I

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS

CENTRO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA

CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES EM PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DA REDE FERROVIÁRIA FEDERAL EM LIQUIDAÇÃO

DISSERTAÇÃO APRESENTADA À ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

TERESA CRISTINA DE OLIVEIRA NUNES

II

Agradecimentos

Às minhas maravilhosas e carinhosas filhas Patrícia e Ana Clara, razão de minha vida, companheiras inseparáveis em todos momentos.

À minha amiga e orientadora, professora Valderez Fraga, a quem tenho profunda admiração pela conduta acadêmica e pela seu modo de ser. Sabe ser exigente com doçura, sabe ser firme com mansidão. Compreensiva e carinhosa, fez da realização deste trabalho um momento inesquecível do meu crescimento profissional.

Aos meus pais, que sempre valorizaram o estudo e incentivaram o meu desenvolvimento.

Às minhas colegas Maira, Marcela e Marne, mestres pela Fundação Getúlio Vargas, pela amizade construída a partir da alegria dos nossos encontros e do apoio, incentivo e colaboração nos momentos mais difíceis.

Ao meu Chefe Marco Henrique de Araújo, por perceber que oportunidade de realização do mestrado era importante para a minha vida profissional.

Aos meus colegas Luiz Ielo e Eizi Nomyia, pela paciência e companheirismo durante o tempo em que cursei o mestrado e escrevi a dissertação.

A todos os meus colegas da RFFSA, que foram tão prestativos e carinhosos durante a realização deste trabalho.

Aos funcionários da Secretaria da Fundação Getulio Vargas, em especial, a Joarez, sempre pronto a auxiliar na resolução de qualquer problema.

A todos, meu muito obrigado!

III

Resumo

Este estudo apreende as vivências dos funcionários que permanecem na empresa Rede Ferroviária Federal S. A. (RFFSA) até os últimos períodos da existência dessa organização, para compreendê-las, analisando-as através de fundamentos teóricos para a geração de conhecimento sobre as relações das pessoas em processos críticos, como é o caso de uma liquidação.

Por se tratar de uma empresa ferroviária, cuja presença se confunde com a experiência nacional, foram investigados o seu passado histórico, as implicações sociológicas do processo de desestatização e da liquidação para a extinção, à luz da cultura, do novo contexto das organizações, complementados por uma abordagem fenomenológica. A partir da consideração dessa dimensão filosófica das relações objeto deste estudo, o ser ferroviário pôde se revelar mais amplamente.

Os métodos empregados incluem pesquisa bibliográfica e documental de forma a descrever a empresa e fornecer o material para aprofundamento do estudo do empregado ferroviário em termos de cultura e valores.

A postura assumida na investigação foi de compartilhamento com sujeitos, incluindo o próprio pesquisador. Algumas características foram levantadas com base em questionários, e as entrevistas foram realizadas para que se mostrassem aquelas respostas a questões que não são capazes de se dar a conhecer em números.

O que emerge como aprendizado fundamental nas conclusões pode ser resumido da seguinte forma: a compreensão de uma organização como um recorte descolado da sociedade é um desvio do sentido da relevância do humano, já que as implicações da suas ações no mundo da vida são ignoradas e que os seus impactos não são considerados concretos. Esse aprendizado especial, que o caso enfocado ajudou a clarificar e que serve de alerta a liquidantes e empregados, independentemente de hierarquia, não se limita às liquidações. O fenômeno que se mostra por si mesmo nessa categoria de estratégia de gestão é que o afastamento dessa relevância do humano surge com maior dramaticidade.

IV

Abstract

This study apprehends the living experiences of the RFFSA employees who still remain in the organization until its final moments of existence. In order to comprehend and analyze these experiences to generate knowledge related to personnel relationships in critical management realities as it is the case in a process of organizational liquidation.

Due to the fact that the case study focus on a railroad enterprise, the presence of which is inherent to the history of the nation, social implications related to that liquidation process were investigated under cultural concepts, new organization context, added to a phenomenological approach. Through the consideration of that philosophical dimension of the relationships which constituted the object of this study, the railroader being could be more broadly understood.

The employed methods include bibliographic and documental research to describe the organization and to reinforce sources for a deeper study of the railroad employee’s culture and values. The posture assumed in that investigation was participation with the subjects including the researcher. Some characteristics were extracted out of questionnaires and interviews as a means of answering questions which would not come out trough numbers. What emerges as a fundamental learning in the conclusions can be summarized as follows: the understanding of an organization as a slice detached from society, is a deviation from human relevance paths, since implications of human actions in leabenswelt are ignored and their impacts are not considered concrete. That especial learning which the case study helped to clarify and which is an alert to liquidators and employees, independently of hierarchy, is not limited to liquidation processes. The phenomenon which shows itself in that strategic category of management is that its deviation from human relevance appears in higher dramaticism.

V

Siglas Utilizadas

ANTT - Agência Nacional de Transportes Terrestres

FEPASA - Ferrovia Paulista S. A

PID - Programa de Desligamento Voluntário

RFFSA - Rede Ferroviária Federal S. A.

TKU - Tonelada-quilômetro-útil

VI

Lista de Figuras e Tabelas e Quadros

Figura 1 Locomotiva centenária em Porto Velho 79 Figura 2 Parte interna de uma oficina de locomoção de Araguari 97 Figura 4 Recorte do Jornal da Associação de Engenheiros Ferroviários Ano X, n0 9, 153 fevereiro/2003

Tabela 1 Número de novos contratos patrimoniais 63 Tabela 2 Classificação e distribuição dos bens não o 64 Tabela 3 Processos ativos por natureza 64

Quadro 1 Programa de Desligamento de Pessoal - 1995-2001 5 Quadro 2 Aspectos e características-chave da cultura brasileira 29 Quadro 3 Malha Ferroviária da RFFSA em 1957 51 Quadro 4 Concessionárias originárias da RFFSA 58 Quadro 5 Situação da RFFSA em liquidação em 27/04/2000 61 Quadro 6 Aspectos e características-chave da cultura RFFSA 71 Quadro 7 Objetivos dos subsistemas de Pessoal 83 Quadro 8 Principais Programas de Pessoal da RFFSA 84 Quadro 9 Redução mínima do número de empregados (1994) 87 Quadro 10 Perfil da força de trabalho da RFFSA em novembro de 1995 88 Quadro 11 Programa de incentivo à redução de pessoal 88 Quadro 12 Cronograma do programa de desligamento voluntário 90 Quadro 13 Redução do no de empregados implementado pelas concessionárias 91 Quadro 14 Redução da Força de Trabalho 94 Quadro 15 Temas das perguntas do questionário 101 Quadro 16 Estrutura da ação, critérios, dimensões, objetivos, sentido 122 Quadro 17 Visão dos entrevistados sobre o transporte ferroviário no Brasil 156 Quadro 18 Visão dos entrevistados sobre transporte de passageiros 157 Quadro 19 Sentimentos dos entrevistados quanto à situação da ferrovia 158 Quadro 20 Visão dos entrevistados quanto ao trabalho na empresa 161 Quadro 21 A possibilidade de permanência na empresa 163 Quadro 22 Uma auto-avaliação que revela a singularidade dos ferroviários 166 Quadro 23 A cristalização da empresa e a questão da marca RFFSA 169 Quadro 24 O sentido de ser ferroviário 174

