Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Flavio Eduardo Magalhães Taam

Luchino Visconti e os signos proustianos

A Trilogia Alemã à luz de Em busca do tempo perdido

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

2019 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Flavio Eduardo Magalhães Taam

Luchino Visconti e os signos proustianos

A Trilogia Alemã à luz de Em busca do tempo perdido

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profª. Drª. Leda Tenório da Motta.

São Paulo

2019

Banca Examinadora

______Profª. Drª. Neide Jallageas de Lima

______Profª. Drª. Annita Costa Malufe

______Profª. Drª. Leda Tenório da Motta

Este trabalho foi contemplado com uma bolsa pelo CNPq, processo n. 169439/2017-8.

AGRADECIMENTOS

Meus mais sinceros agradecimentos a Leda Tenório da Motta pela primorosa orientação e confiança; a Neide Jallageas e Annita Costa Malufe por suas cuidadosas leituras; a Pedro Taam pelo sincero apoio em todas as fases por que passou esta pesquisa; aos demais familiares, amigos, professores e funcionários da PUC-SP que de alguma forma contribuíram para a conclusão deste trabalho.

“O homem de boa memória nunca lembra de nada, porque nunca esquece de nada. Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina, simultaneamente condição e função de seu hábito impecável, um instrumento de referência e não de descoberta.” Samuel Beckett

Taam, Flavio. Luchino Visconti e os signos proustianos: A Trilogia Alemã à luz de Em busca do tempo perdido. 2019. Dissertação. (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo.

RESUMO

Esta pesquisa visa aproximar a literatura de Marcel Proust e o cinema de Luchino Visconti a partir do viés estabelecido por Gilles Deleuze em Proust e os signos. Tendo como corpus o romance À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido, 1913-1927) de Proust e a trilogia alemã viscontiana, composta pelos longas-metragens La caduta degli dei (Os Deuses Malditos, 1969), Morte a Venezia (Morte em Veneza, 1971); e Ludwig (1973), sugerimos uma leitura da obra viscontiana a partir dos universos sígnicos proustianos mapeados por Deleuze. Se Proust e os signos é uma obra que versa sobre a literatura, nossa hipótese é de que seus escritos sobre Proust extrapolam a literatura, apresentando-se como um tratado sobre as relações sígnicas para além desses domínios, donde nossa sugestão de utilizá-la como ferramenta de leitura na obra viscontiana, cinematográfica, aproximando cinema e literatura não por tema, mas por regimes de sentido. É nesse aspecto que esta pesquisa, de natureza bibliográfica, difere de grande parte dos estudos sobre as relações entre Proust e Visconti já existentes, que baseiam-se sobretudo na aproximação temática.

Palavras-chave: Marcel Proust; Luchino Visconti; literatura; cinema; signos; regimes de sentido.

Taam, Flavio. Luchino Visconti and the proustian signs: Analysing the German Trilogy through the prism of À la recherche du temps perdu. 2019. Dissertation (Master’s degree) – Pontifical Catholic University of São Paulo – PUC-SP, São Paulo.

ABSTRACT

This research aims to approximate the literature of Marcel Proust and the cinema of Luchino Visconti through the point of view of Gilles Deleuze in his Proust and the signs. Our corpus is delimited by Proust's novel À la recherche du temps perdu (In Search of Lost Time, 1913-1927) by Proust and Visconti’s German trilogy, composed of the feature films La caduta degli dei (The Damned, 1969), Morte a Venezia (Death in Venice, 1971); and Ludwig (1973), suggesting a reading of the viscontian work from the perspective of the proustian sign universes pointed by Deleuze. If Proust and the signs is a work that deals with literature, our hypothesis is that his writings on Proust work beyond literature, presenting itself as a treatise on sign relations beyond the domains of literature itself, thus our suggestion of using it as a reading tool for Visconti’s cinematographic work, approaching cinema and literature not by subject or theme, but by regimes of sense. It is in this aspect that this research, of bibliographical nature, differs from much of the existing studies on the relations between Proust and Visconti, which are mainly based on the thematic approach.

Keywords: Marcel Proust; Luchino Visconti; literature; cinema; signs; regimes of sense.

LISTA DE IMAGENS

Fig. 1: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969) ...... 41 Fig. 2: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969) ...... 42 Fig. 3: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969) ...... 43 Fig. 4: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969) ...... 44 Fig. 5: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969) ...... 49 Fig. 6: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 53 Fig. 7: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 57 Fig. 8: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 61 Fig. 9: Donatello, David (circa 1440) – Museo Nazionale del Bargello, Florença ...... 61 Fig. 10: Bertel Thorvaldsen, Adonis (1887) – Thorvaldsensmuseum, Copenhague ...... 61 Fig. 11: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 62 Fig. 12: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 63 Fig. 13: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 65 Fig. 14: Caravaggio, Bacco (1595) – Gallerie degli Uffizi, Florença ...... 65 Fig. 15: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 65 Fig. 16: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971) ...... 66 Fig. 17: Luchino Visconti, Ludwig (1973) ...... 74 Fig. 18: Luchino Visconti, Ludwig (1973) ...... 77 Fig. 19: Luchino Visconti, Ludwig (1973) ...... 78 Fig. 20: Luchino Visconti, Ludwig (1973) ...... 78 Fig. 21: Luchino Visconti, Ludwig (1973) ...... 80 Fig. 22: Luchino Visconti, Il Gattopardo (1963) ...... 87

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 1

CAPÍTULO I ...... 3 1. Deleuze intérprete de Proust: uma teoria dos signos para analisar Visconti ...... 4 1.1 As esferas sígnicas em Proust ...... 10 Signos mundanos ...... 10 Signos do amor ...... 17 Signos sensíveis ...... 25 Signos da arte ...... 30

CAPÍTULO II ...... 36 2. A trilogia alemã sob os signos de Proust ...... 37 2.1 Os Deuses Malditos ...... 38 O gesto do legislador ...... 38 A iconografia como indicador de mundos ...... 40 A predição de Sansão ...... 44 O azul e o vermelho como essência e o Liebestod como signo da arte ...... 49 2.2 Morte em Veneza ...... 51 O mundo dos salões no balneário elegante ...... 51 A realidade viva dos signos sensíveis ...... 54 O mundo grego em Veneza ...... 58 Fragole fresche ...... 63 Do começo ao fim, a música ...... 67 2.3 Ludwig ...... 71 O aprendizado e a tragédia ...... 71 A negação à mundanidade ...... 73 Ludwig e Swann ...... 75 Elisabeth e os exilados de Sodoma e Gomorra ...... 79 Wagner sem os signos da arte ...... 81

CAPÍTULO III ...... 82 3. Ensaios para a Recherche ...... 83

FILMOGRAFIA SELECIONADA DE LUCHINO VISCONTI ...... 97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 99

APÊNDICE ...... 103 A Recherche de Visconti ...... 103

INTRODUÇÃO

No final da década de 1960 e começo da década de 1970, Luchino Visconti começava a trabalhar em sua adaptação para o cinema de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. Paralelamente, dirigia três de seus filmes que viriam a ser conhecidos como a trilogia alemã: La caduta degli dei, Morte a Venezia e Ludwig. O projeto de adaptação da Recherche, contudo, jamais seria concretizado. Pouco antes, em 1964, Gilles Deleuze publicaria a primeira versão de Proust et les signes, obra na qual mapearia as relações e dinâmicas da Recherche em universos sígnicos que extrapolam os domínios da literatura. Posteriormente, já na década de 1980, Deleuze se dedicaria a seus escritos sobre o cinema, nos quais versa, eventualmente, sobre a produção tardia de Visconti. É sobre a relação sígnica entre a trilogia alemã de Visconti e a Recherche de que se desdobra esta pesquisa, que, por meio dos escritos de Deleuze, pretende abordar cada qual sob ângulos de ataque opostos. Assim, este trabalho se divide em três momentos distintos. No primeiro capítulo, destrinchamos os universos sígnicos proustianos que Deleuze identifica e que configuram nosso principal referencial teórico, introduzindo as quatro esferas sobre as quais estão calcadas a Recherche de Proust – os signos mundanos, os signos do amor, os signos sensíveis e os signos da arte. Se, em um primeiro momento, nos permitimos abordar exclusivamente a obra proustiana, é tão somente para que, no segundo capítulo, possamos nos debruçar sobre a trilogia alemã de Visconti sob a ótica da Recherche. Em outras palavras, se afirmamos que as esferas de signos trazidas por Deleuze extrapolam a literatura, é nesse capítulo que sugerimos uma leitura da obra viscontiana – portanto, cinematográfica – a partir desses universos sígnicos proustianos, aproximando cinema e literatura não por tema, mas por regimes de sentido. Finalmente, no terceiro capítulo a ordem é invertida. Se inicialmente o ângulo de ataque é de Visconti via Proust, na conclusão de nossa pesquisa nos aproximamos de Proust via Visconti. Novamente amparados por Deleuze, buscamos na Recherche os elementos constituintes do cerne da produção tardia de Visconti, período no qual se inclui a trilogia alemã. Assim, nossa pesquisa não se propõe como uma aproximação exclusivamente temática entre Proust e Visconti. Pelo contrário, sempre reportando-nos à Recherche, esta

1 se configura como nosso verdadeiro referencial teórico, território pelo qual nos guia Deleuze, cartógrafo de Proust, para encontrarmos Visconti.

2

CAPÍTULO I

3 1. Deleuze intérprete de Proust: uma teoria dos signos para analisar Visconti

Neste capítulo, pretendemos destrinchar as categorias de signos proustianos elaboradas por Deleuze em Proust e os signos (publicado originalmente em 1964 e recebendo acréscimos do autor nas duas edições seguintes até 1976), que serão a base da análise da filmografia selecionada de Visconti no capítulo seguinte. O referencial teórico aqui se justifica pelo fato de que essas obras apresentam camadas, ou círculos, que se aproximam das dinâmicas de sentido em Proust, estreitando sua ligação com Visconti e demonstrando que essa cartografia esquemática elaborada para a Recherche também se encontra, de certa maneira, na filmografia de Visconti. A utilização de uma obra de análise literária no estudo de imagens aqui se deve ao fato de que o estudo feito por Deleuze em Proust e os signos não se restringe de modo algum ao âmbito da literatura. Nesse sentido, a obra se aproxima, por sua vez, muito mais de um estudo de semiótica – e, portanto, não exclusiva a um único meio ou linguagem – que de uma análise estritamente literária. Assim, ao invés de se debruçar sobre aspectos formais e questões específicas dos estudos literários propriamente ditos, abordando questões de estilo, figuras de linguagem ou historiografia, por exemplo, Deleuze foca na relação do Narrador com o mundo que vê, com o mundo que sente, com os signos com que é confrontado em toda parte e a todo momento, em uma relação simultaneamente mais profunda e mais ampla que um estudo semiológico da literatura. O signo, tal como elemento de confronto entre Narrador e mundo, é uma questão central na Recherche – na busca da verdade1 – de Proust, pois é por meio dele, do signo, que se dá o eterno aprendizado do “homem de letras”2 que é o Narrador do romance proustiano. Quando falamos em busca da verdade e em aprendizado, o fazemos porque esses signos não chegam resolvidos, ou decifrados, como diria Deleuze, que elabora que os signos não são uniformes, estão sempre em constante mutação, além de poderem simultaneamente serem percebidos das formas mais plurais pelos mais diferentes interlocutores. É por isso que o Narrador necessita adentrar nessa empreitada da busca da verdade. Pois os signos são enganosos e, se tomados por verdadeiros sem as devidas precauções, só podem levar à ilusão. Esse é o movimento que permeia toda a narrativa de

1 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Trad.: Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 3. 2 Ibid.

4 Em busca do tempo perdido, a elaboração dos signos em um fluxo permanente, na tentativa de afastar-se de suas ilusões. Destacamos, aqui, a inclinação literária do Narrador para salientar que esse aprendizado, apesar de se dar também na literatura – que está presente desde a infância na vida do personagem, que passa as tardes lendo sozinho nos jardins e campos da casa onde passa férias em Combray –, está em todas as suas relações, todas as suas percepções de mundo. Em suas leituras, o Narrador lê sobre a catedral de Balbec e a arquitetura dos mestres venezianos – sonha com elas, e, ao conhecer a igreja do balneário, se decepciona. Talvez sejam esses alguns dos primeiros momentos em que o Narrador se depara com signos que posteriormente, na adolescência ou na vida adulta, o levariam à decepção. Leituras, aqui, no sentido de apreensão desses signos que estão por toda parte. Em momentos posteriores de sua vida, essa decepção se dará também no âmbito amoroso e social, por exemplo. É essa relação com o aprendizado dos signos que permeia todo o fio da Recherche. É nesse sentido que Deleuze aponta para o fato de que a Recherche, ao contrário do que sugeriria uma leitura superficial de seu título, é muito mais voltada para o futuro do que para o passado, pois trata do processo de aprendizado do Narrador – processo que ocorre no próprio momento da escrita do romance. Assim, o baú de memórias aberto pelo chá com madeleines na célebre passagem do primeiro volume, No Caminho de Swann, cede o protagonismo para o aprendizado no tempo presente. Em outras palavras, as memórias e o passado de forma alguma deixam de ser essenciais à narrativa, mas não são o principal – elas estão sempre presentes, e é por meio da rememoração que se desenvolve essa mudança, essa atualização, do Narrador, mas é nessa atualização do presente da escrita, por meio da rememoração e na rememoração, que está o cerne da jornada:

O caminho de Méséglise e o caminho de Guermantes são muito menos fontes de lembrança do que matérias-primas, linhas do aprendizado. São dois caminhos de uma “formação”. Proust frequentemente aborda situações como esta: em dado momento o herói não conhece ainda determinado fato que virá a descobrir muito mais tarde, quando se desfizer da ilusão em que vivia. Daí o movimento de decepções e revelações que dá ritmo a toda a Recherche. Pode-se evocar o platonismo de Proust – aprender é ainda relembrar; mas, por mais importante que seja o seu papel, a memória só intervém como o meio de um aprendizado que a ultrapassa tanto por seus objetivos quanto por

5 seus princípios. A Recherche é voltada para o futuro e não para o passado.3

No caso das decepções do Narrador a que nos referimos anteriormente, elas sempre ocorrem quando são antecipadas, quando os signos são tomados como verdadeiros antes mesmo de chegarem a ser decifrados. Tomemos cuidado, contudo, com o termo “decifrar”. Na leitura de Proust feita por Deleuze, decifrar é, sobretudo, “tornar- se sensível” a determinados signos, uma dinâmica que exige, sobretudo, tempo e observação silenciosa, algo de que o Narrador inegavelmente dispõe:

Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja “egiptólogo” de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos.4

Assim, o aprendizado se dá quando o sujeito torna-se sensível aos signos a que é exposto. Esses signos, por sua vez, apresentam-se das maneiras mais variadas e funcionam também nos mais variados regimes. Em outras palavras, os signos estão sujeitos a um número infinito de nuances que podem, de acordo com o círculo em que se manifesta e com quem o apreende, se desdobrar nos mais variados afetos. De certa maneira, o objetivo do aprendiz é tomar consciência da natureza desses signos para, então, transitar entre eles sem a decepção das interpretações instantâneas a que está suscetível. Logo, podemos afirmar que, na Recherche, tudo emana daí, que ela “se apresenta como a exploração dos diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se cruzam em certos pontos. Os signos são específicos e constituem a matéria desse ou daquele mundo”.5 É dessa forma que os signos, muito além de meros “comunicadores”, ou seja, de intermediários entre sujeito e mundo, são os próprios elementos de formação dos mundos e dos indivíduos que neles habitam. Em certo sentido, podemos dizer que os signos são constituintes da própria subjetividade, dado que a leitura de um indivíduo se dará pelos signos que emite e a maneira com que se relaciona com os signos à sua volta.

3 Ibid., pp. 03-04. 4 Ibid., p. 04. 5 Ibid.

6 É por meio dos signos que o indivíduo habita este ou aquele mundo, mas é por meio deles que ele mesmo se constitui. A subjetividade se define como um ser sujeito, mas no sentido do sujeito de um verbo: aquilo que age, que tem certa potência de agir – agir em relação aos signos e com signos. Assim, poderíamos dizer que a subjetividade se constitui em um intervalo de um arco sensório-motor: de um lado, há um segmento que é a percepção como potência de ser afetado pelos signos; de outro, o segmento da criação como potência de afetar, também por meio dos signos. Esses dois lados são unidos por um arco, que é o arco da reflexividade, ou mesmo da agentividade. É nesse sentido que podemos afirmar que o sujeito age, e, portanto, constitui sua subjetividade, dentro de um intervalo sígnico delimitado pela percepção do mundo e por sua ação no mundo, ou nos mundos, a bem do que Deleuze expõe.6 Se a subjetividade pode ser dita em termos da agentividade, e de uma agentividade que não se encerra no indivíduo, é porque tanto no segmento da percepção como no segmento da criação ou ação há diversas componentes. O cinema possibilita uma revolução na forma de pensar a subjetividade justamente porque explicita essa composição: do lado do segmento da percepção, as possibilidades humanas se compõem com as possibilidades das máquinas (câmeras, microfones etc.) para perfazer um novo horizonte de sensibilidade, dando acesso a um novo universo; do lado do segmento da criação, as máquinas do cinema (técnicas de edição, projetores, caixas de som, o espaço da sala de cinema etc.) vão muito além das possibilidades fisiológicas humanas.7 O cinema sintetiza o prolongamento, a ampliação dos segmentos fisiológicos de percepção e criação e, entre eles, o intervalo do arco reflexivo e de agentividade, que depende não somente do comprimento desses segmentos, mas também do ângulo que formam entre si, e principalmente da distância que os separa. Assim, em certo sentido, podemos dizer que a subjetividade é o intervalo entre os signos que se consegue captar e os signos que se consegue produzir. Isso se dá sempre em relação a uma adjacência que não se define apenas pela contiguidade geográfica, mas por afinidades intensivas: “os signos dos Verdurin não funcionam entre os Guermantes”,8

6 SAUVAGNARGUES, Anne. Artmachines. Trad.: Suzanne Verderber e Eugene W. Holland. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2016. p. 105. 7 SAUVAGNARGUES, Anne. Artmachines. Op. cit., p. 103. 8 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 05.

7 e não funcionariam mesmo que estivessem todos no mesmo salão. Por outro lado, mesmo esses personagens (os Verdurin, os Guermantes) não são propriamente pessoas, mas um “território existencial autorreferencial”9 que é um subconjunto ou recorte da totalidade do real, e se definem justamente por isso: fazer uma “curadoria” por meio da percepção é produzir necessariamente um modo de agir e de ser no mundo. Assim, os personagens literários “não imitam pessoas ou indivíduos socialmente determinados, nem remetem ao narrador ou ao autor, mas exploram individuações em via de constituição, modos de subjetivação tomando forma”.10 Ao analisar os signos da Recherche, mais especificamente, Deleuze os separa em quatro universos distintos: signos mundanos, signos do amor, signos sensíveis e signos da arte. Abordaremos essas cartografias sígnicas mais detalhadamente nas seções seguintes deste capítulo. Quanto ao cinema, podemos afimar que esses modos de estruturação de mundos sígnicos também estão presentes na filmografia de Visconti. Contudo, ao analisarmos sua produção fílmica, temos a impressão de que Visconti parece focar particularmente em duas das classes dos signos proustianos de Deleuze – os signos mundanos e os signos do amor, que, para Deleuze, em Proust são os signos da mentira e do ciúme. Curiosamente, não é à toa que, no roteiro da adaptação não realizada da Recherche, 11 Visconti se concentra nos acontecimentos do volume Sodoma e Gomorra e nos personagens, além do Narrador, de Charlus, Robert de Saint-Loup, Morel, Albertine e Rachel, todos (à exceção do Narrador, pelo menos explicitamente) homossexuais, e que em Proust carregam o peso do estigma da “raça maldita dos invertidos”. A presença ostensiva dos signos mundanos e dos signos do amor, quando comparados aos signos sensíveis e aos signos da arte, não se deve a uma negligência proposital, tanto em Visconti quanto em Proust. Deve-se isso, simplesmente, ao fato de

9 GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad.: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 09. 10 Tradução nossa. No original em francês: [Les personnages littéraires] “n’imitent pas davantage des personnes données, des individus socialement déterminés, ni ne renvoient au narrateur ou à l’auteur, mais explorent des individuations en voie de constitution, des modes de subjectivation prenant forme.” SAUVAGNARGUES, Anne. Proust selon Deleuze : Une Écologie de la Littérature. Les Temps Modernes, 2013/5, n. 676, pp. 155-177. DOI 10.3917/ltm/676.0155. 11 Cf. VISCONTI, Luchino; D’AMICO, Suso Cecchi. À la recherche du temps perdu : scénario d’après l’œuvre de Marcel Proust. Paris: Persona, 1984.

8 que a própria ocorrência desses signos no mundo é quantitativamente diferente. Para onde quer que se olhe há signos mundanos, seguidos, em menor escala, dos signos do amor, e a obra de Visconti não é diferente. Os signos sensíveis não são signos triviais, e muito menos o são os signos da arte, donde sua menor recorrência. Pretendemos, então, demonstrar que as mesmas categorizações estabelecidas por Deleuze na obra de Proust podem ser encontradas na filmografia de Visconti, explicitando assim dinâmicas ressonantes entre as duas obras.

9 1.1 As esferas sígnicas em Proust

Signos mundanos

A primeira esfera apresentada por Deleuze em Proust e os signos é também a mais abundante: aquela da mundanidade. Os signos mundanos, tal como são chamados, regem essa primeira camada de sentido e agrupam aquilo que Deleuze denomina “famílias espirituais”.12 Entendemos como famílias espirituais os núcleos formados pelos membros desses círculos, cada qual regido por regras próprias e complexas, às quais todos estão submetidos e às quais devem sempre responder. Trata-se sobretudo da esfera legisladora dos círculos de natureza social, o que na Recherche se apresenta principalmente no retrato dos salões da nobreza decadente, os Guermantes, e da burguesia emergente, os Verdurin. O interesse de Proust pela vida dos salões parisienses já estava presente em sua escrita muito antes de dedicar-se à produção da Recherche. Proust tinha o plano de eventualmente publicar, dentre outros, “um estudo sobre a nobreza” e “um romance parisiense”, e, como sabemos, esses projetos acabaram por figurar como alguns dos aspectos e temas que constituem a própria Recherche. Os temas e a própria natureza desses projetos já indicariam a presença massiva desse tipo de signo, já que são os que regem esses mundos aos quais já pretendia se dedicar. Proust era, ele mesmo, habitué dos salões parisienses de seu tempo. Tendo sido ele filho de um médico, Adrien Proust, de grande proeminência na França, Proust desde cedo frequentou os mais altos salões da sociedade parisiense, onde pode participar e observar de perto seus costumes e códigos de conduta, suas leis e suas proibições. Foi, inclusive, da observação desses círculos e de seus componentes que Proust buscou inspiração para a criação de diversos personagens da Recherche, como o dandy Robert de Montesquiou para o barão de Charlus e a condessa Greffulhe e a condessa de Chevigné para a duquesa de Guermantes. Curiosamente, foi justamente no casamento de Armond de Gramont e Élaine Greffulhe, filha do conde e da condessa que inspiraram o duque e a duquesa de Guermantes, que foi registrado o filme que se cogita ser a única imagem de

12 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 5.

10 Proust em vídeo, descendo a escadaria da Église de la Madeleine.13 Antes de se dedicar à escrita literária, Proust trabalhou como jornalista e publicou, durante muitos anos, crônicas da vida social da elite parisiense em veículos como o Le Figaro e a Revue Blanche.14 Levando o regime de funcionamento dos signos mundanos para o mundo dos salões, podemos notar como esses signos podem ser enxergados, de modo simultâneo e não excludente, como superficiais e profundos. Quando afirmamos que os signos mundanos se apresentam em um aspecto superficial, queremos lembrar a conceituação que Deleuze faz desses signos quando escreve que

o signo mundano surge como o substituto de uma ação ou de um pensamento, ocupando-lhe o lugar. Trata-se, portanto, de um signo que não remete a nenhuma outra coisa, significação transcendente ou conteúdo ideal, mas que usurpou o suposto valor de seu sentido.15

Nesse sentido, essa “superficialidade” dos signos faz na verdade com que se explicite seu caráter autorreferente, torna-os extremamente voláteis e difíceis de serem interpretados. Levam, por uma consequência lógica, ao erro e à ilusão. “Qual é, então a unidade dos signos mundanos? Um cumprimento do duque de Guermantes deve ser interpretado e, neste caso, os riscos de erro são tão grandes quanto num diagnóstico.”16 É por assumirem essa forma plana, achatada, que trazem para si a própria significação autorregulatória. Por outro lado, são o oposto da superficialidade quando consideradas as consequências de suas relações no mundo real, pois é por meio deles que será ditado quem será aceito ou não em determinado círculo social. É por esse motivo que os signos mundanos aparecem, por mais que vazios, ironicamente inflados, pois cada gesto encerra em si um caráter ritual: “Eles são vazios,

13 SIROIS-TRAHAN, Jean-Pierre. Un spectre passa… Marcel Proust retrouvé. Revue d’études proustiennes : Proust au temps du cinématographe : un écrivain face aux médias, n. 4, 2016 – 2. pp. 19-30. DOI: 10.15122/isbn.978-2-406-06802-0.p.0019 14 No Brasil, a editora Carambaia publicou uma seleção de crônicas escritas por Proust. Cf. PROUST, Marcel. Salões de Paris. Trad.: Caroline Fretin de Freitas e Celina Olga de Souza. Apresentação: Guilherme Ignácio da Silva. São Paulo: Carambaia, 2015. 15 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 6. 16 Ibid.

11 mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual.”17 A emissão do signo basta para que aquilo seja encarado como verdade. É certo que as quatro esferas sígnicas não são excludentes e mantêm uma interseção, há um fluxo entre eles. As relações são plurais e dinâmicas, não são fechadas completamente em um único círculo, por mais proeminência que este ou aquele tenha em dado momento. Proust, contudo, parece delegar certos a personagens uma ressonância maior com esse ou aquele círculo – tal como os signos do amor regem com mais intensidade à percepção do Narrador sobre Albertine e Gilberte, por exemplo. Se retomarmos a conceituação que elaboramos na seção anterior sobre a produção da subjetividade, que ocorre dentro desse arco entre percepção e ação, podemos observar mais eficientemente alguns dos personagens da Recherche que, mais especificamente que outros, vivem imersos nas esferas da mundanidade dos salões. É o caso da duquesa de Guermantes e da sra. Verdurin. Proust escreve em uma passagem de O caminho de Guermantes:

Se o sr. de Guermantes se apressara tanto em apresentar-me é porque o fato de que haja numa reunião alguém desconhecido a uma Alteza Real é intolerável e não pode prolongar-se um segundo. Idêntica pressa mostrara Saint-Loup em ser apresentado a minha avó. Aliás, por um resquício herdado da vida das cortes, que se chama polidez mundana e que não é superficial, mas em que, por uma conversação de fora para dentro, é a superfície que se torna essencial e profunda, o duque e a duquesa de Guermantes consideravam como um dever mais essencial do que os, tantas vezes negligenciados no mínimo por um deles, da caridade, da castidade, da piedade e da justiça, essoutro, muito mais inflexível, de nunca falar à princesa de Parma senão na terceira pessoa.18

Na citação acima, podemos observar o tamanho que pode tomar um signo a depender da esfera em que se manifesta. O que poderia ser tomado por uma banalidade (ser prontamente apresentado a uma pessoa ou não), no círculo dos Guermantes ganha tamanha proporção que estes o colocam acima de valores como os da caridade, piedade, justiça etc. De certa maneira, os signos mundanos tomam a forma de uma ética particular. Em mundos em que os signos mundanos têm esse nível de protagonismo, o conhecimento e a aderência a esses costumes são o principal fator de construção da

17 Ibid. 18 PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Trad.: Mario Quintana. 13. ed. rev. Olgária Chaim Féres Matos. São Paulo: Globo, 2003. pp. 383-384.

