Anais eletrônicos do III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em História e Linguagem:

Política das narrativas políticas

FAFICH – UFMG 08, 09 e 10 de abril de 2014

Anais eletrônicos do III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em História e Linguagem:

Política das narrativas políticas

Márcio dos Santos Rodrigues Renata Moreira (organizadores)

ISBN: 978-85-62707-64-3

FAFICH – UFMG 2015

Reitor da UFMG Prof. Dr. Jaime Arturo Ramírez

Diretor da Fafich Prof. Dr. Fernando de Barros Filgueiras

Chefe do Departamento de História Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho

Coordenador do curso de História Profª Drª Adriane A. Vidal Costa

Comissão de Organização do III Encontro do GETHL Alexandre Bellini Tasca Isabella Batista de Souza Luiz Arnaut Márcio dos Santos Rodrigues Renata Moreira Warley Alves Gomes

Crédito da imagem da capa: Esboço do mural iniciado primeiro no RCA Building e depois destruído O Homem na Encruzilhada, Olhando Pleno de Esperança para um Futuro Melhor, 1932. Fonte: KETTENMANN, Andrea. Diego Rivera: 1886 - 1957. Köln: Taschen, c2006.

Normatização e revisão dos textos: Márcio dos Santos Rodrigues Renata Moreira

Diagramação e arte gráfica: Márcio dos Santos Rodrigues

Apoio: PAIE/UFMG Pró-Reitorias Acadêmicas

Realização: GETHL http://www.fafich.ufmg.br/hist_lingua/ Apresentação

Provenientes do III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em História e Linguagem – Política das narrativas políticas, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de abril de 2014, os textos que integram o presente volume colocam em evidência as complexas e intercambiantes relações entre a narrativa e a política. Tais trabalhos explicitam, em maior ou menor grau, essa relação, caracterizada por um duplo e simultâneo movimento: a narrativa é política e a política é conformada por mecanismos narrativos. Trata-se de um movimento complexo e construído por meio da linguagem (imagética ou linguística), que nos textos tão dispares e de composições extremamente plurais acaba sendo o principal objeto de interesse. Nos três dias de evento foram apresentados trabalhos que buscaram aprofundar a narrativa como uma dimensão intrínseca ao humano na condição de animal político, dentro de uma perspectiva que extrapolou o domínio exclusivamente ficcional ou mesmo da narrativa histórica e que passou a abranger todos e quaisquer materiais linguístico-imagéticos que mobilizem elementos para o contar. O evento foi aberto ao público em geral e contou com a participação de profissionais das Humanidades (estudantes e professores das redes municipal, estadual, federal e particular de ensino), de diferentes instituições e localidades. Agradecemos a todos aqueles que contribuíram para a realização deste III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em História e Linguagem (GETHL) e convidamos o leitor – acadêmico ou não – para que possa avaliar a pertinência e a relevância dos temas explorados nos textos destes anais. Enfim, boa leitura e até o próximo encontro!

GETHL

PORTUGUESES E BOTOCUDOS: NARRATIVAS E SUJEIÇÃO CRIMINAL NO BRASIL COLÔNIA

Alessandro da Silva Leite1

Em 1808, D. João VI, por meio da Carta Régia de 13 de maio, autorizou o genocídio dos Botocudos que habitavam os “sertões” situados nas fronteiras das capitanias de Minas Gerais e do Espírito Santo. Esse episódio da história colonial brasileira durou, oficialmente, até 1831, porém os conflitos na região entre colonos e nativos estenderam-se até meados do século XIX. Nas narrativas, correspondências e documentos régios do período encontram-se termos como selvagens, bárbaros, violentos, invasores e criminosos usados para classificar as ações praticadas pelos Botocudos em relação ao colonizador. Acredita-se que a linguagem e semântica desses relatos tenham contribuído para influenciar a política colonial portuguesa na direção de uma construção social do crime e subjetivação criminal dos Botocudos, culminando com a permissão para seu extermínio. O processo de sujeição criminal dos Botocudos caracterizou-se, sobretudo, pela ressignificação dos lugares simbólicos de “invasores e invadidos”. Assim, por meio das descrições e denúncias de práticas culturais e ações protagonizadas pelos Botocudos, como atos violentos e crimes cometidos contra a sociedade colonial, o nativo foi sendo representado no campo simbólico como o “invasor”, ao passo que o português, foi ocupando o lugar de “invadido”. Por outro lado, os aspectos linguísticos e semânticos presentes nos relatos de viajantes, nas correspondências e nos documentos régios, constituem-se em fontes de pistas, indícios da construção da subjetividade e identidade dos Botocudos de maneira fragmentada e deteriorada, servindo de justificativas para o uso de “tecnologias disciplinares” pelo poder político institucionalizado. Por meio de medidas autoritárias, as tecnologias

1 Mestre em História Social (USS), professor de Ciência Política na Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas, FADILESTE, pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Indiciárias da Universidade Federal do Espírito Santo, UFES. E-mail: [email protected] 6

visaram ao extermínio, simbólico e real, dos Botocudos pela catequese, aldeamento e escravização, e da guerra justa. Nesse trabalho, pretende-se demonstrar como esse processo, de certa forma, pode estar relacionado às faltas e desejos de conquista e satisfação objetais - materiais e imateriais - inscritas no campo psicossocial, político e econômico do Estado e da Sociedade portuguesa, especialmente, nos contextos da crise aurífera do final do séc. XVIII. Para tanto, utilizando-se de uma abordagem interdisciplinar, tecida nas fronteiras das ciências sociais e da psicanálise, pretende-se informar aspectos teóricos e metodológicos do indiciarismo como metodologia de reconhecimento e interpretação das pistas, dos indícios e elementos históricos, sociais, antropológicos e psíquicos nas narrativas sobre . Nesse sentido, toma para ilustração algumas narrativas que na colônia contribuíram para a representação simbólica dos Botocudos como categoria social perigosa, metaforizada na figura do selvagem, do invasor, do bárbaro e do criminoso.

Historiografia e política indigenista: os Botocudos em foco

A respeito do tema, MOREIRA (2001) informa-nos que a ausência do indígena e/ou sua sub-representação, tanto na historiografia quanto no ensino de história em todos os níveis, relacionam-se a quatro vícios teóricos e metodológicos, vinculados às informações das fontes oficiais e às análises dos pesquisadores. Os vícios apontados pela autora são: 1) o vazio demográfico e seu poder imagético, 2) a imprecisão dos dados demográficos sobre as populações nativas nos “sertões”, 3) os mitos sobre o processo de colonização, no qual os portugueses “ensinaram” muitas coisas aos indígenas, desconsiderando o fato de que à chegada do colonizador seguiu-se um processo de invasão, doenças, guerras, morticínios, dominação e sujeição criminal dos nativos, e 4) a diluição das identidades indígenas originais, integrando-os ao tecido social, por meio de uma ampla categorização - “índios” -. Às vezes, para distingui-

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los, essa categoria é adjetivada de “manso”, “domesticado”, “civilizado”, “selvagem” ou “bravo”. Uma taxonomia dos Botocudos é apresentada por MATTOS (2002). Segundo a autora, durante a expansão das “fronteiras coloniais e econômicas” em direção ao vale do Rio Doce, e da Capitania do Espírito Santo, os colonizadores se depararam com diferentes subgrupos indígenas, ocupando os chamados “sertões”, habitando as selvas impenetráveis, nos limites entre a “barbárie” e a “civilização”. Em comum, esses grupos nativos portavam os mesmos adereços nas orelhas e lábios inferiores, o botoque, sendo, por isso, denominados genericamente e pejorativamente, pelo colonizador, de Botocudos2. Dessa maneira, sob essa denominação, ficaram registrados os Giporok; Tapuias; Aranã; Pojichá; Aimoré; Coroados; Naknenuk; Bakuen, Tamonhec, Crenaques, Minia-jirunas, Gutcraques, Nac-requés, Pancas, Manhangiréns, Incutcrás entre outros. Para alguns estudiosos da questão, a condição sociopolítica do nativo brasileiro, deve ser abordada da perspectiva de uma política indigenista que tendeu para sua inserção na “nação” brasileira pela “via da pacificação”, embora, paradoxalmente, esta tenha tido a guerra como recurso. De acordo com esses autores o indígena sempre encarnou as metáforas da possibilidade e do obstáculo às realizações dos projetos civilizacionais e colonizadores. Assim, para esses autores a construção social e simbólica do nativo tornou possível a elaboração de uma política indigenista orientada por uma ambiguidade que se revelou no primeiro registro feito pelo colonizador português no seu encontro com indígena brasileiro. Pero Vaz de Caminha na correspondência que enviou ao rei de Portugal informou num trecho que os nativos eram “gente de grande inocência” e em outro trecho que eram “gente bestial e de pouco saber” (AZANHA e VALADÃO, 1991, p. 09 e 11).

2 De acordo com a autora, o uso do termo Botocudo surgiu a partir de 1760 como uma maneira do colonizador luso-brasileiro identificar os grupos indígenas, que se mostraram, excessivamente, hostis à presença do “branco”. 8

Essa ambiguidade, ora de fascínio, ora de ódio mortífero, que marcou a as relações entre colonizadores e indígena, será mais bem desembaraçada no estudo de MARINATO (2007), pois ele nos oferece com maior clareza as correlações entre a construção narrativa das imagens simbólicas, imaginárias e a legislação indigenista para os nativos com a conjuntura histórica. Para a autora, no geral, apesar de fragmentada, a política indigenista colonial procurou regulamentar a conquista dos povos nativos, fosse por meio da catequese, do aldeamento e da escravização ou da guerra justa. No entanto, havia uma orientação política para os chamados “índios amigos” e outra para os chamados “índios bravos” ou “gentios bárbaros”, que eram os Botocudos. Tal fragmentação política ficou mais evidente, a partir do final do século XVIII e início do XIX, no contexto da crise aurífera, que demandou a necessidade de expansão das fronteiras coloniais, especialmente, nas regiões próximas às minas. Foi especialmente para o trato com os Botocudos que povoavam essa região que a política indigenista, por meio das Cartas Régias de 1808, autorizou como tecnologia disciplinar, além das já conhecidas, a guerra justa e, somente, a partir de 1845, quando foi adotado o Regulamento das Missões, a política indigenista passou a ter um caráter mais completo e extensivo, diluindo-se seu caráter fragmentado. A abordagem, realizada por MARINATO (2007), sobre a expansão colonial na região do vale do Rio Doce em sua porção espírito-santense, no final do século XVIII, a partir da noção de fronteira colonial ou fronteira em expansão, aproxima-se da perspectiva de MATTOS (2002) ao demonstrar que o interesse pela região ocorreu num contexto de crise social e econômica, especialmente, da crise aurífera. A crise mineradora influenciou ao colonizador conduzindo-o à ressignificação simbólica e metafórica da região e de seus habitantes naturais. O vale do Rio Doce passou a ser representado como um possível “novo eldorado”. Dessa forma, a região foi assumindo, apesar da presença de uma população nativa hostil, resistente à colonização -

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os Botocudos -, o locus ideal para a realização de novos e velhos desejos, fantasias e faltas objetais. Com isso, a região foi deixando de ser representada como uma área pouco conhecida e controlada, porém, salutar para a proteção da economia mineradora, e foi se tornando nos campos simbólico e imaginário colonial numa área para colonização e exploração em busca de novas possibilidades da conquista e realização de desejos, fantasias e faltas objetais, como riquezas e posicionamento social privilegiado, conforme demonstram os casos de colonos que receberam privilégios e prebendas militares, destacando-se no cenário social colonial. Essa ressignificação traduzida na linguagem das correspondências enviadas às autoridades portuguesas exerceu influências na mudança de orientação da política colonial indigenista, pois por meio das denúncias das ações cometidas pelos Botocudos contra os colonizadores, pelas correspondências, relatos e narrativas, esses habitantes, antes vistos como temerários passaram a ser considerados obstáculos à expansão colonial, devendo, por isso, serem destruídos. Em 2008, durante as comemorações do bicentenário da chegada da corte portuguesa ao Brasil, vários autores se debruçaram sobre o tema do genocídio, autorizado por D. João VI, como uma forma de trazer à memória histórica nacional os nativos que, a despeito de todas as transformações introduzidas na colônia, permaneceram na condição de sujeitos coadjuvantes de uma história lavrada a laço, sangue e marginalização social. Assim, DUARTE e PENA (2008), ressaltam, em relação à política joanina de 1808, que a guerra justa, declarada contra os Botocudos, teve relações diretas com os domínios territoriais que esses nativos ocupavam. Com efeito, para esses autores, à crise da mineração, somada à chegada da corte portuguesa, acentuou a demanda de produtos alimentícios e riquezas, bem como exigiu a abertura de estradas para transportá-los. Essa nova realidade atuou como impulso para o

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movimento de interiorização em direção às fronteiras, ou “sertões”, das capitanias de Minas Gerais e do Espírito Santo, pois no imaginário colonial da época, de certo que essa região, coberta por densas florestas, tinha muitas riquezas a oferecer. Contudo, a região também abrigava os grupos indígenas mais arredios à presença do colonizador, ou seja, os Botocudos. Segundo os autores, para “limpar” a região da presença desse feroz inimigo, os colonizadores usaram armas biológicas, como uma eficiente tecnologia de extermínio, espalhando nas matas e nas proximidades dos acampamentos indígenas roupas e cobertores contaminados por vírus de varíola e outras doenças contra as quais os nativos não possuíam nenhuma defesa natural. Analisando as relações entre o poder público e os nativos, em especial os Botocudos, no início do século XIX, ALVES e ALVES (2008), registram que a política joanina foi de genocídio dos índios insurgentes dos Sertões do Leste de Minas Gerais. Também para esses autores a radicalização da política indigenista em 1808 associou-se à exaustão do modelo econômico minerador, demandando o desenvolvimento de outras atividades econômicas, como agricultura e pecuária. Essas atividades, por sua vez, exigiram a abertura de novas fronteiras econômicas que fornecessem, além de novas riquezas, os meios para seu escoamento, como a navegação fluvial e a abertura de novas estradas. É nesse contexto, que o vale do Rio Doce, se tornará o alvo dos desejos portugueses de “civilizar e colonizar” o Brasil. A guerra justa contra os “ferozes inimigos da colonização”, foi também o tema de pesquisa de MARCIAL (2010) que analisou as diretrizes políticas do Estado em relação aos índios Botocudos nas primeiras décadas do século XIX, de 1808 a 1831, sob a perspectiva da redefinição de propriedade e direito natural. Para o autor, enquanto o interesse português na região suportava-se geopoliticamente pela necessidade de proteção das áreas de mineração, os Botocudos e seu comportamento, caracterizado como selvagem, incivilizado, violento e

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antropófago, foram amplamente explorados pelo caráter de ameaça, perigo e temor que representavam à população colonial. Entretanto, com a crise mineradora o sertão e as margens do Rio Doce apresentaram-se como alternativa para a relocação de uma expressiva população econômica e socialmente deslocada, sendo expulsa das áreas mineradoras. Assim, na representação do colonizador os “sertões” e seus habitantes deixaram de ser vistos como uma barreira, um empecilho, para tornarem-se uma área de expansão de fronteiras econômicas e civilizacionais. No campo simbólico e imaginário colonial, esses novos territórios passaram a ser representados como “áreas ociosas”, nas quais poderiam ser introduzidas novas atividades econômicas e mercantis, desde que seus habitantes fossem exterminados. A seguir, por meio da interdisciplinaridade e do indiciarismo busca-se demonstrar como nas narrativas, correspondências e documentos régios os indícios, pistas e vestígios semânticos e linguísticos revelam motivações e pulsões de natureza social e psíquica que, além de contribuírem para construír os sujeitos e categorias sociais históricas, influenciaram na política indigenista no período colonial de ocupação espírito-santense, redimensionando as relações entre colonizadores e nativos.

Gênese, Indiciarismo e Fontes: narrativas e sujeição criminal

FOUCAULT (2007) questionando-se sobre o lugar das ciências humanas na modernidade, informou-nos a respeito da dupla dimensão do homem, ou sua “paridade empírica-transcendental”. Dessa maneira, por exemplo, o homem é simultaneamente investigado empiricamente pela biologia e transcendentalmente, pela filosofia. Assim, ele é tanto sujeito quanto objeto do seu desejo de conhecer. Segundo YAZBEK (2012), a paridade do homem está relacionada ao que na arqueologia foucaultiana foi denominado de episteme. Na modernidade, a episteme que tornou possível a formação de novos

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saberes científicos foi a vida, o trabalho e a linguagem. Assim, o próprio homem, como ser que vive, produz e fala, foi requerido como objeto da investigação científica. A investigação historiográfica requer uma escolha fática, seus registros e uma perspectiva analítico-interpretativa com vistas a produzir uma narrativa sobre os eventos humanos. Nesse sentido, a paridade empírica-transcendental auxilia-nos a entender que o a produção da narrativa histórica se dá, por um homem que investiga o próprio homem e suas ações numa espacialidade, temporalidade e conjuntura específicas. Entretanto, a condução de uma investigação histórica pelo referencial foucaultiano deve empenhar-se em duas frentes correlacionadas. Primeira, pela arqueologia, o pesquisador deverá identificar as condições históricas da produção dos discursos, bem como suas diferentes formas de ser. Deverá, principalmente, reconhecer a construção que ele faz de seu objeto, por meio da evocação que lhe faz para ocupar um lugar, uma posição no discurso. Segunda, pela genealogia, deverá identificar nas formações discursivas os elementos - indícios, pistas, vestígios - de dispositivos ideológicos, fundamentalmente políticos, que poderão contribuir para acionar práticas políticas diversas ou tecnologias do poder disciplinador, aplicadas aos objetos discursivos. Dessa maneira, arqueologicamente, no final do século XVIII e inícios dos XIX, os discursos que contribuíram para enredar a construção social dos Botocudos como sujeitos da criminalidade colonial emergiram da episteme regida pelas ideias de ordenamento, classificação, distinção de diferenças, identificação de gêneros, espécies, classes, subclasses, hierarquias e subordinações. Nesse sentido, identifica-se nos relatos sobre o indígena brasileiro, produzidos nesse período, o uso recorrente de uma linguagem e semântica que acentua as diferenças entre os grupos nativos, classificando-os e hierarquizando-os em relação a outros povos. Por exemplo, na descrição do viajante francês, LIAS apud MATTOS (2002 p. 52) sobre os Botocudos, aparecem termos como coisas nojentas, (gênero/espécie), aparência mais hedionda que pode apresentar a humanidade (diferença), estarem no nível mais baixo da

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escala de povos existentes (classes, hierarquias); serem inferiores a quase todas as tribos africanas e do Pacífico (subclasses e subordinações). Associadas aos relatos dos viajantes, as ações praticadas pelos Botocudos e descritas nas correspondências dos colonos às autoridades políticas, contribuíram para a gênese de tecnologias de poder voltadas para seu controle, conquista e extermínio, simbólico e real. Nessas formas discursivas, em cujas ações e práticas culturais foram protagonizadas pelos Botocudos, eles foram chamados a ocupar o lugar de sujeitos violentos, criminosos, invasores, selvagens, ferozes e perigosos. Nos discursos coloniais sobre esse Outro, segundo TODOROV (2010), a identidade dos Botocudos foi sendo construída de forma fragmentada. Neles, o nativo é um ser destituído de filiação cultural e sistemas que lhes suportem simbolização e imaginação que tornam possível a interpretação e compreensão da realidade. Ele foi chamado a ocupar o lugar do estrangeiro, do não proprietário do “solo”, no sentido definido por SIMMEL (1908), sendo representados no simbólico colonial como inimigos a serem controlados e obstáculos a serem vencidos para tornar possível a satisfação dos desejos, fantasias e faltas objetais dos colonizadores. O processo de construção narrativa e de representação simbólica poderá ser compreendido se considerarmos, conforme KOLTAI (2000) que, do ponto de vista do colonizador, se o nativo era o portador de ausências de signos ou de sinais do estranhamento era, também, detentor de um “gozo” diferente. Dessa forma, ele pode ser simultaneamente objeto da raiva e do fascínio, alvo de desejos e pulsões de vida e sujeito escolhido para ser disciplinado, conquistado, eliminado. Nesse sentido, podemos, além de identificar, entender a ambiguidade dos discursos sobre o indígena brasileiro. Discursos nos quais indícios, gramaticais e semânticos, poderão ser investigados sob a suspeita de expressarem, também, o conflito psíquico do colonizador entre a admiração e ódio mortífero ao indígena. Por sua condição de nativo (natural) de um “novo mundo” cheio de riquezas, o indígena

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deveria ser odiado, por outro lado sua inocência deveria ser depositária de uma admiração, pois lembrava ao colonizador, um passado idílico, há muito perdido, recalcado, mas latente dos desejos que insistem em se realizar. Nessa perspectiva, podemos considerar que, na criminalização dos botocudos, o conflito social se manifestou como sintoma dos conflitos psíquicos. GIMENEZ (2001), ao analisar a presença dos elementos do imaginário medieval presentes nas descrições dos viajantes ao Brasil, oferece-nos provas de que muito antes de conhecer empiricamente o “novo mundo”, o homem medieval preencheu os lugares por eles desconhecidos com elementos de imaginação, fantasia, delírio e desejo, fornecidos pelos dispositivos ideológicos da época especialmente os religiosos que faziam referências aos seus perigos, mas também à possibilidade de ser a localização do paraíso terrestre, com todas as suas riquezas. Sobretudo essa última ideia foi reiterada por BAUMAN (1992) que nos informou sobre a ambivalência na fantasia europeia do séc. XV. Nela, o “novo mundo” como paraíso terrestre encarnou no simbólico e no imaginário medieval simultaneamente o desejo da remissão humana do pecado original e a possibilidade da conquista e satisfação de desejos, fantasias e faltas objetais de riquezas materiais. Porém, como esse locus já era habitado por um Outro - o nativo - , este passou a encarnar os elementos das fantasias e imaginário medieval das figuras inumanas, demônios e outras formas monstruosas, como expressão dos perigos e ameaças do “novo mundo”, que poderiam impedir a realização da fantasia do colonizador. Assim, o choque civilizacional entre europeus e nativos pôs em movimento outros dispositivos ideológicos – as narrativas dos viajantes do século XVIII, as correspondências oficiais e os documentos régios - que forneceram os elementos para suportar concomitantemente o desejo de admiração e a necessidade de destruição, metafórica e real, daquele Outro. Para melhor entendimento da interface entre a investigação histórica e o método psicanalítico, segue-se a reflexão empreendida por RODRIGUES (2008). Segundo a autora, a psicanálise pode ser vista como

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uma teoria sobre o comportamento humano, a partir da descoberta freudiana do inconsciente e seu impacto na noção de “sujeito histórico”. Assim, a descoberta de que as pulsões, sentimentos, pensamentos, desejos, fantasias são também inconscientes tornou possível aos historiadores compreender que o papel histórico desempenhado pelo homem é, ao mesmo tempo, individual-coletivo, subjetivo-social. Dessa perspectiva, o historiador pode se propor a também investigar pistas e indícios do suceder histórico passado para revelar as correlações entre as estruturas sociais (coletivas), os dispositivos ideológicos de uma época e as estruturas psíquicas (individuais) dos agentes históricos. Ele poderá iluminar nos acontecimentos que estuda os vestígios dos dispositivos ideológicos ou contra-ideológicos, dos signos e das práticas sociais, que forneceram aos indivíduos os elementos significantes que lhes serviram como suporte necessário para a simbolização, representação imaginária e práticas, consciente e inconsciente, nas suas espacialidades, temporalidades e conjunturas. Por outro lado, na pesquisa o historiador poderá apontar as permanências, rupturas e transformações nos dispositivos ideológicos colocados em perspectiva histórica. Dessa maneira, tal qual o analista, o historiador torna-se um “decifrador” dos processos históricos de arquitetura individual-coletiva, realizado pelos diversos dispositivos ideológicos nos quais os indivíduos estão imersos. A pesquisa histórica indiciária, centrada nas pistas, vestígios e sinais de dispositivos ideológicos comporta, conforme COELHO (2006), uma diversidade de procedimentos técnicos da investigação científica e de teorias. Seu caráter interdisciplinar e a busca nos registros dos fatos pelos indícios certos exigem do pesquisador uma capacidade de amplo domínio racional de diferentes teorias e técnicas investigativas, mas também habilidade criativa-imaginativa, combinando razão e sensibilidade, objetividade e subjetividade, realidade e imaginário, sem comprometer o caráter científico do trabalho. Atualmente no meio historiográfico os estudos indiciários de Carlo Ginzburg têm ganhado destaque e, de acordo com RODRIGUES (2008), a

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metáfora do tapete é bastante adequada para ilustrar o oficio indiciário do historiador. Como o tecelão, ele vai recolhendo “fios” - pistas, vestígios, indícios - nas fontes e recorrendo tanto a critérios objetivos quanto à intuição para analisa-los e descartar os falsos, realizando a tessitura de uma narrativa histórica que poderá vir a se constituir no suporte interpretativo para a compreensão de uma conjuntura histórica. Analisar os relatos de viajantes, as correspondências e os documentos régios sobre os Botocudos à luz da arqueologia-genealogia foucaultiana e da pesquisa indiciária significa encontrar entre as tramas dos fios desses discursos os indícios dos dispositivos ideológicos que contribuíram para acionar as tecnologias do biopoder. Tecnologias que permitiram a realização da fantasia europeia medieval de conquista de um Outro, por meio do extermínio simbólico, pela catequese, aldeamentos e escravização dos nativos, e do extermínio real, pela guerra justa. Nesse entrecruzamento do princípio da realidade com o imaginário a própria conquista se constituiu num dispositivo ideológico, numa tecnologia de poder, cuja finalidade também estruturar “novo mundo” uma sociedade europeia. Por meio dos registros simbólicos coloniais permaneceu no campo simbólico dos indivíduos da sociedade colonial o significado do nativo como selvagem e inumano, devendo, por isso ser sempre hostilizado. A despeito das mudanças da política indigenista no Império, que buscou substituir a prática do extermínio pela da pacificação e integração, conforme previa o Regulamento das Missões, de 1845, (MARINATO, 2007), permaneceu, nas relações cotidianas entre colonizadores e nativos, vestígios de uma construção simbólica dos indígenas como um inimigo a ser vencido, um obstáculo a ser transposto para a realização dos desejos, das fantasias e das faltas objetais de riquezas. Mesmo no Brasil Império, notamos o emprego das engenharias coloniais que serviram para a sujeição do nativo à condição de estrangeiridade e marginalização social.

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Na verdade, os efeitos das práticas sociais e das tecnologias do poder do passado colonial usadas para classificar, disciplinar e exterminar os nativos estão presentes no psiquismo contemporâneo e guiando as ações de muitos indivíduos. Como exemplo, menciona-se o caso dos cinco rapazes que atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos, índio da tribo Pataxó, no dia 20 de abril de 1997 (Folha Online, 21/04/1997) e o assassinato de muitos descendentes indígenas para tomar suas terras e riquezas.

REFERÊNCIAS

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AZANHA, Gilberto e VALADÃO, Virgínia Marcos. Senhores destas terras: os povos indígenas no Brasil: da colônia aos nossos dias. São Paulo: Atual, 1991.

BAUMANN, Thereza B. Imagens do “outro mundo”: o problema da alteridade na iconografia cristã ocidental. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

COELHO, Claudio Marcio. Raízes do paradigma indiciário. In: RODRIGUES, Márcia Barros Ferreira (org.). Exercícios de indiciarismo. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, 2006, p. 9-39 e p. 65-84.

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FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GIMENEZ, José Carlos. A presença do imaginário medieval no Brasil colonial: descrições dos viajantes. Acta Scientiarum. Maringá, 23(1):207- 213, 2001.

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KOLTAI, Caterina. Política e psicanálise. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000.

MARCIAL, Naíme Mansur. Caminhos legais para o massacre indígena no sertão mineiro: diretrizes políticas do estado em relação aos índios botocudos nas primeiras décadas do século XIX (1808-1831). Reduto: FADILESTE, jan/jun de 2010, v.1, n. 2.

MARINATO, Francieli Aparecida. Militarização e guerra ofensiva: a abertura do vale do Doce à colonização. In:_____. Índios imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824- 1845). Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. Vitória [s.n], 2007.

MATTOS, Izabel Missagia de. “Civilização” e “Revolta”: povos Botocudos e indigenismo missionário na Província de Minas. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e ciências Humanas. Campinas [s.n.], 2002.

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão demográfica. Diálogos Latinoamericanos. Dinamarca: Centro de Estudos Latinoamericanos/Universidade de Arrhus. n. 03/2001.

RODRIGUES, Márcia Barros Ferreira. História & Psicanálise: um diálogo possível. In: SOUBBOTNIK, Olga Maria M. C. e SOUBBOTNIK, Michael A. (org.). Enlaces: psicanálise e conexões. Vitória: GM Gráfica e Editora, 2008, p. 67 a 79.

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TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis: Vozes, 2010.

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LA CARMAGNOLE: UMA NARRATIVA POLÍTICA DO PEUPLE

Allysson Fillipe Oliveira Lima1

Uma primeira definição para a palavra Carmagnole pode apontar para um tipo de casaco curto. Entretanto, em 1792, durante a Revolução Francesa, a Carmagnole se torna uma canção, uma forma de expressão dos revolucionários, ela passa a conter uma ideia, torna-se um símbolo revolucionário. A partir disso, a canção surge em partituras para diferentes instrumentos, ou ainda, com versos diferentes. Nesta pesquisa, que ainda dá os seus primeiros passos, o foco recai sobre o que a permite circular entre o “peuple”, que tipo de questionamento ela pode propor e quais práticas ela pode engendrar. O estudo da Carmagnole passa pela intenção de compreendê-la enquanto canção, portanto com traços específicos capazes de potencializar a sua capacidade de circular informações e propor questionamentos em uma sociedade parcialmente alfabetizada como a francesa do final do século XVIII. Para tanto, também se torna pertinente fazer alguns apontamentos sobre a utilização de músicas como fontes históricas. Marcos Napolitano, em seu livro “História e Música”, nos adverti que uma canção, além de ser boa para ouvir, também pode servir para pensar as ideias que carrega, bem como o seu espaço e tempo de produção (NAPOLITANO, 2002, p.8). Sendo assim, como historiadores, devemos tratá-la com o rigor do fazer histórico, compreendendo-a como uma manifestação humana, dada em um determinado tempo e lugar. E, se possível, colocá-la num conceito, para que seja possível trabalhá-la em um espectro amplo de ideias, em diálogo ou embate com as demais canções de sua conjuntura. Além disso, é importante que a canção seja trabalhada levando-

1 Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. E- mail: [email protected] 20

se em conta as suas especificidades: timbres, ritmos, melodias, harmonias, letras, as diversas execuções, etc. O respeito às suas especificidades é fundamental para se preservar a riqueza da análise. (NAPOLITANO, 2002, p.6) Por exemplo, em uma canção, pode-se ao tocar uma tecla de um piano deixá-la soar ou encurtá-la, acelerar o seu ritmo ou torná-lo mais lento, incluir notas com sétima para aumentar o “suspense”, notas menores para levar à “tristeza”, enfim, uma infinidade de possibilidades que brincam com os nossos sentimentos e que não devem ser consideradas irrelevantes em nosso ofício. Portanto, seria totalmente insatisfatório e insuficiente trabalhar uma canção como muitos historiadores têm feito, levando-se em conta somente um de seus aspectos, como a sua letra. Dessa forma, o trabalho ficaria comprometido, empobrecido, pois se tomaria uma canção por aquilo que ela não é, como uma poesia, por exemplo. E, já que passamos a falar sobre a utilização de canções como fonte histórica, qual a sua possível relevância em se tratando da Revolução Francesa? Roberto Darnton, em seu livro “Poesia e Polícia”, diz que por sempre tratarmos a nossa sociedade atual, principalmente pela grande relevância que damos à internet, como a “sociedade de informação”, menosprezamos a capacidade das demais conjunturas de, sem ela, circular informações. (DARNTON, 2014, p.7) Em se tratando de uma sociedade francesa semialfabetizada do final do século XVIII cujas informações circulam, sobretudo, através da oralidade, como nós podemos persegui-las? Em seu trato com os documentos do período, Darnton faz a seguinte afirmação:

A comunicação oral quase sempre escapou da análise histórica, mas nesse caso a documentação é rica o bastante para que se possa colher seus ecos. No século XVIII, os parisienses às vezes guardavam os pedaços de papel em que as canções eram escritas, enquanto eram ditadas ou cantadas. Tais pedaços de papel eram então transcritos, ao lado de outros textos de caráter efêmero –

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epigramas, enigmes (charadas), pièces de circonstance -, em duparios ou cadernos de anotações. Diários formados sobretudo de canções eram conhecidos pelo nome de chansonniers, embora os colecionadores às vezes lhes dessem títulos mais exóticos, como “Obras diabólicas para à história deste tempo (DARNTON, 2014, p.81).

E vai ainda mais longe ao identificar algumas práticas dos parisienses:

Os chansonniers deixam claro que os parisienses improvisavam palavras novas em melodias antigas todos os dias e com todos os assuntos possíveis – a vida amorosa das atrizes, a execução de criminosos, o nascimento ou a morte de membros da família real, batalhas em tempos de guerra, impostos em tempos de paz, processos judiciais, falências, acidentes, peças, óperas cômicas, festivais e toda sorte de ocorrências que se encaixam na vasta categoria francesa dos faits divers (fatos variados). Um poema espirituoso com uma melodia contagiante se espalhava pelas ruas com força irresistível e, frequentemente, poemas novos se seguiam a ele, levados de um bairro para outro como rajadas de vento. Numa sociedade semianalfabeta, canções funcionavam, até certo ponto, como jornais. Forneciam uma crônica sobre os fatos do momento.” (DARNTON, 2014, p.84).

Além disso, à essa altura, embora a política se faça entre as camadas mais altas da sociedade, sobretudo em ambientes da Corte, há o conhecimento, por parte delas, do poder da “voz popular”. Intrigas podem ser veiculadas através de poesias e canções, que saem dos palácios e caminham pelas ruas da Paris setecentista, chegando aos ouvidos do povo. Durante o seu trajeto, elas sofrem modificações de populares e, enfim, podem retornar ao lugar de onde vieram. Entretanto, nesse momento, já podem causar o estrago suficiente para denegrir a imagem pública de qualquer pessoa (DARNTON, 2014, p.49). Pelo seu alto grau de circulação, tanto em diferentes camadas sociais, quanto em alcançar grandes distâncias, e ainda, pela sua maleabilidade – sua possibilidade de ser facilmente apropriada -, talvez seja prudente que o processo de análise de uma canção revolucionária francesa leve em conta três etapas. A primeira trata a canção em si, através de suas especificidades musicais, possíveis ideias propostas, quem a produz e para quem se 22

produz, quem se apropria dela, sua conjuntura, o circuito que ela percorre, etc. Já a segunda etapa se refere ao conjunto de canções daquela conjuntura. Como essa canção se relaciona ou se diferencia das demais? E, por fim, uma terceira etapa que implica tanto nas modificações que essa canção pode receber ao longo do avanço do tempo, bem como, se possível, o rastreamento anterior à canção. Sobre este rastreamento, refiro-me à pesquisa sobre a melodia ser uma novidade ou o reaproveitamento de uma melodia anterior. Novamente utilizando o livro “Poesia e polícia” de Darnton, ele nos diz que “quando uma letra nova é cantada numa melodia familiar, as palavras transmitem associações que foram agregadas a versões anteriores da canção. Portanto, canções podem, por assim dizer, funcionar como um palimpsesto auditivo” (DARNTON, 2014, p.85). Nesse caso, diferentes canções podem estabelecer relações entre si através do uso de uma mesma melodia. Finalmente, dito tudo isso, o que pode dizer a Carmagnole? Quais fatos do momento ela fornece? Em se tratando de uma Carmagnole de 1792, intitulada La Carmagnole des Royalistes, e encontrada na Bibliothèque nationale de France, a análise ainda é breve, mas possível se ter a seguinte compreensão:

[...]chegados à cidade vindos de Carmagnola a tempo de participar do assalto às Tulherias e da condução do rei à prisão na Tour du Temple, a nova canção receberia o nome de “La Carmagnole”. E o motivo do imediato agrado dessa carmagnole estaria em que, se o ritmo permitia por seu balanço o cantar coletivo, com os bailantes a executar uma espécie de farândula, a letra focalizava o tema político de maior interesse do momento: os vetos de Luís XVI, em novembro de 1791, aos decretos da Assembleia contra os privilégios dos nobres – exatamente o que levaria à realização dos movimentos de rua, à prisão do rei em agosto e aos massacres de setembro de 1792. Era esse clima que se refletia nos versos debochativos da carmagnole, em que Luís XVI e a rainha Maria Antonieta eram chamados ironicamente de Sr. E Sra. Veto (TINHORÃO, 2009, p.23-4). 23

A canção também denomina os seus cantantes como sans- culottes, enaltece as suas origens suburbanas e diz beber pelas suas saúdes. Além de colocar em extremos opostos a aristocracia – que seria como os covardes realistas parisienses - e os patriotas – a “boa” gente do país-, esta que estaria pronta para lutar com os seus canhões:

“[...] 8 Le patriote a pour amis. (bis Tout les bonnes jens du pays. (bis Mais il se soutiendrons Tous au son des canon. Dansson &.c. 9 Laristocrate á pour amis. (bis Tout les royalistes à paris. (bis Il vous les soutiendrons Tous comme des vrais poltrons. Dansson &.c. [...] [...] 12 Oui, je suis sans-culote, moi. (bis En depit des amis du roi; (bis Vivent les Marseillois. Les bretons, et nos lois. Dansson &,c. 13 Oui nous nous souviendrons toujours . (bis Des sans culotes des fauxbourgs (bis A leur santé buvons, Vivent ces bons lurons. Dansson &,c.”2

O número de estrofes se expande conforme os interesses do povo, e sempre contam com o refrão rítmico e contagiante que completa cada uma delas. A partitura em questão não determina o instrumento a ser utilizado para a sua execução, embora seja possível encontrar partituras de Carmagnoles para instrumentos de fácil manuseio nas ruas, como flautas e harpas.3

2 “La Carmagnole des royalistes [à 1 v.] n° 47”, discriminada nas referências bibliográficas. 3 “La Carmagnole variée pour la harpe...” e “Marche des Marseillois et la Carmagnole variée pour la flûte par J. M. Cambini”, ambas estão discriminadas nas referências bibliográficas. 24

É importante ressaltar também a relação dessa canção com os sans-culottes e com os eventos dos quais eles participam, como as Jornadas Revolucionárias. Além de, como já foi dito, determinar os seus cantantes como tal, o próprio nome da música remete a um tipo de casaco curto utilizado pelos sans-culottes. Segundo o historiador Patrice Higonnet, os sans-culottes se situam num duplo campo, social e político, parisiense e revolucionário. O primeiro se relaciona à “condição social e cultural da população pobre dos bairros parisienses”, já o segundo é uma radicalização do jacobinismo, principalmente através das Jornadas Revolucionárias (HIGONNET, 1989, p.411). Essas jornadas desempenham um papel importantíssimo pois são uma inovação da Revolução Francesa. Ao contrário das barricadas, elas não são táticas de defesa, mas sim uma forma de fazer o povo tomar e avançar pelas ruas de Paris. (RICHET, 1989, p.102) As Jornadas Revolucionárias são uma demonstração da soberania do povo durante a Revolução. O canto da Carmagnole nelas é uma forma de representar a autoridade popular, “manifestando-a e simbolizando-a”. (BOURDIEU, 1998, p.87) Por fim, se a Revolução Francesa pode ser compreendida através do cruzamento de vários processos, dos quais podemos identificar quatro, sendo eles, a rebelião aristocrática, a aspiração burguesa da igualdade, o movimento popular urbano e o movimento popular rural, nós podemos dizer que quem dita o ritmo dos seus passos, justamente através das Jornadas Revolucionárias, é, sobretudo, o povo. Pois, mesmo quando há o interesse da burguesia em manipulá-lo, é-lhe impossível frear os seus movimentos, o que ocasiona em uma situação delicada: ““O povo” identificado com “a nação” era um conceito revolucionário; mais revolucionário do que o programa liberal-burguês que pretendia expressá-lo. Mas era também uma faca de dois gumes” (HOBSBAWM, 1977, p.78). Para melhor compreender essa ascensão do povo à soberania, também é fundamental aquilo que Roger Chartier vai chamar de

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processo de dessacralização e desencantamento para com o mundo. Esse processo que mistura práticas cotidianas, com influências ilustradas, e revolucionárias, que, de pouco em pouco, são frutos e, ao mesmo tempo, contribuem para solapar as bases do Antigo Regime. (CHARTIER, 2009, p.283) Talvez, um importante evento para compreender o movimento de transição da soberania do monarca para o povo, seja o retorno da família real após a tentativa frustrada de fuga em 20 de junho de 1791. Segundo Denis Richet:

Sabe-se o que ocorreu em Varennes no dia 20 de junho. O povo sucumbiu à cólera, destruindo os bustos do rei e os emblemas com a flor de lírio. O que houve sobretudo foi medo: medo de uma conspiração aristocrática dirigida pelos emigrados e pelas potências estrangeiras, que só teriam aguardado o sinal de alarme de Varennes para melhor mostrar a face. Quando o rei regressou, no dia 25, uma multidão imensa e silenciosa o aguardava. [...] Um rei abandonara a soberania, fugindo. Um outro rei, o povo assistia gravemente ao espetáculo (RICHET, 1989, p. 105-6).

Entretanto, ao passar às mãos do povo, o poder tem que se alojar no único lugar que lhe é possível garanti-lo: na palavra. Portanto, não mais encoberto pelos ambientes palacianos, em forma de segredo, o poder agora está público nas palavras, submetido, finalmente, ao povo. Uma vez que tratamos da utilização do poder, mediante palavras, em um espaço público, nada mais coerente do que tentar compreender como se dá a “opinião pública” na Revolução Francesa. Entretanto, este é um trabalho árduo, pois “tão logo conseguimos uma imagem mais definida, ela se embaça e se dissolve, como o Gato de Cheshire” (DARNTON, 2014, p.18-9): Mesmo hoje em dia, quando falamos em “opinião pública” como um fato trivial da vida, uma força ativa em funcionamento em toda parte, na política e na sociedade, só a conhecemos indiretamente, por meio de pesquisas de opinião e declarações jornalísticas; e muitas vezes elas erram – ou pelo menos se contradizem e são contestadas por outros indicadores, como as eleições e o comportamento dos consumidores (DARNTON, 2014, p.133).

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Talvez o mais próximo que possamos chegar da, ainda em construção, “opinião pública” francesa revolucionária, seja mesmo através da compreensão das ruas parisienses, de onde se emana a soberania popular e de onde ergue os seus aparentes “tribunais de opinião”. Como já foi dito anteriormente, no final do século XVIII, o rei e as altas camadas da sociedade já notam o crescente poder das massas de julgar eventos e pessoas públicas. Tendo a sua opinião cada vez mais levada em conta, o povo parece se informar de tudo através de boatos, que circulam através de canções, poesias, libelos, etc. À essa altura, o boato mais temido pelo povo é o de uma possível conspiração, pois os inimigos da “liberdade” estão, sobretudo, nela. A ideia de uma conspiração – que vem desde 1789, com a conspiração aristocrática – é o único adversário à medida da Revolução, “visto que é talhado sobre ela. Abstrato, onipresente, matricial, com ela, mas escondida, sendo pública, perversa, sendo boa, nefasta, embora traga o bem estar social. O seu negativo, o seu inverso, o seu anti-princípio” (FURET, 1988, p.82). A conspiração parte da mesma essência da consciência revolucionária: “um discurso imaginário de poder” (FURET, 1988, p.82). De um lado, o poder do povo que ascende à soberania, enquanto que, do outro, o fantasma de um poder absoluto que busca se restituir. Os boatos de conspirações estão para a Revolução Francesa, assim como o demônio está para o Deus cristão. São duas faces de uma mesma moeda. Portanto, para além de uma “abstração imaginada pelos filósofos”, o público que se forma durante a revolução e impõe as suas opiniões dos fatos tem o seu poder oriundo das ruas de Paris (DARNTON, 2014, p.143). Compreendê-las, assim, é essencial para se aproximar da “opinião pública” construída durante a Revolução Francesa. A partir disso, a questão agora é “saber quem representa o povo, ou a igualdade, ou a nação: é a capacidade para ocupar esta posição simbólica, e para a conservar, que define a vitória. ” (FURET, 1988, p.82).

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Robespierre, ao levar adiante a construção da questão social no espaço público, é o personagem da Revolução que por mais tempo desempenha o papel de ”porta-voz autorizado” das ruas: O porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador (BOURDIEU, 1998, p.88).

Entretanto, tal projeto fracassa graças à radicalização levada pelo seu governo e a sua perda de apoio das massas: Por volta de abril de 1794, tanto a direita quanto a esquerda tinham ido para a guilhotina, e os seguidores de Robespierre estavam portanto politicamente isolados. Somente a crise da guerra os mantinha no poder. Quando, no final de junho de 1794, os novos exércitos da República demonstraram sua firmeza derrotando decididamente os austríacos em Fleurus e ocupando a Bélgica, o fim estava perto. No Nono Temidor pelo calendário revolucionário (27 de julho de 1794), a Convenção derrubou Robespierre. No dia seguinte, ele, Saint-Just e Couthon foram executados, e o mesmo ocorreu alguns dias depois com 87 membros da revolucionária Comuna de Paris (HOBSBAWM, 1977, p.90).

Contudo, embora se trate de um projeto fracassado, a discussão da questão social é um elemento peculiar da Revolução Francesa, mais ainda, de seu peuple. A força dele agora é revolucionária, impossível de se opor: Quando o rei foi avisado da Queda da Bastilha, dizem que o rei exclamou “C’est une revolte!”, e Liancourt corrigiu: “Non, sire, c’est une révolution”. [...] O rei, ao declarar que o assalto à Bastilha era uma revolta, afirmava seu poder e os vários meios de que dispunha para enfrentar conspirações e desafios à autoridade; Liancourt respondeu que o que havia acontecido era irreversível e ultrapassava os poderes de um rei (ARENDT, 2011, p.79).

A revolução, tal qual os astros, possui um poder irresistível, que independe das ações humanas. Sendo assim, é imprescindível compreender o que, entre 1789 e 1794, é proposto por ela. Segundo Hannah Arendt, trata-se da questão social: “foram os homens da Revolução Francesa que, assombrados perante o 28

espetáculo da multidão, exclamaram com Robespierre: “La république? La monarchie? Je ne connais que la question sociale” (ARENDT, 2011, p.89). A questão social desenvolve um caráter revolucionário quando, na Idade Moderna, ocupa o espaço público através de homens que não mais acreditam na miséria como um caráter inerente à humanidade. É esta questão que, segundo a autora, é capaz de tornar a Revolução Francesa universal, justamente porque se trata de algo que é universal: a miséria (ARENDT, 2011, p.49). A “chave da compreensão da Revolução Francesa”, portanto, passa pela compreensão da concepção do “peuple” francês que, tal qual “um monstro de diversas cabeças” (ARENDT, 2011, p.74) - indo “muito além dos cidadãos, ou dos sans-culottes”, mas “englobando todas as classes inferiores da população” - é movida por um sentimento de luta, em prol da questão social ARENDT, 2011, p.60). Assim, cantar a Carmagnole durante a Revolução Francesa é se aproximar dessa concepção de “peuple”, construir uma opinião pública, e engendrar práticas políticas. Trata-se de uma manifestação da soberania popular, um símbolo. Essa canção traz à tona a miséria do povo, duvida de seu caráter inerente ao homem, e explode em seu desejo de lutar. Ela conquista aliados pela sua melodia, pelo seu ritmo, pelo seu cantar coletivo, e aumenta o seu coro. Seduz através do desejo irresistível de lutar por uma questão social, pelo miserável, pelo irmão, pela necessidade da pátria. A Carmagnole é mais do que uma canção revolucionária, ela permanece junto à questão social mal resolvida. Portanto, é dessa forma que ela se permite circular e ser apropriada em tempos e espaços distintos durante a Revolução.

REFERÊNCIAS:

Fontes:

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Bibliothèque nationale de France, département Musique, VM7-16374 (“La Carmagnole des royalistes [à 1 v.] n° 47”). Bibliothèque nationale de France, département Musique, VM7-7108 (“La Carmagnole variée pour la harpe...”). Bibliothèque nationale de France, département Musique, VM9-1726 (“Marche des Marseillois et la Carmagnole variée pour la flûte par J. M. Cambini”).

Bibliografia:

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 1998.

CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Edunesp, 2009.

DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

FURET, François. Pensar a Revolução Francesa. Lisboa: Edições 70, 1988.

HIGONNET, Patrice. “Sans-Culottes” In: Dicionário Crítico da Revolução Francesa / François Furet e Mona Ozouf; tradução de Henrique Mesquita. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1977.

NAPOLITANO, Marcos. História & música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

RICHET, Denis. "Jornadas Revolucionárias” In: Dicionário Crítico da Revolução Francesa / François Furet e Mona Ozouf; tradução de Henrique Mesquita. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

TINHORÃO, José Ramos. A música popular que surge na Era da Revolução. São Paulo, Ed. 34, 2009.

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HISTÓRIA E NARRATIVA EM PAUL RICOEUR Breno Mendes1

Introdução

Neste texto2, nos propomos a um mergulho em um tema que tem recebido destaque no debate historiográfico contemporâneo: a narrativa na escrita da história. No contexto francês, a partir da década de 1970, a narração passou a estar na ordem do dia das discussões historiográficas. A pergunta que guiará nossa empreitada é singela e essencial: o que é uma narrativa na visão de Paul Ricoeur? A busca de respostas nos conduz a uma análise do primeiro tomo de Tempo e narrativa, obra em que o autor tematizou esse problema de maneira pormenorizada. A questão sobre os vínculos existentes entre história e narrativa serviu de mote para a escrita do primeiro volume de Tempo e narrativa3, publicado originalmente em 1983. Vejamos as palavras do próprio autor em uma entrevista: No tocante à história, tenho de precisar que só me interessei em Tempo e Narrativa por um único problema: até que ponto a história é narrativa? Esta tinha para mim, na altura, uma grande urgência, estávamos ainda na era marcada por Fernand Braudel e pela escola dos Annales, época essa que assistira ao recuo do acontecimento e do narrativo, da história política, da história diplomática, da história das batalhas etc., em benefício de uma história que se poderia dizer mais estrutural, que dá conta das forças de evolução lenta e, por isso de longa duração (RICOEUR, 1997: 119).

O primeiro aspecto que precisamos observar é a tese central da trilogia, enunciada por Ricoeur do seguinte modo: “o tempo torna-se

1 Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email: [email protected] 2 As ideias aqui discutidas foram apresentadas, primeiramente, em um dos capítulos de nossa dissertação de mestrado intitulada: “A representância do passado histórico em Paul Ricoeur: linguagem, narrativa e verdade”, realizada sob a orientação de José Carlos Reis. 3 Doravante, citaremos a trilogia com a abreviatura: T&N, acrescida do número do tomo correspondente. 31

tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa; em contrapartida, a narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal” (T&N 1: 17). O desenvolvimento dessa tese que constitui o círculo hermenêutico ricoeuriano, apresenta duas entradas independentes, uma pelos paradoxos do tempo, a outra pela organização da narrativa. No primeiro portal, estão as Confissões de Santo Agostinho, que se indaga sobre a natureza do tempo sem levar em conta a estrutura narrativa. No outro, está a Poética de Aristóteles, que constrói uma teoria da intriga dramática sem se ocupar com a análise do tempo. Em que pese terem sido produzidas em contextos culturais díspares e parecerem, à primeira vista, incomunicáveis, Ricoeur dirá que “cada uma engendra a imagem invertida da outra” (T&N 1: 18). Na filosofia de Santo Agostinho, o tempo é interior, se passa na alma. O bispo de Hipona recusa a tese grega que quer definir o tempo a partir do movimento dos corpos celestes. Na sequência de sua argumentação, Agostinho sustenta que o tempo não é a medida do movimento dos astros, mas uma distensão da alma humana. Um dos exemplos dados é a ação de recitar um hino que se sabe de cor. “Antes de começar, minha expectativa se estende (tenditur) para o conjunto desse canto; mas, assim que começo, à medida que os elementos retirados da minha expectativa tornam-se passado, minha memória se estende para eles por sua vez” (AGOSTINHO apud T&N 1: 46). Quanto mais essa ação avança, mais a expectativa é abreviada e a memória, alongada. A distentio animi (distensão da alma) é a falha, a não coincidência das três modalidades de ação que ocorrem na alma: memória, atenção e espera. A leitura ricoeuriana evidencia que, na teoria do tempo agostiniana, sobretudo com o conceito de distentio animi, a discordância prevalece sobre a concordância. Na retomada que o filósofo francês realiza da Poética, ele buscará responder a essa prevalência da discordância por meio do ato de composição da intriga. Todavia, a proposta não é resolver o enigma, mas fazê-lo trabalhar de forma

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poética, gerando uma réplica invertida da dialética discordância/concordância.