VII

Lista de Gráficos

Gráfico 1 Distribuição por Sexo 125 Gráfico 2 Distribuição por faixa etária 126 Gráfico 3 Distribuição por estado civil 127 Gráfico 4 Distribuição por escolaridade 127 Gráfico 5 Localização da residência por zona 128 Gráfico 6 Bairros mais freqüentes 129 Gráfico 7 Bairro onde mora possui ferrovia? 129 Gráfico 8 Possuem filhos menores 130 Gráfico 9 Acreditam em Deus 131 Gráfico 10 Atividades Físicas 131 Gráfico 11 Atividades de Lazer 132 Gráfico 12 Atividades extras 133 Gráfico 13 Realização de curso nos últimos três anos 134 Gráfico 14 Cursos realizados nos últimos três anos 135 Gráfico 15 Tempo de Serviço na RFFSA 136 Gráfico 16 Existência de vínculo familiar 137 Gráfico 17 Número de empregados por tipo de vínculo familiar 137 Gráfico 18 A RFFSA como primeiro emprego 138 Gráfico 19 Adequação à nova função a partir da liquidação da RFFSA 139 Gráfico 20 Funções na RFFSA de acordo com a graduação ou especialização 140 Gráfico 21 Avaliação dos empregados sobre o ambiente atual 141 Gráfico 22 Avaliação dos empregados sobre o relacionamento com os colegas 142 Gráfico 23 Avaliação dos empregados sobre o desempenho dos gerentes 143 Gráfico 24 Avaliação dos empregados sobre o seu desempenho 144 Gráfico 25 Grau de influência da decretação da liquidação da RFFSA na vida pessoal 145 Gráfico 26 Acreditam na manutenção do emprego com a extinção da RFFSA 146 Gráfico 27 Atribuição de causas da decretação da liquidação 147 Gráfico 28 Empregados por tempo necessário para se aposentar na proporcional 149

VIII

Sumário

1 - INTRODUÇÃO 1 1.1 - Contexto do Problema 2 1.2 - O Problema 7 2 - METODOLOGIA 8 2.1 - Objetivos e Questões 8 2.2 - Delineamento da Pesquisa 12 2.3 - A Postura Fenomenológica 13 2.4 - População e Sujeitos 15 2.5 - Procedimentos e Coletas de Dados 16 . 2.6 - Opção por uma Fase Exploratória na Pesquisa de Campo: Por Quê? 17 2.7 - Análise de Dados 18 2.8 - Limitações do Método 19 3 - CULTURA E HISTÓRIA DA RFFSA 21 3.1 - Aspectos Culturais Brasileiros na Análise de uma Organização Pública 21 3.1.1 - O Conceito de Cultura 22 3.1.2 - O Sentido de Ser Brasileiro 27 3.1.3 - A Empresa Pública Burocrática Brasileira 31

3.2 - Breve Retrospectiva Histórica do Império à RFFSA em Liquidação 31 3.2.1 - O Império 31 3.2.2 - O Papel da Inglaterra 34 3.2.3 - A Primeira Ferrovia do Brasil – a Estrada de Ferro Mauá 35 3.2.4 - A OPOSIÇÃO 37 3.2.5 - A FERROVIA DA INTEGRAÇÃO – A ESTRADA DE FERRO 38 D. PEDRO II 39 3.2.6 - A Encampação pelo Governo Imperial 40 3.2.7 - Cristiano Ottoni e o Futuro das Ferrovias no Brasil 41 3.2.8 - A Questão da Bitola Ferroviária 41 3.2.9 - O PLANO DE VIAÇÃO DE PREDOMINÂNCIA 43 FERROVIÁRIA DO IMPÉRIO 43 3.2.10 - A REPÚBLICA 44 3.2.11 - A POLÍTICA DE TRANSPORTES NA REPÚBLICA 46 3.2.12 - A DECADÊNCIA DO TRANSPORTE FERROVIÁRIO 47 3.2.13 - O NOVO ESTADO QUE EMERGE EM 1930 48 3.2.14 - O PLANO SALTE 48 3.2.15 - O GOVERNO VARGAS 49 3.2.16 - A COMISSÃO MISTA BRASIL-ESTADOS UNIDOS 50 IX

3.2.17 - OPOSIÇÃO AO VARGAS 50 3.2.18 - O PROGRAMA DE METAS 54 3.2.19 - A RFFSA 56 3.2.20 - A QUESTÃO DO DÉFICIT FERROVIÁRIO 57 3.2.21 - A REFORMA DE ESTADO E A FERROVIA 58 3.2.22 - A DESESTATIZAÇÃO DA RFFSA 58 3.2.23 - A DECRETAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO DA RFFSA 3.2.24 - A Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT 3.3 - A Gestão da RFFSA em Liquidação 60 3.4 - Leitura Crítica da Cultura da Empresa a partir de sua Trajetória Histórica 65 4 - OS RECURSOS HUMANOS E AS SUAS POLÍTICAS 73 4.1 - Gestão de Pessoas no Novo Contexto Organizacional 73 4.2 - O Humano e Social na Ferrovia 77 4.2.1 - O Pioneirismo 77 4.2.2 - O Trabalhador Ferroviário 81 4.2.3 - A Influência do Transporte Ferroviário no Mundo da Vida 82

4.3 - O Sistema de Pessoal da RFFSA 83 4.4 - A Política de Recursos Humanos na Desestatização 86 4.4.1 - A Implantação dos Programas 89 4.4.2 - O Programa de Incentivo à Aposentadoria 90 4.4.3 - O Programa de Demissão – Pacote de Incentivos 90 4.4.4 - O Programa de Treinamento 91 4.4.5 - O Programa de Recolocação Profissional 92 4.4.6 - O Programa Sobre a Situação do Ex-empregados 92 4.4.7 - O Programa de Treinamento dos Empregados da RFFSA 93 Remanescente 4.4.8 - Considerações Finais 93

4.5 - Os Recursos Humanos na RFFSA em Liquidação 98 5 - A PESQUISA DE CAMPO 100 5.1 - Elaboração do Questionário 100 5.2 - A Pesquisa Exploratória e Teste do Questionário 102 5.3 - Distribuição e Recepção dos Questionários 103 5.4 - Divulgação dos Primeiros Resultados dos Questionários Dentro da 105 Empresa

5.2 – Elaboração da Entrevistas 105 6 - ANÁLISE DE RESULTADOS 108 6.1 - Fundamentos Fenomenológicos para Análise de Resultados 109 6.1.1 - O Fenômeno 114 6.1.2 - O Que é Fenomenologia 114 6.1.3 - A FENOMENOLOGIA NA GESTÃO 117 6.1.4 - O Humano na Gestão 121 X

6.2 - O Que os Dados Quantitativos Descrevem 126 6.2.1 - Perfil do Empregado 126 6.2.2 - Desenvolvimento profissional 135 6.2.3 - Relações com a Empresa 137 6.2.4 - Síntese dos Principais Resultados do Questionário 151

6.3 - As Percepções dos Empregados 152 6.3.1 - Visão dos Entrevistados sobre o Transporte Ferroviário no Brasil 154 6.3.2 - A Visão dos Entrevistados sobre Transporte de Passageiros 156 6.3.3 - Os Sentimentos dos Entrevistados quanto à Situação da Ferrovia 157 6.3.4 - A Visão dos Entrevistados quanto ao Trabalho na Empresa 159 6.3.5 - Os Entrevistados e a Possibilidade de Permanência na Empresa 161 6.3.6 - Uma Auto-avaliação que Revela a Singularidade dos Ferroviários 164 6.3.7 - A Cristalização da Empresa 167 6.3.8 - A Questão da Marca RFFSA 168 6.3.9 - O Sentido de Ser Ferroviário 171 6.3.10 - Outras Considerações 172 6.3.11 - Síntese dos Resultados das Entrevistas 175

6.4.- As Possibilidades para Novas Pesquisas 176 7 - CONCLUSÃO 178 BIBLIOGRAFIA 191 ANEXOS 198

1

Capítulo 1 - INTRODUÇÃO

Os avanços tecnológicos do século vêm transformando rapidamente os cenários científicos e sociais. Para enfrentar essa onda de mudanças, novas formas de organizações estão surgindo ao mesmo tempo em que são realizadas novas descobertas genéticas ou globaliza-se a economia.

Esse fenômeno atinge da mesma forma os governos. Certamente um novo Estado mais eficiente e eficaz faz-se necessário. Um Estado forte, ágil e oxigenado, que cumpra o seu papel social é anseio de toda a sociedade. Nesse caminho, acertos e tropeços são partes do processo que, no Brasil, começou nos anos 80.