12 imagem do indivíduo perante os que estão à sua volta em seu convívio social. Sobre o rei Luís XIV, escreve o Narrador que “os maníacos de nobreza de seu tempo censuram o pouco cuidado com a etiqueta, tanto assim, diz Saint-Simon, que foi um rei muito pequeno para o seu posto em comparação com Filipe de Valois, Carlos V etc.”, 19 demonstrando que, nesse caso, a grandeza de um rei não se media pela sua habilidade para governar ou o bem-estar trazido para seu povo, mas o nível de engajamento que dedica para o “cuidado com a etiqueta”. Para a duquesa de Guermantes, demonstrar uma aparente amabilidade e manter a reputação de seu salão estão acima de outros valores: “A Sra. de Guermantes dá, muitas vezes, mostras de um coração duro e de pouca inteligência, mas emitirá sempre signos encantadores. Ela nada faz por seus amigos, não pensa como eles, emite-lhes signos.”20 É pela manutenção desse regime que ela, por exemplo, se recusa a conhecer a demi- mondaine Odette, esposa de Swann, mesmo após muitos anos de amizade com este e sabendo do sofrimento que lhe causa com seu posicionamento, tudo para manter a “ordem” em seu salão. Há que se lembrar, também, que, no caso dos Guermantes, a adesão aos costumes ou signos da mundanidade aristocrática são uma questão de manutenção da própria identidade. Pois, se a França já havia desde muito se tornado uma república, os títulos de nobreza, sejam do Antigo Regime ou do Império (o que, no contexto da aristocracia, também criava mais uma camada de diferenciação, entre os nobres de antes e de depois da Revolução Francesa, dando aos primeiros logicamente um status de nobreza mítica ainda maior, pois remontavam às famílias mais antigas e linhagens mais longas e rastreáveis da aristocracia francesa, como, no romance, os Guermantes, supostamente descendentes mesmos da lendária heroína Geneviève de Brabant, dos tempos medievais; quanto à nobreza do Império, mesmo o democrático Saint-Loup é enfático: um “pretenso príncipe”,21 diz ele a respeito do príncipe de Borodino), em última análise não eram mais o mesmo que outrora, de maneira que a manutenção do estatuto desse ser aristocrático passava a depender, então, totalmente dessa representação. Dessa forma, o salão proustiano é “palco para a auto-representação de uma classe social cujo último refúgio

19 Ibid., p. 392. 20 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 6. 21 PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Op. cit., p. 71.

13 são os maneirismos, que escondem a nulidade de suas referências ultrapassadas, e cuja divisa é o noli me tangere”22, ou “não me toques”. A respeito do deferimento, ou, no caso, do indeferimento da presença de Odette no salão dos Guermantes, devemos ter em mente as palavras de Deleuze, que nota que “a tarefa do aprendiz é compreender por que alguém é ‘recebido’ em determinado mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos obedecem esses mundos e quem são seus legisladores e papas”.23 Proust abre a seção Um amor de Swann com um breve relato de como funciona essa legislação no salão dos Verdurin:

Para fazer parte do “pequeno núcleo”, do “pequeno grupo” do “pequeno clã”, dos Verdurin, bastava uma condição, mas esta indispensável: aderir tacitamente a um credo entre cujos artigos figurava o de que o pianista protegido naquele ano pela sra. Verdurin, e de que ela dizia: “Não devia ser permitido tocar Wagner tão bem!”, “enterrava” ao mesmo tempo a Planté e a Rubinstein e que o doutor Cottard tinha mais diagnóstico que Potain. Qualquer “novo recruta” que os Verdurin não pudessem convencer de que as recepções das pessoas que não os freqüentavam eram aborrecidas como a chuva, via-se imediatamente excluído.24

A legisladora, aqui, é a sra. Verdurin, e, para Deleuze, a “tarefa do aprendiz” está em compreender essa dinâmica. O Narrador, por meio de sua observação, deve abrir os olhos para esse funcionamento, identificando os papas ou juízes de cada círculo. Aqui, o conhecimento dessa dinâmica entre a sra. Verdurin e o novato, que ingressa em seu salão, não é mais velada, pois o Narrador logrou compreender esse funcionamento, e segue construindo seu aprendizado dos signos. Esclarecida a dinâmica dos signos mundanos, como encontrar, em meio a tantos gestos autorreferentes, a verdade? Para Proust, a verdade reside não nos signos estudados, intencionais, mas na ocorrência do involuntário.

Tome-se uma cena da vida mundana em À la recherche du temps perdu. Apresentando a Madame de Rothschild em casa da marquesa de Villeparisis, o amigo Bloch não ouve bem o nome que lhe é dito. Na

22 MOTTA, Leda Tenório da. Proust: a violência sutil do riso. São Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2007. p. 170. 23 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., 5. 24 PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad.: Mario Quintana. 15. ed. / por Maria Lúcia Machado. São Paulo: Globo, 1993. pp. 187-188.

14 ignorância de seu prestígio, permite-se tratar com desenvoltura a grande dama, respondendo-lhe por monossílabos, certo de que tem por frente uma “inglesa meio louca”. É quando a dona da casa volta a apresentá-la a alguém do lado, com a pompa necessária, repetindo, “Rothschild”, que ele se dá conta da gafe que acaba de cometer.25

Os signos mundanos passam, portanto, também pelo nome – eles estão, como vimos anteriormente, por toda parte. O nome é também ele um signo que opera nesse arco da subjetividade, e pede, por sua enunciação, determinada ação ou criação. No caso da sra. de Rothschild, seu nome é como um agente catalizador de determinado comportamento ou tratamento. É como no caso da família de Albertine Simonet, que, de origem burguesa, tenta compensar o fato de que não faz parte da nobreza fazendo grande distinção entre os Simonet, grafado com um “um”, e os Simonnet, grafado com dois “n”, como se isso quisesse dizer alguma grande coisa, de modo a alavancarem para seu sobrenome alguma superioridade sobre outro nome de família e, consequentemente, trazer com ele o regime de signos que esse nome mereceria. Caso contrário, poderiam, como acontece com a sra. Rothschild, serem tomados por qualquer um: “se as impressões tendem sempre em Proust e a ser enganosas, são ainda as primeiras as que mais têm chance de se parecerem com a verdade.”26 É aí que reside a crítica de Proust, pois, sem os nomes, uma camada ou escudo de significação é levantada, e pode-se ver o que realmente são. Rothschild é, para Bloch, uma “inglesa meio louca”. Sem o nome, a duquesa de Guermantes certamente não teria a aura mística que exerce sobre o Narrador, o que de fato acontece, quando o Narrador se decepciona ao vê-la pela primeira vez, na igreja, em Combray, e o mais provável é que, assim fosse, suas feições de águia, como ele a descreve, lhe parecessem bem menos encantadoras – ou, indo ainda mais longe, talvez essa beleza que não o impressionara da primeira vez já tivesse imbuída da tentativa de remediar a decepção, pois é isso que o Narrador faz: decepciona-se e tenta contornar a decepção. No caso da duquesa de Guermantes, suas feições poderiam ser justificadas pela própria origem nobre, com a nobreza agindo sobre a natureza. Empregando a lógica de Platão, na República, os

25 MOTTA, Leda Tenório da. Catedral em obras: Ensaios de Literatura. São Paulo: Iluminuras, 1995. p. 59. 26 Id., As amantes proustianas. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras; [Rio de Janeiro]: Funarte, 1990. p. 447.

15 homens dados a certas paixões fazem de tudo para contornar algo que poderia lhes decepcionar:

[...] a um homem inclinado à paixão não fica bem esquecer-se que todos os que estão na flor da idade de uma maneira ou de outra picam e abalam aqueles que gostam de jovens [...] E, numa palavra, arranjais todos os pretextos e fazeis todas as declarações, a fim de não afastardes nenhum dos que estão na flor da idade. 27

Nesse esforço, chega-se mesmo a esboçar uma relação dos fenótipos com a moral, como Platão, quando escreve especificamente sobre o nariz: “do que for de nariz aquilino, afirmareis que é régio.”28 No mesmo sentido, quanto à duquesa, sem o escudo da cortesia e da amabilidade, provavelmente veria-se bem mais prontamente que a inteligência não é o seu ponto forte. Por isso que, em Proust, o ato falho e o involuntário têm tamanha importância. Pois eles são como linhas direta entre percepção e criação, sem a adição da nebulosidade da mundanidade. Comentando o episódio ocorrido com Bloch e a sra. de Rothschild, Motta escreve que:

Irresistível, a verdade funda-se […] no próprio mal-estar, refere um embaraço. Só o involuntário, o que vem por si mesmo, a contragosto de quem diz, merece crédito em Proust, quando merece, ou faz sentido para o Narrador desconfiado, quando faz. Quando não faz, acrescenta- se à massa de informações que pedem decifração no romance, e não se decifram, admitindo séries insolúveis de suposições.29

Se “só o involuntário, o que vem por si mesmo, a contragosto de quem diz, merece crédito em Proust”, seriam os signos mundanos apenas uma perda de tempo na busca pela verdade do aprendiz? Involuntária também é a memória de onde desponta o fio da narrativa, além de outros momentos de revelações-chave para o Narrador (o guardanapo, o tropeção), e é no involuntário que ocorrem os verdadeiros saltos na compreensão do mundo. Analisando por esse viés, os signos mundanos pareceriam, à primeira vista, essa amálgama que só faria criar barreiras ou atrasar o aprendizado. A resposta está no próprio Deleuze, que conclui:

27 PLATÃO. A República. Trad., anot. e intro. por Maria Helena Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 474d-474e. 28 PLATÃO. A República. Op. cit., 474d. 29 MOTTA, Leda Tenório da. Catedral em obras: Ensaios de Literatura. Op. cit., p. 60.

16

O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por eles. Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual, como que um formalismo que não se encontrará em outro lugar. Somente os signos mundanos são capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los.30

Em outras palavras, a passagem pelos signos mundanos é condição necessária para o aprendizado, pois são os únicos que, nesse plano conferido de “perfeição ritual”, são redondos, ou “sem arestas”, causando essa “exaltação nervosa” que impulsiona o desejo e constitui o imaginário.

Signos do amor

O amor não é um sentimento verdadeiramente proustiano. Ansiedade, ciúmes, voyeurismo, arranjos triangulares, masturbação, masoquismo, homossexualidade e narcisismo seriam noções mais claras à luz de sua vida e obra.31

A segunda esfera de signos identificada por Deleuze na Recherche é a dos signos do amor. Assim como ocorre nas outras, em que tudo se dá pela percepção, interpretação, decifração e produção de signos, aqui também, nos domínios do amor – e de tudo o que com ele vem, o ciúme, a mentira –, o aprendizado se dará por meio da observação dos signos. Proust, contrariamente às longas elucubrações que costuma destrinchar sobre tudo aquilo que vê, ouve, sente – enfim, percebe –, acaba, em matéria de amor, adotando por vezes posicionamentos excepcionalmente sucintos para seus parâmetros, enfáticos e gerais, criando verdadeiros aforismos sobre o próprio conceito de amor e, por vezes, o erotismo (dizemos “por vezes” porque o amor proustiano não necessariamente vem acompanhado de um teor sexual, como no amor do Narrador pela duquesa de Guermantes,

30 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 6. 31 Tradução nossa. No original em francês: “L’amour n’est pas un sentiment véritablement proustien. Anxiété, jalousie, voyeurisme, situation triangulaire, masturbation, masochisme, homosexualité, narcissisme pourraient été des notions plus claires, à la lumière de la vie et des œuvres.” BRUN, B. [verbete] Amour. In: BOUILLAGUET, Annick; ROGERS, Brian G. (Orgs.). Dictionnaire Marcel Proust. Paris: Honoré Champion, 2014. p. 59.

17 por exemplo).32 Seguindo o exemplo de Proust, que tenta estabelecer as regras mais gerais do funcionamento do amor, Deleuze, em um dos primeiros momentos de sua elaboração sobre os signos do amor, escreve que “apaixonar-se é individuar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É tornar-se sensível a esses signos, aprendê-los (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens)” e que “o amor se alimenta de interpretação silenciosa”.33 Logo se vê que o amor também é questão de aprendizado, pois exige mais uma vez essa tarefa de tornar-se sensível a determinados signos. Nesse caso, especificamente, tornar-se sensível aos signos que alguém “traz consigo ou emite”. Em certo sentido, apaixonar-se é não somente individuar o amado, nesse movimento de construção por meio dos signos (como no exemplo dado, em que Albertine era apenas uma das meninas do grupo de banhistas na praia de Balbec, a menina da bicicleta, que vez ou outra era até mesmo confundida como outras do grupo, mas que, a partir de um extenso exercício de observação, foi se destacando, tornando-se Albertine – aquela que concentraria a preferência do Narrador após o rompimento do convívio quase diário que tinha com Gilberte em Paris), mas também atualizar a própria subjetividade daquele que ama, uma vez que esses signos do amor reverberam em si, mexem consigo, afetam-no e vão desembocar em criação. A criação, aqui, é não somente o amor por esse portador de signos, possibilidades, mundos, mas sobretudo a própria figura do amado, elaborada a partir desses mundos. Não se trata, porém, do mesmo regime de funcionamento dos signos mundanos, vazios, encerrados em si mesmos, autorreferentes. Pois, nessas diferentes esferas, cada qual obedece a um regime autocéfalo de dinâmicas próprias. Regimes pelos quais cabe ao Narrador, autodidata e neófito, transitar, explorar, tornar-se consciente daquilo que vê. A diferença fundamental entre os signos mundanos e os signos do amor é que, ao passo que os primeiros são vazios, os segundos são necessariamente mentirosos, visto que “não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido”.34

32 MOTTA, Leda Tenório da. As amantes proustianas. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Desejo. Op. cit., p. 441. 33 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 7. 34 Ibid., p. 9.

18 E é já nesse momento que começam os problemas para o apaixonado proustiano. Pois sejamos objetivos: em Proust, quem ama, sofre. Não que haja aí qualquer pieguice, muito pelo contrário. A observação dos padrões (ou repetições, porque eles se repetem) dos comportamentos amorosos em Proust demonstrará prontamente que, nesse sofrimento, não há nenhum resquício de qualquer visão da dor causada pelo amor porque ele próprio seja ideal, puro, magnânimo, eterno. Sofre-se pura e simplesmente porque a natureza própria do signo do amor, a mais profunda, é mentirosa e, além disso, aquele que ama será eternamente excluído dos mundos que constituíram esse ser pelo qual se apaixonou:

Há, portanto, uma contradição no amor. Não podemos interpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mundos que se formaram sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde são somos, de início, senão um objeto como os outros. O amante deseja que o amado lhe dedique todas as suas preferências, seus gestos e suas carícias. Mas os gestos do amado, no mesmo instante em que se dirigem a nós e nos são dedicados, exprimem ainda o mundo desconhecido que nos exclui.35

Assim, se o amor é construído a partir da apreensão desses mundos que as pessoas carregam – e, aliás, segundo a lógica proustiana, não é pelas pessoas que nos apaixonamos, mas por esses próprios mundos de que são portadores –, essa construção, como sabemos, se dá, de certa forma e em certo sentido, unilateralmente. Dizemos unilateralmente porque ela vai depender do afeto que ocorrerá naquele que ama e isso, em última análise, é um fenômeno solitário. Em Proust, contrariamente à tradição romântica e, digamos, popular, um amor não é construído a dois, mas individualmente. Mas se o amante constrói esse amor a partir dos signos de outro, do amado, ele terá como condição necessária o fato de que há um abismo intransponível entre ele próprio e esses mundos. Pois, como dissemos, esses mundos pelos quais se apaixonou foram constituídos sem ele, e o amante terá que se conformar com isso, que lidar com essa condição intrínseca ao amor. É nessa espécie de intervalo aberto entre esses mundos pré-existentes e o amante que se abre espaço para a primeira das duas leis do amor proustiano. A esse respeito Deleuze escreve:

35 Ibid., pp. 7-8.

19 A primeira lei do amor é subjetiva: subjetivamente o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do amor. O ciúme vai mais longe na apreensão e na interpretação dos signos. Ele é a destinação do amor, sua finalidade. De fato, é inevitável que os signos de um ser amado, desde que os “expliquemos”, revelem-se mentirosos: dirigidos a nós, aplicados a nós, eles exprimem, entretanto, mundos que nos excluem e que o amado não quer, não pode nos revelar.36

Quando Deleuze afirma que a primeira lei do amor é subjetiva, ele sublinha o fato de que essa lei opera no amante, nos domínios da constituição de sua subjetividade. O ciúme é a verdade do amor porque lhe é inalienável – e é inalienável porque o amante não encontra lugar no seio desses mundos previamente existentes. É por isso que, apaixonados, os personagens da Recherche se tornam obcecados, paranoicos, doentios, adotando comportamentos que fogem completamente ao modo com que, em outras circunstâncias, se portam, sempre movidos por um ciúme que nenhuma prova ou evidência será capaz de apaziguar. Provas que, por sua vez, pouco importam para o amante, uma vez que, para Motta, “os ciúmes são uma função que se alimenta de signos, não de provas”, e arremata: “é sobretudo morta que Albertine exaspera o desejo do Narrador de saber a verdade. É sobretudo no passado, quando não há mais provas concretas a tirar, que a traição mais cruel se instala.”37 Desfazem amizades, afastam-se de hábitos antigos e passam a frequentar novos círculos mundanos (os do ser amado), tudo na tentativa de compensar os danos causados por esse mundo oculto que jamais atingirá, justamente porque não é seu. Homens razoáveis perdem justamente a razão, e, às vezes, não conseguem enxergar aquilo que, para todos, é mais do que óbvio, explicitando uma brutal diferenciação na apreensão dos signos. É o que repetidamente acontece com o Narrador em relação a Gilberte, à duquesa de Guermantes e a Albertine; com Swann, em relação a Odette; e, com o marquês de Saint-Loup, em relação a Rachel: “Ele dava mais de um milhão para possuir, para que não fosse oferecido a outros, o que me fora oferecido, como a todos, por vinte francos.”38 Proust é bastante claro quanto a essa constituição subjetiva do amor em suas reflexões na Recherche. Essas reflexões são retomadas inúmeras vezes ao longo do

36 Ibid., p. 8. 37 MOTTA, Leda Tenório da. As amantes proustianas. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Desejo. Op. cit., p. 450. 38 PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Op. cit., p. 143.

20 romance, como se o narrador, aqui e ali, se pusesse a retomar um assunto que o inquieta ciclicamente, retomando-o, destrinchando-o, elaborando-o. É assim que, por exemplo, em meio ao relato do jantar oferecido ao sr. de Norpois na casa de Combray, ao elaborar a repercussão do casamento de Swann e Odette, discorre:

Indubitavelmente, raríssimas pessoas compreendem o caráter puramente subjetivo desse fenômeno em que consiste o amor e como é o amor uma espécie de criação de um indivíduo suplementar, distinto daquele que usa no mundo o mesmo nome, e que formamos com elementos na maioria tirados de nós mesmos. Por isso, poucos são os que podem achar naturais as proporções enormes que acaba assumindo para nós uma criatura que não é a mesma que eles vêem.39

E, depois, já mais velho, enquanto observa Albertine, que dorme, sobre a “impossibilidade onde esbarra o amor”, diz:

Imaginamos ter ele por objeto um ente que pode estar deitado diante de nós, encerrado num corpo. Ai de nós, ele é a extensão desse ente a todos os pontos do espaço e do tempo que esse ente já ocupou e ainda ocupará. Se não possuímos o seu contato com tal lugar, tal hora não o possuímos. Ora, nós não podemos tocar todos esses pontos. Ainda se nos fossem designados, talvez pudéssemos estender-nos até eles. Mas tateamos sem os encontrar. Daí a desconfiança, o ciúme, as perseguições. Perdemos um tempo precioso numa pista absurda e passamos ao lado da verdade sem suspeitá-la.40

É nesse sentido que, no romance, as grandes divagações sobre o ciúme se concentram sobretudo em dois pares de relacionamentos amorosos, Swann e Odette e o Narrador e Albertine e, de certa forma, a dinâmica do primeiro antecipa a do segundo.41 Em outras palavras, é como se toda a angústia sofrida por Swann, e à qual Proust dedica inteiramente a seção Um amor de Swann, no primeiro volume, fosse revivida pelo Narrador anos (e volumes) mais tarde, com Albertine. Se Swann é atormentado pelo ciúme, age como um tolo, contrariando todas as expectativas que se teriam de um homem cultivado como o é, movido pela desconfiança das relações de Odette e Forcheville (ou, a bem da verdade, visto a fama que tem a demi-mondaine, de suas relações com qualquer

39 PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. Trad.: Mario Quintana. 14. ed. rev. por Maria Lúcia Machado. São Paulo: Globo, 1999. p. 41. 40 PROUST, Marcel. A Prisioneira. Trad.: Manuel Bandeira. 13. ed. rev. por Olgária Chaim Féres Matos. São Paulo: Globo, 2002. p. 92. 41 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 18.

21 outro homem – ou com alguma mulher, como veremos logo adiante), o Narrador repete o padrão, tem as mesmas obsessões com Albertine – o que ela tanto faz, todas as tardes, durante seus passeios? Há, entretanto, uma razão para tanta angústia e para a repetição desses padrões doentios, segundo a lógica proustiana. É que “o amor não para de preparar seu próprio desaparecimento, de figurar sua ruptura. Assim é no amor como na morte”.42 Como se, movido pela insegurança e o medo da perda – que de certa maneira faz com que o amante tome essa eventual perda por certa –, o amante já a antecipasse, buscando ciclicamente essa “verdade” que porá fim a seu amor, a ruptura enfim tão certa quanto a morte, a grande certeza. É assim que, para Motta, da mesma maneira com que o tempo perdido rege o romance, o amante ama na certeza de que esse amor terá uma duração, sendo ela “o problema proustiano por excelência”. Assim, “os amantes proustianos desamam, para voltar mais adiante a experimentar os mesmos tormentos com outros ‘objetos’. De modo que, se há algo no romance de durável, essa coisa é a propensão maníaca à repetição, e não o sentimento.”43 Esses ciclos motivados pelo ciúme parecem ter sempre uma destinação final em comum, em Proust. Pois se o amante desconfia de tudo e de todos e teme – o medo maior de todos – não ser suficiente para a pessoa que ama, em última análise, a insegurança de possivelmente não ser o objeto de desejo do amado esbarra na questão da homossexualidade. Afinal de contas, de certa maneira e em certo sentido, essa seria a condição última de impossibilidade da satisfação do desejo – não ser do gênero a que é orientado o desejo do amado. Para o amante, essa seria a condição inquestionável para a antecipada ruptura do amor – depois de toda a “interpretação silenciosa”, de toda observação, de todos os testes e de todas as possíveis provas que alguém possa dar para demonstrar o seu amor, sua preferência pelo amante, como provar o que move o seu desejo? Segundo a lógica proustiana, se a mulher amada ama outras mulheres, está aí uma satisfação que o amante jamais poderá suprir. A homossexualidade se configura como a permanente condição da possibilidade mesma da ruptura do amor entre um homem e uma mulher.

42 Ibid., p. 17. 43 MOTTA, Leda Tenório da. As amantes proustianas. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Desejo. Op. cit., pp. 443-444.

22 Eis então a segunda e última lei do amor em Proust, a lei da homossexualidade, o segredo final:

A segunda lei do amor proustiano se liga à primeira: objetivamente os amores intersexuais são menos profundos que a homossexualidade, encontram sua verdade na homossexualidade. Pois, se é verdade que o segredo da mulher amada é o segredo de Gomorra, o segredo do amante é o de Sodoma.44

Como já dissemos anteriormente, a visão de Proust da homossexualidade é, por um lado, bastante carregada do peso da moral judaico-cristã – basta notar que, justamente, o volume em que versa mais sobre essa questão retoma o nome das cidades de Sodoma e Gomorra. Por outro lado, em Proust (e Deleuze irá elaborar esse conceito), o amor homossexual seria ele mesmo mais profundo que o amor heterossexual, em uma visão aparentemente bastante influenciada pela filosofia de Platão em seu diálogo dedicado ao estudo do amor, O Banquete.45 É assim que, para desespero do amante, as mulheres ditas “gomorreanas” reconstroem um mundo já conhecido e, contudo, intransponível ao amante: Gomorra, um mundo mítico, pulverizado e impregnado por toda parte, que pode, a qualquer momento, ter suas fundações reerguidas, segundo as belas palavras de Proust:

Muitas vezes, na sala do cassino, quando duas raparigas se desejavam dava-se como que um fenômeno luminoso, uma espécie de rastilho fosforescente que ia de uma a outra. Digamos de passagem que é com o auxílio de tais materializações, ainda que imponderáveis, desses signos astrais a inflamarem toda uma parte da atmosfera que, em cada cidade, em cada aldeia, tende a Gomorra dispersa a reunir seus membros separados, ao passo que idênticos esforços prosseguem em toda parte, ainda que em vista de uma reconstrução intermitente, por intermédio dos nostálgicos, hipócritas e algumas vezes corajosos exilados de Sodoma.46

44 Ibid., p. 10. 45 Curiosamente, em Platão, o amor também é uma questão de aprendizado: “Amar e perguntar parecem-lhe intrinsecamente ligados. [...] Para Sócrates, perguntar é uma forma de despertar o interlocutor ao conhecimento, de expor-lhe a sua ignorância insuflando-lhe o desejo de saber. A conjunção do amor à educação, síntese da pedagogia platônica, se dá com a fundação erótica na filosofia na figura de Sócrates.” PINHEIRO, Victor Sales. Introdução. In: PLATÃO. O Banquete. Trad.: Carlos Alberto Nunes. 4. ed. rev. e bilíngue. Belém: ed.ufpa, 2018. p. 28. 46 PROUST, Marcel. Sodoma e Gomorra. Trad.: Mario Quintana. 15. ed. rev. por Olgária Chaim Féres Matos. São Paulo: Globo, 2001. p. 242.

23 Curiosamente, no caso específico da homossexualidade, esses “mundos” que o amado traz consigo aludem a um mundo de existência, senão outrora concreta, mítica, as cidades malditas de Sodoma e Gomorra, que, reconstruídas, excluem o amante. Se “todos os signos mentirosos emitidos por uma mulher amada convergem para um mesmo mundo secreto: o mundo de Gomorra”47, devemos nos atentar, contudo, para o fato de que nem Proust nem Deleuze afirmam que toda mulher, ou todo homem, é, então, homossexual. O que existe é, na verdade, a possibilidade de que esse segredo se torne realidade, de modo que todos carregam consigo essa espécie de possibilidade universal: “o mundo de Gomorra [...] não depende desta ou aquela mulher (embora determinada mulher possa encarná-lo melhor do que outra), mas é a possibilidade feminina por excelência, como um a priori que o ciúme descobre.”48 E, se por um lado, os mundos de Sodoma e Gomorra configuram uma possibilidade que pode ou não vir à tona, por outro, essa possibilidade acaba sendo descoberta aqui e ali ao longo de todo o romance, de modo que as suspeitas, que na Recherche recaem sobre quase todos, são de fato muitas vezes mais do que meras possibilidades. Swann, após atormentar Odette longamente com seus interrogatórios, finalmente consegue a confissão que esperava e temia: um dia, quem sabe, distraída, ela tenha mesmo dado um beijo na sra. Verdurin, uma bobagem. Saint-Loup, que um dia se vê envolto em toda a rede de angústias de seu amor pela duvidosa Raquel, casa-se com Gilberte e, descobrimos posteriormente, sua preferência por homens, ao se envolver com o violinista Morel (e, sabendo disso, entendemos claramente o que o marquês quer dizer ao Narrador quando conta de sua estada no Marrocos, muito antes de casar-se: “Ah! O Marrocos... muito interessante... Haveria muito que contar-te. Há homens muito finos lá. Sente-se a paridade da inteligência”.49 É sabido o fato de que a região do Maghreb, do final do século XIX até meados do século XX, foi um dos destinos preferidos de certa parcela da população europeia que, aproveitando-se do fato de estarem em um país estrangeiro e não-cristão, agia com menos pudores em relação a esses assuntos que seriam tabu em sua

47 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 9. 48 Ibid. 49 PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Op. cit., p. 371.

