravidão e indolência dominou o debate historiográfico. O renomado sociólogo Florestan Fernandes também “embarcou” nesse “olhar imperial”.

A recusa de certas tarefas e serviços; a incostância na frequência ao trabalho; [...] a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio; a indisciplina agressiva contra o controle direto e a supervisão organizada; a ausência de incentivos para competir individualmente com os colegas e para fazer do trabalho assalariado uma fonte de independência econômica [...] 624 .

Se é pela diáspora que procuramos investigar as relações sócio- históricas, não podemos deixar de refletir que o modelo de negro que esta imprensa engajada propõe é o avesso da figura social do negro malandro, da malandragem, pois pretende disciplinar os corpos negros. “É imprescindível uma reforma nos costumes, nos gestos 625 ”, afirmava A Voz da Raça. Para Antonio Risério, em suas provocações antropológicas, o que esta imprensa queria era “um preto sem alegria, sem ginga, sem capoeira, sem samba, sem sensualidade. 626 ” Esse tipo de racismo ao qual esses negros estavam sujeitos caracterizava-se pelos embates culturais, pelo conflito de valores, cujas performances eram corpóreas. Para além da “indolência”, o que se queria de

624 SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano – São Paulo e Pobreza, 1890- 1915. São Paulo: Editora Anna Blume, FAPESP, 2003. p. 58. 625 RISÉRIO, Antonio. Utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo (SP): Editora 34, 2007, p. 364. 626 Idem, p. 360. 215

fato era expulsar as incômodas heranças do período colonial, “expurgadas e empurradas para a clandestinidade de subconscientes627 ”. A necessidade de ajustar o comportamento cultural do negro à ordem social vigente tinha sua justificativa nos “males da escravidão”. A reestruturação sociocultural dos negros e negras seria um longo caminho. Uma das preocupações da imprensa negra era com a questão da ascensão social 628 . Vejamos o exemplo da organização negra denominada Grêmio Elite da Liberdade:

Tratava-se de um grupo fechado, andavam sempre bem trajados, promoviam bailes, piqueniques e viagens. Para se filiar ao grupo era necessário provar que era casado, chefe de família, com situação econômica estável 629 .

Nesse momento, a memória da escravidão recrusdece para estabelecer uma mediação que respalde a reflexão política e explique a personalidade atávica do negro. O jornal denunciava, também, os efeitos materiais da escravidão, a pobreza em que vivia a maioria da população negra. Luiz Gama tinha lugar de destaque quando o jornal fazia alusão às personalidades políticas que se envolveram de corpo e alma na luta contra a escravidão.

Luiz Gonzaga Pinto da Gama, um dos maiores jornalistas que muito sobateu para livrar sua pátria da mancha negra da escravidão, tirando as algemas que martirizavam os seus irmãos, reerguendo lhe o moral e tornando-os úteis a pátria e a humanidade 630 .

Organizações de interesse e proteção aos homens e mulheres de cor existiam desde o século XIX. Em 1873, temos a formação da Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor, no Rio de Janeiro. Mas é somente no século XX que a raça vai além das questões científicas, passando a constituir-se num “mecanismo de organização política 631 ” e ideologicamente

627 ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: Educ - Editora da PUC-SP, 2013. p. 163. 628 RISÉRIO, Antonio. Utopia brasileira e os movimentos negros . São Paulo (SP): Editora 34, 2007. p. 359. 629 Idem. 630 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 170. 631 Ver Raça e Burocracia in: ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo – anti-semitismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 215. 216

assumido pelas organizações negras. As formas políticas que essas organizações experienciaram como “objetos de poder racializado” não podem ser apenas taxativamente qualificadas de paternalistas, autoritárias e elitistas. É importante entender a correlação de forças desiguais de representação cultural em que estavam envolvidas. Essas formas de respostas das organizações negras nos permitem entender também como esses sujeitos puderam construir novas narrativas para si mesmos, ao mesmo tempo em que desconstruíam imagens estereotipadas de seu grupo étnico.

É, pois nosso escopo como já ficou dito, trabalhar pelo bem geral, o que faremos com o possível humor e empenho nessas forças a favor da raça pigmentada, que não obstante os seus esforços e o muito que tem conseguido ainda se ressente de grandes prejuízos derivados da quadra de nefanda memória, em que esteve sujeita ao martírio inenarrável da escravidão pelo simples motivo de não ser branca ou amarela 632 .

