OS FESTIVAIS DA CANÇÃO ENQUANTO EVENTOS MIDIÁTICOS: BRASIL E .

José Fernando Saroba Monteiro Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [email protected]

Os festivais da canção, tal como os conhecemos hoje, surgem ainda na década de 1950, com o precursor Festival de San Remo (Festival della Canzone Italiana), inaugurando o formato festival que logo foi copiado por países no mundo todo, dando origem a uma infinidade de festivais nacionais, e outros tantos, fazendo competir diferentes países e, por vezes, de diferentes continentes.

Dentre os mais conhecidos festivais estão: o Festival Eurovisão da Canção, surgido em 1956, na esteira do festival italiano, e o primeiro a fazer competir países entre si; o Festival Intervisão, tendo a mesma concepção do Festival Eurovisão, mas direcionado para os países do bloco soviético; o Festival OTI, voltado para os países iberoamericanos; e poderíamos assinalar uma infinidade de outros festivais nacionais, muitos deles responsáveis pela escolha de uma canção representante no Festival Eurovisão (quando se tratando do quadro europeu), como é o caso do Festival RTP da Canção, iniciado em 1964 em Portugal, justamente para escolher sua representante no eurofestival, mas muitos outros atingindo certa autonomia e reconhecimento inclusive internacionalmente, como o Festival Yamaha, realizado em Tóquio, reunindo artistas de inúmeros países, o Festival de Atenas, de caráter multicultural, o Festival de Sopot, e, dentre outros, o Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro, dividido em duas fases, uma nacional e outra internacional, nesta segunda, notadamente, os vencedores nacionais competiam com canções representantes de países de todo o mundo.

Surgidos a partir da década de 1950, os festivais da canção puderam contar com o inovador recurso da imagem, possibilitado pelo advento da televisão, que se desenvolvia e se propagava justamente nesta mesma década. A televisão, substituiu

largamente o rádio, especialmente a partir da década de 1960, tornando-se o centro das atividades cotidianas e reunindo as famílias junto aos aparelhos receptores, inicialmente restritos aos mais abastados, devido ao alto custo, mas depois se difundindo entre a população, primeiramente urbana e, depois, inclusivamente, rural.

A televisão se tornou meio privilegiado na comunicação com as massas. Segundo Jean Folkerts, em sua entrada “Mass Culture”, encontrada na obra The Mass Media in the United States, editado por Margaret Blanchard, os conceitos de “comunicação de massa” (“mass media”) e de “cultura de massas” (“mass culture”) emergem juntamente com o crescimento da sociedade de consumo, ou seja, mantendo relação com o “consumo de massa” (“mass consumption”) e com o desenvolvimento industrial, que não apenas disponibilizava uma infinidade de produtos aos consumidores, como também promovia meios para abduzi-los, notadamente através da comunicação, tanto nos locais de venda dos produtos, como também procurando atingi- los em seus lares, ponto no qual a televisão contribuia em muito, especialmente a partir da década de 1960 (BLANCHARD, 1998, pp. 346-347).

No Brasil, a televisão, chega pela iniciativa de Francisco de Assis Chateaubriand, que inaugura a TV TUPI – Canal 3 de São Paulo, primeiro canal de TV brasileiro e também primeiro latinoamericano, que foi ao ar em 18 de setembro de 1950, fazendo luz sobre os 200 aparelhos televisores espalhados pela metrópole paulistana. Antes disso, porém, em 1939, a empresa alemã Telefunken realizou a primeira demonstração pública de imagens geradas e reproduzidas por um sistema de televisão no Brasil e, em julho de 1950, houve uma pré-estréia da televisão brasileira, ainda em fase experimental, momento no qual realizou-se um espetáculo musical do cantor Frei Mojica (COSTELLA, 1978, p. 196).

