Se c r e t a r i a d e Es t a d o d e Ed u c a ç ã o d o Rio d e Ja n e i r o Ano IV n.º 14

Judeus & Holandeses no Brasil Foto: Fred Jordão. Ag. Imago, Recife

Batalha dos Guararapes. Detalhe de mural cerâmico,

Portinari e os painéis Guerra e Paz Padre Antonio Vieira e os judeus A – dois olhares O Brasil holandês A Maurício de Nassau e os judeus no Brasil holandês Nassau, um renascentista em terras de Pernambuco A Hereges no Rio de Janeiro colonial José Mindlin, uma vida entre livros A Recordando Paulo Rónai

OUTUBRO - DEZEMBRO/2010 Revista eletrônica ano IV, n.º 14 Governador Se r g i o Ca b r a l Vice-governador Sumário Lu i z Fe r n a n d o So u z a SecretáriO de Estado de Educação 03 Mensagem da Secretaria Wi l s o n Ri s o l i a 04 Editorial Chefe de Gabinete Jo s é Ri c a r d o Sa r t i n i 05 Portinari e os painéis Guerra e Paz Subsecretário Executivo 08 Educação Patrimonial e Psicodrama pedagógico Ju l i o Ce s a r Mi r a n d a d a Ho r a Subsecretário de Gestão e Recursos de 11 Moisés avista a Terra Prometida Infraestrutura Sé r g i o Me n d e s 13 Padre Antonio Vieira e os judeus SUBSECRETÁRIO DE GESTÃO DA rede e de ensino 15 Antônio José, o Judeu An t ô n i o Jo s é Vi e i r a d e Pa i v a Ne t o 17 Clarice Lispector – dois olhares Subsecretária de Comunicação e Projetos De l a n i a Ca v a l c a n t i 20 A Estranha Nação de Rafael Mendes Editores Responsáveis Jo h n We s l e y Fr e i r e e He l e n i c e Va l i a s 23 Stephan Zweig: o homem sensível que um dia perdeu a esperança Ilustradores An t o n i o Si lv é r i o Ca r d i n o t d e So u z a 26 O Brasil holandês e Ra f a e l Ca r n e i r o Mo n t e i r o Conselho Editorial 29 Maurício de Nassau e os judeus no Brasil holandês An t o n i o Ol i n t o - in memoriam 32 Maurício de Nassau, um renascentista em Ca r l o s Le ss a terras de Pernambuco Ca r l o s Ne j a r Ce c i l i a Co s t a Ju n q u e i r a 35 A Batalha dos Guararapes e a formação ideológica El i a n a Re z e n d e Fu r t a d o d e Me n d o n ç a do Brasil-Nação Ev a n i l d o Be ch a r a Ha r o l d o Co s t a 38 Judeus-egípcios, imigrantes no Rio de Janeiro La u r a Sa n d r o n i Ne l s o n Ro d r i g u e s Fi l h o 40 Hereges no Rio de Janeiro colonial Ni r e u Ca v a l c a n t i Ro b e r t o Co r r ê a d o s Sa n t o s 43 José Mindlin, uma vida entre livros Agradecimentos 46 Recordando Paulo Rónai Aos acadêmicos da ABL Arnaldo Niskier, Carlos Nejar, , Geraldo Holanda Cavalcanti, 48 Adolpho Bloch: mais de um século depois e Murilo Melo Filho; a Benício Medeiros, Carlos Lessa, Cecilia Costa Junqueira, Evaldo Cabral de Mello, Jandira Neto, Jean- 50 Saudades de Samuel Michel Massa, Joëlle Rouchou, Laura Sandroni, Leonardo Dantas, Lucia Helena, Muniz Sodré, Filho, 52 O Brasil Holandês/ Entre Moisés e Macunaíma: os judeus Nireu Cavalcanti, Romério Rômulo e Ronaldo Vainfas, pela cessão graciosa de seus textos, e a Francisco Brennand pela que descobriram o Brasil cessão de imagem de seu mural Batalha dos Guararapes. A majestade do Xingu/ Haskalá, o Iluminismo judaico À inestimável contribuição do Projeto Portinari – seu 53 diretor, João e Suely Avellar, coordenadora; da ABL; da Fundação Biblioteca Nacional; e do Instituto Cultural 54 Clarice na cabeceira Carlos Scliar. Às editoras Altadena, Companhia das Letras, Garamond, Record, Rocco, SM, seus autores e editores. 55 Primos: histórias da herança árabe e judaica/ ABC do A Alice Gianotti, Anselmo Maciel, André Saman, Anna mundo judaico Maria Rennhack, Claudio Mello Sobrinho, Cora Rónai, Cristina Ventura, Elisa Albernaz, Fatima Ribeiro, Françoise Massa, 56 Aracy Guimaraes̃ Rosa: quem sabe faz a hora… Heloisa Pereira, Ione Teresinha de Carvalho, Jean Souza, Luiz Antonio de Souza, Luiz Marchesini, Mariana Mendes, 58 Os passos de Scliar, companheiro do mundo Marinez Teixeira, Paulino Cardoso, Pedro Martins, Rebeca Roubert, Regina Lamenza e Sonia Pedroso, pela colaboração 60 Fala, leitor à feitura deste número. A Angela Duque, por seu projeto gráfico, tratamento 61 Biblioteca Nacional – 200 anos de imagens e arte-final da revista. Aos colegas da SEEDUC Os conceitos emitidos representam unicamente as posições de seus autores. pelas expressivas ilustrações, Antonio Silvério Cardinot de Permitida a transcrição, desde que sem fins comerciais e citada a fonte. Souza e Rafael Carneiro Monteiro; a Ailce Malfetano Mattos, Registros na Fundação Biblioteca Nacional n.os 491.096 a 491.101 Ana Carolina de Aguiar, Catarina Soares de Melo, Elaine Batalha, Fernanda Martins, Gisela Cersósimo, Lívia Diniz, Edições digitais: educacao.rj.gov.br/educacaoemlinha Magda Sayão, Maria de Lourdes Machado, Maria Edileusa Contato com os editores: [email protected] ou [email protected]. Freitas, Mariana Garcia, Thiago Barbosa e a todos os que, Tiragem da edição impressa: 5 mil exemplares anonimamente, nos ajudaram a viabilizar esta edição. Impressão: Imprensa Oficial/RJ aLÔ, PROFESSOR

A Igreja e o Mosteiro de Igarassu. Frans Post, séc.XVII Mensagem da Secretaria

certam os editores de Educação em linha em olho: a argumentação e o diálogo, ao invés da repressão, buscar a riqueza de nossas matrizes culturais e outra forma de intolerância. A humanidade está cansada A aportes posteriores, e difundir a fé na capacidade de tentativas de imposição de pensamento único, demons- humana de superação dos obstáculos, repúdio ao pre- tram muitos dos artigos. As diferenças são inerentes à vida conceito e recusa à inação diante da adversidade. biológica e à social, não podendo ser eliminadas. Nossa Injustiça, sofrimento e perdas podem induzir à tarefa é propor a resignificação ou a “releitura” das pa- crença de que a derrota às vezes se impõe. Entretanto, lavras e dos comportamentos. Jamais se construiu a paz exemplos de Antonio Vieira, Adolpho Bloch, Paulo Rónai pela violência, pois que ela cria o antagônico vencedores x e outros, demonstram quanto se pode realizar, sobrepu- vencidos. Pela tolerância e diálogo os conflitos são supera- jando inimagináveis dificuldades. Como fez Aracy Gui- dos – ninguém perde, todos ganham. marães Rosa, ao arriscar a própria liberdade, sobrepondo Da edição destacaríamos também o legado paci- a consciência à conveniência para salvar muitas vidas. fista de Candido Portinari, em sua obra maior Guerra e A temática desta edição focaliza holandeses & ju- Paz, painéis que estarão expostos ao público, após 50 deus. Os primeiros, embora tendo ocupado terras brasi- anos ausentes do Brasil. Ele afirma: “uma pintura que leiras por pouco tempo, deixaram importante legado ur- não fala ao coração não é Arte, porque só ele a entende. banístico, científico e artístico que documenta a terra e a Só o coração nos poderá tornar melhores e essa é a gran- natureza do Brasil no séc. XVII, explêndido documental de função da Arte...” histórico, ainda hoje consultado. Por sua vez, resgatan- A SEEDUC agradece aos editores da revista e aos do a visão histórica de Von Martius e Varnhagen, Car- colaboradores que, graciosamente, concorrem para esta los Lessa dá destaque às Batalhas dos Guararapes e à cruzada em favor da prevalência dos mais altos valores: consequente expulsão dos holandeses como um dos epi- a tolerância, a convivência, a aceitação e o reconheci- sódios protoformadores da nacionalidade, momento em mento do outro e a busca do bem-comum, e disto José que as três etnias – ameríndia, africana e lusitana – se Mindlin é exemplo emblemático, ao doar, em vida, parte uniram para preservar a unidade territorial. preciosa de sua biblioteca à USP…. Os judeus, biblicamente povo escolhido por Deus, Parafraseando Nireu Cavalcanti, que o Dragão o poeta Carlos Nejar personifica em Moisés e versos ima- da Maldade não ressurja – protegido por armadura e ginários: A terra que sonhei, obstinado, (…) diante de bandeiras religiosas, políticas, econômicas, étnicas e mim se espraia. Nosso país, ao acolhê-los, tornou-se uma preconceitos de qualquer espécie – sobre nosso querido espécie de terra prometida. Mas a terra prometida – Bra- Estado e seus moradores. sil – não acolheu apenas os judeus: árabes, japoneses, Não seria outra nossa mensagem de fim de ano, espanhóis, italianos, franceses e outros povos e culturas ao ensejo do Natal, celebração do amor ao próximo, e do aqui encontraram abrigo, terra e povo acolhedor, disposto Ano Novo, esperança no porvir. Quem educa, crê num a recebê-los como a irmãos, reconhecendo que todos per- futuro melhor do que o presente, e sabe que a ação cole- tencemos à única raça existente – a humana… tiva supera a fragilidade do indivíduo. Como educadores, sempre combateremos atitudes de intolerância. Mas com armas superiores ao olho por Se c r e t a r i a d e Es t a d o d e Ed u c a ç ã o

3 aLÔ, PROFESSOR Editorial

ontinuamos, pelo 4.º ano, a divulgar mensagens de Personalidades judaicas são lembradas por vieses amor ao Brasil, à tolerância e à pluralidade de nossa afetivos: da França, Jean-Michel Massa, Recordando Paulo C cultura – somatório das autóctones e de outras que Rónai, o homenageia como paradigma dos tradutores bra- aqui chegaram após Cabral. Judeus & holandeses também sileiros. Benício Medeiros lembra aquele que revolucionou o temperaram o cadinho de línguas, falas, visões e ideias que jornalismo pátrio em Saudades de Samuel. E Romério Rômulo somos e continuaremos a ser. resgata n’ Os passos de Scliar, companheiro do mundo, o pin- A História relaciona judeus e holandeses a confli- tor que, mesmo na guerra, soube produzir beleza. tos lá e cá, mas iniciamos com algo que fala ao coração: a Outros resgates: Joëlle Rouchou fala da saga de Ju- obra de Candido Portinari e sua criação maior – os painéis deus-egípcios, imigrantes no Rio de Janeiro, que, apátridas, Guerra e Paz que, há meio século ornam a sede da ONU, e aqui encontraram abrigo. E Jandira Neto nos apresenta, em voltam à pátria para restauro e revisitação. Educação Patrimonial e Psicodrama pedagógico, a Jacob L. Nesta edição, um recorde: seis acadêmicos da ABL Moreno e seu método de recuperação psicológica através conosco colaboram. Carlos Nejar nos oferece o belo poema de encenações catárticas, experiência que o IAB realiza de Moisés avista a Terra Prometida. Arnaldo Niskier lembra, forma socioeducativa, integrando o sujeito ao patrimônio. em Padre Antonio Vieira e os judeus, um “soldado de Cris- Tratam sobre os holandeses três historiadores: to” que se arriscou pela nação hebraica. Moacyr Scliar, com os pernambucanos Evaldo Cabral de Mello, que recorre humor judaico, trata d’A Estranha Nação de Rafael Men- a fontes primárias, selecionadas e comentadas, dá voz à des. O mais recente membro da ABL, Geraldo Hollanda Ca- preciosa documentação da época, em O Brasil holandês; e valcanti, homenageia seu antecessor em José Mindlin, uma Leonardo Dantas, que põe em foco a figura e a obra de Nas- vida entre livros. Murilo Melo Filho recorda exemplo de te- sau, um renascentista em terras de Pernambuco. O carioca nacidade em Adolpho Bloch: mais de um século depois. Com Ronaldo Vainfas, com Maurício de Nassau e os judeus no Clarice Lispector – dois olhares, Eduardo Portella e Lucia Brasil holandês, evidencia o relacionamento destes povos Helena – acadêmica, mas não da ABL, retratam a autora e que influenciaram, no séc. XVII, a economia nordestina. a obra da mais brasileira das ucranianas. Por outro aspecto, Carlos Lessa em A Batalha dos Guara- Analisando os males do pensamento único e suas rapes e a formação ideológica do Brasil-Nação retoma as graves consequências: Nireu Cavalcanti, em Hereges no teses de Von Martius e Varnhagen, e reitera que a união Rio de Janeiro colonial, verbera a intolerância ideológica. das três etnias protoformadoras da nacionalidade brasilei- Nelson Rodrigues Filho evidencia que o pensamento uní- ra concorreu para a expulsão dos holandeses. Sobre o tema, voco não admite críticas pois, em Antônio José, o Judeu, na capa, destacamos fragmento do mural cerâmico Batalha comediógrafo morto pela Inquisição, seu humor era leitura dos Guararapes (33 x 2,5m), do artista plástico Francisco corrosiva das instituições portuguesas de então. Com acui- Brennand, localizado na Rua das Flores, em Recife. dade, Cecilia Junqueira cuida de Stephan Zweig: o homem Homenageando um dos mais valiosos bens cultu- sensível que um dia perdeu a esperança rais do país, Muniz Sodré, seu presidente, põe à luz a Bi- – escritor que, mesmo no Brasil, blioteca Nacional – 200 anos. não se livrou do fantasma Finalizando o ano e a 14.ª edição, esperamos ter cor- do nazismo. John Wesley respondido à gentileza de colaboradores e leitores e aos in- Freire revela a quase des- vestimentos da SEEDUC/RJ. Em 2011, continuaremos lutando conhecida, para uns, e para que os brasileiros se sintam brasileiros, nada mais que inesquecível para outros: brasileiros, e não incorporem inspirações sediciosas que pro- Aracy Guimaraes̃ Rosa, ponham adjetivos à riqueza do nosso brasileirismo. quem sabe faz a hora, e agradece a colaboração de He l e n i c e Va l i a s e Jo h n We s l e y Fr e i r e Osias wurman. Editores

Palácio Boa Vista, 1643, às margens do Capeberibe. Gravura sobre desenho de Frans Post Educação em Diálogo Portinari e os painéis Guerra e Paz

... A pintura que se desvincula do povo não é Arte – senão um passatempo, um jogo de cores cuja mensagem passa de epiderme em epiderme – e que tem um alcance pequeno. Ainda que realizada com inteligência e bom gosto nada dirá ao nosso coração – e uma pintura que não fala ao coração não é Arte, porque só ele a entende. Só o coração nos poderá tornar melhores e essa é a grande função da Arte. Não conheço nenhuma grande Arte que não esteja intimamente vinculada ao povo. As coisas comovedoras ferem de morte o artista e sua única salvação é retransmitir a mensagem que recebe. Pergunto-me: quais são as coisas comovedoras neste mundo de hoje? Não são por acaso as guerras, as tragédias provocadas pelas injustiças, pela desigualdade e pela fome? Haverá na natureza algo que grite mais alto ao coração do que isto?... Candido Portinari, 1947, em discurso a intelectuais argentinos

ez anos depois desse discurso, conhecer mais limites, enlutando milhões 1957, o governo brasileiro doou de homens, mulheres e crianças, e pondo à sede da ONU, recém-inaugu- em risco o próprio planeta, esta edição D tem por objetivo revelar ao mundo, em ou- rada em Nova York, os painéis Guerra e tro contexto, a poderosa carga simbólica Paz, pintados por Candido Portinari. en- dos painéis Guerra e Paz, que abarca os tre 1952-56, trabalhando com afinco, anseios de todas as nações que, como o ele confeccionou 180 estudos, esboços e Brasil, almejam a paz, a justiça e a frater- maquetes para os murais, entre estes, 18 nidade entre os povos. quadros de grande formato com detalhes Jo ã o Ca n d i d o Po r t i n a r i , filho do pintor em tamanho natural. O pintor jamais viu seu trabalho Há uma indiscutível coerência en- instalado: por ser simpatizante do comu- tre as pinturas rupestres de Lascaux e as nismo, o governo americano não permitiu obras pictóricas de Piero della Francesca e sua ida a Nova York para a inauguração. de Candido Portinari. De quarenta mil anos O Secretário-Geral da ONU, à época Dag para cá elas trazem a grande mensagem Hammarskjold, os considerou a mais im- da cultura humana, mantendo íntegra a portante obra de arte doada à instituição. pureza do conceito artístico, único fator Antes de os painéis saírem do Brasil essencial na análise das obras de arte e de seus significados. Pureza ancorada na o público exigiu vê-los, o Presidente Juscelino consciência responsável de quem vive in- Kubitschek abriu a exposição no Theatro Mu- tensamente o que faz e porque o faz. nicipal do Rio, e o povo lotou a casa. “Nunca vi Três artistas que, por meio da pintu- uma coisa assim”, disse um porteiro do teatro. ra, realizaram o milagre da comunicação Agora, os painéis Guerra e Paz, ex- desde antes da palavra falada, no caso do ponenciais da obra e dos ideais de Portinari, pintor de Lascaux e, maior do que a pala- voltarão ao Theatro Municipal, de 22 a 30 vra escrita, na obra de Piero della Frances- de dezembro próximo, para visitação pú- ca e de Candido Portinari no decorrer do blica. De 12 de janeiro a 30 de abril de último milênio. A pureza, na inteligência 2011, permanecerão no Palácio Gustavo Mulher, painel Guerra, 1955 do gênio que criou o conceito da pintura Capanema, onde haverá ateliê de restauro, nas paredes de sua gruta, é a mesma en- com visitas guiadas para escolas e atividades de arte-edu- contrável nos afrescos de Piero della Francesca e em toda a obra de Portinari, enriquecido neste último pela cação. Depois de restaurados, itineram ao Grand Palais, síntese social do nosso povo, descrita em toda sua pin- em Paris; ao Museu da Paz, em Hiroshima; à entrega do tura, culminando nos painéis expostos no prédio da prêmio Nobel da Paz, em Oslo; à Unesco, em Genebra, e ONU em Nova York. outros, antes de retornar à sede da ONU. Guerra e Paz são as duas grandes páginas da emocionante comunicação que o filósofo/pintor entrega Durante estas quase três décadas em que estive à humanidade; mensagens puras, sem concessões retó- à frente do Projeto Portinari, sempre sonhei comparti- ricas ou demagógicas encontráveis nas obras de artistas lhar com todos a emocionante história e o significado panfletários e políticos. (...) A progressiva assimilação dos painéis Guerra e Paz. Esta oportunidade surgiu do significado artístico da obra de Portinari contribuirá, agora, no aniversário de 50 anos de sua instalação sem dúvida, para todos caminharem na direção de uma no edifício-sede da ONU, em Nova York. sensibilidade futura, mais humana e mais agradecida Nestes tempos em que o mundo se encontra, mais aos gênios que souberam e saberão transmiti-la. do que nunca, ameaçado pelas guerras, pela violência nas cidades e no campo, pela agressão ao meio ambien- En r i c o Bi a n c o , auxiliar de Portinari te, pelas injustiças e desigualdades sociais, pela fome Depoimentos reproduzidos da obra Guerra e Paz – Portinari e pela pobreza, tempos em que a violência parece não Projeto Portinari, Rio de Janeiro, 2007

5 Educação em Diálogo

Guerra, 1952-1956. Painel a óleo/madeira compensada, 1400 x 1058 cm

6 Educação em Diálogo

Paz, 1952-1956. Painel a óleo/madeira compensada, 1400 x 953 cm

7 Educação em Diálogo Educação Patrimonial e Psicodrama pedagógico Fotos: Acervo do Instituto de Arqueologia Brasileira – IAB

Pedra do Chapéu, usada por povos pré-históricos como abrigo, apresentando pinturas rupestres. Cristalina, GO

Ja n d i r a Ne t o

necessidade de preservação do patrimônio cultu- fonte primária de conhecimento, reconhecimento para o ral surge fortemente com o movimento Moder- enriquecimento pessoal e coletivo. A nista – aqui no Brasil com início em 1922, e na Espaços como museus, arquivos públicos ou par- Europa na última década do século XIX – como “respos- ticulares, centros culturais, sítios arqueológicos, e ainda ta” da sociedade à crescente industrialização e seu repú- os equipamentos (escolas etc.) da própria comunidade- dio ao passado. sujeito (através de suas histórias, seus pertences), con- Mário de Andrade declara: “Não basta ensinar o siderados como baluartes de memória, são os principais analfabeto a ler. É preciso dar-lhe contemporaneamente ambientes de aporte dessa metodologia até hoje. o elemento em que possa exercer a faculdade que adqui- Utilizando-se deste formato, a legislação brasi- riu. Defender o nosso patrimônio histórico e artístico é leira o adotou visando assegurar a inclusão da Educa- alfabetização”. Resguardava assim uma identidade na- ção Patrimonial através da Lei de Diretrizes e Bases da cional baseada na pluralidade do nosso patrimônio his- Educação Nacional – Lei n.° 9.394/96 – que enfatiza, tórico, demonstrado por meio da multiplicidade étnica no seu artigo 26, que a parte diversificada dos currí- de nossa gente. culos dos ensinos Fundamental e Médio deve observar Ainda anônimo, esse movimento foi o início do as características regionais e locais da sociedade e da processo de Educação Patrimonial de origem inglesa (He- cultura. Abria espaço à construção de uma proposta de ritage Education), que germinava na mente daqueles que ensino voltada para a divulgação do acervo cultural em trabalhavam com as questões relativas à memória, em níveis estadual e municipal. várias partes do mundo, levados então pelo Modernismo O Ministério da Educação elaborou os Parâmetros que se difundia nos principais centros intelectuais do pla- Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamen- neta. Sua premissa é educar para a defesa do patrimô- tal, incluindo os chamados “temas transversais”. Entre nio, levando os indivíduos a um processo ativo de conhe- eles, o patrimônio histórico e a Educação Patrimonial, cimento crítico por meio da assimilação consciente deste pretendendo que estudantes brasileiros tenham oportu- e a natural valorização de sua herança cultural, com isto nidade de vivenciarem temas referentes ao Patrimônio fortalecendo seus sentimentos de identidade e cidadania. natural e cultural e possam entender suas diferenças. Propunha o conceito de “conhecer para preservar” como Na prática a Educação Patrimonial, tal como hoje base de desenvolvimento metodológico, utilizando-se da é conhecida, foi inicialmente aplicada no Museu Impe- observação do questionamento e da exploração de todos rial de Petrópolis na década de 90 pela museóloga Maria os aspectos do objeto patrimonial, explorando-o como de Lurdes Horta, que se baseou no método do Heritage

8 Educação em Diálogo

Education para desenvolver pes- quisas de grande relevância na área. Sua experiência foi adotada pelo Instituto de Patrimônio Histó- rico e Artístico Nacional – IPHAN, através da Portaria 230/2002, quando se atrelou a pesquisas co- nhecidas como de Salvamento ou de Resgate arqueológico. Tornou- se procedimento obrigatório de devolução sociocultural às comu- nidades afetadas pelas obras de impacto direto e indireto sobre o patrimônio arqueológico em todo o território nacional.1 Casa da família de Jacob L. Moreno, na Bulgária, e placa comemorativa Jacob Levy Moreno e seu le- gado à Educação O surgimento do Psicodrama enquanto método pedagógico O século XX foi profícuo ao aparecimento de grandes pen- O próprio Moreno atribuía a base sadores e cientistas preocupados de sua criação a experiências vividas en- com o desenvolvimento biopsicos- tre 1908 e 1911 com crianças de “rua”, social e espiritual do ser humano. nos Jardins de Viena. Com elas, dedicava- Destacaram-se Sigmund Freud, se a realizar improvisações em grupo. Ini- Carl Gustav Jung, Alfred Adler, Wi- cialmente era seu passatempo predileto e lhelm Reich, Carl Rogers entre ou- consistia em sentar-se ao pé de uma gran- tros, mas nenhum contribuiu tão de árvore, com crianças de rua a sua vol- significativamente para a psico- ta às quais contava contos de fadas. Se- logia com viés de sociatria socio- gundo ele, a parte mais interessante era cultural em suas práticas quanto quando, juntos, todos podiam participar o psiquiatra Jacob Levy Moreno da mesma história como personagens, no “país do faz de conta”. Observou que, (1889-1974), com o método psico- Foto de Jacob Levy Moreno, s/d. dramático. In sentirpsicologia.blogspot.com a cada dia, mais e mais crianças a ele se O criador do Teatro da Es- juntavam, deixando de ser simples passa- pontaneidade e da Catarse de Integração, e posterior- tempo, para se tornar um experimento a ser notado. mente do Psicodrama, nasceu em Bucareste, Romênia, no Doravante, em sua formação profissional, sempre seio de uma família judia oriunda da Península Ibérica. procurou se utilizar da improvisação como modo de abor- Quando tinha cinco anos sua família fixou residência em dar as questões de seus pacientes, mas foi somente em 1.º Viena, onde cresceu e estudou, formando-se em medicina de abril de 1921 – data considerada como a do nascimen- em 1917. Contemporâneo de Freud, diferentemente deste, to do Psicodrama – que “aplicou” a dramatização diante pensava que o paciente deveria ser tratado em seu con- de um grande público. No cenário colocou apenas um tro- texto social ao invés de deitado em um divã falando com no vermelho e uma coroa dourada e convidou pessoas da seu médico. plateia para protagonizarem o papel do rei. A tarefa era Seu pensamento foi profundamente influencia- simples: apenas dizer o que faria para organizar e diri- do pelas experiências ligadas ao modo de se sobreviver gir corretamente o país. O público presente faria o papel numa sociedade em guerra. Como parte delas, teve a do jurado. Ao final, nenhum dos que se apresentaram foi seu encargo, enquanto estagiário da Clinica Psiquiá- aprovado, causando grande comoção aos presentes. trica de Viena, refugiados tiroleses a quem assistiu, e Tomando consciência das possibilidades terapêu- ocupou-se também da readaptação de pequenos grupos ticas existentes no contato direto do sujeito com o objeto de prostitutas da cidade. Ao observar as extraordiná- – durante a representação, este jovem médico fundou o rias tensões psicológicas a que pessoas eram submeti- Teatro da Improvisação, surgindo então o Psicodrama das nesses ambientes, principia a conceber as primei- com fins terapêuticos, e ficando o psicodrama pedagógi- ras ideias sobre as estruturas e a geografia psicológica co relegado a segundo plano. dos grupos, e sobre as mútuas influências terapêuticas Nos anos sessenta, psicodramatistas argen- advindas do compartilhar entre seus membros. Tam- tinos como Rojas-Bermúdez e Maria Alicia Romaña bém a vivência filosófica e religiosa contribuíram para voltaram a se interessar e desenvolver o Psicodrama forjar o arcabouço teórico de seus conceitos. Estas lhes para fins pedagógicos. Com a vinda de Moreno ao Bra- chegaram quando redator da revista Der Neue Dãmon, sil para o V Congresso Internacional de Psicodrama e da qual eram colaboradores Franz Kafka, Martin Bu- Sociodrama, realizado em São Paulo em 1970, foi fun- ber, Franz Werler, Max Scheller, entre outros, e de seu dada a Associação Brasileira de Psicodrama e Socio- envolvimento espiritual com o movimento cabalista drama, e organizado o primeiro curso de Psicodrama denominado Hassidismo.2 Pedagógico no país (1971-72).