Enquanto o Getulino pretendia trabalhar intelectualmente em favor da raça, Luiz Gama falava em incitar os escravizados à “resistência 633 ” à opressão escrava em virtude de ações deletérias 634 do poder judiciário. O Getulino elegeu o conhecimento como campo para encaminhamento das possibiliades de uma igualdade racial. Para Luiz Gama, o campo jurídico e político constituía-se na principal arena de luta. Durante toda a sua vida profissional, procurou “promover e patrocinar causas de manumissão de escravos 635 ”. Os negros passaram de uma “comunidade de escravos” a uma “comunidade racial”, se transformaram num grupo capaz de uma ação unificada por meio de uma identidade comum. A imprensa negra acreditava que uma desunião da raça poderia permitir a instalação de grupos racistas nos moldes da organização estadunidense Klu-Klux-Klan 636 . Ao se estabelecer uma identidade

632 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 69. 633 “Luiz G. P. Gama”. Correio Paulistano, 10 de novembro de 1871. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 09 de outubro de 2012. 634 Idem 635 “Um novo Alexandre”. Correio Paulistano, 20 de novembro de 1869. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 09 de outubro de 2012. 636 Getulino, 21 de setembro de 1924. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese 217

de grupo, a solidariedade aparece como um modo de “interação entre as experiências subjetivas”. As ações do Getulino “em favor da raça pigmentada” demonstram que a identidade se tornou uma questão de poder e autoridade 637 . É certo que, agindo em grupo por meio de ações unificadas, ganha-se mais força frente às práticas racistas cotidianas que precisavam ser combatidas veementemente. Mas a similaridade produzida pela identidade podia fazer com que indivíduos negros que apresentassem posições diferentes do grupo fossem obrigados a renunciar a sua individualidade em nome da raça, do grupo étnico. É evidente que os preceitos moralizadores não foram aceito por todos. Os bailes, entre outros, eram por excelência espaços capazes de promover uniformização cultural, fortalecendo, assim, a identidade. A imprensa negra reivindicava a construção discursiva de uma nova nação, na qual apresentavam narrativas críticas ao papel secundário do negro na “formação da Pátria brasileira 638 ” ou, como eles mesmos afirmavam: “Em todos os cometimentos históricos dos feitos registrados pela história pátria, o contingente valoroso e eficaz do negro aparece rutilantemente 639 ”. Mas nessa nova exigência de uma nação mais plural e equânime nas contribuições dos seus agentes, procura-se preservar a hierarquia de gênero, de forma que não se apresenta qualquer questionamento às diferenças neste de tipo de relação. A discussão da raça trazia consigo a questão da biopolítica presa ao corpo, em que a mulher também era vista em termos biológicos. “A integridade da raça ou da nação portanto emerge como a integridade da masculinidade 640 ”. O Getulino alia a “prosperidade da raça negra 641 ” à “grandeza da nação 642 ”. O jornal A Voz da Raça, que era um órgão oficial da Frente Negra Brasileira, tinha como lema:

(Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 182. 637 GILROY, Paul. Entre Campos – nações, culturas e o fascínio da raça. Tradução de Célia Maria Marinho de Azevedo et ali. – São Paulo: AnnaBlume, 2007. p. 125. 638 Título de um dos artigos publicado no Getulino do dia 29 de julho de 1923. 639 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p. 188. 640 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. p. 19. 641 Getulino, 29 de julho de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Campinas, 2012. p.53. 642 Idem, p. 54. 218

“Deus, Pátria, Raça e Família”. Essa imprensa negra sempre fazia referências aos “homens de cor”, aos “homens pretos”. Ainda que denunciassem as humilhações que as mulheres sofriam em função de sua cor e realizassem concursos de beleza negra, há uma primazia do masculino nas visões teleológicas de raça.

Figura 53 - Imagem retirada do jornal Getulo do dia 13 de maio de 1926. A mesma não se encontra acompanhada de nenhum artigo sobre o Luiz Gama. Fazia parte de uma coluna, de um espaço destinado a personalidades, logo abaixo encontra-se também a imagem de Antonio Bento.

O Getulino reclama uma continuidade com um passado histórico linear. É tentador achar que há linearidade histórica na prática do racismo, mas em cada socieade o racismo se apresenta de uma forma específica. A força dessa continuidade advinha da ideia de raça muito mais atrelada ao biológico, ao epidérmico, que de uma construção sócio-histórica. O subtítulo do jornal, Órgão para a defesa dos interesses dos homens pretos, atesta o caráter de uma política de solidariedade e proteção à comunidade negra. O racismo estimulava uma relação de solidariedade de 219

forma a compartilharem-se sentimentos em comum. Usando-se a ideia de raça, com ênfase na epiderme, “homens de cor”, “moças de cor”, “jornalismo de cor”, como categoria racial biologicamente constituída, valoriza-se, por inversão, a própria base do racismo que estavam tentando desconstruir 643 , mas estas foram as formas e estratégias políticas encontradas de acordo com suas experiências históricas. Mas como se vivenciava a raça na década de vinte? No século XX, a questão racial tornou-se emblemática a ponto de existir um problema racial socialmente estabelecido como campo de disputa. Esse problema passou a ser uma questão nacional e nacionalista apropriada por todos, mas apontando para diferentes perspectivas sobre os rumos dos segmentos racialmente diferentes. Imaginava-se os projetos políticos da nação a partir de projetos raciológicos, para “regular sua reprodução 644 ” e “estimar uma futura homogeneidade 645 ”. O futuro da identidade nacional dependia de transformações raciais. Neste aspecto, a raça diferencia-se das concepções do século XIX vividas por Luiz Gama. Agora, a ideia era transformar o povo brasileiro “em puros gregos 646 ”. Nancy Stepan nos lembra que essas “fantasias de transmutação humana 647 ” faziam da eugenia um movimento estético-biológico preocupado com a beleza e feiúra, pureza e contaminação, e estas características se representavam em especial na raça negra e “nos indivíduos acobreados, amarelos e mestiços 648 ”. A década de 20 foi o ciclo que começou “com pólvora, com pólvora se fechará 649 ”. Com esta expressão, Faoro refere-se ao tenentismo e à revolução de trinta. Havia necessidade de mudanças e procurava-se radicalizar as tranformações políticas e econômicas. Questionava-se a dominância coronelística, os esquemas oligárquicos. Novos setores e grupos sociais da classe média demandavam por um novo quadro político, e a expansão da