É no governo do presidente Fernando Collor de Melo, na década de 90, que se inicia o processo de abertura econômica com a pressão da globalização da economia. Empresas transnacionais que podem alcançar inovações tecnológicas aceleradas, recursos financeiros abundantes, mão-de-obra qualificada a baixo custo e novos mercados criam uma nova ordem mundial, incrementada pela ausência de fronteiras.

O Brasil tem, como país periférico, que se adequar a essa nova realidade, que provoca a redução do Estado a fim de prover a livre operação do mercado global, segundo a premissa do modelo globalizante. Mas as mudanças no cenário político nacional com o impeachment do referido presidente e a posse do vice Itamar Franco atrasam a reorganização pretendida.

Somente após a implantação do Plano Real é que a tese de desestatização se amplia, sendo justificada pela falta de recursos e pelo agravamento da propalada falta de eficiência da administração das empresas públicas. Nesse contexto, surge a Reforma de Estado que exclui a

União das atividades produtivas, no caso a operação do transporte ferroviário de cargas. 2

Esse enfoque técnico e econômico permeou as ações da Reforma de Estado. As condições humanas, culturais e sociais não foram levantadas e, conseqüentemente, consideradas nas ações inseridas nos planos e programas das políticas implantadas. Observou- se que os problemas apontados como dificuldades e impossibilidades de sucesso da Reforma de Estado foram os servidores, os políticos e as questões culturais brasileiras (TEIXEIRA,

1997), (COSTA, 1998), (POLLIT, 2001).

Não é possível simplificar para definir políticas, tudo é muito complexo. Assim esta investigação remete-se à necessidade de compreender essas questões dentro do setor ferroviário. A partir da história, da cultura, das influências sociais e da compreensão do humano, como blocos fundantes da realidade concreta da instituição Rede Ferroviária Federal

- RFFSA, buscou-se o referencial teórico.

1.1 - Contexto do Problema

Em todo o decurso da história da ferrovia brasileira, seja em seus momentos como iniciativa privada ou subordinada à administração do governo, apresenta-se como uma história de empreendedores apaixonados, governos e desgovernos. A política do transporte ferroviário, desde seus primórdios, foi norteada de numerosos equívocos que, de conseqüências irreversíveis, geraram serviços onerosos e ineficientes em termos de números, qualidade e traçados incorretos. A ferrovia foi um instrumento de subjugação ao imperialismo econômico.

A ferrovia brasileira, por diversas décadas, envolveu, em sua operação, um grande número de trabalhadores espalhados por todo o território nacional. Além disso, devido ao caráter de precursor de desenvolvimento que tem esse transporte, várias cidades foram construídas ao redor de linhas férreas, como Marília e Araçatuba no Noroeste de São Paulo e 3

Três Lagoas no Mato Grosso do Sul, fazendo com que o trem integre o imaginário brasileiro.

Tudo isso indica a riqueza que pode ser apreendida numa empresa que, durante décadas, foi a representante do setor ferroviário brasileiro. Seu nome, RFFSA, é a marca da ferrovia brasileira.

Em 1992, o Decreto 473 inclui a RFFSA no Programa Nacional de Desestatização -

PND, que institui a concessão da operação ferroviária e o arrendamento dos bens da RFFSA.

Assim, a empresa foi dividida em seis malhas de forma a facilitar a venda nos leilões de privatização, além de incluir a FEPASA (Ferrovia Paulista), que era administrada pelo Estado de São Paulo.

O modelo de privatização adotado consistiu em: transferência das cinco malhas regionais, por meio de leilões, na concessão do serviço de transporte ferroviário; arrendamento dos ativos operacionais e na preservação da empresa, a fim de equacionar o passivo e vender os ativos não arrendados.

A primeira malha foi privatizada em 1996 e a última em 1999. A RFFSA, livre de toda a operação ferroviária, com um enorme passivo trabalhista, estimado na época em R$ 480 milhões de reais e com em torno de 22.000 imóveis não operacionais e cerca de 39.000 processos judiciais em que na maioria é ré, teve sua liquidação decretada em dezembro de

1999 por um prazo de seis meses.

O Banco Mundial, como facilitador do processo de desestatização, financiou o projeto de reestruturação e privatização da RFFSA, que implementava diversos programas, entre eles os da Área de Pessoal como o programa de desligamento de pessoal, o treinamento para reconversão profissional dos ex-empregados e realocação de empregados desligados no mercado de trabalho. 4

Um programa de desligamento de pessoal com grandes dimensões causa impactos econômicos e conseqüências sociais, principalmente se considerarmos as condições de um país em vias de desenvolvimento. Vale lembrar que a maioria dos empregados nesse setor públicos possui longos anos de serviços prestados, baixos salários e pouca qualificação para ingressar na conjuntura adversa de um mercado de trabalho muito reduzido. A Reforma do

Estado e a introdução de novas tecnologias tornam um grande contingente de trabalhadores rapidamente dispensáveis.

Com o propósito de administrar essa situação, em alguns casos dramática, diversos instrumentos de gestão foram utilizados de acordo com os dados a seguir.

Foi estabelecido um prêmio, além das verbas rescisórias, que possibilitasse ao empregado desligado a abertura de um novo negócio, ou um suporte financeiro até seu reingresso no mercado de trabalho. Segundo (KAZNAR, 1997, p.151), na construção de um valor econômico-financeiro justo de desligamento, é preciso aliar fatores mensuráveis e não mensuráveis. Porém, no caso RFFSA, devido ao universo de 18.047 empregados a desligar, esse valor ficou entre quatro e 12 salários e a base foi, somente, o tempo de serviço na empresa. Outros fatores como qualificação e idade não foram considerados.

A primeira etapa foi a implantação do Plano de Incentivo à Aposentadoria em 1995.

Subseqüentemente, iniciaram-se os Planos de Incentivo ao Desligamento - PID e Plano de

Desligamento Incentivado – PDI. A adesão voluntária, PID, significava que o empregado receberia o valor integral - 100% do valor de prêmio – senão, a iniciativa seria da empresa, com o valor a receber reduzido em 20%.

O clima organizacional existente na empresa foi e tem sido, até hoje, um dos grandes incentivadores ao desligamento. Dentre os fatores de desmotivação podem ser citados: a degradação dos salários, a ingerência política no provimento de cargos gerenciais, a falta de 5

material de trabalho, de recursos para a conservação das instalações físicas e, até mesmo, no período anterior à liquidação, de condições higiênicas, o atraso e parcelamento de salários ou as constantes mudanças de local de trabalho. Além disso, existe a falta de perspectiva em relação à sobrevivência da empresa devido ao processo de liquidação.

Cabe ressaltar que os empregados da RFFSA tinham, em 1995, em média, 43 anos de idade, 18 anos de empresa e salários acima de nove salários mínimos. O nível de escolaridade predominante era o intermediário - 2º grau. O sistema ferroviário era monopólio do Estado o que significava a inexistência, no mercado, de empregos substitutos. As opções para aqueles que não podiam pedir aposentadoria foram a abertura do próprio negócio, incentivado pelas campanhas do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso em prol da micro-empresa, concursos públicos e informalidade. O quadro 1 (um) demonstra os totais de desligamentos alcançados.

Quadro 1 Programa de Desligamento de Pessoal - 1995-2001 Realizado Redução do Total % MALHA Metas Maio/95 a setembro/2001 Efetivo até Geral Reali- Desligado Aposenta Total dez/2000 pelas zado do Concessionárias Nordeste 1909 1.270 1.750 3.020 720 3.740 196% Centro- 5.575 1.702 2.219 3.921 5.251 9.172 165% Leste Sudeste 4.624 1.255 2.357 3.612 3.253 6.865 148% Sul 4.547 743 3.021 3.764 4.274 8.038 177% Tubarão 30 77 55 132 65 197 657% Oeste 772 341 550 911 1.151 2.062 267% AG 590 765 158 923 0 923 156% Total 18.047 6.173 10.110 16.283 14.714 30.997 172% RFFSA FEPASA 2.300 1.576 2.382 3.058 132% Total Geral 20.347 17.859 17.096 34.955 172% Fonte: RFFSA em liquidação, 2001.