9 ENCONTROS COM A Literatura

Educação Patrimonial e Arqueologia fora (princípio da maiêutica de Sócrates). Desenvolve ações socioeducativas nas quais a sociedade (sujeito), Para fazer cumprir a legislação, o IPHAN vincula em contato direto com o objeto (objeto patrimonial por que, cada área/comunidade impactada por algum tipo ele escolhido), dele se apropria e o contextualiza como de obra deve ser objeto de resgate físico e memorial. coisa sua. Através da exploração do objeto por impro- Enquanto a equipe de arqueologia do Instituto de Ar- visações (dramatizações), dele se intera, nele penetra e queologia Brasileira – IAB3 executa o trabalho de res- através dele participa de seus aspectos essenciais, po- gate do patrimônio material dos sítios arqueológicos, a dendo então reconhecê-lo como parte de sua realidade equipe de Educação Patrimonial trabalha o tema com e de sua história (de qualquer tempo). No campo da as comunidades impactadas e com outros profissionais educação, infelizmente é muito rara sua utilização, mas e pessoas envolvidas com o Salvamento. Esta significa- certamente é algo que merece ser estudado além dos tiva mudança nos rumos das pesquisas em arqueologia limites institucionais e que representaria, sem dúvida, (antes eram basicamente de foro acadêmico) se operou também a mudança de mentalidade. na mesma época, tornando imperativo que a todos os Desta forma, a equipe vem utilizando o méto- Programas de Pesquisas Arqueológicas se integrassem do psicodramático de Jacob Levy Moreno, devidamente também Projetos de Educação Patrimonial. Antes de tal adaptado, para atender à legislação de forma criativa, lú- obrigatoriedade era normal que os resultados obtidos dica e inovadora, com resultados extremamente eficazes. pelos projetos e programas fossem apresentados apenas Levada esta metodologia ao âmbito escolar, cer- para o público acadêmico e por ele discutidos. tamente estudantes e mestres poderão melhor entender O Instituto de Arqueologia Brasileira, desde o contexto em que vivem e aprimorar a autoestima e o 2003, adotou o Psicodrama Pedagógico como método sentimento de identidade com o que constitui o patrimô- para trabalhar com Educação Patrimonial. Suas ações nio brasileiro. socioeducativas têm como principal assertiva colocar o sujeito (a comunidade) em contato direto com o objeto Notas (os bens patrimoniais resgatados) através da aplica- 1 Merece destaque a publicação do texto de HORTA, ção prática das quatro etapas de ação formuladas por Maria de Lourdes Parreiras; GRUMBERG, Evelina & MONTEI- Moreno: a 1.ª, aquecimento inespecífico (qualquer ação RO, Adriane Queiroz, Guia Básico de Educação Patrimonial. que mobilize a energia vital do sujeito da base do corpo IPHAN & Museu Imperial – Brasília/Petrópolis, 1999. 2 em direção ao cérebro); a 2.ª, aquecimento específico (a Movimento cabalístico criado pelo rabino Baal Shem Tov no século XVIII. Sua doutrina prega a necessidade de energia agora mobilizada no cérebro é focada no tema se substituir a relação vertical com Deus por uma relação a ser abordado no processo de (re)aprendizagem); a 3.ª, horizontal. Em seu texto “Palavras do Pai”, Moreno traz a dramatização (usando o improviso, o sujeito é literal- imagem não de um Deus distante, mas sim do Deus próxi- mente exposto ao objeto através da ação dramática); mo... que fala sem intermediários. 3 O Instituto de Arqueologia Brasileira é uma ONG fun- e a 4.ª, compartilhamento (o sujeito torna-se autor do dada em 29 de abril de 1961, com as finalidades precípuas “texto”, o “novo dono” do objeto patrimonial agora re- de pesquisar, ensinar e divulgar a Arqueologia brasileira. A significado na ação dramática). equipe de Educação Patrimonial é dirigida desde 2003 pela No caso da arqueologia, trabalhando sobretudo autora do texto, que adaptou a metodologia da pesquisa do com a cultura material, esta tarefa é certamente faci- Psicodrama Pedagógico de Jacob Levy Moreno aos proces- sos básicos da Educação Patrimonial e os vem desenvolven- litada, em que pese a diversidade e a qualidade de tal do com resultados surpreendentes. material. Quanto ao IAB, sua equipe vem atuando de forma inovadora, não levando aos grupos sociais o co- nhecimento de fora para dentro (do “especialista” para o Ja n d i r a Ne t o “público”) e sim buscando a informação de dentro para Psicóloga, socionomista e psicodramatista

Participantes de ação socioeducativa abraçam a Pedra do Chapéu, numa catarse de Integração

10 ENCONTROS COM A Literatura

Moisés avista a Terra Prometida*

Ca r l o s Ne j a r

Ao Pr. Gedelti Gueiros

A terra que sonhei, obstinado, Deus zeloso, Era a provação de Gileade a Dã, fogo que me cabia diante de mim se espraia. que me consome engolir noite É azul, cor de avelã, o rosto. a noite. branca centelha, Deu-me outro, Morrer, morrer verdejante. que terei. o que havia Mas nos meus olhos Um véu de velho sobre a alma. cala o horizonte, cobria o céu. pedra. A mesma sarça Mas tinha esta alegria que me apareceu incessante, tinha: E o corpo Agora em Deus, meu povo chegaria. vai calando sou eu. com a lágrima errante Ca r l o s Ne j a r de quem sabe: Mas não posso. Poeta, ficcionista e crítico das há luz viçosa Não posso. Academias Brasileira de Letras e Brasileira de Filosofia sobre os montes Não poderei jamais *In Os viventes. Record, 1999, p. 102-105 e os prados segurar a terra se vergam, com estas mãos ao peso terrenas de meu povo. e as aéreas. Ver é ir tocando Cumpri quarenta anos a terra morna, solta, desde quando larga, virgem, viva, salvo fui das águas. fofa, cantante, E mais quarenta jubilosa. entre dóceis ovelhas. Ir tocando E quarenta com os pés fortes de areias, fé, paciência do povo. acumulada, o mar aberto Ir tocando como um campo, o flamejante o paraíso. Horebe, o povo rebelde, Pois O conheço a tábua do testemunho, de tão perto, nuvem no tabernáculo, junco, rente. gotejante maná, No seu rasto arca, batalhas, fontes, o sol se cala. mortes, esvoaçantes Cara a cara, intrigas. falei com Ele. Deus ia na frente, Intercedi: incendiava a treva. que me riscasse do infinito Livro, E não entrei na terra. se riscado fosse Não podia. o povo. Vedado fui. ENCONTROS COM A Literatura Padre Antônio Vieira e os Judeus

Ar n a l d o Ni s k i e r

omos todos semitas espiritualmente”, afir- ma o Papa Pio XI, que no auge do hitleris- “Smo teve a coragem de publicar encíclica contra o nazismo arrogante e desumano. Quem a cita é o escritor Antônio Carlos Vilaça em prefácio ao meu livro – Padre Antônio Vieira e os judeus (Imago, Rio, 2004). E acrescenta: Que bom, que confortador ver-se um jesu- íta sair em defesa dos judeus. O antissemitismo é um absurdo, uma vergonha, um crime. Não te- nho dúvida em dizer que Vieira é a maior figura da história colonial do Brasil. Culturalmente, foi. E socialmente. Um líder. Um articulador. Um ins- pirador. Um contemporâneo do futuro. Pois esse homem singular, poderoso, defendeu os judeus. Retrato do Padre Antônio Vieira, de autor E os quis defender mais de uma vez, com toda desconhecido, séc. XVIII a sua eloquência irresistível e nobre. Um homem como Vieira não podia ser indiferente à causa dos para este Reino os mercadores que agora são de Holan- judeus. Soube fazê-lo com um realismo que a nós da e Castela, mas os de Flandres, França, Itália, Alema- hoje nos impressiona. Esse padre era um realista. nha, Veneza, Índias Ocidentais e outros muitos, com o que o Reino se fará poderosíssimo...”. Vieira viveu quase todo o século XVII (1608-97), Os argumentos foram questionados e ele padeceu período decisivo da história, e o marcou profundamente a intolerância vigente. Sua vida é exemplo a ser conhe- com a inteligência e firmeza de sua atuação. Foi dos raros cido, sobretudo pelas novas gerações – Vieira morou 52 homens a alcançar equilíbrio entre ação e contemplação. de seus 89 anos no Brasil. Os judeus serão eternamente Seus sermões e cartas bastariam para imortalizá-lo, não reconhecidos à sua memória. se limitou: foi missionário e catequista, estadista e di- Por mais pragmáticos que fossem os motivos de Viei- plomata, político e estrategista. Tivesse sede de poder e ra na defesa dos “homens de nação”, ele não descurou dos seria um líder da magnitude de Richelieu ou de Mazarino, aspectos humanos e religiosos, principalmente, da liberdade cardeais que mandaram na França mais do que os reis. de credo, na Proposta feita a el-rei D. João IV em 1643: Mas Vieira era um “soldado de Cristo”, obediente à Primeiramente, favorecer aos homens de Companhia de Jesus, e pautou sua vida pelos princípios de nação ou admiti-los neste Reino, na forma que se Santo Inácio de Loiola. Prestou os votos – obediência, po- propõe, não é contra lei alguma, divina nem hu- breza e castidade, sendo a obediência definida pela Com- mana, antes é muito conforme aos sagrados câ- panhia, como perinde ac cadaver, “igual à do cadáver”, nones, doutrina dos Santos Padres e resoluções indo para onde ordenassem sem reação. de muitos concílios gerais e particulares, que não ponho aqui, por não embaraçar este discurso, e Interessei-me pela relação de Vieira com “a nação se alegarão, sendo necessário. (...) hebraica” pela inesquecível conferência a que assisti, na Finalmente, o Sumo Pontífice, não só admi- Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro, quando te o que nós chamamos cristãos-novos (entre os o poeta Augusto Frederico Schmidt abordou o tema, e quais e os velhos nenhuma diferença se faz em pela bibliografia de João Francisco Lisboa, patrono da Itália), senão que, dentro da mesma Roma e em cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras – que ocu- outras cidades, consente sinagogas públicas dos po – que tratou com muita propriedade a intervenção de judeus que professarem a Lei de Moisés. Pois se na cabeça da Igreja se consentem Vieira na questão dos índios do Maranhão. homens que professam publicamente o Judaís- Quando os judeus foram expulsos de países da mo, por que não admitirá Portugal homens cris- Europa, sob a Inquisição no século XVII, Vieira partiu tãos batizados, de que só pode haver suspeita, em sua defesa e aconselhou a Portugal: “E não só virão que o não serão verdadeiros?

12 ENCONTROS COM A Literatura

Pela veemência na defesa dos judeus, os inqui- muito falam, blasonam e roncam denotam fraqueza... sidores acreditavam que Vieira tinha sangue hebraico. Assim, o melhor conselho é calar”. “Seus desafetos no Maranhão diziam que fora batizado Vieram os Sermões do Espírito Santo e da Epifa- em pé e em todos os tempos foi explorada a calúnia”, es- nia, ao lado de grande número de Cartas enviadas com creve o biógrafo, João Lúcio de Azevedo; segundo ele, da riqueza de detalhes a El-Rei. O primeiro dos Sermões foi rigorosa investigação de sangue que procederia o Santo pregado em São Luís, na igreja da Companhia de Jesus, Ofício, em vez de ascendência judia, tinha alguma coisa quando da partida de missão ao Amazonas. Teve que li- de mulato, tendo seu pai, Cristóvão Ravasco, por mãe, dar com índios naturais que não sabiam ler nem escre- “mulata serviçal na casa dos Condes de Unhão, de onde ver, que falavam o que ele chamava de línguas brutas, com o galã, avô de Vieira, foi despedida, por não lhes como o nheengaíba, o junina, o tapajó, o teremembê e o levarem os amos a bem os amores, que o casamento em mamaianá. Os nomes lhe causavam horror. seguida consagrou”. Segundo o autor, a bisavó de Vieira No Sermão da Epifania, pregado em Lisboa, teria vindo da África para Portugal como escrava, sendo 6/01/1662, após expulso do Maranhão, Vieira assinalou abundante a população de negros e mulatos no Reino na- que era preciso trabalhar com os dedos, escrevendo, apon- quela ocasião. tando e interpretando por acenos o que não era possível alcançar por palavras. “São acentos duros e estranhos”. Os Sermões Ardoroso defensor da justiça, embora favorável à escravidão negra, Vieira foi autor do Sermão da Sexagési- Entre as obras do padre há destaque especial para ma, 1655, defendendo a ideia de que “pregar é como se- os Sermões, que fizeram sucesso em prédicas aqui e no mear”. Combateu os excessos cometidos pela Inquisição. exterior. Integram a personalidade corajosa do grande re- ligioso, filósofo, político e orador e primoroso latinista. Conselheiro do Rei Sem hierarquizar, mas confiados na extrema atuali- Crítico da metrópole em relação à colônia, defendeu a dade dos conteúdos, lembramos algumas dessas obras- liberdade religiosa dos judeus, e contrapondo-se à Inquisição, primas, como o Sermão sobre a mentira, sátira mordaz foi preso por 813 dias “num covil apertado e escuro”, um ser- contra os nossos maiores, segundo seu biógrafo, incre- tão frigidíssimo, como costumava se referir a Coimbra. pando de mentirosos e maldizentes os procuradores do No livro Padre Antônio Vieira e os judeus, exal- Estado que voltavam a Lisboa com leis contrárias à li- tamos esse lado de sua personalidade, prestando-lhe berdade dos índios. Recitou sobre a verdade e a mentira merecido reconhecimento. O historiador Hernani Cidade longo discurso, demonstrando que “duas cousas não deixou clara essa posição: “O que portanto prejudicou podem andar juntas: a verdade e a mentira. E porque Vieira foi a inclinação para a gente hebreia que os inqui- não podem andar juntas, por isso as temos divididas: a sidores sentiam manifestada até a atribuição a D. João verdade no pregador, a mentira nos ouvintes”. IV da futura incorporação, no Reino de Cristo, das dez Fixou-se no M de Maranhão, M de murmurar, M de tribos perdidas de Israel”. motejar, M de maldizer, M de malsinar, M de mexericar e Pregador corajoso e lúcido, Vieira identificou- sobretudo M de mentir; mentir por palavras, se com o Velho Testamento, do qual mentir por obras, mentir por pen- extraiu contribuições aos seus samentos. De todos e por todos trabalhos. Mereceu de Men- os modos se mentia. “No Ma- des dos Remédios o co- ranhão até o sol era menti- mentário: roso, porque, amanhecendo muito claro e prometendo Defesa pron- ta, desassombrada, um formoso dia, de repen- eloquente, vigorosa, te e dentro de uma hora o linguagem forte, ló- céu se toldava de nuvens, gica incisiva e fulmi- e começava a chover como nante. Esse escrito no mais entranhado inver- (proposta feita a D. no. E daí já não era para João IV, em que se admirar que mentissem lhe representava o miserável estado do os habitantes como o céu Reino e a necessidade que sobre eles influía.” que tinha de admitir Contra os podero- os judeus mercado- sos da terra, seus adver- res que andavam sários, Vieira lançou o por diversas partes Sermão pregado aos pei- da Europa) estalou como um trovão... O xes: “Eis aqui, peixinhos que não devia causar ignorantes e miseráveis, menos espanto, apre- quão errado e enganoso ensão e temores era é este modo de vida que o saber-se que o pa- escolhestes... Os que ladino dos cristãos-

13 ENCONTROS COM A Literatura

novos e autor daquela Proposta so, Saul Levi Mortera, que era um jesuíta, homem então foi mestre de Spinoza. Este, na pujança da vida e do talen- porém, mais idoso e pruden- to, bem aceito na Corte, adora- te, lembrado talvez do pre- do nos meios aristocráticos e ceito da sinagoga em que devotos da capital, intimorato, ele e Manassés oficiavam, generoso, e cujo saber e habili- e segundo o qual não de- dade não conheciam limites. viam os hebreus, por amor da paz, disputar matérias Sem criticar o Tribunal do de crenças com os cristãos, Santo Ofício, despertou reações acabou recusando o encon- por defender posições favoráveis tro, com o que Vieira mais ao que constituíam a “gente de ruidosamente triunfou. Há nação” – os judeus. quem diga ter o jesuíta con- vertido Manassés de que o Conselheiro do rei, a ele verdadeiro Messias já tinha sugere que sejam vencidas as in- vindo e era Jesus Cristo; que fidelidades vigentes “com a espa- Manassés por seu turno o da do judaísmo, assim como os convencera do segundo ad- mesmos judeus, quando Deus os vento daquele que havia de governava, conquistaram a terra ser o imperador universal e da Promissão”. Incompreendido na de aí a origem de um trata- do que sobre o assunto mais época, a história de Portugal pode- tarde compôs. Se assim foi, ria ser escrita de maneira diferente. Antônio Vieira jamais o con- Vieira nunca ocultou sua simpatia fessou, não esquecendo pelo pela “nação hebraica”. Era amigo contrário, de publicar a sua do rabino Isaac Aboab da Fonse- vitória. A lenda jesuítica am- ca (1605-93), o primeiro rabino a pliou o caso, para introduzir Retrato do rabino Isaac Aboab da Fonseca na biografia, como é de uso chegar ao Brasil com Nassau. Exer- (1605 - 1693), intelectual judeu português nas lendas, o elemento ma- cendo atividades diplomáticas na ravilhoso. Holanda, o padre se aproximou de Aboab, e frequentou a sinagoga, ouvindo-lhe os sermões, A sinceridade na defesa dos judeus custou-lhe e elogiou a sabedoria religiosa e a eloquência do rabino. caro: em 1.º/10/1665, aos 53 anos, Vieira foi encarce- Manassés ben Israel, rabino da sinagoga de Amsterdã, foi rado em Coimbra, num cubículo de quinze por doze pal- autor da obra profética Esperança de Judá, cujo título ins- mos (3m30 por 2m64). pirou o padre a escrever a carta Esperanças de Portugal. Vieira enfrentava inimigo implacável ao imputar Vieira o conhecera indo à sinagoga assistir ao serviço reli- aos inquisidores as mortes do Marquês das Minas, da Mar- gioso e à pregação. João Lúcio de Azevedo observa: quesa de Fronteira e da Duquesa de Cadaval, e a apoplexia de D. Rodrigo de Meneses, todos favoráveis aos judeus, e ... judeus da Península Ibérica tinham proclamara: “Horrendas coisas são as que se imaginam e desde 1598 sinagoga em Amsterdã, não ain- ainda mais horrendas as que se inferem”. da o edifício tantas vezes celebrado, se bem que com demasias por monumento insigne, e Demonstrando notável espírito de síntese e genial que só em 1675 se inaugurou, mas uma casa manuseio das palavras, afirmou que “os inquisidores vi- simples de oração. A natural curiosidade le- viam da fé, enquanto os jesuítas morriam por ela”. vou ali uma vez Antônio Vieira. Assistiu ao Na carta aos judeus de Ruão, 1646, Vieira faz serviço religioso e à prédica pelo afamado ra- esta importante reflexão: “A minha jornada foi feita de bino Manassés ben Israel. É de crer que este, perigos e trabalhos, que em nenhuma parte dela falta- sabendo que ouvinte tinha na assembleia qui- ram, escapando milagrosamente das mãos dos dunquer- sesse exibir seus dotes de orador, e não pou- passe argumentos com que provar ao cristão queses e de várias tempestades em que os companheiros amigo a superioridade da antiga lei. À saída, padeceram naufrágio; e Deus, que de tantos perigos me porém, Vieira, sequioso de discussão, foi bus- guarda, deve ser para algum bem”. cá-lo, tornando-lhe os golpes de retórica e os Caberia muito bem, como epitáfio deste grande dois disputaram longo tempo. Eram ambos de homem, outra frase profética dessa carta: “As coisas igual força dialética, ambos por índole dispu- grandes não se acabam de repente; hão mister de tempo tadores, ambos versados na Escritura. Eram dois teólogos, dois exegetas, dois sabedores. e todas têm seu tempo”. A rota da espírito de cada um levava-os a encontrarem–se em um ponto de onde depois divergiam. Ligar as extremas distantes, a que por este modo chegavam, era obra impossí- Ar n a l d o Ni s k i e r vel. Deixaram a contenda como gladiadores Membro da Academia Brasileira de Letras cansados, cada qual por seu lado cantando Presidente do CIEE/Rio vitória. Não se contentando Vieira com essa Autor de vasta obra, da qual Branca Dias: o martírio pugna mandou desafio a outro rabino famo- (2006) e Haskalá, o Iluminismo judaico (2010)

14 ENCONTROS COM A Literatura ANTÔNIO JOSÉ, O JUDEU

Ne l s o n Ro d r i g u e s Fi l h o

As bonifrates Tibúrcio e D.Lancerote, em Guerras do alecrim e mangerona, ópera joco-séria, 1737

ntônio José da Silva, o judeu, nasceu no Rio de O teatro de Antônio José Janeiro em 08 de maio de 1705, filho de cristãos- novos. Vive no Brasil até os sete anos, quando Poeta e comediógrafo, Antonio José, segundo A os especialistas, deixou oito peças. Dentre elas, Vida ele e o irmão acompanham os pais, presos por judaísmo, para Portugal. Expropriados, aqui no Brasil, os bens da do grande D. Quixote de la Mancha e do gordo Sancho família, não mais retornam. Pança; Esopaida ou Vida de Esopo; Anfitrião ou Júpiter Em Portugal, Antônio José – formado em Cânones e Alcmena; e Guerras do alecrim e manjerona, estas em Coimbra, como o pai – vai ter no Direito a sua prin- com os textos cuidadosamente reproduzidos no livro cipal ocupação. As comédias de Antônio José, o Judeu, de Paulo Roberto Membro de família perseguida pela Inquisição, Pereira, leitura obrigatória para quem deseja conhecer será preso em 1737, e com ele a esposa, o irmão e a mãe melhor a obra do comediógrafo. idosa, culminando com a sua morte. Teatro próximo da opereta, as personagens se apresentam em forma de marionetes, feitas de cortiça e movidas por arame. Talvez por isso não tenha o au- Em 18 de outubro de 1739, diante de tor obtido a atenção dos críticos, na mesma medida da enorme público que incluía o cristianíssimo D. reação do público do Teatro do Bairro Alto de Lisboa, João V, a família real e o principal zelador da onde as peças eram apresentadas. fé, o cardeal d. Nuno da Cunha, inquisidor do Como comediógrafo, Antônio José recupera a reino, foi Antônio José executado por afixia no linha do teatro popular expresso nos autos de Gil Vi- garrote vil e depois queimado no Campo da cente, como moralidade. Mais sofisticado que o teatro Lã, local dessa barbárie em Lisboa. Sua morte guignol, desenvolve a sátira aos costumes e ao com- servia para confirmar mais uma vez a vitória portamento da nobreza, provocando a gargalhada do da intolerância religiosa fundamentada no espectador. ódio racial. Hábil versejador, competente criador de diálo- (PEREIRA, P.R., 2007) gos, é admirável no exercício de leitura da literatura

15 ENCONTROS COM A Literatura

e da mitologia, desenvolvendo uma prática de inter- O Massacre (Pogrom) de Lisboa textualidade expressa na paródia e na estilização. O aproveitamento de matrizes literárias e mitológicas ou Matança da Páscoa não significa que se enquadre no cânon neoclássico. Sua obra, na verdade, representa o barroco que tenta depurar o estilo, livrando-se do barroquismo então presente em novos poetas. O texto de Antônio José – a construção do hu- mor intertextual, zombeteiro, que, ao mesmo tempo, lê outros textos – é, em última instância, a leitura corrosiva das instituições portuguesas de então. A paródia, a estilização, o duplo sentido, a vi- veza dos diálogos, o aproveitamento de formas popu- lares em contraponto com a forma erudita, o equívo- co intencional, a alusão, o dito popular, o bobo como consciência do texto (exemplarmente expresso no Sancho Pança de Vida de D. Quixote...), o animismo e o antropomorfismo são alguns dos recursos de lin- guagem que provocam o riso (e a reflexão) do espec- tador (do leitor).

Repercussão

A vida de Antônio José teve mais atenção dos Da Contenda Cristã, que recentemente teve lugar em pósteros do que a obra, especialmente como tema da Lisboa, capital de Portugal, entre cristãos e cristãos- imaginação romântica. novos ou judeus, por causa do Deus Crucificado. Esta gravura sobreviveu ao Terremoto de Lisboa e O seu sacrifício e o absurdo fanatismo da In- ao incêndio da Torre do Tombo quisição, por exemplo, foram objeto da tragédia de Gonçalves Magalhães, O poeta e a inquisição (Coleção m 1492, milhares de judeus expulsos da Espanha por Dramatúrgica Brasileira, Serviço Nacional de Teatro, Fernado e Isabel – os reis católicos, foram para Portu- 1972), referida, aliás, pelo crítico Machado de Assis E gal, onde D. Manuel I era mais tolerante com eles. Mas (O Teatro de Gonçalves de Magalhães, “Semana Literá- a pressão espanhola levou os portugueses a forçar os judeus a se converterem ao catolicismo, desde 1497. ria”, seção do Diário do Rio de Janeiro, 13 fev. 1866, in: A Matança da Páscoa ocorreu em 1506: Portugal Machado de Assis, Obra completa, v.3, p.866, Aguilar, sofria com a seca, a fome e a peste. Na missa de Páscoa, 1985). no Mosteiro de São Domingos, rezava-se pelo fim daque- Camilo Castelo Branco publicou, em 1866, dois les males, e alguém jurou que o rosto de Cristo se ilumina- tomos, 538 páginas, um romance histórico, O judeu, ra – um milagre. Um cristão-novo, participante da missa, dedicado À memória de Antônio José da Silva, escritor sugeriu que a luz fora reflexo do sol e a multidão o lin- português assassinado nas fogueiras do Santo Ofício chou. Como os judeus da cidade eram malvistos, atribui- ram-se tais males a eles. Por três dias, incitados por frades em Lisboa, aos 19 de outubro de 1739, como constava dominicanos que prometiam absolvição dos pecados dos na 1ª edição. últimos 100 dias a quem matasse “hereges”, centenas de pessoas participaram das violências. O rei D. Manuel I fora a Beja visitar a mãe, e a corte Sugestões de leitura estava em Abrantes, fugindo à peste quando o massacre começou. As autoridades enviadas para interromper a DINES, Alberto. Vínculos de fogo. Antônio matança tiveram que fugir. Judeus adultos e crianças fo- José da Silva, o Judeu e outras histórias da Inqui- ram massacrados e queimados em fogueiras no Rossio. A matança só acabou quando João Rodrigues Mascarenhas, sição. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. escudeiro do rei e cristão-novo, foi morto e as tropas in- SILVA, Antônio José da. Guerras do Alecrim e tervieram. D. Manuel I confiscou os bens dos envolvidos, Manjerona. Edição fac-similada. Prefácio de Pau- os dominicanos instigadores foram condenados à morte, e o Convento foi fechado por oito anos. lo Pereira. Rio de Janeiro: Xerox, 1987. Após o massacre, o antissemitismo cresceu, e o . As comédias de Antônio José, o judeu. Tribunal do Santo Ofício se instalou entre 1540 e 1821, levando judeus a fugirem para os Países Baixos, França, Organização, introdução e notas de Paulo Rober- Turquia e Brasil, entre outros. Mas, expulsos, só deixavam to Pereira. São Paulo: Martins, 2007. Portugal pagando um “resgate” à Coroa. SILVEIRA, Francisco Maciel. Conceito barroco in Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa às óperas do judeu, ou, O bifrontismo de Jano: Memória, Damião de Góis uma no cravo, outra na ferradura. São Paulo: Ne l s o n Ro d r i g u e s Fi l h o Perspectiva, 1992. Mestre e Doutor em Letras pela UFRJ www.nelrofi.blog.uol.com.br

16 ENCONTROS COM A Literatura Clarice Lispector – dois olhares Acervo Ed. Rocco

Perfil de um ser eleito*

Ed u a r d o Po r t e l l a

larice foi uma amiga muito querida, e uma disse que a minha palavra crítica entendia-se muito escritora entranhável, daquelas sem as quais bem com o seu trabalho. Na ocasião não estava mui- C fica difícil viver intensamente. to feliz com as leituras estruturalistas da sua obra. Durante certo período, antes de ir para Brasí- Vencido, aceitei a incumbência inútil. Demo- lia, convivi com ela assiduamente, e aprendi muito. rei um pouco a escrever. Ela ligou para Célia, e disse Sobre a vida, sobre a literatura. Quando fui nomeado que eu não devia ter gostado do livro. Imediatamente diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiá- escrevi uma nota introdutória, e fiz chegar às suas ticos, órgão criado na Presidência da República, fiz mãos. Ela me telefonou e disse: “Eduardo, eu gostei dela redatora do boletim, preocupado que estava com muito, mas...” Eu interrompi a fala e me apressei: suas finanças. Clarice ficou um pouco assustada, e “Clarice, não há problema, pode cortar o que quiser, logo me perguntou o que teria que fazer. Eu respondi: pode até jogar fora.” Ela me parou dizendo: “Não é nada, apenas bolar uma ou outra ideia, quando fosse nada disso. É que, se você não se chatear, fiquei com o caso. inveja de uma frase sua.” “Qual?”, perguntei surpre- Quando fiz o concurso público para titular da endido: “É aquela em que você diz ‘Nós somos o que Faculdade de Letras da UFRJ, ela acompanhou pesso- nos falta’.” “Mas Clarice, essa frase é clariciana, só almente e escreveu generosamente sobre o assunto foi escrita por causa de você.” Era assim Clarice, a na imprensa do Rio. elegância e a polidez em pessoa. Lá um dia ela me telefonou e pediu para que prefaciasse o seu novo romance, A hora da estrela. Ed u a r d o Po r t e l l a Disse-lhe que não, que ela não precisou de prefácio Escritor, crítico em Perto do coração selvagem, quanto mais agora. Membro da Academia Brasileira de Letras * Excerto de Clarice na cabeceira: crônicas. Ela contra-argumentou com as “afinidades eletivas”, Rocco, 2010, pp.45-6

17 ENCONTROS COM A Literatura

Nem musa, nem medusa **

Lu c i a He l e n a

A desmedida: os limites, o estrangeiro, o estranho encontra seu impulso na provocação do estranha- mento, no deslocamento de lugares culturais pron- udo pode acontecer num território ao mesmo tos, e torna o modo estranho de ser uma forma de ser tempo limitado e sem limites, como na obra e de estar ali. T de Clarice, já que não há hipótese de transbor- Saboreia-se o inconcluso numa narrativa que damento para fora, levados os marcadores ao pon- tem no ilimitado seu alvo condutor, pois a figura em to zero. No prefácio à tradução norte-americana de Clarice é a metamorfose.2 Ela é alegórica. E a ordem Água viva (AV), diz Hélène Cixous que, em Lispector, subjacente da sintaxe entra em conflito com a maté- opera-se por morte e renascimento, num fluxo inces- ria frouxa da superfície semântica, fazendo com que sante de ramificações. ressalte no conjunto o arranjo de contradições. Como no mito de Fênix, nada é fixo, e uma vio- Essas contradições são o fio lascivo da lingua- lência latente mantém em contínua atividade um pro- gem, entidade elástica. Daí não causar espécie que um cesso inestancável de significação. Em meio à voragem, dos limites em que se estende a corda do trapézio seja o em que “vísceras torturadas” nos guiam, há também o da experiência da linguagem, que a autora impõe quase seu contrário, o cuidado de não ser voraz, de que trata a sem pudor de repetir-se, já que na maioria de suas obras narradora, não sem humor, em “A arte de não ser voraz” o leitor é convidado a pescar a entrelinha, ambicionar a de A legião estrangeira: “Moi, Madame, j’aime manger quarta dimensão da palavra e sentir e lamentar a impo- juste avant la faim. Ça fait plus distingué” (p. 169).1 O tência do signo, quase à exaustão. fragmento leva a cogitar que não ser voraz, nesse uni- Na poética de um Augusto dos Anjos, de quem verso de avidez, é ato a ser grafado na língua do outro, Clarice Lispector se aproxima na angústia causada ato estranho, estrangeiro. pela busca da totalidade impossível, seria como es- A ficção de Lispector distende uma corda, de barrar “no molambo da língua paralítica, tísica, tê- tenso equilíbrio, trapézio sutil nos detalhes, no qual nue, mínima e raquítica”.3 Na de Lispector, consiste se convive com a falta de organização da estrutura em referir-se à difícil dinâmica do continente e do maior. Por essa razão, seu texto é atravessado, de conteúdo – do ovo e da galinha, da origem e da fina- ponta a ponta, por um frágil fio condutor, levando o lidade da vida e da criação. leitor à experiência do vazio. A questão do outro, do No paradigma da voracidade, que abre a cena estrangeiro, aí se implanta, pois a ficção em exame do ilimitado e da desmedida, encontram-se as fron-

18 ENCONTROS COM A Literatura teiras da origem e da finitude, da vida e da morte, do imigrante, do permanentemente estrangeiro, não importa onde. E, nesse limite, o enunciado (a meto- nímia, a sinédoque, a articulação entre as partes na linha do discurso, do sintagma) e o paradigma (a me- táfora, o delírio, a condensação, a poesia, o silêncio e a autorreferência) dobram-se entre si, numa escrita que procura conter e ser contida, mas incontinente escapa em busca do inefável e do inominável, assim como dela escapam o figurativo e o real que ela quer nomear e representar.