643 HALL, STUART. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003. p.327. 644 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 240. 645 Idem. 646 STEPAN, Leys Nancy. A hora da eugenia – raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005, p. 149. 647 Idem. 648 Idem, p.149. 649 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001. p. 741. 220

economia cafeira reerguia o nacionalismo. Temos, de um lado, o discurso liberal ufanista, que almejava transformações para por fim à tradicional política mandonista, mas que negava a existência de uma sociedade racialmente estratificada; e do outro, os que discursavam a favor da classe operária, denunciando a exploração a que estavam sujeitos, mas também negando o preconceito. Em 1929, Jules Droz, delegado da Internacional Comunista na América Latina, dizia que,

[...] ainda que não existam preconceitos de raça no Brasil, segundo as informações de nossos camaradas, uma coisa chama logo a atenção [...] Os coolies brasileiros, os trabalhadores da estiva, os homens de trabalho pesado, são todos homens de cor, enquanto que os comissários, os contramestres, aqueles que manejam a pena e os funcionários, as mulheres bem vestidas etc, são todos brancos 650 .

Com a hegemonia desses discursos, só restava às organizações negras construir contra-narrativas que desmacarassem a ausência de preconceitos raciais no país. A existência em si do jornal Getulino era a expressão materializada de combate à falsa “democracia racial”. No campo teórico, justificava-se a não existência do preconceito racial devido ao modo como os portugueses lidaram com a diferença, tendo em vista a sua plasticidade na colonização. No plano das relações raciais, o caráter nacional estava baseado na cordialidade do homem brasileiro, “o homem cordial”, que era avesso à intolerância racial 651 . Ganhava cada vez mais espaço a ideia de miscigenação como um aspecto positivo para a ideologia nacional, contrária a particularismos raciais do tido Getulino. De certa forma, o Getulino passa a existir para contrariar uma ideia de miscigenação que tenta aniquilar a identidade negra. A citação a seguir é um pouco longa, mas expressa por demais o embate divergente entre a política racial negra e o pensamento conservador, a exemplo de .

Em nenhum país do mundo coexistem uma tamanha harmonia e tão profundo espírito de igualdade entre os representantes de raças tão distintas. Homens de raça branca, homens de raça vermelha, homens de raça negra, homens mestiços dessas três raças, todos tem aqui as mesmas oportunidades sociais, as mesmas oportunidades políticas.

650 SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano – São Paulo e Pobreza, 1890- 1915. São Paulo: Editora Anna Blume, FAPESP, 2003. p.16. 651 STEPAN, Leys Nancy. A hora da eugenia – raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005, p. 165. 221

Está por exemplo, ao alcance de todos a propriedade da terra. Franqueados a todos os vários campos de trabalho, desde a lavra da terra às mais altas profissões 652 .

Contra esse tipo de pensamento, o Getulino era sarcástico, não poupava adjetivos: “Sociólogos e psicólogos de meia tigela prognosticara o desaparecimento da gloriosa raça negra e, entretanto é coisa vã e descabida e insustentável diante da limpidez dos fatos 653 ”. Para o Getulino, esse tipo de interpretação era totalmente descabida e completamente fora da realidade social brasileira. O Getulino denunciava não só a ausência de oportunidade, como as barreiras que os homens e mulheres de cor encontravam para conseguir um emprego.

Vai as fábricas, mas não lhe dão serviços, muitas vezes nem lhe deixam falar com os gerentes. Procura anúncio nos jornais e corre pressuroso aonde precisam de empregados e embora chegue primeiro do que outro qualquer candidato, por ser de cor é posto a margem e recusado 654 .

A ideia de sociabilidade, igualdade e amistosidade do povo brasileiro vinha à tona quando procurava-se explicar a especificidade da formação social brasileira. Oliveira Viana dizia que seu intuito era estabelecer uma caracterização do povo brasileiro “tão aproximada da realidade quanto possível, de modo a ressaltar quanto somos distintos dos outros povos, principalmente dos grandes povos europeus 655 ”. A realidade imaginada por Viana, definindo-se o imaginário como todas as formas pelas quais uma cultura percebe e concebe o mundo 656 , era estritamente eurocêntrica.