24 terra natal, gozando de uma suposta liberdade sexual e moral50). Isso sem contar as duas primorosas cenas de voyeurismo em que o Narrador observa, escondido: a sórdida cena de sexo lésbico entre a srta. Vinteuil e sua amiga – que consumam o ato propositalmente perante o retrato do falecido sr. Vinteuil – e o encontro de Charlus e Jupien, na propriedade dos Guermantes em Paris. Em meio a tantos personagens, nesse quesito, quase nos esquecemos do Narrador. Distraídos com suas obsessões, sejam por Gilberte ou por Albertine, nos perguntamos: e o mundo de Sodoma do Narrador? Onde está essa possibilidade a priori no aprendiz da Recherche? Segundo Motta, no romance todos “são suscetíveis, neste terreno, de incorrer em suspeita. Todos menos o nosso Narrador que, como lembra [...] Doubrovsky, nunca faz amor em cena e, sintomaticamente, escolheu para si o ‘sexo dos anjos’”.51 Concluímos esta seção retomando a passagem mencionada, com a qual encontramos o lugar do Narrador no que tange à sexualidade própria:

É evidente que o questionamento incessante do sexo do Outro (ele é ou não homossexual? Ou bissexual? Que posição ocupa na combinação do sexo?) é uma projeção angustiada do questionamento sobre o sexo próprio. O anonimato do Narrador é, aqui, cômodo: invisível, ele tem o sexo dos anjos. Quanto ao estado civil, é do sexo masculino.52

Signos sensíveis

Apesar de um movimento de progressão em termos gerais no aprendizado, no sentido de que o Narrador ruma para uma “revelação final”, a Recherche não é de forma alguma linear, uma vez que ele não sai de um ponto inicial, dá o primeiro passo e segue ininterruptamente sempre adiante, na mesma direção e sem desvios. Muito pelo contrário, se em determinado terreno há um sentido de progressão na compreensão dos signos, em outro há uma decepção, de forma que essa busca toma formas extremamente intrincadas,

50 PRÉVOST, Jean-Pierre; MASSON, Pierre. André Gide – Oscar Wilde : Deux immoralistes à la Belle Époque. Paris : Éditions Orizons, 2016. 51 MOTTA, Leda Tenório da. As amantes proustianas. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Desejo. Op. cit., pp. 452. 52 Tradução nossa. Do original em francês: “Il est évident que le questionnement incessant du sexe de l’Autre (est-il ou non homosexuel? ou bisexuel? quelle position occupe-t-il dans la combinatoire du sexe?) est une projection angoissée du questionnement sur le sexe propre. L’anonymat du Narrateur est ici commode : invisible, il a le sexe des anges. Pour l’état civil, il est du sexe masculin.” DOUBROVSKY, Serge. La place de la madeleine : Écriture et fantasme chez Proust. Paris: Mercure de France, 1974. p. 133.

25 que em nada lembram uma jornada linear. Essa busca se dá por tentativa e erro, decepção e compreensão, e só será resolvida quando o Narrador for capaz de compreender a revelação da arte.53 Há que se atentar, contudo, para o fato de que, apesar de os signos sensíveis não se perderem na profusão sem fim de enunciados vazios dos signos mundanos, nem nos sofrimentos dos signos mentirosos do amor; ainda não é nessa esfera que se resolve a questão dos signos em Proust. Contudo, é verdade que as esferas sígnicas proustianas, da forma em que foram elaboradas, se aproximam cada vez mais dos signos da arte, a última camada. É assim que adentramos o terreno do terceiro mundo de signos, o mundo “das impressões ou das qualidades sensíveis”. Por qualidade sensível, Deleuze denomina aquela que “nos proporciona uma estranha alegria, ao mesmo tempo que nos transmite uma espécie de imperativo”.54 O mundo dos signos sensíveis está relacionado ao papel da memória involuntária em Proust, uma vez o signo sensível traz consigo um “imperativo”. Por imperativo queremos dizer que os signos sensíveis forçam uma relação específica. Por isso eles são, de imediato, uma diferença significativa em relação aos signos mundanos e aos signos do amor: porque são involuntários. Nesse aspecto, a verdade está mais próxima, mas ainda não é suficiente, uma vez que não se conecta a não ser ao passado. É uma verdade morta, sem futuro – perdue mas não retrouvée. Agem sob o imperativo da memória involuntária, e só o involuntário merece crédito em Proust, é nele que ocorrem os verdadeiros saltos na compreensão do mundo. É daí que vêm os desdobramentos da madeleine, que fazem emergir imperiosamente a cidadezinha de Combray, ou as pedras do calçamento em relação a Veneza – objetos que carregam um “objeto oculto”55. Mesmo assim, se tomados em sua materialidade, os signos sensíveis são signos “sem futuro” – uma das muitas razões pelas quais a primeira tradução em língua inglesa da Recherche, intitulada Remembrance of things past, é imprópria. Eles são signos que nos remetem involuntariamente a um passado, mas, por mais que isso cause um efeito no presente, não é neles que se pode vislumbrar um futuro, uma direção a seguir, se não efetuarmos ainda mais um passo.

53 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 25. 54 Ibid., p. 10. 55 Ibid., p. 11.

26 Assim, o perigo dos signos sensíveis – aliás, de todos os tipos de signos, mas sobretudo nessa categoria – está naquilo que Deleuze chama de objetivismo, ou seja, no fato de que “pensamos que o próprio ‘objeto’ traz os segredo do signo que emite e sobre ele nos fixamos, dele nos ocupamos para decifrar o signo”.56 Nada mais natural, já que “relacionar um signo ao objeto que o emite, atribuir ao objeto o benefício do signo, é de início a direção natural da percepção ou da representação”.57 Mas os signos sensíveis, apesar de serem “signos plenos, afirmativos e alegres”, são “signos materiais”.58 Com isso Deleuze salienta que essa esfera faz a ponte entre dois polos – de um lado há o signo e, de outro, a imagem que evoca. Entretanto,

é duvidoso que o esforço de intepretação termine aí. Falta ainda explicar a razão pela qual, através da solicitação da madeleine, Combray não se contenta de ressurgir tal como esteve presente (simples associação de idéias), mas aparece sob uma forma jamais vivida, na sua “essência”, na sua eternidade.59

Assim, os signos sensíveis, embora pareçam ir em sua direção, nunca chegam a propriamente alcançar a última camada dos mundos proustianos porque, apesar de perseguirem uma essência, essa essência ainda é percebida unicamente em um mundo material. Novamente: Combray, as jovens, Veneza... tarefa cuja elaboração será deixada para os signos da arte, sobre os quais nos debruçaremos na seção seguinte. Se a decifração dos signos sensíveis exigem um esforço de pensamento do Narrador, esse esforço pode resultar em êxito ou fracasso, de tal forma que a madeleine, por exemplo, é um êxito dentro desse regime de signos (como já mencionamos, cada um tem suas leis de funcionamento), já que o Narrador conseguiu estabelecer essa relação entre o bolinho molhado no chá e a Combray de sua infância. O que não se pode perder de vista, no entanto, é que, com ou sem esforço, o êxito ou o fracasso acontecem por um imperativo próprio. A lembrança surge involuntariamente, apesar de quaisquer esforços. Lembremos da célebre cena em que, arrebatado por uma sensação de familiaridade que não é resolvida de imediato, o Narrador tenta, diversas vezes, descobrir o que se passa,60

56 Ibid., p. 26. 57 Ibid., p. 27. 58 Ibid., p. 12. 59 Ibid., p. 11. 60 Ibid., p. 12.

27 toma um gole do chá, come um pedaço do bolinho. Uma sensação se apossa dele, ele tenta decifrá-la, não consegue e desiste:

Agora não sinto mais nada, parou, tornou a descer, talvez. Quem sabe se jamais voltará a subir no fundo de sua noite? Dez vezes tenho de recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, cada vez, a covardia que nos afasta de todo trabalho difícil, de toda obra importante, aconselhou-me a deixar daquilo, a tomar meu chá pensando simplesmente em meus cuidados de hoje, em meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem esforço. E de súbito a lembrança em apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de Madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimenta-la em seu quarto.61

Ora, se há tantos outros exemplos listados dessas relações dos signos sensíveis, o leitor poderia se perguntar: por que novamente a madeleine, novamente ela, sempre a madeleine? Aqui, utilizamo-nos desse que já é um clichê porque, além de, pelas razões mais óbvias, exemplificar o que queremos demonstrar, a madeleine especificamente também se relaciona com outro aspecto que Deleuze aborda anteriormente: o fato de que essa memória não retorna como um dia fora exatamente, não é uma janela que se abre para o passado de onde podemos ver como tais e tais coisas foram certa vez. A madeleine nos lembra essa questão central na análise proustiana, não somente de Deleuze, que é a de que a Recherche está voltada para o futuro, lembrando que o bolinho revela uma Combray que “aparece sob uma forma jamais vivida”. Em seus escritos sobre Proust, Motta nos lembra que “Philippe Willemart ressaltou [...] que a madeleine é desintegrada pelo chá e, assim sendo, é uma metáfora, não do tempo, mas da escritura, ou de um trabalho de criação que passa pela destruição”.62 Condizente com Deleuze, “isso equivale a dizer que não é a memória que é criadora mas a deformação da memória”, 63 demonstrando, mais uma vez, que essa memória não é estática, e condiz muito mais com o presente do que qualquer outro tempo, rejeitando a ideia de discurso baseado em uma memória-espelho. Voltando à questão das relações que fazemos ao nos depararmos com esse tipo de signo, Deleuze escreve que “tudo é permitido no exercício das associações e, sob esse

61 PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Op. cit., p. 50. 62 MOTTA, Leda Tenório da. Proust: a violência sutil do riso. Op. cit., p. XXII. 63 Ibid.

28 ponto de vista, não encontramos diferença de natureza entre o prazer da arte e o da madeleine: sempre o cortejo das contiguidades passadas”. 64 Ora, pois isso não é menos que a comprovação da ideia de que o signo não está contido no objeto. Com isso, queremos dizer que o prazer dos signos sensíveis e dos signos da arte podem partir de um mesmo emissor, demonstrando que a diferença está naquele que vai decifrar os signos – toda criação se passa no campo da subjetividade. Concluímos esta seção com uma passagem de Deleuze que, por ter por objeto a relação com uma obra de arte, mas, curiosamente, funcionar no regime dos signos sensíveis, explicita essa diferença, e funciona como ponte para adentrarmos nos domínios dos signos da arte:

Ao invés de nos conduzir a uma justa interpretação da arte, a compensação subjetiva acaba por fazer da própria obra de arte um simples elo na cadeia de nossas associações de idéias: como a mania de Swann, que nunca tinha apreciado tanto Giotto ou Botticelli quanto quando descobre seus estilos no traçado do rosto de uma cozinheira ou de uma mulher amada.65

Ou, nas palavras de Proust:

[Odette] impressionou a Swann por sua presença com aquela figura de Céfora, a filha de Jetro, que se vê num afresco da Capela Sistina. Swann sempre tivera o particular gosto de descobrir na pintura dos mestres não apenas os caracteres gerais da realidade que nos cerca, mas aquilo que ao contrário parece menos suscetível de generalidade, os traços individuais dos rostos que conhecemos.66

É assim que, ao lembrar-se da imagem de Séfora, a pintura de Botticelli “lançou um feitiço de encantamento sobre Swann forte o suficiente para nutri-lo com um amparo estético que ela [Odette] não poderia prover”.67

64 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 34. 65 Ibid., p. 35. 66 PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Op. cit., p. 219. 67 Tradução nossa. No original em inglês: “It cast a spell of enchantment over Swann Strong enough to nurture him with an aesthetic sustenance she could not possibly provide.” KARPELES, Eric. Paintings in Proust: A Visual Companion to “In Search of Lost Time”. London: Thames & Hudson, 2008. p. 24.

29 Signos da arte

Os antigos químicos designavam por essência o produto de suas destilações, de suas retificações, aquilo que resta de uma substância que suas propriedades tornam preciosa, após purificá-la de substâncias estranhas que ali se encontravam misturadas e que debilitavam sua virtude.68

A quarta esfera sígnica que Deleuze propõe é a camada dos signos da arte, objetivamente superior a todas as outras categorias de signos. A questão da superioridade dos signos da arte se justifica pelo tipo de relação que ocorre nesse domínio. Quando Deleuze escreve sobre os signos mundanos, estes se referem a atos, gestos, sugestões que nada indicam além de si mesmos – signos vazios, autorreferenciais. Quanto aos signos amorosos, são signos mentirosos, que também pouco têm a ver com a verdade, ou, muito pelo contrário, são estritamente mentirosos, relacionando um amor construído pelo amante aos mundos do amado que o excluem. Em seguida, os signos sensíveis relacionam imperiosamente dois polos, a sensação e aquilo que ela traz – um cheiro que irremediavelmente nos faz lembrar de determinada pessoa ou lugar, um som que nos transporta especificamente para outro tempo. Esse é o cerne da diferença entre todas essas categorias e os signos da arte – signos mundanos, amorosos e sensíveis serão sempre signos materiais, de forma que, nesses regimes, para Proust, “sempre alguma coisa lhe lembra ou lhe faz imaginar outra”, numa cadeia de significações contígua.69 Ora, se todas essas categorias se caracterizam por seu caráter material, a diferença dos signos da arte se encontra, portanto, no fato de estarem no domínio do imaterial – assim, afastam-se do conceito de objetivismo de que falamos anteriormente, uma vez que todos esses outros regimes de signos, à exceção dos signos da arte, “surgem parcialmente encobertos no objeto que os porta”.70

68 Tradução nossa. Adaptado do original em francês: “Les vieux chimistes désignaient par ce mot le produit de leurs distillations, de leurs rectifications, ce qui reste d’une substance que ses propriétés rendent précieuse, après qu’on l’a purifiée des substances étrangères qui s’y trouvent mêlées et qui en affaiblissent la vertu.” COURNOT. Considérations, livre I, ch. IV. (Ed. Boivin I, 57). Apud: LALANDE, André (Org.). Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: Puf, 2010. p. 301. 69 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 38. 70 Ibid., p. 37.

30 Dessa maneira, Deleuze indica que, nos signos da arte, finalmente o aprendiz está perante um objeto que não estabelece uma ponte entre matéria e matéria, e isso se dá somente por meio da experiência com a obra de arte. Lembramos, contudo, que não é qualquer relação com a obra de arte que implica uma manifestação do signo da arte, como bem exemplificamos com o caso de Swann, que tinha por hábito encontrar nos rostos pintados pelos grandes mestres o rosto de pessoas de seu quotidiano, ou vice-versa: “Proust se refere muitas vezes à necessidade que pesa sobre ele: sempre alguma coisa lhe lembra ou lhe faz imaginar outra. Mas, qualquer que seja a importância desse processo de analogia na arte, ele não é sua fórmula mais profunda.”71 Em outras palavras, os tipos de signos são muito mais consonantes com relações do que classes ontológicas propriamente ditas, dizem muito mais o como do que o o quê. Uma pintura pode ser um signo mundano, exposta para demonstrar status e estimular a conversa em um salão – como, em Proust, no caso dos nobres que têm em seus castelos retratos feitos pelos maiores mestres da arte, mas que, para eles, são apenas retratos de antepassados. É na relação que se com o signo que está, para Deleuze, a inserção ou o pertencimento do signo a cada esfera. Quando falamos em manifestação do signo da arte, abolimos essa conexão material. Ora, Deleuze mesmo nos sinaliza que uma pintura, ou a execução de uma música, obviamente têm existência material – do contrário, não poderíamos vê-la ou ouvi- la. Mas nas relações que se constituem na esfera dos signos da arte, as notas da sonata de Vinteuil, as pinturas de Elstir ou a atuação da Berma “constituem um corpo transparente que refrata uma essência, uma Idéia”, aqui no sentido mesmo de Ideia platônica – εἶδος, ἰδέα. A palavra “refrata”, aqui, é de suma importância, pois tira o protagonismo do corpo material para destacar o papel canalizador da essência – como a luz é refratada pelos diferentes meios materiais e se dá a perceber por suas interações com esses meios, o que não impede que se fale propriamente da luz.72 Jean-Pierre Richard escreve, a respeito da pequena frase de Vinteuil, que “a produção de sentido que ela efetua não se separa do fato de sua própria gênese, ou de seu autoengendramento”73 – o que se aplica não somente à sonata, mas à concepção dos signos da arte em geral. Assim, “a arte é uma verdadeira

71 Ibid., p. 38. 72 Ibid. 73 Tradução nossa. No original em francês: “[...] la production de sens qu’elle effectue ne se sépare pas du fait de sa propre genèse, ou de son auto-engendrement.” RICHARD, Jean-Pierre. Proust et le monde sensible. Paris: Seuil, 1974. p. 181.

31 transmutação da matéria. Nela a matéria se espiritualiza, os meios físicos se desmaterializam, para refratar a essência, isto é, a qualidade de um mundo original. Esse tratamento da matéria é o “estilo”.74 Para nossa pesquisa, que não pretende se embrenhar por maiores conceituações filosóficas, mas estabelecer uma relação entre Proust e Visconti via Deleuze, julgamos que será suficiente, no que diz respeito aos signos da arte e à essência, mantermos em mente três características fundamentais: a essência é aquilo que dá a existência, a singularidade (a diferença absoluta) e o princípio de inteligibilidade (a transparência, a transformação da matéria em espírito, sua desmaterialização). Se pode ser percebido, é claro que o signo da arte deve tangenciar a experiência vivida, mas o que conta nessa esfera é essa experiência abstraída de sua materialidade. É a repetição que permite a abstração da materialidade: é pela repetição que pode aparecer o que não se repete, o que deve ser revelado, como se a repetição retirasse da experiência tudo o que não é essencial. Assim, não é na materialidade de cada repetição que a essência se revela: “a verdade só surgirá quando o escritor tomar dois objetos diversos, estabelecer a relação entre eles, análoga no mundo da arte à relação única entre causa e efeito no da ciência, e os enfeixar nos indispensáveis anéis de um belo estilo.”75 Ao mesmo tempo, não se trata aqui de analogia, que não é a fórmula mais profunda da arte:

enquanto descobrimos o sentido de um signo em outra coisa, ainda subsistirá um pouco de matéria rebelde ao espírito. Ao contrário, a Arte nos dá a verdadeira unidade: unidade de um signo imaterial e de um sentido inteiramente espiritual. A essência é exatamente essa unidade do signo e do sentido, tal qual é revelada na obra de arte.76

Ora, é justamente o “outra” a chave de leitura da frase de Deleuze: nos signos da arte, o sentido não está em outra coisa, mas na própria coisa. Por mais que possa sempre haver uma materialidade, quando se fala de essências, abstrai-se essa materialidade, e é apesar dela que falamos, como na frase da sonata de Vinteuil: “independentemente dos

74 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 45. 75 PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Trad.: Lúcia Miguel Pereira; ensaios críticos Olgária Chaim Féres Matos, Leda Tenório da Motta. 14. ed. rev. Por Olgária Chaim Féres Matos. São Paulo: Globo, 2001. p. 167 76 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 37.

32 instrumentos e dos sons que a reproduzem ou a encarnam mais do que a compõem”, é a essência que “dá à frase sua existência real”.77 A esse respeito, fica claro que Deleuze trata do grau mais profundo de essência, a hecceidade, conceito que, apesar de não figurar com esse nome em Proust e os signos, será posteriormente bastante frequentado no pensamento deleuzeano e que, junto à leitura que faz da essência nos signos da arte, parece estar em harmoniosa consonância. Esse termo, a hecceidade, designa, ao mesmo tempo, em primeiro lugar a essência singular de uma coisa e que não é compartilhada por nenhuma outra coisa, mas que faz daquela coisa, e só ela, ser ela mesma, e, em segundo lugar, um princípio de inteligibilidade daquela coisa. A hecceidade é uma mônada, mas com uma janela aberta: a do espírito ou da mente, que nunca se confunde com a materialidade – “nossas únicas janelas [...] são espirituais”.78 Cabe notar que, no texto original em francês, o termo esprit ressoa com o campo semântico das “ciências do espírito”, as “faculdades do espírito”, e que mens, em latim, se traduz em francês, justamente como esprit ou como âme. Se, por um lado, a hecceidade poderia ser chamada simplesmente “individualidade”, justamente por ser singular, indecomponível e irredutível, devemos lembrar que “a essência se distingue da existência e inclusive de sua própria existência” 79 . Em outras palavras, a essência prescinde de tudo que não é ela mesma, até da própria existência:

A essência é a qualidade última no âmago do sujeito, mas essa qualidade é mais profunda do que o sujeito, é de outra ordem: […] não é o sujeito que explica a essência, é, antes, a essência que se implica, se envolve, se enrola no sujeito. Mais ainda: enrolando-se sobre si mesma ela constitui a subjetividade.80

Assim, é justamente com o aprendizado dos signos, e sobretudo dos signos da arte, que se constrói a subjetividade, e que, além disso, pode haver um sujeito e um indivíduo: não conformado pelo vazio dos signos mundanos, pela fabulação dos signos do amor ou pela associação material imperiosa dos signos sensíveis, mas pela própria refração da essência nos signos da arte. À medida que se lhes decifra, o aprendiz constitui a própria subjetividade, porque é afetado por novos signos. Então, observando uma mesma obra,

77 Ibid., p. 39. 78 Ibid., p. 40. 79 Ibid., p. 41. 80 Ibid.

33 uma pintura, digamos, o aprendiz pode passar pelas quatro esferas sígnicas, ou melhor estar sensível a ela de acordo com as leis de cada uma dessas esferas. É nessa transição entre os mundos, mais do que em cada um deles propriamente, que o sujeito se constitui, sempre provisoriamente, pelo aprendizado, e que sua subjetividade é expandida. Se, ao contrário dos signos mundanos e do amor, os signos da arte prescindem de outros sujeitos para serem apreendidos, paradoxalmente, é somente com eles que dois sujeitos podem se tocar: “só há intersubjetividade artística”.81 Se o fim da Recherche é tempo redescoberto, para Deleuze, “tempo redescoberto” é “tempo redesdobrado”82: o Uno primordial neoplatônico das essências complicadas sendo repetidamente explicadas, repetidas, e, a cada repetição, diferencia e individua a matéria. Esta, em sua plasticidade, torna-se pouco a pouco transparente. O que se enxerga, então, por meio dela – refratado, nas palavras de Deleuze – é justamente a essência, e é justamente isso que quer dizer “espiritualizar a matéria”. Não que se diga aqui que a essência não exista, mas que ser e existir, ou existência e realidade são coisas diferentes: à essência compete um ser e uma realidade superiores, inclusive independentes da existência. Nessa ordem causal, é a existência que depende da realidade da essência. Ao mesmo tempo, essa hierarquia ontológica, que instaura a primazia da essência, instaura também a primazia do mundo interior: “cada sujeito exprime, pois, um mundo absolutamente diferente e […] o que chamamos de mundo exterior é apenas a projeção ilusória, o limite uniformizante de todos esses mundos”.83 Assim, o mundo interior, como os signos da arte, é mais real do que a existência, e sobretudo mais verdadeiro. É por isso que, em Proust, a amizade só é capaz de compartilhar um comum mundano, porque a essência não pode ser compartilhada, e o que sobra ao compartilhamento são as aparências vazias. O amor não tem essa pretensão, mas, ao contrário, celebra o abismo intransponível entre os diferentes, que nem ele mesmo pode fazer se comunicar. Talvez por isso a homossexualidade seja a verdade do amor: há um traço diferencial de união, os amantes aqui compartilham não de uma linguagem, um vocabulário, um imaginário ou associações, mas de uma mesma essência – o segredo de Sodoma para os homens e o segredo de Gomorra para as mulheres.

81 Ibid., p. 40. 82 Ibid., p. 43. 83 Ibid., pp. 40-41.

34 Os signos da arte e a essência são, justamente, o único lugar onde não há representação, nem espaço para representação, nem pretensão de representação e nem a ilusão da representação, e por isso a música é sua expressão mais fundamental: “Que poderíamos fazer da essência, que é diferença última, senão repeti-la, já que ela não pode ser substituída, nada podendo ocupar-lhe o lugar?”84 Ao contrário, os signos da arte são produtivos porque há para cada um deles um universo e, nessas diferenças, há simultaneamente algo que as singulariza e nelas abre uma janela espiritual: não são tanto individualidades quanto individuações – ou melhor, diferenças individuantes –, não são tanto singularidades quanto singularizações etc. A essência, então, é por si só um princípio de criação ou expressão: porque, uma vez posta, dela decorre algo necessariamente. Nesse sentido é que a essência e os signos da arte são, ao mesmo tempo, individualidade e princípio de inteligibilidade, sempre como diferença individuante: porque, ao mesmo tempo em que “não são os indivíduos que constituem o mundo, mas […] as essências que constituem os indivíduos”,85 e esses mundos e esses indivíduos constituídos pelas essências são algo que “sem a arte jamais conheceríamos”.86 É assim que, seguindo por esse caminho, a irredutibilidade da essência à existência garante a eternidade da alma: se a alma é uma captura da essência, essa captura é sempre temporária, e a realidade da essência a antecede e a sucede. A existência, humana ou não, é, então, uma difração da essência, mas a essência é aquilo que atravessa a existência e o estilo, dando-se a ver por meio de um ou do outro, sem jamais se confundir com eles.

84 Ibid., p. 46. 85 Ibid., p. 41. 86 PROUST, Marcel. A prisioneira. Op. cit., p. 238.

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CAPÍTULO II

36 2. A trilogia alemã sob os signos de Proust

Neste capítulo, pretendemos, a partir das elaborações de Deleuze sobre os mundos sígnicos de Proust, fazer uma leitura de três filmes de Visconti, que constituem a chamada “trilogia alemã” viscontiana: Os Deuses Malditos, Morte em Veneza e Ludwig, produzidos entre os anos de 1969 e 1973. Apesar de ser possível detectar a influência de Proust em diversas outras obras de Visconti, optamos por escolher esses três filmes por uma razão simples: foi durante o período de produção da trilogia alemã que Visconti trabalhou paralelamente no projeto jamais realizado de sua adaptação de Em busca do tempo perdido, cuja conclusão era prevista para o começo da década de 1970.87 Lembramos novamente que nosso foco não é o de estabelecer paralelos temáticos entre Proust e Visconti, mas analisar parte da obra viscontiana a partir de uma leitura dos signos proustianos em Visconti, o que transcende e independe de uma proximidade temática ou estilística.

87 VISCONTI, Luchino; D’AMICO, Suso Cecchi. À la recherche du temps perdu : scénario d’après l’œuvre de Marcel Proust. Op. cit., p. 8.