O que é narrar uma história? Paul Ricoeur leitor de Aristóteles

Atravessaremos agora o segundo portal, que dá acesso ao círculo hermenêutico de Ricoeur em Tempo e narrativa: a Poética de Aristóteles. Se a distentio animi de Agostinho geme em virtude da pressão existencial da discordância, Ricoeur encontrará na composição da intriga (muthos) de Aristóteles uma réplica invertida em que a concordância triunfa sobre a discordância. Com efeito, a Poética não se propõe a discutir a experiência temporal. A releitura do filósofo francês sobre o tratado aristotélico não se confina em uma discussão estrita sobre o fenômeno do trágico. Antes de examiná-la, cabe, porém, uma observação a respeito da particularidade de sua leitura. Ao longo da história da historiografia, tem sido frequente analisar a relação entre Aristóteles e o conhecimento histórico a partir de seus apontamentos no livro IX da Poética. Nesse trecho do tratado, está a famosa distinção e hierarquização entre poesia e história, com posição de destaque para a primeira, por se ocupar daquilo que poderia ter acontecido, e não do que já ocorreu. Por isso, a arte poética seria mais universal que a história e, portanto, mais próxima à filosofia. A produção de Filosofias da História na modernidade contribuiu para um mal- entendido recíproco entre historiadores e filósofos. Sem querer buscar um “mito de origem” para essa questão na Antiguidade Clássica, podemos dizer que, no contexto grego – ainda que por razões distintas dos –, a filosofia e a história estavam em tensão. Nas palavras de Finley, Aristóteles não escarneceu da história, ele a rejeitou (FINLEY, 1989). Talvez em virtude da tendência anti-histórica do pensamento dos gregos,4 que “estavam completamente convencidos

4 “Pode-se ir muito mais longe. Todos os filósofos gregos, até o último dos neoplatônicos, estavam evidentemente de acordo quanto a sua indiferença para com a história (como disciplina). Pelo menos é o que o silêncio deles sugere, um silêncio rompido apenas por murmúrios fugazes” (FINLEY, 1989, p. 4). 33 de que qualquer coisa que podia ser objeto de verdadeiro conhecimento tinha de ser permanente” (COLLINGWOOD, 1981, p. 38), Aristóteles veja na história uma fraqueza epistêmica que se limita a narrar o acontecido, sem a capacidade de universalizar suas proposições, ou, como faz o poeta, dizer o que poderia ter havido, segundo o verossímil e o necessário. Ricoeur trilha um caminho alternativo e não chega a se aprofundar nessa questão, que já motivou várias controvérsias entre historiadores e filósofos.5 O passo decisivo, nesse sentido, é a opção do filósofo em considerar, nesse momento de Tempo e narrativa, uma identidade do ato de narrar, em que pese à heterogeneidade das obras colocadas sob a égide da narrativa. O efeito obtido é uma extensão das reflexões aristotélicas para além da poesia trágica, compreendendo, assim, o campo narrativo de modo geral. Nessa perspectiva, não há espaço para uma hierarquização entre poesia e história. No alicerce da leitura ricoeuriana da Poética está o ternário mímesis, muthos e katharsis, e não uma análise formal dos elementos da tragédia. Esses conceitos são fundamentais para uma resposta satisfatória a nossa questão norteadora (o que é narrar na visão do filósofo francês?). O conceito de mímesis será desdobrado por Ricoeur em três momentos, constituindo, assim, seu círculo hermenêutico. Iniciemos nossa caminhada destrinçando o conceito de mímesis. Na visão de Ricoeur, este é o conceito diretor da Poética. Mais do que isso, essa é uma noção deveras controversa na história do pensamento ocidental, sobretudo quando passou a ser identificada – a partir das

5 Dentre as interpretações contemporâneas destacamos a de Ginzburg e a de Costa Lima. O historiador italiano convida a uma nova aproximação entre a história e o pensamento de Aristóteles, sem passar pela Poética, mas com base no tratado sobre a Retórica (GINZBURG, 2002). Por outro lado, o teórico brasileiro propõe um reexame das relações entre tragédia e história na Poética. Segundo ele, a epistemologia aristotélica não trabalha apenas com dois termos (geral e particular); entre ambos existe o ‘usual’. Costa Lima sustenta, ainda, que na obra de Tucídides o geral se insinua no particular. Isso ficaria patente na passagem em que o historiador grego diz que “o estudo do passado permite inferir como é provável que, ante situação semelhante, os homens virão a se comportar. (...) apesar da formulação esquemática da Poética, o filósofo levava em conta os seus três critérios epistêmicos [geral, particular e usual]: tanto na poesia como na história o ‘geral’ se insinua no particular” (COSTA LIMA, 2006, p. 183-184). 34 traduções renascentistas do tratado aristotélico – com imitação (imitatio), ou duplicação da realidade. Desde logo, enfatizamos que a mímesis ricoeuriana, que, por sua vez, assenta-se sobre a aristotélica, não deve ser confundida como uma réplica, cópia ou sombra do real. De acordo com Luiz Costa Lima, importante teórico brasileiro, existem duas principais vertentes de interpretação do conceito de mímesis. A primeira – iniciada por Platão – associa a mímesis à ideia de cópia. Na leitura de Costa Lima, em Platão, as coisas que estão no plano visível imitam as ideias, (as formas, as essências), e a as obras de arte imitam essas coisas. Logo, a mímesis, a representação produzida pelo poeta, é apenas uma cópia da cópia. 6 Ela cria apenas sombras e enganos do mundo das essências (COSTA LIMA, 2003). Entretanto, a concepção de mímesis ricoeuriana está próxima de uma outra vertente – inaugurada por Aristóteles – e que se afasta da ideia de mímesis-cópia. A mímesis aristotélica deve ser compreendida como uma operação produtora de sentido7 (COSTA LIMA, 2000). “A imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto ela produz alguma coisa, a saber, precisamente o agenciamento dos fatos pela composição da intriga (mise en intrigue)” (T&N 1: 73, grifo nosso). A citação anterior mostra como, na teoria da narratividade de Ricoeur, há uma correlação forte entre mímesis e muthos, isto é, entre a representação da ação e o agenciamento dos fatos. Em Aristóteles, a intriga é uma mímesis da ação (mímesis praxeos) (ARISTÓTELES, 1979). O filósofo francês opta por traduzir o termo grego muthos por intriga (intrigue), em vez de utilizar fábula, enredo, mito ou história. Para deixar claro que sua ênfase é maior sobre a operação do que sobre o produto,

6 “O imitador não tem sem senão um conhecimento insignificante das coisas que imita e que a imitação não passa de uma brincadeira indigna de pessoas sérias” (PLATÃO apud COSTA LIMA, 2003, p. 61). 7 “Se continuarmos a traduzir mímesis por imitação, é preciso entender o contrário do decalque de um real pré-existente e falar de imitação criativa. Se traduzirmos mímesis por representação, não deveremos entender por essa palavra alguma duplicação da presença, como poderia se esperar da mímesis platônica” (T&N 1: 93).

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ele utiliza, amiúde, a expressão mise en intrigue, que pode ser vertida como pôr em intriga ou tecer da intriga (T&N 1; GENTIL, 2004). O muthos aristotélico é tomado por Ricoeur como a réplica inversa da distentio animi de Agostinho. Agora, porém, a concordância prevalece sobre a discordância. A operação de composição da intriga coloca juntos, numa mesma intriga, os fatos que antes estavam dispersos. Assim, ela produz um sentido que esses acontecimentos díspares não tinham. Quando inserida em enredo, a ação dos homens torna-se mais inteligível. A intriga não se limita a encadear os acontecimentos em uma sucessão temporal (um após o outro), mas também estabelece nexos causais entre eles, dizendo que um aconteceu por causa do outro, e não meramente por acaso. Portanto, a operação de síntese, a concordância do discordante, é o elemento central do tecer da intriga em Ricoeur. O agenciamento dos fatos sublinha a concordância e é caracterizado por três aspectos: a completude, a totalidade e a extensão. A noção de todo é central e não deve ser entendida em sentido cronológico, mas como o caráter lógico da disposição dos fatos. Na intriga, a sucessão dos acontecimentos está subordinada à sua conexão lógica. No muthos, não há acaso, mas sim encadeamento necessário – segundo a probabilidade ou verossimilhança – entre os eventos. Um todo é o que tem começo, meio e fim (T&N 1; GENTIL, 2004). Nesse momento da leitura ricoeuriana sobre a Poética de Aristóteles, reencontramos a questão do universal e do particular, que já foi objeto de tantas disputas interpretativas. Segundo o filósofo francês, a estrutura do muthos constitui uma investigação sobre as causas e padrões da ação humana. O tecer da intriga (mise en intrigue) produz universais poéticos, que são distintos dos universais filosóficos. Os primeiros estão mais próximos da sabedoria prática que das ideias platônicas, ou seja, são universais concretos (T&N 1; GENTIL, 2004). Como dissemos anteriormente, a análise que Ricoeur faz da Poética não se pauta na oposição ou hierarquização entre poesia e história. Para ele, mais importante do que isso é o contraste entre o um

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depois do outro e o um pelo outro. Dessa forma, vislumbra-se uma nova forma de acesso ao universal, que não mais se restringe somente a dizer aquilo que poderia ter acontecido. Logo, “o possível, o geral não devem ser buscados em outro lugar que não o agenciamento dos fatos, porque é este encadeamento que deve ser necessário ou verossímil. Em suma, é a intriga que deve ser típica” (T&N 1: 84). Nesse sentido, uma boa intriga – seja historiográfica ou ficcional – é aquela que não se limita a tomar os fatos de forma aleatória, numa sequência meramente episódica, incoerente e inverossímil, mas aquela que produz um agenciamento dos eventos no qual prevalece um encadeamento lógico entre eles, fazendo, assim, surgir o verossímil e o necessário. Para Ricoeur, “pensar uma relação de causalidade, mesmo entre acontecimentos singulares, já é universalizar” (T&N 1: 85). Compor uma intriga é uma operação que faz surgir o inteligível do acidental, o universal do singular, o necessário ou o verossímil do episódico. Afinal, pergunta-se nosso autor, “os historiadores não buscam também colocar lucidez onde há perplexidade?” (T&N 1: 89-90). Embora a intriga aristotélica seja um modelo em que prevalecem a concordância e a ordem, a discordância não deixa de ser incluída. Quanto a isso, sobressaem as inversões, as mudanças de sorte. Na tragédia, a passagem clássica é aquela que vai da fortuna ao infortúnio. A tessitura da trama deve fazer parecer concordante essa discordância. Esse efeito é obtido quando o um por causa do outro predomina sobre o um após o outro (T&N 1). Na concepção de Ricoeur, a inversão leva toda narrativa a referir-se à ou à infelicidade, criando uma ligação com o campo ético.8 Entretanto: Entretanto:

O muthos trágico, ao girar em torno das reviravoltas da fortuna e exclusivamente da felicidade para a infelicidade, é uma exploração das vias pelas quais a ação lança, contra toda expectativa, os homens de valor na infelicidade. Ele serve de contraponto à ética que ensina

8 “Enquanto a ética predica virtudes orientadoras de ações, as narrativas elucidam como as ações podem levar à infelicidade ou à felicidade, independente das virtudes” (GENTIL, 2004, p. 98). 37

como a ação conduz à felicidade pelo exercício das virtudes (T&N 1: 94).

O vínculo entre narrativa e ética pode ser apontado como um dos pilares da teoria ricoeuriana. Para Ricoeur, quando Aristóteles definiu a intriga como mímesis da ação (mímesis praxeôs), ele garantiu uma continuidade entre os campos ético e poético-narrativo, através da referência que ambos fazem à práxis, à ação humana, que já é dotada de valores. O tema da catarse não é explorado com profundidade por Ricoeur nesse momento. Ao tratar da mímesis III, ele irá se estender, com mais detalhes, sobre a recepção da obra. Isso foi feito, sobretudo, por meio do conceito de refiguração. A construção da mediação entre as Confissões e a Poética é atribuída por seu autor a uma centelha criativa, uma inspiração que lhe ocorreu quase por acaso: “Tive – não saberia dizer quando – uma espécie de lampejo, a saber, a intuição de uma relação de paralelismo invertido entre a teoria agostiniana do tempo e a noção de muthos em Aristóteles” (CC: 114). Certo é que, na teoria da narrativa ricoeuriana, o tecer da intriga implica uma pré-compreensão da ação humana que é configurada em um enredo e refigura o vivido do leitor, que dele se apropria. “Sem a referência a essa anterioridade e a uma posteridade uma narrativa não é inteligível – eis uma ideia central em Ricoeur” (GENTIL, 2004, p. 101).

A tripla mímesis ou o círculo hermenêutico

A hipótese básica de Tempo e narrativa consiste em dizer que, entre a atividade de narrar uma história e a experiência temporal, existe uma correlação necessária e transcultural. O desenvolvimento da tese central da obra foi feito através de um desdobramento do conceito de mímesis em três momentos. O exame da chamada tripla mímesis encerra a primeira parte do tomo I da trilogia e tem como título “O círculo entre narrativa e temporalidade”. Segundo o autor, esse capítulo

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contém um modelo, em escala reduzida, da tese que é testada ao longo de toda a pesquisa. Sua hermenêutica propõe a tarefa de “reconstruir o conjunto de operações pelas quais uma obra emerge do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer para ser dada por um autor a um leitor que a recebe e assim muda seu agir” (T&N 1: 106). Os três estágios da mímesis são assim definidos por Ricoeur: Em mímesis I, está a referência ao que precede a configuração textual; aqui, estão incluídas as mediações simbólicas que conferem legibilidade à ação. Mímesis II é o momento da composição textual, da mímesis criativa, que funciona como um pivô mediador entre os outros dois estágios. Por sua vez, mímesis III aponta para o ato de leitura da narrativa que refigura e transforma o agir do leitor. Ricoeur inicia sua caracterização de mímesis I sustentando que a composição da intriga, ou seja, a construção da narrativa está enraizada em uma pré-compreensão do mundo da ação. Em sua concepção, a ação possui estruturas inteligíveis, recursos simbólicos e um caráter temporal que demandam narração. Na esteira de Aristóteles, para o filósofo francês, a intriga é uma imitação produtiva da ação. A mímesis engendra uma significação articulada da ação (T&N 1). Um dos principais argumentos ricoeurianos consiste em dizer que “a ação já possui em sua própria vivência uma estrutura narrativa implícita (...) Ninguém se perde no vivido, o que supõe que haja uma tácita pré-compreensão da experiência” (REIS, 2011, p. 292). Em virtude disso, o narrador precisa ter a capacidade de identificar na ação as bases estruturais de sua narração. A ação se distingue do movimento físico, pois é mediada por linguagem e produzida por sujeitos que possuem motivos – eles explicam por que alguém fez alguma coisa –, projetos, objetivos, circunstâncias que, por sua vez, levam à interação e à cooperação, ou à competição e à luta. Segundo a Poética, a intriga imita – de maneira criativa e não reprodutiva – essa estrutura do agir e sofrer humanos. A mesma inteligência que utilizamos para compreender a ação é empregada para seguir uma história (T&N 1; RICOEUR, 2010).

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A compreensão narrativa pressupõe e transforma a pré- compreensão prática na qual esses elementos existem em uma ordem paradigmática, ou seja, de forma sincrônica e simultânea – e não um após o outro. Na passagem da compreensão prática à compreensão narrativa, transpõe-se a ordem paradigmática em direção à sintagmática, em que os elementos são narrados de forma sucessiva. Nessa travessia, os termos da pré-compreensão ganham uma significação efetiva graças ao encadeamento sequencial oferecido pela intriga aos agentes, ao seu agir e sofrer. Além disso, a narrativa integra e põe juntos termos heterogêneos, como agentes, motivos e circunstâncias, que se tornam compatíveis e operam conjuntamente em totalidades temporais efetivas (T&N 1). Em mímesis I, existe uma segunda ancoragem que a compreensão narrativa encontra na compreensão prática: os recursos simbólicos imanentes à ação. As mediações simbólicas constituem outro fator que possibilita que a ação seja narrada. As ações podem ser inseridas em uma intriga porque já estão articuladas em signos, regras e normas. Esse sistema simbólico fornece o contexto de descrição para as ações particulares. Em virtude de uma convenção simbólica, interpretamos um gesto de tal ou qual maneira. O exemplo clássico é o ato de levantar o braço, que pode ser interpretado – de acordo com as convenções e contexto simbólico – como uma saudação, uma maneira de chamar a condução, de expressar o voto ou um pedido para tomar a palavra (T&N 1). O sistema de símbolos imanentes à ação fornece as regras de significação em função das quais as condutas serão interpretadas. Nesse sentido, as ações se apresentam como um quase-texto. As normas imanentes a uma cultura proporcionam o julgamento moral das ações humanas, elas permitem dizer que determinado ato vale mais do que outro. Com efeito, em uma narrativa, não apenas as ações são avaliadas, mas também os agentes que são tomados como bons ou maus, melhores ou piores. Podemos destacar aqui as pressuposições éticas da narrativa que, na leitura de Ricoeur, já estão presentes na

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Poética. Segundo Aristóteles, a comédia procura representar os agentes piores do que os homens atuais, ao passo que a tragédia os representa melhores. Tal avaliação é possível por causa da compreensão prática que os autores partilham com seu auditório, por isso, a ação jamais é eticamente neutra: “Não existe ação que não suscite, por menor que seja, aprovação ou reprovação, em função de uma hierarquia de valores dos quais a bondade e a maldade são os polos” (T&N 1: 116). As respostas à questão que formulamos no início – o que é uma narrativa para Ricoeur? – parecem ganhar corpo à medida que nossa leitura de Tempo e narrativa avança. A concepção ricoeuriana de narrativa é tributária da Poética aristotélica, ou seja, ela é compreendida como mímesis praxeos – mímesis da ação. Nesse sentido, a operação de narrar uma história não está radicalmente separada da vida prática. Se não há ação eticamente neutra, isto é, não existe algum ato que não seja estimado como bom ou mal em relação a uma configuração cultural, logo, não há representação da ação que não seja eticamente comprometida com uma orientação para a vida prática (GENTIL, 2011). O entrelaçamento entre narrativa e ética mostra que o realismo crítico de Ricoeur não se restringe a aspectos epistemológicos. Após explicitar quais seriam as características da pré- compreensão do campo prático que, simultaneamente, propiciam e demandam narração, o filósofo francês passa a caracterizar o segundo momento da mímesis. Em mímesis II, abre-se o reino do como se. Esse estágio da mímesis tem uma função de mediação entre a pré- compreensão e a refiguração da vida do leitor. Ademais, a intriga constrói mediações em outros níveis. A mise en intrigue (tessitura da intriga) opera uma intermediação entre os acontecimentos individuais e a história tomada como um todo. Em outras palavras, ao narrar, o autor extrai uma história sensata (sensée) – significativa – de uma miríade de eventos. Nesse processo de construção de sentido, os incidentes são transformados em história. A composição da intriga converte uma simples sucessão de eventos em uma configuração inteligível que permita a identificação do “tema” da história. Por outro lado, a tessitura

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da intriga “compõe juntos fatores tão heterogêneos como agentes, objetivos, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados” (T&N 1: 127). Enfim, a intriga é uma síntese do heterogêneo, uma configuração temporal em que a concordância prevalece sobre a discordância. A noção de “seguir uma história” também é importante para a teoria ricoeuriana da narrativa. O conceito de followability foi pinçado por Ricoeur da obra do filósofo W.B. Gallie. Em poucas palavras, “acompanhar uma história” é avançar, guiado por uma expectativa, em meio a suas contingências e peripécias até a conclusão. Entretanto, o fechamento da intriga não deve ser previsível a partir das premissas que a antecedem. “Compreender a história é compreender como e por que os episódios sucessivos conduziram a essa conclusão, que, longe de ser previsível, deve ser, finalmente, aceitável, congruente com os episódios reunidos” (T&N 1: 130). A conclusão dá um “ponto final” à história, a partir do qual ela pode ser considerada como uma totalidade de sentido. A capacidade de a história ser seguida constitui, para Ricoeur, a solução poética ao paradoxo do tempo em Agostinho. Como na composição da intriga, a dimensão configurante sobressai sobre a episódica, a representação do tempo engendrada não se limita à linearidade. No ato de releitura de uma história já conhecida, não se buscam surpresas ou descobertas. Quando relemos uma obra procuramos, de alguma forma, encontrar pistas do fim logo no início da narrativa e indícios do começo na conclusão. Ao fazer isso, escapamos à chamada “flecha do tempo” e aprendemos a ler o tempo retrospectivamente, e não apenas na direção que aponta do passado ao futuro: “Noto en passant que renarrar uma história é um melhor revelador dessa atividade sintética à obra na composição, na medida em que somos menos cativados pelos aspectos inesperados da história e permanecemos mais atentos à maneira pela qual ela se encaminha para sua conclusão” (RICOEUR, 2010, p. 199). Estamos chegando ao último momento do círculo hermenêutico. Antes de completar nossa transição pelas três fases da mímesis, é importante explicitar que o filósofo francês indica haver continuidade na

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passagem de mímesis II à mímesis III. Destacamos aqui a ideia de tradicionalidade. Na perspectiva ricoeuriana, a tradição não é entendida como um depósito morto cuja transmissão de sentido se deu de forma inerte. Pelo contrário, a constituição de uma tradição acontece em um jogo entre inovação e sedimentação. Ricoeur faz esses apontamentos pensando, principalmente, na questão dos gêneros literários e dos paradigmas ou modelos de narrativa. Tais padrões de narração não são construídos apenas com adequações a moldes pré-estabelecidos, mas também são formados por obras singulares. Porém, mesmo uma narrativa inovadora está submetida a regras. Ela está ligada a uma tradição, ainda que seja para transformá-la numa espécie de “deformação regrada” (T&N 1). Até agora, elencamos elementos relevantes para a elaboração da resposta à questão norteadora deste capítulo: o que é uma narrativa na visão de Ricoeur? Vimos, através de uma síntese sobre dois momentos da mímesis, que as considerações de Aristóteles sobre a intriga têm um papel essencial na teoria ricoeuriana da narrativa. Entretanto, para o filósofo francês, a narrativa só atinge seu sentido pleno quando é restituída ao tempo do agir e sofrer humanos, e isso acontece em mímesis III. O principal interesse da exposição sobre o círculo mimético é a sustentação da tese central da obra: “nosso interesse pelo desdobramento da mímesis não é um fim em si mesmo. A explicação da mímesis continua subordinada até o fim à investigação da mediação entre tempo e narrativa” (T&N 1: 136). Mais uma vez, os argumentos do estagirita se mostram fundamentais. Na Poética, Aristóteles já teria dado indicações de que o percurso da mímesis conclui-se no ouvinte ou leitor. A intriga gera um efeito em seu receptor. Na teoria aristotélica, a tragédia, ao representar mudanças de sorte inesperadas (do infortúnio à fortuna e desta ao infortúnio), é capaz de realizar uma depuração de emoções no ouvinte, a célebre catharsis. Em Ricoeur, a mímesis III marca a interseção entre o mundo do texto – mímesis II – e o mundo do leitor.

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As críticas de David Carr à Paul Ricoeur

Com efeito, antes de caminharmos rumo à conclusão de nossa análise sobre a tripla mímesis, eis que um obstáculo importante surge em nosso caminho. Temos ressaltado a importância dessa análise para o intuito de sublinharmos o alcance de regiões ontológicas da experiência pelo realismo crítico de Ricoeur. Todavia, existem outros autores no contexto contemporâneo, como David Carr, que também postulam haver uma continuidade entre a narrativa e o mundo real. A dificuldade começa a se constituir quando Carr expõe uma leitura da teoria ricoeuriana que vai em sentido oposto a nossa tese, afirmando que o filósofo francês constrói uma cisão entre a narrativa e a práxis. Carr inicia seu artigo “Narrativa e mundo real: um argumento a favor da continuidade” expondo a posição de autores que questionam a capacidade de a narrativa representar a realidade. Para nomes importantes como Louis Mink, Hayden White e Roland Barthes, há um corte descontínuo entre a narrativa e a experiência. Para eles, a vida não tem princípios ou finais; a experiência não possui sentido intrínseco. Assim, quando os acontecimentos são apresentados em uma estrutura narrativa, há uma projeção de qualidades narrativas sobre a experiência para que sua carência de significado seja suprida (CARR, 1986; PELLAUER, 1989). Em contrapartida, Carr sustenta uma tese que aponta para o sentido inverso. Para ele, a estrutura narrativa permeia nossa experiência temporal de tal forma que existe uma continuidade entre a narrativa e a vida cotidiana. Em sua perspectiva, “a narrativa não apenas é uma forma bem-sucedida de descrever os fatos, sua estrutura está inserida nos próprios fatos. Uma explicação narrativa, longe de ser uma distorção formal dos fatos que relata, é um prolongamento de seus traços fundamentais (...) uma comunidade formal” (CARR, 1986, p. 15). O embaraço é criado no momento em que Carr assegura que, para Ricoeur, a estrutura narrativa está tão separada do mundo real como para os outros autores anteriormente citados, apesar de, à

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primeira vista, ele parecer indicar o oposto quando cita os elementos pré-narrativos da experiência em mímesis I. O problema, segundo Carr, é que essa prefiguração não é uma estrutura narrativa em si mesma, já que existe uma brecha ou um rasgo entre a prefiguração e a configuração da trama. O autor acrescenta ainda que, por meio de uma leitura de Agostinho, o filósofo francês caracteriza a experiência temporal como essencialmente discordante. Sua conclusão é que “se o papel da narração consiste em introduzir algo novo no mundo, e o que introduz é a síntese do heterogêneo, então ela acrescenta aos fatos do mundo uma forma que de outra maneira eles não tem” (CARR, 1986, p. 17). Nosso exame desse embate procurará fugir do caminho mais fácil – embora não completamente incorreto –, que consiste em afirmar que Carr interpretou de modo equivocado9 a teoria ricoeuriana. Para tanto, bastaria remeter aos argumentos arrolados por Ricoeur para indicar a continuidade entre a experiência e a narrativa ao tratar de mímesis I. Em vez disso, vamos fazer referência, ainda que de modo esquemático, a algumas das razões para a discordância entre os autores, ressalvando que tais motivos não devem colocá-los em estrita oposição. Iniciemos apontando as semelhanças entre os autores. Ambos estabelecem um estreito vínculo entre a narração e a ação humana.10 O que parece incomodar Carr é a existência de mediações e desvios que tornam essa relação indireta na teoria ricoeuriana. Ao tratar do primeiro momento da mímesis, Ricoeur diz construir uma espécie de semântica da ação – e não uma descrição direta da ação em si –, já que para ele, na esteira de algumas discussões do giro linguístico, não é possível descrever a ação senão por intermédio da linguagem e das mediações simbólicas. Segundo Pellauer, Carr, influenciado pela fenomenologia eidética de Husserl, considera a possibilidade de chegar às coisas em si, julgando

9 Um elemento que pode atenuar essa interpretação é o fato de Carr se referir apenas ao primeiro tomo de Tempo e narrativa ao escrever seu artigo. 10 Houve uma mesa redonda em Otawa no Canadá que discutiu o primeiro tomo de Tempo e narrativa. Esse evento contou com a presença dos dois autores. Infelizmente, não conseguimos ter acesso a esse texto, senão através de alguns comentários feitos por David Pellauer. Sua referência é “Table Ronde/Roud table: Temps et récit, volume I” Revue de L’université d’Otawa, 55 (Octobre-Decembre, 1985). 45 que “é possível aceder à ação diretamente, sem necessidade da semântica ou da mímesis da ação na narrativa” (PELLAUER, 1989, p. 292). Outro ponto importante diz respeito à própria ideia de mímesis. Como temos salientado, em Ricoeur, esse conceito não tem o sentido de cópia ou imitação. Disso decorre uma conclusão relevante: se a narrativa é uma mímesis da ação prefigurada, e esta mímesis é produtora – e não reprodutora –, o efeito obtido não é um mero reflexo de uma cena primeira. Em suma, a narração não apenas configura a ação, mas também a modifica e refigura no momento da leitura. Esse argumento possui duas implicações: 1) mostra que, em Ricoeur, embora haja certa continuidade entre a narração e a experiência, essa relação é indireta e possui interstícios que abrem espaço para descontinuidades – se não fosse assim, o círculo hermenêutico seria vicioso e, em mímesis III, teríamos um mero espelho de mímesis I; 2) é justamente essa fenda – lamentada por Carr – que assume o caráter de uma descontinuidade produtiva e possibilita que a narrativa produza uma inovação semântica que pode trazer, inclusive, um enriquecimento de sentido à ação, tornando-a mais inteligível. “Há maior inteligibilidade e potencialmente maior significado no círculo da tripla mímesis do que na ação isolada de sua configuração em um relato e em sua reconfiguração na leitura” (PELLAUER, 1989, p. 293).

Considerações finais

O obstáculo lançado por Carr em nosso caminho foi importante, pois nos permitiu abordar um aspecto fundamental de mímesis III: o efeito produzido no leitor pela obra. O ato de ler, segundo o filósofo, é uma obra conjunta do texto e de seu leitor. Seguindo alguns raciocínios apontados por autores da chamada estética da recepção11 – com destaque para R. Ingarden, W. Iser e H.R. Jauss –, Ricoeur sustenta que a

11 O próprio Ricoeur analisa, no terceiro tomo de Tempo e narrativa, algumas das diferenças entre os autores dessa corrente. Iser, por exemplo, acentua a recepção em um leitor individual, ao passo que Jauss privilegia os horizontes da recepção coletiva da obra. Cf. “Mundo do texto e mundo do leitor”, em : Tempo e narrativa, v. 3. 46

obra é um esboço para a leitura, que o texto possui lacunas, zonas de indeterminação que são preenchidas criativamente pelo leitor. Em mímesis III, o mundo projetado pela obra se entrecruza com o mundo do leitor, atando-se à experiência cotidiana e ao mundo efetivo. O mundo do texto possui uma função mediadora ausente em A metáfora viva, ele introduz um momento de transição entre a configuração e a refiguração “A refiguração procede de um mundo a outro, de um mundo fictício a um mundo real através de um mundo potencialmente real” (RICOEUR, 1990, p. 35). Podemos perceber também que, em Tempo e narrativa, há um destaque significativo para o papel da leitura. A refiguração indica que o texto tem um efeito sobre o leitor contribuindo para que ele compreenda melhor a si mesmo. Isso implica que a mímesis seja um processo que revela e também transforma a práxis cotidiana alargando nosso horizonte de existência.

REFERÊNCIAS

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ASPECTOS DA HISTÓRIA DA GUERRA DE LA TRIPLE ALIANZA EM TEMPOS DE STROESSNER

Bruna Reis Afonso1

Introdução

As interpretações historiográficas sobre a Guerra do Paraguai, em muitos aspectos, não são consensuais, nem mesmo na forma de denominá-la. Guerra do Paraguai, Guerra de la Triple Alianza, Guerra contra la Triple Alianza, Guerra del 70, Guerra Grande são nomes atribuídos ao maior conflito ocorrido na América do Sul durante o século XIX. Rosendo Fraga (2004) chama atenção para a multiplicidade de versões presentes nos livros didáticos dos quatro países envolvidos e que é ensinada aos estudantes sobre o conflito, mesmo depois dos “espíritos” estarem mais “desarmados” e a historiografia ter avançado na busca por uma interpretação mais “isenta” e também mais crítica. Este trabalho procura analisar como foi construída a narrativa sobre a guerra durante o regime Stroessner, figura entre as mais longas e autoritárias ditaduras da América Latina. Alfredo Stroessner Matiauda (1912- 2006) governou o Paraguai de 1954 a 1989, 35 anos, dentre as estratégias para legitimar-se e permanecer no poder fez uso de um discurso fortemente anticomunista e nacionalista, mobilizando a história através do resgate da memória dos grandes heróis nacionais, principalmente a de Solano López, procurando associar sua imagem a daquele que era considerado o grande herói da Guerra. Durante seu governo ocorreram duas importantes reformas educacionais com o apoio da Unesco e da AID - Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional - que visavam a modificar a estrutura do sistema educacional desde as construções escolares até o currículo. Tendo em vista a mobilização da história de maneira a justificar o regime e os aportes feitos no sistema educacional, os manuais escolares

11 Graduanda em História – Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected] 49

tornam-se fontes privilegiadas para compreender a história da guerra ensinada aos jovens no período, bem como, as projeções sobre passado, presente e futuro que permeiam a narrativa oficial sobre esse evento traumático.

O pós-guerra e as representações dos López

Após 1870 a história paraguaia é marcada por grande instabilidade, lutas internas e graves problemas econômicos. Morto Solano López, um triunvirato passa a governar o país e o declara traidor da Pátria. López passou a figurar na história oficial como “um ditador que lançou seu país em guerra imprudente contra vizinhos mais poderosos” (DORATIOTO: 2002, 79). Thomas Whigham ressalta que

los detractores paraguayos del mariscal, quienes mayormente se afiliaron al Partido Liberal desde fines del siglo diecinueve, lo consideraban un monstruo sin igual cuya vanidad exigió la extinción de su pueblo. En su mundo en blanco y negro, lo pintaron más oscuro que la oscuridad, y a sus seguidores como simples estúpidos o bárbaros. (2012, 502)

Os seguidores a quem Whigham se refere eram estudantes secundaristas e universitários – “que desejosos de construir uma sociedade melhor (...), necessitavam de heróis que encarnassem os valores, supostos ou verdadeiros, da nacionalidade paraguaia.” (DORATIOTO: 2002, 80) – e camponeses que falavam guarani, espalhados em diversos pontos do país e seguiram cultuando a imagem de López. Sob a influência dos aliados convocou-se uma Convenção Nacional Constituinte. Afim de expurgar o autoritarismo do passado próximo a Constituição deveria adotar princípios liberais, democráticos e anti-personalistas que salvaguardassem a República. Em 25 de setembro de 1870 a nova Constituição foi aprovada pela Convenção que elegeu Presidente da República a Cirilo Antonio Rivarola, “antiguo

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soldado de López, al cual había repudiado por sus actos tiránicos” (CARDOZO: 2011,113). Na década de 1880 fundaram-se os dois partidos tradicionais, o Centro Democrático (1887) que mais tarde transformou-se em Partido Liberal e a Associação Nacional Republicana (1887), conhecido popularmente como Partido Colorado. O primeiro agrupou jovens intelectuais e camponeses expropriados descontentes com os caudillos que controlavam o governo. O segundo agrupou os terratenentes e militares conservadores sob a liderança de Bernardino Caballero “um dos oficiais mais aguerridos de López”. (ARCE: 1988, 225). As disputas políticas entre os dois partidos culminaram em um movimento armado que ficou conhecido como Revolução de 1904 ou Revolução Liberal, que contou com o apoio dos argentinos, camponeses e operários. Vale ressaltar, novamente, que os liberais também eram profundamente anti-lopistas. Em junho de 1932 iniciou-se a Guerra do Chaco, de acordo com Ceres, Moraes “a Guerra do Chaco e seu desenlace criaram, no Paraguai, uma situação revolucionária, que serviu para unir, num mesmo movimento todas as correntes antiliberais” (2000, 27). Assim, na década de 1930 surgiu um movimento encabeçado por militares nacionalistas, que propôs a reforma agrária e a promoção do desenvolvimento industrial do país. Lorena Soler argumenta que a Guerra do Chaco fomentou um nacionalismo na sociedade paraguaia com diversas correntes, desde as fascistas, representada por Natalício Gonzáles, até aquelas que reivindicavam direitos sociais e políticos. Neste momento os militares, desta vez, vitoriosos tornam-se os atores políticos que poderiam melhor representar a nação. Assim, a Guerra do Chaco abriu caminho para olhares heroicos sob o passado militar e os manuais de história voltam a ser reescritos para contar que foram declarados próceres beneméritos José Gaspar de Francia2 , Carlos López e Francisco Solano López.

2 Proclamada a independência paraguaia, em 1811, constituiu-se uma junta governativa presidida por Fulgencio Yegros e integrada pelo Dr. Francia (José Gaspar Rodriguez de Francia), Pedro Juan Caballero, Francisco Xavier Bogarín e Fernando de La 51 Soler ressalta que na década de 1920 eclodiram movimentos de caráter nacionalista e anti-liberal em diversos países da América Latina e da Europa, este período é marcado pela busca, das raízes culturais e sociais da nação, do originário, tendo em vista a construção da identidade nacional. É em busca das origens da nação paraguaia que Rafael Franco cria uma expedição que vai a Cerro Corá na tentativa de resgatar os restos mortais de Solano López, segundo os relatos dos expedicionários o caminho foi facilitado pelas sinalizações que os soldados paraguaios inscreveram em guarani nas cascas das árvores. Tal relato permitiu fundir a língua guarani, com o herói da pátria e ressaltar a importância da língua como elemento originário do país. É neste contexto que o Panteón de los Heroes surgiu, no mesmo local destinado ao culto a Virgem de Assunção, que havia sido construído em 1863, durante o governo Solano López3 .

Mora. Em 1813 o Paraguai efetiva seu rompimento com Espanha e Buenos Aires ao proclamar a República, estabelecendo uma nova forma de governo denominada consulado. Fulgêncio Yegros e Dr. Francia foram designados cônsules, este pôs em marcha uma campanha política com a qual se difundiu a crença de que só um homem com seu caráter e talento seria capaz de enfrentar a grave situação ocasionada pela ruptura com Buenos Aires (CARDOSO: 2011, 59). As manobras políticas de Francia alcançaram seu objetivo no congresso de 3 de outubro de 1814, no qual foi designado ditador por um período de 5 anos. Em 1816 Francia reuniu um novo congresso para fazer-se nomear Ditador perpétuo e ser sem exemplar. Francia governou o Paraguai até sua morte, em 1840, sua sucessão foi decidida pelos comandantes dos quartéis (Cardozo, 2011) que nomearam Carlos Antonio López e Mariano Alonso como cônsules. Em 1844 López foi nomeado presidente por um período de dez anos. Seu governo é caracterizado, em comparação ao de Francia, por uma maior abertura ao exterior, Carlos López enviou jovens para estudar em Londres e Paris, além de ter trazido ao país técnicos da Europa, principalmente da Inglaterra. López também foi responsável por mandar fazer a bandeira e o hino nacional. Carlos Antonio López também governou até sua morte, em 10 de setembro de 1862, mas diferentemente de Francia havia deixado um sucessor, seu filho, Francisco Solano López., também conhecido como Mariscal López. Ainda no governo de seu pai, Solano López foi nomeado general do exército paraguaio aos 18 anos, tendo também um papel importante no que diz respeito as relações públicas no período, ao liderar a missão a Europa que articulou a vinda de técnicos e educadores bem como a compra de maquinarias. Seu governo também dura até sua morte, no dia 1º de março de 1870, em Cerro Corá.

3 O Panteón de los Héroes localiza-se no centro de Assunção, é o local onde encontram-se os restos mortais dos heróis da Pátria. Além de Francisco Solano López compõem o mausoléu os restos de seu pai, Carlos Antonio López, Bernardino Caballero, 52

Ascensão de Stroessner

Em 1937, o Partido Liberal, retornou ao poder através de um golpe. Em 1939 o Marechal Estigarríbia assumiu a presidência e aboliu “todas as medidas de caráter social adotadas pelo governo anterior” (Moraes: 2000, 29), além de ter forçado a dissolução do congresso e revogado a Constituição de 1870. Estigarríbia morreu em setembro de 1940, sendo substituído por Higino Morínigo que reprimiu veementemente as organizações operárias e dissolveu o partido Liberal. Morínigo foi eleito constitucionalmente em 1943, em uma eleição de candidato único, as péssimas condições de vida da população se agravaram, o que culminou numa greve geral dos trabalhadores ocorrida em abril de 1944, as pressões dos grevistas e dos partidos Frebrerista e Colorado resultaram na formação de um governo de Coalizão que teve participação do partido Colorado, partido Frebrerista e representantes das forças armadas. Contudo, as medidas de caráter democrático como a legalização do partido Comunista, a reorganização dos sindicatos e a libertação de presos políticos não agradaram a todos os setores da sociedade, por exemplo, aqueles que integravam o Guión Rojo, havia também o descontentamento dos católicos conservadores que demandavam a ilegalidade do Partido Comunista. Neste contexto, em janeiro de 1947, Morínigo dissolveu o governo, decretou o estado de sítio, nomeou um novo gabinete formado apenas por colorados e desencadeou um novo período de repressão aos frebreristas, liberais e comunistas. Em resposta a essas medidas jovens Frebreristas atacam a Delegacia Central de Polícia e o Colégio Militar, ocorrem levantes na região chaquenha que recebem apoio de liberais, frebreristas e setores das forças aramadas. Instala-se o terror, o Guión Rojo, sai às ruas em busca de opositores, de acordo com Ceres Moraes cerca de 4000

Crianças que lutaram na Batalha de Acosta Ñu, José Félix Estigarribia, herói da Guerra do Chaco, dentre outros.

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pessoas foram presas e várias assassinadas. Os Colorados ascendem e passam a dominar a máquina burocrática. O domínio colorado não significou estabilidade política, já que num período de seis anos, entre 1948 e agosto de 1954, cinco presidentes estiveram no poder. No dia 04 de maio de 1954, um movimento militar comandado pelo General Stroessner, depôs o então presidente Frederico Chávez. Stroessner não assumiu imediatamente o poder, o partido Colorado indicou como presidente provisório Tomás Romero Pereira, que marcou eleições para o dia 12 de julho. Stroessner tornar-se presidente do Paraguai pelas vias legais, apesar de a eleição ter apenas ele como candidato Stroessner manteve-se no poder por 35 anos, seu governo durou mais que ditadura de Francia (26 anos) e que o governo dos López (28 anos). A longevidade do regime Stroessner deve-se a uma conjuntura externa e interna favorável. Basta lembrar que sua ascensão ocorreu no período de guerra fria e de suas estreitas relações com os militares brasileiros. De acordo com Myrian Gonzáles Vera (2002) é provável que a longevidade do regime deva-se ao uso constante da repressão e do terror, que conseguia desmobilizar e paralisar as forças opositoras. O partido Colorado também foi uma ferramenta importante para a consolidação do regime, o partido tinha uma base nacional ampla e através de suas seccionais ou subseccionais criou-se uma estrutura de clientelismo, espionagem e delação. Para ser funcionário público era necessário afiliar-se ao partido, assim a estrutura partidária incorpora milhares de cidadãos que recorriam as seccionais em busca de favores. Stroessner também fomentou o culto a sua imagem, ruas, praças, bairros, o Aeroporto Nacional de Assunção e a segunda maior cidade do país se denominavam Presidente Stroessner (VERA: 2002). Stroessner também procurou colocar-se como sucessor dos heróis da nação difundindo a ideia de que viera para trazer a paz e o progresso, assim como o fizeram os grandes heróis do passado.

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Stroessner resgatou a memória dos heróis nacionais, principalmente a de Solano López.

A educação durante o regime Stroessner

Durante o regime Stroessner ocorreram importantes reformas no sistema educacional. A primeira iniciou-se em 1956 com a mediação da Unesco e foi denominada “Reforma de 1957”. Esta reforma aspirava “elevar el nível cultural del pueblo paraguayo”(HORAK: s/d, 111) e a “una educación moderna, democrática y activa” (BENÍTEZ: s/d, 148), dentro dessa proposta foram criados os Centro de Alfabetização com a finalidade de promover um “programa intensivo de educación de jovenes e adultos” (Idem, 152). Outra mudança importante é trazida pela Constituição de 1967 que torna a educação primária obrigatória, pública e gratuita. Em 1968, o Ministerio de Educación y Culto promoveu um diagnóstico do sistema educativo e em 1970 realizou-se o Primer Seminario Nacional sobre Desarrollo Educativo, esses são os dois eventos que culminaram na formulação de uma comissão encarregada de “preparar un Proyecto para el desarrollo de la educación primaria, de las construucciones escolares, de la formación docente y del curriculum” (Idem, 155) este projeto efetivou-se através de empréstimos concedidos pela AID (Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional) e pelo Banco Mundial para implementação das “Innovaciones educaionales” em 1973. Para a educação primária, especificamente, a reforma estabelecia que um de seus objetivos era que a criança “conozca los hechos relevantes de la historia nacional, honre y respete las grandes figuras de la patria, desarrollando un patriotismo inspirado en el pasado, afincado en el presente y proyectado al futuro (...).” (Ministerio de educación y culto: 1973, 22). Já o jovem estudante de nível médio deve afirmar “una actitud positiva hacia el sentimiento de paraguayidad, que lo lleve a conocer, a respetar y amar su historia, sus riquezas naturales y artísticas, su cultura y tradiciones y se convierta él mismo en un promotor del

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incremento del patrimonio nacional” (Idem, 54). Nessa perspectiva, as Innovaciones Educacionales entendem que a História, enquanto disciplina que integra os Estudos Sociais, “trata de los éxitos y fracasos del hombre a través del tiempo” (Ídem, 103). Chama atenção também o texto do Programas de Estúdio Professorado de Educación Primária publica do em 1983, quando as Innovaciones Educacionales já estavam consolidadas. Ao serem estabelecidas as bases para educação nacional o Ministério de Educación y Culto levou em conta a natureza do homem paraguaio, a cultura paraguaia e “A la realidad nacional en su triple dimensión histórica: la de su pasado enaltecido por el ejemplo de sus héroes y prohombres, la de su presente comprometido con el proceso de su desarrollo y la de su futuro optimista y promisor (...)” (Ministério de educación y culto: 1983,13). O Guia didático dos manuais de Estudos Sociais da Serie Ñanduti, produzida pelo Ministerio de Educación y Culto, oferece sugestões metodológicas para que o professor estimule o patriotismo através de atividades propostas aos alunos que devem “(...) Leer biografías de patriotas, héroes, gobernantes, científicos y escritores nacionales. Destacar su contribución en la formación de la conciencia nacional”. (Ministerio de educación y culto: 1989, 57). Além de “participar en actos conmemorativos sobre los Símbolos Nacionales. Además pueden escribir poesías dedicadas a la bandera, el escudo, a fin de exaltar el nacionalismo paraguayo.” (idem). Assim o Ministerio de Educación y Culto, sob o domínio colorado, promoveu uma reforma calcada em valores nacionalistas e patrióticos e que atribui a história o papel mestra da vida.

O manual escolar como fonte histórica e objeto de pesquisa

Os manuais escolares apesar de serem facilmente identificáveis devido a sua, aparente, familiaridade são “objetos culturais de difícil

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definição” (2011, 299). O texto de Itamar Freitas propõe uma imagem bastante objetiva do que é um livro didático.

(....) um artefato impresso em papel, que veicula imagens e textos em formato linear e sequencial, planejado, organizado e produzido especificamente para uso em situações didáticas, envolvendo predominantemente alunos e professores, e que tem a função de transmitir saberes circunscritos a uma disciplina escolar. (FREITAS, Itamar. In: OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2009: 14)

André Mendes Salles entende livro didático “como um produto produzido por grupos sociais que, intencionalmente ou não, perpassam sua forma de pensar e agir, portanto, suas identidades culturais e tradições.” (2011, 42). Existe uma multiplicidade de definições que ratifica a ideia de que o livro didático é de fato um objeto complexo, aliás, como bem assinala Choppin “como todo objeto de pesquisa o livro escolar não é um dado, mas o resultado de uma construção intelectual” (2009, 74). Miriam Hermeto e Mateus Henrique de Faria Pereira chamam a atenção para a função social desse artefato histórico: “os livros, ao criarem interpretações que serão muito veiculadas na sociedade, tornam-se também atores históricos que interpretaram e representaram o passado, contribuindo para a construção de uma “memória do fato” (HERMETO; PEREIRA, 2009: 77). Em síntese, a noção adotada de manual didático/escolar neste artigo entende que ele é um recurso pedagógico, produzido com esta finalidade, no qual se dispõe de um discurso composto por textos e imagens que leva em consideração a faixa etária do leitor, a estrutura e a organização do sistema educacional no qual se insere, tendo o objetivo de informar sobre determinada área do conhecimento, de modo a atender a proposta curricular estabelecida pelas autoridades educacionais, que, por sua vez, regulamentam a produção e utilização dos mesmos.

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A história da guerra e o resgate dos heróis nacionais

Neste artigo procuro analisar manuais utilizados no sistema educacional paraguaio destinados ao ensino primário e a etapa básica do nível médio. De acordo com o guia didático da Série Ñanduti “el libro de texto es uno de los recursos didácticos que contribuyen al desarrollo del currículum y, específicamente en el área de Estudios Sociales, a la formación del hombre en su dimensión individual y social, con miras a convertirlo en un miembro útil y efectivo de la sociedad en que actúa(...)” (Ministerio de Educación y Culto: 1989,15). Assim, o manual escolar é um recurso pedagógico que não tem apenas uma função didática, mas também a de formar o ser humano, neste sentido, os discursos por ele veiculados extrapolam o âmbito escolar. No Manual Paraguayo de Sexto Grado - editado em 1960 pelas Ediciones Nizza na Argentina, organizado por Hugo Ferreira Gubetich, destina-se ao último ano do ensino primário - a guerra aparece como um conflito que ocorreu, não obstante, os esforços empreendidos por Carlos Antonio López ao tentar resolver as questões internacionais com seus “dois poderosos vizinhos: o Brasil e a Argentina”. Ressalta-se que as causas da guerra não tiveram relação com o Paraguai, a origem do conflito é atribuída a “Banda Oriental”, isto é, ao Uruguai. O manual inicia a história da guerra mencionando a revolução empreendida por Venancio Flores, que levou o governo de Montevidéu a solicitar apoio paraguaio. A situação se complica ainda mais quando o Brasil intervém no Uruguai pedindo reparação dos danos sofridos por seus súditos. Solano López interpreta essa atitude como indícios de que o Brasil pretendia anexar o Uruguai ao seu território e que isto violaria o equilíbrio do Plata, ameaçando também a soberania paraguaia. Mesmo com o protesto paraguaio, o Brasil atravessou as fronteiras uruguaias e em 12 de novembro de 1864 o Paraguai declarou guerra ao Brasil, em seguida o barco Marques de Olinda é detido e iniciou-se a Guerra al Brasil. Já a Guerra con la Argentina foi motivada pela recusa ao pedido de trânsito por Misiones, território litigioso, que foi negado pelo

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chanceler argentino, Rufino de Elizalde, com a justificativa de neutralidade por parte da Argentina, “pero al mismo tiempo su gobierno auxiliaba a la escuadra imperial que avanzaba por el rio Paraná rumbo al Paraguay.” Dessa forma, em 1865, declarou-se guerra à Argentina. O manual em questão destina cerca de 10 páginas ao conflito, descrevendo as batalhas e eventos considerados mais importantes. As consequências do conflito são tratadas no tópico Resultado de la Guerra. Ao fim da guerra o Paraguai estava destruído: havia perdido metade de sua população, dos 20% da população masculina restante a maioria eram crianças ou anciões, ademais com a efetivação do Tratado da Tríplice Aliança o Paraguai perdeu 150.000 Km² de seu território. A narrativa termina com a seguinte frase: “Sobre un montón de ruinas se inició la reconstrucción nacional. Alma de esta tarea fue la mujer paraguaya.” Dentre as atividades pedidas neste manual, duas chamam atenção, a primeira que prevê uma visita ao Panteón de los Héroes , Palacio de Gobierno e Museo Godoi e a última na qual pede-se que os alunos escrevam cartas a estudantes argentinos e brasileiros contando sobre as boas relações com seu país. Ficam patentes duas características sintomáticas do governo Stroessner: o patriotismo e a busca por desenvolver uma política internacional de integração com a Argentina e, principalmente, com o Brasil. Vale lembrar que é durante o regime Stroessner que são firmados convênios para construção de usinas hidrelétricas binacionais no rio Paraná, Itaipu e Yacyretá, a primeira com o Brasil, e a segunda com a Argentina. Como fechamento do capítulo há um pequeno texto para leitura, nele apresenta-se uma imagem de López que se assemelha a de Cristo, “El 14 de febrero de 1870 la caravana alcanzó su Gólgota Cerro Corá”, e continua “ El Mariscal López, al llegar hasta allí, había alcanzado, por fin, la cumbre de su calvário4 ” (GUBETICH: 1960, 115). López é ao mesmo tempo mártir e herói da pátria.

4 Grifo meu 59 fue alcanzado por el propio jefe de las fuerzas aliadas general Correa da Camara que le intimó personalmente la rendición: -Rindase Mariscal. Su vida está garantida. Soy el general que manda a estas tropas. -¡Muero por mi patria con la espada en la mano! Al contestar tiró un golpe hacia el jefe brasileño. Cámara ordenó a un soldado que le quitase la espada; éste lo agarró por el puño y ambos lucharon. López cayó dos veces al agua. Otro soldado se aproximó y aprovechando un instante en que el Mariscal se desprendió de su contrincante le disparó un tiro al corazón. Así murió poniendo una nota de gloria como epílogo de su vida y de la guerra. (GUBETICH: 1960, 117)

Nessa perspectiva López morreu pela glória da pátria. O objetivo da narrativa sobre a guerra neste manual é construir a imagem do Mcal. López como o maior prócer paraguaio. O Mi Manual de 4º grado, de autoria de autoria de Florinda Epínola e outros, editado pela F.V.D, em Assunção no ano de 1961, apresenta uma estrutura bastante diferente. Utilizando recursos editorias de cor e imagem, como também uma linguagem mais simples. É interessante salientar que nas páginas introdutórias do manual, seus autores deixam claro que reconhecem a autonomia do professor diante dos conteúdos ali expostos, o manual apresenta-se apenas como um recurso para tornar as aulas mais dinâmicas. Outro aspecto relevante é que o capítulo analisado é antecedido por uma fotografia de Itaipu, seguida do convite “conozcamos nuestra historia pátria”. O tema é introduzido, com o marco temporal de 1º de março, data em que se comemora o dia dos heróis da pátria, que é também o dia da morte de Solano López. Em seguida são propostas uma série de questões relacionadas à biografia de Solano López. Em um dos exercícios pede-se ao aluno que comente a frase de López: “muero con mi patria” e de seu filho o coronel Francisco López (Panchito) de quinze anos “un coronel Paraguayo no se rinde”. Ressalta-se também a participação das “residentas5 ” na medida em que leva os estudantes a

5 As residentas eram mulheres que acompanhavam as tropas paraguaias, parentas de soldados ou moradoras de locais por onde as tropas passaram. De acordo com Fernando Lóris Ortolan, após o término da guerra atribuiu-se a essas mulheres à imagem de heroínas que foram responsáveis pela reconstrução do Paraguai. 60

questionarem seus avós e pais a respeito dessas pessoas. Em seguida, há um pequeno texto sobre Solano López, porém a guerra é citada apenas como marco de sua morte. A estratégia do manual não é a de fornecer todos os dados factuais ao estudante, ao contrário é o próprio aluno que deve buscar as informações, norteado pelas questões propostas. Os poucos textos que constituem o capítulo ressaltam, além da figura de López, a do general Bernardino Caballero que lutou em Acosta Ñu “con 4000 niños frente a 20.000 soldados enemigos aproximadamente”. No texto, que finaliza essa temática, a história da guerra serve como pano de fundo da história de Solano López, sendo que diante de todos os seus feitos a guerra foi apenas mais um episódio. Esse manual trabalha com todos os conteúdos que devem ser estudados no 4º grado em um único volume. A história é abordada no capítulo referente aos Estudos Sociais, que não se organiza de modo sequencial, as informações históricas aparecem através das datas comemorativas, como o dia 1º de março que é feriado nacional naquele país. Tal recurso revela uma concepção positivista da história, focada nos grandes feitos e heróis, como também patriótica e de acordo com a política das ditaduras militares. Passemos agora aos manuais dedicados ao nível médio. O manual da Estudios Sociales – primer curso da Série Ñanduti - publicado em 1989 pelo Ministerio de Educación y Culto - no capitulo intitulado “Gobierno de Don Carlos Antonio López” apresenta o governo de Carlos López como responsável pelo progresso do país, assim o Paraguai figurava entre os melhores da América do Sul. Em seu governo houve desenvolvimento econômico e intelectual do Paraguai através da vinda de técnicos europeus. Nesta época, a história prometia ter “porvenir brillante para el Paraguay. Desgraciadamente la guerra del 64-70 truncó casi todas las ilusiones, sueños y realidades del Paraguay y sus hijos tuvieron que empezar de nuevo la reconstrucción de la Patria. (ALDERETE; TESSADA: 1989: 167). Após abordar os costumes na época de Carlos López as autoras elaboraram algumas atividades de síntese e pesquisa acerca do

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conteúdo, chama atenção uma questão na qual pede-se que o aluno leia e comente alguns textos pequenos, sendo que o primeiro deles, atribuído a Luis Echeverría, descreve Carlos López como uma crianças cujas “diversiones eran los libros, sus juegos era los libros, permaneciendo años enteros en su vida estudiosa, retirada y contemplativa. Su conducta como joven a los viejos asombraba.” (idem, 169). A narrativa mitifica desde a infância figura de Carlos López destacando sua maturidade e dedicação aos estudos, daí sua preocupação com o desenvolvimento intelectual do país quando presidente, bem como sua habilidade no campo diplomático. O capítulo sobre o governo de Francisco Solano López inicia com uma breve explicação sobre processo de sucessão do governo, devido à morte de Calos Lopez. Em diversos manuais escolares e livros de historiadores paraguaios aparece o relato de que antes de morrer Carlos Antonio López teria dito ao seu filho mais velho, Francisco Solano, “Hay muchas cuestiones pendientes a ventilarse, pero no trate Ud. De resolverlos con la espada sino con la pluma, principalmente con el Brasil” (idem, 170), o manual, entretanto, não esclarece que questões eram essas e em seguida questiona sobre o significado deste ultimo conselho de Carlos López, assim, o estudante deve buscar a informação e justificar sua resposta. Outra demanda interessante é que o estudante pesquise sobre a biografia de Solano López e mencione três aspectos que mais lhe causaram admiração. Este questionamento é seguido por um pequeno texto de caráter biográfico sobre López, no qual destaca-se que ele foi o maior colaborador de seu pai, era “Dinámico y estudioso, adquirió formación intelectual mediante preceptores particulares y una rica biblioteca; hablaba y escribía correctamente el francés y el inglés, y con fluidez y elocuencia el guaraní” (idem, 171). Solano López é apresentado como alguém que conhecia outras culturas, um homem de letras, mas que não se apartava das origens da cultura paraguaia, isto é, a língua guaraní.