Os espelhos, a representação

Procurar a relação da cultura com a literatura na obra de Lispector é como buscar compreender a Articulando as diferenças, ressoa uma questão articulação entre o ovo e a galinha em seus contos. antiga – “desde Moisés se sabe que a palavra é divina” Significa dar de cara com um signo móvel, em que – a ecoar nos textos de Lispector: a percepção de que todos os sentidos cabem, o que é condizente com a já escrever é uma atividade em palimpsesto, de mobilida- comentada “voracidade” do mundo narrado em seus des e correspondências, de alterações de seres, estados, textos. Entretanto, num processo de significação que formas e significações. É, no universo de Clarice Lispec- evoca sem afirmar, a autora registra diversas vezes tor, enfrentar, com a voragem de uma incandescência, os que não escreve sob inspiração. Há em sua obra uma limites da maldição, da salvação, da cura, da doença, do educação pelo obstáculo, na qual se procura avançar contágio, da palavra e da coisa. o limite da linguagem e da significação, até o impro- Esse é o lugar-enfeitiçado do instante-já, do cru- nunciável. zamento da história, da petrificação, ao mesmo tempo Falar de literatura e cultura é tratar das formas que da mudança. Nele o sujeito está em deriva e as for- e das substâncias do conteúdo, palavras malditas. mas e a significação em contínua transmutação. Lugar- Recorro ao texto “A geleia viva”, matriz de Água viva. tempo das alegorias, da alteridade e do silêncio, onde Como um ovo dentro de uma galinha, encontro Água a literatura transgressora realiza seu pacto com o real: viva germinando nesse texto. É a mímesis de extrema “O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. autorreferencialidade que caracteriza a vocação para Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela o abismo da obra de Lispector: “Havia uma geleia que e estou à tona de brilhante escuridão” (AV). estava viva. Quais eram os sentimentos da geleia? O As relações entre literatura e cultura em Lispector silêncio. Viva e silenciosa, a geleia arrastava-se com nos conduzem a considerar que só na esfera das ilu- dificuldade sobre a mesa” (A legião estrangeira). sões cabe à arte retratar o real. Tarefa impossível. O A geleia – vai-nos dizendo o narrador – não se der- real excede. Lispector sabe disso. rama. Esparrama-se. E gera contágio: “Quando a olhei, nela vi espelhado meu próprio rosto mexendo-se lento Referências na sua vida”. Era noite fechada, continua a narradora, 1 Em português, “Eu, madame, gosto de comer exata- insistindo na primeira pessoa: “Lançada no horror, quis mente antes da fome. É mais elegante”. fugir da geleia, fui ao terraço, pronta a me lançar daquele 2 “Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação [...]. Vivo de esbo- meu último andar da Rua Marquês de Abrantes. (...) Mas ços não acabados e vacilantes” (Um sopro de vida, 85). antes de saltar eu resolvi pintar os lábios”. 3 Do soneto “A ideia”: “De onde ela vem?! De que matéria Numa cadência metonímica, o texto vai com- bruta/ Vem essa luz que sobre as nebulosas/ Cai de incógni- tas criptas misteriosas/ Como as estalactites duma gruta?!// pondo e decompondo, entre o claro e o escuro, o Vem da psicogenética e alva luta/ Do feixe de moléculas ner- acordar e o adormecer da personagem, o terraço e o vosas,/ Que, em desintegrações maravilhosas,/ Delibera, e quarto, entre a geleia viva e a mulher que pensa em depois, quer e executa!// Vem do encéfalo absconso que a constringe,/ Chega em seguida às cordas do laringe,/ Tísica, morrer e quer salvar-se, um rosto desagregado e uma tênue, mínima e raquítica...// Quebra a força centrípeta que ambiência desagregante. A fronteira entre a vida e a a amarra,/ Mas, de repente, e quase morta, esbarra/ No mo- morte vai ficando cada vez mais reluzente. Os valo- lambo da língua paralítica!//(Anjos, Augusto dos. Eu. 31. ed. res se trocam e acontece, semanticamente, o inverso Rio de Janeiro: São José, 1971). do que se deveria esperar. Quando a luz se acende, a geleia viva está transformada em parede, em teto e, Lu c i a He l e n a diz o texto, vai-se “matando tudo que se podia matar; Professora Titular de Literatura Brasileira da UFF Autora, dentre outros, de Ficções do Desassossego tentando restaurar a paz da morte em torno de nós, (Contra capa, 2010) e de fugindo ao que era pior que a morte: a vida pura, a ** Nem musa nem medusa: itinerários de escrita geleia viva”. em Clarice Lispector.

19 ENCONTROS COM A Literatura

A estranha nação de Rafael Mendes*

Mo a c y r Sc l i a r

ois amigos, Rafael Mendes e Joseph de Cas- sa, à época residindo em Amsterdam, correspondia-se tro viviam na cidade de Recife, que, sob do- em holandês. Estudando na escola Árvore da Vida e na mínio holandês, era conhecida como a Nova Academia da Coroa da Lei, Espinosa conhecia a obra de Amsterdam – ou, nas palavras de Rafael, a Maimônides; seu conhecimento do judaísmo e da filoso- DJerusalém do Novo Mundo, a cidade onde as glórias da fia em geral era enorme. Na correspondência, discutiam fé mosaica podiam ser proclamadas numa belíssima si- tudo, desde o pecado original ao polimento de lentes, nagoga, toda ornamentada em jacarandá e ouro. que era também a ocupação de Espinosa; o filósofo Cristãos-novos que tinham retornado à fé judaica, orgulhava-se dos óculos que fabricava, e que, segun- os dois trabalhavam juntos. Dedicavam-se ao polimento do ele, alargavam não apenas o campo da visão, mas o de lentes, ofício que tinham aprendido com um mestre conhecimento da própria vida. De Espinosa, Joseph ad- holandês e no qual eram pioneiros no Brasil. Joseph era quiriu a paixão pela liberdade e o horror à superstição. o mais dedicado: chegava à oficina ainda de madrugada, Continuou a lhe escrever mesmo depois que o filósofo, só saía a altas horas da noite, trabalhando muitas vezes um livre-pensador, foi excomungado pela comunidade à luz de velas. Rafael exprobava-lhe tal imprudência: es- judaica de Amsterdam. tás estragando os olhos, dizia, o bem mais precioso que Joseph mantinha ligações com gnósticos, rosa- Deus nos concedeu. Joseph não lhe dava ouvidos. Era cruzes e pedreiros-livres e admirava a alquimia. Combi- um homem teimoso, irascível. Não encontrava mulher nando lentes confeccionara um aparelho que lhe permitia que o aturasse, apesar dos esforços da esposa de Rafael, ver minúsculos seres, de formas as mais variadas, viven- ativa casamenteira. Não saía de casa, não ia a festas; e do nos lugares mais imprevistos: na água estagnada, nas mesmo em alegres celebrações – Purim, por exemplo, a fezes, nas entranhas dos peixes, no seu próprio sêmen, festa da Rainha Esther – não sorria, como todos, à lem- colhido num vaso mediante pecaminosas fantasias. brança do castigo infligido pelo Rei a seu cruel ministro Também combinava lentes para fazer telescópios, Haman, algoz dos judeus da Pérsia e precursor, de certo à maneira de Galileu Galilei. Em noites estreladas su- modo, da Inquisição. bia ao terraço da casa e lá ficava, perscrutando os céus Lia muito. Apreciava os filósofos da nação; pre- brasileiros através da complicada armação tubular. Pro- zava sobremaneira o rebelde Uriel da Costa, que pregava curava o planeta para onde tinha fugido o Profeta Elias um judaísmo de livre consciência. Com Baruch Espino- em seu carro de fogo. Sabia que periodicamente Elias

20 ENCONTROS COM A Literatura voltava à terra para buscar justos, homens ou mulheres. Uma co- munidade se constituíra assim, e vivia em algum lugar da abóbada celestial. Dali, as pessoas falavam diretamente com Deus; bastava- lhe fechar os olhos e, pronto, esta- vam em comunicação direta com o Senhor. Também se comunica- vam entre si sem falar – telepatia –, um princípio que Joseph pre- tendia aproveitar um dia em seus esforços para substituir precários serviços postais de então. Ninguém entendia por que, não sendo astrônomo, pas- sava Joseph tantas horas ao te- lescópio. Que história é esta de procurar outros mundos? – per- guntava-lhe o pintor holandês Frans Post, um de seus poucos amigos, por que não te contentas com o Brasil, um país judeus, um povo de comerciantes. Desta verdade Rafael tão belo? Não me entendes, respondia o amargurado Jo- Mendes tirava forças para enfrentar o riso escarninho seph. Há um único lugar no Universo em que eu poderia do maligno Joseph. ser feliz... E este lugar está fora de meu alcance. Tudo Também pela administração holandesa Joseph que posso fazer é esperar que o Profeta Elias me leve era encarado com suspeição, devido a um atrito com o para lá em seu carro de fogo. comandante militar batavo. Este ouvira falar maravi- – Mas – perguntava, exaltado ao amigo Rafael – lhas do telescópio de Joseph; com aquele instrumento, será que o Profeta virá aqui? A intriga e a corrupção rei- dizia-se, mesmo um observador pouco atento poderia nam no Recife. A gente da nação vendeu-se por açúcar! descobrir um veleiro português a uma longa distân- Rafael sorria a tais comentários, mas não deixava cia. Chamado a prestar esclarecimentos, Joseph não de se inquietar com o tom de rebeldia e sobretudo com quis confirmar nem desmentir as alegadas qualidades as implicações destas afirmativas, nitidamente heréticas. de seu invento; e tampouco se dispôs a fazer uma de- Procurava convencer o amigo a abandonar suas extra- monstração para as autoridades militares. O comandan- vagantes ideias. Por que não se contentava Joseph com te ficou furioso. Sabia de cristãos-novos que continua- bem exercer o ofício de fabricar lentes? Há tanta gente vam mantendo contato com os portugueses, o que aliás por aí precisando de nós, dizia, tanto míope, tanto vesgo, deixava-o intrigado: o que queriam os judeus com seus tanto velhinho quase cego. E pagando bem, acrescenta- antigos algozes? Por que estariam conspirando juntos? va. Joseph não lhe dava atenção. Desprezava as coisas Que interesses estavam em jogo? Terras? Privilégios na materiais, não queria palácios com fontes murmurantes exportação de açúcar? Uns pérfidos, concluía o holan- nem concubinas vestidas de seda. Não queria anéis, nem dês, vendem-se por trinta moedas; não fosse por sua pulseiras, nem colares, nem ouro, nem diamantes. Não habilidade tradicional – no comércio, nas finanças, na quer nada, dizia a mulher de Rafael, irônica, quer apenas lapidação de diamantes, no polimento de lentes –, deve- semear o ódio; quer nos trazer dor e desgraça, como se já riam ser crucificados como fizeram com Cristo. Na lista não bastasse o que sofremos com a Inquisição. dos suspeitos ao governo batavo, Joseph de Castro pas- Instava com o marido para que se separasse do sou a figurar em primeiro lugar. sócio. Rafael resistia. Em primeiro lugar, reconhecia em O conflito latente entre a comunidade judaica e Joseph um óptico competente. Além disto, gostava dele, Joseph estourou quando ele publicou um livreto chama- não queria abandoná-lo – seria talvez precipitar um ho- do “As Criaturinhas do Açúcar”, que assim começava: mem, que já era esquisito, no fundo do poço, nas águas “A cotação do açúcar está em alta na Europa. É pútridas da loucura. E, por fim, reconhecia um quê de ver- artigo de luxo: paga-se 18 gramas de ouro por uma ar- dade nas palavras de Joseph, ainda que fosse esta uma roba de açúcar. Porque a vida dos europeus é insípida; verdade incômoda. Verdade por verdade, preferia a verdade o açúcar adoça-lhes a boca, torna-os alegres, e ajuda- bíblica, a verdade que o rabino de Recife apregoava com os a engordar. É bonito, ser gordo. Os holandeses, por voz tronitruante na prédica das sextas-feiras. Aquilo sim exemplo, gostam de rostos rechonchudos e corados, de era uma boa verdade, amarga umas vezes, doce outras, ventres prósperos, de traseiros generosos; assim os re- mas sempre nutritiva, reconfortante. Em torno de uma tratam Rembrandt e Hals. Nas mesas batavas, vergadas verdade assim podia a comunidade se unir, sem que por ao peso de finas e variegadas iguarias, sucedem-se, às isso necessitasse romper com os holandeses, que res- carnes e aos peixes regados por ricos molhos, as caldas, peitavam a ética do Antigo Testamento e eram, como os os suspiros, os doces, as frutas cristalizadas... O açúcar

21 ENCONTROS COM A Literatura dá-lhes a energia de que precisam para conquistar ter- deliberar. Depois de várias horas de reunião a portas ras onde será plantada mais cana, que lhes dará mais fechadas, chamaram Rafael e anunciaram sua decisão: açúcar, que lhes aumentará as forças... Uma espiral que absolveriam Joseph de Castro de seus crimes, desde que leva à dominação do mundo. Mas tu, sonhador, tu não se submetesse à humilhação pública. Deveria entrar na te preocupas com isto. Desprezas os bens materiais. sinagoga vestindo roupas de luto, com uma vela negra Por isso te digo: mira fixo um cristal de açúcar. Obser- na mão e declararia perante a comunidade estar since- va como brilha! Parece um diamante. Continua olhando. ramente arrependido. Rafael implorou-lhes que fossem Nota como cresce a teus olhos, se expande e se arredon- menos severos. Inútil: a sentença estava lavrada. da, transforma-se numa bola, num grande globo de cris- Aturdido, Rafael saiu da sinagoga. Não sabia o tal. Dentro deste globo vês cenas extasiantes”. No globo, que fazer. Precisava falar com Joseph, mas não encon- o leitor perceberia curiosas criaturinhas; com o auxílio trava ânimo. Tenho de me acalmar, murmurava. Tenho de uma lente as identificaria como “seres humanos em de conversar com ele com toda a tranquilidade, como se miniatura, que se alimentam exclusivamente de açúcar. nada tivesse acontecido. São judeus; Jeová castigou-os por seu orgulho, reduzin- Ao cair da tarde dirigiu-se à oficina. Joseph po- do-os a proporções insignificantes”. lia uma lente, assobiando baixinho. Aflito, gaguejando, Mais adiante Joseph falava de um nobre que tinha narrou o ocorrido, falou da proposta que os chefes reli- mandado construir uma cidade inteira, toda de açúcar: giosos tinham feito: casas de açúcar, um castelo de açúcar, com torrinhas de – Aceita, Joseph! Por favor, aceita! E faz isto por açúcar; as vidraças das janelas eram finas, translúcidas teu amigo! O outro não respondeu. Terminou o poli- lâminas de açúcar. Se um hóspede deste castelo queria mento, guardou a lente numa caixa forrada de veludo. desfrutar melhor da paisagem, tudo o que tinha a fazer era Só então olhou para Rafael. Sorriu. Sem uma palavra, lamber uma vidraça até que se dissolvesse; avistaria então levantou-se, saiu. suaves colinas de açúcar, nas quais pastavam boizinhos de No dia seguinte não veio trabalhar. Alarmado, açúcar. A coisa que o nobre mais temia era que uma chu- Rafael foi procurá-lo em casa. A porta estava aberta. En- varada dissolvesse aquele encanto, levando toneladas de trou: ninguém. No quarto, como de hábito, livros e pa- açúcar para rios barrentos e para os verdes mares bravios. péis espalhados por toda parte. De Joseph, nem sinal. Para evitar este perigo, um gigantesco guarda-chuva bran- Retornou à oficina. Passou o dia inquieto, traba- co estava permanentemente aberto sobre a cidade. lhando mal. Não sabia o que pensar sobre o desapareci- A sátira causou revolta na comunidade judaica mento de Joseph. No fundo, desejava que tivesse fugido; do Recife. Várias centenas de exemplares do opúsculo que, por temor à comunidade, talvez, tivesse viajado para foram queimados em praça pública; um grupo, furioso, a Bahia ou para o Rio de Janeiro. Com o que os problemas apedrejou a casa de Joseph, obrigando-o a procurar refú- dele ficariam resolvidos; os dele e os do próprio Rafael. gio na casa de um padre cujos óculos consertara. A par- À noite retornou à casa de Joseph. Ninguém. Subiu tir de então passou a ser insultado em plena via pública, ao terraço. Não, Joseph não estava ali. O telescópio, no en- as crianças cuspindo quando ele passava. A mulher de tanto, continuava no lugar, a estrutura metálica apontan- Rafael ameaçou deixá-lo se o marido não rompesse com do para o céu. Uma ideia absurda ocorreu a Rafael: será o lunático. Rafael achou que era tempo de agir. que o Profeta Elias?... Espiou pela ocular. Não viu nada. Procurou os notáveis da comunidade, pediu-lhes Nem mesmo a lua que brilhava, enorme, no céu. que perdoassem Joseph. Ele não sabe o que diz, argu- Dois dias depois o cadáver de Joseph deu à praia, mentou, mas no fundo é boa pessoa, precisa de compai- olhos comidos pelos peixes, crustáceos saindo das nari- xão, de ajuda. Reuniram-se, os notáveis e o rabino, para nas. Foi enterrado no cemitério judaico em Recife, mas ao pé do muro, como suicida. Rafael ficou sendo o único óptico da cidade. Co- brava altos preços, e aos que reclamavam respondia com zombarias: não me façam chorar, sou de açúcar, posso me derreter. Durante algum tempo a mulher insistiu com ele para que vendesse o telescópio de Joseph ao comandan- te holandês. E fariam bom dinheiro, ganhariam prestí- gio. Rafael não dizia nada. Um dia, num acesso de fúria, atirou o aparelho pela janela, ameaçando fazer o mesmo com a mulher. Ela parou de incomodá-lo e daí por diante ele viveu relativamente feliz.

Mo a c y r Sc l i a r Médico e escritor Membro da Academia Brasileira de letras Autor de vasta obra: romance, conto, crônica, ficção infanto-juvenil e ensaio * Excerto de A estranha nação de Rafael Mendes. Porto Alegre, L&PM, 1983

22 ENCONTROS COM A Literatura Stefan Zweig: o homem sensível que um dia perdeu a esperança

Ce c i l i a Co s t a Ju n q u e i r a

m suicídio fica sempre envolto pela névoa do beleza, da literatura e da harmonia, pacifista convicto, mistério. E pela dor dos que ficam. Perplexidade. já carregava a morte na alma. Comprara Veronal em U Será que a pessoa que partira tão abruptamente 1940. E só estava a esticar a vida, prolongá-la um pou- não poderia ter ficado um pouquinho mais na Terra? quinho mais no paradisíaco Brasil, que elegera como Por que tomara aquela difícil decisão, a do dia para país do futuro. Pois há tempos trazia uma enorme cha- a noite arrancar a si própria dos braços da vida e se ga ou ferida em seu coração. deixar naufragar no nada da morte? Se o suicida é um Desde 1933, quando seus livros foram queima- homem rico, célebre e generoso, cheio de projetos literá- dos em Berlim, Stefan Zweig achara que havia começa- rios, casado com uma mulher jovem e bela, o enigma se do a perder, inexoravelmente, seu público e sua língua. torna ainda maior. Foi justamente o que aconteceu em A língua de seus sonhos. A língua que o havia trans- 22 de fevereiro de 1942 com o escritor austríaco Stefan formado no escritor mais popular de seu país, amado Zweig. Sua morte voluntária, ao lado da companheira em toda a Europa. A língua de sua memória, sua his- Lotte, na casa da rua Gonçalves Dias, 34, em Petrópolis, tória, suas primeiras paixões literárias, suas primeiras deixou inúmeras ques- peças, seus primeiros tões sem resposta para poemas. A língua dos os incontáveis amigos mestres da música. A que tanto o admiravam. da cidade na qual se Dos amigos e também formara, onde fizera de seus leitores das os primeiros amigos, mais variadas naciona- onde frequentara ca- lidades. Deixou e ainda fés, teatros, confe- deixa, motivando arti- rências, tertúlias li- gos, livros, novas bio- terárias. A língua de grafias, especulações. Mozart, Beethoven, Chegaram até mesmo Goethe, Bach, Haydn, a falar em maquinação Brahms, Schiller, Ril- de agentes da Gestapo ke, Heirich Heine. Sim, ou dos policiais de Fi- desde que seus livros linto Muller, o carrasco foram sacrificados de Getúlio Vargas. numa imensa pira, No entanto, quan- alguma coisa se que- to mais se lê sobre a vida brara dentro de Zweig. de Zweig, mais se perce- Os algozes da suástica be que, na realidade, haviam provocado uma ao chegar no Brasil, imensa rachadura em em 1941, o sensível filho seu coração quente de do milionário industrial cristal. Cristal transpa- têxtil Moritz e da refi- rente da Boêmia, terra nada Ida, amante da Zweig e Lotte. Buenos Aires, out. 1940 de seu pai.

23 ENCONTROS COM A Literatura

ler, Tagore, Strauss, Zweig come- çara a perder dentro de si a luz que antes tanto o iluminara. Ele, que antes tanto gostara de viajar, cruzar fronteiras, visitar países próximos, mas também distantes e exóticos, ao perder seu pouso, se sentiria solto no mundo. Um apá- trida. Um desenraizado. Há quem consiga aguentar as perdas. Mas o austríaco que se embriagava de arte e beleza perderia muito mais do que poderia suportar. Perde- ria o seu salão, a estética que o circundava, o luxo, os requintes, suas queridas coleções de manus- critos, seus livros raros, a par- titura de Mozart, a mesa de tra- balho de Beethoven, os originais de Balzac, com suas infindáveis correções nas margens. Perderia Zweig em sua biblioteca, 1940 a visão colorida de Salzburgo em seus dias de festivais. Perderia a tranquilidade, o refúgio, a paz. Perderia a fé no mundo. Toda a Manuscrito de sua infinita esperança na misericórdia autobiografia, dos homens. E isso seria o pior, a inicialmente intitulada Drei Leben (Três vidas) perda da fé no homem e em seu futuro. A descrença no progresso. Algumas pessoas são mais fortes. Ou duras. Logo ele, que havia escrito aquela obra magistral, Algumas pessoas podem conviver com o horror e o “Momentos decisivos da humanidade”... caos. Sobreviver. Como disse Abrahão Koogan, seu Houve um momento no Rio de Janeiro, quan- editor brasileiro, Zweig era lúcido em demasia, inte- do, no carnaval carioca, tentava colar os estilhaços ligente ao extremo, dono privilegiado de uma mente de seu coração, em que Stefan Zweig achou que o agudíssima. Sua alma vibrava como afinada corda mundo só tendia a piorar. Pois corria o risco de cair de violino, ao ouvir óperas, hinos, versos ou uma nas mãos demoníacas de Hitler e de seus asseclas e prosa muito bem escrita. Amava com intensidade de submergir nas sombras de Mefistófeles num perío- todos os escritores do mundo, todos os poetas, to- do insuportável de tão prolongado. Ele não ia esperar dos os artistas plásticos, todos os compositores, to- para ver o fim do Inferno. Mesmo que um dia as tre- dos os “construtores” de beleza. E tinha um imenso vas novamente se fizessem luz, ele não mais estaria carinho pelos anti-heróis, aqueles que haviam so- na Terra para ver o sol voltar a iluminar o horizonte frido por seus ideais. Aqueles que fracassaram, ou dos homens. Estava cansado, muito cansado. Seus cometeram erros graves em suas trajetórias. Os que livros também haviam sido queimados em sua ama- haviam se entregado apaixonadamente aos seus an- da Salzburgo. E para piorar o quadro, a mulher jo- seios e visões oníricas. Era solidário às paixões hu- vem que agora o acompanhava era muito menos en- manas. Sempre dizia que preferia escrever sobre os solarada e estimulante do que sua primeira mulher, perdedores da história do que sobre os vencedores. a infatigável Friderike. Ao contrário de Friderike, que Daí suas biografias sobre Maria Antonieta, Mary sempre o ajudara quando perdia o ânimo, Lotte era Stuart, Erasmo, Magalhães, Vespúcio. Seu pequeni- deprimida e asmática. Vivia sofrendo com a falta de no livro sobre uma mulher apaixonada por um joga- ar. Precisava que o marido lhe desse o sopro da vida, dor inveterado. aquele sopro que ele mesmo havia perdido, ao ouvir, A partir do momento em que se viu obrigado no meio dos batuques do alegre festim carnavalesco, a deixar sua casa na colinazinha de Salzburgo, a as terríveis notícias sobre o nefasto andamento da Kapuzinerberg, aquele palacete branco, ajardinado, guerra. Hitler chegara vitoriosamente ao Oriente. que fora tão hospitaleiro para tantos amigos ilustres, Um navio brasileiro havia sido afundado por um como Tomas Mann, Emil Ludwig, Franz Werfel, Ja- submarino alemão. A guerra lhe batia à porta. Ele mes Joyce, Toscanini, Bruno Walter, Arthur Schnitz- a fecharia hermeticamente com a morte. 24 ENCONTROS COM A Literatura

Da celebridade ao desespero

1881: 28/11, Stefan nasce em Viena, filho de Ida e Moritz Zweig, bem-sucedido fa- bricante de teci- dos da Boêmia. 1904: conclui a universidade. Publica O amor de Érica Ewald e Poe- mas selecionados. 1912: inicia relacionamento Zweig com o irmão Alfred amoroso e intelec- tual com Friderike. 1915-20: escreve artigos, conferências, traduções e manifestos pacifistas. Traduz o Émile, de Rousseau; publica Três mestres, sobre Balzac, Dostoievski e Di- ckens. Casa-se com Friderike. 1921 a 1925. Publica Novelas sobre uma paixão e atinge um grande público, tornando-se escritor reco- nhecido na Europa. Edita em alemão a obra completa de Paul Verlaine. Em 1924, encontra-se com Salvador Zweig e Friderike, sua primeira mulher, em 1926 Dali em Paris. Abre os salões de sua casa em Salzbur- go para os amigos europeus, recebendo Tomas Mann, Emil Ludwig, Franz Werfel, James Joyce, Rabindranath Sim, quanto mais se lê sobre a vida e a obra Tagore, Sholem Asch, Toscanini, Bela Bartók, Bruno de Stefan Zweig, mais claras ficam as razões de seu Walter, Richard Strauss, Maurice Ravel... suicídio. Como disse seu biógrafo Donald Prater, na 1927: publica Momentos decisivos da Humanidade, realidade, a partir de 1933 e, principalmente, a par- adotado nas escolas austríacas. Republica 24 horas na tir da anexação da Áustria em 1938 pela Alemanha, vida de uma mulher. Na Rússia é prefaciado por Gorki. fica-se intrigado como aquele grande humanista eu- 1931-32: publica A cura pelo espírito, sobre Mes- mer, Mary Bakker-Eddy e Freud. Recebe carta do editor ropeu pôde sobreviver por tanto tempo. Perdera a fé, brasileiro Abrahão Koogan. a esperança. Tanto que deixaria registrada sua des- 1933: Hitler queima livros de Zweig e outros au- crença, seu desespero, sua desesperança, nas últimas tores de origem judaica ou “decadentes” em Berlim. cartas que escreveria para os amigos e para a nação 1934: a polícia busca armas na casa de Zweig, brasileira. Esperava que todos pudessem um dia ver que, em seguida, parte para Londres. Elisabeth Char- novamente a aurora após a longa noite. Já ele era lotte Altmann (Lotte) torna-se secretária do escritor, indicada por Frederike. Publica Erasmo. impaciente demais para esperar o fim do horror. Pre- 1935: estreia a ópera A mulher silenciosa, proibi- feria abandonar seus contemporâneos neste mundo da pelos nazistas. louco e cruel, cheio de campos de concentração, gue- 1936: publica Castellio contra Calvino e Caleidos- tos, lagers, estrelas amarelas no peito, intolerância, cópio. Vem ao Brasil, admira-se da juventude do editor maldade, tortura, racismo. Koogan e promete voltar. Um mundo que não mais amava a sua língua. 1937-39: publica Pequena viagem para o Brasil. A Quis partir. Partiu. Abraçado a Lotte. Só que ao mes- Áustria é anexada à Alemanha e seus livros queimados mo tempo – ah, as ressurreições – Stefan Zweig nun- em Viena. Publica Coração inquieto, campeão de vendas. Divorcia-se de Friderike. Em 39, casa-se com Lotte. ca partirá, nunca nos abandonará. Sua alma está em 1940-41: recebe o visto permanente para morar sua obra. E sua obra é imensa. A todo momento ela aqui, e O Brasil, país do futuro é editado em português é redescoberta, reeditada. Comentada. Analisada. Ela (Koogan), inglês, espanhol, sueco e francês. Acusam- sempre nos iluminará. Com sua delicadeza. Sua sen- no de tê-lo escrito para agradar a Vargas. Vai para Pe- sibilidade. Sua compaixão pelos homens. trópolis e acaba O mundo que eu vi. 1942: conclui A partida de xadrez. No Carnaval, passa o 16/02 com os Koogan e lê notícia sobre a Ce c i l i a Co s t a Ju n q u e i r a queda de Cingapura. Volta a Petrópolis disposto a sui- Jornalista e escritora cidar-se. Em 19/02, o navio Buarque é afundado por Autora, dentre outros, de Damas de Copas e Julia submarinos alemães e o Brasil entra na guerra. Dia 23, e o Mago (Record) ele e Lotte são encontrados mortos. Em 24, é enterra- Fotos: In Stefan Zweig – Bilder texte dokumente. do com honras de estado em Petrópolis. Residenz Verlag, 1993, Salzburg und Wien

