TEXTOS FINALISTAS 2 — POEMA TEXTOS FINALISTAS m sua 6a edição, a Olimpíada de Língua Portuguesa envolveu mais de 42 mil escolas, de quase 90% dos mais de 5 mil municípios do Brasil. Participaram educadores, estudantes e instituições das 27 unidades da federação. EForam mais de 85 mil professores inscritos. Os números falam por si só: mostram o tamanho da mobilização que acontece até chegarmos aqui, nos 172 estudantes finalistas que têm suas produções partilhadas nesta coletânea. Depois das etapas Escolar, Municipal e Estadual, esta publicação coroa a Etapa Semifinal e traz uma saborosa amostra desse concurso, que ainda tem sua etapa final – a Nacional. É muita história para contar. Em prosa, em verso, em palavra de opinião, de recordação e, agora também, em imagem e som. O percurso todo da Olimpíada é entremeado por oficinas apoiadas pelos Cadernos do Professor (disponíveis em www.escrevendoofuturo.org.br), por recursos didáticos, cursos on-line, encontros, atividades culturais, eventos formativos e ações de reconhecimento. Essa série de iniciativas, voltadas a professores e alunos do 5o ano do Ensino Fundamental (EF) ao 3o ano do Ensino Médio (EM), sustém um propósito norteador: contribuir para a melhoria do ensino e da aprendizagem da leitura e escrita nas escolas públicas de todo país. A Olimpíada integra as ações desenvolvidas pelo doutora em Letras e pesquisadora na área das literaturas Programa Escrevendo o Futuro, criado em 2002 pelo Itaú africanas e afro-brasileira, ela cria sua obra com base Social e pelo CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas no que chama “escrevivência”, que define como escrita em Educação, Cultura e Ação Comunitária –, tornando- que nasce do cotidiano, da experiência pessoal e das -se política pública em 2008, por meio da parceria com lembranças. Sua escrevivência, portanto, não poderia ser o Ministério da Educação. mais inspiradora aos participantes da Olimpíada, que são Após um período de redesenho, a 6a edição chega instigados a partir do tema “O lugar onde vivo”. com duas grandes novidades. Uma delas é o gênero À medida que leva os alunos para perto de suas Documentário, que propõe a alunos de 1o e 2o anos comunidades, “O lugar onde vivo” estimula a sensação de do EM criar uma produção audiovisual. Os gêneros das pertencimento, o desenvolvimento do olhar crítico e um edições anteriores se mantêm: Poema, para o 5o ano conhecimento mais aprofundado da realidade local – além do EF; Memórias literárias, para 6o e 7o anos do EF; de ser matéria-prima inesgotável de criação! Crônica para 8o e 9o anos do EF; e Artigo de opinião, O convite para esquadrinhar seu próprio canto Brasil para o 3o ano do EM. afora (e Brasil adentro) inspirou poemas, trouxe à tona A outra novidade é que em cada edição será memórias, formou opiniões, sublinhou cotidianos, aguçou homenageado um autor brasileiro. Quem abre alas olhares e, agora, chega ao leitor que, página a página, é a premiada escritora e também educadora mineira caminha pelos lugares onde vivem estes jovens escritores. Conceição Evaristo. Autora de sete livros, mestre e Boa leitura! Poema 11 Memórias literárias 43 Crônica 123 Artigo de opinião 203 Documentário 247 Poema

s próximas páginas trazem poemas de estudantes de 5o e 6o anos do Ensino Fundamental sobre o lugar onde vivem. Após semanas de expiração A e inspiração, durante as oficinas que compõem a sequência didática da Olimpíada de Língua Portuguesa, vieram os versos que, aqui se vê, podem brotar de lugares grandes e ao mesmo tempo pequenos. E também de chão altaneiro. De cidade que até no nome tem luz ou da simples ideia de escrever com rima sobre Petrolina. De uma aldeia de camarás ou de um exótico mutum lá de Utinga Leão. Da pintura de um pedaço de pão ou mesmo de um pedacinho de nossa nação. De água de cachoeira correndo pelas veias ou do balançar do tempo no vaivém da cadeira. Dos quatro cantos de Sertãozinho ou da Cohab e as doze paradas da condução. De Belo Horizonte vista da janela ou mesmo da linguiça, da santa missa e da novena na capela. Da tribo dos Manaós ou até de um raio de esperança para todos nós. Vale um passeio atento por esse verdadeiro jardim sensível, colorido, poético e sonoro, com poemas de alunos-autores, orientados por dedicados professores! POEMA 22 QUANDO OS 31 PRAIA SAHY, Índice IPÊS VOLTARAM GOSTO DAQUI A FLORESCER... Samara de Maria Eduarda Souza Melo 14 DE GALHO EM Azevedo da Cunha GALHO, EM UM 32 O CONTO DOS PORTO SEM MAR 24 NOS DEZ DE QUATRO CANTOS Débora Raquel GALOPE LÁ Emanuelly Araújo de Sousa Reis NO MEU LUGAR de Oliveira Davi Henrique Teófilo 16 O RIO DA MINHA de Azevedo Lima 34 O ÔNIBUS CIDADE FEITORIA COHAB Antony Novack 26 MINHA CIDADE, Vitória Eduarda Bertan MENINA FACEIRA Ferraz Frutuoso Jefferson Kauãm 17 PRINCESA Lopes de Santana 36 DA JANELA DO SERTÃO DE MINAS Maysa Evelyn 27 ENTRE A BELEZA Nicole Rodrigues Nascimento Araújo DO MEU LUGAR Florentino HÁ UM MUTUM 18 QUE BELEZA Nickolas Henrique 38 CIDADE DE LUGAR! Gomes da Silva DO TESOURO Marina Gujanski Yêda Maria Oliveira Schmitd 28 PEDACINHO DA Aguiar NOSSA NAÇÃO 19 TRILHOS DO TREM Miguel Medina 40 O POEMA Heloisa Aparecida Soares DA CACHOEIRA Ribas Dawidysom Pereira 29 A TELA de Oliveira 20 MORO EM Mayra Lourrana UMA CIDADE... de Souza Silva 41 MINHA MORENA E Kalleo Klark Buenos ADORADA MANAUS Aires Carneiro 30 MEMÓRIAS Heloisa Bernardo DE GUARIROBA de Moura Gustavo Gabriel Domingues DE GALHO EM GALHO, EM UM PORTO SEM MAR

Débora Raquel de Sousa Reis

Na cidade de Teresina, Mas de galho em galho Da bonita goiabeira, Do caminho até em casa, Te apresento meu lugar. Tento curtir a minha infância. Vejo a casa da tia Cássia. As cadeiras já na calçada, No topo dos altos morros, Prefiro subir nas árvores Lá tem um salão de beleza Como é grande o blá blá blá! Perto do céu alcançar, Do que me perder na ignorância Onde ela faz a sua mágica: A fofoca foi lançada: Abaixo dos raios de sol: De cair no mau caminho, O vaivém da tesoura, “Você soube da Maria?” Um bairro irá encontrar. Esquecer minha importância. Linda é a sua prática. E começam as risadas.

“Porto do Centro” é o seu nome. Do alto do cajueiro, Finalmente, subo na mangueira. A noite já transbordou Não tem lago, rio ou mar. Vejo em cada esquina Minha árvore preferida! Quando cruzo o meu portão. Cais, só se for de córregos, Passos para a igreja. Fico perto das nuvens, A rotina é sempre a mesma, Que choram no meu lugar. Cada um com a sua sina, Dos pássaros e suas cantigas. Mas satisfaz meu coração. Sobre eles, falsas pontes Que eu fico a observar Converso até com Deus, Minha mãe já está em casa, Pra você atravessar. Com meus olhos de menina. Não preciso ser contida. Cansada do seu rojão.

Entre as ruas estreitas Do alto do pé de tamarindo, Quando o sol vai se pondo, Mais um amanhecer chega E os becos sem saída, Vejo o entra e sai do mercado. Pro chão tenho que voltar. Nesse bairro peculiar. Encontramos árvores A venda sempre cheia, E vejo o que de cima evito: Sou feliz na simplicidade, Que dão cor e vida As mães com seu trocado. O enorme escarcéu do bar. Com o dia a dia do meu lugar. Ao meu chão batido, O choro pelo pirulito, “Homens! Vamos acordar?” Deixa-me ir de galho em galho À minha gente sofrida. Os dizeres engraçados. Viver é melhor que se embebedar. Apreciar meu porto sem mar.

Professora Cristiane Raquel Silvia Burlamaque Evangelista EM Lindamir Lima, Teresina-PI

14 — POEMA POEMA — 15 O RIO DA MINHA CIDADE PRINCESA DO SERTÃO

Antony Novack Bertan Maysa Evelyn Nascimento Araújo

Do lado da minha casa Minha cidade é conhecida “Petrolina” foi o nome que ganhou, Mas nem tudo é perfeito, Passa um rio encantado Pela extração do carvão mineral quando, em 1895, cidade se tornou. essa terra é terra de povo guerreiro! Quieto, manso e pequeno Porém, a fama se esconde, enegrecida E pensar... Que de uma pedra Muitos direitos já foram tomados Onde navego meu barquinho acalentado. Nas águas profundas do canal. sairia cidade tão bela. de quem só queria estudar! Lágrimas caíam do rosto do vaqueiro, Lá no morro da TV Canal este que, em parte, foi escondido Mas é tão bela, tão bela, de ver o “Velho Chico” secar. Na cidade de Criciúma Para dar lugar às construções que uma câmera é incapaz de retratar. O rio Linha Anta nasce Perderam-se o leito e o caminho Em tu corre o famoso “Velho Chico”, Terra seca, chão rachado, E desce as serras, uma a uma. Encontraram-se problemas e inundações. Catedral bela que todos podem apreciar. suor descendo do rosto. Ô, ô, ô, ô, ô Pai! Nasce limpo, é água das chuvas Meu pai é agricultor Cultura rica? Ha, ha, ha, essa não pode faltar! Se é que posso te pedir de novo... Que a terra filtrou E precisa de água do rio para plantar Tem frevo, São João, capoeira Abençoa esse humilde povo! Cria leitos, faz curvas Como dessas terras sou herdeiro imperador, e as comidas típicas pra completar! Cumpre o que seu destino mandou. Esse rio terei que, para o meu futuro, Tem cuscuz? Tem sim! E assim finalizo a minha rima, Resguardar. E baião? Chegue logo, meu irmão! com enorme e grande alegria. Sua missão é encharcar a terra, Venha logo, se avexe! De contar a história de uma pequena vila, Matar a sede do homem e da plantação. Linha Anta é o seu nome Venha admirar as belezas que Petrolina merece que, hoje, é conhecida como Petrolina! Mas no caminho algo erra Passa por mim sempre fiel e tem para lhe mostrar! É começo de poluição Passa por casas, passa por pontes E no seu ensejo encontro Leva o meu barquinho de papel. Lixo, esgoto e carvão.

Professora Maria do Perpetuo Socorro Granja Campos Vieceli Professora Joyciane Vidal Gonçalves EM Felix Manoel dos Santos, EMEF Jorge da Cunha Carneiro, Criciúma-SC Petrolina-PE

16 — POEMA POEMA — 17 QUE BELEZA DE LUGAR! TRILHOS DO TREM

Marina Gujanski Schmitd Heloisa Aparecida Ribas

Vizinhos distantes Seriema canta no alto do morro Este chão altaneiro Meus avôs Cada um em seu terreno Quando o sol está brilhando Que tão bem eu quero Nesses trilhos trabalharam Sobe morro, desce morro Saracura canta no brejo Teve seu passado marcado E na ferrovia se aposentaram... Lugar grande e, ao mesmo tempo, pequeno. Inhambu, na noite que vai chegando. Pela estrada de ferro. Mas por algum motivo, o trem parou. Terreno grandão No lugar onde vivo Estrada de ferro tão comprida E por aqui não mais passou... Casinha pequenina Tudo é verdadeiro Por aqui o trem passou Num lugar afastado A verdura vem da horta Trouxe muitas histórias A paisagem então mudou... Pai, mãe e uma menina. E a galinha do terreiro. E várias vidas marcou. Na ferrovia Girassóis amarelos Lugar de vida bem vivida O trem trouxe o trabalho O mato cresceu... Grilos e sapos cantores Paz e alegria Para o pobre operário... E a estação virou museu. Formigas e vaga-lumes Onde tudo é bem tranquilo O trem trouxe a devastação Todos juntos são uns amores. E cheio de harmonia. Para a rica vegetação... E hoje quando eu vejo O trem trouxe o soldado A estrada de ferro esquecida Os canários invadem a horta Para lutar no Contestado... Fico triste, pois ela faz Também tem araçari O trem trouxe o Capitão destemido Parte da minha vida! Na jaqueira vem papagaio Que por um jagunço foi atingido Nos coqueiros, bem-te-vi. E aqui então morreu... Ah, se o trem voltasse... Em sua homenagem Só para eu poder dizer também: Seu nome a cidade recebeu. — Menina, vem ver o trem! O trem trouxe agitação Para a pequena estação! Professora Valéria Rodrigues dos Santos Gonring EMEIEF Visconde de Inhaúma, Professora Luciana Aparecida Skibinski Santa Teresa-ES CE Professora Ana Maria de Paula, Matos Costa-SC

18 — POEMA POEMA — 19 MORO EM UMA CIDADE...

Kalleo Klark Buenos Aires Carneiro

Moro em uma cidade Moro em uma cidade Moro em uma cidade Moro em uma cidade Que até no nome tem luz De um povo trabalhador, Com um calçadão no mercado Onde xote, baião e forró E é na época do Natal Onde a profissão mais popular Onde vendedores ambulantes Tradicionalmente embalam Que a esse nome mais faz jus. É a de pescador. Armam barracas pra todo lado. O vovô e a vovó. Cheia de luzes natalinas, Que ao lançar a rede, Principalmente às sextas-feiras, No Centro dos Idosos, Luzilândia, como é chamada, Buscando o pão de cada dia, Das bancas sai a mercadoria O baile da melhor idade Parece uma constelação Faz movimentar também Que abastece a geladeira Desatrofia as “juntas” De tão iluminada! A nossa economia. Da casa da dona Maria. E ainda traz felicidade.

Moro em uma cidade Moro em uma cidade Moro em uma cidade Moro em uma cidade Com um rio muito importante. Bonita por natureza. Que tem festa o ano inteiro: Cujo hino tem um refrão Ele mata a sede e a fome São vários cartões-postais Festejos de Santa Luzia, Que é um verdadeiro De todos os habitantes. Que mostram essa beleza: São Francisco, São Pedro. Canto de exaltação! Sendo assim, então, Monumento do Pescador Fevereiro é carnaval, Encantado, canto a canção Estou certo de que não há E Igreja de Santa Luzia Junho e julho, São João. Do lugar onde nasci: melhor lugar para morar. Representam nossa cidade Março é aniversário “Luzilândia, berço amado... Em belas fotografias. De sua emancipação. Rainha do Piauí”. Moro em uma cidade Onde o braço do rio Parnaíba Moro em uma cidade Abraça peixes que todo ano Onde a paisagem se transforma. Vêm rio abaixo, rio arriba, Na estiagem, bancos de areia Encontrar com pescadores, No meio do rio ganham forma. Com seu João e seu José, E na margem, o Porto das Pedras, Com Antônios e Franciscos, Antes coberto pela enchente, na barragem do igarapé. Ressurge, como dizendo: Professora Léia do Prado Teixeira “Eis-me aqui novamente”. UE Tia Zuleide, Luzilândia-PI

20 — POEMA POEMA — 21 QUANDO OS IPÊS VOLTARAM A FLORESCER...

Maria Eduarda Azevedo da Cunha

Goiânia, cidade tão bela Ruas, casas e parques a embelezar Ficou uma tristeza As estrelas a dançar Pintada de verde, azul e amarela Essa cidade de arrasar Que cobriu de cinza aquela natureza Em um brilho de arrasar Essa cidade é uma beleza Cidade grandiosa E aquela cidade colorida Leide das Neves subiu Ruas, casas e natureza De paisagem maravilhosa Se preencheu de muita cinza E seu olhar reluziu

O sol tão amarelo Tudo isso é um cenário Aquela linda radiação A tragédia acabou Sol cor de caramelo Para o grande aniversário Falava para o coração Goiânia voltou Lindos pássaros a voar O azul do céu brilhante Você tem que mexer Voltaram as flores E paisagens de arrasar Um brilho impressionante Ou vai enlouquecer Todas de lindas cores

Começo a me impressionar E com tudo sendo preparado Césio foi marcante, então Os ipês começaram a florescer Sempre que estou a pensar Um desfile para ser realizado Em toda a população Ah! Como era lindo de se ver Pois quando fica escuro Todo mundo ficou olhando Aquele azul brilhante De dia o sol a raiar As estrelas fazem brilho puro Mas cadê aquele encanto? Que trouxe uma dor dilacerante De noite estrelinhas a brilhar

Era primavera Não era um desfile legal Nossa cidade tão querida Trinta anos se passaram, então Enfeitando toda a terra Na verdade era um funeral Que ficou sem muita vida E foi ensinada uma lição Na natureza especial Depois de abalada Aquele brilho não dava sortes Um brilho que mostrava ter riqueza Da cidadezinha sem igual Goiânia foi cercada Mas, sim, muitas mortes Deu prejuízo à natureza

As flores espalhando no céu No desfile era levado Aquele brilho do mal E aquela cidade especial Um perfume como mel Um caixão de chumbo pesado Trouxe uma dor mortal Continuou sendo a mais legal A coisa que impressiona quem vê Onde vinha Leide das Neves Aquele brilho reluzente Adorada pelas pessoas São os grandes e lindos ipês E acabaram as pessoas alegres Matou muita gente Com seus parques, casas e lagoas

Professora Lilian Sussuarana Pereira 22 — POEMA EM Frei Demétrio Zanqueta, Goiânia-GO POEMA — 23 NOS DEZ DE GALOPE LÁ NO MEU LUGAR

Davi Henrique Teófilo de Azevedo Lima

Lá por detrás das árvores, vinha o sol Perto de Natal, capital do Estado A água corria por baixo da ponte Iluminando a rua de minha casa, Se chama Bom Jesus. Oh, nome bonito! E uma brisa fria batia em meu rosto O astro esplêndido quente feito brasa, E por Frei Damião esse nome foi dito De felicidade, fiquei inteiro posto Levantava no céu feito um farol De um povo ordeiro e bastante educado Que de alegria aquilo era fonte E o belo cantar de um rouxinol Se fores prá lá ficarás encantado Eu olhei atento para o horizonte Que eu acordei pra só ele escutar Alegria nas rimas sempre irei botar Vi que o sol estava pronto pra se deitar E por alegria, começou a cantar E na nossa feira comecei a andar E na água fria eu fui me banhar Na caveira de um boi fez ele o seu ninho Falei com os feirantes com grande harmonia Olhei pro arrebol com concentração Comida trazia pra o seu filhotinho E vou caminhando com muita alegria Minha Bom Jesus é a inspiração Nos dez de galope lá no meu lugar. Essa que é a feira lá do meu lugar. De eu fazer galope lá no meu lugar.

Vendo o sol nascer botei uma veste Saindo da feira eu fui lentamente E tive a ideia de escrever com rima E para a igreja agora estava indo E muito prazer, eu sou Davi Lima Olhei para ela alegre, sorrindo Sou de Bom Jesus, aqui no meu Nordeste E os meus versos fluindo da alma, da mente Também sou poeta, Antônio é meu mestre Com muito cansaço sentei no chão quente O poeta que sempre faz-me inspirar Olhando a igreja comecei a orar Com muita alegria eu vou retratar Pedindo pra Deus me abençoar O amor que tenho pelo meu sertão E sob o sol ardente segui minha jornada E vou escrevendo com muita emoção Com Deus me guiando nessa caminhada Meu lugar que eu amo, e sempre vou amar. É a fé que guia neste meu lugar.

Professor João Soares Lopes EE Natalia Fonseca Ens 1º Grau, Bom Jesus-RN

24 — POEMA POEMA — 25 MINHA CIDADE, MENINA FACEIRA ENTRE A BELEZA DO MEU LUGAR HÁ UM MUTUM

Jefferson Kauãm Lopes de Santana Nickolas Henrique Gomes da Silva

Todas as cidades têm sua história, De estradas estreitas e ladeiras, O lugar onde eu moro é maestral Ave exótica e diferente A da minha guardo na memória. Dos trens ao metrô de agora. Com uma paisagem que nenhum lugar tem igual Não foi fácil de encontrar Minha terra de luz e calor, Minha cidade, menina faceira, Tranquilo e aconchegante E a trouxeram com cuidado Camaragibe que assim começou. Daqui não vou mais embora. É um lugar deslumbrante Pra enfeitar esse lugar

De uma aldeia de camarás, Pois de histórias e contos que vivo, Cana entre floresta O lugar dessa ave é na natureza Com um rio correndo pro mar. Misturei minha vida nesta teia. Indústria com plantação Vivendo livre e sem tristeza De um engenho de canaviais, Deste meu lugar que é tão lindo Casas com gente simples E quem sabe um dia Que nasceu este meu lugar. E fez-se de uma pequena aldeia. Assim é Utinga Leão Da janela da minha casa Possa vê-la cantar com destreza De escravos e senzalas sombrias, Eita, lugar bom pra brincar! De estradas de barro e carros de boi, Pra correr e caminhar Com o homem respeitando o bicho De uma fábrica e uma vilinha, Quer ver os animais? Eles se multiplicarão Camaragibe do tempo que foi. Vem pra cá, tem muito mais Aqui e no mundo inteiro É o desejo do meu coração De cantos e recantos tão belos, Dentre todos os animais, um é especial De uma rosa assim pequenina Tô falando do mutum, que por aqui veio viver Pois de Alagoas virou símbolo Brincando livre pelos quintais, No viveiro ambiental, tem um cantinho especial No cordel virou beleza Nas mãos de alguma menina. Quem vem a Utinga Leão, sua história quer conhecer Agora tudo que precisa É ser feliz na natureza

Professora Maria Natália de Araújo e Silva Cordeiro Professor Geraldo Ribeiro Bessa Neto EM Jardim Primavera, Camaragibe-PE EMEF Marieta Leão, Rio Largo-AL

26 — POEMA POEMA — 27 PEDACINHO DA NOSSA NAÇÃO A TELA

Miguel Medina Soares Mayra Lourrana de Souza Silva

Em sua origem Tem belezas naturais Pintei meu chão Sonho em pintar Vitória há uma guerra, na estrada Apaporé, Na folha do caderno, Com roças e pastos fartos. famosa no Brasil. rios com suas águas cristalinas Pintei a alegria do verão E pintar o rio de histórias, Patrimônios históricos, nos chamam E a tristeza do inverno. Belezas, cultura e farturas, um povo heroico para molhar os pés. Pintei um pedaço de pão Porque não quero pintar como jamais se viu. Que não tenho em minha mão. Uma roça de amarguras. É inegável seu valor cultural. Resultado da miscigenação de A mim resta dizer nestes versos Pintei minha casa, Ah! Como quero pintar brancos, que Bela Vista é de paz, calmaria e diversão. O pinto que pia solitário. Uma vida de céu azul índios guaranis, Um pedacinho da nossa nação Pintei o gato grandão Nas roças da cidade paraguaios, e cabe inteirinha no meu coração. Que pinta no telhado. De Vitória do Xingu. negros E pintei um pedaço de pão Ah! Como quero que, juntos, enaltecem nossa nação! Que não pinta nem salgado. Pintar essa tela.

Em nossa cultura resplandece: Pintaria minha Vitória Essa quero pintar e ler sopa paraguaia, Com tom de alegria, No meu velho caderno, chipa, Não fosse a necessidade Pra ficar de tom eterno, caburé, Que pinta no dia a dia, Pra que a paz possa pintar e, claro, o nosso apreciado tereré! Desde o nascer do sol Na terra e no teto o prazer Até o pintar da noite. De ver a tela do meu lugar.

Professora Patrícia Lima Figueiredo Ortelhado Professor Edio Wilson Soares da Silva EE Castelo Branco, Bela Vista-MS EMEIEF Daniel Berg, Vitória do Xingu-PA

28 — POEMA POEMA — 29 MEMÓRIAS DE GUARIROBA PRAIA SAHY, GOSTO DAQUI

Gustavo Gabriel Domingues Samara de Souza Melo

No vaivém da cadeira Aqui há lembranças Onde eu moro Sinto o tempo balançando E uma capela mui bela se chama Sahy, O retrato na parede Onde meus pais se casaram gosto muito daqui. Pensamento esvoaçando E fui batizado nela Todas as coisas dá para se divertir. À sombra da guariroba Tem o caminho das borboletas Clic! Todos sorrindo Por onde andamos a passear Gosto das águas da cachoeira Uma foto de família Ao lado de grandes amigos que correm pelas veias. Vejo os anos sacudindo Um bosque para admirar Das pedras que a água engole. Das árvores que embaixo posso ficar. Terra do meu avô Por gerações Do verde que se enrola nos postes Chegou ainda pequeno Este lugar irá nos marcar como se fossem cobras. No lugar em que nasci Agora tenho um irmão Aconchegante e ameno Quantas histórias para contar Das plantas, como ouriço do mar. Das praias que tenho pra nadar, Dizem os vizinhos do sítio Fazenda Guariroba como se fossem montanha russa. Que a casa era uma escola Lugar de imensa beleza Da areia feito alfinete a espetar. E no tempo de menino Morar nela, privilégio Das ondas como carro que não consegue descansar. Trocavam o livro pela bola Ah! Como é bela a natureza! Do canto dos pássaros a brincar. Mas com um puxão de orelha Do dançar dos pássaros, que me faz viajar. Retomam o fio da história Do céu, quando olho, parece o fundo do mar. Nos traçados do caderno Dessa beleza ímpar! É que conseguiram vitória Ah... Professora Vanda Valéria Morales Fassina EMEB Professora Marli Aparecida Borelli Bazetto, Como amo esse lugar! Professora Ionar de Oliveira Pedro Valinhos-SP EM Vale Do Rio Sahy, Mangaratiba-RJ

30 — POEMA POEMA — 31 O CONTO DOS QUATRO CANTOS

Emanuelly Araújo de Oliveira

Diante do meu minúsculo quarto As histórias por cá Transponho-me no tempo Por uma janela pequenina Aos quatro cantos se contam A um canto mais distante Avisto desenhos no céu Esquecer não sou capaz Que como teia entrelaçada Com meu olhar de menina Começou da pequena capela Une as indústrias de hoje E tem a grandeza dos canaviais Aos trabalhadores do passado Nesse momento... A rua está calma Com seus braços abertos Sertãozinho, O balanço do vento Recebendo o sol reluzente Ao ouvir me parece pequena Nas folhas das árvores O olhar do Cristo Salvador Ao olhar, imensa Tranquiliza a minh’alma Acolhe toda essa gente Mas algo me diz... O seu tamanho se compara Um sentimento profundo De pés descalços pela terra Com o sonho Me transporta, me faz viajar No museu que guarda tesouro Desta poeta aprendiz. E nesse instante de sonho Andejo sobre histórias do passado Pela cidade vou passear E o nascimento do verde-ouro

Professora Claudia da Silva Gomes Sicchieri EMEIF Prefeita Maria Neli Mussa Tonielo, Sertãozinho-SP

32 — POEMA POEMA — 33 O ÔNIBUS FEITORIA COHAB Olho as garotas na rua A 12 é a última parada Estão passando batom Dela não posso passar Vitória Eduarda Ferraz Frutuoso Cuidando o outro lado Na 11 já fico atenta Onde alguém liga o som É quase hora de saltar

De 15 em 15 minutos Escolho o banco pra sentar Agora o postinho da 4 As portas se abrem Um ônibus passa aqui em frente Quero perto da janela Vacina, hoje, não! Pulo e saio na corrida O Feitoria Cohab Pra ver a Cohab passar Vejo minha antiga escola Da parada 12 pra 1 Levando e trazendo gente Quer dizer, eu passar por ela Amiga do coração A rua é muito comprida

Ronca ronca o motor Ronca ronca o motor Ronca ronca o motor Não posso me atrasar! Brinquedo de carrossel Brinquedo de carrossel Brinquedo de carrossel Entre os blocos vou voando Segue a rota da vida Segue a rota da vida Segue a rota da vida Lá vem outro carrossel Pra poder chegar no céu Desenrola o carretel E os rabiscos no papel Meu Feitoria chegando

Desde o centro da cidade Logo ali já vem a 2 Na curva da 5 pra 6 Ronca ronca o motor Percorre a avenida inteira E com ela um quebra-mola Sobe nela o pensamento Brinquedo de carrossel Dobra no arroio Peão Grafite que salta aos olhos Estou mais alta que as casas Segue a rota da vida... Meu lugar da brincadeira No muro da minha escola No rosto me bate o vento Um dia não desço na 12! Na última rua ele entra E é tanto quebra-mola Na 7 é calmaria À direita, prédios cinzentos Sobe e desce, sobe e desce... Mas já vou me preparando Um dia eu chego no céu! É a primeira parada Gangorra quebrada na praça Seguro firme no banco Dos blocos de apartamentos Imagem que me entristece Porque a lomba vem chegando

Avança e logo freia Sinto o cheiro no ar Iupiiiiii! Chega na parada 1 Do xis que não comi Sinto um frio na barriga Professora Cíntia Cristina Zanini Eu corro por entre os blocos É na terceira parada 8, 9 e 10 EMEF Professora Dilza Flores Albrecht, Subo veloz e zum! Lugar que nunca desci Ah, já vai terminar a descida! São Leopoldo-RS

34 — POEMA POEMA — 35 DA JANELA DE MINAS

Nicole Rodrigues Florentino

Da janela de minha casa, Da janela de minha casa, Da janela de minha casa, Da janela de minha casa, Vejo um belo horizonte. Vejo belos museus ordenados, Vejo tanto desemprego, Vejo a realidade de nossa sociedade, Que lugar maravilhoso! Com nosso passado Assombrando nossa gente, Gente que não tem nada, Aqui é um lugar esplêndido Muito bem guardado. Que é honesta e decente. Mas ainda resta a fé. De se viver, curtir e divertir. Da janela de minha casa, Da janela de minha casa, Da janela de minha casa, Da janela de minha casa, Vejo a criminalidade Vejo crianças sem cama, Vejo quase tudo... Vejo turistas curiosos, Expandindo pela cidade. Sem casa e sem comida. Só aguardo a justiça, Com um olhar fascinante, A solidariedade e a honestidade Admirando nossa Da janela de minha casa, Da janela de minha casa, Serem feitas para vivermos em igualdade. Pampulha exuberante. Vejo cintilantes cachoeiras, Vejo lágrimas tristes escorrendo Essa é a mais pura verdade. Onde nadamos e nos refrescamos. Pelo rosto de quem perdeu Da janela de minha casa, Um ente querido Vejo um delicioso feijão-tropeiro, Na barragem que se rompeu. Digno de um mineiro, Tão bom quanto o seu cheiro.

Professora Terezinha Lima da Silva EM José Maria Alkmim, Belo Horizonte-MG

36 — POEMA POEMA — 37 CIDADE DO TESOURO

Yêda Maria Oliveira Aguiar

Toc toc quebra pedra Rios de águas puras Entre os símbolos de Pequizeiro Temos comércios e praças No garimpo de cristal Algumas frias, outras quentes Está a flor do pequi Escolas e casas Pequizeiro então nasceu Garrafa, Bananal e Barreira Temos também vários coqueiros Cidade bonita Minha cidade natal. Refrescam a nossa gente. Por isso amamos viver aqui. Pequena e bela Encanta a todos Cidade do pequi Os ipês nas estradas de terra O povo bem-humorado Que moram nela. Cidade de garimpo Formam um arco-íris de cores Alegre, receptivo As pedras guardam as histórias Com cega-machado que compõe o cerrado É envolvente essa cidade Nosso tesouros são tantos Desse povo exclusivo. De sol escaldante brilhante na serra E muito são os motivos. Além do pequi e do cristal De noites tranquilas São grandes as riquezas Longuinho Vieira Junior E céu estrelado. As flores do pequizeiro Dessa linda cidade natal. O artista dessa obra enfeitam nosso Cerrado 70 anos a punho No presente temos pioneiros Hoje bem menos presente Tem nossa história. Que nos contam dos progressos No cenário desmatado. Nas rodas de conversas Começou com um garimpo Nas calçadas ou botecos. E o brilho do cristal Sendo que hoje não é mais Reflete nossa história No museu temos pedaços Setembro em pleno céu que sempre registraremos De tudo que ficou pra trás. Contemplando essa beleza Dentro da nossa memória. Do pequi da natureza Na criação do garimpo No cerrado o pôr do sol. E no transporte dos cristais Foram atraídas várias pessoas Professora Cleide Sônia Dutra Souza E para cá vieram mais. EM Ayrton Senna, Pequizeiro-TO

38 — POEMA POEMA — 39 O POEMA DA CACHOEIRA MINHA MORENA E ADORADA MANAUS

Dawidysom Pereira de Oliveira Heloisa Bernardo de Moura

Vou recitar pra vocês Na capela a gente tem Terra morena de fortes guerreiros, Grata sou por em ti morar, O poema da Cachoeira Novena e santa missa Cresci cabocla nesses canteiros Levo na vida a arte do teatrar. Não é uma queda d’água Tem sempre um leiloeiro Com força imponente e gloriosa, Tão belo, esplêndido e único, É onde minha família campeia. É dez contos a linguiça. Tal como a terra formosa. Teatro Amazonas, o vivenciar cênico.

Aqui se faz de tudo Agora eu já contei pra vocês De passado brilhante: a História, Teus cheiros, cores e sabores, Cria gado, planta roça Como é minha linda cachoeira Do berço rico: a memória, Tão ricos de diversos calores, Planta milho pra pamonha Em questão de beleza Forte foste para o mundo ver, Só posso aconselhar o açaí, o buriti e o jaraqui, Planta abacaxi e mandioca. Está sempre em primeira. Da seringa, o apogeu, a florescer. Pois provem, minha gente, e não sairão daqui.

Da cultura eu não reclamo Do presente constante a lutar, De natureza bela e exuberante, Pois é rica e sadia Da terra querida, o sustentar, Tua fauna e flora, verdadeiro diamante, Nesses versos eu declamo Tu vieste da tribo dos Manaós, Floresta vasta, nosso particular paraíso, Como é nossa folia. Raio de esperança para todos nós. De mitos e encantados, do boto o sorriso.

Santos Reis nos acompanham Na minh’alma correm as tuas veias, O lugar onde vivo é terra de sonhos, Com muita fé e devoção De água barrenta o Solimões vagueia, Gente que chega e fica feliz, suponho, De casa em casa a gente leva Da cor dos meus olhos vem o marejar, Na esperança do novo dia, o alvorecer, Jesus Cristo na canção. Como o misterioso rio Negro na luz do luar. Aqui nasci, cresci e aqui quero morrer!

Na Cachoeira não se vive Só de folia e de seresta Pra São Joaquim e Santa Ana Também fazemos festa. Professora Maria Izabel de Oliveira Cardoso Professor Antonio de Souza Braga EM Menino Jesus, Jesúpolis-GO EM Santa Etelvina, Manaus-AM

40 — POEMA POEMA — 41 Memórias literárias

omo puxar os fios da memória e entrelaçá-los em uma história? Neste capítulo, estudantes de 6o e 7o anos do Ensino Fundamental foram desafiados a recorrer Ca alguém mais velho da comunidade e transformar em texto literário as memórias de seu entrevistado. O Caderno do Professor, material de apoio da Olimpíada, ao definir o gênero Memórias literárias precisamente o sintetiza: “São textos produzidos por escritores que, ao rememorar o passado, integram ao vivido o imaginado”. As próximas páginas nos enovelam em um sem fim de fios de memória, nos convidando a sentir o cheiro do capim pubo ou o doce da cana em contraste ao duro trabalho de um avô no canavial. A rememorar tempos de fartura de pequi em Taipas de Tocantins. A época em que Seu Santinho foi coveiro. A única TV que ficava na praça da cidade. O massacre dos índios cinta-larga. O rio Guandu como protagonista de algumas memórias, onde se lavavam panelas de polenta e se derramavam lágrimas que só Deus conhecia a razão. A saga de imigrantes alemães em um fusca 74, rumo ao Carnaval. O acordeão do pai que, mesmo cansado, embalava o baile da imaginação. Tantas e tantas memórias nos levam sobretudo a (re)lembrar que, como disse a entrevistada Silvana Cristina Soares Peguim: “O lugar onde vivemos nunca se acaba dentro de nós”. MEMÓRIAS 62 MEU BOM DEUS, TU 82 BAÚ DE MEMÓRIAS 102 “MULEQUE, LITERÁRIAS ME ABANDONASTE? Meirielen Dias VEM PRA DENTRO” Isadora Herschaft Andrade Luiz Felipe Cândido Pires Índice Cardoso 84 PARA LÁ DAQUELE 104 SOCORRA 64 FILHO DA FERROVIA MATA-BURRO… MEU BURITI 46 QUASE UM CINEMA Amanda Xavier Héwilli Gonçalves Bárbara Maria Carvalho A CÉU ABERTO da Silva Ferraz de Oliveira Débora Kelly Costa Bilhar 66 NO RITMO 86 BEBEDOURO CHORA 106 COMO NUM DA MEMÓRIA AS ÁGUAS CONTO DE FADAS 48 LEMBRANÇAS Gabriel Henrique Matheus Walisson Emilly Ramos Wendt DE SANTA IZABEL de Freitas da Silva Maria Lethícia 108 UMA PACATA CIDADE Jacomini de Almeida 68 LEMBRANÇAS DE 88 O DIA EM CHAMADA “GAMA” UM AMOR PERDIDO QUE A ÉGUA Víthor Rodrigues 50 AS CORES DE Gabriel Araújo da Silva DESEMBESTOU de Sousa MINHA VIDA Emilly Juliana Carolina Sachet 70 RIO AFORA, Santana Santos 110 LEMBRANÇAS DE UM RIO ADENTRO… RIO CHAMADO RIO 52 O PEQUI NOSSO A VIDA SEGUE 90 MITOLOGIA GUANDU DE CADA DIA Victor Augusto de CONTENDENSE Wâny Marcelly Luiz Eduardo Pereira Alencar Menezes Luciely Costa Santana Tápias Coutinho da Silva 72 LATA D’ÁGUA 92 DOCES MEMÓRIAS 112 LEMBRANÇAS 54 TEMPOS IDOS DE NA CABEÇA, Adrielle Vieira DOS MEUS TEMPOS AMOR E ALEGRIA LÁ VOU, MARIA de Oliveira DE MENINO Kaylane Vieira Evellyn Isabelle Andressa de Jesus Pacheco Lima Vale 94 MEMÓRIAS DE UMA dos Santos GATA BORRALHEIRA 56 UM PASSADO 74 DOCES MEMÓRIAS Matheus Fernandes 114 TRICOTANDO DESENTERRADO Rayssa Damárys de Sousa LEMBRANÇAS Emilly Tammy Fontes de Araújo Bruna Cristina Moretto de Lima Galvão 96 ALMAS LAVADAS 76 UM DIA DE Beatriz Aparecida 116 MENINA DA BOCA 58 PARALELO 11: DO MUITA FESTA de Souza Silva ROXA DE AMORA COCAR VERMELHO Gabriela Garcia Lavínia Soares Cardoso AO PÉ DE JATOBÁ 98 O VERMELHO DA Bastos Karoline Vitória 78 ACENDE A PLANTAÇÃO de Souza FOGUEIRA DO MEU Luan Mateus Dantas 118 NOS BRAÇOS CORAÇÃO Bezerra DO IPIXUNA 60 DAS TELAS Maria Emanuely dos David Lima À VIDA REAL Santos Andrade 100 CAPIM PUBO dos Santos Vitória Lima Maria Alice Ferreira Gonçalves 80 PLANTAÇÃO DE Simão 120 POR QUE NASCEM BOAS LEMBRANÇAS CRIANÇAS? Ana Lígia Costa Peguim Ana Beatriz da Silva QUASE UM CINEMA A CÉU ABERTO Na Praça dos Benjamins, onde a peque- tecimento: as pessoas conseguiram suas mas minhas recordações por aquele tem- na miragem era colocada, havia várias ár- próprias televisões, que já vieram com ce- po e por aquele quase cinema a céu aberto Débora Kelly Costa Bilhar vores, os benjaminzeiros. O concreto quase nas coloridas e com a tela maior, deixan- continuam as mesmas. O tempo foi passan- não se via. Todos iam para se divertir, inclu- do para trás as cenas divertidas. A união do, a cidade cresceu e o progresso aprisio- sive eu, que não ficava de fora. A alegria de foi desaparecendo e o isolamento invadin- nou aquele passado sem nenhuma chance No meu tempo de criança, aparelhos de participar daquele momento batia de porta do aquele saudoso lugar que, aos poucos, de fugir. Mas aquela TV ainda é capaz de TV eram difíceis de se encontrar neste meu em porta. Era um convite irrecusável. Ca- já estava recebendo pouquíssimas pessoas me surpreender. É triste, mas ao mesmo pequeno pedaço de mundo. Era como o céu da programa, novela ou algo parecido que para assistir, deixando no local em que vivi tempo é alegre recordar aqueles bons ins- sem estrelas ou Romeu sem Julieta. No li- passava naquela tela era fantástico, era co- apenas boas lembranças, emoções contí- tantes diante daquela telinha em preto e mite dos limites, eram apenas duas televi- mo se estivéssemos em um cinema, mas nuas, mexendo com a cidade toda. branco, que conseguia deixar a nossa vida sões que faziam parte do nosso cotidiano. não muito grande. O nosso era a céu aberto. Houve também uma vez em que a TV cada vez mais colorida, mais gratificante. Mas uma de que me lembro com muita ter- Poltronas não existiam, apenas o chão pública foi roubada, mas comprada de no- Por esse motivo, me sinto honrado por sa- nura era a TV pública de Vitória do Xingu, ci- molhado por aquele banho do sereno. Se vo; porém, o novo aparelho veio sem as ce- ber que fiz parte da história da TV pública dade que, naquela época, ainda fazia parte chovesse, o pequeno cinema acabava; se nas em preto e branco. da nossa cidade, às margens do rio Xingu. de Altamira. Como um aparelho tão peque- não chovesse, aqueles nossos pequenos Meus olhos encharcados de angústia no pode trazer várias lembranças que, mes- olhos continuavam fixos na telinha. Porém, sofrem ao saber que nem tudo é a mes- * mo com as evoluções tecnológicas, não se havia alguns eventos políticos ou festas que ma coisa. Às vezes, penso que nossa cida- apagaram e nem o tempo conseguirá apa- eram feitos na praça e interrompiam aquele de está sendo dominada pelas novas tec- Texto baseado na entrevista realizada com José Santana Cardoso Abreu de Lima, de 57 anos gar? Como e nem todos possuíam televisão, tão esperado momento de audiência, cau- nologias que o mundo nos oferece. Ai, que a prefeitura de Altamira doou uma para que sando inquietação nas pessoas, pois deixá- saudade que eu tenho daqueles meus tem- todos assistissem na praça, onde era muito vamos de assistir para que eles ocorressem. pos de criança, em que eu ia à praça com bom permanecer, era como se estivéssemos Nós íamos para a praça assistir a partir da meus amigos, quando a felicidade reina- no aconchego de nosso lar. A maioria das tardezinha, no momento do pôr do sol, até va na Praça dos Benjamins e em todas as pessoas não tinha condição, por isso nin- quando o motor de luz era desligado por nossas vidas. Aquele bom local foi transfor- guém pagava nada. Daí, todos tinham res- alguém impiedoso, apagando as luzes que mado pela falta de espectadores, e em seu peito por aquele pequeno momento em que clareavam a cidade, deixando só as estre- lugar foi construído um palco maior, onde dávamos audiência para os programas co- las iluminando as poucas ruas e os muitos são exibidos shows e eventos diversos co- mo novelas, filmes, jornais e até desenhos. caminhos de volta para casa. mo o Fit Dance. Hoje em dia, a praça não é A TV era de graça, as únicas coisas que gas- Chego a me arrepiar com uma triste mais a mesma, as cenas em preto e branco Professor Mirinaldo da Silva e Silva távamos eram a nossa atenção, o silêncio e lembrança daquela telinha, que foi paran- são hoje coloridas, em HD, até mesmo em EMEF Aliança Para o Progresso, a nossa paixão por aquela telinha. do gradativamente, com um novo acon- miniaturas que cabem na palma da mão, Vitória do Xingu-PA

46 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 47 LEMBRANÇAS DE SANTA IZABEL

Maria Lethícia Jacomini de Almeida

A manhã começava envolvendo o ar Os trabalhadores lembravam os tem- som das crianças brincando, sempre de pu- com aquele cheiro delicioso, contagian- plários, apenas os olhos descobertos, po- xa-puxa na mão. Parece que em suas pupilas te, inebriante do caldo adocicado da cana rém com a diferença de que sua missão cansadas o doce do açúcar se transformou sendo cozida. Conhecíamos aquele líqui- não era reconhecida com total vigor: cor- em lembranças eternas de um tempo sofri- do escuro, verdadeiro néctar que sensibi- tar aquela cana era descobrir o Graal que do, mas que era “bão demais da conta”… lizava o paladar, como “garapa”. Era o re- garantia o doce do café, dos bolos, dos sultado do cozimento lento das canas, que pratos maravilhosos, enfim, da cozinha de * todas as manhãs eram devoradas pela cal- cariocas, capixabas, paulistas e até gente deira depois de moídas, que tanto aguça- de fora do país… Texto baseado na entrevista realizada com Antônio Batista da Silva, de 73 anos va o paladar das crianças. Ainda cedo, na A usina era um cenário apaixonan- véspera, deitavam nas suas camas de va- te para uns e extremamente penoso pa- ras, ansiosas, já pensando no amanhecer ra outros. Enquanto os adultos suavam na para buscar o grande tesouro: o puxa-pu- produção açucareira, os terreiros ao redor xa, uma goma elástica de sabor estontean- da usina se transformavam em um mun- te e incomparável! do imaginário, onde as crianças pareciam Contrastando com o doce do açúcar adoçar ainda mais as redondezas do gran- e com as sensações maravilhosas do ado- de engenho. Era o contraste com aquela cicado amanhecer, chegava a manhã tam- gente de vida amarga, conforme consta- bém para o meu pobre avô… Bem antes do tou o próprio Ferreira Gullar… sol, era ele quem nascia ao lado de outros O tempo passou e o açúcar não mais empregados, para os canaviais que sumiam adoçou a vida dos trabalhadores nem das de vista dentro das dependências da Usina crianças. O fogo das usinas se apagou e, na Santa Izabel. A passos largos e firmes, a ca- Santa Izabel, a maior lembrança dentro da- tana ia retirando do solo as longas varas de quele enorme terreiro não eram mais as ins- cana, para serem transformadas em açú- talações imponentes; era o olhar fatigado Professor Nicanor Monteiro Neto car, em goma, em puxa-puxa, em dinheiro. do meu velho avô, que ainda via e ouvia o CE Padre Mello, Bom Jesus do Itabapoana-RJ

48 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 49 AS CORES DE MINHA VIDA

Carolina Sachet

É hora de mudar. É hora de dar novas lano, consegui ver o mundo se transformar precisei partir. Um grande amor eu havia vas cores naquelas paredes fizeram eu me cores às paredes que me cercam. É hora de lagarta a borboleta, uma simples carta encontrado e, dessa união, dois filhos me reencontrar. Agora aquela não era mais a de modernizar os móveis. É hora de abrir em um telefone, uma notícia de jornal em trouxeram o rosa do carinho, aquecendo casa de meus pais. Agora era a minha casa. mão do aconchego de minha infância, tri- um televisor com canais assistidos por to- ainda mais meu coração. A felicidade logo Até hoje reconheço nesse lugar o meu lhar novos caminhos para que outras histó- da minha família reunida. me preencheu vendo minha família crescer. lugar. Embora tenham acontecido muitas rias possam ser contadas e, posteriormen- Nessa terra, acompanhei os passos de O tempo, no entanto, passou muito de- mudanças, ainda me pego lembrando das te, relembradas. minha família, que me trazia o branco da pressa. As visitas à minha família já não eram histórias ao redor do fogão, do cheirinho Nasci em uma data pela qual as crian- paz em seus ensinamentos e o vermelho suficientes. As cores naquele lugar pareciam de terra molhada, das brincadeiras com ças esperam muito, marcando o vermelho do amor em seus calorosos braços. Pos- estar mudando. Era hora de voltar. Era hora meus irmãos, da minha mãe cozinhando do sangue e as lágrimas de emoção. Doze so ainda sentir o cheirinho do sfregolà fei- de dar atenção a quem havia me dado a vi- com amor, do colo de meu pai. de outubro, meu aniversário, dia de Nossa to por minha mãe, cujo gosto nunca aban- da. Era hora de cuidar dos maiores respon- Foram muitas as cores que coloriram Senhora Aparecida, por quem tenho uma donou minhas memórias. sáveis pela minha história. A viagem de volta minha vida. Cada uma representa um mo- grande devoção. A vila de Nova Milano, Nessa mesma comunidade havia uma para casa, então, bateu em minha porta. As mento especial e único. Elas estão presen- considerada o “Berço da Imigração Italia- escola. Afinal, como minha mãe dizia, “é malas arrumei e para o passado voltei. Reen- tes em meu dia a dia, trazendo com elas as na”, localizada na cidade de Farroupilha, preciso ter estudo nesta vida”. Como eu ad- contrar a minha família fez-me voltar à mi- lembranças de tudo o que nesse lugar eu município situado ao Sul do país, foi o des- mirava as professoras, na época freiras, que nha infância. Mas esse estado de magia logo já vivi. Fazendo da pequena Nova Milano tino escolhido pelo meu bisavô, um imi- ensinavam ali! Estudar sempre fora algo foi interrompido por uma nuvem negra que o meu grande porto seguro! grante italiano que, em busca de uma vida agradável para mim. Ler e desenhar eram se aproximou, levando consigo meus exem- melhor, aconchegou-se aqui, fazendo des- minhas especialidades. Lembro-me da pai- plos de vida para o azul do céu. Minha ale- * se lugar o nosso lar. xão que sentia pelo verde do quadro que gria naquele momento fora cortada junto ao Esse é o lugar onde nasci, cresci e tor- nunca mais larguei, pois professora de Ar- meu ipê, que também de mim se despediu. Texto baseado na entrevista realizada com Rosa Lucia Radaelli Zanonato, de 63 anos nei-me a mulher que hoje sou. Nele, sem- tes me tornei. As cores sempre chamaram Tudo isso contribuiu para que eu en- pre fui acolhida pelo calmo barulho dos a minha atenção. Das mais claras às mais xergasse que uma mudança precisava ventos. Todos os dias, o amarelo do sol escuras, todas me ensinavam alguma lição. acontecer. Minha casa havia envelhecido e Professora Veridiana Brustolin me convidava a brincar próximo ao ipê Amando minha família, um dia formei suas cores já não me alegravam mais. A de- Balestrin Corrêa que enfeitava nosso jardim. Em Nova Mi- a minha. E desse lugar que parecia mágico, cisão de mudar então me conquistou. No- EMEF Santa Cruz, Farroupilha-RS

50 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 51 O PEQUI NOSSO DE CADA DIA nudo e saboroso. A nossa riqueza! Como ro que acabávamos de garimpar. Sabíamos sinto saudades daquele tempo!” que nos próximos dias seria pequi no fei- Luiz Eduardo Pereira da Silva A busca por ele era uma farra só, não jão, farofa de pequi, pequi no arroz... Mas tinha tempo ruim. Mamãe ia à frente, e nós de uma coisa tínhamos certeza: jamais iría- a seguíamos com baldes, sacos e bacias mos “repunar”. Hoje pela manhã, ao contemplar o ho- canela em pó para saborearmos com um na esperança de voltarmos para casa com Com a chegada da tecnologia, tudo fi- rizonte da janela de minha humilde resi- café quentinho cujo nostálgico sabor ainda todos os vasilhames cheios. No caminho, cou mais fácil por aqui. Porém, algo vem dência, a nostalgia invadiu meus pensa- trago na memória até hoje. Nós estávamos nós, as crianças, íamos pulando, cantando me deixando triste. Percebo que a cada ano mentos. Senti saudade do que vivi na in- na sala quando ouvimos a voz dela: e tagarelando naquela inocência, como se o pequi vem diminuindo. Apesar da prote- fância e agora só carrego as lembranças — “Passou a chuva, meninada, é hora a nossa única felicidade se resumisse em ção determinada por lei, o pequizeiro está aquecidas em meu peito. de catar pequi no cerrado”. colher pequi no cerrado. sendo ameaçado. Tantas derrubadas, quei- Nasci e cresci nessa pequena cida- Aquele chamado nos deixou ansio- Contemplávamos a beleza da paisagem madas. A exploração está sendo respon- de, numa época em que não existiam es- sos e mal podíamos esperar o momento e os animais silvestres que, de vez em quan- sável pela sua extinção. Hoje ele é comer- sas modernidades como água encanada e de embrenhar no cerrado e molhar as ca- do, atravessavam nossa frente. Mamãe, ven- cializado, acabou a fartura daqueles idos. energia elétrica. Televisão, nem em sonho! nelas com as gotas do orvalho que fica- do a nossa euforia, dizia: Eu, já cansada, não posso mais ir catá-lo no As casas eram simples com paredes de “in- vam sobre o capim verde da estrada logo — Meninos, olhem para o chão, cuida- pé, e quando quero saborear algum caro- chumento” e cobertas de taipa (palmeira após a chuva. do com as cobras! ço tenho que esperar o vendedor passar na típica que deu nome ao lugar). Naquela época do ano, era tempo de Andávamos alguns quilômetros e já minha porta: “Olha o pequi, dona Maria!”. Bebíamos água do pote, mesmo assim pequi, e as famílias iam em busca dele, avistávamos os pés carregados de frutos e, Só me restaram lembranças daquele éramos felizes com a simplicidade e o ca- pois era responsável por deixar os pra- ao chegarmos debaixo, o chão estava forra- tempo e é com pesar que lamento a extin- lor humano daquele tempo. tos mais saborosos. Seu óleo era extraído do deles. Começávamos a catar e ali mes- ção do nosso pequi de cada dia. Passei memoráveis momentos aqui e servia de “meizinha” (unguento para di- mo descascávamos para poder aproveitar nesse pedacinho de chão, porém, há uma versas moléstias, como bronquites e quei- o máximo de caroços. O cheiro que vinha * passagem da minha vida que trago viva na maduras). Exalava um cheiro tão forte que deles nos fazia não resistir e prová-los ain- memória e só esquecerei quando for para o invadia as ruas da pequena cidade, e quan- da crus. Ficávamos com os dentes amare- Texto baseado na entrevista realizada com Amália da Silva, de 76 anos meu leito derradeiro. Lembro-me bem que do alguém se aproximava, já sabia que ali, los, o hálito bem forte e aquele “ranço” na era uma fresca tarde do mês de outubro, mais tarde, sairia uma saborosa galinhada boca que, ao conversarmos de perto com havia acabado de cessar os últimos pingos com pequi, o “manjar dos deuses” da cozi- alguém, já se podia sentir o aroma marcan- da chuva que caíra bem forte naquele dia. nha de nossa região. “Hum! Aquele cheiro te do pequi. Professora Rosana Ribeiro dos Santos Mamãe estava na cozinha preparando o era de dar água na boca”. “Ah! O nosso pe- Ao enchermos as vasilhas, voltáva- EE Joaquim Francisco de Azevedo, Taipas do tradicional bolinho de chuva salpicado de qui de cada dia! Amarelo como ouro! Car- mos para casa satisfeitos com aquele ou- Tocantins-TO

52 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 53 TEMPOS IDOS DE AMOR E ALEGRIA