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Em relação a narrativa sobre a guerra, ressalta-se que foi o congresso que declarou guerra a Argentina e que as questões ocorridas na região platina coincidiram com a época do governo de Solano López. Durante a guerra López “encarnó la suprema decisión paraguaya de no dejarse humillar.” (idem, 172). Ao tratar das questões de limites com os países vizinhos, o manual ressalta que em 1862 venceram os tratados de limites firmados com o Brasil e Argentina. Antes que os problemas em relação as fronteiras fossem resolvidos brasileiros ocuparam a área neutralizada pelo tratado Berges-Paranhos (1856), construindo as cidades de Dourado e Miranda. Em relação a argentina a situação era ainda mais grave porque paraguaios exilados alentaram velhas pretensões porteñas de se apoderar do governo paraguaio. Assim ao citar as causas da guerra a primeira delas foi a ambição territorial do Brasil, seguida pela revolução de Venâncio Flores, e a questão do equilíbrio dos estados do Plata. Vale ressaltar que as causas são apenas citadas, não se explica o processo que levou a guerra. Tem grande relevância na narrativa o Tratado Secreto da Tríplice Aliança, já que no documento dizia-se que “se debía respetar la 'independencia, soberanía e integridad territorial de la República del Paraguay', pero se disponía, al mismo tiempo, 'la desmembración territorial, el pago de los gastos de guerra y la indemnización correspondiente'” (idem. 176). A contradição apontada ratifica a ideia de que Brasil e Argentina ao entrarem na guerra tinham ambições territoriais em relação ao Paraguai. A partir dessa apresentação inicial da guerra, pergunta-se ao jovem sobre sua impressão em relação ao conteúdo do Tratado Secreto da Tríplice Aliança. Ao tratar das principais batalhas da guerra, o manual ressalta que o “el armamento disponible era de modelo anticuado y muchos jefes no tenían preparación, pero palpitaban en el ambiente una gran fe, una fuerza moral y una disciplina férrea” (ídem, 178). Dentre as batalhas mais memoráveis estão a de Humaitá, onde a luta se prolongou por três anos e a de Acosta Ñu na qual “ Para proteger la retirada, el General

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Bernardino Caballero organizó la defensa, con niños que prefirieron morir antes que rendirse” (ídem, 182). Durante a guerra destaca-se o altruísmo não só de López, mas também dos combatentes, entre eles crianças, que lutaram pela honra da pátria. Em 1º de março de 1870, Solano López é morto em Cerro Corá, nesta narrativa suas últimas palavras foram “morro com minha pátria”. Essa expressão é recorrente não só em manuais escolares, mas em textos de historiadores paraguaios. Thomas Whigham ajuda a entender esta expressão: As últimas palavras do Marechal foram relatadas com variações. Alguns escritores agregam ' e com a espada na mão!' ao familiar 'Morro com minha pátria'. Outros (incluindo a Centurión, por exemplo) registram as palavras como “Morro por minha pátria”. A diferença entre as duas expressões é vista como essencial para muitos paraguaios para compreender o papel de López na história nacional (…). os idólatras do Marechal no século XX converteram suas palavras em algo canônico, indicado, quase como uma última comunicação com Deus. (2012, 473).6

Como consequência da guerra a população foi dizimada, de acordo com o manual morreram 1.000.000 de pessoas, sendo que as 300.000 restantes eram, em sua maioria, crianças, mulheres e anciãos e alguns estrangeiros. Assim ficou a cargo das residentas a reconstrução do país e destaca-se seu estoicismo e grande valor. O capítulo termina citando alguns heróis da guerra dentre eles o General Bernardino Caballero descrito como El “Centauro de Ybycuí”, héroe de cien batallas, lugarteniente del Mcal. López y reconstructor de la nacionalidad aniquilada” (idem, 184). Vale lembrar, que Bernardino Caballero não foi apenas um dos principais aliados de Solano López, como também fundou o Partido Colorado. O manual do mesmo editorial destinado ao Segundo Curso da Etapa básica do Nivel Médio, tem a mesma estrutura e explica o governo dos López a partir dos mesmos pressupostos, sua diferença está

6 Tradução minha. 64

na riqueza de adjetivos com que descreve os heróis da Pátria e na ampliação da lista de “obras de progresso” feitas naquela época. Carlos López foi responsável pela lei que decreta o ventre livre, que deu início a liberdade dos escravos no Paraguai, mandou cunhar as primeiras moedas do país e “Continuó la misma política económica del Dr. Francia, el Estado paraguayo era el principal productor y exportador controlaba la economía nacional. Era un Estado mercantilista .” ( ALDERETE; TESSADA: 1989, 248). Percebe-se uma clara influência do revisionismo historiográfico produzido na década de 70-80, apesar de a ação da Inglaterra não figurar entre as causas da guerra. Assim, “Se reconoce la época patriarcal de don Carlos como una de las más progresista y fecundas de nuestra historia.” (idem, 251). Já seu filho “El Mcal. Francisco Solano López es considerado como el Primer Soldado, valiente y celoso defensor de la soberanía de nuestra patria y verdadero creador de la carrera de las armas. ” (idem, 251). Após descrever as batalhas nas quais os paraguaios demonstraram “ousadia em suas ações”, “valor e heroísmo”. Um dos questionamentos feitos ao estudante é “¿De qué manera hoy, como miembro de tu familia, tu colegio y tu comunidad puedes servir a la patria?” (idem, 265). Essa questão está de acordo com a concepção de educação dos autores desses de manuais, e que representa também a perspectiva do Ministério de Educación y Culto que, como citado anteriormente, entendia que os Estudos Sociais deveriam formar o jovem para que ele se tornasse um membro útil e efetivo na sociedade. Nos manuais destinados ao nível médio a narrativa histórica tem um caráter mais moralizador, exalta-se não apenas os grandes feitos dos próceres da história paraguaia, mas também seus atributos pessoais. Enfatiza-se também como a guerra interrompeu um período de progresso e que foram os aliados, e não Solano López, os responsáveis pela guerra. Outro fator importante é a valorização da coragem tanto dos soldados, quanto das mulheres e crianças na luta pela defesa da pátria contra o ataque dos inimigos estrangeiros que, através do tratado secreto, pretendiam submeter a nação. Ambos

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manuais procuram estabelecer um diálogo direto com seu público a partir de perguntas que questionam sobre sua opinião pessoal sobre os fatos apresentados ou que demandam uma atitude patriótica no seu cotidiano.

Considerações finais

Tanto os manuais destinados ao ensino primário editados antes da reforma de 1973, quanto aqueles direcionados ao nível médio e posteriores a reforma apesar das diferenças no que concerne à diagramação, à estrutura narrativa e aos modos de abordagem do conteúdo apresentam os López como próceres da nação paraguaia e seu governo como tempo de progresso. Vale lembrar que que uma das estratégias de Stroessner para consolidar-se no poder era convencer o povo de que viera para trazer a paz, além de prometer o progresso da nação, pondo fim as constantes lutas internas. Doratioto também salienta a importância da figura de López durante o regime Stroessner, “sob as três décadas de ditadura de Alfredo Stroessner o lopizmo tornou- se onipresente apoiado pelo Estado, e intelectuais que ousaram questionar a glorificação de Solano López foram perseguidos e, mesmo exilados” (DORATIOTO: 2002, 86). Ademais, Stroessner disseminava junto ao povo a ideia que iria reconduzir a pátria a um lugar de destaque no concerto das nações, de modo a continuar as obras dos López e também de Francia. Assim a narrativa histórica é utilizada de modo a justificar o regime, tornando o lopizmo um dos elementos fundamentais da propaganda strosnista. Desse modo, a história da guerra apresentada nesses manuais adquire um caráter ideológico e uma perspectiva eminentemente política, pois não está relacionada apenas com a formação de uma identidade nacional, mas com um plano de governo conservador, autoritário e nacionalista, que promove um culto aos heróis da pátria e também a pessoa de Stroessner que “siempre se consideró el auténtico heredero de los 'grandes del pasado'”(VERA: 2002, 164).

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REFERÊNCIAS

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ALDERETE, Elisa R. Dominguez; TESSADA, Mirtia Caballero de. Estudios Sociales Segundo curso – etapa básica del nivel medio. Ministerio de Educación y Culto – división editorial educativa, Ano:1989

ALDERETE, Elisa R. Dominguez; TESSADA, Mirtia Caballero de. Estudios Sociales Guia didáctica – etapa básica del nivel medio. Ministerio de Educación y Culto – división editorial educativa, Ano:1989

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WHIGHAM, Thomas. La guerra de la Triple Alianza – Danza de muerte y destrucción. Paraguay: Taurus, 2012.

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ENTRE ORIENTAÇÕES TÉCNICAS E DISCURSOS IMPLÍCITOS: CONHECIMENTO PRÁTICO EXPLÍCITO E ORIENTAÇÕES ANTI-LIBERTINAS IMPLÍCITAS NO TRATADO DAS ABELHAS

Bruno Vinícius de Morais1

O texto que aqui se inicia parte de uma pesquisa não finalizada, fruto de uma inquietação surgida durante o aprendizado de uma iniciação científica.2 Portanto, em vez de trazer uma conclusão de pretensão irrefutável, a intenção é ressaltar uma hipótese de interpretação; exprimir problematizações e instigar reflexões, mais que evidenciar assertivas. No final do século XVIII tornava-se perceptível que a região das minas de ouro no sudeste da América portuguesa, a capitania das Minas Gerais, não era mais tão farta para extração dos metais quanto havia sido nas décadas anteriores. A queda na produção aurífera motivou a coroa portuguesa a buscar novas perspectivas de desenvolvimento e de produção na região. Nesse contexto, ocorre o incentivo à cultura de novos gêneros comerciais, a fim de reanimar uma economia supostamente decadente, o que ocorre também como política para outras Capitanias. Fontes interessantes para a compreensão dessa política comercial são os manuais para instruções técnicas direcionados à colônia por ordem do Ministro dos Negócios Ultramarinos da Coroa, D. Martinho de Mello e Castro e por seu sucessor, D. Rodrigo de Souza Coutinho. Manuais técnicos foram remetidos à colônia na segunda metade do século XVIII, principalmente a partir de 17953 , constituindo parte de

1 Mestrando da linha História e Culturas Políticas pelo PPGH da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES. Contato: [email protected] 2 A referida iniciação científica se deu no âmbito do projeto do Prof. José Newton Coelho Meneses, Manuais técnicos para o mundo rural, com financiamento da FAPEMIG, no decorrer do ano de 2011. As questões levantadas no presente texto, no entanto, embora surgidas de inquietações de três anos atrás, permanecem potencialmente relevantes para a historiografía em 2014. 3 Ano da nomeação ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, chamado para subdividir a pasta dada por D.Maria I a Luiz Pinto de Souza Coutinho, devido ao falecimento de 69 projetos oficiais que tiveram na informação técnica ao produtor rural o fundamento de sua estruturação. Nesse contexto de queda na produção aurífera, o objetivo desses projetos era o incentivo à produção de matérias primas agrárias exportáveis no espaço colonial, inclusive o das Minas Gerais. Tal produção visava suprir um mercado crescente na Europa em industrialização e estimular a economia industrial do Reino. Portanto, não era uma preocupação imediata com a subsistência alimentar dos moradores da Colônia, embora pudesse também abrangê-la. Vale lembrar, a produção agropecuária diversificada para abastecimento interno já representava parte importante da economia das Minas desde o início da atividade aurífera, como demonstra uma historiografia mais recente.4 A proposta de D. Martinho de Melo e Castro, prosseguida por D. Rodrigo de Sousa Coutinho era de subsidiar as colônias, principalmente o Brasil, de informação técnica enquanto o reino seria incentivado à manufatura. A intenção era, conforme mensagem de D. Rodrigo ao Governador da capitania de Minas Gerais em 1800, Bernardo José de Lorena: animar muito os Povos [da capitania] à Agricultura e ao Trabalho das Minas e desviá-los das Manufacturas, que nada lhes convem, em quanto as primeiras fontes já citadas da riqueza nacional se não acharem levadas por huma proporcional População ao limitte, em que seja necessário havêr recurso às Manufacturas para o emprego dos Braços. (MENESES, 2000, p. 137)

A proposta de fomento às atividades agrícolas e à mineração como fontes da riqueza nacional nos permite ver uma influência das orientações do pensamento fisiocrata, de bastante repercussão na época. Segundo essa corrente de pensamento, a agricultura seria uma seu predecessor, D. Martinho de Mello e Castro. Mello e Castro que, por sua vez, sucedeu o Marquês de Pombal. 4 Sobre a diversidade da economia “mineira” ver, fundamentalmente, ALMEIDA, Carla M. Carvalho. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana – 1750-1850. Niterói: ICHF/UFF, 1994 (Dissertação de Mestrado); ANDRADE, Francisco E. de. A Enxada Complexa: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do Século XIX. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 1994. (Dissertação de Mestrado); MENESES, José Newton C. O Continente Rústico. Abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça Editora. 2000. 70

atividade primordial para a riqueza das nações. Conforme José Newton Coelho Meneses: A Fisiocracia tem sua concepção essencial na 'ordem natural' que, para os fisiocratas, é uma ordenação estabelecida por Deus para o bem-estar dos homens. Uma ordem, portanto, providencial que não é demonstrada, mas conhecida pelas evidências e se compõe de duplo caráter: universalidade e imutabilidade. (…) Para Quesnay, Dupont de Nemours, Turgot, Mercier de la Riviére e outros pensadores franceses, o comércio, o transporte e a manufatura não criam riquezas. Somente a classe que emprega suas energias na agricultura é produtiva. Mas abrem exceção para a mineração que, segundo eles, pode, eventualmente, produzi-las. (MENESES, 2000, p. 137)

Os manuais a que se refere o presente texto, enviados para as Minas em 1800, exemplificam, portanto, essa política de valorização da atividade agrícola. Foram produzidos pela Casa Literária do Arco do Cego que, apesar de seu breve período de existência, merece uma atenção especial na história do Império Português. A Arco do Cego foi criada por ordem de D. Rodrigo de Sousa Coutinho e patrocinada pelo mesmo para que difundisse obras que fomentassem o progresso do Império Português com a agricultura ocupando uma atenção especial, de acordo com a influência fisiocrata. O frei José Mariano da Conceição Velloso, um naturalista nascido na comarca do Rio das Mortes, bispado de Mariana, na capitania de Minas Gerais foi incumbido de sua direção. Frei Velloso vinha trabalhando com D. Rodrigo em Lisboa desde 1797 quando lhe foi ordenado “ajuntar e trasladar em Portuguez todas as memórias estrangeiras que fossem convenientes ao Brasil, para o melhoramento da sua economia rural (...)” (PAES LEME, 1999, p.79) a fim de retirar a região do atraso e colocar ao nível das demais nações concorrentes. A Casa Literária do Arco do Cego funcionou por apenas vinte e oito meses, entre agosto de 1799 até sua extinção formal por decreto, em dezembro de 1801, mas publicou mais de oitenta títulos bibliográficos, apresentando, assim, “uma abundante e fecunda

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produção bibliográfica, directamente orientada para o Brasil e para o leitor dessa que era então uma colônia (…)” (CAMPOS, 1999, p.07). Seu programa editorial contava com destacada participação de uma certa “intelectualidade brasileira” que se achava em Lisboa, inclusive oriundos das Minas Gerais, a começar pelo seu diretor, como já ressaltado. Entre seus componentes naturais do reino, destaca-se o poeta Bocage que passa a integrar a Arco do Cego em 1801. Após ter sido internado no Limoeiro em agosto de 1797, acusado pela polícia de ser autor de “papéis ímpios, sediciosos e críticos”, Bocage é libertado e encarregado da tradução de poemas didáticos franceses.5 O rápido encerramento das atividades da Arco do Cego teria sido resultado do estabelecimento de uma devassa motivada por furtos e extravios feitos pelo frei Velloso, segundo informativo de Joaquim Antônio Xavier Annes da Costa, datado de 10/03/1813 (PAES LEME, 1999). Os manuais técnicos que interessam a esta pesquisa foram remetidos ao governador das Minas, Bernardo José de Lorena, para que seus Ouvidores nas diversas comarcas vendessem os volumes aos interessados, a fim de incentivar produções agrícolas comerciais. Importante destacar que, junto às obras, foi enviada uma lista dos locais onde as mesmas deveriam ser vendidas e os valores que deveriam ser cobrados, de acordo, portanto, com o pragmatismo ordenador e regulador visto na administração portuguesa. Os valores arrecadados pela venda, aliás, deveriam ser remetidos em sua totalidade ao “Official Mayor desta secretaria d'Estado, a fim de que a Real Fazenda se indenize das despezas, que tem feito com a publicação das refferidas obras” (MENESES, 2000, p.138), conforme orientações do próprio D. Rodrigo na correspondência enviada junto aos livros, em 19 de agosto de 1800, contendo os volumes, títulos, valores e os locais com permissão

5 Em dezembro de 1804 Bocage foi denunciado à Inquisição como pedreiro-livre. Maiores informações a respeito em CURTO, Diogo. R. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho e a Casa Literária do Arco do Cego. In: CAMPOS, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional; Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999. 72 para venda. Em 22 de outubro de 1800 é enviada uma nova série de obras, totalizando 180 livros entre 15 títulos.6 Conforme os estudos de José Newton Coelho Meneses e de Maria Odila da Silva Dias, parece que esse esforço da Coroa portuguesa não proporcionou resultados práticos nas Minas Gerais setecentistas e oitocentistas.7 A racionalidade iluminada dos técnicos e administradores do reino se mostrou bastante distinta da razão instrumental e do cotidiano da produção de víveres dos colonos. A pesquisa sobre os manuais, no entanto, permite importantes descobertas sobre as políticas de desenvolvimento, as preconizações da Coroa e as teorias científicas do período. Os manuais enviados, assim como edições das obras intituladas “História da América” e “Caligrafia”, tinham base em inovadores conhecimentos científicos adquiridos por seus autores em diversas regiões do mundo, através de viagens. Aqui vale lembrar que a ampliação do conhecimento através de viagens pelo mundo não é uma novidade desse período para a intelectualidade portuguesa. A busca por um conhecimento útil através de viagens para territórios estrangeiros e para o além-mar já se apresentava em contextos anteriores. Inclusive em personagens que aprimoravam sua formação em viagens pela Europa com o intuito de promover o desenvolvimento político, econômico, e intelectual de Portugal, os chamados “estrangeirados”, ou, conforme Júnia Furtado, “emboabas ilustrados”.8 Os manuais técnicos seguiam essa intenção de promoção do desenvolvimento, finalidade explicitada por D. Rodrigo na carta anteriormente citada, datada de 19 de agosto de 1800. Nela é dito que estes “se destinam a instruir os Povos não só em objetos de Agricultura, mas também em outros importantes assuntos” (MENESES, 2000, p. 138). E é justamente sobre essa “instrução” que desejo problematizar.

6 A relação dos títulos, assim como a dos enviados em 19/08/1800, incluindo valores e os postos para venda, pode ser vista em MENESES, J.N.C (2000). p. 138 e139. 7 Mais informações nas obras de Meneses incluídas na bibliografia deste texto e também em DIAS, M. Odila da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: Revista do IHGB, vol. 278. Rio de Janeiro: UHGB, 1968, p. 121. 8 Ver FURTADO, Junia. Dom Luis da Cunha e a centralidade das Minas auríferas brasileiras. In: Anais de História de Além-Mar, Vol. VIII, 2007, p. 69-87. 73

Embora a intenção dos manuais seja o repasse de inovadoras instruções técnicas, no geral agrícolas, a leitura de uma das obras desta segunda remessa, o “Tratado Histórico e Físico das Abelhas” intriga diante do que pode ser visto como nuances de uma política moralizadora presente na obra. Adianto que não é a pretensão deste texto apresentar tal obra como um manual de doutrinamento da teoria política vigente. O próprio responsável pela impressão da obra, frei José Mariano da Conceição Velloso, na justificativa da obra, a apresenta como um estudo de um “grande objecto da economia rural” finalmente realizado por uma “hábil penna portugueza”. Demonstra na mesma introdução, aliás, preocupação com uma ampla divulgação dessa instrução em língua vernacular “para o conhecimento dos camponezes, como desconhecedores da linguagem, em que são escriptas e apenas para algum rico proprietário.” Os escritos e traduções da Arco do Cego, assim, serviriam “para que nada falte à estes homens uteis, que habitaõ os campos, e sustentam as Cidades”. Naturalmente, como vemos, há uma proposta política com o intuito de promover o desenvolvimento econômico agrário, através da divulgação de conhecimentos adquiridos por um maior estudo das ciências naturais. Estudo esse que foi fomentado pela Coroa com a reforma universitária feita no período pombalino, que resultou, em 1772, na criação de um curso de filosofia que compreendia as ciências naturais. A referência aqui proposta, porém, é a presença de nuances de uma política pela conservação moral e dos costumes, para além da instrução técnica agrícola, sua pretensão maior e imediata. É evidente o caráter de instrução apicultora presente nas suas mais de 250 páginas, no entanto, conforme Peter Burke, penso que “as formas de comunicação não são portadoras neutras de informação, mas trazem suas próprias mensagens” (BURKE, 1995, p.17). Foram raros, mas marcantes (para o autor do presente texto), esses nuances, sendo que, logo ao princípio da obra, ao enfatizar um gosto pelo trabalho presente nas abelhas e determinado pelo clima, o autor cita que tal argumento “valerá em toda casta de animaes e homens, contra a louca pretensão

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dos nossos Iluminados Filósofos.” (p.20. Grifo meu). Noutro momento, afirma: que as abelhas todas são fêmeas, mas destinadas pela natureza a ficarem todas virgens, sendo assim mais aptas ao trabalho, e à subsistência da republica. Esta consequência é bem oposta aos nossos Filósofos Libertinos, tão contrários à virgindade, e ao celibato; e que buscam nos animais a prova da sua inclinação verdadeiramente brutal. (p.39-40. Grifo meu)

O autor do tratado citado, Francisco de Faria e Aragão, um presbítero secular, era natural do reino, nascido na vila de Castelo, próxima de Ferreira de Aves, em 25/10/1726. Foi professor na Companhia de Jesus e mestre de Teologia no Colégio da Lapa, em Lamego. Partiu para a Alemanha, onde foi mestre de príncipes de uma casa reinante e, ao que parece, viajou pela Europa antes de regressar à Portugal, em 1783.9 No Tratado das Abelhas é notável o uso feito pelo autor de conhecimentos de apicultura adquiridos em diversas regiões do mundo nos remetendo aos emboabas ilustrados e aos demais viajantes ilustrados que podem ser chamados de Peregrinos instruídos, aqueles que desejam conhecer utilmente o mundo através de viagens.10 No que se refere aos trechos acima destacados, as viagens do autor tornam compreensíveis as suas referências a ideias difundidas por pensadores que não circulavam oficialmente em Portugal. No entanto, é no mínimo interessante que a crítica a essas ideias apareça em seu texto de maneira que parece subentender que seu leitor saberá o que ele compreende como “pretensão [louca] dos nossos Iluminados Filósofos” ou quanto às ideias de “nossos Filósofos Libertinos, tão contrários à virgindade, e ao celibato”, posto que não segue qualquer informação sobre as teses criticadas.

9 Uma breve biografia dos principais componentes da Casa Literária do Arco do Cego é encontrado em Campos, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional; Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999. 10 MOTT, Luís. O peregrino instruído: a propósito de um formulário etnográfico do século XVIII. Separata do Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa (Lisboa) 75-78/ III: 4-6, 1971/1973. 75 Neste ponto, torna-se importante ressaltar que muitos escritos filosóficos considerados nocivos à ordem do reino, como alguns de origem francesa e inglesa (de Voltaire, Rosseau e Hume, por exemplo), tinham circulação proibida em Portugal. Tais obras, no entanto, apareciam no reino e nas colônias por meios alternativos, na forma de contrabando, muitas vezes em traduções grosseiras, descuidadas e com muitos cortes em relação à obra original. Livros de autores portugueses também necessitavam da aprovação dos órgãos censores para serem publicados, embora houvessem impressões clandestinas, possibilitando que as ideias ainda transitassem para além do controle régio. Assim, teorias proibidas circulavam e eram de certo modo difundidas pela sociedade através da oralidade.11 Portanto, podemos concluir que as ideias criticadas por Aragão não eram desconhecidas por completo pelos portugueses no reino e no além-mar, mas sua difusão era severamente combatida pela política oficial. Outro ponto do trecho destacado que merece ser mencionado, ainda que rapidamente, é a citação sobre os filósofos “libertinos”. O período estudado é um momento de mudança no significado do conceito e o uso feito por Aragão é representativo dessa mudança. Conforme Rouanet: No século XVII, o termo libertino designava, simplesmente, o livre pensador. Era o homem emancipado dos preconceitos religiosos, (…) No final do século, o termo começou a deslocar-se para o seu sentido moderno. (…) Era um homem fino e culto, mas também um apreciador do bom vinho e das mulheres amáveis. (…) A síntese se rompeu no século XVIII (…) De um lado, a busca da verdade, que competia aos filósofos; do outro, a busca do prazer, reservada aos libertinos. (ROUANET, 1990, p.167)

Como vemos, o uso de filósofo “libertino” feito por Aragão denota um entendimento anterior à dissociação dos sentidos do termo, o que é

11 Informações obtidas nas palestras “Ilustração luso-brasileira” e “Cultura oral e escrita no Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis” ministradas por Maria Beatriz Mizza da Silva em 03/03/10 e 04/03/10, respectivamente, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG. Conclusões similares podem ser lidas nos artigos “As origens intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira” e “Impressão em Portugal: da política régia às publicações ilegais (c.1750-1806)” ambos de Luiz Carlos Villalta. 76 importante destacar sobretudo para o leitor não acostumado com a história deste conceito. É bom destacar também que haviam pensadores de caráter libertino, no significado de transição apresentado acima, em Portugal. Um caso exemplar é o famoso poeta Bocage, citado anteriormente e que chegou a pertencer à Casa Literária do Arco do Cego. Bocage foi autor de diversos escritos eróticos e também outros que, conforme já mencionado outrora, apresentavam um caráter “sedicioso e crítico”, marcados pelo anticlericalismo e adesão ao republicanismo revolucionário francês. A postura transgressora de Bocage, portanto, é a de um escritor libertino, o que lhe causou uma série de atritos com as autoridades, em especial com o intendente de polícia Inácio de Pina Manique, titular de ofício12 de enorme importância no período. Pina Manique, aliás, foi uma figura central no combate à circulação de textos e imagens consideradas ameaçadoras à ordem vigente, ou seja, o Antigo Regime. Voltando à leitura do Tratado, apesar de enfatizar que a organização das abelhas seria fruto de um instinto e não da sabedoria e amor presentes em sua república (modo como por vezes se refere às colmeias, noutras diz “cortiços”), inclusive criticando autores que dão um “grau heróico” às abelhas e enxergam “conselheiros, magistrados, trombetas, soldados, músicos, arquitetos e pedreiros” entre elas, Aragão ressalta em diversos momentos a necessidade da ordem e o grau de fidelidade à rainha como algo que Deus colocou na natureza. Em todos os animais. Esse posicionamento parece concordar com uma característica identificada por Hespanha ao refletir sobre o Absolutismo de raiz contratualista em Portugal. Segundo o autor, há no imaginário presente na teoria política pombalina e pós-pombalina: “o modo novo

12 Segundo Luiz Villalta, “é anacrônico o uso de expressões como 'funcionário público' e 'burocracia' para designar os que trabalhavam na administração real no Antigo Regime. Tais categorias foram criadas no final do século XVIII, quando se estabeleceu a distinção de poderes de Estado e se constituiu uma estrutura administrativa em que se viam esferas distintas e articuladas de competência, bem como regras impessoais de funcionamento. Trata-se, ainda, de um momento em que as esferas pública e privada tornaram-se distintas. Por isso, é preferível usar oficial, titular de ofício.” VILLALTA, L. C. Impressão em Portugal: da política régia às publicações ilegais (c. 1750-1806) In: VERRI, Gilda (org.). Memorat: Memória e cultura escrita na formação brasileira. Ed. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2011. p. 140. 77

como ela entende a sociedade e o Poder, ambos concebidos como produtos menores de uma ordem objectiva posta directamente por Deus do que do jogo, pactício ou não, dos ímpetos individuais” (XAVIER & HESPANHA, 1997, p.138). Um exemplo interessante e cômico do posicionamento de Aragão é quando se refere às abelhas “ladras”, que, além de roubar o mel, tentam matar a rainha da colmeia invadida, o que provocaria a desordem da republica. Estas “ladras de profissão” (nos termos do autor) são, como sucede aos homens, más por inclinação. E, no caso de um cortiço de ladras, as abelhas nascidas tenderão a serem ladras também, pois “os filhos fazem o que vem fazer a seus pais” (p. 191). A presença desses “nuances” nessa obra provoca maiores possibilidades de reflexão quando pensamos que o público-alvo destes manuais era uma elite econômica das Minas Gerais. Principalmente por ser na virada do século XVIII para o XIX, contexto no qual havia em Portugal, nas palavras de Diogo R. Curto, uma “Cultura política onde constantemente se detectam receios de uma conspiração e de um contágio de idéias” (CURTO, 1999, p.43). Segundo este mesmo autor, desde o final da década de 1780, havia informações no reino sobre o “aumento da circulação de livros libertinos e sediciosos que ‘confundiam a liberdade e a felicidade das nações com a licença e ímpetos grosseiros dos ignorantes, desassossegavam o povo rude, perturbavam a paz pública e procuravam a ruína dos governos’” (CURTO, 1999, p.34). Conforme falado anteriormente, a circulação clandestina desses livros e sua repercussão pela cultura oral, ocorriam no reino e nas colônias, algo que muito preocupava a Coroa. Basta recordar que em 1800 a França republicana tinha enorme repercussão, assunto discutido em cafés e botequins, tendo rompido bruscamente com a sociedade estamental e monárquica, decapitando o rei e a rainha. Anos antes, as mesmas Minas Gerais que em 1800 recebiam os manuais, tinham passado por um grave momento de contestação, também influenciado por ideias iluministas presentes em livros proibidos no Império Português. A

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chamada Inconfidência (ou “Conjuração”) Mineira envolveu parte importante da elite econômica e mesmo administrativa das Minas. Dentre as pesquisas sobre as políticas de D. Rodrigo feitas por José Newton Coelho Meneses, com principal atenção para as medidas de abastecimento nas Minas, é dito que “abriu-se espaço para uma política que visava sanar a crise econômica metropolitana e colonial, bem como serenar os ânimos no lado de cá do Atlântico, que vivia no rescaldo das Inconfidências Mineira e Baiana, da Revolução Francesa e da revolta dos escravos no Haiti” (MENESES, 2000, p.47-48). O prosseguimento por essa leitura das medidas da Coroa neste período conturbado nos leva a um artigo escrito por Luís Carlos Villalta. Segundo ele: desde os fins da primeira metade do século XVIII, reformas de cunho ilustrado pela Coroa almejavam a modernização econômica e científico cultural conservando os pilares do Antigo Regime português (absolutismo, religião católica, colonialismo e sociedade estamental) (VILLALTA, 2011) e

Dentro da política reformista da Coroa portuguesa, desenvolveu-se uma espécie de política para o livro e para a leitura, dentro da qual se inseriam, de um lado, uma política de censura e, de outro, o envolvimento em publicações de determinadas obras, cujos conteúdos estivessem em sintonia com as diretrizes mais gerais do governo (VILLALTA, 2011).

Assim, Villalta, ao refletir sobre a Casa Literária do Arco do Cego, enxerga as suas iniciativas como parte de um esforço da monarquia no sentido de dirigir um ‘público’ (...) [encarando-as] como expressão de uma nova compreensão do mundo e de uma prática política, que, em última instância, dessacralizavam as autoridades políticas e religiosas, embora se movessem conforme fins que tinham sentido oposto, isto é, a defesa do Antigo Regime (VILLALTA, 2011).

Ainda é necessária a leitura dos demais manuais técnicos enviados para averiguar se esses “nuances” encontrados no Tratado das

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Abelhas estão presentes nas demais obras e em qual proporção. Também é preciso um estudo mais sistemático para descobrir se estes manuais (e quais entre eles) foram encomendados por representantes do Estado. O Tratado das Abelhas apresenta em sua capa a informação de ter sido publicado “Debaixo dos auspícios e Ordem de Sua Alteza Real”, informação essa que, segundo o mesmo artigo de Villalta, informa que uma obra não passou por nenhum dos três órgãos censórios do período (Desembargo do Paço, Inquisição e Tribunais eclesiásticos). Vemos no citado artigo que a Arco do Cego tinha licença para publicação de obras sem necessitar da permissão dos órgãos censórios. Pois “(...) sendo a Casa do Arco do Cego um órgão da Coroa, constituído no interior de uma política mais ampla executada por esta e dirigido por alguém por ela nomeado, seria natural que estivesse isento de censura.” (VILLALTA, 2011). Resta descobrir se foram obras bem aceitas por D. Rodrigo após serem publicadas e por isso remetidas à colônia ou se interesses da Coroa (como o da instrução de técnicas agrícolas para fomentar o comércio com o mercado europeu) levaram à encomenda de escrita destes tratados. Não entrarei aqui no interessante debate sugerido por Villalta sobre o processo de dessacralização em Portugal e na Colônia e tampouco foi o objetivo do presente texto visualizar o Tratado das Abelhas nesta chave interpretativa. O proposto, contudo, é a utilização das medidas tomadas neste turbulento contexto e dessa “política para o livro e para a leitura” realizada por D. Rodrigo como mais uma possibilidade de enxergar as obras enviadas para as Minas Gerais. A possibilidade de breves e discretas proposições moralizadoras estarem presentes em obras agrícolas o que poderia combater a difusão de ideias sediciosas entre a elite econômica da região das Minas Gerais em um contexto marcado por diversas contestações da ordem vigente. Como já ressaltado, não estou defendendo que essa posição moralizadora seja uma preocupação principal da obra, até porque ela aparece em raros momentos. No entanto, mesmo que seja fruto de um posicionamento pessoal do autor, o interessante para o presente artigo

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é que ela esteja de acordo com a política oficial, podendo ser mais uma razão para a sua difusão protagonizada pela Coroa em um contexto e território tão conturbado. Os manuais técnicos enviados ainda carecem de um estudo sistemático, cabendo no que Junia Furtado chamou de um “vazio historiográfico” ao se referir ao estudo da economia produtiva agrária das Minas no oitocentos (FURTADO, 1999, p.45-49). Se o preenchimento desse “vazio” é uma contribuição necessária a ser feita pelos historiadores, a hipótese aqui levantada é a possibilidade de um veículo para um discurso técnico não ser um “portador neutro da informação”, mas sim um provável portador de discursos múltiplos, ainda que veiculados de maneira implícita.

REFERÊNCIAS

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BURKE, Peter. A História Social da Linguagem. In: A Arte da conversação. Editora UNESP, SP, 1995.

CAMPOS, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional; Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999.

CURTO, Diogo. R. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho e a Casa Literária do Arco do Cego. In: Campos, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional; Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999.

FURTADO, Junia. Dom Luis da Cunha e a centralidade das Minas auríferas brasileiras. In: ANAIS DE HISTÓRIA DE ALÉM-MAR, Vol. VIII, 2007.

MENESES, J.N.C. O Continente Rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais Setecentistas. Ed. Maria Fumaça. Diamantina. MG, 2000.

PAES LEME, Margarida O.R. “Um breve itinerário editorial: do Arco do Cego à impressão régia. In: Campos, Fernanda Maria de et al (Org.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801): Bicentenário. Lisboa: Biblioteca Nacional; Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1999.

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VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle da difusão de idéias em Portugal no ocaso do Antigo Regime. Ensaio publicado em página da web. Lisboa: Blogue História Lusófona do Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2011. Disponível em: http://www2.iict.pt/archive/doc/bHL_Ano_VI_04_- _Luiz_Carlos_Villalta__As_imagens_e_o_controle_da_difusao_de_ideias_e m_Portugal_no_ocaso_do_Antigo_Regime.pdf . Último acesso em 24/05/2014.

______. Impressão em Portugal: da política régia às publicações ilegais (c. 1750-1806) In: VERRI, Gilda (org.). Memorat: Memória e cultura escrita na formação brasileira. Ed. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2011, p. 135-204. ROUANET, Sérgio Paulo. O desejo libertino entre o Iluminismo e o Contra- Iluminismo. In: NOVAES, Adauto. Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

XAVIER & HESPANHA. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (coord). História de Portugal (O Antigo Regime). Lisboa: Editorial Estampa, 1997.

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A ARQUITETURA DA REPRESSÃO: AS NARRATIVAS NOS INQUÉRITOS POLICIAIS/MILITARES

César Nardelli Cambraia1 Francielle Alves Vargas2 Paula Carvalho Tavares3 Thaynara Nascimento Santos4

Introdução

Segundo Bandeira (2010), o golpe de Estado que deu origem à ditadura que perdurou de 1964 a 1985 no Brasil foi um episódio de luta de classes:

O golpe de Estado em 1964 constituiu um episódio da luta de classes, com o qual o empresariado, sobretudo seu setor estrangeiro, tratou de conter e reprimir a ascensão dos trabalhadores, cujos interesses, pela primeira vez na história do Brasil, condicionavam diretamente as decisões da presidência da República, devido às vinculações de João Goulart com os sindicatos. (BANDEIRA, 2010, P. 415)

Dentre os instrumentos utilizados pela ditadura para reprimir qualquer manifestação de dissidência ideológica havia os inquéritos policiais/militares (IP/Ms). Esses procedimentos geravam processos com documentação para apresentar acusação àqueles que não sucumbissem ao estado totalitário e à sua ideologia. Uma questão interessante de se discutir é de que forma os IP/Ms deixavam transparecer as contradições entre o discurso anticomunista que havia sido utilizado como justificativa para o golpe e os objetivos subjacentes, segundo a interpretação da luta de classes, de frear o processo de ascensão dos trabalhadores. No presente trabalho, pretende-se investigar essa questão com base na documentação do Departamento de Ordem Política e Social

1 UFMG/CNPq. 2 UFMG/CNPq. 3 UFMG. 4 UFMG/PROGRAD. 83

de Minas Gerais (DOPS-MG) atualmente disponível no Arquivo Público Mineiro (APM).

Inquéritos policiais/militares

Segundo estabelece o Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), vigente no período da ditadura, e ainda hoje, o inquérito policial (IP) tem por finalidade “a apuração das infrações penais e da sua autoria” (Liv. I, Tít. I, Art. 4º). Sua realização deve incluir as seguintes tarefas:

I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; V - ouvir o indiciado, (...) devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura; VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações; VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter. (Liv. I, Tít. II, Art. 6º)

Essas tarefas darão origem a um conjunto de peças de informação: “Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade” (Liv. I, Tít. II, Art. 9º). Acompanhará esse conjunto um relatório: “A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente” (Liv. I, Tít. II, Art. 10, §1º).

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O inquérito policial militar, segundo estabelece Código de Processo Penal Militar (Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969), diferencia- se do anterior basicamente em função da natureza do crime, no caso, militar: sua finalidade é “a apuração sumária de fato, que, nos termos legais, configure crime militar, e de sua autoria” (Liv. I, Tít. III, Cap. Único, art. 9º). As tarefas de realização do IPM são, na sua essência, quase iguais às do IP:

Art. 12 (...) a autoridade (...) deverá, se possível: a) dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e a situação das coisas, enquanto necessário; b) apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato; c) efetuar a prisão do infrator, observado o disposto no art. 244; d) colher todas as provas que sirvam para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias. Art. 13. O encarregado do inquérito deverá, para a formação deste: (...) a) tomar as medidas previstas no art. 12, se ainda não o tiverem sido; b) ouvir o ofendido; c) ouvir o indiciado; d) ouvir testemunhas; e) proceder a reconhecimento de pessoas e coisas, e acareações; f) determinar, se for o caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outros exames e perícias; g) determinar a avaliação e identificação da coisa subtraída, desviada, destruída ou danificada, ou da qual houve indébita apropriação; h) proceder a buscas e apreensões (...); i) tomar as medidas necessárias destinadas à proteção de testemunhas, peritos ou do ofendido, quando coactos ou ameaçados de coação que lhes tolha a liberdade de depor, ou a independência para a realização de perícias ou exames. (Liv. I, Tit. III, Cap. único, Arts. 12 e 13)

Como se vê, esses ritos jurídicos constituem-se de uma sucessão de eventos para apurar uma infração penal, sendo cada passo registrado textualmente, dando origem a uma macronarrativa (resumida pelo relatório final), composta de micronarrativas (representadas por

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cada peça de informação, como os termos de declaração das testemunhas e dos indiciados). Vejamos a seguir como, na prática, essas narrativas se manifestaram na documentação do DOPS-MG durante a ditadura de 1964-1985.

O CORPUS

Como assinala Silva (2007, p. 104), o primeiro órgão de polícia política de Minas Gerais foi criado em 1922 (com o nome de Gabinete de Investigações e Capturas), passando por diversas transformações até fixar a designação de Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em 1969 (Lei n. 5.406 de 16 de dezembro de 1969, art. 51). As modificações refletiam as conjunturas sociais de cada época, como foi o caso na década de 50:

na visão dos integrantes da polícia, o avanço dos movimentos sociais era um indicador da necessidade de reforçar e ampliar a estrutura repressiva. Provavelmente o argumento era utilizado inclusive para ganhar espaço no próprio campo político ao propugnar o perigo de um iminente colapso social que só poderia ser contido com o fortalecimento do aparato policial. (SILVA, 2007, p. 107)

A documentação do DOPS foi recolhida ao APM em 1998 através de 98 rolos de microfilmes, contendo 5.489 pastas (60 delas em branco) numeradas provavelmente na microfilmagem. O APM recebeu uma listagem com o número da pasta e seu título, abarcando apenas 2.120 delas. Segundo apurou Silva (2007, p. 134-136), 1.748 pastas (31,12%) foram abertas e encerradas entre 1964 e 1979, havendo pico de abertura entre 1964 (258 pastas) e 1968 (315 pastas): É sintomático, pois, em 1964, logo após o golpe, houve um movimento de perseguição àqueles que se mostravam contrários ao governo que se impunha e 1968 também é um ano importante, pois, nesse período, os militares, sob a justificativa de combater a luta armada, reforçaram o aparato repressivo, inclusive do ponto de vista legal cujo

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ponto nevrálgico foi a promulgação do Ato Institucional n. 5 de 13 de dezembro de 1968. Silva (2007, p. 136)

Apesar da quantidade de documento disponível para o período de 1964 a 1985 (1.748 pastas), a presente análise será feita de forma prioritariamente qualitativa, dada a grande dificuldade de localizar de forma sistemática dados relevantes para viabilizar uma investigação de base quantitativa. Uma futura melhoria da indexação do acervo do DOPS permitirá confrontar os resultados aqui encontrados com uma base documental mais robusta. Fizemos uma busca na base do APM com a expressão “inquérito” na faixa de tempo de 1964 a 1985, obtivemos o retorno de 71 pastas, distribuídas em 102 arquivos pdf, totalizando um conjunto de 1.796 páginas: para 29 pastas, o título era Inquérito Policial; para 12, era Inquérito Policial Militar; e, para as demais, o título era diversificado (identificando nome de pessoa, de organização, do tema, etc.).

A macronarrativa: tipologia das peças de informação

Como já assinalado acima na apresentação das tarefas dos IP/Ms, esses ritos jurídicos dão origem a um conjunto de unidades documentais (“peças de informação”). As informações disponíveis na base do APM sobre a tipologia da documentação do acervo do DOPS-MG são muito vagas e atomísticas. Consta apenas uma longa lista de 38 tipos genéricos sem indicação de sua interrelação:

Correspondências expedidas e recebidas pela polícia, mandados de prisão, prontuários de presos políticos, fichas policiais, atestados de antecedentes político-sociais, depoimentos, ordens de serviço, pedidos de busca, autos de apreensão, materiais apreendidos, documentação de organizações (partidos políticos, organizações político- militares, sindicatos, associações comunitárias, entidades estudantis, organizações religiosas), documentação de empresas e instituições públicas, relatórios de investigação, relatórios de manifestações públicas (greves, eleições, eventos culturais, festas, visitas de autoridades políticas), documentação relativa ao controle da comercialização de armas e munições, documentos sobre movimentos na zona rural, inquéritos policiais- militares, laudos técnicos periciais, leis, decretos, portarias, panfletos, folhetos, livros, textos de análises teóricas, 87

periódicos nacionais e estrangeiros, recortes de periódicos, caricaturas, charges, documentos pessoais, cartas anônimas, bilhetes, cartões-postais, telegramas, fotografias, materiais cartográficos e documentos sobre censura. (APM, 2014)39

No conjunto das 71 pastas (1.796 páginas) analisadas de inquéritos, foi possível identificar em 35 tipos diferentes de documentos:

1. Anexo No 4 19. Memorando 2. Antecedentes 20. Ofício confidencial 3. Assentada 21. Ofício secreto 4. Autuação 22. Ofício-circular secreto 5. Boletim Individual 23. Pedido de busca 6. Certidão 24. Pedido de busca de Informações 7. Coleta de dados informativos 25. Portaria 8. Conclusão 26. Recibo 9. Declaração 27. Relatório 10. Declaração de poderes 28. Requerimento para atestado de 11. Edital de citação antecedentes políticos e sociais 12. Exposição 29. Solicitação de antecedentes 13. Ficha de IPM 30. Termo de acareação 14. Guia de recolhimento 31. Termo de declarações 15. Índice dos indiciados e dos 32. Termo de inquirição de envolvidos testemunha 16. Informação 33. Termo de perguntas ao indiciado 17. Informação confidencial 34. Termo de reinquirição ao 18. Informativo indiciado 35. Verificação de jornais

Mas que interrelação existe entre essa documentação? Uma parte da resposta a esta pergunta consta de uma pasta que não foi listada na referida busca: trata-se da pasta sob a cota BR MGAPM,XX DMG.0.0.646, intitulada na base como Eleições. Embora haja de fato nessa pasta, composta de 6 arquivos e um total de 197 páginas, vários telegramas sobre as eleições de 30 de junho de 1963, a parte relevante para a presente discussão está logo no primeiro arquivo entre as páginas 12 a 15. Trata-se de um conjunto de documentos assim intitulados:

Decreto No 53.897, de 27 de abr de 964 [p. 2-4]; Instruções para os inquéritos policiais e IPM (aditamento) [p. 5-11];

5 http://www.an.gov.br/mr/Multinivel/Exibe_Pesquisa_Reduzida.asp?v_CodReferencia_ID=221

88 Instruções para os inquéritos policiais e IPM [p. 12-13]; Portaria No 1 [p. 14] e Ato No 9 [p. 15].

Trata-se de um conjunto de documentos que orientam sobre a realização dos IP/Ms. O mais interessante é o segundo deles, pois oferece informações relevantes do ponto de vista técnico e ideológico (cf. reprodução no anexo deste texto). Primeiramente, consta nessas Instruções, de autoria do Major Estevão Taurino de Rezende Neto, um roteiro para constituição de IP/M, evidenciando assim o que se pode chamar de sua estrutura prototípica. Segundo se apreende do Anexo No 1 dessas Instruções, essa estrutura seria:

Figura 1 – Estrutura prototípica do IP/M [BR MGAPM,XX DMG.0.0.941/APM6 ]

Autuação (registro da portaria) ↓ Portaria de designação (instauração do inquérito) ↓ Termo de inquirição de testemunhas ↓ Juntada de provas documentárias ↓ Libelo (relato das acusações ao indiciado) ↓ Termo de perguntas ao indiciado ↓ Relatório ↓ Remessa (ofício do encarregado ao Presidente da Comissão Geral de Investigação)

É interessante salientar que nas pastas examinadas não há sempre a obediência a essa estrutura, faltando em muitos casos diversas partes do IP/M. Em 35 das 45 pastas examinadas, há apenas um relatório relativo a alguma cidade do interior de Minas Gerais, com descrição de perfil de pessoas e organizações. Em alguns poucos, como

6 http://imagem.arquivonacional.gov.br/mr/arquivos/naorestrito/61565_4284.pdf.

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no relativo a ações para criação de um sindicato rural na cidade de Novo Cruzeiro (BR MGAPM,XX DMG.0.0.941), consta um conjunto mais completo e, portanto, mais próximo da estrutura prototípica. Sua constituição é a seguinte: Figura 2 – Estrutura do Inquérito Policial de Novo Cruzeiro [BR MGAPM,XX DMG.0.0.941/APM]

Neste organograma, a ordem os documentos na pasta segue da esquerda para a direita e, quanto há documentos do mesmo tipo, de cima para baixo; as setas indicam a ordem cronológica dos documentos, que começa com a autuação (24.04.64), em amarelo, e termina com a correspondência no início da pasta (17.07.64), em verde. Os investigados estão em vermelho e as testemunhas em roxo. Neste IP constam a autuação, a portaria, os termos de inquirição de testemunhas (sob a designação assentada), os termos de perguntas ao indiciado (sob a designação de termo de declarações [=TD]) e o relatório. Constam como documentos não previstos na estrutura prototípica (cf. FIG 1) a solicitação de antecedentes [=AS] e os boletins individuais [=BI]. O inquérito, no entanto, na sua forma preservada, não parece totalmente coerente, já que no relatório se trata de apenas um dos investigados (A.P.S.), mas, em seu começo, consta o boletim individual de cinco outros (A.B., A.R., J.R.B., W.R.A. e E.A.C.) com a acusação de “crime contra a Lei de Segurança Nacional”, tendo como “meio empregado" a 90

“subversão” e como “motivos presumíveis” a “tomada de poder”. Essas acusações contrastam fortemente com o teor do relatório, cujo parecer “altamente” técnico descreveu um dos acusados, A.P.S., da seguinte maneira:

Trata-se de um desocupado, que antes exercia a profissão de alfaiate, mas que ultimamente é dado ao jogo, vivendo divorciado de bons ambientes, tendo, por isto, facilidade de manifestar sua maluquice. (BR MGAPM,XX DMG.0.0.941/APM, arquivo 62136_4946, p. 21)

De toda forma, a verificação da complexidade da tipologia da documentação com base na presente análise preliminar sugere que esse tema deva ser futuramente aprofundado para: (a) permitir uma melhor intelegibilidade dos processos através da demonstração da organicidade das peças no conjunto e (b) para servir de fundamento para a detecção do grau de mutilação7 da documentação remanescente do DOPS-MG, pois, como já se mencionou, raras são as pastas de IP/Ms com todos os elementos da estrutura prototípica prevista.

As micronarrativas: termos de declaração e relatórios

O já referido conjunto de documento da pasta sob a cota BR MGAPM,XX DMG.0.0.646 é também revelador em relação as micronarrativas, pois os roteiros propostos deixam transparecer a forma difusa de condução dos inquéritos. No Anexo No 3 das referidas Instruções, aparece uma proposta de 12 temas para serem abordados durante os IP/Ms:

1. - Opinião sobre a ordem econômica, política e social, Constituição e Governo vigentes até a Revolução. 2. - Em caso de julgamento (do depoente) de ser um ou todos aqueles elementos inadequados, como via sua alteração: Ação pacifica e democrática ou meios violentos? 3. - Atitudes e ações tomadas em favor da idéia.

7 Há notícia de que a documentação do DOPS não terá passado por triagem (Scofield, 2012). 91

4. - Opinião sobre outros elementos que participam da mesma idéia no caso de ser ela em favor de alterações. 5. - Opinião sobre o levante de Brasília, motim dos marinheiros e fuzileiros reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos (GB), reunião dos Sargentos no Automóvel Clube (GB) e comício de 13 de março frente à Central do Brasil (GB). 6. - Opinião sobre o comunismo no Brasil. Legalização do P.C. Contribuição do depoente para ações do comunismo. 7. - Conduta em caso de tomada do poder pelos comunistas. 8. - Como encarava as denúncias de que os comunistas já estavam no Governo do Sr. JOÃO GOULART. 9. - No caso de reconhecer a existência no País, antes da Revolução, de clima subversivo de fundo comunista, quais os esclarecimentos que pode prestar. 10. - A solução econômica, política e social para ser efetivada deverá se processar através de agitações, greves, lutas de classes, desmoralização das Forças Armadas, etc, como vinha acontecendo, ou poderá ser conseguida por meios normais, pacíficos e democráticos? 11. - Opinião sobre a tentativa do Governo passado para obter, através do plebiscito a reforma da Constituição. 12. - Opinião sobre o voto do analfabeto. (BR MGAPM,XX DMG.0.0.646/APM, arquivo 61565_4284, p. 10)

O documento com o temário não apresenta data explícita, mas deve datar de logo depois do decreto 53. 897, de 27 de abril de 1964, pois é-lhe um aditamento. Dentro da lógica do anticomunismo da época, entende-se a pertinência de questões como a segunda (alteração da ordem “por meios violentos”) ou a décima (“solução econômica, política e social (...) através de agitações, greves, lutas de classes, desmoralização das Forças Armadas”), mas certamente não são devidamente objetivas questões como a primeira (“Opinião sobre a ordem econômica, política e social, Constituição e Governo vigentes até a Revolução”). De todas as questões do roteiro, no entanto, a que mais chama a atenção é justamente a última, pois revela preocupação menos com a segurança do País e mais com a perspectiva de participação popular na política do País. Essa contradição fica ainda mais evidente considerando o teor do decreto ao qual acompanha o aditamento: o decreto no 53.897 92

regulamenta os artigos sétimo e décimo do Ato Institucional de 9 de Abril [o AI-1]. Esses artigos, que legislam sobre a suspensão de “as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade” (art. 7º), previam como motivação para a suspensão casos em que os titulares das garantias “tenham tentado contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração pública” (art. 7º, § 1º). É claro que a questão do voto do analfabeto passa longe de qualquer ameaça contra “a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração pública”, sendo ele justamente o que tornaria um regime efetivamente democrático, pois só com o voto do analfabeto, legitimado com a Constituição Federal de 1988, houve uma efetiva participação popular nas eleições. O roteiro de temas sugerido pelas Instruções foi de fato adotado, como se constata pelo trecho abaixo extraído de um termo de perguntas ao indiciado (indicamos o número do tema das instruções entre colchetes):

(...) [1a] perguntado que acha da situação econômica do país no tempo do governo anterior à Revolução, respondeu que nada pode dizer; [1b] perguntado que acha da situação política do País anterior da Revolução, respondeu que não entende de política; [1e?] perguntado que acha da farsa do Governo ao tempo de Presidente deposto, respondeu que não sabe explicar; [5a] perguntado qual a opinião sobre o levante de Brasília, respondeu que leu somente por alto nos jornais, mas que não sabe explicar pormenores; [5b] perguntado se soube do motim dos marinheiros, respondeu que não, desconhece o assunto; [5d] perguntado se teve conhecimento do comício de treze de março (comício da reforma), respondeu que sim, que ouviu pela televisão rapidamente quando passava por um bar; [5d?] perguntado se conhece algo das reformas, respondeu que muito pouco, e que só tem ouvido falar por alto; [5c] perguntado se teve conhecimento da reunião no Automóvel Club do Brasil, respondeu que sim; [5c] perguntado qual sua opinião sobre esta reunião, respondeu que achou que a disciplina militar fora (...) ferida e que seria difícil fazer daquela maneira as reformas pregadas pelo Presidente; [12] perguntado que acha do voto de analfabeto, respondeu que é a favor do voto de

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analfabeto (...) (BR MGAPM,XX DMG.0.0.411/APM8 , arquivo 60939_3783, p. 7 [documento datado de 12.06.64])

O aspecto formulaico dos IP/Ms revela-se não apenas na padronização de perguntas a testemunhas e indiciados, mas também na própria redação dos relatórios, para os quais as ditas Instruções também forneciam modelo com acusações pré-formuladas. No Anexo No 4 das Instruções, consta uma ficha modelo com uma breve narrativa acusatória seguida mais adiante do enquadramento: 1. - TENDÊNCIAS: Conhecido por suas tendências comunistas. Esquivou-se de dirigir a palavra a seus subordinados por ocasião das comemorações da intentona comunista do ano de 1962. Durante a instrução de Guerra Revolucionária evidenciou-se ser: ateu, materialista, adepto da estatização9 em todos os setores econômicos. Constantemente defende a política de autodeterminação e não intervenção; é um entusiasta da revolução cubana. (...) 4. - ENQUADRAMENTO: Incurso nos Art. 130 e 133 do CPM, Art. 2º § III, e Art 9o, da Lei 1802/53. - Proposto para ser transferido para a reserva remunerada de acordo com o art. 7o, § 1º, do ATO INSTITUCIONAL, do Comando Supremo Revolucionário. (BR MGAPM,XX DMG.0.0.646/APM, arquivo 61565_4284, p. 11)

Nova busca na documentação do DOPS revelou que esse roteiro também foi posto em prática: 1.TENDÊNCIAS: Conhecido por suas tendências comunistas, confessou ser socialista moderado. - Doutrinador, calmo, fala pouco e foge à discussão que contraria seu ponto de vista. Elemento perigoso por ter facilidade de estabelecer uma conversa sobre assuntos variados, onde tem oportunidade de doutrinar seus colegas. Favorável às reformas e defende a estatização, voto dos cabos e soldados e elegibilidade dos sargentos. (...) 4.ENQUADRAMENTO: Incurso nos artigo 11 letra a e 3º da lei 1802, de 5 Jan 953.