37 2.1 Os Deuses Malditos

Os Deuses Malditos (La caduta degli dei, 1969) constitui a primeira parte daquela que ficaria conhecida como a “trilogia alemã”, juntamente com Morte em Veneza e Ludwig. O filme, que se passa na Alemanha na primeira metade da década de 1930, acompanha a as transformações ocorridas durante o período na família de aristocratas dos Essenbeck, grandes industriais do ramo de produção de aço, sob a influência da ascensão vertiginosa do nazismo. Estruturalmente, a família é constituída por um patriarca, o barão Joachim von Essenbeck (Albrecht Schoenhals) e os núcleos formados por seus três filhos, seus respectivos cônjuges e filhos. A tensão familiar começa pelos diferentes posicionamentos que cada um tem sobre as relações que a indústria de aço deve estabelecer com as novas organizações de poder. O barão, que representa a antiga Alemanha aristocrata, tem aversão ao nazismo, mas percebe que, para que a empresa tenha algum futuro e apesar de seu desgosto, eventualmente terá que travar relações comerciais com o governo – o que não chega a acontecer, não por suas mãos, porque logo é assassinado. Seu filho mais velho morreu na Primeira Guerra Mundial, deixando sua esposa, Sophie (Ingrid Thulin), e um único filho, Martin (Helmut Berger), este sendo herdeiro aparente do baronato e do império industrial. Martin e Sophie se tornam os protagonistas do filme, enquanto Sophie traz para o seio da família seu amante Friedrich Bruckmann (Dirk Bogarde), que não tem origem aristocrática, mas ascende na empresa por seu conhecimento técnico. É principalmente por meio de Sophie e Friedrich que se abre uma porta de entrada no núcleo da família para a SS de Hitler, encarnadas na figura do primo Aschenbach (Helmut Griem), Hauptsturmführer da SS. Os outros dois filhos do barão são Konstantin (Reinhard Kolldehoff), oficial da SA, e Elizabeth (Charlotte Rampling), casada com Herbert Thalmann (Umberto Orsini). O núcleo de Elizabeth e Herbert é, dentre todos, o que mais se opõe às relações com os nazistas. O enredo segue por duas linhas principais: os jogos de poder pelo comando da empresa e a relação doentia de Martin com sua mãe, Sophie.

O gesto do legislador

Sabemos que a transição de novas ordens sociais são um tema recorrente na filmografia de Visconti. Em O Leopardo, assistimos ao declínio do mundo dos Salina; e, na Recherche, o dos Guermantes. Esse mesmo tema surge, por sua vez, em Os Deuses

38 Malditos, quando os Essenbeck se veem confrontados com a ascensão dos valores nazistas e a instabilidade dentro da própria família gerada pela disputa pelo comando da empresa familiar. Se na Recherche há os círculos mundanos dos Guermantes e dos Verdurin, o convívio familiar dos Essenbeck também configura um desses círculos. Sabemos que cada círculo, por sua vez, tem seu legislador. No caso dos Essenbeck, nada mais natural que esse legislador seja seu patriarca, o barão. No começo do filme, tudo acontece em torno dessa figura – há um jantar, o patriarca é o anfitrião e todos se reportam a ele. Mas não devemos esquecer que, assim como a duquesa de Guermantes e os seus acabam no ostracismo, o barão de Essenbeck representa uma ordem que tem seus dias contados – ou melhor, que já acabou. A evidência está no fato de que sua posição de legislador é, em parte, decorativa, ou figurativa, e isso é demonstrado no próprio jantar. Tomando novamente Proust como exemplo, legisladores em seu auge dão o tom em seus círculos, mandam e desmandam, sua reação é a reação de todos – como vimos anteriormente, se a sra. Verdurin ri, todos riem; se desaprova algo, todos o desaprovam. Essenbeck, por sua vez, já começa caducado: há discórdia em sua mesa de jantar, filhos brigam, alguns apoiam suas decisões, outros discordam veementemente. Em outras palavras, apesar de nominalmente ainda ser o chefe, o líder, o dono de um império siderúrgico e portador de um título de nobreza, ele não é capaz de manter uma unidade vertical, em que a ordem seja estabelecida a partir de si, no mundo dos signos mundanos que regem a convivência familiar. Essa relação não é gratuita, pois representa o fim de um mundo, a Alemanha antiga, que não terá mais lugar dali em diante. Mas, se o barão é um personagem obsoleto, um dia já esteve em pleno poder, e desse poder um gesto é reminiscente: quando quer estabelecer a ordem, mostrar-se legislador, o barão bate com a mão na mesa. É isso o que ele faz quando tenta, em vão, estabelecer a ordem na confusão que se instaura no jantar. O poder, ali, está no gesto, que será repetido posteriormente quando forem efetuadas novas trocas na posição de legislador dos Essenbeck. Essa troca se dará, pela primeira vez, quando, em dado momento do prosseguimento do filme, Friedrich, desfrutando do resultado de maquinações com Sophie, acaba sendo nomeado presidente da empresa da família. Quando, devido às circunstâncias em que se encontra, se sente ameaçado, sente que é possível que seja deposto, Friedrich, em uma explosão, repete furiosamente o gesto do antigo barão: bate impetuosamente com a mão na mesa, perante todos.

39 Nas duas primeiras ocorrências do gesto, ele é efetuado perante um grupo de pessoas – é uma troca. Alguém quer emitir um signo para outra pessoa, e o faz com a intenção de que a interpretação desse signo seja especificamente a que deseja. É a própria mundanidade que se manifesta, em um gesto que depende da aceitação mútua de um círculo no qual aquilo tem um significado determinado. A terceira ocorrência do gesto tem, entretanto, um caráter totalmente diferente de suas duas predecessoras. Dessa vez, quem o realiza é Martin, que, naquele momento, recém-convertido à ordem da SS e determinado a eliminar o fantasma da mãe, é quem detém a ordem de seu núcleo. O que há de diferente, dessa vez, é que Martin não realiza o gesto perante ninguém: está sozinho, sentado na cadeira do avô, ocupando seu lugar e sua função. Dessa vez, bate em uma mesa à qual ninguém mais está sentado. O gesto, aqui, se vê transformado em um gesto essencial, porque não precisa de ninguém para validá-lo. Ele está desmaterializado depois de sucessivas materializações: é um espelho que refrata a então essência atual de Martin, a expressão de seu mundo interior.

A iconografia como indicador de mundos

Uma observação mais detalhada de Os Deuses Malditos demonstrará o uso que Visconti faz da iconografia – principalmente por meio da pintura e da fotografia – para indicar a que “famílias espirituais” pertencem determinados personagens. De certa forma, é uma relação indireta com os signos da arte proustianos, se pensarmos que a escolha dessas obras pelos personagens reflete os signos aos quais são sensíveis, o que lhes ressoa e compõe os mundos que os constitui. Essa relação fica bastante clara nas cenas que sucedem o desastroso jantar das sequências iniciais do filme. Após a discussão generalizada que decorre dos posicionamentos discordantes de cada subnúcleo familiar, os personagens se dispersam, e esses pequenos núcleos se reúnem, em ambientes separados, reagindo aos acontecimentos, planejando os passos seguintes a serem tomados. É assim que, em um ambiente, reúnem-se Sophie, Friedrich e Aschenbach, o oficial da SS, que, aliás, sem jamais se utilizar do gesto do legislador, é o grande legislador do filme, pois com suas palavras insidiosas consegue, sempre, conduzir os acontecimentos para o final que tem em mente. Nesse momento, os três personagens tramam os próximos movimentos que devem tomar para atingir seu objetivo: que Friedrich tome o controle da empresa familiar e, com isso, sob a influência de Aschenbach,

40 alinhe o posicionamento da empresa com a nova ordem nazista. Na mesma noite, o barão é morto por Friedrich, e podemos presumir que a ordem desse assassinato tenha sido dada justamente nessa reunião. O curioso, no que concerne à iconografia, é que tudo é tramado em um cômodo escuro, sombrio, com um intenso jogo de luzes e sombras (mais sombras do que luzes, a bem da verdade) e uma pintura, o centro de nossa observação. Sabemos que o nazismo foi, também, um movimento estético, que não só estabeleceu uma longa lista de proibições e censuras, eliminando qualquer obra que indicasse qualquer possível crítica ao regime, mas também incentivou uma produção artística baseada em “valores clássicos”, nos moldes das antigas Academias de Belas Artes europeias. É nesse sentido que, justamente no contexto da trama de Aschenbach, o cenário é coroado por um retrato de família conformado precisamente por esses moldes.

Fig. 1: Aschenbach e Sophie tramam perante o retrato de uma família nos moldes das Belas Artes europeias. Fonte: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969)

Não é por acaso a pintura em questão retrate uma família, uma vez que a ideologia nazista estava centrada na eugenia, com a formação de uma população exclusivamente ariana e o extermínio de tudo o que fosse por eles considerado desvirtuado, como bem sabemos. Há uma alusão a essa nova era no próprio título original, Götterdämerung, o crepúsculo dos deuses, segundo o qual, na mitologia nórdica (em que é chamado Ragnarök), após uma série de batalhas, a Terra seria repovoada pelos descendentes dos deuses sobreviventes. Quando Friedrich e Sophie se casam, o juiz, para poder sacramentar o casamento, precisa ouvir dos noivos a confirmação de que são “da raça ariana” e que “não há doença hereditária na família”.

41 Tudo fica ainda mais contrastante com a cena que se segue imediatamente. Se em um cômodo da casa arquitetava-se uma guinada hitleriana na família e na empresa, em outro, Thalmann e sua esposa, com o apoio do filho de Konstantin, planejavam sua fuga do país, uma vez que já haviam percebido que essa nova Alemanha não teria lugar para eles e suas filhas, e deveriam partir em busca daquela que seria a única chance de segurança para o casal e suas duas filhas pequenas. A atmosfera nesse ambiente é diametralmente oposta à do cômodo anterior. Mas, no caso, não se trata apenas do contraste entre um ambiente sombrio e um ambiente claro. O que chama mais a atenção é a escolha da pintura que, aqui, também coroa a cena: um exemplo de pintura vanguardista, o tipo de arte que, consolidada a ascensão nazista, seria alvo de expurgo e perseguição, tornando-se aquilo a que se chamou de “arte degenerada”. A obra em questão é Mädchen mit Pfingstrosen (1909), do expressionista russo Alexej von Jawlensky.88

Fig. 2: A arte moderna nos aposentos dos Thalmann, antinazistas. Fonte: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969)

Sobre a arte degenerada, não podemos deixar de mencionar a cena em que o filho de Konstantin presencia, na universidade, a proclamação de uma lista de autores que estariam daquele momento em diante proibidos, começando por Thomas Mann e encerrando com Marcel Proust. Os livros são em seguida queimados, em uma grande fogueira, sob bandeiras nazistas.

88 BLOM, Ivo. Reframing Luchino Visconti: Film and Art. Leiden: Sidestone Press, 2017. p. 87.

42 Além desses dois núcleos, Visconti também se utiliza desse recurso para caracterizar o barão de Essenbeck, no caso, como um homem de outrora – um aristocrata cuja subjetividade fora construída e cristalizada no século XIX –, que tem dificuldade de se relacionar com o presente, sendo ainda por demais ligado ao passado. Isso é demonstrado logo na primeira aparição do barão, que beija a fotografia do filho morto na Primeira Guerra; uma fotografia em meio a tantas outras representativas de uma outra época – dentre elas, uma fotografia do Kaiser Guilherme II.89

Fig. 3: As fotografias do barão de Essenbeck, um homem do século XIX. Fonte: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969)

Finalmente, há uma personagem, Olga (Florinda Bolkan), de quem pouco sabemos, além do fato de que recebe visitas e presentes frequentes de Martin – o mais provável é que seja uma prostituta ou uma mulher sustentada por ele. No caso de Olga, seu quarto é repleto de fotografias de estrelas do cinema mudo e de vedetes ao estilo dos teatros de revista90. Se na Recherche, Odette recebe a visita de homens em seus aposentos extravagantes, repletos de orquídeas e peças de influência oriental, o quarto de Olga é um verdadeiro boudoir ainda mais decadente, simples, com reproduções baratas de estampas japonesas. É nesse sentido que tudo no quarto de Olga remete a esses signos a que chamaremos, por hora, de signos burlescos – o refúgio, como se verá, de Martin; refúgio e emulação da mãe.

89 Ibid., p. 85. 90 Ibid., p. 87.

43

Fig. 4: Martin no boudoir de Olga, onde se veem retratos de artistas e estampas japonesas. Fonte: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969)

Assim, a construção imagética do quarto de Olga – levando em consideração que, em alguma parte cuja proporção desconhecemos, o que ela tem é dado por Martin – é também parcialmente construída por Martin, revelando, então, mais dele do que de Olga – em termos da economia da história, Olga é uma personagem bastante secundária, de forma que pouco nos importa quem ela é, mas o que ela representa do ou no desejo de Martin.

A predição de Sansão

Entretanto, no meio desse abraço infantil, surge infalivelmente o genital; ele corta a sensualidade difusa do abraço incestuoso; a lógica do desejo se põe em movimento, retorna o querer-possuir, o adulto se sobrepõe à criança. Sou então dois sujeitos ao mesmo tempo: quero a maternidade e a genitalidade. (O enamorado poderia ser definido: uma criança com tesão retesando seu arco: como o jovem Eros.)91 Roland Barthes

91 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad.: Hortênsia dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. p. 12.

44 Em linhas gerais, Suely Rolnik caracteriza o capitalismo como sendo um organismo que explora não somente as forças de trabalho, mas, mais profundamente, captura as pulsões de criação, perfazendo uma dinâmica daquilo que chama de “abuso da vida”: a captura do desejo e o desvio de sua força de criação (o destino ético da pulsão criadora, o gozo vital) para seus próprios fins (a acumulação, a reprodução do capital).92 Precisamos manter isso em mente para analisarmos os dois pares em que se manifestam os signos do amor em Os Deuses Malditos. Em Proust, como bem vimos no capítulo anterior, homens e mulheres carregam, sem exceção, os segredos de Sodoma e de Gomorra, respectivamente. É baseado nisso, também, que o autor lembra a predição de Sansão, de que “os dois sexos morrerão cada um para seu lado”. 93 Em Os Deuses Malditos, essa predição toma forma em dois momentos paralelos, ambos orgiásticos: a Noite das Facas Longas e a morte de Sophie. A Noite das Facas Longas é como ficou conhecido o evento histórico em que Hitler determinou que se realizasse uma série de execuções na SA, facção rival de seu governo recém-estabelecido. O momento é, no entanto, retratado por Visconti com bastante liberdade poética. Em uma típica taverna alemã, oficiais da SA dançam, cantam e bebem. Aqui e ali, a unidade entre eles é reafirmada: afinados, entoam a uma só voz canções da corporação. Brincam juntos, desfrutam juntos dos prazeres das mulheres. Tudo começa como uma celebração comum, até que o comportamento da tropa toma rumos inesperados. Em dado momento, um pequeno comitê travestido dança o Can-can dos cabarés franceses, para deleite da corporação – especialmente os mais velhos, de corpos mais deformados, e que em geral não se desnudam. A cena é sempre dominada por belos corpos de jovens rapazes, que, pelo contraste com as cintas liga e espartilhos que usam, só se tornam mais notáveis. A celebração, que nada tinha de extraordinária, acaba por se tornar uma grande orgia exclusivamente masculina entre os membros da SA, que, enlouquecidos, transformam a taverna em um nítido eco da cidade de Sodoma. Mal sabem eles, no entanto, que, enquanto conduziam sua bacanal, seu destino estava selado. Fazendo as vezes de vidente, Konstantin canta um trecho do Liebestod, a “morte de amor”, peça que encerra a ópera

92 ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018. pp. 32-33. 93 PROUST, Marcel. Sodoma e Gomorra. Op. cit., p. 24.

45 Tristão e Isolda de Wagner, prestando a homenagem devida ao compositor desde o título e que, pelo recorte, é especialmente eloquente:

Como ele mantém seus olhos abertos!

– Estão vendo, amigos? – Não o veem?

Cada vez mais iluminado como ele brilha circundado por um halo estrelado subindo cada vez mais alto?

– Não o veem? – Não o veem? – Não o veem?94

O prenúncio é o da morte, pois, ao amanhecer, a taverna é invadida pela SS e todos são massacrados, tal como no mito de Gomorra. Konstantin, que participa da orgia, é morto especificamente pelas mãos de Friedrich, que toma parte da ação influenciado por Aschenbach para atingir seu objetivo de controlar a empresa da família Essenbeck. Mas o principal, aqui, para estabelecer o paralelismo entre os castigos de Sodoma e Gomorra, é que, ao contrário da visão bíblica, a punição não vem de Deus, mas da SS, encarnando o mal:

A festa se degenera em orgia homossexual, uma transgressão que será sancionada, ao amanhecer, por um massacre. Sim, o castigo se abate novamente sobre Sodoma, mas Visconti opera um deslocamento interessante, sobretudo quando se sabe de suas convicções comunistas: ao invés de vir de Deus, o abate sobre os culpados pela mão da SS.95

Com a leitura de Visconti da Noite das facas Longas, o primeiro lado, o do sexo masculino, “morre para seu lado” pelas mãos das forças nazistas retas e eugênicas,

94 Tradução nossa de trecho da ária Liebstod de Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner: “[...] / wie das Auge / hold er öffnet / seht ihr's, Freunde? / Seht ihr's nicht? / Immer lichter / wie er leuchtet, / stern-umstrahlet / hoch sich hebt? / Seht ihr's nicht?” 95 Tradução nossa. No original em francês: “La fête dégénère en orgie homosexuelle, une transgression qui sera sanctionnée, au petit matin, par un massacre. Oui, le châtiment s’exerce toujours sur Sodome, mais Visconti opère un déplacement intéressant, surtout quand on connaît ses convictions communistes : au lieu de venir de Dieu, il s’abat sur les coupables par la main des SS.” COLOMBANI, Florence. Proust-Visconti : Histoire d’une affinité élective. Paris : Philippe Rey, 2006. pp. 64-65.

46 eliminando qualquer possibilidade de libertação pelo gozo. Os oficiais da SS, ao perpetrarem o massacre, o fazem sem despentear um fio de cabelo, sua sobriedade apolínea contrastando enormemente com o exagero e o extravasamento dionisíaco da SA. O castigo de Gomorra, por sua vez, é um pouco mais profundo em Os Deuses Malditos, e consiste na relação doentia de Martin e sua mãe, Sophie. Filho único, Martin cresceu sem o pai – sua idade não é revelada, mas é bastante jovem no começo da década de 1930 e, ao que sabemos, seu pai faleceu na Primeira Guerra Mundial. Sua mãe, Sophie, tem um affaire antigo com Friedrich, que, no começo, teme pedi-la em casamento por considerar sua posição social alta demais para ele, que não vem de uma família aristocrática. Sophie e Friedrich fazem de tudo para assumir o controle da empresa do patriarca Essenbeck (Friedrich, inclusive, é quem o mata), e, com iminente casamento dos dois (pois Aschenbach o convence de que pode casar-se com Sophie), Friedrich tomará tudo o que é e seria de Martin. Pior ainda, com o apoio de Sophie, Friedrich pede a Aschenbach que, com sua influência no governo de Hitler, consiga um decreto que o torne o novo barão de Essenbeck. Martin tem uma relação de amor e ódio com a mãe. Ao mesmo tempo que a idolatra, a odeia. Em sua primeira aparição, Martin faz uma pequena apresentação no insólito jantar, em um número burlesco ao estilo de Marlene Dietrich em O Anjo Azul. Ao final da apresentação e no jantar que se segue, Martin veste suas roupas masculinas novamente, mas um detalhe da personagem permanece: as sobrancelhas feitas tais quais as da mãe. Contrariando as expectativas, Martin, apesar de bastante efeminado, jamais é visto buscando a companhia amorosa de outro homem; pelo contrário, faz visitas à suposta prostituta Olga. Há também um componente bastante doentio em seu comportamento: Martin faz carícias suspeitas em suas duas priminhas, além de molestar uma menina judia que mora no prédio de Olga. Em outros momentos, se mostra bastante com elas. O que se vê, ao longo do filme, e com cada vez mais clareza, é que o objeto do amor de Martin é a própria Sophie. Sophie é uma mulher de presença forte, extremamente vaidosa, está sempre bastante bem vestida, com roupas extravagantes. Usa muitas joias, maquiagens e perucas. Para Martin, a coquetterie e o burlesco são os signos que representam sua mãe, e são justamente o que ele vai procurar em Olga, dando a ela as joias, perfumes, roupas e tudo o que for preciso para que ela se pareça com Sophie. É somente a esses signos, que chamamos anteriormente de signos burlescos, que Martin responde. Os sinais são os mais

47 variados: Martin canta como em uma revista na apresentação para a família. Quando herda a fábrica e é obrigado a visita-la, é o único incapaz de ouvir o ruído das máquinas, tapando os ouvidos. Quando vai à casa de Olga e ela não está, Martin liga o rádio, começa a ouvir um discurso seguido pelo hino alemão – e logo troca de estação, sintonizando em um jazz que o faz dançar sozinho pelo quarto. Voltando ao trio Martin, Sophie e Friedrich, é preciso retomar a primeira lei do amor em Proust, a de que nos apaixonamos não por uma pessoa, mas pelos mundos que essa pessoa traz, mundos constituídos antes de nós mesmos e que nos excluem, sendo, por essa razão, motivo eterno dos ciúmes. É isso o que acontece com Martin. Quando Sophie se entrega em sua relação com Friedrich, os mundos pelos quais este se apaixona são os mundos que incluem Martin, e são os mundos que Sophie está disposta a oferecer- lhe. Friedrich consegue, com isso, arrancar tudo de Martin: sua fortuna, seu sobrenome e sua mãe. Quando as relações entre Martin e Sophie se tornam insustentáveis, ela lhe pergunta: “O que você quer de Friedrich?”, ao que Martin responde: “Tudo”, incluindo, aí, a própria mãe. Para reaver o que havia perdido, Martin se alia com a mesma máquina com que Friedrich havia se aliado. Friedrich, que era da “burguesia”, se alia ao nazismo para se tornar “aristocrata”. Martin, que era da aristocracia, se alia à SS para voltar a ter o que era dele. E qual é o mundo que Sophie traz e pelo qual Martin se apaixona? Ele o diz à sua mãe, em um momento crucial: “Você sempre foi meu pesadelo. Você, com sua opressão, com sua vontade de me subjugar a todo custo... de todo jeito. Com suas perucas e seus batons idiotas.” Martin, sentindo-se eternamente rejeitado pela mãe, compreende o segundo segredo do amor em Proust, o segredo de Gomorra, e por isso é efeminado. O mundo da mãe que o exclui é o mundo de uma mulher primordial, constituído sem ele, e que ao mesmo tempo é aquilo que mais o oprime, o que mais teme e o que mais deseja – pelo menos no primeiro momento. Ele só terá paz (ou vingança) quando consumar o amor com sua mãe na forma de uma mulher. E é precisamente o que ele faz, quando consuma o ato incestuoso imbuído desse “devir mulher”. Mas Gomorra, para dar continuidade ao mito, deve ser castigada, e o castigo virá da mesma mão que se abateu sobre Sodoma. Porque Martin, quando deflora a mãe, quebra um ciclo – ele rompeu o segundo segredo do amor, foi capaz de amar a mãe sob os signos de Gomorra. Após o ato consumado, ele não responde mais aos signos a que respondia anteriormente, e a mãe, devastada, morre antes mesmo de morrer. Em outras palavras, a

48 violação de Martin mata a própria essência de Sophie, que se torna uma casca, e desce para seu casamento com uma aparência cadavérica. É também na consumação do ato que morre o Martin de antes, que respondia aos signos da coquetterie – novamente, um dos sexos morre para seu lado, dessa vez o sexo feminino. A prova de que esse Martin está morto se dá quando a mãe se casa com Friedrich, já morta por dentro. Martin, agora da SS, os conduz a uma sala onde os induz ao suicídio. Do lado de fora, uma orgia burlesca, pela qual Martin passa indiferente para, sozinho, fazer um gesto: a saudação nazista. Assim como o gesto do legislador, que, executado a sós, revelava sua real posição, revela- se aqui a nova subjetividade de Martin – seu eu feminino está morto, e sua subjetividade foi capturada, ou vendida, para a SS nazista. Em Os Deuses Malditos, o amor é levado para os domínios das leis de Sodoma e Gomorra e da predição de Sansão, com ambas as partes esmagadas pela mesma máquina ceifadora do desejo: o nazismo.

Fig. 5: Sophie essencialmente morta, antes da morte verdadeira. Fonte: Luchino Visconti, La caduta degli dei (1969)

O azul e o vermelho como essência e o Liebestod como signo da arte

Por quatro vezes aparece a oposição entre o azul e o vermelho, verdadeira linha condutora de Os Deuses Malditos. A primeira, no jantar de aniversário de Joachim von Essenbeck, em que seus ornamentos – anel, abotoaduras – são vermelhos, contrastando com as de Martin, azuis. Ali, essas cores são signos mundanos, atreladas materialmente à

49 mundanidade joalheira. Aparecem, novamente disfarçados, na sequência do enterro de Joachim. O aço derretido nas forjas da fábrica transforma-se, numa transição brusca de cena, na metralhadora de aço que, dizem os oficiais, “cantará” em breve. O azul aqui não é exatamente a cor azul, mas a materialidade do quente e do frio presente no aço – o aço fundido é vermelho, o aço forjado, pelo menos em certo temperamento, muito presente no imaginário, é azul. O que antes era cor passa a ser um outro tipo de qualidade: quente- frio, maleável-inflexível. O vermelho aparece, sozinho, em toda a representação da Noite das Facas Longas, como o vermelho do sangue que escorre dos corpos dos jovens rapazes. Aqui, novamente, não é só a qualidade da cor: é a própria folie dionisíaca, indelevelmente conectada à pulsão primaveril, e que precisa acabar, precisa ser aniquilada para que em seu lugar impere a frieza de uma SS que encarna um Apolo belo e maquinal, lúcido e perverso, alinhado e gelado. Por fim, essa essência revelada no triunfo do Apolo psicopata sobre o Dioniso bonachão rebaterá sobre sua primeira ocorrência: Martin. Em seus desenhos, remexidos por sua mãe depois da definitiva relação incestuosa, um profético Martin criança representa a si, de azul, e a sua mãe, de vermelho, em dois desenhos. No primeiro se lê: “Martin ama mamãe”, e, no segundo, “Martin mata mamãe”. A relação com Jocasta é inegável. Se Sophie, uma vez que acorda da hipnose barbitúrica provocada por seu próprio filho, deve se matar, ela o faz com os instrumentos fornecidos por ele. Já estava morta quando casou, é o que nos diz sua maquiagem. A homenagem a Wagner, o Liebestod, é o grande signo da arte ou signo essencial de Os Deuses Malditos: nele se anuncia a transição do amor quente à morte fria, da República de Weimar ao Terceiro Reich, do aço fundido ao aço armamentício, e, finalmente, de Joachim a Martin.