Kaylane Vieira Pacheco

A primeira lembrança que me vem à Até hoje eu guardo o cheiro da lenha Hoje, já casado, com meus filhos, ten- mente é a estrada, que ia longa, comprida a queimando. E guardo também o cheiro da to reviver com eles minha época de infân- perder de vista. A região em que ficava a fa- terra molhada, quando a chuva resolvia cia na fazenda. Conto as histórias em vol- zenda onde a gente vivia no interior campis- nos abençoar. ta da fogueira nas noites de inverno (nem ta era quente, o sol tinia o dia inteiro e cas- Na época das chuvas, eram formadas sei se sou eu, ou o que ficou de meu avô tigava o pasto e as plantações. E a longa es- grandes poças de água na estrada, e nos- em mim) e mostro as longas palmeiras que trada, de terra batida, era uma poeirada só. so divertimento no caminho de ida para o foram plantadas em frente à sede pelo bi- A gente se levantava cedo e ia para o grupo escolar – assim se chamava a escola savô deles e que resistem ao tempo. São curral iniciar a ordenha. Meu avô conhe- naquela época – era pisar e repisar naque- tempos idos, mas que estão vivos e preser- cia todas as vacas pelos nomes e meu tra- les bolsões que se formavam no estradão. vados em minha memória e que perpetuo balho era levar o bezerro até sua mãe para Tudo era motivo de brincadeira e alegria. através das novas gerações. mamar um pouquinho. “Isso ajuda a soltar Nosso sono era embalado pelo coaxar o leite”, ele ensinava. dos sapos e pelo bater dos bilros de ma- * Minha mãe, junto com as outras moças deira na feitura da renda a que minha mãe da fazenda, fazia o queijo, o melaço e a rapa- e minha avó teciam com paciência e amor Texto baseado na entrevista realizada com Vicente Madureira Campos, de 78 anos dura, que eu comia escondido debaixo dos à luz bruxuleante da lamparina. pés de goiaba junto com a molecada. Mas o Mas isso já faz tempo. O progresso que eu gostava mesmo era quando chega- trouxe conforto, mas muita beleza e en- va a noite. A gente fazia uma imensa foguei- canto se perdeu. Tudo foi pavimentado. ra para espantar mosquito, e assava batatas- Até o estradão. Não se chamam mais as -doces no braseiro e comia até não poder vacas pelos nomes e nem a gente vê mais mais, enquanto meu avô contava suas histó- o carinho da mãe com a novilha. É tudo rias. Eram histórias de tempos vividos no ca- mecanizado. Até a gente ficou meio meca- sarão da fazenda, em que o trabalho escravo nizado. Agora as histórias são contadas na ainda era a mão de obra no canavial. “Tem- televisão. É bom, mas é frio, sem o acon- Professora Rosiara Campos Knupp po triste”, dizia ele, “de sofrimento e dor”. chego do olhar, sem “magia”. CM Dermeval Barbosa Moreira, Nova Friburgo-RJ

54 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 55 UM PASSADO DESENTERRADO

Emilly Tammy de Lima Galvão

Tudo que começa finda. Assim serei, uma sensação de paz. Hoje, vemos cons- ciais. Do lado de fora, as bancas de flores mais simbólico do que hoje. A evolução do assim seremos. Antes desse fim é preciso truções, casas, edifícios, torres de ferro es- e grinaldas exalavam agradáveis aromas, tempo mudou as atitudes das pessoas, mas que alguém resgate as nossas lembranças tendidas por toda parte e muito barulho mas não atraíam mais do que o cheiro da só não deve morrer essa antiga tradição. e dê asas de papel. vindo dos automóveis e das publicidades. sopa de Dona Cecília, preparada com mo- “Meu Santo” ou “Meu Santinho”, é as- Com o surgimento da tecnologia, os cai- cotó de boi e ervas da terra. Essa... Hum! * sim que o Sr. Clóvis é conhecido na cidade xões oferecem praticidade e os cortejos Só faltava levantar defunto! de Santo Antônio, Região do Agreste Poti- são formalizados pelas funerárias. As famílias se concentravam diante dos Texto baseado na entrevista realizada com Clóvis Alves Diniz, de 78 anos guar. Facilmente consegue arrancar boas O que mais vem à minha lembrança é túmulos, e as crianças se distraíam enquan- gargalhadas de quem se prende à sua for- o vaivém das pessoas quando iam deposi- to acendiam as velas. Outros pouco se im- ma engraçada de contar histórias. Foi nu- tar flores e rezar por seus familiares e ami- portavam com a fumaça e permaneciam um ma roda de conversa que ele enfatizou a gos no Dia de Finados. Nessa data, os nos- tempinho a mais para ouvir as histórias de seguinte recordação: sos hábitos eram moderados, sem euforia assombração que eu contava. A mais pedi- — Desenterro o tempo em que eu tra- e ruídos musicais. Eu achava aquele mo- da? Ah! Lembro-me da história da “menina balhei de coveiro no cemitério São Judas mento muito harmonioso porque os mo- enterrada viva”. Eu caprichava na interpre- Tadeu nessa cidade. Naquele tempo, quan- radores daqui se reencontravam com os tação ao subir em um dos túmulos e fazia do morria alguém pobre por aqui, as pes- seus parentes distantes. Havia facilidade do palco um cenário real. soas improvisavam o caixão com cortes de para identificar um parentesco porque as Era comum a curiosidade dos jovens pau, apoiados em uma rede de dormir e ruas eram poucas e tinham apelidos: Rua para ler, ver fotos e admirar as lápides depois transformados em uma espécie de do Motor, Rua Grande, Rua do Cacimbão, das famílias tradicionais. Em meio a tan- andor, causando sofrimento físico aos que Rua da Lama, Rua da Quixaba, entre ou- tos questionamentos, lá estavam eles, de conduziam. Assim, saíam pela rua grande tras. Atualmente, essas ruas estão com no- olhinhos espantados, às vezes interrompi- – enladeirada – onde a nossa visão alcan- mes oficializados. Mas há ainda quem as dos pelos chamados dos pais que já esta- çava as catacumbas, que pareciam umas chame pelas antigas denominações. Re- vam de saída. capelinhas. A gente contemplava ao longe cordo-me do portão de entrada do cemi- Nessas andanças de tempos atrás, miro Professora Mércia Fontoura aquela paisagem verdejante que nos tra- tério sendo alojado por vendedores de ve- bem no espelho de minhas memórias e re- EM Dr. Helio Barbosa de Oliveira, zia um leve aroma de flores do campo e las que dividiam o espaço com dois poli- flito que o respeito pelos mortos era muito Santo Antônio-RN

56 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 57 PARALELO 11: DO COCAR VERMELHO criança caiu vagarosamente ao lado da ín- Hoje sei que essa história é conhecida AO PÉ DE JATOBÁ dia, que de forma paciente soltou o peque- como o “Massacre do Paralelo 11”, ocorri- no e o olhou estirado sobre o chão. Foi cer- do na década de sessenta, em uma manhã Karoline Vitória de Souza teiro o tiro. Meu pai deitou-se como se es- de pavor. Foram os garimpeiros os invaso- tivesse morto, com medo de ter o mesmo res da aldeia, no início pelo ar, pois acha- destino do indiozinho, e ficou atento a ca- vam que suas moscas grandes ao lançarem Reunidos, sentados sobre a terra, eu e apenas os adultos participavam, as crian- da passo que a bela índia dava. Assim, de açúcares envenenados e roupas com o ví- meus sete irmãos ouvíamos as histórias de ças eram levadas às malocas para dormir. olhos arregalados, viu dois homens bran- rus da gripe iriam acabar com a minha gen- Pangunsukup, um velho cinta-larga. Eram Era uma festa regada a chicha. cos discutindo, mas não conseguia enten- te. Não conseguiram. Invadiram pelo chão. histórias que faziam nossos olhos brilha- Nessa história, meu pai dizia que já era der a língua deles. Nesse instante, fechou Acharam que acabando com nossos rem, tão grande era a criatividade de meu quase dia quando os adultos começaram a os olhos de tal forma que nem as chamas antepassados, tomariam conta de nossas pai. Eu era apenas uma criança e dormia seguir rumo às suas aldeias, porém, ainda conseguiriam abri-los. Dizia carregar na vi- terras e retirariam de lá todo o ouro e dia- sempre com a imaginação povoada das ce- sob efeito da bebida, começaram um ritual são o cocar vermelho caindo e um risco no mante. Pensaram eles que teriam nossas nas ouvidas. Anemã é meu nome, que, de de agradecimento. chão: era um caminho feito pela moça ar- riquezas, mas nosso amigo Aripuanã nos acordo com a minha origem, significa “o Eis então que o dia clareou e o que se rastada até um pé de jatobá. E foi ali mes- salvou. Atualmente, meu povo mora nu- sonhador”. via de clarão já eram labaredas nas malo- mo, amarrada pelos pés em dois galhos da ma reserva de nome Roosevelt, local que O lugar era incrível. Na floresta den- cas. Nesse momento, alguns índios apavo- árvore, onde o golpe certeiro do facão fez continua a juntar nossos vizinhos que ain- sa e fechada, o Aripuanã servia seu povo rados pularam rio adentro para se salvarem, negra a visão do meu pai. Apenas um golpe. da realizam celebrações para relembrar a com abundância de peixes e o refrescava outros caíam desfalecidos em sua margem Em seguida, os dois homens começaram a importância daquele rio para a história do nos banhos diários, além de ser o princi- por causa da bebida e, meu pai, rodeado revirar os índios caídos e partiram. povo cinta-larga. Agora, adulto, sei que não pal meio de transporte para juntar as tri- pelo fogo, achou que vivia uma alucinação, Logo que percebeu o silêncio do lugar, eram histórias inventadas e a única coisa bos próximas. Papai um dia me contou da pois em sua direção se aproximava a mais meu pai levantou-se cuidadosamente e es- imaginária que ainda restou daquele tempo Festa do Porcão, que era realizada para ce- linda índia da aldeia, sem vestes, apenas um pantou-se com a quantidade de cinzas ao é a linha que corta o lugar onde eu nasci. lebrar o plantio do milho. Nossos vizinhos cocar e, em seu colo, uma criança em torno chão. Apenas cinzas e o cocar vermelho e, Suruís, Zorós e Apurinãs seguiam em ca- de seus 2 anos de idade. Seus cabelos ne- a pouca distância dele, a lâmina ensanguen- * noas pelo rio, eram famílias inteiras, dos gros e lisos batiam até sua cintura e, a cada tada. Acima dela, o corpo da índia. Estava mais velhos aos bebês pendurados nos passo que ela dava, eram jogados para trás tudo muito confuso… A resposta veio lo- Texto baseado na entrevista realizada com Anemã Irun Cinta-Larga, de 50 anos “angujap”. Havia brincadeiras para todas devido aos incessantes tiros que iam ao seu go em seguida, quando ao olhar novamen- as idades, desde o cabo de guerra até a ca- encontro. Meu pai dizia que esfregava os te para o rio, dois casais de índios caminha- çada mais ligeira do porcão. No fim do dia, olhos para ter a certeza de que não se tra- vam em sua direção. Não se tratava de ne- Professor Alan Francisco Gonçalves Souza era a hora de agradecer pelo plantio, mas tava de nenhuma alucinação. Viu quando a nhuma alucinação. A chicha os salvou. EEEF Jerris Adriani Turatti, Espigão do Oeste-RO

58 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 59 DAS TELAS À VIDA REAL fascínio pelo cinema contagiou meus filhos Como toda inovação tem seu período e minha esposa. O primogênito se tornou de renovação e, se não houver, seus dias Vitória Lima Gonçalves operador de reprodução, o caçula ocu- estão contados, os DVDs caíram em deca- pou minha primeira função no cinema e dência. O cinema voltou a ser a procura da minha esposa mantinha o espaço limpo e garotada, as salas agora modernas trazem Cine Regente, aqui começa uma linda tes à função e por não possuir transporte, organizado. filmes em 3D. Vejo meus netos ansiosos história de vida. Nascido e criado em uma estendia-me até altas horas no cinema. Um dia, sugeri ao Marcelo que cada pelos lançamentos para poderem assistir. cidade pequena, infelizmente, sem empre- O tempo foi passando e, graças à mi- noite poderia ser temática, revezando-se Mal sabem o que era de fato a balbúrdia go, pus-me a indagar o que faria de mi- nha facilidade de comunicação e compro- entre terror, romance, só para adultos, co- daquela época e o que fazíamos para ir ao nha vida. Arrisquei-me, assim como tantas metimento, meu chefe me convidou para média, ação, infantil e ficção científica. Para cinema: pulada de janela, dormida na ca- outras pessoas o fazem, e me mudei para ser operador de reprodução, um dos car- que o cine atraísse público constante, fize- sa da amiga, trabalhos escolares. uma cidade promissora, Rio Verde, no in- gos mais importantes do cinema. A opor- mos panfletos e distribuímos para toda a ci- Todas as noites o que me resta é dei- terior de Goiás. O tempo me mostrou que tunidade surgiu em virtude do desligamen- dade. Daquele dia em diante, nem as imagi- tar em meu leito, que me espera angustia- não poderia ter feito escolha mais certei- to de um colega meu, pois erros não eram nações mais desvairadas conseguiriam des- do por mais uma noite de fantasia temáti- ra, marcada por momentos inesquecíveis. permitidos, totalmente inaceitáveis duran- crever o que vivi naquelas noites temáticas. ca. Retorno ao Cine Regente e projeto um Mal podia imaginar que seria o ponta- te a reprodução dos filmes. Presenciei encontros vedados que ali se tor- filme diferente, junto a uma plateia irre- pé para o meu futuro. Casei, deixei a cida- Os telespectadores sentados nas ca- navam factíveis sob a luz do projetor, olha- quieta pelo devaneio proporcionado, olho de pequena e parti. Por aqui, o progresso deiras de madeira, disputando o encosto res que ultrapassavam as telas e percorriam as pessoas e vejo as expressões ora de pa- engatinhava e, com orgulho, dele partici- com o vizinho, jamais poderiam perceber a conjectura da liberdade momentânea nu- vor, ora de júbilo. Em sonho, continuo em- pei. Foram três décadas de uma jornada minha presença ali. Eu era invisível. ma época abarrotada de repressão. pregado e revivendo o passado, atividade intensa e memorável. Era tudo muito rápido durante a proje- Lembro-me de que era uma terça-fei- noturna que me mantém vivo por dentro. Ao chegar, já pude sentir o encanta- ção do filme, cada reprodução cinematográ- ra: ao chegar em meu trabalho para mais mento da cidade, deparei-me com gente fica comportava cinco a seis rolos de filme, uma noite de labor, no local onde ouvia * acolhedora e de braços abertos. Batendo que separava cuidadosamente. Dois proje- cumprimentos fervorosos, algo deu lugar de porta em porta, em busca de empre- tores se revezavam; quando um rolo termi­ a um silêncio, olhos e bocas emudecidos, e Texto baseado na entrevista realizada com Guimardel Lopes Gonçalves, de 52 anos go, conheci o Marcelo Regente, proprietá- nava, o outro projetor entrava em ação, a expressão era de desgosto. Nossos clien- rio do único cinema da cidade, o lendário até que eu trocava o outro rolo e o deixava tes estavam em busca de inovação, nosso Cine Regente. Reafirmando a receptivida- pronto para ser projetado, e assim se pas- cine já não era tão atrativo como um apa- de dos rioverdenses, Marcelo me confiou saram dois anos, até que me tornei gerente. relho de última geração chamado DVD. A a bilheteria. Minha jornada de trabalho era O amor que construí pelo que fazia reprodução era límpida e o cinema tinha Professora Viviane dos Santos Silva longa, devido às responsabilidades ineren- transbordou e chegou à minha casa. O meu chegado ao conforto dos lares. EE Cunha Bastos, Rio Verde-GO

60 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 61 MEU BOM DEUS, bia, mas às sagradas missas de domingo, sos olhos conversaram. Lembro-me que quelas” estradas para o céu. Talvez seria a TU ME ABANDONASTE? em alemão, nos levavam com certeza. Pa- estava na cozinha com a cuia de chimar- maneira mais rápida de me encontrar com ra não enlouquecer, tínhamos que ter fé. O rão na mão. Meu esposo, Aloysio, se di- a outra parte de mim. Isadora Herschaft Cardoso sofrimento, esse maldito, nunca se afastou rigiu à porta e, lá de dentro, apenas ouvi Sentada à mesa, com a cabeça so- de mim. Depois de algum tempo nessa ter- pronunciarem seu nome. Estremeci. Cha- bre meus braços, meu corpo foi mais for- ra, minha vida clareou, assim como o dia mei, bem baixinho, por Deus: “Mein Gott, te que meus pensamentos e me fez desli- Toda vez que alguém bate na minha com a chegada do sol. Ela e minha história beschütze uns” (“Meu Deus, nos proteja”). gar. Adormeci e assim fiquei por um longo porta, lembro-me daquela gélida noite em foram presenteadas com um coração apai- Avistava a porta e com as mãos já livres e tempo, até que senti uma mão quentinha que perdi meu chão, meu norte e a outra xonado de um rapaz, Aloysio, que se tor- entrelaçadas em oração, rezava em pensa- e pesada que repousou sobre minha cabe- metade de mim. Sou de descendência ale- nou meu marido e, junto de mim, escreveu mento, pois, ali, eles não podiam me ouvir, ça e uma doce voz que chamou meu nome: mã e, junto com meus pais, instalei-me na uma nova história. Era um sinal claro de enquanto desejava que a porta se fechas- “Catharina”. Jurava que havia chegado ao antiga Porto Novo com meus pais no ano que Deus não tinha se esquecido de mim, se e meu esposo estivesse de volta, junto céu, mas estava, felizmente, enganada. Era de 1928. Contava com apenas 6 anos de essa pobre jovem. Quando pensei que eu de mim. Aloysio, no entanto, não voltou. minha outra metade, Aloysio, que voltou idade. Lembro-me de quando chegamos seria, finalmente, feliz, o sofrimento vol- Arrancaram a minha outra metade de para junto de mim. Levantei aos trancos, aqui nessa terra desvirginada por corajo- tou a nos rondar. Como éramos colonos mim. Enquanto rezava, suplicava ao meu coração a mil e olhos aos prantos a ponto sos loucos que se aventuraram em meio alemães, tornamo-nos alvos de uma per- bom Deus que não deixasse nada de mal de soluçar, abracei-o, ao mesmo tempo em ao mato e aqui vieram semear o seu futu- seguição muito perversa por parte do go- acontecer ao meu Aloysio. O que fariam? que repetia “Mein guter Gott, du hast mi- ro. Foi aqui que empobrecemos. verno nacional que se aliou contra o nazis- Para onde o levaram? Por quê? Malditos! ch nicht verlassen” (“Meu bom Deus, você Meu pai, músico, e minha mãe, partei- mo. Vivíamos muito longe e nem sabíamos Militares malditos! não me abandonou”). Hoje, tenho 97 anos ra, não tinham noção alguma de agricultu- sobre o que conflitavam, contudo, fomos A noite custou a passar. A tortura não e Ele ainda continua comigo. ra, mas mamãe sempre dizia para confiar- caçados, aqui, na colônia Porto Novo, co- me deu trégua. Meu coração sangrou. mos no Senhor que tudo ficava mais leve. mo as bruxas na época da Inquisição. Proi- Mergulhada na tristeza, minha alma se * Nesse rincão, as dificuldades só aumenta- biram até de nos comunicarmos em nossa afogava no infinito sofrimento que, como vam, e tive quase a certeza de que até Deus língua, o alemão. a justiça, que tarda mas não falha, ele tar- Texto baseado na entrevista realizada com Catharina Regina Thiel, de 97 anos tinha nos abandonado à própria sorte. Nossas celebrações de domingo pas- dou e não falhou. Voltava a me golpear. Nesse pedaço de chão não tinha na- saram a ser vigiadas e o silêncio tornou-se “Mein lieber Gott, wo bist du?” (“Meu que- da. As estradas foram abertas por mora- absoluto, pois não sabíamos falar o por- rido Deus, onde você está?”). Meu corpo, dores com suas enxadas, foices e picare- tuguês e o nosso idioma estava proibido. sem forças e quase sem vida, parecia uma tas. Muitas vezes matutei, em minha ca- Foi essa caça aos alemães que bateu vela em sua última dança antes da chama beça, se elas, talvez, não seriam um cami- em nossa porta naquela noite de inverno. se apagar. Meu espírito se abraçou com Professor Jaime André Klein nho mais curto para o céu. Ao céu não sa- Bateu forte, três vezes. Olhamo-nos, nos- meus pensamentos e tomaram o rumo “da- EMI Bela Vista, Itapiranga-SC

62 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 63 FILHO DA FERROVIA para enviar recados via telégrafo, comprar dou. Gostava de ver as pessoas, conversar, alguns dos produtos que as crianças ven- fazer amizades durante o embarque e de- Amanda Xavier da Silva diam e, finalmente, viajar. sembarque… Disso não poderia mais des- Por conta de vivenciar por anos es- frutar, o que tornou meus dias, outrora tão sas cenas, ao sentir hoje o aroma dos pe- coloridos e barulhentos, totalmente sem Subo os degraus da estação ferroviária Tenho lembranças de que durante quis e araticuns, me vem à memória meus graça e em preto e branco, como as fo- e passo os dedos pela textura das grades minha transferência houve marcas não só dias de labuta. Além disso, eu vendia pas- tos enegrecidas e silenciadas pelo tempo. enferrujadas que tempos atrás não esta- em meu coração, mas também nas minhas sagens que proporcionavam avanço ao Ouço a buzina que anuncia a chegada vam ali. Assim, começo a recordar-me da roupas, pelo fato de eu ter andado na se- país de forma tão simples. Penso que to- do trem de carga e a realidade me arranca época em que trabalhava ali e também da gunda classe, nada confortável, da Maria das essas pessoas, e até mesmo os fun- com todas as suas forças de minhas lem- minha infância… E é exatamente nessa ho- Fumaça que me chamuscou de fuligem. As cionários, como eu, não tinham noção de branças. Levanto-me daquele banquinho ra que as memórias teimam em apitar em faíscas emitidas juntamente com a fuma- que, ao comprar um simples bilhete para azul e observo o abandono no qual a es- meu coração, sento-me em um banquinho ça daquela locomotiva me atingiram e che- trilhar em meio ao cerrado na Estrada de tação se encontra, vejo aquelas cores que azul para poder relembrar de tudo que es- garam ao meu coração, aquecendo e en- Ferro Goyaz, estariam movimentando um encheram minha vida de alegria. Pego-me sa linha de ferro representa pra mim. chendo de esperança minha viagem pelos país inteiro. agora melancólico pelo estado de esqueci- Nasci no ano de 1954, na cidade de Pi- trilhos da vida. Recordo-me de que, na maioria das mento em que foi deixado aquele lugar que res do Rio, onde a movimentação só não Rememoro também, claramente, que vezes em que eu ia entregar algum recado antes era o protagonista da história desse era tão forte quanto a luta de meus pais quando cheguei ao povoado me espantei. enviado da capital, ele era de morte. Quan- povo. Mas podem ter certeza: enquanto para manter a mim e meus irmãos. Sendo Na época, não havia energia elétrica, a es- do chegava nas casas das pessoas elas lo- essas memórias habitarem em mim, elas neto e filho de ferroviários, meu destino já trada era de chão batido, de carro de bois. go perguntavam quem havia morrido, e o estarão vivas, pois “irmão, eu tenho a fer- estava selado, o que só saberia mais tarde. O lugar era repleto de árvores nativas do pior é que sempre era esse o recado. rovia em meu sangue!”. No tempo da mocidade comecei a tra- Cerrado, belos exemplares de pequizei- Desses tempos, tenho também uma balhar na linha ferroviária de Brasília co- ros, gabirobeiras… Mas a que predomina- lembrança triste, de uma vez em que não * mo furador de dormentes. Aos 22 anos fui va e roubava a cena era a atrevida caraí- pude parar uma composição por carregar transferido para o Distrito de Caraíba, e ba, com suas flores incandescentes. Exce- passageiros leprosos rumo a uma colô- Texto baseado na entrevista realizada com Mauro Garcia Coutinho, de 65 anos foi lá que, depois de tantos testes feitos, to por isso, não achei o local bonito, mas o nia. Aqueles viajantes só respiravam pelas mais tarde iniciei meu cargo como chefe povo era! “Afinal, é o povo quem faz a cida- aberturas nos tetos dos vagões. Ouvi gri- de estação. Na verdade, meu sonho inicial de, não é?” Lembro-me da época em que a tos de dor e agonia que mancharam a his- de ser maquinista não foi alcançado, mas “Senhora de Ferro” reinava, a estação era tória da minha estrada de ferro. Professora Mirelly Franciny Melo Tavares de Oliveira minha função deixou rastros inestimáveis um ponto turístico. As pessoas iam para Aos meus 42 anos de idade, a Rede Fe- EM Antonio De Souza Lobo Sobrinho, na memória. lá não só para conversar, como também deral Ferroviária foi privatizada e tudo mu- Vianópolis-GO

64 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 65 NO RITMO DA MEMÓRIA mo minha pequena, outras crianças tam- leando até o fusca que nos aguardava es- bém eram ninadas nos braços de Morfeu. tacionado ao lado do clube. Os menores Gabriel Henrique de Freitas Ninguém se preocupava, todos eram eram recolhidos e cobertos com um cueiro conhecidos e uns olhavam os filhos dos ou- para protegê-los do sereno. Minha peque- tros. As crianças também não se impor- na ficava alheia a tudo o que se passava ao Era um sábado de 1988, no Meio-Oeste se acotovelavam e se desculpavam com um tavam, parecia até que estavam no mais seu redor. Morfeu caprichara no embalo. catarinense. Todos da minha família já es- menear de cabeça e um sorriso amarelo. absoluto silêncio e calmaria. Era como se Dizem que nossa mente, em autopre- tavam de banho tomado, cabelo com bri- Já as crianças saboreavam e se empantur- a própria música criasse uma redoma de servação, também capricha na seleção de lhantina, roupa engomada, tudo “nos trin- ravam com as cucas, linguiças, pastéis e proteção invisível, criada a partir dos ri- nossas lembranças tornando as dores mais ques”: dia de baile. Laranjinha, que era um refrigerante muito sos e gracejos que voavam feito colibris amenas e as recordações felizes mais vi- A família empurrava-se e espremia-se conhecido naquela época, tudo vendido na pelo salão. vas. Não sei se isso se aplica a esses mo- feito sardinha dentro do fusca 74, azul-ce- copa, ao fundo do salão. Os rapazotes sol- Esses bailes de comunidade do inte- mentos ou se meus cabelos cor-de-neve leste, de faróis dianteiros redondos, que teiros ficavam ao redor da pista de dança rior eram os mais divertidos. No entanto, estão a pregar-me uma peça, mas com podia chegar à extraordinária velocidade trocando acanhados olhares com as moças quando a madrugada já ia alta, os peque- certeza se eu tivesse o poder de voltar de 80 km por hora, o que era muita potên- solteiras que os retribuíam, algumas de ma- nos ainda dormiam em seus berços – mui- àquela época dos bailes do interior, ainda cia para aquela época, e por isso era o xo- neira recatada, outras nem tanto. tas vezes improvisados –, os maiorzinhos rodaria os quatro cantos do salão, sentin- dó de meu marido, João. Não muito tempo depois, a banda e cochilavam debruçados sobre as mesas e do a essência da verdadeira felicidade. Por Chegávamos ao baile e lá já encontrá- toda a comunidade cantava a uma só voz vários novos casais já haviam se formado. ora, tudo o que posso fazer é “valsear” no vamos as comadres, os compadres, suas e a plenos pulmões “Zigge Zagge, Hoi, Hoi, Alguns dos solteirões que ficaram para se- ritmo de minhas memórias. crianças, nossos vizinhos e quase todos da Hoi”, música folclórica dos imigrantes ale- gurar vela naquela noite, por vezes, acha- comunidade. Era uma alegria vê-los reuni- mães. Como Rubia já havia adormecido, vam-se injustiçados quando o amigo ficava * dos e bem trajados para o baile da Linha eu a colocava dentro do moisés de vime, de galanteios com a moça de seus olhos. Caçador, comunidade do interior de minha embalava no ritmo da música e a empurra- Aí, era aquela confusão, também pudera: Texto baseado na entrevista realizada com Ivanira Dacal de Freitas, de 74 anos cidade, Treze Tílias. va para debaixo da mesa. Entre sorrisos eu madrugada, sono, bebida e rejeição, o re- Cada um se ajeitava em uma das muitas trocava furtivos olhares com João, que en- sultado só poderia ser um: briga de bêba- mesas espalhadas ao redor do salão. Havia tendia a mensagem. Hora de dançarmos. dos. Mas nada sério, no dia seguinte todos poucas cadeiras para acomodar a mim, meu O calor da multidão gerava uma eufo- já seriam amigos novamente. marido e nossos quatro filhos, além dos ami- ria coletiva, o coração palpitava no ritmo Já era hora de voltarmos para nossos gos e parentes que logo iriam juntar-se a nós. da dança. De quando em quando olháva- lares. As crianças deviam ser acordadas. A noite ia animada, e enquanto a banda mos para nossa mesa. Ao correr os olhos Os maiores eram sacudidos até desperta- Professora Andreia Lemes Donatti tocava suas melhores marchinhas, os casais nos arredores da pista de dança, assim co- rem para pelo menos caminharem camba- EM Irmã Filomena Rabelo, Treze Tílias-SC

66 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 67 LEMBRANÇAS DE UM AMOR PERDIDO

Gabriel Araújo da Silva

De repente, o rádio começou a tocar mas nem sempre eram suficientes para a te que se interessasse por mim. Até o filho nossa cidade, começo a relembrar a visita uma moda de viola antiga e me perdi nas semana toda. Tínhamos que economizar de seu Messias, rapaz estudado na cidade que tivemos hoje pela manhã: eram jovens lembranças de quando ainda estava na flor em tudo, até para nos banhar a água era grande, por quem me apaixonei e me per- estudantes que vieram ansiosos por nossas da idade. A melodia me fez perceber como pouca, então, tinha que ser o famoso “ba- dia em seus lindos olhos azuis, não teve co- histórias de vida, que se misturavam com os anos passaram depressa e como aquele nho de gato”. ragem enfrentar o tão temido seu Antônio. as de nossa cidade. Eles cantaram e con- tempo era difícil! Oh, época sofrida! Mas, graças a Deus, Meu coração palpitava sempre que o versaram bastante com a gente, e assim, A labuta começava cedo, com o som conseguimos sobreviver. Dias, meses, anos via, parecia que meu peito ia explodir! Mi- fizeram com que nossas lembranças, tão do galo cantando. O sol ainda não havia se passaram e a vida continuou do mes- nhas pernas tremiam quando ele passava bem guardadas no fundo de um baú es- surgido no horizonte e já estávamos a ca- mo jeito. A semana passava num piscar de perto de nossa barraquinha, com a descul- quecido no passado, fossem revividas em minho do poço da comunidade, onde bus- olhos. Isso me deixava feliz, já que o dia pa de querer comprar algumas das delícias um novo tempo, trazendo com elas aque- cávamos água para suprir nossas necessi- mais esperado por mim era o sábado. O ali expostas. Eu olhava, mas logo abaixava le gostinho de saudade que faz meu cora- dades do dia a dia. Ainda sinto o peso dos dia era tão especial que já começava com a cabeça para que meu pai não percebes- ção apertar. baldes cheios e ouço minha mãe gritando: o cheiro do mungunzá pairando no ar e nos se o amor que transbordava em meu peito. “Rápido, menina, deixe de moleza! Desse avisando que era hora de irmos à estação Sofri muito quando soube que ele se * jeito não conseguimos encher nossos re- de trem. A maria-fumaça, já apitando, nos casou com a filha de um fazendeiro da re- servatórios!” E lá ia eu, com o balde na ca- levava para a feirinha onde nossa barraqui- gião. Com o coração em pedaços, segui Texto baseado na entrevista realizada com Leogevilda Rosa dos Santos, de 79 anos beça e a esperança no coração de que um nha nos esperava para receber as gulosei- minha vida sozinha, não acreditando mais dia tudo iria melhorar. mas feitas por mamãe. que o amor fosse possível para mim. Mes- No entanto, quando a vida começou a Era uma festa! Artistas locais, queren- mo hoje, quando me lembro, sinto meus entrar nos eixos, o sertão nos surpreendeu do ganhar fama, embalavam os fortuitos olhos umedecidos de tristeza. com uma seca que nunca tínhamos visto namoricos da época. O flerte acontecia Anos se passaram e continuei sozinha, antes. Passamos por muito sufoco, já éra- apenas com troca de olhares, já que nossos vivendo a mesma vidinha de sempre. Toda mos pobres, e ainda essa seca para aca- pais estavam sempre de olhos atentos, vi- minha família se foi, meus pais foram mo- bar com nossa plantação. Até nossa fonte giando nossos passos. Meu pai, por exem- rar com Deus, meus irmãos se casaram e Professora Izabel Leite Aguiar Almeida havia secado! Para aliviar nossa escassez plo, com sua expressão de poucos amigos, agora, com meus 79 anos, olhando para as EM Professora Clarice Morais Dos Santos, de água, a prefeitura enviava carros-pipa, conseguia afugentar qualquer pretenden- paredes vazias de um quarto, no asilo da Brumado-BA

68 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 69 RIO AFORA, RIO ADENTRO… frimento fez as águas do rio ficarem repre- Essa fase foi como o encontro do rio A VIDA SEGUE sadas. Fiquei muito tempo naquela situa- com o mar: fortes ventanias e águas agita- ção, impedida de conviver com o mundo. das. Ao mesmo tempo em que um rapaz dis- Victor Augusto de Alencar Menezes Mas havia a esperança… E era o que se que me amava, fez isso de tal modo que me restava. Um dia, indo comprar pão, por a família que me acolhera foi a mesma que sorte, encontrei uma colega de infância, a me expulsou por pensar mal de mim, pois, A vida é como um rio, um fluxo cons- havia um rio de onde tirávamos o alimen- menina que retirou as pedras do meu rio, uma vez, saímos e voltamos muito tarde. Is- tante que, às vezes, não consegue parar. to e, também, que servia para nossa diver- fazendo a água fluir novamente. Ela me so era muito inapropriado para uma jovem Em alguns momentos da vida, o rio é são. Ao redor, açaizeiros, sumaúmas e ma- falou da família de um policial que queria e, naquela época, a sociedade belenense era largo e profundo; em outros, é estreito e ra- çarandubas, árvores típicas da Amazônia. contratar alguém para ajudar na casa de- muito conservadora e tradicional. Da mulher, so. O importante é saber navegar: aproveitar Às vezes, eu saía com meu pai para ca- les. Decidi aceitar o novo emprego e pas- era exigido “um bom comportamento”. Ti- os momentos felizes e lidar com os tristes. çar, pois tinha medo de ele ir e não voltar, o sei a ter uma vida mais aprazível. vemos que nos casar e desse relacionamen- Como disse, o rio não para. E seguin- que acontecia com muitos caçadores. En- Pude, então, ir ao cinema pela primeira to vieram meus filhos, motivo de alegria e do o fluxo do rio da minha vida, agora es- quanto isso, minha mãe plantava hortaliças vez… Ainda lembro os detalhes, a expec- determinação para fazer o melhor por eles. tou de mudança (minha neta me ajuda com para nosso consumo, o que não era garantia tativa, a melhor roupa… Naquela época, ir Rio que flui… Enche… Seca… O meu as caixas). Ao pegar uma velha sacola em- de comida na mesa, principalmente quan- ao cinema era um verdadeiro evento social: marido ficou em um determinado porto… poeirada, deparo-me com uma foto da mi- do meu pai nada trazia da floresta. Mesmo sessões sempre lotadas, filmes em preto e Meus filhos seguiram outros afluentes… nha infância, e isso me faz rememorar um com o problema da fome, e da preocupa- branco e, depois, a pipoca na praça. Tantos anos depois, veio o desejo de vol- passado feliz, em que a vida se resumia a ção com meus pais, o rio da minha vida se- Contudo, há períodos de sol e chuva tão tar para onde o rio era largo e tranquilo, o tão somente brincar. guia calmo, até surgir uma forte corrente- peculiares da Região Amazônica… Percebi lugar da minha infância. Será que… Na década de 1950, o interior da Ama- za que, aos 11 anos, me levou para longe. que não podia nadar contra a maré, ainda — Vovó, temos que ir! zônia era diferente: palafitas bem simples Foi a primeira vez que conheci uma ca- que não houvesse decidido em qual porto fi- — Sim, é claro. É o momento de tu sa- (casas de madeira construídas sobre esta- pital: ruas movimentadas, automóveis, ca- caria, então resolvi acompanhar essa família beres sobre o rio… cas) e brincadeiras nos igarapés (riachos sas grandes. Onde fui morar, havia até uma quando se mudou para Belém, a cidade das que nascem na mata e desaguam no rio), escada, e os cômodos eram muito bem divi- mangueiras. Fomos morar em uma vila de * o que é difícil de ser encontrado hoje, até didos. Também foi quando o rio se estreitou casas, ambiente muito comum naquele tem- nas áreas ribeirinhas. Minha casa era pe- até quase secar, pois não aconteceu o que po, normalmente formada por núcleos fami- Texto baseado na entrevista realizada com Rosa Lucas Franco, de 73 anos quena, coberta com uma lona e mais pa- eu esperava: a dona da casa – que disse à liares. Para mim, foi um local novo, com pes- recia um barracão. Não havia divisão en- minha mãe que me acolheria para eu estu- soas, inicialmente, estranhas, mas que de- tre os cômodos: meu quarto era na cozi- dar – obrigou-me a cuidar de uma criança e pois passaram a representar decepções e Professor Paulo Reinaldo Almeida Barbosa nha e ao mesmo tempo na sala. Ali perto, realizar todas as tarefas domésticas. O so- alegrias que eu nunca mais esqueceria. Colégio Militar de Belém, Belém-PA

70 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 71 LATA D’ÁGUA NA CABEÇA, LÁ VOU, MARIA

Evellyn Isabelle Lima Vale

A felicidade pode não significar difi- nha que voltar ao rio e pegar água de novo, Subo e desço “minha ladeira”, agora, culdade, mas ela sempre esteve ao meu la- de novo e de novo. A cada queda, a cada feliz da vida. Realizada com a oportunida- do. Chamo-me Maria Santos da Silva, te- buraco que eu pisava, a cada dificuldade, de que Deus me deu de virar mais uma pá- nho 70 anos e sou do Mato Grosso. Por eu levantava e enfrentava tudo mais uma gina da minha vida. E lá vou eu, Maria, sem lá fiquei até minha adolescência. Eu era vez, assim como eu enfrentava as humilha- a lata d’água na cabeça. do Seringal, no Garimpo, e migrei para o ções sempre com a cabeça erguida. Amazonas em 1960, onde moro até hoje. Oh! Ladeira cruel! Oh! Lata pesada! * Não tinha pai, nem mãe, fui criada por um Quando subia a ladeira com a lata d’água homem e uma mulher que me faziam de na cabeça, ia conversando com minha ami- Texto baseado na entrevista realizada com Maria Santos da Silva, de 70 anos escrava. Eu fazia tudo. Mas o que mais me ga lata. Contando meus sonhos, minhas entristecia era a lata d’água e a ladeira. Oh! esperanças. Queria estudar. Não podia! Lata cruel! Oh! Ladeira malvada! A lata era Era só uma menina escrava que trabalha- minha companheira de todos os dias! Che- va para ter o que comer. gava a odiá-la e amá-la ao mesmo tempo. Anos se passaram. Cresci e saí de lá li- Era um misto de amor e ódio, porque eu vre. Com muito esforço vim pra Manaus. Ca- não tinha ninguém para conversar, a lata sei e consegui comprar minha casa no bairro era minha “amiga”. do Alvorada, onde moro até hoje. Tenho meu Eu tinha que pegar água todos os dias: marido, filhos e irmãos ao meu lado. de manhã, à tarde e à noite porque na- Hoje, toda a tristeza e humilhação que quela época não havia água encanada. E passei viraram alegria. A lata d’água, mi- o pior: para pegar tal água tinha que su- nha companheira de infância, só existe bir uma ladeira muito difícil, inclinada, uns agora nas minhas memórias. A ladeira, um quatrocentos metros. Piorava quando cho- lugar de angústia, sofrimento, lágrimas, e Professora Lucia Nery da Silva via: eu caía, escorregava e a lata d’água se quedas, transformou-se numa rua asfalta- Nascimento ia embora, assim como meus sonhos. Ti- da, cheia do vaivém dos carros. EE Professora Alda Barata, Manaus-AM

72 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 73 DOCES MEMÓRIAS Na fase de moedura da cana, lembro de semana, a festa era sagrada. Ao som de que cada trabalhador era chamado confor- uma radiola a pilha, as pessoas dançavam Rayssa Damárys Fontes de Araújo me a tarefa que exercia. Assim, havia o cor- até certas horas da madrugada, em plena tador de cana, o cambiteiro, o tombador de euforia. cana, o pé de engenho, o bagaceiro verde, Hoje, já não existe mais o bom e velho Na calçada de minha casa, sentado na riacho, pertinho de casa. De cima dos ga- o bagaceiro seco, o boca-de-fogo, o cal- engenho do Seu Pedro Simplício, tão pro- cadeira de balanço, vejo um carro com um lhos da oiticica, pulávamos nas águas… “Ti- deireiro, o mestre de rapadura e, por fim, dutivo, tão animado, tão visitado… Aliás, alto-falante anunciando a venda de mel: bum!… Tibum!…” Era muito divertido! o caixeador de rapadura. Na prática, como no lugar onde vivo, quase não se vê mais “Olhe o mel de engenho da Bahia! É o me- Os meus pais viviam da agricultura. resultado desse processo, obtinha-se a ga- um deles em atividade. Praticamente to- lhor doce para adoçar a sua vida! Venha con- Meu pai trabalhava de sol a sol na roça, rapa, o mel, a rapadura e a batida. Ah, ha- dos dormem entre as folhas secas e alguns ferir!…” Ouvir isso me fez voltar ao passado, com meus irmãos mais velhos. A minha via também o alfenim! Doce alfenim! Eu re- resquícios do passado. à minha infância. Ah, que saudades!… mãe e as minhas irmãs ficavam em casa, lembro, inclusive, que as comadres faziam Lamentavelmente, a seca no nosso Nasci e cresci no sítio Pejuaba, mu- cuidando das tarefas do lar. No tempo da apostas para ver quem puxava o alfenim sertão tem contribuído, ao longo dos anos, nicípio de José da Penha. Eu morava com colheita, toda a família ajudava. Meu pai maior. Era um lep-lep danado, jogando o para o desaparecimento da cana-de-açú- meus pais e meus dezessete irmãos numa sempre dizia: “Vamos trabalhar para não doce pra lá e pra cá, nas próprias mãos, até car em nossa região, levando consigo os casa pequena, muito simples. Quase não faltar comida na nossa mesa”. E, realmen- ficar no ponto. Ria-se a valer! antigos engenhos. tinha mobília, apenas o essencial. Naque- te, não faltava. No período da moagem, papai sem- Atualmente, as recordações passeiam la época, ainda não existia luz elétrica. O As frutas e as verduras consumidas lá pre servia o café da manhã, o almoço e o na minha mente como passeia, de rua em sol iluminava o dia; a noite ficava por con- em casa vinham do pomar, cultivadas sem jantar para todo mundo. O mel era usado rua, o carro do mel de engenho… Um mel ta do brilho da lua e das estrelas, e, den- nenhum tipo de agrotóxico, bem diferente para adoçar o café, o leite, o suco e o bolo que, hoje, serve apenas para reavivar as tro de casa, a gente se valia das lampari- dos dias de hoje. Quando alguém de nos- de milho, que nunca faltava. Já a rapadura, doces memórias do meu passado. nas a gás. Na verdade, lá em casa faltava sa família adoecia, mamãe sempre tinha o alfenim e a batida eram as sobremesas luxo, mas não faltava união entre a gente. à mão uma erva para fazer um chá. Ainda mais apreciadas. Desse modo, posso dizer * Como todo garoto do meu tempo, brin- sinto aquele cheirinho de eucalipto que ela que o mel adoçava a minha vida, bem co- quei de pula-pula, balanço, de roda… Re- preparava quando eu estava com febre… mo a de todos aqueles que lidavam no en- Texto baseado na entrevista realizada com Josival Simplício da Costa, de 57 anos cordo bem os guisados, que fazíamos debai- Posso dizer que vivi tempos de fartura. genho do meu pai naquela época. xo das mangueiras e das oiticicas, ouvindo Eita, que fartura! Quando me vem à men- Na cidade, não havia ninguém que o gorjeio das aves… O canto que mais me te a época das moagens… Desse tempo eu não conhecesse o engenho do Senhor Pe- alegrava era o do bem-te-vi. Parece que es- trago comigo as mais doces lembranças… dro Simplício. Modéstia à parte, era o mais Professora Margarete Maria de tou ouvindo agora… “Bem-te-viii!… Bem-te- Tão doces quanto o mel produzido no en- conhecido da região. Nesse tempo, o sí- Marilac Leite viii!…”. Lembro-me, também, dos banhos no genho do meu pai. tio ficava ainda mais alegre. E nos finais EE Vicente de Fontes, José da Penha-RN

74 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 75 UM DIA DE MUITA FESTA

Gabriela Garcia

Ah!.. Taguaí querida!… Sentada aqui, memorar a vinda da modernidade. Eu que- minuto, olhava no relógio da torre da igre- a iluminação ficávamos mais tempo na rua no terraço de casa, do lado da praça, lem- ria ajudar com os preparativos, mas minha ja, mas ele parecia que estava parado, tal- brincando de pique-esconde, queimada, bro-me, como se fosse hoje, do dia em que mãe não deixou, alegando que eu só tinha vez para registrar com detalhes a novidade. barra-bol… Antes, tínhamos que dormir ce- foi inaugurada a energia elétrica: 8 de fe- 12 anos, era apenas uma criança e não teria Finalmente chegou a hora tão espera- do. Jantávamos lá pelas 6, 7 horas e já ía- vereiro de 1958. Naquela época, o lugar muito em que ajudar. Então, para passar o da. Quando meu pai, maior autoridade da mos para a cama. Eu e meus quinze irmãos era apenas um distrito da vizinha cidade tempo mais depressa, fiquei dando voltas cidade, apertou o botão… as pessoas leva- nos divertíamos até mais tarde, na rua, pois de Fartura, a qual pertencia, e tinha como na calçada com meus irmãos. ram um tremendo susto. A casinha de sapê, papai e mamãe ficavam na calçada conver- nome Ribeirópolis. Só no ano seguinte o Estava chegando a hora, a praça es- com os eletrodomésticos, se iluminou intei- sando enquanto nós brincávamos. então patrimônio foi elevado à condição tava deslumbrante, meu pai chamou até a ra. As pessoas gritavam, aplaudiam, vibra- Hoje, com 72 anos, tenho certeza de de cidade e passou a se chamar Taguaí. escola de samba de Piraju para abrilhantar vam, era algo muito diferente, muito estra- que aquele fato foi o primeiro passo pa- Naquela época, meu pai era prefeito tão grande acontecimento. De um lado da nho e ao mesmo tempo sensacional. Alguns ra transformar completamente a vida dos de Fartura e, consequentemente, de Ribei- praça, onde hoje se localiza a prefeitura, falavam que aquilo era coisa de outro mun- moradores da pequena Taguaí. Depois da- rópolis, onde morávamos. O doutor João mas que naquela ocasião era um espaço do, outros que tudo seria mais fácil dali pra quele feito, muita coisa mudou. Enquanto Renor, engenheiro da Companhia Luz e vazio, fizeram duas casinhas de sapê. Uma, frente. Para falar a verdade, eu concorda- eu viver, todas as vezes que me sentar aqui Força Santa Cruz prometeu trazer a ener- representando as casas antes da energia: va com todos eles. A vida seria muito mais e olhar para a praça, me lembrarei daquele gia elétrica se meu pai colocasse os postes. com lamparina, vela, fogão a lenha, ferro fácil, as pessoas não precisariam mais es- dia inesquecível. Então, papai organizou um mutirão com to- a brasa… E a outra só com eletrodomésti- quentar água para tomar banho, não teriam dos os homens da cidade e em um único cos: geladeira, rádio, lâmpada, ferro… Es- que guardar carne em latas contendo banha * dia eles abriram o mato, fizeram os buracos tava tudo maravilhoso. Aquilo simbolizava de porco, não iriam respirar a fumaça pre- e colocaram os postes do bairro de Taqua- a diferença entre o antigo e a modernidade. ta das lamparinas de querosene ou queimar Texto baseado na entrevista realizada com Creuza Seckler Gobbo, de 72 anos ras, de onde vinha a energia, até Taguaí. Com a proximidade da hora da inau- suas roupas com faíscas do ferro a brasa… No dia da inauguração, eu estava mui- guração da energia elétrica, mamãe vestiu- As pessoas se mostravam muito feli- to ansiosa a ponto de quase explodir de nos com nossas melhores roupas e fomos zes, mas sabiam que para ter todos esses tanta felicidade. Na praça, meu pai, jun- orgulhosos participar da festa. Mas o tem- recursos teriam que pagar pelo benefício. to dos vereadores e dos moradores, esta- po parecia não passar, eu ficava andando na Mesmo assim, estavam satisfeitas. E mais Professora Rosely Eleutério de Campos vam organizando uma linda festa para co- praça em volta do coreto e, de minuto em satisfeitas ficamos nós, crianças, pois com Escola João Gobbo Sobrinho, Taguaí-SP

76 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 77 ACENDE A FOGUEIRA Vovó sempre fazia a “experiência da DO MEU CORAÇÃO bacia com água”; ela a colocava em fren- te a fogueira, e caso o reflexo do seu rosto Maria Emanuely dos Santos Andrade não aparecesse, era porque morreria logo. Era uma crendice daquele tempo. Tudo isso acontecia durante o mês de As lembranças de São João, na casa junho, inclusive eram homenageados não só de minha avó materna, visitam minha cabe- São João, mas Santo Antônio, o casamentei- ça. Foi um tempo de muita alegria… Sabo- ro, e São Pedro, o dono das chaves do céu, res doces, aconchego na noite fria. Bandei- assim diziam os mais velhos. O santo que rinhas feitas de jornais velhos balançavam ganhava a maior fogueira era São João, mas no alpendre. Meu avô saía para cortar a ma- isso ninguém nunca me explicou o motivo. deira que usava para fazer a fogueira e, de- Era uma noite especial, porque parecia pois, a colocava bem no meio do terreiro. Ela que, ali, as pessoas se aqueciam mais ao re- era grande e suas chamas quentes e vivas. partir seu amor umas com as outras. O meu Minha avó fazia o bolo de milho tirado coração se enchia de vida quando ao deitar da roça, que ficava no fundo do quintal, e na rede recebia a benção da vovó dizendo: assava no forno feito de barro. Ainda lem- “Deus te abençoe!”. Ali adormecia aquecida bro do cheiro do cravo e da canela que en- pelo calor do seu amor e pelo afago daque- trava por entre as narinas. Queríamos até las mãos que ficaram em minha memória, comê-lo quentinho, mas vovó sempre di- como um retrato que o tempo não apaga. zia: “Dá bucho inchado”. Na mesa da cozinha, o jerimum e a bata- * ta-doce esperavam sua hora, eram assados nas brasas daquela imponente fogueira.Vovô Texto baseado na entrevista realizada com Maria Núbia Matias Vasconcelos, de 57 anos guardava em sua bodega a caipirinha, bem caprichada, para oferecer aos compadres e comadres que fez durante toda sua vida. Ainda lembro que em noite de São João, de Professora Cícera Mônica da Silva mãos dadas diante da fogueira, as pessoas Santana Simplício se consagravam padrinhos e madrinhas. EEF Maria Benvinda Quental Lucena, Brejo Santo-CE

78 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 79 PLANTAÇÃO DE BOAS LEMBRANÇAS ge, um nevoeiro discreto e silencioso acal- mava meu coração. Grilos e sapos faziam Ana Lígia Costa Peguim um fundo musical repetitivo que embalava meu sono. Amanhã a lida continuaria, era hora de ir pra cama. As lamparinas da ca- A colheita sempre fez parte da minha festiva, e o meu mundo era enorme dentro ca em época, a gente capinava, despenca- sa se apagavam. vida. Como no passado, quando admirava de mim. Mas se as raras compras na cida- va, rastelava, abanava ou ensacava o café. Acendo a luz do meu antigo quarto as centenas de sacas de estopa com o ca- de também faziam meus olhos brilharem, Ao final, sempre a expectativa por uma co- compartilhado com minhas irmãs. fé colhido, às vezes fico aqui, em silêncio, o apego e a felicidade dos meus pais pela lheita melhor que a anterior, e o orgulho de — Ah… Minha neta, como é bom revi- contemplando os balaios das várias safras vida na roça faziam parecer não ser possí- alguém por ser o acertador do número de sitar cada cantinho deste lugar! Pena que o dessas minhas memórias … vel outra forma melhor de vida. sacas daquele ano. cafezal não exista mais e tudo virou cana- O habitual cheirinho de café desper- “Barriga cheia, pé na areia”, e não era O cansaço era sinal de que o dia ha- de-açúcar. A casa da vovó lá na cidade po- tava-me de meus sonhos. Levantar daque- só força de expressão não, eram quatro via sido produtivo. O sol se punha, trazen- de até ser mais confortável, mas este sem- le colchão feito de palha de milho era um quilômetros de estrada de chão batido até do alívio para o corpo e para a alma. As en- pre será meu lar, onde, hoje, meus filhos e alívio para meu corpo, aliás, dividi-lo com a escola. E para não chegar com os sapa- xadas eram guardadas, os embornais, com vocês, meus netos, me enchem de alegria uma de minhas quatro irmãs não era nada tos sujos, ou levávamos um reserva, ou ía- alimento, lima e a garrafa de água, eram nesses almoços de domingo. E se o cafezal confortável. Mas não havia tempo para re- mos descalços para lá lavar os pés e calçá- recolhidos. A casa nos aguardava e tínha- não existe mais, e se lá na cidade as coi- clamar, o galo lá fora já havia feito seu tra- -los. Era uma escolinha rural no sítio Por- mos pressa de chegar. sas mudaram muito, virou lugar de turista, balho, pelas frestas da casa sem forro via- to Alegre. Ah… Quanta saudade! As salas Toda semana, uma das cinco filhas era quando estou aqui, sinto que o lugar onde se que o sol já ameaçava apontar. Pés des- de aula divididas em diferentes séries, a responsável pelo preparo da refeição. Em vivemos nunca se acaba dentro de nós. Car- calços no piso de vermelhão, eu seguia o sopa servida todos os dias, as brincadei- minha semana, fazia minhas mãos dan- rego coisas que ninguém pode colhê-las co- aroma delicioso. À beira do fogão a lenha, ras de corda, amarelinha, ciranda… Que çarem sobre a panela do fogão a lenha. mo eu: a minha plantação de lembranças. via que a Mariquinha já estava sem o bu- memória feliz! Eu descobria ali uma arte. Mesmo quase le, mamãe já nos aguardava. Bolos, broas Depois de mais quatro quilômetros consumida pelo cansaço, o preparo da re- * e biscoitos caseiros eram postos na mesa andados de volta, chegávamos cientes de feição era um momento sagrado em que com fartura. Comíamos sem medo de en- nosso dever com a enxada. O café, perto agradar o paladar de todos era o alimento Texto baseado na entrevista realizada com Silvana Cristina Soares Peguim, de 52 anos gordar, o dia era longo e os afazeres mui- do lápis, parecia chumbo para minhas cos- da minha alma. tos. Precisávamos de “sustância”. tas, mas havia sempre encantamento ao Depois da janta, gostava de sentar lá Era década de 70, zona rural de Olím- ver a florada do cafezal, o pé mais carre- fora. Num banquinho de madeira, sob o pia, no interior de SP: plantações de ca- gado, os grãos mudando de cor, o docinho céu estrelado, olhava a lua que parecia Professora Luciana Fátima de Souza fé, casas todas parecidas, gente simples e do grão já vermelhinho na boca… De épo- suspirar comigo pelo final do dia. Ao lon- Escola Anita Costa Dona, Olímpia-SP