25 LEITURA, LEITURAS

Mapa de Pernambuco, ornamentado por engenho – com casa de caldeira, moendas e casa-grande. Willem J. Blaeu, Amsterdam, 1635 O Brasil holandês*

Ev a l d o Ca b r a l d e Me l l o

Por que o Brasil? Por que o Nordeste? das minas de prata do Peru, cuja distância da costa brasileira era então subestimada pela cartografia. a escolha do Brasil como alvo do ataque em- Em 1624, três anos decorridos da fundação da presado pela Companhia das Índias Orientais Companhia das Índias Ocidentais, publicava-se em N – WIC pesou uma variedade de motivos. A Amsterdã um folheto de autoria de Jan Andries Moer- América portuguesa constituiria o elo frágil do siste- beeck intitulado “Motivos por que a Companhia das ma imperial castelhano, em vista da sua condição de Índias Ocidentais deve tentar tirar ao rei da Espanha possessão lusitana, o que conferia à sua defesa uma a terra do Brasil”. O autor resumia em poucas folhas posição subalterna na escala das prioridades milita- as razões estratégicas e econômicas em prol de um res do governo de Madri. ataque bem-sucedido à América portuguesa. (...) Contava-se também com a obtenção de lucros Acreditava-se igualmente que a posição geoes- fabulosos a serem proporcionados pelo açúcar e pelo tratégica do Nordeste era superior quando comparada pau-brasil, calculando-se que, uma vez conquistada a à do Caribe. É o que afirmará o funcionário da WIC, um custo máximo de 2,5 milhões de florins, a colônia Johan Nieuhof, que escreveu uma crônica valiosa de renderia anualmente cerca de 8 milhões de florins. seus nove anos de Brasil holandês, onde atuou como Outro argumento favorável ao ataque contra agente comercial, chefe da corporação de estivadores o Brasil dizia respeito ao fato de que, enquanto os do Recife e fiscal da pesagem do açúcar naquele porto. centros do poder espanhol no Novo Mundo estavam Aliás, depois de sua experiência brasileira, Nieuhof ser- concentrados no altiplano, o que tornaria a ocupação viu também a Companhia das Índias Orientais (VOC), tarefa complexa e onerosa, os núcleos de população vivendo na Batávia e participando de uma embaixada portuguesa situavam-se ao longo do litoral, ao alcan- comercial enviada à China. (...) ce do poder naval batavo. Por fim, o Brasil poderia Já em 1621, à raiz da fundação da WIC, o fran- proporcionar excelente base de operação contra a cês La Ravardière, cuja ocupação da ilha de São Luís navegação espanhola no Caribe, contra a navegação fora anos antes liquidada por uma expedição luso- portuguesa com o Oriente, sem falar na proximidade brasileira que partira do Recife, entabulou negocia-

26 LEITURA, LEITURAS

ções na Holanda a respeito de nova tentativa contra os neerlandeses entraram sem oposição na capital da o Brasil. Soube-o a Coroa espanhola, que através do América portuguesa, onde se depararam apenas com embaixador em Paris procurou suborná-lo para que o governador-geral Diogo de Mendonça Furtado. Mas desistisse da empreitada. É provável que o tenha con- eles logo constataram a dificuldade de estender sua seguido, pois La Ravardière não parece ter voltado a presença para além dos muros de Salvador, onde se cogitar da América portuguesa. Contudo, anos depois, acharam encurralados pelas guerrilhas luso-brasilei- um dos companheiros que estivera preso com ele em ras do Arraial do Rio Vermelho, os quais, sob a chefia Olinda após a expulsão dos franceses do Maranhão do bispo d. Marcos Teixeira, e depois, de d. Francisco apresentou aos diretores da WIC uma memória inti- de Moura, ofereceram forte resistência às tentativas de tulada “Discurso sobre a tomada de Pernambuco”, na penetração dos contingentes batavos. O bispo transmi- qual formulava várias sugestões para a segurança do tiu seu posto ao capitão-mor designado em Pernambu- Brasil holandês. O companheiro anônimo de La Ra- co, Francisco Nunes Marinho de Eça, que fora capitão- vardière registrou também as observações que pude- mor da Paraíba, e que deu prosseguimento aos assal- ra fazer quando da sua estada em Olinda. (...) tos e emboscadas cuja eficácia logrou acuar o inimigo A Holanda não possuía apenas os meios dentro de Salvador. financeiros e militares com que realizar seu programa A partida da armada de Willekens e a dos navios colonial. Ela possuía também, desde o século XVI, uma do vice-almirante Piet Heyn para a costa africana dei- rica tradição cartográfica. Jan Huigen van Linschoten, xaram a tropa neerlandesa desprotegida. Com a morte autor de uma narrativa de viagem e permanência no de Van Dorth, vitimado numa dessas emboscadas, o Oriente, anexara a seu texto um valioso roteiro da cos- moral da tropa deteriorou-se celeremente. Sucedeu-o ta brasileira. Outro batavo, Diederick Ruiters, que fora no comando Albert Schouten, que também faleceu mas prisioneiro na Bahia, publicou em 1623 o Toortse der por excesso de bebida, sendo substituído pelo irmão zeeuaert (Tocha da navegação), contendo a descrição Willem. Em vista da fraqueza militar e da desmorali- do nosso litoral, além do da Guiné e de Angola. Nas zação reinante, foi sem maiores problemas que uma Províncias Unidas, conhecia-se mesmo, graças à rela- poderosa armada luso-espanhola sob o comando de ção elaborada por certo José Israel da Costa, a produção d. Fadrique de Toledo, na qual se alistou boa parte da de açúcar branco e retame de cada uma das fábricas nobreza lusitana, reconquistou Salvador a 30 de abril existentes em Pernambuco, Itamaracá e na Paraíba. de 1625. Pela primeira vez na história das guerras ho- Eles dispunham igualmente do Livro que dá razão do landesas no Brasil, tornava-se evidente a vantagem Estado do Brasil, redigido pelo sargento-mor do Esta- geopolítica de que desfrutava Portugal relativamente do, Diogo de Campos Moreno, de ordem de Felipe IV; a um inimigo, cuja esmagadora superioridade naval e dos próprios Diálogos das grandezas do Brasil, cujo ficava imobilizada nos meses de outono-inverno pelas apógrafo pertence à Biblioteca de Leiden. Ademais, condições de navegação no mar do Norte e no canal toda uma literatura náutica da lavra de pilotos e ma- da Mancha. Demasiado tarde (fins de maio), desponta- rinheiros holandeses e portugueses estava ao alcance da WIC, que tinha como um de seus diretores o geógra- fo antuerpiano Johan de Laet, que a compilava cuidadosamente.(...) A Bahia e Pernambuco fo- ram assim desde o começo os alvos prioritários do ataque neerlandês ao Brasil. A conquista de ambos foi confiada a uma expedição que compreendia 26 navios e 3300 ho- mens, sob o comando do almiran- te Jacob Willekens, cujas instru- ções determinavam que, tomada a Bahia, atacasse Pernambuco. Fins de abril, começos de maio de 1624, a armada da WIC surgiu diante da capital da América portuguesa. A 9 de maio, as tropas comandadas por Jan van Dorth desembarcaram sob a proteção de cerrado bombardeio que aterrorizou a população, levando-a Mapa com o esquadrão naval holandês, comandado por Hendrick a abandonar a cidade pela seguran- Corneliszoon Lonck, na invasão de Pernambuco em 1630. Nicolaes ça do Recôncavo. No dia seguinte, Visscher, c.1640. FBN, Divisão de Cartografia

27 LEITURA, LEITURAS

cém-chegado a ela, entretêm-se largamente acerca das riquezas da colônia. A atribuição da au- toria dos Diálogos a Ambrósio Fernandes Brandão foi original- mente feita por Capistrano de Abreu e amplamente confirma- da pelas pesquisas de J. A. Gon- salves de Mello, que publicou a edição completa da obra com base no apógrafo existente na Biblioteca de Leiden. Ambrósio já se achava em Pernambuco pelo menos desde 1583, tendo participado da conquista da Pa- raíba e trabalhado como recebe- dor do imposto do dízimo, cuja cobrança estava então arrenda- da a seu patrão, Bento Dias de Santiago. Posteriormente, foi Engenho, com casa-grande e capela. Frans Post, 1668 senhor de engenho em Pernam- buco e, passando à Paraíba, aí ram no horizonte os reforços enviados das Províncias fundou outros três que, quando da invasão holandesa, Unidas, sob as ordens de Boudewijn Hendrickszoon, pertenciam a seus descendentes. (...) que prudentemente desistiu de enfrentar a armada Outra excelente descrição da Olinda ante luso-espanhola, singrando para o Caribe e ancorando, bellum é a que traçou frei Manuel Calado do Salva- a caminho, na baía da Traição (Paraíba). dor, alentejano de Vila Viçosa, religioso da Ordem de No decurso de 1627-30, a WIC compensou-se São Paulo e alguém que vivia na terra há alguns anos do fiasco baiano. Esses anos foram especialmente crí- como lavrador de mandioca em Porto Calvo. Calado ticos para a navegação portuguesa do Brasil, devido bem pode ser chamado de o nosso Fernão Lopes, pois aos apresamentos efetuados pela Companhia e por suas descrições têm a mesma intensa qualidade gráfi- seu aliado, o corso zelandês (para não falar no cor- ca dos textos do grande cronista português do século so barbaresco), calculando-se que a média anual de XV. Previsivelmente, a visão de Calado é acentuada- navios empregados na carreira teria declinado de tre- mente providencialista, pois vê na conquista holande- zentas para cem naves. Uma esquadra sob o comando sa o castigo de Deus pelos pecados coloniais. (...) de Piet Heyn atacou por duas vezes Salvador, captu- O despreparo militar em que vivia o Brasil foi rando grande número de embarcações carregadas de amplamente analisado pelo sargento-mor do Estado, produtos da terra. Em 1628, Piet Heyn entrou para os Diogo de Campos Moreno, um veterano da guerra de anais da história naval batava ao realizar a proeza Flandres que em breve se distinguirá na campanha de apossar-se da frota espanhola da prata na baía de contra os franceses do Maranhão. Em preparação do Matanzas (Cuba), golpeando duramente as finanças já seu Livro que dá razão do Estado do Brasil (1612), combalidas da monarquia ibérica e rendendo à WIC a Campos Moreno redigiu uma valiosa “Relação das pingue soma de 8 milhões de florins, graças à qual praças-fortes do Brasil”, na qual indicou os pontos crí- pagou dividendos aos acionistas (75%) pela única vez ticos da segurança da capitania, esboçando inclusive na sua história. Tal façanha serviu sobretudo para fi- o cenário da conquista holandesa: Olinda sendo inde- nanciar um novo projeto contra o Brasil: a conquista da fensável (ao contrário do Recife, como também cons- capitania de Pernambuco e suas vizinhas (Itamaracá, tatará depois o governo holandês), uma armada ini- Paraíba e Rio Grande do Norte), que, em termos do mer- miga poderia facilmente desembarcar na praia e barra cado mundial, representavam então a mais importante de Pau Amarelo, a norte da vila, força suficiente que, área de produção açucareira, com volume que atingia marchando ao longo da praia, assenhorear-se-ia facil- 659 mil toneladas de açúcar ou 33 mil caixas. Em 1630, mente dela, tanto mais que a guarnição era reduzida e entre o Potengi ao norte e o São Francisco ao sul, exis- que não se podia confiar nas forças da milícia.(...) tiam 160 engenhos, dos quais 149 safrejavam. Cerca de quinze anos antes da invasão holandesa, certo cristão-novo, chamado Ambrósio Fernandes Bran- Ev a l d o Ca b r a l d e Me l l o dão, redigia nos seus vagares de senhor de engenho os Diplomata e historiador Autor, dentre outros, de Olinda restaurada (1975) Diálogos das grandezas do Brasil, no qual dois reinóis, e Nassau: governador do Brasil Holandês (2006) Brandônio, há muito domiciliado na terra, e Alviano, re- * Excertos de O Brasil holandês, org. pelo autor, pp.29-52 28 LEITURA, LEITURAS Maurício de Nassau e os judeus no Brasil holandês

Ro n a l d o Va i n f a s

Retrato de Johan Maurits van Nassau-Siegen, Pieter Michielsz van Mierefeld, 1637

aurício de Nassau governou o Brasil holan- Não seria exagero dizer que, em meio a tantos dês entre 1637 e 1641. Patrocinou a missão conflitos, Nassau pendeu a favor da “gente da na- M de artistas como Frans Post, construiu a Ci- ção judaica”, como se dizia. Cumpria, nesse ponto, dade Maurícia na outra banda do Capibaribe, criou os objetivos da companhia comercial holandesa, fa- um jardim botânico e outro zoológico. Desde fins do vorável à imigração de comerciantes judeus para o século XIX, o mito Nassau estimulou a crença difusa Recife. Cada comerciante sefardita, mesmo que mi- de que o Brasil seria melhor se os holandeses tives- údo ou de “vestido roto”, como dizia Manuel Calado, sem ficado. nunca estava totalmente só. Por mais pobre que fos- Mas o conde Nassau foi, sobretudo, um adminis- se, ele integrava uma rede, ao menos como vendedor trador de conflitos na sociedade pernambucana: entre ambulante de um consórcio, distribuidor de bebidas os senhores da terra e a Companhia das Índias Ociden- importadas ou mercador de doces, batendo de porta tais; entre os calvinistas e os católicos; entre os cristãos- em porta. Quase sempre tinha parentes na Holanda velhos e os cristãos-novos; entre cristãos e judeus. e no Brasil, o que facilitava os contatos comerciais

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Rua dos judeus no Recife com mercado de escravos (Sklavenmarkt), Zacharias Wagener. In Thierbuch (1634-1641)

no exterior e o alojamento na colônia. Além disso, os Era chamado de príncipe, embora fosse conde, pois judeus eram falantes de português e holandês – um só ganhou aquele título em 1653, quando já tinha trunfo formidável. deixado o Recife. Os judeus o adoravam. Nassau pisou em ovos desde o início, pois seu No relatório de 1638, conhecido como “Breve governo coincidiu com o afluxo crescente de judeus discurso”, Nassau reportou a ousadia dos judeus e e aventureiros holandeses, atraídos pela política de a insatisfação dos ministros calvinistas, e mesmo “livre comércio” inaugurada em 1638. O início de seu dos católicos, em face dos desacatos que os judeus governo coincidiu, ainda, com a estruturação das faziam ao cristianismo. Mas o relatório contém um congregações judaicas, de um lado, e do presbitério lapso calculado, ao dizer que os cristãos velhos se es- calvinista, de outro, entre 1636 e 1638, sem contar candalizavam com a liberdade concedida aos judeus, as reivindicações dos católicos, incansáveis no pedi- ou antes, que se esforçam por tomá-la. Nassau consi- tório de licenças para procissões e festas barrocas. As derava que os judeus tinham alcançado aquelas po- três principais religiões do Brasil holandês brigavam sições por mérito próprio. Lembrou aos diretores da por espaço institucional e físico numa Recife cada vez companhia que os judeus, ao contrário dos católicos, mais abarrotada de gente. eram aliados fiéis. Ganhavam dinheiro como parcei- Nassau tinha 32 anos quando chegou ao Bra- ros comerciais dos holandeses e odiavam a Inquisi- sil. Não falava uma palavra de português e, mesmo ção do mesmo modo que os flamengos. Quanto aos após oito anos de governo, claudicava na língua de católicos, insinuou que seriam capazes de inventar Camões. Era, porém, muito fluente em francês, língua uma “guerra divina” para expulsar os holandeses do que admirava, alemão, sua língua materna, e holan- país, se tivessem chance. Nassau não escreveu exata- dês. Nenhuma das línguas faladas por Nassau o cre- mente isso, porque não era adivinho. Mas ainda em denciavam a comunicar-se com as gentes do Brasil. 1638, antecipou os lances possíveis do jogo, como Estava fadado a ser um governador distante, depen- enxadrista. dente de um séquito de intermediários para governar. O Presbitério do Recife sabia que Nassau prote- Mas não foi o que ocorreu. gia os judeus e, por isso, provocava o governador. Em Aprofundou-se como poucos no conhecimento janeiro de 1638, proclamou que as liberdades conce- do Brasil, mantendo extraordinário equilíbrio entre didas aos judeus eram tamanhas, que tanto calvinis- católicos, calvinistas e judeus; entre comerciantes tas como portugueses (sinônimo de católicos para os holandeses e senhores de engenho luso-brasileiros. predicantes), achavam que os holandeses eram “meio 30 LEITURA, LEITURAS

para Nassau impedir a execução da sentença contra o cadáver de Abendana. O conde recusou a oferta, mas se dispôs a interferir a favor dos judeus, caso a dívida de 12 mil florins fosse paga. Os mercadores judeus procuraram, então, os colegas holandeses e assumiram a dívida do morto. Ato contínuo, Nassau despachou o caso, proibindo a execração do cadáver. Abendana foi sepultado no cemitério judaico. Os ju- deus insitiram na versão do assassinato. Não tinham saída senão ocultar o suicídio do amigo. Nassau defendeu os interesses dos judeus sem desconsiderar o dos holandeses. Defendeu os judeus no mais perfeito estilo do Antigo Regime, usando de seu prestígio pessoal para neutralizar as instituições. O capitalismo comercial à moda holandesa, por mais moderno que fosse, não dispensava os ingredientes da sociedade de corte, ainda mais no Brasil, tão dis- tante dos diretores da empresa. Os judeus eram vitais para o governo nasso- viano que, em contrapartida, apoiavam o conde. An- tes mesmo do caso Abendana, quando circularam ru- mores de que Nassau seria chamado volta à Holanda por gastos excessivos, os judeus fizeram uma petição comprobatória de seu apreço pelo governador. Arnold Wiznitzer traduziu e publicou na íntegra este docu- mento, datado de 1 de maio de 1642, intitulado “Pe- tição da Nação Hebraica”. Nele os judeus suplicaram a Nassau que permanecesse no cargo, dispondo-se Fac-símile da Petição da Nação Hebraica de 1642 (em holandês). Algemeen Rijjksarchief, Haia a pagar, para tanto, uma doação mensal de três mil In Os judeus no Brasil Colonial. A.Wiznitzer florins. No mesmo ano, o representante dos judeus do Brasil em Amsterdã reforçou a proposta, esclare- judeus”. Nassau desprezou a queixa. A cada nova re- cendo que, “se lhes fosse necessário pagar a perma- clamação, prometia que resolveria o problema o quan- nência de Sua Excelência nesta terra, nenhum preço to antes. Quem sabe amanhã ou depois de amanhã… achariam demasiado elevado para isso, ainda que se Vale citar um episódio dramático, provocado tratasse de seu póprio sangue, contanto que o pudes- por Moisés Abendana, integrante da primeira leva de sem reter”. judeus portugueses estabelecidos no Recife. Abenda- Nassau somente deixaria o Brasil em meados na exportava mercadorias para a Holanda desde 1637 de 1644, chegando à Holanda em julho. Havia sido e, a partir de 1642, passou a comprar escravos no Re- dispensado do governo desde setembro do ano an- cife para revendê-los nos engenhos. Tomou emprésti- terior, mas permaneceu um pouco mais, inclusive mos junto a holandeses e judeus, mas foi desastrado para inaugurar a ponte unindo o Recife Velho à Ci- nos negócios e acabou insolvente. Desesperado, co- dade Maurícia. Sua bagagem ocupava nada menos meteu suicídio em 5 de agosto de 1642. A hostilidade que duas naus, com carga estimada em 2,6 milhões contra os judeus chegou ao máximo neste episódio. de florins! O retorno de Nassau marcou o refluxo O escolteto da Cidade Maurícia sequestrou o corpo e da imigração judaica para o Brasil. A partir de proibiu seu enterro, decidindo que o cadáver devia 1645, com o início da insurreição pernambucana, ser pendurado numa forca pública até apodrecer. Pre- o número de judeus retornados só faria aumentar. tendia humilhar a família do defunto, comprometer a Um claro sinal de que o fim da “Jerusalém colonial” salvação de sua alma e desmoralizar a comunidade estava próximo. judaica de Pernambuco. Os judeus reagiram, alegando que Abendana Ro n a l d o Va i n f a s Professor titular de História Moderna da UFF tinha sido assassinado por holandeses. Uma comis- Autor, dentre outros, de Jerusalém Colonial: judeus são de judeus ofereceu “grande soma de dinheiro” portugueses no Brasil holandês. Civilização Brasileira, 2010

31 LEITURA, LEITURAS Maurício de Nassau, um renascentista em terras de Pernambuco

Le o n a r d o Da n t a s Si l v a

m 1636, passa- telação com estrelas nos dos seis anos da mais diversos saberes E invasão e pres- que, cada um a seu tem- sionado pela guerra de po, iria contribuir para o resistência encetada mais completo levanta- pelos luso-brasileiros, mento artístico, paisagís- o Conselho dos XIX da tico, cartográfico e cientí- Companhia das Índias fico desta parte do Novo Ocidentais, responsável Mundo no século XVII. pela administração do Tudo isso se devia Brasil Holandês, resol- à forte influência exerci- ve convidar para ocu- da sobre ele pelo secretá- par a função de gover- rio do Príncipe de Oran- nador-geral um jovem ge, Frederick Hendrick, coronel do exército da o humanista Constantijn União, o conde alemão Huygens, uma das mais João Maurício de Nas- importantes inteligências sau-Siegen, cujos 400 O Príncipe Johan Maurits van Nassau-Siegen. do seu tempo nos Países Jan de Baen, c. 1655-1680. Museu de Arte de São Paulo anos de nascimento fo- Baixos, que estava sem- ram comemorados no pre rodeado de profundos Brasil, na Alemanha e na Holanda em 2004. conhecedores do mundo das artes e das ciências. Ao aportar no Recife, em 23 de janeiro de 1637, Nascido em 1596, oito anos mais velho do que o vindo de Texel, a bordo do navio capitânia Zuphen, com- conde de Nassau, Huygens se notabilizara como poeta, boiado por outras três naus – Adão e Eva, Senhor de Nas- diplomata versátil, cultor das belas artes, estudioso das sau, Pernambuco –, o conde Maurício de Nassau trazia ciências exatas e dado a projetos arquitetônicos. Descre- sob seu comando, ao lado de pequena guarnição de 350 vendo a sua influência na sociedade holandesa de então, soldados, a primeira grande missão científica a cruzar a o professor Geert Arent Banck, diz ser ele “o ideal de uma linha do Equador. Nascido no castelo de Dilemburgo em pessoa bem instruída”, tornando-se “especialista em re- 17 de junho de 1604, o nobre alemão se fazia acompa- crutar artistas para a corte de Frederick Hendrick”, tendo nhar do latinista e poeta Franciscus Plante, do médico e sido ele o descobridor do pintor Rembrandt. naturalista Willem Piso, do astrônomo e naturalista Georg Ao tomar posse do Brasil Holandês, coube ao Marcgrave, do médico Willem van Milaenen, dos paisagis- conde de Nassau a reorganização administrativa do tas flamengos Frans Post e Albert Eckhout, além de outros governo, com a transformação do Conselho Político em nomes ligados às artes e às ciências. “Conselho Secreto”, composto pelos senhores Adriaen Durante o seu governo no Brasil (1637 - 1644), o Van der Dussen, Mathias Van Ceulen e Jan Gijsselingh. conde, então com 32 anos, se fez cercar de importante cons- Estava o governo de então tomado por práticas imorais

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Cidade Maurícia, em pintura de Eduardo Camoes. Instituto Ricardo Brennand e lesivas aos interesses da Companhia, sendo comum a comerciantes judeus. Com a concessão de empréstimos extorsão, o roubo, o contrabando, o peculato, sem con- aos produtores de açúcar, destinados à compra de es- tar os crimes de perturbação da ordem pública, como cravos e à recuperação das fábricas e dos campos, pela homicídios, balbúrdia e bebedeiras que preenchiam as Companhia, surgiu nova fase de prosperidade, e a pro- horas do dia a dia. dução passou a crescer, sendo acentuada na pauta de De início, fazia-se necessário fixar as fronteiras produtos exportados pelos portos do Brasil Holandês. A do Brasil Holandês no Norte e no Sul, delimitando a exportação do açúcar ascendeu de 65.972 arrobas, em área dos seus domínios. Para isso o conde de Nassau 1637, para 447.562 arrobas, em 1641. procurou de imediato, estabelecer a segurança da colô- A fim de suprir os engenhos dos escravos neces- nia, tentando pôr fim à presença dos exércitos do rei de sários à produção, foram organizadas expedições mili- Espanha dentro do território atual Nordeste Brasileiro. tares destinadas à conquista das possessões portugue- Reunindo o que restava do exército, com ele sas na costa da África, situadas em São Jorge da Mina partiu em direção ao sul de Pernambuco, conseguindo as (1637), no Golfo da Guiné, e em São Paulo de Luanda vitórias do Comandatuba e Porto Calvo (1637), o que obri- (1641), em Angola. Segundo o historiador Hermann gou o comandante das tropas luso-brasileiras, conde de Wätjen, o número de negros importados entre 1636 e Bagnuolo, a cruzar o Rio São Francisco e retirar-se para a 1645, pela Companhia das Índias Ocidentais, que de- Bahia. Suspendendo a marcha, Nassau firmou na margem tinha o monopólio desse comércio e tinha nele uma de esquerda do Rio São Francisco o limite sul da conquista, suas maiores rendas, foi de 23.163 indivíduos. Somen- estabelecendo a vila do Penedo e o forte Maurício. te no Recife e em Maurícia, a população de escravos era Consolidada a conquista, pôde o conde, em con- estimada, em 1645, em 1.962 indivíduos, oriundos dos sonância com os Altos e Secretos Conselheiros, dedicar- mais diferentes portos da costa africana. se à tarefa do restabelecimento econômico da colônia. A grande carência de habitações com que se de- De início procurou restaurar a indústria açucareira que, frontava a colônia foi enfrentada com coragem pela com o consequente abandono de alguns engenhos pelos administração de Nassau. Com a destruição de Olinda proprietários luso-brasileiros, da fuga dos escravos e pelos holandeses, em novembro de 1631, uma popula- dos estragos da guerra, estava em ruínas. ção de cerca de 7 mil desses indivíduos foi obrigada a De imediato o conde mandou afixar editais colo- conviver, nas piores condições de higiene e conforto, na cando em leilão 65 engenhos abandonados pelos pro- área do Povo do Arrecife, hoje ocupada pelo atual bairro prietários, que em fuga para a Bahia, após a rendição portuário do Recife. do Arraial do Bom Jesus (1635), deixaram ao relento Surgiu assim uma crise habitacional sem prece- casas, capelas, fábricas, gado e escravaria mais velha. dentes, agravada por epidemias e pela contínua chegada A venda pública desses engenhos tornou-se um suces- de levas de forasteiros que se deslocavam da Europa em so, acorrendo aos leilões não somente comerciantes ju- busca de ganhos fáceis na Terra do Açúcar. Para sanar deus, sequiosos de lucros imediatos, como também per- o problema, Nassau deu celeridade à construção, na ilha sonalidades do governo, como o coronel Sigmund von de Antônio Vaz (área hoje ocupada pelos bairros de Santo Schkoppe e o conselheiro Jacob Stachower. Antônio e São José), do que veio a ser a Cidade Maurícia. Somente em 1637, ano de sua chegada, foram Residindo na ilha de Antônio Vaz, desde a chega- vendidos 44 engenhos, seis dos quais arrematados por da, o conde iniciou a urbanização da área segundo um