50 2.2 Morte em Veneza

Inspirado no romance homônimo de Thomas Mann, Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971) é o segundo filme da trilogia alemã de Luchino Visconti. Ambientado no verão de 1911 em Veneza, o filme apresenta, em comparação com o anterior, Os Deuses Malditos, um tom muito mais introspectivo. Contando pouquíssimos personagens, o enredo se desenvolve com escassos diálogos em torno de duas figuras centrais, o compositor Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) e o jovem Tadzio (Björn Andresen); além da personagem secundária, mas não menos importante, da aristocrática mãe de Tadzio (Silvana Mangano), de quem jamais sabemos o nome. Em termos de ação, o filme é conciso: por recomendações médicas, Aschenbach vai passar uma temporada no balneário elegante do Lido veneziano, em busca de recuperação física. Solitário, envelhecido e angustiado, em uma busca fracassada por respostas para ao próprio processo de criação na arte, Aschenbach se depara, nos saguões do hotel, com Tadzio, cuja beleza de imediato o impressiona. É assim que, na silenciosa observação de Tadzio ao longo de toda sua estada na cidade, Aschenbach é estimulado a refletir sobre as questões mais profundas à passagem do tempo, o envelhecimento, a inevitabilidade da morte, a criação e a fruição estética, a beleza e a imortalidade da arte. Tal qual a Recherche, onde o foco não se encontra na ação, mas no aprendizado por meio da rememoração96 (mas que não se esgota na rememoração, como vimos), o principal de Morte em Veneza se dá no aprendizado do protagonista que, fazendo as vezes de Narrador proustiano, oferece todo o fio condutor da narrativa, os olhos pelos quais tudo será visto.

O mundo dos salões no balneário elegante

Em Proust, sabemos que o tempo que se perde é, em grande parte, perdido no falatório sem fim dos salões, a distração extenuante da mundanidade. O mesmo acontece em Veneza, quando a lógica dos salões é transposta para o balneário dos abastados europeus. Ali, frequentadores endinheirados passam férias como se não houvesse amanhã, não se preocupam com o porvir. Aliás, esse é justamente o regime que comanda o verão nas praias do Lido. Tudo é frivolidade e nada significa grande coisa.

96 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 39.

51 O falatório em Morte em Veneza e a vacuidade dos signos mundanos são ainda mais explicitados pelo modo com que o Grand Hôtel des Bains é retratado como uma verdadeira Torre de Babel. Atraindo turistas das mais diversas origens e nacionalidades, Aschenbach fica cada vez mais sozinho – em parte por certa barreira linguística, que é transmitida também para o espectador do filme, não tanto pelo idioma, mas pela inteligibilidade do que é dito. Exceto os diálogos que envolvem Aschenbach, tudo é um grande burburinho em diversas línguas jamais dubladas, legendadas ou explicitadas. Os diálogos entre Tadzio, sua mãe e a governanta são sempre praticamente inaudíveis (e nunca em inglês, língua usada por Aschenbach para se comunicar em Veneza), e tudo o que podemos discernir é que a mãe se comunica com a governanta e com os filhos principalmente em duas línguas, ora em francês, ora em polonês. Mas, ao mesmo tempo em que nada se compreende nas nuances da língua falada, tudo o que acontece é muito claro se observado por outra perspectiva. De certa maneira, mesmo na ininteligibilidade, entende-se tudo o que se fala – novamente, nada que se preste: venha cá; não faça isso; vamos almoçar; que adorável; que tal esses morangos frescos? E um colar de Murano? O descanso na praia parece ser e ter sempre sido o mesmo. A frivolidade e as regras da mundanidade podem se tornar, contudo, rapidamente cansativas. Vê-se isso com muita clareza nos muitos rostos entediados, sobretudo nas crianças. Enquanto todos ficam permanentemente encenando uma peça vazia, divertindo- se apenas nos limites do que a convenção permite, Tadzio, por sua vez, é o único que parece não se conformar. Seu comportamento, assim como sua postura que, sobretudo em oposição à das irmãs menores, sempre eretas, impecáveis e por vezes apáticas, é insolente. Ele está sempre atrasado para o desjejum matinal e sujando suas roupas brancas. Ele é indomável, e está sempre sendo chamado para a conformidade por sua governanta, de aparência deserotizada e frígida, que não para de chamar: “Tadzio! Tadzio!”, e, menos frequentemente, por sua mãe, de longe a figura mais elegante e etérea do Grand Hôtel des Bains – a mãe de Tadzio exerce um fascínio equivalente ao da duquesa de Guermantes. O motivo: não fala, não se relaciona, faz apenas aparições97 – extrapolando, ela é quase uma manifestação mariana em Veneza. Sua deificação, no entanto, permanece inalterada, ao passo que, com a inclusão do Narrador proustiano nos salões dos Guermantes e a

97 MAMMÌ, Lorenzo. A fugitiva: Ensaios sobre música. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 275.

52 consequente observação mais próxima da duquesa, percebe-se que ela é, no máximo, amável.

Fig. 6: A etérea mãe de Tadzio, deificada pois inatingível. Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971)

Uma particularidade, entretanto, caracteriza o estímulo aos divertimentos sem fim e sem pensamento no Lido – há que se esconder a epidemia de cólera, abafada pela indústria do turismo para não espantar os turistas, principal fonte de renda local. Aqui e ali, testemunham-se mortes suspeitas. Mas está tudo bem, segundo o gerente do hotel. Tudo é culpa do scirocco, vento oriundo do Saara que causa um mal-estar inexplicável, tão inexplicável quanto sua possível duração, estipulada segundo crendices populares e replicadas, novamente, pelo gerente do hotel, que quer manter tudo em ordem: “amanhã tudo estará melhor” ou algo que o valha, é tudo o que sempre diz. Dessa forma, o gerente do hotel, que em certa maneira é a representação de toda a indústria do turismo em Veneza, é o grande legislador da mundanidade do Lido. Puxando suas cordas e manejando os hóspedes como marionetes, age sempre como se dissesse: “tratem de rir e de consumir, e não me venham com perguntas sobre a epidemia” – poder que parece exercer, com mais facilidade, entre os hóspedes das classes mais baixas do hotel, que caem facilmente em sua conversa, em oposição à primeira-classe do hotel, à qual pertencem Aschenbach e a família de Tadzio, que se mostram em certos momentos até mesmo enojados com toda aquela festa forçada. O filme apresenta em certo sentido o mesmo Zeitgeist da mundanidade de Balbec de À sombra das raparigas em flor, quando o Narrador proustiano vai passar com a avó, pela primeira vez, uma temporada em um balneário do mesmo estilo, em um hotel nos mesmos moldes do Grand Hôtel des Bains de Morte em Veneza, situado, porém, no litoral

53 norte da França. Há que se reconhecer que, de fato, há um distanciamento temporal entre os dois acontecimentos – o filme de Visconti é passado em 1911; a ida a Balbec no romance de Proust, estima-se,98 no verão de 1897 –, mas, apesar de separados por treze anos e a virada de um século, trata-se da mesma belle époque. Em Visconti, estamos em 1911, mas a subjetividade, os costumes e a estética ainda são aqueles do século XIX. Como postula Hobsbawm,99 esse foi um século longo, que perdurou apesar da virada numérica e só colapsou com a irrupção da Primeira Guerra Mundial em 1914, ano que encerra, consequentemente e pelos motivos mais evidentes, a belle époque onde se inserem esses dois momentos narrativos, e com a Revolução de Russa, de 1917. É verdade que, na Recherche, mais especificamente em A fugitiva, o narrador visita Veneza com sua mãe, anos depois de sua primeira ida a Balbec, mas as dinâmicas da mundanidade de Visconti se relacionam muito mais com Balbec do que com a própria Veneza proustiana, apesar de podermos estabelecer algumas conexões se sairmos dos domínios da mundanidade. Em outras palavras, a Veneza de Visconti encontra-se desdobrada em Proust em duas configurações, a depender do ponto de vista: nos domínios dos signos mundanos, na primeira ida a Balbec, quando o Narrador passa meses de férias com a avó imerso na vida em sociedade, conhece o bando de meninas e se apaixona por Albertine (comparar a paixão do Narrador por Albertine ao fascínio de Aschenbach por Tadzio, contudo, seria um erro, como veremos mais detalhadamente a seguir, quando abordaremos o amor e a arte em Morte em Veneza); enquanto, nos domínios dos signos da arte, relaciona-se à própria Veneza: se o Narrador proustiano contempla a arte na arquitetura veneziana, é também em Veneza que Aschenbach encontra o signo da arte, na figura de Tadzio. A diferença é que se, no primeiro, a arte está na cidade, no segundo, a cidade é apenas o pano de fundo.

A realidade viva dos signos sensíveis

Não seria errado afirmar que Morte em Veneza, tal qual a Recherche, versa sobre o aprendizado. No romance proustiano, esse aprendizado se dá com a atualização do Narrador na escrita por meio da rememoração, ao passo que, na obra de Visconti, a

98 Cf. cronologia para a Recherche apresentada em: GENETTE, Gérard. Figuras III. Trad.: Ana Alencar. São Paulo: Estação Liberdade, 2017. p. 157. 99 HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios, 1875-1914. Trad.: Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. 23. Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2017. p. 20.

54 memória desempenhará outra função. É por meio da inclusão de alguns flashbacks que tomamos conhecimento das convicções artísticas e estéticas de Aschenbach, além de alguns detalhes de sua vida pessoal e profissional ocorridos em diferentes momentos anteriores a sua viagem a Veneza. Essas memórias contribuirão para o entendimento do aprendizado de Aschenbach em relação a suas novas concepções sobre a estética – ou seja, seu contato com os domínios dos signos da arte –, pois indicarão o ponto de partida e as direções tomadas nessa narrativa pessoal, uma vez que o presente da narrativa em Veneza se resume, em última instância e em termos de ação, à observação de Tadzio por Aschenbach. No domínio dos signos sensíveis, o que nos interessará será a maneira com que essas memórias são desencadeadas, sempre a partir de um estímulo sensorial. Ao longo do filme, podemos notar sete ocorrências desse tipo de relação, a maior parte delas bastante clara quanto à identificação desses disparadores e sem maiores desdobramentos, a saber: · quando Aschenbach chega ao hotel e é instalado em seu quarto, abre a janela e vê a praia, os banhistas com seus apetrechos e o mar, a cena é transportada à memória do momento em que, doente, é recomendado por médicos a “se afastar”, em busca de repouso e tranquilidade. A lógica é simples – Aschenbach chega a seu destino, conhece o quarto onde passará toda uma temporada, arruma seus pertences e, observando o cenário que supostamente lhe trará a desejada cura, lembra-se do que o trouxera até ali. Aliás, a relação não é direta, mas é impossível deixar de lembrar, com o estranhamento que causa a Aschenbach o novo cômodo – e que, daquele momento em diante, será o seu próprio, mesmo não tendo com ele, ainda, nenhuma ligação –, da hostilidade sentida pelo Narrador proustiano quando é instalado em seu quarto no hotel de Balbec, em sua primeira visita, com sua avó; · pouco depois de ver Tadzio pela primeira vez, no saguão do hotel, Aschenbach é logo tomado pela lembrança de seus embates teóricos com o amigo Alfred, também artista, porém com posicionamentos diametralmente opostos aos seus. Se Aschenbach acredita que a beleza é fruto do trabalho, Alfred o contraria, afirmando que a beleza nasce espontaneamente e pelos sentidos. A figura de Tadzio, nesse momento, funciona em primeiro grau como signo sensível, mas apenas porque, em um nível mais profundo, inaugura, em Aschenbach, uma inquietação estética que coloca em xeque suas convicções; · em seguida, mais uma vez a figura de Tadzio remete ao mesmo tipo de questionamento, ao mesmo tipo de embate com o amigo Alfred, que diz a Aschenbach:

55 “você tem medo de ter contato direto com qualquer coisa.” Entretanto, a intensidade desse afeto é maior, e Aschenbach, tal como a constatação do amigo, se desespera, apavorado com a possibilidade de se deixar entrar em contato com os sentidos e fazer desmoronar tudo o que a arte significava para si; · por uma única vez há uma evocação da memória pela música: ao ouvir Tadzio tocar, de forma bastante amadora, a Für Elise de Beethoven, Aschenbach é remetido a uma visita fracassada a um bordel, onde a prostituta que lhe recebe, Esmeralda (curiosamente, é também o nome do barco que o traz a Veneza), toca a mesma música. A conexão, porém, não é apenas da ordem musical, mas de um sentimento de frustração: Aschenbach está sempre confrontado com a impossibilidade de atingir a perfeição por meio do exercício maquinal do pensamento, tem dificuldades em deixar fluir seus sentidos, vê Tadzio e enxerga algo que não compreende. No bordel, a frustração também dá o tom da visita: Esmeralda recebe seu pagamento, mas dá-se a entender que nada foi consumado naquele quarto; · ao finalmente descobrir a verdade sobre a epidemia de cólera que assola Veneza, Aschenbach pensa imediatamente na segurança de Tadzio, e imagina-se avisando à sua mãe para que deixem Veneza imediatamente. A imaginação de Aschenbach, que se preocupa com a possibilidade de que Tadzio e sua família sejam atingidos, o remete à lembrança da morte de sua filhinha. Essa associação entre a imaginação de uma possibilidade e a lembrança de algo ocorrido é bastante interessante, pois coloca a própria imaginação ocupando a posição de um signo sensível, categoria que, sabemos, é a mais material – o que, nesse caso, é bastante paradoxal; · finalmente, já bastante atingido pela doença, Aschenbach anda pelas então funestas ruas de Veneza em busca de Tadzio, sendo essa busca uma imagem para a impossível busca pelo ideal. Frustrado, Aschenbach colapsa, chora, e é remetido a outro fracasso, que é o mesmo: após a apresentação de uma peça musical sua em um teatro, é vaiado pelo público, que rejeita sua música cerebral. Lembrança que Visconti emendará com um pesadelo, na contiguidade material característica dos signos sensíveis. O sentimento de derrota frente ao mesmo oponente é o que desencadeia essa associação. Há, no entanto, uma outra ocorrência dessa dinâmica, que deixamos por último por considerarmos que oferece uma reflexão mais cuidadosa. Em uma cena essencialmente idêntica à do barão de Essenbeck, de Os Deuses Malditos, que beija o retrato do filho morto, Aschenbach, após vestir-se para o primeiro jantar no hotel em Veneza, beija o retrato da filha (que posteriormente sabemos estar

56 morta) e o da esposa (de quem não sabemos o destino). Nas imagens, a filha é retratada em uma postura sisuda, quase mal-humorada, enquanto a esposa, em uma pose forçada, de mãos unidas, mais parece uma religiosa convicta. Curiosamente, as fotografias não lhe causam nenhum efeito sensível. Tudo bastante proustiano, se lembrarmos que o autor “rejeitava a fotografia, devido a seu caráter mecânico e puramente analógico, da semelhança superficial que estabelece com o modelo”.100

Fig. 7: A ineficiente fotografia da esposa de Aschenbach. Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971)

Da mesma maneira que as fotografias não são suficientes para evocar a filha e a esposa de Aschenbach, na Recherche, o Narrador sinaliza essa ineficiência em relação à foto da avó falecida: “Não havíamos sido criados unicamente um para , era uma estranha. Essa estranha estava a olhar a fotografia tirada por Saint-Loup.” 101 Contrariamente, a memória é imbuída de muito mais credibilidade,102 como descreve o trecho:

Acabava de perceber, em minha memória, inclinado sobre o meu cansaço, o rosto terno, preocupado e decepcionado de minha avó, tal como ela estivera naquela primeira noite de chegada, o rosto de minha

100 Tradução nossa. Adaptado do original em francês: “On a déjà noté que l’écrivain rejette la photographie, à cause de son caractère mécanique et purement analogique, de la ressemblance superficielle qu’elle établit avec le modèle.” DARBELLAY, Laurent. Luchino Visconti et la peinture : Les effets picturaux de l’image cinématographique. Genève : MētisPresses, 2011. p. 364. 101 PROUST, Marcel. Sodoma e Gomorra. Op. cit., p. 171. A tradução de Quintana, porém, é um pouco ambígua na frase que nos interessa. No original em francês: “Cette étrangère, j’étais en train d’en regarder la photographie par Saint-Loup.” 102 DARBELLAY, Laurent. Luchino Visconti et la peinture : Les effets picturaux de l’image cinématographique. Op. cit., p. 364.

57 avó, não daquela que eu me espantara e censurara de lamentar tão pouco e que de seu apenas tinha o nome, mas da minha avó verdadeira, cuja realidade viva eu tomava a encontrar pela primeira vez, numa recordação involuntária e completa, desde que ela tivera um ataque nos Campos Elísios. Essa realidade não existe para nós enquanto não foi recriada por nosso pensamento [...].103

Assim, do mesmo modo com que, na Recherche, a avó do Narrador é evocada em sua “realidade viva” por meio da memória, também por esse meio que é apresentada uma imagem mais condizente com o que de fato eram a filha e a esposa de Aschenbach: não uma menina sisuda e uma beata de igreja, mas uma filha alegre e uma esposa viva e amorosa. Memória evocada não pelas ineficientes fotografias, mas pela visão de Aschenbach de outro signo que lhe afetaria com muito mais intensidade: as famílias de banhistas brincando, alegres, na praia, dentre as quais a família de Tadzio.

O mundo grego em Veneza

O conflito de Morte em Veneza está no embate entre dois pontos de vista diametralmente opostos sobre a estética, apresentados sob a forma de diálogos entre Aschenbach e seu amigo Alfred – diálogos dignos da tradição filosófica grega – e, sobretudo, nos afetos que causam a luta entre essas forças conflitantes na subjetividade e nas convicções do próprio Aschenbach. Por um lado, Aschenbach tem uma “concepção espiritual da beleza”,104e crê na “habilidade do artista de criar a partir do espírito”. Para ele, a beleza é o “produto do trabalho”, e sua criação, assim como a da pureza, é um “ato espiritual”, cujos grandes inimigos são a realidade, que serve apenas para “distrair e degradar” o artista, agindo como elemento limitador da criação. Segundo seu ponto de vista, para atingir o objetivo de uma criação perfeita, o artista “deve ser um modelo de equilíbrio e força. Não pode ser ambíguo”. Antagonizando Aschenbach, para Alfred, a beleza nasce espontaneamente e pertence “somente aos sentidos”. E mais além, se para Aschenbach, “é somente pela completa dominação dos sentidos que se poderá atingir a sabedoria, a verdade e a dignidade humana”, Alfred vê no gênio uma “doença divina” que se alimenta do mal.

103 PROUST, Marcel. Sodoma e Gomorra. Op. cit., p. 153-154. 104 As falas e diálogos da filmografia selecionada de Visconti transcritos neste trabalho são traduções nossas.

58 Com isso, Alfred não quer dizer que o artista deve ser mau ou demoníaco, mas, em outras palavras, que a arte não pode ser o fruto de um trabalho premeditado, cerebral, destacado da experiência, e que ela surge quando o artista permite-se abrir para os sentidos, as experiências. Sentidos e experiências que não podem ser regidos por comportamentos preconcebidos, valores morais ou códigos de conduta; mas guiados, ou melhor, levados livremente pelos domínios do sentido no contato com o real, produzindo uma arte ambígua – no sentido de que a obra de arte não pode ser qualificada como tal se tiver um significado fechado, mas, ao invés disso, que seja uma chave para a livre associação na fruição estética. Os diálogos entre os dois amigos, como já mencionado, ocorrem todos antes do presente da narrativa de Morte em Veneza. Para Aschenbach, essas questões deixam os domínios das conceituações teóricas quando, em Veneza, se depara com a figura do jovem Tadzio: “o encontro com Tadzio inquieta Aschenbach ao máximo, e o faz com que perca suas referências estéticas, pois a beleza do rapaz associa o real e o ideal.”105 Assim, à maneira da Recherche de Proust, estabelecem-se na narrativa dois pares de oposição: “à amizade opõe-se o amor: à conversa, a interpretação silenciosa.”106 É a partir desse momento que se inicia uma relação, no mínimo, também ambígua. Dizer que Aschenbach se apaixona por Tadzio e que a dinâmica entre os dois se resume a uma afetação amorosa em vista da beleza e da juventude é, no mínimo, totalmente equivocado. A começar pelo fato de que, no primeiríssimo momento em que Aschenbach contempla o rosto de Tadzio, o efeito imediato é o da lembrança de seus embates com Alfred, e não uma reação apaixonada. Desde sempre, o que rege a dinâmica entre o compositor e o rapaz é uma questão estética. Ao mesmo tempo que seria impossível negar que haja qualquer insinuação homoerótica ao longo da narrativa, nenhum movimento nesse sentido se dá isoladamente nos domínios do amor. Ele está, sempre, hibridamente inserido nas esferas da arte. Para sermos mais claros, retomemos os signos do amor em Proust. Uma das questões fundamentais desse regime é, como vimos, que o amante não se apaixona por

105 Tradução nossa. No original em francês: “La rencontre avec Tadzio trouble au plus haut point Aschenbach et lui fait perdre ses repères esthétiques, car la beauté du jeune homme associe le réel et l’idéal.” DARBELLAY, Laurent. Luchino Visconti et la peinture : Les effets picturaux de l’image cinématographique. Op. cit., p. 209. 106 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 100. Deleuze também aponta para o fato de que Proust opõe “à homossexualidade grega, a judia (a amaldiçoada)” (Ibid.), o que contrapõe respectivamente Morte em Veneza e Os Deuses Malditos.

59 uma pessoa, mas pelos mundos que essa pessoa traz. Ora, se Aschenbach é um compositor que passa a vida tentando em vão encontrar o equilíbrio estético perfeito, que para ele só existe no domínio espiritual, nada mais natural que se sinta atraído por aquele que traz justamente aquilo que busca, a perfeição estética. Ou, mais além, que confunda esse embevecimento com o amor. É verdade que, em dado momento, após receber um sorriso de Tadzio, Aschenbach diz, sozinho, “Eu te amo”; e que, em outro, em uma cena bastante sutil, o que só demonstra a delicadeza de Visconti, ao vê-lo na praia, Aschenbach parece esconder uma ereção, mudando seu caminho inicial e caminhando, sem querer ser visto, por trás das cabines da praia, tentando cobrir a reação de seu corpo com sua pasta de partituras, até que passasse a situação embaraçosa. Se adicionarmos a isso a visita frustrada à prostituta Esmeralda e certa confissão impetuosa de Aschenbach, que diz a Alfred que tem a moral “contaminada”, apesar de todas as suas convicções, poderia-se certamente levantar algumas hipóteses quanto a sua sexualidade, mas isso, além de não ser o foco de toda a dinâmica do filme, é improdutivo. Muito pelo contrário, rotulá-lo veementemente como homossexual seria reduzir todo um movimento para uma nova compreensão estética à aceitação de um amor socialmente proibido. Tudo seria mais simples, e até banal, se fosse assim, mas não parece ser o caso. Mais uma vez, retomamos os signos amorosos de Proust para afirmar que, se há amor da parte de Aschenbach por Tadzio, esse amor não passa da primeira camada, a do fascínio pelos mundos que o amado traz. Se a lei maior dos signos do amor em Proust encontra-se no ciúme e na mentira, em Tadzio, pelo contrário, Aschenbach encontra a verdade da arte. A origem da sensibilidade de Aschenbach para os signos que Tadzio traz é bastante clara: trata-se de um artista doente, atingindo certa idade, e que, ao que parece, ainda não conseguiu produzir o que consideraria sua magnum opus. O tempo está se esvaindo, e ele só foi capaz de senti-lo quando não havia mais o que ser feito: a imagem que usa é a de uma ampulheta, que, ao ser virada, parece reter sempre no mesmo nível o reservatório da parte superior, até que, repentinamente, a areia escorra por inteiro, e todo o movimento, antes quase imperceptível, só seja notado nos últimos instantes. Tadzio é o oposto, encarna tudo o que perdeu e que poderia almejar: a juventude, a perfeição estética. Só há uma divergência – se para Aschenbach, a obra perfeita só pode ser atingida por meio do trabalho nos domínios do ideal, como verdadeiro demiurgo platonista inspirado pelas musas, Tadzio é o ideal no domínio do real, sem que aparentemente haja nenhum esforço para isso, e só pode, e deve, ser acessado por meio dos sentidos.

60 Mas Tadzio não é apenas um belo rapaz – ele encarna os próprios ideias gregos de beleza, o que é indicado por Visconti em diversos momentos. Tadzio alude a figuras e figurações da arte clássica, sobretudo por meio de sua postura, esta ainda mais destacada quando em oposição aos rígidos códigos do século XIX reminiscentes na belle époque em 1911, com seus espartilhos e colunas eretas, de modo que Tadzio, misturado aos outros hóspedes nos saguões do hotel, mais parece uma escultura grega, com todo seu dinamismo, entre um mar de rígidas esculturas egípcias. Aliás, não parece, encarna; é a própria arte clássica, na mesma medida em que a essência dá à existência o seu ser.

Fig. 8: Tadzio, em alusão a imagens como as de Davi e Adônis. Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971)

Fig. 9: Donatello, David, circa 1440 Fig. 10: Bertel Thorvaldsen, Adonis, 1887 Museo Nazionale del Bargello, Florença Thorvaldsensmuseum, Copenhague Fonte:http://www.bargellomusei.beniculturali.it/oper Fonte:https://www.thorvaldsensmuseum.dk/en e/bargello/96/david/ /collections/work/A790

61 Além das alusões à arte clássica nos saguões do hotel e na praia, há outra alegoria bastante significativa, a de Narciso. Em dado momento, quando a cólera já havia se espalhado por Veneza, Aschenbach vai até um barbeiro. Uma vez lá, em vez de receber o tratamento esperado – fazer a barba, aparar alguns fios de cabelo –, é convencido pelo barbeiro de que sua aparência está muito desleixada, e que poderia ter uma apresentação muito melhor caso permitisse a realização de alguns pequenos procedimentos. Aschenbach aceita a sugestão, sem saber ao certo quanto ao resultado, e encarna o arquétipo da figura grotesca que aqui e ali surge em Veneza: um homem de maquiagem pesada, rosto pálido e lábios vermelhos, empoado, com os cabelos tingidos de um negro artificial – uma caricatura. O barbeiro dá o toque final prendendo uma flor em sua lapela e diz: “E agora o signore pode se apaixonar assim que o desejar.” Há que se notar, porém, que o tempo todo Aschenbach parece resignado com a questão do passar do tempo e não busca ativamente burlar ou esconder o avançar da idade com esse tipo de artifício – a ideia, aqui, vem do barbeiro. Nesse ponto, lembra bastante o Narrador proustiano: não toma grandes atitudes em relação a nada, mas, pelo contrário, é levado pelos acontecimentos, enquanto observa tudo com a maior atenção. Torna-se uma caricatura por um infortúnio circunstancial. É nesse momento que, com sua nova aparência, mira o olhar nas águas de um canal e, ao ver seu reflexo, surge também o de Tadzio, que passa, no exato momento, por uma ponte bem ao lado. A alegoria sintetiza tudo o que é dito, e a água é um espelho da verdade: de um lado, a figura ridícula e decadente daquele que busca uma conformidade que não lhe é mais possível; de outro, o signo da beleza e da juventude em sua essência.