80 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 81 BAÚ DE MEMÓRIAS Os outros onze eram filhos de Inês. ras! Ah! Hoje elas foram esquecidas pelos cambira para brincarmos. Bom, já é possí- Calma! Era outra Inês. O velho gostava de pais que não ensinam aos filhos as brin- vel imaginar o que aconteceu! Acabei mer- Meirielen Dias Andrade Inês, tanto que teve duas mulheres com o cadeiras que aprenderam quando eram gulhando no mar de espinhos! Minhas ir- mesmo nome. E de filhos! crianças. Na verdade, elas foram substi- mãs foram me ajudar. Como não tinham No retorno da escola, machucávamos tuídas. A tecnologia foi tomando espaço, força, me soltavam novamente sobre o mar Na varanda de minha simples casinha, os pés no tapete de pedras que se esten- os novos brinquedos chegaram. Naquele espinhoso. O sangue jorrava pelo corpo e no aconchego de uma cadeira de balanço, dia pela estrada, pois nós sempre fomos tempo, brincávamos de roda nos terrei- um banho de açúcar foi o recomendado fico a cismar. E, numa visita ao álbum fo- aventureiros, e às vezes enfrentávamos rões das casas, cantávamos versos do ti- para remédio. tográfico, empoeirado, muitas lembranças aquele chão quente com os pés descal- po: “Quebra, quebra, Guabiraba/ quero Essas são algumas das pequenas re- vem à tona. Fotografias que, apesar de es- ços. Se doía? Sim. Mas a dor era esque- ver quebrar/ quebra lá que eu quebro cá/ cordações que viajam na minha memória. tarem amareladas pelo tempo e anuncian- cida. Gostávamos mesmo era de obser- essa noite eu não dormi/ só pensando em Algumas não puderam ser registradas pa- do que o mesmo passou, trazem lembran- var a paisagem da Caatinga. Nambu, ti- ti/ vou deixar de te amar/ pra poder dor- ra serem guardadas no álbum fotográfico, ças. Aliás, essas recordações foram as úni- ziu, beija-flor, enfeitavam aquele espaço, mir!”. Também inventávamos muitos tran- pois elas aconteceram de forma inespera- cas coisas que não obedeceram ao tem- enquanto joão-de- barro dava os últimos çados de chapéu, que se transformavam da, natural. Hoje, com meus 63 anos de po e permanecem vivas, guardadas no baú retoques na construção de sua casa. Nós, em corda para balanço. Só podíamos fazer idade, guardo no baú grandes lembranças. que eu costumo abrir vez ou outra para sa- moleques traquinas, às vezes levávamos isso quando o chapéu começava a descos- Guardá-las, vez ou outra, é fazer uma via- borear o passado. um badogue escondido para, no retorno turar naturalmente. gem ao passado. Morávamos numa casinha afastada da escola, voltarmos atirando nas pobres (…) Só de ouvir estes versos, meus da correria diária da cidade grande. Pou- criaturas. Hoje, é difícil encontrar alunos olhos brilham, minha mente viaja. Nas can- * cas casas formavam nosso querido Povoa- que vão à escola como íamos antes. Ani- tigas de roda, foram muitos amores! Mas, do Sítio da Conceição, hoje, território de mais que encontrávamos de forma abun- na minha doce mocidade, só tive Zefinha. Texto baseado na entrevista realizada com José Carlos de Andrade, de 63 anos Adustina, desmembrado de Paripiranga, dante estão sumindo. Não se ouve o gor- Ah! Essa mulher eu posso dizer que real- onde resido. Não éramos acordados pelo jeio dos pássaros como ouvíamos antes, mente é o amor da minha vida. Naquele estrondoso canto do galo, e sim, pelo som pois, com a chegada do progresso, eles al- tempo tudo era diferente. Nada de namo- da enxada sendo amolada por meu pai. Ele çaram voos. Sumiram entre os restos de rar às escondidas. O pai da moça ficava acordava, diariamente, no mesmo horário mata que sobraram. observando. Nosso namoro foi uma graça para ir à labuta e conquistar o pão de cada A vida naquele tempo era dura! Estu- e rendeu um casamento maravilhoso, ape- dia. Aquele barulho anunciava que era ho- dei apenas até a segunda-série. Depois, sar das dificuldades e regras que eram co- ra de acordar e ir à escola. Éramos em 22. fiz um tal de Mobral. Meu interesse tal- locadas pelo pai da moça. Onze da segunda família do meu pai, que vez não estivesse nos estudos, mas duma Dentre tantas peripécias, uma ainda Professor Marciel Cabral de Andrade era casado com Inês. coisa eu sempre tive apetite: as brincadei- dói. Fizemos uma ponte sobre pés de ma- EM Cantinho da Paz, Paripiranga-BA

82 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 83 PARA LÁ DAQUELE MATA-BURRO… sa para a qual levava um pedacinho de car- ninha fazia-me cruzar o mata-burro e ato- perado para ver a mocinha da qual gosta- ne era a da Maria, aquela mocinha bonita rar caminho só para vê-la passar pelo que- va era a Festa do Divino. Os faxinalenses Héwilli Gonçalves Ferraz e simpática. Além disso, para a carne não bra-corpo, suas curvas de moça donzela eram de muita fé, participavam das festas estragar, fritávamos e colocávamos em la- requebravam, ia ela “quebrando o corpo” religiosas e também gostavam de um bai- tas de banha. Tudo se aproveitava: o touci- pela paisagem verde das araucárias. linho nos finais de semana. Meus olhos ainda são daquele meni- nho, o torresmo (acompanhado sempre de De tarde, era comum o som do “trec Quantas lembranças! Quantas saudades! no… Na simplicidade de minha varanda, um saboroso virado, nosso café da manhã), trec trec” do pilão: mamãe fazendo canjica. Hoje, o mate amargo é também o gos- tomando um amargo chimarrão, não es- o sangue, as tripas e os miúdos, ah, e co- Enquanto isso, meu pai trabalhava moendo to do meu lamento porque vejo sumindo tou só, me acompanham as doces lem- mo não lembrar do sabor do chouriço. Esse erva no barbaquá, depois, secava e a moía meu Faxinal. Vejo vindo para cá e para lá branças, memórias a nascer no auge de era o nosso banquete familiar. Com a ba- novamente com um rolete puxado por um daquele mata-burro o progresso, observo minha velhice. nha do porco mamãe também fazia broa, cavalo, e pronto! Estava ali o chimarrão e máquinas que vêm e vão, mas não são pu- Um menino a viver em um faxinal, hum! Aquele cheirinho de broa sendo as- o chá nosso de cada dia, torrado no fogão xirões, vejo grandes plantações particula- uma forma coletiva de vida, tanto no cul- sada na fornalha de barro. Às vezes, boli- a lenha. res, mas que não alimentam a alma. Qua- tivo de plantas quanto de animais… O ma- nhos fritos na banha, meus irmãos e eu já Lembranças me acompanham e, dessa se não vejo animais soltos, fecharam-se os te amargo lembra-me a vida dura que le- corríamos para a mesa, sabíamos que era varanda, vejo o sol sumindo. Sempre que es- armazéns, quase não há festas religiosas vava, uma vivência simples e sofrida, mas hora da merenda, tudo arrumadinho com curecia no meu antigo Faxinal, era hora de e nem bailes, pouco resta das araucárias, os faxinalenses se ajudavam com o pouco tanto carinho em cima daquela toalha co- acender o lampião a querosene e a lampari- tem sobrado só a saudade. que tinham. lorida e de retalhos feita pela mamãe. na com água e óleo. A luz não durava muito, Da minha varanda, fico olhando para Eu era um “piá” simples, morávamos Perto de casa havia um mata-burro, meu íamos dormir cedo e, então, eu sonhava com lá daquele mata-burro, meus olhos ainda meus pais e eu em uma casinha de madei- passatempo era olhar para lá daquele mata- aquela moreninha vindo bater em minha ca- são daquele menino, não vejo minha mo- ra em Faxinal dos Marmeleiros. Em um pe- -burro. Dia sim, dia não, Maria vinha daquela sa: — Vizinho, tem mio pra trocá por fejão? rena donzela e não vejo meu antigo faxi- dacinho de chão brotava o nosso susten- direção. Trazia sempre uma cesta de taquara Mal sabia ela que eu trocaria tudo se nal. Para cá do mata-burro vem chegan- to, tirávamos da terra tudo o que precisá- com algum alimento para trocar… conquistasse a sua mão. do a saudade… vamos para sobreviver. — Ô de casa, tem mio pra trocá Era comum nos faxinais o “puxirão” (a Animais eram criados soltos, viviam por fejão? troca de serviços na lavoura com os vizi- * todos juntos, porcos, cavalos, vacas e ca- No faxinal eu cresci e tão ingênuo nhos), quando chegava a época de arran- britos. Vez ou outra, matávamos um por- amor encontrei para lá daquele mata-bur- car feijão, eu me animava, sabia que en- Texto baseado na entrevista realizada com Loirdo Ribeiro Ferraz, de 74 anos quinho, eu era o encarregado de levar um ro, onde animais não passavam, pois ele contraria Maria, ela vinha requebrando o pedaço de carne para os vizinhos mais pró- era feito de tábuas com um pequeno es- corpo, trazendo a marmita, que seria o al- ximos, havia ali o milagre bíblico da multi- paço entre elas. Mas meu amor por Maria, moço a ser esquentado num braseiro no Professora Carla Micheli Carraro plicação, o pouco era muito. A primeira ca- ah, este passava a galope… Aquela more- chão com galhos de sapé. Outro dia es- CE Campo de Faxinal dos Marmeleiros, Rebouças-PR

84 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 85 BEBEDOURO CHORA AS ÁGUAS

Matheus Walisson da Silva

Por alguns instantes não ouço nenhum das ao meio. A última dava de frente para Quando os grilos começavam a cantar, esticar o tempo, só para aproveitar mais. barulho. Só minha lembrança manhosa dá a lagoa Mundaú, onde me trepava nela e anunciavam que já era hora de ir em bus- Amanhecia o dia e as pessoas já espera- sinal de vida. Saio remando para o ano de via o sol mergulhando pouco a pouco nas ca do sustento. Minha mãe distribuía en- vam para comprar a corda de caranguejo, 1959. “Uma lagoa, um manguezal, berço na- águas, enchendo a noite de magia e misté- tre os filhos mais velhos o patrimônio da o camarão e o sururu de capote, que eram tural de peixes, camarões, caranguejos…”. rios. Ao longe, avistava a estação de trem, família: a “teteia” e o “puçá”, e eu levava tirados da lagoa Mundaú na hora e vendi- Tinha pouco menos de 5 anos, uma meni- que quando dava o ar de sua graça, a ale- o candeeiro feito de lata de óleo com um dos em latas. Era um festival de crustáceos! na com apenas uma muda de roupa n’água gria saltava do meu coração, igual ao as- chumaço de algodão, que clareava o cami- O tempo passou… Nessa travessia pa- e no corpo. Era a derradeira filha de sete ir- sobio dele ainda distante. Quanta emoção! nho. Ia sempre com os pés descalços den- ra o passado as palavras saem molhadas, mãos. Nesse tempo minha mãe era uma jo- Tempos bons aqueles, em que toda a tro d’água, sentindo cheiro da lama doce pois o bairro Bebedouro que me abrigou vem viúva. Por isso, trabalhava muito para vizinhança se conhecia e se respeitava. Era no nariz, vendo as canoas dos pescadores está em área de risco. Alguns moradores, nos manter. Ela lavava roupa de ganho, pes- só perguntar pela irmã Januária que logo ancoradas nas beiradas. Nadava de tanta pescadores e comerciantes já deixaram o cava, cuidava da casa e dos filhos. Porém, a era dado todo o histórico da minha mãe. felicidade! Nesse tempo, tinha também as local, outros estão sendo convidados pe- hora da refeição era sagrada. Brincávamos na rua de esconde-esconde, “baronesas”, planta aquática que abrigava la Defesa Civil a fazerem o mesmo. Mas a Sentávamos em tamboretes à mesa de queimado, rouba-bandeira e cozinhado. os camarões piciricas. Então, chegávamos lagoa Mundaú continua remando, reman- madeira crua. Então, recebíamos os ensi- Essa última? Era minha brincadeira favori- de mansinho com o puçá para capturá-los do… Como para nos lembrar que é neces- namentos e éramos servidos pela chefe da ta! Cada criança levava um item de comida e comermos no outro dia. sário respeitá-la e valorizá-la. Enquanto is- família. O cardápio quase sempre o mes- de casa e lá misturávamos tudo numa pa- Nessa época, nosso Bebedouro oxige- so, Bebedouro chora as águas… mo: cuscuz molhado com caldo de sururu nela, colocávamos na fogueira improvisa- nava a economia alagoana. Tudo o que vo- de capote. Que recordação! da e cozinhávamos. Depois de pronto, era cê imaginar, tinha ao alcance: feira livre, * Tínhamos uma casa simples, de pare- só dividir e comer, ali sentados no chão. estação de trem, praças, igrejas… Parecia des nuas, sem luz elétrica, sem água en- Sempre recebia elogios sobre o preparo. uma cidadezinha do interior! Sem falar nos Texto baseado na entrevista realizada com Vera Lúcia Batista do Nascimento, de 60 anos canada. O banheiro era do lado de fora, Era uma delícia! Enquanto isso, nossos pais festejos de época, quando aconteciam as rodeado de palha de coqueiro e, dentro, conversavam e se ajudavam no que fosse festas mais animadas de Maceió. Era um apenas um buraco para fazer as necessi- preciso. Eles nos olhavam como se fôsse- reduto festeiro! Recordo-me que muitos da dades, que eram despejadas na lagoa. As mos seus filhos e nós os respeitávamos co- adjacência vinham a pé, de trem, só para Professora Jacira Maria da Silva portas da frente e do fundo eram parti- mo se fossem nossos pais. prestigiar aquele dia. Eu tinha vontade de EM Doutor José Haroldo da Costa, Maceió-AL

86 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 87 O DIA EM QUE A ÉGUA DESEMBESTOU é que ele me viu e pediu-me para levar a sa hora derrubei tudo: carteira de cigarro, Meus amigos Gildázio e Giltinho disse- égua até a fazenda do meu pai. Foi aí que dinheiro… E a égua correndo… ram para eu descer, contudo me recusei!!! Emilly Juliana Santana Santos minha saga começou e vários outros per- Quando chegou numa baixa, perto de Imagina só se depois de tanta emoção e sonagens entraram na história… uma fábrica daqui, chamada Parmalat, um aventura eu iria querer acabar de vez com Montei na égua, o vaqueiro ainda me amigo de meu pai, Givaldo Cabeludo, ten- aquele sublime momento?!!! Muitos foram os momentos felizes e en- alertou para que eu fosse bem devagar, já tou me ajudar colocando sua moto na fren- Foi aí que meu pai chegou montado graçados que vivi na minha infância e ado- que ela era muito “braba”. Até ouvi o que te. No entanto, a égua passou por cima de- em outro cavalo e me fez descer da égua lescência. Entretanto, houve um que marcou ele disse, porém, não dei muita importân- la, derrubou-a e continuou em disparada e (Deus que me livre de desobedecer uma a minha vida e do qual jamais esquecerei: cia e saí no galope devagar. eu continuava no lombo dela. ordem dele!). Ele pegou-a, montou nela e o dia em que a égua desembestou comigo. Ao chegar na frente do único posto Eu e minha amiga aventureira já nos voltamos para nossa fazenda, só que agora Era um dia comum como qualquer ou- de gasolina que havia na cidade, conheci- encontrávamos um pouco distantes da fa- eu já estava no cavalo manso. Quando che- tro na minha vida. Acordei, fiz as tarefas do como “Posto de Luciano”, encontrei al- zenda do meu pai. Já estávamos em outra gamos na cancela do nosso terreno, meu cotidianas e fui para a escola. Eu morava guns amigos que também estavam monta- fazenda que hoje é conhecida como “Fa- pai quis entrar de vez e a égua derrubou-o. na zona rural da cidade de Monte Alegre dos em cavalos e eles me chamaram para zenda de Baixinho”, mas que na época per- Todos que estavam na hora começaram a de Sergipe. Aqui, até hoje chamamos a zo- pegar “pareia”. Como sempre fui uma me- tencia ao senhor Antônio Ramos. Foi aí que rir, foi “mangação” geral. Como é que um na rural de “interior”. Nesse dia inesquecí- nina aventureira, que não perdia um desa- outros amigos da família também tentaram dos melhores vaqueiros da região caiu de vel, meu pai, Adalberto Pitu – esse “Pitu” fio, aceitei na hora! me socorrer: Gildázio de Antônio Ramos e uma égua enquanto sua filha, de uns 10 ou é o apelido pelo qual minha família é co- Aticei a égua e coloquei-a no galope. Ednilson de seu Edmilson. Eles pegaram 12 anos na época, não caiu?! nhecida na cidade, não sei exatamente de Ela saiu em disparada… uma F100 de seu Edmilson, a colocaram Foi aí que me senti a melhor cavalei- onde veio, mas acredito que seja desde o No caminho, havia um bueiro onde na pista e ficaram com os chapéus e as ca- ra ou amazona, como queira, de toda re- tempo do meu avô ou bisavô –, pediu para hoje fica o ferro-velho de Geilson Correia. misas sacudindo, que era para a égua en- gião sertaneja. um vaqueiro, que trabalhava em nosso ter- Nesse local, a égua desembestou de vez e trar para o lado de um povoado chamado reno, que lhe comprasse uma carteira de eu comecei a gritar: Tabuleiro e, assim, sairmos da pista. * cigarro na cidade, montado em uma égua — SOCORRO! SOCORRO! ALGUÉM Fecharam ainda o outro lado com ou- “braba” que tínhamos. ME AJUDA! tro carro para que assim o animal não ti- Texto baseado na entrevista realizada com Aclécia Santana Silva, de 42 anos E assim ele fez. Após ter comprado o Todos os meus amigos pensavam que vesse escolha. Ao perceber que estava en- cigarro, o vaqueiro passou na frente da mi- eu estava brincando, e a égua correndo… curralada, ela correu para a estrada de ter- nha escola e naquele exato momento eu Passamos pela frente da cancela da fazen- ra, pulou quatro fios de arame e eu conti- estava de saída. Não sei o que se passou da do meu pai, mas a égua não entrou pa- nuava em cima dela… Professora Martha Danielly do Nascimento Melo na cabeça dele ou se ele tinha mais algu- ra casa e continuou direto. Eu continua- Alguns minutos depois, ela parou. Os EE José Inácio de Farias, ma coisa para resolver na cidade. O fato va aos berros, “SOCOOOORRO!!!”. Nes- meninos queriam me tirar de cima dela. Monte Alegre de Sergipe-SE

88 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 89 MITOLOGIA CONTENDENSE

Luciely Costa Santana

Como esquecer aquelas noites mal assim, nos arrebanhou, e nos trouxe pa- do o sono de algumas pessoas na nossa co- abri-los e a espiar pelas frestas do teci- dormidas onde o medo e a curiosidade, ra a sede do município. Graças a acolhida munidade. “É verdade, ‘cumade’, Fulano de do fino que me cobria. Foi sob essa ten- paradoxalmente, apavoravam a minha pe- de alguns conhecidos, fomos nos estabe- tal ouviu”, e outra completava: “Ciclano de são que surgiram os primeiros sons de um quenina cidade, Contendas do Sincorá? lecendo e, depois de algum tempo, já es- tal também escutou na rua dele”. Naquela carro de boi, que se unia ao som de cascos Tudo sucedia durante o período que távamos totalmente familiarizadas com os hora, a brincadeira de “galinha gorda” dei- de cavalo. Prendi a respiração, paralisei. O marcava o início da quaresma. Tempo mar- hábitos dos moradores daqui. E foi assim, xou de ter graça para mim, fui sobressalta- alarido lá fora se misturava às vozes da mi- cado pelos velhos mitos e lendas que aflo- durante um desses costumes, que pela pri- da por um medo que se intensificou com a nha mãe, que agora rezava alto, repetindo ravam a imaginação do nosso povo, cujas meira vez tomei conhecimento desse fato. chegada da boca da noite. sempre as mesmas palavras. narrativas dividiam opiniões, entre aque- Era a tardezinha de uma sexta-feira, Naquela noite, o punhado de comida Aos poucos, o som ia se distancian- les que juravam de pés juntos que o fato lembro como se fosse hoje, eu, minhas ir- que me coube como jantar fora refugado, e do, e o medo ia dando lugar à curiosida- era real, e outros, mais incrédulos, diziam mãs e mais algumas crianças, nos banhá- enquanto minhas irmãs disputavam o meu de: “Como seria esse cavalo?”, “Quem o ser invenção das mentes fantasiosas. E eu, vamos no rio Sincorá, enquanto mamãe e prato, mamãe olhou-me por alguns instan- conduzia?”, “Havia algum cavaleiro?”. Es- com apenas 12 anos, claro, me encaixava as vizinhas estavam prostradas sobre as tes, baixando a cabeça e, logo em seguida, sas respostas jamais tivemos, pois alguns no primeiro grupo. bacias de roupas e pratos, pois era lá que mantendo-se em silencio; ela compreende- corajosos de plantão, atraídos pelos sons, Eu ouvira nem uma, nem duas ve- todas essas tarefas eram feitas. Não ha- ra minha atitude. Lá fora, a lua bonita nos seguiram atrás, e quando questionados so- zes… Mas dezenas de vezes o estampido via pia, banheiro e, muito menos, água en- convidava para as brincadeiras de roda e bre o que viram, o consenso era geral: “Eu do “carro de boi encantado”, seguido do canada como nos dias de hoje, as coisas tumba (esconde-esconde), para as prosas ouvi, mas não vi nada”. E eu endosso: tam- trote do “cavalo encantado”. Mas nenhuma eram muito difíceis naquela época. dos adultos nos bancos de madeira finca- bém ouvi, mas não vi nada, até porque não delas me aterrorizou mais do que aquela O rio era, portanto, a extensão de nos- dos na entrada das casas, mas, lamentavel- tive coragem de espiar. primeira vez. Havíamos mudado recente- sas casas, e apesar desse vaivém entre a ca- mente, naquele dia nada disso aconteceu. mente da zona rural denominada Caraibi- sa e o rio, tudo era muito prazeroso. Aquele Fomos para cama mais cedo do que de * nha. Papai havia falecido de repente, dei- instante não fora diferente, e foi assim, em costume, mamãe não dormia sem antes re- xando a viúva com quatro filhas, sendo eu meio a algazarra das crianças e as batidas zar seu terço e outras ladainhas, que naque- Texto baseado na entrevista realizada com Maria dos Anjos Vieira Menezes, de 78 anos a mais velha. Mamãe, mulher sofrida, mas da roupa na pedra, que tomei conhecimen- le dia se repetiram várias vezes. E eu lá, em- de muita fé e coragem, trocou seu luto pe- to de que havia um carro de boi encantado brulhada dos pés à cabeça, com os olhos Professora Maria Solandia da Silva Brito la luta de dias melhores para suas filhas e, e os cascos de um cavalo encantado tiran- fechados, uma vez ou outra me atrevia a EM Santa Luzia, Contendas do Sincorá-BA

90 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 91 DOCES MEMÓRIAS “arrancar pica-pau do oco”. Enquanto is- Dezembro era pura magia! As chuvas e so, exalava dos casarões um cheirinho de nossas brincadeiras no lamaçal. Quanta far- Adrielle Vieira de Oliveira macarronada com galinha caipira que da- ra e criatividade! Os meninos abandonavam va água na boca. Só mesmo atraídos por os carrinhos de lobeira – pequeno arbusto esses aromas e pelo apito do trem das on- – e eu, as minhas bonecas de retalhos. Co- Percorro em sonhos a cidadezinha de ze, assinalando o horário do almoço, é que mo a rua era bem mais atrativa! Tudo ali se minha infância. Um largo e caudaloso rio deixávamos a pracinha do chafariz. tornava fantástico. Construíamos castelos serpenteando até a várzea fértil. A ponte Quando o inverno chegava, minhas tris­ de barro e imaginávamos uma fábrica de de ferro da charqueada já se encontrava lá tezas e alegrias contrastavam. Cortava-me chocolates. Ah, chocolate! Só na imagina- toda imponente. A luz elétrica, ali produzi- o coração ver meu pai e mais seis irmãos ção mesmo, pois no empório da dona Gilda, da, iluminava o centro da cidade. Poucos saírem debaixo de um frio congelante pa- onde se vendia do urinol ao chocolate, tu- casarões de pau a pique ao longo da paca- ra irem trabalhar, arduamente, na lavoura. do era caríssimo. Comerciante boa era ela! ta Rua Belo Horizonte, hoje, a movimenta- Eu ficava em casa ajudando mamãe com Cartão de crédito era a palavra do freguês. da Avenida Abílio Machado. os afazeres domésticos. Inesquecíveis foram os saraus de fim Impossível esquecer-me da igrejinha Carregar pote de água na cabeça de ano do Sr. Abner, ali a cultura, a arte e o do Rosário com sua torre norte sineira. Às não era nada divertido. Pelo caminho, romance se misturavam. Quantos poemas quinze horas, começava um movimento sonhava mesmo era carregar minha car- ouvi, quanto me emocionei! Muitos casa- pelas vielas. Lá se iam as senhoras atraí- tilha e ir para o Grupo Escolar. Como foi mentos saíram dali. Hoje, recordo-me de das pelo tocar do sino. Hora do terço, mui- dolorido sair do 2o ano! Mas já sabia ler tudo com lágrimas quentes descendo dos to me admirava a fé daquelas pessoas! Ma- e isso bastava para as famílias pobres. meus olhos e salgando a boca. Porém, o mãe, com apenas um olhar, recomendava- Para esvair minha dor, só mesmo o can- que permanece em minha memória, ado- me silêncio e puxava a turma de carolas to e os mexericos das lavadeiras na mi- cica esta solitária velhice. com cantos e orações. Rezávamos até pa- na. Sábias, ludibriavam bem quando eu ra chover, se a seca ameaçasse a planta- estava por perto. * ção. Mas o que mais me encantava nessa Jamais envolviam crianças em assun- igreja, eram as missas das manhãs de do- tos de adultos. Já as alegrias, vinham com Texto baseado na entrevista realizada com Lucy Ferreira Vieira, de 73 anos mingo. Depois de uma longa homilia, saía- as festas de São João. Fogueira gigante, mos a apreciar os poucos carros tipo “Ford noite estrelada, em que não poderia faltar Bigode” que circulavam em torno da pra- aquelas broas de fubá com canela, de sa- Professora Juralice Rita da Silva ça. Ora assentávamos nos banquinhos pa- bor jamais degustado igual, como aquelas EM Centro de Atenção Integral à Criança, ra uma boa prosa. Havia umas prosas de que só vovó Conceição sabia fazer. Formiga-MG

92 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 93 MEMÓRIAS DE UMA Ao cair da noite, o inebriante aroma de das”, nada me remeteu ao açúcar ou ao volume do mundo se abaixou, bruscamen- GATA BORRALHEIRA querosene, vindo das lamparinas, emana- perfume. Foram seis longos anos de tra- te, dentro de mim! Nossos progressos se va pelo ar em nosso ranchinho beira chão. balho árduo, em troca – apenas – de um entrelaçaram… Matheus Fernandes de Sousa Descansávamos nosso corpo fatigado no prato de comida para saciar minha fome. Nossa rua foi pavimentada com para- colchão de palha, afagados pela colcha de A fome de aprender a ler e a escrever? Es- lelepípedos, o largo central virou praça, a retalhos, a única decoração daquele rústi- sa não suportou e sucumbiu já no primeiro energia elétrica chegou levando embora a “Ah, são tantas lembranças daquela co ambiente. O cricrilar e coaxar da gran- dia! Em meio a tanta peleja, consegui juntar escuridão da noite e o ferro de passar a bra- época, meu querido!”, respondeu minha diosa orquestra de grilos e sapos embala- algumas gorjetas e fugir daquele pensiona- sa. Reaprendi a ouvir lendo lábios e vi, de- avó, ao ler em meus lábios a indagação vam nosso sono. to que só me deixara lembranças sombrias. vagarinho, chegarem ali estradas, água en- sobre sua infância. Para papai, aprender a ler e a escrever Papai, sabendo que seus dias se finda- canada, fogão a gás, televisão… Também vi Escondido no Cerrado goiano, próxi- era algo supérfluo, um “incutimento sem vam, vendeu nosso pedacinho de chão e, papai descer à sepultura levando com ele mo ao povoado de Campo Limpo, então pé nem cabeça”, mas para mim, o meu na esperança de dias melhores, mudou-se uma parte de mim! distrito de Iporá, nosso sítio foi o cenário maior sonho. Ansiava por aprender a es- para o distrito que ganhara autonomia gra- Hoje moro em Iporá. Meus olhos trans- da minha infância. Fui a sétima filha de um crever o meu nome. Não recebíamos ne- ças ao então deputado Israel de Amorim: bordam ao trazer de volta memórias de um total de doze irmãos. Papai era boiadeiro, nhuma instrução dentro ou fora de casa. Amorinópolis. passado que, apesar das dificuldades, nos tocava a boiada pelo estradão. Muito rígi- Ricardo, meu irmão primogênito, co- Que nostalgia lembrar do lugar onde fazia felizes o quanto podia, pois tudo ti- do com os filhos, nos repreendia apenas nhecendo essa minha grande ambição, ao tive o refrigério de minh’alma! Ao anoite- nha o seu valor. com o olhar. Mamãe fabricava rapadura ouvir de uma astuta senhora que procura- cer, a cidade ainda se encontrava às escu- Permanecerão em minha memória e para incrementar a renda da família. va uma menina-moça para lhe auxiliar nos ras. A pobre iluminação, oriunda de lam- em minha alma, sem o “coitadismo” enrai- Nossos brinquedos, presenteados pela serviços domésticos, em troca de manti- piões a gás, dava um ar fantasmagórico ao zado, lembranças de uma vida que sem- mãe natureza, eram bonecas de sabugo de mentos e estudo, não pensou duas vezes, ambiente. Na rua de chão batido, vislum- pre foi e me exigiu a ser que nem rapadu- milho, corda de cipó para pular, cavalinho de foi logo falando sobre mim. O combinado brava a nuvem de poeira pairando pelo ar. ra: doce e dura. pau e barro para moldar objetos. Aos 8 anos, foi feito e meus pais deram a permissão. A geladeira funcionava a querosene, che- estávamos fadados a ajudar na labuta diária O percurso de 30 léguas para Rio Ver- gava fogo embaixo para gelar em cima. A * da vida na roça, pois, naquele tempo, o va- de, que hoje leva 3 horas, demorava qua- GO-221, que facilitou o acesso ao Sudoes- lor do suor era o que pesava. Novos “brin- se um dia para ser feito. Ali, aos meus 12 te goiano, ainda não existia e Amorinópolis Texto baseado na entrevista realizada com Beronice Mendes dos Santos, de 66 anos quedos” levavam embora nossos devaneios: anos, embarquei rumo a uma jornada de era rota obrigatória para muitas cidades. a pá, a enxada, o pilão e a enorme colher de sonhos e lá desembarquei em uma reali- Em julho, a tradicional festa da pa- cabaça, usada para mexer o imponente ta- dade de pesadelos! droeira local deixava a cidade alvoroçada. Professora Marília Alves cho de cobre com garapa sobre a fornalha Meu mundo de ilusão me conduziu a Em meio a uma delas, um rojão desgover- de Oliveira Magalhães ardente, para mamãe fazer rapadura. tornar-me a gata borralheira. Nessas “bo- nado adentrou nossa cozinha e explodiu. O EM Valdivino Silva Ferreira, Iporá-GO

94 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 95 ALMAS LAVADAS A chegada em Marinópolis, interior de Minha vida sempre foi muito sofrida. Meu marido morreu assassinado em São Paulo, foi muito doída. Faltava-nos um Mesmo grávida tinha que trabalhar. Acor- seu trabalho. Duro golpe que levei. Aliás, Beatriz Aparecida de Souza Silva pedaço, mas, apesar da pobreza e da feri- dava sempre cedo, preparava marmitas e as perdas não pararam… Tive mais uma da ainda sangrando em nossos corações, ia com meus filhos maiores para a roça. Os querida alma, saída do meu ventre, que fo- estávamos felizes pela nova oportunidade. menores ficavam sozinhos em casa. Mui- ra morar com Deus. Meu filho morreu afo- Abro meus olhos e me deparo com Fomos morar num sítio, em um bairro tas vezes deixava de comer para dar a eles. gado no São José dos Dourados, rio que uma cena triste e, ao mesmo tempo, acon- rural chamado Areia Branca, numa casinha O nascimento de uma menina foi uma banha a cidade. Fiquei despedaçada. chegante. Minha filha e meu genro estão de pau a pique muito simples. alegria. Era um sonho ter uma filha, já que O tempo foi passando, a cidade evo- preparados para me dar banho. Hoje, com Trabalhávamos na colheita de café. Éra- a primeira fora arrancada de mim de for- luiu. As ruas foram asfaltadas, o comércio 88 anos, não consigo mais fazer nem is- mos empregados e recebíamos do proprie- ma tão prematura. Tinha em meus braços cresceu, a igreja e a praça ficaram lindas. so sozinha. Estou enferma. Minhas pernas tário das terras uma pequena quantia sobre agora a Maria. Cuidei dela com todo o meu Pena que não posso mais frequentá-las. me abandonaram. tudo o que produzíamos. Atualmente, a ci- amor, assim como fiz com todos os outros. Deixarei saudades… Mas não precisam O frescor da água escorrendo em mi- dade ainda se destaca pela sua terra fértil. E assim como não deixei-me abalar com mais de mim. Minha missão aqui está cum- nha face faz reviver lembranças de minha Mesmo muito pequenina, com pouco mais os sofrimentos da vida, hoje ela também prida. No lugar da benzedeira e da partei- longa história. Jovem. Casada. Moradora de dois mil e cem habitantes, é conheci- não se deixa abalar com o sofrimento que ra estão os médicos no posto de saúde. No do interior nordestino. da no Brasil todo como grande produto- é cuidar de mim. lugar da mulher que lavava os mortos está Com três bocas inocentes para sustentar, ra agrícola. Naquela época, minha aparência ex- o serviço funerário. Sei que não será pos- eu e meu marido decidimos nos mudar para Aos domingos é que o gostinho da ro- pressava o cansaço excessivo de minha ro- sível, mas quando eu morrer, gostaria que um lugar onde a chuva não fosse mesquinha ça prevalecia. Com muito carinho prepa- tina. Nas horas vagas, me chamavam pa- alguém me lavasse como eu fazia, pois eu e tivéssemos terra boa e fértil para plantar. rava a lenha para, com minhas panelas de ra fazer partos, benzer crianças doentes não lavava apenas corpos… Lavava almas! A busca por um lugar melhor fez com barro, cozinhar um almoço simples, mas e, muitas vezes, até para dar banho nas que sentíssemos o terrível gosto da migra- que ficará sempre em minha memória. Ain- pessoas que morriam, deixando os corpos * ção. Foram quatorze dias a bordo de um da sinto o cheiro daquelas delícias! prontos para o enterro! Às vezes, por agra- pau de arara, no qual todos embarcaram, Como o sítio não era nosso, tivemos decimento, as pessoas me davam alguma Texto baseado na entrevista realizada com Edite Ferreira da Silva, de 88 anos mas uma pessoa em especial não sentiu o que nos mudar para a cidade, que na ver- recompensa, mas eu nunca esperava nada, raiar do sol da nova terra. Minha filhinha, dade, era uma vilinha com poucas casas, fazia por amor! Todos me conheciam. Com pobre alma, faleceu em meus braços co- duas vendas e uma igrejinha. Meu marido o passar do tempo, somente eu realizava mo uma flor que fora arrancada do pé ain- teve que ir trabalhar em Mato Grosso para tais “serviços” na cidade. Quantas crianças da em botão. Abro os olhos e minhas lá- aumentar nossa renda. Mesmo com tanta ajudei trazer ao mundo… Quantos defun- grimas se misturam aos pingos quentes do terra boa, onde tudo o que se plantava co- tos lavei… Na verdade, eu lavava as suas Professora Elaine Pomaro chuveiro. Fecho-os novamente. lhia, ficamos novamente à deriva. almas com minhas rezas de benzedeira!!! Escola Antonio Marin Cruz, Marinópolis-SP

96 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 97 O VERMELHO DA PLANTAÇÃO

Luan Mateus Dantas Bezerra

Há lembranças que marcam a minha muito forte. Os roncos dos trovões e os re- Minha mãe, com medo, abriu um pou- semos dali por causa do perigo. Mesmo vida até hoje, meu neto! Quando era pe- lâmpagos clareavam o céu. Meus irmãos, co a porta e deu pra ver, por uma brecha, assim, continuamos, insistindo para ficar quena, morava com meus pais e meus ir- meus pais e eu estávamos em casa e fica- que o açude tinha acabado de se romper, brincando, escorregando e jogando lama mãos no sítio Provedor, no município de Pi- mos apavorados, tremendo de medo, to- carregando tudo o que havia pela frente. na roupa uns dos outros. Até meu pai che- cuí. Naquela época, não tínhamos o sol de dos juntos e encolhidos num cantinho, no Meu pai não deixou ninguém sair de casa gar muito “brabo” e nos tirar dali. Conti- rachar, a falta d’água e os caminhões-pipa chão da sala, onde só havia alguns tornos naquele dia. nuamos a morar lá, vivendo de outras plan- não precisavam abastecer a cidade e a zo- de madeira para armar as nossas redes de No dia seguinte, todos nós saímos pa- tações que havia próximo ao açude. Saí- na rural como acontece hoje. A caatinga dormir. Quando chovia muito forte, as pes- ra ver o que tinha sobrado. Quando che- mos do sítio quando ficamos adultos e fo- valente que resiste à seca, me faz lembrar soas não tinham coragem de sair de casa. gamos lá, a vazante do rio tinha se torna- mos morar na cidade. de que nem sempre foi assim. Muitas delas, com medo de que os açudes do um caminho vermelho e a plantação Hoje, já idosa, continuo morando na A nossa casa era grande, mas tínha- se rompessem com as chuvas grossas que havia ido embora com o açude. E o que cidade. Toda vez que volto ao sítio, olho mos poucos móveis. Havia uma despensa, caíam na nossa região. era verde, virou um vermelho de lama. Al- para o açude que não foi mais ajeitado e onde guardávamos a comida que era colhi- No final da tarde, os relâmpagos con- guns peixes, que não foram levados pela me recordo das brincadeiras no vermelho da no nosso roçado, e também um sótão, tinuavam a clarear os céus, iluminando as enchente, estavam ali, mortos! Meu cora- da plantação, marcado para sempre na mi- onde meu pai armazenava a comida durante nuvens pesadas e sombrias. Os trovões, ção chorou de tristeza… Não acreditava nha memória. o inverno. Nossa casa localizava-se em um como bombas de canhões, tornavam nos- no que estava acontecendo. Meus pais fi- morro mais alto. De lá, avistávamos o açude sos momentos mais assustadores e pare- caram muito tristes com aquela situação, * e também a vazante onde tinham as plan- cia que o céu ia desabar sobre nossas ca- pois trabalharam bastante para manter a tações de melancia, jerimum, coco, batata, beças. Mas o pior ainda estava por vir. A plantação sempre verde. Texto baseado na entrevista realizada com Cícera Rosália Dantas Bezerra, de 61 anos feijão, fava, milho, melão, algodão, de tudo sensação do perigo tomava conta de to- Mesmo assim, com toda a tragédia, um pouco. Meu pai e meus irmãos mais ve- dos! Até hoje, só de lembrar, sinto um ar- sem entender muito bem a proporção do lhos cuidavam da plantação. Eu e minhas ir- repio no coração... Foi quando, de repen- que havia acontecido, tivemos um momen- mãs ajudávamos nossa mãe nos afazeres de te, escutamos um barulho “estrondante”! to de meninice. Meus irmãos e eu ficamos casa e a pastorar o gado no curral. Meu pai gritou que não abríssemos a por- atolados na lama, achando aquilo muito Quando eu tinha 15 anos, lembro-me ta, mas eu e mãe já estávamos lá, queren- divertido. Sujamos toda a nossa roupa e Professora Geovana Pereira de Oliveira de uma tarde em que começou uma chuva do ver o que tinha acontecido. meu pai nos fez ameaças para que saís- EMEF Severino Ramos da Nobrega, Picuí-PB

98 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 99 CAPIM PUBO

Maria Alice Ferreira Simão

Capim Pubo, esse era o nome do lugar valer! Todos os dias tínhamos um passeio. Ir de mergulhando naquelas águas mansas, onde passei toda a minha infância, aqui per- à escola inclusive era uma diversão pois ela revivendo os sonhos que semeei no mundo tinho. Era um lugarejo pouco afastado das ficava do outro lado do rio. Era muito gos- imaginário de uma criança e sinto o gosto- demais localidades. Contava apenas com toso navegar por entre as árvores. so cheiro do capim pubo. duas famílias: a nossa e a do tio Manoel. Meu pai era quem ia no comando. Eu, Era um lugar tranquilo, longe da estra- como o mais velho da turma, observava * da central, por onde passavam alguns car- aquela briga do remo com a água e a canoa ros, era um paraíso. que dançava conforme a música do braço Texto baseado na entrevista realizada com Francisco Simão, de 61 anos Nossas casas ficavam lá no alto de um do meu pai até chegar ao nosso destino. morro, cercado da própria mãe natureza. Passava-se o inverno e as margens do De um lado, palmeiras de babaçu e, do ou- rio iam secando… aquele cheirinho de ca- tro, campos, lajeiros e carnaubais, de onde pim pubo aromatizava o ar, e a nova pasta- nascia um braço do rio Marathaoan, que é gem surgia para os animais que ali comiam. o rio que banha nossa cidade de Barras. Era um novo tempo, voltávamos para Nossas brincadeiras de criança eram nossas brincadeiras em terra firme: a bo- marcadas por duas estações do ano: inver- linha de meia rolava solta, nossos cavali- no e verão. No inverno, ficávamos ilhados, nhos feitos do talo de carnaúba eram apos- pois a água subia até a metade do morro tados nas corridas, e a bicicleta que estava onde minha mãe pescava de anzol. Ainda no canto voltava às suas atividades físicas! sinto, com a saudade, o cheirinho das pia- Hoje, o que ainda resta lá, é a bela na- bas fritas no azeite de coco babaçu. tureza: o rio inesgotável, onde as mulhe- Durante esse período de cheia, o nos- res vão lavar roupas e os homens pescar. so transporte era uma canoa que ficava an- Atualmente, moro a três quilômetros corada debaixo de um sapotizeiro. de Capim Pubo! Vivo de alma aberta, de Enquanto o nosso espaço estava inun- tão perto que vivemos. A distância não nos Maria das Graças Alves Pereira dado, eu e meus primos nos divertíamos pra separou. De vez em quando mato a sauda- EM Desembargador Arimateia Tito, Barras-PI

100 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 101 “MULEQUE, VEM PRA DENTRO”

Luiz Felipe Cândido Pires

Nasci neste lugar. Tenho orgulho em Costumava entrar noite adentro, até a ta de madeira e palha. Eu carregava os ca- terioso que aparecia para as pessoas às dizer que os meus pais ajudaram a criar minha mãe gritar: “muleque, vem pra den- dernos em uma embalagem plástica de ar- margens do córrego. Era fácil encontrar o bairro. No local havia apenas um lixão. tro”. Mesmo coberto de poeira, teimava roz, era a única forma de proteger o mate- alguém que jurava tê-lo visto e escapado Os primeiros moradores foram chegando em dormir sem tomar banho. rial escolar, pois ninguém conhecia mochi- por pouco. Por isso eu cruzava a velha pon- e, com a cara e a coragem, foram cons- Havia um único aparelho de televisão la nessa época. Ficou em minha lembran- te de madeira em desabalada corrida e só truindo suas casas nos arredores. Não vou no vilarejo, funcionava a bateria, pertencia ça a primeira professora, rígida com os es- parava em frente da minha casa. mentir, eu costumava procurar brinquedos ao seu Tóta. Eu ia assistir aos programas tudos, porém amável. Estelita (era esse o Hoje sou adulto e não moro mais no e outras tranqueiras no meio do lixo, às ve- na janela de sua casa. Os desenhos anima- seu nome) me ensinou as primeiras letras. bairro, mas não perdi as boas lembranças zes conseguia achar alguma coisa boa que dos eram a minha programação preferida: Com sua régua “de metro”, costumava ba- que tenho. O lixão deu lugar ao Jardim das prestava para usar. “He-Man”, “Caverna do Dragão”, e outras ter na mesa e dizer: “Não se distraia, meni- flores, bairro de meus pais. Comecei co- Conforme o bairro foi se formando, os aventuras da “TV Colosso”. no”. Meu caderno brochura tinha uma capa mo engraxate e hoje tenho minha própria moradores foram pedindo para tirar o lixão. Não muito distante das nossas casas, simples, com o nome do prefeito. empresa, e meus doze irmãos trabalham No início, havia apenas algumas casas de acontecia o encontro dos córregos La- Certa vez, o prefeito da cidade deu comigo. Sinto falta do tempo em que não pau a pique cobertas com palhas. Me recor- jeadinho e Macaco. As mulheres iam la- uma caixa de engraxate para as crianças precisávamos nos preocupar com drogas do bem da minha mãe dizendo que ia pintar var louças e roupas em suas águas e nós, carentes do bairro. Foi a grande oportuni- ou violência. Às vezes, em visita ao bair- a casa, o que consistia em pegar barro bran- crianças, aproveitávamos para dar aque- dade para conseguir um dinheirinho. No ro, fico procurando minha infância em al- co e passar nas paredes, para que os insetos le “tchibum”. A água era tão limpa que da- período da tarde, depois de fazer as tare- guma esquina. e a água da chuva não entrassem. O barrea- va para ver a areia do fundo e os lambaris fas, às vezes eu e meus amigos íamos pa- do deixava as paredes brancas como papel. nadando. Podia-se beber sem medo aque- ra o centro da cidade à procura de bons * As pequenas ruas não eram asfalta- la água cristalina. Minha mãe levava lata fregueses. Era comum ultrapassar o horá- das, então, pode-se imaginar a poeira su- d’água na cabeça para o consumo diário. rio combinado para a volta. Quando isso Texto baseado na entrevista realizada com Marcelo de Jesus Souza, de 36 anos bindo. Brincávamos e rolávamos no chão Não havia lixo ou animais mortos jogados acontecia, eu tinha que voltar para casa à sem medo da sujeira. Me recordo das brin- em suas margens. A sombra das árvores noitinha e sozinho. cadeiras de “bet” e “bandeirinha estoura- deixava a água fresca e agradável. Passar pela ponte sozinho era um de- da”. A molecada se reunia na rua. A tarde Me lembro bem da escola (era peque- safio quase impossível. Havia no vilarejo a Professor Senio Alves de Faria era pequena para tantas brincadeiras. na, formada por duas salas e a cozinha) fei- lenda do “Nego d’água”, um homem mis- EMEF Princesa Isabel, Rondonópolis-MT

102 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 103 SOCORRA MEU BURITI jas, ali, limpavam suas panelas com areia seu amor por diferentes artes. Um outro até ficarem brilhantes, além de banharem exemplo feminino, que aqui viveu e mor- Bárbara Maria Carvalho de Oliveira seus corpos, muitas vezes sem veste algu- reu, foi a senhora Zezita Cruz Sampaio, es- ma, esquecendo, assim, ainda que por um posa do almirante Gervásio Pires Sampaio. momento, seus pudores, experimentando Mulher forte, sábia e bem resolvida, que Eu nasci em 1944, no dia 1º de janeiro, Para nos divertirmos tínhamos que ser um misto de prazer e liberdade. marcou sua época enquanto mulher ao se na cidade de Buriti dos Lopes. A minha in- criativos, e uma das minhas brincadeiras Com suas margens sempre bem cui- tornar a primeira prefeita de Buriti dos Lo- fância foi bem dinâmica, cheia de brinca- preferidas era o drama, hoje, uma espé- dadas, nossos brejos eram o habitat da pes, a primeira no Estado do Piauí, e talvez deiras, travessuras, muitas emoções e cria- cie de teatro, em que fazíamos apresenta- palmeira. Palma nativa, exuberante, que a precursora de uma figura feminina no ce- tividades artísticas. ções cantadas para um público convidado se fez admirada por sua grandeza e pelo nário político brasileiro. Terra de grandes Aventuras singelas, porém, marcantes do qual participavam crianças e adultos. verde alucinante das suas palhas. A fartura filhos ilustres que nos enchem de orgulho! e deliciosas com cheiro de um tempo de Buriti sempre foi privilegiada pela na- dessa planta e o sabor de seus frutos moti- Hoje, olho com muito pesar o sofri- inocentes fantasias, cujas lembranças me tureza por sua riqueza hídrica, e tive em varam seu fundador, Francisco Lopes, um mento de nossos moribundos riachos, pés remetem, quase que diariamente, a uma minha infância a oportunidade de desfru- nobre português que por aqui chegou e se de buriti, e aqui, no peito dilacerado, fica afável saudade. Há quem pense que seja tar das delícias de seus riachos que trans- apaixonou, a dar o nome de nossa querida o meu grito de socorro às autoridades e à coisa de velho que não tem o que fazer. bordavam em períodos de chuva, trans- cidade Buriti dos Lopes. O fruto dessa ma- população, que não aceitem a morte de E talvez seja mesmo, coisas de uma idosa formando-se em locais propícios à diver- jestosa planta ainda encanta a todos pe- nossas riquezas! Salvem a nossa Buriti!!! sem muitas ocupações, que passa os dias são e à felicidade de seus moradores de la saborosa garapa doce, que conquista a a costurar recordações de um tempo que todas as idades. Para as crianças era lugar quem se arrisca em degustar. Esses lugares * poderiam nem mais existir se minha bri- de banho, com saltos mortais e diferentes também serviam como ponto de encontro lhante memória não as conservassem tão peripécias pueris; para os jovens, lugar de entre moradores e visitantes que ali para- Texto baseado na entrevista realizada com Maria do Carmo dos Santos Carvalho, de 75 anos vivas e pertinentes a uma estranha realida- namorar sob a proteção da natureza com vam e formavam rodas de cantorias, levan- de chamada solidão… sua beleza e seus encantos; já as famílias do alegria para o povo da cidade. Embora tenha nascido em uma época aproveitavam para se reunir em piqueni- As mulheres da minha época eram de difícil situação por falta de dinheiro, o que ques nos finais de semana. prendadas, dedicando-se à arte de fazer comer nunca nos faltou, meus pais faziam de Aqui, em certas épocas, até os olhos crochês e bordados a mão, sempre muito tudo pra nos amparar e nos ver felizes. Meu d’água afloravam borbulhando nos mais bem caprichados, que depois eram expor- pai era carpinteiro, minha mãe costureira, inusitados lugares, e se transformavam tados para outras cidades do país. Artes juntos batalhavam de forma incansável pa- também em riachos que se faziam úteis ao essas, trazidas por Lili Escórcio, uma fina ra que não faltasse o sustento em nossa me- povo da cidade. Onde as donas de casa la- dama da sociedade buritiense, mulher ge- Professora Francimédices de Sousa Silva sa e, graças a Deus, nunca faltou. vavam suas enormes trouxas de roupas su- nerosa, que repassava a outras mulheres UE Zezita Sampaio, Buriti dos Lopes-PI

104 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 105 COMO NUM CONTO DE FADAS Para tomar o banho, contávamos com as lida dentro de casa era dividida entre eu O tempo passou, casei aos 23 anos, bacias e, em dias quentes, podíamos utili- e minhas irmãs; fazíamos comida e lavá- com o pretendente escolhido por meu pai Emilly Ramos Wendt zar o “chuveiro de campanha”, uma espé- vamos as roupas na lagoa que havia per- e lá se foram 25 anos de matrimônio e de cie de balde de metal com uma mangueira to de casa. Os meninos cuidavam dos ani- uma vida triste e amargurada. História es- na ponta. Luz elétrica só existia na casa do mais e da lavoura. sa que não me traz boas recordações, mas Eu, sentada em minha cadeira de ba- engenho, que chamávamos de castelo, pe- Acordávamos cedinho, todos sentados que me trouxe duas lindas filhas que fazem lanço, relembro minha história com os pou- la sua beleza e encantamento. Minhas me- à mesa, com aquele aroma do café da ma- com que eu não tenha arrependimentos. cos retratos em preto e branco, dispostos mórias nunca me deixaram esquecer desse nhã, acompanhado de um pão caseiro. Há- Não moro mais em Santa Vitória. Dei- em um álbum amarelado, com mais de cin- lugar encantador. bitos que demonstravam a união da família xei para trás parte da família e vim para quenta anos de existência. Sabe aqueles O nosso único meio de transporte e que, nos dias de hoje, não são valorizados. o centro da cidade, onde resido até hoje. contos fantásticos, em que poucos acre- eram as caronas no trator que pertencia Passados alguns anos, já na adolescên- Minha história, ao folhear a última pá- ditam, mas muitos se emocionam… A mi- ao senhor do engenho. Às vezes, precisá- cia, aos 14 anos de idade, encontrei o amor gina do álbum de família, não termina as- nha história de vida é assim! Em cada pági- vamos caminhar quilômetros a pé com o de minha vida. Foi em uma festa de aniver- sim… Tenho que atualizá-lo com a fase na, meus olhos marejados relembram toda meu único par de Conga, tênis daquela sário de meu bisavô. Lá estava aquele meni- mais linda do meu viver! Passados 61 anos, uma trajetória! época, pisando em muito barro, nos cam- no franzino, chamado Doraci, com um olhar acabo de reencontrar meu príncipe encan- Nasci e cresci no interior de Rio Pardo, pos afora, para, assim, chegar mais rápido tão puro e doce que me encantei. Nesse tado! Eu e ele, no mesmo castelo de meus numa localidade simples e humilde, cha- ao centro da cidade, onde íamos estudar momento, eu, muito desinibida, o chamei sonhos e, ao pé da figueira, prometemos mada de Santa Vitória. Ah, quanta sauda- na escola das freiras, que, hoje em dia, re- para conversar na rodinha em que estáva- que juntos e felizes ficaremos para sem- de! Foi exatamente neste lugar que meu cebe o nome de Escola Romana. Ao retor- mos eu e meus irmãos. Foi um dia eterni- pre, como num conto de fadas! passado se reencontrou com o presente. nar, lá estava eu, pronta para costurar os zado em meus pensamentos, porque a par- A velha Santa Vitória possuía uma úni- sacos de estopa que serviam para armaze- tir desse encontro, passamos a trocar car- * ca rua, cheia de curvas, buracos, pedras nar o arroz produzido pelo Engenho Santa tas que falavam de nosso amor. Nós está- e uma pequena ponte de pau a pique que Vitória. Ao final dessa tarefa, ainda tinha a vamos completamente apaixonados e meu Texto baseado na entrevista realizada com Ruth da Silveira Ramos, de 75 anos servia de travessia sobre o rio Jacuí. Me lida doméstica em casa. príncipe encantado voltou à cidade, alguns encantava com a grama coberta de flo- Meu sonho sempre foi estudar para meses depois, para me visitar. Foi ao pé de res do campo, naquela época chamadas ser professora e, se bem me lembro, tive uma frondosa figueira, localizada em frente de Cravos-de-amor, hoje conhecidas co- que parar meus estudos muito cedo, aos à casa que eu chamava de castelo, que ju- mo Mosquitinhos. Ainda lembro-me de mi- 12 anos de idade, pois meus pais não ti- ramos amor eterno. Mas o destino, naquele nha casa, que era feita de taipa e madeira, nham o suficiente para o sustento da fa- momento, foi cruel, minha mãe o mandou Professora Patrícia Ramos Figueiró com chão de terra batida. As luzes eram mília; o que tornou uma obrigação para embora, dizendo que eu já era compromis- EEEF Professor Affonso Pedro Rabuske, os lampiões que existiam naquela época. mim, o trabalho irregular no engenho. A sada com um rapaz de outra família. Santa Cruz do Sul-RS