Os números de desligamentos impressionam e, se considerarmos que por trás de cada número existem, normalmente, duas ou mais pessoas, ficam ainda mais espantosos. Pode-se 6

imaginar quantas pessoas tiveram suas vidas atingidas, muitas vezes, por mudanças para um nível de vida pior, para a insegurança e para a desesperança. As Reformas são, sem dúvida, necessárias, porém o sacrifício de alguns também tem sido inevitável.

Infelizmente, devido à situação salarial precária de grande número de servidores e funcionários de estatais, há mais de oito anos sem reajustes, o prêmio, que deveria favorecer oportunidades para a transição desse ex-empregado em seu reingresso na vida profissional no mercado de trabalho, acaba desviado, muitas vezes, para equacionar dívidas.

Constata-se inclusive que, aqueles que têm menor possibilidade de oportunidades no mercado, os de nível intermediário e de baixos salários, foram os que mais aderiram aos planos de incentivo à demissão. Os mecanismos de coerção pelos quais vem passando o trabalhador ferroviário podem ser a explicação para a o sucesso na adesão ao Plano de

Desligamento de Pessoal.

Contudo, a RFFSA em liquidação tem em seu quadro funcional, hoje, em torno de 570 empregados que, mesmo considerando-se aqueles que não possuem alternativas, permanecem na empresa, trabalhando com dedicação e profissionalismo que parece valer a pena. Neste ponto, recorrer a Motta pode oferecer uma boa ilustração desse contexto. “Um homem trabalha para uma corporação ou para um sindicato ou igreja essencialmente pela mesma razão geral, que é o fato disso valer a pena” (MOTTA, 1981, p. 178).

Passaram-se cinco anos desde a privatização da primeira malha até a sanção da Lei no

10.233 de cinco de junho de 2001, que criou a Agência Nacional de Transportes Terrestres -

ANTT. Esse lapso de tempo entre as privatizações e a criação da agência já pode ser considerado como uma dificuldade na implementação do modelo de agências reguladoras.

Entretanto, o processo de liquidação da RFFSA tem se revelado, para o Governo, como uma tarefa assaz complexa devido à dificuldade em quitar seu passivo e vender seus ativos. Esse 7

fato vem provocando a renovação do processo de liquidação e a nomeação de novos liquidantes.

1.2 - O Problema

O objeto deste estudo foi: a dimensão humana do processo de reorganização de um dos monopólios estatais, a ferrovia, delimitado pelo processo de extinção da RFFSA, no

âmbito do relacionamento e da postura assumida na gestão entre as pessoas que permaneceram na empresa durante os últimos anos de sua liquidação.

O problema que se investigou pode ser resumido com a seguinte questão: que aprendizado é possível transformar em conhecimento para a gestão de pessoas que atuem em organizações em processos críticos, como é o caso de sua própria liquidação, a partir da compreensão das vivências dos funcionários que permanecem na empresa enfocada, até os

últimos períodos da existência da organização?

Para responder adequadamente à questão formulada no problema, a investigação começou pela formulação de seu objetivo final, conforme exposto a seguir. 8

Capítulo 2 - METODOLOGIA

Este trabalho objetivou apreender, analisar e discutir participativamente ações, reações, resultados e conseqüências da gestão e da auto-gestão desses funcionários envolvidos no processo de liquidação, a fim de destacar as características dessas relações e fazer ver o sentido que circula na postura apresentada, procurando compreender o que parece mover os funcionários, de maneira que continuem na empresa, executando seu trabalho, apesar da ausência de segurança, estabilidade e perspectivas futuras.

2.1 – Objetivos e Questões

O objetivo final desta pesquisa foi apresentar e avaliar os impactos do processo de liquidação da RFFSA sobre o contingente de recursos humanos que permaneceu na empresa nos últimos períodos de seu processo de liquidação, caracterizando suas ações, reações e postura, apreendendo o sentido que circula nas relações entre esses funcionários e a empresa em busca de aprendizado para lidar com situações críticas, decorrentes de processos de liquidação.

Essa investigação proporcionará as respostas as questões de estudo expostas a seguir:

· O que é o processo de liquidação da RFFSA - corpo e espírito - e como se

insere na história da ferrovia brasileira?

· Quais os aspectos históricos e culturais da RFFSA que mostram o sentido do

ser ferroviário brasileiro?

· Qual a política de recursos humanos dentro do contexto da reforma de Estado,

no que se refere à desestatização da RFFSA? 9

· Como vem sendo conduzido o processo de liquidação? Quais os principais

resultados?

· O que é possível apreender sobre as percepções dos empregados da RFFSA

diante do processo de liquidação? Quais os principais impactos?

· Quais são as suas crenças, valores e perspectivas pessoais e profissionais?

· Que aprendizados se mostram nas vivências das pessoas?

Supõe-se que esse esforço por encontrar as raízes pode favorecer uma melhor compreensão da situação atual do humano na organização, considerando a sua cultura, desenvolvida ao longo de sua história e cuja memória viva pode manifestar o espírito da empresa nas pessoas.

O estudo dos impactos nos recursos humanos nas organizações em mudança vem sendo objeto de pesquisa sob abordagens diversas. Na empresa enfocada, existe a necessidade de buscar a sua compreensão, a partir da percepção que revela ao sujeito a significação de uma coisa (MERLAU-PONTY, 1996), buscar o seu sentido pois, as organizações, por serem humanas, corpo e espírito, não apenas organismos com movimento mas com ações intencionais com sentido próprio, são extremamente complexas.

Quanto aos aspectos culturais e de clima organizacional, foram observados apenas aqueles que puderam fornecer elementos para a análise e interpretação dos dados obtidos durante a pesquisa. O estudo completo da cultura da empresa e de seu clima organizacional não é objeto desta investigação.

O estudo reportou-se ao passado da organização, até mesmo às suas origens mais remotas, anteriores ao momento em que ela assumiu a forma em atual liquidação, não apenas 10

para apresentar dados históricos, mas para possibilitar que o presente se mostre em sua densidade autêntica, considerando a concepção fenomenológica de tempo segundo Merlau-

Ponty (1996): o passado, por ser passado não deixa de existir.

O estudo de caso ofereceu uma contribuição ao conhecimento científico sobre gestão especificamente em situações de liquidação de empresa pública, ao investigar e explicitar experiências e vivências em geral muito críticas, fazendo emergir um aprendizado a partir de comportamentos, ações, reações e postura dos servidores que permanecem em plena atividade até os últimos momentos da vida da empresa.

Esse enfoque essencialmente humano não costuma ser o prioritário nos estudos sobre o tema (AMORELLI, 2003), (PEREIRA, 2001), e pode ser considerado muito importante, caso seja compreendido como possibilidade de cumprir essas determinações legais nos seguintes termos: da melhor maneira possível, com o menor dano possível à auto-estima dos envolvidos, com as melhores possibilidades possíveis para novos horizontes profissionais dos que concluíram a jornada da organização, não somente com dignidade e com as competências anteriormente adquiridas, mas havendo desenvolvido novas habilidades, conhecimentos e talentos para recomeçar.

Assim, a investigação do processo de extinção da empresa, como o de desligamento de seu pessoal e em especial das atividades dos que permanecem até o final, pode contribuir para a produção de conhecimento sobre conseqüências da Reforma do Estado dentro de suas organizações nos limites das implicações humanas enfocadas.

Os estudos sobre gestão de pessoas e mudança organizacional, situados na literatura especializada (SCHEIN, 1978), COLLINS(2000), (DRUCKER, 1995), (CHIAVENATO,

1999), (TACHIZAWA, 2001), (MOTTA, 1998), (JATAHY, 2003), (MAGALHÃES, 2001),

(LAGO, 2002), são resultantes de trabalhos realizados em empresas que buscam a sua 11

sobrevivência e otimização de seus processos e as relações humanas envolvidas. Nesse estudo, no entanto, a empresa está em fase terminal e seu capital humano está sendo desintegrado.