652 VIANA, Francisco José de Oliveira. O tipo brasileiro. Seus elementos formadores. In: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p.78. 653 Getulino, 21 de outubro de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). Campinas (SP): Tese de Doutorado em História Social defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012. p.198. 654 Getulino, 21 de setembro de 1924. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). Campinas (SP): Tese de Doutorado em História Social defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012, p. 183. 655 Ver VIANA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005, p. 51. 656 MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais, Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 48. 222

Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil. Antes que pudesse surgir seria algo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca. Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara excessão) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é facilitada pela prevalência do “elemento superior”. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que isso já começou a ocorrer. Quando a imigração, que julgo ser a primeira necessidade do Brasil, aumentar, irá pela inevitável mistura, acelecar o processo de seleção 657 . A concepção de mestiçagem de Viana desemboca inevitavelmente numa sociedade unirracial, unicultural 658 , sob o modelo hegemônico racial e cultural branco, como demonstra em seu exemplo, dada a prevalência do elemento superior. Esse tipo de pensamento já tinha sua vulgarização no final do século XIX. Modesto Brocos contribuiu, através da pintura, com a ideia de que o embranquecimento da população poderia ser fruto da miscigenação de três gerações. Finalmente, Cã, que foi amaldiçoado por seu pai, Noé, dando origem aos negros, teria a sua redenção no Brasil.

Figura 54 - Pintura, óleo sobre tela, de autoria do Modesto Brocos, sob o título Redenção de Cã, 1895, Museu Nacional, Rio de Janeiro.

657 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 86. 658 Idem, p. 97. 223

A imprensa negra combatia tenazmente esse tipo de pensamento, insurgia-se demonstrando que tudo isso era uma falácia, que o racismo científico defendia purezas raciais inexistentes. Ressaltava que a hibridez biológica estava presente em todos, sem hierarquias. Afirmava que “o português” era “resultado do caldeamento de muitos sangues diferentes 659 ”. E quanto à hibridez cultural? Que espaço a imprensa negra destinou à perspectiva diaspórica? A Voz da Raça criou uma visão racialista de Luiz Gama. A Voz da Raça, jornal oficial da Frente Negra Brasileira, com sede na rua da Liberdade, na cidade de São Paulo, tinha como subtítulo “órgão da gente negra brasileira”. Tinha em sua direção os jornalistas Diocleciano Nascimento e Raul J. Amaral. Redatores: Pedro Paulo Barbosa, Mário Campos, Antonio M. dos Santos, Rubens Costa e João de Souza. Circulou durante quase todo o período de existência da Frente Negra, de 1933 a 1937. Sua periodicidade de circulação inicialmente era semanal, passando a ser quinzenal em agosto de 1933 e, a partir de 1935, mensal. Este periódico continha em média 04 (quatro) páginas. Durante seu período de vida totalizou 70 edições.

Figura 55 - No anúncio lê-se: “Ler a ‘Voz da Raça’. Assinar a ‘Voz da Raça’. Propagar a ‘Voz da Raça’. Anunciar a ‘Voz da Raça’. É estar trabalhando para a elevação intelectual da Raça!”. A Voz da Raça, 31 de agosto de 1935.

659 Evaristo de Moraes, Getulino, nº 23, 30 de dezembro de 1923. In: GONÇALVES, José Roberto. O Getulino – um jornal de carapinha: jornal editado por jovens negros em Campinas (1923/1925). Campinas (SP): Tese de Doutorado em História Social defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012. p. 203. 224

Não iremos nos deter na trajetória da Frente Negra Brasileira 660 no seu surgimento (1931-1937) e em sua proposta, mas em seu órgão de comunicação oficial, nos momentos em que estabelece mediações com a memória de Luiz Gama.

Escrevo hoje um jornal da raça que festeja o seu primeiro aniversário; escrevo para a A VOZ DA RAÇA que tendo apenas um ano de existência constitue, pelo seu trabalho de evangelização e patriotismo sadio, a demonstração cabal e completa do saber querer, aquele de que Luiz Gonzaga Pinto da Gama deu exemplo, e assim deixa de ser criança tateante para, figurando em primeiro plano dado o vulto dos serviços à raça dos Montesuma, Henrique Dias, Cruz e Souza, Rebouças, Patrocínio e Juliano Moreira, passa a ser o velhissímo [ilegível] Moisés, o profeta e legislador hebreu, vencedor dos amalecitas 661 .

As aquisições dos vultos negros, em especial Luiz Gama, agora estão a serviço da raça. Entre as diversas personalidades, o jornal pretendia destacar aqueles que lutaram “em prol dos interesses de uma raça, que há quarenta e tanto anos conseguiu a sua liberdade de ação, sem os conhecimentos indispensáveis ao seu progesso 662 ”. Com esse modelo de imprensa negra, há um fechamento da diáspora. Ela fundou um nova cultura política negra. Há um refluxo na perspectiva diaspórica iniciada por Luiz Gama, se encararmos o conceito de diáspora como “uma alternativa à metafísica da raça, da nação e de uma cultura territorial fechada, codificada no corpo 663 ”. Não se trata de depositar toda a crítica a este tipo de imprensa, mas que as “histórias destas organizações autoritárias e ultra-nacionalistas 664 ”, neste momento histórico, respondem à dominação racial rejeitando a possibilidade de uma interculturalidade crítica, centrando-se nas solidariedades de base racial.