106 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 107 UMA PACATA CIDADE nhas ou só admirar a paisagem repleta das com minha mãe, nos sustentava e garan- CHAMADA “GAMA” mil maravilhas próprias do Cerrado. tia a manutenção da família. Minha mãe, Naquela época, nossa vida e nossos como tantas outras mulheres espalhadas Víthor Rodrigues de Sousa costumes eram como aqueles da popula- pelo país, viu-se diante da necessidade de ção de qualquer outra cidade do interior. criar sozinha seus oito filhos. Ao sentar na calçada de casa, ficava pen- Foram tempos difíceis. Passamos por Nasci e vivi em uma cidadezinha cha- logo depois da primeira chuva de setem- sando no que eu seria no futuro, depois privações, mas mesmo assim, hoje, quan- mada Gama, no Distrito Federal, inaugura- bro. Assim como essa árvore, havia diver- dos meus estudos. Ah! Quanta saudade do olho para trás, vejo que vivíamos uni- da em 1960 no mesmo dia de Brasília. Dis- sas outras mangueiras espalhadas por Ga- daquele tempo! Quanta saudade da vida dos, todos juntos, como uma família de- tante a 43 quilômetros da nova capital do ma, e quando as mangas estavam rosadas, em que sonhar meus sonhos de menina era ve ser. Minha mãe conseguiu com que to- país e concebida como uma cidade operá- suculentas e maduras matavam um pouco o melhor passatempo! dos os filhos estudassem e depois, com o ria, local de moradia para os pioneiros que da fome – que nunca se acabava comple- Anos se passaram e muita coisa ficou tempo, fomos também ajudando no sus- trabalhavam na construção da barragem tamente – daqueles que, como eu e mi- realmente diferente. Não só na arquitetu- tento da casa. O mais importante para ela do lago Paranoá. nha família, tinham menos recursos. Ainda ra. Muita coisa mudou também na forma era que nós estudássemos, pois ela, anal- Nasci na casa de uma conhecida par- posso sentir o cheiro dos frutos que adoci- como as pessoas se relacionavam e se co- fabeta que era, sabia melhor do que nin- teira da cidade, em 1978. Naquela época, cavam meus dias de criança. municavam, pois o tal celular de que tanto guém a falta que o ensino fazia. E assim, as parteiras eram o único recurso para as Hoje em dia, a mangueira não existe falavam e, pelo qual os vizinhos tanto an- crescemos unidos, minha mãe como meu mulheres darem a luz, no Gama, pois em mais, foi um sacrifício que fizemos cor- siavam, estava prestes a ser comercializa- grande exemplo de vida. nossa região administrativa não havia hos- tar aquela bela árvore para o asfaltamen- do em Gama, aquilo mudou a nossa vida Hoje, gostaria muito de estar com a pitais, e a distância de Brasília tornava im- to da rua e para a criação da calçada, co- completamente. A comunicação a distân- minha filha e com o meu neto, contando peditiva a viagem de carroça, nosso único mo exigia a administração local da cida- cia, aos poucos, desmanchou as rodas de para ele essa história. Mas mesmo assim, meio de transporte, para aquela ocasião. de. Afinal, quando a cidade se constrói, a conversas nas calçadas, substituídas pelas posso ver e abençoar, aqui do alto do céu, Sempre vivi nessa cidade, lugar que gos- paisagem se transforma. Mas nem tudo foi ligações, que ficavam a cada dia mais ba- a história da nossa família. tava e ainda gosto muito. ruim, pouco tempo depois, a casa passou a ratas e tornavam mais frios os relaciona- A moradia de nossa família era bem ser de alvenaria, proporcionando-nos mais mentos. Aos poucos, aquele aparelho que * simples. Vivíamos em uma casa de madei- conforto e segurança. era tão esperado, tornou-se um mal para ra nos fundos de um lote e nossa maior ri- Naqueles tempos, antes de a cidade nós, pois todos foram ficando mais distan- Texto baseado na entrevista realizada com Mirlene Lima Rodrigues, de 40 anos queza era uma bela e frondosa mangueira ganhar forma e começar a se sobrepor à tes, mais individualistas e mais reclusos em na porta da frente de casa, que dava muita paisagem local e tudo se tornar diferente, suas próprias casas. sombra e ótimos frutos que faziam a ale- com prédios e asfaltos, eu gostava de me No começo da minha adolescência, Professora Luciene Pereira gria de todos na primavera, pois frutificava sentar na calçada, conversar com as vizi- perdi meu pai, vítima de um câncer. Ele, CEF Polivalente, Brasília-DF

108 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 109 LEMBRANÇAS DE UM RIO CHAMADO RIO GUANDU

Wâny Marcelly Tápias Coutinho

Aqui do meu quintal, às margens do va os meus filhos todos os dias, o parque que desce por um leito antes ocupado por rio Guandu, na pequena Barra de Santa de diversões que os alegrava nas tardes de águas limpas, fundas e habitadas por diver- Rosa, no interior de Baixo Guandu-ES, aos verão. A máquina de lavar roupas de últi- sas espécies, sinto uma pontada de triste- 67 anos, revivo minhas lembranças. Bus- ma geração, com versão sempre atualizada za e penso no futuro dos meus netos, bis- co fundo em minhas memórias tantos mo- das senhoras ribeirinhas. Era a pia onde se netos… Mas lembro-me que sou uma mu- mentos, mas numa tentativa de focar ape- lavava os esmaltados, as panelas de ferro lher de fé e rogo a Deus uma prece pedin- nas nos bons, pois, sempre que me pego da polenta e feijão diários e também con- do que Ele faça um milagre e que, um dia, nesta busca profunda, algumas lembran- fessionário, onde lágrimas eram derrama- o nosso rio Guandu volte a ser cenário de ças insistem em fazer as lágrimas rolarem. das por motivos revelados somente a Deus. lindas histórias como as que habitam mi- Respiro fundo, sacudo a poeira e foco nas O tempo passou muito rápido e com nha memória. minhas doces lembranças vividas na minha a velocidade trouxe muitas mudanças na querida terra natal. comunidade. As construções antes de * Ainda sinto o cheiro dos tempos da madeira deram lugar à alvenaria; os oito, minha mocidade, vividos às margens do dez, doze filhos em cada família, agora são Texto baseado na entrevista realizada com Maria dos Anjos Queirós Pereira, de 67 anos rio Guandu, ao lado dos meus cinco fi- dois, no máximo. A tecnologia tomou con- lhos. Eram dias difíceis, comparados aos ta dos diálogos e causos presentes nos la- de hoje diante de tantas facilidades, po- res. Ahh! Que saudade das conversas noi- rém, eram puros, encantadores, verdadei- te adentro nas nossas casas. ramente felizes. Volto ao personagem principal das mi- Continuo buscando em minhas memó- nhas lembranças e percebo que as maio- rias os momentos mais alegres que vivi, e o res transformações foram sofridas por ele. personagem que insiste em ser protagonis- E sentada aqui, a beira da minha hor- ta em todos é o meu querido rio Guandu. ta, no fundo do meu quintal, observo aten- Professora Luzia Pereira do Rosario Correia Rio que já foi palco de tantas aventu- tamente e reflito sobre as ações do ser hu- EMEIEF Presidente Kennedy, ras… Era a banheira gigantesca que banha- mano. Vendo apenas um filete de água Baixo Guandu-ES

110 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 111 LEMBRANÇAS DOS ca era comum que as crianças ajudassem O nosso meio de transporte, ou melhor, só havia dois trabalhos – cair e levantar. MEUS TEMPOS DE MENINO a família. Então, todos os dias de manhã, o jeguinho vivia reclamando do trabalho pe- Essa rua foi crescendo e acolhendo, len- mal acabava de tomar café, pegava a en- sado, pois estava magro, velhinho e desca- tamente, o progresso que tenta esconder Andressa de Jesus dos Santos xada, colocava no ombro e seguia a cami- deirado. Quando cansava, deitava-se com e aprisionar as histórias da ladeira da Rua nho da roça. A enxada era muito grande e a carga no meio do caminho, era um “deus do Alto. Elas estão descansando embaixo pesada para meu tamanho – eu era ape- nos acuda” para levantá-lo e prosseguir via- do calçamento, das casas. Basta um toque Quando criança, eu e minha família nas um garoto! Mas, ia para a roça junto a gem. Às vezes, quando chegávamos à cida- para ressurgirem. acordávamos cedo, com o primeiro co- meu pai e meus irmãos. Nossa rotina era de, a feirinha estava quase terminando. Ain- Ao voltar no tempo, penso que mesmo coricó do galo, que era o nosso desper- capinar e plantar, pois dali tirava-se o sus- da assim, conseguíamos vender os nossos nas dificuldades minha vida sempre foi re- tador de todos os dias. Deitado, enrola- tento da família. E, ao retornar, almoçava produtos, comprávamos o quase nada pa- gada por momentos bons. Hoje, não sei o do num cobertor “dome bem” de cor cin- rápido, pegava minha cartilha, meu cader- ra passar a semana, colocávamos nos pa- que sou ou o que fui, mas tenho certeza de za, com duas listas nas barras, era um luxo ninho, a tabuada, o lápis com borracha, os nacuns e tocávamos para casa. Nesse mo- que fui e sou feliz! Apesar das inúmeras di- para mim, pois aquecia bem. Nesse canti- colocava dentro da capanga de tecido feita mento, o jegue saía trotando, balançando ficuldades que enfrentei e ainda enfrento, nho aconchegante, eu ouvia o canto dos por mamãe e pé na estrada, rumo à escola. o rabo de felicidade, e, de vez em quando, pois, hoje, vivo preso numa cadeira de ro- pássaros, ouvia que anunciava que o dia Lembro-me da labuta para vender o que ensaiava uma carreirinha. Eu voltava enca- das, nunca desanimei. Nos dias de hoje, as já vinha raiando. Ainda sonolento espi- colhíamos na lavoura e também para com- rapitado no animal, inebriado pela brisa que coisas são bem mais fáceis, mesmo assim, chava-me sem querer levantar. O barulho prar a feira semanal, pois naquela época, o tocava o meu rosto e o cheiro de mato ver- as pessoas não dão valor à vida. do colchão de capim era relaxante, mas transporte era escasso, só existia o pau de de. Em poucas horas estávamos em casa. ao mesmo tempo me arranhava, pois, na- arara e mesmo assim, em dias determina- Aquele pequeno lugarejo foi crescen- * quela época, colchão de espuma era lu- dos, aos sábados – dia de maior movimen- do. Foram construindo casinhas de taipas, xo. O trincar do bule de esmalte na trem- to. A dificuldade era tamanha que não pos- de palhas, de madeiras com chão de barro Texto baseado na entrevista realizada com André Bispo dos Santos, de 58 anos pe do fogão era o aviso de que mamãe já suíamos dinheiro nem mesmo para pagar a batido. As poucas ruas eram de terra ver- estava de pé, e logo viria, delicadamente, passagem, então, íamos a pé para a cidade, melha e se chamavam Rua do Alto, de Bai- até o quarto nos convidar para levantar. O colocávamos os arreios, ou seja, a cangalha, xo e do Meio. Por elas andavam os pou- aroma daquele pretinho que era torrado num jegue rabugento, os panacuns com a cos moradores e, também, os animais: ca- em casa e moído no pilão, o café, também colheita dentro, eu ia na frente como se fos- valos, jegues, cachorros, galinhas. Quando a nos convidava a levantar. se um guia, puxando o jumento pelo cabres- chuva caía e misturava-se com a terra for- O tempo passou, mas as lembranças to e, meu pai, vinha atrás tocando o animal mava um lamaçal, a rua parecia uma ca- dos meus tempos de menino vividos na com um cipó enorme, até chegar ao nosso choeira de chocolate que descia ladeira zona rural não me saem da memória. Mi- destino final – a pequena cidade próxima ao abaixo. Quando esse fenômeno aconte- Professora Indaiá Carneiro Lima Leal nha infância foi muito difícil! Naquela épo- nosso pedacinho de chão: Gandu. cia, ninguém se atrevia passar por ali, pois EM Professora Ceres Libânio, Gandu-BA

112 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 113 TRICOTANDO LEMBRANÇAS Jeepão azul do meu pai, que cortava as es- na boca e convidavam os vizinhos. O pi- Ainda nessa rua, matamos saudades e, tradas barrentas como taxista e na máqui- nhão sapecado no fogão a lenha enchia a no vaivém do chimarrão, vejo espelhadas Bruna Cristina Moretto na Vigorelli, onde minha mãe costurava os cozinha de prosa e pares animados ao som nos olhos marejados de meus pais, já velhi- dias, Papai Noel não pôde me dar de pre- da gaita, violão, duas colheres e um cabo nhos, muitas recordações. E no silêncio às sente. Apesar das dificuldades de se criar de vassoura raspando na parede de madei- vezes sai: “Sossega o leão, piazada! Parem Falar de mim é tricotar um caminho sete filhos, nunca nos faltou nada. Estudar ra, improvisando o som da bateria. Que di- de ser jacu!”. As crianças só nas lembran- onde os fios da infância, adolescência e ju- era lei lá em casa. vertido! Hoje a vida mudou muito. Nas fes- ças da tranquila rua General Osório de Pi- ventude se entrelaçam com o presente. Ne- Minha rua viu muitos finais de tarde, tas, a bebida tomou conta! tanga. Foram-se para estudar fora, casar, les me vejo criança na rua da minha infân- na área da singela casa de madeira, onde Antigamente todos se visitavam. A te- trabalhar. Ela ficou e está lá, nos espera cia, na pequena cidade de Pitanga, Paraná. meu pai, mesmo cansado, pegava a gaita levisão era novidade, poucos a tinham. No nos Natais, Páscoas… Nela, dona Abegail Rua de terra vermelha, de cheiro de poeira (acordeon) e numa toada linda, com notas vizinho, víamos a novela Irmãos Coragem. agora costura memórias com seu Paulo, ta- quando a chuva chegava, nos encharcando tropeçadas, tocava as músicas mais belas Mais tarde, compramos uma TV Colorado, xista, esperando seus filhos com os netos, de alegria, convidando-nos a escorregar na da minha infância. Seus pés davam o rit- preto e branco. Assistia Vila Sésamo, com bisnetos e tataranetos. lama e a nos sujar de encantos. mo no assoalho e eu me vestia de sonhos e o Garibaldo, pássaro gigante e desengon- Hoje, aos 51 anos, vou tricotando lem- Naquele tempo a rua era parque de saía dançando no grande baile da imagina- çado. O Sítio do Pica-Pau Amarelo e, aos branças na velha gaita que herdei de meu diversão, depois passarela onde desfiláva- ção. Queria muito tocar aquela gaita linda domingos, Sílvio Santos. Agora, quase nin- pai, chorando notas na janela da minha ca- mos fantasias. Um resvalava rua abaixo Ho- que sorria para mim. Um dia, fui ao quarto guém se visita. sa, na mesma rua que foi berço de minha mem da Caverna. A Gata Borralheira após de meus pais e peguei-a. Embora pesada, A vida seguiu freneticamente. Saímos infância, adolescência e juventude. o tombo, saía Bruxa. Era um esparramo só! puxei o fole, tirei notas tímidas: Fooomm! dos anos 70 e abraçamos os anos 80. Vie- O Zorro descia no seu cavalo negro galo- Fuuiiimm! Festejei, consegui! Minha mãe ram várias primaveras, verões… Não sei * pando peripécias. Eu, bailarina dançando apareceu. A barriga gelou! Vou apanhar! onde deixei a criança que fui. A rua, par- sonhos de verão. A vergonha dava vez à Que nada! Rindo, apenas disse para ter que de diversão, virou rua das paixões, das Texto baseado na entrevista realizada com Mery Terezinha, de 51 anos imaginação. O tempo? Sem pressa! Não cuidado. Assim, a rua viu nascer uma gai- festinhas de garagens, de moças e rapa- é como hoje que compra-se tudo pronto teira na família. Eu tinha 8 anos. zes com calças boca de sino. E os sonhos e não se inventa a vida. E quando a chu- Nessa época, as festas tinham outro passaram a ser embalados nas vitrolas, nos va embarcava no fim da tarde, a janela da sabor. Nas fogueiras de São Pedro e São discos de vinil nas vozes de Elvis Presley, casa avisava: “Criançada, hora do banho!”. Paulo, a rua era um clarão de foguetes e Bee Gees, Abba, Lobo, Roberto Carlos, Foi nessa rua que aprendi a andar na bombinhas. O calor do fogo nos abraçava Raul Seixas e muitos outros. Ruim foi ver bicicleta do primo Pedro. Eram tempos di- e as faíscas brincavam no céu pintado de o que era rotina tornar-se saudade doída. Professora Andréa Maria Ziegemann fíceis e mesmo com bilhetinhos no Natal, prata pelas estrelas. O cheiro da pipoca, Tudo faz muita falta! Foi-se no tempo que Portelinha “Não esqueça da minha Caloi!”, colados no quentão e bolinhos da graxa davam água não seguramos. CE Dom Pedro I, Pitanga-PR

114 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 115 MENINA DA BOCA ROXA DE AMORA me cobre!”. Ela pegava a coberta que ha- Menina ainda, não entendia o fato de não passam anel e não jogam bolinhas de via tecido no tear e me protegia do frio. Ela meu pai falar que mulher não precisava es- gude. Em que gaveta do passado ficaram Lavínia Soares Cardoso Bastos era áspera, pinicava e me fazia coçar. Ho- tudar, mas insisti e fui. Ventania era uma guardadas tantas brincadeiras inocentes? je, sinto saudades, não da coberta, mas da cidade linda e tranquila, poucas casas e al- Atualmente viajo muito, mas a viagem ternura de minha mãe. Ela era pequenini- guns casarões com muitas portas e jane- mais emocionante que faço é na infância. Em momentos como este de vento frio nha e ao mesmo tempo tão grande. las. Cercada por bananeiras e engastada É só olhar para o céu iluminado, de fim de e de céu avermelhado, rodeado por este Nossa casa, um casarão antigo e gran- entre montanhas, rodeada por três palmei- tarde, que minha alma se enche do chei- conjunto de traços rosa, cinza e laranja, é de com um alpendre onde meu pai dava ras que eu dizia ser as guardiãs da cidade. ro do colo da minha mãe e do casarão on- só fechar os olhos que minha mente vai ordens com seu vozeirão “Abre a portei- Que lugarzinho lindo! Não tinha luz elétri- de nasci. Meus pais se foram e ele é ape- puxando esses fios coloridos e tecendo a ra para as vacas passarem!”. “Os bezerros ca e nem água nas casas, apenas três pon- nas uma fotografia na parede. Tenho uma maior de todas as saudades. Vejo uma me- não!”. Eu aproveitava para balançar nela, tos de torneiras onde as mulheres faziam família maravilhosa: seis filhos, nove ne- nina pequena e esperta saltitando como mas meu pai gritava “Desce da porteira, filas com suas latas. tos e uma saudade imensa daquela meni- um passarinho, pulando de galho em ga- se não ela sai do prumo!” E eu nunca sabia Em 1969, iniciei minha vida de profes- ninha da boca roxa de amora que, às ve- lho de uma amoreira carregadinha com a o que era o tal do prumo. Mas de braveza sora no grupo Damásio, que na época era zes, vem saltitando de galho em galho, pu- boca toda roxa de amoras. Consigo sen- de pai entendia. feito de latas. Hoje, quando chove, ouço la dentro do meu peito e bem no fundo de tir, hoje, a doçura da amora e a voz gros- Nossos brinquedos eram bois de joás, aquele barulho da chuva batendo, e aque- minha alma ouço a voz dela “Mãe, me co- sa do pai que brincava: “Menina graciosa/ bonecos de sabugos, restos de tecidos e las carinhas apavoradas dos pequenos. bre! Conta uma história?”. Ela vem e, ao pé Da boca roxa de amora/ Vou contar pa- cacos de vidros bordados. Ai! Como eram Consigo sentir aqueles abraços quentes do meu ouvido, conta a mais bela de todas ra sua mãe/ Que você namora”. Mas, com lindos! Fui alfabetizada por minha irmã, de braços pequenininhos, buscando pro- as histórias. ternura, a mãe da menina deixava as pa- que tinha apenas o terceiro ano primário, teção. Também me lembro do sabor da nelas no fogão e ia comer amoras com ela, e ninguém mais me segurou. Sumia com sopa de osso, misturada com fubá. Trago * regadas de belas histórias e do cheiro do um livro nas mãos, correndo entre o ca- seu sabor na boca, na memória e no co- frango refogado com banha de porco no pim-gordura. Meus cabelos e suas flores ração. Única refeição de muitas daquelas Texto baseado na entrevista realizada com Helena de Oliveira Freire Rodrigues, de 74 anos fogão a lenha. roxas bailavam ao som e ao frescor do ven- crianças. Nasci em Cachoeira, município de Al- to da Ventania. Chegava no Ribeirão, dei- Hoje nossa cidadezinha continua en- pinópolis, conhecida como Ventania. Mi- tava nas pedras ouvindo o barulho da água gastada entre as montanhas, porém, es- nha infância foi simples, mas feliz. A vi- e lendo as mais belas histórias: João e Ma- sas se transformaram em montes de areia da naquele tempo era difícil, mas tinha o ria, A Bela Adormecida. Eu era a Princesa branca, pela ambição dos forasteiros e de amor e o carinho dos meus pais e irmãos. daquele bosque. Adormecia nas pedras, seus filhos. As três palmeiras morreram Até hoje, sinto a ternura de minha mãe me não por causa de uma maçã envenenada, abaladas pelas bombas das pedreiras. Não Professora Rosa Maria Mendes de Lima levando para a cama e eu pedindo “Mãe, mas embriagada pelas palavras dos livros. se vê mais crianças nas ruas pulando maré, EE Dona Inda, Alpinópolis-MG

116 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 117 NOS BRAÇOS DO IPIXUNA tavam e era tão bom, mas tão bom, estar Lá não existia eletricidade, como te- Percebo que a falta de cuidado com o meu com ele que não sentia nem fome, só saía mos nos dias atuais, por isso, depois de velho amigo deixou marcas que ele levará David Lima dos Santos de lá quando ouvia os gritos de minha avó uma jantarada simples, mas muito capri- pelo resto da vida. Choro ao ver que seus ou de meu pai me chamando para casa. chada, íamos para beira do rio acompa- braços parecem enrugados e sem forças, A escola não me conheceu, tive que nhados pela luz da lua e com lamparinas mas, ainda sim, me sinto abraçado por ele. O tempo passou, mas as lembranças trabalhar desde muito novo com o meu que usávamos quando a “mãe da noite” re- permanecem presentes em minha alma, pai. Acordávamos com cheiro de cuscuz solvia se esconder. Ao pé do rio, embala- * fazendo meu espírito sorrir, chorar e sabo- de panela e do café amargoso que minha dos pelos sussurros das árvores e do ven- rear tantos e tantos momentos que já vivi. avó fazia no nosso fogareiro a lenha. Ela tinho frio, minha avó contava histórias dos Texto baseado na entrevista realizada com Antonio Vieira Santos, de 57 anos Nasci nas margens de um enorme rio era alegria em pessoa, de amargo em sua escravos negros que já haviam morado ali chamado de Ipixuna, no povoado Piquizei- vida só o café mesmo. há muitos anos. ro, em Lago Verde, onde vivi os melhores Depois que enchíamos a pança, minha Durante as horas de conversa, em que quatorze anos de minha vida. Nessa par- avó já estava com a boia pronta que era o rio sentava para ouvir também, tínhamos te de minha história, posso dizer que fui ovo frito com farinha e uma cabaça cheia sobre nossas cabeças um campo negro um pequenino peixe, pois vivia muito mais de água. Assim, com toda essa bagagem, com milhões de pontinhos brilhantes que dentro do rio do que fora dele e sentia um íamos para nossa roça. Logo começávamos iluminavam até a nossa alma. Era impres- aconchego que parecia colo de mãe. Viver a trabalhar, na tentativa de voltarmos cedo sionante como as horas voavam, mais que naquele lugar era pura alegria, apesar de para casa. Eu e meu pai tirávamos as cami- passarinho quando se soltava da gaiola. morar lá somente minha vó, meu pai e eu. sas e ficávamos nus de cintura pra cima, já As histórias terminavam, e nós rumá- Passei grande parte desse tempo ba- que o sol não era tão escaldante como hoje. vamos para casa e em cada passada dada nhando-me naquele rio, que parecia ter Em certo momento, ele olhava pa- refletia como a cumplicidade entre mim e braços que, de forma carinhosa, me abra- ra o céu como se estivesse olhando para o Ipixuna só crescia… çavam e me protegiam, o que me encora- um relógio e dizia: “Rumbora comer essa Vejo hoje que tudo mudou. Aquele po- java a nadar, desbravando aquelas águas boia, já é hora”. Comíamos, e não demo- voado pouco habitado encheu-se de casas, barrentas. Quando mergulhava, meus olhos rava nada para já ficarmos empanzinados, pequenas veredas deram lugar a uma es- ficavam vermelhos, mas aprendi com o ba- mas também mais fortes para aguentar até trada bem larga. O grandioso Ipixuna en- lanço das águas a mantê-los bem abertos mais tarde. velheceu, assim como eu que agora já te- e atentos aos movimentos do rio e de to- Com o sol se derreando, começáva- nho meus 57 anos e não sou mais aquele do verde que embelezava aquele lugarejo. mos o nosso regresso e aproveitávamos as menino, mas o senhor Antonio. A mata que Os anos caminharam, bem me lembro poucas horas para tagarelarmos histórias se via antes quase desapareceu, o fundo Professora Kellyenne Costa Fontinele que o meu amor e amizade pelo rio aumen- sobre os bichos da mata. do rio é visível em algumas épocas do ano. UI Pequeno Príncipe, Lago Verde-MA

118 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 119 POR QUE NASCEM CRIANÇAS? Naquela época, os paus de arara eram — Mamãe, como é que nascem as — Mamãe, nascem crianças por quê? os transportes que levavam os moradores de crianças, hein? Minha mãe era superencabulada em as- Ana Beatriz da Silva nosso povoado para a feira livre de Limoei- Minha mãe fingiu procurar algo, retirou suntos íntimos e mostrava-se constrangida. ro. Vagarosos, circulavam para lá e para cá. da cabeça o seu chapéu de palha, colocou no — Mamãe, responde! Andavam entupidos de gente. Costumavam meu ouvido e num tom baixinho disse: “De- — Santina, repare só numa coisa: o ho- É só fechar os olhos e lembrar-me dos pender nas estradas de barro vermelho. Era pois, quando estivermos sozinhas, eu explico”. mem, quando se chega perto da mulher… tempos de minha meninice que as ima- um sacrifício! Andávamos cerca de 20 quilô- Imediatamente, ela virou para o grupo cof, cof… quando se aproxima MUITO, gens confusas aos poucos vão se tornan- metros e quase sempre precisávamos descer e falou: MAS MUITO PERTO… acontece uma mági- do reais. Creio que, apesar das dificulda- da carroceria por causa do atoleiro. — Acho que vai chover. ca que aí a mulher fica grávida. Entendeu? des, uma boa parte de minha infância foi Lembro-me que, certa vez, em uma des- Todo mundo, muito disfarçado, olhou E saiu disfarçando. Nem esperou a mi- boa, não pelo que raramente possuíamos, sas longas viagens, eu via que todos conver- para cima. Naquele momento fazia um sol nha resposta. mas por nossa maneira de viver. savam espontaneamente. Minha mãe se sen- de rachar. Alguns demonstravam sinais de Fiquei estática com a novidade. Então Sempre fui igual às demais meninas tia à vontade, contando histórias rotineiras aceitação somente para encobrir o meu ve- era assim que nasciam as crianças. Uma do meu tempo. Brincava de roda, passa- para as pessoas que também seguiam via- xame. Eu sempre atrasada, também olhei magia que acontecia quando o homem -anel, amarelinha. As minhas bonecas da- gem. De repente, a conversa acabou. Restou pra cima e só vi azul e sol. Discordei: chegava MUITO PERTO MESMO. vam gosto de se ver. Eu utilizava os restos à minha mãe falar sobre o tempo e as paisa- — Chover hoje? Mas não dá pra ver ne- — Anda, Santina! de lãs de tricô que mamãe jogava fora para gens. Procurava iniciar uma prosa, sem achar. nhuma nuvem… Eis que, para “salvar a pá- Daí em diante, qualquer homem que preencher o que seria o corpo das minhas Já impaciente com o silêncio e coberta de tria”, alguém lá atrás falou: se aproximasse me deixava completamen- lindas janotas. Tinha poucos recursos para dúvidas sobre aquele assunto que eu havia — Chuva de verão pode aparecer a te apavorada! E se eu ficasse grávida? Será isso, mas achava o máximo! Eu era tão jo- conversado com minhas colegas, eu berrei: qualquer momento. É quando as tempes- que os homens eram tão ignorantes para vem e sabia que tudo o que precisava pa- — Mamãe, por que o homem e a mulher tades são piores! desconhecerem tal perigo? Dei para correr ra viver estava bem ali, no Sítio Pindoba! se casam e logo depois nascem crianças? E assim o pau de arara continuou o seu de tudo que era homem e até hoje ainda Não sai da minha memória o tempo Minha mãe ficou vermelha de vergo- trajeto, movendo-se de um lado para o ou- não casei, e, claro, não tive filhos. em que eu e minhas amigas nos reunía- nha. Uma mulher fingiu uma tosse e cutu- tro. O “nhecnhec” das madeiras que ser- mos nos quintais de nossas casas duran- cou a criança que estava ao seu lado. Um viam de assento era a prova viva de que a * te as tardes de domingo para falar sobre senhor assobiou e olhou para cima. Eu, pa- condição das estradas não era boa. vários assuntos proibidos. Porém o nosso cientemente, esperava uma resposta que a Ao chegarmos na feira livre, esperei o Texto baseado na entrevista realizada com Santina Ana da Conceição, de 71 anos problema principal era saber por qual ra- princípio era impossível de ser respondida. momento oportuno. Minha mãe parecia eva- zão o homem e a mulher se casavam e lo- Entretanto, estava curiosa, pensando dir-se, cochichava, sorrindo, com as outras go depois nasciam crianças. Vivíamos em que minha mãe não teria ouvido. Eis que, senhoras. Eu, firme, esperei até o momento Professor José Augusto Pereira da Silva um estado de inocência total. diante daquela situação, tornei a perguntar: em que ficamos sozinhas e voltei a indagar: Escola Serafico Ricardo, Limoeiro-PE

120 — MEMÓRIAS LITERÁRIAS MEMÓRIAS LITERÁRIAS — 121 Crônica

e existe um gênero marcado pela flexibilidade, é a Crônica. Seu tom pode ser poético, filosófico, jornalístico, cômico, despretensioso, pitoresco, ou de tudo Sum pouco. Mas há algo comum às crônicas que precede essa versatilidade: será sempre um texto que emerge das entranhas, muitas vezes inesperadas, do cotidiano. É nele que o autor com olhar treinado investiga “o que vale uma crônica” e encontra sua matéria-prima. Este capítulo traz a fértil produção de alunos-escritores de 8o e 9o anos do Ensino Fundamental, que, entre tantos outros motes, colocaram suas lupas sobre a vó benzedeira que de vez em quando gosta de dançar um xote; o senhorzinho que vai à feira em busca de um bom papo; a amizade entre um menino vendedor ambulante e uma estátua de Manoel de Barros; a disputa de casas funerárias por um morto que aparece no meio de um lago; um jogo de futebol feminino em que a amizade venceu a competitividade; um noivo que sumiu na festa de São João; o mistério do relógio da cidade que teve seus ponteiros desaparecidos. É como se as entrelinhas das páginas seguintes ecoassem o que Antonio Candido escreveu sobre esse gênero literário em “A vida ao rés-do-chão”: “Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”. São crônicas sendo crônicas: textos sem pompa, mas com circunstância. CRÔNICA 144 A DEVOÇÃO 164 A FESTA DE 184 EU VIM DE LÁ Índice FAZ O LUGAR SÃO JOÃO Chrystian da Costa Mel Eduarda Camila Lopes Rodrigues Guimarães Silva de Aguiar 186 AH, MALDITOS 126 O APANHADOR 146 O TEMPERO 166 HAJA TAMPA CINCO MINUTOS! DE ACALANTOS DA VIDA DE DEDO! Ana Maria Pereira Beatriz Pereira Luiz Gustavo Carlos Adriely Stefany da Silva Rodrigues Morais Ferreira de Lima 188 OPERAÇÃO 128 UM RAMINHO 148 A MANTEIGA DO 168 A PORTA CINDERELA DE ARRUDA E UM SEU ZÉ DE ZABÉ Francisco Edmar Allanis Stephani ROSÁRIO NA MÃO Plínio Meireles Rocha de Castro Carvalho Emeli Vichinieski de Almeida Wieczorkoski 170 À ESPERA DA 190 SENTIMENTOS 150 DEPÓSITO DE QUÊ? ÚLTIMA AULA AMARELOS 130 FU Natália Borba Gomes Aytan Belmiro Melo Bruna Vitória Letícia Prasser Cortes da Silva Andrade 152 CARTÃO-POSTAL 172 O GUARDIÃO DO 132 MANOEL E Paulo Manoel Bispo CONHECIMENTO 192 O DIA EM QUE O VENDEDOR Fernandes Júlia Luana Schmitt A NOITE FICOU DE BUGIGANGAS VERMELHA Nicolas dos Santos Sá 154 O TRIUNFO DO 174 LÁ NA MINHA TERRA Kevem Santos BICHO HOMEM Açucena Martilho Diniz de Araújo 134 DO TICO-TICO Thiago Moreira AO CHUÁ, LÁ VEM de Abrantes 176 A PEQUENA 194 O GUERREIRO A CHUVARADA GRANDE GUERREIRA DO SERTÃO Micael Correia 156 DO “BUTECO Francisco Felipe Francisco Wagner da Silva DA ANTÔNIA” da Silva Izidro de Brito Viana À DONA MARIA 136 ESTRANHA André Felipe 178 HISTÓRIA 196 SEMPRE EM NO NINHO da Silva Lima DE PESCADOR BUSCA DE LUZ Iasmim Luíze Isabelle de Araujo Ana Beatriz Teófilo da Silva 158 FIM DO MUNDO Rodrigues Paes Jéssica Vitória 180 LÁGRIMAS 138 MEU MORRO da Silva Rocha DE ESPERANÇA 198 ESCOLA FÁBRICA, Maria Eduarda Kesia Cardoso FÁBRICA ESCOLA de Moraes Silva 160 DAMA DA RUA, Gonçalves dos Santos Jairo Bezerra da Silva DAMA DE OURO 140 A MORTE DA MAIS Glaucia Beatriz 182 TRADIÇÃO 200 O DONO ANTIGA INQUILINA Monteiro Machado DE CARIDADE DO PEDAÇO Isabelly dos Santos Emilie Caroline Kaike Ruan 162 O SONO ROUBOU Stallbaum de Rossi Machado 142 BOCA DE BADALO O TEMPO do Carmo Geizy Taissa Júlia Iasmin Vieira de Souza Santos dos Santos O APANHADOR DE ACALANTOS um cliente; ora entrava em grupo de con- ternet para entrar em minhas redes sociais. versas e falava sobre a política da cidade, Ali, fiquei horas, postei fotos, comentei Beatriz Pereira Rodrigues sobre suas dores, sobre os netos que já es- com minha professora as impressões do tavam grandes e não o visitavam mais; ora passeio, ouvi minhas músicas… tudo na so- falava sobre o tempo… ah, o tempo… o lidão do meu quarto. O sol estava dando um bom dia tími- que ele fez àquele senhor? Já era noite e, por mais que eu tentas- do nas primeiras horas daquela manhã de Percebi que ali na feira, ele estava em se, não tirava o velhinho da minha cabe- terça. Estávamos a caminho da feira da ci- busca de algo, não para saciar sua fome, ça. Fiquei imaginando ele levantando ce- dade. Meus colegas e minha professora já mas para acalentar seu coração solitário: do, tomando seu café, arrumando-se e es- discutiam os assuntos, sabores e cores que atenção, carinho, risos, sentimento de ain- colhendo seu chapéu de passeio para ir ao encontraríamos lá. da pertencer ao lugar e de ter com quem encontro do carinho das pessoas e, talvez, O ônibus mal parou e eles já estavam conversar. Fiquei imaginando o quanto as compensar a ausência dos filhos e netos. na porta esperando ansiosamente para pessoas mais velhas podem se sentir sozi- Então percebi que, assim como ele, sair. A feira é pequena, típica do tamanho tão-postal, parecia abençoar o nosso dia. nhas no vazio de suas casas. Em muitas fa- também me encontro numa grande soli- da cidade, situada abaixo da prefeitura. Entre todas as pessoas, comecei a ob- mílias, os adultos saem para trabalhar, os jo- dão. Estamos o tempo todo conectados, Ao seu lado, fica a linha do trem, margea- servar um senhorzinho, bem mais velho, da- vens para estudar e os idosos ficam à mercê sabemos tudo uns dos outros, em tem- da por quaresmeiras, uma ao lado da ou- queles que usam o chapéu para sair de ca- de ver o tempo passar. Solitários, muitos já po real (mesmo no isolamento de nossos tra, num abraço roxo e rosa sem fim, cis- sa, que ia de barraca em barraca, parava perderam seus contemporâneos e não reco- quartos), mas perdemos muito do “olho no mando em querer dar boas-vindas ao trem em todos os grupos de conversa para pu- nhecem mais o mundo vazio em que vivem. olho”, do abraço, do toque, do sorriso ver- que passa carregando nossas riquezas mi- xar assunto, observava as frutas, mas nada Talvez por isso, aquele senhorzinho, dadeiro que emana felicidade. Aquele ve- nerais, entre elas, o famoso nióbio. comprava. Eu, ali, fisgada por algum encan- tão velhinho, parecia tão feliz e tão aco- lhinho, perdido num mundo tão diferente, A manhã estava fria. Via-se o vaivém tamento vindo daquela figura magra e sim- lhido quando encontrava alguém para con- e eu, perdida num mundo de indiferenças! das pessoas. A feira estava lotada e era pática, passei a observá-lo mais de perto, versar. Reparei que não era só ele. Ali, ha- Éramos cúmplices! difícil caminhar pelos estreitos corredo- chegando a ouvir suas risadas e conversas. via muitos outros, também mais velhos, De uma certa forma, seu exemplo me res formados pelas barracas e pelo con- Às vezes, pegava uma laranja e cheirava: sem sacolas nas mãos. move a mudanças. Onde será que encon- gestionamento dos passantes, cada qual — As de hoje não têm mais aquele Na hora de ir embora, de longe, fiz um tro um chapéu? com suas sacolas. Alguns colegas estavam perfume… “Sassinhora”! Que saudade! tchau para ele, que me respondeu abanan- tirando fotos, outros degustando e desco- Parecia querer encontrar ali um cheiro do o chapéu, com um largo sorriso que me brindo sabores e eu, observando as pes- que o transportasse à infância, à mocida- fez mais feliz. soas. Ao longe, a igrejinha branca em ci- de, à felicidade! Dali a pouco, ajudava al- Ao chegar em casa, fui para o meu Professora Vânia Rodrigues Ribeiro ma do Morrinho do São João, nosso car- gum feirante a colocar frutas na sacola de quarto e, como de costume, acessei a in- EM Nilda Margon Vaz, Catalão-GO

126 — CRÔNICA CRÔNICA — 127 UM RAMINHO DE ARRUDA dinho que esconde a “cetra” nas costas e casa, batizando as crianças. É considerado seu ritual, algumas usam plantas medici- E UM ROSÁRIO NA MÃO cascas de mimosa no bolso do casaco. O santo por aqui, tanto que a água dos olhos nais, outras água benta e algodão, ou pe- marido, acendendo o cigarro de palha, fi- d’água, presente no caminho que ele per- neira, cera, costura com pano, linha e agu- Emeli Vichinieski Wieczorkoski ca na carroça ao longe só a observar. Co- correu, dizem ser benta, usada para a reza lha. Mas o que une todas essas pessoas é a mo muitas pessoas, dona Júlia veio atrás das benzedeiras e benzedores do Paraná. fé, representam sabedoria, cultura, histó- de um benzimento ao filho, para curá-lo Ao lado da chama acesa está o copo. ria, tradição e religiosidade. É algo de difícil O dia começa com a aura fria de maio, das bichas (vermes). Vovó é uma benze- Na água benta, vovó molha o raminho de compreensão para alguns, muitos criticam, vovó volta com a lenha no balaio picada deira conhecida por aqui, tem até certi- arruda que já vinha com um pouquinho de duvidam, têm preconceito, outros creem por ela antes de eu acordar. Fogo aceso, ficado e carteirinha que regulamenta sua orvalho, há pouco colhido do quintal, de firmemente, acreditam nesse dom que, na água fervendo na chaleira de ferro rodea- prática, sempre procurada para tirar que- onde tira todas as suas ervas medicinais: verdade, acho ser fruto de muita fé, espiri- da de pinhão assado na chapa. Agora, com branto, susto, ar no olho, ar no umbigo, a erva-cidreira, a hortelã, o capim-limão tualidade e saber popular. É um ofício tradi- a cuia na mão, está a olhar as galinhas cis- peito aberto, machucadura, cobreiro, bu- para vários chás, pomadas caseiras e até cional do interior do Paraná que precisa de cando o milho no terreiro coberto por um greiro, rendidura, garrafadas… São muitos como parte de suas simpatias. Um grande valorização e respeito. Vovó é uma médica feixe de grama aqui e ali, decidindo qual os pedidos e as simpatias. quintal do qual sou proibida de tirar ingre- que usa o rosário no lugar do estetoscópio! delas seria o almoço a ser servido com po- Seguindo seu ritual de curandeira, ela dientes para brincar de benzedeira, na ten- Já vi a chamarem de feiticeira, mas is- lenta. É assim que o dia começa aqui no acende o toco de vela em seu pequeno e tativa de imitá-la por admiração. Além do so não a abala, tem muita coragem, muita interior do centro-sul do Paraná, em Faxi- simples altar no velho guarda-louça de ma- raminho, ela tem em mãos um rosário fei- sabedoria no olhar, que traz a cultura e a fé nal dos Marmeleiros, onde porcos, carnei- deira com imagens de santos, como o coi- to de sementes com o qual realiza o ben- de um povo humilde. Admiro-a em seu ofí- ros e cavalos correm soltos em uma terra tado e desbotado Santo Antônio que teve zimento com oração própria, inúmeras ve- cio de ajudar o próximo, um dom de fazer que ainda é cultivada coletivamente por as duas metades coladas depois de eu, aci- zes já repetida, tão rápida que quase não o bem que passa de geração em geração. alguns, mantendo a tradição dos faxinais. dentalmente, tê-lo derrubado no chão. Ali consigo entender, reconheço um Pai Nos- Quem sabe eu não seria mais uma benze- Tão sábia, leva os anos nas costas e a está também Nossa Senhora Aparecida e o so no final quando passa o rosário na ca- deira de Faxinal dos Marmeleiros? juventude ao seu lado, mesmo tendo tido pequeno retrato em preto e branco do mon- beça da criança. uma vida dura e desgastante na roça, ain- ge São João Maria, um andarilho e curan- O olhar de dona Júlia ao lado do fi- da sente vontade de dançar um xote de deiro que passou pela região, de casa em lho é de fé no benzimento. Ao final, seu tí- vez em quando. mido sorriso é de agradecimento, mas por Logo um barulho de carroça, um ba- educação logo pergunta “Quanto é?”, vovó ter de palmas e um “ô de casa!” indicam apagando com um sopro a vela diz “Não é visita. Dona Júlia, mulher esguia de cabe- nada”. “Deus lhe pague”, finaliza a visitante. Professora Carla Micheli Carraro los longos presos em um coque amarelado Minha avó é benzedeira, curandeira. CE do Campo de Faxinal dos Marmeleiros, e desajeitado, chega com o filho barrigu- Há muitas delas por aqui, cada uma com Rebouças-PR

128 — CRÔNICA CRÔNICA — 129 FU ignora toda aquela gente que também atra- vessou a rua para segui-lo. No entanto, co- Letícia Prasser Cortes mo uma surpresa, vira de costas para a loja e seus espectadores escolhidos e, de forma esguia e elegante, curva-se e roda as mãos Quinta-feira, primeiro dia de Expoeste não fosse pela indumentária, poderia dizer três vezes reverenciando o público e fina- e eu ansiosa e toda produzida de calça, bo- com toda a convicção que Michael Jack- liza fazendo um coração com as mãos, de- tina e chapéu. Aguardava o dia passar para son não havia morrido e tinha vindo se es- pois desce a avenida com rumo ignorado. chegar a noite do mais esperado show, na- conder nessas bandas do Norte do Brasil. O público vai ao delírio! da mais nada menos do que Manutti. Mi- Aos poucos aquela aglomeração já ha- Ali estava eu, juntamente com aque- nha ansiedade crescia a cada minuto do via virado uma multidão e não parava de le respeitável público, saindo de um esta- anúncio do carro de som pelas ruas. chegar gente. Cada uma com um tipo de do de êxtase e entrando no circular, mas Cai a noite, e eu mais cinco amigas se- reação, algumas ficavam estáticas, outras confesso, meus caros, perdi até a vontade guimos rumo à praça municipal para espe- boquiabertas, alguns assobiavam e, por in- de ir ao show do Manutti, pois imaginava rarmos o circular que faz o trajeto do cen- crível que pareça, todas sequer piscavam. que não seria mais animado do que aque- tro ao parque de exposição Laurindo Cha- Eis que de um salto majestoso do chão para le espetáculo de graça na rua. péu de Couro. Ao chegarmos logo ali na o banco, ao som de assobios, gritos e aplau- Você pode até pensar que cidades pe- subida do morro da Avenida 7 de Setem- sos, o espetáculo toma uma proporção gi- quenas são todas iguais, que têm apenas bro, exatamente na faixa de pedestre em gantesca, e a empolgação do público faz praça, loja, lanchonete e posto de gasoli- frente ao Sorvetão, percebi algo chaman- com que aquele banco se torne a miniatu- na, que as pessoas só falam mal da vida do a minha atenção, pois pessoas come- ra do palco da Broadway e, ali mesmo, sem Mas não, foi somente o primeiro ato do es- alheia e que sabem mais da nossa vida do çavam a se aglomerar, e eu, que não sou aqueles sapatos brilhantes, mas de bermuda petáculo e para o espanto da plateia, o ar- que nós mesmos. Se você pensa assim, até gato e só tenho uma vida, não quis morrer listrada, camisa floral abotoada até o pesco- tista dá um salto mortal carpado triplo de certo ponto eu posso concordar, mas a mi- de curiosidade e fui lá. Nesse instante, foi ço e de gravata laranja, o dançarino desliza costas e, de pés no chão, deixa o banquinho nha cidade é mais que isso, a minha tem o imediata a lembrança das aulas de Histó- de um lado para o outro, joga os ombros pa- ao lado do busto da praça Nilo Paulo Balbi- Fu, o dançarino da praça. ria e viajei direto para o Antigo Egito, pois ra cima e para baixo, sobe e desce, rodopia, not e atravessa a rua virando estrelinhas. Foi aquilo que eu vira ali era a cópia fiel dos segura com uma das mãos na cintura e dá esse o momento de maior agitação, pois os braços de uma dançarina egípcia, mas ao uma sarrada no ar, para e depois acena com gritos e assobios parecem ter triplicado. Ao observar com mais atenção, percebi que as mãos. O público enlouquece e se eleva chegar em frente à loja Varuna, o show re- Professor Alan Francisco Gonçalves Souza essas dançarinas não tinham todo aquele em gritos e assobios. Pensa que o show aca- começa, mas agora o próprio artista escolhe EEEF Jerris Adriani Turatti, molejo e comecei a reparar melhor e, se bou? Engano seu. Também havia pensado. seus espectadores: os manequins, e assim Espigão do Oeste-RO

130 — CRÔNICA CRÔNICA — 131 MANOEL E O VENDEDOR Continuei a transitar por ali, distraí- Eu continuei a fixá-los e me aproximei pessoas estão aproveitando para ganhar DE BUGIGANGAS do com outros acontecimentos. Mas en- um pouco mais. Cheguei até a sombra da um dinheirinho, enquanto as obras não ter- tão fiquei com sede e decidi comprar al- figueira centenária onde os dois estavam. E minam. Cada um tentando ganhar o pão de Nicolas dos Santos Sá go para beber. ali era bastante fresco e agradável. Descar- cada dia (se é certo ou não, legal ou contra Na volta, tornei a observar o moleque tei a embalagem do meu suco no lixo pró- a lei o que o garoto faz, isto é assunto pa- vendedor com o sorriso contrariado no ros- ximo a eles, e permaneci olhando-os sem ra outra crônica). Em busca de uma inspiração que me to, o menino sentou-se, esperando a próxima que percebessem o meu interesse. Passei então a observar o ir e vir das levasse a escrever uma crônica, dirigi-me oportunidade para oferecer suas bugigangas. A minha família, que entrara em uma pessoas e constatei como elas são apres- ao centro da cidade de Campo Grande. Enquanto isso, eu também esperei, to- loja, estava de volta e me apressaram pa- sadas! Então, ouvi uma voz: Meus olhos estavam famintos de aconteci- mando tranquilamente o meu suco, pois o ra sairmos dali. Melhor jeito que achei, foi — Vamos, Bernardo! Era minha mãe mentos, tanto banais como interessantes, dia estava quente e eu precisava me re- fazendo o contrário. Eu diminuí os passos me chamando. desde que servissem para a composição frescar. Eu nem percebi que passei a teste- para dar tempo de olhar tudo, estava en- Enfim, era hora de ir embora. Estam- da minha crônica. Por isso fiquei olhando munhar tudo o que ele fazia. O sinal abria cantado. E pensei: “Esse vai ser o tema da pei um sorriso no meu rosto e fiquei admi- através do vidro do carro, tudo o que acon- e fechava, abria e fechava, e ele sempre minha crônica.” rando a cidade. Depois pensei: “Será que tecia à minha volta. Observei o cotidiano pronto para trabalhar. Mais adiante, ainda aproveitei a dis- o vendedor de bugigangas tem ideia de das pessoas que estavam por ali. Esse cen- Voltando o meu olhar mais para além, tração dos meus familiares com as vitrines quem é Manoel de Barros?” tro, aliás, que está sendo revitalizado, pa- e nas redondezas desses acontecimentos, para ver o Manoel. Manoel dá importância Quando olhei para trás e vi o menino ra que fique melhor. Meu pai decidiu esta- eu vi que o menino aguardava ao lado da às coisas desimportantes e aos seres de- carregando as bugigangas e se sentando cionar em uma vaga permitida, na Aveni- estátua do Manoel da Barros. Agora sim, simportantes e preza muito o menino ven- ao lado de Manoel de Barros eu tive cer- da Afonso Pena. caro leitor, eu me interessei de fato por tu- dedor de bugigangas. Que bom que o me- teza de uma coisa: eles eram amigos, e is- Caro leitor, eu estava em busca de al- do o que via e era muito inusitado e di- nino encontrou um parceiro. so era o suficiente. É, caro leitor! Há his- go diferente no cotidiano das pessoas, e na ferente. A cena me intrigou. A estátua do Constatei, ainda, que o Manoel de Bar- tórias tão verdadeiras que às vezes parece breve caminhada junto com a minha famí- Manoel e o moleque pareciam “amigos”, o ros é poderoso e prestativo mesmo não es- que são inventadas. lia, avistei um garoto, e ele chamou a mi- olhar do Manoel, a meu ver, cuidava dos tando mais entre nós. Poderoso para mim nha atenção. Era um vendedor de bugigan- pertences do garoto enquanto mais uma não é aquele que descobre ouro, e sim gas, e ele usava o semáforo fechado para vez ele saía para oferecer suas bugigangas. aquele que descobre as insignificâncias tentar arduamente conquistar a atenção O Manoel sentado em seu sofá, com das pessoas. dos motoristas. Quase todos se faziam de um sorriso cativante e em seus trajes sim- O garoto continuou a sua jornada, ten- desentendidos. Confesso que eu também ples, não se movia, mas parecia ter vida tando vender suas coisas de pouco valor. Professora Elaine Darnizot logo perdi o interesse pela cena, e não dei e, de alguma forma, auxiliava os trabalhos Como disse anteriormente, o centro da EM Imaculada Conceição, Campo a devida importância ao fato. do menino. minha cidade está sendo revitalizado e as Grande-MS

132 — CRÔNICA CRÔNICA — 133 DO TICO-TICO AO CHUÁ, gritar “caim, caim…”)! Cuida, “homê” à toa! Capuco, fato esse que espalhou-se por to- LÁ VEM A CHUVARADA Mal terminou de dar as ordens ao ma- da Campo Formoso de tão famoso que foi rido, já gritava aos filhos: na nossa região. Bem, quem mora por es- Micael Correia da Silva — Meninos, vêm me ajudar a colocar tas caatingas, Algodões, Vila, Pauzinhos, as panelas nas goteiras, se não vai ama- Boa Vista e em Araras, sabe que demora nhecer todo mundo nadando! Cuida, gu- chover, mas quando chove… Aí a vaca vai No verão passado, em uma quarta-fei- rizada (e a mulher é agoniada)! O diacho pro brejo (Você me entende!), literalmen- ra à noite de muito calor, as muriçocas es- desse telhado parece é uma peneira, mas te. Mas quem liga? A gente mesmo é de tavam todas alvoroçadas no nosso peque- é bom que já junto água! chuva, é de ver o sorriso de sertanejo, sen- no povoadinho de Algodões. Já se aproxi- Detalhe, a chuva ainda nem chegou, achou de construir sua casa na beirada de tir o cheiro de terra molhada, os pássaros mava das 22 horas, quando de repente… mas toda nordestina que se preze tem que um córrego, mas avisado ele foi dos peri- a cantar demonstrando gratidão, tanque Tudo mudou! As muriçocas sumiram! O fazer esse ritual, se vacilar até os pinicos vão gos daquela empreitada. Contudo, achou cheio de água barrenta, sapo a fazer fes- tempo se fechou, nuvens pesadas começa- para debaixo das goteiras! Pois é, o povo do que a razão estava apenas com ele, bom, ta, as pessoas simples na janelinha de casa ram a se formar, ao longe ouviam-se os tro- Nordeste não pode ver uma gota d’água cair talvez estivesse descrente, faltou-lhe a fé agradecendo a Deus por tudo, todos numa vões, viam-se os clarões iluminando o céu, no chão que já se põe em prontidão. perante a tantos anos de seca. É, mas co- imensa alegria dando as boas-vindas a es- o vento uivava igual cachorro desvairado. Mas foi nesse momento que tudo mo Deus escreve certo por linhas tortas, aí sas chuvas abençoadas que fazem o nos- UH! UH! UH! A caatinga cinzenta de tão se- aconteceu, pois depois de uma sequência foi que o bicho pegou, pois a força da água so sertão florescer, sorrir, encantar e feste- ca chega estremecia, um grande temporal de muitos pingos o céu se derramou em era tamanha que a coitada da casa foi in- jar. É difícil explicar, mas uma coisa eu pos- se aproximava. Os ventos tornaram-se ca- água, “eita que foi água!”. Parecia o dilú- vadida por um mundaréu de água, lama, so lhe garantir, mesmo diante da teimosia, da vez mais fortes, a caatinga deitava com vio da Arca de Noé. E assim foram se de- galhos, entrou tudo pelo fundo da casa e dificuldades e aperreações que o sertane- a força dos redemoinhos, é nesse momen- senrolando os acontecimentos desastrosos saiu pela porta da frente, uma coisa de dar jo enfrenta, nós somos arretados (palavra to que dá um frio na barriga da gente! Aos daquela noite, pois mais adiante existe um dó! Levou tudo! E seu Antônio e sua espo- de nordestino), pois somos um povo luta- poucos começou a gotejar, pequenos, mé- córrego desbravando uma caatinga mais sa? Bom, conseguiram fugir a tempo numa dor, em que a verdadeira felicidade do lu- dios, grandes pingos e já se podia ouvir o seca do que vara de bater pecado, e foi carreira desenfreada. “Quem espera tempo gar onde vivo é a simplicidade de um po- tico-tico das goteiras. Foi nesta hora que por esse córrego que a água desceu des- ruim é lajedo”, diz o dito popular da minha vo sonhador e vencedor. a dona Albertina, minha vó, meteu os pés vairada para o povoadinho mais abaixo, a região, e assim, pernas pra que te quero. da cama, levantou-se como uma doida e Vila. Porém, no meio desse percurso havia Todos lembram desse acontecimento começou a gritar pela casa: a casinha do senhor Antônio da Maria, po- (e também da teimosia de Seu Antônio), — Homem de Deus, levanta que já vem pularmente conhecido como Capuco, um coisa dessa é difícil esquecer, e me pare- Professora Águida Cristina chuva! Vai ajeitar a bica! O piaba, tadinho, senhorzinho do meu lugarzinho, gente fi- ce que até hoje a vizinhaça ainda encon- do Nascimento Silva não para de latir (e o coitado do cachorro a na, mas teimoso que só ele, pois o mesmo tra objetos levados pela chuva da casa do CM de Araras, Campo Formoso-BA