Além disso, a administração pública brasileira vem se transformando com o advento da Reforma de Estado proposta por Luis Carlos Bresser Pereira, que reestruturou e mudou o papel do Estado, retirado das atividades produtivas. Carece, entretanto, de estudos que avaliem os impactos naqueles que serviam ao Estado e foram, praticamente, descartados como pessoas que não teriam mais nada a contribuir para o Governo.

Ressalte-se que a ferrovia brasileira, por diversas décadas, envolveu, em sua operação, um grande número de trabalhadores espalhados por todo o território nacional. Devido ao caráter de precursor de desenvolvimento que tem esse transporte, várias cidades foram construídas ao redor de linhas férreas. A empresa nas suas relações com a comunidade pode revelar a sua contribuição na formação de um vínculo histórico entre o brasileiro e a ferrovia, fazendo com que o trem integre o imaginário brasileiro. Tudo isso indica a riqueza que pode ser apreendida numa empresa que, durante décadas, foi a representante do setor ferroviário brasileiro. Seu nome, RFFSA, é citado até em letra de música popular brasileira, por significar para o brasileiro a ferrovia nacional.

Acrescente-se, também, o estudo da relação da empresa com o trabalhador ferroviário que mostra o espírito do ser ferroviário. O espírito que pode ainda estar vivo em uma empresa que durante seus quarenta dois anos de existência foi a representante do transporte ferroviário brasileiro e, nos últimos três anos, está em liquidação. Ele deve ser revelado, para que a ferrovia e os ferroviários resgatem a sua importância dentro da história da evolução dos transportes e da administração brasileira. 12

2. 2 - Delineamento da Pesquisa

O presente estudo caracteriza-se por um estudo de caso que se vale de métodos qualitativos sem desprezar complementações quantitativas. O diálogo foi um dos principais recursos de apreensão das vivências dos sujeitos e abordagem foi a fenomenológica.

A partir do encontro dos mundos histórico, cultural e relacional da empresa, buscou-se o referencial teórico para embasar a pesquisa. Pois, para compreender as relações, necessita-se do conhecimento da história, assim como para cuidar das relações faz-se necessária a incursão na cultura. A leitura fenomenológica é algo intenso por conta da sua densidade, mas suficiente para poder ler as percepções das pessoas, indo ao originário da história, da cultura e do que os depoimentos dos entrevistados querem dizer. Assim, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais com o objetivo de descrever mais precisamente o problema e seu contexto.

A pesquisa de campo foi desenvolvida em três etapas. A primeira foi composta pela pesquisa exploratória, na qual foi, também, elaborado e testado o questionário. A segunda etapa foi a aplicação do questionário e divulgação dos resultados na empresa. Na terceira etapa, a seleção dos sujeitos e a realização das entrevistas semi-estrutradas.

Após a análise preliminar das etapas anteriores, era objetivo desta investigação a montagem da pesquisa participante com base nas conclusões anteriores. No entanto, com base nas observações realizadas durante a aplicação dos questionários e das entrevistas, evidenciou-se que o processo de privatização e liquidação da empresa atingiu à saúde física e mental dos funcionários. Assim, optou-se por não desenvolver a pesquisa participante, pois poderia desencadear, como conseqüência da reflexão coletiva, danos psicológicos aos participantes. 13

Cabe acrescentar que a observação participante foi importante estratégia que se verificou em todas as etapas do trabalho pois, de acordo com Moreira (2002, p.52) combina desde a “[...] participação ativa dos sujeitos, a observação intensiva em ambientes naturais, entrevistas abertas e informais à análise”.

2.3 - A Postura Fenomenológica

O enfoque essencialmente humano não costuma ser o prioritário nos estudos sobre a administração, normalmente o cientificismo predomina. Nos dados empíricos conhecem-se as causas, explicam-se os fatos, mas não se compreende os processos e os recursos humanos na sua dimensão subjetiva e intencional. Será, a partir de uma descrição rigorosa das relações, conexões e linguagem do sujeito, do vivido, do fenômeno que se mostra por si mesmo, que poderá ser apreendido o sentido que circula entre os empregados e a empresa. Esse, sim, capaz de fazer emergir um aprendizado para lidar com situações críticas como o processo de liquidação de uma empresa.

A ciência tem como atividade básica a pesquisa que, exercida pelo pesquisador, a impregna com suas crenças, paradigmas e valores. Ciência é uma das formas de ter acesso ao conhecimento com algumas características capazes de distingui-las das demais. A coerência, o estudo profundo, ser passível de refutação, enfatizada por Popper (1972), e o rigor metodológico que protege a ciência e o pesquisador de erros e precipitações, utilizando um conjunto de regras capazes de fornecer segurança a pesquisa científica na consecução de seus objetivos em relação à obtenção de conhecimento.

As ciências sociais podem garantir sua cientificidade, segundo Alves-Mazzotti (2001), pela clareza do discurso científico, de modo a permitir a crítica fundamentada e diminuir a ambigüidade, assim como pela explicação dos fenômenos e não só pela descrição, 14

considerando que as ciências sociais são tanto interpretativas como explicativas. Na dimensão interpretativa, os objetivos e procedimentos são distintos dos encontrados nas ciências naturais, já na dimensão explicativa, o modelo básico é o mesmo daquelas ciências.

Diante da “tese de incomensurabilidade” de Kuhn (1971): frente a duas ou mais teorias rivais é impossível justificar racionalmente a preferência por uma delas. Considerando que nas ciências sociais a investigação tem um caráter interpretativo, o paradigma adotado neste estudo é o qualitativo.

Popper, citado por Alves-Mazzoti (2001), diz que a objetividade que podemos aspirar na pesquisa é aquela resultante da crítica dos pares. Esse processo é intersubjetivo, portanto, impossível de desconsiderar os vieses do pesquisador, decorrentes de sua experiência individual, sua inserção social e de sua história. Ressaltando-se que, de acordo com Easterby-

Smith e Thorpe (1999), devem ser reconhecidas as próprias visões e experiências, mas não se permitir ser arrastado por elas, pois é preciso buscar evidências que possam confirmar ou desmentir aquilo que em geral se acredita ser verdade.

Quanto à crítica, seja qual for o paradigma adotado, deve ser bem-vinda como uma forma de construção do conhecimento e de respeito o trabalho realizado. Ressaltando-se que a visão de mundo do pesquisador pode influenciar a seleção de métodos e critérios a respeito da qualidade e valor de resultados.

Em contraste com o método científico, porém não incompatível com ele, a atitude fenomenológica veio para oferecer uma complementação que amplia os resultados deste estudo, conforme é exposto a seguir.

Enquanto a abordagem científica levanta características das relações enfocadas, a abordagem fenomenológica faz aparecer o sentido para o qual essas características estão 15

orientadas. Em um estudo de caso que procura apreender e aprender com as vivências dos sujeitos os quais, devido ao porte, à estrutura em rede da empresa e à sua história se misturam com a história da nação brasileira, essa questão do sentido é muito importante, porque faz aparecer qual tem sido o seu papel: um grande negócio ou um empreendimento de amplas implicações estratégicas e sociais que extrapolariam os limites da organização.

Assim, a postura fenomenológica neste trabalho:

· Com a fenomenologia para compreender o humano na sua dimensão subjetiva

e intencional;

· A partir de uma descrição rigorosa das relações, conexões e linguagem do

sujeito, do vivido, do fenômeno que se mostra por si mesmo;

· Para apreender o sentido que circula entre os empregados e a empresa;

· Para fazer emergir o fenômeno do aprendizado para lidar com situações

críticas como o processo de liquidação da organização.

2.4 - População e Sujeitos

A população da pesquisa foi constituída de todos os 13 escritórios regionais, a representação de Brasília (REBRA) e a administração geral (AG), com sede no Rio de

Janeiro, da RFFSA em liquidação, com as suas respectivas coordenadorias, e os empregados cedidos a ANTT, totalizando 570 empregados. Os escritórios regionais da RFFSA em liquidação situam-se em Recife (ERREC), Belo Horizonte (ERBEL), Juiz de Fora (ERJUF),

São Paulo (ERSAP), Curitiba (ERCUB), Porto Alegre (ERPOA), Salvador (ERSAV),

Campos dos Goytacazes (ERCAM), Tubarão (ERTUB), Bauru, (ERBAU), Fortaleza

(ERFOR), São Luís (ERSAL) e o da ex-FEPASA (ERMAP). 16

Foram utilizados os critérios de acessibilidade e tipicidade na seleção dos sujeitos.