8 http://imagem.arquivonacional.gov.br/mr/arquivos/naorestrito/60939_3783.pdf. 9 No original: “estalização”. 94 - Proposto10 para ser demitido do Serviço público, de acordo com o artigo 7º 1º do Ato Institucional, do Comando Supremo Revolucionário, e cassado os seus direitos políticos. (BR MGAPM,XX DMG.0.0.591/APM11, arquivo 62046_4908, p. 7 [documento datado de 14.09.64])

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente análise, de natureza exploratória, buscou investigar como se organizavam as narrativas que constituíam os inquéritos policiais/militares. Apurou-se que essas narrativas se distribuíam em dois níveis: nas macronarrativas, constituídas pelo registro da sucessão de eventos responsáveis pela produção das peças de informação dos inquéritos; e nas micronarrativas, constituídas pelo registro da sucessão de perguntas pelos encarregados dos inquéritos e de respostas pelas testemunhas e pelos indiciados. No que se refere às macronarrativas, foi possível verificar a proposição de uma estrutura prototípica por parte de membros do Estado, com vistas a uniformizar o processo em todo o território nacional. Analisando os IP/Ms do acervo do DOPS-MG, verificou-se que, na prática, os processos apresentam muito mais peças do que as previstas na referido estrutura prototípica, exigindo, assim, uma análise futura mais detalhada para descrever as suas interrelações, permitindo, como consequência, detectar com mais clareza as mutilações do acervo remanescente. No que tange às micronarrativas, verificou-se que havia orientação para que os inquéritos fossem conduzidos segundo um modelo específico de questionamentos, cujos temas apresentavam certa vaguidão em relação os objetivos propugnados pelo AI-1. Saltam aos olhos temas como a questão do voto do analfabeto (que revelariam estar por trás dos inquéritos a preocupação com o avanço da participação da população na vida política do País), questão

10 No original: “Preposto”. 11 http://imagem.arquivonacional.gov.br/mr/arquivos/naorestrito/62046_4908.pdf. 95

nitidamente incompatível com os objetivos oficiais dos inquéritos e do previsto no AI-1. Modelos também foram adotados para os relatórios, com texto pré-estabelecido para o enquadramento, mas não para o não-enquadramento, o que sugere que havia uma preocupação maior em acusar do que propriamente em apurar a verdade dos fatos.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/del3689.htm; acesso em 06.04.2014.

BRASIL. Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de Processo Penal Militar). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm; acesso em 06.04.2014.

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SCOFIELD, P. Documentos da ditadura militar foram triados por torturador. Hoje em Dia, Belo Horizonte, 04 nov. 2012. Disponível em: http://www.hojeemdia.com.br/noticias/politica/documentos-da-ditadura- militar-foram-triados-por-torturador-1.52789; acesso em 17.04.2014.

SILVA, S. L. da. Construindo o direito de acesso aos arquivos da repressão: o caso do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais. 253 f. Belo Horizonte, 2007. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Ciência da Informação.

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ANEXO

Fac-símile do documento BR MGAPM,XX DMG.0.0.646/APM

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ECO NO CAMPO: O MITO DO HERÓI DE JOSEPH CAMPBELL E A MITIFICAÇÃO DE UMBERTO ECO NOS SUPER-HERÓIS

Edson Wilson Mendes de Almeida1

It’s a Bird... It’s a plane... It’s Superman!2

Toda sociedade ou comunidade tem seus heróis, sejam reais ou ficcionais. Vindos pela boca de um xamã em transe ou de literato debruçado sobre seus alfarrábios que narram à existência de um ser que lutou contra forças negras e devastadoras. Um ser que, se real, lutou até os fins de sua vida pelo bem de uma sociedade. Esta existência é colocada por Joseph Campbell “Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, o mito humano tem florescido” (CAMPBELL, 1995, p.15). O nascimento do herói é baseado na necessidade de se existir, entre humanos comuns, alguém que os defenda, que enfrente o grande inimigo que deseja eliminar ou dominar sua comunidade. Esta necessidade envolve contos e lendas, alastrando-se da religião à cultura de massa, passando pelos poemas, novelas, romances, operas, peças teatrais, cinema e histórias em quadrinhos. Sua função, se assim podemos colocar, não é servir apenas de contos de ninar para os pequenos, ou para os religiosos obrigar os fieis a ouvir suas profecias, ou ainda para se vender livros e outros produtos. “O prodígio reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar centros criativos.” (CAMPBELL, 1995, p.15). Ao vencer o inimigo de forma magistral e definitiva, o herói inspira uma pessoa a tomar uma atitude, a lutar por seus direitos, ou a narrativa pode apenas servir de acalento para alguém suportar melhor uma condição, onde o ser a ouvir ou ler a narrativa se transporta um momento para fugir da sua condição.

1 Graduado em História pela UEG – Unidade Formosa em 2005; Pós-Graduado em História Cultural pela UEG – Unidade Formosa em 2006. 2 Traduzindo: É um pássaro? É um avião? Não. É o super-homem! 104

Estes heróis estão presos ao seu tempo, mas não necessária mente ao seu local. Sua luta é contra algo que preocupe sua comunidade, ficando localizado ao seu ponto de existência. Por mais que a cultura romana tenha absorvida a cultura grega, no caso dos deuses, mas os heróis não foram absorvidos, não receberam outros nomes ou algo similar. Roma gerou outros heróis, ligados a sua existência, as suas necessidades. Esta ligação com seu tempo e localidade é necessária para fazer o herói atingir seu “público”. Joseph Campbell nos leva então a jornada do herói. Uma jornada que vai tirar o herói da sua condição padrão e leva-lo até os caminhos da aventura e por fim da vitória sobre o grande inimigo. Esta jornada, muitas vezes, é de encontro para o herói, onde ele tem de descobrir seus defeitos, suas virtudes. A jornada nunca é igual, podendo ter pontos semelhantes, mas não os mesmos desafios ou questionamentos que o herói tem de fazer para alcançar o objetivo e se tornar o campeão da sua comunidade. Figura 1- Joseph Campbell

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Os super-heróis das histórias em quadrinhos são seres ficcionais, criados para grandes empresas com o objetivo de entreter e fazer com que estas empresas ganhem dinheiro, tanto que os personagens das duas grandes empresas, DC Comics e Mavel Comics, não pertencem aos seus criadores, mas sim as empresas, já que estas pagaram pela criação. Estes seres são muitas vezes gerados em pleno ato de dor e sofrimento, algo próximo as tragédias das peças teatrais gregas ou dignas de um momento final de Shakespeare, mas devemos nos ater que não estamos nos relacionando com um momento final, mas sim o inicio da jornada deste heróis que deve começar sua jornada, da forma como Campbell nos informa que toda jornada deve começar: “A primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torna-las claras, erradica-las em favor de si mesmos (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da assimilação” (CAMPBELL, 1995, p.27).

Ao olharmos para a origem de alguns super-heróis, o inicio da jornada começa na verdade com a perda de um ente querido, ou com um momento de fraqueza, “Conhecemos bem demais o amargor do fracasso, da perda, da desilusão e da não-realização irônica que corre 106

até mesmo nas veias daqueles que o mundo inveja”3 ao olharmos para os personagens Super-homem (Superman, no original) criado pelos jovens Jerry Siegel e Joe Shuster, Batman criado por Bob Kane e co- criado por Bill Finger, Homem-Aranha (Spiderman, no original) Stan Lee e Steve Ditko, ou Homem de Ferro (Ironman) criado por Stan Lee e desenvolvido por Larry Lieber sendo desenhado por Don Heck e Jack Kirby, suas origens envolvem dor e sofrimento e sua jornada inicial envolve uma jornada pelo eu interior. Começamos pelo primeiro de todos, Super-Homem. Seu nascimento é em um planeta distante que estava condenado a destruição, os pais decidem enviar o único filho para um planeta distante, mas esta não é a jornada do herói. Quando a nave do pequeno é encontrada por um casal, Jonathan e Martha Kent, do interior do Kansas, que o adota como seu filho, Clark Kant, que tem uma criação típica do interior dos Estados Unidos, sendo um fator importante para a as aventuras do super-herói. A jornada do herói começa quando este nota que não é como as outras crianças, tendo habilidades que os “humanos” não possuem. Por qual motivo o extraterrestre não toma o controle da nação e lidera com mãos de ferro ditatorial, visto que é mais forte e invulnerável? A resposta esta na criação que teve de seus pais terrenos, que busca pregar o ensinamento de ajudar o próximo, sempre que possível.

3 Campbell, Joseph. O herói de Mil faces. Pagina 34. 107

Figura 2 - Capas das revistas Action Comics e Superman

Mas diferente do extraterrestre poderoso e invencível, Batman nasceu no ano seguinte é completamente diferente, seria algo mais próximo do herói grego Odisseu. O jovem Bruce Wayne assiste seus pais serem mortos por um bandido num beco escuro. Pouco tempo depois o jovem jura no túmulo de seus pais que lutara para livrar sua cidade da criminalidade, eliminando os bandidos. Para conseguir manter seu juramento Bruce Wayne, saí pelo mundo aprendendo artes marciais, técnicas de fuga, investigação entre outras artes e técnicas com o objetivo de ser o melhor homem. A jornada para o personagem Batman envolve tanto a dor quando o conhecimento de si mesmo, onde sua jornada por aprender técnicas e artes para melhorar mente e corpo o levando para uma jornada interna e profunda.

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Figura 3 - Detective Comics nº 27, 1939

A grande semelhança entre Clark Kent e Bruce Wayne é o momento histórico dos personagens. Os Estados Unidos, sob o comando do presidente Franklin Delano Roosevelt havia vendido a grande depressão, o trabalho e a economia voltavam a reinar na vida das pessoas. Os heróis são pessoas de trinta e poucos anos, bem sucedidos, já que Wayne apesar de ser um playboy, também é dono das Indústrias Wayne. Clark Kant é um jornalista que procura estar onde a notícia acontece, sendo ganhar de prêmios e notoriedade em sua comunidade. Os personagens da editora Marvel foram criados nos anos de 1960, durante o período de ebulição cultural, onde podemos encontrar a guerra fria, a revolução cultural, política e sexual, além do crescimento da participação do jovem na sociedade, tanto nos Estados Unidos como na Europa, sendo que neste mesmo momento os países da América Latina conheciam a ditadura e as perseguições políticas.

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Poucos super-heróis são tão próximos a jornada do herói como Peter Parker, também conhecido como Homem-Aranha. Um jovem CDF sem nada em comum que ganha poderes, muito por acaso, ao ser “picado” por uma aranha radioativa. Suas habilidades são um misto de “delírio” de seus criadores com algumas habilidades de uma aranha. Para ter uma teia, o jovem Peter teve de criar em laboratório um composto químico que simula, lembrando que nem toda aranha “gera” teia, sendo neste caso, não havendo um distanciamento da realidade. Agilidade, equilíbrio, poder escalar superfícies e um sentido que o alerte dos perigos também são próximos a muitas espécies de aranhas, porém a força sobre humana não vem das aranhas, pois nenhuma tem tal habilidade. As habilidades não fizeram de Peter um super-herói, pois o que realmente desejava era ficar rico e assim deixar a vida sofrida que levava, e dar uma condição melhor aos seus tios Ben e May. A jornada do herói só começa quando Peter descobre que o bandido que havia assassinado seu tio, era o mesmo que ele havia deixado escapar de um segurança, após um assalto a emissora de TV. “Com grandes poderes vem grandes responsabilidades”, frase dita pelo tio Ben tempos antes se tornou à máximo do personagem. A jornada interior de um adolescente começa quando ele passa assumir responsabilidades que antes não tinha, assim aprende Peter Parker e passa seus leitores esta condição.

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Figura 4 – Estreia do Homem-Aranha na edição 25 da revista Amazing Fantasy

Diferente de Peter Parker, o magnata Anthony “Tony” Stark, não tem problemas financeiros, pois seu pai construiu um império baseado no avanço tecnológico de um mundo em expansão. Tony Stark, como prefere ser chamado, foi criado para ser o sucessor de seu pai nas empresas, tanto na parte administrativa, quanto na parte criativa, abastecendo a indústria bélica com sua genialidade, criando assim uma forte ligação com o governo dos Estados Unidos. A jornada do herói deste personagem vem da busca pela sobrevivência, pois quando estava em viagem pelo Vietnã em guerra, o empresário acionou uma mina terrestre que disparou, alojando estilhaços em seu coração, sendo logo depois pego como refém de um grupo guerrilheiro que deseja que ele desenvolve-se armas para seu uso no conflito. O trabalho realizado não foi o esperando pelos sequestradores, mas sim uma armadura que 111

manteria vivo o empresário e inventor, nascia assim o super-herói Homem de Ferro. Sua jornada do herói envolve sua captura pela guerrilha inimiga e sua necessidade de sobreviver ao terror que estava passando.

Figura 5 - Estreia do Homem de Ferro nas páginas da revista Tales of Suspense

A grande diferença entre os personagens da DC e da Marvel esta na condição dos primeiros não terem falhas humanas, diferentes dos personagens da segunda editora, que são falhos e procuram melhorar, se superar como pessoas. Entretanto quando um leitor adquiriu uma revista destes personagens ele esta esperando uma série de regras já predeterminadas, o que Umberto Eco vai chamar de mitificação.

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Figura 6 - Umberto Eco

Umberto Eco escreve sobre vários assuntos e um dos quais já se debruçou foi sobre os personagens das histórias em quadrinhos, não apenas sobre suas origens, mas principalmente sobre sua condição de não mutação. Ao ler uma aventura do Batman, um ponto que um leitor não deseja ver é o mascarado fazendo uso de uma arma de fogo e assassinando um criminoso, mesmo que ele seja um homicida psicopata como o Coringa (Joker, no original). O que se espera é o Batman derrotando o vilão e o conduzindo ao Asilo Arkhan para ser tratado. Para Umberto Eco a diferença se encontra na estrutura das mitologias. Ao olhar para uma imagem de um herói grego, sabemos das suas aventuras e conquistas, pois já se encontram formadas e colocadas para todos, não se espera por algo novo ou surpreendente. Mas não é apenas para os heróis gregos, mas sim para todos os personagens de um passado mítico e já estabelecido. Algo completamente diferente dos personagens criados para esta cultura do consumo de massa, pois sua mitologia esta sendo desenvolvida aos “nossos olhos”. As referencias não podem ser mudadas ou alteradas de forma significativa, pois assim os “seguidores” do personagem podem não o reconhecer e assim se afastarem, fazendo criticas destrutivas. Para reforçar esta visão de Umberto Eco, vamos estudar de forma breve alguns personagens, tendo a mitificação posta por Umberto Eco comprovada de que mesmo quando se altera. Super-homem foi o primeiro super-herói criado, sendo assim, pode-se afirmar que sua mitificação é uma das mais notórias já vista,

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pois ao se ler uma história do personagem, alguns pontos são, quase, imutáveis, como:  Aceitação dos conceitos estadunidenses de democracia, liberdade e do capitalismo;  Poucas vezes questiona as leis, normas ou regras do país;  Seu uniforme são as cores da bandeira dos Estados Unidos;  Não empunha nenhum tipo de arma. Tais colocações são mitificações, para que se possa reconhecer o personagem, além é claro da condição de ser extraterrestre e possuir poderes além da condição humana. Uma das aventuras ao qual se procurou mudar alguns conceitos do Super-Homem foi a histórias em três edições da linha Elseworld, que procura colocar os super-heróis da DC em mudanças sociais, locais ou de tempo. Super-Homem – Entre a foice e o martelo, lançada no Brasil em 2004 pela editora Panini (Superman: Red Son, no original, lançada em 2003 pela DC), escrita por Mark Millar e desenhada pelos artistas Dave Johnson e Killian Plunkett.

Figura 7 – Capas das edições de Superman - Red Son

Nesta aventura, a nave de Kal-El cai no interior da Ucrânia, sendo encontrado por um casal que o cria segundo os ensinamentos do governo socialista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com as mudanças ocorridas na estrutura central do personagem, o que temos ao fim são os confrontos ideológicos entre o socialista contra o vilão Lex

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Luthor, um empresário estadunidense que busca acabar, não apenas com o extraterrestre, mas com o sistema político. A aventura demostra a força da mitificação do personagem e ao final, o que temos é o personagem se rendendo ao sistema estadunidense. Tirando o manto de morcego é que temos é o milionário e playboy Bruce Wayne da cidade ficcional de Gothan City. O Morcego, um dos apelidos do personagem, possui entre suas mitificações:  Equipamentos de alta tecnologia produzidos pala indústria Wayne;  Não usar armas de fogo;  Contar com a parceria ou apoio de ajudante ou colaboradores para resolver suas aventuras;  Não possuir poderes e depender apenas das suas capacidades, físicas, mentais ou tecnológicas, para solucionar um caso;  Não matar e sempre procura salvar uma vida, mesmo que seja um vilão. Esta última condição foi posta com o passar dos anos, visto que nas primeiras aventuras o mascarado chegava a empunhar uma arma e deixou um vilão, cair num tonel de ácido. Uma das provas desta mitificação é o fim da aventura do escritor Kevin Smith, ao qual um vilão novo, conhecido apenas como onomatopeia, alveja o vilão Coringa. A preocupação do Batman é em salvar a vida do psicopata palhaço do crime, mesmo contra tentativa do comissário de polícia Gordon para deixar o vilão morrer. Seria o Batman capaz de deixar uma pessoa morrer na sua frente e nada fazer para salva-la? Pela estrutura das narrativas usadas para o personagem, podemos afirmar que não, pois já faz parte da sua mitificação salvar vidas, caso algo assim ocorra, o personagem será dragado por uma luta interior, pois seriam os leitores que pressionariam a editora contra tal atitude.

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Figura 8 - Batman salva o Coringa

Poucos super-heróis são tão atormentados com o drama como o jovem Peter Parker. A morte do tio Ben e a fragilidade da saúde de sua idosa tia May são pontos que sempre são lembrados, na mitificação do amigão da vizinhança, uma das formas que o Homem-Aranha fala para as pessoas, pois sempre podem contar com a sua ajuda, mesmo sendo mal visto pela sociedade da cidade real de New York:  Ser perseguido pelo jornalista J. J. Jemerson em suas colunas jornalísticas;  Estar sempre em busca de resolver problemas financeiros;  A tragédia sempre esta presente nas aventuras do personagem. A morte se faz presente nas histórias do Aranha, sempre com o intuito de lembrar ao super-herói que ele não pode salvar a todos. As duas mortes do Capitão Stacy e da namorada Gwen Stacy, pelos vilões Dr. Octopus e pelo Duende Verde, respectivamente, são provas desta ligação com o trágico. Uma das mudanças mais recentes foi quando o Homem-Aranha revelou a toda a sociedade ser o jovem Peter Parker, durante o conflito entre super-heróis, Guerra Civil. Para contornar esta revelação, algum tempo depois a editora lançou a revista “Mais um dia” (One more day, no original), com o intuito de apagar, além desta revelação, o casamento com Mary Jane Watson, um casamento que nos quadrinhos já tinha mais de vinte anos. Criticada por leitores e 116

críticos, pelo o modo posto, a aventura foi levada adiante pela editora. Independente das críticas, a mitificação da tragédia retorna nas aventuras do personagem.

Figura 9 - Morte do Capitão Stacy

Diferente do jovem Peter Parker, o industrial Tony Stark não esta ponteado na tragédia, apesar desta aparecer em suas aventuras. Os momentos trágicos servem muitas vezes para colocar “tirar” o empresário de seu “mundo” de invenções e disputas corporativas e coloca-lo em uma realidade mais próxima dos seus leitores. As mitificações do personagem são:

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 Playboy, dependente de álcool, galanteador;  Gênio industrial;  Saúde debilidade. A grande mudança na estrutura do personagem é o fator da sua saúde fraca, pois apesar da condição financeira, quando consegue retirar os artefatos de seu coração, vem um tumor cerebral que o pode levar a óbito devido a diversos fatores. A dependência do álcool tornou- se um motivo de história para o Homem de Ferro, ao qual um super- herói, gênio e empresário tinha que admitir que a única forma de lidar com as pressões seria procurar refugio nas garrafas etílica. Esta aproximação do mundo real deu a Anthony Stark uma condição diferenciada, pois o coloca próximo a profissionais que por pressão profissional e social, acabam por se entregar a dependência do álcool.

Figura 10 - Capa de Diabo na garrafa

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Como visto acima, as épocas em que os super-heróis foram criados estão ligados as condições da sociedade em questão, assim como as suas mitificações. Os vilões de Super-Homem e Batman no inicio eram criminosos comuns, nada de mentes criminosas psicopatas ou relações de violência extrema, podendo até afirmar que havia uma certa “pureza” ou mesmo “inocência” de ideias nos quadrinhos. As mitificações de Super-Homem e Batman que mudaram, foi mais por conta da colocação dos personagens de acordo com o tempo deles, mas não demos nos enganar que as modificações foram tão fortes ao ponto de mudar a estrutura central dos personagens. Clark Kent continua sendo o estrangeiro que foi aceito e procura manter o status quo vigente da política estadunidense, não criticando ou questionando os governos ao ponto de tomar o poder para si, pode no máximo se afastar e procurar conhecer outras culturas, mas sempre levando consigo as cores e a ideologia do seu país adotado. Bruce Wayne não deixou de ser o Batman e cuidar de sua Gothan City, mas procura colocar suas ideias e planos de em várias cidades do mundo ao criar a Corporação Batman, do escritor Grant Morrison. A preocupação não é levar a estrutura estadunidense para outros países, mas sim capacitar heróis que possam fazer uso dos equipamentos da Industria Wayne para lutar contra o crime. Estamos em uma época de globalização da informação, e as editoras não querem perder este momento, levando seus personagens a todos os lugares, mas não mudando suas mitificações, apenas adaptando as várias realidades. Diferente da DC Comics que faz reboot, ou seja, reinicia sua cronologia, algumas para resolver complicações que vários autores foram colocados com o passar dos anos, a Marvel Comics não faz reboots, mas sua cronologia é muito complexa e em alguns pontos controversa, causada também por autores que colocam fatos e informações muitas vezes conflitantes. Porém não ocorrem mudanças na estrutura base dos personagens, ou seja, em como conseguiram seus poderes ou a motivações deles de lutarem contra o crime. Peter Parker combate o mal como Homem-Aranha, ao mesmo tempo precisa se

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preocupar em pagar as contas no fim do mês. Anthony Stark negocia bilhões de dólares com o governo dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que luta contra gananciosos gênios usando suas armaduras feitas por ele nas horas vagas e ainda encontra tempo para suas conquistas amorosas. A origem dos dois personagens encontra-se nas conquistas sociais e nos conflitos sociais da década de1960, porém as mudanças feitas também estão pressas ás mobilidades sociais das décadas seguintes. Os personagens podem não ter mudado muito nestes anos todos de publicação, todavia seus leitores mudaram. O garoto que tinha dez anos quando a revista do Superman foi lançada em 1938, se encontra em 2013 com 85 anos de vida, possivelmente não acompanhou as aventuras de seu super-herói que usava a cueca vermelha sob a calça azul, assim como o Batman, mas uma nova “legião” de leitores ocupou o lugar daqueles meninos. O mesmo podemos falar de Peter Parker e Anthony Stark, nascidos durante os anos quentes da revolução sexual e social e Guerra Fria, hoje com 50 anos de publicação ainda ganham novos leitores graças a habilidade de escritores e desenhistas que escrevem para as mentes de seu tempo. Ao unir as ideias de Joseph Campbell e Umberto Eco, o objetivo central é de mostrar que, diferente dos heróis da antiguidade, que já trazem suas lendas e contos ao regatarmos suas imagens, estes super- heróis da atualidade ainda estão em construção, mas pouco podemos mudar de suas características centrais.

REFERÊNCIAS

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KANE, Bob; FINGER, Bill. Batman Crônicas, V.1. São Paulo: Panini Livros, 2008.

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LEE, Stan; LIEBER, Larry; KIRBY, Jack. Biblioteca histórica Marvel - Homem De Ferro, V.1: São Paulo Panini Livros, 2008.

MICHELINIE, DAVID. ROMITA JR. JOHN. Os maiores clássicos do Homem de ferro nº 1: São Paulo, Editora Panini, 2008.

MILLAR, Mark. JOHNSON, Dave; PLUNKETT, Killan. Entre a Foice e o Martelo. São Paulo: Panini, 2004.

MORRISSON, Grant; BURNHAM, Chris. Corporação Batman vol. 1. São Paulo: Editora PAnini, 2012.

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STRACZYNKI, J. M. QUESADA, J. Amazing Spider-man Vol. 1 # 545: New York, EUA, Marvel Comics,2007.

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A COPA DE 1950 E OS MITOS DA DERROTA

Elcio Loureiro Cornelsen1

Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como uma Hiroshima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrota frente ao Uruguai em 1950. (Nelson Rodrigues)

Mais que um simples jogo

16 de julho de 1950 – essa data estabelece um marco na história do futebol brasileiro; um marco, por assim dizer, traumático, difundido ao longo de décadas por um discurso disfórico, seja em relatos ou imagens. Em seu estilo hiperbólico, Nelson Rodrigues chegou a atribuir-lhe um sentido de verdadeira catástrofe (RODRIGUES, 1994, p. 116). Mas o “anjo pornográfico” não estava sozinho em tal exagero. Ao longo de décadas, um verdadeiro coro se formou e alimentou o mito da derrota de 1950 como a “maior tragédia” (MORAES NETO, 2000, p. 19), marcando “o sepultamento dos sonhos esportivos do Brasil” (HEIZER, 2001, p. 62), que transformou o Maracanã no “maior velório da face da Terra” (MILAN, 1998, p. 34) frente ao “silêncio mortal de duzentos e vinte mil brasileiros” (RODRIGUES FILHO, 2003, p. 288), um “silêncio ensurdecedor” (WISNIK, 2008a, p. 261), “el más estrepitoso silencio de la historia del fútbol” (GALEANO, 2010, p. 98). Sem dúvida, a memória discursiva que se constrói sobre a derrota da Seleção Brasileira em 1950 é perpassada pelo trauma.

1 Professor Associado da Faculdade de Letras da UFMG, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e bolsista do Programa Pesquisador Mineiro da FAPEMIG, além de líder do FULIA – Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes e coordenador do projeto “A memória do trauma de 1950 – relatos, ficções, imagens”. E-mail: [email protected] 122

Os protagonistas brasileiros daquela fatídica tarde, sobretudo, os jogadores, posteriormente, relataram sobre os desdobramentos que a perda da Copa de 1950 representou para suas vidas. Alguns deles, tomados como bodes expiatórios pela imprensa e por parte da torcida brasileira – pensamos no goleiro Barbosa e nos jogadores Juvenal e Bigode – sofreram na pele todo o tipo de crítica e discriminação. Seus relatos memorialistas não só contribuem para edificar o sentido da derrota, como também trazem as marcas desse momento traumático para o esporte brasileiro. Como bem apontam Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva, “a catástrofe dificulta, ou impede a representação”, pois “a catástrofe é, por definição, um evento que provoca um ‘trauma’, outra palavra grega, que quer dizer ‘ferimento’” (NESTRÓVSKI; SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 8). Por assim dizer, alguns dos protagonistas daquela partida assumem o papel de autêntico testemunho do evento traumático, um superstes (AGAMBEN, 2008, p. 27) nas categorias propostas por Giorgio Agamben, ou seja, aquele que não é mera testemunha ocular do ocorrido – o testis –, mas aquele que atravessou uma verdadeira provação (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 84). Nesse sentido, baseados na teoria do testemunho e em conceitos e métodos da teoria da memória, nossa intenção é avaliar em termos discursivos não só o quê, mas, sobretudo, como, décadas mais tarde, os jogadores e espectadores ou cronistas esportivos enunciavam, através da memória, suas versões sobre aquele fatídico 16 de julho de 1950 e seus desdobramentos. Se, por um lado, de acordo com Michael Pollak, a memória surge como “um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa” (POLLAK, 1992, p. 201) e, portanto, está sujeita a flutuações, lacunas, supressões e silenciamentos, ela também é coletiva, como já apontava Maurice Halbwachs nos anos 1930 (HALBWACHS, 2004, p. 77), ou mesmo como Pollak afirma: “uma memória também que, ao definir o que é comum a um grupo e o que é diferente dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais” (POLLAK, 1989, p. 3). Segundo o historiador Jacques Le Goff, “[a] memória,

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como propriedade de preservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 2003, p. 419). Ao pensarmos nos depoimentos dos jogadores brasileiros e dos espectadores que assistiram à partida Brasil x Uruguai no Estádio do Maracanã, não podemos perder de vista o fato de que, para uma pessoa que relata sobre o passado, “contar a própria vida nada tem de natural”, “já é difícil fazê-la falar, quanto mais falar de si” (POLLAK, 1992, p. 210). O foco de interesse deste breve estudo é, portanto, a construção memorialista da derrota de 1950 em suas diversas facetas. Isto tem implicações para a delimitação dos corpora de análise. O primeiro corpus será composto por relatos de ex-jogadores da Seleção Brasileira de 1950, publicados no Dossiê 50: os onze jogadores revelam os segredos da maior tragédia do futebol brasileiro (2000), organizado por Geneton Moraes Neto. Ao elegermos essa obra, tencionamos contemplar o olhar dos protagonistas brasileiros dentro das quatro linhas. Por sua vez, as vozes das tribunas de imprensa e das arquibancadas também serão contempladas no presente estudo e, para isso, elegemos a seguinte obra para formar o segundo corpus de análise: Maracanazo – 16 de julho de 1950: tragédias e epopeias de um estádio com alma (2013), de Teixeira Heizer. Com isso, intentamos ampliar o enfoque na construção discursiva do mito em torno da derrota de 1950, numa junção entre campo, tribuna de imprensa e arquibancada.

Do êxtase à queda: hegemonia de um discurso disfórico

De acordo com António da Silva Costa, “o futebol é uma das principais chaves de leitura de nossa sociedade” (COSTA, 2005a, p. 9). No mesmo sentido, a pedagoga Elma Corrêa de Lima, por exemplo, considera o futebol um “tema transversal”:

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Pode-se afirmar que o futebol, como força simbólica, tem o poder de atravessar as mais diversas redes de relações sociais, uma vez que a sociedade brasileira encontrou nesse esporte uma forma de se expressar, um modo de cidadania. A partir desse ponto de vista, concluímos que o futebol é dinâmico, pois reflete a própria sociedade brasileira (LIMA, 2005, p. 52).

Assim, o futebol – “o filho terrível do século XX” (COSTA, 2005b, p. 13), de acordo com António da Silva Costa –, se torna um fenômeno singular para estudos transdisciplinares, dentro dos quais o campo da linguagem, sem dúvida, tem o seu quinhão de colaboração. Posto isso, passemos, então, à reflexão sobre o evento esportivo aqui enfocado. A derrota da Seleção Canarinho para a Celeste Olímpica em 16 de julho de 1950 já é passado, mas um “passado que não quer passar”, perpetuado por verdadeiros mitos de vitória heroica, no olhar dos uruguaios, e, respectivamente, de profunda derrota no olhar dos brasileiros. O evento, em sentido ontológico, se realizou efetivamente. O que nos resta dele são umas poucas imagens cinematográficas e fotográficas que retratam aquela fatídica partida, bem como gravações de locuções de rádio, além de entrevistas com jogadores e membros da comissão técnica das duas equipes concedidas ao longo de décadas, ou mesmo relatos de jornalistas e de torcedores que presenciaram o Maracanazo. Aliás, Alcides Ghiggia é o único protagonista vivo daquela partida, está com 85 anos de idade e sofreu um grave acidente de automóvel, no ano passado, nas imediações de Montevidéu. Um aspecto relevante para o nosso estudo é o fato de que todos aqueles que se dedicam ao estudo histórico ou jornalístico daquela partida são unânimes em afirmar que há, pelo menos, mais de uma versão para os eventos ocorridos no dia 16 de julho de 1950, antes, durante e depois da partida. Portanto, as narrativas em torno do jogo Brasil x Uruguai sofreram variações ao longo de décadas. Como bem aponta o escritor alemão Thomas Brussig, “lembranças não se interessam pelo que ‘realmente’ foi. Elas iludem, enganam, adulam, ocultam”; “Recordar é sempre transfigurar, que caminha 125

com o ato de esquecer” (BRUSSIG apud LAMBECK, 1999, s/p.). Portanto, a memória é lacunar, instável, sujeita a alterações e distorções tanto pela ação do tempo quanto pela ação traumática. Sem dúvida alguma, essa narrativa recorrente e sujeita a flutuações se deve ao próprio caráter trágico que aquela partida assumiu. Numa reportagem recente sobre a Copa de 1950, Luiz Carlos Barreto, ele próprio testemunha ocular da tragédia do Maracanã como jovem fotógrafo, afirmou que “essa tragédia não vai se apagar nunca da minha memória e da memória do coletivo brasileiro, vai se transmitir oralmente” (BARRETO apud CAPOVILLA, 2010). Argumentando na mesma direção, o jornalista Helvídio Mattos afirma essa permanência do trauma de 1950: “[a]té hoje, aquela derrota continua doendo na alma brasileira. É uma ferida do tamanho do Maracanã, e talvez nunca cicatrize” (MATTOS apud CARVALHO, 2010b). A impressão que se tem ao ler tais frases é de que certo exagero, que nos faz lembrar o estilo hiperbólico de Nelson Rodrigues em suas crônicas esportivas – com celebres expressões para definir em 1966 o Maracanazo como “a nossa Hiroshima” (RODRIGUES, 1994, p. 116), ou ainda ao afirmar em 1969 que “[a] humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga sangue” – (RODRIGUES, 1993, p. 144), marca o discurso da derrota, sempre renovado. Sendo assim, justifica-se um estudo fundamentado por teorias e conceitos caros aos Estudos da Linguagem, que nos possibilitem refletir sobre narrativa, testemunho, memória, imagem, no intuito de delimitar os elementos estruturantes da construção discursiva dos relatos sobre aquela partida, que colaboram para sua cristalização enquanto maior “tragédia” do esporte nacional. Cabe lembrar que, após vitórias avassaladoras contra a Espanha por 6 x 1 e, respectivamente, contra a Suécia por 7 x 1, criaram-se os pressupostos eufóricos para que a derrota em 16 de julho de 1950 ganhasse traços de vivência traumática. Se, por um lado, como nos lembra José Miguel Wisnik, “o trauma brasileiro, na Copa de 1950, foi e é continuamente lembrado e repetido em prosa, em verso, em ensaio, em

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foto, em filme” (WISNIK, 2008a, p. 246), por outro, a escassez de imagens influiu decisivamente para que se criasse o mito da derrota de 1950 em suas mais variadas versões. De acordo com Wisnik, a partir da repetição de relatos e imagens, “essa recorrência insistente cumpre aí a função freudiana de rasurar o trauma através de sua infinita repetição fantasmática, diante de um conteúdo insuportável que se deu a ver” (WISNIK, 2008a, p. 246; grifo no original). Nesse mesmo sentido, no “Prefácio” do livro Barbosa, Juca Kfouri ressalta que “[o] que houve, ali, no Maracanã, não foi um jogo de futebol. Foi muito mais, foi uma catástrofe, um drama coletivo, uma catarse nacional, o maior divã que um complexo de inferioridade jamais viu. Uma tragédia!” (KFOURI, 2000, p. 13). Pois, como nos lembra o sociólogo Roberto DaMatta, a intensidade e relevância atribuídas ao fracasso de 1950 se deveu sobretudo à imagem que a sociedade brasileira fazia de si: “A derrota para o Uruguai foi tomada como uma metáfora para as ‘derrotas’ da própria sociedade brasileira” (DAMATTA apud PERDIGÃO, 2000a, p. 249).

A construção discursiva do mito da derrota: os jogadores brasileiros e o discurso da “catástrofe”

Primeiramente, devemos destacar um último referencial teórico, fundamental para o presente estudo: a obra Mitologias (2003), de Roland Barthes. Dentre outras, noções como a de que “o mito é uma fala”, “um sistema de comunicação, uma mensagem”, ou ainda de que “[o] mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere” (BARTHES, 2003, p. 199), certamente, possibilitar-nos-ão uma reflexão sobre o mito da derrota enquanto um construto discursivo. E isso vale tanto para os relatos e depoimentos, quanto para as imagens fotográficas e audiovisuais, pois, como bem aponta Barthes, “o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica” (BARTHES, 2003, p. 200).

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Sem dúvida, um dos maiores protagonistas daquela derrota é o goleiro Moacyr Barbosa, acusado de ter falhado nos dois tentos marcados pela equipe uruguaia. O grande goleiro do Vasco da Gama e da Seleção Brasileira não só foi, injustamente, culpado pela derrota, como viveu pelo resto de sua vida sob o estigma do vilão da história, juntamente com Bigode e Juvenal. Aliás, o texto de transcrição do áudio da partida na narração de Antonio Cordeiro pela Radio Nacional, publicado por Paulo Perdigão no livro Anatomia de uma derrota, documenta com propriedade detalhes daquela partida. Bigode (João Ferreira), por exemplo, foi um dos jogadores do escrete brasileiro mais exigidos durante os noventa minutos; o Uruguai centrou suas forças em repetidas jogadas pelo mesmo setor, ou seja, com o ponta direita Ghiggia, marcado por Bigode. Ao longo da partida, foram 21 confrontos entre os dois, sendo que o lateral esquerdo brasileiro se saiu bem em 11 situações (PERDIGÃO, 2000a, p. 130-207). Todavia, o que passou para a história foram apenas suas eventuais falhas em dois lances capitais, o mesmo ocorrendo com o goleiro Barbosa, sempre lembrado como a trágica figura que sucumbira aos gols de Schiaffino e, sobretudo, de Ghiggia, “uma desgraça”, nas palavras de Armando Nogueira, “uma maldição”, “a pá de cal na chamada soberba nacional” (NOGUEIRA, 1994, p. 25), que, segundo Paulo Perdigão, “desencadeou um dos mais pesados traumas coletivos de nossa História contemporânea” (PERDIGÃO, 2000b, p. 11). Um aspecto relevante para nossa abordagem é o fato de que todos aqueles que se dedicam ao estudo histórico ou jornalístico daquela partida são unânimes em afirmar que há, pelo menos, mais de uma versão para os eventos ocorridos no dia 16 de julho de 1950, antes, durante e depois da partida: o ônibus da delegação brasileira teria sofrido uma pane mecânica (MORAES NETO, 2000, p. 48) ou mesmo um pequeno acidente a caminho do Maracanã (PERDIGÃO, 2000a, p. 109- 110); o capitão uruguaio Obdúlio Varela, aos 27 min. do primeiro tempo, teria dado um tapa no rosto de Bigode (PERDIGÃO, 2000a, p. 145), ou apenas pedido calma ao jogador brasileiro após uma entrada mais

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forte em Julio Perez (MORAES NETO, 2000, p. 49; cf. MUYLAERT, 2000, p. 81); o mesmo Obdúlio teria comprado exemplares do jornal O mundo, que exibia na véspera a manchete “Estes são os campeões do mundo”, a fim de motivar os companheiros a jogarem com garra para mudarem aquele destino previamente traçado (PERDIGÃO, 2000a, p. 98), e noutra versão, em que o protagonismo de Obdúlio não é explorado, diz-se que foi o cônsul honorário do Uruguai, Manuel Caballero, que teria mostrado a referida manchete aos jogadores, com a seguinte observação: “Meus pêsames. Os senhores já estão vencidos!” (PERDIGÃO, 2000a, p. 98). Portanto, as narrativas em torno do jogo Brasil x Uruguai sofreram variações ao longo de décadas. O que nos parece óbvio, mas que é bem ilustrado nesses exemplos, é que o passado não é recuperado pela memória para o presente, mas sim é no presente que se tem a chave para se rememorar o passado. No caso específico dos relatos e depoimentos do goleiro Barbosa, assevera Roberto Muylaert que “a versão dos fatos que ele apresenta hoje [isto é, 2000] já não se sabe até que ponto é real ou imaginária” (MUYLAERT, 2000, p. 113). Transcorridas décadas, “os acontecimentos se transformaram num novelo de idéias um tanto embaraçadas, contraditórias, embaçadas, que há muito ele desistiu de deslindar” (MUYLAERT, 2000, p. 113). Outro aspecto de destaque nos relatos do goleiro Barbosa diz respeito à incorporação do discurso do outro, à medida que o goleiro, em depoimento concedido a Geneton Moraes Neto em 2000, fez a seguinte afirmação: “Ghiggia diz que só ele, o Papa e Frank Sinatra calaram o Maracanã. Eu também fiz o Brasil calar, fiz o Brasil chorar: não é só ele que tem esse privilégio não” (BARBOSA apud MORAES NETO, 2000, p. 53). Desse modo, Barbosa incorporou em seu discurso o argumento de Ghiggia, publicado no jornal O Globo em 10 de janeiro de 1981: “Apenas três pessoas, com um único gesto, calaram o Maracanã com 200 mil pessoas: Frank Sinatra, o Papa João Paulo II e eu. E acredito que poucas outras o farão neste século” (GHIGGIA apud PERDIGÃO, 2000a, p. 182). Embora sempre tenha rejeitado a crítica de que teria sido um dos culpados pela derrota da seleção naquela

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partida, ao argumentar desse modo, até mesmo contraditório, é como se Barbosa reconhecesse a culpa. Em um trecho de entrevista datado de 1988, integrada ao curta-metragem Barbosa, o goleiro foi categórico ao afirmar: “Fui, fui, fui acusado, fui acusado de culpado” (FURTADO; AZEVEDO, 1988). E talvez o maior índice traumático em seus depoimentos seja a frase na qual o goleiro estabelece, por analogia, uma relação entre a sua condição de “condenado” com o limite de pena máxima no Brasil, conforme relatado ao repórter Helvídio Mattos em 1994:

Ainda há pouco tempo, nós estávamos lá num bar aonde eu frequento, e um cara veio falando: porque em 1950... Acabou a conversa aí. Porque eu falei para ele... eu me reportei a ele o seguinte: olha, as leis de condenação aqui no país quanto é? Quanto é? A maior condenação quanto é? É trinta anos, né? É trinta anos que o sujeito tem que cumprir. Então eu disse, nós estamos com quarenta e três anos, e eu acho que paguei dez anos ou quatorze anos a mais. Então eu não tenho razão para discutir consigo e nem para dar uma explicação. Porque eu acho... Por que eu vou dar uma explicação para ele? Eu não sou um criminoso vulgar, não é? Então eu não vou dar explicação a ele. Eu acho que ele não merece explicação, por querer me cobrar de uma coisa após quarenta e quatro anos, eu acho que ele não tem direito a isso. Então eu não dou explicações. Então eu prefiro me calar do que discutir, porque eu não vou explicar nada a ele, eu não vou retornar aquilo que já se passou. Então não tem problema nenhum. Então eu prefiro, para não ser deselegante, eu prefiro não comentar. (MATTOS, 1994; cf. CARVALHO, 2010b)

Sem dúvida, o modo como se costuma reiterar, na imprensa e em publicações sobre futebol, a suposta “culpa” de Barbosa passa pela elaboração discursiva de um verdadeiro drama. Este é o caso, por exemplo, do jornalista Paulo Guilherme, que assim se referiu ao goleiro e ao fatídico gol de Ghiggia:

Foi no dia 21 de julho (sic) daquele ano que a história dos goleiros encontrou seu divisor de águas, quando, como um mártir agonizando na cruz, o goleiro Moacyr Barbosa, ingressou no seu calvário, do qual nunca mais conseguiria sair. O Brasil perdeu a Copa do Mundo em pleno estádio 130

do Maracanã em uma inesperada derrota para o Uruguai por 2 a 1. O segundo gol dos uruguaios, marcado pelo atacante Alcides Ghiggia, carimbou o passaporte de Barbosa para o inferno. (GUILHERME, 2006, p. 101)

Devemos lembrar que a própria função do goleiro abre margem para esse tipo de interpretação. Pois o goleiro, segundo José Miguel Wisnik, “é um ser de exceção e, nos momentos cruciais, um solitário” (WISNIK, 2008b, p. 137), que, “[s]e for feliz, o goleiro transforma-se de tabu em totem”; “Se não for, é o favorito natural para o bode expiatório” (WISNIK, 2008b, p. 138). É justamente o que ocorreu com Barbosa após o “gol fatal”. Além desse sentido de “culpabilidade”, entre os próprios jogadores daquela partida gerou-se um silêncio em torno dos lances capitais. Um desses silenciamentos, em meio ao trauma e ao tabu, foi gerado entre Ghiggia e Barbosa quanto ao gol fatal, conforme depoimento concedido a Geneton Moraes Neto em 2000: “Depois da Copa, cheguei a me encontrar com Ghiggia, mas nunca tocamos no assunto: nem ele me perguntou nem eu perguntei a ele. Nunca. Jamais tocamos nesse assunto. Nunca tive curiosidade de perguntar a ele” (MORAES NETO, 2000, p. 49). Outro aspecto relevante detectado nos depoimentos de Barbosa é a noção metafórica de catástrofe que, de modo recorrente, perpassa seu discurso. Podemos constatar isso nos breves trechos de entrevista que compõem o curta-metragem de ficção Barbosa, de 1988: “Agora se tivesse uma cratera ali e eu pudesse desaparecer, eu desapareceria” (FURTADO; AZEVEDO, 1988); “Aí o estádio veio abaixo, o estádio desmoronou em cima de mim, e o público silenciou” (FURTADO; AZEVEDO, 1988). Acresce, ainda, que a presentificação do momento trágico, no caso de Barbosa, não se fez apenas na ordem das reminiscências, como também no próprio estádio do Maracanã, materializando, assim, aquilo o que o historiador Pierre Nora conceituou de “lugar de memória”, ou seja, “onde a memória se refugia e se cristaliza” (NORA, 1993, p. 7). Nas palavras do goleiro, que se tornou funcionário do Maracanã por quase 131

três décadas, a recordação daquela partida era inevitável, feito uma penitência: “[...] foi Deus quem quis que eu ficasse ali, purgando meus pecados, [...] por 29 anos, boa parte de minha vida útil, podendo olhar todo santo dia para o chamado ‘gol do Ghiggia’, o gol da tragédia” (MUYLAERT, 2000, p. 74). Mais tarde, Luiz Carlos Barreto também atentou para esse fato:

O Barbosa depois, anos depois, ele virou funcionário aqui no Maracanã. Ele era o recepcionista de personalidades ali na tribuna oficial do Maracanã. Um homem triste, um homem marcado por aquele episódio, uma coisa... quer dizer, ninguém pensou nisso, como ficou a vida dessas pessoas. (CAPOVILLA, 2010)

Por fim, nos relatos de Barbosa, o que é natural em depoimentos sobre a vivência de eventos traumáticos, há a menção à presença ou ausência de tal evento em pensamentos e sonhos. Ele surge, por exemplo, em forma do gol fatal: “Eu já pensei naquela bola um milhão de vezes” (FURTADO; AZEVEDO, 1988). E a derrota, como não podia deixar de ser, tirou-lhe o sono: “Não consegui dormir, fiquei a noite toda com aquilo rodando na minha cabeça” (FURTADO; AZEVEDO, 1988). E isso culmina com a tentativa – fadada ao fracasso – de não pensar mais no ocorrido:

Não, não. Antes, talvez até uns trinta anos atrás eu ainda, quando o cara vinha conversar comigo e começar a querer puxar esse assunto, eu eliminava, eliminava mesmo porque parecia que aquilo me feria, que aquilo me feria mesmo. Mas depois de um tempo eu comecei a pensar bem e disse: escuta, por que, por que eu? Eu to pensando nisso, às vezes eu boto a cabeça no travesseiro, to pensando nisso. Será que os outros também estão pensando como eu? Então, estão malucos. Tão malucos. Então, por isso eu não penso mais. (CARVALHO, 2010a)

Outro jogador apontado juntamente com Barbosa como “vilão” da partida, décadas mais tarde, o ex-zagueiro Juvenal se recordaria do silêncio como algo que minou as forças dele próprio e da equipe como 132

um todo: “Eu senti uma influência negativa do silêncio que se fez no Maracanã. Quando veio aquele silêncio, me senti derrotado” (MORAES NETO, 2000, p. 67). O mesmo se repete no relato do lateral esquerdo Bigode, ao afirmar a permanência traumática da derrota: “O trauma de 1950, pelo menos para mim, não foi totalmente superado. Ainda escuto na rua sobre o que aconteceu. Quando sou apresentado a alguém na rua, dizem: ‘É Bigode, um dos que perderam a Copa do Mundo de 1950...’.” (MORAES NETO, 2000, p. 99). Além do silêncio, o esquecimento é outra marca traumática nos relatos dos jogadores brasileiros. O capitão da seleção, Augusto, assim relata os momentos após a derrota: “eu me lembro que fui do Maracanã para casa, na Ilha do Governador. Já nem sabia o que falava, não me lembro o que se conversou. Nessa hora, não existe palavra capaz de evitar aquela coisa que nos esmaga por dentro” (MORAES NETTO, 2000, p. 59). Além do esquecimento, o sonho recorrente com o ocorrido também se fez presente: “Várias vezes sonhei com a aquele jogo com o Uruguai. O placar era sempre diferente, no sonho. A gente ganhava, eu levantava a taça. Quantas vezes eu sonhei...” (MORAES NETO, 2000, p. 59). Ao final de seu relato, décadas após a partida contra o Uruguai, a derrota surge como algo indelével: “Se fosse possível esquecer o que aconteceu naquele dia, seria bom. Mas não se esquece. Não pude esquecer” (MORAES NETO, 2000, p. 63). De modo bem semelhante, o jogador Danilo, o “Príncipe”, um dos craques do escrete brasileiro, também ressalta esse caráter permanente do trauma, evidenciado pelos sonhos recorrentes: “Eu estou sonhando até hoje com aquele jogo. Há milhões de anos tento esquecer. Eu não precisava dormir para sonhar com Brasil x Uruguai. Acordado, eu já estava sonhando” (MORAES NETO, 2000, p. 89). E nessa mesma direção, Zizinho, o cérebro da equipe, também se recordava dos incontáveis sonhos: “Passei quase uma semana sem dormir direito. Tinha pesadelo pensando que o jogo não tinha começado. O sonho era assim: a gente ainda ia jogar contra o Uruguai, aquilo tudo que aconteceu era mentira,

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um pesadelo que tinha passado, o jogo ainda iria começar” (MORAES NETO, 2000, p. 116). Cabe lembrar que, segundo Susan Rubin Suleiman, no ensaio “Além do princípio de prazer”, Freud fala de uma compulsão à repetição, que manifesta um desejo de dominação; ao repetir o trauma original em seus pensamentos ou sonhos, o sujeito procura superá-lo, afirmar ativamente seu controle sobre ele (SULEIMAN, 2006, p. 139). De certo modo, todos esses depoimentos memorialistas dos jogadores brasileiros, brevemente apresentados no âmbito deste estudo, eram formas de se confrontar com o trauma no sentido de superá-lo. Pois a memória pode auxiliar na superação dos conflitos, das feridas e das dores causadas por dado evento traumático.

A construção discursiva do mito da derrota no olhar da imprensa e das arquibancadas

O livro Maracanazo: tragédias e epopeias de um estádio com alma, uma coletânea de ensaios sobre a derrota de 1950, organizada por Teixeira Heizer e publicada em 2013, está repleto de relatos que renovam o sentido disfórico da eterna derrota. Logo no texto de “Apresentação”, o jornalista Villas-Boas Corrêa se vale da autoridade daquele que foi testemunha ocular da fatídica partida: “Ninguém me contou: eu vi e posso contar no resumo que a memória conserva do essencial, deixando os detalhes pelo caminho do tempo” (CORRÊA, 2013, p. 17). Para o então jornalista em início de carreira, o que restou foi a imagem da massa de torcedores deixando desolada o palco da derrota: “Forço a memória cansada para despertar as lembranças da Copa em que assisti a todas as partidas jogadas no Maracanã. E o que ficou gravado para sempre foi a saída da multidão, em silêncio, como quem deixa o cemitério depois do enterro de parente próximo” (CORRÊA, 2013, p. 22). Outro relato que reitera a trágica derrota é o do jornalista Maurício Azêdo, então adolescente que iria assistir à partida Brasil x Uruguai nas gerais do Maracanã, em companhia de um vizinho da mesma idade,

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Luiz Caminha Filho: “Eu e Luiz Caminha choramos abraçados, convulsivamente. Nem imaginávamos que o Maracanã, aquele túmulo regado por nossas lágrimas, que sepultava momentaneamente nossas ilusões, fosse o marco para arrancadas futuras que nos levariam à absoluta liderança do futebol mundial como ocorre nos dias atuais” (AZÊDO, 2013, p. 127). Nos relatos de Villas-Boas Corrêa e, respectivamente, Maurício Azêdo, podemos notar metáforas idênticas: a derrota é associada à morte, ao sepultamento, e ao silêncio do enlutado. A morte simbólica de um projeto de nação no pós-guerra foi decretada naquela tarde de 16 de julho de 1950. Podemos afirmar que, enquanto “lugar de memória” (NORA, 1993, p. 7), conforme postula Pierre Nora, o Maracanã, para muitos, levaria anos para se livrar desse sentido “tumular” que adquirira com aquela derrota. No ensaio “O filho do silêncio”, também publicado na coletânea Maracanazo, o publicitário Washington Olivetto se recorda de sua infância, em que o pai, uma testemunha ocular daquela partida, o único jogo que teria assistido in loco em toda a sua vida, não se cansava em dizer ao filho que o futebol só lhe traria tristezas: “traumatizado, passou boa parte da minha infância me convencendo a não gostar de futebol, esporte que, para ele, não era uma caixinha de surpresas: era um baú de tristezas” (OLIVETTO, 2013, p. 131).

A perpétua derrota

Os aspectos aqui avaliados – as flutuações, os silenciamentos, a incorporação do discurso do outro, as noções de catástrofe, de trauma, detectados nos depoimentos e relatos dos jogadores brasileiros, sobretudo do goleiro Barbosa, e de outras testemunhas oculares do jogo Brasil x Uruguai em 1950, são elementos estruturantes da construção discursiva dos relatos sobre aquela partida e, portanto, colaboram para sua cristalização enquanto maior “tragédia” do esporte nacional.

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Não obstante esse caráter trágico que a Copa de 1950 assumiu para os brasileiros ao longo de décadas, pensá-la à luz de discursos memorialistas possibilita-nos vislumbrá-la de um modo diferenciado, talvez até no sentido desejado pelo próprio Barbosa em depoimento a Geneton Moraes Neto: “1950 foi o marco inicial de outras conquistas” (MORAES NETO, 2000, p. 46). Prestes a sediar novamente uma Copa, o Brasil se vê confrontado, mais uma vez, com os mitos da derrota de 1950. Basta recorrermos à cobertura de imprensa que antecedeu à partida Brasil x Uruguai, realizada em 26 de junho de 2013, pelas semifinais da Copa das Confederações, em que a sombra de 1950 se fazia presente nos relatos dos jornalistas, comentaristas e cronistas esportivos. Independente do desempenho de sua seleção em 2014, como já apontava Paulo Perdigão em 1986, uma coisa é certa: “naquela tarde, aqueles jogadores brasileiros, diante daquela multidão, perderam a Copa do Mundo para sempre. Nunca mais o Brasil ganhará a Copa de 50” (PERDIGÃO, 2000a, p. 19).

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CARVALHO, Marcos. Copa de 1950 – Testemunhos. Brasil, colorido; preto e branco, 2010a, 08 min. [reportagem para o canal BandSports]

CARVALHO, Marcos. Copa de 1950 – da euforia ao silêncio. por Helvídio Mattos, Brasil, colorido; preto e branco, 2010b, 93 min. (documentário para o canal ESPN Brasil)

FURTADO, Jorge; Azevedo, Ana Luiza. Barbosa. Brasil, curta-metragem, colorido; preto e branco, 1988, 13 min.

MATTOS, Helvídio. A Copa de 1950, Brasil, colorido; preto e branco, 1994, 40 min. (reportagem para a TV Cultura de São Paulo).