33 LEITURA, LEITURAS plano definido, que contemplava ruas, praças, merca- Os dois primeiros são autores da Historia natu- dos, canais, jardins, saneamento, pontes, devidamente ralis Brasiliae etc., impressa em Amsterdã em 1648, na demarcadas conforme se vislumbra em mapa da época qual foram impressos 429 desenhos, em grande parte publicado na obra de Gaspar Barlaeus ou van Baerle, retratando a flora e a fauna, bem como nativos, do Nor- publicada em Amsterdã (1647). deste do Brasil. De Albert Eckhout são a maioria dos O aparecimento da nova cidade veio trazer um desenhos reunidos nos quatro volumes que compõem o surto de progresso para a capital do Brasil Holandês. O Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Recife, “coração dos espíritos de Pernambuco” na obser- Divergências surgidas entre a forma de governar vação de Francisco de Brito Freyre, sofreu inúmeros me- do conde João Maurício de Nassau-Siegen e o Conselho lhoramentos e testemunhou vários pioneirismos, como dos XIX da Companhia das Índias Ocidentais o fizeram a instalação do primeiro observatório astronômico das deixar o Brasil em 11 de maio de 1644, quando, des- Américas, no qual Georg Marcgrave fez, dentre muitas pedindo-se do Recife e de sua Cidade Maurícia, montou outras, anotações acerca do eclipse solar de 13 de no- em seu cavalo e seguiu com a comitiva pelo litoral, em vembro de 1640 (Barlaeus). Ain- direção à Cabedelo, na vizinha da por essa época foi erguido o capitania da Paraíba. templo dos calvinistas franceses Ao regressar à Holanda (1642), obedecendo ao traço do o conde levou consigo, além de arquiteto Pieter Post. mobiliário talhado em marfim A nova urbe, projetada em Pernambuco, um apreciá- por Pieter Post, um dos princi- vel acervo de móveis e obras de pais representantes, ao lado de arte assinadas pelos artistas de Jacob van Campen, do classi- sua comitiva – pintores Frans cismo arquitetônico nos Países Post, Albert van den Eckhout e Baixos, recebeu a denominação Zacarias Wagener, cartógrafo e de Cidade Maurícia, em 17 de naturalista George Marcgrave, dezembro de 1639. Era a Mau- cartógrafo Cornelis Bastianszo- rits Stadt dos holandeses, cujos on Golijath e projetos diversos mapas, aspectos e panorama que vieram a ser utilizados por aparecem na obra de Barlaeus e diversos artistas –, além de ou- em outras produções artísticas tros objetos ditos menores. de sua época. No livro de memórias, Sir Coube a Nassau realizar William Temple (1628-1699), Em- no Recife verdadeira revolução baixador da Inglaterra junto ao no âmbito de sua paisagem urba- Reino dos Países Baixos, relem- na. Ao seu tempo foi construído bra alguns dos seus traços mar- o palácio de Friburgo (Vrijburg), cantes: “Recordo o velho Príncipe também conhecido como Palácio João Maurício de Nassau que se das Torres, e a Casa da Boa Vista tinha acostumado com as redes (1643), tudo no interior da cida- do Brasil e continuou a usá-las de planejada à moda dos Países frequentemente ao longo de sua Baixos de então. Historia naturalis Brasiliae. Willem Piso e vida, quando sofria de cálculos Trataram os holandeses George Marcgrave, 1648. Acervo FBN ou gota e era de opinião que me- também do calçamento de algu- lhorava e conseguia dormir pelo mas ruas e do saneamento urbano, além da construção movimento e balanço dessas camas aéreas”. de três pontes, as primeiras em grandes dimensões do Fixando residência nos arredores de Cleve (Ale- Brasil: a que ligava o Recife à Cidade Maurícia (a nova manha), na sua “cabana” localizada em Berg-en-Dal cidade erguida na ilha de Antônio Vaz), inaugurada em (Monte e Vale), o então Príncipe João Maurício de Nas- 28 de fevereiro de 1644; a segunda, que conectava esta sau conservava um baú com recordações do Brasil, cria- ilha ao continente, na altura da Casa da Boa Vista (ime- va um papagaio e costumava dormir em “uma rede de diações do Convento do Carmo); e uma terceira sobre o pano de linho brasileiro bordado e guarnecido de ama- rio dos Afogados. relo”. Ali veio a falecer a 20 de dezembro de 1679, com Durante o seu governo, Nassau fez plantar no 75 anos e 6 meses de idade, cercado de lembranças e Recife, em 1642, um grande jardim botânico, que era recordações de Pernambuco. também um pomar e dispunha de alguns animais vin- dos das mais diferentes partes. O jardim com os seus viveiros de criação de peixes veio servir de “laboratório” Le o n a r d o Da n t a s Si l v a a membros de sua comitiva, notadamente o médico Wil- Sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Membro do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco lem Piso (1611–1678), o botânico, também cartógrafo e Consultor do Instituto Ricardo Brennand (Recife) astrônomo, George Marcgrave (1610–1644) e o artista Autor, dentre outros, de Holandeses em Pernambuco Albert Eckhout (c. 1610 - c. 1664). 1630-1654 (Recife, 2005) 34 LEITURA, LEITURAS

Batalha dos Guararapes, em que Victor Meirelles reconstitui historicamente (1879) o fato e o local onde os holandeses foram derrotados, em 1649

A Batalha dos Guararapes e a formação ideológica do Brasil-Nação

Ca r l o s Le ss a

Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de O Imperador Pedro II era um Bragança e tinha Janeiro, expõe com o máximo destaque pos- interesse estratégico em sublinhar a preferência dos O sível, dois grandes painéis executados em coloniais pela dinastia. A expulsão dos franceses já fins do século XIX: A Primeira Missa no Brasil, cujo havia confirmado o valor militar dos coloniais que, autor é Pedro Américo, e a Batalha dos Guararapes, unidos, em Guararapes derrotaram de forma inequí- de Victor Meirelles. As duas obras deixam claro que voca os holandeses e prepararam sua expulsão. Após o Império brasileiro, por um lado, sublinhava o fato Guararapes, em seus dois episódios (1648-1649), foi de ser católico e inscrito na Igreja Católica Apostólica assinada a capitulação no Campo do Taborda, em Romana e, por outro, dava destaque à vitória mili- frente ao Forte das Cinco Pontas de Recife, em 1654, tar que luso-brasileiros, negros, índios e portugueses ato final da expulsão dos holandeses. impuseram às tropas holandesas da Companhia das A independência nacional brasileira herdou Índias Ocidentais. intacta a estrutura burocrático-administrativa do im- A importância de Guararapes como um ato pério português e coroou como Imperador o herdeiro heroico fundado por uma aliança de coloniais brasi- bragantino da Coroa de Portugal. Nasceu pronto um leiros foi destacada como premonitória de aliança e Estado Nacional em imenso território (mais de 8,5 demonstração do valor dos brasileiros coloniais em milhões km2), em grande parte ainda por ocupar e ter torno da unidade com a Coroa portuguesa, restaura- as fronteiras definitivas fixadas. Apesar do analfabe- da pela Casa de Bragança. tismo e da manutenção do regime escravagista, ha-

35 LEITURA, LEITURAS via praticamente um único idioma praticado por toda nalidade as situações em que as três etnias (amerín- a população colonial. O Estado Nacional antecede a dia, africana e lusitana) uniram seus esforços para Nação, pois o território era ainda uma potencialidade preservar a unidade territorial. a ser geopoliticamente confirmada e não havia pre- Vanhargen, em 1852, publica sua História sença de povo para si, ainda que, em si já tivesse o Geral do Brasil, que constitui o esqueleto básico de principal atributo cultural do idioma único. nossa história oficial. Como historiador, trata dos Não há, no processo da independência, nenhum episódios da expulsão de franceses, porém concen- conflito relevante. A resistência simbólica de algumas tra e sublinha não só a robustez da unidade entre as tropas portuguesas na Bahia não gerou nenhum epi- etnias, mas também a consistência do esforço pela sódio acompanhado de uma safra de heróis. A decla- expulsão dos holandeses. ração do Fico (aqui) e a maioridade de Pedro II criam Na I Batalha dos Guararapes, os ameríndios a necessidade de explicar, historicamente, o Brasil. A comandados por Felipe Camarão, o terço de luso- valorização da herança ameríndia fez com que muitas brasileiros comandados pelos Mestres de Campo João famílias portuguesas trocassem seu sobrenome por ou- Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, e o terço tro, de origem indígena. Em alguns casos, cidades fo- dos negros comandados por Henrique Dias derrotam ram rebatizadas. Por exemplo, São Domingos da Praia de forma inequívoca o exército holandês comandado Grande passou a se chamar Niterói. Caramuru recebeu pelo Governador de Armas Von Schkoppe, com 4.500 terras-matrizes no recôncavo baiano. soldados. No segundo episódio nos morros dos Gua- A bandeira imperial tem as armas dos Bragan- rarapes, um exército holandês de 3.510 homens co- ça emolduradas por um ramo de café e um de tabaco. mandados pelo General Van den Brincken foi derrota- Pedro II fez questão de, na coroação, utilizar papos do pelos 2.600 coloniais novamente comandados por de tucano em vez das peles de arminho europeu e ter Negreiros, Camarão, Fernandes Vieira e Henrique Dias, seu manto imperial com folhas de bananeira estiliza- quando as perdas do lado colonial foram 47 mortos e das bordadas com fios de ouro, em vez das europeias 200 feridos, sendo que os holandeses tiveram 1.044 folhas de acanto. mortes e 500 feridos; os holandeses perderam 101 ofi- O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ciais, inclusive o General Van den Brincken. – IHGB, fundado e presidido por Pedro II, teve como Nosso historiador elegeu, pela importância do primeira missão estruturar a história oficial do Brasil feito, as duas Batalhas dos Guararapes como a demons- como Império Nacional. Lançado o concurso de quais tração inequívoca da cooperação em armas das três et- seriam as bases para uma história oficial do Brasil, nias para manter-se fiel ao Império bragantino. É fácil foi Von Martius quem obteve o prêmio e recomendava compreender a exaltação pictórica e literária dessas ba- selecionar como episódios protoformadores da nacio- talhas e a eliminação da presença holandesa.

Detalhe do interior da sinagoga Kahal Zur Israel, a primeira das Américas, instalada no Recife em 1636, durante o domínio holandês

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Holambra: comercialização de flores

Uma síntese rigorosa da presença holandesa escrava. Logo a seguir, e financiados pelas indeni- no Brasil teria que começar pela reunião das duas zações pagas pelos portugueses com a tributação do Coroas Ibéricas, em 1580: o Rei de Espanha proíbe o açúcar colonial, os holandeses desenvolveram o açú- aporte de navios holandeses em portos portugueses e car antilhano e contribuíram para ampliar a crise do são cancelados os privilégios dos holandeses no co- açúcar nordestino. mércio do açúcar. Em 1621, é criada a Companhia das É inquestionável que foram os coloniais que Índias Ocidentais que, em 1624 tenta conquistar Sal- mantiveram a soberania nacional. Inquestionável vador; mas em 1625 se rende, derrotada. Em 1630, também sua superioridade militar sobre os holan- os holandeses ocupam Olinda e Recife; a resistência deses. À exceção de algumas ruínas arquitetônicas e de Porto Calvo (Alagoas) e do Arraial de Bom Jesus, da informação erudita coletada pelos cientistas e ar- próximo a Recife, dificulta a ocupação holandesa. tistas plásticos convocados por Nassau, quase nada A partir de 1632, a traição de Calabar facilita a ficou da Holanda no Brasil. penetração holandesa, e a resistência colonial se limi- Como substância formadora do Brasil colonial, ta a um pontilhado de ações guerrilheiras. Em 1637, foi de enorme e permanente importância a vinda dos a Companhia envia o conde Maurício de Nassau para cristãos novos e há uma forte referência a ter sido Recife. Sua administração financia os donos de enge- construída, no Recife de Nassau, a primeira sinagoga nho, vende barato engenhos abandonados, urbaniza no Brasil. Há, também, a informação de que foram Recife, garante liberdade de culto e convoca colabora- judeus holandeses que estiveram em Recife que fun- dores e artistas holandeses. Em 1644, pragas e secas daram Nova Amsterdam, atual Nova York. ocasionam queda na produção de açúcar, reduzin- A expulsão dos franceses e a guerra colonial do o pagamento das dívidas dos donos de engenho. contra a Holanda são episódios históricos decisivos Nassau é substituído por causa da cobrança ativa de para a unidade brasileira que, entretanto, foi soldada empréstimos. Os proprietários de engenho se rebelam pelo ouro das Geraes e sedimentada pela cultura do em 1645, na chamada Insurreição Pernambucana. As café. A presença cultural holandesa do passado lon- Batalhas dos Guararapes quebram a espinha do do- gínquo é remota. Muito mais importante para o Brasil mínio holandês, que abandona a região em 1654. atual é a atuação de Holambra, cidade paulista, deci- Observe-se o cunho econômico da invasão ho- siva para muitos ramos agrícolas. A presença judaica landesa. As guerras coloniais, entretanto, mereceram aliada aos holandeses não tem a menor importância. apoio duvidoso e descontínuo. Houve muita pressão Após a Proclamação da República, na sequela dos para que a Casa de Bragança negociasse uma alian- conflitos e perseguições europeias, o Brasil recebeu ça com a Holanda, entregando parte do Nordeste; de mais famílias judaicas, hoje integradas e presentes qualquer forma, a paz definitiva foi comprada: pela em todos os segmentos da sociedade brasileira. Aos Paz de Haia, em 1661, Portugal se comprometeu a judeus, desde os cristãos novos aos que para cá vie- indenizar a Companhia das Índias Ocidentais, à qual ram no séc. XX, o Brasil deve muito. pagou quatro milhões de cruzados (o equivalente a 63 toneladas de ouro), e entregou a Costa do Marfim à retomada de Angola por Salvador Correia de Sá, que Ca r l o s Le ss a com coloniais cariocas e índios potiguares expulsou Economista os holandeses de sua principal fonte e mão de obra Professor Emérito e ex-Reitor da UFRJ

37 LEITURA, LEITURAS Judeus-egípcios, imigrantes no Rio de Janeiro

risa fresca do Me- ma classificação? Para re- diterrâneo. Praias solver esse truísmo, Nasser B lotadas. Sucos de decretou que os egípcios de frutas frescas. Noites es- fé judaica que “quisessem” treladas. E harmonizando sair do Egito abririam mão essas imagens, o cheiro de da nacionalidade. jasmim perpassa toda Ale- Perder o direito de xandria. Imagens e aromas ser o que se foi durante presentes na memória dos anos pareceu-me questão judeus do Egito expulsos merecedora de um olhar de seu país natal após a investigativo. Com assi- guerra do Canal de Suez, Pirâmides de Gizé, próximo ao Cairo, Egito natura forçada, o cidadão 1956. Uns 400 vieram para se transformava em apá- o Brasil, que representava trida, sem documentos, possibilidade de nova vida, Jo ë l l e Ro u c h o u só com um laisser-passer com o presidente Juscelino que lhe permitia sair do Kubistchek lhes concedendo vistos. Sem nada planejar, de- país para outro, onde tentaria existir. Vários judeus egíp- sembarcaram no país que os acolheu, e ao qual perma- cios se tornaram párias e contaram aos filhos a saga da necem gratos. adaptação ao novo país. No panorama da imigração no Brasil, realizamos A primeira memória a ser reativada era a minha, pesquisa que estudou os judeus migrados para o Egito, e pois pertenço ao grupo. Relembrar as histórias ouvidas que, outra vez, trocaram seus domicílios. Imigração com- na infância, que pareciam fantasiosas, com ingredientes pulsória é imposição dolorosa, ainda mais sem motivos orientais: dança do ventre, amêndoas, tâmaras, pôr de palpáveis. Os livros de História contam isso sem detalhes. sol colorido, areias do deserto, jogos, comidas e mui- Mas a história vivida é contada em depoimentos que regis- tos perfumes. Muito pouco me foi transmitido. Mesmo a tram o sofrimento das pessoas que migraram para o Rio história dos judeus egípcios, a trajetória dos ascenden- de Janeiro. Vieram de Alexandria ou do Cairo, com pouco tes até chegarem lá é mistério para todos. Havia relatos dinheiro, deixando bens, lojas, sinagogas, clubes e amigos de vindas da Rússia, da Áustria, quem sabe com Na- para trás. A história é contada em fragmentos aos mais poleão Bonaparte, ou pela fuga à Inquisição: saídas da novos, cada um a sua maneira e dinâmica. Espanha e travessias do Mediterrâneo. Nosso objetivo foi ouvir os expulsos do Egito no Não é privilégio de minha família desconhecer os século XX: sua versão para os acon- ascendentes. As dúvidas sobre os avós que tecimentos, como sentiram a saída e chegaram ao Egito, e de como ali chegaram, como reconstruíram a vida, a identi- é compartilhada pelos entrevistados. Na inter- dade, e o que transmitiram à segunda net discutem-se árvores genealógicas e ramifi- geração. O grupo estudado considera- cações que determinaram sua existência. va o Egito sua terra, pois lá estavam Cresci com histórias do Egito: de esco- há gerações, tinham passaporte egíp- teiros, bandeirantes, do francês como primeira cio – cidadania oficial da qual se orgu- língua, de meus pais falando árabe ou inglês lhavam. Eram cidadãos alexandrinos para que não entendêssemos. Meu paladar foi ou cairotas, com o cosmopolitismo em apurado na culinária árabe, as festas judaicas voga desde o início do século. eram comemoradas com pratos árabes, músi- Após a guerra, Nasser nacio- ca de odaliscas e sons das mil e uma noites. A nalizou não só o Canal, mas a popu- condição árabe-judia nunca me pareceu con- lação, exigindo que os estrangeiros traditória, mas tudo indica que é. Um Egito voltassem a seus países. “Estrangei- tolerante e cosmopolita, um mundo árabe ros” seriam os judeus, mesmo os com que aceite outra vez os judeus e um Estado passaporte egípcio, o que suscita um de Israel recebendo os palestinos, parece uto- problema: etnia e cidadania são a mes- pia. Serão tais etnias tão inconciliáveis?

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Ao entrevistar imigrantes e seus descendentes foi possível perceber a in- tegração do grupo ao ritmo do Rio de Janeiro. Construíram novas identidades, incorporando o Brasil, o Rio, a nova lín- gua e os efeitos dessa identidade sobre os filhos. Chegaram, a maioria de navio, por Alexandria/Gênova/Rio. Em geral, vieram por razões aleatórias: precisavam sair e corria o rumor de que o governo brasilei- ro autorizaria a imigração. Pediram visto à embaixada brasileira no Cairo, apresen- taram cartas de convite de amigos aqui instalados, garantindo idoneidade e res- Copacabana e Praça Mauá, em 1956 ponsabilidade. O Rio de Janeiro já era lindo em tada, e uma das formas conquistá-la 1956. Nos anos JK, no pós-guerra, a eco- seria pelo emprego, para sobreviver e nomia mundial prosperava e a brasileira compreender o novo país. também. Eram anos de otimismo, a vida Hoje todos vivem situação so- urbana crescia, as cidades delineavam cioeconômica confortável, classe mé- novos contornos arquitetônicos e uma dia e média alta urbana. Vieram sem nova capital estava sendo construída. recursos, proibidos de retirar seu di- “Os cinquenta anos em cinco da propa- nheiro. Alguns recuperam parte, após ganda oficial repercutiram em amplas entendimentos entre Egito e Israel. camadas da população.”, afirma Boris Os cheiros, as ervas – como a Fausto, na História concisa do Brasil meloquia que se transforma em sa- (EdUSP). Modernidades, produtos mais borosa sopa com forte gosto de alho práticos, sintéticos e a televisão entrava –, os quibes, sambucek ou burecas, nas casas da classe média com progra- pasteizinhos salgados de queijo, o mas e anúncios, dando partida à sociedade de consu- full – favas cozidas para o café da manhã dos egípcios, mo e “turbinas esquentando” a indústria cultural. O Rio continuam nas mesas da primeira e segunda gerações com 3,5 milhões de habitantes, dos quais 300 mil es- de judeus egípcios. Comemoram festas judaicas, como trangeiros, vivia efervescência social, mundana, bailes a refeição que quebra o jejum do Iom Kipur (Dia do Per- e festas. “Enfim, uma cidade cercada de bailes por todos dão), misturando pratos árabes e nacionais. os lados. Dançava-se – infeliz de quem não – e a ex- No Rio, discretos, os judeus do Egito quase não pressão ainda carregava um só sentido. O do bem.” (in se reúnem, como fazem as comunidades de São Pau- Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958, o ano que não lo, Paris, Genebra, Montreal, que promovem encontros devia terminar. Record) mensais, viagens, noites egípcias, em que recordam Os anos de gargalhada abriram espaço para a suas aventuras. Não, a comunidade daqui dispersou-se, consagração da música popular brasileira, a Bossa Nova pequenos grupos juntaram-se a brasileiros. Outros se de João Gilberto. Eram anos de se ler os irmãos Campos, fecharam em suas famílias. a poesia concreta, João Cabral de Mello Neto, Guimarães De qualquer maneira, não se manifestaram, nem Rosa, , . Nelson Pereira em 1997, quando dos 40 anos da chegada ao Brasil. dos Santos e Glauber Rocha começavam a nova estética Escrever um livro contando as histórias? Impensável. cinematográfica, o Cinema Novo, inspirado no neorrea- Ninguém imaginou tal ousadia. Em comum, o grupo lismo italiano de De Sica e Rosselini. guarda o mesmo trauma: ter deixado o país natal e se Nesse cenário tropical, os primeiros exilados de- abrigar em outro. sembarcaram na Praça Mauá, no Centro do Rio, no verão Os imigrantes mantêm forte sotaque francês ao de 1956. Boa parte chega apátrida ao Brasil pela perda de falar português, continuam falando francês em casa, sua nacionalidade egípcia, ou – para alguns – por já vi- que aprenderam no Egito. Muitos dos filhos dos imi- verem apátridas no Egito. Um calor úmido, abafado, bem grantes estudaram em escolas bilíngues. A marca do diferente da brisa fresca do Mediterrâneo que os embalou. grupo é sua integração ao Rio de Janeiro, aos movimen- A maioria concentrou-se – após curtos perío- tos sociais, políticos e culturais, nas mais diversas áre- dos em hotéis do centro da cidade – em Copacabana. as, abraçando o cosmopolitismo e a convivência longa- Fundaram uma sinagoga na Rua Santa Clara, e depois mente exercida nos tempos egípcios. agregaram-se ao Centro Israelita Brasileiro – CIB, na Ba- rata Ribeiro, que funciona até hoje, congregando outras correntes judaicas. Atualmente, espalharam-se pela ci- Jo ë l l e Ro u ch o u Jornalista dade sem bairro definido, e não há mais centros especí- Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa ficos de judeus do Egito. Escolhem sinagogas pela linha Autora de Samuel: duas vozes de Wainer (UniverCidade, 2003) adotada ou pela proximidade de suas casas. * Baseado na tese de doutorado sobre a imigração dos judeus A preocupação com o trabalho é constante nos rela- do Egito no Rio de Janeiro, anos 56/57, publicado em Noites tos. Homens e mulheres encararam a cidade a ser conquis- de verão com cheiro de jasmim (FGV, 2007)

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O tribunal da Inquisição. Goya, 1816. Real Academia das Bellas Artes de San Fernando, Madri Hereges no Rio de Janeiro colonial

Ni r e u Ca v a l c a n t i

oltar 300 anos na história de nossa cidade e de sua tribunais semelhantes nas ditaduras de Vargas (1930-45) e população para penetrar nos cárceres do Tribunal dos militares, de 1964 até a Anistia (1979). V do Santo Ofício de Lisboa é constatar os malefícios O Tribunal do Santo Ofício surge em 1233, com o da intolerância, do autoritarismo, do preconceito e do apa- papa Gregório IX, a pedido de Domingos de Gusmão, cria- relho repressivo e torturador do Estado ou de grupos, que dor da Ordem dos Pregadores (intelectuais esmerados em dominam e impõem suas pretensas verdades à sociedade. teologia), depois Ordem Dominicana. Na Bula, o papa man- A instalação, eficácia e permanência, por período da erradicar os hereges do mundo católico. No início, o Tri- às vezes longo – como a Inquisição – de tais estruturas bunal atuava sem consultar o bispo da jurisdição, o que foi repressoras se dão pela conjugação de intelectuais que revogado por Gregório X, 1273. formulam as bases estruturantes e ideológicas da propos- Na Espanha, o Tribunal começa no reino de Aragão, ta; montagem de meios físicos para seu funcionamento; 1238. Após a unificação dos reinos, o papa Sisto IV, em criação de aparelho repressor e fiscalizador, com quadros Bula de 1478, reuniu os Tribunais sob uma direção, ca- preparados e convictos de seu papel em defesa dos valores bendo aos dominicanos serem os inquisidores. Em 1482 os e permanência da instituição que representam e, princi- sete inquisidores eram comandos por Tomás Torquemada, palmente, oficialização e incentivo, até pecuniário, à de- implacável perseguidor de hereges, principalmente judeus. lação, agravando-se quando obtém o apoio da maioria da Dez anos após, funcionavam na Espanha oito Tribunais. sociedade, seja por comungar com esta política, seja por Na América espanhola instituíram-se no México e no Peru omissão ou medo. (1570) e em Cartagena (atual Colômbia), em 1608. A Santa Inquisição foi implantada em nome de Deus A Inquisição portuguesa data de 1536, no reinado e dos dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana. Por de D. João III e papado de Paulo III. Mas o padre Rapha- tais parâmetros, surgiram nas masmorras da Inquisição, el Bluteau, em verbete no Vocabulario Portuguez e Latino palcos de torturados e execução de condenados, muitos de- (1717-25), diz: “El Rei D. João Terceiro alcançou a conces- les inocentes. são dele [o Tribunal da Inquisição] primeira vez do Sumo Semelhantes perseguições repetiram-se, no século Pontífice Clemente VII, no ano de 1531. Foi reduzido à for- XX e repetem-se no XXI, em nome de ideologias políticas, ma, que hoje tem, pelo Sumo Pontífice Paulo III, no ano de preconceitos raciais, sexuais e de gênero. Vingaram nos re- 1536, à instância do mesmo Rei”. Registre-se a dúvida! gimes comunistas, nazistas, fascistas e prosperaram nas Portugal, em 1540, tinha três Tribunais: Lisboa, o ditaduras de todos os matizes ideológicos: no apartheid, central, com o bispo Inquisidor Geral, seis inquisidores no nas colônias europeias na África e Ásia, nos governos teocrá- Conselho Geral da Mesa Grande e três na Pequena; os de ticos, nas “democracias” que dividem seu povo em etnias, ri- Évora e de Coimbra. O de Goa, Índia, data de 1560. Proces- cos e pobres e em letrados e analfabetos. No Brasil, tivemos sos no Brasil eram responsabilidade de Lisboa. 40 LEITURA, LEITURAS

Perseguição a judeus e a cristãos-novos acusações, afirmando que ela e o marido eram cristãos-ve- Na Espanha, a perseguição a judeus começou na lhos. Provavelmente, após as torturas a que eram submeti- Andaluzia, 1483, em Aragão, 1486, e, em toda ela, em dos os réus, ela teve acessos de loucura e foi para o hospital 1492. Exigia-se que os judeus renegassem o judaísmo e se de alienados. De volta ao cárcere, os médicos declararam que convertessem ao catolicismo, pelo batismo, aprendizado e ela fingia! Processada como herege, reconheceu as culpas, obediência às regras da Igreja. Quem se negava era expul- pediu perdão e a pena foi amenizada. so, muitos foram para Portugal. Isabel era alfabetizada e escrevia bem, com razoável No batismo, os judeus espanhóis mudavam seus grau de instrução, letra firme e bonita assinatura; no final do sobrenomes e eram registrados como cristãos-novos, dife- processo esta aparece trêmula, quase uma garatuja. Sinal da renciando-se dos cristãos-velhos, sendo vigiados por auto- perda da saúde física e mental. ridades e demais católicos, para identificar práticas judai- Entre 1660-87, foram presos pela Inquisição no Rio, zantes. Não sei como espanhóis e portugueses registraram acusados de judaísmo: Diogo da Costa e Anna da Costa; por os descendentes dos convertidos, pois nunca encontrei nos bigamia: João Martins, José Mendes da Costa, Felix Corrêa de registros de batismos, casamentos e óbitos no Brasil o ter- Castro, Manoel da Silva, Luiz da Costa; e os padres João de mo cristão-novo! Moura Fogaça e Francisco Gomes Sardinha, de Campos dos Igual perseguição sofreram os judeus refugiados em Goytacazes, que exorbitaram suas autoridades sacerdotais. Portugal, pelo rei D. Manoel I, desde 1496. Os que manti- Por fim, registramos o primeiro carioca preso e acu- nham a religião, ao saírem de Portugal tiveram os filhos se- sado de judaísmo em 1619: Diogo Teixeira de Azevedo, sol- questrados, batizados e enviados para a ilha de São Tomé, teiro, 28 anos, filho de Álvaro Fernandes Teixeira e Maria com degredados e escravos, totalizando 2 mil jovens. A ilha de Azevedo, morador em Lisboa. no Golfo da Guiné, do donatário Álvaro Caminha, era inós- A família Ximenes pita, cheia de feras, e se tentara povoá-la sem sucesso. Os sobreviventes – uns 600 – se miscigenaram, gerando parte Segundo Lina Gorenstein, entre 1700-30, foram denun- da atual população de São Tomé e Príncipe. ciados 392 moradores do Rio “pelo crime de heresia judaica, Inquisição no Brasil e no Rio de Janeiro sendo 164 mulheres e 228 homens”. A principal denunciante foi Catarina Soares Brandoa (ou Brandão), ex-moradora da A primeira visita do Santo Ofício ocorreu na Bahia, cidade que estava em Lisboa (1706). Ela se apresentou ao Tri- dirigida pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça, 1591. bunal para denunciar umas 80 pessoas das famílias Barros, No Nordeste (1618-21), pelo visitador Marcos Teixeira, e Paredes, Montarroyo, Sousa, Ximenes, e outras. por Geraldo José de Abrantes, 1763-69. A delação foi usada por frei Agostinho de Santa Ma- Na capitania do Rio de Janeiro, a primeira ocorre à ria, em seu texto Santuario Mariano, e Historia das Ima- passagem do inquisidor apostólico dos reinos de Angola, gens milagrosas de Nossa Senhora, Lisboa, 1723. Escreveu Congo e Estado do Brasil, Luiz Pires da Veiga, 1627, que que a igreja e santuário de Nossa Senhora da Ajuda fora nomeou o alferes da fortaleza reduto de cristãos-novos. de Santa Cruz, João Gonçalves Antigamente teve esta so- de Azevedo (cristão-velho), berana Senhora muito grande tesoureiro do Fisco Real, pois culto, e foi servida com muita aqui não havia funcionário grandeza porque os Cristãos com tal encargo, apesar das novos, de cujos corações não “confiscações e por não ha- acaba de cair aquele véu de sua ver tesoureiro recebeu o Fisco obstinação, que os tem cegos muita perda”, documento assi- para não acabarem de conhecer nado no RJ pelo secretário da a verdade da Fé; os quais, ou Inquisição, frei Paulo de São por enganarem os verdadeiros Martinho. e fiéis Cristãos, limpos daquele Ilustrando as persegui- péssimo sangue, ou por se jus- ções, destacamos o processo tificarem, lhe faziam grandes de Isabel Mendes, montado por festas, e lhe solicitaram um so- Luiz Pires da Veiga, no Rio, mas lene Jubileu, que chamava à sua extraviado. Moradora no Rio celebridade todos os povos cir- e casada com o mercador Luiz cunvizinhos. Mas entendendo- Peres (cristão-velho), foi presa se depois a sua maldade, e que eles a dedicavam a certa Maria acusada de judaísmo. O navio de Judá, se diminuiu aquele an- que a levava para Lisboa foi tigo concurso e também a festi- atacado por piratas holandeses vidade. E hoje [1713] se lhe faz e os prisioneiros deixados na ci- somente uma simples festa no dade de Ponta Delgada, ilha de seu dia. Mas a Senhora ainda São Miguel, nos Açores. pode obrar muitas maravilhas, Isabel entrou no cárcere não só para despertar os Fieis, e da Inquisição em 10 de janeiro verdadeiros católicos, mas para seguinte. O inquérito durou de Die Inquisition in Portugall, Alain Manesson desenganar aquela pérfida gen- 1627 a 34. No início, negou as Mallet, Frankfurt, 1685 te de sua obstinada cegueira.