Que felicidade para todos nós, negros frentenegrinos ou não, se ainda estivessem em circulação outros representantes da imprensa nossa – Clarim d’Alvorada, Getulino, Progresso, Patrocínio,

660 Estima-se (exageradamente) 100 mil membros em todo o país e outras contabilizam 6.000 associados para a cidade do estado de São Paulo. GOMES, Flávio. Os negros e a política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 49. 661 A Voz da Raça, São Paulo, 17 de março de 1934. Disponível em: . Acesso em: 12 de setembro de 2013 662 Idem. 663 GILROY, Paul. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p. 18. 664 Idem. 225

Quilombo, e outras tantas folhas, que se editaram em prol do nosso interesse coletivo? 665

A Voz da Raça se diz portadora da tradição de uma imprensa negra, esses jornais estavam voltados para uma coletividade negra. E de fato foi um dos mais importantes e significativos jornais da imprensa negra, nesse contexto marcado pela dominação racial, em seus aspectos políticos, social, cultural e educacional. Neste capítulo, procuramos evidenciar como diferentes grupo na sociedade procuraram gerir o passado de Luiz Gama. A nossa preocupação central era dirimir as visões maniqueístas que tratam a memória social em dois tipos de situações: aquelas em que Luiz Gama foi herói ou vítima inocente 666 . Ambas as posições podem legitimar as ações do presente 667 , mas as destituem de um passado complexo de onde podemos tirar lições para vários aspectos político-sociais do futuro. “O passado é benéfico não quando alimenta o ressentimento ou o triunfalismo, mas quando seu gosto amargo nos leva a transformar-nos a nós mesmos 668 ”. Não podemos tornar a figura histórica de Luiz Gama venerável, mas como um exemplo de um sujeito cuja vida pública deu contribuições substanciais à vida política e cultural, cujos feitos tiveram lugar numa história datável e num período histórico estritamente específico, que por ora já afirmamos. Gama, viveu intensamente a vida política da paulicéia, tinha posições que oscilavam dentro do jogo de forças e contigências do cenário político. Foi testemunha das forças desiguais de um poder racializado. Sua autoridade política foi construída no interior desse espaço e representou a diferença cultural. Gama demonstrou que as questões de raça e diferença cultural sobredeterminavam as alianças sociais de classe 669 .

665 Jornal A Voz da Raça, 17 de março de 1934. Disponível em: . Acesso em: 12 de setembro de 2013. 666 TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. p.75. 667 Idem. 668 Ibidem. 669 Sobre esta questão, Bhabha reflete da seguinte forma: “A perspectiva pós-colonial nos força a repensar as profundas limitações de uma noção ‘liberal’ consensual e conluiada de comunidade cultural. Questões de raça e diferença cultural sobrepõem-se às problemáticas da sexualidade e do gênero e sobredeterminam as alianças sociais de classe e de socialismo democrático”. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988. p. 244-245. 226

Este trabalho procurou ampliar a memória até então conhecida desse intelectual diaspórico. A memória social de Luiz Gama centralizou-se em sua carta/memória, em que relata o seu drama vivido na família como escravizado e na sua luta para se tornar um negro intelectualizado. Mais que insistir no drama ou reforçar esse tipo de memória, procuramos recuperá-lo por meio de uma nova narrativa, como sujeito histórico, como agenciador de sua vida. Sobre o discurso da vitimização, nos alerta Silvia Lara 670 , recai a pena, a proteção e tira do sujeito a capacidade de criar, de agenciar e ter consciência política diferenciada. Somente no final do século XX os movimentos negros, através de suas lutas, conseguiram forçar o reconhecimento do racismo como um aspecto estruturante da sociedade brasileira 671 , torná-lo uma questão política de Estado. Em meados de 1995, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, iniciou-se publicamente o processo de discussão das relações raciais brasileiras, admitindo, oficialmente, pela primeira vez na história brasileira, que os negros eram discriminados. Na esperança de vencer o inimigo (o racismo), de acordo com a linguagem metafórica do Walter Benjamin, os movimentos negros foram em busca da memória de Gama, mas nem mesmo Luiz estará salvo se esse inimigo continuar vitorioso, “e este inimigo não tem deixado de ser vitorioso”. Mas se foi por meio da narrativa e da política que esse “inimigo” fez-se presente na história, devemos construir criativamente, dentro de uma ética política, novas narrativas de igualdade e solidariedade humana.

670 Ver LARA, Silvia Hunold. Campos da violencia – escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. p. 355. 671 Análise de Paul Gilroy a respeito da conjuntura político-racial do Brasil no prefácio à edição brasileira. O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p.09. 227

Figura 56 - Escultura do busto de Luiz Gama, homenagem ao seu centenário de nascimento, comemorado em 1930, Largo do Arouche, cidade de São Paulo. Na inscrição, lê-se: “A Luiz Gama. Por iniciativa do progresso. Homenagem dos Pretos do Brasil”. (google imagens, consulta em 03 de novembro de 2013).

228

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Negros boçais, atirados a rodo, como irracionais no porão de um navio, como carga, como porcos, desconhecedores até da língua dos seus condutores 672 ...