Em 1951, é inaugurada a TV Tupi do Rio de Janeiro e, logo depois, muitas outras emissoras são inauguradas por todo o país, algumas demonstrando grande desenvolvimento: “[…] chegando aos nossos dias como verdadeiros conglomerados multinacionais exportando a produção cultural brasileira para vários países.” (MONTEIRO, 2015a, p. 125). Sérgio Mattos, divide o desenvolvimento da televisão no Brasil em seis fases:

“1) A fase elitista (1950 – 1964), quando o televisor era considerado um luxo ao qual apenas a elite econômica tinha acesso; 2) A fase populista (1964 – 1975), quando a televisão era considerada um exemplo de modernidade e programas de auditório e de baixo nível tomavam grande parte da programação; 3) A fase do desenvolvimento tecnológico (1975 – 1985), quando as redes de TV se aperfeiçoavam e começaram a produzir, com maior intensidade e profissionalismo, os seus próprios programas com estímulo de órgãos oficiais, visando, inclusive, a exportação; 4) A fase da transição e da expansão internacional (1985 – 1990), durante a Nova República, quando se intensificam as exportações de programas; 5) A fase da globalização e da TV paga (1990 – 2000), quando o país busca a modernidade a qualquer custo e a televisão se adapta aos novos rumos da redemocratização; e 6) A fase da convergência e da qualidade digital, que começa no ano de 2000, com a tecnologia apontando para uma interatividade cada vez maior dos veículos de comunicação, principalmente a televisão, com a Internet e outras tecnologias da informação.” (MATTOS, 2002, pp. 78-79, grifos do autor). Em Portugal, a televisão parte de iniciativas vindas dos quadros da Emissora Nacional, estação radiofônica do governo estadonovista. Em 1946, o jovem engenheiro Francisco Bordalo Machado, funcionário da Emissora Nacional, elabora um estudo avultando sobre as possibilidades de implementação da TV no país. No entanto, apenas dez anos mais tarde esse projeto se concretizaria.

Em 1955, Marcello Caetano, futuro Presidente do Conselho, era Ministro da Presidência em Portugal, sempre visto como mais afeito a modernidade do que seu antecessor na presidência, António Salazar, e, na verdade, é apontado por Francisco Cádima como “único representante da modernidade” no regime do Estado Novo (CÁDIMA, 1996, pp. 38-39). Caetano tornou-se o grande impulsionador da televisão portuguesa, tendo ele mesmo sugerido a exploração através de uma economia mista, o que de fato ocorreu, à serviço do Estado. Marcello Caetano assina o contrato de concessão da Radiotelevisão Portuguesa, SARL, a 08 de julho de 1955 e, no mesmo ano, ocorre na Feira Popular do Porto, uma demonstração de equipamento Grundig. No ano seguinte iniciam-se as emissões experimentais na Feira Popular de Lisboa, cuja primeira transmissão, a 04 de setembro, teve apresentação de Raúl Feio e terminou com uma declaração do então presidente da Assembleia Geral da RTP, Monsenhor Lopes da Cruz (SILVA; TEVES, 1971, p. 123; TEVES, 1998, p. 41).

Durante essas emissões, a população invadia a Feira Popular de Lisboa e também enchia as ruas de acesso, com o intuito de contemplar a grande novidade. Em setembro de 1956 foram suspensas as emissões a partir da Feira Popular, para serem retomadas a 07 de março de 1957, definitivamente, dando início às emissões regulares da Radiotelevisão Portuguesa (RTP).

A RTP, emissora de serviço público que foi por décadas a única emissora portuguesa, nos dias atuais se apresenta entre os melhores broadcastings do mundo, contando com mais de duas dezenas de canais televisivos e radiofônicos, uma plataforma online e cobertura dos acontecimentos em diversos países.

Em cada período de seu desenvolvimento, no entanto, a televisão representou a sociedade de seu tempo e, escusado será dizer, que a música sempre esteve presente, contribuindo com o crescimento da TV, e vice-versa.

De um modo geral, os programas televisivos, inicialmente eram reservados à alta cultura, exatamente por serem direcionados àqueles que de fato teriam recursos para possuir um aparelho receptor. Mas, aos poucos, a programação inclui apresentações de caráter mais popular, até mesmo porque a audiência se amplia, a despeito da possibilidade de adquirir um televisor, indo o público onde quer que houvesse um aparelho, vizinhos, cafés, estabelecimentos públicos em geral, para poder acompanhar seus programas preferidos, cada vez mais integrados também nas conversas do dia a dia.