Basicamente os grupos de trabalho da administração geral, os escritórios regionais de Juiz de

Fora, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador e Recife e os empregados cedidos a ANTT foram convidados, pessoalmente, a responder ao questionário. Os demais escritórios regionais não foram contemplados por dificuldade de acesso. Cabe ressaltar que o número de funcionários efetivos nesses escritórios é cada vez menor, dificultando, assim, um trabalho de pesquisa que possa, realmente, representar os ferroviários daqueles estados.

2.5 - Procedimentos e Instrumentos de Coleta de Dados

Foram consultados vários os materiais publicados em livros, revistas, portarias, projetos de lei, manuais, dissertações e Internet, que puderam fornecer instrumental teórico ao desenvolvimento desta pesquisa.

Foram investigados todos os documentos existentes, tais como manuais, atas de reuniões, entre outros, que se refiram às atividades da RFFSA. Foram acessadas as bibliotecas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da RFFSA em liquidação.

A pesquisa buscou, nos documentos e na bibliografia, dados históricos e atuais que permitiram descrever a história da ferrovia, a criação da RFFSA e seu processo de liquidação, assim como os fatos que puderam explicitar toda a conjuntura atual da empresa e de seus empregados. A biblioteca da RFFSA, mesmo praticamente desativada, foi muito importante na coleta de dados.

Foram utilizados critérios múltiplos que pudessem oferecer os dados mais confiáveis e fidedignos. A observação, por exemplo, pode captar pistas não-verbais, presentes na inflexão da voz, na postura, nas expressões faciais ou até nas roupas, não esquecendo que o observador

é parte daquilo que é observado. 17

A opção por incluir um questionário na pesquisa mostrou-se como uma oportunidade de obter um maior número de informações, que poderiam explicar atitudes e posturas do empregado da RFFSA através de perguntas relativamente simples e que, principalmente, poderiam acessar um maior número de empregados. As perguntas foram elaboradas em busca de dados factuais e saberes dos empregados da RFFSA. Ou seja, aquelas informações que os empregados aceitam como algo que todo mundo sabe.

As entrevistas semi-estruturadas, em que Burgess citado por Easterby-Smith e Thorpe

(1999) assinala ser a “[...] oportunidade para o pesquisador sondar profundamente para descobrir indícios, explorar novas dimensões do problema e garantir os relatos vividos, precisos e abrangentes baseados na experiência pessoal”.

De forma a obter um resultado mais efetivo na apreensão das informações, a pesquisadora se preparou para garantir uma compreensão dos pontos de vista dos pesquisados, de suas crenças e ajudá-los no processo de reflexão que certamente esse estudo provocou, sem projetar as suas próprias opiniões e sentimentos. Porém, não foi esquecido que a relação pesquisador-pesquisado se aplica na abordagem do método utilizado nesta investigação, não como uma dificuldade, mas como um facilitador.

2.6 - Opção por uma Fase Exploratória na Pesquisa de Campo: Por Quê?

Ao atentar para a limitação da pesquisadora como funcionária da empresa, deve ser esclarecida a opção exploratória na pesquisa de campo no novo papel assumido: de funcionária à pesquisadora. Ação: realizar uma inserção e não uma intervenção no campo que ela compartilha. Postura: respeitar as pessoas que se foram e as que ainda permanecem na organização em liquidação. Desejo: de que o novo papel na organização, como pesquisadora, não a afastasse da postura de inserção que tem praticado ao longo dos anos, devido ao respeito 18

pela missão, pelo que a empresa representa para a nação brasileira e pelo clima de respeito mútuo entre os colegas. Empenho: em reforçar esse sentimento de orgulho de pertencer, que percebe no clima organizacional da empresa que se quer bem.

A pesquisadora pretendeu manter-se em permanente alerta, para não incorrer em atitude de intervencionista e violenta, procurando compreender a mensagem própria dele, a partir dele mesmo, para poder elaborar um texto em comum e não apenas segundo a pesquisadora. Aproveitou essa fase da pesquisa para testar habilidades, sensibilidade, condições para agir dessa maneira e buscar feedback. Além disso, experimentou o diálogo como possibilidade de pesquisa autenticamente com o outro visando desvelar o em comum.

2.7 - Análise de Dados

A análise de dados foi predominantemente qualitativa e interpretativa, pois se propôs a obter o conhecimento da realidade por meio de linguagem, conscientização, significados partilhados, documentos e ferramentas. Para Myers (2001) pesquisas qualitativas focam na complexidade da consciência humana ao processar as diversas situações que surgem.

A análise da pesquisa documental e bibliográfica foi o suporte para compreender as informações obtidas nas entrevistas e, historicamente, os fenômenos sociais, de acordo com

Richardson (1989).

Ao tratarmos dos dados, encontram-se percepções individuais e aquelas devidas aos grupos e a sociedade em que estão inseridas. Por isso, cada discurso foi contextualizado em termos do contexto social e histórico. Além disso, um mesmo fato pode ser interpretado de múltiplas maneiras, deve-se procurar e documentar os diversos pontos de vistas e as razões de cada um, listando os conflitos relacionados a valores e poder, em prol do respeito mútuo as diferenças e singularidades que constituem a verdade polissêmica de Muniz de Rezende. 19

Foi um processo interativo com a coleta de dados já que, numa abordagem fenomenológica, uma organização não é estática; ela é formada por pessoas que pensam e agem, agentes ativos da realidade física e social, com valores e diferenças individuais. Foi na percepção da participação de cada um, de sua contribuição ao mundo e na coexistência histórica, que se apresentou o horizonte husserliano que é capaz de fundamentar a interpretação fenomenológica na busca do sentido e do ser em aberto.

As categorias foram criadas com base na identificação de pontos comuns e forneceram os subsídios necessários na busca de compreensão e interpretação dos dados e fatos de uma forma nova, evitando-se as idéias pré-concebidas e a simples explicação, pois não se trata de um fenômeno da região natureza e sim da região do espírito de que tratam as ciências humanas. Neste ponto de âmbito específico, o método que permite o tratamento de dados requerido foi o fenomenológico.

2.8 - Limitações do Método

É natural que uma série de dificuldades e limitações surjam no decorrer da pesquisa.

Algumas são difíceis de prever, entretanto, aquelas que são previsíveis devem-se conhecer a fim de poder atenuá-las ou até controlá-las, de forma a antecipar eventuais críticas. A seguir, serão apresentadas as dificuldades e limitações quanto à coleta e ao tratamento dos dados.

§ Existiram dificuldades relacionadas à subjetividade que, certamente, ocorre na

análise qualitativa dos dados, seja na coleta, interpretação, avaliação, análise ou

conclusões sobre dados e informações;

§ A pesquisadora é empregada da RFFSA, o que pode ser considerado uma restrição

ou uma oportunidade de acordo com Easterby-Smith e Thorpe(1999). 20

§ A análise do discurso exigiu um conhecimento de técnica que o investigador teve

pouco tempo para desenvolver de modo que pudesse criar as categorias adequadas

para a análise das informações.

§ O clima organizacional e as condições físicas e psicológicas dos empregados da

RFFSA em liquidação, certamente, influenciaram esta pesquisa. 21

Capítulo 3 – CULTURA E HISTÓRIA DA FERROVIA

Com base na pesquisa bibliográfica e documental, os seguintes temas são abordados

neste capítulo: os aspectos culturais brasileiros que serão utilizados na análise de uma

organização pública, uma breve retrospectiva histórica da ferrovia, a gestão da RFFSA em

liquidação e, ao final, faz-se uma leitura crítica da cultura da empresa a partir de sua trajetória

histórica.