Recuperar a humanidade do negro e o seu lugar social na nação brasileira foram algumas das bandeiras políticas de Luiz Gama. Contudo, não media esforços para narrar as condições dos escravizados, sempre de forma direta, provocativa e denunciadora. Fazia questão de denunciar como os (as) negros (as) foram submetidos às condições mais brutais de vida e trabalho humano. Jamais aceitou acriticamente os postulados científicos que defendiam a tese da inferioridade natural dos negros e negras e de que os mesmos eram pessoas com capacidade cognitiva limitada. Luiz Gama, na posição de intelectual, lutou para ampliar os espaços em que os escravizados pudessem falar 673 , em um ambiente histórico no qual os escravos eram apenas objeto de conhecimento por parte da intelectualidade abolicionista. Gama estabeleceu uma relação dialógica com os escravizados e com os pretos forros. Esse ambiente ou espaço era o lugar por meio dos qual o sujeito subalterno poderia falar para que pudesse ser ouvido 674 . Gama, ao trabalhar contra a condição de subalternidade do diferente, racialmente falando, abriu espaço para este pudesse articular-se. O comportamento político-social de Luiz Gama não tinha a sua recepção apenas nos quadros políticos estabelecidos. Suas ações também eram

672 Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível: < www.hemerotecadigital.bn.br >. Acesso em: 10 de outubro de 2012. 673 “Aqui Spivak refere-se ao fato de a fala do subalterno e do colonizado ser sempre intermediada pela voz de outrem, que se coloca em posição de reivindicar algo em nome de um (a) outro (a). Esse argumento destaca, acima de tudo, a ilusão e a cumplicidade do intelectual que crê poder falar por esse outro (a). Segundo Spivak, a tarefa do intelectual pós- colonial deve ser a de criar espaços por meio dos quais o sujeito subalterno possa falar para que, quando ele ou ela o faça, possa ser ouvido (a). Para ela, não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar ‘contra’ a subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se articular e, como conseqüência, possa também ser ouvido”. Sandra Regina Goulart Almeida, prefácio – apresentando Spivak. In: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte (MG): Editora UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais, 2010. p. 16-17. 674 Idem, p. 16. 229

admiradas principalmente pelos populares, como ficou evidente com a grande participação popular em seu enterro. Uma carta dirigida ao “Ilustríssimo excelentíssimo senhor doutor Luiz Gama 675 ” para ser publicada no jornal Gazeta da Tarde da cidade, do Rio de Janeiro, enviada por “algumas pessoas residentes nesta corte 676 ”, apresenta em seu teor uma profunda admiração pela prática social desse intelectual diaspórico.

Algumas pessoas residentes nesta corte, admiradoras das mais nobres ações de caridade, vem por este meio, respeitosamente à imprensa, para agradecer-lhe, além de outros, um ato que é digno de toda a consideração, assim como seja, o que V. Senhoria acaba de dispensar a uma escrava, de nome Elisa, pertencente ao Sr. Dr. Camilo Gavião Peixoto, de quem a mal aventurada escrava tem sofrido os mais atrozes e cruéis tratos, sendo estes tão dignos de dó, como de compaixão! 677

Sua notoriedade já não era apenas local. Na década de 80 do século XIX, a imprensa abolicionista da cidade da Corte passa a publicizar também as ações judiciais que envolviam advogados abolicionistas de São Paulo e, em especial, as ações políticas de Luiz Gama, dadas as suas relações e articulações com os jornalistas daquela cidade. Foi pela imprensa que a imagem de Luiz Gama ganhou uma projeção nacional e passou a ser reconhecido socialmente como “o defensor dos escravos”. Afirmar que, do ponto de vista histórico, Luiz Gama foi simplesmente um intelectual ou que correspondeu ao perfil de intelectualidade que caracterizou a produção cultural do seu tempo, seria um lugar comum dentro das atuais perspectivas da história social da cultura. Não tivemos a mínima pretensão em enquadrá-lo como um reformador social ideologicamente determinado. Sob o ponto de vista adotado, o seu pensamento é resultado da construção de uma problemática consistente sobre a questão jurídico-social do escravizado, sobre a qual elaborou críticas sistemáticas, sem uma unidade teórica definida. Procuramos ativar 678 um saber local, diaspórico, com uma produção descontínua e dispersa, aqui proposta como um conjunto que, por vezes, não

675 Gazeta da Tarde, 01 de dezembro de 1880. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: . Acesso em: 10 de outubro de 2012. 676 Idem. 677 Ibidem. 678 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 23º edição. São Paulo: Edições Graal, 2007. p. 171-172. 230