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UMA ABORDAGEM SÓCIO-HISTÓRICA DA RELAÇÃO ENTRE AS NOÇÕES DE GÊNEROS E TIPOS DO DISCURSO

Gustavo Ximenes Cunha1

Introdução

Nos estudos da linguagem, é relativamente consensual a hipótese de que os gêneros (textuais/discursivos) dizem respeito a formas relativamente estáveis de enunciados sócio-historicamente constituídos, ao passo que os tipos (textuais/discursivos) são sequências textuais com características bem definidas, que entram na composição de exemplares de todos os gêneros. Como decorrência dessa hipótese geral, defende-se que os gêneros são variados e quase infinitos (notícia, poema, romance, canção, bula de remédio, ata de condomínio, entrevista, reportagem, debate, etc), enquanto os tipos se limitam a meia dúzia de categorias (narração, descrição, argumentação, explicação, diálogo, injunção). A hipótese da dicotomia entre gênero e tipo ou da transversalidade dos tipos em relação aos gêneros (SCHNEUWLY, 2004) é problemática para os estudos da linguagem, porque deixa sem respostas satisfatórias pelo menos duas questões importantes para a compreensão do modo como elaboramos e interpretamos produções discursivas:

 qual é o modo típico de narrar, descrever, argumentar em dado gênero?

 como um dado gênero contribui para a constituição do modo típico de narrar, descrever, argumentar nesse gênero?

De modo geral, essas questões não fazem parte do rol de questões a serem respondidas pela maior parte das abordagens atuais

1 Doutor em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) e do Programa de Pós- Graduação em Gestão Pública e Sociedade (PPGPS) da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). E-mail: [email protected]. 140

do texto e do discurso. Afinal, se o tipo é uma entidade descontextualizada e transversal em relação a todos os gêneros, não haveria um modo de narrar, descrever, argumentar característico ou típico de um dado gênero, mas apenas um modo geral e universal de narrar, descrever, argumentar, o qual seria comum a todos os gêneros, exatamente por ser independente de determinações genéricas (sociais, históricas, culturais). Posicionando-se contra a hipótese da universalidade e atemporalidade dos tipos ou da transversalidade dos tipos em relação aos gêneros, este trabalho levanta outra hipótese, segundo a qual as noções de gênero e de tipo são de tal forma imbricadas que cada gênero possui tipos específicos. Em outros termos, cada gênero se caracteriza por um modo típico de narrar, descrever, argumentar, etc, o que leva a compreender a noção de tipo como subordinada à de gênero. Nessa perspectiva, o modo típico de narrar do gênero reportagem seria diferente do modo típico de narrar do gênero conto. Da mesma forma, o modo típico de argumentar do gênero artigo científico seria diferente do modo típico de argumentar do gênero bate- papo. Neste trabalho, propomos uma abordagem que se guie pela hipótese aqui defendida de que as noções de gênero e de tipo são de tal forma imbricadas que cada gênero possui tipos particulares. A exposição dessa abordagem recupera parte da pesquisa desenvolvida em Cunha (2013).

Uma proposta para o estudo da imbricação das noções de gêneros e tipos Neste item, apresentamos uma caracterização dos instrumentos de análise desta abordagem e de como eles podem ser empregados no estudo de um tipo de discurso de um gênero específico: o tipo narrativo da reportagem. Do ponto de vista metodológico, a abordagem propõe que a análise se faça em três etapas. Na primeira, estuda-se o gênero do discurso cujos tipos de discurso serão

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caracterizados. Na etapa seguinte, investiga-se o impacto desse gênero sobre a constituição dos tipos, a fim de descobrir a maneira como nesse gênero tipicamente se narra, descreve ou argumenta. Na terceira etapa, os tipos elaborados na etapa anterior são empregados na identificação de sequências discursivas extraídas de exemplares do mesmo gênero.

Os gêneros do discurso

Os gêneros podem ser definidos como o componente sócio- histórico das produções discursivas. Reportando-se a Bakhtin, observa Filliettaz (2006, p. 75): “os discursos não emergem do nada e não fazem o objeto de uma (re)invenção perpétua, mas repousam sobre gêneros e modelos intertextuais sócio-historicamente constituídos”. Nesse sentido, os gêneros dizem respeito a conhecimentos compartilhados pelos membros de uma coletividade, conhecimentos que atuam como os princípios organizacionais que regem uma atividade social intersubjetiva reconhecida (FILLIETTAZ, 2000). No que se refere ao gênero reportagem impressa, a representação que o define deve se compor de propriedades típicas do mundo em que as reportagens se inserem. Dessa forma, toda reportagem impressa tem um autor e um leitor. Essas instâncias agentivas assumem, respectivamente, os status sociais institucionalmente definidos de jornalista e de cidadão2 . A participação desses agentes em uma dada atividade (produzir/ler uma reportagem) se justifica por meio de finalidades ou visadas específicas (CHARAUDEAU, 2004). Enquanto o jornalista busca informar e captar o leitor, bem como satisfazer suas exigências de credibilidade e de atualidade, o leitor busca informar-se, consumir um produto comercial e validar suas exigências de credibilidade e de atualidade (CHARAUDEAU, 2006; CUNHA, 2009).

2 O status social do autor é o de jornalista, porque, segundo Charaudeau (2006, p. 73), no discurso midiático o jornalista “não é o único ator, mas constitui a figura mais importante”. Quanto ao leitor, o seu status é o de cidadão, porque, como as questões e os acontecimentos abordados nas reportagens interessam à coletividade, é a uma instância cidadã que o jornalista se dirige (HERNANDEZ, 2006). 142

Na atividade que define a reportagem, opera-se ainda uma seleção dos conteúdos comumente mobilizados pelos agentes. Esses conteúdos são mais ou menos estáveis e costumam ser indicados pelas diferentes rubricas ou cadernos de um jornal ou revista: política, cotidiano, esporte, cultura, etc (CHARAUDEAU, 2006). Além disso, a veiculação de qualquer reportagem impressa está associada a um suporte, ou seja, a um local físico de fixação e circulação da produção discursiva (jornal, revista) (MARCUSCHI, 2003), que tem uma materialidade interacional característica e uma data de publicação. Tal como definida, essa representação genérica da reportagem deve ser entendida como o produto sócio-histórico de condutas sociais efetivas e, por isso, forma um feixe de conhecimentos com o qual é possível definir o gênero reportagem. Como veremos a seguir, a representação genérica tem impacto sobre a constituição do mundo representado nos tipos de discurso. Especificamente, a representação de um gênero influencia a constituição dos tipos, porque cria expectativas quanto às propriedades referenciais que esperamos encontrar nas sequências em que os tipos se atualizam.

O impacto do gênero do discurso sobre os tipos de discurso

Como vimos, o gênero se refere a uma representação referencial ou a um conjunto de conhecimentos esquemáticos relativos ao mundo em que o discurso se insere. Diferentes estudos apontam para o impacto do gênero sobre o mundo representado no discurso e sobre os recursos textual-discursivos empregados em sua representação. Sendo assim, é necessário investigar o impacto da representação genérica sobre as representações referenciais que definem os tipos de discurso. Em outros termos, a definição de um tipo de discurso deve resultar da percepção do impacto do mundo em que o discurso se insere (gênero do discurso) sobre o mundo que o discurso representa (tipo de discurso). A seguir, apresentamos o tipo narrativo da reportagem, expondo a definição de cada um dos episódios que o constituem. A caracterização 143

de cada episódio, detalhadamente exposta em Cunha (2013, cap. 5), se pautou na percepção de elementos recorrentes em um corpus de sequências narrativas. Esse corpus se constitui de 129 sequências narrativas extraídas de dezesseis reportagens publicadas em janeiro de 2010 nas revistas Carta Capital, Época, IstoÉ e Veja. Essa análise revelou que o tipo narrativo da reportagem diz respeito a uma representação referencial composta por seis episódios: sumário, estágio inicial, complicação, avaliação, resolução e estágio final. Na parte inicial de 64 sequências narrativas do corpus, foi constatada a presença de um segmento discursivo em que o jornalista oferece indicações sobre o conteúdo de que trata a sequência narrativa. A recorrência de segmentos com essa característica levou à proposição do episódio sumário. A leitura desse episódio motiva perguntas como estas: Como?, Por quê?, Como assim?, perguntas que são respondidas no restante da narrativa. Em 98 sequências narrativas, há um segmento em que o jornalista oferece as coordenadas temporais e/ou espaciais dos acontecimentos tratados na sequência ou fornece informações que contextualizam esses acontecimentos. A presença desses segmentos em sequências narrativas de reportagens impressas parece se dever à busca do jornalista por atender à exigência de credibilidade do leitor, que, para crer na veracidade do que lhe é informado, precisa de informações acerca do momento e do local dos acontecimentos, bem como das circunstâncias que motivaram sua emergência (CHARAUDEAU, 2006). Esses segmentos foram reunidos sob o episódio estágio inicial. Em todas as sequências narrativas, há um segmento cuja temática desenvolve as informações expressas no subtítulo da reportagem e/ou no sumário da sequência narrativa, quando esta apresenta esse episódio. Nesse segmento, o jornalista tematiza acontecimentos centrais que motivaram a própria escrita da reportagem e em relação aos quais os demais episódios indicam um antes e um depois, apresentam esclarecimentos e justificativas ou expressam uma postura avaliativa por parte de alguma instância enunciativa. A recorrência de segmentos com

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essas características me levou a propor um episódio, que denomino complicação. Vale esclarecer que a complicação do tipo narrativo da reportagem se difere da do tipo narrativo do relato de experiência pessoal estudado por Labov (1972), já que, como nesses relatos o locutor narrava uma situação em que correu risco de vida, era indispensável que a complicação expressasse acontecimento singular e inédito, digno de ser narrado. Portanto, ao contrário do que ocorre na complicação do gênero reportagem, a complicação do gênero relato de experiência pessoal não precisa ser recente e afetar a coletividade, bastando ser imprevisível. Em 85 sequências narrativas, foram identificados segmentos em que o jornalista ou um personagem do mundo representado avalia acontecimentos expressos em outros episódios. Nesses segmentos, reunidos sob o episódio avaliação, é possível responsabilizar uma instância enunciativa por um ponto de vista acerca da informação expressa em quaisquer outros episódios do tipo narrativo, com exceção do sumário, que, talvez por apresentar uma natureza avaliativa, não foi objeto de avaliação em nenhuma sequência do corpus. Na análise, foi possível separar em dois tipos maiores as avaliações identificadas. De um lado, estão aquelas cuja responsabilidade enunciativa recai sobre o jornalista. Ou seja, nesse caso, é o próprio jornalista quem faz a avaliação. De outro lado, agrupam-se as avaliações cujos responsáveis são personagens do mundo representado. Nessas, o jornalista encena personagens realizando avaliações. Em 91 sequências do corpus, o jornalista trata do resultado do acontecimento expresso na complicação, indicando que esse acontecimento deu origem a outros e satisfazendo a necessidade do leitor/cidadão de ser informado de toda a cadeia de acontecimentos, cujo cerne é a complicação. A recorrência dos segmentos que expressam esses outros acontecimentos levou à proposição do episódio resolução.

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Em 38 sequências narrativas do corpus, o jornalista traz um segmento que apresenta o momento final dos acontecimentos expressos na sequência. Diferentemente da situação final de narratólogos que estudaram gêneros literários, nas sequências narrativas de reportagens, os segmentos que apresentam o momento final não têm como finalidade expressar uma nova situação de equilíbrio, em que os personagens, após as peripécias do enlace e do desenlace, se encontram em um estado diferente daquele em que estavam na situação inicial. Na reportagem, esses segmentos indicam as ações ou as situações que estão mais próximas do momento da enunciação (a publicação da reportagem). Nesse sentido, eles têm como função indicar que os acontecimentos expressos ao longo da sequência narrativa resultaram em um estado ou em uma ação final que, ainda agora, no momento em que a reportagem é publicada, tem relevância para o leitor/cidadão e pode, de alguma forma, interferir em suas atitudes. Com base nesses segmentos, propomos a incorporação ao tipo narrativo da reportagem do episódio estágio final. Esses episódios podem ser agrupados na seguinte representação referencial do tipo narrativo da reportagem.

SUMÁRIO

ESTÁGIO INICIAL

COMPLICAÇÃO

RESOLUÇÃO AVALIAÇÃO

AVALIAÇÃO ESTÁGIO FINAL

FIGURA 1 - O tipo narrativo da reportagem

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Diferentemente dos protótipos sequenciais de Adam (1992, 1999), essa representação não tem um caráter prototípico universal, uma vez que não subjaz às sequências narrativas produzidas no quadro de quaisquer gêneros do discurso. Dito de outra forma, essa representação não é transversal em relação aos gêneros, pois busca dar conta da produção e da interpretação das sequências narrativas pertencentes apenas a reportagens e, portanto, está profundamente atrelada às visadas e às instâncias enunciativas desse gênero. Além disso, como ela é elaborada a partir de um corpus de sequências narrativas extraídas de reportagens publicadas em janeiro de 2010, essa representação, assim como o gênero a que se subordina, é um construto profundamente sócio-histórico, não sendo válida para estudar, por exemplo, as sequências narrativas de reportagens publicadas há um século. Nesse sentido, ela deve ser compreendida como um recurso referencial de que lançamos mão sempre que precisamos produzir ou interpretar os segmentos narrativos de uma reportagem e não se aplica, portanto, à análise de sequências narrativas encontradas em exemplares de outros gêneros ou em reportagens produzidas em outros momentos históricos. No próximo item, expomos a terceira etapa da abordagem proposta neste trabalho. Definidos os tipos de um gênero com base na recorrência de elementos encontrados em um corpus de sequências discursivas, é possível, na terceira e última etapa, utilizar os tipos assim elaborados para identificar novas sequências discursivas, presentes em outras produções discursivas pertencentes ao mesmo gênero. No item a seguir, veremos como o tipo narrativo da reportagem, elaborado neste item, pode ser empregado na percepção de que um segmento de uma reportagem pertence a esse tipo.

A identificação das sequências discursivas

Assim como propõem Roulet, Filliettaz e Grobet (2001), esta abordagem considera que os tipos de discurso devem funcionar como

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instrumentos de análise que permitem extrair as sequências discursivas. Dessa forma, estabelecemos, aproximando-nos dos autores mencionados, uma distinção entre tipo de discurso e sequência discursiva. Enquanto o primeiro termo diz respeito a uma representação referencial típica que define como se narra, argumenta ou descreve em dado gênero, as sequências constituem segmentos discursivos empíricos em que os tipos se realizam ou se manifestam. Neste trabalho, vimos defendendo que os tipos são profundamente atrelados aos gêneros. Como consequência dessa imbricação das noções de gênero e tipo, é possível levar em consideração, no estudo das sequências de uma produção discursiva, elementos extralinguísticos ligados aos gêneros que, de modo geral, costumam ser negligenciados ou subestimados pelas abordagens que se guiam pela hipótese da universalidade e atemporalidade dos tipos. Para mostrar o alcance desta proposta, que retira sua singularidade da profunda integração entre os gêneros e os tipos, propomos uma análise deste segmento extraído de uma reportagem3 . (01) Mar de lama

Em 1998, mineiros e capixabas se animaram com o início da construção da BR-342, que ligaria o norte do Espírito Santo a Minas Gerais. Para pavimentar os 106 quilômetros da rodovia, foram celebrados três contratos com duas empreiteiras. Nos três o TCU encontrou sobrepreço – sempre na casa de 50% do valor global. Além disso, parte dos serviços que as empreiteiras alegam ter executado não foi fiscalizada pelo governo. Por fim, o valor dos contratos aumentou sem nenhuma justificativa técnica. Uma estranheza atrás da outra. Como a obra se tornou um sorvedouro de dinheiro público, o TCU pediu sua paralisação. Hoje, há apenas 33 quilômetros asfaltados. Outros 27 quilômetros são transitáveis, mas ainda não receberam uma gota de asfalto. Nos 46 quilômetros restantes, a obra nem sequer foi iniciada. No plano referencial, o jornalista representa um mundo discursivo que é disjunto daquele em que ele e o leitor interagem4 .

3 Esse segmento faz parte da reportagem “Desvios subterrâneos”, a qual foi publicada na revista Veja de 06/01/2010 e integra o corpus da pesquisa apresentada em Cunha (2013). 4 Segundo Bronckart (2007) e Filliettaz (1999), a disjunção entre o mundo que o discurso representa e o mundo em que o discurso se insere é própria da narratividade. 148

Inicialmente, o jornalista traz o sumário da sequência (“Mar de lama”), com o qual busca antecipar um aspecto do fato que será abordado. Como esse sumário traz poucas informações e remete tanto à lama das obras públicas quanto à “lama” da corrupção ligada a desvios de dinheiro público, ele parece ter como fim mais despertar a curiosidade do leitor do que facilitar a compreensão da sequência. Depois, o jornalista informa, no estágio inicial, o local (BR-342, Espírito Santo, Minas Gerais) e o momento (1998) em que se produziram os acontecimentos, bem como parte das figuras reais do espaço público neles envolvidos (mineiros, capixabas, empreiteiras). Esses elementos temporais, espaciais e actoriais sinalizam, de modo explícito, que o jornalista trata de um mundo outro ou disjunto em relação ao mundo em que ele e o leitor interagem por meio da reportagem. Após o estágio inicial, o jornalista informa, na complicação, os fatos que motivaram a escrita da sequência narrativa e que foram sumarizados no título (irregularidades na pavimentação da rodovia). Esses fatos têm o potencial de chamar a atenção do leitor/cidadão, porque dizem respeito ao uso irregular do dinheiro público e, por isso, afetam uma grande parcela da população, os contribuintes. Apresentados os acontecimentos, o jornalista, na avaliação, comenta a complicação, evidenciando que para ele as irregularidades encontradas no TCU são “uma estranheza atrás da outra”. O jornalista emite uma avaliação negativa sobre as irregularidades, avaliação que pode ser compartilhada pelo leitor, já que este, ao interagir com o jornalista, assume o status social de cidadão. Feita a avaliação, o jornalista informa ao leitor, na resolução, o resultado da complicação. Uma vez descobertas as irregularidades, a paralisação das obras foi um resultado previsto. Ao informar esse resultado, o jornalista atende à expectativa do leitor de que este, por assumir o status de cidadão, será informado da consequência da descoberta de irregularidades em obras públicas.

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Por fim, o jornalista apresenta, no estágio final, o estado resultante da resolução, informando ao cidadão como a rodovia está hoje (data da publicação da reportagem), depois da paralisação das obras. Como evidencia a análise, o mundo representado no segmento constitui uma atualização do tipo narrativo da reportagem, o que revela que esse segmento é uma sequência narrativa. Esse mundo representado pode ser esquematizado por meio da seguinte estrutura referencial.

SUMÁRIO Mar de lama

ESTÁGIO INICIAL Em 1998...

COMPLICAÇÃO Nos três...

RESOLUÇÃO AVALIAÇÃO Como a obra... Uma estranheza...

ESTÁGIO FINAL Hoje...

FIGURA 2 – Estrutura referencial

Ao contrário de uma análise estritamente sequencial, a análise empreendida considera os interactantes (autor e leitor), as ações que realizam, os status sociais que assumem na interação (jornalista e cidadão), bem como as visadas típicas do gênero reportagem. A consideração desses elementos só é possível porque, para a abordagem proposta, os gêneros têm impacto sobre a constituição de seus tipos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho propôs uma abordagem para o estudo da relação entre gêneros do discurso e tipos do discurso. Contrapondo-se à hipótese de que os tipos seriam universais, atemporais e transversais em relação 150

aos gêneros, a abordagem parte da hipótese de que essas noções são de tal modo imbricadas que cada gênero possui tipos específicos. Na abordagem apresentada, o tipo de discurso é concebido como uma representação referencial típica sobre o mundo do discurso, a qual é fortemente impactada pelo gênero do discurso ou pela representação referencial sobre o mundo em que o discurso se insere. Esse modo de conceber os tipos busca dar conta do fato de que eles são tão sócio-historicamente constituídos quanto os gêneros, cuja estrutura composicional integram. Assim, o tipo narrativo da reportagem é diferente do tipo narrativo da fábula, por exemplo, já que jornalista e fabulista não mobilizam os mesmos recursos referenciais. Em outros termos, cada gênero define os episódios característicos do seu tipo narrativo, uma vez que em cada gênero há uma maneira característica de narrar. Dessa forma, ao longo do processo de constituição histórica do gênero fábula, a moral foi selecionada como um episódio do seu tipo narrativo. O mesmo não ocorreu com o gênero reportagem, cujas propriedades definidoras não selecionaram a moral, mas selecionaram, como vimos, o sumário como categoria típica de sua narrativa. Com a abordagem delineada, a finalidade é, então, contribuir para uma melhor compreensão da relação entre os gêneros e os tipos, chamando a atenção para a inadequação de hipóteses teóricas, como a da universalidade dos tipos de discurso, que tem como consequência a desconsideração do papel dos gêneros sobre a constituição dos tipos. Ao desconsiderarem o papel dos gêneros sobre o modo como tipicamente narramos, descrevemos ou argumentamos, as abordagens que se guiam pela hipótese dessa universalidade estão impossibilitadas de oferecer uma compreensão mais adequada do fenômeno complexo que constitui a construção da estrutura composicional de um gênero. Porque parte da hipótese de que cada gênero possui tipos específicos e, consequentemente, de que os tipos não são um conjunto limitado de entidades universais e transversais em relação a todos os

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gêneros, a abordagem apresentada constitui um ponto de partida interessante para se pensar em respostas para algumas questões:

 qual é o modo típico de descrever e argumentar no gênero reportagem?

 qual é o modo típico de narrar, descrever e argumentar em outros gêneros?

 como o modo típico de narrar, descrever e argumentar de um dado gênero se constituiu ao longo da história da formação desse gênero?

 quais as semelhanças e as diferenças entre os modos típicos de narrar, descrever e argumentar em diferentes gêneros?

 é possível utilizar o modo típico de narrar, descrever e argumentar de um gênero para narrar, descrever e argumentar em outro? Que efeitos de sentido esse tipo de empréstimo pode causar?

 quais implicações a hipótese de que cada gênero possui tipos específicos pode trazer para o processo de ensino e de aprendizagem dos gêneros e dos tipos?

 a hipótese de que cada gênero possui tipos específicos rejeita a ideia de que o aluno capaz de narrar segundo os moldes das narrativas literárias é capaz de narrar em qualquer gênero. Desse modo, como essa hipótese pode afetar as aulas e os materiais didáticos sobre os tipos de discurso?

Essas questões são relevantes porque, ao serem respondidas, permitem elucidar aspectos ainda desconhecidos do funcionamento dos gêneros e dos tipos, bem como do modo como deles nos valemos para alcançar determinados fins em interações específicas. Além disso, permitem repensar, em novas bases, práticas pedagógicas cristalizadas e talvez ineficazes para a aprendizagem dos gêneros e do modo como neles se narra ou se argumenta.

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Por permitirem a colocação dessa série de questões para os estudos do texto e do discurso, consideramos que a presente abordagem e a hipótese subjacente a todas as etapas de seu desenvolvimento abrem uma perspectiva bastante promissora para investigações futuras.

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OS DISCURSOS E AS PRÁTICAS DA INCLUSÃO DIGITAL

João Augusto Neves Pires1

O governo petista do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003 – 2010) protagonizou uma série de ações que, segundo a fala oficial, pretenderam a redistribuição dos espaços de acesso e uso da internet no país. Durante seu governo diferentes programas e projetos foram desenvolvidos, em parceria com instituições públicas e privadas, no sentido de amenizar a situação da exclusão digital que afligia o Brasil. No entanto, as posturas assumidas pelo governo do PT (Partido dos trabalhadores), no que concerne à inclusão digital, estavam alicerçadas nas propostas que identificam suas políticas, as quais têm como principal característica a negociação com setores hegemônicos da sociedade de maneira que se articule ações que não manifeste prejuízos aos grupos historicamente dominantes – neste caso as empresas ligadas aos ramos da comunicação e informação. Venício A. de Lima, em artigo publicado no Observatório da Imprensa, destaca que “a maioria das propostas de políticas públicas que a sociedade civil organizada considera avanços no processo de democratização das comunicações não foi implementada no período 2003-2010” (LIMA, 2010, p. 13), pois segundo análise do autor “em diferentes ocasiões, ficaram evidentes as contradições e conflitos de orientação política entre setores internos ao próprio governo, em especial o Ministério das Comunicações, o Ministério da Cultura” (LIMA, 2010, p.13). O autor pondera, no entanto, que houve avanço no acesso à internet no país, mas que as ações do Estado foram muito tímidas para romper com as hegemonias historicamente consolidadas no país, de modo que possibilitasse um uso democrático e emancipador dos veículos de comunicação e informação,em suas palavras:

Da mesma forma, ficou mais de uma vez evidente a impotência do Estado diante dos grandes grupos de mídia, assim como ficou claro o enorme poder histórico desses grupos, ainda capazes de interferência direta na própria governabilidade do país. [...] O período 2003-2010 foi também marcado (1) pelo formidável avanço da internet e (2) pelo

1 Mestrando em História pela Universidade Federal de Uberlândia, onde também desenvolve projetos de pesquisa, ensino e extensão ligados à temática: Artes, Tecnologias digitais, Educação e Culturas Populares. Possui bolsa CNPq e, por meio dela, desenvolve pesquisa na área de Cultura Digital e Contemporaneidade, onde analisa as políticas de inclusão digital e suas imbricações nas comunidades que recebem tais programas ou projetos de Estado. Contato: [email protected] 155 recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo. (LIMA, 2010, p.13)

Claro que as ações e projetos políticos assumidos pelo governo Lula não foram privilégios unicamente de sua gestão, estavam, na maioria das vezes, em consonância com projetos internacionais de maior envergadura. Basta analisar os documentos firmados na Cúpula Mundial das Nações Unidas sobre a Sociedade da Informação (CMSI) que ocorreu nos anos de 2003 e 2005, e da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). Cruzando as informações ali contidas com as propostas de inclusão digital implementadas durante governo Lula, é possível notar como o governo do PT assimilou e contribuiu para que as propostas de ambas as instituições internacionais fossem consolidadas no país. Uma questão que se destacou nas discussões da primeira CMSI no ano de 2003 (Genebra) diz respeito às medidas tributárias que impediam ou dificultavam a venda e compra das tecnologias digitais, como também a falta de informação sobre as “brechas digitais” (exclusão digital), ou seja, problemas fundamentais que precisavam ser rapidamente solucionados para dar início a uma política de inclusão digital. Ambos os pontos foram se resolvendo por ações do Programa Brasileiro de Inclusão Digital criado um ano após a referida Cúpula. Dentre as primeiras atitudes assumidas pelo governo brasileiro para os programas de inclusão digital, podemos destacar: 1°) O estabelecimento de parceria entre os diferentes órgãos do Governo Federal no início 2003 que deu início ao Governo Eletrônico-Serviço de Atendimento ao Cidadão (GESAC), o qual criava pontos de acessos a internet em diferentes municípios e comunidades de baixa renda; 2°) a criação do Observatório Nacional de Inclusão Digital (ONID)55 em 2005; 3°) o envio para congresso federal e sua aprovação, conforme projeto de lei n° 11.196, de novembro de 2005, que além de criar um regime especial de tributação para os programas de inclusão digital, protagonizou um dos principais programas do governo Lula em sua primeira gestão – o “Computador para todos” - que oferece computadores, com configuração estipulada pelo governo, com baixo custo. Esta reorganização e estruturação do Estado brasileiro permitiu que nos anos

2 É uma iniciativa do Governo Federal em conjunto com a sociedade civil organizada que atua na coleta, sistematização e disponibilização de informações para o acompanhamento e avaliação das ações de inclusão digital no Brasil. 156

seguintes e no segundo mandato de Lula o governo estivesse em melhores condições para implementar projetos mais promissores, como é o caso do Casa Brasil. Contundo, as estratégias assumidas pelo governo estavam distante de objetivos educacionais e culturais, sociais e políticos, acompanhando, na maioria das vezes, os interesses apregoados pelas organismos multilaterais e supranacionais, que primam, antes de tudo, pelo aumento da capacidade produtiva e de consumo. Diante desta situação Lacerda (2009) analisa que:

O papel mais ou menos ativo dos governos pode se converter em promessas ou posturas demagógicas. E o entusiasmo em torno das virtudes promissoras da tecnologia pode se traduzir como resolução – mas, somente no nível do discurso – das carências em termos de educação, saúde e informação como possibilidades mínimas de exercício de governo. Esse entusiasmo com a tecnologia que não traz resoluções concretas ou mascara os demais tipos de carência é definido por Scott Robinson como demagogia digital. (LACERDA, 2009, p.172)

A partir dessas iniciativas o governo brasileiro torna-se destaque internacional nas políticas de inclusão digital, pois ele conseguiu desenvolver ações de maneira que elas fossem ramificadas nos diferentes ministérios que compõe o governo e também formulou parcerias com instituições privadas interessadas nas políticas de inclusão digital. Enquanto o Estado brasileiro financiava os programas e criava leis anti-tributárias, as grandes, médias e micro empresas lucravam com a prestação de serviço e a oferta de infraestrutura necessária para a realização dos mesmos. Deste modo, o Brasil consegue cumprir alguns – se não a maioria – dos requisitos para “construir a sociedade da informação”, pretendidos na declaração de princípios formulados na Cúpula Mundial das Nações Unidas sobre a Sociedade da Informação (CMSI), a qual prezava um Estado comprometido com a criação de estratégias que fortaleçam as tecnologias digitais enquanto:

um instrumento e não como um fim em si mesmas. [Pois]Em condições favoráveis, estas tecnologias podem ser um instrumento muito eficaz para aumentar a produtividade, gerar crescimento econômico, criar empregos e possibilidades de contratação, assim como para melhorar a qualidade de vida de todos. Além disso, podem promover o diálogo entre as pessoas, as nações e as civilizações. (CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2011, p. 33, grifo meu)

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Apreende-se deste parágrafo a intenção principal das políticas internacionais e seu rebatimento nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Mais do que a emancipação ou transformação social e das condições de vida das pessoas socialmente excluídas, as propostas estão voltadas para o fortalecimento do sistema capitalista, prezando, é claro, pelo aumento da produtividade, consumo e lucratividade. As políticas externadas pela declaração buscam além de tudo “(...) materializar uma visão comum da sociedade da informação para nós mesmos e para as gerações futuras.” (CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2011, p. 35) Visão pautada no mercado e na lógica do consumo que quando transpostas para a realidade latino-americana elas contribuem para o aumento da miserabilidade e, por fim, das desigualdades sociais. Na tabela 1, apresentada abaixo, verificamos os projetos e programas instituídos durante os anos de 2003 e 2010 pelo governo petista e de que maneira tais projetos se articulavam entre a Casa civil, Presidência da República, ministérios e secretárias de governo capitaneando recursos e poder simbólico56 para suas agendas políticas.

Tabela 1 Projetos e Programas que compõem as políticas de inclusão digital durante o governo Lula de (2003 – 2010). Projeto Órgão responsável Centro de Inclusão digital Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) Computador para todos Presidência da República, Ministério do Desenvolvimento, Ministério de Ciência e Tecnologia e Serpro Centros Vocacionais Tecnológicos Ministério da Ciência e Tecnologia (CVT) Governo Eletrônico Serviço de Ministério das Comunicações Atendimento ao Cidadão (GESAC) Kits Telecentros Ministério das Comunicações Maré – Telecentros de Pesca Secretária Especial de Aquicultura e

3 Conceito desenvolvido pelo autor no livro: BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 15° Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 187-188.

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Pesca/ Presidência da República Observatório Nacional de Inclusão Ministério do Planejamento, Digital Orçamento e Gestão e parceiros Pontos de Cultura – Cultura digital Ministério da Cultura Programa Banda Larga nas Escolas Presidência da república, Casa Civil, Secretária de Comunicação, Agência nacional de telecomunicações, Ministérios da Educação, Comunicação, Planejamento e Ciências e Tecnologias Programa computador portátil para Presidência da república, Ministérios professores da Educaçãoe Ciências e Tecnologias, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.

Programa estação digital Fundação Banco do Brasil Programa SERPRO de Inclusão Digital Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO) Programa nacional de informática na Ministério da Educação educação – ProInfo Projeto computadores para inclusão Ministérios do Planejamento, Educação e Trabalho e Emprego Quiosque do Cidadão Ministério da Integração Nacional Telecentros Banco do Brasil Banco do Brasil Território digitais Ministério do Desenvolvimento Agrário Telecentros de informação e negócios Ministérios do Desenvolvimento, – TIN Industria e Comércio Exterior Projeto um computador por aluno – Ministério da Educação e Casa Civil UCA Casa Brasil Ministérios da Ciência e Tecnologia, Planejamento, Comunicações, Cultura, Educação, Instituto nacional de Tecnologia e Informação, Secretária de comunicação, Petrobras, Eletrobrás/Eletronorte, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

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TOTAL: 20 Projetos e Programas FONTE: Elaborada pelo autor4 O debate sobre capital simbólico discutido por Bordieu (2011), contribuiu para as análises propostas neste texto, contudo não é intenção deste trabalho aprofundar nestas questões. Vale ressaltar, no entanto, que

o capital político é uma forma de capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento ou, mais precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um objeto – os propósitos poderes que eles lhe reconhecem. (BOURDIEU, 2011, p. 187)

Entendo, desta forma, que as investidas feitas pelo governo petistas sobre as políticas de inclusão digital permitiram que o partido ganhasse forças políticas que lhe possibilitasse sustentar a hegemonia do PT e do governo. Foram estes os primeiros passos dados para concretização de políticas públicas, voltadas para inclusão digital, sólidas em todas as esferas do governo. Veremos que esta ação contribuiu em um primeiro momento para investidas mais ousadas, como por exemplo, a criação do Projeto Casa Brasil e em um segundo plano fez sentir, de algum modo, o impacto das tecnologias digitais na vida das pessoas excluídas digitalmente.

4 A construção da tabela se deu conforme as informações encontradas no site do governo federal www.inclusaodigital.gov.br e nas discussões enfrentadas pelas dissertações e teses pesquisadas durante a escrita deste texto. Ver : SARTÓRIO, Kelly Cristiane. Exclusão social e tecnologia: Os desafios da política de inclusão digital no Brasil. 2008. 127 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2008; CARVALHO, Ângela Maria Grossi de. Apropriação da informação: Um olhar sobre as políticas públicas sociais de inclusão digital. 2010. 169 f. Tese (Doutorado em Ciências da Informação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010; MEDEIROS, Marcelo. As políticas de inclusão digital no governo Lula (2003 – 2009): Uma análise de programas e leis. 2010. 176 f. Dissertação (Mestrado Políticas públicas, estratégias e desenvolvimento) – Programa de Pós-graduação em Políticas públicas, estratégias e desenvolvimento, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. 160

Inclusão Digital: “A palavra mais sexy do governo”. Durante o ano de 2009, Lula, juntamente com a cúpula do PT, se preparava para o ano seguinte, onde impossibilitado de disputar a reeleição o partido precisaria se reorganizar em torno de uma candidatura e de um discurso que pudesse convencer a população brasileira que compensaria a continuidade do governo petista. O presidente durante suas falas em aparições públicas reforçava, utilizando das oportunidades do contexto, as contribuições de seu governo para determinada área – que normalmente era referente ao público ouvinte. Assim, Lula esclarecia as propostas políticas que sustentaram seu governo e apontava para o plano de continuidade caso seu sucessor pertencesse ao mesmo partido.

Nós tivemos o primeiro desafio: fazer com que o computador chegasse às mãos das pessoas mais pobres. Quem é do governo sabe quanto tempo nós passamos discutindo o Computador para Todos. [...] Então, o software livre é uma possibilidade de essa meninada reinventar coisas que precisam ser reinventadas. Para mim, hoje foi um dia glorioso, glorioso, porque eu tenho uma assessoria especial, que cuida da questão digital, amigo do Marcelo, tenho [...]. O governo tem dez ministros que falam em inclusão digital. Inclusão digital é a palavra mais “sexy” do governo, sabe? É a palavra mais “sexy” – todo mundo fala. (SILVA, 2009)

O presidente pretende demonstrar como ele e sua equipe estavam bem assessorados para enfrentar a discussão da cultura digital e das políticas de inclusão digital que foram implementadas durante seu governo. E de que modo o pensamento destes assessores ressoava entre seus ministérios, já que inclusão digital (ou será digitalismo?) tornou- se a palavra mais “sexy” de sua gestão. Para Bourdieu (2011) na política, “dizer é fazer, quer dizer, fazer crer que se pode fazer o que se diz e, em particular, dar a conhecer e fazer reconhecer os princípios da di-visão do mundo social” (BOURDIEU, 2011, p. 185). Além da reformulação dos aspectos legais que permitisse a conformação no campo jurídico de um aparato legal que possibilitasse a consolidação e continuidade dos programas e projetos de inclusão 161

digital, era (é) necessário um discurso que desse credibilidade tanto para a sociedade civil quanto para os poderes públicos e iniciativas privadas sobre as possibilidades de tais ações. Desta forma deveria entrar na pauta principal do governo a Inclusão Digital. Ao analisar as falas dos agentes políticos do período aqui estudado, é possível verificar diferentes propostas e trajetos políticos, assumidos durante o governo Lula, que ganharam sentido e significância na ordem social. Vários intelectuais, empresários, professores universitários, produtores culturais, agentes de ONG’s e outros, que participam direta ou indiretamente do debate sobre a cultura digital foram incorporados em ministérios, secretárias e diretorias do governo, criando, desta forma, uma “identidade” para as propostas ligadas as tecnologias digitais. No acalorado debate sobre as propostas para esse campo de ação, houve certa organicidade de pensamento nos e entre os ministérios e os demais sujeitos envolvidos na formulação e execução dos projetos e programas de inclusão digital. José Murilo de Carvalho Junior, por exemplo, gerente de cultura digital da Secretária de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MInC), em texto publicado no livro Cultura Digital.br, destaca a ideia central que baliza algumas ações conjuntas nas políticas de cultura digital e pontua as articulações necessárias para a realização das políticas pretendidas:

Interessa ao Ministério da Cultura convocar uma reflexão coletiva ampla sobre estas perspectivas, fomentando a participação de todos os interessados em um processo inovador de construção colaborativa das políticas públicas para o digital. O barateamento do computador pessoal e do telefone celular, aliado à rápida evolução das aplicações em software livre e dos serviços gratuitos na rede, promoveu uma radical democratização no acesso a novos meios de produção e de acesso ao conhecimento. (CARVALHO JUNIOR, 2009, p. 9, grifo meu)

Parte das ações ilustradas pelo autor foram executadas pelo governo federal, como também foram formuladas propostas conjuntas com as demais esferas do poder público (Estados e municípios), sociedade civil e iniciativas privadas para que pudesse chegar ao 162

resultado pretendido. Algumas destas iniciativas estão registradas nas portarias interministeriais, decretos e leis que foram (re)formulados e serviram como instrumentos legais de encaminhamento de projetos e programas de inclusão digital. O projeto de lei n° 11.196, discutido no capítulo anterior, que pretendia organizar e regulamentar a compra e venda de produtos tecnológicos para projetos de inclusão digital e o decreto n° 6.991, de 27 de outubro de 2009, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Inclusão Digital nas Comunidades (Telecentros.BR), são exemplos das articulações políticas e jurídicas que foram enfrentadas pelo governo federal. A construção de propostas e ações conjuntas para as políticas públicas de inclusão digital se fizeram presentes nos discursos dos agentes governamentais, destacando diferentes aspectos que envolvem a questão. Como assinalou o Ex-Ministro Fernando Haddad “com a internet o parafuso deu uma volta a mais. Não só se tem um caminho de ida que não é tão retilíneo como se imaginava, mas agora se tem também o caminho de volta por meio da interação digital, e isso evidentemente muda o conceito de esfera pública” (HADDAD, 2009, p. 56). Seguindo essas mesma linha de destacar a complexidade da temática, Cláudio Prado, na época Coordenador do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital, argumenta:

Eu diria a você que existem duas vertentes da cultura digital: uma prática real, do software livre, de novas percepções de como fazer as coisas, novas possibilidades de acesso, de troca, de viabilização da diversidade, que era impedida porque não podia ser distribuída no século XX, todas essas novas possibilidades extraordinárias. Por outro lado, há uma coisa conceitual muito profunda, do papel do ser humano sobre a terra, que se desencadeia numa compreensão mais séria de inúmeras questões, entre elas a questão ecológica. (PRADO, 2009, p. 35)

Quer dizer, os agentes políticos compreendem que havia (há) uma nova configuração social e cultural que afeta todas as esferas da sociedade, as quais devem ser compreendias pelo Estado e devem estar em consonância com as políticas de governo. Já que, como

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destacou Lula em sua fala no FISL (Fórum Internacional de Software Livre)5 as intenções eram “colocar este país dentro da inclusão digital, de fazer com que as crianças da periferia tenham os mesmos direitos que as crianças do rico, de ter acesso à internet, de poder se formar, de poder transitar livremente por esse mundo, que é a internet”. Deste modo, o balanço de governo6 (2003 – 2010) publicado na internet pelo Ministério do Planejamento, ao destacar o que foi feito durante este período em termos de inclusão digital, além de fornecer pistas sobre o discurso balizador das políticas implementadas nestes anos, possibilita, também, estabelecer uma comparação entre as propostas oficiais e o contexto mais amplo que cerca essa questão. Segundo o relatório: por meio de diversos ministérios e entidades vinculadas tem desenvolvido várias ações para criar oportunidades, acelerar o desenvolvimento econômico e social, promover a inclusão digital, reduzir desigualdades sociais e regionais, promover a geração de emprego e renda, ampliar os serviços de governo eletrônico e facilitar aos cidadãos o uso dos serviços do Estado, promovendo a capacitação da população para o uso das tecnologias de informação e de comunicação e para aumentar a autonomia tecnológica e a competitividade brasileira e do bloco Mercosul (BRASIL, 2010, p.428).

A partir deste texto depreende-se que a tônica que prevalecia nos discursos e nas ações das políticas petistas estavam em consonância com as propostas e diretrizes firmadas nos encontros realizados por órgãos supranacionais, onde se configurava os novos interesses do capitalismo. Apesar de não haver citações nos documentos oficiais ou nas falas dos representantes do governo que se refiram as formulações e debates feitos por organismos supranacionais como CEPAL ou UNESCO, é possível identificar pontos de convergência que caracterizam um entendimento comum sobre a sociedade atual e as dificuldades a serem enfrentadas pelos países subdesenvolvidos para participarem

5 O Fórum Internacional de Software Livre (FISL) foi realizado em Porto Alegre/RS no dia 26 de Junho de 2009,tinha como intuito problematizar o uso de Software Livre como ferramenta digital para o governo brasileiro. 6 O balanço do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 – 2009) se encontra no site: https://i3gov.planejamento.gov.br/?p=balanco, e sobre o tema de inclusão digital consultei o livro 4 (quatro) parte 2 (dois) item 9 (nove). 164

e/ou se incluírem no mundo das tecnologias digitais. Lula, ao dizer que se esforça para “colocar este país dentro da inclusão digital”, refere-se às constatações feitas pelos pesquisadores da CEPAL de que a parcela mais rica da população (12,3 %) que possui acesso a rede de computadores representa os 82% da taxa de conectividade do ano de 2004 no Brasil, enquanto o restante da população seria responsável pelo outros 18%. Em outras palavras, aqueles que se já possuem conexão à internet conseguiriam acompanhar a evolução tecnológica e nos anos seguintes estariam usufruindo deste desenvolvimento, enquanto parte considerável da população sequer conhecia um computador. Vê-se esta discussão melhor fundamentada na tabela abaixo encontrada na documentação fornecida pela CEPAL.

FONTE: CEPAL, 2003 Para reverter esta situação busca-se um referencial teórico e prático que coloque o Brasil em um patamar favorável de acesso e competitividade na sociedade em rede. Tendo em vista, que se entendia a necessidade de “reduzir desigualdades sociais e acelerar o desenvolvimento e a 165

difusão das TIC como elemento central para o progresso econômico e social brasileiro” (BRASIL, 2010, p.426), será:

El desarrollo económico (…) uno de los principios rectores de la sociedad de la información. Por una parte, los estratos de infraestructura y servicios genéricos están compuestos por industrias dinámicas y de crecimiento rápido. (…) Por lo tanto, el principal centro de interés no es tanto la producción de estos equipos sino su uso. Numerosos estudios provenientes de Norte-América, Europa y Japón indican que, al combinarse una serie de factores (tales como los bajos costos de transacción de las asimetrías de la información, el acceso a mercados nuevos y a cadenas de suministros, entre otros), la digitalización de los flujos de información y los mecanismos de comunicación en la economía pueden tener un fuerte impacto positivo en la productividad. (CEPAL, 203, p. 17-18, grifo meu)

O documento acima citado foi produzido durante a Conferência Ministerial Regional Preparatória da America Latina e Caribe para a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação. As afirmações ali contidas revelam o reconhecimento dos países da referida região sobre a sociedade da informação, como também suas implicações sociais, culturais, políticas e econômicas a partir do ponto de vista da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). A primeira observação a ser feita sobre o documento diz respeito à referência feita aos países dominantes, com realidades completamente diferentes, mas que primam pela adoção de suas políticas em países da America Latina de modo que estes possam manter sua hegemonia política e econômica na região. Mesmo que a CEPAL problematize tal questão no decorrer do texto, descortinando a especificidade de cada país ou região, suas propostas estão voltadas para o desenvolvimento das estruturas econômicas dos países Latinos Americanos de modo que estes possam participar e contribuir de forma competitiva no novo cenário político- econômico da sociedade da informação. Muitas das medidas pontuadas/sugeridas no texto redigido pela Comissão foram tomadas

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como referência a situação da “brecha digital” existente nos países da América Latina e Caribe. É marcante nas proposições a primazia à lógica do mercado global, de maneira que o desenvolvimento técnico – cientifico e da informação são os elementos chave a serem superados para o “progresso”. Como afirma Lacerda (2009), na maioria das vezes observa-se “um contínuo aumento da participação privada em iniciativas públicas e o aumento da capacidade produtiva e de consumo, o barateamento de custos de produção aparecem antes mesmo de objetivos educacionais e culturais, sociais e políticos” (LACERDA, 2009, p. 180). As medidas para a elevação do nível de produção e consumo são, na maioria das vezes, prioritários nas políticas de Estado. Sérgio Machado Resende, ministro de Ciências e Tecnologia do segundo mandato de Lula, sintetiza em sua fala de que maneira estes aspectos foram privilegiados nas ações implementadas em seu ministério:

o Brasil conseguiria reverter os índices de analfabetismo e de mortalidade infantil, possibilitando redefinir a inserção do povo brasileiro na divisão internacional do trabalho e priorizar a substituição de tecnologia importada e a realização, no maior grau possível, do esforço de pesquisa e desenvolvimento no interior da nossa sociedade. (REZENDE, 2013, p. 226. Grifo meu)

Quer dizer, os problemas historicamente enfrentados em nosso país poderiam ser resolvidos na medida em que o Brasil começasse a assumir e renovar as forçar produtivas que se instauraram na contemporaneidade. Retomando tais discursos percebemos que a fala do presidente Lula sobre as políticas de inclusão digital estava respaldada em formulações que ressoavam nas demais áreas de seu governo e, como vimos em alguns trechos dos documentos da CEPAL e CMSI, também em encontros de órgãos supranacionais. Estas concepções são parte das apropriações e usos feitos pelos agentes políticos que compuseram aquele governo petista.

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A partir do momento em que as tecnologias digitais começaram a participar de forma ativa no cotidiano das sociedades contemporâneas, cada sujeito apropria-se da mesma conforme seus valores, experiências, sentimentos, necessidades e expectativas e, sobretudo, condições, conferindo-lhe um sentido próprio. Entretanto, como afirmou Bourdieu (2011), é no campo da política e “na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos”, que são gerados “produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos” (BOURDIEU, 2011, p. 164). Analisando as falas destes agentes políticos conseguimos identificar uma estrutura de pensamento, no que concerne à cultura digital, que é, ou se faz, hegemônica em nossa sociedade. A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), por exemplo, foi uma das primeiras manifestações dos órgãos supranacionais que pretendia pensar os novos desafios da sociedade em rede, para a partir deste encontro, “forjar um entendimento comum, assumir compromissos políticos e definir ações e mecanismos concretos sobre o tema” (LIMA, 2004, p. 29). Nos dois encontros que ocorreram em Genebra (2003) e Túnis (2005) se fizeram presentes os governos, o setor privado, a sociedade civil, membros das Nações Unidas (ONU), dos organismos internacionais e dos meios de comunicação, os quais pensaram políticas para a sociedade atual. Apesar de não conseguirem concretizar todas as propostas levantadas durante a cúpula, os participantes conseguiram pautar indicativos e medidas para a sociedade da informação, como também conceituar, dentro dos moldes capitalistas, as mudanças sofridas na contemporaneidade. A CMSI fez ressoar, entre as esferas de influência dos participantes da cúpula, perspectivas ligadas aos temas centrais debatidos e defendidos durante o encontro. Subentende-se com os documentos produzidos durante o encontro – como, por exemplo, a Declaração de princípios – que as tecnologias digitais são artefatos capazes de solucionar os problemas históricos do sistema capitalista. A adoção de tais aparatos em todas as esferas da sociedade – social, cultural, político e econômico – viabilizariam, deste ponto de vista, a

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ordenação de ideias e políticas comuns para a superação das mazelas sociais. Nesse sentido ,compreendem que

o rápido progresso destas tecnologias oferece oportunidades sem precedentes para se alcançar níveis mais elevados de desenvolvimento. Graças à capacidade das TIC’s de reduzir as consequências de muitos obstáculos tradicionais, especialmente o tempo e a distância, pela primeira vez na história se pode utilizar o vasto potencial destas tecnologias em benefício de milhões de pessoas em todo mundo. (CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2003, p. 44).

Em diferentes passagens da Declaração reafirma-se a intenção de criar uma visão comum a fim de consolidar políticas comuns para a sociedade. Dá ênfase ao sentido revolucionário das TIC’s e da necessidade que esta revolução atinja todos os rincões da sociedade fazendo com que todos consigam usufruir das benesses do desenvolvimento capitalista, pois há a “convicção de que estamos entrando coletivamente em uma nova era, que oferece imensas possibilidades”(CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2003, p. 44). Assim, por um lado a Declaração reafirma pontos preponderantes para um uso quantitativo e qualitativo das tecnologias digitais nos marcos do atual contexto, como infraestrutura, políticas de inclusão digital, indissociabilidade de conhecimento e informação, e por fim, segurança e confiança no uso das TIC’s. Por outro lado, apresentam-se várias questões antes deixadas de lado na discussão da cultura digital como, por exemplo, debates vinculados a gênero, raça, etnias, meio ambiente, juventudes, diversidade e identidade cultural, diversidade lingüística e conteúdo local. Contudo, suas proposições, como já foi dito, estão voltadas para a reafirmação do sistema capitalista globalizado, delineando as diferentes

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maneiras – que ao final deverão atingir o mesmo objetivo –, para os países não desenvolvidos superarem problemas estruturais, sociais e culturais na “sociedade da informação”. O documento da CMIS afirma, ainda, que

o alcance de nossas aspirações compartilhadas, em particular para que os países em desenvolvimento e países com economias em transição se convertam em membros efetivos da sociedade da informação e possam se integrar positivamente na economia do conhecimento depende em grande parte do aumento do desenvolvimento de capacidades nas esferas da educação, know-how tecnológico e acesso à informação, que são fatores indispensáveis no estabelecimento de condições de desenvolvimento e competitividade (CÚPULA MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, 2003, p. 44).

Para melhor compreender os objetivos comuns, as vontades coletivas e as aspirações compartilhadas, enfim, todas essas intenções ditas e não ditas sobre o sistema político presente na “era do globalismo”, torna-se necessária uma análise que reflita sobre o contexto mais amplo que envolve a questão. Nesse sentido, Manuel Castells (1999), afirma que a capacidade instrumental do Estado-Nação, enquanto instituição forjada na modernidade, está comprometida devido as transformações sofridas com o processo de globalização das atividades econômicas, midiáticas, de comunicação e também da rede de criminalidade. Isso quer dizer, por um lado, que o Estado vem perdendo seu campo de influência na vida de seus cidadãos, mas, por outro lado, não podemos afirmar, segundo o autor, que o Estado tenha perdido seu poder, enquanto instituição reguladora, podendo usar da violência, para manter a ordem e a difusão de ideologias. Da mesma forma, Ocatavio Ianni (2011), identifica uma reconfiguração da política internacional onde, segundo suas investigações, há três esferas de poder político que se interligam e que são interdependentes: o globalismo, o regionalismo e o nacionalismo. Todas representam totalidades que, reciprocamente submissas, agem de forma que estas novas realidades permitam a “reestruturação dos subsistemas econômicos nacionais, em

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conformidade com as capacidades destes, com as possibilidades da regionalização e com a potencialidade da globalização”(IANNI, 2011, p. 102). Há um entendimento comum, entre esses autores, de que a globalização – ou globalismo– abala a economia e a sociedade, assim como a política e a cultura na contemporaneidade, “tanto provocando distorções como abrindo horizontes” (IANNI, 2011, p.150). A partir dessas análises e das leituras feitas nos documentos consultados durante a pesquisa entendo que as políticas nacionais e internacionais atualmente estão entrelaçadas a fim de contribuir para o desenvolvimento/aperfeiçoamento do sistema capitalista, agora globalizado. No entanto, as políticas locais e globais para terem significância social e seja aceita pelas pessoas precisam estar conectadas com suas experiências, as necessidades e expectativas do cotidiano. Durantes outras pesquisas realizadas debatemos aspectos do cotidiano dos moradores da Zona Leste da cidade de Uberlândia/MG, e percebemos de que maneira as tecnologias digitais estão inseridas no dia a dia daquelas pessoas, bem como o sentido que é dado a estes artefatos. Além de serem produtos de consumo e lazer, as tecnologias, na maioria das vezes, como vimos em diversas falas, são usadas pela primeira vez e apropriadas em suas rotinas devido as necessidades do mercado de trabalho. Por isso, a preocupação neste texto em verificar as intenções e os discursos assumidos pelas políticas de inclusão digital, para, mais adiante, buscarmos compreender as práticas e os impactos destas políticas nas periferias do município de Uberlândia. Segundo Bourdieu (2011), “O poder simbólico é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe.” (BOURDIEU, 2011, p. 187-188) Neste sentido, compreendo que ao fazer ressoar, pelos diferentes estratos de seu governo e da sociedade, o discurso da inclusão social e desenvolvimento econômico via políticas de inclusão digital, o PT

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adquire poder simbólico de atuação. Os programas e projetos de inclusão digital, conforme as análises feitas, estavam articulados com as formulações teóricas e práticas de órgãos supranacionais, empresas multi e transnacionais e, finalmente, com as expectativas e necessidades da população brasileira. Tais ações, de alguma forma acabaram sendo instrumentos de ação no campo simbólico pelo governo petista. Em outras palavras, as investidas no campo das tecnologias digitais feitas na “era Lula” deu a ele e seu governo credibilidade e valor de reconhecimento no campo político, facilitando o terreno para investidas mais ousadas.