Os dramas sempre estiveram na preferência do público, seguidos pelos programas de variedades, mas os musicais também faziam o deleite dos espectadores e é devido à isso que os festivais da canção vão ocupando lugares cada mais altos nos índices de audiência, reunindo milhares de pessoas em frente aos televisores e tornando- se o assunto do dia nas reuniões populares. Logo, portanto, os festivais da canção tornam-se amplamente aceitos pelo público, vindo a ser o programa televisivo de predileção, no caso dos portugueses, e também no Brasil, disputando fraternalmente as atenções com outra paixão nacional, o futebol. Como sintetiza o produtor e idealizador dos festivais brasileiros Solano Ribeiro: “Não fosse a TV, provavelmente a MPB não teria tido a mesma força” (RIBEIRO apud DIAS, 07 abr. 2015).

BRASIL.

O primeiro festival de repercussão nacional no Brasil foi o Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, com primeira edição em 1965, no qual foram apresentadas 36 canções, dentre as 1.290 inscritas, ao longo de três semifinais e uma final, que escolheu “Arrastão” (Vinícius de Moraes/ Edu Lobo), interpretada pela jovem Elis Regina, como vencedora. As pompas eram justificadas pela premiação de 21 milhões de cruzeiros e entrega do prêmio Berimbau de Ouro, em um festival que reuniu novos e antigos nomes da música popular, consagrando, especialmente, o nome de Elis Regina, que recém-chegada ao Rio de Janeiro, ganhou projeção através da tela da televisão e contratos para estrelar programas televisivos.

De fato, depois de vencer o festival da Excelsior, Elis Regina assinou um contrato para ter o seu próprio programa na televisão, mas não na TV Excelsior, e sim na TV Record, onde estreou ainda em 1965, obtendo grande sucesso com o programa O Fino da Bossa, ao lado de Jair Rodrigues. No entanto, a relação de Elis com a TV se manteve conturbada, segundo afirmam Fausto Borém e Ana Paula Taglianetti: “Ao mesmo tempo em que Elis desenvolveu a habilidade de se expressar magistralmente em frente às câmeras, ela se tornou cada vez mais crítica em relação à massificação promovida pela mídia televisiva.” (BORÉM; TAGLIANETTI, 2014, p. 44).

Não obstante, a fórmula-festival representava uma inovação e mostrava-se de sucesso, de modo que foi copiada por outras emissoras. Em 1966, enquanto a TV Excelsior produzia a segunda edição de seu festival da canção, a TV Record, que já havia realizado um festival em 1960, mas sem grande repercussão, adianta-se e realiza o que chamou de II Festival da Música Popular Brasileira, dirigido por Solano Ribeiro (que se transferiu da TV Excelsior) e apresentado por Randal Juliano.

O II Festival da TV Record, que teve a peculiaridade de um empate na final, entre “A Banda” (Chico Buarque de Holanda), defendida por Nara Leão, e “Disparada” (Geraldo Vandré/ Théo de Barros), defendida por Jair Rodrigues, Trio Marayá e Trio

Novo, foi sem dúvidas o evento que deu mostras da consagração da fórmula-festival junto ao público. É nesse festival que começa a se configurar o novo público da música popular brasileira, uma juventude de classe média, universitária, participante politicamente e que frequentava os festivais para torcer pelas suas canções favoritas ou vaiar aqueles que não condissessem com seus anseios.

Esse público, espectador e também consumidor, acompanhava os festivais nos auditórios ou através da TV e também adquiria os discos editados com as canções dos festivais, dando mostras da difusão e popularidade que os festivais atingiam, bem como do alcance da televisão junto as massas. Prova disso é uma matéria do jornal O Globo sugestivamente intitulada “Sucesso de ‘A Banda’ Faz Disco Sumir em Poucas Horas” (O Globo, 13 out. 1966). Mais do que isso, Chico Buarque tornava-se uma espécie de popstar, surgido no palco dos festivais, e se estes eventos fossem comparados a um tele catch, como sugeriu Paulo Machado de Carvalho, diretor da TV Record, Chico Buarque certamente seria o mocinho. Aliás, até mesmo a tentativa de organizar os festivais como um espetáculo de luta livre, com um “mocinho”, um “bandido”, um “pai da moça”, etc., era também com o intuito de conquistar o público (CARVALHO apud Uma Noite em 67, 2010).