134 — CRÔNICA CRÔNICA — 135 ESTRANHA NO NINHO atenção, uma verdura que lembrava as cal- cre. A novata vai ser A-TRO-PE-LA-DA, com mas águas da baía de Angra e Paraty. Es- todas as letras, pelas enciumadas “gereren- Iasmim Luíze Teófilo da Silva sa novata chegou e fez justiça ao título de ses”. Coitada, ia apanhar como Judas em Miss Simpatia, o que fez nascer um senti- Sábado de Aleluia. mento de inveja, desconfiança e quem sa- Ouve-se o apito. Começa o jogo. To- A natureza humana é algo mesmo im- be ódio. “Quem ela pensava que era pra dos prontos para ver o massacre, a novata pressionante. Porém, mais impressionan- chegar e conquistar nossa Gererê assim?” bela e fresca ver sua beleza ser destruída te ainda é a capacidade do ser humano em A doce novata nem imaginava o que com chutes, empurrões e boladas. Quan- entender aquilo como lhe convém. A cul- a aguardava. Ser bela e comunicativa foi do, simplesmente, ela tocou a bola e deu tura popular diz que “coração humano é o maior de seus pecados. Como num con- um show. Ninguém esperava por aquilo. terra que ninguém pisa”, mas nada que se to de fadas do interior, nossa bela novata E não só deu um show, como se entrosou compare à maldade produzida pelo medo seria vítima da tal inveja feminina, tão co- com o time. Pareciam velhas conhecidas, do novo, do desconhecido. mum nos contos. Porém, a maçã envene- praticamente irmãs. Engenheiro Passos, ou só Gererê, pa- nada foi a fofoca e o maldizer. Deram um baile no time adversário e ra os íntimos, é um desses recantos do in- Inventaram de um tudo: que ela veio saíram de campo abraçadas. terior. Fica no pé da Serra da Mantiqueira, fugida de Tremembé por ser menor infra- Aqui no pé da Serra da Mantiqueira, na fronteira entre os estados do Rio, São tora, que sua mãe não deu conta do “fogo” onde Rio, São Paulo e Minas se encontram, Paulo e Minas, e talvez por isso, por não e mandou pra cá pra se esconder na casa num fim de mundo, que é o interior, do in- se saber ao certo onde começa ou termi- da avó, ou ainda que suas virtudes eram terior, do interior, um joguinho de futebol na cada estado, mas de se ter a certeza de disfarce de uma boa bisca… feminino derrubou todas as muralhas e que se está no interior, do interior do inte- Calúnia, difamação, confabulação. neutralizou o veneno da inveja e acolheu rior, onde se está tão acostumado com “o De tudo tentaram para disseminar má fa- a quem antes era só a estranha no ninho. bom e o velho”, aquilo que é novo costuma ma da doce novata. Se ela se sentiu rejeita- causar estranheza. da? Talvez, mas não deixava transparecer. Certa vez, na escola estadual, que é E não há nada como um dia após o outro. pequena, onde todos se conhecem, che- Era dia de jogo na escola. Futebol Fe- gou uma aluna nova. Muito bela e simpá- minino era a modalidade. Aqui as meninas tica. Chegou de algum lugar do Estado de são fera. Dignas de Copa do Mundo. Quem São Paulo, a cidade não me recordo. Mas sabe até substituir a Marta? Enfim, todos Professora Teresa Cristina dizem que ela era bem comunicativa, e be- aguardavam ansiosos pela especialidade de Fonseca de Andrade la. O tom de verde de seus olhos chamava a Gererê. Tudo indicava que seria um massa- CE Engenheiro Passos, Resende-RJ

136 — CRÔNICA CRÔNICA — 137 MEU MORRO

Maria Eduarda de Moraes Silva

O morro acorda sempre apressado, agitado. Num desce e sobe vielas e esca- das, pessoas seguem suas vidas ao mes- mo tempo em que portas e janelas se es- cancaram e melodias, risadas saltam sol- tas daqui e acolá. Dona Josefa, com seu cigarro já ace- so, está de pé à porta de seu barzinho, cur- Já é noite no Morro do Macaco. As tiros e um último grito seguido de um cho- tindo suas músicas sertanejas; e não se de- luzes tomam seu lugar e, aos poucos, tu- ro sentido e doloroso… mora muito pra ver a Brenda, dos salgadi- do vai se aquietando… Bem aos poucos. — Meu filho nããããããoo!!! Mataram nhos, aos gritos com os filhos da Miche- Não vejo mais a Brenda nem dona Maria meu menino… le, que insistem em jogar bola na frente que, pelo horário, já fecharam suas vendi- O silêncio reinou por alguns instantes da sua barraca… Está declarada a confu- nhas. Dona Josefa – agora sentada na sua e, aos poucos, via-se a cena final: uma mãe são. Mas bom mesmo é passar pela do- cadeira de plástico vermelha – mantém o e o corpo coberto de sangue de um mo- na Maria, a quitandeira – me delicio só de bar aberto até tarde da noite. ço baleado. olhar todas aquelas frutas cheias de chei- Continuo a subida e, lá pelo meio do No dia seguinte, o morro acorda sempre ros e sabores. caminho, um grito sai avisando: apressado, agitado. Num desce e sobe vielas Os dias são quase todos assim: entre — Os “cara” tão subindo!!! Coooorre, e escadas, pessoas seguem suas vidas. En- idas e vindas, “sobes e desces”, vou e vol- coooorre!! Tão subiiindo!! quanto a noite ficou ali… Estendida no chão. to da escola. E nessa volta, loucura mesmo O susto paralisante foi logo desfeito pe- é passar pelo “Caminho das Índias” – é as- lo apavoramento do povo. Quem pela rua sim que chamam a Cachoeirinha na hora estava, correu desesperado, assim como eu, do rush – Pensa num lugar agitado, cheio pra se esconder em algum lugar. Os dispa- de gentes, gritos e buzinas? Aff!! Salve-se ros pareciam vir de todos os cantos do mor- Professora Ana Paula da Conceição da Silva quem puder! Mas… Chego lá na minha ca- ro. Portas e janelas agora fechadas, ame- EE Domingos de Souza Prefeito, sa, chego lá… drontadas pelo caos armado. Tiros, muitos Guarujá-SP

138 — CRÔNICA CRÔNICA — 139 A MORTE DA MAIS ANTIGA Catarina, e não conhecer ou não ouvir Recordo-me que, desde pequena, eu cidade cada vez que saíamos de casa e INQUILINA falar da tal rua! já tinha aprendido a amá-la e fazê-la de mi- percorríamos aquele trajeto. Não era uma simples árvore, dona de nha amiga. Minha confidente de todas as Hoje o que reparo, com olhar demora- Isabelly dos Santos um imenso tronco largo, raízes profundas, vezes que por ela passava para chegar ao do e minucioso, é que tivemos uma perda. centenária, era obra perfeita que a natu- meu destino. Parecia que apesar de não fa- Nossa majestosa não se faz mais presente, reza nos proporcionou. A imponente plan- lar e não parecer ser sensível, ela me trans- muitos sentem sua falta, e em minha ter- Sábado de manhã, abri a janela e o ta era a mais antiga inquilina, testemunhou mitia a sua compaixão e sua compreensão. ra os murmúrios continuam sobre o triste canto dos pássaros chamou-me a atenção. grandes acontecimentos e espetáculos Eu a entendia, chegava a ficar triste ao vê- episódio. Mas a rotina diária, o nosso coti- Observei atentamente as espécies de aves nesse palco que é a minha cidade. Viu o -la perder as folhas no perverso outono, e diano, continua! Nada preencheu o espaço que moravam em uma árvore que margea- progresso chegar com edifícios e a arqui- quando se torcia fraca pelo sopro do ven- vazio que a magnífica planta deixou. Crian- va o muro de minha casa. tetura moldando o lugar, invadindo seu es- to em dias de tempestade. ças correm pela calçada, carros vão e vêm Notei que na copa dessa árvore frutí- paço até a formação do bairro que era co- Os anos se passavam e ela sempre es- num movimento frenético e os cidadãos fera tinha um ninho de passarinho que com nhecido pela sua presença. Notou as feiras tava lá, até que o pitoresco e irrisório acon- ainda usam aquele percurso para chegar certeza deveria abrigar uma vida ali! Fiquei e os imigrantes se instalarem, o vaivém de teceu; um impiedoso caminhão perdera o ao seu destino. Eu ainda estou aqui, presa contente em poder contemplar um pedaço carros e pessoas. A cada balançar de seus seu freio e a destruiu em pedaços de dife- em meus devaneios. Admirada, agora ob- da natureza no pátio de casa. Ah… Quan- galhos, era como se ela torcesse por cada rentes tamanhos! O que restou foi apenas servo da janela da minha casa aquele ce- tas cores me envolveram e aguçaram os conquista do povo que por anos acompa- um pedaço de seu tronco próximo à raiz. nário novo, sem a majestosa, sentindo fal- sentidos através daquele episódio. nhara. Imagina só! Quantos pássaros cons- Perdeu-se ali o símbolo e um peda- ta de ver a minha velha amiga que costu- Tudo isso me faz lembrar da rainha e truíram nela seus ninhos, copularam e au- ço da nossa história. A rua não é mais mava contemplar, da árvore que intitulou majestosa árvore, localizada no meio de mentaram a espécie. Quantos encontros a mesma, morreu aquela que lhe deu o o meu bairro, que embelezava, purificava o uma rua conhecidíssima em minha cida- aconteceram debaixo da sombra sedutora nome. Ícone desse lugar, frondosa árvo- ar e guardava a história do lugar onde vivo. de. Devido a isso, a estrada que contava que convidava quem por ali passasse a des- re de Sassafrás, presente até em nossa com sua participação não era conhecida cansar, sentir o vento e o aroma num clima bandeira. Ali jaz a mais antiga habitante. por seu real nome e sim por “Rua da Árvo- benevolente singular. O meu coração chora essa saudade! Res- re” ou “Rua do Pau no Meio”. Contudo, essa majestosa árvore, qua- ta agora a esperança de que ela cresça, Inclusive esse fato inusitado, a ima- se um personagem vivo de minha cidade, e quem sabe os meus bisnetos possam gem da árvore no meio da rua, era um foi apagada ano passado. Minha vizinha, ter encontros marcados com o renascer dos pontos em destaque do lugar onde moradora do meu bairro, se foi. Agora a daquela árvore, onde ficara no caminho vivo, praticamente um ponto turístico. frondosa Sassafrás só fica na lembrança de uma rua principal, que conduzia todos Professora Daniela Thibes dos Santos Não há como conhecer Rio do Sul, ci- dos riosulenses, dos que tiveram a chance até o centro da cidade. Nós tínhamos en- EEB Deputado João Custodio da Luz, dadezinha situada no interior de Santa de conhecê-la e contemplá-la. contros marcados com a protagonista da Rio do Sul-SC

140 — CRÔNICA CRÔNICA — 141 BOCA DE BADALO

Geizy Taissa de Souza Santos

Nem só alguns dias, nem só algumas que tudo acontecia. Às vezes, eu chegava a quadro exposto ao sol, à chuva e ao ven- horas, mas sempre. Às vezes um pouco de pensar que ela poderia ter também visão no- to. Sem significado, sem história, sem vi- mim ou um pouco de você. Assim, sempre turna, mas não. Sua habilidade era mesmo da, sem nada… me pondo a pensar no que ela faz ou dei- a curiosidade. Várias vezes tentei me apro- Então, enchi-me de coragem e ao pas- xa de fazer para observar, cautelosamen- ximar dela para poder descobrir qual seria sarmos diante da casa dela, aproveitando a te, tudo que se passa diante de sua cale- o seu segredo, já que das outras pessoas da oportunidade ímpar de sua ausência, gri- jada janela em madeira e com marcas his- rua ela sabia bem. Mas sempre se mantinha tei bem alto: tóricas de seus cotovelos. Nunca deixando firme e com um certo ar de misteriosa. — Fica, dona Maria! passar despercebida uma boa oportunida- Na semana passada, a esposa de seu de para atualizar seus queridos e desinfor- Manoel, aspirante ao posto de boca de ba- mados vizinhos. dalo, veio perguntar pra minha mãe se es- Como se tivesse sido crucificada na- tava sabendo que dona Maria iria se mu- quele lugar estratégico, de onde podia ver dar da rua para o bairro do Batata. Surpre- da primeira à última casa de nossa rua, so com a notícia, percebi um frágil sorriso mantinha-se por horas imóvel, só observan- com ar de liberdade brotando dos lábios do para poder depois descrever com rique- das duas amigas. Diante disso, comecei a za de detalhes tudo que se passava naque- me perguntar se haveria na rua, no bair- la pacata rua de Breu Branco. Bons hábitos, ro ou mesmo na cidade alguém com tanta sei que todos temos, mas dona Maria boca presteza para nos atualizar, mesmo quan- de badalo (era assim que todos a chama- do não queríamos. vam, sem ela saber, é claro) era especialista Cheguei à conclusão de que dona Ma- em se manter imóvel em sua janela. ria, apesar de seus dotes descritivos, já ha- Se um cachorro ladrava durante a noi- via se tornado parte não só da rua, mas te ou mesmo um vizinho voltasse tarde pa- também da minha vida e da dos demais mo- Professor Valdimiro da Rocha Neto ra sua casa, ela sabia de tudo. Podendo in- radores da rua, e que aquela janela antiga EMEF Antonio Oliveira Santana, clusive citar horas, minutos e segundos em sem sua figura central não passaria de um Breu Branco-PA

142 — CRÔNICA CRÔNICA — 143 A DEVOÇÃO FAZ O LUGAR

Mel Eduarda Guimarães Silva

Cá estou eu, em Aparecida, cidadezinha pernas, ora apressadas, ora lentas e duvi- timo ônibus, são desmanchadas as últimas do interior paulista, com ruas estreitas, mas dosas, ora ajoelhadas que se arrastam por barracas de vendas, a sujeira entra em cena. com construções gigantescas como o San- preces ouvidas. Em meio a isso, grita o ca- Já não há muitas vozes, apenas o tuário Nacional – famosa Basílica –, o cora- pitalismo na cidade: barulho das vassouras dos garis ou do ca- ção de nossa cidade e que acolhe a todos, — Água, suco, refrigerante…! minhão-pipa que vem lavar o que sobrou seja peregrino, seja morador, seja imigrante. — Olha o sorvete, Itu geladinho!!! do furdunço. Aparecida é assim… Uma cidade pa- — Um maço de fitinha, só dois reais! Cá estou eu, vendo tudo terminar pa- cata, mas ao mesmo tempo, não. Nos dias Se o peregrino sentir fome, os agen- ra começar na semana seguinte. de semana, é calma, silenciosa, um lugar ciadores de restaurantes gritam mais que Assim é a rotina da “Capital Mariana onde você consegue andar de carro a 20 cigarra em noite de verão: da Fé”, e o mais maravilhoso é pensar que quilômetros por hora. Mas isso não dura — Olha o almoço, almoço! É barati- todo esse tumulto é por devoção, seja ao muito. Logo na sexta-feira, os feirantes já nho e gostosinho! capitalismo, seja à religião. se preparam para receber romeiros de to- — Comida caseira, quentinha, na hora! do o Brasil, gaúchos, cariocas, baianos, pa- — Vamo comê, gente, aqui criança não ranaenses… Até pessoas de outros países. paga, quem paga é o pai ou a mãe! E tem ônibus em todo lugar da cidade! Mas os visitantes não deixam por me- Antes do amanhecer do sábado, os nos, sempre tem aquele que diz “Moço, vendedores de fitinhas coloridas de Nos- me dá um descontinho? Eu vim de longe!” sa Senhora Aparecida já estão a postos e, Frases ditas durante todo o fim de semana. sem demora, o furdunço começa. Dá pa- A fé leva o romeiro pela cidade, de ra ouvir o barulho dos ônibus, mais alto bondinho, de charrete ou no trenzinho, ou- que britadeira, misturado aos comentá- ve-se de tudo, gente que agradece e gente rios animados dos peregrinos, que dão vi- que pede ao santo ou ao vendedor… da à cidade. Ao fim do dia, os mais animados pro- Professora Daniela de Gouvêa Moura Caminhar tranquilamente pelas ruas curam algum barzinho para festejar, outros EMEF Professora Maria Conceição Pires do Rio, se torna algo impossível, são milhares de adormecem com a cidade. Quando sai o úl- Aparecida-SP

144 — CRÔNICA CRÔNICA — 145 O TEMPERO DA VIDA

Luiz Gustavo Carlos Morais

Sexta-feira de manhã, num calor de várias escolas públicas, particulares, uni- As horas passam, já é quase meio-dia. infartar, tumtumtumtum tum! Meu what­s­ versidades, empresas e outras instituições. As pessoas voltam para as suas casas, não app anuncia: minha turma já me aguarda- Trajando preto, cartazes em riste, apitos e tão satisfeitas, mas com sensação de dever va na Avenida Centenário, próximo à Ces- buzinas expressando nossa revolta. A ave- cumprido. Minha barriga ronca, é momen- ta do Povo, para um protesto em prol dos nida agora era só nossa. Como o tempo to de ir embora. Passo pelas mesmas ruas, nossos direitos. não favorecia, foi necessário milhares de meu coração quer rever aquele senhor. Lá vou eu, cabeça erguida, peito estufa- garrafas de água, geladinhos e picolés. Os Meus pés se apressam, mas meus olhos do, um cidadão consciente. No meu trajeto, vendedores ambulantes enchiam os bol- não alcançam mais a sua barraca. Ele já se percebo que a cidade é um verdadeiro for- sos. Os carros e as motos buzinando, não foi! Provavelmente vendeu tudo. Uma mis- migueiro. Pessoas chegavam de vários bair- sei se era para ajudar ou pedir licença! tura de sentimentos invadiu meu ser. Torci ros, povoados ou até municípios vizinhos Eu, motivado pelos gritos dos meus com- para que os temperos, que são o seu sus- com seus produtos para comercializar. To- panheiros, também gritava: “Invistam na tento, dessem muitos sabores à sua vida. do dia de feira é assim! Agora, leitor, avistei educação!”, “Melhorias para a saúde”, “Em- um senhor que virou minha cabeça e dila- pregos, já!”, “Cuidem dos idosos!”. Nesse cerou meu coração. Sentado num banqui- momento, me deu um calafrio, lembrei da- nho, barbas envelhecidas pelo tempo, grita- quele senhor que ficou lá atrás, esqueci- va com voz frágil, chamando seus fregueses: do por nós. — Olha o tem-pe-ro verde! Olha o Da Avenida Centenário fomos para a tem-pe-ro verde! praça Capitão Francisco de Souza Meira, Os meus olhos pretos encontraram os mais conhecida como Praça da Matriz. O olhos azuis daquele homem judiado pelo cartão-postal da cidade. Imponente, viva trabalho do campo e pelas ações dos anos. há mais de 150 anos, a Igreja Matriz rei- Talvez tivesse uns 50 anos, mas aparenta- na. Nesse lugar, a emoção aumenta, os dis- va mais de 70. cursos dos protestantes ganham força, nos Professora Rosangela dos Santos Marques A gritaria dos estudantes me lembrou enchem de esperança. É a fé do povo do EM Oscarlina Oliveira Silva, da passeata, já na avenida, me juntei às sertão que resiste. Brumado-BA

146 — CRÔNICA CRÔNICA — 147 A MANTEIGA DO SEU ZÉ DE ZABÉ

Plínio Meireles de Almeida

Num domingo pela manhã, fazia bas- versando, sobre futebol, escola e garotas, passadas lentas que só ele tinha. Pedi to- tante sol no Povoado Pedra, município de pois ninguém é de ferro! do eufórico minha manteiga, e enquanto Ribeira do Pombal, interior da Bahia; ao E no decorrer da conversa, até esqueci ele ia se afastando lentamente para bus- sentar à mesa para o café da manhã, per- o que iria fazer, mas logo lembrei. Se fosse car, voltei aos meus pensamentos, de co- cebi que a manteiga havia acabado. Mas outra coisa, já tinha esquecido mesmo, teria mo ocorreram mudanças em nossa comu- não pense você que é uma manteiga qual- que retornar para casa para minha mãe re- nidade e nas pessoas, trazendo caracterís- quer, essa é da Bodega do Zé de Zabé! frescar minha memória ou até anotar. Mas ticas diferentes. Mas o meu alívio era sa- A venda ficava no centro do povoa- como era minha manteiga de garrafa, essa ber o que não havia mudado, era a mantei- do, então tive que atravessar todo ele pa- eu jamais poderia esquecer, feita artesanal- ga que continuava sendo a melhor e tradi- ra comprar, para eu poder comer com meu mente, tão saborosa ao ser colocada, chega cional, trazendo um sabor diferenciado na delicioso pão. No trajeto, passei a obser- a derreter. Só em falar me dá água na boca. mesa de cada família. var que, mesmo sendo um fim de sema- Continuei a caminhada e, ainda obser- na, pela primeira vez, a rua estava deser- vando, encontrei um grupo de amigos, mas ta. E então, pude enxergar como havia mu- dessa vez não era conversando, e sim todos danças no lugar em que moro, casas re- plugados e vidrados na tela do celular, cada formadas, com cores vibrantes, deixando um em seu mundo. Que mundo é esse? Do um bonito colorido à comunidade, havia jogo viciante “Free Fire”, tão diferente dos uma construção da praça já em andamen- antigos rolês que fazíamos. O que fazemos to – ela servira para reunir ainda mais as agora? Ficamos presos nas tecnologias di- pessoas daquele lugar, um ponto de en- gitais, e cada vez mais distantes, querendo contro –, também várias lojas foram cons- muitas vezes nem sair de casa. truídas, desde consertos de aparelhos ele- Finalmente cheguei ao meu destino, trônicos a pequenas mercearias e lancho- à bodega, e por incrível que pareça, não netes. Então pensei: “minha comunidade havia ninguém na minha frente, ufa! Lo- Professora Gleyce Jane Bastos Silva tá crescendo!”. E continuei a caminhar, fui go surge de uma dispensa, bem lá no fun- EM Ana de Deus Conceição, encontrando meus amigos e ficamos con- do, seu Zé de Zabé, com sua paciência e Ribeira do Pombal-BA

148 — CRÔNICA CRÔNICA — 149 DEPÓSITO DE QUÊ?

Natália Borba Gomes

Hoje mais cedo, fui com minha mãe preencher os dados para minha matrícula em uma das escolas estaduais de ensino médio na nossa cidade sede, Espumoso. Quando terminei tudo, a diretora da esco- la me questionou sobre o nome do lugar onde eu moro: encontrava o seu pai, que além de sem- Eu respondi que era no Depósito, en- — Desculpe a curiosidade, mas o no- pre ter morado ali, já foi prefeito da cida- tão ela me questionou: me do local onde você vive se chama mes- de de Espumoso. Ele me explicou que anti- — Depósito, depósito de quê? mo Depósito? gamente esse lugar se chamava “Terceiro” E assim acontece quase sempre quan- Eu respondi que sim, então ela me e que passou a ser chamado de “Depósito” do alguém não sabe do meu endereço. questionou uma segunda vez dizendo: por causa de um depósito de armas escon- Depósito, um lugar que no passado — Mais uma vez peço perdão pela inde- dido pelas redondezas, durante a “Revolu- guardava armas e munições, hoje, um luga- licadeza, mas, do que seria esse tal depósito? ção de Trinta”. rejo, pequeno ainda, mas repleto de pessoas Eu respondi que, dessa vez, quem te- Prestei muita atenção nas palavras de- batalhadoras, esperançosas, que cuidam das ria que se desculpar era eu, pois não fazia a le, conforme ele ia narrando os fatos, eu ia crianças, da natureza e que têm orgulho de menor ideia da resposta naquele momento. encaixando as cenas na minha cabeça como sua morada. Aqui ninguém luta com arma- “Depósito”? sem dúvidas é um no- se fosse um cinema mudo. Saí de lá comple- mento de guerra, aqui todos lutam por dias me curioso a se dar a um lugar, fiquei com tamente abismada com aquelas informações melhores, com trabalho e amor! aquilo na cabeça por uma boa parte do e extremamente curiosa para saber qual se- dia, até que resolvi pedir para minha mãe ria a reação da diretora da minha nova esco- onde eu poderia encontrar aquelas infor- la, quando eu contasse tudo aquilo para ela. mações, ela então me sugeriu uma conver- E então, ao voltarmos para casa de ôni- sa com um professor de história que mo- bus, uma senhora que se sentava numa pol- rava ali por perto. Ao chegarmos em sua trona ao lado perguntou: Professora Suzana Maria Cabral casa, ele nos conduziu a uma sala onde se — Mocinha, onde você mora? EMEF Imaculada Conceição, Espumoso-RS

150 — CRÔNICA CRÔNICA — 151 CARTÃO-POSTAL

Paulo Manoel Bispo Fernandes

Era sexta-feira, final de tarde, quando Perdido em meus pensamentos e en- lago? Eu procurava respostas para tamanha na fúnebre. Nesses momentos, apesar da retornava para casa depois de mais um dia cantado com tamanha beleza, não me tragédia, quando, de repente, levei um sus- tragédia, muitos sorriram, parece que até de aula. Da janela do ônibus admirava a pai- dei conta do que estava acontecendo lo- to. Não pense você que foi com o defunto. o defunto, se pudesse, também teria sorri- sagem da praça do Rebentão, que tem ao go mais à frente, não antes de o motoris- Se pensou tens razão, é claro, mas me as- do da situação. fundo a lagoa Tanque Grande. Sempre faço ta frear bruscamente. De repente, me de- sustei com o que eu presenciava. Em meio Olhei mais uma vez para o lago, meu esse percurso tanto para ir como para voltar paro com uma multidão às margens do la- ao alvoroço de uma multidão que, prefi- cartão-postal, e mergulhei em meus pen- da escola. Confesso que adoro pois é, sem go, um verdadeiro formigueiro humano. Eu ro acreditar, tentava entender o motivo de samentos, convicto de que estamos imer- sombra de dúvidas, a parte mais bela da ci- não estava entendendo nada, creio que vo- uma pessoa ter se afogado, e ao desespero sos numa sociedade de consumo, que não dade, um verdadeiro cartão-postal da minha cê também não, acho que está se coçando da família que chorava a morte de um en- poupa nem a morte, e que a mesma, por querida Ibiassucê, conhecida por morado- de tanta curiosidade, aguente só um pouco te querido, duas empresas funerárias rou- mais triste que seja, também revela surpre- res e visitantes como “Capital da Amizade”. que já lhe conto o que estava acontecendo. baram a cena, pois se engalfinhavam para sas, algumas nada agradáveis. Do outro lado, acima do lago, tem um mor- Tão logo o motorista parou o ônibus, ver qual delas faria a cerimônia funerária. ro com várias casas, essas formam uma bela desci, assim como todos os outros alunos Diante da confusão o que mais cha- imagem ao refletir nas águas cristalinas do que ali estavam, o mais rápido possível. Fui mou-me a atenção foi quando um dos ho- lago, parecem verdadeiras bailarinas a dan- me embrenhando no meio da multidão e mens, funcionário de uma das funerárias, çar um ballet ao som do vento rodopiando lá estava um corpo estendido no chão, ele disse que o serviço de sua empresa era com movimentos de graça e leveza ao subir tinha sido retirado sem vida, por popula- completo, o melhor da região, pois incluía e descer da maré. No verde capim às mar- res, das águas da lagoa. Grande parte das tudo o de melhor que havia no mercado, gens do lago, alguns burricos a pastar divi- pessoas portando seus celulares de últi- até lembrancinhas para os “convidados”, dem o espaço com enormes pedras brancas ma geração, tentavam o melhor ângulo pa- podendo a família optar pelos tradicionais como nuvens, que parecem flutuar, tornan- ra fotografar o pobre defunto ou ainda fa- santinhos, por flores e até por um doce ba- do a paisagem ainda mais encantadora, eu zer um vídeo para, quem sabe, postar nas tizado de “bem-velado”. Acredite, amigo diria poética. Pelo visto, amigo leitor, esse redes sociais e ganhar o maior número de leitor, eles criaram uma versão fúnebre do lago tem o poder de encantar não só a mim, curtidas possível. bem-casado, e arrancando do bolso uma mas tudo e todos que em suas margens ou- Teria ele se encantado com tamanha amostra expôs o doce que vem em uma Professora Ana Maria Cardoso da Silva sam passar ou habitar. beleza a ponto de “entregar” sua vida ao caixinha em forma de uma miniatura de ur- CE Ibiassucê, Ibiassucê-BA

152 — CRÔNICA CRÔNICA — 153 O TRIUNFO DO BICHO HOMEM

Thiago Moreira de Abrantes

Por que a galera daqui do sertão nor- destino gosta tanto de vaquejada? Eis a inquietude de minha alma! Desde ainda muito pequeno, vejo as pessoas, princi- palmente as moças, se emperiquitando da cabeça aos pés para participar do evento. Sei que tem forró, tem boi e vaqueiro, mas guei mais perto do local, agora com mais — Valeu Boi! ção para ganhar uma merreca de dinheiro nunca, nunquinha mesmo, eu tinha ido a cuidado para não pisar nos resíduos alimen- Eu torcia pra que no final ele gritasse: e para agradar aos olhos de quem assiste… uma. Até que semana passada, pela pri- tícios excretados pelos bovinos. Meu pai, — Zero Boi! Não, não entendo. Se é cultura, tradição, meira vez, meu pai me levou para assisti-la. que mais adiante estava, gritava: O que significa que o boi ficou em pé e lucro e ajuda na economia local, não sei… Eu tinha uma certa ideia de como — Limpa logo essa merda, menino! pleno na faixa. Um sobressalto de alegria, Sei que estava torcendo pelo boi, que es- acontecia esse tipo de esporte, se é que Por trás da cerca, minha visão cor- entusiasmo e prazer sombreia nos rostos tava sendo um protagonista, no final der- podemos chamá-lo assim! Todavia, eu não ria por todo o cenário e, aos poucos, mi- de todos que ali estavam a espreitar tal ce- rotado pelo “bicho homem”. sabia que a arena era montada em con- nha curiosidade se desfazia em decepção na. Uma pontada de aflição fincava meu No fim de tudo, ainda rolou um forro- dições favoráveis ao homem para mostrar e tristeza: abrem-se as porteiras, corre o coração! A galera aplaudia, vibrava, e eu zinho, como uma espécie de celebração sua covardia disfarçada de força e cora- boi; atrás dele, dois homens montados nos contido com meus pensamentos, sem en- pela vitória do “bicho”. Ah, e o sol, será gem para derrubar o boi. seus cavalos, cujo objetivo é pegar no rabo tender aquelas vozes conjuntas e alegres que dormiu tranquilo? Na certa, amanhe- Era bem à tardinha, o sol ainda abra- do boi e derrubá-lo dentro do espaço mar- com a queda do boi. ceu com olheiras no dia seguinte, já que çava o dia. Já estava tudo armado quando cado a cal entre uma linha e outra. Assim, Não pensem, caros leitores, se acaso teve vergonha de testemunhar, mesmo a cheguei na festa. Eu pressentia que ia feder, cumpre-se o objetivo: o pobrezinho do boi estiverem lendo esta crônica, que sou ve- anos-luz, aquele horror. pois assim que desci da moto, já pisei logo cai, rola duas ou três vezes no chão e os ca- getariano, não sou, até gosto de carne. E em algo flácido e em formato de pudim, de valeiros dão a volta em toda arena, orgu- aí alguém querer me julgar por isso é um odor nada agradável, aliás, o ambiente to- lhosos do serviço bem feito, ostentando o tanto injusto, caso esteja me julgando. Eu do fedia. “Ai que raiva!”. Respirei demorada- troféu nas mãos: o rabo do boi. acredito que cada caso é um caso. Acre- mente… Tentei limpar o tênis com um pe- Ao longe, em uma torre, o locutor vibra dito na lei da natureza e no equilíbrio na- Professor Carlos Alves Vieira daço de pau, que encontrei no chão. Che- e grita no momento da queda do animal: tural do ecossistema. Mas aí, aquela judia- EE 26 de Março Ensino de 1º e 2º Graus, Paraná-RN

154 — CRÔNICA CRÔNICA — 155 DO “BUTECO DA ANTÔNIA” foi gradeado “graças” ao furto de doces da Depois desse dia, observei melhor co- dar mais atenção ao nosso linguajar. E ain- À DONA MARIA parte de pequenos invasores. mo as pessoas chegavam à Bodega e per- da lá, descobri que conforme a pessoa e o O janelão fica ao lado da porta de en- cebi que na verdade, ao chegarem, elas que ela vai fazer ali, o apressado vira “ave- André Felipe da Silva Lima trada da casa e foi recoberto por um toldo chamam pelo nome da minha avó. Os pri- xado”; o bêbado vira “pinguço” ou “pé in- com o fim específico de acolher os clientes meiros clientes, sonolentos, atrás do pão chado”; se alguém está com vergonha, es- diante do sol, que parece ter maior apego matinal, gritam quase em silêncio: “Don- se recebe o apelido de “acanhado”; se quer Minha avó mora há mais de três dé- ao Nordeste. Por esse janelão, é possível tonha”. E, assim, seguem as variações de ir embora, devido ao sono, é porque está cadas numa pequena vila ao lado da mi- ver estantes, cujos produtores vivem ape- Dona Antônia, que são iguais, conforme os “mole” ou, ironicamente, “bêbado de so- nha cidade. Como a religiosidade micae­ nas em relíquias como aquelas. Vê-se, ain- grupos e seus horários na venda, mas dis- no”, e por aí vai. Eu prenderia você aqui, lense sempre esteve encravada em nos- da, um balcão arranhado e vários produ- tintas no vilarejo. leitor, por horas a fio revelando o que des- sa sociedade, a vila leva o nome de Nossa tos que vão da limpeza aos mantimentos Minha curiosidade aguça na expec- cobri, se meu importuno cotidiano não me Senhora de Guadalupe. Mais de cem fa- e também a famosa cachacinha. Um olhar tativa de mais variações e abro sorrisos batesse à porta. mílias formam esse vilarejo, que tem as mais apurado avista uma balança inconse- quando as crianças soltam um tímido: Quanto ao Buteco da Antônia ter vira- necessidades básicas, como mantimen- quente que gosta mesmo é dos clientes, “Dantonha”. As donas de casa, apressadas do bodega, assim como as coisas da vida tos, abastecidas por apenas quatro pe- porque vive pendendo para eles. para dar conta do almoço, soltam um: “Ô, se perdem no cotidiano, perdi esse deta- quenas vendas. Para nós, de casa, ali é a bodega, no- Tônha”; os adolescentes eufóricos, dão um lhe embelezado com as variações linguís- Mesmo morando na cidade, nunca gos- me esquisito que acredito vir desde a pri- grito de: “Dona Tônia”, por sinal, fato que ticas na bodega da minha avó. Mas refle- tei da agitação e correria diárias que mui- meira “bodega” que está lá dentro. A “bo- irrita levemente a minha avó. E, por últi- ti que a essência do lugar em que vivemos tas vezes são a inspiração para as crônicas. dega” da minha avó resiste há mais de 30 mo, aqueles que, talvez por estarem toma- está entranhada nos detalhes corriqueiros Incrivelmente, achei minha inspiração num anos e como desperta-me curiosidade dos pelo álcool, os famosos bêbados, es- que resolvi captar. cenário diferente. aquele cotidiano singular. quecem seus próprios nomes e o da minha Aqui despeço-me e, noutro momento, Aproveitei o breve recesso escolar pa- No alvará que encontrei subitamente avó, mas não esquecem a direção da ven- prometo pagar a dívida contraída no início ra driblar o meu cotidiano e rumei ao acon- em meio a teias de aranha e poeira, por dinha e soltam um: “Ô Dona Maria”, mui- desta crônica. chegante refúgio na casa de minha avó. So- ocasião de uma faxina, fiquei perplexo ao tas vezes pausando a sagrada hora do al- bre as raras vendas que citei acima, uma é descobrir que em sua origem, a bodega moço de minha avó, que a essa altura, já dela. E como o caro leitor já deve ter presu- tem o nome de “Buteco da Antônia”. Sim, quase não sei mais como se chama. Acho mido diante de alguns fatos expostos, essa antes que você pense que errei, está es- que ela mesma confunde-se na identidade. venda não tem caixa registradora, carrinho crito assim mesmo. Essa descoberta me Quem diria que a bodega em que mi- que conduz mercadoria, entrada de acesso levou a uma reflexão sobre como o “Bu- nha avó “despacha” clientes há quase uma Professora Núbia Cristina ao cliente. Todas as transações corriquei- teco de Dona Antônia” se transformou vida inteira, pudesse me revelar facetas Pessoa de Queiroz ras ocorrem através do imenso janelão, que em “Bodega”. micaelenses. Foi a partir daí que passei a EMEF Elisiario Dias, São Miguel-RN

156 — CRÔNICA CRÔNICA — 157 FIM DO MUNDO

Jéssica Vitória da Silva Rocha

Tempestade forte, desespero total, Sem o consolo do colo do meu pai, o porque minha mãe me arrancou de debaixo angústia, eram esses os meus sentimentos único jeito era ir para baixo da cama, nem dela, já brava com tanto choro e também naquele momento. Tava acontecendo, meu sei o porquê, pois quando o mundo aca- preocupada com a demora do meu pai. Deus, tava acontecendo! 12/12/2012!!! Seria basse, com certeza não seria a cama que Então a chuva foi acalmando e demo- o fim de tudo. A chuva torrencial havia sido me salvaria. rou para ela parar por completo. Meu pai anunciada! Eu já tinha ouvido falar nas his- Meu Deus, por favor, ainda sou tão chegou em seguida, ensopado, mas che- tórias bíblicas, até aí tudo bem, minha mãe novinha, não vivi nada, como assim, meu gou, havia demorado porque estava na fa- sempre as lia para mim, mas na rádio São Deus? Não dá pra adiar, não? Não é por- zenda esperando a chuva acalmar. José do Rio Claro… Seria possível? É, tava que anunciou na rádio que tem mesmo Não entendi muito bem porque Deus tudo acabado, era mesmo o dilúvio!! Eram que acontecer. Tantas vezes, a São José mudou de ideia, talvez fosse o meu apelo três da tarde quando se ouviu os primeiros FM noticiou coisas que eram só pra ganhar debaixo da cama que o tenha sensibilizado. ruídos dos grossos pingos caindo no telha- Ibope, e que só tinha “de verdade” a versão É deve ter sido, porque minha mãe diz que do, a tragédia anunciada estava acontecen- de quem contou mesmo! Coopera aí, vai!! se a gente pedir com fé as coisas aconte- do. Minha mãe seria a testemunha do fim Nada!! O Pai estava, pelo jeito, decidi- cem. Ela tinha razão. Mas por via das dúvi- dos meus sonhos. Nem seria possível a des- do!! Parecia que estava sendo despejado das, é melhor não ouvir mais a rádio! pedida do meu pai, pois ele ainda não havia de balde, como dizia minha avó. voltado da fazenda onde trabalhava. “Cadê a arca? Ela seria muito útil ago- A cada minuto o medo e o pavor toma- ra”, pensava. Da primeira vez todos tiveram vam conta de mim, pois o barulho se torna- a chance, mas e agora? O que fizemos para ra agora um estrondo. Lá fora, árvores en- nem sequer termos a chance de salvar um tornadas, vento forte, tudo branco, não de- de cada espécie? O medo era tão grande, morou nada, a casa já estava alagada junto e eu angustiada e sentindo a injustiça divi- com a terra, sim, porque o que havia de gra- na, que nem percebi que a chuva foi paran- ma, a tempestade tratou de carregar. Vol- do, claro. Em cima da cama e debaixo das ta e meia o céu clareava com relâmpagos cobertas que camuflam o barulho fica di- Professora Cinthia Angélica da Silva Alves que mais pareciam foguetes riscando o céu. fícil ver ou ouvir alguma coisa direito; sim, EE Santana d’Água Limpa, São José do Rio Claro-MT

158 — CRÔNICA CRÔNICA — 159 DAMA DA RUA, — Aqui, meu patrão! Farinha torradi- do céu e o cumprimento vindo de um sorri- Mas, como gente aglomerada precisa DAMA DE OURO nha, da boa! Pode provar! so ou de um olhar? A esses, ela observava de organização e as ruas de urbanização, — Aqui, freguesa! Peixe fresquinho! com tristeza e, ao vê-los tropeçar nos pró- o poder público fez algumas mudanças na Glaucia Beatriz Curimatã, pescada e tamuatá! prios pés, se fosse má, praguejaria: Rua Claudomiro de Moraes. Monteiro Machado Observava as pessoas provando fa- — Toma-te! Bem feito! Eu acho é bom! A desobstrução das calçadas e um rinhas de mandioca e de tapioca, pegan- Mas ela era uma gentil senhora, boa e novo plano de arborização foram algumas do punhados com as pontas dos dedos e generosa – uma verdadeira dama. Embora das ações realizadas em prol do bem-es- Muitos por ela passavam sem se dar atirando-os em direção à boca, sem cair tivesse recebido muitas pedradas pela vi- tar e da segurança de todos. conta. Seguiam sem notá-la, cegos pela um grãozinho sequer! Que pontaria! Uma da, não se prestaria a atirar pragas. À tarde, por volta das treze horas, como pressa, ou pela rotina, que aos poucos nos importante habilidade para quem procu- Numa cidade onde só se tem verão e in- de costume, muitos procuraram por ela. En- rouba a beleza das coisas simples e tira de ra por aqui farinha de qualidade: baguda, verno, aprendeu com a vida a ser outono e contraram uma nova parada de ônibus – um nosso olhar a sensibilidade. Mas, todos os torrada e gostosa. primavera, a ter suas próprias estações. Sim, moderno abrigo de estrutura metálica com dias, lá estava ela – acomodada bem na es- Gostava da barulheira dos meninos, que a não guardar rancor ou ressentimentos, teto de acrílico azul. O sol, como sempre, quina, testemunhando o vaivém de uma das ganhavam um dinheirinho carregando com- mas a florir e frutificar, fizesse chuva ou sol. estava escaldante e o calor era insuportável. ruas de Macapá, a Claudomiro de Moraes. pras ou guardando carros. Quando menos se A tarde chegava e trazia o calor que A poucos metros dali, à espera de Já tinha se acostumado com as con- esperava, começavam uma pira-pega: somente nós, os que moramos sobre a Li- translado para o aterro, estavam os restos versas dos alunos que, de manhã, caminha- — Ana-bu-bu-bu quem sai é tu pelo ra- nha do Equador, temos o privilégio de des- mortais de uma frondosa sibipiruna ou “da- vam para a escola. Apesar de ter idade para bo do tatu, na minha terra tem pi-ra-ru-cu… frutar. Mas, ironias à parte, era nesse horá- ma de ouro”. Rente ao solo, seu toco. Sim, ser a avó deles, não estranhava o dialeto: – um dava a deixa para a brincadeira. rio, das treze horas, com o sol de rachar, o era dela, da nossa acolhedora senhora, a — Ih, moleque, Matemática, hoje. — A mãe é tu! – outro gritava. momento que ela mais gostava. “dama da rua”, cujo pecado fora viver flo- — Caramba! É mermo! Saíam desembestados, feito doidos. Nessa hora, ela era vista e notada por rindo e frutificando – a árvore que, infeliz- — Tá firmeza, mano? Eram crianças sendo crianças. Escondiam- todos: os apressados, os distraídos e os mente, muitos só notaram quando senti- — Mas quando já! Vou me lascar! se atrás dela, colocando-a na brincadeira. que esperavam ônibus, táxi ou mototáxi. ram a falta de sua sombra fria. — Tu jura?! Tu não comeu caroço Ah, aqueles meninos eram tudo de bom! Ficava cercada de estudantes. Devia se de pupunha! Como muitos seguiam sem notá-la, sentir vaidosa na companhia de tantos ado- Essa conversa juvenil, num macapanês passou a valorizar a companhia de quem lescentes, casais de namorados e de fican- com as pitadas de gírias, para ela fazia to- se achegasse. Sem julgar, ouvia o desaba- tes. Ali pintava o clima perfeito para encon- do o sentido. Ela era da terra e tinha feito fo dos bêbados, os esquemas dos amantes trar o crush e para as paqueras. Alguns ma- desse chão a sua casa. ou as mentiras dos que iludiam. tavam aula para ficar na companhia dessa Professora Josefa Maria Taborda do Nascimento Silva Nos dias de Feira do Produtor, ouvia as Agora, o que dizer dos que seguiam agradável senhora. Que ficassem. Como já EE Professor Irineu da Gama Paes, ofertas gritadas entre palmas: entretidos no celular, sem notar a beleza dizemos, a ninguém ela julgava. Macapá-AP

160 — CRÔNICA CRÔNICA — 161 O SONO ROUBOU O TEMPO que receberia milhares de curtidas e visua- braços e, como aquelas atrizes dramáticas, lizações. E o fotógrafo, coitado, com a câ- fingiu um desmaio. O prefeito, em tom de Júlia Iasmin Vieira dos Santos mera em uma das mãos e a outra na ca- discurso político, chamou a polícia para re- beça, sem acreditar no que estava vendo. solver o caso. Gritava verbos imperativos Os três tiveram o mesmo pensamen- para que as autoridades achassem logo o Os pontos turísticos do lugar onde vi- to: sem ponteiro, sem vídeo, sem divulga- culpado. Batia no peito dizendo que aqui- vo são como o sol, todos moradores sa- ção e até sem festival. Que vergonha para lo cheirava a coisa da oposição, logo ago- bem de sua existência, mas não cuidam e a cidade, um dos seus mais belos pontos ra que o festival iria começar. nem valorizam. turísticos, roubado! Depois que todos levantaram hipóte- Às vésperas do maior festival multicul- Alguma coisa tinha que ser feita: a in- ses sobre quem era o possível ladrão, es- tural da América Latina – o Festival de In- fluencer pegou seu celular e começou a cutou-se a voz de um homem com cara de verno de Garanhuns – que atrai gente do gravar o ocorrido postando em suas redes noite mal dormida dizendo: “Com licença, país inteiro, aconteceu um fato inusitado. sociais, a empresária ligou para a impren- pessoal. O que está acontecendo? Com li- Uma das mais famosas digital influencers sa e acionou a secretária de Turismo. E o cença. Muito obrigado!”. Era um dos res- locais foi convidada para fazer a última di- fotógrafo, coitado, parado com a câmera ponsáveis pelo manutenção do Relógio, vulgação do evento. O lugar escolhido pa- em uma das mãos e a outra agora no bolso. ele carregava os ponteiros pintados em ra a produção do vídeo não poderia ser ou- Não demorou muito e o carro da impren- um carrinho de mão. Para a alegria de to- tro: o Relógio das Flores, cartão-postal da sa parou e logo foi saindo o repórter ainda dos, ele tinha terminado os reparos tarde cidade, o único relógio do Norte e Nor- sonolento com o microfone na mão. A ci- da madrugada e acabou perdendo a hora. deste, lugar muito visitado pelos turistas dade acordou desesperada com a notícia, que fazem questão de parar, apreciar e ti- todos queriam conferir se não era fake ne- rar aquela foto. ws o que a internet dizia. Nunca se viu tan- Tudo preparado. A equipe saiu cedi- ta gente preocupada com o Relógio e a ci- nho, enquanto os moradores dormiam, pa- dade. Ouviu-se até gente lamentando, por- ra que as gravações não fossem interrom- que passavam por lá todos os dias e nunca pidas. Chegando na Praça Tavares Correia, tiraram foto com o relógio, nenhuma pos- todos tiveram um grande susto: o Relógio tagem nas redes sociais! E, agora, o Reló- estava mais florido do que nunca, porém, gio estava sem ponteiros. sem os ponteiros. Foi uma loucura só! A in- A secretária de Turismo quando viu Professor Arnaldo Gomes da Silva Filho fluencer começou a passar mal, sua empre- que do mais importante ponto turístico EM Professor Mário Matos, sária ficou desesperada porque era o vídeo da cidade faltava uma parte, levantou os Garanhuns-PE

162 — CRÔNICA CRÔNICA — 163 A FESTA DE SÃO JOÃO

Camila Lopes de Aguiar

Segunda-feira, noite estrelada, a lua Tudo seguia conforme a tradição, mas Enfurecendo a bela moça que já esta- — A energia já voltou? cheia se esconde por entre as montanhas de no meio da noite, algo inesperado acon- va angustiada. Mas, para não parecer in- E sai em disparada rumo ao local Reduto, cidade do interior de Minas Gerais. tece: a energia acaba em toda a cidade. A delicado, o senhor retrata-se: da festa. O sino da Matriz anuncia, através das bada- única luz que se vê é a da fogueira. Todos — Estava apenas brincando. Descul- Com o seu retorno, os olhos se vol- ladas, que a missa está por começar. Todos se apavoram, a dúvida é uníssona: pe-me! No entanto, a moça, emburrada, tam para ele. A noiva se alegra, tia Maria se agitam, é noite do padroeiro São João. — Como se dará a quadrilha? o ignora. se aquieta, o sanfoneiro o primeiro acorde O céu está colorido por diversos fogos E as opiniões são mútuas: Tia Maria se movimentava para desco- da sanfona toca e o baile começa. de artifício e balões. As ruas estão cheias, — Tem que haver quadrilha! A festa brir o que acontecera ao moço desapareci- Redutense, cidadão caloroso, com a o pátio da igreja decorado com bandeiro- não será a mesma sem dança, “uai” – dis- do e, inquieta, incumbe a todos: festa continua. Após a dança, todos pulam las e organizado para receber os festeiros. se tia Maria, que é tia de todos e uma das — Dividam-se em equipes. Um grupo a fogueira em sinal de união e em homena- O cheiro que vem da barraca de caldos organizadoras do evento. vai para a esquerda passando pelo “pré- gem ao padroeiro. invade a cidade de apenas um bairro. Caldos Dona Lena indicando “não” com a ca- dio redondo” e balaústres até o viaduto. Ao final da festa, todos retornam aos quentes saem a todo instante. Após a homi- beça, opina: O outro, pela direita passando pela “bí- seus lares fazendo planos para o “São lia do padre, é para lá que todos se dirigem. — Sem luz, não tem “arraiá”! blia” e Biblioteca Pública até a faculdade. João” do próximo ano. Tia Maria, como No palco, sanfoneiros e violeiros em Foram minutos de incerteza e, logo, a Encontrem-no! sempre, é a mais animada. harmonia, com apresentações variadas ao tí- luz retorna. E com ela, a alegria e o agito Todos, engajados, saem para encontrá- pico som mineiro. À frente do palco, casais da festança. O sanfoneiro ajeitava a sanfo- -lo. E procuram por diversas partes da pe- veteranos se posicionam para puxar o forró. na para o início da quadrilha, quando um quena cidade, mas sem sucesso. O amor também está no ar. Na barraca novo rebuliço começa. Desta vez, o noivo Uma criança que passava pela pracinha, de recadinhos do coração, solteiros român- da festa desaparece. A notícia se espalha perto do ponto de táxi, avista um moço dei- ticos fazem declarações às suas amadas. e a tensão toma conta do ambiente: tado no canteiro, chapéu cobrindo o rosto, As crianças não ficam fora, sempre es- — Sem o noivo, eu não danço! – gri- tirando um belo de um cochilo. E o aborda: tão tentando acertar a boca do palhaço ou ta a noiva desesperada. Um senhor muito — Seu moço, seu moço! A quadrilha a pescaria que é a mais procurada – apesar sarcástico se aproxima e dispara: já vai começar. Professora Aline Cristina Robadel Nobre de os peixes serem de plástico, a brincadei- — O noivo desistiu porque a noiva é O noivo levanta-se num susto, ajeita o EE Carlos Nogueira da Gama, ra faz a alegria da criançada. muito feia. chapéu e com os olhos esbugalhados, indaga: Reduto-MG

164 — CRÔNICA CRÔNICA — 165 HAJA TAMPA DE DEDO!