foi legitimado pelo saber historiográfico por um saber científico com critérios metodológicos e hierárquicos de conhecimento, que o considerava como um saber abaixo do nível requerido de “cientificidade”. Esse trabalho procurou dialogar com alguns estudos e pensamentos de natureza estruturalista, apontando dissensos. Neste sentido, procuramos restituir e restaurar a razão do sujeito 679 frente ao lugar ocupado pelas estruturas nos anos 60 (1960), que desconfiava dos sujeitos, estes eram movidos pela “ideologia 680 ” ou pela “falsa consciência 681 ”. Sendo assim, os estudos culturais e a sociologia da cultura restituem uma confiança “nessa primeira pessoa que narra a sua vida 682 ”, quer seja privada, pública, afetiva ou política. Em outras palavras, a partir da rediscussão pós-estruturalista, podemos dizer que uma “estrutura é resultado de práticas anteriormente estruturadas” e que a “prática é a forma com uma estrutura é ativamente reproduzida 683 ”. A escrita de si de Luiz Gama abarca memórias e oralidade. Por meio de suas cartas, que ganham o espaço público quando publicadas nos jornais de ampla circulação regional, Gama passa a compartilhar do público leitor a indignação política com o regime da escravidão. Sua carta autobiográfica é deliberadamente uma memória de si 684 , uma prática comum do cidadão moderno. A diáspora impôs para Gama uma identidade singular para si no interior do todo social da modernidade. A escrita de si de Luiz Gama foi o nosso espaço de pesquisa e de investigação histórica, entre outros tipos de documentação. Essa escrita de si, do indivíduo/autor, é constitutiva da identidade do seu autor e do texto, que se criam simultaneamente 685 . Para o nosso caso, analisando a experiência diaspórica de Luiz Gama, suas práticas e seus escritos perfazem uma unidade complexa de forma que o sujeito histórico

679 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; elo Horizonte: UFMG, 2007. p.19. 680 Idem. 681 Ibidem. 682 Ibidem. 683 HALL, STUART. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2003, p. 158. 684 GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 11. 685 Idem, p. 16 231

que denominamos Luiz Gama é uma construção discursiva resultado dessas interseções. Com as estratégias teóricas e metodológicas adotadas, este trabalho procurou trazer novas questões para os estudos sobre Luís Gama. Para tal, nos apropriamos das visões e releituras que os estudos culturais e a crítica pós-colonial lançaram sobre as complexidades de se imaginar a identidade afrodescendente. No entanto, fazia-se necessário ultrapassar as perspectivas de estudos nacionais e nacionalistas. Ao procurar reconstituir o tecido social das relações étnico-raciais num universo social em que a raça, a memória da escravidão e a modernidade eram mediadas pela ação política de Luiz Gama, procurei apresentar uma intelectualidade que considero diaspórica, pois suas reflexões partiam do espaço da dupla consciência.

É um sentimento particular, esta dupla consciência, esta sensação de sempre olhar para o seu eu através dos olhos dos outros, de medir a sua alma com a régua de um mundo que o observa com divertido desprezo e piedade. Sua dualidade é constantemente sentida – um americano, um negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços inconciliáveis; dois ideais em guerra em um só corpo escuro, cuja força tenaz apenas é o que o impede de se dilacerar686 .

A forma como Luiz Gama viveu essa dualidade de, a um só tempo, ser um sujeito diferente racialmente (bode, preto, mulato, negro) e ser brasileiro, foi a base para as nossas reflexões. E, nos momentos em que essas identidades mostraram-se aparentemente contraditórias, procuramos mostrar o quanto a diáspora perturbou a mecânica do pertencimento e as ideias de pureza racial. Procuramos dar evidência, na memória social de Luiz Gama, à percepção que os diferentes segmentos e grupos sociais deram às suas posições a respeito das relações raciais, ora silenciando, ora fazendo uso de uma memória seletiva e forjada. Ressaltamos, também, os momentos em que a memória social desse intelectual possibilitou a construção de narrativas para eliminar tudo que pudesse desestabilizar uma ordem social racista e naqueles em quem instrumentalizou lutas e constituiu-se numa força simbólica que deu suporte ideológico para luta contra as formas de opressão racial.

686 DU BOIS, W. E. B. The Souls of Black Folk. Nova York: Barnes & Noble, 2003. p.09. 232

Na virada do milênio 687 , houve uma volta aos estudos do fenômeno da miscigenação numa perspectiva crítica, a partir dos sentidos e significados dos sujeitos miscigenados. Esse tema teve como epicentro teórico a pesquisa monográfica realizada por Von Martius a pedido do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, passando por Varnhagen, satirizado por Luiz Gama, rediscutido por Nina Rodrigues, , Silvio Romero, Oliveira Viana, chegando ao ápice da discussão no século XX com Gilberto Freyre, entre outras dezenas de trabalhos que procuraram discutir sistematicamente e com grande aprofundamento teórico e metodológico a questão da mescla cultural e racial. A sociedade moderna paulistana vivida por Luiz Gama passou por constantes mudanças rápidas, permanentes, abrangentes e contínuas que se contrapunham às posições que os sujeitos tomavam de suas identidades raciais. Identificando-a como completamente unificada e completa, Gama procurou questionar essas posições, pois carregavam em si uma ideia de hierarquização e privilégios. A percepção contemporânea dos movimentos negros a respeito da memória de Luiz Gama teve seu ponto alto nas comemorações dos 100 anos da abolição da escravatura, em 1988. Luiz Gama divide com Zumbi dos Palmares - este último ocupa, indiscutivelmente, lugar de destaque nas homenagens aos vultos negros - o panteão dos “heróis” representativos nacionalmente para o segmento militante negro. No centenário, aconteceram atividades políticas e culturais em todo o país, organizadas pelas mais variadas entidades públicas e privadas, movimentos e organizações negras, sindicatos e partidos políticos. Nas atividades oficiais, ou seja, naquelas patrocinadas e organizadas pelo governo federal, sob a responsabilidade da FUNARTE – Fundação Nacional de Arte, destacou-se o lançamento de um concurso nacional de monografias sobre a abolição e lançamento de livros relativos à temática, inclusive sobre Luiz Gama. No ano do centenário, uma das maiores organizações negras do país, com seções em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Bahia, Pernambuco, Minas