REFERÊNCIAS

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NARRAÇÃO E ETHOS: AS MULHERES MODERNAS EM PANELINHA: RECEITAS QUE FUNCIONAM (2012)

Julia Ferreira Veado1

Ao considerar, como coloca Machado (2007), que o discurso corresponde “aos atos de linguagem que circulam no mundo social e que são testemunhas dos universos de pensamento e dos valores que se impõem em um dado tempo histórico”, pretendo observar como os textos presentes no manual culinário Panelinha – Receitas que funcionam (2012), de Rita Lobo, confirmam a tal proposta. Para realização deste trabalho, traçarei um recorte a partir dos textos presentes no livro de receitas, dando destaque para os que são mais narrativos e/ ou com um tom mais confessional, abordando experiências e conselhos de Lobo a seu público. Tal escolha se justifica, pois esses parecem ser imbuídos de maneira mais notória de uma “dimensão argumentativa”, expressão usada por Amossy (2005) para qualificar a intenção de tentar agir sobre o outro, presente em todo texto. Segundo a linguista, o locutor, ao tomar a palavra, invariavelmente, começa a criar uma imagem de si, seu ethos, atrelada à sua fala (aqui tomada como sinônimo de discurso). No entanto, o sujeito se reserva a tomar certos cuidados ao compor essa imagem, visto que uma das intenções primeiras de uma argumentação é a adesão do auditório, acontecimento que se torna mais palpável a partir do momento em que o público estabelece uma empatia com o locutor. Assim, o locutor constrói seu discurso levando em consideração elementos como doxa (memórias e valores coletivos), auditório e contrato de comunicação. Tais elementos podem ser levantados a partir das diversas marcas que se encontram presentes nos textos de Lobo, as quais apontam para imagem de si que a autora pretende revelar a seu público e que parece exercer influência direta para o alcance da obra. Através desse

1 Graduada em Letras – Fale/ UFMG. E-mail: [email protected]. 174

estudo, procurarei realizar um resgate dessas pistas a fim de trazer à tona o perfil da autora que ela (mesma) tentou permear, assim como quais as estratégias argumentativas ela se valeu ao longo de sua(s) fala(s). Para este artigo, portanto, delimitarei meu recorte aos textos que fazem parte da introdução do Panelinha: “Receitas que funcionam” e “A vida na cozinha”; assim como a primeira lista presentes na seção “Vou contar até 10. Listinha úteis para a cozinha – e alguns conselhos práticos para os cozinheiros”. A partir dele, tentarei delinear melhor certos aspectos que envolvem essa pesquisa. Conforme apresentado brevemente, esses textos guardam uma relação de interdependência com o público-alvo, o contrato de comunicação e a , ou seja, a elaboração de um discurso leva em consideração tais elementos, sendo eles determinantes e determinados por esse processo. É um jogo em que os elementos participam de duas formas: ativa e passivamente. Assim, em relação ao Panelinha (2012), podemos pensar em um público-alvo ideal composto predominantemente por indivíduos do gênero feminino, visto que em geral, são “elas” que “pilotam o fogão” e que consomem esse tipo de publicação. Já em relação à doxa, a expressão citada acima ajuda a compreender esse conceito. A ideia presente nela só é entendida pois essa aciona a doxa, isso é, a memória coletiva e o imaginário que circundam nossa sociedade, o que inclui as relações de gênero instituídas. Junto a ambos, aparece a ideia de contrato comunicacional. Como propôs Charaudeau (2006, 2011), para que um discurso seja eficaz, ou seja, alcance seu auditório e promova sua adesão, ele necessita preencher certos requisitos, seguir certas normas – as quais estão previstas no contrato. Nesse sentido, além de um uso adequado da gramática, que permite a elaboração de sentenças em acordo com a nossa língua, as regras previstas para elaboração de livro guardam uma relação direta com o momento histórico em que ele é produzido; com o auditório ideal a que ele se dirige; e, por fim, com os valores

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defendidos por esse grupo. Ao atender as expectativas do contrato, a garantia de que a comunicação se dê de forma mais plena é maior. Tendo em vista que o Panelinha (2012) parece ser voltado a um público feminino moderno, certos valores e crenças se fazem presentes (de maneira quase que obrigatória) a fim de que o diálogo entre as partes seja travado. Isso é, Rita Lobo recorre a procedimentos e ideias que dão a ela a autorização para tomar a palavra e também a possibilidade de cativar seu público-alvo, criando as bases para uma adesão. Ao priorizar tais procedimentos, Lobo está atuando de maneira estratégica para compor um ethos favorável e, através de uma recepção positiva por parte de seu público, estabelecer uma empatia com ele. Um elemento, portanto, que compõe o livro e que pode ser tomado como uma abertura dessa fala de Lobo é a capa do manual. Tanto o título Panelinha – receitas que funcionam, como a seleção das cores da capa influenciam na demarcação da imagem de si da chef, como a de seu público-alvo. O termo “Panelinha” carrega em si uma marca de feminino, graças à presença do sufixo de diminutivo [-inha], o que é reforçado pela escolha da cor da fonte, o rosa, outro traço fortemente associado ao universo feminino, em nossa sociedade. Através dessas escolhas, fica claro que existe um imaginário e uma memória que remontam o gênero feminino. Esses elementos, inseridos na doxa, corroboram com a ideia de que as mulheres são associadas a valores como feminilidade, delicadeza, aconchego, e, como não poderia deixar de ser, culinária. Ao apresentar seu manual de receitas com esse título e essa capa, Lobo parece construir uma imagem de si adequada aos ideais vigentes em nossa sociedade, predominantemente patriarcal. A história das mulheres, seja no Brasil, seja no ocidente, passa por um caminho pouco conhecido, uma vez que elas demoraram a ter voz e serem ouvidas, como pontuam Perrot (2007) e Mott; Maluf (2004). No entanto, esse mesmo silêncio indica um pouco de sua história: as mulheres por muito tempo foram oprimidas. Diferentes fatores como

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filosofia, ciência e religião interferiram para que elas fossem consideradas seres sem razão, sendo tomadas como criaturas passionais, e por esse motivo, retiradas do espaço público – ambiente autorizado apenas aos homens. O filósofo René Descartes (século XVII) e o médico italiano Cesare Lombroso (século XIX) se destacam entre os nomes ilustres que ajudaram a fundamentar certas noções a respeito do gênero feminino como características naturais a ele. Dessa forma, acreditou-se por muito tempo que a capacidade biológica de gerir das fêmeas, era, na verdade, uma propriedade natural desse gênero e assim passou a ser estipulado para as mulheres certos padrões os quais envolviam a maternidade, a família, o lar e o zelo para com eles. Rocha-Coutinho, em seu livro Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares (1994), comenta como o ambiente urbano e as classes econômicas mais “abastadas”, no caso, a média e alta, são o palco mais provável para o “desabrochar” das mudanças sociais. A psicóloga realiza uma pesquisa sobre a influência das ideias feministas em mulheres da classe média e alta carioca de duas gerações diferentes, sendo mães e filhas. Essa escolha se deu pelo fato de ambas pertencerem ao segmento mais suscetível a transformações. Inserida em uma camada semelhante está a autora do Panelinha (2012). Hoje aos 39 anos, Rita Lobo iniciou sua carreira profissional como modelo, desfilando para diversas marcas e em diferentes países. Deixando a moda um pouco de lado, ela passou a dedicar-se à culinária e cursou gastronomia nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, comandou um restaurante entre 1997 e 2000, em São Paulo, e hoje, já reconhecida como chef de cozinha, Lobo mantém o amplo projeto Panelinha, concentrando o site, o livro, programas de rádio e TV, e o selo editorial, pertencente à editora Companhia das Letras. Por essa breve bibliografia, é possível notar que Lobo, além fazer parte de um ambiente (hiper) urbano/ cosmopolita, como é São Paulo, pertence a uma classe social economicamente elevada. Esses fatores permitem concluir que a chef está ligada a um perfil de mulher

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dinâmica, independente e autônoma, no sentido de não abdicar de uma vida profissional nem de depender financeiramente de um marido (ou de um pai). Ao se posicionar em uma esfera pública e alcançar prestígio pela atividade que realiza, Lobo se afasta do modelo patriarcal idealizado de mulher, a “Amélia”2 . No entanto, ainda que tais alcances sejam possíveis graças às reivindicações e demandas que o movimento feminista lutou para atingir, a chef não se afirma como feminista em momento algum. Como coloca Perrot (2007), o feminismo é visto como uma verruga no rosto por muitas pessoas, inclusive mulheres. Existe muito preconceito em torno do movimento, o que pode ser comprovado através da pesquisa realizada por Soihet (2004) que mostra as charges feitas por cartunistas (homens) retratando as feministas. Pelo desenho de Raul Pederneiras, por exemplo, elas são, em geral, retratadas como feias e masculinizadas. Dessa forma, cria-se e perpetua-se um estereótipo negativo em torno dessas mulheres. Ao passo que em nosso imaginário a mulher feminista é delegada a uma representação depreciativa, a mulher “Amélia” é valorizada. O ideal patriarcal de mulher, portanto, estabelece um padrão basilar composto pela tríade “esposa-mãe-dona-de-casa”. Já em Lobo, o que se nota é um perfil em ampliação, que vive o dilema mostrado por Rocha-Coutinho (1994). A autora do Panelinha (2012) nem se restringe ao ambiente privado do lar, assumindo exclusivamente uma posição de dona de casa, nem rompe com esse papel. Ela tem uma vida profissional reconhecida e, ao mesmo tempo, dedica-se aos filhos, ao marido e aos cuidados com o lar. Diante disso, o conflito de modelos e representações da figura feminina aparece diversas vezes no discurso de Lobo. Logo na introdução de seu manual, ela pontua “Nunca consegui explicar para minha avó o que é o Panelinha. (...) Minha avó é do tempo em que as mulheres sabiam cozinhar e ponto” (LOBO, 2012, p.10). Ao demarcar dois tempos distintos, o da avó e o seu, Lobo indica que seu tempo é outro e

2 Em referência à canção “Ai que saudades da Amélia”, composta por Ataulfo Alves e Mário Lago (1942). 178

seus valores também. Aparentemente, ao fazê-lo, a autora coloca-se como uma mulher “moderna”, tomando esse adjetivo como sinônimo de ruptura com o passado, o antigo e a tradição. No entanto, tal postura parece não se sustentar, pois em outras passagens a autora se mostra afetada por determinados valores tradicionais. Dentre esses valores, destaco três, colocando-os como “valores- chave”, ou seja, preocupações que prevalecem no discurso de Lobo. São eles: maternidade, saúde e vaidade. Ao priorizá-los, Lobo atende às demandas relacionadas ao imaginário vigente em nossa sociedade patriarcal e consegue criar uma maior empatia com seu público-alvo. Em relação à maternidade, essa continua sendo vista como uma propriedade natural da mulher, graças às “contribuições” de Descartes e Lombroso. Apesar de Simone de Beauvoir ter tentado denunciar a falsidade por trás dessa associação, em meados no século XX, ser mulher ainda hoje representa, em grande escala, ser mãe. Como coloca Perrot (2007), a maternidade representa a “fonte da identidade [para a mulher], o fundamento da diferença reconhecida, mesmo quando não é vivida”. Vista como uma questão de saúde – física e psíquica – da mulher, somente ao experienciá-la, ela irá se sentir completa e realizada. Por ser embasada em um suposto discurso científico, essa proposta adquire uma credibilidade quase intocável. Em consequência, a proposta de a tríade “esposa-mãe-dona-de-casa” ser a síntese do perfil ideal de mulher prevalece até os dias de hoje e Rita Lobo não escapa disso. A chef, enquanto ser de mundo e sujeito, está inserida em um tempo histórico e em uma situação de comunicação o que inevitavelmente afeta sua produção. Essa influência pode ser vista através dos valores e crenças que permeiam seu texto, informações as quais contribuem para que Lobo mostre aos outros uma imagem de si, ou ethos, favorável. E diante da noção de que a argumentação tem como pretensão básica a adesão dos interlocutores a uma ideia (AMOSSY, 2005), argumentar em consonância com o imaginário que prevalece, no caso,

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o patriarcal, parece ser uma boa estratégia para aumentar a adesão a um discurso. Nesse sentido, proponho comprovar como Lobo se vale de valores e imaginários vigentes a fim de cativar melhor seu público alvo. Ao comentar sobre “a vida na cozinha” em seu livro de receitas, Lobo reconhece que “muita coisa aconteceu na cozinha [na última década]. (...) Virou gourmet. Agora homens trocam receitas e mulheres têm confrarias” (LOBO, 2012, p.13), e que todos, sem distinção de gênero, podem cozinhar, uma vez que as receitas escolhidas para compor o manual são destinadas a “facilitar a vida das pessoas que acreditam na boa alimentação como a base da vida” (LOBO, 2012, p.13). No entanto, apesar dessa apresentação exaltando uma mudança na cozinha e nas relações que envolvem tal espaço, Lobo encerra esse mesmo texto em favor de uma manutenção de costumes. Outro ponto importante – talvez o mais importante – é que o jantar em família, com todos em harmonia sentados à mesa, está se tornando um hábito em extinção. É uma pena. Mas não dá para voltar no tempo. As estruturas familiares não são mais as mesmas. Os vínculos, porém, sempre precisam ser bem alimentados. E cozinhar em família é o melhor alimento. Em vez dos filhos ficarem na frente da televisão, podem ajudar no preparo do jantar. Entre uma cebola e um tomate, fala-se sobre o dia, sobre as dúvidas, sobre os planos; o humor melhora, aparecem soluções ou simplesmente ficam todos quietos, apenas fazendo parte e, de repente, o jantar está pronto: corpos alimentados, elos fortalecidos. E disso as avós entendem (LOBO, 2012, p.13). Nota-se aqui a princípio, uma proposta convidativa e abrangente por parte da autora, mas, em seguida, ela restringe seu foco à valorização de uma tradição e passa a se dirigir diretamente às representantes do gênero feminino. Tal manobra pode ser percebida através das sugestões feitas, como a de incluir os filhos no preparo do jantar e no estabelecimento (mais uma vez) das avós como parâmetro de “sabedoria”. Dessa forma, embora Lobo tente construir um livro condizente com os “tempos modernos”, em diversos momentos ela contradiz essa ideia de amplitude da cozinha e passa a falar diretamente para as mulheres, reproduzindo e ressaltando situações e valores próprios de nossa cultura machista. Ao resgatar certas visões e costumes tradicionais,

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a chance de que seu público compactue com seu discurso parece aumentar. Nesse sentido, maternidade, saúde e vaidade surgem como os “valores-chave” do discurso da chef. Tendo em vista que eles corroboram com a tradição patriarcal vigente, tentarei mostrar como o discurso da chef parece conseguir despertar mais a empatia do público, além de mostrar uma Rita Lobo mais cativante, em função da presença dessas ideias. Sendo assim, passo à exposição dos trechos e suas análises. Na primeira lista, “10 tipos de alimentos para a lista de compras” (LOBO, 2012, p.16), a chef sugere que Cardápios e listas de supermercado são muito pessoais. Depende do gosto, da quantidade de moradores, de onde a pessoa mora, se o supermercado é perto, se as compras são feitas pela internet – são muitas as variáveis. (...) Por isso, se puder, faça suas compras pessoalmente. Melhor ainda se conseguir envolver a família. Ir à feira pode fazer parte da agenda familiar. As crianças são expostas a uma variedade maior de alimentos, todos podem opinar na escolha do que vão comer, e maridos mimados aprendem que o forno não é uma caixinha mágica. Na minha experiência, fica mais fácil conquistar uma alimentação saudável e saborosa com um pouco da dedicação de todos. Das compras ao preparo dos alimentos (LOBO, 2012, p. 16).

Nesse trecho, percebe-se uma voz feminina conversando com um auditório também feminino. Certos elementos como o envolvimento da família, incluindo as crianças e, principalmente, “os maridos mimados” que aprenderão que o “forno não é uma caixinha mágica” indicam quem fala e para quem fala, isso é, ambas as partes pertencem ao gênero feminino. Além disso, eles demonstram claramente os valores tradicionais de maternidade e família que Lobo ressalta. Ainda nessa lista, no primeiro item, “frutas”, Lobo reforça a importância desse tipo de alimento em nosso cotidiano e aconselha: “para quem não tem muita experiência na hora de escolher [frutas], o melhor truque, é, na feira, grudar numa senhorinha: pegue as frutas mais parecidas com as que ela levou” (LOBO, 2012, p. 17). Através dessa sugestão, ao colocar a “senhorinha” como parâmetro para se acertar na escolha confirma a ideia de que a cozinha foi, e por que não continua sendo, um ambiente predominantemente ocupado por mulheres. São elas que “entendem do assunto”. 181

A saúde é outro valor que é fortemente defendido pela autora em seu manual, aparecendo em diversos momentos, e em boa parte deles, aglutinado à ideia de maternidade e cuidados com a família como um todo – filhos e marido. Além da defesa das frutas como “essenciais na alimentação” (LOBO, 2012, p. 17), pois “todo mundo precisa ter frutas tem casa para conseguir uma alimentação minimamente saudável” (LOBO, 2012, p.16), Lobo lista os legumes como segundo item dentre os alimentos imprescindíveis, “Procure variar ao máximo; quanto mais colorida a compra, mais saudável a alimentação”, aconselha a chef. Mais adiante na lista, Lobo recomenda os alimentos “secos”, Café, açúcar, (...), chás, açúcar mascavo, farinha de trigo integral, linhaça, gérmen de trigo, aveia. Mas não compre tudo de uma vez. Vá experimentando, substituindo. E risque da sua lista os achocolatados. Você conseguir! Coloque chocolate em pó no leite das crianças. Comece adoçando bem e vá diminuindo aos poucos (LOBO, 2012, p. 17).

Tal recorte explicita a relação entre a boa alimentação e responsabilidade da mãe nessa tarefa, o que fica claro quando a autora menciona as “crianças”, juntamente com a mudança de hábito e de paladar delas em prol de uma dieta mais saudável.

Aliada à ideia de uma nova dieta aparece o valor “vaidade”. Vale lembrar que além de chef de cozinha, Lobo já foi modelo, o que leva a crer que uma dieta balanceada e a preocupação com a boa forma física sejam questões importantes para ela. No entanto, além de envolver uma preocupação com o paladar e seu apuramento, tal “valor-chave” envolve também uma boa apresentação dos pratos. 3 Tudo gira em torno de uma estética nesse caso. Na continuação do trecho citado acima, a autora insiste na recomendação de alimentos a evitar. Biscoitos recheados, confeitos e tudo o que estiver escrito, na caixa, “sabor” alguma coisa, corte. Simplesmente não compre. No supermercado, nem passe na gôndola de salgadinhos. Você não precisa de nada disso. Além de não fazer bem, ainda estraga o paladar. Por outro lado,

3 Em relação à apresentação estrita do prato, isso é, à escolha e uso de utensílios, panelas e louças de qualidade superior, além de mais elegantes, olhar a lista “10 itens indispensáveis na cozinha” (LOBO, 2012, p. 19-20) 182

nozes e frutas secas são os melhores lanchinhos que pode haver. Esses sim, compre aos montes. Leve para o trabalho, tenha na bolsa, mande de lanche para as crianças (LOBO, 2012, p. 17).

Nessa mesma lista, ao comentar sobre o item “galheteiro”, a chef pondera Foi-se o tempo que um óleo e um vinagre bastavam. Nossos paladares amadureceram, o mercado também, e agora usamos um tipo para cada preparação. Salada vai com azeite extravirgem, vinagre balsâmico, se a receita está mais para italiana; de jerez, se é espanhola; de vinho branco, se é francesa. Para cozinhar, pode ser óleo de canola, e assim vai. [...] Aqui, quero destacar apenas dois temperos: sal e pimenta. Se possível, use somente sal marinho. Já a pimenta-do-reino tem que ser moída na hora. Invista em um bom moedor. A comida agradece (LOBO, 2012, p. 17).

Ainda na defesa dos paladares aguçados, a chef recomenda o uso de alimentos orgânicos, tanto verduras e legumes, como para carnes e aves. Lobo sugere dar “(...) preferência ao frango orgânico e ao boi verde. E não só pelas questões de sustentabilidade: o sabor é outro. O mesmo vale para os ovos” (LOBO, 2012, p. 18). Nesse mesmo sentido, ela insiste na ideia de alimentos de origem (mais) orgânica ao propor que “pode parecer frescura, mas ervas frescas fazem a maior diferença. Se possível, faça uma hortinha em casa. Em uma jardineira, você consegue plantar um pouco de manjericão, tomilho, alecrim” (LOBO, 2012, p. 18). Pode-se perceber assim como a autora, nesse quesito, pesa a atenção em torno do paladar e da escolha de alimentos com procedência mais confiável e saudável. É possível notar também como esse aconselhamento esbarra frequentemente no cuidado com a alimentação de toda a família, especialmente a das crianças.

Algumas considerações

Diante do recorte de textos retirado do manual de culinária Panelinha – receitas que funcionam (2012), pretendi comprovar como o discurso se revela influenciado pelo meio em que está inserido, traçando

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uma relação entre linguagem e sociedade. Assim, fatores como doxa, público-alvo e contrato de comunicação foram cuidadosamente articulados na elaboração dos textos analisados a fim de garantir a adesão do auditório. No caso de Rita Lobo, ela, uma mulher jovem, branca, emancipada e profissional reconhecida, parece ser, de certa forma, herdeira do movimento feminista. Com a liberdade para trabalhar fora de casa desde cedo e tendo se tornado uma renomada chef de cozinha e empresária, Lobo apenas pôde concretizar tais feitos em função das conquistas batalhadas pelo Feminismo. Sem elas, provavelmente, ela seria parte de um grupo de mulheres que “[sabem] cozinhar e ponto”, como a autora pondera a respeito da geração de sua avó.

Entretanto, nossa sociedade continua predominantemente patriarcal e Lobo não escapa disso. Por um lado, a autora se mostra liberta de certas “doutrinas” que cerceavam o gênero feminino, mas, por outro, ela insiste em defender certos valores e posturas próprios de uma cultura machista. Assim, vivenciando o conflito em torno da identidade feminina colocado por Rocha-Coutinho (1994), a chef congrega em si valores como maternidade, família, casa, cozinha e profissão, tentando não abrir mão de seu papel de mãe e esposa, mas também sem abdicar de sua carreira e de sua realização pessoal. Essa tentativa de ser multifacetada e polivalente parece ser o que constitui uma mulher “moderna”. O trabalho em torno da construção do ethos e do discurso, portanto, esbarra em elementos como imaginário social e cativação, uma vez que entra na esfera das emoções provocadas. Lobo, mesmo se desconhecer tais propostas teóricas, parece ter consciência dos cuidados a seguir ao tomar a palavra e provou fazer isso muito bem, o que pode ser comprovado através do sucesso de vendas do Panelinha, já na 5ª edição.

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O “SER-TÃO” DE GUIMARÃES ROSA E DE MARILY DA CUNHA BEZERRA: DIÁLOGO INTERARTÍSTICO

Karla Alessandra Nobre Lucas1

A literatura comparada, no âmbito das tendências contemporâneas, supera os paradigmas da análise literária comparada tradicional e, assim, redefine seus caminhos metodológicos. Em suas origens, os estudos comparatistas assumem uma postura eminentemente histórica, expressa na linha francesa e na Escola Americana, cujos desdobramentos privilegiam a verificação das influências, da tematização e, ainda, a busca por uma poética universal erigida a partir do modelo eurocêntrico. Os estudos comparatistas adotam atualmente como expoente de seu método, elementos que vão além da mera abordagem dos temas/motivos e das fontes/influências; antes, discorrem acerca de predisposições estéticas que ultrapassam a literatura e se inserem na proposição de um diálogo entre autores e obras, pautado na noção da diferença, na representação da alteridade e nos desdobramentos da cultura e da história nos estudos literários, implicando a necessidade de definir objetos de comparação para desconstruir e resignificar o horizonte, ou limite de possibilidades da experiência estética.

Um grande sertão...

O romance Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa, notabiliza-se pela tematização do tempo em seus desdobramentos no caráter memorialístico/reflexivo de Riobaldo, numa simbólica travessia pelas veredas existenciais de um “ser-tão” que supera os limites de tempo e de espaço e se confunde com a essência humana: “O sertão está em toda a parte.” (Rosa, 1956, p. 10); “Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão?

1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected] 186

Sertão: é dentro da gente.” (Idem, op. cit., p. 305). A narração da experiência do tempo vivido decorre no presente, ao passo que a narrativa, organizada in medias res, rompe com o princípio da ordenação sucessiva da ação representada. Forma e conteúdo se articulam no momento em que o veio reflexivo do romance se distende no que (Nunes 1985, p. 402) concebe como “movimento extático”, que no eixo da durée bergsoniana, gera a interpenetração do passado em um presente que, paradoxalmente, avança na medida em que o sujeito que narra se detém na recordação do que, qualitativamente, se constitui como indivisível e substancial. O episódio ao qual nos deteremos no presente estudo corresponde ao encontro de Riobaldo com o Menino (Reinaldo/Diadorim). Para além da lembrança do tempo vivido, a experiência de Riobaldo como narrador não se mostra estanque. Tempo e memória são moventes e o conduzem, por intermédio da reflexividade da narrativa, a um devir, que dialeticamente preserva sua iniciação nos grandes temas existenciais projetados nos conflitos do homem do presente — o tempo, a memória, o amor, o fado, a travessia — no nada que é tudo; incitando-o a rememorar e lançar ante seu interlocutor não-nomeado uma problematização acerca do passado que ele necessita compreender. Conferir sentido à própria existência implica reviver o passado, acentuando suas mais caras reminiscências e admitindo que a reconstrução do “real” não está nos extremos, nas bordas do sentido antitético que orienta a condição humana, a saída ou a chegada, mas se dispõe no meio dessa labiríntica travessia.

Do literário ao fílmico

Os princípios que regem a composição das diferentes formas de expressão artística, aqui consideradas, — literatura e cinema — apontam para um complexo de características que dizem respeito às especificidades de cada arte. A análise da cadeia dialógica que permeia os textos aproximados à luz do método comparativo — o romance Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa e o curta-

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metragem: Rio de-Janeiro, Minas (1991), de Marily da Cunha Bezerra —, parte da compreensão de que a teoria narrativa fílmica desenvolveu uma terminologia muito particular seguida de métodos próprios de investigação e, nesse respeito, deve-se atentar para o que Robert Stam pontua ao discorrer acerca da análise da poética do cinema: [...] o texto fílmico, diversamente do literário, não é “citável” [...] Se a literatura e a crítica literária compartilham o mesmo meio, as palavras, isso não é válido para os filmes e a análise fílmica. [...] A linguagem crítica é, portanto, inadequada ao seu objeto; o filme sempre escapa à linguagem que busca constituí-lo. [...] A imagem, por fim, não pode de forma alguma ser transposta em palavras. (STAM, 2006, p. 209-10).

Além das já mencionadas dificuldades para estender modelos literários ao cinema, as dimensões do processo de transposição do texto literário sofrem, como nos diz (Xavier 2003, p. 61), deslocamentos inevitáveis dos extremos de um processo que privilegia a ideia de diálogo e nos leva a perceber que, ao comportar alterações de sentido, o processo de transposição promove a criação, uma composição paralela, que se utiliza de mecanismos muito semelhantes aos aplicados no trabalho de tradução. A imagem da palavra é, na verdade, reflexo de um olhar que o artista lança ante o objeto literário. Logo, não podemos desprezar o fato de que o artista transpõe o texto literário para o fílmico, utilizando-se de recursos imagéticos, sonoros e linguísticos, a fim de preencher as lacunas deixadas pelo silêncio da leitura do livro. Ao dar forma ao que no romance é apenas sugerido, o artista, que é antes de tudo, leitor de um texto prévio, que estabelece diálogo direto com o processo de composição de uma nova obra, favorece um olhar que compreende ao limite ou “horizonte de leitura”, terminologia aplicada por (Jauss 1982, p. 27), que implica a (im)possibilidade de se atender as expectativas de outros leitores. É possível apreender que a repercussão de um autor e de sua obra em um dado período histórico e seu alcance a um leitor específico — que se utiliza de um modo muito particular de leitura — é determinante para que as interpretações sejam capazes de renovar o sentido do texto e, assim permitir que um autor/obra possa exercer influência direta sobre 188

a criação artística de outros escritores (obra/leitor). Então, a imagem do leão que é feito de “carneiro assimilado”, reproduzida por (Valéry apud Nitrini 1997, p. 131), ganha força na experiência da poiesis, que não pode ser concebida como um ato solitário, mas como um processo dialético, um verdadeiro jogo de perguntas e respostas que reflete uma sequência de experiências estéticas prévias. O diálogo entre leitor e obra se manifesta segundo a interpretação jaussiana, influenciada pelo pensamento de Ingarden e Gadamer, no encadeamento entre a compreensão interpretativa, ou reflexiva à relação pergunta e resposta, como método que permite, a partir, não da anulação do passado, mas de sua alteridade para com o presente — no sentido de que o presente reinventa o passado e não simplesmente o repete — o não esgotamento do texto em si mesmo, mas a reconstrução do horizonte, ou o limite de possibilidades de experiência estética, das perguntas e expectativas suscitadas pela obra no momento em que dialoga com os sujeitos de sua época. De modo que, para além da compreensão fruidora, que diz respeito à primeira leitura, à primeira etapa do método de compreensão estética, a perceptiva, “compreender algo como resposta”, como afirma (Gadamer apud Jauss 1982, p. 24), significa que a pergunta é o meio que permite ao sujeito adentrar no horizonte de possibilidades da obra literária. A subjetividade compete às interpretações imaginárias das cenas e das personagens tais como: o tom de voz, o aspecto, a atuação e mesmo, seu psicologismo, inerentes aos modelos literários. Dado o fato de que a transposição passa a adquirir uma nova significação, cria-se um novo texto que pode ou não corresponder aos horizontes da experiência estética de cada leitor e ao alcançarem os princípios de organização formal do cinema possibilitam a visualização, sobretudo, do mundo exterior visível, já que para (Tavares 2011, p. 50), o cinema não pode nomear emoções, e só com certa precaução pode mostrar a visualização dos pensamentos das personagens justificando, assim, os conflitos que permeiam a obra fílmica e sua recepção.

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Encontro dos sertões

É verdade que, não obstante a singularidade que se interpõe na poiesis de cada artista, há um significativo ponto de contato entre o “valor universal” das obras, responsável pela “[...] síntese que governa os jogos intertextuais produzidos na criação” (Santiago, 1989, p. 229). Contudo, em seu curta-metragem Rio de-Janeiro, Minas a diretora e roteirista Marily da Cunha Bezerra orienta a composição de seu texto numa esfera “interartística”, cuja técnica narrativa excede os limites da análise temática. Gravado no ano de 1991, o curta-metragem de oito minutos — premiado como: melhor roteiro pela Secretaria da Cultura (1991); melhor fotografia pelo Cineclube Banco do Brasil (1994) e Tatu de Ouro na Jornada de Cinema da Bahia (1994) — com trilha sonora assinada por Badi Assad, conta com a participação especial de Manuelzão, amigo de Guimarães Rosa e personagem de algumas das estórias do autor, e dos jovens atores Evandro dos Passos Xavier e Cristina Ferrantini, que interpretam, respectivamente, os papéis de Riobaldo e do menino Diadorim, a partir do argumento principal da obra, o encontro: “Por que foi que eu precisei de encontrar aquêle Menino?” (Rosa, 1656, p. 110). A escolha de dois jovens atores para interpretar as personagens centrais, antes de comprometer a densidade das cenas, confere expressividade ao episódio representado. A narração em off feita por José Meyer, um Riobaldo narrador que em seu “contar” não somente interage com seu interlocutor, mas também dialoga consigo mesmo e assiste, por assim dizer, a experiência narrada, renovando-a na medida em que parece jogar com o tempo, leva-nos a inferir que em cada imagem, em cada ação representada, em cada som, há sempre a marca do homem experimentado e, ao mesmo tempo, cindido do presente que problematiza e conduz as situações narradas. O fluir das águas do de-Janeiro, a ser atravessado, como o curso da travessia existencial do sujeito que narra, aparece como porta de entrada para a narrativa fílmica que na cena inicial projeta tanto o rio

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quanto o ser de maneira simbólica, inserindo-nos na atmosfera do episódio que corresponde ao primeiro encontro de Riobaldo com Diadorim. Um encontro com o menino que não poderia ser deslembrado pela profunda impressão que exercera naquele que com frequência recorre às minúcias de uma lembrança guiada pela necessidade e pela esperança de que a reflexão o conduzirá à compreensão, à explicação lógica para cada etapa de sua travessia existencial: A este se devem as condições particulares do exercício da Fortuna: o léu da sorte, a vereda do acaso, por onde se complica, a despeito da vontade e contra ela, o tecido da causalidade, da relação de causa e efeito. Assim é que desde o momento em que encontra o Reinaldo, às margens do Dejaneiro, está decidida a Fortuna andeja de Riobaldo. Sem que ele o saiba, é pelo Menino a cuja secreta atração ficou preso, que adere ao bando de Joca Ramiro, do qual assumirá chefia em lugar de Zé Bebelo [...]. (NUNES 1985, p. 393).

Conforme citado, a busca de Riobaldo por respostas a uma das grandes questões do romance concernetes ao caráter dual que permeia a representação de Deus e do Diabo, norteia a incerteza quanto a se o encontro com o menino teria sido um fato do acaso ou obra do destino. As palavras iniciais do curtametragem prefiguram a carga reflexiva que perpassa o discurso de Riobaldo e aparecem no roteiro de Marily da Cunha Bezerra como representação, quase fiel, do texto rosiano como podemos observar: São memórias? Sonhos são? Assim é como conto. Vou lhe falar do sertão. Do que não sei. Um grande sertão. Não sei.2 O ser-tão de que se fala é o espaço para o encontro com o outro, mas também para o encontro com o eu que constrói sua identidade na medida em que não se desprende da noção de alteridade. O não saber é o que impele Riobaldo a prosseguir em sua travessia pelas veredas de um ser-tão de memórias e conflitos.

O sensível que inaugura o poético

2 “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Nin- guém ainda não sabe.” (ROSA, 1956, p. 101). 191

O embaraço e o deslumbramento expressos na cena em que Riobaldo se depara pela primeira vez com o menino, demarca uma ruptura com o que antecede sua velada iniciação amorosa. O jovem tímido e desajeitado, de aspecto doentio, se sente atraído pelo desconhecido menino: a “novidade quieta” que tanto buscara. O lugar do feminino e do masculino não se define na narrativa segundo as expectativas em torno do homem e da mulher do ponto de vista do conjunto de regras sociais que impõe aos sujeitos comportamentos ou papéis pré-definidos. Assim, na medida em que Riobaldo, o masculino, passa a emitir um comportamento submisso frente a influência do ambíguo Diadorim, a “mulher” de conduta transgressora que rompe com os usuais modelos femininos, cujas expectativas ajustadas às exigências do sistema giram em torno de um ideal de recato e sujeição. Redefinem-se os papéis e é a partir do jogo da reordenação dos lugares de cada sujeito, bem marcada no momento em que se intensifica a aproximação das personagens, que pode-se notar que Diadorim, em sua dupla função e significação aparece como aquela que subverte e simboliza o não atendimento das expectativas suscitadas em relação à mulher. É o menino de visão atenta e de aguçada sensibilidade que inaugura o mundo poético de Riobaldo, revelando o oculto da dimensão feminina que ao confundir-se com o lugar do masculino estimula uma nova percepção da existencia. Seguro de si, inspira confiança e respeito e é admirado por seus modos delicados e por sua beleza:

Mas eu olhava êsse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que êle era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque êle falava sem mudança, nem intenção, sem sobêjo de esfôrço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que êle não fôsse mais embora, mas ficasse, sôbre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira — só meu companheiro amigo desconhecido. Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha de estar esmolando. Mas êle apreciava o trabalho dos homens, chamando para êles meu olhar, com um jeito de siso. Senti, modo meu de menino, que 192

êle também se simpatizava a já comigo. (ROSA, 1956, p. 103).

A necessidade de aceitação de Riobaldo e sua sujeição ao menino se evidencia pelo modo como o aquele se deixa conduzir pela iniciativa e segurança desse. Ainda que no curta-metragem, como no tempo da história narrada, Riobaldo não revele o nome do menino, pode-se localizar no vídeo um rastro de sua identidade pela repetição do nome Diadorim na musica executada no momento em que transcorre o encontro. É Diadorim quem conduz Riobaldo, como se espera que um homem conduza a uma mulher, e lhe dá a mão descrita como “bonita, macia e quente” a fim de ajudar o “vergonhoso e perturbado” companheiro a entrar na canoa. Diadorim proporciona-lhe mais que uma experiência, oferece-lhe também sua amizade. Nesse ponto, a diretora e roteirista faz um recorte de outro episódio do romance que aponta para o reencontro do já adulto Riobaldo com o Reinaldo e com isso, une ao episódio do livro ao qual o vídeo se detém, uma outra passagem que, no tempo da narrativa, se desdobrará no futuro: [...] Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão dêsse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fôsse, fuga de alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo o êle querer que só eu soubesse, e que só eu êsse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquêle valor. Amizade nossa êle não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dêle; êle me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito tôda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como tôda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela — alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão. (ROSA, 1956, p. 156-7).

Exprimir sentimentos como o medo e a emoção de se estar diante da serena companhia do menino é, sem dúvida, uma desafiadora tarefa para atores de tão pouca vivência. Nesse sentido podemos destacar a cena em que os meninos são surpreendidos por um mulato:

Antôjo, então, por detrás de nós, sem avisos, apareceu a cara de um homem! As duas mãos dêle afastavam os ramos do mato, me deu um susto sòmente. Por certo algum trilho passava perto por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um rapaz, mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, 193

forte, com as feições muito brutas. Debochado, êle disse isto: — “Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?...” Aduzido fungou, e, mão no fechado da outra, bateu um figurado indecente. Olhei para o menino. Êsse não semelhava ter tomado nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu prático sorriso. — “Hem, hem? E eu? Também quero!” — o mulato veio insistindo. E, por aí, eu consegui falar alto, contestando, que não estávamos fazendo sujice nenhuma, estávamos era espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do menino dizer: — “Você, meu nêgo? Está certo, chega aqui...” A fala, o jeito dêle, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito, caminhou para se sentar juntinho dêle. (ROSA, 1956, p. 108-9.)

O filme desenvolve a cena, de um modo muito particular. Suprimem-se os diálogos e, momentaneamente, a voz do narrador desaparece para dar lugar à ação, ao movimento. Une-se música à atuação, na medida em que quase não há palavra, mas a imagem dela. Um corte de cena acentua o tom de sugestão. Da aparição do mulato à reação de Diadorim, a imitação da voz feminina — uma “imitação da imitação”, já que ao se portar como mulher, travestida de homem, a personagem não reproduz sua voz feminina, mas imita uma que não a sua — para em seguida cravar a sua pequena faca na coxa do mulato.

Mas, para que? por que?

A cena final do curta-metragem funciona como retorno à ordem inicial do enredo, como se o episódio narrado cumprisse um ciclo. Retomam-se elementos como a canoa e o rio, símbolos da travessia existencial, e insere-se a lemniscata (∞), símbolo do infinito que aparece logo abaixo do parágrafo final de Grande sertão: veredas, encerrando-o de maneira análoga à proposta no curta-metragem. Tal movimento circular evidente nas cenas inicial e final, parece prefigurar a travessia de Riobaldo, que parte de um ponto em branco e se projeta para um horizonte de questionamentos e de reflexões metafísicas “atravessando” sem jamais poder se desprender do que o converte no próprio “ser-tão”: o infinito de inquietações frente às incertezas da vida: Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão!

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Não sei. Sonhação? Sonhos são? Sonhos só não.65 Em se tratando do trabalho com linguagens de caráter tão distinto, a literária e a fílmica, é imperativo que nos desprendamos de quaisquer tendências a emitir juízos de valor, pois deste modo, restringiríamos nosso campo de ação e seríamos incapazes de ir além da verificação do grau de aproximação, ou “fidelidade”, de uma arte sobre a outra, o que em geral, não apenas compromete o rigor científico de uma análise como também desconsidera as especificidades da adaptação da obra literária, que antes de pretender constituir-se como mera cópia do texto base, configura-se como um novo olhar, uma nova criação, dotada tanto de originalidade quanto de complexidade. Como afirma (Xavier 2003, p. 61): [...] há uma atenção especial voltada para os deslocamentos inevitáveis que ocorrem na cultura, mesmo quando se quer repetir, e passou-se a privilegiar a ideia do “diálogo” para pensar a criação de obras, adaptações ou não. O livro e o filme nele baseados são vistos como dois extremos de um processo que comporta alterações de sentido em função do fator tempo, a par de tudo o mais que, em princípio, distingue as imagens, as trilhas sonoras e as encenações da palavra escrita e do silêncio da leitura.

De posse das referidas informações que remetem à cadeia de relações estabelecidas entre os textos e a busca por pontos de contato entre eles, constatamos que — partindo das colocações de (Jeanne- Marie Clerc 1994, p. 236), que concebe a literatura comparada como a arte de aproximar os textos literários de outras formas de expressão e do conhecimento, a fim de que possam ser descritos, compreendidos e melhor desfrutados — é possível propor um diálogo entre o romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa e o curta-metragem: Rio de- Janeiro, Minas, de Marily da Cunha Bezerra, pautado nas diferenças no que compete ao aspecto estrutural, à técnica narrativa e, sobretudo, nas especificidades que regem o processo de escrita e de composição do texto literário, bem como a poética do cinema que nos possibilita ultrapassar a busca pelo grau de “fidelidade” ou pelas “traições” de uma

3 Sonhação — acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente, depois, nas vêzes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, para que? por que? (ROSA, 1956, p. 110-1). 195

arte em detrimento de outra, para assim alcançar o sentido para a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana, ou no “estudo de relações entre a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença”, como pontua (Remak 1994, p. 175). Assim, não obstante as diferenças de tempo e espaço, bem como as particularidades inerentes a cada artista, ou a relação que estabelecem com o conceito de poiesis, o caráter universal das obras se delineia em suas temáticas e se concentra na representação atemporal e atópica da condição humana, nos conflitos do homem que atravessa a dimensão do real e alcança o fantástico do plano onírico. E é no eixo desse “valor universal” que podemos identificar o que (Santiago 1989, p. 229) chama de: “síntese que governa os jogos intertextuais produzidos na criação”, o que nos permite ultrapassar a mera verificação do grau de aproximação, ou “fidelidade”, ou a confrontação de semelhanças e/ou diferenças de uma arte sobre a outra, e alcançar as especificidades responsáveis pela originalidade que nos faz pensar a “criação”, a partir da averiguação de técnicas e temáticas desenvolvidas pelos autores.

REFERÊNCIAS

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STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. Fernando Mascarello. 2ª ed. São Paulo: Papirus, 2003. 398 p.

TAVARES, Braulio. A “câmera-olho” da literatura. In: Revista Língua Portuguesa – Especial: Cinema & Linguagem. São Paulo: Editora Segmento, outubro de 2011. p. 48-53.

XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: Literatura, cinema e televisão. Tânia Pellegrini [et. al.] São Paulo: Editora SENAC São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 61-89.

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BERLIN ALEXANDERPLATZ E A NARRATIVA DAS UTOPIAS

Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira1

“Política é dar vida a todos!” (Hilda Hilst)

Introdução

Este trabalho se propõe a uma leitura do romance Berlin Alexanderplatz (1929) de Alfred Döblin, como reflexão critica sobre a realidade em que se insere, enfatizando-se sua análise sociopolítica da trajetória do povo alemão no período compreendido entre as duas guerras mundiais (1818-1839). Pretendemos aqui destacar a narrativa döbliniana como um espaço privilegiado de representação do processo de trânsito das camadas populares pelas ideologias de seu tempo, apresentada de maneira “fabulosa” pelas desventuras do protagonista Franz Biberkopf. Nossa análise busca desvelar certo caráter fabuloso em Berlin Alexanderplatz cujo princípio pedagógico seria alertar para o aspecto nocivo das ideologias, apresentadas como aliciadoras das massas e falaciosas quanto a realizar efetivamente a felicidade humana que propõem. Ao final destacar-se-á a relevância deste romance como testemunho e reflexão sobre a trajetória ideológica do povo alemão do período entre guerras. De início há que desligar-se da ideia de ficção como obra especular: o texto não será nunca “arquivo morto” da realidade sua contemporânea. Será também descartada a possibilidade de uma natureza autorreferencial do texto, concluindo-se pela permeabilidade da literatura em relação a seu contexto. A partir daí passamos a analisar a ficção como uma possibilidade de representação em que a política (entre outros) pode exercer funções de pedagogia, laboratório,

1 Mestre em história e história da literatura (UFOP). Doutoranda em história pelo PPGHIS – UFOP. E-mail: [email protected]. 198 publicidade, e desvelamento, graças à maleabilidade do material ficcional. E, considerando-se além dessa plasticidade ficcional o seu desejo de idealidade, parece plausível estender a caracterização de utópica a toda literatura: afinal não há esforço literário que não produza uma “realidade paralela” em que a lógica do nosso mundo se reconstrua numa busca ideal. Na reflexão que se segue buscaremos sublinhar os indícios de uma nova utopia em Berlin Alexanderplatz (1995) de Alfred Döblin, proposta alternativa à fragmentação das grandes utopias políticas, cotidiana experiência alemã do período entre guerras (1819-38). Queremos perceber na narrativa döbliniana a proposta de uma pedagogia política que se formula à partir da fábula expressionista sobre a Alemanha pós I Grande Guerra através da trajetória de Biberkopf: a aventura tragicômica de um entre tantos soldados alemães que, ao voltar do front em 1918, percebem não haver nada para o que retornar.2 A obra constrói um relato da cotidiana experiência de fragmentação do cidadão alemão do período, vivenciando o desmoronamento de tudo em volta, seja na política, no plano físico, mental e moral; a imagem de ruína é o cenário em que a narrativa döbliniana emula o laboratório das grandes utopias políticas do século XX em que se tornara a Alemanha do entre guerras; e, nesse sentido, a trajetória de Franz Biberkopf se demonstra icônica do caminho percorrido pela sociedade alemã do período, oscilando entre a perplexidade frente ao ineditismo e dimensões traumáticas do primeiro conflito, e a inexorabilidade da Segunda Grande Guerra. A tragicômica perambulação de Biberkopf pelo entorno da Alexanderplatz (que se apresenta quase como um mundo à parte,

2 Nossa reflexão se ampara principalmente em autores como Irwing Howe, que em A política e o romance (1998) no alerta para a importância da literatura como espaço de representação das ideias políticas; Benedito Nunes que em “Narrativa histórica e narrativa ficcional” (1998) destaca as proximidades destas duas narrativas e Walter Benjamin, cujos Documentos de cultura, documentos de barbárie (1986) nos incentivam a expandir a percepção sobre narrativa histórica. Já quanto ao contexto referido pela obra, nos amparamos principalmente em Élcio Cornelsen (2001) Eric Hobsbawn (1995) e Peter Gay (1978). 199

povoado pelos desclassificados da sociedade alemã) ilustra e argumenta sobre a desilusão da perda das esperanças políticas, que se diluem em atitudes estéreis e/ou superficiais; salta as olhos o contraste entre a aridez cotidiana da realidade do pós-guerra e o multicolorido falacioso discurso das ideologias que se propõem salvacionistas enquanto arrastam os personagens para abismos mais profundos: a exemplo do que ocorre com Franz e seus amigos. Como pano de fundo ainda se destaca a solidão da comunidade da Alexanderplatz, seu abandono pelo “Mundo” onde estão as elites e os dirigentes. E, após o “banquete de amargura” apresentado por este retrato desesperançado disposto a desmascarar as falsas esperanças contidas nas grandes utopias, inesperadamente a obra nos propõe uma nova: enxuta, pragmática e absolutamente humanista. Assim, a ficção döbliniana se apresenta como uma fábula de desconstrução das grandes utopias, que se digladiam pelo controle das massas alemãs no período, propondo a construção de um novo projeto a ser construído sobre as ruínas da desilusão alemã pós I Guerra Mundial.

Ficção e política, ficção política

O que restou aos órfãos do marxismo foi o humor. (Leandro konder)

Toda literatura pode ser vista como utópica, se consideramos que sua elaboração está atrelada ao imperativo da pararealidade. Narrar é reescrever a realidade, em busca do sublime – o lugar que não existe e que o escritor “projeta”. E considerando-se que o escritor está sempre em busca de um mundo melhor, talvez possamos afirmar que toda ficção é, ou pode ser, política – onde política é a busca do bem comum. Ficção política, portanto, será aquela que narra a busca deste bem: e Berlin Alexanderplatz não tem outro desejo. Nessa obra o protagonista Franz Biberkopf representa um denominador comum da experiência do povo alemão no período entre guerras: principalmente as camadas urbanas despossuídas, maiores 200

vítimas da I Grande guerra, aqui representados pelos frequentadores da Alexanderplatz em Berlin. Figura icônica dessa comunidade, Franz Biberkopf (cujo protagonismo só seria possível nessa “tragédia do homem comum”) representa-se como um tipo ideal: minuciosamente ordinário, vagando pela terra, sendo jogado de um lado a outro pelas ideias alheias: ele é a vítima perfeitas das “ficções políticas”, representadas pelas grandes utopias. O percurso de Franz servirá como ilustração da trajetória de boa parte da população alemã de seu tempo: após a I Grande Guerra essas camadas urbanas se encontram desterritorializadas em seu espaço natal, e a falta de perspectivas amplia o apelo que tem para elas o canto da sereia representado pelas utopias. Franz (e com ele o povo alemão) circula por entre as ideologias que se lhe apresentam, fracassando em cada tentativa de felicidade guiada por uma das grandes teorias políticas, seja o marxismo, o nazismo, ou liberalismo; e seus recorrentes insucessos apontam para a inutilidade, as falácias de cada uma delas. Todas as tentativas de Franz de salvar-se pela adesão a um grupo ideológico resultam em acidentes ou fracassos. Ele transita por todas, sempre em percurso descendente, até chegar ao fundo do poço, onde consegue transformar sua desilusão numa nova e própria utopia. Um novo Biberkopf emerge ao final da narrativa, portador de uma nova ficção – própria, criada a partir de sua experiência de vida: uma utopia metafísica baseada na busca da solidariedade humana, no pragmatismo e na descrença em qualquer ideologia. Curiosamente esse movimento final está proposto desde o inicio da narrativa, em uma cena onde ocorre um inusitado encontro entre esse alemão comum e a comunidade judaica. A cena se inicia por Biberkopf sendo vitima de violência de seus iguais, e socorrido por humildes judeus (a ironia da situação dispensa comentários), momento em que ele se surpreende pela solidariedade inesperada. Esse momento de encontro reticente com a alteridade do povo “maldito”, que se torna seu salvador, será lembrado por ele mais tarde, como uma

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espécie de “zona de conforto” a que recorre mentalmente nos momentos mais difíceis. Mas a proposta implícita nesse episódio com os judeus só será compreendida pela simplicidade mental de Biberkopf após toda a sua experiência entre grupos e ideologias pelas quais transita ao longo da narrativa. O pequeno espaço da Alexanderplatz torna-se um universo extenso para as experiências de Franz. Seu calvário tem por estações a adesão às diversas teorias políticas de seu tempo, em que busca misticamente a felicidade. E suas desventuras se repetem tragicamente ao longo da narrativa, sempre em decorrência de sua ingênua confiança nas ideias políticas que lhe são ensinadas pelos vários grupos aos quais se associa sucessivamente. O que seduz Biberkopf por todo o romance são ideologias, que o arrastam sempre e cada vez mais fundo até que consiga finalmente desvencilhar-se pela morte simbólica e um de olhos bem abertos. A construção ficcional se torna quase alegórica, ao representar a credulidade de Franz, a sedução manipuladora dos grupos ideológicos que o cooptam e a real esterilidade de todos esses discursos, uma vez que a felicidade prometida por eles nunca se. A experiência pessoal de Franz concretiza as propostas ideais de felicidade de todas as grandes utopias, sendo que em todas elas ao final de sua experiência o protagonista perceberá que nenhuma utopia resiste à materialização de suas propostas em vida cotidiana. A miséria e desesperança, o desejo de um pouco mais da vida vai guiando o ingênuo Biberkopf por todas as possibilidades de utopia, sem que nenhuma delas possa realmente salvá-lo. Franz transitará, portanto entre as possibilidades de organização sociopolítica, desde o liberalismo – representado por sua curta iniciativa de comercio ambulante de gravatas, que fracassando decai para o proxenetismo e finalmente o guiará para os braços do nazismo e, finalmente para o comunismo. Estas experiências apenas conseguem agudizar a situação de Franz e levá-lo ainda mais profundamente à criminalidade e ao desespero. O clímax de suas desventuras se dá por uma prisão injusta,

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decorrente da atuação de seu suposto melhor amigo Reinhold que, não satisfeito em envolve-lo em um acidente no qual perde um braço, decide-se por assassinar a namorada de Franz, Mieze – e finalmente manipula a situação de maneira a incriminá-lo. Esse momento é o grande clímax do calvário de Biberkopf: a prisão injusta, a traição de Reinhold, a perda de Mieze, fazem com que mergulhe no abismo de sua vida, de maneira totalmente desesperançada. No entanto, dessa quase morte vem um “renascimento” que é quase uma conversão religiosa. Após seguir a tudo e todos sem questionamentos, Franz decide-se por olhar o mundo com os olhos muito abertos contra as ideologias e qualquer um que queira levá-lo: “se devo marchar, depois irei pagar com a cabeça aquilo que os outros pensaram” (DÖBLIN, 1995, 425). É a descoberta de que ele deve pensar por si, afinal “o homem recebeu o juízo, em vez disso os bois formam manada” (DÖBLIN, 1995, 425). E essa conversão final de Biberkopf se transforma numa importante proposta de negação das grandes teorias e sua substituição por uma nova utopia, proposta por Biberkopf (e Döblin): os olhos abertos, o pragmatismo político e a solidariedade humana. A crítica contida na obra de Döblin não restringe a validade da política: o homem não se salvará sozinho. Sua crítica é contra as ideologias: essas sim, as grandes opressoras. E Berlin Alexanderplatz assim se demonstra como uma fábula (e assim, uma narrativa com fundo pedagógico e exemplar) sobre um homem que acreditava nas ideologias.

Uma pedagogia fabulosa

Assistir a isso valerá a pena para muitos que, como Franz Biberkopf, habitam uma pele humana e com os quais acontece o mesmo que a Franz Biberkopf, isto é, querer mais da vida do que pão com manteiga. (Berlin Alexanderplatz Alfred Döblin).

A advertência inicial de Döblin nos dá noção da dimensão “didática” desta obra. Dedicada a todos que “habitem uma pele humana”, principalmente aos que “desejem um pouco mais que pão e 203

manteiga”. As características que se destacam em Franz são sua humanidade e sua ambição de uma “vida melhor”. O desejo de conforto material e ascensão social e sua esperança depositadas nas utopias fazem dele uma vitima das vontades políticas alheias. A trajetória de Franz demonstra-se assim como uma advertência dos perigos a que se expõe o ser humano que não faz uso de senso crítico ao ser apresentado às ideologias e propostas coletivas de felicidade. A alienação de Franz (seu maior pecado) se representa desde a forma como vivencia sua participação na I Guerra (da qual desconhece as razões), até o momento em que segue Reinhold cegamente, negando- se a perceber que ele não quer seu bem.3 Sua cegueira, seu desejo de uma fantasia redentora fazem dele um alvo fácil de quaisquer discursos de sucesso. Sua incapacidade de ver além das palavras, sua credulidade ambiciosa, são os grandes responsáveis pela Via Crucis que se representa na narrativa de Berlin Alexanderplatz. A primeira estação do calvário de Biberkopf será a ajuda vinda da classe mais desconsiderada entre todas; Biberkopf é salvo por judeus. E mais – além de ajuda, eles lhe dão um conselho: Franz precisa aprender a ver a realidade. Um deles lhe conta uma história sobre um rapaz muito esperto (Zannowich) que se dá muito bem na vida, graças à sua inteligência. É a encenação da ideologia liberal, que Franz conhece e admira, apesar de não saber o nome. Há neste trecho, um “mise-en-abyme” para o desenrolar da obra: a separação entre a fabula que o judeu narra (o que é dito, a ficção) e o seu comportamento (o que se vive, a realidade). Esse homem sabe diferenciar aquilo que se diz, daquilo que se vive, histórias e realidade. Portanto, mais que a ajuda que prestam a Franz em um momento de necessidade, os judeus lhe dão um conselho que será a chave de saída para o labirinto que é sua vida: “o principal no ser humano são seus olhos e pés. É necessário ver o mundo, e caminhar até ele” (DÖBLIN, 1995, 18). Este paralelismo está sempre presente na trajetória vivida por Franz: há que escolher entre a ficção representada por uma ideologia que

3 Franz é alienado porque acredita nas ideologias que lhe são propostas, sem questionamento. 204

acena com promessas vãs e a realidade de algo que realmente lhe seria benéfico. Mas durante quase toda a obra Biberkopf é incapaz de reconhecer a diferença entre eles. A segunda estação de seu calvário será representada por sua adesão ao liberalismo. Com seu amigo Meck, começa a frequentar as reuniões de comerciantes, em que recebe uma carteirinha e lhe prometem um grande destino. Saindo dali como possível futuro grande comerciante, Inicia a carreira de vendedor de gravatas ambulante, que cedo se demonstra pouco rentável. As gravatas serão substituídas pela cafetinagem que também não resulta. Mesmo assim, Franz acredita no sucesso do modelo liberal ainda que perceba a política como algo distante: “o que um homem como nós tem a ver com a justiça, polícia e política?” (DÖBLIN,1995, 58) Após curta temporada no modelo liberal entre os negócios de gravatas e de sexo, Franz vê fracassar sua fé no livre comércio e individualismo e abraçará o nazismo. O episódio é curto e se revela pela narrativa de reuniões e o uso da braçadeira. Também não será melhor esse período da sua vida e, por fim, ele se envolve com o comunismo, que acarretará experiências de perseguição e violência política. Franz passa por todas as ideologias de sua época sem grandes avanços. A subclasse a que pertence Franz, e seu mundo representado pela Alexanderplatz, dão a perceber o horizonte daqueles personagens que vivem de maneira especular com o “grand monde”. Indicial dessa situação é o fato de que as notícias oficiais permeiam a história com a fatuidade da ficção. O isolamento ideológico dos habitantes da Alexanderplatz tornam-nos indiferentes aos acontecimentos da superestrutura, por quem são igualmente ignorados. Noticias sobre o dirigível de Hindenburg, sucessos tecnológicos e políticos realizados pelos pactos internacionais, a mobilização sutil para a próxima Guerra, nada disso interfere no dia-a-dia pantanoso dos berlinenses da Alexanderplatz. A realidade reside nas coisas que Franz escuta, nas histórias que lhe contam. A obra é uma fabula sobre um homem que acreditava naquilo que lhe diziam. Franz será vitimado por

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sua boa vontade, até chegar ao paroxismo da dúvida. Daí renascerá para a solidariedade.