Adriely Stefany Ferreira de Lima

Final de tarde e o sol já vai se pondo rulho que até atrapalha os cultos nas igre- sem dinheiro, mas cabe a esse buscar o re- atrás do morro, deixando o céu com uma jas evangélicas. Fim de jogo, briga porque frigerante. Por fim, todos bebem. E ficam cor linda, então o povoado começa a se a bola passou por cima do tijolo, briga por- ali na praça por muito tempo, até escure- movimentar. Uns sentam na calçada, ou- que um escondeu o chinelo do outro, briga cer. As mães entram levando as cadeiras e tros trazem cadeiras e uma garrafa de café porque o juiz é primo de um jogador que o café, afinal, não podem perder a novela. para deixar a prosa mais confortável. fez gol. Como diz o ditado, “entre os mor- É aí que mora o perigo. A meninada Tudo em Deuslândia é tranquilo e paca- tos e feridos, todos se salvaram”. não é boba! Assim que as mães entram to, até o momento em que a criançada surge Cada um pega sua bicicleta, quem começam a organizar os encontros com com uma bola e uns pedaços de tijolos para tem carrega quem não tem, e vão para a aquela paquerinha. Sempre rolam uns bei- fazer os gols. Tudo fiscalizado pelos olhares pracinha no “centro” do povoado. É neces- jinhos atrás da igreja, na casinha abando- atentos das mães, que conseguem prosear, sária uma comemoração! Um dá dez cen- nada e no “S”. Se você nunca frequentou tomar café e ainda olhar a molecada. Sur- tavos, outro dá um real, tem sempre um esses lugares, não pode ser considerado gem meninos de todos os lados e de todas um deuslandense. as idades, nessa hora ninguém é melhor que Espero criar meus filhos aqui! Quero ninguém, todos são iguais perante a bola. ser dessas mães que sentam na porta para Primeiramente, decide-se quem é de tomar café! Quero que meus filhos percam qual time, tira-se par ou ímpar para deci- as “tampas dos dedos” nas ruas de Deus- dir quem fica com a bola. Então, começa lândia. Quero fingir que não sei dos encon- o clássico, os sem camisa jogando contra trinhos amorosos. Que meus filhos apro- os de camisa. Um clássico! veitem a simplicidade do povoado… Todos descalços, pisando em pedra, terra, lixo, sem frescura. Um perde a “tam- pa” do dedo, o sangue jorra, as mães fi- cam aflitas, gritam, mas tudo em vão. Na- Professora Cristiane Silva Ferreira da pode atrapalhar o clássico. É tanto ba- EE Vila Nova, Brazabrantes-GO

166 — CRÔNICA CRÔNICA — 167 A PORTA Quando chegamos à loja, não conse- era apenas uma travessa calçamentada, de ouvir meu pai anunciando sua chega- gui esconder a felicidade. Lembro-me da de casas simples e baixas, comum nos in- da. Mas somente ouvi um choro abafado. Francisco Edmar Rocha decoração natalina e da música ambiente teriores. Mas naquele momento me pa- Era a minha mãe no interior da casa. de Castro sonorizando o tradicional Jingle Bells que receu um túnel desesperador. Não havia Meu coração disparou e um vento gelado me enchia de emoção; chegara o momen- ninguém ali. Apenas o vento frio a tocar me cortou a espinha, quando recebi a tris- to! Apreciei os brinquedos ali; logo, me en- as copas das árvores, sussurrando-me pa- te notícia: meu pai havia partido para jun- Uma porta não é somente a entrada ou cantei por uma belezura de pentágonos lavras de consolo numa linguagem não to do Criador. a saída de um local, é um portal para a pas- vermelhos. Olhei para o meu pai e disse: compreendida pelo meu coração de ga- No momento não quis entender, prefe- sagem de sentimentos bons ou ruins. Sem- — É essa! roto solitário. Olhei as pedras do calça- ria não ter entendido. A partida de futebol pre que passar por uma porta, pense nas Fomos ao caixa e pagamos. Sorriden- mento, pareciam rostos tristonhos e cala- estava marcada, meu pai nunca descum- histórias vividas ali. Eu consegui perceber te, eu ansiava por jogar, mas meu pai me dos, sob aquela parda iluminação dos an- prira uma promessa. Permaneci lá. Próxi- isto quando a vida decidiu soprar furiosa- dissera que somente jogaríamos no dia se- tigos postes da cidade. Havia um silêncio mo àquela porta estava uma criança espe- mente sobre mim o seu vendaval da desilu- guinte. Meu velho tinha trabalho acumula- gritante de melancolia, como se naque- rançosa e contrariada. Meus sentimentos são. Aconteceu próximo à porta de entra- do. Quase não me contive, tamanho o de- le momento as pedras partilhassem a mi- de menino foram traídos. Não pelo meu da da minha casa, foi lá que o meu mundo sejo de inaugurar a bola. nha solidão. pai, ele fora sincero ao me prometer vol- explodiu em mim. A tarde passou; à noite, meu pai fa- Retornei à minha casa, novamente tar; mas pela vida, que se interpôs entre Era um sábado e o Natal se aproxima- lou-me que precisaria ir a outra cidade ad- adormeci no mesmo local de espera. Acor- nós, roubando-me a alegria de viver a di- va, isso me despertava emoção. O dia es- quirir umas peças para o seu ofício. Deu- dei com um barulho. Levantei-me, afastei o versão tão esperada. Não consegui inau- tava ensolarado. O barulho das dobradiças me um beijo, como sempre fazia, e saiu sono esfregando os olhos e abri avidamen- gurar a minha bola com o meu herói. Não antigas da porta me acordou. Levantei-me em sua moto. Passei a noite junto à por- te a porta. Meu pai voltara, pensei. Pisquei houve a partida de futebol, e sim, a parti- sonolento. Levemente, passei os polegares ta, esperando o seu retorno. Cada vez que algumas vezes e percebi que não era ele. da de meu pai. Naquela noite em que tan- nos olhos e olhei para a porta. Por ela, vi olhava o olho mágico, imaginava-nos chu- Era um conhecido da família. O que queria to o esperei, naquela véspera de Natal, ele meu pai entrando, cabisbaixo e cansado, tando, fazendo gols e defesas extraordi- àquela hora? Reparei as suas feições, havia não voltou para casa. Nunca mais voltou. pois passara a noite trabalhando. Ele me nárias. As partidas de futebol que fanta- tristeza no olhar. olhou e a alegria irradiou em mim. Corren- siei superavam os campeonatos de Copa O homem perguntou-me por minha do, abracei-o. Minha mãe acordou logo de- do Mundo. Meu pai era superior ao Pelé e mãe, falei-lhe que ela estava acordada. pois, preparou-nos o café. Era uma convi- ao Neymar. Ele era o meu herói. Mas a noi- Apenas descansava, enquanto o meu he- dativa manhã para o meu sonho se realizar. te passava e ele não chegava, cochilei ali rói não chegava. Ele interrompeu brusca- Ganharia o presente de Natal! O dia perfei- mesmo na porta. mente nossa conversa e entrou em nosso Professor Raimundo Nonato Vieira da Costa to para comprar a minha primeira bola. E o Acordei minutos depois. Fui à calça- lar, caminhando até minha mãe. Eu fiquei EMEF Pedro de Queiroz mais especial: meu pai iria comigo. da de minha casa e olhei o final da rua; ali, estagnado. Olhava a rua, na esperança Desembargador, Beberibe-CE

168 — CRÔNICA CRÔNICA — 169 À ESPERA DA ÚLTIMA AULA de café cercados por uma tela e um peque- Ah! Como espero por essa última au- no galinheiro para observar. Confesso que la… Porém, não posso dizer que não quero Aytan Belmiro Melo já me diverti algumas vezes, quando a pro- nem ao menos lembrar-me desta garagem. fessora fazia uma pergunta e as primeiras Inesquecíveis lições tenho aprendido aqui: a responder eram as galinhas, cacarejan- vendo o esforço de meus professores para Enquanto um dos grandes cronistas ração se empolga só de pensar. A última do em alto e bom som. E não são só as ga- compensar o tempo perdido entre as cor- que li e que me inspirou a escrever, ansia- aula na garagem! Você não imagina como linhas: há dias que a trilha sonora que nos ridas de uma garagem a outra, com os co- va pelo inusitado ou pitoresco que daria esperamos por isso. embala é o animado sertanejo da vizinha, legas que ignoram o espaço em que esta- luz a sua “última crônica”, o inusitado aqui A escola onde estudava, começou a em outros, o que nos abala é a “makita” dos mos e se dedicam aos estudos, com aque- é o maior desejo deste pequeno aprendiz, desmoronar. Foi interditada. Os alunos fo- pedreiros na construção ao lado, tão irritan- les que sabem colorir, com alegria e leveza, a razão e a emoção de meu texto: que a úl- ram “provisoriamente” (há seis anos) co- te que consegue desestabilizar até mesmo o nosso dia a dia. E, sobretudo, com a mi- tima aula chegue logo. locados no salão paroquial. Não foi sufi- a firme professora de Geografia. nha comunidade que nos deixa uma belís- Não me interprete mal, querido leitor. ciente. Arrumaram-nos umas garagens… Mas, finalmente e felizmente, essa sima lição, mostrando-nos que diante das Não sou desses, como alguns dos meus Isso mesmo: garagens! Sabemos que de construção, assim como a da nossa esco- adversidades, não precisamos fazer as ma- mais divertidos colegas, que chegam à pri- garagens saem boas bandas, tem lojinhas la, está na reta final. Nunca estivemos tão las e mudar de cidade ou de escola, mas meira aula esperando ansiosamente pela que funcionam em garagens, costureiras e perto da última aula na garagem. Confesso sim, lutar para transformar a realidade. Li- última. Muito pelo contrário, quando eles doceiras usam muito bem suas garagens. que uma emoção diferente me invade ao ções tão importantes que ultrapassam as resolvem prolongar um feriado, aqui estou Mas, sala de aula, para uma turma intei- pensar numa escola com quadra, refeitó- linhas de minha crônica, as paredes des- eu, sentadinho em minha cadeira. Sinto- ra?! É terrível… rio, sala de informática, biblioteca… Meu ta garagem e os limites de nossa cidade. -me bem na escola. Todas as manhãs, E apesar de terrível, aqui estou escre- Deus! Eu vou estudar numa escola de ver- quando a mão quentinha de minha mãe vendo minha crônica numa delas. Arrepian- dade! Uma escola que não começou de me avisa que já são seis horas e tenho que do-me com o frio que nos abraça nas ma- graça, sem grito, nem choro. Foi na briga me arrumar, não lamento. Sei da importân- nhãs de inverno, observando as colegas que mesmo. Naquele dia em que o povo da- cia dos estudos para o meu futuro. Talvez se distraem com os gatinhos e os cães da qui entrou na onda de “acordar o gigante”. por isso, anseio tanto por essa última aula. rua que vira e mexe nos visitam e ouvindo Pais, alunos e professores, vestiram uma Acredito que essa última aula seja o gargarejo das galinhas – nossas vizinhas camisa de luto, tomaram a BR 116 que cor- aguardada por todos na cidade. Pois, se do fundo. Afinal, nossa “garagem de aula” ta a cidade e gritaram: apesar da demora, ela está tão próxima, fica na última casa de uma rua estreita e — Garagem não é sala, igreja também devemos isso aos valentes santa-barbaren- sem saída. Quando os colegas querem tirar não! Senhor Governador, olha a situação… Professora Silvania Paulina Gomes Teixeira ses… Quando esse dia chegar haverá fes- os olhos do quadro e viajar pela paisagem E só então, com as fotos e vídeos nos EE Monsenhor Rocha, Santa Bárbara ta, haverá choro, haverá foguete! Meu co- atrás de nós, têm apenas alguns pezinhos jornais, começamos a ser percebidos. do Leste-MG

170 — CRÔNICA CRÔNICA — 171 O GUARDIÃO DO CONHECIMENTO

Júlia Luana Schmitt

Sou velho, muito velho, mas ao con- descobri. Peças antigas começaram a che- trário do que muitos pensam, minha velhi- gar e prateleiras com livros foram ocupan- ce tem me deixado mais conhecido. Todos do os meus espaços. Aos poucos, as histó- vêm até a mim para adquirir o conhecimen- rias, tanto antigas como novas, foram po- to, tanto do passado quanto do presente voando o meu interior. Então recebi o no- ou do futuro. Às vezes, só de me observa- me de Biblioteca Municipal de Horizontina. rem, as pessoas já sentem certo “orgulho”, Agora, as pessoas entram e saem to- aquele sentimento de que podem contar dos os dias. Escolas vêm visitar minhas comigo. Mas ao contrário do que você po- exposições e o meu museu, que guardam de estar pensando, neste exato momento, as memórias deste povo hospitaleiro, que não sou uma pessoa. Sou apenas um antigo acolheu o imigrante que aqui chegou e fez prédio, majestoso, cercado pelo movimen- essas terras produzirem. to da cidade que cresce a cada dia. Sempre tenho visitas, recebo a todos Antigamente, eu tinha uma importan- com carinho, os rangidos das portas e das te função. Sem a minha presença as pes- escadas de metal fazem parte do que um soas não tinham o sustento matinal. Eu era dia eu fui. Guardo em meu interior mui- um moinho. As pessoas vinham até a mim to conhecimento. Se outrora eu alimentei somente para ter o essencial para garan- esta cidade, com o pão material, hoje, ali- tir o alimento, ou seja, o pão de cada dia, mento este povo com o pão intelectual. Por fruto do trabalho dos pioneiros desta terra isso, eu sou o guardião do conhecimento! tão fértil. Fortalecendo o povo desta cida- de para, assim, construir a nossa história. A modernidade, porém, começou a chegar e eu comecei a não ser tão neces- sário no dia a dia das pessoas. “O que eu Professora Luciane Bolzan Cantarelli faria agora?” – pensei. Pouco tempo depois EMEF Espírito Santo, Horizontina-RS

172 — CRÔNICA CRÔNICA — 173 LÁ NA MINHA TERRA

Açucena Martilho Diniz

Dizem que o bom filho a casa torna… — É para marcar! E eu, depois de estudar e viver alguns anos — Marcar para quem? longe, também voltei para a minha terra — Marcar para a Maria! natal. E foi a partir dessa minha volta que — Qual Maria? me dei conta de uma particularidade des- — É a Maria do João Riso. sa cidadezinha: que ninguém é livre, todo Agora estava explicado para quem era mundo é de alguém. Pode parecer estra- a pendura. nho, eu sei, mas vou explicar. Na volta para casa, passo pela Praça Aconteceu que, nos primeiros instan- São Pedro que, como de costume, reúne tes de minha volta, ao desembarcar na muitos senhores a distraírem-se com jogos rodoviária da cidade, olhos curiosos me de baralho. Não se preocupam com o tem- No cair da tarde, o sino da Igreja Ma- cial é que nesse lugar ninguém está sozi- acompanhavam. Eu, com duas malas e al- po e nem com a prosa entre eles, que é pa- triz toca, é para anunciar o falecimento de nho, todo mundo é de alguém. Se quer ser guns anos adquiridos fora dali, despertei o ra quem quiser ouvir: um ente querido que ali morava. Todos conhecido por aqui tenha sempre alguém interesse de quem por ali passava. — Ficou sabendo do que aconteceu saem para fora de suas casas para ouvir a quem pertencer, conselho de amigo, fica — Quem será este que está chegan- com o Neco do João leiteiro? direito de quem se trata, e a notícia vem: mais fácil. Mas e eu? A quem eu pertenço? do? – perguntavam as comadres. — Não, o que foi? — Faleceu hoje José Nascimento Quem pertence a mim? Ahhh, eu sou filho — Parece com o Marquinho. — Deu praga na roça dele, perdeu tu- dos Santos. de Riversul, e vou logo tratar de arranjar — Marquinho? do o que tinha plantado. Quem é? Ninguém sabe! E é por isso alguém pra chamar de meu. — É, aquele, do João do bar. — Coitado! Será que deu também na que o comunicado vem completo: — Nada, tá mais para o Pedrinho, do plantação do Tonho, do Dito Saracura? É — Faleceu hoje José Nascimento dos Zé do posto. vizinho dele lá no sítio. Santos, o “Zé da Lurde”. Agora sim, todos E assim as tentativas de adivinhações — Ah, esse eu não sei… sabem de quem foi o infeliz dia. prosseguiram, e eu segui adiante. E eu vou passando e, além de saber das E assim chego a uma conclusão sobre Mais tarde, precisando comprar al- novidades, percebo mais uma vez que por essa cidadezinha: ela tem um povo muito Professora Fernanda Aparecida gumas coisas, fui a venda do Português e, aqui não adianta falar só o nome, tem que bom e hospitaleiro, uma terra vermelha da Mendes de Freitas diante do caixa, uma criança dizia: dizer de quem é, senão ninguém vai saber. boa, lindas paisagens verdes… E o diferen- EE Lázaro Soares Professor, Riversul-SP

174 — CRÔNICA CRÔNICA — 175 A PEQUENA GRANDE GUERREIRA

Francisco Felipe da Silva Izidro

Já estava amanhecendo o dia, e como Quando ele finalmente consegue le- tes no chão. Tento ajudá-los. Que má ideia, é rotina aqui no meu lugar, ele amanhe- vantar o galho e voar, decido segui-lo para essa! A mãe fica enfurecida com a minha ce lindo, o sol aparece brilhante no pé da ver até onde ele consegue sustentar aquela presença, não aceita ajuda. Entendo tudo, serra, feito segundo despertador de serta- bagagem. Muito comovido com a cena, en- sou desconhecido para ela, provável amea- nejo, já que o primeiro é o cantar do galo, tro em uma mata fechada e nem percebo. ça, mãe é assim mesmo. Só ela sabe cuidar. muitas vezes já acompanhado pelo coral Vendo o animal pequeno no tamanho Logo me afasto, e reflito sobre a ne- dos pássaros que me convida a ser feliz. e gigante na coragem carregando aquele cessidade do respeito aos animais. Vol- Da janela do meu quarto, contemplo galho, cambaleando no ar, penso comigo to para a cisterna, pego a água e sigo pa- toda esta beleza. Aquele mar de plantas mesmo: estaria ele construindo seu ninho? ra minha casa, mamãe me espera. Antes diversas que embelezam o meu sítio Jan- E mesmo com essa interrogação na minha de entrar, da porta aberta já observo mi- gada, e abrigam tantos pássaros que co- cabeça, continuo seguindo o pássaro, que nha mãe naquela cadeira de madeira, com migo dividem esse pedacinho de Jucuru- com certeza, nem percebe, pois está muito olhar aflito, preocupada com a minha de- tu, no Rio Grande do Norte. concentrado na tarefa que realiza. mora, com certeza. Você sabe como é, Como todo menino de sítio, o ama- Depois de muito segui-lo, o pássaro pa- mãe protege os filhos. E assim, penso ain- nhecer é hora de trabalhar, de ajudar aos ra em uma árvore, e de longe observo que da mais na mãe dos passarinhos. Amor pu- pais, e assim, logo coloco o boné na cabe- ele constrói seu ninho, arruma o galho direi- ro e verdadeiro. ça, e como todos os dias, vou até a minha tinho, acho que está na fase de acabamen- Minha mãe e a mãe dos passarinhos, cisterna pegar a água do consumo diário. to, os retoques finais, pois ali já havia mora- tão parecidas no amor, no cuidado, na luta Quando ali, na portinha estreita do reser- dores; um barulhinho suave e insistente, um diária neste lugar de sol quente e de paisa- vatório, avisto um passarinho com cores cantar baixinho denunciava isso. É o chiado gem que encanta. Mãe é tudo igual. chamativas e ofuscantes, que mesmo pe- dos filhotes! Isso mesmo, toda aquela força quenino tentava carregar em seu bico um era de uma mãe dedicada, pequena guer- galho de mato bem maior do que ele, acho reira, zelando os filhos. Me emociono com que era o dobro do seu tamanho. Fico ad- tanta sabedoria que vinha daquele amor ma- Professora Isabel Francisca de Souza mirado. Sabe como é menino, curiosidade terno. Um ninho pequeno, parecia desprote- EE Professora Maria das Graças Silva Germano, despertada por tudo, e também sou assim. gido; e me aproximando, vejo os dois filho- Jucurutu-RN

176 — CRÔNICA CRÔNICA — 177 HISTÓRIA DE PESCADOR proporcionava, trazia alegria em seu pei- tes relatos do povo ribeirinho. Um rio an- to, um sentimento percebido por aqueles tes cheio de cardumes, de mistérios, de Isabelle de Araujo que amam a profissão que exercem: o or- maravilhas da natureza, hoje leva consigo gulho de ser pescador. A lama barrenta tin- só as lembranças de bons momentos. É co- giu de tristeza a vida do simples e, ao mes- mo se tivessem lançado, sem filtro, o vene- Enquanto atravessava a ponte sobre em tristeza. Um verdadeiro pesar. Ao in- mo tempo, nobre profissional, que fazia do no do poder e da ganância que brota de al- o rio Doce, que corta a minha cidade em vés da corriqueira festa com a chegada rio seu palco de conquistas. guma parte, localizada no interior dos ho- duas metades – o lado de cá e o de lá, de- das águas, um velório coletivo. Os volumo- Restam poucas esperanças. Todos, po- mens que se dizem autoridades. Ele está parei-me com uma cena intrigante. Olhan- sos remansos e as típicas correntezas do rém, torcem para que o rio volte a respirar. O lá, contudo, vai morrendo lentamente, dá do para baixo da construção e mirando as grande rio, inspiradores de credibilidade que antes era um sonho de vida, atualmen- pior forma possível: agonizando. poucas águas que ainda restam do enor- e abundância no passado, cederam lugar te se configura como pesadelo. A tormenta Há, mesmo assim, pescadores invencí- me rio, que já chegou a ser navegável, ob- às águas barrentas e, também, contami- tornou-se responsável por despertar o pes- veis. Reproduzem os heróis, buscando lu- servei um pequeno barco que parecia mais nadas pelos rejeitos de minério. Quem po- cador no meio da noite, imaginando o que tar até o fim. Aquele que visualizei perto estar encalhado do que flutuando. Imagi- deria imaginar? Quem poderá calcular os será dele e de sua família, antes totalmente do banco de areia, enquanto passava pela nei a dificuldade de fisgar algo comestí- danos surgidos após o desastre ambiental dependentes do “Doce”. O rio, hoje, chora. ponte, propôs-me uma reflexão. Se hou- vel e, consequentemente, a frustração da conhecido como “o desastre de Mariana”? O pescador chora. Ouve-se, na verdade, um ve ou não peixe, naquele dia, não impor- missão atrapalhada pelos bancos de areia. Talvez o pescador. Foi ele o profissio- choro coletivo. Saudades? Sim. Muitas lem- ta. Dedico a ele minha crônica que, como A cena, definitivamente, inspirou-me. Es- nal que acompanhou mais de perto a feri- branças sobre o que esse gigante represen- uma fotografia, deixa registrada a imagem ta crônica tem origem naquele momento, da formar-se. Os rejeitos anunciavam, com tou no passado, dos momentos em que as de sua persistência. Uma verdadeira e tris- naquele olhar. Antes de pensar na agonia a chegada lenta, mas densa e constante, redes eram lançadas logo de manhãzinha, te história de pescador. do rio morrendo a olhos vistos, na escas- a quase despedida da maioria das espé- enquanto a cidade ainda dormia, voltando sez de seres vivos nas águas do “Doce”, foi cies. As vidas presentes no rio nunca mais preenchidas. O rio foi, por muito tempo, o a imagem do pescador que me sensibili- seriam as mesmas. A rotina que delineou sinônimo perfeito para o progresso da “Prin- zou. Já ouvi dizer sobre a responsabilidade por tanto tempo o dia do profissional das cesa do Norte”. Era o seu amuleto da sorte. do rio, cujo histórico revela os valores do águas precisou, compulsoriamente, sofrer Também não há como se esquecer do povo presente em suas margens. Quanto alterações. Enquanto o peixe não vinha à “bê-a-bá” sobre a arte da pescaria que atra- mais bem cuidado, maior a educação dos linha, era com o manancial que conversa- vessou gerações, ensinada de pai para fi- moradores da cidade que desfrutam dele. va sobre seus planos e sonhos. O rio era o lhos, de avô para netos e para bisnetos. O Houve, porém, uma tragédia que mudou o seu ombro-amigo, seu diário de anotações. testamento que descreve a herança dei- seu destino. Nela, a alegria constante trazi- As fisgadas, o troféu que celebrava o su- xada pelos entes queridos tornou-se um Professora Cinthia Mara Cecato da Silva da pelas correntes fluviais transformou-se cesso de seu dia. Além do sustento que lhe documento amargo, preenchido de tris- EMEF Maria da Luz Gotti, Colatina-ES

178 — CRÔNICA CRÔNICA — 179 LÁGRIMAS DE ESPERANÇA nós tem o poder de construir uma escola melhor, uma rua melhor, uma praça, uma ci- Kesia Cardoso Gonçalves dos Santos dade, um mundo melhor. Aquela aula, nessa praça, me mostrou isso. Eu sou uma dessas pessoas que lutam Estou em frente ao futuro, em frente gem novamente: é meu último ano na es- e hoje sei que não luto sozinha. Estou ar- à esperança, em frente à escola. Daqui de cola do meu bairro; ano que vem, frequen- mada com meus livros, minha munição é o fora, sua estrutura é como a de uma pri- tarei outros bairros de Cariacica ou até de meu conhecimento. Este lugar, no alto do são, mas nela está todo o conhecimento, outro município da Grande Vitória. E o que morro, me dá uma visão estratégica. Vejo a dedicação e a cultura de que preciso pa- levarei daqui? Escolho levar a doçura das onde estou, aqui é a favela, aqui é permiti- ra ser livre. lembranças, das brincadeiras e andan- do ter casa sem acabamento, lixo nas ruas, É meu último ano nessa escola, estou ças. Levarei a menina que corria por es- banco de praça quebrado, mato no lugar observando cada detalhe, detalhes que tas ruas, sem medo. Levarei todo o apren- de jardins, traficantes em vez de universi- deixei passar por anos. O portão rabiscado, dizado construído dentro e fora da escola. tários, boca de fumo no lugar de parques. a mercearia aberta do outro lado da rua, o Um dia, aqui nessa praça, uma amiga – Daqui, posso ver também onde quero che- ponto de ônibus e a esquina onde ficamos muito mais que uma professora – fez com gar. Minhas lágrimas são de esperança e conversando após as aulas. Do portão pa- que eu enxergasse a beleza, onde antes eu elas encherão um rio que nos conduzirá a ra dentro, o sinal grita nos chamando pa- só via a degradação. Suas palavras de poeti- um país em que estar nesse morro não se- ra estudar, falta uma quadra para as aulas sa penetraram em mim como sementes pe- ja sinônimo de insegurança, de medo, de de educação física, há a correria dos que netram na terra e fizeram brotar um novo dor, mas, sim, sinônimo de alegria, por es- chegam apressados e enchem de vida es- olhar, mais esperançoso e confiante. Se an- tar mais perto do céu e suas estrelas. te lugar. Vidas que aqui se juntam no único tes eu só enxergava o vazio, os problemas Meus ídolos estão aí para me mostrar propósito de aprender. Sim, alunos, profes- e o descaso, naquele momento eu apren- que minha esperança é válida: sou Nel- sores, funcionários, todos são aprendizes. di que só há abandono quando eu também son Mandela, lutando com minhas pala- Saindo da escola, caminho em direção resolvo abandonar, que a violência e a dor vras; sou Conceição Evaristo, crescendo à praça abandonada que perdeu seu en- ocupam o lugar que o medo deixa vazio. na favela, estudando para ter um futuro canto, sinto o assombro da falta de segu- Eu passei a ver que as riquezas estão justa- melhor, cruzando abismos para ter uma vi- rança em todo canto, vejo a falta de cui- mente nas pessoas, nas suas histórias e lu- da mais digna e inspirar outros como eu, dado e de atenção para aquilo que é de tas diárias, para não se entregarem e ven- como nós. É meu último ano na escola do todos e inevitavelmente me entristeço. A cerem as dificuldades. Quando entendemos meu bairro, mas minha luta por esse lugar Professora Ana Claudia Araújo de Lima nostalgia e a saudade antecipadas me sur- isso, entendemos também que cada um de só está começando. EEEFM Mariano Firme de Souza, Cariacica-ES

180 — CRÔNICA CRÔNICA — 181 TRADIÇÃO DE CARIDADE cabeça persistente. Ao meu lado, uma mãe Há um tempo notei essas feridas no usual. Mas o médico fica ainda mais sur- com um bebê espera benzê-lo de quebran- braço, que pioraram cada vez mais. O mé- preso quando vê que meu braço está lim- Emilie Caroline Stallbaum de Rossi te. Há um adolescente vidrado no celular. dico falou que não havia cura, a carne apo- po. Limpo? Com casquinhas e cicatrizes, Ele diz ter amarelão. dreceu e o braço seria amputado. Minha mas… Limpo! Mas como? Maria Pingue- Algumas pessoas saem parecendo avó, muito religiosa, sabendo sobre mi- la, a benzedeira! Ela, com sua humildade, “O que eu benzo? É carne rasgada, os- bem satisfeitas. Mesmo não estando nem nha situação, disse: “Puro cobreiro! Vai na sua fé enorme e seu coração puro teve o so quebrado e nervo tendido!” Assim fala um pouco a fim, penso que mal não vai me Pinguela”. Nunca fui muito chegada nisso, dom de me curar. Agora penso em como Maria Pinguela, que cura tudo: quebrante, fazer e entro. A situação é precária. A gela- mas esse é meu último recurso. o benzimento é uma crença bonita. Uma sapinho, amarelão… Não há o que a ben- deira aberta mostra uma fartura de nadas. A benzedeira começa uma oração e cultura de muito tempo, que já foi chama- zedeira não cure com a sabedoria antiga. Então, uma mulher alta, morena, gorda e todos rezam junto. Depois, me senta em da de feitiçaria, substituiu médicos, curou Pelo menos, foi o que ouvi dizer. sorridente aparece e começa a benzedu- uma cadeira e passa arruda no meu bra- casos que ninguém diria que seriam sara- Para chegar até sua casa, o caminho ra pelo adolescente do amarelão. Ela faz o ço. “O que eu corto?”, grita. Eles respon- dos e resistiu ao tempo e à modernidade é longo e sinuoso, fica perto do Rio Uru- sinal da cruz e reza: “Amarelão, te corto!”. dem: “Cobreiro brabo!” – repetem isso inú- com muita fé. A natureza é realmente mui- guai. Vejo laranjeiras carregadas de frutas Eu arregalo os olhos. A benzedeira conclui meras vezes, entre Pai-Nossos e Ave-Ma- to sábia ao nos proporcionar acesso às er- gordas e salientes. O mundo silencia pa- e chama a senhora e o neto. Há rosários e rias. Eu permaneço quieta, meio arrepen- vas medicinais. Mesmo assim, muitos jo- ra a natureza cantar. Tico-ticos e Joões-de- estatuetas de Nossa Senhora, além de an- dida de ter ido. Ela passa mais ramos nas vens se recusam a aprender esta arte. Sou -barro cantam e as árvores dançam. Que jos e santos nas paredes e no altar. Com feridas e elas doem. Ela ri e me dá um chá abençoada por ter tido a graça de melho- bela paisagem. uma vela, ela descobre que o menino se de cor verde-gosma. Devo tomá-lo três ve- rar através do benzimento. Não sei quanto Chegando mais perto, ouço vozes e assustou com um galo. Pinguela chama o zes ao dia. aos outros, mas meu braço foi curado por vejo algumas pessoas. A cuia de chimar- agricultor italiano. Ela começa a orar com — E reze Salve Rainha toda vez que to- Maria Pinguela e por essa tradição de ca- rão passa na roda. Respiro fundo. Sento e um copo de água e, de repente, a água co- mar – fala, dando-me um tapa nas costas. ridade que permeia minha região. começo a analisar a casa. Simples, de ma- meça a soltar muitas bolinhas, como água — Nem duas semanas teu braço tá deira, pequena, a tinta verde descascando, com gás. Estranho. Ela dá a ele um chá de bom! Vai, retchuda! Pode vim o nenê! grandes janelas antigas, telhas cobertas de ervas e aponta para mim: Ao tomar o chá, descubro que, na musgo e a fumaça do fogão a lenha saindo — Tu não tem fé! Todos têm de re- verdade, ele é bem gostoso. O vidro não pela chaminé. As pessoas são bem distin- zá junto, sem fé não dá certo, ainda mais durou nem cinco dias, exagerei um pou- tas umas das outras. Uma senhora grisalha nessa altura do campeonato. Crendeuspai, co nas doses. A dor no meu braço acal- quer benzer seu neto de “susto”. Ele brinca como tu deixou o braço assim, guria? Só ma, mas ainda persiste. Afinal, ele está se com um gato de pelo ralo, muito misterio- por Dio! decompondo. É normal doer. Vou para úl- so. Um agricultor alto, sotaque italiano e Fico espantada. Como ela sabe da mi- tima consulta antes de amputar. Quando Professora Helena Boff Zorzetto mãos encardidas quer benzer uma dor de nha dor? desenfaixo, estranho não sentir o cheiro EMEB Imigrantes, Concórdia-SC

182 — CRÔNICA CRÔNICA — 183 EU VIM DE LÁ O ápice do ano, na Baixa da Carnaú- Fiquei ainda mais surpreso com a rea- ba, é o festejo de Nossa Senhora da Con- ção do padre ao falar pacientemente em Chrystian da Costa Rodrigues ceição, que ocorre em dezembro, o qual é sotaque alemão tentando acalmar o povo: tão aguardado pelos moradores quanto ao — Calma! É só um “ladron”! de São Francisco, no Canindé. Uma atmos- Sei que a intenção foi boa, porém suas Meu lugar… Como posso descrevê-lo? fera diferente parece envolver toda comu- palavras surtiram um efeito bem contrário Não há lojas, grandes comércios ou bares. nidade durante esse período. ao que desejava. O povo se desesperou e Um lugar calmo até demais. Há somente Uma estranha tensão toma conta de era gente para tudo quanto era lado. Ima- pessoas pacatas que compartilham entre seus habitantes que se preocupam em fa- gine, caro leitor, o tamanho da confusão si das dores e alegrias de pertencerem a zer um festejo “mais bonito” que o do ano que se deu em um lugar tão pequeno! Foi ele. O lado bom é que ainda se pode sen- anterior. Para mim esse já é o primeiro mi- tudo muito rápido: gritos histéricos, corre- tar nas portas para uma conversa nos fins lagre: a cotidiana monotonia das noites ria, desespero, um caos! de tarde. Não é uma cidade, está mais para dá lugar a inúmeras histórias de fé, de- Lamentei profundamente que uma povoado. Alguns chamam de interior, mas voção e até situações engraçadas! Ja- festa tão bonita fosse interrompida daque- não acho que seja merecedor desse título. mais esquecerei o dia quando num final la forma, porém, confesso que algo dentro Na verdade, pertence à zona rural de Par- de festejo, todo povo reunido já se pre- de mim divertiu-me, como se houvesse sa- naíba, localidade Baixa da Carnaúba. parava para sair em procissão da igreja; ciado minha sede de emoções. Dizem que carnaúba significa “árvore velas acesas nas mãos, o som dos sinos E assim, em meio a essa e tantas ou- da vida” pelas suas inúmeras utilidades e, e suaves cantos tocando os corações dos tras histórias curiosas, engraçadas e até um principalmente, por sua resistência e ca- fiéis, flores, bandeirinhas… A coisa mais pouco vergonhosas, que eu cresci. Apesar pacidade de adaptação a climas adversos. linda que se pode ver em um “interior”. da Baixa da Carnaúba ser para muitos um Penso que este se encaixa perfeitamente Quase ninguém além de mim reparou em lugar quase desconhecido, também possui ao lugar e às pessoas que ali vivem, por um menino que passou correndo com um um povo trabalhador que nunca perde a fé, o que morar na Baixa Carnaúba é resistir às balão em suas mãos e, por descuido, en- bom humor e a esperança em dias melhores. dificuldades de pertencer a uma realida- costou em uma das velas carregada pie- de rural e, ao mesmo tempo, não resistir dosamente por um fiel também distraído. à imensa beleza das manhãs que invadem O balão, claro, estourou. Para minha sur- nossas janelas quase interioranas. E se al- presa, uma confusão geral quebra subita- guém por acaso me perguntar se gosto de mente a sacralidade do momento. Todo Professora Michele Alecsandra Nascimento morar lá, não diria nem que sim e nem que povo correu em diferentes direções ima- UE Edson da Paz Cunha, não, sabe? ginando que fosse um tiro. Parnaíba-PI

184 — CRÔNICA CRÔNICA — 185 AH, MALDITOS CINCO MINUTOS! A lembrança do poema ainda me azu- O homem, de repente, ergueu a cabeça nhas correram até a carroça. — Olha, pai, crinava, quando observei, do outro lado da e, num movimento brusco, levantou-se. Nas olha pai! Ana Maria Pereira da Silva rua, uma carroça daquelas feitas de fundo suas mãos, pousavam três caixas de leite pas- — Pronto, agora vai ficar embroman- de geladeira. Estava quase lotada de pa- teurizado Lebom. De uma das embalagens, do com essa porqueira ao invés de trabaiar. pelão velho. jorravam alguns pingos de leite, que desciam Vumbora! Foi numa segunda-feira pela manhã, Nossa, que alívio! Não buscavam co- retos pela calça jeans que o vestia. Se sentia o Ainda fiquei alguns segundos ali, para- era o dia do carro de lixo passar na nossa mida. Catavam materiais recicláveis. Faz líquido escorrer pelas vestes, não dava sinais. da, acompanhando a caminhada dos dois, rua. Ele sempre passa nos dias pares. Só diferença? Minha natureza me diz que sim. Nesse instante, seus olhos miraram subindo a rua enladeirada. O pai, resmun- uma vez passou num dia ímpar. Eu estava Catar recicláveis é, na minha visão adoles- os meus. Ele não se mostrou constrangido gão, empurrando a carroça, e o menino indo para o colégio. cente, algo digno. Buscar comida no lixo como achei que ficaria. Muito educado e atrás, com seu brinquedo recém-encontra- Sempre saía atrasada ou em cima da despe o homem de sua dignidade. Mas com um leve e tímido sorriso, me desejou do. Não dava para ver, mas, certamente, de- hora, mas naquele dia, por milagre, tinha voltemos à cena. bom dia, ao que eu, pronta e calorosamen- veria estar com um belo sorriso estampado uns minutinhos de sobra. Os dois, homem e criança, compene- te, respondi, embora bastante embaraça- no rosto. Nem aí para os resmungos do pai. Levava uns dez minutos para chegar à trados na busca por algo que lhes rendesse da, claro! Em seguida, ele atravessou a rua, Enquanto aquele pequeno seguia na lida escola, estavam me sobrando cinco, naque- uns míseros trocados, caras quase enfiadas até a carroça, onde depositou o seu acha- com o pai, feliz com o seu boneco do Super- la segunda. Talvez, por isso, tenha consegui- dentro dos sacos de lixo, ignoravam a mi- do. O menino continuava a tarefa. Parte do -Homem, eu rumei para a escola, um rede- do pousar meus olhos atentos na cena que se nha presença ali. E eu, não querendo atra- rosto quase enfiada no saco. moinho de sentimentos a atazanar-me a ca- passava na calçada da casa ao lado da minha. palhar os dois, mentalmente, implorava aos — Simbora, Dorival! – gritou o genitor beça! Tudo culpa daquele sádico poema de Um homem, acompanhado de seu filho, céus que eles não me percebessem ali. Não para o menino, que ainda cutucava o mes- sétimo ano e, também, daqueles cinco mi- um garotinho de uns 6 anos, acocorados, sei quem sentiria mais constrangimento, se mo saco de lixo. nutos de sobra. Ah, malditos cinco minutos! vasculhavam o lixo da vizinha. “Meu Deus, minha presença fosse notada: eles ou eu. — Espera, pai! Deixa ver se eu acho a será que procuram comida?” – pensei. Mas uma coisa era certa, precisava che- perna – gritou, ansiosa, a criaturinha. Lembrei, imediatamente, do poema gar à escola, não poderia permanecer ali, Foi aí que vi em uma de suas mãos, a “O bicho” de Manuel Bandeira, que tan- plantada feito estátua. Sim! Era assim que me mesma que segurava o saco, enquanto a ou- to me encantou e emocionou, na voz da sentia: como uma verdadeira estátua. Aliás, tra rebuscava os restos, um boneco do Su- minha professora de Língua Portuguesa, estátua perdia para a minha petrificação na- per Homem, faltando uma das pernas. quando eu fazia o sétimo ano. Até hoje, quele lugar, diante da cena que vislumbrava. — Deixa de ser abestado, tá no lixo culpo aquele malvado poema por despir- Até a respiração era cuidadosa para não fazer porque tá sem perna. Simbora, avia! – re- -me, um pouco, da inocência em enxergar o mínimo barulho que atrapalhasse o traba- clamou o homem. Professora Edvana dos Santos Vieira misérias ao meu derredor. É, a literatura lhador homem e o trabalhador mirim. Por fo- — Achei, pai! Achei! – gritou a voz in- EEEF Maria Emilia O. de Almeida, tem dessas maldades! ra eu era pedra, por dentro, um redemoinho. fantil, cheia de contentamento. As perni- Campina Grande-PB

186 — CRÔNICA CRÔNICA — 187 OPERAÇÃO CINDERELA todos engomadinhos, suando igual cus- nou se o sapato servisse! Eu fui uma delas, cuz em panela tampada), diversos alunos quieta estava e quieta permaneci… Allanis Stephani Carvalho passeavam pelas barracas no retorno para As especulações foram muitas e pare- suas casas, quando uma aluna decidiu dar cia que todo mundo ficava olhando para os uma paradinha em uma barraca de sapa- nossos pés para tentar identificar o obje- Todo setembro, Arraias parece um tos. Até aí tudo normal, pois como já falei, to roubado… Acho que quem tinha sapato formigueiro pegando fogo. Embaixo de é tanta oferta para pouco dinheiro e todo novo nem quis usar mais na escola e até a um sol escaldante, em meio a tantas bar- mundo fica animado para renovar o guar- brincadeira “que sapato bonito, é novo?!” racas, é gente subindo e descendo ladei- da-roupa e “curiar” as novidades no sho- já provocava olhares curiosos e acusado- ra, crianças dando birra por brinquedos, pping. A garota pediu para experimentar res. A resposta era imediata: “minha mãe cachorros latindo, ambulantes tentando um par e, assim que o barraqueiro se vi- comprou em Campos Belos!” convencer as pessoas a comprarem seus rou, a aluna deu no pé… Levando os novos Só sei que muito se perguntou, se es- produtos… É um shopping center popular e deixando para trás os que estava usando, peculou… Mas até hoje, ninguém tem cer- nas ruas apertadas da minha pacata cida- pois os mesmos já estavam um pouco des- teza do nome da Cinderela às avessas… E de que, nesses dias, mais parece capital. O gastados de tanto subir e descer ladeira. eu fico aqui pensando o que levou uma me- evento é esperado por muitos e odiado por No outro dia, houve uma reclamação nina a se arriscar tanto: foi necessidade ou outros, principalmente por aqueles que fi- para o diretor da escola (não é que a ben- malandragem mesmo? Também sei que, cam impedidos de sair, e nem conseguem dita usava o uniforme da escola e conse- depois desse episódio, em barraca de cal- guardar um carro devido à porta de casa guiram identificar onde estudava?). O bar- çados só entro acompanhada de meus pais. ficar bloqueada pelos mascates. raqueiro procurou a direção da escola e in- Esses gostos e desgostos já são anti- formou que uma de suas alunas havia fur- gos e não mais é possível imaginar Arraias tado um par de sapatos dele. sem desfile de 7 de setembro, sem a mis- A operação para encontrar a dona do sa da Padroeira Nossa Senhora dos Remé- furto foi chamada de “Operação Cindere- dios no dia 08 ou as famosas barraquinhas, la”, pois a garota havia deixado para trás que aguçam nossas vontades e levam nos- os sapatos que estava usando. A diferen- sos trocados. ça é que, além de não ser de cristal (pelo Porém, em meio a essa diversidade de contrário, estava bem “acabadinho”), nessa acontecimentos, algo inusitado me cha- operação nenhuma das “princesas” da es- Professora Alessandra Barbosa mou a atenção e me intriga até hoje. Lo- cola se ofereceu para experimentar o sapa- Silva Resende go após o desfile (aquele em que ficamos to, igual na história da Cinderela. Já imagi- EE Jacy Alves de Barros, Arraias-TO

188 — CRÔNICA CRÔNICA — 189 SENTIMENTOS AMARELOS tação arbustiva já não escondia mais seus motorista, os mesmos colegas, a mesma A minha história não terminou. Só o galhos secos e retorcidos. As flores! Essas sala, tudo igual, mas a minha opinião so- tempo dirá quando continuarei a escrever Bruna Vitória da Silva Andrade já não davam mais sinais de vida. bre aquela cena tão imperceptível por cau- sobre minhas concepções, acerca das ce- Durante o itinerário, a cena era a mes- sa da rotina, ganhou um novo significado, nas do cotidiano. Só sei que ainda tenho ma de sempre. Até aí, tudo normal! Será não era mais a mesma. muita coisa pra contar… A presença da claridade nas brechas mesmo? Já não tenho tanta certeza! Por Em uma das aulas de Língua Portugue- das janelas envelhecidas pelo tempo e o um instante minha percepção visual foi ar- sa fui desafiada a escrever um poema. Re- cocoricó dos galos anunciavam que o sol rebatada pelo encanto de um enorme ipê truquei… Retruquei… Retruquei… Enfim, desanoiteceu. A minha casa ainda dormia, salpicado de buquês amarelos erguido em os mais profundos sentimentos tomaram não se ouvia nenhum barulho dos morado- meio aos escombros daquela sequidão. Co- forma em meu coração. Assim, escrevi: res nas vias empoeiradas do Povoado Ale- mo minha visão não alcançava o local de gria – uma região bastante rústica da nossa fixação daquele ipê, imaginei seu tronco “Cidade Verde”. Somente nos quintais das adornado por um tapete de flores amare- Contemplação casas, os animais já denunciavam que es- las desidratadas pela sucessão das horas. tavam famintos. O céu totalmente desanu- — Que lindo! Que perfeição! Como Diante do ônibus que anda viado previa mais um dia escaldante de se- faço para tocá-las? – falei tão alto que to- Parada estou tembro, o primeiro mês do B-R-O-B-R-Ó, dos no ônibus olharam para mim. Parada a contemplar Ipês como é conhecido este tempo por essas Naquela hora do dia, o vento já sopra- Árvores regando o amanhecer bandas nordestinas. va uma brisa morna que levantava poeira Os sinos da igreja local tocavam dan- seca e que ardia nos olhos da gente, mas O dia chega do provas que eram seis horas da matina, essas intempéries não impediam que mi- hora de levantar, me arrumar, quebrar o je- nha visão se amarelasse de beleza e pra- Com sol e vento de bem-querer jum noturno, caminhar até a parada, pegar zer. Prazer de ver, prazer de tocar, prazer Manda à terra o ônibus e ir para a escola. É a vida seguin- de cheirar… Eu pensei em leveza, perfume, Seu Ipê-amarelo florescer do o seu percurso habitual. Conseguem cor, alegria. Quase pedi ao motorista para imaginar assim? Pois é, como de costume parar o carro enquanto eu tirava uma fo- Abro a janela entrei no ônibus, sentei no banco próxi- to daquela floração exuberante, mas co- A cantiga do vento mo a uma das janelas do lado esquerdo mo não podia realizar esse intento, tratei Me leva, como de costume do transporte e fiquei observando aque- de preservar na memória aquela imagem. Ao jardim secreto do coração Professora Edna Maria Alves la paisagem acinzentada e castigada pe- O trajeto continuou normalmente, o Que é amarelo Teixeira de Oliveira los ventos impiedosos da estação. A vege- mesmo ônibus de todos os dias, o mesmo Como um tapete estendido no chão. EM Joca Vieira, Teresina-PI

190 — CRÔNICA CRÔNICA — 191 O DIA EM QUE A NOITE Foi então que percebi os olhares e As ruas estavam movimentadas. E o Os dias que se estenderam se mos- FICOU VERMELHA semblantes dos meus familiares e amigos; céu? Nem se fala… helicópteros e aviões traram tímidos; os pássaros não canta- eles não compartilhavam dos mesmos sen- transitavam a todo instante transportan- vam com a mesma alegria, os rios emana- Kevem Santos de Araújo timentos que eu. A tristeza era nítida em do brigadistas de toda a Bahia. Um belo vam a morte, e a floresta, que antigamente seus olhos, parecia que alguém muito im- helicóptero branco sobrevoou a minha ca- possuía todo tipo de barulho, estava tris- portante havia morrido… e morreu. Um pe- sa trazendo consigo um barulho extrema- temente calada. As nuvens se mostravam Já era noite. Abro a porta e vou em daço de nós foi perdido. mente alto. Seu objetivo era armazenar escuras, expressavam o “descontentamen- direção à rua; faço isso com um único ob- — Meu Deus! – alguns falavam. água, tal água que provinha do lago artifi- to de Deus”, sua bela floresta havia sido jetivo: contemplar a linda noite da Chapa- — Vamos ver de perto! – outros diziam. cial aqui construído nos tempos do garim- queimada, totalmente destruída. da Diamantina. No outro dia, vários carros percorriam po – que outrora era a base econômica de “O homem destrói e Deus contrói”. Es- Lá fora vejo algo que nunca esquece- as ruas; helicópteros sobrevoavam o céu; to- Campos de São João. O gigante branco ia sa frase nunca fez tanto sentido para mim, rei: “Ah, aquele dia… Nunca me esquecerei dos com um único intuito: combater o fogo! e vinha, provocando um efeito de deslum- como agora. Intensas chuvas que chega- daquele dia!”. Que dia? Vocês devem es- Minha mãe, que trabalhava na Pousa- bramento em todas as crianças, que repe- ram à Chapada expressavam o seguinte tar se perguntando. “O dia em que a noite da Pai Inácio – localizada ao pé do Morro tiam a mesma frase: sentimento: “Deixa que eu cuido de tudo. ficou vermelha”. do Pai Inácio, viu tudo de perto. Seus olhos — Me leva, avião! Me leva, avião! Sua simples função será preservar o que Aquela noite tudo havia mudado, a refletiam as chamas que consumiam o ví- Queremos ir! eu construo”. noite não estava sendo iluminada pela lua, vido cerrado. Não se importavam em falar errado, E como num passe de mágica, a flo- ou pelas estrelas; ela estava brilhantemen- Desesperadamente gritava: contanto que gritassem o mais alto possí- resta renascera. te iluminada, porém, seu brilho provinha — Corre! Corre! Vamos apagar o fogo! vel. Comecei a me perguntar: “Será que o do fogo. É, do fogo! Milhares de árvores Com suas colegas de trabalho, mulhe- piloto ouvia os gritos daquelas crianças?” – estavam a pegar fogo, nos propiciando um res corajosas, fortes, trabalhadoras e des- cada vez que retornava parecia estar mais grande espetáculo. Parecia que o céu se temidas, sem hesitar, empunharam suas próximos delas… Parecia que todos do po- tornava uma imensa tela de arte. E aquelas armas contra o fogo: abafadores. Irrespon- vado tinham o mesmo pensamento: ser um cores? Lindas pinceladas de Deus… sáveis? Sim. Corajosas? Com certeza. Na- brigadista honorário; aventurar-se na serra. Meus olhos viram aquilo de manei- quele dia, verdadeiras heroínas foram en- Meio perigoso, não? Esses jovens não ra diferente. Será que fui egoísta? As co- contradas. Heróis sem fardas foram desco- se preocupavam com os perigos que pode- res vermelhas pareciam lutar contra o ver- bertos. Homens e mulheres saíam de suas riam enfrentar, todavia, ser um herói apa- de da serra, uma verdadeira obra de arte! casas vestidos com suas armaduras: botas, gava todos os medos e receios. Bem à frente de meus olhos. luvas, capacetes e roupas à prova de fogo. Com grandes esforços do povo e dos Professora Isa Naira de Oliveira De repente, quase todo o povoado fo- Uma grande luta ali foi travada, e nenhuma brigadistas, o fogo foi apagado. Os mor- EM de 1º Grau de Campos de São João, ra ver o acontecido. das partes queria render-se. ros e serras perderam sua luminosidade… Palmeiras-BA

192 — CRÔNICA CRÔNICA — 193 O GUERREIRO DO SERTÃO

Francisco Wagner de Brito Viana

Já é final de tarde, o sol e a lua se en- treolham nos horizontes, em um romance astral que transforma o céu de Cocal dos Alves em uma obra de arte, mas que ne- nhum artista no mundo conseguiria repro- duzir com tamanha perfeição. Os grandes morros que rodeiam a cidade contemplam o espetáculo com fascínio, enquanto são atingidos pelos amarelados últimos raios do astro rei. Ao longe, em uma longa estrada de terra, entre os últimos tons do crepúscu- lo, avisto algo vindo em minha direção, pa- pontiagudos galhos secos da caatinga. Seu tre a mata e se misturando com a vege- reia o límpido céu de Cocal dos Alves. Pa- rece estar montado em um cavalo, e suas facão na cintura é uma espada, com a qual tação morta, em uma harmonia perfeita, ra muitos, poderia ser apenas um simples roupas vermelhas contrastam com a luz do parece ter enfrentado diversas batalhas, e quebrando o ensurdecedor silêncio e dan- vaqueiro, mas para mim é uma pessoa es- sol, em um espetáculo de cores que mais o suor em sua testa queimada de sol indica do vida novamente a essa triste caatinga. pecial, que simboliza o povo cocalalvense, se assemelham a uma labareda de fogo. que o dia foi de árduo trabalho. Sua ima- Ao sair da mata, ele para, amarra seu que enfrenta as adversidades com o peito Aquela figura torna-se a atração princi- gem torna-se única para mim, e enfim pos- cavalo, senta em uma pedra e, olhando pa- estufado, sempre com fé de que os pró- pal deste cenário, a que tenho o privilé- so dizer: é um vaqueiro. ra aquele lindo céu, tira do bolso de seu gi- ximos dias serão melhores. Eis o guerrei- gio de momentaneamente pertencer. Algo Mostrando sua astúcia e coragem, ele bão o que me parece ser a fonte de sua for- ro do sertão. me chama a atenção naquele ser alumiado. aciona seu cavalo, que com uma velocida- ça: um terço. O vaqueiro com suas mãos Caminhando a passos lentos em sua de impressionante levanta a poeira da es- calejadas o segura levemente. Rezando direção, aproximo-me daquela incógnita. trada e desaparece em meio ao mato se- baixo, agradece por mais um dia de traba- O vermelho tocante que o cobre se reve- co, sem temer os perigos que o rodeiam. lho duro, se benze e abre um largo sorriso, la um chapéu e um grande gibão de couro Posso ver apenas seu vulto, que vai de um um sorriso tão puro quanto aquele pôr do Professora Gillane Fontenele Cardoso que, como uma armadura, protege-o dos lado para o outro, cortando caminho en- sol, e tão brilhante quanto a lua que cla- CETI Augustinho Brandão, Cocal dos Alves-PI

194 — CRÔNICA CRÔNICA — 195 SEMPRE EM BUSCA DE LUZ va ainda mais com o vestidinho cor-de-rosa chamo assim porque ela ama girassóis e que usava. Ela havia notado que eu e a mi- fala que eu tenho que ser como um giras- Ana Beatriz Rodrigues Paes nha mãe estávamos em pé e tratou logo de sol, “sempre em busca da luz”. se sentar no colo de sua mãe para liberar um Imediatamente meu olhar foi atraído assento. Minha mãe já cansada com todo para a janela, uma luz sem fim num espa- Era uma tarde quente e ensolarada, al- aquele trajeto se sentou e seguimos viagem. ço grandioso, “enoorme”. Estávamos pas- go comum na cidade de Palmas, que tem o A menina, que também aparentava sando pela Praça dos Girassóis, “point” es- calor como sua marca registrada; naquela cansaço, sussurrou algo no ouvido de sua portivo da cidade. tarde minha mãe me comunicou que preci- mãe, que no mesmo instante retirou de sua Entreolhamo-nos com pupilas sorri- saríamos ir a Taquaralto, bairro que é mui- bolsa um pacote de biscoitos de chocola- dentes em um diálogo sem palavras, ri- to conhecido pela sua grande aglomeração te. A garotinha abriu um sorriso radiante mos, Sol olhava encantada a praça que de comércios de rua. Ele é bem distante de ao ver o que sua mãe segurava, sem pen- também é dela, cheia de sol e girassóis. onde moro, e como não temos carro, nossa sar duas vezes ela abriu a embalagem e di- Nesse instante, até me lembrei de que única opção era recorrer ao nosso “GOL”, recionou aquele olhar cativante para mim. brincava no parquinho correndo por toda trocadilho que eu e minha mãe usamos pa- Foi aí que pude escutar sua voz. aquela praça, mas que nunca tinha visto as ra Grande Ônibus Lotado! — Você quer um biscoito? famosas flores do sol. Enfrentar um ônibus cheio por mais de Surpresa com a atitude da pequena, Distraída pelo trajeto me perco no 30 minutos com um sol de rachar justifica respondi: tempo, volto à tona com o chamado de bem o slogan da cidade: Palmas, cidade — Não, muito obrigada! Acabei de minha mãe. do calor humano. almoçar. – Sem esperar muito, lhe fiz ou- — Chegamos! Saímos de casa após o almoço, em ho- tra pergunta: Me despedi da minha graciosa amigui- rário de pico, isso só tornaria tudo mais — Qual é o seu nome? nha e descemos. Prometi a mim mesma que cansativo. Pegamos o ônibus e, como era Ela com brilho nos olhos me respondeu: nunca me esqueceria daquela pequena, a de se esperar, “lotaaado” e sem nenhum lu- — Sol! menina iluminada que sorri com o olhar. gar para sentar. De repente, algo me cha- — Como assim? Por que Sol? Nunca mais a vi, mas todas as vezes que mou atenção, ou melhor, alguém. Reparei pela sua cara de confusa que passo na Praça dos Girassóis a vejo refletida. O olhar de uma garotinha me levou a ela não havia entendido minha pergunta, uma viagem sem sair do lugar. A criança logo complementei: aparentava ter por volta de 7 anos, seus ca- — Acredito que para você ter esse no- Professora Marilda Belisário da Silva Ribeiro belos encaracolados escorriam por toda a me, tenha um motivo, não tem? EM Beatriz Rodrigues da Silva, sua pele cor de chocolate que se destaca- — Ah, sim! A mamãe disse que me Palmas-TO

196 — CRÔNICA CRÔNICA — 197 ESCOLA FÁBRICA, FÁBRICA ESCOLA

Jairo Bezerra da Silva

6h – despertador toca, sono, frio, eu preenchem, os gráficos estão cheios, é tu- nha mãe prepara o jantar; anúncios, pro- me acordo, meu pai se acorda. Banho, es- do igual. O professor fala, escreve, ensi- pagandas, nos movem para um novo dia, covar os dentes, colocar o uniforme, eu e na o que nós não vamos aprender, apenas estudo para ter um futuro, um futuro de meu pai. Trânsito, asfalto, semáforos, tu- fingir saber. O gerente passa e os funcio- compras, tudo igual. A noite desce, como do de um cinza idêntico, nunca notei a di- nários sorriem, satisfeitos em fingir satis- a noite anterior, “AMANHÃ TEM AULA, versidade de tons sem vida que existem na fação e manter seu emprego e sua digni- VAI DORMIR!!!”, é tudo igual. Eu vou para cidade. Só diferimos no lugar, eu vou para dade (dinheiro). As mercadorias são revis- a escola fábrica e meu pai para a fábrica escola e meu pai para a indústria, mas no tadas, as sem defeitos passam adiante e escola. A única diferença entre a fábrica e fim é tudo igual. Eu entro na escola e meu as demais retornam; a criatividade é tama- a escola é o ambiente escuro, quente e mal pai bate o ponto na fábrica, eu vou para nha que não mudaram nem o nome “série iluminado da primeira, talvez a escola não meu assento e meu pai para sua máqui- de produção”; os alunos também têm seus seja assim para que os alunos sobrevivam na. O professor fala, as máquinas rugem, números de série, uma lista de chamada, até chegar na fábrica. lápis, papeis, óleo, engrenagens, é tudo são números, é tudo igual. Os sinos tocam, igual. Os funcionários não sorriem, querem não são das igrejas, hora da refeição, fila seus salários; os professores estão exaus- no refeitório, hora do intervalo, celulares tos, querem seus salários, para gastar com em mão, eu estou on-line e desconectado as mesmas coisas mês após mês. As mer- do mundo, meu pai está on-line e desco- cadorias não pensam, não falam, são mo- nectado do mundo, sirenes tocam, hora de deladas; os alunos não pensam, repetem, voltar, é tudo igual. Acabou, guardar mate- não criam, reproduzem o que lhe é pas- riais, pressa para finalizar um dia sem pen- sado, SILÊNCIO!!! Não podem falar. Nú- sar que o próximo será igual. Carros, bu- meros e letras sem cores, nos computado- zinas, placas, motos, uma gigante massa res e nos livros, nas planilhas e nos cader- inerte de pessoas apressadas, é tudo igual. nos, é tudo igual. Os quadros se enchem, Chego em casa, wi-fi, me desconecto do Professor Walber Barreto Pinheiro os cadernos se escrevem, as planilhas se mundo na rede; meu pai na televisão; mi- CM Álvaro Lins, Caruaru-PE