Fig. 11: “E agora o signore pode se apaixonar assim que o desejar.” Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971)

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Fig. 12: O mito de Narciso: reflexo de Aschenbach, à esquerda, e de Tadzio, à direita. Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971)

Fragole fresche

Como homem reto que é, Aschenbach se acomoda em sua cadeira de praia, portando suas vestes completas, e tenta ler seu jornal. Dois chamados, entretanto, chegam incessantemente a seus ouvidos: as repreensões da governanta da família polonesa, que grita “Tadzio! Tadzio!”, na tentativa de controlá-lo; e a oferta perene de fragole fresche, “morangos frescos!”, do vendedor ambulante. Apesar de sua boa vontade inicial, o compositor cai duas vezes na tentação: não precisa de muito para ficar observando o rapaz, que já o fascina desde sempre, e, em dado momento, cede à propaganda e é visto comendo os onipresentes frutos vermelhos. Esses dois chamados, por sua vez, representam dois caminhos que se entrelaçam, o da doença moral e o da doença física. Quando utilizamos o termo doença, no que se refere a essa dinâmica específica, queremos apontar não necessariamente para seu aspecto negativo, degradante, mortal, mas para o sentido do sofrimento, padecimento, afeto, paixão, pathos. Obviamente não queremos com isso dizer que a cólera está no domínio da paixão, mas que, em Morte em Veneza, essa doença específica vem carregada de uma simbologia que serve como contraponto ao pathos espiritual, o que explicaremos a seguir. Retomando o mundo grego, para Platão, a arte influencia a moral, podendo exaltá- la ou arruiná-la. Em outras palavras, Platão condena as artes (no caso, a música) que recaem sobre o excesso de virtuosismo e melodia, estimulando um apelo aos sentidos que só faz enfraquecer o homem reto. Esse tipo de música é, justamente, representado pelos

63 “modos patéticos e lânguidos do Oriente [...] e suas queixosas harmonias”.107 A visão de Aschenbach resume a de Platão: os sentidos são uma distração e só servem para desvirtuar. A ameaça, nesse contexto, vem de fora, de certas melodias orientais, opondo a inebriante flauta do culto ao Dioniso asiático à sóbria lira do Apolo heleno. No filme, a cólera nos é apresentada de maneira não menos exotizante. Após muito procurar, em vão, a razão das mortes inexplicadas em Veneza, Aschenbach encontra sua resposta por meio de um funcionário de uma casa de câmbio, que, às escondidas, anuncia a ameaça oriental, assumindo um tom profético tal qual uma pitonisa: “Durante muitos anos, a cólera asiática mostrou certa tendência em se alastrar para além de sua fonte, nas águas do Ganges. Primeiro espalhou-se para o Hindustão. Depois, ao leste, para a China. Então espalhou-se a oeste pelo Afeganistão e pela Pérsia. Da Pérsia, a praga seguiu a rota das grandes caravanas, causando terror no Afeganistão, terror em Moscou. De Moscou, esperava-se que se espalhasse pela Europa por terra. Não, não. Em vez disso, foi levada pelo mar dos portos sírios para Toulon e Málaga, e então para Palermo e Nápoles. E logo firmou-se na Calábria. O norte da Itália parece ter sido poupado até então, mas se considerarmos a vulnerabilidade de Veneza, com suas lagoas e o scirocco...” A partir do momento em que a cólera chega a Veneza, veem-se espalhados por toda a cidade cartazes alertando os moradores e turistas a beberem exclusivamente de água fervida e a evitarem sobretudo os alimentos frescos, não cozidos. Que tudo isso se dê em Veneza apenas acentua o papel que a cidade há séculos exerceu como ponto de encontro entre ocidente e oriente, tradição que remonta aos tempos do mítico Marco Polo e que pode ser vista até hoje em sua arquitetura singular. No deleite sensorial da contemplação de Tadzio e no consumo dos morangos frescos, o destino de Aschenbach está determinado, ele sentirá no corpo o afeto espiritual e carnal. Essa construção não deixa de lembrar a imagem do artista romântico e boêmio do século XIX, cujo arquétipo é o homem embriagado e contaminado pela sífilis, causadora de loucura. De fato, Aschenbach esteve, em determinado momento de sua vida, na porta de entrada desse mundo, mas recusa-se a entrar: quando visita Esmeralda, a prostituta, paga-lhe e vai embora sem que se consume o ato. Voltando aos diálogos iniciais, para os paradigmas de Alfred, o pathos, no artista, tem o corpo indissociável da alma.

107 JANKÉLÉVITCH, Vladimir. A música e o inefável. Trad.: Clovis Salgado Gontijo. São Paulo: Perspectiva, 2018. p. 54.

64 No caso de Tadzio, a conjunção dionisíaca se manifesta, pictoricamente, na mesma cena da praia. Enrolado em uma toalha bordada em meandros, típica padronagem grega, brinca displicentemente com uma fruta fresca, um pêssego ou um damasco, não muito distante do Baco de Caravaggio.

Fig. 13: Tadzio em alusão à figura de Dioniso. Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971)

Fig. 14: Caravaggio, Bacco, 1595 Fig. 15: Tadzio em referência à Antiguidade Gallerie degli Uffizi, Florença Clássica. Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia Fonte: https://www.uffizi.it/opere/bacco (1971)

Finalmente, Morte em Veneza não trata da derrocada de um artista, de um homem respeitável que encontra a perdição e a morte, tanto física quanto moral, ao vivenciar todas essas experiências em Veneza. Pelo contrário, ao invés de sua queda, trata-se de sua ascensão, apesar da morte à espreita: a visão vem no último momento, um pouco tarde

65 demais, mas ela acontece. Aschenbach jamais tentou lutar contra o impossível, a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte – essa é a condição comum a todos os seres vivos, e se debater contra isso seria perda de tempo. Resignado, Aschenbach, sim, lamenta que, na maioria das vezes, tomemos ciência desse fluxo que tudo carrega apenas tão tardiamente, quando não há nada mais que se possa ser feito a esse respeito. Exceto que, no seu caso, no cair dos últimos grãos de areia da ampulheta, compreende uma verdade maior: não somente que a beleza na arte é eterna e ultrapassa o artista – nisso provavelmente já acreditava mesmo antes da quebra de seus paradigmas –, mas, sobretudo, que o acesso ao ideal ou essencial se dá não por intervenção espiritual das musas, como recompensa por qualquer coisa, mas pela abertura dos sentidos nos domínios do real. A prova pertence também aos sentidos: nenhuma descida ao fundo da degradação seria retratada do modo com que Visconti encerra Morte em Veneza: solar, com um Tadzio quase caminhante sobre as águas, apontando para a eternidade.

Fig. 16: Tadzio em sua última aparição, visão final de Aschenbach. Fonte: Luchino Visconti, Morte a Venezia (1971)

Se Tadzio é Apolo, Davi, Adônis, Narciso, Dioniso, ele mesmo, nenhum ou todos simultaneamente, isso pouco nos importa. Porque, no fim, a narrativa nos conduz à máxima de Alfred de que a arte é ambígua. Nisso, ela esbarra na concepção proustiana dos signos da arte: não dependem de decifração a partir de um código exterior, mas contém em si mesmos a imensidão.

66 Do começo ao fim, a música

Não podemos encerrar a análise de Morte em Veneza sem passarmos pela música, tão marcante ao longo de todo o filme. Se, por um lado, Visconti se utiliza de peças dos mais variados repertórios (de sinfonias a canções populares italianas) em ocorrências únicas para pontuar certos momentos da narrativa, o Adagietto, quarto movimento da Sinfonia n.º 5 de Mahler, configura o tema principal do filme, pontuando com bastante frequência os momentos mais variados. A consonância entre Morte em Veneza e Mahler não se resume, entretanto, ao uso do Adagietto como tema, uma vez que Aschenbach e Mahler não compartilham apenas do mesmo primeiro nome, Gustav, e da mesma profissão (que, aliás, é diferente no romance de Mann, de 1912, em que o protagonista é um escritor).108 Há, de fato, alguns paralelos entre a vida dos dois, como a morte precoce de uma filha e a subsequente doença debilitante que, no filme, é a razão pela qual Aschenbach vai a Veneza. Apesar de nosso foco não ser de modo algum mapear esses paralelos entre a vida e a obra de Aschenbach e Mahler, há uma passagem no filme bastante instigante a esse respeito: em dado momento, em um dos flashbacks que remontam aos embates teóricos de Aschenbach e Alfred, Alfred toca ao piano um trecho de uma melodia e diz: “É a sua música!”. O trecho em questão, reconhece-se, é o começo do último movimento da Sinfonia n.º 4 de Mahler, que, no filme, é de autoria de Aschenbach. Visconti conta em uma entrevista que, apesar do fato de que Mann também tenha se inspirado em Mahler para a construção do protagonista, mas transformando-o em escritor, esse não é o único motivo pelo qual o diretor tenha optado por deixar, no filme, a referência mais evidente: “no cinema, um musicista é muito mais ‘representável’ que um homem das letras, dado que sempre é possível que se ouça a música de um compositor.”109 Em termos narrativos, as canções utilizadas, em sua maioria, estabelecem relações bastante diretas entre ação e música. São elas um trecho cantado da Sinfonia n.º 3 de Mahler, uma canção popular italiana e uma canção de Mussorgsky.

108 MANN, Thomas. A morte em Veneza; Tonio Kröger. Trad.: Herbert Caro e Mário Luiz Frungillo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 11. 109 Tradução nossa. No original em francês: “Le point de départ fondamental, c’est qu’au cinéma un musicien est plus « représentable » qu’un homme de lettres, puisqu’il est toujours possible de faire entendre la musique d’un compositeur.” SANZIO, Alain ; THIRARD, Paul-Louis. Luchino Visconti : cinéaste. Paris : Éditions Persona, 1984. p. 117.

67 A Sinfonia n.º 3 surge justamente na cena a que nos referimos anteriormente, em que Tadzio assume conotações dionisíacas na praia. O que ouvimos é um trecho de um poema escrito por Nietzsche em Assim falou Zaratustra incluído na sinfonia de Mahler. Na tradução para o português, o trecho diz:

Presta atenção! Que diz a meia-noite em seu bordão? “Eu dormia, dormia – Fui acordada de um sonho profundo: – Profundo é o mundo! E mais profundo do que pensa o dia. [...]”110

A alusão, aqui, é bastante clara – Aschenbach, passando por um momento de transformação, é acordado para uma realidade que insistia em não ver. O sono, com o sonho, domínio de Apolo, aliás, é quase uma ilustração: se no trecho é cantado “Eu dormia, dormia”, é ao som dessa sinfonia que, paralelamente, Aschenbach dorme e, ao levantar, a primeira coisa que faz é abrir a janela e observar Tadzio, encarnação do mundo “mais profundo do que pensa o dia”. Posteriormente, na cena em que os hóspedes assistem à apresentação de músicos locais, ouve-se uma canção popular italiana, Chi vuole con le donne aver fortuna (em português, “quem quer ter sorte com as mulheres”, de Armando Gill), essencialmente uma canção naïve que lista conselhos amorosos inconsistentes. Evidentemente, Aschenbach não está interessado em mulher alguma, muito menos nas receitas de sucesso de artistas tão grosseiros, que causam horror também a Tadzio e à sua mãe. Tudo parece ser construído para que Aschenbach se sinta na posição mais desconfortável, como se estivessem falando diretamente a ele, principalmente quando à primeira canção se segue outra que consiste basicamente em gargalhadas do grupo, acompanhadas dos instrumentos musicais. A terceira e última canção é uma cantiga de ninar de Mussorgsky, que antecede a cena da morte de Aschenbach. Visconti conta em uma entrevista que a ideia, a princípio, era de que a sequência em que Aschenbach caminha na praia quase deserta fosse em silêncio total. Na praia, só restariam os russos, que, falantes e destemidos, levariam mais

110 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad.: Mário da Silva. 19. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 270.

68 tempo para fugir da cólera. Entre os figurantes, no entanto, estava uma cantora russa de música de câmara, Masha Predit, e Visconti, apercebendo-se disso, pediu que ela lhe trouxesse uma canção para a cena até então silenciosa.111 Assim como nas ocorrências anteriores, a canção ilustra o momento, adicionando ainda mais uma camada de significação à cena:

Баю, баю, мил внучёночек, Nana, meu netinho Ты спи, усни, усни, крестьянский сын. Dorme, dorme, filho do camponês.

Баю, баю, допреж деды не знавали Dorme bem – seus avós não conheciam беды, a desgraça Беда пришла, да беду привела с Mas a desgraça veio, e com ela as напастями, dificuldades Да с пропастями, E os abismos

Беда да с побоями! A desgraça e o castigo!112

Devemos notar, no entanto, que cada uma dessas canções é cantada em um idioma: alemão, italiano e russo, respectivamente; e que esse nível de interpretação só será possível a partir de uma investigação mínima, a menos que o espectador seja falante de todas essas línguas, o que não é o mais provável, visto que não compartilham nem ao menos das mesmas famílias linguísticas e são tão distantes umas das outras quanto podem ser as línguas europeias. Nesse ponto, as canções se aproximam da instrumentalidade do Adagietto – se não se compreende o que é dito em uma canção, seu afeto se dará apenas pelas qualidades sensoriais (lembrando que, em Proust, a maestria de Berma está justamente na “qualidade de timbre”),113 excluindo-se o peso da letra, que, se por um lado, contribui para determinada camada de significação, por outro, pode acabar por nos distrair da qualidade sonora, em uma lógica inversa à teoria de Aschenbach de que os sentidos desvirtuam o real – é a palavra que desvirtua o real.114

111 SANZIO, Alain ; THIRARD, Paul-Louis. Luchino Visconti : cinéaste. Op. cit., p. 120. 112 Transliteração e tradução de trecho da primeira canção do ciclo de Canções e Danças da Morte (Песни и пляски смерти, 1875-1877), de Modest Mussorgsky. Agradecemos Nikita Alentev pela identificação da canção e Daria Prestes pela ajuda na tradução dos versos para o português. 113 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Op. cit., p. 38. 114 A esse respeito, Deleuze dedica em Proust e os signos um capítulo ao Antilogos. Ibid., p. 99.

69 Quanto ao Adagietto, é o grande exemplo musical da ambiguidade da arte. Ambíguo porque não é tema de nenhum aspecto específico do filme: ele está presente do começo ao fim – inclusive nos créditos iniciais, quando tudo o que vemos ainda é uma tela negra – e pontua harmoniosamente os mais diferentes momentos. Na abertura, quando Aschenbach, soturno e melancólico, chega a Veneza; quando volta, alegre, da tentativa frustrada de deixar a cidade; quando morre. Por isso, afirmamos, não há música em Morte em Veneza mais ambígua que o Adagietto, ecoando a célebre frase atribuída a Mahler: “uma sinfonia deve ser como o mundo, precisa tudo abarcar.”115

115 HORTON, Julian. Cyclical thematic process in the nineteenth-century symphony. In: HORTON, Julian (Org.). The Cambridge Companion to the Symphony. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p. 190.

70 2.3 Ludwig

Encerrando a trilogia alemã, Ludwig (1973) acompanha a vida do último rei da Baviera116, do momento de sua coroação, em 1864, até sua morte, em 1886. Apesar de cobrir apenas o período em que fora rei, o filme mostra pouco do que se esperaria da vida de um monarca, envolta em diplomacia e administração. Pelo contrário, retrata um Ludwig (Helmut Berger) que, recusando o papel burocrático de sua posição real, isola-se em um mundo habitado apenas por seus devaneios feéricos embalados pelas óperas de Wagner. Em seu fechadíssimo círculo de relações estão seu irmão Otto (John Moulder- Brown); seu confidente, o Conte Dürckheim (Helmut Griem); o compositor Richard Wagner (Trevor Howard); e sua prima, a imperatriz Elisabeth da Áustria (com a bela interpretação de Romy Schneider, que revisita a personagem anos após a morna trilogia Sissi, de Ernst Marischka). Após sua coroação, Ludwig toma como prioridade máxima o patrocínio e a divulgação da obra de Wagner, de quem é grande admirador. Segundo o rei, este é o maior presente que pode dar a seu povo e ao mundo: a ópera wagneriana. Iludido com tudo e com todos, que não compreendem a prioridade de seu projeto e desaprovam os gastos absurdos do rei na construção do teatro de Bayreuth e dos mais excêntricos palácios a seu bel-prazer, Ludwig se torna cada vez mais recluso, um rei que ninguém vê e que não governa. Situação que, em dado momento, se torna insustentável, e o rei é deposto sob a acusação de que não está mais em capacidades mentais de manter sua posição – o diagnóstico, segundo a psiquiatria da época, é de paranoia. Pouco depois de seu afastamento, o rei é encontrado morto, afogado em um rio.

O aprendizado e a tragédia

Nosso objetivo neste capítulo é, sabemos, uma tentativa de leitura da trilogia alemã pelo viés dos signos proustianos tais como os foram mapeados por Deleuze. Se, por um lado, a aproximação entre os temas da Recherche e os de Ludwig não demandariam grandes esforços, por outro, as dinâmicas dos signos proustianos nessa obra de Visconti, especificamente, não se fecham tão harmoniosamente.

116 No Brasil, o rei Ludwig II costuma ser referido por seu equivalente em português, Luís II. Aqui, por tratarmos do personagem de Visconti, e não do rei Luís histórico, optaremos pelo original alemão.

71 Diferentemente de seus dois predecessores na trilogia, Ludwig é apresentado no formato de flashbacks – já de início, sabemos que o rei foi deposto, com cenas que intercalam a ação em vida do rei e o testemunho daqueles que presenciaram determinados eventos, e o que seria a narrativa da vida de um personagem em seu presente se mostra no formato de julgamento, no qual os depoimentos das testemunhas convocadas a juízo pautam o fio condutor. Logo após a sequência de abertura do filme, em que assistimos à coroação de Ludwig, com toda a pompa e circunstância que pede a ocasião, e seu primeiro ato como rei, ordenar a convocação de Wagner à corte, descartamos qualquer possibilidade de êxito. Ora, se desde o princípio estamos cientes da fatalidade que aguarda Ludwig, é essa mesma construção que “confere a esse drama sua dimensão trágica: sabemos que os esforços de Ludwig serão em vão”.117 O mesmo não acontece na Recherche, donde o distanciamento nesse sentido. O Narrador proustiano sofre – sofre por amor a Gilberte, à duquesa de Guermantes, a Albertine; sofre pela morte da avó; sofre pelas incertezas de sua carreira literária; sofre pelo fim de um mundo, e a lista continua –, mas não é trágico, justamente na medida em que está aberto para o movimento, para o aprendizado, o principal de sua empreitada. A tragédia, ao contrário, tem menos a ver com o sofrimento do que com a fatalidade de um destino selado. É o caso de Ludwig, que, “segundo Visconti, [...] não tem nem esperança nem escapatória”,118 ecoando a própria figura do herói da tragédia:

A tragédia [...] é por essência pessimista. A existência é nela algo de muito terrível, o homem algo de muito insensato. O herói da tragédia não se põe à prova na luta contra o destino, como presume a estética moderna, tampouco sofre o que merece. Antes cego e com a cabeça coberta, precipita-se em sua desgraça [...].119

Em suas principais edições, a Recherche se estende ao longo de cerca de 4000 páginas; e Ludwig é um filme que beira as quatro horas de duração. O tamanho

117 Tradução nossa. No original em francês: “Cette construction confère à ce drame sa dimension tragique : nous savons que les efforts de Ludwig seront vains.” SANZIO, Alain ; THIRARD, Paul-Louis. Luchino Visconti : cinéaste. Op. cit., p. 126. 118 Tradução nossa. No original em francês: “Selon Visconti, Ludwig […] n’a ni espoir, ni échappatoire.” Ibid., p. 128. 119 NIETZSCHE, Friedrich. Sócrates e a tragédia. In: A Visão dionisíaca do Mundo. Trad.: Maria Cristina dos Santos de Souza e Marcos Sinesio Pereira Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 89.

72 monumental das duas obras não é, entretanto, injustificado, mesmo que se justifique diferentemente em cada uma das duas obras. Pois se a Recherche retrata o aprendizado do Narrador em relação aos signos, como nos lembra Deleuze, sabemos que nada é mais demorado que o aprendizado, que só pode acontecer com a experiência e a repetição – um músico, para executar uma obra com uma perfeição que apesar de tudo jamais atingirá, terá passado por incontáveis horas de aprendizado. O problema é que, em Ludwig, esse aprendizado não acontece, já que ali o herói está “cego e com a cabeça coberta”. Ao invés de assistirmos às mudanças que lhe ocorreriam a partir do aprendizado de qualquer coisa que fosse, testemunhamos o acúmulo igualmente longo de um padrão que não leva a lugar algum além da intensificação de um estado primeiro permanente – repetição sobre repetição que não traz experiência, mas erosão, indo um pouco além da ideia de que “a duração é necessária pela importância do tempo enquanto assistimos à lenta decrepitude física do rei paralelamente à agonia da Baviera do antigo regime face à ascensão da burguesia”.120 Assim, em Ludwig, é como se assistíssemos repetidamente à mesma cena – com personagens e circunstâncias diferentes, é claro, mas o mesmo padrão. Compreender esse único padrão é compreender todo o resto, assim como seu desmoronamento.

A negação à mundanidade

Se em Proust os signos mundanos são onde majoritariamente se perde tempo, e esses signos, apesar de vazios, ocupam um lugar central em uma sociedade que vive de sua própria representação – pois o que mais restaria a uma aristocracia pós-monarquia e pós-império, em nada disposta a abandonar as dinâmicas sociais de outrora? –, Ludwig recusa-se à submissão aos signos mundanos, não suporta os próprios signos que o tornam e mantêm rei. A recusa de Ludwig é evidente em diversos momentos. Quando o reino da Baviera passa por uma guerra, o rei se omite, resume-se a comunicar a seu círculo mais próximo que é contra a disputa e delega todo o resto, já que a guerra é inevitável, a membros de sua equipe, sobretudo seu irmão, Otto. Quando, em plena guerra, Otto visita Ludwig para

120 Tradução nossa. No original em francês: “La durée […] est nécessitée par l’importance du temps puisque nous assistons à la lente décrépitude physique du roi et, parallèlement à l’agonie de la Bavière d’ancien régime face à la montée de la bourgeoisie.” SANZIO, Alain ; THIRARD, Paul-Louis. Luchino Visconti : cinéaste. Op. cit., p. 126.

73 falar-lhe desse assunto urgente, Ludwig nem sequer o responde. Ao contrário, Ludwig, fechado em um quarto infantil, com projeções de nuvens e móbiles planetários, aponta- lhe as nuvens. É impossível tratar de qualquer assunto que lembre seu dever como rei – exceto seu único projeto, o de patrocinar Wagner. Em certo sentido, Ludwig vive em sua própria caverna platônica – só lhe interessam as sombras e as representações (que, para ele, são a realidade), ao passo que repele a realidade do mundo. Após a conversa com o irmão, Ludwig, em um gesto bastante eloquente, fecha as cortinas que, deixando entrar a luz do sol, impossibilitavam que se continuasse a sessão de projeções.

Fig. 17: Questionado sobre a guerra, Ludwig aponta para suas falsas nuvens. Fonte: Luchino Visconti, Ludwig (1973)

Sua abjeção não é apenas um dado perceptível, mas admitido – o próprio Ludwig adia seu casamento com Sophie, embora saibamos que o motivo seja outro, alegando não poder suportar encontrar com todos os inúmeros parentes nobres espalhados pela Europa, os apertos de mão e os cumprimentos, a diplomacia e as conversinhas de salão. Cercado de conselheiros, Ludwig não pode se dizer desavisado. O Conde Dürckheim, companheiro de longa data, tenta lembrá-lo de seu papel, mas suas tentativas são frustradas. A única que parece ter algum efeito em Ludwig é a prima Elisabeth, imperatriz da Áustria, por quem, aliás, nutre uma espécie de amor infantil sobre o qual nos debruçaremos posteriormente. Se os dois reconhecem em si uma afinidade mútua, é Elisabeth quem – admitindo uma postura de igualdade enquanto evoca frequentemente certo destino e certo caráter específico da família – tentará, utilizando-se como modelo, fazer com que o rei reconheça, nas suas palavras, seu dever. Dever, aliás, baseado nesse jogo de gestos que nada refletem o interior de que Ludwig não quer abrir mão. Elisabeth deixa claro o funcionamento das

74 regras: “Quando visito um hospital, soldados feridos me aplaudem e choram. Durante visitas oficiais, sou admirada, mas querem que eu seja bela apenas para o encanto de alguém. Você terá que fazer o mesmo.” Para horror de Ludwig, Elisabeth, a pessoa em quem mais confia, é enfática ao aconselhá-lo a abandonar seu projeto wagneriano e, mais além, lembra o destino real a ser evitado: “Esqueça os sonhos de glória. Monarcas como nós não fazem história, somos apenas uma fachada. Somos esquecidos facilmente, a menos que nos concedam alguma fama ao matar-nos.” Mais uma vez, o destino trágico anunciado. Não podemos, no entanto, afirmar que Ludwig era um simples sonhador, inocente, incapaz de enxergar tudo aquilo de que era avisado. Pelo contrário, ele não se relaciona com esse mundo pois vê ali a mediocridade:

Como todos os heróis viscontianos, Ludwig recusa a escravidão da mediocridade. Manterá seu ideal e sua liberdade ao escolher a morte, escapando assim do mundo dos homens que falhara. Essa morte, conclusão fatal de todas as obras de Visconti desde O Leopardo, porque é desejada, é, contudo, uma mensagem de esperança.121

Ora, citamos anteriormente que, nas palavras de Nietzsche, o herói, “cego e com a cabeça coberta, precipita-se em sua desgraça”. De fato, o herói da tragédia não tem escolha senão aceitar sua desgraça, mas isso não desqualifica Ludwig como tal por desejar ou “escolher” sua morte: é que, para ele, não há outra opção, e seu destino é, portanto, incontornável.

Ludwig e Swann

Se é Ludwig o rei cuja prioridade é levar a obra de Wagner para seu povo e para o mundo, nada mais natural que considerar, a princípio, que o filme de Visconti se encaminhasse para um domínio maior do regime dos signos da arte. Mas, pelo contrário, a fixação de Ludwig pouco tem a ver com os signos da arte, e sim com um objetivismo

121 Tradução nossa. No original em francês: “Comme tous les héros viscontiens, Ludwig refuse l’esclavage de la médiocrité. Il gardera son idéal et sa liberté en choisissant la mort, échappant ainsi au monde des hommes qu’il avait échoué à transformer. Cette mort, conclusion fatale de toutes les œuvres depuis le Guépard qui, parce qu’elle est voulue est néanmoins un message d’espoir.” Ibid., p. 128.

75 levado ao extremo que é justamente o padrão ao qual nos referimos no início desta sessão e que, pela repetição e pelo acúmulo, levará a sua erosão física e mental. O problema de Ludwig, e que o impede de acessar qualquer outra esfera sígnica, é que ele necessariamente relaciona, a todo tempo, objetos materiais, imputando neles o seu significado – precisamente aquilo a que Deleuze chamou de objetivismo e a que já nos referimos no capítulo anterior. O padrão seguido é simples: sua mente transita exclusivamente no mundo dos heróis de contos de fadas, nos heróis wagnerianos, ponto de vista a partir do qual tudo enxerga e quer relacionar. Como projeto de vida e de governo, suas ideias podem parecer inocentes, mas o fascínio que tudo isso opera em Ludwig não é o mesmo de uma criança ao ouvir um conto de fadas. Muito mais do que isso, Ludwig acredita que no mundo dos heróis está o mundo da razão, e diz isso com suas próprias palavras. Para ele, a música e a poesia de Wagner – constituintes da ópera – “não podem existir uma sem a outra, e dessa poderosa fusão nasce uma nova linguagem que todos podem entender, em qualquer parte do mundo. Uma linguagem que pode até mesmo espalhar grandes ideias”, diz a Elisabeth. A bem da verdade, tendo sido o filme produzido décadas após a queda do Terceiro Reich, e conhecendo-se a inclinação comunista de Visconti, não é gratuito que Ludwig diga que a música de Wagner pode “espalhar grandes ideias”, ainda que não se possa dizer que o rei sabia em que isso resultaria anos depois. Voltando ao padrão de Ludwig, é a partir do mundo dos seus heróis que tudo vê e que tudo quer relacionar. O que Ludwig não consegue acomodar nesse regime é automaticamente deixado de fora, excluído de seu campo de visão e de relação. Em um de seus arroubos arquitetônicos, Ludwig ordena a construção do Palácio de Linderhof, verdadeira ode ao estilo rococó, ali levado às últimas consequências. É nesse palácio que é construída a chamada Gruta de Vênus, que, longe de qualquer funcionalismo, serve apenas ao deleite estético: uma caverna com um pequeno lago repleto de cisnes, sobre o qual flutua lentamente um pequeno barco dourado, cuja figura de proa é um pequeno Cupido. Uma profusão de flores, adornos e frufrus diante de uma enorme pintura que remete à ópera Tannhäuser, de Wagner. O importante aqui não é a clara extravagância da construção, mas seu papel. A Gruta de Vênus é a própria “caixa craniana”122 de Ludwig à qual tudo se reporta.