Ainda em 1966, inicia-se o icônico Festival Internacional da Canção (FIC), patrocinado pela Secretaria de Turismo da Guanabara e TV Rio e dirigido por Augusto Marzagão. Este festival ganha um diferencial pela divisão em duas fases, uma nacional e outra internacional, como já dissemos, e justamente por abrigar uma fase na qual concorrem diferentes países, detém, além da difusão proporcionada pela televisão brasileira, repercussão mundial, através das emissoras televisivas dos países concorrentes e da mídia impressa destes mesmos países que, se não transmitem as apresentações dos festivais, ao menos noticiam a participação de seus representantes no FIC. Foi, por exemplo, graças ao FIC, que “A Banda”, de Chico Buarque, foi levada e regravada em diversos países, da Argentina até a Escandinávia, passando pelos Estados Unidos, Portugal e França (MONTEIRO, 2015b, p. 07).

O intuito do FIC, diga-se, não eram apenas divulgar a música brasileira, mas também promover do Rio de Janeiro enquanto destino turístico para os

estrangeiros. Não obstante, o improvável festival realizado em um ginásio esportivo (Maracanãzinho) logo deu resultado e “[…] contabilizou nada menos que 45 pontos de audiência na primeira eliminatória e terminaria a noite da grande final nacional com 62% dos aparelhos sintonizados nela, marca que saltou para 72% na final internacional.” (Memórias da Ditadura [site]).

Quando foi apresentado o III Festival da Record, em 1967, brilhantemente retratado no documentário “Uma Noite em 67” (2010), a TV Record era líder de audiência em São Paulo. No entanto, segundo Júlio Medaglia: “O festival de 1967 da TV Record chegou a ter o recorde mundial de audiência, [e] foi parar no Guiness Book.” (MEDAGLIA apud TERRA; CALIL, op. cit. 2013, p. 270, grifos do autor). Este festival foi mesmo surpreendente, chegando a atingir o índice de 55% de audiência ainda na fase eliminatória e 97 pontos no IBOPE, se tornando o programa com maior audiência de todos os tempos no Brasil.

Essa repercussão também era sentida através da vendagem dos discos. O disco com as canções do festival, atingiria a impressionante marca de 300 mil discos vendidos, mesmo número que atingiu o compacto de “Ponteio” (Edu Lobo/ José Carlos Capinan), que venceu o festival, superando as cifras anteriores de “A Banda” e “Disparada”, com, respectivamente, 125 mil e 220 mil cópias vendidas. É neste momento que também evidencia-se uma grande contradição nos festivais. As canções mais politizadas, e contestatórias quanto ao regime de governo vigente, eram também as que mais vendiam (NAPOLITANO, 2001), demonstrando integração com o mercado e com a indústria cultural.

Também é na esteira da visibilidade proporcionada pelos festivais, e do gosto pela política presente no público espectador, que alguns artistas utilizam o palco destes eventos para apresentar canções engajadas, mais politicamente participantes, manifestação que encontrou seu auge em 1968, quando Geraldo Vandré entoou “Pra não Dizer que não Falei das Flores” (Geraldo Vandré), acompanhado por um coro de 20 mil vozes, presentes no Maracanãzinho.

Neste sentido, os festivais, através do meio televisivo: “[…] se apresentam como um “espaço” para a difusão ideológica, especialmente para a ideologia esquerdista,

predominante nas canções.” (MONTEIRO, 2015c, pp. 07-08). Mas também o governo se utilizava da televisão, e dos meios de comunicação em geral, para propagandear suas ações e ideologia, ou silenciar notícias que julgasse como desagravo. A onda ufanista na qual o Brasil entrou, na década de 1970, era evidenciada através de slogans como: “Ninguém segura este país” ou “Brasil, ame-o ou deixe-o”, ao passo que a censura se intensificava.

Em 1970, é a vez do V FIC e novas ações para divulgar o festival brasileiro no exterior são levadas a cabo, o que em parte também se coadunava com o ufanismo em alta no país:

“Prometendo uma transmissão a cores para toda a Europa e um documentário de 60 minutos feito pela Rádio Televisão Francesa com equipamento da EMI inglesa, o diretor da TV Globo Walter Clark se afinava perfeitamente com a euforia que se apossou do Brasil no ano de 1970.” (MELLO, 2003, p. 368). Neste ano, a vencedora do FIC foi “BR-3” (Antônio Adolfo/ Tibério Gaspar), com interpretação de Tony Tornado e do Trio Ternura, representantes da soul music, inugurando uma nova fase da música brasileira, dentro e fora dos festivais. Mas, a visibilidade também passava pela censura, de modo que: “A vista de uma performatividade negra não domesticada [como era visto Tony Tornado] desencadeou uma guerra multimídia.” (PALOMBINI, 2009, p. 45). Outra apresentação a terminar com problemas foi a de Erlon Chaves que interpretou “Eu Também Quero Mocotó” (Jorge Ben), com duas loiras o beijando abundantemente, o que lhe rendeu uma breve passagem pela prisão, interrogatório e tortura (THAYER, 2006, p. 92).