198 — CRÔNICA CRÔNICA — 199 O DONO DO PEDAÇO No começo era estranho tê-lo na igre- espera o toque das 10h15 da manhã, e das dele é marcante, já é parte da comunida- ja e muitos queriam mandá-lo sair, mas a 15h30 para ganhar o seu lanchinho. de, nunca houve algo parecido por aqui. Se Kaike Ruan Machado insistência dele os venceu, afinal, não inco- Estudar? Acho que não é o que procu- tem maratona do grupo de corrida da cida- do Carmo moda ninguém, na maior parte do tempo ra. Até já foi convidado a entrar na sala de de, lá está o Jacó, como um bon vivant – dorme, mas sabe exatamente a hora que a aula, mas apenas deu um olá a todos e pi- folgazão – parado na linha de chegada, só missa termina. Com o passar do tempo, os rulitou-se dali. Não! Não é isso, não! Uns esperando as câmeras. Correr que é bom, O sol bate na janela do meu quarto e, fiéis foram se apegando a ele. Fiel frequen- dias atrás queria, porque queria, conhecer nada! Sempre imprevisível! Chega e já vai dando-me bom dia, deixa tudo dourado. tador da casa paroquial, principalmente na a biblioteca. Com jeitinho convencemos a ocupando seu espaço. Até no Hospital São O cheiro sapeca do café me convida para hora do almoço, recebeu o nome de Ja- Celina, bibliotecária, a deixá-lo entrar. Nos- Vicente de Paulo, no hall de entrada, ele dá a cozinha. Lá fora, a pequena e tranquila có, dado pelo Padre Tiago. Se a celebra- sa, que felicidade do nosso companheiro! o ar de sua graça. cidade de Pitanga, no interior do Paraná, ção começa e ele não aparece, todos já fi- Será que ele sabe ler? – pensamos. Que Apesar de não sabermos de onde ele já acordou também. Na rua pego carona cam perguntando: “onde anda o Jacó? Vo- nada! Logo aconchegou-se num cantinho veio e nem para aonde vai, esperamos tê- com e deitamos o cabelo para cê viu o Jacó?”. e lá, talvez, fez a leitura que achou melhor. -lo por muitos anos entre nós, para poder- a escola, apressados para não chegarmos Muitas indagações passam pela mi- O único problema do nosso amigo, é mos um dia falar dele com saudade, revi- atrasados… E como num passe de mágica nha cabeça: de onde veio? Será que já teve quando desaparece nas farras e baladas ver bons momentos, contar para os netos, lá vem ele, contente, indo ao encontro de uma casa? É livre… Sabe os lugares onde dos companheiros de rua. Chega no ou- que aqui na cidade de Pitanga, na escola, um, de outro… Seus olhos felizes nos di- será bem recebido, diante de tantos que tro dia, acabado e o pior: sujo e machuca- na igreja, tivemos um mascote chamado zem bom dia e nos acompanham com mui- andam pelas ruas da nossa pacata cidade. do. Logo percebemos que voltou, pois seu “Jacó”. O dono do pedaço! Um cachorro ta alegria. No meio de todos parece um É engraçado, ele escolhe sempre os cheiro atropela todos pelo caminho… Por especial para dias especiais! passarinho que encontrou seu ninho. lugares onde têm muitas pessoas. Não onde você andou, vivente?! Dormiu com Ele é mesmo um sarro! Frequenta mui- gosta de solidão. Onde chega, com seu os urubus? Aí o recurso é mandá-lo para tos lugares: Planalto, Pitanguinha, Parque jeito pidão, conquista todos e se torna o o banho e cuidar de seus ferimentos. Ah, São Basílio e até Alto da Colina. Quando dono do pedaço. No Colégio Dom Pedro, o danado! Fazer o quê? Ele é livre, sai e vol- menos se espera, chega de fininho, como Jacó faz parte da nossa rotina. No dia que ta a hora que quer. se conhecesse todas as pessoas. Começou não o vemos na entrada, parece que está Jacó é bem social, não perde eventos na Igreja Matriz. Eu o conheci lá. É só as faltando alguma coisa. Quando chegamos, aqui na cidade. Se tem festa da Padroeira pessoas começarem a entrar para a missa lá vai nosso amigo a passear pelo saguão. Sant’Ana, na Igreja Matriz, não perde uma que logo ele vem também, e embora quie- Depois, fica sentado observando tu- novena. Sai faceiro em todas as fotos. On- to, tímido, chama atenção. Com cuidado do, como se fosse um guarda. Toca o si- tem mesmo, o padre Gilson comentou no vai até a parte de trás do altar, se acomo- nal, obediente, sabe direitinho o seu lugar. final da missa: “Jacó, hoje se comportou Professora Luci Noeli Schroeder da e de lá observa tudo. Vai para a porta da frente do colégio e lá muito bem!”. Todos riram, pois a presença CE Dom Pedro I, Pitanga-PR

200 — CRÔNICA CRÔNICA — 201 Artigo de opinião

m tempos de Twitter, WhatsApp, Instagram, trabalhar um gênero que exige fôlego, como Artigo de opinião, pode ser um contraponto importante para estudantes Ede 3o ano do Ensino Médio, às voltas com vestibular, consolidação de identidade, conquista de autonomia e outras tantas travessias rumo à fase adulta. Para escrever um artigo de opinião relativo ao lugar onde vivem, os jovens autores deste capítulo percorreram uma maratona, daquelas que, se não preparam para vida, é certo que dão boas pistas. Tudo começa com a identificação de um tema polêmico, passa pela busca de fontes consistentes, a coleta e o confronto de informações e a escolha de um posicionamento. Por fim, vem a composição do texto em si, que deve trazer argumentos contundentes o suficiente para, no mínimo, provocar no leitor a reflexão e, no máximo, contribuir para formação de opinião em um amplo debate democrático. As páginas seguintes trazem questões de gênero; liberdade de expressão nas escolas; uso indiscriminado de agrotóxicos; poluição nos rios e atividade mineradora; respeito a refugiados, indígenas e quilombolas; monocultura e impacto ambiental; gestão e gastos públicos; violência contra os animais; e intolerância religiosa. O que não falta é polêmica e opinião – e muito pano para manga, caro leitor! ARTIGO 216 OS FINS NÃO 232 AMANHECEU, DE OPINIÃO PODEM JUSTIFICAR POR QUE AINDA OS MEIOS ESTÁ ESCURO? Índice Vitória Vieira Pereira Tailane da Rocha de Jesus Sousa

206 FEMINICÍDIO: 218 RENASCIMENTO 234 VERDE, AMARELO, QUANDO A LUXUOSO AZUL E PRETO POSSESSIVIDADE José Gabriel Marques Eduardo Patrick FALA MAIS ALTO Barbosa Penante Ferreira QUE O AMOR Laura Helena Amorim 220 EM BRIGA DE 236 RETROCESSO Pinheiro MARIDO E MULHER, CULTURAL: METE-SE A POLÍCIA! TUDO COMEÇA 208 MUITO BARULHO Antonia Edlane Souza COM “UM POR NADA Lins PASSINHO”? Ryan Victor Santana Rayana do Silva 222 “VALEU BOI?” Nascimento Cruz Arysnágilo Waldoniêr 210 (DES) Pinheiro Vieira 238 APRENDIMENTOS INTERIORIZAÇÃO ATERRADOS DO ENSINO 224 A POLUIÇÃO DOS À BEIRA-MAR SUPERIOR: RIOS NO MIMOSO: Rúbia Ellen Campelo REDUÇÃO DE TUDO VALE A PENA Costa GASTOS OU EM NOME DO AMPLIAÇÃO DA PROGRESSO? 240 DE “JOIA DO VALE” DESIGUALDADE? Ioneide Ferreira de A “DESERTO VERDE” Gilberto Gonçalves Souza Tainan Lopes da Silva Gomes Filho 226 MINHA TERRA 242 A BUSCA 212 AS FARDAS TEM BELEZAS, DO “SONHO ENCOBREM MAS EMPREGO BRASILEIRO” O MEDO? JÁ NÃO HÁ! DIVIDE OPINIÕES Pedro Henrique Ana Paula Comuni Luiza Bortoluzzi Ferraz Araújo Casali 228 O PÃO NOSSO 214 MEU LUGAR DE CADA DIA 244 ESCOLA SEM É UM “PULMÃO PODE ESTAR PARTIDO: AVANÇO VERDE” NO MEIO ENVENENADO OU RETROCESSO DA IMENSIDÃO Fernanda de Souza DA EDUCAÇÃO ACINZENTADA Fagundes LOURENCIANA? Rafael Caxàpêj Krahô Laiana Miritz 230 “CHUTA QUE Vasconcelos É MACUMBA” Naira Danyelle de Souza Santos FEMINICÍDIO: QUANDO A sividade é que mata, não o amor, portanto, Embora o aumento das medidas proteti- POSSESSIVIDADE FALA MAIS é crucial tratar esse fenômeno pelo o que vas possa ser visto como uma notícia positi- ALTO QUE O AMOR ele realmente é: um crime de ódio. va, é essencial não se dar por satisfeito com Em uma sociedade com suas raízes apenas esse passo, mas cortar o mal pela Laura Helena Amorim Pinheiro enterradas sob concepções machistas e raiz, reconhecendo o feminicídio não como patriarcais, onde há algumas décadas a um crime gravíssimo, mas como fenômeno violência doméstica e o feminicídio eram sociocultural, proveniente de costumes ma- Junho de 2019, e na tela de LED da longe das águas, a história se mostra um tidos como atos disciplinares, esse com- chistas cultivados ao longo do tempo. sala uma notícia preocupante. Piracica- exemplo claro da romantização que circula portamento fatal pode ser justificado como Para isso, é crucial que sejam tomadas ba, que há apenas uma semana era palco esse tópico, fato que dificulta uma discus- de natureza masculina, afinal, segundo tais medidas de curto e longo prazo. As primei- de mais um feminicídio, agora, estrelava a são mais assertiva sobre o problema em concepções, um homem tem de defender ras, focadas em aprimorar os serviços já reportagem da noite carregada de dados questão, bem como contribui para a per- sua honra, sua masculinidade. Contudo, é existentes de apoio à mulher, ou seja, in- que alarmam a população: em apenas cin- manência ou até mesmo o aumento da vio- inconcebível que esse comportamento ain- vestir principalmente na preparação des- co meses, a cidade registrou um aumento lação dos direitos das mulheres. É impres- da se reproduza nos dias atuais. tes serviços, para que quando em situação de 43% no número de mulheres vítimas de cindível tomar conhecimento de que o fe- Além de ser problema crescente na re- de perigo, as mesmas sejam devidamente violência, buscando proteção, desprovidas minicídio já deixou vítimas o suficiente, e gião, o feminicídio e a violência doméstica acolhidas; outrossim, órgãos públicos, co- de seus direitos fundamentais. de que algo precisa ser feito com urgência. são fenômenos assustadoramente demo- mo o Ministério Público, têm o papel de fis- Anos antes de essa problemática vir à A princípio, é de suma importância cráticos: não escolhem cor, classe social calizar o efetivo cumprimento das leis que tona, o município, conhecido pelo extenso ressaltar que o feminicídio e a violência ou idade, não há mulher imune à violên- as protegem, para que não saiam impunes rio que o corta ao meio, já contava com his- contra a mulher são questões de seguran- cia. Existe, entretanto, um perfil mais vul- aqueles que ousem cercear seus direitos. tórias que retratavam essa realidade. Conta ça pública, que dizem respeito à nossa so- nerável a esses abusos, que se manifesta Para as metas de longo prazo, é impor- uma antiga lenda que o rio Piracicaba, com ciedade como um todo, não somente ao em mulheres de classe baixa, jovens e ne- tante que se estabeleçam medidas de pre- suas águas até então serenas, enfureceu- agressor e à vítima em debate. Portanto, gras. É nesse perfil que se encaixa a víti- venção, promovendo a conscientização em -se ao notar que sua deusa havia se apai- noções populares como a de que “em bri- ma do mais recente caso de feminicídio em escolas e nas ruas, de forma que o papel da xonado pelo moço mais bonito da cidade. ga de marido e mulher não se mete a co- Piracicaba: com apenas 16 anos, a adoles- mulher como propriedade seja desconstruí- Possesso, o mesmo se armou de abundan- lher” devem ser combatidas, pois são elas cente teve sua vida tirada pelo ex-namora- do, evitando assim que esses abusos conti- tes correntezas ao desafiar o jovem à luta, que omitem a real gravidade desses casos do dentro da própria casa. O autor do cri- nuem assombrando as mulheres da região. e impiedosamente encarcerou a mulher em e permitem que essa atrocidade ainda seja me, onze anos mais velho, tinha um filho águas profundas, matando ambos. vista como um crime excepcional, em que de 2 anos com a vítima, e fugiu do local an- Embora seja uma mera lenda, popu- a paixão do agressor passou dos limites – tes que as autoridades chegassem, em um Professora Nilda Meireles da Silva larizada com intuito de manter crianças “matou porque amava demais”. A posses- ato de covardia. EE Dr. Alfredo Cardoso, Piracicaba-SP

206 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 207 MUITO BARULHO POR NADA Certamente, a postagem não poderia sob a crença de que o mais sensato sem- ser uma propaganda enganosa, pois seu pre é obedecer. Essa obediência à hierar- Ryan Victor Santana Silva conteúdo é absurdo e exagerado. Quem quia pode provocar consequências futuras acreditaria em paredões entre os interva- que terão reflexo na sociedade. los das aulas? E o show, o smartphone, tu- Esse aluno censurado de hoje será o A cidade onde vivo, Nossa Senhora mento e criou uma propaganda enganosa do por três reais? Pense bem, se fosse real- adulto passivo de amanhã. E ele foi sim da Glória, em Sergipe, tem grande impor- que pode comprometer a imagem da uni- mente uma propaganda enganosa, o que censurado. De certo modo, essa suspen- tância na região, por isso foi contemplada dade de ensino. Alguns professores e alu- levaria tantos outros alunos a repostarem? são, por mais banal que seja agora, aca- com uma escola de Ensino Médio de perío- nos acharam a medida punitiva despropor- Será que todos queriam difamar o Colégio? bará coagindo o aluno a ser um cidadão do integral que atende a jovens de vários cional, pois se tratava apenas de uma brin- Além disso, não é de hoje que lutamos que, por medo de sofrer retaliações, opta municípios. Estudo nessa escola e nossa cadeira. Tenho plena convicção de que o por liberdade de expressão em nosso país. por não expressar sua opinião. É um medo rotina não é fácil: enfrentamos nove au- castigo foi exagerado. Será que devemos abrir mão dessa con- que não fica apenas na esfera escolar, per- las diárias, provas semanais, e isso é mui- Interpretar exige uma série de conhe- quista e aceitar ter que pedir autorização passa e reflete na sociedade. Isso é tudo o to cansativo. Porém há um aluno que, com cimentos, para que possamos compreen- para nos expressarmos? que um governo autoritário quer. sua página de humor no Instagram, tem a der sentidos subentendidos, é o que diz o Não culpo a gestão por não ter inter- A gestão fez muito barulho para solu- capacidade de converter esse cansaço em educador Paulo Freire. O meme já é con- pretado corretamente, culpo-a por não cionar um problema simples, e isso pode algo divertido. No mês de junho, ele criou siderado por muitos estudiosos um gênero querer entender. Diversas vezes, esse alu- afetar o futuro do jovem. O correto seria um meme sobre uma possível Festa Juni- textual da era digital e, por isso, exige no- no tentou explicar o intuito de sua criação, ter resolvido o conflito por meio do diálo- na que aconteceria no Colégio. Nele divul- vos saberes, para que haja plena compreen- e, mesmo assim, seus argumentos não fo- go e procurado soluções que não o cen- gava um show com o cantor Pepe Moreno, são. Aqueles que possuem essa bagagem ram considerados. surassem. A escola deveria estimular essa um bingo de um carneiro, paredões nos in- conseguiram decodificar o humor por trás O poder censura. No ambiente esco- habilidade do aluno, adaptando-se a esse tervalos e o sorteio de um smartphone ca- da criação desse aluno. Inclusive, estudan- lar existe uma hierarquia. A base de tudo novo gênero e utilizando-o para a aprendi- ríssimo, tudo por apenas três reais. A pos- tes de outra escola da cidade, habituados são os alunos, que sustentam os funcio- zagem. Assim, nossa geração não seria tão tagem bem-humorada viralizou, muitos a com essa linguagem, também entenderam nários, os professores e o diretor. Entre- passiva diante das péssimas decisões polí- compartilharam, inclusive eu. Após sua re- a brincadeira e criaram um meme parecido, tanto, quando se trata de uma relação de ticas que nosso país vem tomando. percussão, seu criador foi punido pela es- só que utilizando o nome da escola deles. poder, essa sequência muda. Apesar de cola e suspenso por um dia. Embora os motivos apresentados pe- sustentarmos todas as outras posições, O fato gerou polêmica e dividiu opi- la equipe gestora para a suspensão sejam somos a categoria mais frágil, e a corda niões. O diretor acredita que a punição pertinentes, o castigo foi inadequado, pois sempre arrebenta desse lado. Somos obri- Professor Jorge Henrique Vieira Santos foi adequada, pois alega que o estudan- eles não conseguiram compreender a in- gados a aceitar tudo o que nos é impos- CE Manoel Messias Feitosa, te usou o nome da escola sem consenti- tenção do meme. to e essa aceitação acaba nos silenciando Nossa Senhora da Glória-SE

208 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 209 (DES)INTERIORIZAÇÃO DO ENSINO cursos, bolsas para pesquisa, verbas pa- tância para toda a região. Dessa forma, é SUPERIOR: REDUÇÃO DE GASTOS OU ra projetos e a demissão de funcionários. indiscutível que, sem a universidade, o so- AMPLIAÇÃO DA DESIGUALDADE? Endossando a postura da reitoria, par- nho de muitos jovens seria extinto, assim te da população goianesiense afirma que a como propõe a Comissão de Redesenho Gilberto Gonçalves Gomes Filho crescente oferta de bolsas pelas universida- da Universidade. des particulares do município torna a per- Ademais, o papel exercido pela UEG manência da UEG irrelevante. Em contrapar- na formação de professores é notório. “Soletrando”. A priori, o significado do de Ensino Superior do município. Sua for- tida, outra parcela defende sua continuida- Egressos dos cursos de Pedagogia, História gerúndio parece óbvio, e, segundo o “Di- mação relaciona-se ao Processo de Inte- de, visando aos benefícios que ela promove. e Letras atuam na educação goianesiense, cionário Aurélio”, significa “ler, pronun- riorização no Ensino Superior em Goiás, Desse modo, instaurou-se a polêmica. fortalecendo-a, o que é comprovado pe- ciando separadamente as letras e juntan- que buscou, durante a década de 1980, Particularmente, creio que a busca pe- los bons resultados no Índice de Desen- do estas em sílabas”. No lugar onde vivo, facilitar o acesso à universidade daqueles lo fortalecimento da UEG a partir da rees- volvimento da Educação Básica (Ideb), que contudo, essa palavra é carregada de me- cuja rotina estava fora do ciclo das gran- truturação de cursos e da otimização dos chegam até 8,6, segundo dados de 2017 do mórias e constitui motivo de orgulho pa- des cidades. custos relativos à manutenção são atitudes Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas ra a população, pois o primeiro campeão Paradoxalmente, penso que houve uma necessárias à sobrevivência da instituição. Educacionais Anísio Teixeira (Inep). do Concurso Soletrando, da Rede Globo inversão desse pensamento, pois a conjun- Porém, o seu fechamento não é a decisão Dessa maneira, acredito que o Campus de Televisão, foi Aurélio. Não o escritor do tura atual propõe novamente a concentra- mais viável, pois suas consequências se- Goianésia deve ser mantido em detrimen- dicionário, mas o aluno, igualmente apai- ção do saber ao determinar a extinção de riam desastrosas. to de qualquer fator externo. Assim, como xonado pela gramática, natural da peque- quinze campi. Outrossim, vale destacar que, segun- pontua a diretora da instituição, Profa. Ma. na Goianésia, localizada no norte goiano Para o reitor Dr. Ivano A. Devilla, a ne- do dados do Campus Goianésia, cerca de Maria das Graças B. Silva: “Fechar um cam- e marcada pelos traços típicos do interior. cessidade do fechamento decorre do es- 620 alunos estão atualmente ingressos. O pus é eliminar a oportunidade de acesso à Histórias como a de Aurélio mostram o gotamento orçamentário e financeiro des- perfil desses estudantes, quase em sua to- educação para o jovem do interior”. Desse poder revolucionário da educação e inspi- tinado à manutenção do campus, que ex- talidade, mostra que são de escola pública modo, clamo para a continuidade da ins- ram os jovens goianesienses. Todavia, uma pandiu-se exageradamente, a ponto de e possuem situação socioeconômica des- tituição em nossa cidade, para que tantos notícia recente disseminou desesperança não conseguir manter-se em bom funcio- favorecida. Com o possível fechamento da outros “Aurélios” escondidos sejam reco- àqueles que veem na educação a possibi- namento. Assim, as medidas propostas pe- instituição, qual opção restará à média dos nhecidos por nós e pelo mundo. lidade de transformação social. Foi anun- la equipe gestora, constatadas no RELA- estudantes de Goianésia que, assim, como ciado o fechamento da Universidade Esta- TÓRIO No 1 / 2019 COLEGIADOS – 16136, eu, não têm condição de deslocar-se para dual de Goiás (UEG) – Campus Goianésia. publicado em 2 de maio de 2019, devem outra cidade a fim de concluir o Ensino Su- Professora Patrícia Nara o Criada pela Lei n 13.456, de 16 de abril ser postas em prática urgentemente. Tais perior? Além disso, a UEG atende a outros da Fonsêca Carvalho de 1999, a UEG é a única instituição pública ações incluem a progressiva extinção de dez municípios, o que mostra sua impor- CE Jalles Machado, Goianésia-GO

210 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 211 AS FARDAS ENCOBREM O MEDO? militares. Bons índices nacionais são rea- não militares. Assim como em outros paí- lidades nessas instituições, mas por quais ses, como Coreia do Sul e Finlândia, acre- Pedro Henrique Ferraz Araújo métodos? Sabemos que há um processo ditam em uma metodologia que estimula a seletivo de aprovação dos alunos, sendo criatividade e o interesse próprio de cada admitidos aqueles com maiores notas em estudante, ao usarem técnicas pedagógi- Os registros de casos de violência e de forma compartilhada com a direção es- seu histórico escolar e filhos de militares. cas com menos testes e tarefas de casa e vandalismo em escolas têm se tornado colar. Assim, aumentaria a segurança e di- Diante da questão, não podemos ne- mais clubes de estudos e projetos diversi- cada vez mais comuns na minha cidade, minuiria a violência. Tal processo de inter- gar que a segurança e confiança são al- ficados. A gestão pedagógica almeja for- Tagua­tinga, no Distrito Federal (DF). Mais venção militar nas escolas já está em prá- tamente aplicadas em redes militares. Há mar cidadãos pensantes e autônomos, e um caso aconteceu: durante o intervalo, tica desde o começo do ano letivo de 2019. diversas avaliações positivas a respeito não alienados que apenas reproduzem um um rapaz de 15 anos foi esfaqueado. Devi- As escolas foram selecionadas após desse quesito. Além disso, inúmeros estu- padrão estabelecido. do a diversos casos como o citado, o Go- uma avaliação da violência nas proximida- dantes afirmam se sentir verdadeiramente Acredito que a proposta de uma ges- verno propõe a militarização em algumas des. E devem agora se adaptar aos mol- protegidos com a gestão militar. A ordem tão compartilhada mostrou-se invasiva e escolas públicas com o objetivo de trazer des estabelecidos pela Polícia Militar – ro- propagada nessas instituições cria um am- ineficiente, pois agora os alunos não te- segurança aos estudantes. tina disciplinar rígida, com horários, com biente estável onde todo o foco pode ser mem o que há do lado de fora, e sim o que Há uma linha tênue que separa o con- hasteamento da bandeira e com uniformes direcionado à educação. há do lado de dentro. Um ambiente onde as ceito de respeito do conceito de medo. O obrigatórios. Tais ações se sustentam na Ainda assim, a repressão à diversida- fardas podem causar medo não é próprio respeito é conquistado, já o medo é im- ideia de ordem e respeito. Por meio de me- de se mostra de fato um dos maiores er- para a educação. Ordem e respeito sur- posto. Visto que a escola tem como obje- didas que se baseiam na repressão e no te- ros dessa experiência. Por exemplo, casos girão a partir de uma gestão pedagógica tivo ser um ambiente acolhedor e incenti- mor, a violência de fato é reduzida. de racismo em uma escola militar da cida- qualificada. Como o consultor em gestão vador a todos, uma proposta que consiste Entretanto, os contrários à proposta de, onde foi imposto a uma estudante cor- e liderança Alfredo Martini Jr. expressou: na militarização da gestão escolar, que por acreditam que junto com ela se reduz tam- tar ou alisar o cabelo, o que acabou sendo “O respeito é conquistado, não imposto”. sua vez faz uso de métodos mais rigorosos, bém a individualidade de cada um, ao esta­ reconhecido como um ato de discrimina- causa polêmica. Afinal, a polícia dentro da belecer padrões de estética, por exemplo: ção: obrigar alguém a se enquadrar em um escola é um caminho viável para se chegar cortes de cabelo igualitários, uniformes im- padrão estético. Não devemos aceitar que à ordem e à educação? postos e padrões preestabelecidos. anulem nossa liberdade de expressão. De- Em primeiro lugar, os favoráveis ao Vale ressaltar que a militarização não é vemos ser autônomos e assim preservar as projeto de intervenção militar nas redes novidade, já existe no Goiás. O estado pos- diferenças entre cada um. de ensino acreditam que a Polícia Militar sui 46 escolas militarizadas e é comumente Segundo pesquisas do Ideb (Índice de Professora Gabriela Maria e o Corpo de Bombeiros do DF possam ge- citado como uma referência em qualidade, Desenvolvimento da Educação Básica), o de Oliveira Gonçalves rir aspectos disciplinares e administrativos, por conta de suas melhores escolas serem Estado do Ceará possui ótimos colégios CED 05 de Taguatinga, Brasília-DF

212 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 213 MEU LUGAR É UM “PULMÃO gundo anciões, a chuva não chega mansa Entristece-me quando em minha pu- VERDE” NO MEIO DA IMENSIDÃO e tranquila, vem em forma de tempestade pila reflete um céu acinzentado, mas me ACINZENTADA e violenta, em resposta à ação devastado- alegro em saber que o homem mais inteli- ra do homem branco. gente é aquele que preserva o seu habitat Rafael Caxàpêj Krahô Ademais, o homem branco (fazendei- e esses são os mehin (índios krahôs). ros que são vizinhos da Reserva Krahô), le- O futuro do nosso lugar não está só va sua vida marcada pelo ato da destrui- nas mãos do mehin. Será que um dia não No lugar onde vivo, na aldeia Krahô, o corrompidos, demonstrando uma impor- ção dos recursos naturais mais importan- vamos ter mais uma bela natureza para verde das matas e da floresta preservada tância apreciativa aos meros fenômenos tes para a vida, através do desmatamento, contemplar? Diante dessas perguntas, é encanta e propicia a vida aos indígenas, que ocorrem na natureza. do uso de pesticida nas lavouras e da mais necessário que formemos uma corrente que desfrutam dos alimentos e de todas Pois, para nosso povo, é de suma impor­ nova “moda” de acabar com os matos das entre mehin e cupen para proteger a na- as riquezas que a floresta oferece, man- tância aquilo que o meio ambiente fornece pastagens pulverizando veneno, que eu de- tureza. Por outro lado, o Governo deve re- tendo uma relação integrada e harmônica e, como forma de agradecimento aos bens nomino como “o matador invisível” de tudo fletir e vetar a liberação dos agrotóxicos entre o homem mehin (krahô) e a natureza naturais, realizamos comemorações, exal- que o cerca. Isso tudo vem afetando a be- e pesticidas. E devemos criar ONGs para que o cerca. Porém, essa relação está sen- tando desde o nascer de uma fruta até o leza do nosso lugar. proteger o meio ambiente. Somente com do prejudicada devido às políticas externas cair de uma chuva, mostrando, então, que Outro fator preocupante é a política do essas atitudes o nosso “pulmão verde” não do Governo e à ação do homem branco no por mais que a natureza não precise da in- Governo Federal em relação à liberação de vai mudar de cor. contexto de preservação do meio ambien- tervenção do homem em seu meio, contu- agrotóxicos e pesticidas, algo que contribui- te nos arredores da Reserva Krahô. do o homem necessita de tudo aquilo que rá ainda mais para a devastação da nossa Primeiramente, é de suma importância ela tem a oferecer. Por isso é tão essencial mãe natureza e para a poluição do ar que para os indígenas krahô a preservação do saber respeitar seus limites. respiramos. Com tudo isso, me deparo a meio ambiente, consagrando suas tradições A paz e a tranquilidade do lugar não pensar: será que o homem vai ser predador em local tranquilo e comemorando o fenô- estão sendo respeitados devido os cupen de si próprio? Até quando vamos sobreviver meno natural da frutificação do cerrado e (homens brancos) estarem destruindo to- cercados por tamanha devastação? das matas. Entre elas, a chegada do cajuí, da das as florestas nos arredores da Reserva Em consequência disso, os rios que bacaba, do buriti – tudo isso é comemorado Krahô. A mente ambiciosa e a ação desses percorrem a Reserva Krahô estão sofren- com rituais da coleta dos mesmos. homens brancos têm substituído os verdes do, as águas já não estão cristalinas e vo- Além disso, vale ressaltar que, mes- das florestas por plantios de soja, pasta- lumosas como antes, o cerrado e as matas mo os povos krahô deparando-se com uma gens e queimadas. apresentam-se “desbotados”, a fauna pro- demasiada evolução tecnológica, isso não Como consequência, as nossas noites cura abrigo em apenas um “pulmão verde” Professora Deuzanira Lima Pinheiro permitiu que seus valores culturais fossem já não são tão frias e aconchegantes. Se- no meio da devastação: a Reserva Krahô. Escola Indígena 19 de Abril, Goiatins-TO

214 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 215 OS FINS NÃO PODEM vez que os agroquímicos contribuem para até o mercado, fazendo com que muitos JUSTIFICAR OS MEIOS o aumento da produção, potencializando consumidores adquiram produtos com al- a economia e promovendo o desenvolvi- ta toxidade. A própria Agência Nacional de Vitória Vieira Pereira de Jesus mento da cidade. Ainda reconheço que a Vigilância Sanitária, através do seu ex-di- liberação proporcionará maior concorrên- retor, Luiz Claudio Meireles, afirma que o cia no mercado, oportunizando melhores último relatório sobre riscos de contami- Vivo em Cândido Mota, uma peque- União Europeia devido à alta toxidade. Assim preços, assim sendo, diminuindo os cus- nação dos alimentos foi publicado apenas na cidade localizada no interior de São de sendo, tal medida é totalmente desnecessá- tos de produção e, consequentemente, au- em 2016. Dessa forma, não posso concor- Paulo, com cerca de 30 mil habitantes. ria, uma vez que o Brasil é referência mun- mentando o lucro dos agricultores. dar com essa cilada que beneficia alguns Economicamente, a cidade depende mui- dial em produção agrícola em grande esca- Mesmo diante das vantagens elenca- e prejudica muitos. to da agricultura, e se destaca na região la com os agrotóxicos já utilizados. Devemos das acima, sou totalmente contra a libe- Portanto, antes de liberar novos agro- do Vale do Paranapanema por possuir ter- levar em consideração também os danos à ração de mais agrotóxicos, pois tenho a tóxicos é necessário que o Poder Público ras roxas e solo fértil. Segundo a Secreta- saúde que tais produtos causam, sobretu- certeza que trarão prejuízos irreparáveis cumpra com o seu papel de garantir e ze- ria de Agricultura de Cândido Mota, cer- do quando aplicados indevidamente, o que ao meio ambiente, como a contaminação lar pelo meio ambiente e pela saúde de sua ca de 75% da área territorial do município é muito comum em Cândido Mota, pela fal- do solo, do lençol freático, entre outros; população, proibindo agrotóxicos com al- é destinada às lavouras, as quais, costu- ta de orientação e fiscalização. e também à saúde dos seres humanos, os ta toxidade e fiscalizando a aplicação dos meiramente, produzem bem, garantindo a Ademais, segundo o Greenpeace, os quais podem sofrer com intoxicações ou existentes. Ainda, cabe ao Governo inves- sobrevivência, direta ou indireta, de todas novos produtos contêm glifosato, substân- até mesmo com doenças mais graves, co- tir em pesquisas e alternativas sustentá- as famílias que vivem por aqui. Dessa for- cia potencialmente cancerígena de acordo mo o câncer. veis para o controle de pragas na agricultu- ma, é evidente que a agricultura é respon- com a Agência Internacional de Pesquisa em Minha opinião poderia ser outra se eu ra, tal como áreas de refúgio, que quando sável pelo desenvolvimento do município; Câncer (Iarc, na sigla em inglês). Essa infor- tivesse a garantia de que os agricultores utilizadas podem diminuir a aplicação de entretanto, a notícia da liberação de novos mação, sem dúvida, tira o sono da popula- fossem utilizar os novos agroquímicos de agrotóxicos. Assim, minha querida Cândi- agrotóxicos tem preocupado a população ção da minha cidade, afinal, teremos mais forma adequada ou que ao menos o Go- do Mota continuará se desenvolvendo sem que teme pelo meio ambiente e pela saúde produtos altamente tóxicos disponíveis no verno fosse garantir a qualidade dos ali- precisar destruir o meio ambiente e vitimar dos munícipes. mercado que poderão ser utilizados pelos mentos que chegam à mesa do consumi- sua população. Primeiramente, é importante contextua- agricultores; e poderão contribuir para o au- dor; contudo, nada disso é certo. Aos agri- lizar de onde surge a preocupação dos cân- mento de doenças, sobretudo o câncer, que cultores faltam informações técnicas e ao dido-motenses. Em pouco mais de seis me- vitima muitas pessoas em Cândido Mota. Governo mais seriedade. É inadmissível ses, o Governo Federal anunciou a liberação Por outro lado, devo reconhecer que a negligência do Estado, que não fiscali- Professor Alexandre Marroni de 239 novos agrotóxicos, sendo que alguns a liberação dos novos agrotóxicos trará za periodicamente as taxas de agrotóxi- ETEC Prof. Luiz Pires Barbosa, deles já foram proibidos há quinze anos pela grandes benefícios aos agricultores, uma cos presentes nos alimentos que chegam Cândido Mota-SP

216 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 217 RENASCIMENTO LUXUOSO

José Gabriel Marques Barbosa

Os dogmas religiosos sempre acom- denominada “A Matriz dos Anjos”, logo uma das formas de arrecadação de recur- Embora o novo e o belo sempre nos panharam o compasso da dinâmica evo- após sua reforma completa. sos, tem sido prejudicial às pessoas que instiguem a experimentar o que há de me- lutiva da sociedade, marcando presença No entanto, a beleza não é o único a utilizam como meio de sustento, o que lhor em nosso tempo, toda mudança não em todas as culturas humanas. A cultura ponto de vista a ser analisado: milhares de de fato se confirma, pois com essa cam- precisa ser radical, mas consciente das brasileira não fica de fora desse cenário: reais da comunidade católica local têm si- panha, vários catadores de lixo perderam consequências, sejam elas sociais, físi- com dezenas de milhões de devotos, a re- do incansavelmente arrecadados e investi- seu ganha-pão diário. cas ou econômicas, que possam vir à to- ligião católica tornou-se predominante no dos na referida obra, que inicialmente era Por outro lado, há algumas pessoas na. Não podemos ficar parados e deixar país, especialmente nas regiões interiora- uma simples ampliação, na qual se preser- que defendem que a estrutura arquitetô- parte de nossa história se perder para es- nas, onde a devoção pelos santos e anjos variam algumas das características históri- nica moderna deve prevalecer, justificando sas transformações. Acredito que há a ne- é marcante. À medida que o número de cas e tradicionais do templo cristão. a reforma como uma maneira de a Igreja cessidade de preservar a essência religiosa seguidores aumenta, espaços maiores são De fato, a reforma era necessária, local se adaptar também às novas tendên- no município, assim como em qualquer ou- necessários para reunir essas comunidades a para comportar maior quantidade de cias. Com isso, a instituição estaria apenas tro lugar do mundo, todavia, defendo que religiosas. Todavia, mais extensas ainda devo­tos na Matriz. Mas não em grandes procurando chamar, com sua imponência, é dispensável um renascimento tão luxuo- são as despesas financeiras para custear proporções, pois, além de envolver um cada vez mais a atenção dos jovens da re- so que contradiz até o eterno valor cristão a construção ou as reformas de suntuosos desembolso monetário significativo de gião, pois muitos deles têm se desinteres- de humildade. templos de oração. seus fiéis, a reconstrução tem incluído em sado e se desviado do caminho de Cris- Uma questão relacionada a esse fato seu projeto uma modernização radical da to. Nessa perspectiva, uma das líderes re- tem dividido opiniões no pequeno torrão arquitetura, realizando modificações com ligiosas da comunidade católica, a também onde moro. Até pouco tempo conhecida base em um projeto moderno, algo contra- educadora Samilly Martins, afirma que é como a “cidade do feijão” (pela larga pro- ditório para os padrões de estilo e de valor preciso degustar de novas visões, pois a dução do grão, há algumas décadas), Ta- histórico da antiga e querida Paróquia de reforma não apenas é uma maneira de au- vares, um lugarzinho apegado aos santos, São Miguel Arcanjo. Na opinião do edu- mentar a quantidade de devotos e de turis- com população em torno de 14 mil habi- cador Sebastião Alves, cidadão tavaren- tas na cidade, já que representa também a tantes, no sertão paraibano, poderá, ago- se, a ampliação era necessária, mas não tentativa de embelezar e de modernizar o ra, ser reconhecida como o lugar da igre- nessa amplitude. Ademais, ele afirma que lugar, trazendo notoriedade e avanço para Professora Jaciara Pedro dos Santos ja mais bela da região, que passará a ser a campanha de reciclagem, utilizada como esse pequeno município interiorano. EE Tomé Francisco da Silva, Quixaba-PE

218 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 219 EM BRIGA DE MARIDO E MULHER, Os casos de violência extrema a mu- la Braga, do Escritório de Advocacia Bra- METE-SE A POLÍCIA! lheres acontecem em tempos, espaços e sil: “Quando o feminicídio vai a julgamento, situações diversas. A exemplo da passa- normalmente é tratado como crime passio- Antonia Edlane Souza Lins gem bíblica, que narra a história da “mu- nal”, o que é uma lástima. Cobremos, pois, lher adúltera”, quase apedrejada pelo fato dos órgãos públicos, punições mais severas de ser acusada de uma prática que entre aos que praticam esses crimes. Faz-se ne- A constante batalha da mulher pelos mo que socialmente velada, o que levou os homens é mais permissível. É uma vio- cessária uma atitude de basta à impunidade. seus direitos e pela notoriedade social não à desqualificação da honra feminina e ao lência enraizada, regada com o machismo O Brasil possui uma taxa de feminicí- é recente. Há anos, o movimento feminis- julgamento de depreciação social por e colhida com a misoginia, que chega aos dios que é a quinta maior do mundo, de ta busca atenuar o estigma de sexo frágil serem quem são, resultando, muitas das mais singelos recantos, como é o caso da acordo com a ONU. Esse dado é tão assus- e inferior, evidenciando várias conquistas vezes, em adjetivações, tal como profa- minha pequena Marcelino Vieira (RN), que tador que precisa ser debatido e, priorita- ao longo da história, como o voto, a entra- nas. Esse argumento reforça e testifica as nos últimos dois anos presenciou a morte riamente, combatido. Deve-se, portanto, da no mercado profissional e o direito de justificativas daqueles que adotam prá- de duas mulheres, com requintes de cruel- começar com a denúncia, seja por parte da estudar. O problema é que, além de lutar ticas de maus-tratos, abusos e até mes- dade. Assassinadas pelo simples fato de, vítima, seja por qualquer cidadão, desmi- pela equidade de gênero, a mulher preci- mo crimes. como mulheres, lhes serem privadas as tificando a ideia de que “em briga de ma- sa conviver com o medo de ser agredida Decerto, a misoginia e o machismo chances de defesa, pois, além das armas rido e mulher, não se mete a colher”; em e morta, consequência da misoginia que são dois agravantes e causadores de al- de calibre ou de punho, usaram também a seguida com a implantação de mais unida- afeta a integridade física e psicológica das to percentual de agressões. Os dados do mais potente, a covardia. Chocando, assim, des de atendimento às mulheres, que ofe- vítimas, o que contribui para a persistên- Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança todos os munícipes. reçam todo apoio emocional, capaz de ou- cia dos casos de violência doméstica e do Pública são alarmantes. Diante disso, podemos nos questionar vi-las e protegê-las; além do aumento de crescente aumento do feminicídio. Uma mulher morre a cada duas horas; sobre a eficácia dos mecanismos jurídicos delegacias especializadas que sejam aces- No século XIX, época do movimento e cerca de 500 são violentadas por hora, quanto à integridade física da mulher. Será síveis 24 horas. Inegavelmente, é hora de romântico, havia toda uma idealização da em sua maioria, negras e pobres. Hoje são que não existem leis que as protejam? Ou dar voz a essas mulheres, aplicar a devi- figura feminina: damas vistas como puras elas, amanhã poderá ser eu, nós, quem existem, mas não são bem aplicadas? São da medida jurídica e garantir o respeito e e recatadas, fiéis ao lar e aos maridos. mais? Tudo isso é revoltante. Primeiro, por duas leis específicas de proteção à mulher: a segurança, que lhes cabem por direito. Essa personificação de perfeição sempre mostrar o estereótipo da mulher periféri- a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) mascarou a desvalorização de mulheres ca. Segundo, por apresentar as dificulda- e a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), por seus esposos e pela sociedade que des de sobrevivência numa sociedade ex- que parecem não intimidar o agressor. Na moldavam uma forma de comportamento tremamente patriarcal e machista. Por fim, verdade, as leis existem, no entanto, ao Professor José Jilsemar da Silva que nunca atendeu à realidade. A verda- por conviver com o racismo que leva a uma meu ver, falta efetivação para puni-lo na imi- EE Desembargador Licurgo Nunes, de é que sempre houve a opressão, mes- intensificação dos atos agressivos. nência da prática do crime. Para Ana Pau- Marcelino Vieira-RN

220 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 221 “VALEU BOI?” nador de desafios! Todavia, não me sinto Diante do exposto, mesmo na presen- representado, de forma alguma, por uma ça de qualquer regulamentação ou alter- Arysnágilo Waldoniêr Pinheiro Vieira prática cultural que oportuniza inúmeras nativa de proteção aos animais, o que não situações de maus tratos, causando sérias vejo nos populares parques, os atos impe- lesões em bois e cavalos, podendo levá-los tuosos continuam inerentes à vaquejada. Quem já leu “Vidas Secas”, de Graci- grita “Valeu Boi!”, validando o ato, o públi- até mesmo à morte. Em razão disso, considero que há a neces- liano Ramos, conhece o vaqueiro Fabia- co vibra e aplaude a destreza na domina- Sob esse viés, os contrários a essa prá- sidade de desenvolvimento e valorização no, integrante de uma família de retiran- ção do animal, o qual, ainda caído, sofre tica, assim como eu, defendem, categori- de outros festivais – como as cavalgadas, tes nordestinos que sai em busca de me- com a dor causada pelo impacto e sente na camente, os direitos e a proteção dos ani- por exemplo –, que representem os costu- lhores condições de vida. Nessa célebre pele o poder da crueldade humana. Tal fei- mais acima de qualquer movimento econô- mes do povo nordestino sem agredir a fau- obra, ao retratar o homem em condições to ignora direitos e justifica atitudes impie- mico ou sociocultural. Logo, objetivando a na, preservando os valores da nossa terra. sub-humanas, traduzidas pelo caráter ani- dosas em nome da cultura, contrapondo-se proibição de tais eventos, buscam eviden- Assim, poderemos fechar as porteiras malesco, o autor me faz refletir acerca de ao que está posto na Constituição Federal. ciar as práticas danosas às quais esses se- do retrocesso cultural, abrir o caminho em uma polêmica presente no lugar onde vivo. Contudo, há quem considere a vaque- res são submetidos. Nessa dimensão, para direção à garantia dos direitos desses ani- Anualmente, José da Penha, municí- jada um esporte de farta expressão cultural Vânia Nunes, veterinária e diretora do Fó- mais, criando distância da animalização pio pertencente ao Alto Oeste Potiguar, do Nordeste. Empresários, organizadores rum Nacional de Defesa e Proteção Ani- narrada em “Vidas Secas”. É preciso, pois, torna-se palco de um evento que atrai cen- e donos de parques afirmam que essa his- mal, a perseguição e a consequente que- que o grito de “Valeu Boi!” possa ecoar tenas de pessoas, a vaquejada. Em razão tórica tradição traz mínimos e esporádicos da podem causar ferimentos, dor, fraturas dentro e fora dos currais de José da Penha, de situações nocivas à saúde dos cavalos e problemas à saúde do animal envolvido. e perturbação mental. desvelando a fiel representação da identi- bois utilizados, a também conhecida “festa Ademais, destacam que, além de represen- Dessa forma, a necessidade de crimi- dade nordestina. do vaqueiro” vem sendo discutida, ultima- tar um povo, gera renda, empregos e ou- nalizar a vaquejada torna-se cada vez mais mente, e nos leva a indagar: “O que está tras oportunidades lucrativas à população. notória em nossa sociedade e no lugar on- em jogo é o pleno exercício das manifes- Essa é uma visão também comungada pe- de moro. Como disse o Ministro do Supre- tações culturais ou a preservação dos di- los proprietários de pelo menos cinco par- mo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, reitos dos animais?”. ques de vaquejada no entorno de meu mu- a prática possui “crueldade intrínseca” e o Considerada uma fiel representação nicípio, o que é contrário à minha opinião. dever de proteção ao meio ambiente, pre- do cotidiano e ofício do vaqueiro, a tradi- Como disse Euclides da Cunha em seu visto no Artigo 225 da Constituição, sobre- ção consiste em puxar a calda do boi, de- livro “Os sertões”: “O sertanejo é, antes de põe-se aos valores culturais. Nesse senti- sequilibrá-lo e provocar sua queda entre as tudo, um forte”. De fato. Sou nordestino do, apoiar, difundir e legitimar tal “esporte” faixas demarcadas pela cal. Em virtude dis- e me orgulho de ter nascido em um lugar revela a face negligente e cruel do homem Professor Jocenilton Cesário da Costa so, no mesmo momento em que o locutor de terras áridas, povo guerreiro e colecio- em relação à natureza. EE Vicente de Fontes, José da Penha-RN

222 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 223 A POLUIÇÃO DOS RIOS NO MIMOSO: zidas pelo raciocínio de que os fins justifi- atingida está em perigo. Só pessoas que TUDO VALE A PENA EM NOME DO cam os meios, mas, acredito eu, não justi- colocam o lucro e o capital à frente do ser PROGRESSO? ficam. Isso porque não há capital capaz de humano e do meio ambiente não conse- devolver a vida aos animais e os recursos guem enxergar isso. Afinal, ao permitir que Ioneide Ferreira de Souza hídricos necessários à sobrevivência das a natureza seja danificada, estamos afe- pessoas. Sem contar que destruir o meio tando o lugar onde vivemos, ou seja, a nós ambiente é destruir a todos nós. Como al- mesmos, a nossa história, a nossa origem, Kalunga do Mimoso é uma das comu- tantes e do consequente aquecimento do guém pode não compreender isso? a nossa tradição. É preciso que entenda- nidades quilombolas que fazem parte dos comércio local e da construção civil. A ex- Penso que a ingenuidade possa ser mos que todas as vidas valem a pena. O vestígios históricos que compõem a iden- pectativa inicial, todavia, foi apagada pela uma resposta a essa pergunta. Ela levou poder público e a sociedade arraiana preci- tidade cultural do lugar onde eu vivo: Ar- decepção e pela sensação de indignação muitos a acreditarem que a empresa, pela sam olhar a situação como o problema que raias. Os(as) quilombolas desse agrupa- perante inúmeras devastações ambientais idoneidade apresentada, cumpriria as pro- de fato é, não como consequências inevi- mento social, formado por 270 famílias, que se sucederam. A extração de fosfato e messas feitas inicialmente. Essas pessoas táveis dos avanços que se quer alcançar. somando 1.300 pessoas, são descenden- o depósito de metais pesados no rio cau- queriam lucrar com a instalação da indús- Assim sendo, a empresa só fez bem tes de homens e mulheres negras que, em saram a morte de peixes. Além disso, a co- tria, mas agora contabilizam prejuízos. O para aqueles que de alguma forma recebe- meados do século XVIII, fugiram da explo- loração escura das águas levantou a sus- que resultou foi o transtorno, a devastação ram benefícios para fechar os olhos diante ração escravagista em busca de espaços peita de que o consumo e o uso do recurso do meio ambiente, o calote no comércio. dos impactos causados por ela. É o lucro de sobrevivência, liberdade e resistência. na atividade agrícola podem causar sérios No que concerne ao compromisso com a e a defesa do progresso colocando a vida O lugar encontrado por eles é atravessa- riscos à saúde. geração de emprego, pouquíssimos mora- no Mimoso em segundo plano. E isso é de do pelos rios Bezerra e Paranã, o que lhes Acontece que a Itafós, como a maioria dores da região foram contemplados, pois uma crueldade imensa. A necessidade de possibilitou garantir o sustento por meio das empresas que visam lucro, ancora seus a maioria dos cargos foram ocupados por empregos e de avanços econômicos não da agricultura de subsistência. Fonte de so- pensamentos na relação custo-benefício. pessoas de outros lugares. Fazendo uso pode ser maior que a imprescindibilidade brevivência, esse recurso hídrico, no entan- Como se sabe, as multinacionais, principal- das palavras de Dinomar Miranda, jorna- de proteger a natureza e de garantir que a to, está sob risco de ser perdido em decor- mente as mineradoras, potenciais gerado- lista local, “[...] prometeram emprego para população do Mimoso, símbolo da resis- rência dos impactos ambientais causados ras de impactos ambientais, optam, muitas as comunidades e estão entregando uma tência arraiana, não precise pagar com a pela atuação da mineradora Itafós. vezes, por colocar os ganhos em detrimen- devastação [...]. O rio acabou”. saúde ou com a própria vida por isso. A empresa de mineração foi implan- to da proteção da natureza e da vida huma- A ingenuidade, porém, não é um argu- tada mediante a justificativa de contri- na. Poluem rios, matam peixes e ainda ten- mento válido para aqueles que têm se ca- buir para a modernização da cidade e pa- tam ocultar o crime mandando enterrá-los lado frente aos desastres ambientais cau- ra a melhoria da economia com geração na areia, como os moradores afirmam que sados pela atuação da empresa. A vida da Professora Elaine Cardoso de Sousa de emprego, aumento do número de habi- a Itafós fez aqui. Essas decisões são condu- fauna, da flora e do povo da comunidade CE Professora Joana Batista Cordeiro, Arraias-TO

224 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 225 MINHA TERRA TEM BELEZAS, dos já foram realizados acerca do assunto turismo é outra forma de gerar renda. Com MAS EMPREGO JÁ NÃO HÁ! e, através desses, foi possível concluir que certeza, o campo industrial também repre- o Bairro Mococa se mostra um local pro- senta um caminho viável, contudo, esta Ana Paula Comuni missor para o desenvolvimento da ativida- opção trará benefícios se, primeiramente, de industrial. O bairro, por estar afastado respeitar e agir de forma sustentável com o do centro da cidade, apresenta terrenos meio ambiente e assegurar empregos aos Fazendo limite com o Estado de São prego, ocasionado pela hipertrofia do se- apropriados para construir; ademais, um cidadãos monte-sionenses. Acredito que Paulo, encontra-se Monte Sião, cidade in- tor produtivo, já que há excesso de mão número significativo de habitantes que lá nossa querida Monte Sião possa se desen- teriorana com uma população estimada de obra disponível e produção de peças moram se deslocam todos os dias para tra- volver e se modernizar sem agredir os re- em 23 mil habitantes. Foi aos pés da Serra de roupas em larga escala, aumentando a balharem longe de suas casas ou estão de- cursos naturais, garantindo assim, às gera- da Mantiqueira que o aconchegante muni- concorrência nas vendas de peças de tricô. sempregados. Nesse contexto, indústrias ções presentes e às futuras o privilégio de cípio se desenvolveu e construiu seu lega- Além disso, a desvalorização do po- no bairro favoreceriam moradores que tra- respirar ar puro e desfrutar desse imenso do histórico e cultural, constituído de boa der de compra, devido à crise alojada em balhariam perto de suas casas e trariam mar verde. Assim, em meio a tantas rique- culinária e também de construções e mo- âmbito nacional, tem prejudicado os ven- emprego a quem não tem. zas naturais, poderíamos dizer, parodian- numentos que valorizam a fé e os costu- dedores. Conforme informações da revis- Em minha opinião, é indiscutível que a do Gonçalves Dias: “Minha terra tem be- mes dos imigrantes europeus que fazem ta “Exame”, nos últimos cinco anos a ren- cidade precisa de novos nichos econômi- lezas e emprego também há!”. parte da história monte-sionense. Devido da dos trabalhadores chegou a cair 16%; cos e maiores investimentos para seu pro- a isso, turistas de várias regiões do Brasil desse modo, custos adicionais são corta- gresso, pois emprego já não há, advindo são atraídos para a cidade. dos, cada vez mais, da lista de despesas das malharias como era antes. Uma boa Além dos atrativos turísticos, o princi- dos brasileiros. alternativa seria o turismo rural, a fim de pal fator que traz pessoas à cidade é o co- Diante da questão, surge um conflito usufruir e valorizar as belas paisagens da mércio de roupas, pois a base econômi- de opiniões sobre as possíveis soluções, cidade. Por meio de trilhas, passeios e es- ca do município está, em sua grande par- pois há quem defenda a necessidade de portes de entretenimento, assim como é te, na confecção e venda da moda tricô, a instalar indústrias – de base ou de bens de feito em várias fazendas e sítios do municí- qual é fomentada por mais de mil malha- consumo – na cidade. Entretanto, outros pio vizinho, Águas de Lindóia, onde muitos rias, responsáveis por gerar empregos para acreditam que tal medida pode causar da- turistas que vêm a Monte Sião se hospe- a maioria da população. Tal fato concedeu nos ao meio ambiente, já que a cidade pos- dam, em razão das variadas opções de la- a Monte Sião, em 1973, o título de “Capital sui uma vasta área verde e muitas nascen- zer oferecidas por lá. Dessa forma, além de Nacional do Tricô”. tes. Então, estaria Monte Sião preparada atrair turistas, que terão mais uma opção Professora Carolina Nassar Gouvêa No entanto, nos últimos anos, os cida- para receber indústrias? Segundo o pre- de lazer em nossa cidade, a população da EE Provedor Theofilo Tavares Paes, dãos têm sido prejudicados pelo desem- feito da cidade, José Pocai Júnior, estu- zona rural também será beneficiada, pois o Monte Sião-MG