3.1 - Aspectos Culturais Brasileiros na Análise de uma Organização Pública

O estudo da administração tem, cada vez mais, um caráter multidisciplinar. Por não estar no campo das ciências naturais, a administração pode utilizar métodos qualitativos e conceitos de outras áreas de conhecimento como: a sociologia, a antropologia, a psicologia, a filosofia, entre outros.

Assim, para investigar uma organização, não se pode, apenas, levantar seus dados quantitativos, mas também, outros aspectos qualitativos que englobam as pessoas e a sociedade que a envolvem. Existe toda uma complexidade que precisa ser explicada, como

Edgar Morin (2000) dá conta em seu paradigma da complexidade, em que propõe o reconhecimento dos caracteres multidimensionais de toda a realidade estudada, a partir de vários princípios, que admitem a singularidade, os traços originais e o histórico do fenômeno, fazendo uma distinção sem separação da organização física de suas interações com seu ambiente.

Essa separação pode ser exemplificada no fracasso da aplicação na gestão das organizações brasileiras de teorias, pacotes ou caixas pretas importados. Pois, nos estudos 22

organizacionais pode-se distinguir, mas não separar uma organização da cultura nacional em que está inserida.

De acordo com essa proposta, não é possível fazer o estudo da Rede Ferroviária

Federal – RFFSA sem que reconheçamos a influência dos traços culturais brasileiros na sua

gestão.

3.1.1 - O Conceito de Cultura

Na busca de um entendimento sobre o conceito de cultura dentro da ciência, recorre-se

ao Geertz (1978). Ele assegura a esse conceito, seu poder teórico em meio ao “pantanal

conceitual” que o “o todo mais complexo” de Tylor provocou. Geertz defende esse conceito

como essencialmente semiótico.

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.(GEERTZ, 1978, p.15).

Desta forma, por ser a cultura interpretativa, permite-se a construção de uma leitura

dos significados apresentados em um contexto no qual os símbolos podem ser descritos e

acessáveis, ou seja, situados. Assim, em um esforço etnográfico, no qual relações são

estabelecidas, informantes são selecionados, textos são transcritos, genealogias são

levantadas, campos são mapeados, diários são mantidos, e assim por diante, que se forma uma

descrição densa.

A cultura é como um sistema de símbolos e significados compartilhados, que são

decodificados sem cessar, em palavras, expressões, posturas, ações de toda a natureza. Os

objetivos que a utilizam conferem um sentido, que está ligado à uma linguagem particular de

acordo com Motta (2000). 23

Morin (2002, p.56), apresenta um conceito de cultura muito abrangente e introduz a singularidade da cultura, pois existe em cada cultura um “[...] capital específico de crenças, idéias, valores, mitos”, sobretudo aqueles que unem a “[...] comunidade singular aos seus ancestrais”. Ele acrescenta que a cultura mantém as identidades humanas e sociais naquilo que lhe é específico, entretanto, essa aparência fechada de sua singularidade não a impede de integrar outros elementos que venham de fora.

Quanto ao conceito de cultura organizacional, Schein (1985) também propõe o enfoque antropológico. Para o autor, a cultura se forma quando as pessoas, simultaneamente, atacam um problema buscando solução, é o efeito de um aprendizado comum em grupo. A cultura organizacional é um efeito de pressões externas, potenciais internos, em resposta a eventos críticos e provavelmente a fatores ocasionais, não dependentes de ambiente e membros. O esforço de entender a cultura é recompensado porque o misterioso e irracional de uma organização podem ser clarificados pela compreensão da Cultura.

A investigação da cultura da empresa mostra-se poderosa quando, com base nos paradigmas encontrados na organização, pode-se ver, instantaneamente, porque certas coisas funcionam, a maneira como fazem, porque certas propostas não dão certo, porque mudanças são difíceis, porque certas pessoas saem, entre outros. No entanto, é difícil apreender a essência de uma cultura de uma empresa de forma a comunicá-la a outra pessoa, já que se constitui de uma força dinâmica.

Segundo Schein (1985), a cultura organizacional pode ser analisada em três níveis: o nível dos artefatos e criações, que são visíveis mas, muitas vezes, indecifráveis; o nível dos valores e o nível dos pressupostos básicos inconscientes. Este último nível tem uma grande importância, pois faz a integração do conjunto cultural com a forma correta de pensar, sentir e agir dos participantes da organização, porém, é o mais difícil de ser obtido. 24

Para desvendar a cultura a partir dos pressupostos básicos propostos por Schein

(1985), que definem o paradigma cultural, deve-se questionar a organização de acordo com as dimensões teóricas que dizem respeito às relações com o ambiente, à natureza da realidade, tempo e espaço, à natureza humana, à natureza da atividade humana e às relações humanas.

Outro conceito de cultura é apresentado por Srour (1998), como o conjunto de valores, crenças, símbolos, relações, modos de agir entre outros, como um perfume que permeia toda a organização e precisa ser “decifrado”. Para os desavisados, fica impossível compreender como, de uma forma sutil, a cultura impregna as organizações, pois foge a qualquer tipo de definição clara.

A cultura organizacional precisa ser captada, é algo que está no ar, no entanto, é a essência que a partir de uma descrição rigorosa das relações, da linguagem, dos procedimentos e dos símbolos mostra-se por si mesmo.

Srour (1998) entende a cultura organizacional como a dimensão simbólica das coletividades, de acordo com o conceito sociológico sobre cultura. Para ele, as representações imaginárias são a sua “essência”, que é apreendida, transmitida e partilhada em um processo de integração ou de adaptação ao meio sócio-cultural. A cultura, como o “cimento” que une os membros de uma organização em torno dos mesmos objetivos e dos mesmos modos de agir, fundando uma identidade.

Assim, a cultura dentro de um universo simbólico pode ser recortado em quatro

“campos do saber”, de acordo com Srour (1998):

· O saber ideológico, composto por evidências doutrinárias que enunciam

soluções ou respostas prontas; 25

· O saber científico, composto por evidências explicativas e demonstráveis e

“aproximadas da verdade”;

· O saber artístico, composto por expressões estéticas;

· O saber técnico, que diz respeito à “saber fazer as coisas”, composto por

procedimentos e regras operacionais, é de natureza instrumental.

No que concerne à gestão intercultural, Srour (1998) destaca o fato de que a coletividade tende a considerar o seu próprio modo de vida como o mais sensato e o mais correto, considerando aqueles fora da sua cultura como “bárbaros”. Portanto, é necessária uma humildade intelectual para aceitar o outro, na verdade, aceitar uma visão de mundo diferente, um horizonte diferente. Essa humildade deve estar presente nas fusões de forma a evitar o chamado “choque cultural”.

Cabe ressaltar a alusão à diferença entre cultura organizacional e clima organizacional.

Clima organizacional capta a temperatura social, é uma “pulsação” da cultura organizacional,

é uma descrição instantânea dos mal-estares ou do nível de satisfação dos indivíduos. Não é capaz, como a cultura organizacional, de apreender os modos institucionalizados de agir e de pensar e as práticas recorrentes ao longo do tempo.

A cultura organizacional é a ligação entre o passado e o presente, contribui para a permanência e a coesão da organização, é responsável pelo conjunto de soluções relativas à sobrevivência e crescimento das organizações, frente às pressões do ambiente externo.

As empresas de pequeno e médio porte, por não possuir uma cultura singular, reproduzem os padrões culturais vigentes no país e região. A cultura nacional nas organizações não é uniforme, assim como os indivíduos são diferentes mesmo que compartilhem a mesma cultura ou família, como explica Morgan (2000). Alguns valores e crenças da cultura hospedeira podem mostrar-se mais que outros dependendo da organização. 26

Além disso, a empresa que sofre a destruição de sua cultura, pode tornar, esses valores e crenças mais visíveis.

Morgan (2000) assinala que as grandes organizações possuem diferentes sistemas de valores que podem competir entre si e criar um “[...] mosaico de realidades organizacionais em lugar de uma cultura corporativa uniforme” (Morgan, 2000, p. 157). Assim como Srour

(1998), que ilustra a cultura com o poder de exprimir aspirações, refletir anseios, traduzir reivindicações ou posicionamentos das diferentes categorias sociais, podendo expressar as demandas de uma organização. Enfim, constitui “[...] um conjunto coerente de percepções e de representações mentais que simplificam a apreensão do real” (SROUR, 1998, p. 179).

