Testemunhar E Narrar O Martírio Os Mártires E Confessores Da Albânia (1944-1991)
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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA FACULDADE DE TEOLOGIA MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1º grau canónico) ARTA LEKAJ Testemunhar e narrar o martírio Os mártires e confessores da Albânia (1944-1991) Dissertação Final sob orientação de: Prof. Doutor Isidro Pereira Lamelas Lisboa 2019 ᾿Εγὼ εἰς τοῦτο γεγέννεμαι καὶ εἰς τοῦτο ἐλήλυθα εἰς τὸν κόσμον, ἵνα μαρτυρήσω τῇ ἀλεθείᾳ· πᾶς ὁ ὢν ἐκ τῆς ἀληθείας ἀκούει μου τῆς φωνῆς (Jo 18, 37). “Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18, 37). RESUMO A presente dissertação procura narrar, testemunhar e dar a conhecer quem foram os 38 mártires da Albânia, beatificados em 2016, bispos, sacerdotes diocesanos e religiosos, um sacerdote ortodoxo, um seminarista, uma postulante e três leigos, e a forma do seu martírio tendo como fonte a obra do Padre Zef Pllumi, Vive somente para contar. O estudo não se limita aos 38 mártires, mas evoca tantos outros mártires e confessores, em sentido estrito e alargado, que professaram a sua fé na Albânia sob o regime comunista, entre os anos 40 a 90 do século XX. A partir destes “testemunhos” pretendemos recolher as linhas mestras de uma teologia do martírio para os dias de hoje, em tempos em que se volta a falar de cristianofobia. Partindo do paradoxo entre uma ideologia que quis “calar” a fé e a parresia dos que teimaram confessar a fé, faremos da narração a chave de leitura e de reflexão teológica. Para isso, não podemos deixar de nos situar no contexto histórico em que os factos se desenrolam, para, num segundo momento, melhor entendermos o significado dos factos narrados. Palavras chave: Martírio, Mártir, Confessor, Testemunho, Comunismo ateu, Perseguição, Narrativa, Igreja, Albânia. 1 ABSTRACT This Master dissertation aims to show, testify, and make known those who were the 38 martyrs of Albania, beatified in 2016: bishops, diocesan priests and religious, an Orthodox, a seminarian, a postulant and three laic people, and the form of their martyrdom, having as a source the work of Father Zef Pllumi, Live only to tell it. This study is not only limited to the 38 martyrs but also evokes many other martyrs and confessors, in the narrow and broad sense of it, who professed their faith, in Albania, under the Communist regime between the 40s and 90s of the XX century. From these testimonies we intend to collect the main lines for a theology of martyrdom in the present day, in times when again christianophobia is being discussed. Starting from the paradox of an ideology that sought to silence the faith and parresia of those who professed to confess their faith, we will make narrative the key of reading and theological reflection. In order to do so, we cannot fail to situate ourselves in the historical context in which the facts unfold, so that we can better understand the meaning of the narrated facts. Keywords: Martyr, Confessor, Testimony, Atheist Communism, Persecution, Narrative, Church, Albania. 2 SIGLAS E ABREVIATURAS PCA Partido Comunista Albanês FNL Fronte Nacional Libertadora URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ONU Organização das Nações Unidas Outros VV. AA. Vários autores cap. capítulo cf. confrontar ed. edição séc. século trad. tradução vol. volume Vd. vide Mons. Monsenhor S.e. Sem Editora Salvo indicação contrária, as traduções de citações a partir de obras em idioma albanês, italiano e espanhol foram por nós realizadas. 3 INTRODUÇÃO Lembro-me quando, depois da queda do comunismo na Albânia, vi como a minha avó pegou pela primeira vez num terço e beijou com tanto carinho o pequeno crucifixo e mo deu a beijar. É inevitável que as memórias de infância, como esta, nos marquem, sobretudo quando o contexto é de nula liberdade religiosa. Ao escolher este tema para a minha dissertação, é evidente que trago comigo todas as memórias de uma vida, mas quero sobretudo fazer memória de muitas vidas a quem foi negada a liberdade e a possibilidade de exercer um direito tão simples e fundamental como o de confessar a fé, “assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou crença, individual e coletiva, tanto publicamente como particularmente, pelo ensino, pela prática, pelo culto e observância dos ritos”1. Por isso, inspirada pelo exemplo de tantos homens e mulheres que confessaram a sua fé e, por outros que narraram o seu testemunho, quis também eu elaborar a minha narrativa. Esta obedecerá, na medida do possível, às regras de elaboração de um trabalho científico, mas não pode deixar de manter o teor de uma memória e testemunho em que a homenagem se mistura com uma necessidade incontida de dar a conhecer o que durante décadas e por todos os meios quiseram silenciar. Proponho-me, pois, escrever sobre os mártires da Albânia, durante o regime comunista, ateu e anti-cristão dos anos 1944-1991. A presente dissertação parte de uma constatação histórica e teológica: a semente do Evangelho exige o testemunho/martírio e este é, por sua vez, “sementeira de cristãos”. É frequente pensar-se que tal afirmação se aplica sobretudo e especialmente aos primeiros séculos do cristianismo, identificados com “a era dos mártires”. Sucede, porém, que a história da Igreja dispersa por todo o mundo e ao longo dos tempos, nos demonstra que o martírio é 1 ONU, Direitos do Homem – Declaração Universal dos Direitos do Homem, convenção europeia dos direitos do Homem, Afrodite, Lisboa, 1977, 16. 