Em 1972, é realizado o VII Festival Internacional da Canção, o primeiro apresentado em cores e, devido à isso, com um mise-en-scène ainda não visto e roupas assaz espalhafatosas. Neste ano a TV Globo contratou Solano Ribeiro para a produção do festival, o mesmo que iniciou os festivais da Excelsior e produziu os festivais da Record, mas, a este tempo, a emissora era a única que ainda mantinha a realização dos festivais e, mesmo a emergência de inúmeros novos artistas e estilos, não foi suficiente para impedir que este VII FIC se caracterizasse, também devido aos muitos problemas políticos, como o último da Era dos Festivais.

PORTUGAL.

Em 1964, a Rádiotelevisão Portuguesa (RTP) passava por uma grande modernização, através da aquisição de equipamentos e da utilização da fitas magnéticas, que colaboraram com a produção e variedade dos programas transmitidos. Também é neste ano que é realizada a primeira edição do Festival RTP da Canção, que inicia com a participação de grandes nomes da música ligeira portuguesa, que transitavam entre a ainda recente televisão e a difusão radiofónica, além do cinema e teatro de revista.

Esse fenômeno no qual os artistas transitavam por diferentes meios, tornando-os cada vez mais apreciados pelo público, ganha o nome de “vedetismo”. E foi justamente a maior vedeta da década de 1960 que vence o I Festival RTP da Canção, em 1964, António Calvário, que interpretou “Oração” (Francisco Nicholson/ Rogério Bracinha/ João Nobre), ganhando também o direito de representar Portugal no Festival Eurovisão, realizado em Conpenhagen naquele ano, onde se apresentou para um público inédito para um artista português, cerca de 100 milhões de pessoas que estiveram acompanhando o eurofestival pelos seus televisores espalhados por toda a Europa.

Calvário com carreira consolidada ao menos desde 1960, foi muitas vezes eleito “rei” do rádio e da televisão, mas a participação no Festival RTP alavancou ainda mais sua popularidade. A revista Rádio e Televisão, conta que: “Vindo do Porto, para fazer a gravação de um disco para a etiqueta ‘A Voz do Dono’, encontrou uma impetuosa multidão de admiradores, que obrigou a cerrada intervenção dos agentes da ordem.” (Rádio e Televisão, 08 fev. 1964, p. 03). E em sua volta de Copenhagen, Calvário também encontrou o aeroporto de Lisboa cheio de pessoas que ali estavam para prestigiar o cantor (TV, 02 abr. 1964, n.p.).

A este tempo, os programas musicais sequer eram os de maior audiência na televisão portuguesa, mas o festival da canção, inegavelmente, viria a conquistar a predileção do público por décadas. O Grande Prémio TV da Canção, afinal, interessava a todos: “Um Festival nacional de canções com pretensões de internacionalização (para

além das fronteiras da Península) era uma novidade no pouco estimulante panorama cultural.” (CALLIXTO; MANGORRINHA, 2018, p. 13).

Apesar de os resultados terem sido considerados extremante positivos, havia ainda amadorismo e certa precariedade na produção do festival: “Que milagre da criatividade e da técnica meter dentro de um estúdio de 250 metros quadrados um cenário, uma orquestra um espaço para cantores, outro para os apresentadores e um recanto com dois PBX onde eficientes telefonistas estabeleciam as ligações para as capitais de distrito.” (CALLIXTO; ISIDRO, 2018, p. 07).

No ano seguinte, a vitória ficou com “” (Nóbrega e Sousa/ Jerónimo Bragança), interpretada por , que também era uma grande vedeta da música portuguesa, mas que, tal como António Calvário, também teve sua carreira elevada pela participação no festival televisivo. Mas, superando o feito de Calvário no ano anterior, Simone, que representou Portugal em Nápoles, no Eurovisão de 1965, se apresentou para um público ainda maior, 150 mihões de pessoas, marca ainda inédita para um artista português.