122 Ibid.

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Fig. 18: Elisabeth na Gruta de Vênus, representação do estado de espírito de Ludwig. Fonte: Luchino Visconti, Ludwig (1973)

Essa relação influenciará Ludwig em todos os aspectos – governante, amante ou admirador da arte. Como rei, Ludwig não se relacionará com guerras ou diplomacia, mas não é de maneira alguma inconsciente de sua posição. Agirá, como direito seu, segundo o regime monárquico: autoritariamente, mas em direções inesperadas. Como tudo o que faz, partirá de algum modelo estético ao qual se reportará. Na função de rei, parece por vezes tomar por referência justamente aquele que possivelmente foi um dos reis mais estetizados da Europa, o rei Luís XIV, da França – estetização criada, aliás, pelo próprio Luís XIV. E se o rei-sol tem Lully em Versalhes, Ludwig, por sua vez, convoca Wagner a sua corte. Versalhes, por sinal, servirá de inspiração para mais um de seus palácios injustificados, Schloß Herrenchiemsee, espécie de homenagem bávara ao palácio francês, inclusive com sua própria Galeria dos Espelhos. Da mesma maneira, os poucos que viam os reis de perto, – ocupantes dos mais altos cargos, assim como seus serviçais pessoais – fornecerão os testemunhos por meio dos quais nos são oferecidos ângulos de visão privilegiados de sua vida, tal qual Saint Simon o fez em relação à vida e à morte de Luís XIV. E, se por um lado Ludwig não quer governar, por outro, tem consciência de que somente sua posição o permite, ainda que por um tempo finito, viver regido por suas extravagâncias; motivo pelo qual é somente quando sua situação com a cúpula do governo sai do controle que Ludwig age como se estivesse em guerra, a única que poderia lhe mover: a ameaça mais que concreta de sua deposição. Mais uma vez, Elisabeth estivera certa em seus conselhos, quando o advertira de que não havia mais lugar no mundo para monarcas que visavam a glória, e que o melhor era manter-se discreto e cumprir seu dever.

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Fig. 19 e 20: Elisabeth, incrédula, na Galeria dos Espelhos erguida por Ludwig em Herrenchiemsee. Fonte: Luchino Visconti, Ludwig (1973)

No amor, tampouco se relaciona com a dinâmica amorosa de Proust, manifestando, em seu lugar, mais uma vez a repetição do padrão que tudo domina. A homossexualidade de Ludwig no filme é bastante explícita, mas sua relação com o que quer que se ligue a esse domínio obedece a uma dinâmica para a qual pouco importam as orientações sexuais. Em outras palavras, apesar de se mostrar em conflito com a própria sexualidade, trata possíveis parceiros, homens ou mulheres, da mesma forma: relacionando-se com um modelo externo. De novo, como dissemos do Aschenbach de Morte em Veneza, tudo seria mais simples se Ludwig fosse simplesmente homossexual, mas parece que, mesmo sendo homossexual, não o era simplesmente. Quando Ludwig vai à ópera e se encanta pelo protagonista, que interpretava o papel de Romeu, enche-lhe de presentes e convida-o para uma temporada em um de seus palácios. A primeira noite é um fracasso, até que um serviçal dá o conselho necessário ao ator: para agradar a Ludwig, terá que ser Romeu, e não ele mesmo. Somente quando o

78 ator encarna o papel de Romeu o rei fica satisfeito – o que não durará muito tempo, uma vez que Ludwig parece incansável, fazendo o pobre ator recitar as falas que lhe interessam até sua exaustão, quando então não interessa mais ao rei. Em outro momento, na orgia masculina em que participa o rei, é necessário que ela aconteça nos moldes de uma típica festa de taverna da Baviera, com músicas e roupas típicas – uma festa entre camaradas a princípio tão comum em qualquer conto de fadas. Curiosamente, é essencialmente nesse mesmo ambiente em que acontece a orgia embalada pelo Liebestod em Os Deuses Malditos, à exceção que, em Ludwig, não há gozo ou Liebestod algum. Quando Ludwig aceita o conselho de Elisabeth de que é necessário casar-se, isso só será possível relacionando-se não com Sophie, irmã de Elisabeth escolhida para o casamento, mas com a personagem Elsa, da ópera Lohengrin de Wagner. É nesse mesmo sentido que, quando Ludwig vê Sophie cantando ao piano, seu mau desempenho vocal parece incomodá-lo tremendamente: como poderia ser Elsa cantando daquela forma? Em certo sentido, é como se Ludwig fosse um Charles Swann disfuncional – no personagem proustiano, como vimos anteriormente, a identificação e correlação de certas figuras do mundo real com as pinturas de mestres como Vermeer e Botticelli influenciam sua boa vontade para com os seus, tal como acontece com Odette, que, quando encarna a personagem de Botticelli, se torna muito mais interessante. A diferença é que, em Swann, essas dinâmicas são esporádicas, e não regem todos os âmbitos de sua vida.

Elisabeth e os exilados de Sodoma e Gomorra

Em uma das cenas mais intrigantes do filme, temos um vislumbre da dinâmica amorosa proustiana, quando Sophie, inconsolável porque Ludwig só se refere a ela como “Elsa” e preocupada com a falta de interesse do noivo, pede conselhos à irmã Elisabeth. Com um elenco majoritariamente masculino, e Elisabeth sendo essencialmente a única mulher com quem Ludwig se relaciona de perto, essa é uma das únicas cenas em que se vê uma conversa franca entre duas mulheres, justamente sobre os signos do amor. Em Ludwig, tal qual na predição de Sansão, cada sexo está para o seu lado. Elisabeth o sabe, e aconselha a irmã: “Não acredite nas bobagens que lhe dizem. Não é a mim que você deve temer. Nem a mim nem a nenhuma outra mulher. O único perigo para Ludwig poderia ser... Isso acontece com muitos homens jovens, você sabia? Acontece com todos eles, quando são tão jovens e sensíveis. Na maioria dos casos, eles superam, se nós o ajudarmos. Tenho muito carinho por Ludwig, talvez porque sejamos tão parecidos, não

79 só fisicamente. Ele tem muitos defeitos, mas também muitas qualidades. É muito vulnerável. Você pode salvá-lo, Sophie. Você deve fazer isso, mas você terá que ser forte.” Em outras palavras, é como se Elisabeth a apontasse que, nessa esfera, é inútil dar ouvidos aos signos mundanos, porque o funcionamento é outro. Primeiro, faz menção à série de Gomorra, quando diz que não precisa ter medo nem dela nem de qualquer outra mulher, indicando uma espécie de sororidade na qual poderá sempre encontrar abrigo ou resposta. Segue, então, para a série de Sodoma. A peculiaridade da fala de Elisabeth está no fato de que considera esse fenômeno não uma exceção, mas uma regra, o estado natural: aconteceria a todos os homens quando ainda jovens e sensíveis. Tudo fica ainda mais instigante quando, logo em seguida, afirma ser bastante parecida com o primo, não só fisicamente. Como tantas outras vezes no filme, Elisabeth encontra a solução no dever: é o dever de Sophie fazer com que as séries masculina e feminina se encontrem no casamento.

Fig. 21: Cada sexo para o seu lado, em Ludwig. Fonte: Luchino Visconti, Ludwig (1973)

É verdade que a relação de Ludwig com Elisabeth parece uma das menos mediadas pelos modelos paranoicos a que o rei se reporta – ele fala, inclusive, de um amor seu pela prima. Este, por sua vez, não é nada menos que um substituto em um cenário que quer construir, como tudo o é para Ludwig. O diagnóstico vem, como sempre, de Elisabeth, que, ao contrário do primo, domina com maestria a transição entre os mundos dos signos – é ela a verdadeira aprendiz. “Você precisa de mim para lhe dar a ilusão do amor. Não é capaz de ficar sozinho. Você gostaria que eu fosse seu amor impossível para justificar sua consciência. Case-se, case-se com Sophie”, diz. E completa,

80 resumindo com precisão a questão primordial de Ludwig: “o amor também significa dever, e o seu dever é criar sua própria realidade.”

Wagner sem os signos da arte

Contrariando as expectativas, chegamos à conclusão de que Ludwig, apesar da importância do tema wagneriano na trama, não é um filme que versa sobre os signos da arte. Apesar da obsessão de Ludwig, a música de Wagner de longe não desempenha a mesma função que a música de Mahler em Morte em Veneza, que é, por excelência, o filme viscontiano sobre os signos da arte. Pelo contrário, o projeto de Ludwig para a obra de Wagner é apenas mais uma compensação no mar de ilusões em que está sempre imerso. “Sua patética amizade com ele só lhe dá a ilusão de que você criou algo importante”, diz a certeira Elisabeth. Aqui há que se notar mais um distanciamento importante de Ludwig, o personagem viscontiano, e Ludwig, o rei da Baviera. Se a este devemos alguma coisa por ter viabilizado materialmente a música de Wagner,123 fica pouco claro o que devemos ao personagem, em cuja história figura um Wagner mais sanguessuga do que artista. Por fim, e Ludwig precisa criar sua própria realidade, e jamais chega a consegui- lo, é aí que reside a incompatibilidade com os signos de Proust. Afinal de contas, o aprendizado é justamente tomar ciência das ilusões dos signos, compreendê-los e transitar por esses mundos sabendo, ou melhor, descobrindo onde se está pisando. Ludwig jamais conseguiria fazê-lo, pois, apesar de compreender que mais que frequentemente estava iludido, nunca aprende com essas ilusões, e passa de uma para a outra como se fosse sempre a primeira, um aprendiz que jamais dá o primeiro passo.

123 Cf. MEDIOLI, Enrico. In: SANZIO, Alain ; THIRARD, Paul-Louis. Luchino Visconti : cinéaste. Op. cit., p. 130. Tradução nossa: “Para além de sua tragédia, e Visconti o indica claramente, o último rei da Baviera continua a incarnar para nós um sonhador, um visionário imenso e poético. Os palácios são um testemunho disso, como também a música de Wagner, da qual o rei foi o intermediário em relação ao mundo. Sem ele, jamais teriam sido escritos Os Mestres Cantores, a Tetralogia ou Parsifal. Dívida considerável que a humanidade contraiu com Ludwig. Os treze compassos inéditos de Ludwig que abrem e encerram o filme são o testemunho póstumo, provavelmente o único, da gratidão do músico [Wagner] a seu protetor e amigo.”

81

CAPÍTULO III

82 3. Ensaios para a Recherche

Se, no segundo capítulo, nos aproximamos dos tipos de signo da Recherche mapeados por Deleuze, neste capítulo também será Deleuze quem fornecerá nosso fio condutor, desta vez por meio de seus escritos sobre cinema (Cinéma 2 – L’image-temps, 1985), no qual, em uma sequência bastante relevante para nossa pesquisa, versa sobre a filmografia de Visconti, com foco em sua filmografia tardia. Como que por coincidência, da mesma maneira que as dinâmicas proustianas se operam nas relações com quatro tipos de signos, Deleuze localiza em Visconti “quatro elementos fundamentais que o obcecavam”, e que o diretor, em sua obra, “soube a um só tempo distinguir e fazer atuar, segundo conexões variadas”.124 Elementos que, apesar de distintos, ecoam uns nos outros e formam, em sua ressonância, a estética viscontiana das narrativas que têm como protagonistas a alta sociedade, mundo ao qual Visconti pertencia e, tal como Proust, soube tão bem não somente observar, mas, sobretudo, reelaborar em sua obra – não de forma jornalística, mas fundando sua própria estética, ou estilo, questão fundamental para Proust. Esses quatro elementos a que Visconti recorre e que caracterizam sua filmografia tardia apresentam interseções importantes, como veremos, com o universo proustiano. Apesar da análise de Deleuze apresentar um caráter mais relativo aos temas viscontianos do que a certa dinâmica de signos, algumas dessas interseções, poderíamos dizer, ecoam, de certa maneira e em certo sentido, os tipos de signos da Recherche, sobretudo as esferas dos signos mundanos. O primeiro desses elementos, ou “obsessões” viscontianas, refere-se à esfera da aristocracia, seus hábitos e códigos. Nas palavras de Deleuze:

Em primeiro lugar, o mundo aristocrático dos ricos, dos antigos-ricos aristocratas: é ele que é cristalino, mas parece um cristal sintético, porque está fora da História e da Natureza, fora da criação divina. O padre de O leopardo [Il Gattopardo, Luchino Visconti, 1973] explicará: não compreendemos esses ricos, porque criaram um mundo só deles, do qual não podemos entender as leis, e onde o que nos parece secundário ou mesmo inoportuno assume uma urgência, uma importância extraordinária, por isso seus motivos sempre nos

124 DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-tempo. Trad.: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 140.

83 escampam como se fossem ritos de uma religião por nós desconhecida.125

Seria impossível, com a descrição de Deleuze, não associá-la ao mundo dos signos mundanos da Recherche, que também se caracterizam, como vimos anteriormente, por esse conjunto de leis estranhas àqueles não pertencentes a esses mundos destacados, descolados de certa realidade e que respondem a outros regimes de significação. Mundos cuja barreira, no caso da aristocracia especificamente – pois os signos mundanos referem- se não apenas a ela, mas a qualquer classe de família espiritual – é essencialmente intransponível, salvo os casos excepcionais em que um membro interno abre uma porta de acesso a um novato. Mundos fechados em si, autossuficientes, que, tal qual um castelo cercado por um fosso, apenas eventualmente ordenam que se desça a ponte levadiça e permitem a entrada do estrangeiro que, até então, nada entende, restando-lhe apenas a fabulação, como sempre, enganadora – tanto em Proust quanto em Visconti, essas fabulações sempre serão desmanchadas, pois, artificiais como as são, estão fadadas ao fracasso. É esse o primeiro elemento que Deleuze destaca em Visconti, e que se desenvolve em perfeita consonância com o universo proustiano. Se as dinâmicas operantes nesse mundo são como “ritos de uma religião por nós desconhecida”, não são nada menos que alguns dos hieróglifos a que Deleuze se referia em Proust e os signos – hieróglifos que por sua natureza precisam ser decifrados, pois manifestam-se no mundo como cifras. Na Recherche, o Narrador é admitido no círculo dos Guermantes somente por intermédio de sua amizade com o jovem marquês Robert de Saint-Loup-en-Bray, ele também pertencente à família e sobrinho do duque e da duquesa. Tal qual a explicação do padre de O Leopardo, apenas com sua inclusão nesse círculo que o Narrador poderá, aos poucos, compreender as leis a que estão submetidos, leis incompreensíveis aos de fora. Se esse mundo está “fora da criação divina”, é tão somente porque, naquele contexto e para os que o veem de fora, divina seria a própria aristocracia – ou, melhor dizendo, assim ela se representa, em um jogo de mundanidade cujo único objetivo é reforçar o abismo entre o dentro e o fora, entre quem é recebido e quem não é. De fato, antes de travar conhecimento com os Guermantes, tudo que lhes dizia respeito era, para o Narrador, mítico e indecifrável – é pelas lentes do divino e do incompreensível que descreve o

125 Ibid.

84 camarote da princesa e seus convidados (tritões, sereias e monstros marítimos), quando vai assistir a uma apresentação da Berma no teatro:

No momento em que começava a segunda peça, olhei para o camarote da sra. de Guermantes. Essa princesa, com um movimento gerador de uma linha deliciosa que meu espírito prosseguia no vazio, acabava de voltar a cabeça para o fundo do camarote; os convidados estavam de pé, também voltados para o fundo, e eis que, entre a dupla fileira que eles formavam, em toda a sua segurança e grandeza de deusa, mas com uma doçura desconhecida, que se devia à afetada e sorridente confusão de chegar tão tarde e fazer levantar todo mundo no meio da representação, entrou, toda envolta em brancas musselinas, a duquesa de Guermantes. Dirigiu-se diretamente para sua prima, fez uma profunda reverência a um jovem louro que estava sentado em frente e, voltando-se para os monstros marinhos e sagrados que flutuavam no fundo do antro, deu àqueles semideuses do Jockey-Club – os homens que eu mais desejaria ser – um boa-tarde familiar de velha amiga, alusão ao dia-a-dia de suas relações com eles desde quinze anos atrás. Eu sentia o mistério, mas não podia decifrar o enigma daquele olhar sorridente que ela dirigia aos amigos, no fulgor azulado com que brilhava, enquanto abandonava a mão a uns e outros e que, se eu pudesse decompor-lhe o prisma, analisar-lhe as cristalizações, talvez me tivesse revelado a essência da vida desconhecida que nela transparecia em tal momento.126

Sabemos que a perpetuação desse prisma só é possível com a manutenção do distanciamento – é isso que, em Morte em Veneza, poupa da dessacralização a mãe de Tadzio, ela também com suas “musselinas brancas”, e, na lógica inversa, revela a decadência da família von Essenbeck e do rei Ludwig. Se, por um lado, o Narrador da Recherche lembra que, quando criança “o nome dos Guermantes (quando passava muito tempo sem vê-los) resumia para mim o feudalismo”, 127 época em que “pareciam inacessíveis os misteriosos Guermantes”,128 o mesmo Narrador dirá, em uma verdadeira mudança de perspectiva, proporcionada apenas pela elaboração, o passar dos anos e o convívio com o referido núcleo familiar e seus convivas, que “vira nobres tornarem-se vulgares de maneiras, porque seu espírito (como por exemplo o do duque de Guermantes) era vulgar”.129 Esse processo de decomposição – escolha de palavras aliás mais que certeira, na passagem do teatro, quando o Narrador fala na possibilidade de “decompor- lhe o prisma” (“décomposer le prisme”), pois é justamente a decomposição de um mito

126 PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Op. cit., pp. 47-48. 127 Id., O tempo redescoberto. Op. cit., p. 162. 128 Ibid., p. 165. 129 Ibid., p. 187.

85 que lhe traria a decifração desse prisma – é o segundo elemento viscontiano a que Deleuze se refere, inerente ao mundo aristocrático:

Em segundo lugar, porém, esses meios cristalinos são inseparáveis de um processo de decomposição que os solapa de dentro, e os torna sombrios, opacos [...]. Não é somente que esses aristocratas estejam sendo arruinados; a ruína que se aproxima é apenas uma consequência. É que um passado desaparecido, mas que sobrevive no cristal artificial, espera por eles, os aspira, traga, retirando-lhes toda a força ao mesmo tempo que eles se embrenham nele.130

Assistimos a esse fenômeno nitidamente em Os Deuses Malditos e em Ludwig – a ruína social e moral está sempre à espreita, por diferentes frentes, e sua chegada é inevitável. Contudo, apesar de não configurar em nosso corpus principal, não podemos deixar de mencionar O Guepardo, que é a obra viscontiana sobre a decadência da aristocracia por excelência: “A decadência, que a burguesa madame Verdurin promovida a Guermantes encarna, tornando-se detentora de um nome sagrado que comporta o brilho de uma nobreza encantada, é um dos temas de predileção de Visconti.”131 Se mais uma vez nos utilizarmos da imagem do castelo, que caracteriza o isolamento dos círculos aristocráticos, a imagem é clara também no elemento da decomposição, visto que o único destino possível para um castelo murado, confinado, é o próprio definhamento, degradação interior – tal qual as famílias fragilizadas por sucessões de casamentos incestuosos, outrora tão comuns em algumas das principais casas reais europeias, que, ao invés de fortalecer e manter determinada linhagem imemorial, acabavam por debilitá-las. Na Recherche, seguindo na mesma cena do teatro que lemos anteriormente, o Narrador se refere a essa mesma “ruína que se aproxima”, assim como à atmosfera de inércia ante a derrocada, quando, sobre a sra. de Cambremer, escreve que:

Talvez o lugar desta última não fosse numa sala onde era apenas com as mulheres mais brilhantes do ano que os camarotes (e até os mais altos, que de baixo pareciam grandes cestos cheios de flores humanas e ligadas à abóbada da sala pelas rédeas vermelhas de suas separações de veludo) compunham um panorama efêmero que as mortes, os escândalos, as doenças, os rompimentos modificariam em breve, mas

130 DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-tempo. Op. cit., p. 141. 131 Tradução nossa. No original em francês: “La décadence, qu’incarne la bourgeoise Mme Verdurin promue Guermantes, et devenant détentrice d’un nom sacré qui contient les miroitements d’une noblesse enchantée, est un des thèmes de prédilection de Visconti.” COLOMBANI, Florence. Proust-Visconti : Histoire d’une affinité élective. Op. cit., p. 107.

86 que naquele momento estava imobilizado pela atenção, o calor, a vertigem, a poeira, a elegância e o tédio, nessa espécie de instante eterno e trágico de inconsciente espera e de calmo embotamento que, retrospectivamente, parece ter precedido a explosão de uma bomba ou a primeira chama de um incêndio.132

Mais uma vez, nos reportamos a O Leopardo, onde observamos uma cena essencialmente idêntica, mas em cenários diferentes. Em vez do teatro, a família do príncipe de Salina, da aristocracia siciliana, assiste à missa separada da plebe em uma igreja católica – empoeirada, anacrônica, sem lugar, à beira do colapso.

Fig. 22: O príncipe de Salina e sua família assistem à missa em O Leopardo. Fonte: Luchino Visconti, Il Gattopardo (1963)

Isolados e em poucos números, curiosamente esse é um modo de vida que persevera por meio da inércia. Se não estão submetidos às mesmas leis dos homens, e são eles as próprias divindades, não teriam nada a temer. O problema, para eles, é que tudo isso se resume à mais pura representação, e, por mais que decidam fechar os olhos para o mundo que está em constante mudança, a História se encarregará de arrastá-los à força. É bem verdade que, no mundo real, muitas, se não a maior parte, das grandes fortunas continuam nas mãos das mesmas famílias de séculos atrás,133 mas não é a isso que Proust

132 PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Op. cit., p. 49. 133 BARONE, Guglielmo; MOCETTI, Sauro. Intergenerational mobility in the very long run: Florence 1427-2011. Bank of Italy – Temi di Discussione (Working Paper), n. 1060, abr. 2016. DOI: 10.2139/ssrn.2856359.

87 ou Visconti se referem: não se trata de dinheiro, mas de uma subjetividade, de valores e códigos que não terão mais lugar; é a sra. Verdurin promovida a Guermantes. É nesse sentido que Deleuze localiza no uso da História o terceiro elemento viscontiano:

O terceiro elemento de Visconti é a História. Pois, é claro, ela duplica a decomposição, a acelera ou mesmo explica: as guerras, a ascensão de novas potências, a emergência de novos-ricos, que não se propõem a devassar as leis secretas do velho mundo, mas a fazê-lo desaparecer. A História, no entanto, não se confunde com a decomposição interna do cristal, que é um fator autônomo que vale por si mesmo, e ao qual Visconti ora dedica imagens esplêndidas, ora confere uma presença ainda mais intensa por ser elíptico e estar no fora de campo. [...] Ela é percebida de viés, em uma perspectiva rasante, sob um raio nascente ou poente, uma espécie de laser que vem cortar o cristal, desorganizando sua substância, apressar o seu escurecimento, dispersar suas faces, sob uma pressão ainda mais forte na medida em que é exterior, como a peste em Veneza, ou a chegada silenciosa dos SS ao amanhecer...134

A História em Visconti desempenha um papel tangente à narrativa. Não ocupa o papel de protagonista, mas, como aponta Deleuze, ela está sempre se esgueirando, se infiltrando na narrativa; não objetivamente, mas nas transformações subjetivas a que estão sujeitos seus personagens, viventes da História tal como o são. Em Ludwig, vimos que nada se mostra das guerras contra a Prússia ou contra a França, ocorridas durante o reinado do protagonista. Em vez disso, assistimos à fuga e a à negação de Ludwig a tudo que diz a esse respeito. Assistimos ao efeito subjetivo que a História opera em um personagem específico; testemunhamos não os grandes eventos, mas as operações subjetivas que engendram. Por outro lado, se em Os Deuses Malditos somos confrontados com o evento da Noite das Facas Longas, “a chegada silenciosa dos SS ao amanhecer”, a sequência é sobretudo um elemento constitutivo das circunstâncias que contribuem para a derrocada familiar dos von Essenbeck no contexto da ascensão do nazismo na Alemanha; a tragédia da História como que realocada na tragédia familiar, sem que isso jamais recaia em “familismo”. Em Proust, são dois os principais acontecimentos históricos que permearão a narrativa: o Caso Dreyfus e a Primeira Guerra Mundial (à época chamada de “a Grande Guerra”, “la Grande Guerre”).

134 DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-tempo. Op. cit., pp. 141-142.

88 No que se refere ao Caso Dreyfus, o cenário não era diferente de tantos outros momentos de histeria e polarização onde não se admitia qualquer tipo de meio-termo; era-se contra ou a favor de Dreyfus, sem que houvesse qualquer opção entre esses dois polos. O falatório por toda a França chega, em dado momento, ao mundo dos salões, onde cada um emitirá sua opinião, de preferência em concordância com a de seus colegas de salão. Apesar da seriedade do caso, muitas vezes o Affaire era tratado como assunto corriqueiro, cômico até, sobretudo quando o interlocutor era o excêntrico barão de Charlus, que, como nota Motta: “É dele que vêm as melhores cenas envolvendo o Affaire Dreyfus. Tudo se passa como se o Caso Dreyfus precisasse de um histrião à altura de sua inverossimilhança para ser contado.”135 O Affaire, no entanto, é um ponto essencial no aprendizado do Narrador em relação aos Guermantes, pois é um dos momentos em que começa a se quebrar o encanto que o desconhecimento possibilitava:

O Caso Dreyfus quebrara o encantamento do caminho de Guermantes. Proust via seus amigos despojados da aura de poesia com que ele próprio os revestira: uma duquesa não passava de uma mulher comum usando uma tiara; um duque era apenas um burguês com um grau exagerado de altivez ou afabilidade.136

Mas talvez nenhum posicionamento em relação ao Caso Dreyfus na Recherche seja mais detestável que o de Odette e Gilberte. A primeira, apesar de casada com o judeu Swann, faz coro com os antidreyfusistas para ser admitida nesse ou naquele círculo aristocrático – “Não quero que minha mãe me apresente à sra. Swann. [...] É uma antiga prostituta. Seu marido é judeu e ela nos impinge nacionalismo”,137 diz eventualmente Saint-Loup – ao passo que Gilberte, filha de Swann, vai além. Após a morte do pai e do casamento de Odette, então viúva, com Forcheville, Gilberte adota por vontade própria o sobrenome do padrasto e rompe todo e qualquer tipo de laço com a memória do bom pai que fora Swann. Em conversa com Oriane de Guermantes, surge inesperadamente o nome de Lady Israel, tia-avó de Gilberte:

135 MOTTA, Leda Tenório da. Proust: a violência sutil do riso. Op. cit., p. 170. 136 PAINTER, George D. Marcel Proust: Uma Biografia. Trad.: Fernando Py. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1985. p. 254. 137 PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Op. cit., p. 237.