226 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 227 O PÃO NOSSO DE CADA DIA PODE até por um leigo no assunto, com uma sim- fato de, nos últimos anos, os índices de ESTAR ENVENENADO ples observação da paisagem. pessoas com câncer, em nossa região, te- Sob outro ponto de vista, o produtor rem aumentando consideravelmente. Este Fernanda de Souza Fagundes Gerson Rugiski defende que os agrotóxicos ano, na cidade confrontante a Rebouças, são eficientes no combate a fungos, doen- instaurou-se um hospital para tratamento ças e pragas que atacam as plantas, e é to- exclusivo de doenças oncológicas, devido A história de minha querida Rebouças Em meio a uma discussão nacional so- talmente contrário ao cultivo de produtos or- à grande incidência de casos, o que me faz conta-me que, no passado, os tropeiros bre o assunto, em que se impôs um novo gânicos, que, segundo ele, produzem pouco defender que o preço pago para a produ- passavam por aqui para descansar da lon- marco regulatório para a avaliação de risco e têm um aspecto não muito atrativo ao con- ção de alimentos em grande escala está ga viagem que os levava até Minas Gerais de alguns agrotóxicos, bem como a libera- sumidor; alega também que para o desen- sendo alto demais. Afinal, qual a coerência e São Paulo, ao conduzir o gado, e habitua- ção de outros, reacendeu-se uma antiga volvimento de um agroquímico exigem-se em preocupar-se tanto com a quantidade ram-se a fazer paradas para beber água. polêmica entre os moradores. Os grandes anos de estudo para se chegar a uma fórmu- da produção se ela pode estar contami­ Assim, quando nasceu a comunidade, ela latifundiários defendem que esses produ- la, que seja imune à saúde dos seres vivos. nada? É o bem comum que está sendo já possuía um nome “Poço Bonito”, home- tos são essenciais à prosperidade de suas Concordo que a produção de alimen- priorizado? Infelizmente, julgo que não. nageando o reduto de água extremamen- lavouras, enquanto outros habitantes preo- tos é essencial ao país. O Paraná destaca-se Se os tropeiros precisassem voltar a te límpida. Mas o tempo impassível trou- cupam-se com a qualidade de vida que po- por ser um grande exportador de alimentos, beber água em minha comunidade, certa- xe consigo outra realidade, evidenciada na de estar sendo deteriorada. atividade responsável por parte significativa mente não mais avistariam o poço boni- placa afixada, este ano, na entrada da ci- O principal argumento dos defensores do PIB do Estado. Preocupo-me, entretan- to, mas talvez enxergassem alguma poesia dade: “Região em perigo! Cada pessoa es- dos agrotóxicos é que seu uso aumenta a to, com a quantidade de agrotóxico presen- no velho pinheiro sobrevivente, em meio a tá consumindo o equivalente a 14 litros de produtividade por hectare e, consequente- te em cada produto e defendo a criação de uma lavoura que parece infinita, com seus agrotóxicos todo ano”. mente, possibilita reduzir as áreas desmata- políticas públicas que valorizem o homem galhos erguidos aos céus, como em prece, Em pesquisa realizada em nossa região, das para plantio. Porém, vejo, com tristeza, do campo que produz alimentos livres de para que os homens percebam, a tempo, no mês de junho, divulgada pelo jornal “Fo- que nossas matas nativas, inclusive as arau- veneno. Questiono-me se todo lucro visa- a importância de cultivar a terra com res- lha de Irati”, foi constatado um elevado ní- cárias, estão sendo substituídas por grandes do pela minoria de produtores detentores ponsabilidade, a fim de garantir a susten- vel de pesticidas na água que chega às plantações, o que evidencia que os órgãos de muita terra e por empresas que são pri- tabilidade do planeta. casas localizadas no quadro urbano. Além de fiscalização, Ibama e IAP, não estão con- vilegiadas pela venda de agroquímicos não disso, na área rural, onde nossos pais rela- seguindo conter o fluxo acelerado de des- afetará a longo (ou nem tão longo) prazo a tam que, outrora, podiam, tranquilamente, matamento, destoca e queimadas, e que as sustentabilidade do lugar onde vivo e a vida beber água pura dos “olhos d’água”, perce- punições se mostram ineficazes. Lamentá- de todos seus habitantes. Professora Maria Silmara Saqueto Hilgemberg bo que se torna cada vez mais exacerbado vel! Os recursos naturais estão sendo, por- Particularmente penso ser consequên- EEEFM Faxinal dos Francos, o uso de agrotóxicos. tanto, extintos, fato facilmente comprovado cia do uso em demasia dos agrotóxicos o Rebouças-PR

228 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 229 “CHUTA QUE É MACUMBA” os termos utilizados de forma pejorativa tos, o que acarreta na volta da ocultação são usados para a diversão entre amigos e da sua cultura. Naira Danyelle de Souza Santos não são motivos para ofensa. Há também “Junqueiro, terra da paixão”, terra do um percentual que se coloca como neu- povo “apaixonado”, que deve se posicio- tros e não discute sobre o assunto. Entre- nar contra o que afeta a essência de seu “Junqueiro, terra da paixão”, paixão de escritor Carlos Bernardo Gónzales eviden- tanto, não é vista neutralidade ou diversão slogan, posicionamento esse, do Gover- Cristo, paixão do povo. Paixão é um senti- cia um dos malefícios sociais adjuntos da quando, durante os cultos nos terreiros, a no local e da população. O Governo deve mento intenso e profundo que, de alguma intolerância. Apesar do fato supracitado, a população se incomoda e critica, rompen- posicionar-se através do investimento em forma, está relacionado com o acolhimen- sociedade a qual eu pertenço – Junquei- do com o que está escrito no inciso VI do oficinas e eventos que preguem a liberda- to. Sendo assim, o slogan da cidade é atra- ro, cidade pacata do interior de Alagoas – Art. 5o da Constituição Federal, que as- de de expressão e a união das religiões e tivo, mas a realidade distancia-se do que venda os olhos para a problemática e isso segura liberdade de crença aos cidadãos. promover a maior visibilidade dessa popu- está escrito nas placas das entradas da ci- é explicável, pois o conjunto social apre- Ademais, segundo dados do Ministé- lação, que por sua vez, deve posicionar- dade. A terra não é da paixão quando es- senta raízes preconceituosas. Outrossim, rio dos Direitos Humanos (MDH), no Bra- se através da disseminação da igualdade e tamos a discutir sobre as religiões de ma- historicamente os indivíduos têm tendên- sil a cada quinze horas é realizada uma de- do respeito, buscando o abandono de suas trizes africanas. Ainda, frases como “chuta cia a seguir o que conhecem e a criticar o núncia referente a intolerância religiosa, e raízes preconceituosas. Assim, será possível que é macumba”, “oferenda de Iemanjá” e que supõe conhecer e isso aplica-se à re- 39% dos casos estão relacionados com que todas as religiões alcancem a igualda- demais frases inclusas no dicionário ofen- ligião. A nossa história é altamente marca- as religiões de matrizes africanas. Apesar de e a mesma visibilidade perante a socie- sivo de grande parcela da população de- da por episódios nos quais os negros foram disso, é provável que municípios como o dade, e as religiões de matrizes africanas se- monstram que a comunidade “apaixonada” obrigados a ocultar sua própria religião. meu não possuam alto índice de denún- jam vistas como algo comum e inofensivo, utiliza de forma pejorativa e preconceituo- Além disso, nota-se que denominações cias, pois além da falta de informação, a como sempre foram. sa termos que para um grupo religioso re- cristãs, em massa o catolicismo, preocu- maioria das ofensas são generalizadas e às presenta sua história. Além disso, o mes- param-se em disseminar histórias, não ve- vezes não explícitas, como as festividades mo percentual populacional que se pres- rídicas, que transformaram as religiões de que ocorrem na cidade nas quais são con- ta ao papel de “julgadores sociais” relata matrizes africanas, como a umbanda, em vidados padres e pastores e não os sacer- que não existe preconceito em suas falas algo que se deve temer e motivo de vergo- dotes da umbanda ou do candomblé. Ou e que o desconforto causado pelos comen- nha para os que a praticam. como os investimentos em shows católicos tários não passam de “mimimi”. Esse fato A posteriori, de acordo com uma par- e protestantes e a falta deles em festivida- evidencia que o preconceito está enraiza- cela populacional “não existe intolerân- des dos terreiros. Diante dos fatos citados, do culturalmente. cia religiosa no município; aliás, trata-se nota-se que os seguidores de religiões de “A intolerância fecha os caminhos da de um local pequeno, e coisas assim não matrizes africanas não possuem visibilida- Professor Ismaeli Galdino de Oliveira compreensão [...]”, esse trecho da frase do acontecem aqui”, outra parte acredita que de e são vítimas de julgamentos incorre- EE Padre Aurélio Góis, Junqueiro-AL

230 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 231 AMANHECEU, POR QUE AINDA entre as crianças, conforme explicou a pró- tentes. É importante também um trabalho ESTÁ ESCURO? pria Secretaria. Muitos moradores culpam de conscientização de todos os envolvidos a fumaça por essas doenças que aparecem para que a saúde e a vida sejam priorida- Tailane da Rocha Sousa nessa época e chegam a afirmar que a pa- des e não apenas um suposto lucro. Ou- lha queimada, em virtude do uso exces- tra alternativa seria a busca de parcerias sivo de agrotóxicos nas lavouras de ca- entre associações de produtores e outros Vivo em uma fazenda simples, peque- se utiliza somente a palha como combus- fé, também estaria contaminada. Tal afir- órgãos, como Prefeitura, Idaf, Incaper, na e de povo humilde, no interior de Go- tível. Além disso, não estava sendo respei- mação carece de um estudo aprofundado Câmara de Vereadores, para a instalação vernador Lindenberg. Apesar de possuir tada a distância mínima das rodovias”. Em para comprovar ou não a sua veracidade. de mais secadores, de forma a atender a várias atividades agrícolas, a economia es- consequência, uma grande quantidade de De qualquer forma não deixa de ser um fa- alta produção sem a necessidade da se- tá baseada no café, cuja colheita garante fumaça polui o ar. to preocupante. cagem noturna, o que contribuiria para o sustento das famílias. Entretanto, no pe- Na alvorada, nesse período de inver- Os que defendem o uso da palha, prin- a redução da excessiva fumaça produzi- ríodo da safra – entre abril a julho – uma no, a fumaça não se dissipa, misturando- cipalmente os donos de secadores, afir- da à noite. Assim, quem sabe nas manhãs fumaça encobre todo o ambiente causa- se à neblina. O veludo negro envolve toda mam que a prática é necessária porque re- frias poderíamos respirar a natureza que da pela queima indiscriminada da palha do a região, dificultando a visibilidade, prin- duz custos, uma vez que o preço do café nos cerca e o único cheiro seria o do ca- café nos secadores. cipalmente a dos motoristas que trafegam está muito abaixo das condições mínimas fé quentinho aquecendo o nosso dia e tra- Sabe-se que a determinação legal nas rodovias e estradas secundárias que para a produção. A “casca” do café é um zendo o bem-estar que tanto almejamos. permite a queima da palha do café, como cortam o município, colocando em risco subproduto da própria produção, por ser combustível nos secadores, apenas duran- a sua vida e a dos que transportam. É um um resíduo extraído no processo de bene- te o dia. Mas, ao que tudo indica e é fla- verdadeiro caos. Há dias em que fica im- ficiamento dos grãos, não sendo necessá- grante, aqui no município, há queima da possível a locomoção. Os que trabalham rias despesas adicionais. Segundo eles, se- palha também durante a noite, causando em outras localidades reclamam dos atra- car apenas com a lenha elevaria custos que muitos transtornos à população; prática sos constantes a que são submetidos. afetariam diretamente o produtor. Penso com a qual não concordo. Outra situação preocupante é em re- que nunca a questão econômica deve es- Os indícios são de que alguns seca- lação à saúde da população que todas as tar acima da saúde e da vida das pessoas. dores funcionam de forma irregular. De manhãs respira a fumaça. Ainda que a Se- Em suma, é preciso compreender e acordo com o engenheiro agrônomo Alis- cretaria Municipal de Saúde não disponha cumprir a instrução normativa publicada son Rodrigues do Idaf (Instituto de Defesa de dados sobre as consequências do ex- pelo Idaf, que impede que os secadores fa- Agropecuária e Florestal do Espírito San- cesso de fumaça, é certo que no período çam o uso da palha em horários inadequa- Professora Fernanda Ferreira Moronari Leonardelli to): “O processo de secagem estava sen- há um aumento significativo dos casos de dos. Para isso é imprescindível uma fisca- EEEFM Irineu Morello, Governador do feito à noite, o que é proibido quando doenças crônicas respiratórias, sobretudo, lização mais rigorosa dos órgãos compe- Lindenberg-ES

232 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 233 VERDE, AMARELO, AZUL E PRETO é justificado por ser a atividade petrolífe- mentação dos indígenas e do povo ama- ra uma das que oferecem graves riscos de paense como um todo. Eduardo Patrick Penante Ferreira acidentes ambientais que estão além das Acredito que deva ser revisada e veta- normas regulamentadoras, conforme es- da a decisão de exploração do solo ama- clarece Francisco Ponte Júnior, em artigo paense para realização de estudos sobre Estando localizado no extremo norte sa apresentada pela empresa Total, vence- científico publicado na revista “Tecnolo- gás e petróleo, já que as pesquisas apre- do Brasil, o Amapá possui um dos maiores dora do leilão. Apesar disso, continuam-se gia”, em 2008. O pesquisador exemplifi- sentadas se mostraram insuficientes, con- parques ecológicos do mundo. Segundo o ações que querem manchar com óleo nos- ca isso referindo-se a acidentes que ocor- forme afirmou o Ibama. Ao que tudo indi- site “Logic Ambiental”, o Estado possui 62% sa Amazônia, o que acendeu uma polêmica reram com plataformas da Petrobras, na ca, há um interesse capital na exploração do seu território preservado por um regime na sociedade amapaense: uns acreditam baía da Guanabara e em Araucária, além da Amazônia e não se consideram os ris- de proteção especial, cujas características que esses estudos sinalizem progresso e do naufrágio da Plataforma P-36, também cos ambientais, em um dos estados mais naturais incluem, além da presença litorâ- prosperidade; outros, no entanto, temem da estatal. preservados do Brasil. Apesar dos diversos nea do maior rio de água doce do mundo, um grave prejuízo ambiental. Ilustra, assim, o quão perigoso são os benefícios que poderiam advir, não paga- o Amazonas, vasta e diversificada fauna e De um lado, apoiadores como Tarcísio problemas ambientais no mundo. Conse- riam os custos e as consequências negati- flora, riqueza em minérios diversos e a pre- de Freitas, ministro da Infraestrutura, ar- quentemente soma-se a isso o surgimento vas que, com certeza, viriam se for explo- sença de combustíveis fósseis, como petró- gumentam citando a geração de emprego de doenças e o aumento da mortalidade, o rado o petróleo na região Amazônica. De- leo e gás natural. e renda para famílias amapaenses, inves- que é rebatido por apoiadores que apos- vemos prezar por nossa cultura, pelos in- A especulação sobre esse potencial timento em infraestrutura e consequente tam na segurança e confiança da empresa dígenas e pela nossa Amazônia, a fim de energético fez com que a Agência Nacio- desenvolvimento do Estado. Os defensores francesa Total. que se possa haver um futuro mais sau- nal de Petróleo leiloasse catorze blocos do desse pensamento afirmam que tal recur- Segundo o professor de Geografia dável e limpo para as próximas gerações. território amapaense, que compreende a so deve ser explorado antes que o seu va- Amapaense, Rodrigo Bandeira, a explora- Ainda podemos nos mobilizar e, juntos, costa do Estado do Amapá e municípios lor diminua perante o mercado mundial e ção desses recursos, mesmo a uma distân- evitar os impactos ambientais da ganân- como Amapá, Oiapoque e Calçoene. O ob- que a não utilização dele condenaria o Es- cia considerável da costa fluviomarítima, cia capitalista. jetivo desse leilão é que essas áreas sejam tado ao subdesenvolvimento. podem causar problemas, como a amea- perfuradas para identificar e avaliar a exis- Por outro lado, de acordo com o pro- ça de perda ou extinção dos recifes de co- tência de reservas de gás e petróleo, por fessor Jackson Santos, da tribo Karipu- rais descobertos recentemente na Costa meio de estudos ambientais, para que se na, em reportagem do portal “G1 Amapá”, Atlântica do Estado do Amapá; afetação possa explorar tão valioso bem. Entretan- tribos indígenas das etnias Uaçá, Galibi e da zona de mangues, provocando a mor- to, o último estudo feito sobre o assunto Jaminã temem a contaminação por óleo, te de peixes e outras espécies animais que foi rejeitado pelo Ibama, que afirma não re- oriunda de possíveis vazamentos, caso a podem vir a se intoxicar pelos fluídos libe- Professora Maria Cely Silva Santiago conhecer fundamento científico na pesqui- exploração venha a acontecer. Esse temor rados; e a ocorrência de problemas na ali- EE Sebastiana Lenir de Almeida, Macapá-AP

234 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 235 RETROCESSO CULTURAL: TUDO masculinos com base nos seus desejos car- de resistência, o grupo Nossa Cultura Tem COMEÇA COM “UM PASSINHO”? nais, tratando a mulher como objeto, co- Som foi criado para homenagear as mes- mo no trecho: “Arrastei ela pro meu carro, tras Lia da Ciranda, Anjinha e Totinha do Rayana do Nascimento Cruz dei um trato e um amasso”, dos cantores Coco e também resgatar esse valor cultu- Shevchenko e Elloco. Essa cultura de tra- ral que ao longo dos anos vem perdendo tar a mulher como propriedade masculi- espaço para os produtos da globalização. Um estado que se orgulha por de suas Para Ricardo Silva, integrante de um na enfraquece o movimento feminista que É perceptível que as ideias fixas só veias correr um sangue cultural extrema- dos grupos de passinho da Ilha, o impor- em Itamaracá ainda é muito pequeno devi- crescem quando se fala em ruptura de tra- mente rico que eclode na voz da preta ci- tante mesmo é ser reconhecido, pois junto do a pensamentos patriarcais e machistas. dição, mas quando são cheias de histórias, randeira Lia de Itamaracá, nas rodas do co- com o brega funk, esse novo ritmo tem ti- Felizmente já há grupos que relutam para é difícil ficar ao lado de uma cultura que co, na xilogravura de J. Borges, na arte ar- rado muita gente do tráfico. O jovem ainda que suas músicas fujam das características tem pontos negativos, ofensivos para quem morial do mestre Suassuna, no fervor do acrescenta que poderia ser mais um na Pe- negativas, mas continuam sendo vítimas está fora do movimento e muitas vezes age frevo e na apoteose do maracatu, atual- nitenciária Barreto Campelo, mas preferiu o de críticas, talvez por pertencerem a um por discriminação. Acredito que o passi- mente tem sido invadido por uma nova lado da arte e se deu uma nova chance. Sem movimento de periferia ou pela frequen- nho não seja um retrocesso propriamente febre popular – o passinho – que tomou dúvida, um movimento artístico como esse te presença de crianças nas disputas que, dito, pois é fato que está ajudando a vida conta do cenário artístico pernambuca- muda a vida de um ser humano, pois inde- para muitos ilhéus, demonstra a substitui- dos jovens nas comunidades de Itamaracá. no, nos fazendo refletir: – É um retroces- pendente de gênero, classe social, etnia ou ção da antiga dança das cadeiras infantil Mas para ser reconhecido como mobiliza- so cultural? orientação sexual, a arte sempre transforma. pela “novidade” do brega funk e a igualda- ção, precisa de uma “reforma” sem deixar Na ilha de Itamaracá há as “batalhas Assim, como arte vinda dos menos favoreci- de da ciranda pela rivalidade das batalhas. vestígios de preconceito, machismo e con- do passinho” que reúnem grupos para dis- dos, o passinho também é uma mobilização É mesmo um retrocesso? teúdos eróticos que infelizmente são forte- putas de coreografias. Esse movimento vi- social. É preciso que seja reconhecido, pois A Ilha de Itamaracá é a terra da ciran- mente consumidos pela indústria. rou um símbolo de resistência da periferia veio despir o preconceito da cultura perifé- da e durante anos vem sofrendo uma des- e um grito de identidade na vida dos jovens rica que desde sempre é excluída da socie- valorização cultural e o passinho, de certo que fazem parte dessa cultura de massa, dade, como o rap, o grafite e outras culturas modo, chega a ameaçar a cultura itamara- pois para muitos torna-se um muro de con- que fazem parte das comunidades. caense, pois grande parte da população jo- tenção contra a violência e as drogas, já Por outro lado, muitas letras de músi- vem não dá mais voz e espaço às belas tra- que muitas vezes os integrantes dos grupos cas não são nenhuma composição da Bia dições da Ilha que estão a cada dia sendo ficam horas ensaiando, criando coreogra- Ferreira ou do Caetano Veloso e contri- esquecidas. Como exemplo temos a “sam- fias e assim ficam longe do contato com a buem com a cultura do machismo que es- bada de coco” que ocorria na praia da co- Professora Tatiana Cipriano de Oliveira hostilidade e a perversidade que existem, tá enraizada na sociedade. E, é claro que lônia de pescadores e acabou sendo inter- EREM Alberto Augusto de Morais Pradines, infelizmente, nas comunidades da Ilha. são sexistas, pois abordam os interesses rompida por falta de verba. Como símbolo Ilha de Itamaracá-PE

236 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 237 APRENDIMENTOS ATERRADOS fessor de Ecologia da Universidade Esta- tos, prejudicando a saúde e o bem-estar À BEIRA-MAR dual do Ceará, causará desequilíbrios na da população. temperatura e bolsões de calor na região. Concordo, portanto, com a douto- Rúbia Ellen Campelo Costa A prefeitura de Fortaleza caracterizou ra em Ciências Marinhas, Liana Queiroz, o projeto como de “utilidade pública”, pois, quando ela afirma que “é imensurável a de acordo com o órgão, além de promover real magnitude do impacto [causado pelo Com verdes mares e águas mornas, de saúde precários e escolas com péssima um aumento no turismo da cidade, tam- aterro] em toda biodiversidade [...]”, uma Fortaleza, a Terra da Luz, tem belezas infraestrutura. O temor da população cres- bém irá prover à praia local uma reestrutu- vez que essas consequências negativas são muito apreciadas em todo o país, sendo ce ao relembrar casos como o do Aquário ração da faixa de areia que vem sofrendo, certas e as atitudes para revertê-las nem elas retratadas, por exemplo, na canção do Ceará, que nasceu a partir da alegação ao longo dos anos, um estreitamento cau- sempre se concretizam. Além das implica- de mesmo nome – “Fortaleza” –, compos- de que iria incrementar o turismo cearen- sado pelo processo de erosão. Os defenso- ções ecológicas, acresça-se que a nature- ta pelo cantor cearense Fagner. Porém, al- se, entretanto as obras foram paralisadas res da obra afirmam também que a requali- za tem muito a nos ensinar, como afirma gumas belezas se encontram comprometi- por falta de verba e, hoje, nem Governo ficação trará urbanização e modernização o poeta Manoel de Barros, em seu poema das devido a projetos recentes, como a re- nem iniciativa privada querem mais assu- necessárias à área, aumentando até mes- “Aprendimentos”, ao dizer que “não tinha qualificação de um dos principais pontos mir a finalização da obra, restando à po- mo o comércio da região, pois irá organi- as certezas científicas, mas que aprende- turísticos da cidade: a Avenida Beira-Mar. pulação apenas frustração e indignação. zá-lo e restabelecê-lo, contribuindo para a ra coisas di-menor com a natureza”, coisas Esse fato está preocupando a comunidade Em acréscimo, constata-se que o ater- economia da cidade. estas que não dizem respeito a interesses pelo gasto exorbitante da obra e os male- ramento do mar preocupa também am- Em contrapartida, acredito que tal econômicos, mas à teia da vida. fícios que sofrerão a fauna e a flora locais. bientalistas e pesquisadores, como o pro- avanço na urbanização de um setor belo por Para um litoral bonito, antes de tudo, Visando aumentar o turismo da região, o fessor do Instituto de Ciências do Mar, da si desfoca a prefeitura de problemas mais deve-se preservá-lo, pois, talvez assim, projeto de requalificação da avenida mais Universidade Federal do Ceará, Marce- pertinentes que afetam a população, exer- os verdes mares do Mucuripe e a Aveni- turística da cidade, proposto pela prefei- lo Soares, que afirma que os impactos de cendo, assim, uma política apelidada co- da Beira-Mar possam encher os olhos dos tura, consiste em aumentar 80 metros a grande magnitude podem causar o soter- mo “pra turista ver”. Enquanto isso, áreas habitantes e turistas de Fortaleza pela be- faixa de areia (mar adentro) do aterro. Ele ramento dos recifes de corais, além de tra- periféricas da cidade sofrem pelo desca- leza natural, e não artificial, de suas praias. está orçado inicialmente em 68 milhões, o zer prejuízos ao habitat do boto cinza e da so em vários espaços públicos, como es- que causa revolta em uma grande parce- tartaruga verde, espécies que se alimen- colas e postos de saúde, além da ausên- la da população por ver tanto dinheiro pú- tam na região. Somando-se ao prejuízo da cia de saneamento básico na maioria das blico empregado em uma obra que pode fauna, também ocorrerão danos à flora e, comunidades que se encontram mais dis- trazer, inclusive, prejuízos ambientais, en- indiretamente, à população, já que o pro- tantes da região considerada “nobre”, co- quanto outras necessidades básicas da po- jeto retirará quarenta árvores do calçadão, mo, por exemplo, o bairro Jangurussu, que Professora Suziane Brasil Coelho pulação são negligenciadas, como postos o que, de acordo com Oriel Herrera, pro- convive com a poluição e esgotos expos- EEM Governador Adauto Bezerra, Fortaleza-CE

238 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 239 DE “JOIA DO VALE” Nica (CAV), de Turmalina, demonstram o A “DESERTO VERDE” contrário. Esses estudos apontam que as nascentes da região foram muito prejudica- Tainan Lopes da Silva das pelo desmatamento da vegetação na- tiva para o cultivo de eucalipto, haja vis- ta que ele apresenta crescimento rápido e Carinhosamente conhecida como a que o eucalipto gera emprego, renda e ri- grande demanda de água, o que afeta os “Joia do Vale”, Turmalina está localizada queza para nossa região, mas grande par- lençóis freáticos, assim como o solo. no Alto Vale do Jequitinhonha, interior do te da população, sobretudo a rural, criti- Por isso, comungo da opinião de que Estado de Minas Gerais, em uma região ca bastante suas ações, pois considera ne- os órgãos ambientais devem intensificar a que apresenta muitas grotas, cercada por gativos os resultados sociais e ambientais fiscalização para que haja a redução do cul- áreas de nascentes, córregos e rios, os desse plantio. tivo de eucalipto e, até mesmo, a proibição quais vêm secando há algum tempo. Esse De acordo com um estudo realizado de plantios contínuos em grandes exten- problema tem afetado bastante a popula- por Walter Viana, responsável pela Fisca- sões de terra. Vale ressaltar a importância ção turmalinense, pois, como é caracterís- lização Ambiental na Superintendência de de grupos de resistência que se formaram, tico de lugares pequenos, muitas famílias Meio Ambiente e Desenvolvimento Susten- nos últimos anos, contra esse sistema pre- precisam utilizar a água desses córregos tável (Supram) do Norte de Minas e autor datório que as empresas de reflorestamen- para a agricultura familiar. Embora haja di- de tese sobre as consequências da mono- to têm aplicado em nossa região. vergências, estudos apontam ser a mono- cultura de eucalipto na região, os impactos Embora pareça ser um problema difí- cultura do eucalipto a principal causa des- ambientais são desastrosos, uma vez que os cil de ser resolvido, visto que essas empre- se problema ambiental. eucaliptos estão desertificando o solo e di- sas também geram empregos para a popu- Um recente estudo realizado pelo tur- minuindo a biodiversidade. Além disso, há lação, o aumento significativo da plantação malinense Clebson Souza de Almeida, que um questionamento sobre o elevado índice de eucalipto não pode ser ignorado, sob pe- se transformou em dissertação de mestra- de doenças respiratórias e oncológicas, que na de Turmalina, a “Joia do Vale”, se trans- do, denuncia a situação de caos ambien- podem estar sendo causadas pelo uso exa- formar, literalmente, no “Deserto Verde”. tal que vive nosso município, haja vista que gerado de agrotóxicos nas monoculturas. essa região abriga uma das maiores flores- Como argumento, as empresas alegam tas plantadas de eucalipto do mundo. Em- que agem com responsabilidade social e presas reflorestadoras que vieram pra cá, atuam de forma a garantir proteção am- Professora Paloma Carlean como a Acesita, Aperam, Projeto Carvalho, biental, porém pesquisas realizadas pelo de Figueiredo Souza Floresta Minas, entre outras, argumentam Centro de Agricultura Alternativa Vicente EE Professora Edite Gomes, Turmalina-MG

240 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 241 A BUSCA DO “SONHO BRASILEIRO” muitos imigrantes possuam diplomas de grantes europeus, e carrega preconceitos DIVIDE OPINIÕES graduação, eles não são reconhecidos no enraizados na cultura brasileira. Ainda este Brasil, o que, aliado à dificuldade em co- ano, o site de notícias “Portal Folha Regio- Luiza Bortoluzzi Casali municar-se em português, os impede de nal” relatou o episódio em que um haitia- atuar na área em que se especializaram no no, que precisava abrir uma conta bancá- Haiti. Por isso, lhes resta ocupar vagas de ria, foi impedido de entrar em uma agên- A questão migratória no Brasil tem no Haiti. Em contrapartida, grande parte trabalho que não exigem qualificação pro- cia do Banco do Brasil, mesmo após retirar sido destaque nos últimos anos em virtude das mulheres enfrenta o desemprego. A fissional, recebendo, consequentemente, os sapatos com biqueira de aço. O episó- do grande fluxo de imigrantes refugiados indústria caçadorense, que oferece gran- baixos salários. dio de humilhação e constrangimento ge- que entram no território nacional, entre de número de vagas, prioriza a mão de Somado a isso, há ainda pessoas que rou polêmica, principalmente, por parte de eles, haitianos, em virtude do terremoto obra masculina. Essa é uma das razões, acreditam que os imigrantes trazem pro- pessoas que foram contra as atitudes dos que atingiu o país caribenho em 2010. Se- sem falar no preconceito étnico-racial, blemas, como a ocupação de vagas de seguranças do banco. gundo a ONU, até o fim de 2016, foram re- pelas quais são limitadas as oportunida- emprego de moradores locais e o aumen- Diante do exposto, destaco que os gistradas 67 mil autorizações de residência des para mulheres haitianas no mercado to da violência urbana. Em relação ao pri- imigrantes haitianos podem, sim, contri- no Brasil, e Caçador (SC) é uma das mui- de trabalho. meiro caso, há justamente um movimen- buir para a sociedade, desde que sejam tas cidades brasileiras que recebem gran- Uma coisa é certa: todos enfrentam to inverso, pois, conforme demonstrou a devidamente acolhidos e tenham seus di- de número de haitianos. O fator atrativo é dificuldades para adaptar-se à cidade. A historiadora Lená Menezes (artigo “Os ou- reitos fundamentais garantidos. A migra- a presença de uma série de indústrias que mais evidente diz respeito à comunicação. tros somos nós”), a imigração, desde o final ção é um fenômeno mundial e não pode- ofertam vagas de trabalho na cadeia pro- Os idiomas oficiais do seu país de origem do século XIX, impulsionou o crescimento mos negar aos estrangeiros o direito de dutiva sem necessidade de qualificação são o francês e o crioulo haitiano que, ape- econômico no Brasil. Já em relação ao se- buscar uma vida melhor. Basta exercitar a profissional. A vinda dos imigrantes, con- sar de ser uma língua originada do latim, gundo caso, não há evidências empíricas empatia, porque poderia ser qualquer um tudo, divide opiniões entre os moradores assim como o português, é muito distinta. que demonstram índices de violência pro- de nós nessa situação. Além disso, não po- de Caçador no que diz respeito ao seu im- Logo, o aprendizado da língua por si só é vocados pelos estrangeiros. demos esquecer que o sul do país faz par- pacto na cidade. difícil. Para ajudar a superar essa barreira, Como vimos, essas são ideias que têm te desse processo migratório desde o iní- Algumas considerações devem ser fei- o IFSC – Campus Caçador disponibiliza, base no medo do desconhecido. O simples cio de nossa história. Para mim, já não é tas a fim de compreender a situação em semestralmente, um curso de Português fato de perceber a presença de pessoas uma questão de opinião, é uma questão de que se encontram os haitianos que vie- para estrangeiros que este ano contou que conversam em um idioma que não é o ação e de respeito aos direitos humanos. ram para Caçador. A maioria dos homens com cerca de 80 participantes, dividi- português causa estranhamento. Além dis- costuma trabalhar no ramo industrial, re- dos em duas turmas. É um número gran- so, infelizmente, existe a questão do racis- cebendo baixos salários e enviando par- de, mas percebe-se que a demanda é ain- mo velado. Grande parte da população ca- Professor Ricardo de Campos te da renda para a família que permanece da maior. Outro problema é que, embora çadorense é branca, descendente de imi- IFSC – Campus Caçador, Caçador-SC

242 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 243 ESCOLA SEM PARTIDO: AVANÇO OU RETROCESSO DA EDUCAÇÃO LOURENCIANA?

Laiana Miritz Vasconcelos

O município de São Lourenço do Sul, possam discutir sobre situações de senso aprendizagem e do pluralismo de ideias Em vez disso, a escola deveria se preocu- conhecido como “Pérola da Lagoa”, es- crítico que merecem debates e exposição no ambiente acadêmico como prática de par com o nível de desempenho dos alu- tá localizado no sudeste gaúcho e con- em sala de aula. doutrinação política e ideológica, é de nos. Ajudar, principalmente, a pensar por ta com pouco mais de 44 mil habitantes. Devemos levar em consideração que grande relevância salientar que não exis- si e formar suas próprias opiniões é a única Infelizmente, assim como outras cida- projetos como esse, por se tratar de edu- te um ensino neutro. A escola é um lugar maneira de evitar a doutrinação. des, teve a opinião pública envolvida no cação, sempre chamam a atenção da po- onde se deve defender a pluralidade e o polêmico projeto de lei “Programa Esco- pulação. Segundo defendem alguns, é de debate de ideias, caso contrário, segun- la sem Partido”. grande importância que as crianças e os do o professor Clovis Gruner: “Não forma- Em 2004, preocupado “com o grau de adolescentes não sejam influenciados mo- rá indivíduos mais capazes de lidar com contaminação político-ideológica das es- ral, religiosa e politicamente pela escola, o mundo, que é complexo. As contradi- colas brasileiras”, o procurador do Estado pois isso é dever da família. ções devem aparecer para formar cida- de São Paulo, Dr. Miguel Nagib, criou o Porém, devemos lidar com a realidade, dãos mais tolerantes”. “Movimento Escola sem Partido”, afirman- pois diversas pesquisas afirmam que ape- Outro ponto relevante que deve ser do que escola é lugar de aprender, não de nas 12% dos pais se comprometem com a discutido, é o papel do professor na for- fazer política. educação dos filhos, o que comprova que mação desse cidadão. Sendo ele um Assim, um grupo de vereadores de a comunidade escolar tem sim, grande res- educador e não um mero transmissor de São Lourenço do Sul, simpatizantes das ponsabilidade na educação dos indivíduos. conteúdos, é inadmissível que não possa ideias do movimento, implementou o pro- Ademais, apenas a educação de casa não participar da formação crítica do aluno, jeto de lei “Escola sem Partido” no municí- prepara a criança para conviver com o di- pois, segundo o filósofo Immanuel Kant: pio. Segundo justificativa da proposta: “É ferente, ela precisa da escola para mostrar “O ser humano é aquilo que a educação necessário e urgente adotar medidas efi- a real situação política, econômica e social faz dele”. cazes para prevenir a prática da doutrina- em que vivemos. Portanto, do meu ponto de vista, uma ção política e ideológica nas escolas [...]”, Tendo em vista que o projeto de lei lei para limitar o que pode ou não pode Professora Regina Neutzling Tessmann impedindo, dessa forma, que educadores trata a liberdade de crença religiosa, de ser debatido na sala aula é um retrocesso. EEEM Cruzeiro do Sul, São Lourenço do Sul-RS

244 — ARTIGO DE OPINIÃO ARTIGO DE OPINIÃO — 245 Documentário

rande novidade desta edição da Olimpíada de Língua Portuguesa, o gênero Documentário instigou estudantes de 1o e 2o anos do Ensino Médio a compor Gnarrativas audiovisuais sobre o lugar onde vivem. Com isso, as múltiplas linguagens que já atravessam o cotidiano dessa geração chamada de “nativos digitais” passam a fazer parte do processo de ensino e aprendizagem de leitura e escrita. O que já acontece no mundo afora, agora entra, com claquete, para dentro da escola. As sinopses das produções apresentam-se neste capítulo, revelando o que cada grupo de jovens documentaristas, com o celular na mão e muitas ideias na cabeça, optou por registrar em vídeos de até 5 minutos sobre os cantos, recantos e nem sempre encantos de seu lugar. Da Lavagem de Irará à reciclagem de lixo, em Juína, pode-se desviar para Amarante e conhecer Dona Militana, a maior romanceira do Brasil. Dá para desembocar em Rosário, bairro que roga para seu estigma mudar, e ainda viajar um bocado: tem gravado como cada entrevistado de Aracati fez para “se contar”; rap novo com imagens antigas; a história dos “soldados da borracha”; a luta por uma escola nova; o testemunho de moradores de rua; a importância das abelhas e até a construção de uma fantasia que busca fugir da monotonia de um lugar. Quem percorrer as próximas páginas vai ler que, realmente, há muito para ver. DOCUMENTÁRIO 252 ALÔ? SINAL 255 FLORES DO 258 GURIA, ESSE Índice TELEFÔNICO MEU BAIRRO LUGAR É TEU DE PARAJU Iana Daise Alves Andreza Castro Gustavo de Oliveira da Silva Marinho Duarte Christ João Vitor de Moura Giovana Hister 250 PELOS TRILHOS Gustavo de Oliveira Vasconcelos Cardoso DA FERRUGEM da Conceição Kauany Vitória Batista Luísa de Vargas Fellin Cristovão Oliveira João Leno Jastrow da Silva Bello Simmer 258 UM REINO Maria Eduarda da 255 MEU LUGAR, A MEUS OLHOS Silva Martins 253 O QUE SE UBARANAS Gabrielle Carrijo Ruan Marcos da Silva APRENDE QUANDO Bruna Santos Vitalino Barbosa Pereira A ESCOLA CAI... Almeida Mell Ribeiro Souza Jamile Aparecida Francisco André Silva Tarick Gabriel 250 NORDESTINOS Santos Dornelas de Moura Almeida de Morais NO ACRE Pedro Lucas Modesto Lucas Cauã de Lima Eloís Eduardo dos Sabrina Heloísa dos da Silva 259 UM MINUTO Santos Martins Santos PARA ACONTECER Raele Brito da Costa 256 SEPARA PRA NÓS: O Heloisa Della Justina Thomaz Oliveira 253 POR TRÁS DAS RUAS TEMPO VALE OURO Vitória Maria Schwan Bezerra de Menezes Antônio José E O LIXO TAMBÉM Bonfim da Paixão Emily Ferreira Horing 251 ENQUANTO Evellyn Vitória Novais João Guilherme 259 “O NOSSO PASSADO HOUVER FLORES da Silva Morais Clemente É QUE FEZ NOSSO Amanda Guimarães Vitória Bernardo da Costa PRESENTE E ESTÁ João Vitor Carneiro da Silva Thauany Gabriella PREPARANDO O Karla Aragão Martins Barbosa NOSSO FUTURO...” 254 CARACARAÍ: Ana Maria de Brito 251 UMA COLHER DE MINHA HISTÓRIA/ 257 ALÉM DAS SECAS Sousa MEL, UMA VIDA NOSSA HISTÓRIA Lethícia Alencar Maia Jannine Ferreira INTEIRA Andrae Nogueira Barros Tavares DE TRABALHO dos Santos Sabrina Soares Ludimila Carvalho Camila Sand Vinicyus Gabriel Bezerra dos Santos Estefano Rius Andrade Silva Yasmin Felipe Rocha Inaê Kogler Klein Werverton Rosa Santiago da Costa 252 A FELICIDADE 257 LAVAGEM DE IRARÁ MORA AQUI! 254 O LUGAR ONDE – FÉ, PURIFICAÇÃO André Felipe VIVO TEM DONA E TRADIÇÃO Tolentino da Silva MILITANA Fabrícia dos Reis Davison Alves Rocha João Vyctor de Paula Cerqueira Steffane Catherine de Lima Marcelly Damasceno Alves Santos Nathália Rocha dos Santos Campos Rayane Gonçalves Raphael Dias Câmara de Sousa PELOS TRILHOS DA FERRUGEM NORDESTINOS NO ACRE ENQUANTO HOUVER FLORES UMA COLHER DE MEL, UMA VIDA INTEIRA DE TRABALHO Cristovão Oliveira Bello Eloís Eduardo dos Santos Martins Amanda Guimarães Maria Eduarda da Silva Martins Raele Brito da Costa João Vitor Carneiro Camila Sand Ruan Marcos da Silva Pereira Thomaz Oliveira Bezerra de Menezes Karla Aragão Estefano Rius Inaê Kogler Klein

O documentário “Pelos trilhos da fer- Como o Acre foi povoado? O que le- O documentário retrata as diferenças rugem” é um alerta sobre a falta de cuida- vou os nordestinos a migrarem para o sociais encontradas em cidades do inte- O documentário “Uma colher de mel, do com a história e a cultura da cidade de Acre? Esse documentário busca retratar rior, causadas pelo preconceito, pela in- uma vida inteira de trabalho” aborda o te- Mairinque. A partir de imagens antigas, em um pouco da história dos “Soldados da tolerância e principalmente pela política. ma “abelhas”. Mostra a importância des- oposição a atuais, e de um rap que reflete ‘borracha’”. Muitos perderam a vida ser- Para elaborar nossos argumentos, ana­ ses insetos voadores, conhecidos pelo seu o pensamento dos autores, nasce a críti- vindo o Brasil em meio à Segunda Guerra lisamos as principais causas das divisões importante papel para o meio ambiente e ca à despreocupação com a cultura local. Mundial. Nós acreanos herdamos muitos sociais no município e com isso construí- para toda a humanidade, pois todos deve- Antigamente, o município atraía mui- costumes nordestinos, desde o modo de mos uma crítica com o intuito de conscien- ríamos saber que sem polinização, sem vi- tas pessoas por conta da estação ferroviá- falar até a culinária. Você verá depoimen- tizar a população. das. “Uma colher de mel, uma vida inteira ria moderna, de suas festas e de sua his- tos de pessoas da época que dão vida à de trabalho” também apresenta a conver- tória. Hoje já não recebe reconhecimento memória desses guerreiros brasileiros. sa com uma especialista no assunto, falan- nem dos próprios moradores. É necessá- do sobre a importância das abelhas e o ris- rio que os habitantes conheçam a história co que estão correndo, devido à sua ex- do lugar para, quem sabe assim, Mairinque tinção, além de algumas curiosidades. As possa reviver seus dias de glória, pois a his- gravações mostram as tarefas diárias rea- tória e a cultura fazem o povo ser o que é. lizadas pelas abelhas, no apiário do IFRS Campus Ibirubá.

Professora Edna Régio de Professora Ynaiara Moura Professora Joceane Professora Fernanda Castro França da Silva Lopes Araujo Schneider EE Professor José Pinto do Amaral, EE Humberto Soares da Costa, CE Pedro Falconeri Rios, IFRS – Campus Ibirubá, Mairinque-SP Rio Branco-AC Pé de Serra-BA Ibirubá-RS

250 — DOCUMENTÁRIO DOCUMENTÁRIO — 251 A FELICIDADE MORA AQUI! ALÔ? SINAL TELEFÔNICO DE PARAJU O QUE SE APRENDE QUANDO POR TRÁS DAS RUAS A ESCOLA CAI... André Felipe Tolentino da Silva Gustavo de Oliveira Christ Antônio José da Paixão Davison Alves Rocha Gustavo de Oliveira da Conceição Jamile Aparecida Santos Dornelas Evellyn Vitória Novais da Silva Steffane Catherine Alves Santos João Leno Jastrow Simmer Pedro Lucas Modesto Vitória Bernardo da Silva Sabrina Heloísa dos Santos

Passagem das Canoas é a mais afasta- Na pequena vila de Paraju, o sinal te- Mendigo, mendicante, pedinte, in- da comunidade pertencente ao município lefônico causa muitos problemas para a O documentário se passa na peque- digente, esmoleiro, esmoler, morador de de Espinosa (MG). Fica localizada aproxi- população, gerando certas consequên- na Santa Bárbara do Leste, cidade do inte- rua, sem-teto ou “sem-abrigo” é o indi- madamente a 100 quilômetros da cidade. cias negativas na região. Com isso, foram rior de Minas Gerais, cenário de conscien- víduo que vive em extrema carência ma- Essa pequena porção de terra apresenta exploradas as características locais, os tização e luta, onde alunos, com o apoio terial, não conseguindo obter, por meios grandes desafios aos seus moradores, co- motivos do sinal telefônico ser tão ruim, da comunidade, se mobilizaram em busca próprios, as condições mínimas de sobre- mo insalubridade, escassez de água, difi- a solu­ção proposta para contornar esse de uma nova estrutura para a EE Monse- vivência com dignidade. O documentá- culdade de assistência médica. Além dos problema e os benefícios que traria para nhor Rocha, contra o descaso dos gover- rio tem no testemunho oral dos morado- infortúnios da natureza, lida com a falta a localidade. nantes. A instituição que atendia cerca de res de rua da região central da cidade de de recursos materiais, de oportunidades, oitocentos estudantes funcionava precaria- São Paulo sua principal fonte de pesqui- onde a população vive em condições pre- mente em garagens e no salão paroquial, sa, procurando mostrar aspectos do coti- cárias e com grande incidência de casos desde que o antigo prédio começou a des- diano deles, suas vivências na rua, sua or- da doença de chagas. O documentário “A moronar e não havia, por parte do governo, ganização, sua alimentação, seus medos e felicidade mora aqui!” mostra a realidade previsão para a nova escola começar a ser suas esperanças. O documentário revela dos sertanejos para tentar sobreviver dian- construída. A participação da comunidade o sofrimento dessas pessoas, que vivem te das dificuldades encontradas e que, ain- nesse importante momento na história da sem o apoio de suas famílias e cercados da assim, se identificam com a terra e são cidade foi essencial para que a nova escola por pessoas que consideram a sua exis- felizes naquele lugar. se tornasse realidade. Hoje, os responsáveis tência um transtorno. Além do testemunho por essa luta podem se orgulhar com o que oral dos moradores de rua, ouvimos uma se aprende quando a escola cai: uma verda- pessoa que convive diariamente com eles. deira lição de cidadania e luta por direitos. Professora Shantynett Souza Professora Carina Luzia Ferreira Magalhães Alves Borghardt EE Betania Tolentino Silveira, EEEFM Gisela Salloker Fayet, Professora Simone de Araújo Valente Ferreira Professor Abel José Mendes Espinosa-MG Domingos Martins-ES EE Monsenhor Rocha, Santa Bárbara do Leste-MG ETEC Prefeito Braz Paschoalin, Jandira-SP

252 — DOCUMENTÁRIO DOCUMENTÁRIO — 253 CARACARAÍ: MINHA HISTÓRIA/ O LUGAR ONDE VIVO TEM FLORES DO MEU BAIRRO MEU LUGAR, UBARANAS NOSSA HISTÓRIA DONA MILITANA Iana Daise Alves da Silva Marinho Bruna Santos Vitalino Almeida Andrae Nogueira dos Santos João Vyctor de Paula de Lima João Vitor de Moura Vasconcelos Francisco André Silva de Moura Vinicyus Gabriel Andrade Silva Nathália Rocha Campos Kauany Vitória Batista da Silva Lucas Cauã de Lima da Silva Werverton Rosa da Costa Raphael Dias Câmara

“Flores do meu bairro” é um documen- O lugar onde as pessoas vivem conta “Augustinho” é um personagem fic- Esse documentário retrata a biogra- tário que percorre uma região carente, da muito sobre elas, ou seriam elas, as pes- tício, ele assistiu a todos os fatos impor- fia de Dona Militana como personagem de cidade de Aliança (PE), para desmistificar soas, que contam muito sobre seu lugar? tantes que contribuíram para a fundação destaque no município de São Gonçalo do o estigma de “lugar de gente ruim”. O fil- Para mostrar sua comunidade, o estu- de Caracaraí e para a criação de seu perfil Amarante, Estado do Rio Grande do Norte. me adentra na comunidade do Rosário pa- dante André conta das pessoas, ou melhor, cultural. Tais fatos ocorreram a partir do Mostra um pouco da sua trajetória de vida ra fazer-nos refletir sobre o preconceito e a permite que elas mesmas “se contem”. ano de 1904 no Norte do país, no atual como a maior romanceira do Brasil, sua im- discriminação que tanto afetam a vida das Assim, um pouco da história dessa co- Estado de Roraima. portância como mulher e como guardiã do pessoas do lugar. O fio condutor está cen- munidade cearense, remanescente quilom- Caracaraí, também conhecida como patrimônio imaterial local. trado nos depoimentos de moradores e de bola, revela-se para nós em suas nuances Cidade Porto, foi por anos usada como por- quem trabalha naquela localidade. Estes, mais particulares. Nos pequenos detalhes, to de desembarque de gados, pois era o contestam os boatos maldosos e discrimi- nos conflitos pela terra e pela vida, na bus- trajeto mais viável para se seguir. Essas natórios das pessoas que lá não residem. ca pela identidade, na luta pela preservação atividades fluviais foram cruciais para o da memória. Uma memória que tanto pode desenvolvimento da cidade. No desenro- estar escrita à mão, nos cadernos de Dona lar da trama, “Augustinho” se depara com Madalena, na rotina inalterada do Seu Pelé os acontecimentos que, hoje, fazem parte ou nas grossas paredes da centenária Igreja dos documentos históricos do município de São José. Com a missão de falar do seu de Caracaraí. lugar, André faz um mergulho naquilo que é, aos seus olhos, mais contundente no lu- gar onde vive.

Professora Clébia Maria Farias Professora Luciana de Moraes Ferreira de França Lopes Professor Francisco Márcio EE José Vieira de Sales Guerra, CEEP Dr. Ruy Pereira dos Santos, Professora Itânia Flávia da Silva Pereira da Silva Caracaraí-RR São Gonçalo do Amarante-RN EREM Joaquina Lira, Aliança-PE EEM Barão de Aracati, Aracati-CE

254 — DOCUMENTÁRIO DOCUMENTÁRIO — 255 SEPARA PRA NÓS: O TEMPO VALE ALÉM DAS SECAS LAVAGEM DE IRARÁ – OURO E O LIXO TAMBÉM FÉ, PURIFICAÇÃO E TRADIÇÃO Lethícia Alencar Maia Barros Emily Ferreira Horing Sabrina Soares Bezerra Fabrícia dos Reis Cerqueira João Guilherme Morais Clemente Yasmin Felipe Rocha Santiago Marcelly Damasceno dos Santos da Costa Rayane Gonçalves de Sousa Thauany Gabriella Martins Barbosa O documentário trata da escassez de água no Ceará, problema que se tornou Fé, água, purificação, tradição. É as- Vive-se atualmente em uma sociedade é formada majoritariamente por pessoas uma dura realidade do lugar. Com filma- sim que a “Lavagem de Irará” é conheci- capitalista, na qual o consumo é a energia com histórico de pouco contato com cons- gens feitas em diferentes localidades do da por todos que têm o privilégio de par- que impulsiona o gigantesco motor a con- cientização ou educação. Através de suas estado, o objetivo é mostrar a visão do po- ticipar dessa linda festa. É com o coração tinuar seguindo seu ciclo: comprar, usar e ações, a associação leva conhecimento e vo cearense que, durante muitos anos, foi cheio de emoção que temos o prazer de transformar o produto em lixo. Este sécu- promove ajuda econômica, por se tratar de intensamente castigado pelas longas estia- falar da Lavagem de Irará. lo é o que presencia em maior quantidade um trabalho remunerado. Mostrar esse tra- gens, testemunhando suas dores, dificulda- A comemoração está diretamente li- pilhas e pilhas de lixos com odor fétido e balho é um ato de conscientização neces- des e esperanças por um amanhã diferente. gada à música popular iraraense. Um dos nocividade ao ser humano e ao meio am- sário e de exposição da realidade. festejos mais esperados não só para os biente. Devido à acumulação desenfreada conterrâneos, mas também para os visi- de lixo, estimulado pelo consumo, a con- tantes que vêm junto conosco desfrutar cepção de reciclagem nasceu: voltar pro- desses festejos. dutos para sua matéria-prima, como plásti- co, metal, papelão, vidro etc. Desse modo, trabalhando diariamente na separação dos tipos de resíduos sólidos gerados pelos ha- bitantes e na prensagem através do traba- lho manual e de maquinário precário, os in- tegrantes da Associação Nova Conquista, de Juína, interior de Mato Grosso, enviam esses resíduos para empresas que queiram Professora Lisdafne Júnia comprar. É de suma importância que haja de Araújo Nascimento Professora Gláucia Maria Bastos Marques Professora Ana de Jesus Lima tal associação de reciclagem, pois a cidade IFMT – Campus Juína, Juína-MT CMF – Colégio Militar de Fortaleza, Fortaleza-CE CE Joaquim Inácio de Carvalho, Irará-BA

256 — DOCUMENTÁRIO DOCUMENTÁRIO — 257 GURIA, ESSE LUGAR É TEU UM REINO A MEUS OLHOS UM MINUTO PARA ACONTECER “O NOSSO PASSADO É QUE FEZ NOSSO PRESENTE E ESTÁ Andreza Castro Duarte Gabrielle Carrijo Barbosa Heloisa Della Justina PREPARANDO O NOSSO FUTURO...” Giovana Hister Cardoso Mell Ribeiro Souza Vitória Maria Schwan Bonfim Luísa de Vargas Fellin Tarick Gabriel Almeida de Morais Ana Maria de Brito Sousa Jannine Ferreira Tavares Diariamente, 1.388 mulheres são estu- Ludimila Carvalho dos Santos “Guria, esse lugar é teu” aborda uma Com positividade e um pouquinho de pradas no Brasil. Quase uma por minuto. visão crítica sobre a influência do estereó- imaginação, três adolescentes represen- Para o agressor são até trinta anos de ca- tipo de gênero na área profissional duran- tam, de maneira lúdica, por meio desse deia, mas, para a vítima, uma vida intei- Vivemos em todos os lugares que pos- te a escolha do curso técnico integrado ao poético documentário, a forma peculiar ra de prisão! Parece uma matéria digna de suem capacidade para a vida, mas como Ensino Médio, além de apresentar o im- de como, a partir de sua perspectiva, eles âmbito nacional, não é? Uma que conta o manda a nossa natureza, precisamos ter pacto da decisão após o ingresso na ins- enxergam o mundo, ou melhor, o lugar horror vivido pelas paulistanas e cariocas? um ponto de partida, de chegada, um lu- tituição de ensino. O filme traz relatos da onde vivem. Só que não é uma agressão exclusiva de ci- gar para chamar de meu. Com esse pen- perspectiva das meninas no Instituto Fede- Cansados de se deparar com projetos dade grande, o abuso sexual acontece em samento, apresentamos o nosso lugar, a ral do Rio Grande do Sul – Campus Restin- satíricos, eles resolveram sair do tradicio- todo lugar, pode ser na sua cidadezinha, encantadora cidade de Muricilândia, mu- ga sobre as vivências de desigualdade de nal, e ao invés de mostrar a monótona rea- assim como ocorre na nossa. Conheça a nicípio localizado ao norte do Estado do gênero e representatividade nos cursos. lidade daquela terra, fizeram uma criati- cidade que soma mais casos de abuso se- Tocantins, com aproximadamente 4 mil ha- O documentário busca dar visibilidade e va releitura expressando fantasiosamente xual da região do vale: Braço do Norte, no bitantes que se destaca pela forte tradição problematizar as experiências e a discre- os detalhes que singularizam aquele lugar, Estado de Santa Catarina. cultural preservada principalmente pela pância de quantidade de meninas matricu- inspirando-se em David Hume que dizia: “A Comunidade Quilombola Dona Juscelina. ladas/formadas nos cursos de Eletrônica, beleza das coisas está no espírito de quem Informática e Lazer da instituição. as contempla”.

Professora Juliana Battisti Professora Thaís da Silva Macedo Professora Giseli Fuchter Fuchs Professora Fabiana Martins Ferreira Braga IFRS – Campus Restinga, Porto Alegre-RS CE Alfredo Nasser, Santa Rita do Araguaia-GO EEB São Ludgero, São Ludgero-SC EE Marechal Costa e Silva, Muricilândia-TO

258 — DOCUMENTÁRIO DOCUMENTÁRIO — 259

INICIATIVA

Itaú Social Superintendente: Angela Dannemann Gerente de Programas: Tatiana Bello Djrdjrjan Coordenadora de Programas: Dianne Melo Gestora do Programa Escrevendo o Futuro: Karina Garcia Coordenador de Comunicação: Alan Albuquerque Analista de Comunicação: Raquel Ornellas

COORDENAÇÃO TÉCNICA

CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Diretora Executiva: Anna Helena Altenfelder Diretora de Tecnologias Educacionais: Maria Amabile Mansutti Gerente de Tecnologias Educacionais em Ação: Wagner Antonio dos Santos Coordenadora de Difusão de Conteúdos: Marcia Coutinho Ramos Jimenez Coordenadora do Programa Escrevendo o Futuro: Maria Aparecida Laginestra

CRÉDITOS DA PUBLICAÇÃO

Coordenação Editorial: Esdras Soares e Camila Prado Projeto Gráfico: Estúdio Voador Diagramação: Jussara Fino Ilustrações: Elisa Carareto Revisão: Carina Castro e Rosania Mazzuchelli Impressão: Leograf Gráfica e Editora Tiragem: 1.000 exemplares

CONTATO

Rua Minas Gerais, 228 – São Paulo – SP CEP: 01244-010 Telefone: 0800 771 9310 e-mail: [email protected] www.escrevendoofuturo.org.br

A reprodução dos textos na presente publicação foi autorizada pelos autores. Cada texto expressa a opinião de seu autor e não traduz a opinião dos realizadores da Olimpíada de Língua Portuguesa. PARCERIA COORDENAÇÃO INICIATIVA TÉCNICA