“Enfim, é mais agradável e melhor estar com os outros”

Não se deve dar tanta importância a si mesmo. É preciso escutar os outros. Quem lhe diz que o senhor é tão importante? Deus não deixa ninguém cair de Sua mão, mas há outras pessoas no mundo. (Berlin Alexanderplatz Alfred Döblin)

Após atravessar todas as possibilidades ideológicas propostas por seu tempo – enquanto ilustra as flutuações do povo alemão do entre guerras por entre elas – Franz visualiza outro caminho: a solidariedade, que lhe foi proposta no inicio da narrativa pelo gesto bondoso do “judeu ruivo”. A fábula se encerra quando Biberkopf a reconhece como válida e como única saída possível (DÖBLIN: 1995, 425)

Muita desgraça vem do fato de se andar sozinho. Quando há muitos, a coisa é diferente. A gente precisa acostumar-se a escutar os outros, pois o que os outros dizem também me diz respeito. Aí percebo quem eu sou e o que posso me propor. Ao meu redor e por toda parte se luta a minha luta, preciso prestar atenção, antes que note, chegou a minha vez.

Nesse momento Biberkopf vivencia uma revelação, em que percebe como saída, não o projeto imposto em sentido vertical, mas a caminhada construída a partir da experiência cotidiana e o diálogo entre as pessoas, que se deve construir na prática diária. Só então ele consegue perceber o valor das práticas solidárias ocorridas ao longo da narrativa, justamente os momentos mais belos, sempre personificados por personagens de quem Franz recebe comiseração e ajuda e a quem pouco valoriza: primeiro o judeu. Depois Meck, Eva, e Herbert. Por fim Mina: são os momentos em que a narrativa da vida de Franz se colore. Mas ele não consegue perceber isso, e apenas segue as más influencias de Willi e Reinhold, que lhe parecem mais sedutores, justamente porque lhe dizem aquilo que ele quer ouvir. Prometem-lhe a glória que ele acredita ser seu destino e direito. E, no

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entanto, após seguir as ficções, políticas ou não, que lhe seduzem ele vai despertar para a última grande ficção, que Döblin chama de “revelação”69. Franz Biberkopf morre para a vida que levava e renasce mais crítico. Tem agora olhos e pés, como lhe propusera o “judeu ruivo”, e pretende usá-los. A hora da batalha pode se aproximar a qualquer momento e ele estará preparado – junto com os outros. Diferentemente da postura das grandes ideologias, o marxismo e o nazismo, que levarão à cegueira e à guerra, Franz crê agora que é preciso permanecer junto, porém crítico. Franz adivinha que uma guerra se aproxima. E percebe que é preciso estar preparado: mas não como gado. Para Franz, os soldados que perderam a vida e/ou partes do corpo, na Primeira Guerra, se assemelhavam a bois indo para o matadouro: não sabiam porque lutavam. Estavam fascinados pela vaidade de defender a pátria. Mas Franz percebe que a luta (a Segunda Guerra) se aproxima e que todos são responsáveis: “Se houver guerra e me convocarem e eu não souber porque, e a guerra também existir sem mim, serei culpado e será bem feito para mim” (DÖBLIN: 1995, 425). Há algo de existencialismo neste ideário döbliniano, aproximando-se de Albert Camus na crença sobre a responsabilidade que o ser humano tem em relação aos seus semelhantes, como também pela proposição de uma utopia redentora em que o humanismo se afirma como valor. Ele chega admitir que há uma “linha filosófica, até mesmo metafísica” em sua obra (DÖBLIN: 1995, 429). Isto se revelará durante e, principalmente ao final da obra. Temas como a questão sacrificial pelo bem comum, a noção da vida humana como o vale de lágrimas são marcas de uma a metafísica religiosa subjacente a toda a obra, proposta como caminho alternativo às grandes ficções políticas. Descrente de todas as utopias, Döblin só considera possível uma ressurreição através do amor universal entre os homens, algo como um anarquismo cristão.

Conclusão Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade.

69 A escolha desse termo é bem clara, uma vez que o conceito de revelação remete a uma experiência religiosa. 207

O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

(Mãos dadas – Carlos Drummond de Andrade)

A sofisticação da narrativa e a crítica às utopias políticas, aliada à crueza da representação da realidade, presentes à obra Döbliniana, seriam justificativas suficientes para a relativa frieza da recepção dos leitores de sua época. O realismo explicito da surrealidade cotidiana da miséria alemã do entre-guerras, as insinuações sobre uma possível guerra próxima; a revelação da incontornável hostilidade entre nazismo e comunismo; a desmistificação das ideologias como supostas libertadoras e a denúncia de sua verdadeira face como formas de controle, eram proféticos demais para serem compreendidos – e não foram. Sabemos hoje da triste veracidade de todas as “previsões” de Döblin. Isto só confirma nossa afirmação da “parabolicidade” do autor em relação às questões, por vezes impalpáveis, de sua época. E mais: é interessante perceber que Döblin tem ainda muito a nos dizer. Isto porque as ideologias totalitárias, não só nunca deixaram de dominar o cenário político, como hoje vivem perigoso recrudescimento: mais especificamente o nazismo (na Europa), o “socialismo real” na Rússia entre tantos “ismos”, aliados a uma super nova alienação “internética” expressa pelo “autismo narcisista” das redes sociais, cujos efeitos ainda estão por se conhecer e que não apenas reproduzem como amplificam a cegueira biberkopfiana. Não temos tanto direito, porém à justificativa da ingenuidade de Franz Biberkopf. Tanto quanto o protagonista de Berlin Alexanderplatz, temos hoje até mais conhecimento e experiência do uso perverso dessas utopias, a ponto de podermos afirmar com ele que: “Sabemos o que sabemos, e pagamos caro por isso” (DÖBLIN, 1995,426). O século XXI possui a experiência da geração de Franz e ainda mais, embora pareça caminhar de olhos nada abertos ... Nesse ponto vale recuperar essa experiência e aprender com a fábula döbliniana que “As palavras rolam ao nosso encontro, temos de nos prevenir para não sermos atropelados. ... Não aposto em nada desse mundo. Pátria amada, descanse, tenho os olhos abertos e não caio mais nessa.”(DÖBLIN, 1995,426)

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REFERÊNCIAS

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GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1978.

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos – O breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

HOWE, Irwing. A Política e o romance. São Paulo, Perspectiva, 1998.

NUNES, Benedito. “Narrativa histórica e narrativa ficcional”. In. RIEDEL, Dirce Côrtes (Org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

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AS REPRESENTAÇÕES PUBLICITÁRIAS: UM ESTUDO PARA UTILIZAÇÃO DOS ANÚNCIOS COMERCIAIS EM UMA ABORDAGEM CULTURAL DO POLÍTICO

Marina Helena Meira Carvalho1

Os anúncios comerciais podem ser interessantes fontes históricas para uma abordagem cultural do político, uma vez que veiculam representações sociais para realizar o elo identificador entre produto e público presumido. Consideramos aqui uma história cultural do político, e não da política, por, assim como Pierre Rosavallon sugere, o político se tratar de campo mais amplo, que “é tudo aquilo que constitui a polis para além do poder, da ação governamental cotidiana e da vida ordinária das instituições.” (ROSAVALLON: 2010, p.73) Segundo Leffort, o político seria a “instância que atravessa o conjunto social, faz-se presente em todos os seus domínios, e é inseparável do ser social” (CAPELATO & DUTRA: 200, p.233). Observamos, assim que, as propagandas se inserem no discurso do político, uma vez que os publicitários, como sujeitos históricos, colocam em suas representações posicionamentos, opiniões, projetos, etc. Figueiredo considera que “o discurso publicitário, além de persuadir seu público-alvo a adquirir determinada mercadoria ou serviço, acaba por fazer também propaganda subjacente de uma opinião, um hábito ou um traço cultural geral.” (FIGUEIREDO, 1998. p.18-19, nota 3). Isso ocorre porque as propagandas não são desvinculadas de seus contextos. Muito pelo contrário, para que o público se identifique com tal propaganda, ela deve munir-se de signos caros a ele. Segundo Roger Chartier, para que se estabeleça uma relação inteligível entre texto e leitor são necessárias duas condições: “o

1 Marina Helena Meira Carvalho é mestranda do Programa de Pós Graduação em História da UFMG pela linha História das Culturas Políticas e membro do Projeto Brasiliana. O presente texto consta de versão modificada do trabalho final apresentado para a disciplina História e Culturas-políticas ministrada pelo professor Rodrigo Patto Sá Motta. Agradeço ao professor e aos colegas pelas discussões frutíferas. [email protected]. 210

conhecimento do signo enquanto signo, no seu distanciamento da coisa significada, e a existência de convenções partilhadas que regulam a relação do signo com a coisa” (CHARTIER: 1990. p.21). Sendo assim, as publicidades têm que, no mínimo, nutrir-se de convenções partilhadas por uma comunidade de sentido para que sejam inteligíveis, marcando- se como artefato histórico e social. Textos e imagens, segundo esse historiador, são presos na rede contraditória das utilizações que os constituíram historicamente (CHARTIER: 1990, p.61). E a propaganda, como imbricação dos dois recursos, não poderia deixar de o ser. Para Falcon, “a força e o sentido de um determinado conjunto de representações derivam, em grande parte, de seu contexto social e de suas relações com as redes sociais e políticas em que são elaboradas” (FALCON: 2000, p.70). Roland Barthes analisa que a linguagem publicitária abriga três mensagens, simultâneas e imbricadas: a literal ou denotada, a associada ou conotada e a declarada ou referencial. A segunda mensagem, a qual Barthes atribui como centro da linguagem publicitária, é composta pelos sentidos, o que implicam associações culturais e variações segundo o leitor. Essa mensagem é composta muitas vezes por metonímias, metáforas e expressões idiomáticas que necessitam um pertencimento cultural para que sejam inteligíveis e interpretáveis. Muniria as palavras e as imagens dos sentidos socialmente a elas atribuídas, de sonho, sono, elegância, euforia... Sentidos esses que costumam ser parcamente analógicos e muito mais construídos histórica e socialmente. (BARTHES: 2005, 104-110). A historiadora Maria Rúbia Sant’anna, que se dedica ao estudo da propaganda como fonte histórica, conclui que “é impossível trabalhar sobre anúncios sem conhecer o processo que o produz, o que o constitui a priori, seu contexto universo semântico de enunciação.” (SANT’ANNA: 2012, p 304). Esse contexto indica quem, para quem, onde e em que momento a enunciação foi feita. É importante estudar, assim, não só o texto e a imagem da publicidade, mas também o objeto/veículo que o dá suporte e as práticas de leitura do mesmo (CHARTIER: 1990).

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Dessa forma, as representações publicitárias devem servir de partida para análise dos atores históricos que as pensaram, do suporte em que são veiculadas e do seu público presumido. Todos esses elementos, direta ou indiretamente, influirão na mensagem final veiculada pela publicidade. O contexto social, econômico, político, histórico e cultural por diversas vezes é significado pelos publicitários para gerar empatia em seu público, e apropriando-os para fins comerciais. Entretanto, a resignificação muitas vezes extrapola o objetivo da venda, como podemos ver, veiculando também ideias e valores, fazendo propaganda de um estilo de vida e debatendo sobre questões contemporâneas a ele. Podemos citar alguns exemplos já trabalhados pela historiografia: muitos anúncios comerciais no Brasil do final dos anos 1930 e início dos anos 1940 divulgavam o American way of life como maneira de aproximação entre Brasil e Estados Unidos 2 ; após a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial e a aliança estabelecida entre esses países, passa-se a difundido nos anúncios comerciais propagandas em apoio à guerra e incentivando a contribuição dos brasileiros(TOTA:2000; MOURA:1988; MONTEIRO:2006); nas décadas de 1950 e 1960, ainda no Brasil, os anúncios comerciais apoiaram projetos políticos e econômicos e ajudaram a estabelecer uma cultura de consumo, demonstrando uma inflexão nos conceitos de liberdade e democracia veiculados pelas peças publicitárias(FIGUEIREDO:1998). Os exemplos citados reafirmam a ideia de que as propagandas comerciais são lócus de veiculação e de debate do político. As mensagens publicitárias são transmitidas por meio de representações sociais. O conceito de representação, longe de ser um consenso na historiografia, apresenta múltiplas análises as quais o faz, inclusive, ganhar sentidos excludentes entre si (FALCON: 2000). Ressalta-se,

2 Pedro Antônio Tota, Gerson Moura e Erica Gomes Daniel Monteiro, ainda que dediquem maior esforço em seus estudos a partir da década de 1940, se inserem aqui. Os diálogos entre americanismo e nacionalismo por meio dos anúncios comerciais entre 1937-1940 é o tema da pesquisa de mestrado que está sendo realizada por mim. 212

então, a necessidade do pesquisador de conceituar “representações” quando utilizar tal termo. A principal diferenciação na abordagem dos historiadores diz respeito à correspondência com uma realidade prévia. Enquanto alguns defendem a representação como o simulacro da verdade, outros tantos defendem que o mundo é construído por representações. Para além das divergências conceituais, pautadas em debates mais abrangentes sobre a própria concepção da História enquanto conhecimento e sua relação com a verdade, o termo “representação” também seria polissêmico, podendo significar presença ou ausência. Falcon explora aqueles que seriam os dois sentidos modernos do termo representações: “a ‘representação’ entendida como objetivação, figurada ou simbólica, de algo ausente - um ser animado ou inanimado, material ou abstrato – e a ‘representação’ definida como estar presente em lugar de outra pessoa, substituindo-a, podendo-se ou não ‘agir em seu nome’, na qualidade de seu representante.” (FALCON: 2000, p.45). Adotamos para o universo publicitário, mais frequentemente, a noção de representação como objetivação. Por meio de textos e imagens, os profissionais da propaganda representam seu público alvo (uma determinada parcela da sociedade, tanto em níveis etários, quanto de gênero, classe, etc) e o produto, além de muitas vezes representarem o país de origem e o país receptor do objeto, questões contemporâneas (como guerras, crises econômicas, questões políticas). Para Ginzburg, tal sentido de representação evoca a ausência, fazendo ás vezes da realidade representada, mas, ao mesmo tempo, a presença, ainda que por sucedâneo (GINZBURG: 2001). Ginzburg nega, portanto, as análises de o mundo como uma representação, apresentando, em seu lugar, a realidade como algo a priori e a representação como um sucedâneo do real. Chartier também considera que o representante difere do representado (CHARTIER: 1990). Entretanto para esse, com quais ideias nos alinhamos mais, representações são instituições sociais, mas também são matrizes de práticas que constroem o próprio mundo social

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(CHARTIER: 2002, p.71), além de identidades para si mesmo e para os outros (CHARTIER: 1990). Dessa forma, ao mesmo tempo em que elas significam, estando inseridas em uma comunidade de sentido partilhado, constroem (CHARTIER: 1990, p.79). Partindo de outro princípio, o estruturalismo, Bourdieu havia feito raciocínio semelhante, o qual nos ajuda a pensar o universo publicitário. Para ele, os enunciados são, ao mesmo tempo, estruturas estruturadas, dependendo de fatores pré-existentes, como estruturantes, estabelecendo novas influências (BOURDIEU: 1989; 1998; 2000; 2003). Adotamos aqui a concepção de que o acesso ao real se dá por meio de representações, o que significa que as representações não são capazes de determinar a veracidade ou não dos acontecimentos, como o discutido caso do Holocausto, mas que as interpretações, as análises e as formulações sobre o próprio acontecimento serão moldadas pelas representações, as quais, inclusive, indicam para as diferentes visões de mundo. Entendemos aqui as narrativas como uma representação do real, não nos interessando, entretanto, firmar uma dicotomia simplista entre prática e representação. Segundo Ricoeur o próprio acontecimento já é em si pré-textual. Em sua análise da tríplice mimese, identifica a primeira delas como a vivência. A própria experiência já seria uma pré-narração, pois está baseada numa “pré-concepção do mundo e da ação: de suas estruturas inteligíveis, de suas fontes simbólicas e de seu caráter temporal” (RICOUER: s.d. p.88). A vivência organizaria passado, presente e futuro, uma compreensão prática que articula a ação. O texto, ou a representação, constando aqui como a segunda mimese, seria a escrita da ação por um autor que tece um sentido, uma síntese do heterogêneo, ordenando princípio, meio e fim, por meio de um fio condutor. (RICOEUR: s.d.) A narrativa, dessa forma, parte de uma pré-narrativa ocorrida na experiência, organizada por significações presentes na comunidade de sentido. Vale ainda ressaltar que mesmo entre os autores que trabalham com publicidade citados nesse trabalho nem todos eles utilizam o

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mesmo conceito de representação e nem menos o conceito representação para se referir aos anúncios publicitários, sendo que muitos deles preferem imaginário. Conceituamos imaginário social como quando uma sociedade, grupos ou mesmo indivíduos de uma sociedade se vêm ligados numa rede comum de significações, em que símbolos (significantes) e significados (representações) são criados, reconhecidos e aprendidos dentro de circuitos de sentido; são capazes de mobilizar socialmente afetos, emoções e desejos [...] se traduz como sistema de ideias, de signos e de associações indissoluvelmente ligado aos modos de comportamento e de comunicação.(CAPELATO; DUTRA: 2000, p.229)

Consideramos, assim, o imaginário como conjunto de representações e, dessa forma, as representações publicitárias estão inseridas em contextos culturais que as ultrapassam, conformando e ressignificando imaginários sociais. Elas, por si, não se configuram um imaginário publicitário, mas, por outro lado, legitimam ou até mesmo reformulam imaginários existentes. Imaginários sociais não são fixos e diferentes representações provocam movimentações no interior dos mesmos. Negamos, portanto, a afirmativa de Backzo de que “aquilo que os mass media fabricam e emitem, para além das informações e atualidades, são os imaginários sociais” (BACZKO: 1985, p.314). Os mass media, em nossa concepção, produzem representações as quais estão em combate com tantas outras e servem para legitimar, conformar e ressignificar imaginários. Segundo Roger Chartier, “não há praticas ou estruturas que não seja produzida pelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido a seu mundo” (CHARTIER: 2002, p.66). Assim, as representações publicitárias, longe de serem homogêneas, também se inserem nas disputas representacionais. Essas pressupõem concorrência e competições, poder e dominação (CHARTIER: 1990). Por isso, ao estudarmos anúncios publicitários não podemos nos deixar cair na armadilha harmonizante que os mesmos forjam. Aos anúncios, não interessa passar ao público alvo o espaço do conflito. Pelo contrário, o próprio objeto consumido não é percebido como fruto do trabalho humano, amenizando as opressões e diferenças sociais (FIGUEIREDO, 1998). Muitos pesquisadores das propagandas, 215

como é o caso de Barthes, se dedicaram a ver o espaço do consenso e do pertencimento gerado pelos anúncios, ignorando, entretanto, o espaço do dissenso e exclusão. Ele analisa como as imagens que são dirigidas aos consumidores causam reconhecimento nos mesmo, se sentindo parte de um grupo e “normais” (BARTHES: 2005, 113 e 115). Entretanto, longe de serem espaços homogeneizantes e harmoniosos, as propagandas comerciais possuem um público presumido – um “eu” – e um “outro”, ao qual se opõe. O próprio valor de uso é determinado socialmente, não existindo objetos puramente funcionais e atribuem às mesmas ligações identitárias e de status com seu público. Consumir, nessa lógica, significa enquadrar-se, que, por sua vez, traduz na não rejeição. O conflito aqui acontece, destarte, pela omissão, pelo subentendido e pelas hierarquizações, mesmo que realizadas de forma muito sutil. As ligações identitárias, entretanto, não se formam somente por pares de oposição. Elas se forjam por pares de comparação, marcando não só diferenças como semelhanças. Ressaltamos ainda que as identidades não são formadas por caráter objetivo, e sim por imagens, projeções, representações e sonhos. O que eu penso que eu sou, o que eu gostaria de ser/parecer, o que pensam que eu sou e o que gostariam que eu fosse são elementos constituintes de minha identidade. Segundo Falcon, práticas sociais como um todo, se baseiam na distinção ou imitação (FALCON: 2000). A identidade, ao contrário de apenas opor um “eu” a um “outro”, pode também se projetar no outro por ausência e ambição do vir a ser. Muitas vezes os anúncios comerciais se ocuparão em representar o espaço do onírico e as projeções identitárias. Ela não se forja apenas por pares de oposição, mas de comparação. Perde-se o sentido, então, de se buscar correspondência entre as representações publicitárias e a realidade. Muitas vezes peças publicitárias são acusadas de não retratarem homens/mulheres reais. Ainda que tais representações possam causar opressões na medida em

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que geram exclusão e identificação, essa última pode ser gerada também pelas projeções e desejos, e não apenas pelas características objetivas e “reais”. Destarte, homens e mulheres idealizados se aproximariam do eufemismo, do agradável, das projeções identitárias. Tais representações seriam legitimadas pela própria sociedade, ou parte dela. Assim sendo, busco aqui nesse parágrafo um pouco da minha pesquisa de mestrado. A retratação de artistas Hollywoodianas ou modelos norte-americanas nas propagandas no Brasil durante as décadas de 1930 e 1940, longe de não representarem as brasileiras por possuírem estereótipos às vezes muito diferentes dos nossos, agem no sentido do onírico, identificando-se por base do star system, do pavor do anonimato, da vontade da fama, do encantamento dos fãs com seus ídolos. Cabe lembrar que os filmes norte-americanos já haviam conquistado os corações brasileiros e eram sucesso de público desde a década de 1920. O americanismo não necessariamente se oporia, assim, ao nacionalismo das décadas de 1930 e 1940, estabelecendo-se um vínculo identitário pela Política de Boa Vizinhança. As representações dos sonhos e desejos, portanto idealizadas, tanto são legitimadas pela sociedade que, a partir do momento em que se passa a questionar a falta de correspondência dos modelos com pessoas “reais”, algumas empresas munem-se também desses discursos para realizar seus anúncios. Cito um exemplo.

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Imagem 1: Campanha Dove Real Beleza

Fonte: http://feguedes.wordpress.com/tag/dove-real-beleza/ Acessado em: 07/04/2014

A marca Dove em 2004 encomendou uma pesquisa global intitulado “The Real Truth About Beauty”, para entender a relação da mulher com a beleza. A partir desses dados, e da constatação da falta de autoestima feminina, segundo site da empresa, Dove apostou em uma série de peças publicitárias denominada “Real Beleza”. Uma delas, veiculada em vários meios brasileiros, representava várias mulheres com corpos “reais”, ressaltando a beleza presente neles. As modelos retratadas estão felizes e descontraídas em suas poses, indicando uma possível auto-aceitação independente se seus corpos seguem ou não padrões. Outra peça, o “Verão sem vergonha”, essa veiculada no verão brasileiro de 2005, na televisão, recebeu música cantada por Fernanda Abreu incentivando a diversidade e o realce das diferenças: “curvas diferentes porque ninguém é igual, realce em você o que é especial (...) porque o sol nasceu pra todas”. Em 2006, ainda como parte dessa campanha “Real Beauty” lançou a peça de vídeo “Evolution”

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demonstrando como a maquiagem realizada na modelo e o Photoshop distorcem a real beleza. O uso de estereótipos que não sejam os de modelos, os quais difeririam muito de mulheres “reais”, não é utilizado somente pela Dove. A citamos como forma de exemplo, sem pretensões de alongarmos no assunto. Entretanto, com um levantamento rápido podemos perceber que inúmeras outras marcas o fazem, como a marca de lingerie Aire e a Duloren, o canal canadense de TV Wnetwork, dentre outros. Saindo estritamente do universo publicitário, o clipe "Nouveau Parfum", da cantora húngara Boggie, música de 2013, clipe do ano vigente, revela também as transformações que são possíveis por meio do Photoshop pela fabricação da beleza e questiona esses padrões que seriam destruidores de nossa autoestima: “Qual eu escolho? Por que eu escolho? Quem quer que eu escolha? Eu não sou o produto deles”. Global Democracy criou um vídeo também criticando como os corpos das modelos são transformados pelo Photoshop. França, Inglaterra e Brasil possuem projetos-leis que visam proibir a alteração de corpos por Photoshop em campanhas publicitárias. Longe de negar a opressão e a exclusão do “outro” contidas nas publicidades, gostaria apenas de realçar que sociedade e publicidade se auto nutrem. Discutir se esses padrões são criados ou apropriados pelas propagandas cairia em discussão semelhante de “quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha”. Lembremos que as propagandas significam e constroem, como já mencionamos anteriormente. E que elas partem de imaginários legitimados para gerar representações, resignificando-os, algumas vezes. Os conceitos de belo e feio, de agradável e detestável, de desejável ou não, utilizados nas campanhas, são apropriados de imaginários presentes na comunidade de sentido para qual são destinadas. O próprio fato de retratação de desejos e projeções identitárias, ou de realismo nas representações, realizando identificações mais diretas, indicam para discussões e concepções contemporâneas às peças publicadas.

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Segundo Figueiredo, a propaganda não objetivaria criar valores, ideias ou imagens absolutamente inéditas (FIGUEIREDO: 1998, p19). A chave de nossa pergunta encontra-se na utilização da comunidade de sentido. Obviamente os publicitários realizam apropriações seletivas da tradição e, também, dos ideais de “novo” e “moderno”, conceitos que são constantemente resignificados. Ao momento que admitimos esse fato, buscamos nos anúncios comerciais as representações de mundo realizadas por esse grupo, mas que estão pautadas num imaginário e num contexto mais amplo, que os ultrapassa. A publicidade, ao munir-se de valores e símbolos presentes na sociedade, ou em uma parcela da mesma, os resignifica e apropria para as suas necessidades comerciais. Não afirmamos, também, que um publicitário utiliza-se dO imaginário e dA representação contemporânea a ele, mas, como já vimos anteriormente, de representações, as quais estão em embate com tantas outras. Percebemos que o universo publicitário é como um ciclo vicioso, pois parte de imaginários sociais, por meio de modelos partilhados e das identidades construídas, para apropriar-se deles tanto referindo-se ao lexical quanto ao iconográfico e gerar identificação, por um lado, e ação, por outro. Segundo Bhabha, a própria linguagem seria uma metáfora transformadora da realidade (SANT’ANNA: 2012). A publicidade significa, a partir do momento que utiliza de elementos da comunidade simbólica, mas também constrói, pois insere costumes, ideiais, modos de ver o mundo, gera hábitos e ação, além de criar/reforçar/resignificar identidades. Por isso, anúncios publicitários são importantes lócus de pesquisa para historiadores do cultural do político, os quais por meio das representações por eles veiculadas podem investigar sobre o contexto, comunidade de sentido, imaginários, ideias, valores, apoios ou não políticos, crises e várias outras coisas que aparecem não só como plano de fundo dos anúncios, mas em suas próprias representações. Vale ainda ressaltar, por último, que as publicidades abrem amplo leque de pesquisa, não se limitando à História Cultural do Político. Alguns

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trabalhos atuais com publicidade não seguem a linha que propomos, mas História social, cultural, de gênero, ambiental, dos ofícios, das modas, dos corpos, das relações internacionais, ensino de história, dentre outros.

REFERÊNCIAS

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ORVIL: A HISTÓRIA “POSTA EM FORMA” PELO EXÉRCITO BRASILEIRO (1985-1988)

Mauro Teixeira1 Introdução

Em 1979, com a promulgação da lei de anistia no Brasil, diversos ex-militantes de organizações clandestinas de esquerda, que haviam combatido a ditadura instalada em 1964 2, começaram a retornar do exílio, ou a sair de prisões brasileiras. O relaxamento da censura jornalística e editorial permitiu que eles contassem sua versão daquela luta, através de livros de memórias, depoimentos assinados, filmes e entrevistas3 . Ao mesmo tempo, reportagens investigativas passaram a expor os fundamentos e o funcionamento da repressão política no Brasil. Naquelas fontes, aparecia a imagem de um regime que adotara o sequestro, a tortura e as execuções sumárias como métodos sistemáticos de combate contra seus opositores. A fartura de depoimentos e a impressionante coerência entre eles tornava muito difícil contestar as denúncias que então se fazia. Esta situação se revelava um problema significativo para as instituições castrenses: principais artífices e condutoras do processo de “abertura” política, pretendiam transmitir o poder aos civis sem abdicar do papel institucional privilegiado de que gozavam sob a Constituição de 1967. Além disso, aquelas acusações poderiam prejudicar mais dois objetivos das Forças Armadas: preservar a impunidade que a anistia de 1979 garantira aos agentes e comandantes da repressão e reproduzir,

1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, com bolsa Capes/CNPq. E-mail: [email protected]. 2 Para descrições factuais dos eventos da luta armada e da repressão, recomendamos as obras de Gorender (2003) e de Gaspari (2002). Para análises mais aprofundadas sobre a composição e as identidades políticas das organizações de esquerda, ver Ridenti (1996) e Aarão Reis Filho (1990). Para os pressupostos e o funcionamento do aparelho repressivo, Fico (2001) e Joffily (2014). 3 Os livros de memórias sobre o período se contam às dezenas. Para alguns exemplos que consideramos significativos, ver Gabeira (1979), Sirkis (1981) Polari (1982), Daniel (1982), Caldas (1983) e Guarany (1984). Para reportagens, ver Lago (1979) e Fon (1979). Para depoimentos de próprio punho, Romeu (1981). 223 nas novas gerações de oficiais, os pressupostos das doutrinas da “Guerra Revolucionária” (Martins Filho, 2009) e da “Segurança Nacional” (Borges, 2003), que haviam norteado o golpe de 1964 e a atuação do aparelho repressivo. Convivendo com estes objetivos mais pragmáticos, devemos admitir a existência de um temor sincero em relação à mobilização de esquerda que começava a se reconstruir no país, e que setores militares e civis entendiam como sendo a volta da “ameaça comunista”. Para estes setores, como veremos mais adiante, a “difamação” das Forças Armadas por parte dos ex-guerrilheiros visava a desmoralizá-las, afastando-as da função de segurança interna e tornando mais fácil a ascensão dos comunistas ao poder. Este é o contexto em que o Ministério do Exército determinou ao Centro de Informações do Exército (CIE)4 , em 1985, a elaboração de um livro que contivesse a versão oficial das Forças Armadas acerca de sua luta contra as organizações clandestinas de esquerda. Este trabalho, que retoma e reelabora considerações presentes em nossa dissertação de mestrado (Teixeira, 2012, seção 4.2) procura compreender esta obra como uma tentativa de se construir uma narrativa oficial, chancelada pelas Forças Armadas, da violência política dos anos 1960 e 1970, bem como da atuação militar na repressão a movimentos armados e desarmados de esquerda ao longo de meio século (1935-1985). Ao contar a sua versão daqueles acontecimentos, o Exército revelava muito sobre sua alta oficialidade, sobretudo em termos de cultura histórica e identidade político-ideológica, elementos que procuraremos expor e analisar.

4 Criado em 1967, especificamente para combater as organizações de esquerda, o CIE centralizava as informações produzidas pelas três Forças, pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e pela Polícia Federal. Teve também ativo papel na repressão direta à luta armada e, no início dos anos 1980, envolveu-se em atividades terroristas de direita. Ver Brandão (2002, pp. 68-73 e 79-101). 224 O Orvil: da proposição ao arquivamento

Um documento do Centro de Informações do Exército (CIE) datado de março de 1984 (“Apreciação”, 19845 ) propunha que a força terrestre reagisse contra as denúncias produzindo um relato consistente, para consumo amplo, que expusesse a versão dos militares acerca daqueles acontecimentos. Parte deste plano seria posta em prática a partir do ano de 1985. É razoável supor que, para que isto acontecesse, tenha sido decisiva, naquele ano, a publicação, em forma de livro, por parte da Arquidiocese de São Paulo, do relatório condensado do Projeto Brasil: Nunca Mais (BNM)6 . O trabalho se desenvolveu ao longo de três anos. Como se tratava de iniciativa ainda sigilosa, a elaboração do relato foi alcunhada de “Projeto Orvil” (a palavra “livro” de trás para a frente), nome que acabou prevalecendo sobre o título oficial, que era “As tentativas de tomada do poder”. O plural se explica pelo fato de que, na visão do CIE, a luta armada desenvolvida entre 1967 e 1973 se inseria no quadro maior da ação comunista no país, sendo apenas uma (a terceira) de um total de quatro investidas da esquerda no sentido de assumir o controle do Estado brasileiro. A primeira seria a chamada “Intentona”, de 1935; a segunda, a mobilização comunista entre 1946 e 1964; e a quarta, considerada a “mais perigosa” (Orvil7 , p. XVII), da qual fariam parte o BNM e outras ações de “desmoralização” das Forças Armadas, estaria em curso durante os anos 1980. Concluído em 1988, o Orvil apresentava, em mais de 900 páginas

5 Devo a cessão deste documento à Prof. Dra. Priscila Carlos Brandão, da UFMG. 6 Diferentemente dos relatos individuais de ex-guerrilheiros ou de reportagens pontuais, a publicação trazia um relato consistente da construção e da atuação do aparelho repressivo comandado pelos militares, e demonstrava o caráter sistemático da tortura e de outras violações de direitos humanos, usando como fontes uma extensa coleção de processos arquivados no Superior Tribunal Militar e copiados durante anos, de forma semiclandestina. O BNM se tornou um gigantesco sucesso de vendas, e uma das mais permanentes narrativas da luta armada e da repressão. 7 Por termos tido acesso a esta versão apenas no formato de “e-book”, que dificulta citações, optamos por citar o Orvil a partir da versão em .pdf disponibilizada na internet em 2009 (ORVIL). 225

datilografadas, um relato extremamente minucioso e detalhista da ação política não só dos comunistas, mas também de nacionalistas de esquerda, socialistas democráticos e católicos progressistas ao longo do século XX. Nele, eram negadas enfaticamente todas e quaisquer violação de direitos humanos por parte das Forças Armadas, apresentadas como guardiãs indispensáveis do regime democrático. Porém, uma vez pronto, o livro acabou sendo arquivado, em vez de publicado. Em nosso entendimento, são duas as razões principais para esta decisão. Em primeiro lugar, à época de sua conclusão, haviam diminuído a frequência e a intensidade das denúncias contras as Forças Armadas. Do ponto de vista político, não era interessante para elas voltar ao assunto. Em segundo lugar, o papel de relevo das Forças Armadas na nova Constituição já parecia garantido. Assim, as instituições castrenses garantiam seu protagonismo no presente e no futuro do Estado brasileiro, tornando dispensável a polemização com a esquerda. Mesmo arquivado, o livro nunca foi totalmente esquecido. Alguns anos mais tarde, cópias xerográficas foram feitas e circularam entre oficiais “de confiança”, na visão dos membros do CIE. A partir deste material, vários livros da autoria de antigos oficiais de segurança e informações (Ustra, 1987 e 2006; Torres, 1998; Augusto, 2001) foram elaborados e publicados, obtendo, porém, pouca repercussão. Em 2009, a obra foi digitalizada e disponibilizada na internet (Orvil, 2009). Em 2012, organizado por dois oficiais da reserva, finalmente se materializou em livro (Maciel; Nascimento, 2012).

Um livro para o passado, o presente e o futuro

No início dos anos 1980, os oficiais que haviam estado anteriormente envolvidos com a repressão política viviam uma fase de transição em termos de prestígio social e situação político-institucional. Ao mesmo tempo em que vários ex-protagonistas dos órgãos repressivos ocupavam cargos de destaque no comando do Exército (“Os filhos...”, 1981, p. 15), avolumavam-se denúncias de violações de direitos

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humanos por eles cometidas, resultando na perda de cargos de confiança e mesmo de espaço na memória coletiva (“Fora...1983, p. 91”). Aquelas denúncias reforçavam nos comandantes militares uma sensação de “agressão psicológica” (Orvil, p. 836), motivada, no seu entendimento, por aquilo a que chamavam de “revanchismo”, ou seja, a vontade, por parte dos antigos integrantes da esquerda armada, de “transformar a derrota militar que lhe foi imposta, em todos os quadrantes do território nacional, em vitória política” (idem, p. 839). Para os comandantes militares e os oficiais da área de informações, a publicação do BNM e outras formas de denúncia de atrocidades por eles cometidas representava uma crise, no sentido proposto por Rüsen (2009, p. 170), uma vez que são rompidos padrões estabelecidos de interpretação do tempo histórico, sobretudo no que diz respeito à relação entre vencedores e vencidos: “Há que se fazer a História. Nós, vencedores, temos que escrevê-la.” (Apreciação, 1984, p. 2). Assim, a comunidade de segurança8 pretendia, ao redigir a obra, restaurar a condição dominante dos vencedores no sentido de contar a versão oficial do passado. Porém, não podemos nos esquecer que o Orvil não se fazia apenas no sentido de se “corrigir” a visão da sociedade sobre o passado, mas também era pensado como uma arma de intervenção para o presente e para o futuro. Não por acaso, a “quarta tentativa” dos comunistas, a que estava em curso durante a elaboração do relato, era considerada “a mais perigosa”. Assim, o relato do CIE não tinha apenas o objetivo de desagravar a comunidade de segurança, mas também e principalmente o de colaborar na manutenção do lugar institucional das Forças Armadas e no afastamento das esquerdas das possibilidades de ascensão ao poder. Era necessário, assim, resgatar o sentido da atuação da comunidade de segurança; parte deste esforço se destinava a identificar a "ameaça comunista" como uma realidade móvel no tempo, de forma

8 Para Carlos Fico (2004, pp. 80-2), a “comunidade de segurança” era formada por órgãos criados por decretos secretos e voltados especificamente para a repressão contra as organizações clandestinas. 227

alguma específica da época em que aquela atuação se deu; mostrar sua constância no passado, sua permanência no presente e seu potencial para o futuro. O Orvil criará, para isso, uma narrativa ambiciosa em termos de tempo histórico.

O comunismo como ameaça perene

O viés principal da atribuição de sentido a um combate como o que foi efetivado pela comunidade de segurança contra as organizações de esquerda repousa na construção/desconstrução do adversário combatido. O Orvil, não deixa dúvidas quanto ao oponente contra quem reage. O comunismo e as organizações que o propõem aparecem, ao longo de toda a obra, como inimigo a ser combatido: a "subversão" é sempre de autoria comunista, e o subversivo, conscientemente ou não, age no sentido de viabilizar a "comunização" do país. Ao tratar o comunismo como a “fonte da violência” (Orvil, p. 2), o Orvil coloca as forças armadas em uma posição meramente reativa em face da violência do inimigo; e, ao repetir insistentemente as acusações fidelidade a governos de outros países, sublinha a necessidade de se reprimir aquela atuação, que seria danosa à própria soberania nacional. Ocorre que estas duas características serão, na visão do Orvil, uma presença constante na atuação "vermelha", em qualquer tempo e lugar em que ela se coloque. Ao empreender a narrativa das tentativas comunistas de tomada do poder no Brasil, seus autores evidenciarão conceber o comunismo, se não como realidade imutável, como algo que só muda em sua superfície, apenas o suficiente para se adaptar a novas circunstâncias; o recuo até os anos 1920, neste sentido, se faz com o objetivo de demonstrar as permanências na atuação dos comunistas brasileiros. Assim, no entender dos autores do Orvil, a sua própria atuação no combate à luta armada insere-se em uma espécie de continuum anticomunista, que começara muito antes deles e precisava continuar 228

indefinidamente. Desta forma, a comunidade de segurança pensa seu papel histórico como parte de um combate secular entre comunismo e democracia. Neste sentido, o relato do CIE parece compreender o tempo em um sentido de duração, de permanência. Essa moldura temporal referencial ver-se-á perturbada pela emergência de uma memória adversa a seus autores, que atinge seu ponto máximo com a publicação do BNM. Os autores do Orvil tentarão inserir as denúncias contra eles em uma narrativa das tentativas de tomada do poder pelos comunistas. A maquinação comunista explicaria o opróbrio, a "agressão psicológica" vivida pela comunidade de segurança no presente (1985), e apontaria para a necessidade da continuidade do combate ao comunismo, no futuro.

Controle das fontes como recurso político

A partir da concepção temporal acima descrita, o CIE seleciona suas fontes e a forma de trabalhar com elas de modo a ressaltar aqueles aspectos supostamente recorrentes da atuação política dos comunistas. Na produção de sua versão dos acontecimentos relacionados à luta armada e à repressão, o Orvil se vale, principalmente, de documentos constantes no arquivo do próprio CIE, onde, segundo Lucas Figueiredo (2009, pp. 78-9), havia toda a documentação produzida pelo próprio centro desde 1967, além de cópias dos acervos de outros órgãos de informação e repressão e “toneladas” de material apreendido junto a organizações de esquerda. Ocorre que, em nenhum momento, o "livro secreto" explicita estar citando estes tipos de documentação. A maior parte da exposição transcorre sem menção às fontes que fornecem as informações que, frequentemente, como veremos, alcançam alto grau de detalhamento. Em nosso entendimento, esta ausência de referências sugere

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possibilidades para iluminar a cultura histórica da oficialidade brasileira dos anos 1980. Em primeiro lugar, a comunidade de segurança nos parece acreditar que sua condição de participante e de vencedora do combate abalizaria seu testemunho, sem necessidade de comprovação documental. Entretanto, como vimos, esse status, no momento da redação do Orvil, estava em franco processo de deterioração, dada a conjuntura política e à emergência da memória da esquerda. Em segundo lugar, podemos notar a compreensão estratégica dos arquivos como instrumentos de luta política. Se, em meados dos anos 1980, o Exército julgou necessário tornar pública sua versão da luta armada, isso não implicaria fazer o mesmo com as fontes que embasavam estas versões. Estas, aparentemente, são vistas como armas importantes no combate ao comunismo, e o CIE não pretende dividir o acesso a elas com o conjunto da sociedade. A história da “comunidade de segurança” é dada a conhecer por ela própria, mas na forma de uma narrativa pronta, cuidadosamente preparada e impossível (pelo menos até hoje) de ser cotejada com as fontes. Paul Ricoeur (2007, p. 188) nos lembra de que “Os documentos só falam quando lhes pedem que verifiquem, isto é, tornem verdadeira tal hipótese”. Procuremos, então, dirigir nossa olhar para as perguntas que, declaradamente, o Orvil faz aos documentos que consulta. Tentaremos detectar, já nestas perguntas, a formulação das hipóteses com que trabalha o "livro secreto":

Para a compreensão dessa luta [da esquerda contra a ditadura], foram suscitadas muitas perguntas: Como se formaram? Qual a inspiração ideológica? Quais os objetivos das organizações subversivas nela empenhadas? Qual o caráter da revolução que pretendiam fazer? (Orvil, p. XV)

Este conjunto de perguntas (bem mais extenso do que o citado acima) já anuncia, em nosso entendimento, uma "busca", nos documentos a serem consultados, por elementos que comprovassem a hipótese que configurava a esquerda armada como uma pequena elite

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intelectualizada que, orientada por interesses externos, desencadeou uma luta vanguardista e violenta pela tomada do poder 9 . As interrogações propostas pelo Orvil se voltam também para o tema da repressão desencadeada contra aquelas organizações:

O nível que as ações terroristas alcançaram colocava em cheque o monopólio da força armada organizada? (...) O seu combate exigia o envolvimento das Forças Armadas? Era imprescindível que provocasse a restrição da liberdade e que se suprimisse do público as informações a que tem direito uma sociedade democrática? (Orvil, p. 15)

Observe-se que estes dois conjuntos de perguntas tentam conduzir à compreensão da luta armada como algo que se deflagra de forma espontânea, sem estímulos conjunturais, a não ser a inspiração estrangeira. A esquerda age motivada unicamente pela sua vontade de tomar o poder. Já a ação da repressão é meramente reativa: dependeria do "nível das ações terroristas", que poderiam "exigir" ou não o emprego das Forças Armadas. O extenso corpo documental de que dispunham acerca da esquerda permitiu aos historiadores do CIE levantar mínimos detalhes (nomes, marcas de automóveis, endereços, técnicas utilizadas) da atuação da esquerda, numa aparente tentativa de dar suporte comprobatório à exposição. Por maior que fosse o detalhismo nas descrições das ações da esquerda armada e mesmo, em certos aspectos, dos órgãos de repressão, o CIE sabia que omissões deliberadas seriam inevitáveis. A própria “Apreciação” (p. 3) que propôs o trabalho lembrava que “há muita coisa que não pode ser contada. Sabemos, entretanto, que há muita coisa que pode e deve ser contada”. Esta interdição dizia respeito, evidentemente, aos episódios de violações de direitos humanos praticados por integrantes do aparelho repressivo. Conforme lembra Fico (2004, p. 84), “a tortura envergonhava,

9 Excetuando-se a predominância do elemento externo e a caracterização de "terrorismo", esta visão não se distancia muito da que foi formulada por mais de um analista acadêmico, nenhum deles vinculado à causa anticomunista. Ver Ridenti (1996) e Aarão Reis Filho (1990). 231 comprometia a honra de todos os militares”. O mesmo se pode dizer das execuções sumárias, ocultações de cadáveres e outros crimes. No Orvil, nenhum só caso desses é admitido, e todos são, em bloco, atribuídos à tentativa da esquerda de “desmoralizar” as Forças Armadas. O imenso acervo do CIE era filtrado e organizado de forma a produzir uma versão que ambicionava ocupar um lugar de relevo na memória coletiva10. A extensa coleção de documentos clandestinos reunida pelo CIE lhe deu material para reivindicar a condição de intérprete autorizado dos caminhos e descaminhos da esquerda brasileira. Para tal condição, os autores do Orvil julgaram necessário explicitar o conhecimento acumulado sobre a esquerda de forma a não deixar dúvidas sobre sua amplitude. Este objetivo determinou suas opções estéticas e narrativas na formulação do relatório, como veremos a seguir.

O Orvil e seu modelo de narrativa

No Orvil, é bastante evidente a tentativa de se construir uma narrativa histórica capaz de tomar às esquerdas o controle da memória dos “anos de chumbo”. Para tanto, não bastava apenas recontar, pela ótica das Forças Armadas, o embate destas contra os grupos de esquerda. Era preciso realizar esta tarefa de uma forma que conquistasse o público leitor de duas formas: no sentido de convencê-lo a ler uma obra de grande extensão (mais de 900 páginas) e também no sentido de levá-lo a aderir à visão expressa naquele relato. No caso em questão, tais estratégias envolviam, em primeiro lugar, uma alternância de estilos que nos parece intencional. Em momentos chave, busca causar grande impacto no leitor, atraindo sua atenção para, em seguida, assumir um tom circunspecto, quase burocrático, como a querer criar para si uma aura de sobriedade ou equilíbrio.

10 O tamanho do livro ao final de sua elaboração – 909 páginas – não ajudava a consecução deste objetivo. Ainda que ele tivesse se limitado, como inicialmente planejado, ao período da luta armada entre 1967 e 1973 – a "terceira tentativa" – isto o deixaria com cerca de 650 páginas, volume bastante caudaloso se considerarmos as 312 do Brasil: Nunca Mais. 232

Esta alternância entre o espetacular e o circunspecto se verifica em inúmeros momentos do livro, permitindo-nos concluir que ela não se deve ao acaso. Trata-se, a nosso ver, de uma estratégia deliberada, no sentido de criar no leitor, através do impacto das descrições mais "coloridas", a disposição de acompanhar as explicações oferecidas para aqueles eventos. Conquistada a atenção do público, a segunda tarefa era fazê-lo compreender a narrativa oferecida e aderir a ela. O livro foi construído em um formato rigorosamente cronológico, em que os acontecimentos são ordenados de acordo com sua sequência no tempo. Em relação ao período que ocupa a maior parte do relatório, 1964 a 1973, o Orvil chega a dedicar um capítulo para cada ano – sempre aberto por uma introdução e fechado por um balanço. Aparentemente, este formato foi escolhido por questões de organização (Brandão; Leite, 2012, pp. 239- 240), mas não há dúvidas de que ele constitui, voluntariamente ou não, uma forma de facilitar a absorção do relato pelo leitor. Conforme Pereira (2009, p. 140),

A linearidade cronológica dissimula a operação historiográfica, pois, se o historiador parte de traços do passado que subsistem no presente, a ordem de restituição se faz em sentido inverso, na medida em que a história é escrita a partir do presente daquele que a escreve.

Neste processo, o encadeamento que o historiador estabelece entre estes “traços” aparece como algo “natural”, presente na essência mesma dos eventos do passado, e não como algo construído pelo autor do relato a partir de sua perspectiva no presente. Na narrativa do Orvil, esta dissimulação se manifesta na medida em que a sucessão em que são colocados os acontecimentos desde 1922 dá a impressão de que a trajetória histórica do Brasil neste período foi determinada, principalmente, pela ação política dos comunistas no sentido da tomada do poder, o que abriria caminho para a justificação do combate anticomunista, no passado e no presente. Podemos ressaltar, ainda, a tendência do relato do CIE em

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valorizar sobremaneira o eventual e o conjuntural, em detrimento do estrutural. Localizada, como já demonstramos, a "fonte da violência", o livro se dedica centralmente a descrever a sequência de eventos que compõem a sua narrativa, fazendo referência, em momentos isolados, a mudanças nas orientações dos centros irradiadores do "comunismo internacional" ou no comportamento do governo brasileiro em relação a ele. Mesmo esta conjuntura tende a ser enfocada pelo ângulo estritamente político, dando pouca atenção a fenômenos econômicos e quase nenhuma à dimensão cultural. Este modelo narrativo facilita a ênfase nos agentes individuais. Lideranças de esquerda são seguidamente demonizadas, enquanto as qualidades pessoais dos líderes militares são ressaltadas e consideradas determinantes para os rumos do país. Sugere-se, assim, uma interpretação individualista e maniqueísta da história, um esquema “heróis x vilões”, no qual se busca de forma intensiva a identificação do leitor com um dos lados em questão. Em comparação com a ativa participação destes líderes na construção da história, o conjunto da sociedade assume uma posição consideravelmente passiva no relato do CIE. Sua ação, sobretudo quando contrária à "ordem", se dá sob incitação de "agitadores profissionais" (Orvil, p. 64). O livro parece defender a necessidade de tutela política da população, já que existiria um "invencível tropismo das massas para a mentira" (Idem, p. 880), do qual se valeriam os comunistas. Todos esses fatores levantados seriam canalizados para a função de orientação que o Orvil pretendia exercer no momento da transição política brasileira.

Ordem para os civis, coesão para os militares

As formas de utilização das fontes e de estruturação do texto a que temos nos referido se relacionam com as funções que o Orvil, no entender de seus redatores e do comando do Exército, deveria

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desempenhar depois de publicado. Rüsen (2009, p. 187) coloca que os estudos históricos se fazem sob um compromisso com um determinado “discurso político da memória coletiva”, o que faz da narrativa histórica um instrumento de luta por poder e reconhecimento. Neste aspecto, “o pensamento histórico funciona como um meio necessário para a legitimação ou deslegitimação de todas as formas de dominação e governo.” Em nossa visão, esse objetivo de legitimação se concretiza, no Orvil, em duas dimensões: uma externa, dirigida à sociedade em geral, e outra interna, visando especificamente “os jovens oficiais e praças” (Apreciação, pp. 1-2). No primeiro caso, é necessário lembrar que a transição brasileira se deu sem que houvesse uma ruptura com o poder das Forças Armadas sobre as instituições, conforme já demonstramos em outro trabalho (Teixeira, 2013, p. 60). Ao planejar e por em prática o processo de “redemocratização”, os comandantes militares pretendiam retirar-se dos postos de poder mantendo o papel efetivo das Forças Armadas como instância decisória, e sem permitir que emergisse um quadro político que desse lugar a movimentos sociais autônomos e atuantes, considerados pelo CIE como mecanismo dos comunistas na luta pela tomada do poder (Orvil, pp. 876-7). Com efeito, o Orvil, falando já sobre o seu presente (1985-1988), considerava admissível apenas a oposição que se fizesse de forma “leal às instituições”, ou seja, aquela que se submetesse ao ordenamento legal imposto pela ditadura nas décadas anteriores. O livro sugere, inclusive, que a “esquerda” não faria parte da “oposição legal”, uma vez que procurava “confundir-se” com ela (Orvil, p. 86; Teixeira, 2013, p. 71). Tal modelo de transição demandava que se legitimasse o golpe de 1964 e o regime por ele instaurado. Ora, esta legitimação ficava comprometida com a avalanche de denúncias de violações de direitos humanos praticadas pelas Forças Armadas, da qual o Brasil: Nunca Mais era o ápice. O Orvil entrava nesta luta ao negar in totum aquelas denúncias e atribuí-las a uma “quarta tentativa” de tomada do poder

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pelas organizações comunistas. Em relação ao público interno, a preocupação dos redatores do Orvil se manifesta não só na Apreciação, citada acima, mas também no próprio texto do livro. Para eles, a campanha de “difamação” dos militares, empreendida pelas entidades de defesa dos Direitos Humanos, atingiu tal volume que “as mensagens das esquerdas passaram a ser aceitas até por boa parte do público interno, que passou a ver os que lutavam contra a subversão como os responsáveis pelo desgaste da própria Instituição perante a opinião pública” (Orvil, p. 457). O CIE parecia temer pela preservação das doutrinas de “Segurança Nacional” e de “Guerra Revolucionária”, que haviam norteado a formação de oficiais nas décadas anteriores e ainda continuavam a fazê-lo nos anos 1980. Ao propor o contra-ataque contra as denúncias da esquerda, os oficiais da comunidade de segurança pretendiam, supomos, demonstrar aos futuros comandantes a necessidade de manutenção daqueles pressupostos, o que explica a insistência em apontar o caráter deletério da ação comunista mesmo no presente, bem como o fato de o Orvil considerar a quarta tentativa de tomada do poder como a “mais perigosa”. Os objetivos políticos da elaboração do Orvil, que detalhamos nesta seção, evidenciam que a obra não se tratava apenas de uma releitura do passado. Ao contrário, este passado, aqui, aparece como objeto de disputa não em si mesmo, e sim como arma em uma luta política que tinha como objetivo-fim o controle do presente e do futuro.