89 [...] E, voltando-se para Gilberte: — Eu não saberia mesmo explicar- lhe de quem se trata. Certamente você não a conhece... Chama-se lady Rufus Israel. Gilberte ficou muito vermelha: — Não conheço — disse ela (o que era tanto mais falso quanto lady Israel, dois anos antes da morte de Swann, se reconciliara com ele, e chamava Gilberte pelo prenome) — mas sei muito bem, por outras pessoas, quem é a pessoa a quem a senhora se refere. É que Gilberte se tornara muito esnobe. Assim, perguntando-lhe uma jovem, certo dia, por maldade ou falta de tato, qual era o nome de seu pai, não o adotivo mas o verdadeiro, perturbada e para desfigurar um pouco o que tinha a dizer, ela pronunciara, em lugar de Swann, Svann — mudança que, logo depois, percebeu ser pejorativa, pois fazia desse nome de origem inglesa um nome alemão. E acrescentou mesmo, aviltando-se, para realçar-se: — Contaram uma porção de coisas a respeito de meu nascimento, mas eu prefiro ignorar tudo.138

Tudo toma ares ainda mais absurdos quando sabe-se que justamente Saint-Loup – defensor da igualdade e da democracia, amigo de artistas de vanguarda e outrora apaixonado por Rachel, atriz e prostituta judia (e cuja segunda profissão se negava a enxergar) – acaba por viver um casamento infeliz com a esnobe Gilberte Forcheville, traindo-a compulsivamente com o violinista Morel e outros homens. Quanto à Primeira Guerra, muito embora em Proust “estejamos longe dos horrores dos campos de batalha da Grande Guerra”,139 o evento “é muito mais que um episódio na Recherche. É a causa de mudanças profundas concernentes não apenas à temática, mas também à composição e a estrutura do romance”.140 Nesse sentido, é sobretudo nas figuras do Narrador e de Charlus que se operam e se observam as principais mudanças em decorrência da guerra. Com ela, uma nova ordem social e moral é estabelecida. Roloff, em seu artigo La guerre dans la perspective de Charlus et du Narrateur retoma Barthes, que, certeiro, resume: quanto à guerra, “a

138 PROUST, Marcel. A Fugitiva. Trad.: Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. rev. por Olgária Chaim Féres Matos e Pierre Clémens. São Paulo: Globo, 2003. p. 158. 139 Tradução nossa. No original em francês: “ Chez Proust, on est loin des horreurs des champs de bataille de la Grande Guerre.” FELTEN, Uta. Proust, archéologie de la Grande Guerre. Revue d’études proustiennes : Le « temps retrouvé » de 1914. Sous la direction d’Uta Felten. 2016-1, nº3. Paris : Classiques Garnier, 2016. p. 11. 140 Tradução nossa. No original em francês: “La guerre […] est beaucoup plus qu’un episode dans la Recherche. C’est la cause de changements profonds qui concernent non seulement la thématique, mais aussi la composition et la structure du roman.” ROLOFF, Volker. La guerre dans la perspective de Charlus et du narrateur. Revue d’études proustiennes : Le « temps retrouvé » de 1914. Sous la direction d’Uta Felten. 2016-1, nº3. Paris : Classiques Garnier, 2016. p. 42.

90 inversão – como forma – invade toda a estrutura da Recherche [...], há uma pandemia da inversão, da derrocada”.141 Da parte do Narrador, somos confrontados com suas observações sobre os costumes, a moral e a própria cidade de Paris. Quando sai de casa, à noite, percebe, nos restaurantes lotados, que aqueles que de alguma maneira conseguiram escapar dos fronts agem como se nada estivesse acontecendo. Essa visão, em contraste com a dos soldados de folga, misturados aos dispensados, mas que sabem que, em poucos dias, poderão morrer, lhe causam um grande impacto142:

À hora do jantar os restaurantes se enchiam, e se, passando pela rua, eu via algum pobre soldado de folga, livre por seis dias do riso permanente de morte mas prestes a voltar às trincheiras, pousar um instante os olhos nas vitrinas iluminadas, sofria como no hotel de Balbec, quando os pescadores nos espiavam ao jantar, mais ainda, porém, pois sabia a miséria do soldado maior do que a do pobre, porque compreende todas as misérias, e mais comovente, porque mais resignada, mais nobre, e conhecia o filosófico balancear de cabeça com o qual sem ódio, pronto a tornar aos combates, observava, vendo os embusqués [*] acotovelarem-se à procura de mesas: “Por aqui, nem parece que há guerra”.143

É nesse sentido que “as mudanças causadas pela guerra têm influência na moral, na linguagem e nas emoções; são signos precursores da metamorfose que atingirá toda a sociedade, os protagonistas da Recherche e também as lembranças de Combray”.144 Segundo Roloff, o efeito da guerra sobre o Narrador está sobretudo ligado ao medo de morrer e à reconsideração de sua empreitada literária, então deixada de lado:

141 Tradução nossa. No original em francês: “L’inversion – comme forme – envahit toute la structure de La Recherche […], il y a une pandémie de l’inversion, du renversement.” BARTHES, Roland. Une idée de recherche. In: BARTHES, Roland et alii. Recherche de Proust. Paris : Seuil, 1980. pp. 36-37. 142 ROLOFF, Volker. La guerre dans la perspective de Charlus et du narrateur. Revue d’études proustiennes : Le « temps retrouvé » de 1914. Op. cit., p. 43. 143 PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Op. cit., p. 44. [*] “Nota do tradutor: Civis que, durante uma guerra, conseguiram evitar a mobilização.” 144 Tradução nossa. No original em francês: “Les changements causés par la guerre ont de l’influence sur la morale, le langage et les émotions ; ce sont des signes précurseurs de la métamorphose qui va atteindre toute la société, les protagonistes de la Recherche et aussi les souvenirs de Combray.” ROLOFF, Volker. La guerre dans la perspective de Charlus et du narrateur. Revue d’études proustiennes : Le « temps retrouvé » de 1914. Op. cit., p. 43.

91 O acontecimento mais importante para o narrador é a cena seguinte, seu retorno pelas ruas completamente escuras e seu medo de ser morto pelas bombas. A partir desse momento, ele decide escrever seu romance, após tantos anos de indiferença, de “falta de vontade”. Ele se lembra da leitura das Mil e uma noites, das histórias de Harun al-Raschid, de Zobeida e sobretudo de Sherazade, que – ela também – tem medo de morrer.145

Assim, confrontado com o medo de morrer e ciente de que o mundo da infância em Combray já não existia, se opera essa que é a principal transformação do narrador face às vicissitudes da guerra. Do outro lado do espectro apresentado por Roloff está o de Charlus, para quem a guerra se desdobrará em relações com a perversão sexual. Se a guerra surge na Recherche em O Tempo Redescoberto, sabemos das inclinações de Charlus desde as maravilhosas páginas de abertura de Sodoma e Gomorra, em que o Narrador narra um encontro secreto entre Charlus e Jupien, que vem a testemunhar ocasionalmente. Contudo, “a guerra muda a situação, tem a função de desmascarar as caricaturas, de mostrar o teatro de uma sexualidade que contém, como a guerra, elementos de crueldade e de violência”.146 Esses elementos referem-se, claramente, a outra descoberta do Narrador, mais uma vez no lugar certo e na hora certa – no bordel masculino comandado por Jupien, o Narrador escreve:

Subitamente, num aposento isolado no fim de um corredor, pareceu-me ouvir gemidos abafados. Caminhei célere nessa direção e colei a orelha à porta. “Eu imploro, graça, graça, piedade, solte-me, não me maltrate tanto”, suplicava uma voz. “Beijo-lhe os pés, humilho-me, prometo não recomeçar. Tenha dó de mim!” “Não, crápula”, retrucava outra voz, “e já que te pões a berrar e a ajoelhar-te, vamos amarrar-te na cama, nada de piedade”, e ouvi estalar uma chibata, provavelmente eriçada de pregos, pois seguiu-se um uivo de dor. Então notei na parede do quarto uma clarabóia lateral, sobre a qual se haviam esquecido de correr a cortina; caminhando pé ante pé, no escuro, esgueirei-me até a abertura, por onde, amarrado a uma cama, como Prometeu a seu rochedo, açoitado por Maurice, com uma chibata efetivamente armada de pregos,

145 Tradução nossa. No original em francês: “L’événement le plus important pour le narrateur est la scène suivante, son retour dans les rues entièrement noires, et sa peur d’être tué par les bombes. Dès ce moment, il est décidé à écrire son roman, après tant d’années d’indifférence, de « manque de volonté ». Il se souvient de la lecture des Mille et une Nuits, des histoires de Haroun Al Raschid, de Zobéide et surtout de Schéhérazade qui – elle aussi – a peur de mourir.” Ibid., p. 52. 146 Tradução nossa. No original em francês: “La guerre change la situation, elle a la fonction de démasquer les travestissements, de montrer le théâtre d’une sexualité qui contient, comme la guerre, des éléments de cruauté et de violence.” Ibid., p. 46.

92 já todo ensanguentado e coberto de equimoses, prova de que este suplício não era o primeiro, avistei a minha frente o sr. de Charlus.147

Roloff estabelece um interessante paralelo entre mundos subterrâneos outros e o bordel de Jupien. Na guerra, a igreja de Combray fora quase completamente destruída, restando-lhe apenas as alas subterrâneas, a cripta, suas “alas mais obscuras”.148 Da mesma forma, o autor lembra que Charlus, em dado momento, comenta que, dentre as ruínas de Pompéia, sobraram as inscrições que indicavam “Sodoma, Gomora”.149 Em certo sentido, é como se, quaisquer que fossem as dinâmicas do mundo exterior e apesar delas, o mundo subterrâneo permanecesse sempre o mesmo, desde os tempos bíblicos, e que, nesses mundos subterrâneos, pelos motivos mais claros, é que se davam os acontecimentos que deviam ser mantidos longe dos olhos do público. Curioso é imaginar o porquê de tudo isso acontecer, na Recherche, justamente no período da guerra. No caso de Charlus, é uma tentativa de atingir sua “forma primitiva”, 150 na explicação dada pelo próprio Narrador, como aponta Roloff:

“Enquanto não se transforma”, retorqui a Jupien, “esta casa é o oposto, é pior do que um hospício, pois nela expõe-se, reconstitui-se, exibe-se a loucura dos alienados; um verdadeiro pandemônio. Julguei, como o califa das Mil e uma noites, ter chegado na hora precisa para socorrer um homem espancado, e foi outro conto das Mil e uma noites que vi realizar-se diante de mim, o da mulher transformada em cadela, que se deixa voluntariamente açoitar, a fim de recuperar a forma primitiva.”151

Seja por um motivo ou por outro, tanto em Proust quanto em Visconti as cenas mais “sórdidas” estão sempre vinculadas a acontecimentos externos, por mais que se operem nos meios mais exclusivos e obscuros – o bordel secreto de Jupien; a orgia de Ludwig, em seu cenário montado, onde somente os seus tinham acesso; ou mesmo a taverna da orgia ritualística de Os Deuses Malditos, que, se no começo da sequência era uma taverna comum, que incluía também as mulheres que ali trabalhavam, quando o tom da cena muda e começa a verdadeira orgia, adquire ares de isolamento. No primeiro, a

147 PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Op. cit., p. 104. 148 ROLOFF, Volker. La guerre dans la perspective de Charlus et du narrateur. Revue d’études proustiennes : Le « temps retrouvé » de 1914. Op. cit., p. 49. 149 Ibid., p. 47. 150 Ibid., p. 48. 151 PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Op. cit., p. 118.

93 Primeira Guerra; no segundo, a lenta derrocada de Ludwig e a instabilidade política que culminaram no fim da monarquia na Baviera; no terceiro, a Noite das Facas Longas. Finalmente, o quarto e último elemento viscontiano a que Deleuze se refere é o tempo, mais especificamente o tempo do “tarde-demais”:

E depois há o quarto elemento, o mais importante em Visconti, porque garante a unidade e a circulação dos outros. É a ideia, ou melhor, a revelação de que algo chega tarde demais. Chegando a tempo, talvez pudesse evitar a decomposição natural e a desagregação histórica da imagem-cristal. Mas é a História, e a própria natureza, a estrutura do cristal, que fazem com que esse algo não possa chegar a tempo. [...] Esse algo que chega tarde demais é sempre a revelação sensível e sensual de uma unidade da Natureza e do Homem. Por isso não é uma simples carência, é o modo de ser dessa revelação grandiosa. O tarde- demais não é um acidente que se dá no tempo, é uma dimensão do próprio tempo. Como dimensão do tempo é a que se opõe, através do cristal, à dimensão estática do passado tal como este sobrevive e pesa no interior do cristal. É uma claridade sublime que se opõe ao opaco, mas que se caracteriza por chegar tarde demais, dinamicamente. Como revelação sensível, o tarde-demais se refere à unidade da natureza e do homem, enquanto mundo ou meio. Mas, como revelação sensual, a unidade se faz pessoal.152

A questão do tempo, central tanto em Proust quanto em Visconti, se verá bastante consonância entre as respectivas obras de um e de outro, apesar dos diferentes desdobramentos que ocorrerão na obra de Visconti. Porque o tarde-demais não é nada menos que trágico – ele está presente em Os Deuses Malditos e em Ludwig. Não há salvação para Martin nem Ludwig, cada um fora tragado pelas forças que lhes foram destinadas – a captura pela subjetividade nazista e o teatro do Édipo em um; a loucura e a cegueira no outro. Mas, se queremos identificar essa interseção na dimensão temporal de Visconti e Proust, devemos nos ater ao exemplo de Morte em Veneza. Diferentemente de Os Deuses Malditos e Ludwig, como vimos anteriormente, há tempo – apesar de mínimo – para que a operação dessa revelação ocorra. É claro que, de certa maneira, ela vem tarde demais, a tempo apenas de que Aschenbach se aperceba dela antes de sua própria morte, mas ela existe e está lá, ainda que durante um breve momento:

Em raros momentos, parece possível que esse processo de dissolução seja suspenso. Que esse mundo artificial se conecte com a natureza e a história, como quando o velho príncipe dança com a noiva de seu

152 DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-tempo. Op. cit., pp. 142-143.

94 sobrinho e os dois trocam olhares amorosos em O Leopardo, ou quando Aschenbach tem a visão da beleza sensual no adolescente Tadzio em Morte em Veneza.153

Em Proust, enquanto todos estiverem imersos na mundanidade, e isso vale também para os personagens viscontianos, o passar do tempo será implacável. O melhor exemplo, na Recherche, é a matinée na casa da princesa de Guermantes – após um salto temporal, estipula-se, de cerca de dez anos seguidos do fim da Primeira Guerra154 – durante a qual o Narrador, logo após finalmente decidir lançar-se à escritura de seu romance, se surpreende com a súbita passagem do tempo, ao ter dificuldade em reconhecer os convidados ali presentes, seus antigos conhecidos (e vice-versa):

Com efeito, apenas entrei na sala principal, e não obstante já estar, a essa altura, bem firme em mim o projeto recém-formado, um coup de théâtre se produziu, que levantaria contra meus planos a mais séria das objeções. [...] No primeiro instante, não entendi por que vacilava em reconhecer o dono da casa, os convidados, por que me pareciam todos trazer a caráter as cabeças, em regra empoadas, que inteiramente os modificavam.155

A cena é clara: “As criaturas de Proust são, portanto, vítimas desta circunstância e condição predominante: o Tempo”156 – inclusive o próprio Narrador. De fato, em Proust, apenas por meio da arte o tempo será redescoberto, quando, na rememoração, por meio da escrita, o passado atualiza o presente:

Ora, se a atualidade do Narrador e a inatualidade do herói, assumidas de um só fôlego, refazendo Xerazade, com suas variações infinitas em torno de um centro vazio, falam das possibilidades do gênero romance na tardividade, e o ironizam assim, elas circunscrevem também o verdadeiro tempo proustiano, o único aqui possível: o tempo da escritura, o presente.157

153 Tradução nossa. No original em inglês: “In rare moments, it does seem possible that this process of dissolution might be suspended, that this artificial world might be connected to nature and history, as when the old prince dances with his nephew’s fiancée and the two exchange glances of love in The Leopard, or when Aschenbach has his vision of sensual beauty in the adolescent Tadzio in Death in Venice.” BOGUE, Ronald. Deleuze on Cinema. New York; London: Routledge, 2003. p. 131. 154 Cf. cronologia para a Recherche apresentada em: GENETTE, Gérard. Figuras III. Op. cit., p. 157. 155 PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Op. cit., p. 191-192. 156 BECKETT, Samuel. Proust. Trad.: Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 157 MOTTA, Leda Tenório da. Lições de literatura francesa. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 110.

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Parece-nos, então, que a diferença fundamental não é tanto na concepção do tarde- demais, mas na oportunidade que se tem de agarrar-se à revelação que chega – o que acontece mais escassamente em Visconti e, em Proust, o Narrador atinge. É nesse ponto que os dois convergem: “Visconti é como Proust, que enxerga todo paraíso como necessariamente perdido, uma vez que só pode ser alcançado após ter acontecido, mas que encontra acesso por meio da arte a um temps retrouvé.”158

158 Tradução nossa. No original em inglês: “Visconti is like Proust, who views every paradise as necessarily lost since it can be grasped only after it has happened, but who finds access through art to a temps retrouvé.” BOGUE, Ronald. Deleuze on Cinema. Op. cit., p. 131.

96 FILMOGRAFIA SELECIONADA DE LUCHINO VISCONTI

Il Gattopardo (1963) Título em português: O Leopardo Direção: Luchino Visconti Roteiro e diálogos: Suso Cecchi D’Amico, Pasquale Festa Campanile, Massimo Franciosa, Enrico Medioli e Luchino Visconti, baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa Elenco: Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale, Paolo Stoppa, Rina Morelli, Romolo Valli, Leslie French, Ivo Garrani, Serge Reggiani, Lucilla Morlacchi, Mario Girotti, Pierre Clementi, Ottavia Piccolo Produção: Goffredo Lombardo (Titanus)

La caduta degli dei (1969) Título em português: Os Deuses Malditos Direção: Luchino Visconti Roteiro e diálogos: Nicola Badalucco, Enrico Medioli e Luchino Visconti Elenco: Dirk Bogarde, Ingrid Thulin, Helmut Griem, Helmut Berger, Renaud Verley, Umberto Orsini, René Koldehoff, Albrecht Schönhabs, Florinda Bolkan, Nora Ricci, Charlotte Rampling, Howard N. Rubien Produção: Alfredo Levy e Ever Haggiag (Prasidens Films), Pegaso, Italnoleggio e Eichberg Film

Morte a Venezia (1971) Título em português: Morte em Veneza Direção: Luchino Visconti Roteiro e diálogos: Luchino Visconti e Nicola Badalucco, baseado no romance Der Tod in Venedig de Thomas Mann Elenco: Dirk Bogarde, Silvana Mangano, Björn Andresen, Romolo Valli, Nora Ricci, Mark Burns, Marisa Berenson, Carol André, Leslie French, Sergio Garfagnoli, Ciro Cristofoletti, Antonio Apicella, Bruno Boschetti, Franco Fabrizi, Dominique Darel, Masha Predit Produção: Mario Gallo (Alfa Cinematografica) e Productions Cinématographiques Françaises

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Ludwig (1973) Título em português: Ludwig Direção: Luchino Visconti Roteiro e diálogos: Luchino Visconti e Enrico Medioli e Suso Cecchi d’Amico Elenco: Helmut Berger, Trevor Howard, Romy Schneider, Silvana Mangano, Gert Fröbe, Helmut Griem, Isabella Telezynska, Umberto Orsini, John Moulder Brown, Sonia Petrova, Folker Buhnet, Heinz Moog, Adriana Asti, Marc Porel, Nora Ricci, Mark Burns, Maurizio Bonuglia Produção: Mega Film, Cinetel, Dieter Geissler Film Produktion e Divina Film

98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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102 APÊNDICE

A Recherche de Visconti

No final da década de 1960 e começo da década de 1970, Luchino Visconti começa a trabalhar, paralelamente à produção da trilogia alemã, em sua adaptação de Em busca do tempo perdido. Infelizmente, como sabemos, o projeto jamais seria concretizado, apesar dos contratos de produção assinados e a pré-produção em estado avançado.159 Dos documentos reminiscentes do projeto, os mais significativos são o roteiro elaborado por Visconti e Suso Cecchi D’Amico160 e as fotografias de Claude Schwartz,161 que acompanhou Visconti enquanto pesquisava possíveis cenários para o filme. Dos cenários visitados, Schwarz aponta o Faubourg Saint-Germain; os 8º, 16º e 17º arrondissements de Paris; o Marais; as cidades de Bayeux e Cabourg, na Normandia; e os châteaux de Ferrières, Champs-sur-Marne e Marnes-la-Coquette.162 Segundo Sanzio, quanto ao elenco, os planos indicavam Silvana Mangano como a duquesa de Guermantes; Alain Delon como Marcel; Helmut Berger como Morel e Marlon Brando como Charlus; além de, possivelmente, Simone Signoret como Françoise; Edwige Feuillère como a sra. Verdurin e Greta Garbo como a Rainha de Nápoles. O autor destaca ainda que era a intenção de Visconti que Albertine fosse interpretada por uma atriz desconhecida.163 Diante da tarefa de levar para o cinema a obra monumental de Proust e ciente da impossibilidade de produzir um filme no estilo de Proust, Visconti opta, para sua adaptação, por um recorte bastante específico, ao deixar de lado o primeiro e o último volumes da Recherche. Em uma entrevista de 1971, realizada durante o Festival de Cannes, que exibia Morte em Veneza, o diretor conta, a respeito de seu projeto:

Não farei uma transposição literária. É claro que há coisas que se perderão, uma espécie de musicalidade proustiana. Mas, por outro lado,

159 KRAVANJA, Peter. Visconti lecteur de Proust. Arles : Portaparole, 2017. p. 8. 160 Cf. VISCONTI, Luchino; D’AMICO, Suso Cecchi. À la recherche du temps perdu : scénario d’après l’œuvre de Marcel Proust. Paris: Persona, 1984. 161 Cf. SCHWARTZ, Claude. Luchino Visconti à la recherche de Proust. Textes : Jean-Jacques Abadie. Paris : Editions Findakly, 1996. 162 Ibid. 163 SANZIO, Alain. Note de l’éditeur. In: VISCONTI, Luchino; D’AMICO, Suso Cecchi. À la recherche du temps perdu : scénario d’après l’œuvre de Marcel Proust. Op. cit., p. 10.

103 acredito que posso, com uma imagem, penetrar nessa espécie de labirinto profundo de Proust, para explicar um sentimento, uma posição, uma atitude, uma tristeza, um momento de ciúmes. Espero que o cinema possa me consenti-lo. Mas não tentarei refazer um estilo proustiano: isso seria pretencioso.164

E, sobre a linha narrativa que serve como fio condutor do roteiro:

Meu filme será a pintura de uma sociedade – exatamente como em Balzac o foi a sociedade da Restauração., aqui será a sociedade do fin de siècle. De fato, minha construção do filme de Proust começa em À sombra das raparigas em flor e termina no começo da guerra de 14. Não há nem mesmo O tempo redescoberto; há esse bloco central que é a pintura de uma sociedade francesa daquela época.165

Ao abrir mão de No caminho de Swann e O tempo redescoberto, se afasta da questão fundante da Recherche, que é a escritura. De fato, poucas vezes é sequer mencionado o fato de que o protagonista Marcel é um aspirante a escritor. Visconti parece, com isso, ter deixado seus exercícios sobre a criação artística reservados para Morte em Veneza, que, como vimos, é o filme viscontiano sobre os signos da arte por excelência. Por outro lado, a Recherche de Visconti se aproxima como nenhum outro filme seu dos signos do amor em Proust, envoltos em mentira, ciúmes e homossexualidade – temas que assumirão o protagonismo do roteiro, que foca nas relações entre Marcel e Albertine, Charlus e Morel e Saint-Loup e Rachel, nas quais dão o tom a intriga, a crueldade e as decepções amorosas.166 Apesar de os diálogos da adaptação serem majoritariamente transcrições quase exatas dos diálogos do romance, a narrativa é, em oposição, totalmente linear.167 Assim,

164 Tradução nossa. No original em francês: “Je ne dois pas faire une transposition littéraire. Évidemment […] il y aura des choses qui se perdront, sûrement une espèce de musicalité proustienne se perdra. Mais en échange, je crois pouvoir, avec une image, pénétrer dans cette espèce de labyrinthe profond de Proust, pour vous expliquer un sentiment, une position, une attitude, une tristesse, un moment de jalousie. J’espère que le cinéma pourra me consentir ça. Mais je n’ai pas à me lier à un style qui serait de refaire un style proustien. Ce serait prétentieux.” SANZIO, Alain ; THIRARD, Paul-Louis. Luchino Visconti : cinéaste. Op. cit., p. 150. 165 Tradução nossa. No original em francês: “Mon film sera la peinture d’une société, exactement comme dans Balzac la société de la Restauration, ici c’est la société de la fin du siècle. Et en effet ma construction du film de Proust commence aux Jeunes filles en fleurs et finit au début de la guerre de 14. Il n’y a même pas Le Temps retrouvé ; il y a ce bloc central qui est la peinture d’une société française de cette époque.” Ibid., p. 148. 166 KRAVANJA, Peter. Visconti lecteur de Proust. Op. cit., p. 24. 167 Ibid.

104 a narrativa se baseia na construção e no colapso das relações amorosas dos três pares principais. As supressões de Visconti são ousadas: Gilberte não é sequer mencionada uma única vez, e mesmo Swann aparece somente para se despedir, doente, dos Guermantes, mal reconhecendo Marcel. Por outro lado, Morel assume um protagonismo dissonante do romance, chegando mesmo a tomar proporções maiores que a morte de Albertine, que, no filme, é um acontecimento quase secundário.168 É, aliás, o fim de Morel – que é enviado para lutar na guerra – a última cena antes da transição para Marcel que, enfim, começa seu romance. Trata-se do único momento no filme em que Visconti aborda objetivamente a questão da escrita e da memória. O roteiro indica:

Scène 98

Chambre de Marcel – intérieur aube – extérieur Combray Jour – hiver

Dans la chambre de Marcel, la lumière est encore allumée. Marcel est au lit et a sur les genoux un écritoire sur lequel se trouvent des feuilles de papier. Très pâle, il a des cernes autour des yeux et le regard fixe. Les feuilles manuscrites – recouvertes d’une fine écriture –, éparses dans tout la chambre, se meuvent jusqu’à devenir semblables aux feuilles des arbres tranchant sur un ciel clair.

Scène 98/A

Les arbres de Combray.

Scène 98/B

On entend le son lointain du thème de Vinteuil, pour violon.

Scène 98/C

En images fondues, pâles, quelques vues de Combray. Dans des sentiers de champagne un petit garçon – vu de dos – marche lentement.

Scène 98/D

Le sentier devient peu à peu l’escalier conduisant à l’étage supérieur de la maison habitée par la famille de Marcel.

Scène 98/E

168 Ibid., p. 25.

105 L’enfant, en chemise de nuit, attend assis dans son lit… Du jardin parvient, atténué, le bruit d’une conversation… l’enfant attend que sa mère vienne l’embrasser avant qu’il ne s’endorme, La mère de Marcel embrasse le petit garçon qui se glisse dans son lit et enfonce sa tête dans son oreiller. La mère sort. Marcel souffle la bougie placée sur la table de nuit, et l’éteint. Sur un oreiller de plume, tout gonflé, très blanc, la tête de l’enfant, repose, comme « enfoncée » dans cette molle blancheur. Petite tache claire qui se dissout dans le blanc. On entend la clochette de la grille du jardin de Combray. A ce son, se substitue peu à peu la voix de Marcel…169

Finalmente, se o romance de Proust é um livro que começa pelo fim, o filme de Visconti termina com o começo do romance, quando o protagonista – Marcel agora Narrador – está enfim pronto para iniciar a escrita de seu romance.

169 VISCONTI, Luchino; D’AMICO, Suso Cecchi. À la recherche du temps perdu : scénario d’après l’œuvre de Marcel Proust. Op. cit., pp. 175-176.

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