Foi neste ano que o Festival RTP começou a se consagrar enquanto um evento midiático, ante o público português, enchendo as páginas da imprensa escrita, vendendo discos com as canções concorrentes, sendo transmitido e entrando na programação radiofônica, além de fazer o deleite das conversas cotidianas nas casas, cafés e leitarias do país. Não restavam dúvidas também de que a participação no festival poderia trazer reconhecimento para os cançonetistas, fãs, fama e também contratos.

Madalena Iglésias, por exemplo, que venceu em 1966 com “” (Carlos Canelhas), menos de uma hora depois da vitória recebeu uma ligação da Espanha de um importante diretor de gravadora que: “[…] dava-lhe os parabéns e oferecia-lhe um vantajoso contrato!” (TV, 20 jan. 1966, p. 12). Além disso, devido à grande exposição na mídia, de uma forma geral, as vedetas dos festivais também passaram a ser procuradas para fazer propagandas para marcas e serviços, nomeadamente, salões de beleza, cebeleireiros e grifes de roupas.

Todavia, o midiatismo televisivo e a consolidação do festival da canção como um fenômeno nacional, confundiam o apreço por uma canção e o sentimento de nacionalismo. Em 1969, por exemplo, a vencedora, “Desfolhada” (Nuno Nazareth Fernandes/ José Carlos ), trazia ares de música nacional, ao incorporar referências à tradição rural do país e uma musicalidade ao mesmo tempo moderna e regional. A mídia portuguesa e espanhola tinham muita expectativa em relação ao sucesso da canção portuguesa no Festival Eurovisão, a ser realizado em Madri, naquele ano. Também por isso, foi grande o abalo sofrido por todos, com a classificação nas últimas colocações por parte da canção portuguesa, no que foi considerado como o resultado mais injusto para o portugueses no eurofestival. Esse mesmo resultado e a convalescência da população portuguesa levou uma multidão a acompanhar o comboio que vinha de Madri com Simone e a encher a estação de Santa Apolónia para receber e homenagear a cantora e a canção, que hoje é uma “canção-símbolo” da tradição musical portuguesa.

Dos mesmos autores de “Desfolhada”, em 1971 foi apresentada “Menina do Alto da Serra” (Nuno Nazareth Fernandes/ José Carlos Ary dos Santos), interpretada por , em uma edição marcada pela forte intervenção das editoras de discos no festival: “O trabalho das editoras incidia na imprensa, na rádio, na televisão e até no cinema, para atingir o grande público.” (MANGORRINHA, 2014, p. 374). E a edição contou com maior investimento no marketing das concorrentes, justamente o que pode ter conferido a vitória para “Menina”, como reconheceu Nuno Nazareth Fernandes:

“A Menina ganhou, mas é preciso dizer que, a meu ver, isso se ficou a dever muito mais a uma grande operação de marketing do que a qualquer outra coisa. A verdade é que todos nós, eu, o Zé Carlos, a gente do Zip, resolvemos fazer com a Menina exactamente o contrário do que se tinha feito com a Canção de Madrugar. Tínhamos pela frente concorrentes com muita força, apoiados por editoras fortes e aí fizemos uma campanha, uma promoção enorme. [...]. foram os cartazes, o cuidado todo com o visual da Tonicha e tudo o mais.” (FERNANDES apud SANTOS; CARVALHO, 1989, pp. 194- 195, grifos do autor). Também neste ano, foi inédita a apresentação de um vídeoclipe no qual Tonicha personificava a musa da canção, com closes de rosto e de corpo ainda não vistos e que estremeciam os preceitos morais estadonovistas.

O mesmo ocorreu no ano seguinte, quando um vídeo de apresentação (preview) também foi produzido para “” (José Calvário/ José Niza), apresentada por Carlos Mendes. Um vídeo com ares hollywoodianos no qual Mendes protagonizava um passeio de barco pelo Tejo, ao lado de Ana Maria Lucas, apresentadora com quem viria a se casar. Além disso, Mendes contou com uma considerável promoção no eurofestival, com distribuição de discos e cartazes espalhados com sua imagem. No entanto, também pelo caráter político da canção, não se pretendia que sua promoção obtivesse tanto êxito, e por isso: “Carlos Cruz [apresentador e representante da etiqueta Orfeu] seria acusado de estar a fazer uma promoção demasiado boa para a participação portuguesa.” (MANGORRINHA, 2014, p. 204). Neste aspecto, destaca José Hugo Pires Castro:

“[...] importante analisar a produção fonográfica dos cantores de protesto em Portugal, segundo a perspectiva de que as práticas associadas a um determinado número de intérpretes foram também alvo de processos de mediatização integrados em sistemas industriais de produção de objectos culturais, neste caso a indústria fonográfica” (CASTRO, 2012, p. 11). Além dos discos, poderíamos incluir o rádio, o cinema, a televisão e, mais especificamente, os festivais. Ainda de acordo com Castro, na mesma etiqueta Orfeu, alguns músicos ingressam por intermédio de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, entre eles, Francisco Fanhais, Luís Cília e Fausto, lembrando também que:

“Outros músicos, envolvidos em eventos mediáticos como o FRTPC e que terão um papel influente na conjugação entre a crítica social e a canção ligeira, casos de Carlos Mendes, , e Tonicha, entre outros, são também cooptados pela editora a partir das relações pessoais e profissionais criadas entre músicos e outros agentes.” (CASTRO, 2012, pp. 65-66). Paulo de Carvalho apresenta um vídeo muito semelhante ao de Carlos Mendes, em 1974, substituindo o barco por um passeio com um automóvel conversível. Esses vídeos denotam tanto o interesse em atrair as atenções do público votante eurovisivo, quanto a intenção de demonstrar certa ‘portugalidade’, sendo que são repletos de imagens de símbolos e monumentos nacionais, como o Cristo Rei, a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, etc., ação a que se pode atribuir também finalidades turísticas.

Essa ‘portugalidade’, entretanto, poderia ser demonstrada ao público europeu também de forma satírica, como o fez a “” (José Carlos Ary dos Santos/ Fernando Tordo), vencedora do Festival RTP de 1973, na qual a tradicional corrida de touros portuguesa era metaforizada com o regime político de Marcello Caetano, rendendo problemas para a canção tanto com os apreciadores das corridas, quanto com o governo, por uma possível visibilidade negativa que a canção pudesse trazer, quase impedindo a ida da canção ao festival eurovisivo, mas indo, por fim , à competição.

Neste ano de 1973, a audiência do festival europeu foi de aproximadamente 400 milhões de pessoas. Mesmo assim, “Tourada”, que teve um menor investimento em relação aos dois anos anteriores, caiu três posições no resultado geral do Festival Eurovisão, um 10º lugar, diferente das sétimas colocações obtidas em 1971 e 1972, o que não passaria despercebido pela imprensa, levando O Século Ilustrado a enunciar:

“[...] o Festival da Eurovisão é um jogo de interesses, onde o dinheiro e as maquinações comerciais contam mais do que os aspectos estritamente musicais. [e] o maestro Jorge Costa Pinto comentava: ‘Se o júri atendesse apenas à qualidade das canções, a ‘Tourada’ ter-se-ia classificado entre as cinco primeiras.” (O Século Ilustrado, 14 abr. 1973, pp. 06-08).

CONCLUSÃO.

Aqui, através dos festivais brasileiros e portugueses, procuramos demonstrar que, pouco a pouco, os festivais se tornam um fenômeno midiático, tanto na recepção do público e no aumento da audiência dos eventos, quanto nos investimentos à ele concernidos. Isso decorre, notadamente, por dois motivos: o interesse dos espectadores pela música e a atração despertada pela televisão, meio de comunicação privilegiado para o alcance do grande público; neste último caso, obviamente com o auxílio de outras mídias, como o rádio, a imprensa escrita e até mesmo o cinema.

Reconhecidamente, os festivais foram inovadores musicalmente e também serviram de palco para os embates entre os regimes autoritários existentes nos dois países aqui em questão e a contestação no plano cultural. Ambos os lados destes

embates também procuraram se favorecer dos recursos midiáticos que a televisão proporcionava.

Não obstante, foi crescente a aceitação e adesão do público aos festivais, tornando-os cada vez mais apreciados por um público igualmente cada vez mais amplo, vindo a constituir-se como programa de predileção entre os espectadores, obtendo grande visibilidade e caracterizando-se, efetivamente, como um evento midiático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

“António Calvário – Eurovisão”. Rádio e Televisão, 08 fev. 1964.