Considerações finais

Proporemos agora, a partir da análise do Orvil, algumas considerações acerca da cultura histórica predominante entre a alta oficialidade brasileira nos anos da transição, e tentar deduzir, a partir daí, elementos que permitam caracterizar uma identidade política partilhada por uma elite que, naquele período, ocupava posições do mais alto 236

relevo em termos de poder decisório. Para Rüsen (2009, p. 172), a cultura histórica é uma realidade multidimensional, na qual se manifestam concretamente “o trabalho interpretativo da consciência histórica e seu produto, a estrutura cognitiva chamada 'história'”. Ele identifica, na formação desta cultura três dimensões básicas que, a nosso ver, podem ser verificadas no Orvil. A primeira delas é a dimensão política, que se relaciona com as relações de poder e a legitimação de uma determinada ordem, que passam a ser inscritas na própria identidade do sujeito que narra. Em nosso objeto, este aspecto aparece na naturalização de ideal de sociedade, baseado na ausência de antagonismo entre as classes e na ideia da existência de um “povo” único, que englobaria “todos os componentes de uma nação, independente de sua condição social, política ou econômica” (Orvil, p. 876), e de grupos “naturalmente hierarquizados” (ibidem) na sociedade. Partindo dessas visões, todo movimento social independente seria deletério, pois traria divisões a um todo “naturalmente” coeso e harmônico, justificando, assim, a reação do Estado contra esse movimento. A segunda dimensão é a estética, relativa à “eficácia psicológica das interpretações históricas, ou com a parte de seus conteúdos que afetam os sentidos humanos” (Rüsen, 2009, p. 172). O Orvil, em sua maior parte, opta pela formalidade neste aspecto: como vimos, ora adota um estilo frio e professoral, ora parte para sentimentalismo solene e cerimonioso. Em ambos os caminhos, ressalta-se a distância entre narradores e leitores, sendo que destes últimos se espera, aparentemente, docilidade e aceitação perante aos ensinamentos dos primeiros. Por fim, Rüsen (idem, p. 173) nos fala da dimensão cognitiva da cultura histórica, aquela que trabalha com “os eventos passados significativos para o presente e seu futuro”. Aqui, como já ressaltamos, os autores do Orvil se mostram apegados àquilo que o autor alemão chama de “concepção hermenêutica” (Rüsen, 2010, p. 136) da história, na qual “as intenções individuais se encaixam sem rupturas, ou ao

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menos se associam. A representação histórica de continuidade, que garante sentido, perpassa o direcionamento intencional das ações humanas atuais”. Conforme demonstramos, o relato construído pelo CIE, além do enfoque cronológico que supõe uma continuidade linear na ação comunista, privilegia as intenções dos indivíduos como fator decisivo da história, despreza a atuação das coletividades e, frequentemente, apela ao maniqueísmo como forma de distinguir os atores históricos em foco. Revela-se, assim, nas páginas do Orvil, uma cultura histórica voluntarista, formalista e individualista, que lança luz sobre uma identidade política mais ampla, que, em nosso entender, caracteriza não só os autores do relato do CIE, mas também e principalmente a parcela hegemônica da alta oficialidade brasileira durante a transição. Fazemos essa generalização baseados no caráter oficial da obra, já discutido na introdução. Nesta identidade, três características nos chamam a atenção. A primeira delas é o militarismo, aqui entendido como a defesa do “controle dos militares sobre os civis e a sistemática vitória das instâncias dos primeiros sobre os segundos” (Pasquino, 1998, p. 749). A apologia da intervenção militar em 1964 e da tutela exercida pelas forças armadas sobre a sociedade demonstra que, na visão do CIE, a sociedade civil não era capaz de defender-se, por si só, de “ameaças” como o comunismo. No esquema maniqueísta imaginado pelos autores do livro, os militares representam o “bem”, a estabilidade, a segurança, um porto seguro indispensável à tranquilidade dos civis. Uma segunda característica política sugerida pela cultura histórica do Orvil é o autoritarismo, ou seja, a negação da igualdade entre os homens e a defesa do princípio hierárquico, como define Stoppino (1998, p. 94). Desta postura ideológica derivaria, em nosso entendimento, a opção por construir a versão das Forças Armadas sem a preocupação de informar as fontes utilizadas, e muito menos de oferecer ao leitor a possibilidade de verificação da veracidade do que estava escrito; aparentemente, os redatores creem que sua condição de “autoridade”

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é suficiente para que suas palavras sejam aceitas pelo público leitor. Por fim, há que se ressaltar o elitismo, tomado na acepção de “teoria segundo a qual, em toda sociedade, existe, sempre e apenas, uma minoria que, por várias formas, é detentora do poder, em contraposição a uma maioria que dele está privada” (Bobbio, 1998, p. 385). No Orvil, o relevo dado à ação individual, sobretudo a dos líderes políticos e militares, e a pouca consideração à ação coletiva dos setores populares, revelam uma concepção em que a história é feita pelas elites, cabendo ao restante da população apenas aceitar estes caminhos e desempenhar o papel que lhe for destinado pelos grandes artífices do processo histórico. Esta identidade política, partilhada pelos comandantes militares brasileiros no momento histórico em que se construía a “Nova República”, expõe um sério entrave colocado, já naquele momento, ao desenvolvimento da democracia no país. As Forças Armadas, que constituíam uma das principais instâncias decisórias (se não a principal) daquele momento, mostravam-se refratárias a um modelo de transição que permitisse a abertura de rumos político-sociais essencialmente diferentes daqueles trilhados pelo país após 1964. Na busca de impedir que isso acontecesse, os militares mobilizaram a história, resultando na elaboração do Orvil. Porém, não bastava trazer o passado à tona: era preciso “pô-lo em forma”, fazê-lo marchar em ordem unida, sem contradições, ambiguidades ou lacunas, mesmo que, para tanto, fosse necessário ignorar e omitir elementos conhecidos pelos autores do relato, como as violações de direitos humanos praticadas pela repressão. Foi este o exercício praticado pelo Centro de Informações do Exército entre 1985 e 1988.

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O MÁGICO DE OZ: A INFLUÊNCIA DOS MITOS E ALEGORIAS NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO E CULTURAL DA MODERNIDADE

Stéfany Sidô Ventura 1

Introdução

A literatura é responsável pelo cumprimento de uma importante função social, pois expressa, reaviva, cria e recria mitos, estórias, histórias que alimentam padrões culturais, sociais e políticos influenciando os modos de presença do poder e da resistência. O Mágico de Oz foi escritor em 1900 por L. Frank Baum. Inicialmente voltado para o segmento infanto-juvenil o livro acabou se tornando um clássico literário. L. Frank Baum - norte-americano - (1856-1919) durante sua vida foi roteirista, escritor, editor, ator, produtor de cinema e dedicou-se a doutrina filosófica da Teosofia. Para além de “O Mágico de Oz” produziu 13 livros sobre a saga de Dorothy e seus companheiros (Espantalho, Homem de Lata e o Leão Covarde). A mais famosa obra de Baum alcançou reconhecimento mundial, popularizou-se e ultrapassou as expectativas de público por seu caráter fantástico e maravilhoso que integra elementos da magia, da ordem da natureza, bruxos, territórios e populações sobrenaturais e extraordinárias. Narrativas e obras literárias com este teor são produzidas e frutificadas ao longo dos séculos. De acordo com a perspectiva de Bettelheim (1979), um conto clássico inicia-se com uma situação mundana que contem algum problema e logo após entra em um mundo com situações fantásticas nas quais os acontecimentos têm fortes significados simbólicos. Neste sentido, o Mágico de OZ contempla este tipo de narrativa. A respeito disto Jacques Le Goff (2009) demonstra em seu livro “Histórias e Maravilhas da Idade Média” como este mundo fantástico e maravilhoso que integra elementos da magia, da ordem da natureza,

1 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email: [email protected] 243 bruxos, territórios e populações sobrenaturais e extraordinários.

O domínio do maravilhoso é a estupefação dos homens e mulheres da Idade Média. Ele suscita o maravilhamento e depende do mais bem exercitado e exaltado sentido do homem medieval: a visão. O maravilhoso fazia os olhos dos homens e mulheres da Idade Média arregalarem-se ao mesmo tempo em que estimulava o intelecto deles. (LE GOFF, 2009,p. 24)

A partir da revisão bibliografia de demais trabalhos produzidos sobre o Mágico de Oz (Littlefield, 1964; Martins, 2008) e principalmente seguindo os estudos produzidos sobre as raízes medievais (L E GOFF, 2007; 2009; S OARES, 2012; BLOCH, 1993) proponho- me a refletir sobre a iconografia, lendas, mitos o simbolismo dispostos tão fortemente na obra de Baum. Em uma análise do texto e contexto o esforço será no sentido de revelar como o Mágico de Oz remonta as origens, certas formas de poder, resistência e formação de comportamentos e pensamentos sociais e políticos presentes no cotidiano.

UMA ANÁLISE POLÍTICA PARA SE CONTEXTUALIZAR “O MÁGICO DE OZ”

Em 1964, Henry Littlefield publica o artigo “The Wizard of Oz: Parable on Populism” apresentando a alegoria da história contada em o “Mágico de OZ” com a realidade política e a crise econômica vivida pelos Estados Unidos e a Guerra Civil no final do século XIX. Neste sentido, alguns elementos do livro podem ser analisados, como por exemplo: T e m -se o Kansas descrito como um estado cinza, cujo os moradores não tinham perspectivas, um estado a parte das idéias de desenvolvimento, progresso e industrialização que era tão prezadas na época.

Quando Dorothy ficava na porta e olhava ao redor, ela não podia ver nada além da grande pradaria cinza dos dois lados. Nada de árvores ou casas interrompia o amplo espaço de campo liso que se estendia até o horizonte em todas as direções. O sol havia torrado a terra arada, transformando-a numa massa cinza com pequenas rachaduras. Até a grama já não era mais verde, porque o sol queimara a ponta de suas longas folhas até ganharem a mesma cor de todo o resto. A casa já tinha sido pintada, certa vez, mas o sol descascou a tinta e as chuvas a levaram embora, e agora a casa estava tão sem graça e sem cor como tudo à sua volta. (BAUM, 2011, p. 12).

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O Kansas é, de acordo com a interpretação de Littlefield, um estado primordialmente agrário com forte apoio ao Partido Populista (partido hegemonicamente composto por fazendeiros). Uma das pautas do Partido era a implantação do padrão bi metálico. Este bi metalismo (este padrão consistia na utilização do ouro e prata estabelecendo regras e preços de troca igual para ambos. Sendo assim, a circulação de dinheiro – papel-moeda – podia ser convertido para os dois metais). Isto aparece nas análises de Littlefield quando Dorothy, de posse dos sapatos de prata da Bruxa Má do Oeste, representação do poder bancário e especulativo, segue o caminho da estrada de tijolos amarelos (ouro). Os sapatos, durante o percurso da narrativa, têm seu grande poder oculto, fazendo-se conhecer somente ao final quando, são eles o grande trunfo para que Dorothy regresse a casa. Dorothy, com seu fiel cachorrinho Totó, seria a representação do americano comum. Ela seria o ideal: corajosa, equilibrada, sóbria e com um individualismo “saudável” que a torna persistente e focada.

Dorothy não disse nada, porque não estava certa sobre qual dos dois amigos estava certo, e ela decidiu que, se pudesse voltar para Kansas e para a tia Em, não importaria se o Homem de Lata ainda não tivesse um cérebro e o Espantalho não tivesse coração, ou que cada um conseguisse o que queria. O que mais preocupava é que o pão estava quase acabando, e outra refeição para ela e Totó iria esvaziar o cesto. Com certeza, nem o Homem de Lata nem o Espantalho comiam nada, mas ela não era feita de lata ou palha, e não poderia sobreviver sem comer. ( BAUM, 2011, p. 47).

Os parceiros de viagem de Dorothy são também apresentados na interpretação de Littlefield. O Espantalho seria a representação do homem do campo, que é considerado sem cérebro, pobre, desgastado, mas que ao longo do livro, mostra-se essencial para resolver as diversidades que se apresentam.

Dorothy apoiou o queixo na mão e olhou pensativamente para o Espantalho. Sua cabeça era um saco pequeno cheio de palha , com olhos nariz e boca pintados nele para representar um rosto. Um velho chapéu pontudo, que pertencera a algum Munchkin, estava enfiado em sua cabeça, e o resto da figura era um terno azul, puído e desbotado, que também fora recheado de palha. Aos pés havia botas velhas com faixas

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azuis, assim como as que todos os homens usavam naquela região, e a figura estava erguida acima das fileiras de milho pelo poleiro presa em suas costas. (BAUM, 2011, p.31).

Considerando esta interpretação, um elemento bastante intrigante na narrativa são as vestimentas do Espantalho. A noção de espantalho segundo a visão de Freitas (2009) no trabalho intitulado “Espantalhos: uma metáfora dos sujeitos” é:

Ele não encena, não move, não conta história alguma. Ele está lá, feito um cristo que morreu, e por um breve tempo, aparenta tudo ter capitulado. A começar pelo nome, a primeira evocação é a do espantalho, um espanto extenso, espant-a-lho. Sua situação indica solidão, abandono, mudez, resíduo total. (FREITAS, 2009, p.08)

O Homem de Lata é a imagem do proletariado industrial, que perdem seus sentimentos (a capacidade de amar) por trabalharem excessivamente nas indústrias.

Foi uma sorte terem esse novo companheiro, porque logo que começaram a jornada chegaram a um lugar onde as árvores e galhos estavam tão grossos sobre a estrada que não era possível passar. Mas o Homem de Lata começou a trabalhar com seu machado. E trabalhou tão bem que logo abriu passagem para todos eles. (BAUM, 2011, p.44).

O Leão representaria a William Jennings Bryan (Partido Populista) que candidatou-se cinco vezes a presidência e mesmo com toda sua eloqüência e persuasão não foi capaz de ser eleito, dado que não mostrava o mesmo entusiasmo durante o período eleitoral. Havia grandes apostas políticas sobre ele, mas, não se concretizaram. A representação de Bryan na figura do Leão Covarde seria uma espécie de sátira e alegoria ao próprio Partido Comunista Americano, que fazia muito barulho com baixa efetividade eleitoral.

Acho que nasci assim. Todos os outros animais na floresta naturalmente esperam que eu seja corajoso, porque Leão é visto por todos como O Rei dos Animais. Aprendi que, se eu rosnar bem alto, qualquer ser vivo se assusta e sai do meu caminho. Sempre que encontro um homem, fico morrendo de medo; mas, apenas rujo, e ele corre o mais rápido que pode. Se os elefantes, os tigres e os ursos tentarem me enfrentar, eu é quem devo fugir. Sou um baita covarde. (BAUM, 2011, p.51).

A decomposição, que acaba de ser feita, da obra de Littlefield serve como subsidio constitutivo e elucidativo da relação entre literatura, 246

cultura e política. Littlefield constrói bons argumentos a fim de explicitar o cunho político presente na obra. Observa como a cultura da época está nitidamente presente na obra (mesmo esta sendo uma alegoria fantástica, ocorrida em um mundo paralelo) e, principalmente, aponta para a importância e o vigor da literatura. Há uma indissolúvel relação entre literatura e sociedade como podemos observar na obra de Jean Yves Tadié (1992):

A sociedade existe antes da obra, porque o escritor está condicionado por ela, reflete-a, exprime-a, procura transformá- la; existe na obra, na qual nos deparamos com seu rastro e sua descrição; existe depois da obra, porque há uma sociologia da leitura, do público, que, ele também, promove a literatura, dos estudos estatísticos à teoria da recepção. (TADIÉ, 1992, p. 163)

A literatura é social. O escritor está impregnado com seus registros sociais, culturais, seus sentimentos e vivencias. A literatura constitui-se de uma retroalimentação: por um lado ela é a expressão do vivido, experimentado e do desejo e por outro ela pode cumprir diferentes funções como de manutenção, resistência, poder e criação. Através da literatura podemos reconhecer papeis e tensões sociais, as tônicas e as considerações de determinados assuntos. Enquanto ser social, o autor exprime idéias e noções, estas podem ser reformistas, conservadoras, religiosas, etc., que não são inatas, mas, sim construídas. A cultura pode ser observada aí. Estas construções de sentido, símbolos e imagens são sociais. Na visão de Antonio Candido

Uma tríade indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. Os artistas incompreendidos, ou desconhecidos em seu tempo, passam realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra. A obra, por sua vez, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contacto indispensável. Assim, à série autor-público-obra, junta-se outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige; é o agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-público. (CANDIDO, 1985, p. 38)

Neste sentido, podemos dizer que o autor nunca está só. Ele não escreve, somente, para a sociedade ele é parte integrante e fala por 247

crenças, segmentos e grupos contidos nela.

IDEIAS RESISTENTES

Para se pensar as ideias resistentes presentes na obra de Frank Baum, O Mágico de Oz, é importante tornar a noção de representação coletiva construída por Émile Durkheim como um dos marcos explicativos teóricos do trabalho. Essas representações coletivas são como funções sociais que categorizam o pensamento e o conhecimento socialmente produzidos.

O conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado, que tem sua vida própria; pode-se chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; ela está, por definição, difusa em toda extensão da sociedade. [...] Com efeito, ela é independente das condições particulares onde os indivíduos se encontram; eles passam e ela continua. [...] Ela é o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de desenvolvimento, assim como os tipos individuais ainda que de outra maneira. [...] As funções jurídicas, governamentais, científicas, industriais, em uma palavra, todas as funções especiais são de ordem psíquica, uma vez que elas consistem em sistemas de representações e de ações: contudo elas estão evidentemente fora da consciência comum. (DURKHEIM, 1978, p. 41)

Essas representações coletivas são frequentemente encenadas na literatura, potencializando assim, seu caráter duradouro e difuso. De certa forma, são essas representações coletivas que dão forma a estrutura, a mágica e mística da obra de Frank Baum. A dicotomia entre civilização e magia, a imagem arquetípica que se faz de personagens como os heróis, as bruxas, os monstros acompanham nosso imaginário mítico e imagético desde a Idade Média. As chamadas “ideias resistentes” são aqueles que resistem ao tempo, sendo vividas e recriadas por lendas, contas, histórias e estórias. Ideias que habitam, dão sentido e ordenação ao nosso imaginário, ao fantástico e ao fabuloso. Mas, para, além disto, estas ideias incorporam padrões de poder, resistência, qualidades e defeitos. Ao imaginarmos uma bruxa, um herói ou um mostro somos impelidos sobre o que podemos esperar de suas virtudes, suas posturas e suas aparências.

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Mas, de onde surgem essas construções? Proponho-me a recorrer a certas origens a fim de elucidar como chegamos a estes arquétipos (que enquanto culturais não são estáticos), mas, são importantes fontes para se pensar a política, a cultura e a sociedade de hoje através de expressões do passado.

CIVILIZAÇÃO VERSUS MAGIA

Dorothy – deixada pelo ciclone naquele desconhecido lugar - conta a Bruxa Boa do Norte, que vinha do Kansas. A Bruxa, confusa, diz estranhar o tal lugar que de onde a menina alegara vir. Neste trecho a Bruxa Boa apresenta um questionamento a Dorothy:

- Não sei onde fica o Kansas, porque nunca ouvi falar nesse país antes. Mas, me diga, é um país civilizado?

- Ah, é sim – respondeu Dorothy.

- Então está tudo explicado. Nos países civilizados eu creio que não existam mais bruxas, nem magos, nem feiticeiras e mágicos. Mas, veja só, a Terra de Oz nunca foi civilizada, porque estamos separados do restante do mundo. Por isso ainda há bruxas e mágicos entre nós. (BAUM, 2011, p. 20).

Com processo de racionalização, a partir da Modernidade, magia, religião e ciência são assumidas com novas posturas pela sociedade. Para Weber

A magia representa o momento anterior da religião, com nítida afinidade eletiva com o estágio “animista” de uma humanidade imersa num mundo cheio de espíritos, nem essencialmente bons, nem essencialmente maus, apenas capazes de influir de maneira favorável ou não na vida humana, habitando de maneira invisível um universo não dual (WEBER, 2004, p. 69).

O processo explicativo e de construção de ideias começa a transitar por outras formas, que não as mágicas, desencadeando a mudança no modus vivendi. O pensamento mágico foi a primeira resposta aos diversos questionamentos vividos cotidianamente pelos homens, era ele a explicação, a razão e a resolução. Este pensamento “primário” tinha base no maravilhoso, no sobrenatural, no desconhecido e no fantástico associado aos elementos regulares como a natureza e seus fenômenos (como espíritos dos

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animais, das plantas, dos antepassados, lugares mágicos, pessoas com poderes extraordinários que sabiam fazer a manipulação de porção para diversos fins, ideia de florestas que tomam a vida remonta a lendas celtas e medievais. Acreditava-se que as árvores possuíam espíritos, por isso, eram capazes de se expressar, mover-se, sentir dor e, em alguns casos, até conversar). Segundo Weber, a partir da Modernidade o pensamento mágico é substituído por um pensamento mais pragmático, empírico dotado de um caráter cientifico explicativo. Esse pensamento “racional” inicia uma nova forma de apreender o mundo e neste universo o pensamento mágico ganha um caráter mitológico.

Monstros

Em O Mágico de Oz há diversas representações de seres fantásticos por vezes com feições humanas ou animalescas como os Kalidahs que eram “feras monstruosas com corpo de urso e cabeça de tigre”. De acordo com a visão de Soares:

O mostro é a caricatura que mostra e assim, como o portento e o prodígio, expõe um sinal ou aviso. É uma figura de advertência. Seu exagero, tamanho ou estranheza garantem um senso de urgência a sua interpretação. (SOARES, 2012, p.189).

A ideia da monstruosidade está intimamente ligada a definições medievais onde “as figuras monstruosas apresentavam-se como construções compósitas, em que cada elemento trazia uma nova camada de sentidos possíveis e ampliavam seu sentido alegórico.” (SOARES, 2012, p. 188). Nos relatos das primeiras grandes navegações havia o constante medo do encontro das embarcações com monstros que viviam nas águas desconhecidas. Os monstros são uma espécie de materialização das situações de incerteza, da busca de aventura. Estão normalmente associados à transgressão de limites num momento de dubiedade. Na obra de F. Baum os monstros também devem ser entendidos neste sentido.O próprio Oz se apresenta de formas que desafiam as noções dos viajantes.

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(...) os monstros desempenham, reconhecidamente, um papel político como mantenedor de regras sociais. Grupos sociais precisam de fronteiras para manter seus membros unidos dentro delas e proteger-se contra os inimigos fora delas. (...) As fronteiras existem para manter medida e ordem; qualquer transgressão desses limites causa desconforto (...). O mostro é um estratagema para rotular tudo que infringe esses limites culturais. (JEHA, 1996, p.07)

Quando Dorothy o viu pela primeira vez, ele era “enorme cabeça, sem corpo para sustentá-la ou qualquer braço ou perna. Não havia cabelo na cabeça, mas ela tinha olhos, nariz e boca, e era muito maior que a cabeça do maior dos gigantes” (BAUM, 2011, p. 93). Para o Espantalho mostrou-se de “vestido transparente de seda verde e usava sobre os cachos verdes uma coroa de esmeraldas. Cresciam asas de seus ombros, de uma cor linda e tão leves que flutuavam o menor sopro do ar” (BAUM, 2011, p. 95). Para o Homem de Lata Oz se apresentou como uma fera terrível “havia cinco braços longos saindo de seu corpo, e também cinco pernas finas e compridas. Um pelo logo enrolado cobria cada parte do seu corpo; não se podia imaginar um monstro mais medonho” (BAUM, 2011, p. 97) e para o Leão Covarde viu que “havia uma bola de fogo, tão quente e brilhante que ele mal podia aguentar olhar”.

Os principais personagens da saga, Dorothy, Homem de Lata, Leão Covarde e o Espantalho, estavam em uma situação de hesitações e dúvida. A cada etapa de seu caminho, rumo ao incerto para alcançar seus desejos, os aventureiros se deparam com mundos, criaturas, avisos e provações desconhecidos.

O herói

De acordo com a visão de Jacques Le Goff (2009):

O termo “herói”, que na Antiguidade designava uma personagem fora do comum em função de sua coragem e vitórias sem que por isso ela pertencesse às categorias superiores dos deuses ou semideuses, desapareceu da cultura e da linguagem com a Idade Média e o Cristianismo no Ocidente. Os homens a partir de então eram considerados como heróis – sem que este termo fosse empregado – eram um novo tipo de homem, o santo, e um tipo de governante, promovido ao primeiro plano, o rei. (...) Os heróis de que se trata aqui são personagens de alto posto ou nível elevado que se definem não como santos e reis, mas de outra forma. O termo da linguagem medieval que mais se aproxima em francês

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antigo do que pretendo designar aqui é o adjetivo preux (corajoso, valente), que, no final do século XII, passa a ser substantivo. No século XII, o termo de onde vem a palavra prouesse (proeza) era associado ao valor guerreiro e à coragem, a na maior parte das vezes designava um homem destemido, um bom cavalheiro. No século XIII, ele modificou-se adotando principalmente o sentido cortês, gentil, belo, franco. (LE GOFF, 2009, p.15)

A autora Anna Faedrich Martins (2008) constrói em seu artigo “O percurso heroico de Dorothy” argumentos demonstrando como Dorothy pode ser tida com a representação de personagem heroico:

A trajetória heroica a ser analisada é aquela que Dorothy percorre em O Mágico de Oz. A intenção é observar como se dá o ritual da passagem da heroína, que passa por uma situação de iniciação – do não conhecer ao conhecer - , uma vez que Dorothy sai de uma condição inicial, passa por uma experiência e chega a outra condição. Através dessa jornada heroica, ela se conhece e se fortalece, pois a trajetória é, ao mesmo tempo, externa e interna. O movimento interno é a busca de si mesmo, e o movimento externo é uma descoberta do mundo. Ao descobrir a si própria e mudar o seu interior, ela muda a sociedade, o mundo exterior. Através do exercício de seu caminho, ela ajuda a coletividade (...). (MARTINS, 2008 ,p. 176).

Entre as aventuras relatadas na estória O Mágico de OZ encontra- se algumas atitudes e posturas da protagonista Dorothy que contrariam os princípios do herói e tendem ao do anti-heroísmo. Seu único objetivo na narrativa era voltar para sua casa no Kansas. As benesses alcançadas pelos demais personagens do enredo foram alcançadas, na grande parte das vezes, por mero acaso ou por méritos inerentes a cada um e não devido ao altruísmo da garotinha. Dorothy mostra-se muito mais preocupada e abalada quando algo se interpõe entre ela e seu caminho de regresso para casa. No capitulo em que Dorothy e seus companheiros fora encontrados pelos Macacos Alados a mando da Bruxa Má e estes “destroem” o Homem de Lata e o Espantalho causando a disjunção do grupo, Dorothy inicia sua vida de trabalhos no castelo da bruxa a única coisa que é relatado a respeito da tristeza que sentia era motivada “porque ela percebeu que seria mais difícil do que nunca voltar para o Kansas e para tia Em” (BAUM, 2011, p. 111). Outro interessante ponto da narrativa, encontra-se no capítulo “plantação mortal de papoulas” onde o grupo atravessa um rio com uma jangada, mas ,neste percurso o Espantalho prende-se e se 252

perde no rio. Dorothy e seus amigos seguem o caminho até que eventualmente reencontram o Espantalho. (...) Dorothy só parou uma vez para pegar uma linda flor. Depois de um tempinho, o Homem de Lata gritou:

-Olhem!

Todos olharam para o rio e viram o Espantalho empoleirado na vara, no meio da água, com uma cara muito triste e solitária.

-O que podemos fazer para salvá-lo? Perguntou Dorothy. (BAUM, 2011, p. 69)

Neste sentido, Dorothy não representa o imaginário do herói altruísta , tipicamente guiado pelos idéias de justiça, .liberdade, coragem e sacrifício. Esta tem sua construção mais aproximada do anti-heroísmo que apresenta falhas e qualidades durante seu percurso, buscando, primordialmente beneficio próprio.

O Trono

Outro ponto profícuo é a discussão sobre a imagética e a iconografia que circundam o “trono”. O trono é utilizado desde a Grécia Antiga como símbolo de poder real. Na Idade Média, de acordo com os estudos de Marc Bloch (1993) e Ernst Kantorowicz (1998) a imagem (imago) tinha uma utilização prática e hierárquica. Era utilizada como instrumento de dominação e reafirmação do poder (divino, monástico e político). O poder divino e político se confluíam na figura do Rei.

É um fato que a representação imagética dos monarcas na Idade Média em sua grande maioria, e principalmente após a coroação de Carlos Magno, foi investida de um caráter divino. De fato, sabemos que a maior parte – quase totalidade – da produção iconográfica do período possui como foco principal elementos religiosos. (KLANOVICZ; RODRIGUES; ANDRADE, 2009, p. 138).

De acordo com Le Goff (2007), os reis, durante todo o período medieval, construíram para si um forte apelo ao reconhecimento de seu caráter sagrado e religioso. A iconografia, utilizada em imagens em afrescos, tapeçarias e quadros para a representação do rei, em seu trono, confunde-se com a própria representação do Trono de Deus. Em O Mágico de Oz, o Grande Oz aparece em seu trono que

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“tinha a forma de uma cadeira, pontilhado com pedras preciosas” (BAUM, 2011, p. 93), assim como um rei medieval, associado àquele que e á habilidoso, poderoso, que possui bondade, mas, que também pode ser terrível (associação com o Deus cristão).

A bruxa

Para se pensar “a bruxa” tão presente na literatura e no imaginário infantil devemos nos remeter as chamadas bruxas da Idade Média. No medievo a mulher era subjugada ao marido e aos filhos. Havia por parte da Igreja a constante desconfiança sobre elas, pois, não mais sujeitas ao pecado que os homens e também os encaminhava a pecar com suas artimanhas. As mulheres, portanto, vivam passivas, no domínio da casa, sempre guiada por um homem para se manterem corretas. As mulheres desafortunadas que perdiam seus maridos ou não se casavam passavam grandes dificuldades (sociais e financeiras, pois, eram deixadas a margem). Muitas delas, para desviar-se da pobreza, dedicavam à manipulação das plantas com fins medicinais e a benzer e rezar para quem as procurasse. Essas mulheres subvertiam a lógica da moral cristã, social e cultural. Sobreviviam sem a presença de um homem (marido ou filhos), sustentava-se sem eles, possuíam grande autonomia e ainda praticavam uma sub cultura católica (que logo foi associada ao paganismo que era fortemente condenado) com suas rezas e bênçãos. Cresceu no imaginário popular uma série de superstições que implicavam que esta mulher “errante” fosse tratada como bruxa e era a personificação do mau. A bruxa na literatura está normalmente associada à escravidão e servidão de pessoas ou de todo um povo. Isto porque a Igreja e a sociedade entendiam que havia um grande poder de influência maléfica destas mulheres, unidas ao Satã, sobre as pessoas. Esse poder conduziria ao erro, submissão, subordinação e ao cativeiro. A “caça as bruxas” produzida pela Igreja católica tinha como intenção purgar a alma dessas mulheres que estavam entregues à

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ambição e aos propósitos do demônio. Segundo Custódio (2012)

(...) é inegável que a posição da mulher na sociedade medieval estava ligada a uma visão distorcida pela teologia, responsável pela criação de um imaginário negativo, segundo o qual a mulher teria inúmeras fraquezas físicas, morais e espirituais, sendo responsável pela perdição do gênero humano desde o princípio e contribuindo parar perpetuar o mal na sociedade. (CUSTÓDIO, 2012, p. 21)

Para se encontrar essas mulheres que haviam feito pacto com o Demônio procuravam sinais físicos como manchas, pintas e verrugas. Estes seriam os símbolos deixados por Satã nas quais havia consumado a união. Na narrativa criada por Baum está presente esta idéia da mulher má, que faz de um povo seus escravos, que tem objetivos perversos, que possui uma aparência desagradável, que tenta enganar e tirar vantagem das pessoas. Possui poderes e objetos mágicos que são utilizados a fim de fazer valer suas vontades malevolentes.

Histórias e personagens maravilhosos

Na estória escrita por Baum os principais personagens da trama têm desejos bastante específicos e enfrentam os desafio e perigos da jornada com o objetivo de alcançá-los. Fazendo uma analise comparativa alegórica temos: o Espantalho em busca de seu cérebro (inteligência, astúcia, raciocínio), o Homem de Lata em busca de um coração (sentimentos, paixão, compaixão, emoção), o Leão covarde em busca de coragem (bravura, valentia, audácia, poder) e Dorothy, juntamente com Totó, desejam o lar, a casa (território, residência, habitação, pátria). Cada um destes aspectos marca valores louváveis e desejáveis desde o Medievo. O esforço do Espantalho para achar seu cérebro, capaz de lhe dar o intelecto que para ele é essencial, nos remete a Renart, o raposo. Importante personagem dos contos e histórias medievais, Renart, é encenado nas Fabulas de La Fontaine como esperto, capaz de criar complexas estratégias a fim de satisfazer-se. De acordo do o historiador Jacques Le Goff “no imaginário medieval e europeu, Renart representa

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uma dimensão que os antigos gregos definiram com o nome de metis, sem terem criado uma personagem que lhe fosse correspondente.” (LE GOFF, 2009, p. 234). O Homem de Lata perde seu coração e seu dom de amar por um romance proibido, por restrições sociais e políticas, e acaba mal sucedido. Voltar a se apaixonar e sentir prazer com as pequenas coisas da vida é a motivação que o leva em busca da Cidade das Esmeraldas. Na lenda de Tristão e Isolda, a princesa (Isolda) é prometida para o tio e criador de Tristão, porém, o órfão e a filha da rainha da Irlanda bebem erroneamente o filtro do amor e se apaixonam perdidamente. Os amantes, então, são condenados a morte por este amor proibido. O Mito de Tristão e Isolda marcou profundamente o imaginário europeu: as imagens do casal e do amor foram muito influenciadas por ele, o filtro tornou-se o símbolo do amor a primeira vista e da fatalidade do amor, a história do trio associou fortemente a paixão ao adultério e, por fim, o mito enraizou no imaginário ocidental a ideia do laço fatal entre o amor e a morte. (LE GOFF, 2009, p. 275)

Semelhante enredo percebe-se na obra de Romeu e Julieta de Shakespeare. A coragem tão desejada pelo Leão Covarde (que deveria ser o Rei da Selva) apresenta na história de destemor e intrepidez de Robin Hood. Em sua trama Robin Hood, Robin de Locksley, filho do Barão Locksley, tem sua posição nobre revogada pelo sucessor de seu rei enquanto estava em batalha nas Cruzadas. Ao voltar e perceber as funestas mudanças ocorridas em sua terra natal ele torna-se “o defensor dos pobres e oprimidos, o homem da floresta, de um bando” (LE GOFF, 2009, p.250). Semelhantemente, o Leão ao “adquirir” a coragem desejada restaura a ordem em uma situação caótica ocorrida na selva, com valentia e determinação, e assume para si o posto de nobreza que lhe era de direito. O forte desejo de regresso ao lar, expresso por Dorothy, pode ser entendido como apego ao seu território, sua terra pátria e seus vínculos familiares. Esse anseio do retorno, de um lugar desconhecido para casa, fica bastante explícito em histórias sobre cavaleiros cruzados. Tomando por exemplo a lenda do Rei Artur pode-se encontrar características e 256

traços, tanto de personalidade quanto de propósitos, presentes também na personagem Dorothy. Artur era um líder astuto, um conquistador que possuía ajuda de Merlin (o mago) e de artefatos mágicos a fim de alcançar a vitórias nas batalhas, pois, só assim poderia regressar ao lar. Segundo Le Goff “como todos os heróis, e em especial na Idade Média, Artur está estritamente ligado a lugares. São lugares de batalhas, de residência e de morte”. (LE GOFF, 2009, p.40).

Conclusão

Ao longo do trabalho buscou-se sacramentar a relação entre a literatura, política e resistência através das representações coletivas ou na visão de Hanciau (2009) do “mental coletivo”. A literatura captará essa linguagem nos documentos e papéis, vestígios (traces) que fixam a ortodoxia cristã e nos quais podem ser encontradas as pegadas do universo mágico. Lembranças de lugares comuns e todo um manancial das mais diversas manifestações culturais constituem o “mental coletivo” de que se fala, no qual devem ser buscadas as continuidades, as perdas, as rupturas, enfim, a reprodução mental das sociedades. (HANCIAU, 2009, p. 76)

Este mental coletivo é capaz de fazer construções sociais, culturais e políticas. E sua característica mais importante é sua capacidade de ser durável e, por vezes, se transmutar para a continuidade de uma crença ou valor.

O imaginário transborda o território da representação e é levado adiante pela fantasia, no sentido forte da palavra. O imaginário constrói e alimenta lendas e mitos. Podemos defini-lo como o sistema de quimeras de uma sociedade, de uma civilização que transforma a realidade em visões ardentes do intelecto. (LE GOFF, 2009, p. 12)

Os elementos da obra O Mágico de Oz trabalhados são as expressões de “ideias resistentes”. Estas têm, normalmente, seu momento de fundação na Idade Média na Europa. Período de grandes e constantes guerras, das Cruzadas de “reconquista” à Terra Santa, ascensão da influência da Igreja católica na rotina cultural, social e política. Os territórios eram divididos em reinos, havendo a ausência de um Estado central, estes reinos muitas vezes lutavam entre si para conquista de poder e terras. As relações de suserania e vassalagem 257

garantiam não amigos, mas sim, aliados em busca de proteção e outros benefícios mútuos. Valores como coragem, astucia, força, fé e disciplina eram altamente desejados para a sobrevivência. A obra de Baum é construída sob este imaginário mágico/fabuloso popular. Seus principais personagens têm características e histórias bastante semelhantes aquelas constitutivas dos romances, trovas e jograis medievais. Segundo Le Goff “a história do imaginário permite atribuir à literatura medieval o seu lugar essencial na cultura, mentalidade e ideologia da época, e mais ainda na sua continuação através dos séculos.” (LE GOFF, 2009, p. 36) A protagonista da obra, Dorothy, apresenta valores heróicos medievais (um herói que é bom, mas, é humano e como tal tem imperfeições e tendem, em certos momentos, ao anti-heroísmo). A bruxa é a representação da “feiticeira” medieval que fisicamente dava indícios de sua maldade e estava socialmente a margem da sociedade. Essas mulheres, como dito, normalmente eram pobres, viúvas ou solteiras, que moravam sozinhas, se sustentavam e viviam sem a presença de um homem estando, desta forma, vulnerais aos intentos do Demônio. Essas ideias resistem no imaginário popular até os dias de hoje. A literatura tem a capacidade de expressar e reforçar essas ideias, ela perpassa o tempo e é habilidosa para influenciar ao ponto de formar “representações coletivas”. Estas podem se manifestar de diversas formas, no estigma associado às mulheres com alguma deformidade física, ou que não se casam e vivem sozinhas e reclusas, na forma do machismo ao retratar a necessidade da presença de um homem para estabilidade financeira e pessoal, assim por diante. Muitas destas ideias falam da penetração da Igreja e do dogma cristão na vida social, política e cultural. As “ideias resistentes” venceram o tempo, associaram-se a literatura e ao imaginário popular para influenciar várias gerações. Nos relatos e histórias originais há grandes diferenças dos produzidos hoje, pois, como a cultura não é estática produz novidades constantes sendo a mutação algo inerente. Mas, o que nos é perene são as idéias

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resistentes, as reminiscências do passado que ainda vivem.

REFERÊNCIAS

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TADIÉ, Jean Yves. A crítica literária no século XX. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. 1992.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do Capitalismo. São Paulo, Cia das Letras, 2004.

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AS REPRESENTAÇÕES DO 11 DE SETEMBRO E DAS POLÍTICAS ANTITERRORISTAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA MARVEL COMICS

Victor Callari 1

Introdução

Os atentados ocorridos na manhã do dia 11 de setembro de 2001 representaram mais do que a morte de 2.996 pessoas. Eles representaram um ataque à maior potência econômica do mundo, em uma ação íntima que solapou a crença na hegemonia americana alcançada desde o final da Guerra Fria e conhecida por Nova Ordem Mundial, além de terem derrubado um dos maiores símbolos do sistema capitalista e moldado o cenário das relações internacionais durante a primeira década do novo milênio. A magnitude e importância dos atentados foram percebidas por inúmeros intelectuais, tal qual o cientista político português Vasco Rato que afirmou: “As imagens de dois aviões chocando-se contras as Torres Gêmeas de Manhattan na manhã de 11 de Setembro de 2001 tornar- se-iam iconográficas, um dos mais marcantes símbolos da época contemporânea” (RATO, 2011, p.85), ou como o historiador britânico Eric Hobsbawm que, em entrevista concedida ao jornal Estado de São Paulo, disse: “a queda das torres do World Trade Center foi certamente a mais abrangente experiência de catástrofe que se tem na história, inclusive por ter sido acompanhada em cada aparelho de televisão, nos dois hemisférios do planeta” 2 . Aproximando-se do final do período Bush, o professor de literatura inglesa da Queen’s University, apresentou um

1 Mestrando em História e Historiografia na Universidade Federal de São Paulo sob orientação da professora Dra. Ana Lúcia Lana Nemi e professor de História e Linguagens e História Contemporânea no curso de História do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Contato: [email protected] 2 Eric Hobsbawm em entrevista concedida à jornalista Laura Greenhalg do jornal “Estado de São Paulo” no dia 11 de setembro de 2011. Disponível em: (acessado em 08/08/2012.). 261 preciso diagnóstico não apenas dos atentados, mas também de suas consequências: In the late twentieth century, the number “911” evoked associations of trauma and panic in emergency calls for help. Ronald Reagan even designated September 11th a “9-1-1 Emergency Telephone Number Day” in 1987. Exactly fourteen years later, the meaning of this number was dramatically overwritten to signify a much greater trauma: not only the surprise terrorist attacks on the architectural symbols of America’s economic and military might—the World Trade Center in New York City and the Pentagon in Washington D.C.—but also the normalized nightmare of twenty-first century history. The “post- 9/11 world” stamps itself in the daily news headlines with reports of increased violence and political turmoil worldwide, anxieties of global proportions, and the replacement of once-sacrosanct civil liberties with an unassailable regime of “security,” ostensibly to prevent further acts of terrorism. (SMITH, 2008, p.1).

Foi precisamente nesse contexto de privação dos direitos civis em prol da segurança da nação diante do perigo terrorista que a saga Civil War foi escrita e publicada. Busca-se, portanto, por meio desse artigo destacar a partir da análise do arco de histórias intitulado Civil War, da editora Marvel Comics, as representações acerca dos atentados do 11 de Setembro e das subsequentes políticas antiterroristas adotadas pela administração Bush, destacando as características específicas de linguagem da arte sequencial em sua construção narrativa.

Civil War, o 11 de Setembro e o antiterrorismo

Lançada entre os meses de Julho de 2006 e janeiro de 2007, a obra foi considerada um dos maiores crossovers3 produzidos pela editora Marvel, com repercussões em jornais e outros meios de comunicação de massa e alcançou ainda a maior tiragem de uma história em quadrinhos na década, perdendo seu posto apenas em Janeiro de 2009 para a edição que trazia o encontro do recém eleito presidente Barack Obama e o icônico personagem Homem-Aranha. As representações4 construídas pelos artistas responsáveis pela obra, Mark

3 Termo utilizado quando personagens de histórias diferentes ou mesmo de editoras diferentes aparecem em uma mesma revista. 4 Utilizaremos o conceito de “representação” tal qual ele vem sendo desenvolvido pelo historiador francês Roger Chartier, a partir do diálogo com as reflexões do sociólogo Pierre Bourdieu e do conceito de Habitus de Norbert Elias, considerando a 262

Millar e Steve Mcniven, foram supervisionadas pelo editor chefe da editora, Joe Quesada; suas escolhas tiveram conseqüências em todos os outros selos da editora, evidenciando a importância de coordenação e planejamento da equipe da “casa das ideias”. A história começa com uma equipe de televisão acompanhando um grupo de super-heróis - conhecidos por Novos Guerreiros - em seu cotidiano de combate ao crime, em uma espécie de “reality show” com o intuito de alavancar os índices de audiência da emissora e a popularidade da equipe, até então praticamente desconhecida. Com poucos quadros em cada uma das páginas, os artistas optaram por uma narrativa dinâmica, elipses escuras e diálogos curtos e objetivos; apenas quatro balões compostos nas primeiras sete páginas, precisamente para destacar a qualidade dos desenhos de Mcniven. Em uma ação impulsiva o grupo dos Novos Guerreiros entra em confronto com alguns supervilões mais poderosos do que eles reconhecidamente poderiam lidar. O resultado da ação inconsequente do grupo é uma explosão deflagrada pelo vilão Nitro, que culmina com a destruição de diversos quarteirões, uma escola e mais de “oitocentas baixas”, evocando de forma evidente a tragédia dos atentados de 11 de Setembro.

representação como uma categoria no qual a inteligibilidade do mundo real é organizada e se manifesta a partir das disposições dos diferentes grupos sociais que ora se tornam seus “construtores”, ora se tornam seus “receptores”, evidenciando assim, a disposição da dominação, da luta pelo poder e pelo controle do poder que se manifesta na tentativa das diferentes classes sociais de impor sua concepção e interpretação do mundo real. 263

Figura 1 – Ação “terrorista” do vilão Nitro no 1° volume da série Civil War

Uma das principais características da narrativa gráfica da obra pode ser observada na imagem 1, páginas metricamente divididas em quatro quadros com formatos retangulares em que alternam-se enquadramentos fechados, que privilegiam expressões denotadoras de sentimentos ou personalidade das personagens, com planos abertos capazes de intensificar a ação e seus resultados. A essa diagramação padrão intercalam-se páginas cheias ou duplas, além de pequenas variações da divisão quadro retangular tradicional.

264 Figura 2 – Página dupl a da destruição após o ataque. Edição 1 da série Civil War

A imagem 2, exemplo de páginas duplas na obra, já evidencia um dos elementos norteadores da trama que seria desenvolvida ao longo da série. Em lados opostos da imagem, encontram-se o Homem de Ferro e o Capitão América. Os dois personagens que dividiriam os super-heróis entre aqueles a favor da lei de registros e aqueles que passariam à clandestinidade, os dois são separados pelo Sol, desenhado no centro da imagem com o ponto de fuga conduzindo ao horizonte. A primeira página dupla da revista destaca a destruição perpetrada pelos supervilões e a ação dos super-heróis na tentativa de resgatar os sobreviventes. A explosão de Nitro, nesse momento, evoca enquanto representação a presença dos atentados terroristas ao World Trade Center, as vítimas inocentes e a incapacidade de defesa do governo dos Estados Unidos, reforçada pela bandeira destruída embaixo de um dos maiores símbolos da cultura estadunidense, um Capitão América de cabeça baixa, sem altivez e com o punho cerrado. Os fatídicos eventos do 11 de setembro aparecem aqui como eventos

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que escapam da possibilidade de controle até mesmo do mais preparado governo. O processo que se inicia após esse evento diz respeito à liberdade de atuação dos super-heróis dentro da sociedade. A atuação desregulamentada dos heróis passa a ser vista com receio pela sociedade civil que manifesta sob diferentes formas sua insatisfação diante da insegurança e do receio de viver não apenas entre vilões com superpoderes, mas entre heróis que não respondem publicamente por seus atos. Figuras 3 e 4 – Velório dos mortos no atentado. Edição1da série Civil War.

Nas imagens acima, é possível observar Tony Stark, o Homem de Ferro, sendo responsabilizado pela mãe de uma das vítimas durante o velório. A escolha por planos fechados permite o leitor acompanhar de perto as emoções de dor – por parte da mãe – e de surpresa por parte de Tony Stark pela responsabilidade a ele atribuída nos eventos. O último quadro da primeira página “emoldura” a ação com a imagem das vítimas, enquanto que na página seguinte é possível perceber a utilização de uma estratégia de substituição da figura do narrador –

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aquele que informa o leitor através das legendas – pela figura dos meios de comunicação como elemento comunicador das ações e do tempo decorrido na trama. O drama de uma mãe que perdera seu filho no atentado não é o único exemplo dado por Millar em sua trama. O temor e a revolta da sociedade civil, que responde sem ponderar sobre o acontecido, são retratados na sequência em que o personagem Tocha Humana é agredido por homens comuns na fila de uma boate.

Figura 5 e 6 – Sequência em que civis agridem o Tocha Humana. Edição 1 da série Civil War

As consequências cotidianas da ação dos Novos Guerreiros e o ataque terrorista do vilão Nitro colocam em lados opostos a sociedade civil e os super-heróis, a insegurança da população estadunidense faz com que ela se volte contra aqueles que a deveriam proteger, uma alusão direta ao clamor popular que pedia uma ação do governo logo após os atentados. Cabe ainda destacar o recurso gráfico utilizado por Macniven no primeiro quadro; a trajetória de fogo é a linha cinética que

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apresenta o caminho percorrido pela personagem, podendo-se ainda frisar a opção por tons de azul para evidenciar a luz artificial em frente à casa noturna, além é claro, de mais uma vez o último quadro reservado para a repercussão na mídia. Enquanto o governo procura responder à sensação de insegurança e acalmar as massas, os super-heróis são chamados a apoiar a proposta de lei de registros, que têm como objetivo colocar todos os super-heróis sob a tutela do Estado, obrigando-os a registrarem- se, revelar suas identidades secretas; e tornarem-se verdadeiros funcionários públicos; uma afronta aos direitos individuais e ao discernimento de cada um sobre quem ou o que representaria uma ameaça ao povo. Tal questão levanta uma referência ao Patriot Act5 e ao clima de tensão que se instaurou nos Estados Unidos após o 11 de Setembro, onde a suspeita de terrorismo permitiu ao governo deter suspeitos sem uma acusação formal por mais de setenta e duas horas, grampear ligações mesmo sem autorização formal da justiça, e investigar cidadãos estadunidenses denunciados por seus vizinhos apenas por possuírem ascendência árabe. O desenrolar da trama se desenvolve com o apoio de três dos mais inteligentes personagens da editora apoiando a lei de registro, o Senhor Fantástico, o Jaqueta Amarela e o Homem de Ferro, enquanto um grupo de dissidentes é formado por outros super-heróis, liderado pelo Capitão América.

5 Este é o nome dado ao ato H.R.3162, aprovado pelo Congresso norte americano no dia 26 de outubro de 2001. Em seu texto o ato é apresentado como “An act to deter and punish terrorist acts in the United States and around the world, to enhance Law enforcemente investigatory tools, and for other purposes” (Um ato para deter e punir atos terroristas nos Estados Unidos e ao redor do mundo, para melhorar as ferramentas de direito de investigação e outros fins” – tradução livre). Disponível em: (acessado em 20/03/2012.) 268

Figuras 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 – Sequência de 7 páginas, narrando eventos que colocam o Capitão América na clandestinidade. Edição 1 da série Civil War

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A sequência de imagens acima retrata um diálogo entre o Capitão América e a comandante da agência S.H.I.E.LD6 , agente Hill7 , desenvolvido dentro de uma base aérea da agência. A comandante anuncia ao Capitão América que a lei de registros é uma realidade e que conta com sua participação no controle daqueles heróis que eventualmente se tornassem dissidentes. Para a surpresa da comandante, e do leitor menos acostumado com a essência do personagem, o Capitão se recusa a lutar contra seus próprios colegas, colocando-se contra a lei de registros e contra o próprio governo dos Estados Unidos. A quantidade de balões de fala utilizados conduz o leitor a uma leitura mais atenta dos diálogos em um momento importante da trama, privilegiando nas primeiras três páginas a argumentação das personagens, e nas últimas três páginas a narrativa por meio da ação. No diálogo presente na segunda página, a comandante solicita o apoio do herói, enquanto esse responde: “você está me pedindo para prender pessoas que arriscam suas vidas por esse país todos os dias da semana”, a resposta vem de forma direta: “não, estou pedindo a você para obedecer o desejo do povo americano, Capitão”. A escolha dos planos fechados tem por objetivo destacar as expressões das personagens durante os diálogos e denota a ambiguidade da estratégia escolhida por Millar e Mcniven, pois quando a comandante faz uso do apelativo argumento da “vontade do povo americano”, o enquadramento em um plano contra-plongée dado ao Capitão América o favorece em detrimento do enquadramento linear dado à própria comandante. A luz que aparece acima da cabeça do Capitão, alternando tons de azul e branco, remete às cores de seu

6 A agência foi criada por Stan Lee e Jack Kirby, em 1966, e desde 1991 é traduzida como “Superintendência Humana de Intervenção, Espionagem, Logística e Dissuasão”. 7 “Originally from Chicago Maria Hill joined SHIELD and rose to the position of commander. After Nicholas Fury's "Secret War" Maria was chosen to be director of SHIELD by the President himself after he commended her on her work while she was stationed on assignment in Madripoor. Although many others who she herself admitted were better suited for position were not considered for directorship she was assigned director. It has emerged that Maria was chosen as the other candidates were "Fury Loyalists" and SHIELD needed "new direction". Disponível em: . Acessado em 25/11/2013. 271

uniforme e à bandeira dos Estados Unidos enquanto que o tom de vermelho ausente se manifesta nas janelas que iluminam o cenário da base aérea com o pôr do sol. Com o impasse das personagens os soldados presentes engatilham suas armas, o que pode ser percebido pelo uso da onomatopeia no quadro final da segunda página. A ação tem início na página quatro, fazendo uso de duas narrativas simultâneas desenvolvidas ao longo de toda a página cinco. No primeiro quadro, o personagem do Capitão América arremessa seu escudo com a mão direita, e nos quadros seguintes o leitor acompanha, de forma intercalada, o escudo atingindo soldados e armas enquanto o Capitão América luta contra outros adversários, terminando com o retorno do escudo às suas mãos. O impacto e os detalhes da luta são enfatizados graças aos planos fechados e ao uso das linhas cinéticas de ação, que dinamizam e dão movimento à cena. Na última página Mcniven faz uso, mais uma vez do recurso de linha cinética para demonstrar a trajetória e o movimento do personagem após sair pela janela até cair em uma aeronave, ao mesmo tempo em que se defende, com seu escudo, das balas disparadas pelos soldados. Nas edições seguintes a divisão dos super-heróis alude à própria divisão da sociedade estadunidense nos anos que sucederam aos atentados, a divisão daqueles que acreditavam ser necessário o Patriot Act, as guerras, invasões e medidas internas adotadas, e aqueles que acreditavam que mesmo a segurança nacional não justificaria uma afronta aos direitos individuais e a liberdade privada adquirida nos últimos duzentos anos de história. A escolha da divisão dos super-heróis em cada um dos grupos, além dos pequenos detalhes contidos na trama, aponta para um cuidado dos autores e da própria editora para não influenciar os leitores sobre quem eles deveriam apoiar, escamoteando seus posicionamentos políticos para as entrelinhas da história, obrigando o leitor a uma leitura minuciosa de cada um dos eventos, do enredo e também das narrativas gráficas.

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A última edição apresenta a Guerra Civil em seu momento mais violento. Os dois lados em conflito são teletransportados de dentro da prisão para o centro de Nova York, onde o combate ganha enormes proporções. Contra a legião de clones utilizados pelo Homem de Ferro, os dissidentes ganham o apoio de Namor e seu exército do mar. Nesse momento, os mais populares personagens da editora apóiam o Capitão América e os rebeldes, deixando o Homem de Ferro praticamente isolado. As páginas finais levam o Capitão América da vitória ao martírio, fazendo prevalecer a retidão moral e os valores que ele representa desde sua criação.

Figura 14 a 19 – Sequência da rendição do Capitão América. Edição 7 da série Civil War

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Dividida em cinco quadros a primeira página alterna diferentes planos e pontos de vista, utilizando de linhas cinéticas que indicam o movimento dos golpes desferidos pelo Capitão América contra o Homem de Ferro. O espaço para a fala do líder do governo indica o espaço de tempo de hesitação do herói rebelde diante da fragilidade de seu adversário, o tempo necessário para a intervenção de bombeiros, paramédicos e outros representantes da sociedade civil, que se jogam sobre os combatentes, porém não à favor de um e contrário ao outro, mas para chamar a atenção à violência e destruição que a Guerra Civil estava causando, tão ou mais violenta do que os próprios atentados, como pode ser observado na página três. O detalhe do escudo caindo ao chão demonstra a perplexidade do Capitão América que aparece em close up, no último quadro, com uma lágrima escorrendo do rosto. O herói vitorioso sacrifica-se em prol do bem comum, e, ao tirar a máscara, deixa claro que os valores que ele representa não poderiam ser presos ou derrotados. A imagem do Capitão América algemado, em primeiro plano, a expressão atônita dos outros heróis no fundo e o jogo de luz e sombras martiriza o personagem a partir de sua escolha ao mesmo tempo em que engrandece sua atitude. As últimas páginas da publicação são dedicadas à celebração do grupo “vitorioso”, da implementação do projeto Iniciativa - que tem como objetivo um grupo de super-heróis treinados e respondendo ao governo em cada um dos cinquenta estados da união – e da sagração individual de seus agentes. O Homem de Ferro torna-se diretor da S.H.I.E.L.D., Hank Pym capa da revista Time e Sue Storm volta para Reed Richards. Apesar da vitória do governo, e de uma última página que utiliza de tons dourados, iluminando a fala de Tony Stark de que “o melhor ainda está por vir”, as críticas construídas pela editora prevalecem e seu discurso político não se mantém neutro ou isento de posicionamento acerca das questões suscitadas pelo contexto em que a obra foi produzida.

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REFERÊNCIAS

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