687 VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo , nº08, agosto de 1999. p. 12. 233

Gerais e Rio Grande do Sul, o MNU – Movimento Negro Unificado, lançou um manifesto 688 nacional instituindo o 13 de maio como Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo. O texto procurou denunciar “a forma golpista como foi realizada a Abolição da escravatura 689 ”, deixando os negros “desalojados do processo produtivo da nação 690 ”. O texto inicia afirmando que o 13 de maio foi um dia feliz para a classe dominante e encerra com a expressão “Basta de Racismo 691 ”. Faz uso de uma das passagens de Luiz Gama, que embora distorcida 692 , tornou-se muito popular: “todo escravo que mata o seu senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa693 ”. Essa expressão não só denota resistência como apresenta uma força capaz de legitimar ações políticas radicais no combate à dominação racial. O movimento negro não foi o único a utilizar essa expressão com esse espírito de luta. Muitas publicações voltadas para um público mais amplo, notadamente popular, também procuravam dar ênfase a esta reflexão. A exemplo do livro 694 (formato de bolso) Luiz Gama – o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza Mahin, que utiliza esta passagem de Luiz Gama em sua epígrafe. As mais diferentes narrativas de Luiz Gama, quer sejam poéticas, jornalísticas, políticas ou jurídicas, deixaram um legado que tem contribuído ativamente para a mobilização de atitudes e políticas antirracistas em todo o país.

688 Manifesto Nacional do Movimento Negro Unificado – MNU, “Centenário da Abolição”. Museu Histórico Nacional, Biblioteca Nacional, Dôssie Relações Raciais. Consulta em 10 de dezembro de 2013. 689 Idem. 690 Ibidem. 691 Ibidem. 692 A frase correta é: “o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo indigno, que assassina heróis jamais se confundirão”. 693 Ibidem. 694 BENEDITO, Mouzar. LUIZ GAMA – o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza Mahin. São Paulo: Expressão Popular, 2006 (coleção viva o povo brasileiro). A editora deste livro, Expressão Popular, que tem como política editorial a publicação de materiais de relevância social, política e educativa para atender os interesses dos trabalhadores. Disponível em: < www.expressaopopular.com.br >. Acesso em: 19 de dezembro de 2013. 234

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236

ANEXOS

237

Carta autobiográfica de Luiz Gama para Lúcio de Mendonça

238

Figura 57 - Lúcio de Mendonça publica a biografia de Luiz Gama no jornal Gazeta da Tarde do Rio de Janeiro em 15 de dezembro de 1880.

Para uma melhor visualização e acesso ao conteúdo da carta em sua íntegra, transcrevemos abaixo a versão original.

São Paulo, 25 de julho de 1880.

Meu caro Lúcio,

Recebi o teu cartão com a data de 28 de pretérito.

Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoitado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes, e que sempre eu os trouxe de memória.

Nasci na cidade de S[ão] Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da Rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica. 239

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (Nagô de Nação) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio - era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do Dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na Corte, semque a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas, que conheciam-na e que deram-me sinais certos que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma «casa de dar fortuna», em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Em opinião dos meus informantes que esses «amotinados» fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano de 1861, voltando a São Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com esta carta envio-te. Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas : era fidalgo e pertencia a uma das principais famílias da Bahia de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome. Ele foi rico; e nesse tempo, muito extremoso para mim : criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836 ; e reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem, 240

na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho “Saraiva”. Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspeto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, à comissão, tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa. Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias. Dali saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir. Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com a idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio. Este alferes Antônio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província. Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas. 241

Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu "baiano". Valeu-me a pecha! O último recusante foi a venerando e simpático ancião Francisco Egídio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo. Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse: - Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; diz-me: onde nasceste? - Na Bahia, respondi eu. - Baiano? - exclamou admirado o excelente velho. - Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno. Repelido como "refugo", com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para casa do Sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio n. 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar. Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do Sr. Cardoso veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi- Guaçu, onde é fazendeiro. Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me às primeiras letras. Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosamente e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se. Estive, então, preso 39 dias, de 1o. de junho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e, às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos 242

olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em sonho vi que a levaram presa. Pareceu-me ouvi-Ia distintamente que chamava por mim. Dei um grito, espavorido saltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez. Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna. Voltei para minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi. Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. Sr. Conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho. Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que "por turbulento e sedicioso" fui demitido a "bem do serviço público", pelos conservadores, que então haviam subido ac poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário de polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte. A turbulência consistia em fazer parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas idéias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis. 243

Desde que fiz-me soldado, comecei a ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos. E redigi alguns. Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no "Ipiranga" à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime. Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras. Teu Luís.

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