4 parte integrante da vocação cristã e eclesial. Enquanto tal, há que ler também a história contemporânea da Igreja como um tempo de martírio e um testemunho coerente com o que as fontes e origens cristãs nos ensinaram sobre o martírio cristão e eclesial. Acresce o facto de a Igreja perseguida e silenciada da Albânia, na segunda metade do século passado, continuar a ser tão desconhecida para boa parte dos europeus, para não falar dos demais países ditos católicos. Neste sentido, quisemos, em primeiro lugar, dar a voz, como é tradição da Igreja há muitos séculos, aos que confessaram a fé em tempos de perseguição e aos que “narraram” os “actos dos mártires”. Quisemos fazê-lo, tendo presente, por um lado, os modelos e a espiritualidade dos martírios mais antigos; por outro, tendo em atenção a mais recente teologia do martírio. Quando comecei a ler a obra do Padre Zef Pllumi, interessei-me pelo testemunho dos mártires e confessores e pelo que nos podem ensinar relativamente ao modo corajoso de viver até ao ponto de morrer pela fé. Ao ver o que este sacerdote sofreu e tudo o que fez como “athleta Christi”, somente para nos entregar este testemunho, o testamento que herdou dos mártires, despertou em mim o desejo de lhe dar voz para que esta ecoe para lá dos silêncios e esquecimentos tantas vezes cúmplices de todos nós. Como afirmou o Papa João Paulo II, “o drama destes albaneses deve interessar a todo o continente europeu: é necessário que a Europa não o esqueça”2. Mas, parafraseando S. Paulo, como lembrarão aqueles de que não ouviram falar? E como ouvirão falar, se não houver quem narre, e como narrarão, se não houver “enviados” que estudem e divulguem? (Rm 10, 14-15). Nesta obra encontrei muitas respostas e simultaneamente novas interrogações se impuseram: Que marca deixaram os mártires na história? Pode aceitar-se o conceito difundido pela ideologia comunista, segundo o qual a fé seria obscurantista para a humanidade e o ateísmo uma alternativa luminosa, de futuro? O que nos ensina a história e a experiência da 2 Citado em RANCE, Didier, Hanno voluto ucidere Dio – La persecuzione contro la Chiesa catolica en Albania (1944-1991), Avagliano, Roma, 2007, 11. 5 Igreja perseguida em nossos dias e para nossos tempos? Que sentido tem hoje o martírio para a Igreja a para a humanidade? Em que medida a fé e a política podem ou não conviver? Que relação poderá legitimar-se entre a fé de um povo e a sua identidade? Que sentido faz celebrar os mártires hoje, ou qual o benefício destes defensores da “liberdade” para os povos e nações? E que “outras formas de martírio” se impõem em nossos tempos? Qual a importância da “memória” para o não esquecimento das identidades e da boa convivência entre elas? Sem pretender responder a todas estas questões, irei desenvolver o assunto proposto, observando o seguinte itinerário: O primeiro capítulo apresenta uma descrição do contexto histórico e político da Albânia na segunda metade do século XX, incidindo concretamente na implementação do regime comunista, a sua ideologia e a adoção gradual do ateísmo, de modo a fornecer o enquadramento político e social em que ocorreu o martírio. O segundo capítulo apresenta, a partir da obra do Padre Zef Pllumi, uma descrição dos “acontecimentos e atores”, ou seja, das diversas formas do martírio, episódios e diálogos relacionados com os 38 mártires, de que apresentamos no final uma micro-biografia. No terceiro capítulo, distinto dos dois anteriores, cuja natureza é mais descritiva e narrativa, desenvolve-se uma reflexão teológica sobre o martírio, construída a partir de alguns exemplos e diálogos concretos que envolvem os mártires, e, como tais particularmente desafiadores. Como metodologia, procurei basear-me na documentação disponível nos arquivos que pude consultar na Albânia, destacando a Biblioteca Nacional, em Tirana, e as bibliotecas dos jesuítas e dos franciscanos, em Shkodra. Pude ainda inteirar-me dos lugares dos acontecimentos, realizando visitas às prisões-museu e aos locais de martírio. Durante uma destas visitas, tive a honrosa oportunidade de me encontrar com um sacerdote já idoso que sobreviveu à prisão. Nas pesquisas efetuadas, depressa constatei a riqueza e abundância do tema do martírio, muito estudado, tanto em termos históricos como teológicos.