41 LEITURA, LEITURAS

A família Xi- Meriti. Casado com menes, cujo patriarca D. Brites de Pare- era o capitão José Cor- des, filha de Agos- rêa Ximenes, nascido tinho de Paredes e em Lisboa por volta D.ª Ana de Azeredo de 1624, chegou ao Coutinho (condena- Rio de Janeiro em dos como cristãos- 1648, falecendo em novos). O filho do 1699. Em Portugal, casal, João, foi pre- fora soldado e pro- so pela Inquisição movido a capitão (1723) e condenado quando veio para cá por heresia judaica. com o capitão Antô- Dois filhos ilegíti- nio de Sá da Rocha. mos de João, quan- Chegando à cidade, do solteiro, com a embarcou na esqua- mulata Bernarda dra do general Sal- Cardoso (ou Fi- vador Corrêa de Sá, gueira), José Corrêa para retomar Ango- Auto de fe, Plaza Mayor de Madrid. Francisco Ricci, s/d Ximenes, com 32 la dos holandeses. anos e Joana Corrêa Em 1652 voltou ao Rio, e em 1654 casou-se com a ca- Ximenes 30, também foram presos, em 1713 e 14. rioca Maria de Marins, filha de João Varela e de Bárbara A família de João Ximenes, duramente atingida no Damim. processo, teve os bens confiscados, foi obrigada a morar em José Ximenes conseguiu o posto de escrivão dos Lisboa e a usar, em público, o hábito penitencial perpétuo órfãos, sesmarias, dos defuntos e ausentes e foi agracia- dos condenados pelo do Santo Ofício até falecerem. do (1666) com um ofício de Tabelião do Judicial e Notas Além do 4.º Ofício de Notas, o casal perdeu na no Rio, postos que denotavam sua “pureza de sangue” e cidade do Rio um sobrado na Travessa da Cruz (hoje descendência de titulados de Portugal. Quando adoeceu e Rua do Ouvidor), casa térrea no morro do Castelo, dez “deitou muito sangue pela boca”, pediu ao rei para nome- escravos, o engenho em São João de Meriti, com ma- ar o filho, João Corrêa Ximenes, seu substituto no Cartório quinaria e equipamentos, 20 escravos, animais, o ca- do 4.º Ofício de Notas, onde passou a trabalhar. navial e uma chácara no Catete, adquirida, em leilão Ximenes, o pai, atuou num processo, 1695, tomando por André Nogueira Machado (que deu nome ao Lar- atitude que o prejudicou e aos seus: denunciou o vereador go). No século XIX, a chácara foi comprada, por D.ª João Monteiro da Fonseca, juiz ordinário, como manipula- Carlota Joaquina, ficando conhecida como Chácara da dor da devassa sobre o assassinato de Francisco de Barros, Rainha. mestre de açúcar. Corria que o crime fora encomendado por Que o Dragão da Maldade não ressurja – protegido D.ª Águida Pimentel, viúva de Aleixo Vaz a empregados de por armadura e bandeiras religiosas, políticas, econômicas, seu engenho. étnicas e preconceitos de qualquer espécie – sobre a queri- Chegando ao Rio (1696) o Ouvidor-Geral, Manoel de da Cidade Maravilhosa e seus moradores. Sousa Lobato, recebeu José Ximenes, narrando que Montei- ro recebera 100 mil-réis para manipular o processo. Subor- Sugestão de Fontes nara testemunhas e lhe oferecera dinheiro para participar Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição em Por- da corrupção. Negando-se, fora ameaçado, mas temendo tugal (também no Brasil) http://digitarq.dgarq.gov.pt represálias cedeu, recebendo 30 mil, entregues ao ouvidor BAIGENT, Michael e LEIGH, Richard. A inquisição. Trad. Lobato. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2001. A pedido do Ouvidor, Ximenes escreveu a denúncia, CAVALCANTI, Nireu Oliveira. O Rio de Janeiro setecentis- apontando como matador Gregório de Oliveira. Manoel Lo- ta: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a bato fez relatório, anexou a carta de Ximenes, e pediu ao chegada da Corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. rei para refazer a devassa. Aguardando a autorização, o DINES, Alberto. Vínculos do fogo: Antônio José da Silva, ouvidor investigava os envolvidos, sobretudo Gregório de o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. Oliveira, suspeito de viver amancebado. Percebendo a es- LIPINER, Elias. Os batizados em pé. Lisboa: VEGA, 1998. tratégia de Lobato, o juiz Monteiro fugiu da cidade e o as- Silva, Lina Gorenstein Ferreira da. Heréticos e Impuros: sassino passou a ameaçar o ouvidor. a Inquisição e os cristãos-novos no Rio de Janeiro – século Por envolver pessoas importantes do Rio de Janeiro, XVIII. Rio de Janeiro: Secr. Municipal de Cultura, 1995. o processo correr no Conselho Ultramarino e tornar-se pú- A Documentação Inquisitorial como fonte para a Genea- blica a denúncia de Ximenes, ele ganhou muitos inimigos. logia. In: http://www.rumoatolerancia.fflch.usp.br/mode/851 Seus filhos José e João Corrêa Ximenes e familiares foram VAINFAS, Ronaldo (Coord.). Dicionário do Brasil Colonial vítimas do Santo Ofício, provavelmente por relação com (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. esse processo do pai. José Corrêa Ximenes foi preso como cristão-novo Ni r e u Ca v a l c a n t i (1712) e ficou com a esposa nos cárceres de Lisboa até 1716. Arquiteto e Historiador João Corrêa Ximenes (filho), batizado em 1656, além do ta- Professor na Pós-Graduação da escola de belionato, tinha um engenho na freguesia de São João de Arquitetura e Urbanismo/UFF

42 LEITURA, LEITURAS José Mindlin, uma vida Fotos: Richam S amir. Acervo AB L entre livros*

Ge r a l d o Ho l a n d a Ca v a l c a n t i

São conhecidas as muitas histórias relaciona- das à constituição da biblioteca Guita e José Mindlin que não vou aqui evocar, pois, com graça e humildade, o próprio José inúmeras vezes as reconstituiu em docu- mentos publicados, entrevistas concedidas, e resumiu na obra Uma vida entre livros. Documentos fundamen- tais para conhecer algumas das descrições episódicas de momentos grandiosos de sua vida de colecionador encontram-se, igualmente, no catálogo da exposição de 110 exemplares de sua coleção no Museu Lasar Segall, em São Paulo, realizada em 1999, que os cariocas pu- José Mindlin e seus livros deram ver, depois, no Museu da Chácara do Céu, e, com perfeita memória e rara erudição, ele próprio anotou na monumental obra editada pela Biblioteca Nacional, uceder a José Mindlin é algo que me toca pro- por ocasião dos seus 90 anos, Destaques da Biblioteca fundamente. Nossa amizade iria comemorar InDisciplinada de Guita e José Mindlin. O que quero S em breve as bodas de ouro de uma convivência ressaltar neste momento é o inabalável bom humor amável e fraterna. Desde sua eleição, costumava dizer- com que sempre relatou suas aventuras e desventuras me, quando neste recinto nos encontrávamos: “Quero como colecionador de livros. vê-lo aqui – e acrescentava – de preferência com o meu Diferentemente de seus congêneres mais céle- voto.” Deu-me a sua vaga. bres, José não era um bibliômano, mas autêntico bi- Não se pode falar de José Mindlin sem falar de bliófilo. Amava os livros e com eles convivia. Dizia que Guita. Formaram um só ser em duas pessoas distintas sua biblioteca era indisciplinada. Não era. Ou o era desde o dia em que, ainda estudantes, não sabendo apenas no sentido de que construí-la não obedecia a Guita, referindo-se às facções políticas universitárias um programa. Seguia o que ele chamava de vertentes, que disputavam a sua adesão, a que partido filiar-se, linhas de interesse que por vezes se desdobravam, por recebeu do colega José a proposta de filiar-se a ele pró- vezes se extinguiam. A vertente Brasil, por exemplo, prio. Viveram casados e complementados por quase se ramificou em Literatura, História, Viagens, História 70 anos. A perda da companheira, dias depois de sua Natural, Arte etc., como disse no seu discurso de posse eleição para esta Academia, levou-lhe o gosto de viver nesta Academia, e incluímos no seu “etc.” a Poesia, que sempre havia caracterizado aquele que “nada fazia que sempre teve um lugar muito especial entre os seus sem alegria”, divisa retirada de Montaigne – Je ne fay livros. Vertentes subsequentes foram, por exemplo, rien sans gayeté – que José tomou como ex-libris de as obras de referência, a história do livro e as artes sua famosa biblioteca, porque era sua palavra de vida. gráficas, inclusive a tipográfica, ou a do livro em si, Guita e José Mindlin. Seus nomes continuarão unidos, como objeto, em particular pela arte da encadernação. como queria José, prolongando a união exemplar de Novas vertentes surgiam constantemente, a dos perió- suas existências, na Biblioteca que será conservada dicos, a dos manuscritos originais, a de roteiros cine- no campus da USP para abrigar a magnífica Brasiliana matográficos, a da literatura de cordel, e as de cartas, que ele, com seu tino para encontrar a obra rara e sua dedicatórias, provas tipográficas, proclamas, alvarás, persistência para adquiri-la, conseguiu reunir num tra- documentos históricos da Imprensa Régia, mapas, ca- balho de mais de sete décadas. lendários, catálogos, regimentos de irmandades, ca-

43 LEITURA, LEITURAS tecismos, enfim toda sorte de da edição da Biblioteca Nacio- “papéis velhos” originais que nal, seleções que teve que fazer pudessem ser úteis ao pesquisa- enfrentando “muitas ciumeiras dor da história literária, política e muitas queixas” dos livros e social do Brasil. que delas foram excluídos. Não tinha corretores, book A imagem de José Mindlin dealers, para alertá-lo ou substi- está associada ao livro, à biblio- tuí-lo. Cada livro adquirido foi por teca. Mas Mindlin foi muito mais ele examinado, apreciado para ter do que o bibliófilo. Foi o empre- a certeza de que seria bem acolhi- sário sempre disposto a pôr a do, pelos demais, na biblioteca, sua empresa a serviço das artes, como se merecesse a sua compa- o editor, o incentivador da espo- nhia. E cada um foi, ou era, fre- sa no árduo e exigente trabalho quentemente visitado, folheado, de restauro de livros e obras de contemplado, e, sempre que pos- arte, o administrador vigilan- sível, lido. Não os lia todos. Seria te da proteção do patrimônio impossível. Desejo talvez não lhe cultural quando em cargo exe- faltasse. Dizia que, ao adquiri-los, cutivo no estado de São Paulo, tinha pelo menos a intenção de lê- o zelador dos manuscritos de los. E chamava de “loucura man- grandes escritores brasileiros sa” o que reconhecia ser seu vício e o mecenas para a divulgação incurável: comprar livros. Loucu- desse patrimônio. ra, talvez, mas havia método em Em 2004, para comemo- sua loucura. rar os seus 90 anos, a EDUSP, Alberto Manguel faz uma Mindlin com fardão, no dia da posse na da qual era Mindlin o presi- distinção entre bibliotecas com ABL, 20/06/2006 dente da Comissão Editorial, livros entronizados e bibliotecas decidiu publicar uma obra que com livros lidos. A de José Mindlin não tinha livros en- fizesse recordar os livros dos quais houvesse sido ele tronizados. Mesmo as joias da coroa estavam expostas editor, co-editor ou patrocinador, muitas delas publi- à consulta do leitor interessado, ele próprio em primeiro cadas pela Metal Leve, ao tempo em que ele presidiu a lugar, que as visitava regularmente, e a quem quer que se famosa empresa produtora de autopeças, por ele mes- beneficiasse de sua generosa acolhida para realizar tra- mo fundada. Sob protestos do homenageado, a EDUSP balhos de pesquisa. Sua enorme biblioteca surgiu, aliás, produziu o catálogo José Mindlin, Editor, preciosa re- como um produto quase diria secundário do seu amor capitulação de um dos aspectos mais fascinantes da pela leitura. Ele próprio o diz ao evocar o nascimento de obra de José, infelizmente só conhecida por um número sua coleção a partir da leitura de obras específicas que reduzido de seus amigos e dos beneficiários de seu ge- o levavam a procurar outras obras do mesmo autor e neroso apoio e interesse pelas artes gráficas aplicadas depois obras sobre aquele autor e assim por diante. ao livro. São 60 obras de primoroso acabamento gráfi- Mindlin costumava dizer que não tinha tempo co, a primeira das quais, as Elegias de Duino, de Rai- para ler os bons livros porque existiam os ótimos, ci- ner Maria Rilke, em tradução de Diva Ferreira da Silva, tando, e propositadamente distorcendo, uma boutade foi publicada em 1951. Mas não data daí a incursão de Thomas Mann. E não era verdade, pois ele próprio inicial de Mindlin nas artes tipográficas. Aos 14 anos se orgulhava de haver feito belas descobertas através de idade, já demonstrara sua preocupação com a qua- da leitura de autores desconhecidos que lhe chegavam lidade da impressão como editor da revista Rio Branco, às mãos pelo acaso. que levava o nome da escola em que estudava em São Gostava de ler em voz alta. “Para mim – escre- Paulo. Na década dos 50 colaborou estreitamente com veu – “a poesia é, de certo modo, uma partitura cuja o grupo pernambucano Gráfico Amador cuja atuação musicalidade só a leitura em voz alta faz aparecer”. revela uma das páginas mais originais da arte gráfica Guita era sua ouvinte predileta, porque constante e no Brasil. E aqui não posso deixar de evocar a figura sempre atenta. Fazia-o com uma evidente satisfação e fidalga de Aloysio Magalhães, seu grande animador, orgulhava-se de sua voz. Sua impostação solene e ca- tão prematuramente desaparecido, morto em Veneza – denciada pareceu-me, à primeira vista – ou devo dizer como Aschenbach – enquanto defendia, em reunião da à primeira audiência – datada, mas vim a descobrir, UNESCO, a inclusão de Olinda na Lista do Patrimônio depois, que devia estar impregnada no seu gene russo, Histórico e Cultural da Humanidade. A partir da dé- pois era a mesma entonação que encontrei nas grava- cada dos 60, de início em colaboração com Gastão de ções de Ana Akhmátova ao ler os próprios poemas. Holanda, ex-participante do grupo Gráfico Amador, no Do amor e do carinho que tinha pelos livros di- Recife, primeiro, e no Rio de Janeiro depois, inicia um zem muito as palavras com que procura justificar-se projeto ao qual estarão associados os nomes de João perante os que não foram selecionados para figurar na Câmara, João Cabral de Melo Neto e Haroldo de Cam- exposição do Museu Lasar Segall ou entre os Destaques pos, este como tradutor de Octavio Paz. As publicações 44 LEITURA, LEITURAS

Mindlin entre os confrades da ABL patrocinadas pela Metal Leve terão um destino mais papel da biblioteca, além da leitura, é o da preservação especial: reeditar, em edições fac-similadas, revistas e da cultura – a gente passa, mas os livros ficam”. Há livros tornados raridades, relativos, sobretudo, ao perí- cerca de um ano, dizia numa entrevista ao jornal Es- odo modernista nas letras nacionais. Assim ressurgem tado de São Paulo: “Nunca me considerei o dono des- A Revista, de Carlos Drummond de Andrade, a Revista ta biblioteca. Eu e Guita éramos os guardiães destes Anual do Salão de Maio, de Flávio de Carvalho, a revista livros que são um bem público”. E isso demonstrou, Verde, do Grupo de Cataguazes e a Revista de Antropofa- exemplarmente, ao doar os 26.000 livros que consis- gia, consequência e seguimento do Manifesto de Oswald tem a sua Brasiliana, a maior parte de sua biblioteca, de Andrade. Durante sua breve passagem como Secre- à Universidade de São Paulo, num digno e raro exem- tário de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São plo de mecenato no Brasil, último grande gesto de um Paulo, a par de uma atividade administrativa rigorosa grande homem, um grande brasileiro. de desburocratização dos processos da Secretaria, cria- Cito mais uma vez Alberto Manguel, que de li- ção de projetos de preservação do patrimônio cultural, vros e bibliotecas muito sabe: uma biblioteca é “um estruturação da carreira de pesquisador, dirigiu, ainda, monumento incumbido de derrotar a morte”. Guita e a publicação de uma vintena de livros em co-edições, José derrotam a morte ao ficarem recebendo com seus uma bibliografia de editor bissexto, como se intitulava, nomes no portal da futura biblioteca que abrigará os que encheria de orgulho qualquer casa editorial. seus livros no campus da USP, por muitos e muitos Como preservador e difusor da cultura nacional, anos, muitíssimos espero, todo aquele que neles for permitam-me introduzir aqui uma palavra de louvor e buscar inspiração e sabedoria. reconhecimento pela contribuição inestimável por ele Antonio Cândido observa com precisão que quan- prestada à União Latina, ao tempo em que eu a tinha a do um homem é capaz de combinar harmoniosamente os meu cargo, para a realização do que foi a maior e mais traços de inteligência e sensibilidade demonstrados por bela exposição da arte barroca brasileira jamais reali- José Mindlin para construir ao longo da vida uma biblio- zada no exterior, entre 1999 e 2000, no Petit Palais de teca valiosa, “vai além da categoria de colecionador e se Paris, intitulada Brésil Baroque – Entre Ciel et Terre, torna plenamente o seu autor, como um escritor é autor com a apresentação de mais de 600 obras de arte de daquilo que escreve”. Assim soube nele reconhecer a Aca- coleções oficiais e particulares do Brasil inteiro. Sem demia Brasileira de Letras ao elegê-lo em 2006. Homem sua mediação para a obtenção dos recursos necessá- de letras no sentido mais amplo da palavra, homem da rios a essa prestigiosa apresentação, a exposição pos- palavra no sentido mais amplo do termo. sivelmente, não teria chegado a realizar-se. Escreve Mindlin na introdução aos Destaques: Ge r a l d o Ho l a n d a Ca v a l c a n t i “Não tenho o fetiche da propriedade, porque, em maté- Poeta, ensaista, memorialista Ex-embaixador junto à UNESCO e à União Européia ria de raridade, considero-me mais um depositário do Membro da Academia Brasileira de Letras que um proprietário, uma vez que, para mim, o outro * Excerto do discurso de posse na ABL – 18/10/10

45 LEITURA, LEITURAS

Paulo e Nora Rónai na Pensão Less. Álbum de família Recordando Paulo Rónai*

Je a n -Mi c h e l Ma ss a

encontro com Paulo Rónai data de minha pri- de suas atividades no Pedro II – e falando e escrevendo meira travessia do Atlântico em 1960, há exa- perfeitamente francês, dedicou-se à tradução, em portu- O tos 50 anos. Desde então permanecemos sempre guês do Brasil, de La Comédie Humaine, de Balzac, com amigos, até seu desaparecimento, em 1992. Paulo, nas- dezessete volumes. Mas jamais esqueceu sua pátria de cido em Budapeste, 1907, chegara ao Brasil em 1941, origem, daí a Antologia do conto húngaro, em 1956. naturalizando-se em 1945. Este mestre, expert em tradução, transmitiu seu Na verdade, não me recordo como nos conhece- saber, sua experiência em várias obras, especialmente mos. Minha vinda ao Brasil estava ligada às duas teses em Escola de tradutores (1952), não se restringindo ao que preparava sobre Machado de Assis, e o Rio era des- campo prático da tradução. Pioneiro na reflexão sobre o tino obrigatório. Paulo Rónai, eminente francófilo, pro- ofício no Brasil, e militando pela classe de tradutores, fessor titular desde 1958 do célebre Pedro II, soube da atividade não reconhecida como profissão àquela época, chegada deste então jovem francês em sua terra de exílio. fundou em 1974 a Associação Brasileira de Tradutores, Mal nos conhecemos, convidou-me a ir à sua casa na sediada no Rio de Janeiro. Décio Vilares, onde morava com a mulher Nora, italiana Ele apreciava falar de tradução, de traductologia, de Trieste, exilada também, e as filhas Cora e Laura. mantendo permanente correspondência com Jean Maillot, Homem de contatos, imediatamente fez-me conhe- diretor da redação de Traduire, serviço da célebre Socie- cer numerosos amigos seus, dos quais destaco apenas té Française des Traducteurs, a quem me fez conhecer. Aurélio Buarque de Hollanda e Antônio Houaiss – que me Velho militar, apelidado Commandant, era um pouco seu fizeram descobrir o encanto de fabricar dicionários, prelú- irmão mais velho, pois nascera em 1904. Não por acaso, dio e trampolim para os três “irmãos” que concebemos e a editora Delta confiou-lhe dirigir a edição e a tradução realizamos em Rennes sobre as particularidades da língua no Brasil dos 60 premiados pelo Nobel de literatura. portuguesa escrita em Guiné-Bissau (1991), São Tomé e Outros desafios: dois dicionários – o Português- Príncipe (1996) e Cabo Verde (2001). Francês/Francês-Português e o Dicionário universal Nova Rónai contou-me como, jovem romanista em Buda- Fronteira de citações (1985), com várias edições, revistas peste, judeu húngaro, teve de fugir de seu país e vir para o e ampliadas. Embora existissem dicionários da língua por- Rio. Mas no Brasil de Vargas, hesitava-se entre Aliados e tuguesa no Brasil e do Brasil, os de Antenor Nascentes e de Alemães, pois, desde o séc. XIX, uma grande colônia alemã seu amigo Aurélio, não havia um bilíngue como o seu. vivia no sul do país, nela havendo numerosos nazistas. No de citações, o autor mais presente é Shakespeare, Ele teve que lutar muito nos primeiros tempos. com cerca de 300 referências. Paulo lia – seria exagero Com vários e discretos silêncios, homem de letras que de- dizer todas as línguas... – mas conhecia perfeitamente o las vivia, contou-me os difíceis anos iniciais, registrados italiano, que havia estudado em Perugia, o espanhol, o em Como aprendi o português e outras aventuras, 1956. alemão (segunda língua da Hungria), o inglês, o grego, O que sempre me surpreendeu neste humanista e o latim, que ensinava desde sempre. Nada espantoso foi sua capacidade de seguir facilmente diferentes e nu- para um homem de cultura universal, o que era raro merosas vias. Especialista em literatura francesa – uma habitualmente, mais ainda no Brasil.

46 LEITURA, LEITURAS Foto: John W. Freire

O Mont Saint-Michel, que tanto encantou Rónai, no limite entre a Bretanha e a Normandia

Voltemos ao latim. Na Hungria, em co falante. Admirava suas crônicas e ainda 1939 – sem contar dois volumes ligados ao mais sua poesia, leve e profunda. Desejava Brasil, uma Antologia da poesia brasileira realizar, com sua obra poética (infidelidade moderna, e uma tradução em português de minha a Machado...), uma edição na Aubier Ribeiro Couto, que conhecia bem, pois este Montaigne, que criara uma coleção bilíngue, era à época diplomata em Zagreb e circula- na qual, entre as muitas línguas, nada havia va pela Europa, notadamente na Bretanha –, em português. havia publicado, também, em húngaro, uma Paulo foi o articulador da negocia- antologia de poesia latina. ção. A Aubier Montaigne aceitou, e o projeto Vale lembrar sua obra, digamos, brin- foi revisto pelos dois experts – Paulo e CDA. calhona: Não perca o seu latim (1980), com No prefácio, meus agradecimentos a eles: a introdução provocadora “este livro se des- “Mes remerciements s’adressent au poète qui tina aos que não sabem latim”..., de vez que m’a autorisé à présenter en France une partie o aprendizado desta língua estava perdendo de son oeuvre, et à mon ami Paulo Rónai qui a vitalidade. Ele reúne milhares de citações a relu et améliorer la traduction...”. colhidas nos melhores autores, traduzidas, Inserida na Seleta em prosa e verso, comentadas e explicadas, frequentemente sobre Drummond, Ed. José Olympio, feita com humor. E bebe até na fonte das encí- por Gilberto Mendonça Teles, em 1971, a clicas, cujas citações são numerosas. Judeu gentil palavra de CDA: “Caro amigo Jean- não praticante, Paulo não era anticlerical. Só Michel Massa, recebi as novas traduções. destacarei Ave, Caesar! Mas tenho vontade Seu trabalho, como sempre, admirável, de acrescentar Ave, Paulus! Como em quase muito me tocou.”... todas suas obras, uma palavra de agradeci- A cada viagem ao Brasil, Françoise mento a Aurélio, por sua “revisão criadora”. e eu encontrávamos Paulo e Nora em Nova É difícil contabilizar o número de Friburgo, onde passávamos dias no mara- obras, ensaios, estudos que ele publicou, sem vilhoso sítio Pois é, no qual viviam – para- contar os que dirigiu, como as do prêmio No- doxo para os trabalhadores que eles eram bel. No barato, mais de cinquenta, além das – numerosas preguiças. Paulo retornou colaborações, aqui na França ou no Brasil. muitas vezes à Europa e, lógico, a Rennes, Sem contar, tampouco, os inumeráveis arti- na Bretanha, pois, para ele, eu era como gos publicados na imprensa, em grandes jor- um filho espiritual. nais do Rio e de São Paulo. Ainda uma lembrança, não sobre Machado de Assis, minhas pesquisas e pu- Je a n -Mi ch e l Ma ss a blicações: Paulo sempre as leu antes de eu Doutor em Literatura Brasileira as editar. Essa diz respeito à edição bilín- Ex-diretor do Departamento de Português da gue, com tradução minha da obra Reunião, Université de Rennes II – França de Drummond, publicada na França. Eu co- Autor, dentre outros, de A juventude de Machado nhecia o poeta, que encontrava regularmen- de Assis (1839-1870): ensaio de biografia intelectual te nos Sabadoyles quando estava no Brasil. (ed.UNESP) Mas Carlos Drummond de Andrade era pou- *Traduzido do francês por Helenice Valias

47 LEITURA, LEITURAS Adolpho Bloch: mais de um século depois

Mu r i l o Me l o Fi l h o

família e decidiu: “Um povo dolpho Bloch te- como o brasileiro, que canta ria completado 102 e dança na rua, deve ser um A anos no último dia povo muito bom. Vamos ficar 8 de outubro, porque nas- por aqui mesmo”. cido em 1908, na cidade E foi assim que os Es- de Jitomir, Ucrânia, naque- tados Unidos perderam para le tempo parte do Império o Brasil aquela família de Russo. imigrantes russos. Foi assim Em 1917 tinha nove também que o Brasil ganhou anos quando ocorreu a Re- Adolpho Bloch para sempre. volução Comunista, prece- Sua precária e inci- dida pela queda da secular piente gráfica perambulou dinastia dos Romanoff e do por vários endereços, impri- Czar Nicolau II, e da curta mindo de segunda a sexta- interinidade do governo de feira revistinhas infantis da Kerensky, cujo dinheiro era Brasil-América, de Adolfo Ai- impresso na tipografia da zen, e da Rio-Gráfica, de Ro- família Bloch. (Adolpho re- berto Marinho. Ficava ociosa conheceria, brincando, que aos sábados e domingos. Aí Bloch imprimindo dinheiro residiam o vácuo e a folga de do governo só podia redun- que Adolpho precisava para dar em revolução). realizar seu sonho de ter uma Mudando-se para Kiev, revista semanal em cores, nos onde continuavam os pogroms moldes de Paris-Match, com Adolpho Bloch. s/d (perseguições e violência con- o nome de Manchete, que foi tra judeus) e a instabilidade publicada de 1952 a 2000. política, os Bloch perderam o apartamento e a litoti- Em 1958, Bloch resolveu apoiar a construção de pografia, desapropriados pelos comunistas. Em 1921, Brasília. Data daí sua amizade com o Presidente Jusceli- em fuga para Odessa num trem de carga, soldados no Kubitschek – JK. E Manchete cresceu na onda de Bra- lhes tomaram os bens que levavam. Saindo da Ucrâ- sília. JK e Adolpho se uniram e se identificaram porque nia, atravessaram a Romênia e chegaram a Constan- havia muitas crenças em comum: a pressa em fazerem tinopla (Turquia), na data dos treze anos de Adolpho. as coisas e a mesma linguagem de otimismo e de con- Dali foram para Nápoles, onde ele trabalhou como lan- fiança no Brasil. Aqueles cinco anos do governo de JK terninha num cinema, e em seguida viajaram para o foram um quinquênio de muitas obras. Brasil, na terceira classe de um navio, em dezembro Em 1958, Adolpho resolveu abrir uma Sucur- daquele ano. sal em Brasília. Como candidato natural para chefiá- Chegando ao Rio, instalaram-se na Aldeia la, transferi-me para lá. Brasília é hoje uma cidade Campista, 1922. O destino final dos Bloch não era completa, mas naquele tempo de restrições e de pio- o Brasil, que lhes serviria como simples passagem, neirismo, foi muito duro. e sim os Estados Unidos. Estavam juntando dinhei- O folclore de Adolpho é extenso e variado, com ro para a viagem a Chicago. Quando já moravam no muitas “estórias”. Certa vez, ele não gostou de umas Boulevard 28 de setembro, em Vila Isabel, assistiram fotos feitas pelo fotógrafo Alberto Jacob, da Manchete. a um desfile de blocos carnavalescos e a uma bata- O fotógrafo defendeu-se, alegando que a máquina foto- lha de confete. Então o velho pai, Joseph, reuniu a gráfica com que trabalhava era velha e ultrapassada.