“A Tourada do Dinheiro”. O Século Ilustrado, 14 abr. 1973, pp. 06-12.

BLANCHARD, Margareth A. The Mass Media in the United States. Chicago/London: Fitzroy Dearborn Publishers, 1998.

BORÉM, F.; TAGLIANETTI, A. P. Trajetória do canto cênico de Elis Regina. Per Musi, Belo Horizonte, nº 29, 2014, pp. 39-52.

CÁDIMA, Francisco Rui. O Fenómeno Televisivo. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995.

______. Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

CALLIXTO, João C.; ISIDRO, Júlio. Festival RTP da Canção, 1964-1988: A Festa das Canções, vol. 1. livreto/DVD. Lisboa: RTP Edições/ Público-Levoir, 2018a.

______; MANGORRINHA, Jorge. Portugal 12 pts: Festival da Canção. Lisboa: Âncora Editora, 2018.

CASTRO, José Hugo Pires. Discos na Luta: A canção de protesto na produção fonográfica em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. Lisboa: UNL, 2012, 220 pp.. Dissertação (Mestrado) – Mestrado em Ciências Musicais, variante de Etnomusicologia,

Departamento de Ciências Musicais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2012.

COSTELLA, A.. Comunicação – do Grito ao Satélite. São Paulo: Editora Mantiqueira, 1978.

DIAS, Tiago. Há 50 anos, nascia a MPB; protagonistas lembram festival que cunhou o termo. Uol, 07 abr. 2015. Disponível em: Acesso em: 03 ago. 2017.

“‘Ele e Ela’ para o Grande Prémio Eoruvisão da Canção Europeia – 1966”. TV, 20 jan. 1966.

MANGORRINHA, Jorge. Festival RTP da Canção: Uma história de 50 anos (1964- 2014). Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2014.

MONTEIRO, José Fernando. S.. Música na TV: A televisão na difusão da Música Popular Brasileira e a mimese através dos programas musicais televisivos. In: ALBUQUERQUE, Luiz Botelho; ROGÉRIO, Pedro; NASCIMENTO, Marco Antonio Toledo. Educação Musical: Reflexões, Experiências e Inovações. Fortaleza: Edições UFC, 2015a. ______. História Global e Festivais da Canção: Brasil e Portugal. In: Simpósio Nacional de História – ANPUH-SC, 28, Florianópolis, 2015b. Anais [Eletrônico]... Florianópolis, UFSC, 2015b, 15 pp.. Disponível em: Acesso em: 20 nov. 2015.

______. Vem, vamos embora: Os festivais da canção como espaço de difusão ideológica. In: Encontro Brasileiro de Pesquisa em Cultura, 3, Crato/ Juazeiro do Norte. Anais...Crato/ Juazeiro do Norte, 2015c.

MATTOS, Sérgio. História da Televisão Brasileira: Uma visão econômica, social e política. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: Uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.

Memórias da Ditadura [site]. “Música no Brasil da ditadura – A era dos festivais”. Disponível em: Acesso em: 09 abr. 2017.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a Canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969). São Paulo: Ed. AnnaBlume/FAPESP, 2001.

PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca. Opus, Goiânia, vol. 15, nº 1, jun. 2009, pp. 37-61.

“Rescaldo de Copenhaga”. TV, 02 abr. 1964.

SANTOS, Ary dos; CARVALHO, Ruben de. As Palavras das Cantigas. 4ª edição. Lisboa: Edições Avante!, 1989.

SILVA, Manuel J. Lopes da; TEVES, Vasco Hogan. Vamos Falar de Televisão. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.

“Sucesso de ‘A Banda’ Faz Disco Sumir em Poucas Horas”. O Globo, 13 out. 1966. Disponível em: Acesso em: 07 mar. 2014.

TERRA, Renato; CALIL, Ricardo. Uma Noite em 67. São Paulo: Planeta, 2013.

TEVES, Vasco Hogan. História da Televisão em Portugal. Lisboa: TV Guia Editora, 1998.

THAYER, Allen. Black Rio: Brazilian soul and DJ culture’s lost chapter. Illustration by Alberto Forero. Wax Poetics, New York, nº 16, abr./ mai. 2006, pp. 88-106.

Uma Noite em 67. Dir. (es) Renato Terra; Ricardo Calil. Documentário. Brasil, 2010.