48 LEITURA, LEITURAS

Adolpho reagiu: “Quer dizer então que se eu lhe der uma caneta Parker 91 você escreverá melhor do que Machado de Assis?”. Otto Lara Resende, numa paródia ao romance de Dostoievski, chamava a família de Adolpho de “Os Irmãos Karamabloch”. Na noite de 22 de agosto de 1976, o Deputado Mário Tamborindeguy ligou de seu restaurante “Roseira”, em Resende, comuni- cando a Adolpho o aci- dente fatal, ocorrido ali bem perto, com o carro de Juscelino. Estávamos na Man- Sede da Manchete, no Rio de Janeiro chete o professor portu- guês Adriano Moreira, o primo Pedro Bloch, Carlos Durante o governo da fusão do Heitor Cony, Isaac Hazan, Estado da Guanabara com o do Rio de Adolpho e eu. Chamado, Janeiro, entre 1975-79, Bloch foi presi- seu médico particular dente da Fundação de Artes do Rio de Dr. Raymundo Carneiro Janeiro – Funarj e construiu o teatro chegou imediatamente, Villa-Lobos, em Copacabana, 1979; dopando Adolpho com reformou o Artur Azevedo, em Campo poderosos sedativos, aos Grande, o João Caetano e o Theatro quais ele resistia, dizen- Municipal, ambos no Centro; e na sede do: “Estou parecendo da empresa criou o teatro que recebeu Rasputin”. Nisto, chegou seu nome. Doou escolas à rede oficial Carlos Lacerda, para cho- de ensino na capital e em Teresópolis; rar no ombro de Adol- organizou uma Pinacoteca e construiu pho, e recebeu a pergun- Segunda edição da revista Manchete, 1952 o “Memorial JK”, em Brasília, onde es- ta: “Governador, por que tão depositados os restos mortais do somente agora, com essa Frente Ampla, o senhor se inesquecível Presidente, “seu irmão”. aproximou de JK?”. E Lacerda respondeu: “Antes, não Na Manchete trabalhei 47 anos, de 1952 a me aproximei dele porque receava que, com aquela 1999. Costumo dizer hoje que não tenho mais 47 simpatia toda, ele me conquistasse”. anos de vida para dedicar a nenhuma outra empresa. Da enorme sabedoria humana de Adolpho Blo- Depois de falida a Manchete, fui eleito para a Acade- ch, lastreada nos milhares de anos do seu grande mia Brasileira de Letras. Imagino como Adolpho fica- povo judeu, recebi, entre outras, as lições de que “de ria feliz se tivesse vivido o suficiente para assistir à nada vale ser, ter ou parecer. O que vale na vida é minha vitória! fazer, construir e desenvolver. Ela só vale a pena ser Da Manchete, guardo a imensa gratidão de ter vivida quando se faz algo pela vida, em vida”. trabalhado, durante mais de 40 anos, numa escola de Vale também outra coisa: o trabalho. Porque, grandeza, correção, dignidade, confiança, otimismo e segundo Adolpho, as riquezas passam, e apenas com patriotismo, com exemplos muito importantes e úteis o trabalho se pode reconstruí-las. Ele próprio foi nestes anos de vida que me restam, a mim ensina- exemplo disto: perdera tudo na revolução comunista dos por um grande e inesquecível homem, Adolpho da Rússia e tudo reconstruíra no Brasil. Seu gran- “Abrasha” Bloch, do qual sinto e sentirei sempre mui- de império jornalístico, as Empresas Manchete – com ta falta e imensas saudades. sede no Russel e projeto de – com- preendiam uma cadeia nacional de televisão, com 5 emissoras próprias, no Rio, São Paulo, Brasília, Belo Em 1998, o Governo do RJ inaugurou em São Cristóvão a Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, Horizonte e Recife, e 49 afiliadas, cobrindo todo o que oferece ensino médio e cursos técnicos profissio- território brasileiro; uma cadeia nacional de rádio, nalizantes de Gestão e Comunicação. com 6 estações próprias e 28 associadas, além de 15 revistas de circulação nacional, sendo três semanais e doze mensais, impressas no seu parque gráfico de Mu r i l o Me l o Fi l h o Parada de Lucas, com 40 mil metros quadrados de Jornalista e escritor área construída. Membro da Academia Brasileira de Letras

49 LEITURA, LEITURAS Saudades de Samuel*

Be n i c i o Me d e i r o s

fim da Última Hora – a Última Hora criada e dirigida por Samuel Wainer, cujo centenário O de nascimento se comemora este ano, e não a Última Hora que a sucedeu – foi um dos aconteci- mentos mais tristes da minha vida profissional. O desfecho infeliz não devia ter provocado muita surpresa. Todo mundo sabia que a empresa enfrentava sérios problemas financeiros e que, a não ser por um da época. Da mesma forma que a milagre, não duraria muito. Mesmo assim, quando se UH expressava a mente aberta do seu proprietário. anunciou a venda do jornal, em abril de 1971, e a rotati- Acredito que Samuel tenha conquistado com seu jor- va da UH parou de vez, o impacto foi geral entre os fun- nal aquele tipo de interação com o leitor que buscava cionários. Terminava assim, melancolicamente, aquilo acima de tudo. que Samuel Wainer chamou de sua “grande aventura”. A UH representou um sopro de juventude na E a UH foi realmente uma aventura, cheia de lances imprensa brasileira. Colunas como “A vida como ela heroicos, quase épicos, e outros nem tanto, mas que é”, de Nelson Rodrigues, despertavam um interesse deixou marca profunda não só na memória dos que que se renova e se prolonga até os dias de hoje. As- participaram daquele empreendimento como na própria sim como a obra do compositor e cronista das noi- vida cultural e política do país. tes cariocas Antônio Maria e a alegre irreverência de Muito já se falou dos efeitos renovadores da Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, criador da Tia UH sobre a imprensa brasileira e creio que muitos co- Zulmira, do Primo Altamirando, e de outros persona- nheçam sua proposta. Um vigoroso jornal popular – gens impagáveis. Este estilo escrachado do segundo “populista”, segundo os detratores –, no entanto fora caderno, cem por cento carioca, antecipou e inspirou, dos modelos sensacionalistas em voga cujo objetivo não tenho dúvida, o grande fenômeno jornalístico de era mais impressionar e provocar emoções baratas 1969 que foi O Pasquim. do que manter o leitor informado. Uma publicação Quando o conheci, Samuel tinha voltado do de tendência socialista, ou mais propriamente tra- seu exílio na França havia pouco mais de dois anos. balhista, que devia representar, na sua fase inicial, Fazendo agora as contas, em 1970 ele contava 60 um canal aberto entre o segundo governo de Getúlio anos. Para mim, era apenas um velho a quem se de- Vargas e um segmento social mais ou menos abstra- via respeito. E, pelo meu olhar de “foca”, um velho to da população, a que se chamaria hoje de “povão”. estressado, visivelmente combalido pelas porradas Incluam-se, nessa categoria, a classe trabalhadora e dos últimos 20 anos e cada vez mais preocupado com largas faixas da classe média urbana, desassistidas a situação do seu jornal cujo período de glórias ficara quanto a algumas de suas necessidades básicas – fal- para trás e agora afundava irremediavelmente. tava água, faltava leite, faltava carne –, e à espera de Nunca estava satisfeito, mudava a toda a hora as um veículo que as compreendesse e abrisse espaço às chefias. No período em que estive lá, passaram pela mes- suas aflições do dia a dia. ma mesa vários chefes de reportagem, o que revelava de- Em que pesem os perigos do modelo, hoje pos- certo as agruras e a impaciência do Samuel. Queria um sivelmente não realizável no Brasil – refiro-me à asso- cara que pudesse dar certo, que pudesse redimi-lo. ciação entre um jornalista-empresário e um governan- Como ele, os judeus continuam esperando pelo te –, o esquema expressava bem os costumes políticos Messias, mas pelo menos a mim não parecia que Sa- 50 LEITURA, LEITURAS

Acervo de Pinky Wainer muel, àquela altura, cultivasse grandes vínculos com a comu- nidade judaica. E também, no seu estilo de vida, fugia intei- ramente ao estereótipo politica- mente incorreto do “judeu unha de fome”. Pelo contrário, agia como um pródigo – um “exa- gerado”, segundo o seu amigo . Enquanto teve di- nheiro, torrou-o à vontade nos melhores hotéis e restaurantes do mundo. Embora tenha sido criado numa família religiosa, fiel aos preceitos da Torá, ele próprio confessou que com o tempo foi-se afastando dessas suas origens. Tornou-se um ci- Clarice Lispector, seu marido Maury Gurgel Valente, Apolonio de Carvalho, Samuel Wainer e Daniel, seu cunhado. Paris, 1946 dadão do mundo, um agnóstico, para o qual a religião ocupava um espaço pequeno na gama dos outros interesses Samuel estava sozinho em casa quando se que o moviam. Ao contrário da Manchete, de Adolpho sentiu mal. Podia ter ligado para a filha Pinky, que Bloch, a UH tinha de fato uma redação bem ecumê- também morava em São Paulo, ou para um amigo nica, refletindo o espírito liberal, sempre aberto às qualquer, mas preferiu descer e tomar um táxi por novas tendências, do seu criador. conta própria, seguindo nele para o Hospital Albert Samuel gostava de usar a máscara do rabugen- Einstein. Segundo Alzugaray, seus derradeiros mi- to, mas tinha uma doçura escondida que se revelava nutos foram dolorosos. Com falta de ar e fortes do- aos mais próximos. E bom humor também. As mu- res no peito, foi obrigado no entanto a cumprir to- lheres costumavam considerá-lo charmoso e quando dos os rituais burocráticos de internação. Diante do queria era, de fato, um homem encantador. Sobretu- balcão, enquanto morria, ia preenchendo, item por do quando se encontrava com algum banqueiro. item, formulário que lhe fora entregue pela recep- Eu não tinha noção da sua dimensão histórica. E cionista. Esforço inaudito para quem, durante boa ele fingia que também não tinha. Para nós, era mais um parte da vida, frequentou os salões do poder cercado jornalista do que um patrão, o que o diferenciava dos por bajuladores. outros donos de jornais, tendo cumprido longo e penoso Foi ali, sozinho, num corredor de hospital, que percurso de repórter – o único jornalista do Brasil e da Samuel deu seu primeiro passo no caminho da eter- América Latina a cobrir o julgamento de Nuremberg – nidade, saindo horas depois da vida para entrar na antes de se tornar proprietário da UH. Era um homem história da imprensa brasileira. Morreu no dia 2 de se- informal. Dispensava o “doutor”, que é o tratamento tembro de 1980, aos 70 anos. Com outros donos, a UH dado no Brasil aos patrões – o chamávamos de “Seu sobreviveu ao seu criador. Sobreviveu mal. A partir de Samuel”, ou simplesmente “Samuel”, e os mais abusa- 1971 passaria de mão em mão, de picareta a picareta, dos até de “Samuca”. Era como qualquer um de nós, só até finar-se de vez em 1991, quando, acumulando uma que mais célebre e mais experiente. dívida de 450 milhões de cruzeiros, teve a sua falência Magro, nervoso, usava uma espécie de unifor- decretada. Mas aí não era nem sombra do que fora a me: calça azul marinho, camisa de marinheiro, des- UH do passado. No percurso pós-Samuel abraçara as sas que se compravam na Praça Mauá, e uma gra- piores causas, defendera a ditadura, sonegara ou omiti- vata escura, fina como uma tira, com o laço frouxo ra informações aos leitores, e numa de suas fases mais no pescoço. Circulava pela redação agitado, como se infelizes teve até um general no comando, em Brasília, a sua presença física ali, ou quem sabe o seu velho de modo que melhor servisse ao regime militar. carisma, tivessem por si só o poder de salvar a UH da A UH que valeu a pena terminara há muito derrocada. tempo, exatamente no dia em que Samuel e seu jor- Como em certos romances, não existe uma úni- nal deixaram de compartilhar os seus destinos. ca versão sobre os instantes finais de Samuel Wainer. Fico aqui com a mais dramática, a mim relatada pelo Be n i c i o Me d e i r o s empresário argentino Domingo Alzugaray, patrão de Jornalista Editor da Revista do Livro da Biblioteca Nacional Samuel na Editora Três, onde o jornalista trabalhou * Trechos de A rotativa parou! Os últimos dias da Última nos últimos anos de vida. Hora de Samuel Wainer (Civilização Brasileira)

51 NOSSA BIBLIOTECA O Brasil Holandês

Brasil Holandês, editado pela Companhia Sobre o autor das Letras, dá voz aos trechos mais impor- Evaldo Cabral de tantes dos livros, crônicas, documentos e car- Mello (Recife, 1936) estu- Otas do domínio holandês no Brasil (1630-54), desde dou Filosofia da História as primeiras invasões Bahia e Pernambuco até a der- em Madri e Londres. Em rota e expulsão dos batavos. 1960, ingressou no Insti- A presença do conde Maurício de Nassau no tuto Rio Branco. Iniciando Nordeste brasileiro, no início do século XVII, trans- a carreira diplomática, formou Recife na cidade mais desenvolvida do Brasil. serviu nas embaixadas Em poucos anos, o que era um pequeno povoado de brasileiras em Washing- pescadores virou centro cosmopolita. ton, Madri, Paris, Lima e Barbados, em missões A história do governo holandês no Nordeste em Nova York e Gene- brasileiro se confunde com a guerra entre Holanda e bra, e nos consulados Espanha. Em 1580, quando os espanhóis incorpora- gerais do Brasil em Lis- ram Portugal, lusitanos e holandeses ia tinham uma boa e Marselha. longa história de relações comerciais. O Brasil era, É dos maiores então, o elo mais frágil do império castelhano, e pro- historiadores brasilei- metia lucros fabulosos provenientes do açúcar e do ros, especialista em pau-brasil. História regional e no período de domínio holandês em Pernam- Os textos – apresentados e contextualizados buco, séc. XVII, tendo escrito Olinda restaurada (1975), Rubro pela maior autoridade no período holandês no Brasil, o Veio (1986), O negócio do Brasil (1998), e Nassau: governador do Brasil Holandês (2006). Publicou também A fronda dos mazombos historiador Evaldo Cabral de Mello – foram escritos por (1995), O norte agrário e o Império (1984), O nome e o sangue viajantes, governantes e estudiosos. São depoimentos (1989), A ferida de Narciso (2001), e organizou o Essencial Joa- de quem participou ou assistiu aos fatos, cuja vividez quim Nabuco (2010). e precisão remete o leitor ao centro da história. www.companhiadasletras.com.br Haskalá, o Iluminismo judaico

m Haskalá, o Iluminismo absolutismo, aos privilégios da nobre- judaico, ed. Altadena, Ar- za e do clero, e defesa das liberdades E naldo Niskier revela as ex- política e econômica e da igualdade de pressivas contribuições judaicas todos perante a lei. Maimônides, sábio ao Iluminismo. O livro resulta de judeu do séc. XII, seria um dos precur- anos de pesquisa na Biblioteca sores desse pensamento. Rosentaliana, de Amsterdã, no Contrariando os que julgam que Jewish Theological Seminar, de religião e ciência se excluem, o autor Nova York, e de milhares de quilô- fala das luzes judaicas, e considera o metros em busca do conhecimen- pensamento judaico como “dois pratos to que ora põe à luz. na balança em permanente equilíbrio: O Iluminismo europeu oci- num deles a fé, no outro a razão”. dental surgiu no séc XVII, e ex- Niskier enfatiza Isaac Bashe- pressa forma de pensar e de agir vis Singer: “A literatura iídiche foi que afirma serem os homens ca- toda construída sobre as ideias do pazes de tornar o mundo melhor, Iluminismo, quem quiser estudar os pela introspecção, livre exercício últimos 600 anos da história judaica das capacidades humanas e enga- terá que estudar essa língua, de tanta jamento político-social. riqueza”. Do Iluminismo alemão, Sobre o autor Niskier destaca o filósofo judeu Arnaldo Niskier (1935), professor, ex- Moisés Mendelssohn (1729-86), Secretário de Ciência e Tecnologia, Cultura e de avô do compositor Felix Mendels- Educação/RJ, acadêmico da ABL e membro do Centro de História e sohn-Bartoldy. Por ele percebe-se a existência de um Cultura Judaica, é escritor, jornalista e adaptou obras infantis. A vida Iluminismo judaico, caracterizado por investigação e dedicada ao magistério e às letras é por demais conhecida, sendo experiência; crença nos direitos naturais; crítica ao autor de dezenas de livros e artigos, no Brasil e no exterior.

52 NOSSA BIBLIOTECA Entre Moisés e Macunaíma, os judeus que descobriram o Brasil

ois mitos: o do patriar- O livro, editado pela Ga- ca judeu Moisés e o do ramond, permite conhecer dois D ancestral supremo dos escritores refletindo sobre suas Wapichana e outros indígenas ligações étnicas, afetivas e cultu- – Macunaíma ou Makunaima. rais com o judaísmo. E compre- Ligação? Dois brasileiros, filhos ender o sentido de preservação de judeus europeus que vieram da identidade desse povo que, para o Brasil, perseguidos na no Brasil, conforme constata- terra de origem. O ashkenazi ram, pode sofrer o fenômeno da Moacyr, de família russa fugi- assimilação. da do antissemitismo do come- Sobre os autores ço do século XX, foi para o Sul; Márcio, de ancestrais sefaradim, Márcio Souza (Manaus, 1946), expulsos da Espanha pela Inqui- jornalista romancista, ensaísta, drama- turgo, roteirista de cinema, e diretor de sição, seguiu para o Norte. As teatro e ópera. Ex-diretor da Fundação mesmas iniciais: MS – Moacyr Cultural do Amazonas e da Fundação Scliar e Márcio Souza, preocu- Nacional de Arte – Funarte. Autor de Galvez, imperador do Acre; pados em levantar origens comuns e diferentes raízes, Mad Maria; e a tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro, den- identidades pessoais e coletivas, e subjetividades. tre outros. Moacyr Scliar (Porto Alegre, 1937), médico sanitarista, es- Os autores falam sobre o povo que por milê- critor, acadêmico da ABL, desde 2003. Autor de mais de sessenta nios circulou pela Terra, sem poder deitar raízes pere- livros, publicados em dezoito países, muitos premiados e vários nes. Venturas e desventuras da história judaica e das adaptados para cinema, teatro e televisão, dentre os quais: O exér- vindas das famílias para cá, e até das significativas cito de um homem só (1973) A estranha nação de Rafael Mendes especulações sobre a participação judaica no Desco- (1983), A mulher que escreveu a Bíblia (Prêmio Jabuti 2000) e O centauro no jardim (1980) – um dos 100 melhores livros judaicos brimento, na Colonização, e a irrefutável presença dos últimos 200 anos, National Yiddish Book Center, EUA. nas invasões holandesas. www.garamond.com.br A majestade do Xingu

um leito de UTI, em luta pela terminá-lo. Frustrado pelo medío- sobrevivência, gloriosas ima- cre trabalho, em constante conflito N gens e sombrios espectros po- com a mulher e o filho, o homem vê voam a imaginação do narrador desta o amigo Noel como a figura longín- história, editada pela Companhia das qua que ilumina e dá algum senti- Letras, de autoria de Moacyr Scliar. do à sua existência. Gloriosas imagens do amigo de infân- A narrativa cobre décadas da cia, Noel Nutels, também judeu russo, história recente do Brasil –, envol- ambos vindo para o Brasil em 1921. vendo figuras dos militantes comu- Os caminhos se separaram: Nutels, nistas, dos generais, do extermínio intelectual de esquerda, forma-se em dos índios no Xingu e do golpe mi- medicina e consagra sua vida à causa litar de 1964 – e nela, sempre pre- dos índios, ganhando renome nacional sente, a singular figura de Noel Nu- e internacional. O narrador vê a vida tels, que aliava coragem a estoicis- passar entre prateleiras empoeiradas mo e humor. E humor não falta na da lojinha paulistana do Bom Retiro. narrativa: melancólico, escrachado Os espectros são figuras reais ou surrealista. Trata dos destinos ou imaginárias que perseguem o nar- brasileiros em ritmo trepidante até rador: índios cujo cemitério supõe ficar a surpresa do final. sob sua loja; cossacos que querem ex- www.companhiadasletras.com.br

53 NOSSA BIBLIOTECA Clarice na cabeceira

idos e relidos, os contos de Clarice Lispector Esta seleção de crônicas destaca a sedução mantêm-se muito próximos de seus leitores, imediata da escrita de Clarice e a constância de seu L encantados com suas histórias. Organizada olhar preciso, agudo e incomum mesmo nas situações por Teresa Montero, e editada pela Rocco, a coletânea cotidianas. Em textos leves e saborosos, o poder de Clarice na cabeceira é uma seleção inquietação se mantém como mar- afetiva de contos de Clarice apre- ca da autora, que busca o senti- sentados por 22 personalidades do mento depois do sentimento, a cenário cultural. E não se trata de impressão depois da impressão, quaisquer fãs. Os escritores Luis a linha tênue entre o que vem de Fernando Verissimo, Lya Luft, Ma- dentro e o que vem de fora. rina Colassanti e Rubem Fonseca, o crítico José Castelo, a jornalista Sobre a autora Cora Rónai, a cantora Maria Be- Clarice Lispector (1920-1977), de thânia, as atrizes Fernanda Tor- origem judaica, naturalizada brasileira, nasceu em Tchetchelnick, Ucrânia, vindo res e Malu Mader, e o diretor Luiz com a família para o Brasil aos dois me- Fernando Carvalho são alguns ses. Criou-se em Maceió e Recife, e aos dos fãs que compõem o time es- 12 anos transferiu-se para o Rio de Janei- telar de colaboradores do livro. ro, onde se formou em Direito, trabalhou Junto a cada um dos contos, os como jornalista e iniciou carreira literária. Viveu muitos anos no exterior, em vista do leitores convidados compartilha- casamento com um diplomata brasileiro, ram a experiência de ter Clarice com quem teve dois filhos. em suas vidas, seja por ter con- Destacamos, de sua vasta obra, vivido com ela, seja apenas por os romances: Perto do coração selvagem meio de seus livros. E, implicita- (1944), A maçã no escuro (1959), A Paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem mente, propõem a mesma per- ou o livro dos prazeres (1969), Água viva gunta a todos nós: Qual o seu (1973), A hora da estrela (1977); os de texto de cabeceira de Clarice conto: Alguns contos (1952), Laços de fa- Lispector? mília (1960), A legião estrangeira (1964), Na mesma linha, outra Felicidade clandestina (1971), A via crucis do corpo (1974), Onde estivestes de noite reunião de vinte textos esco- (1974); os de crônica: Visão do esplendor lhidos por convidados afeitos (1975); os infantis A Mulher que matou à obra de Clarice Lispector, os peixes (1968) e A vida íntima de Laura Clarice na cabeceira – crôni- (1974). Da obra publicada postumamente: cas, apresenta uma seleta de Para não esquecer (1978), A descoberta do mundo (1984), Como nasceram as estrelas narrativas curtas publicadas (1987), Correspondências (2002), Entrevis- entre 1962 e 1973, na revista tas (2007), Só para mulheres (2008). Senhor e no Jornal do Brasil, e posteriormente agrupadas nos Sobre a organizadora livros Para não esquecer e A Teresa Montero é doutora em descoberta do mundo Letras pela PUC-Rio e professora de lite- As crônicas ganham sabor ratura e de arte-educação. Autora de Eu especial apresentadas por ami- sou uma pergunta – uma biografia de Clarice Lispector (1999); organizadora gos e admiradores de Clarice, que de Correspondências – Clarice Lispector compartilham o impacto da escri- (2002) e, em parceria com Lícia Man- tora e de sua obra em suas vidas, zo, Clarice Lispector – Outros escritos como , Eduardo (2005), com inéditos da autora, todos Portella, , Lygia Fa- editados pela Rocco. Criou também o projeto “O Rio de Clarice”, passeios tu- gundes Telles, Marília Pêra, Nádia rísticos guiados por locais descritos na Battella Gotlib, Naum Alves de obra de Clarice. Souza, Rosiska Darcy de Oliveira e Silviano Santiago, entre outros. www.rocco.com.br

54 NOSSA BIBLIOTECA Primos Histórias da Herança Árabe e Judaica

rabes e judeus, povos amantes do livro, são A maioria dos grandes contadores de histórias. Por isso tinha escritores seleciona- Á tudo para dar certo a ideia das organizadoras dos nasceu no Brasil. Adriana Armony e Tatiana Salem Levy de reunir num só Poucos os que vieram volume contos criados por vinte brasileiros, descenden- para cá ainda crian- tes dessas culturas milenárias do Oriente. Viagem na me- ça. Mas, apesar de mória, na história e na tradição, Primos – Histórias da serem brasileiros, ou Herança Árabe e Judaica (Record) já nasceu eterno. Suas naturalizados, todos palavras nos queimam pela beleza. As páginas são im- têm os olhos volta- pregnadas de perfume e sabor de passado, história, mito. dos para o passado As narrativas são antigas, como se tivessem sido escritas e as tradições. Para em papiro ou pergaminho. Ao ler os contos, vemos mira- as sagas, vivências e aventuras contadas pelos avós, pais, gens no deserto, ouvimos vozes de beduínos. E pensamos tios e tias. São pessoas planetárias. Com elas viajamos em velhos manuscritos das cavernas à beira de um mar para outras terras, outros tempos. Os primeiros tempos. Morto, vermelho de sangue. Cada conto é uma arca enterrada na areia, não saberia di- Um dia, relembram Adriana e Tatiana na abertu- zer qual o melhor. Tenho minhas preferências. Mas cabe a ra do livro, árabes e judeus foram primos. Na realidade, cada leitor escolher a joia mais cintilante. Não será fácil. irmãos. Já que descendem de Sem, filho de Noé, e de seu Os autores são mestres de símbolos, signos, hieróglifos, filho Abraão. Relembremos a história: Sara não conse- alegorias. Todos são poetas da prosa: Alberto Mussa, Ale- guia dar um filho a Abraão, por isso permitiu ao marido xandre Plosk, Arnaldo Bloch, Bernardo Ajzenberg, Carlos engravidar a escrava egípcia Agar. Assim nasceu Isma- Nejar, Cíntia Moscovich, Eliane Ganem, Fabrício Carpinejar, el, patriarca dos povos árabes. Depois, Deus concedeu Flavio Izhaki, Georges Bourdoukan, Julián Fuks, Leandro a Sara, aos 90 anos, ter um filho, Isaac, e dele descen- Sarmatz, Luiz Antonio Aguiar, Márcia Bechara, Moacyr deriam os judeus. Tudo isso aconteceu naquela área de Scliar, Salim Miguel, Samir Yazbek, Whisner Fraga, além eterno conflito, o Oriente Médio. Os irmãos se tornariam de Adriana e Tatiana. E o melhor de tudo, nos dão pra- inimigos mortais. Mais o tronco é o mesmo, como as raí- zer, o mágico prazer da leitura. zes míticas. E também o amor pelas palavras, pelas histó- rias dentro das histórias. Histórias que consolam, ou que Ce c i l i a Co s t a Ju n q u e i r a explicam o mundo. As perdas, as dores, as paixões. www.record.com.br ABC do mundo judaico do mundo judaico, No livro, seguindo ordem alfabé- ABC de Moacyr Scliar, tica, temos informações sobre nomes im- Ed. SM, faz parte da coleção portantes da religião (da qual derivam o ABC, proporcionando aos jo- cristianismo e o islamismo) como Abraão vens leitores (e adultos) o co- e Davi, cidades como Jerusalém, pratos nhecimento das variadas cultu- da rica culinária judaica como Varênikes, ras com que convivemos. datas religiosas como o Pêssach a que os O autor, que dedica aos cristãos chamam de Páscoa e que relem- jovens parte de sua obra, com óti- bra a fuga dos judeus do Egito. ma aceitação, fala sobre o mundo Uma palavra tristemente im- judaico. Diz na orelha do livro que portante é Nazismo, lembra o regime o judaísmo significa a herança de implantado na Alemanha pelo ditador longa história. Expulsos há dois Adolf Hitler (1933-1945), que almejava mil anos da Palestina pelos roma- uma “elite racial” para dominar o mun- nos, os judeus espalharam-se pelo mundo até que, no século do, desencadeando a segunda guerra mundial, vencida passado foi criado o Estado de Israel, para onde se mudaram pelos países aliados, entre os quais o Brasil. Ele tentou eli- muitos deles. Outros permaneceram nos países em que mora- minar os judeus em terríveis campos de concentração. vam há gerações, pois a eles já se haviam adaptado. Textos curtos explicam a palavra selecionada, e O judaísmo é também uma religião, mas nem to- grandes ilustrações em cores do premiado Renato Alarcão dos os judeus a praticam. Esta cultura, além do idioma, fazem deste livro leitura indicada para a juventude. o iídiche, inclui música, dança, muita ciência e literatura, pois são judeus alguns dos principais cientistas e escrito- La u r a Sa n d r o n i res em ação hoje e no passado. www.edicoessm.com.br

55 O ASSUNTO É... Aracy Guimarães Rosa Quem sabe, faz a hora

Jo h n We s l e y Fr e i r e

Somos todos iguais, (1930-45), simpático ao regime braços dados ou não alemão, praticamente não con- Ge r a l d o Va n d r é cedia vistos a judeus, por julgá- los perigosos, fossem eles co- munistas ou capitalistas, con- creditando no ditado siderando que manipulavam a que diz: “uma ando- economia mundial. A rinha não faz verão”, Em 9 de novembro de muitas vezes se espera que ou- 1938, em cidades da Alemanha tros façam ou que chegue um e da Áustria, sucedeu a Noite momento “oportuno” para agir. dos Cristais, um dos maiores Entretanto, este relato se refe- pogroms da história: destruição re a alguém que não esperou de sinagogas, empresas e resi- por outras “andorinhas”, nem dências, além de agressões con- por um “imaginário verão”. tra os judeus. Revoltada com as Isso significaria o sofrimento e ocorrências, Aracy comentou a morte de muitas pessoas, al- com João Guimarães Rosa, en- vos de delirantes preconceitos tão cônsul-adjunto, que aqui- de origem e de condição eco- lo era uma injustiça e, a seu nômica. Assim, contaremos a modo, começou a ajudá-los. história que poucos brasileiros Ignorando a Circular Secreta conhecem da mulher que sem- 1.127/1938 do Itamaraty, que pre lutou contra os preconcei- dificultava a concessão de vis- tos e acreditou mais na consci- tos as judeus, Ara os prepara- ência do que na conveniência. va, embaralhando-os com ou- Aracy nos anos 1930 Em 1908, na cidade de tros documentos para disfarçar Rio Negro, PR, nasceu Aracy Moebius de Carvalho, que os sobrenomes ou “se esquecia” de lhes apor a letra J, se tornaria uma bela moça e se casaria mais tarde com identificativa de judeus, e o consul-geral os assinava. João Guimarães Rosa, expoente de nossas letras. O pai Sabendo o que ela fazia, Rosa a apoiava, mas dela era português e a mãe alemã. A jovem se casou advertia: “Tome cuidado, os nazistas são perigosos, com Johan von Tess, filho de alemães. Ao desquitar-se Aracy”, contou seu filho Eduardo. Sem se intimidar, dele, foi com o filho Eduardo morar na casa de uma tia mesmo não gozando imunidades diplomáticas, ela na Alemanha, em 1934, pois a esse tempo no Brasil ha- criou inúmeras formas de ajuda aos perseguidos: via muito preconceito contra mulheres desquitadas. amigos dela na prefeitura omitiam a ascendência ju- Por falar português, inglês, francês e alemão, daica das pessoas e/ou emitiam falsos atestados de ela conseguiu trabalho na Seção de Passaportes do residência para os que viviam fora da área de atuação Consulado Brasileiro, em Hamburgo, chegando a do Consulado, permitindo a concessão dos vistos. chefiá-la. Iniciava-se aí um verdadeiro filme, do qual Noutros casos, Aracy abrigava judeus em sua Aracy seria a heroína. própria casa, livrando-os de perseguições, e protago- Em 1935, as perseguições a judeus na Alema- nizou muitas ousadias. Certa vez, Maria Margarethe nha se intensificavam, pois Hitler os acusava de se- Bertel Levy – Margarida – cuja mãe morrera num rem a origem dos males do mundo. Fatos idênticos campo de concentração, foi levada com o marido a aconteciam na Áustria, antes mesmo da anexação um navio. Ara levou as joias deles na própria bolsa e àquela, em 13/03/1938. O governo de Getúlio Vargas as escondeu na caixa de descarga do sanitário do ca- 56 O ASSUNTO É...

Fotos: Acervo da Família Tess marote, aconselhando-os a só retirá-las em alto-mar. Chegando aqui, eles venderam as joias e iniciaram nova vida. Reencontrando-se anos depois, tornaram- se grandes amigas. Margarida relata o reencontro com Ara: “Foi uma emoção enorme, além da sua bon- dade, era uma mulher muito bonita”. De outra feita, ela escondeu uma pessoa no banco de trás do carro consular e a levou à Dina- marca sem ser revistada pelos nazistas! Há muitas evidências de que Aracy socorria os judeus: uma car- ta de 1941, cartões postais e depoimentos de outros sobreviventes atestam sua providencial ajuda, daí a alcunha que lhe deram: Anjo de Hamburgo. A Asso- ciação Nacional dos Judeus Alemães as arquivou no Memorial do Holocausto, em Jerusalém. Menciona, até, que a filha de uma das famílias salvas por ela recebeu seu nome como homenagem. Aracy e Rosa permaneceram na Alemanha até 1942, quando o governo brasileiro declarou guerra aos alemães, devido ao afundamento de navios brasileiros no Atlântico, passando a apoiar os Aliados. Ara e Rosa fi- caram quatro meses retidos em Baden-Baden, até serem trocados por diplomatas alemães que aqui serviam. Aracy, com Rosa, em homenagem na embaixada Após a guerra, Aracy e João voltaram ao Brasil, alemã, 1961 casando-se na Embaixada do México, 1947, pois, à época, o Brasil não reconhecia casamento entre des- mesmo posto diplomático, ela abdicou da carreira quitados. Como não poderiam trabalhar juntos num para não se separar de Joãozinho. Em 48, Ara e Rosa seguiram para Paris, onde ele ocupou o cargo de Con- selheiro na embaixada brasileira e participou da Con- ferência de Paz, ganhando status de Embaixador. Viajaram pela Europa, e as impressões das viagens, supõe-se, foram inspiração para as palavras do jagunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, sua obra-prima. “Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem”. Em 50, voltaram ao Rio, e ela foi homenagea- da com a dedicatória no Grande Sertão: Veredas: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Após enviuvar em 19/11/1967, três dias após ele haver tomado posse na Academia Brasileira de Letras, ela não mais se casou, mas continuou a de- Inauguração do Bosque Aracy, Israel, 1985 fender os perseguidos. Geraldo Vandré, autor de com- posições como Disparada e Pra não dizer que não fa- O Instituto do Holocausto Yad Vashem, de Isra- lei de flores, esta considerada contra o regime militar, el, criou uma avenida, depois um bosque, homenage- em 1968 passou a ser procurado pela ditadura. Aracy, ando não-judeus que ajudaram judeus a se salvarem agindo como a andorinha que faz verão, o escondeu do Holocausto e inscreveu Aracy entre os “Justos den- em seu apartamento em Copacabana como fez com tre as nações”. Ali, ela inaugurou uma placa, e a insti- outros compositores e intelectuais. tuição de reflorestamento Keren Kayemet Le´Israel deu ainda seu nome a outro bosque perto de Jerusalém. A Aracy, mais do que a qualquer outra pessoa, Aracy também é lembrada no Museu do Holocausto em cabem os versos de Vandré: “Quem sabe, faz a hora, Washington. não espera acontecer”… E a nós, cabe reverenciá-la, Das 22 mil pessoas catalogadas que ajudaram considerando-a um exemplo de amor à vida e para- judeus, há 18 membros do corpo diplomático e, além digma na luta contra a irracionalidade, a arbitrarie- de Aracy Guimarães Rosa, consta o Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas. dade, a perseguição e o preconceito.

Fonte: Palestra de Osias Wurman, Jo h n We s l e y Fr e i r e na Fundação Eva Klabin, 07/04/2008, Professor, especialista em educação “Aracy Guimarães Rosa, a Schindler brasileira” Produtor e apresentador de rádio e tv

57 ILUSTRAÇÃO E CARICATURA Acervo Instituto C ultural arlos S cliar

Composição e o lampião vermelho. Ouro Preto, 1998 Os passos de Scliar, companheiro do mundo

Ro m é r i o Rô m u l o

ssim vejo o Scliar, o Carlos Scliar. Companheiro de Passo quatro. 1943: convocação para a guerra tudo e de todos, lançando o seu olhar e a sua ação “Experimentei a maior emoção quando recebi, em A fraterna em muitos caminhos. Busco os passos rá- 1943, minha convocação para a FEB”, declarou. pidos do homem. Passo cinco. 1944-1945: na guerra Passo um. 1920: Santa Maria da Boca do Monte, RS Cabo de artilharia, responsável por um certo “controle Scliar nasce. Segundo ele, impaciente, de 7 meses. Na horizontal” que ele relatava minuciosamente o que era, foi certidão consta 21 de junho. Pode ter sido um pouco antes. além das atividades de soldado. Trabalhou aproximadamen- Passo dois. 1925? te mil desenhos, com os materiais possíveis. Uns 700/800 Pelos 4-5 anos, Acervo Instituto Cultural Carlos Scliar chegaram ao Brasil com num gesto rebelde, Scliar ele. Seus “desenhos de rabiscou com carvão as guerra”, “desenhos de paredes de sua casa. salvação”, fugiam dos “Ali nascia o pintor”, horrores das batalhas. dizia ele. Um núcleo essencial da Passo três. 1940: a sua arte, sempre. primeira individual Passo seis. 1950: os Ousado, Scliar clubes de gravura faz a sua primeira in- Scliar, com vários dividual aos 20 anos, artistas amigos, levou à em época considerada frente uma experiência impossível. Da expo- única no Brasil, a partir sição, cheia de elogios, de um modelo trabalha- escreveu Lívio Abramo: do no México. Caminhar “Scliar sofre todas as pelas terras, observar influências sem pene- as gentes, realizar uma trar-lhes o sentido...” arte vinculada a essa Atento, Scliar ficou mar- realidade. Os resultados cado por esta fala. E foi obtidos aí compõem a se entender com ela. Marinha, dois barcos. Cabo Frio, 1982 história da nossa arte. 58 ILUSTRAÇÃO E CARICATURA Instituto Scliar comemora com Passo sete. 1956: Orfeu, com , Tom Jo- bim e Oscar Niemeyer exposição os 90 anos do pintor Por certo Scliar foi o único “consultor plástico” no teatro, em todos os tempos. A função, criada por Vinicius, buscava juntar o amigo fraterno ao grupo que trabalhou a montagem da peça. Passo oito. 1958: a revista Senhor Convidado por amigos, Scliar é um dos criadores da revista, como diretor de arte. Eles produziram ali uma das grandes marcas da arte brasileira. Passo nove. 1960: a pintura como profissão Sua busca, viver com o trabalho de pintor, se realiza aí. Impaciente sempre, criou uma técnica para a secagem rápida das tintas. Casa-ateliê de Scliar Passo dez. Scliar, sempre: “eu devo tudo a todos”. e ainda estivesse vivo, em 21 de junho deste ano, Car- Quem quiser saber mais de Scliar terá muitas opor- los Scliar, o pintor gaúcho que amava reunir os amigos, tunidades. São filmes, vídeos, exposições, livros, catálogos, teria comemorado os seus 90 anos. Infelizmente, morreu S telas, cartas, gravuras, depoimentos em áudio, seus ami- após festejar os 80, em abril de 2001. Mas a efeméride não poderia passar em branco. Para marcá-la, em 11 de dezem- gos que falam por ele e sobre ele, suas obras contaminadas bro o Instituto Cultural Carlos Scliar, sediado na casa-ateliê de do sentimento largo do mundo. Apoiador de tudo e de todos Cabo Frio, apresentará grande exposição, com registros dos naquilo que entendia ser ação humana e política perma- principais momentos da vida e obra deste artista militante e nente na arte e na vida. humanista, que em toda sua existência lutou para tornar a vida dos brasileiros menos dura e mais colorida. Emblemático, eis parte de um depoimento do Cildo Além da mostra, que exibirá retratos de família, ju- Meireles: ventude e maturidade; jornais, livros e revistas por ele ilus- trados; cartas e cartões trocados com os amigos; cartazes de Dois sentimentos me vêm à memória afetiva exposições, no Brasil e pelo mundo afora, além de quadros e logo que penso em Carlos Scliar: gratidão e gravuras, a data também será marcada por depoimentos de carinho. Gratidão por ter sido uma das primei- quem teve o privilégio de conviver com Scliar e pela inaugu- ração da Escola de Artes e do Café Literário, que funcionarão ras pessoas (senão a primeira) a efetivamente dentro do belo sobrado colonial, situado no Boulevard Canal. (através de aquisições regulares para si, bem Sempre disposto a oferecer ao público novas ati- como convencendo outros colecionadores a fa- vidades e atrativos culturais, o museu, instalado na casa zê-lo) me possibilitar viver e produzir meu tra- em que Scliar, ao longo de quarenta anos, concebeu suas belas marinhas, imagens de barcos e naturezas mortas, já balho. (maio de 1990) conta com biblioteca, pequeno cinema e valioso acervo, Muitos escreveram e falaram sobre Scliar: Jorge composto por telas de autoria do próprio pintor e de outros criadores de obras de arte inestimáveis, seus contemporâne- Amado, Oscar Niemeyer, Luis Carlos Prestes, Antônio Hou- os, entre eles de Di Cavalcanti, Glauco Rodrigues, Marchetti, aiss, Bonadei, Vinicius, Joaquim Cardozo, Thereza Miran- Djanira, Pancetti e Cildo Meireles. da, Fernando Sabino, Anna Letycia, Rubem Braga, Lívio Tudo isso obedecendo ao desejo de Scliar. Antes de Abramo, Roberto Pontual, Vieira da Silva, Arpad Szenes, partir deste mundo de delícias e sofrimentos, o generoso Gabriel Garcia Marques, Lúcio Costa, Ferreira Gullar foram artista havia pedido a seu filho e herdeiro Francisco Scliar que alguns. transformasse a moradia em Cabo Frio num museu propulsor de cultura na Região dos Lagos, aberto à visitação pública. E com este poema, parte do “Canto para amar Car- Pedido seguido à risca. Em novembro de 2001, sob a pre- los Scliar”, o relembro: sidência de Chico Scliar, foi criado o Instituto Cultural Car- los Scliar para administrar a casa-museu, aberta ao público em 2003. Incrível como até hoje tudo lá está intacto, com a Scliar fez conosco a brincadeira memória do pintor sendo quase física, corpórea. Ao andar de ir-se, como quem nos deixa soltos pelas salas e pelos quartos, o visitante pode ver os pertences de pensar retribuir sua ironia do pintor: sofás, mesa, cadeiras, pincéis, tintas, prancheta, pensando ser verdade o que ele fez. cama, livros, discos, como se até hoje ele lá trabalhasse, co- messe, sonhasse e dormisse. Provavelmente sua alma passeia Decidiu fazer-se cinza pelo mar pelas salas e pelos jardins, contente em dividir aqueles bens e brincar de ser peixe em profundezas preciosos com os curiosos. Com a certeza de que deixava o trabalho feito, Francis- que aqui, inatingíveis, não sabemos. co Scliar faleceu em 2008. Sua viúva, Eunice Medeiros Scliar, Daí virá, exato, álbum da vida. é quem mantém agora a chama da casa viva, preservando o espírito benfazejo de seu gênio protetor. Pois cada vez Decidiu fazer-se saibro pela terra mais o museu em Cabo Frio vem se tornando ele mesmo traduziu-se em estrada de outra parte. uma obra de arte, construída carinhosamente pelas mãos E decidido fica neste canto: dos amigos de Scliar, com destaque para as da arquiteta Scliar não morreu. Homem não morre. Cristina Ventura, diretora da casa-ateliê, e as da bibliote- cária Regina Lamenza, atual presidente do Instituto, duas incansáveis promotoras de cultura. Ro m é r i o Rô m u l o Ce c i l i a Co s t a Ju n q u e i r a Professor de Economia Política da UFOP-MG Conselheira do ICCS Autor, dentre outros, de Anjo tardio (1983) e Matéria bruta (2006)

59 FALA, LEITOR

Sobre a Educação em linha, Tomamos conhecimento da alguns exemplares para o nosso tenho duas palavras: Muito boa! revista através do nosso alu- arquivo. Pelo que pude ver, gostei muitis- no, autor de artigo na 13.ª edi- Cr i s t i a n e Na sc i m e n t o , s e c r e t á r i a simo. Que bom gosto! Que ilus- ção, Sr. Cristino Wapichana. Fi- Re c i f e /PE trações! Que diagramação! Que camos encantados com sua pu- qualidade das pessoas envolvidas blicação e gostaríamos de saber Nossa, que beleza! Tomara (a começar pelos editores). E que como receber a revista impressa que vocês consigam o direito de conteúdo! aqui na Biblioteca. Seria de mui- publicar esses quadros lindos da Tarsila e da Anita Malfatti na mi- Ro b e r t o Sa l v a d o r – Ri o /RJ ta valia para nossos docentes e discentes. nha matéria. Ficou mesmo mara- Muito grata pela gentileza vilhosa: brilhante, bela, alegre. Ri t a Re b e l l o – Bi b l i o t e c a d a Fa c u l d a d e e inusitada rapidez com que me Obrigada por sempre quererem In t e r n a c i o n a l Si g n o r e l l i – Ri o /RJ propiciaram o conhecimento des- fazer o melhor. te material de enorme qualidade. Fiquei feliz com o e-mail de Lu c i a He l e n a – UFF/RJ Parabéns pelo excelente trabalho. vocês. Multiplicaremos suas cria- A revista está excelente: a se- ções por muitas e muitas escolas. Ni n a Ma r i a El i a s Ra b h a – Ri o /RJ leção dos textos, a expressão da Enviarei exemplares até Oriximi- autenticidade do processo de acul- Gostaria de saber se posso ná/PA, lugar escolhido por minha turação e a linguagem dos artigos conseguir um exemplar impresso filha para exercer a medicina. da Educação em Linha, 13.ª ed., Lá existem boas escolas munici- revelam a qualidade dos notórios “Índios, os primeiros brasileiros”. pais e estaduais; as cunhatãs e autores. Parabéns! Fe l i p e Fe r r e i r a Va n d e r Ve l d e n . os curumins estarão viajando ao Am e l i a Ma r i a No r o n h a P. d e Qu e i r o z Pr o f . d o De p t .º d e An t r o p o l o g i a , sabor de suas criações. Ri o /RJ IFCH/Un i c a mp Va l é r i a – Coordenadora d a Se r r a n a II, Recebemos a Educação em Li- Leciono no Colégio Estadual No v a Fr i b u r g o /RJ nha e aproveitamos para parabe- Baccoparó Martins. Achei bastan- nizá-los pela excelente qualidade Parabéns a você e John pela te interessante os temas aborda- de conteúdo e de design. dos, pois ficam dúvidas frequen- 12ª edição, sobre as raízes afri- tes para aqueles que não lidam canas da nossa cultura. Os ar- Ro s a n g e l a Ab r a h ã o – Mu s e u d o Ín d i o , diariamente nesses universos. A tigos selecionados certamente Ri o /RJ leitura é gostosa, descontraída e contribuirão para reflexões e prá- Ficou belíssima a edição 13. informativa. A equipe da revista ticas educativas e culturais que Que sorte tive eu de não dizer não e todos que com ela colaboram fortaleçam lutas contra qualquer por pura preguiça... Parabéns. estão de parabéns pelas informa- tipo de discriminação: “sejamos ções valiosíssimas que ela dispo- simplesmente brasileiros”. Ed u a r d o Vi v e i r o s d e Ca s t r o – Ri o /RJ nibiliza. Haveria possibilidade de De l z i m a r e e q u i p e d a Di v i s ã o d e Adorei! O trabalho que fizeram receber, na escola onde estou lo- Fo l c l o r e / Ine p a c / SEC-RJ tada ou em minha casa, todos os com o texto está excelente.”Vestiram números publicados? O Sr. Francisco Brennand minhas palavras com uma roupa de festa”, que o valorizou tanto, Ad r i a n a Mo z d z e n s k i – Ca ch o e i r a s d e gostou muito da diagramação da que certamente o fará ser apreciado Ma c a c u /RJ capa. Peço-lhes que, tão logo a revista fique pronta, nos enviem por outras pessoas. Obrigada! Gostaria de ter Ja n d i r a Ne t o – IAB mais informações so- Ri o /RJ bre a revista e como nela publicar anún- Ficou linda cios. a apresentação! Ro b e r t a Ma l u c e l l i No aguardo do Cu r i t i b a /PR exemplar da re- Sou professora vista, continuem de Língua Portu- a dispor dos nos- guesa no C.E.Freire sos arquivos. Allemão. Gostaria de Le o n a r d o Da n t a s solicitar exemplares Re c i f e /PE impressos da revista n.º 12, “Da costa Afri- Parabéns!!! cana à costa brasilei- As imagens são ra”, para que possa belíssimas. A dia- utilizar como material gramação é fina de apoio didático nas e tornou o texto minhas turmas. de fácil leitura. El l a i n e Di a s Ri b e i r o Ni r e u Ca v a l c a n t i Am é r i c o – Ri o /RJ A noiva judia. Rembrandt, c.1665 Ri o /RJ 60 INSTITUCIONAL Biblioteca Nacional: 200 anos

Mu n i z So d r é

Imagens: acervo FBN

om o maior acervo tilo eclético, na Cinelân- da América Latina, dia, Rio de Janeiro. Hoje, C a Biblioteca Nacio- sob sua guarda, somam- nal do Brasil chega ao bi- se mais de 9 milhões de centenário unindo em um obras. Pensadores impor- só espaço tradição, memó- tantes trabalharam no ria e avançados projetos prédio, que hoje funciona de digitalização. Na socie- como sede da Fundação dade atual, onde o livro e Biblioteca Nacional. a formação escolar básica O núcleo original passam por crises simbóli- de seu acervo é a antiga cas, a BN persiste como es- livraria de D. José, organi- paço de preservação de co- zada sob a inspiração de nhecimento e, sobretudo, Diogo Barbosa Machado, de incentivo à formação de Abade de Santo Adrião de leitores e pensadores. Sever, para substituir a Ao comemorar seus Livraria Real, cuja origem duzentos anos, a Biblio- remontava às coleções de teca Nacional, hoje vin- livros de D. João I e de seu culada ao Ministério da filho D. Duarte, e que foi Cultura, pode orgulhar-se consumida pelo incêndio de figurar como um dos que se seguiu ao terremo- principais equipamentos to de Lisboa de 1.º de no- culturais responsáveis vembro de 1755. pela chamada consci- O início do itinerá- ência latino-america- rio da Real Biblioteca no na para a evidência de Brasil está ligado a um dos que a inserção dos in- Salão de leitura da BN mais decisivos momen- divíduos no estatuto da tos da história do país: a cidadania plena começa, ao lado do trabalho, com a transferência da rainha D. Maria I, de D. João, Príncipe questão do aprendizado e exercício da interação so- Regente, de toda a família real e da corte portuguesa cial por meio do que potenciam a leitura e a escrita. para o Rio de Janeiro, quando da invasão de Portugal pelas forças de Napoleão Bonaparte, em 1808. Histórico O acervo trazido para o Brasil, de sessenta mil peças, entre livros, manuscritos, mapas, estampas, Considerada pela Unesco uma das dez maio- moedas e medalhas, foi inicialmente acomodado numa res bibliotecas nacionais do mundo, há cem anos, das salas do Hospital do Convento da Ordem Terceira a BN tem seu acervo preservado no edifício de es- do Carmo, na Rua Direita, hoje Rua Primeiro de Março.

61 INSTITUCIONAL

bém faz parte da instituição o Escritório de Direitos Autorais (EDA) – que funciona ininterruptamente des- de 1898, para o registro de obras intelectuais. Cabe à FBN a coordenação do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) e administração do Proler, o Programa Nacional de Incentivo à Leitura. Legalmente, a instituição é guardiã da produ- ção editorial do Brasil, recebendo tudo o que é publi- cado no país (Lei do Depósito Legal, de 2004, que foi acrescida pela Lei do Depósito Legal de Obras Mu- sicais, sancionada em janeiro deste ano). Chegam à FBN, por mês, cerca de 3 mil livros, 4 mil periódicos (jornais e revistas), além de CD-ROMs, CDs, mapas, fotografias, cartazes e DVDs. Para garantir a manutenção de seu acervo, a FBN possui laboratórios de restauração e conservação. Possui também oficina de encadernação e centro de mi- crofilmagem, fotografia e digitalização. Nessas áreas, a Biblioteca Nacional desenvolve dois planos: o Plano Na- Ata do lançamento da pedra cional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, com fundamental do edifício-sede da BN uma rede de núcleos estaduais de microfilmagem com vistas à preservação de toda produção jornalística do Em 29 de outubro de 1810, um decreto do Príncipe Re- país e o Plano Nacional de Restauração de Obras Raras, gente determinou que o lugar acomodasse a Real Bi- cujo objetivo é identificar e recuperar obras raras exis- blioteca e instrumentos de física e matemática. A data tentes, não só na Biblioteca Nacional, como em outras de 29 de outubro de 1810 é considerada oficialmente bibliotecas e acervos bibliográficos do país. como a da fundação da Real Biblioteca que, no entan- to, só foi franqueada ao público em 1814. Quando, em 1821, a Família Real regressou a Portugal, D. João VI levou de volta grande parte dos manuscritos do acervo. Depois da proclamação da independência, a aquisição da Biblioteca Real pelo Brasil foi regulada mediante a Convenção Adicional ao Tratado de Paz e Amizade celebrado entre o Brasil e Portugal, em 29 de agosto de 1825. O prédio atual da FBN teve sua pedra fundamen- tal lançada em 15 de agosto de 1905 e foi inaugurado cinco anos depois, em 29 de outubro de 1910. O prédio foi projetado pelo General Francisco Marcelino de Sou- sa Aguiar, e a construção foi dirigida pelos engenhei- ros Napoleão Muniz Freire e Alberto de Faria. As insta- lações do novo edifício correspondiam na época de sua inauguração a todas as exigências técnicas: pisos de vidro nos armazéns (ainda existentes), armações e es- tantes de aço com capacidade para 400.000 volumes, amplos salões e tubos pneumáticos para transporte de livros dos armazéns para os salões de leitura.

A Fundação Biblioteca Nacional

Muito além das funções de abrigar e preservar acervos, a Biblioteca Nacional do Brasil faz parte da política de difusão da cultura e estímulo à leitura no país. A FBN é composta pela Biblioteca Demonstrativa, em Brasília, Biblioteca Euclides da Cunha, no Palácio Capanema, Rio de Janeiro, e pela Biblioteca Nacional, também no Rio. É, desde 1978, a Agência Brasileira do ISBN (o International Standard Book Number). Tam- Armazém das obras gerais 62 INSTITUCIONAL

Principais obras e coleções da Biblioteca Nacional Coleção Thereza Christina Maria Códices sobre administração colonial. Conjunto de atos Doada em 1891 pelo ex-Imperador D. Pedro II, com o de- dos governadores e capitães-gerais e dos vice-reis, incluindo sejo expresso de que conservasse o nome da Imperatriz. correspondência com a Corte. Séculos XVII–XVIII. É composta de 48.236 volumes encadernados e inúmeras Partituras originais das óperas de Carlos Gomes: O Guara- brochuras, sem contar folhetos avulsos, fascículos de várias ni, Fosca, Maria Tudor, Salvador Rosa. revistas literárias e científicas, estampas, fotografias, parti- Impressos turas musicais e mais de mil mapas geográficos impressos e manuscritos. Dão cunho especial a essa importante coleção, Bíblia de Mogúncia (Bíblia Latina), a maior recebida pela biblioteca em todos os tempos, as Johann Fust e Peter Schoeffer, “in numerosas dedicatórias autografadas dos autores ao Impe- vigília assumpcõis gl’ose virginis rador e à Imperatriz. Marie”, 14 de agosto de 1462, 2v. A Biblioteca Nacional possui dois Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira exemplares. A Bíblia de Mogúncia Documentação fartamente ilustrada com desenhos aquare- é o primeiro impresso que contém lados de Joaquim José Codina e José Joaquim Freire, produ- data, lugar de impressão e nome zida pelo naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira do impressor no colofão. relativa à viagem que empreendeu, por ordem de D. Maria Grammatica da Língua Portu- I, pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e guesa com os Mandamentos da Cuiabá, entre 1783 e 1792. Alfredo do Vale Cabral descreve Santa Madre Igreja. Lisboa, 1539. 51 códices e 11 documentos apensos, pertencentes ao acer- Trata-se da cartilha que precede a Gramática propriamente vo da Fundação Biblioteca Nacional. dita de João de Barros. É provavel- Manuscritos mente o primeiro livro com ilustra- Evangeliário, séculos XI–XII. ções em xilogravuras, de caráter di- Exemplar em pergaminho com dático. Esse exemplar da “Cartinha” textos, em grego, dos quatro é exemplar único no mundo. evangelhos. Letra semiuncial. Os Lusíadas, de Luís de Camões, É o mais antigo manuscrito da Lisboa, 1572. A Biblioteca Nacional Biblioteca Nacional. possui a edição chamada Edição E e, ou seja a primeira das duas publica- Livro de Horas , século XV. ções de 1572. Em latim. Letra gótica. Per- gaminho. Iniciais decoradas Correio Braziliense, primeiro jornal a ouro e cores. Contém treze brasileiro. Publicado em Londres de miniaturas de página inteira 1808 a 1822 por Hipólito José da e quatro menores, algumas Costa. Defendia a união monárqui- com vistas do Louvre e de co-constitucional do Império Luso-Brasileiro, só aderindo à Montmartre. Encadernação Independência em julho de 1822. Combatia a opressão, a do século XVI, em couro, com motivos geométricos ornamen- corrupção e a ignorância. É uma fonte para estudos históri- tando as duas capas. Calendário em francês. cos, políticos, sociais, econômicos e literários.

Digitalização mões, e Dom Casmurro, de Machado de Assis. A ação favorece a divulgação do acervo e contribui para a A Fundação Biblioteca Nacional possui um sua preservação – a microfilmagem e disponibiliza- programa de digitalização de seu acervo em domínio ção das obras em ambiente virtual significam o fim público. A apresentação desse trabalho é feita na In- do manuseio constante de peças. Com o lançamento ternet, através da Biblioteca Nacional Digital (www. do acervo digital, o número de acessos ao portal da bn.br), para promover nacional e internacionalmente FBN é da ordem de um milhão por mês. o conhecimento da língua e cultura brasileiras, expan- Em junho deste ano, a FBN foi eleita em dir o volume e a variedade de conteúdos na web, de Washington (EUA), membro do Conselho Executivo forma a prover recursos em língua portuguesa a pro- da Biblioteca Digital Mundial (www.wdl.org), refor- fessores, pesquisadores e ao público em geral. Atual- çando sua presença ativa em conselhos decisórios de mente a BN Digital dá acesso múltiplo, simultâneo e organismos internacionais e projetos de digitalização. sem fronteiras a 23.000 itens do acervo, equivalentes a 1.200.000 de imagens, que resultam em mais de 11 terabytes de arquivos digitais armazenados. Podem ser acessadas no site obras raras como Mu n i z So d r é a Bíblia de Mogúncia (1462), a Arte da Gramática da Sociólogo, jornalista, pesquisador Professor da UFRJ língua mais usada na costa do Brasil, escrita pelo Presidente da Fundação Biblioteca Nacional Padre José de Anchieta, Os Lusíadas, de Luís de Ca- Autor de livros na área de Comunicação Social

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A Biblioteca, quando da inauguração do prédio, 1910

Edifício-sede da FBN, na atualidade

Av. Rio Branco, 219 – Centro – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3095-3879 – (21) 3095-3879 http://www.bn.br – www.bndigital.bn.br