Na procura de uma fundamentação teórica para a cultura, Srour (1998) buscou uma base histórica e empírica, sob o aspecto ideológico. A ideologia é capaz de oferecer à organização a “chave” de sua articulação e coerência, ela estrutura o universo simbólico, corresponde a um sistema de princípios, valores e crenças, equivale a visões de mundo que respondem as questões fundamentais da vida.

Assim, a ideologia política pode justificar decisões tomadas e ações executadas, definir ideologicamente uma organização como conservadora ou anarquista, “[...] demarca o espaço de suas expressões centrais”.Srour (1998, p. 180) propõe uma metáfora espacial em forma de “rosa dos ventos”, suportada por várias linhas demarcatórias que expressam posições ideológicas, sendo o seu eixo vertical Centro-Extrema e o seu eixo horizontal

Esquerda-Direita.

Cabe acrescentar a observação de Lívia Barbosa (2001) quanto à preocupação de uma pesquisa sobre a cultura organizacional: não confundir políticas, procedimentos administrativos e os propósitos da alta administração da empresa com a cultura da empresa.

Devem ser abordadas as representações sobre as tarefas, o trabalho, as relações entre os 27

diferentes segmentos, a empresa, as hierarquias formais e informais, as estratégias políticas, a carreira, os mecanismos de exclusão e agregação, o poder e a autoridade.

3.1.2 - O Sentido de Ser Brasileiro

O ser humano é complexo, pois como Morin (2002, p. 57) assinala, ele é “[...] ao mesmo tempo singular e múltiplo... tal como ponto de um holograma traz em si o cosmo”.

Assim, definir o que é ser brasileiro é compreender as múltiplas personalidades, as incoerências e a dualidade de sentimentos, reconhecendo as singularidades de sua identidade individual e social.

O conhecimento do passado é mais que “o antecedente do presente: é a sua fonte“

(ELIADE, 2000, p. 108). Por isso, para conhecer as origens do ser brasileiro é preciso remontar aos primórdios dos antecedentes portugueses.

Na história de Portugal são vários os momentos de luta em que se alternavam dominados e dominadores. As Cruzadas realizadas por ordens portuguesas, num misto de militarismo e religião, conquistavam terras que eram por eles exploradas e as populações dominadas. Os portugueses adquiriram, a partir desses fatos, uma experiência importante para a administração de suas colônias.

No período colonial brasileiro, os donos da terra eram os privilegiados que detinham o poder, eram uma pequena parcela da população, representada pela figura do patriarca experiente no trato com a escravidão e da Igreja Católica. Mesmo com a miscigenação das raças negras, brancas e índias, criaram-se diversos preconceitos velados, que se agravaram com as desigualdades econômicas e determinaram um distanciamento entre os restritos estratos sociais. 28

As organizações são parte de uma sociedade, portanto, são subculturas dessa sociedade. Na empresa pública brasileira, seus pressupostos básicos contêm, sem dúvida, aspectos da natureza do ser brasileiro. Traços da lógica gerencial de personagens como o

“Coronel’ - autoritarismo, nepotismo, clientelismo, favoritismo, ausência de critérios internos

- podem ser encontrados dentro das empresas brasileiras (VASCONCELLOS, 1995, p. 230).

De acordo com Colbari (1995), nos estudos sobre a classe operária brasileira, verifica- se que houve a persistência de elementos tradicionais nas relações industriais na transição para a modernidade. Isso explica o caráter paternalista de alguns conjuntos de práticas nas grandes empresas nacionais, tais como: concessão de moradia, assistência médico-hospitalar, empréstimos, auxílios, gratificações e atenção aos problemas pessoais e de família do trabalhador e de sua família.

Além disso, deve-se salientar a chamada cultura de emprego dentro da sociedade brasileira, diferente da cultura de trabalho, existente em outros países (BARBOSA, 2001). Na cultura do emprego o importante é o indivíduo ter um emprego, não importando se este lhe oferece trabalho ou não. Sergio Buarque de Holanda (1977) assinala que para o brasileiro a expectativa do trabalho não tem como fim a realização de uma obra, de um serviço a ser realizado, e sim a de sua satisfação pessoal, a sua estabilidade econômica com o mínimo de esforço.

Acrescente-se o que Sérgio Buarque de Holanda (1977) observa na ascensão profissional dos brasileiros, que no esforço para galgar um melhor cargo são capazes de abandonar a carreira inicial. O brasileiro deseja meios de vida definitivos que possam proporcionar a segurança e estabilidade com o mínimo de esforço pessoal (HOLANDA,

1977). 29

Outra característica cultural é a “[...] algazarra, manifestação barulhenta da alegria e da animação” (FRAGA, 2000, p. 22); festas e confraternizações são constantes no ambiente de trabalho, as pessoas, muitas vezes, gritam umas com as outras e nas reuniões as conversas paralelas acontecem sem que ninguém se importe com isso.

Freitas (1997) em seu estudo sobre os traços brasileiros mais nitidamente influentes na no âmbito das organizações, propõe cinco categorias com diversas características chaves: hierarquia, personalismo, malandragem, sensualismo e aventureiro. Prates e Barros (1997) propõem um sistema de ação cultural a partir de um conjunto de traços brasileiros predominantes na gestão empresarial brasileira. Com base nesses dois trabalhos, escolhemos treze categorias do ser brasileiro, que consideramos, no caso estudado, mais relevantes.

Quadro 2 Aspectos e características-chave da cultura brasileira Aspecto Características-chave

1. Patriarcalismo · Poder aristocrático · Distanciamento entre os grupos sociais · Hierarquização das relações sociais · Passividade dos grupos sociais inferiores 2. Paternalismo · Mistura na relação econômica de laços pessoais e de amizade · O patrão como figura provedora e dominadora 3. Patrimonialismo · Posse da coisa pública como privada 4. Personalismo · Carisma individual, discurso e habilidade nas relações pessoais mais importante que sua competência. · Privilégios para os cidadãos que possuem melhores relações pessoais – “padrinho”. · Sociedade baseada em relações interpessoais 5. Concentração de Poder · Autoritarismo baseado na hierarquia/subordinação 6. Lealdade Pessoal · Necessidades do grupo e do líder mais importantes do que do sistema em que está inserido · Interligação entre os grupos centrada no líder 7. Postura de Espectador · Baixa iniciativa · Pouca capacidade de realização por autodeterminação. · Transferência de responsabilidades para os líderes 8. Flexibilidade · Adaptabilidade como capacidade criativa dentro de limites prefixados · Criatividade como elemento inovador. 9. Jeitinho · Busca de caminhos intermediários como forma de sobrevivência · Agir com sensibilidade, inteligência e simpatia para 30

relacionar o impessoal com o pessoal. 10. Evitar o conflito · Uso de triangulações entre pólos divergentes · Capacidade de transformar embates abertos em alianças, com base em acordos. · O mais importante é ter um bom relacionamento interpessoal 11. Formalismo · Existência de um hiato entre o direito e o fato, normas e regras que na prática são distorcidas. 12. Impunidade · Privilegiados fortalecem seu podem ao não sofrer punições · Direitos individuais como monopólio de poucos 13. Busca do Prazer · Musicalidade, dança, capacidade de rir de si mesmo Fonte: Própria

A manifestação do conceito de cultura se dá por meio de símbolos, linguagem, ideologia, crenças, ritos e mitos. Eles fornecem um sentido preestabelecido as ações de seus empregados. Se o indivíduo se identifica com a empresa, se a idealiza a ponto de sacrificar sua vida pessoal em prol dela, é porque ele está preso a essa rede tecida pela própria organização (ENRIQUEZ, 2001).

Com o crescente isolamento das pessoas, imposto pelas políticas capitalistas, pertencer

à uma organização sólida e segura concretiza muito mais que a mera estabilidade econômica.

Concretiza o sonho de estar acolhido, de pertencer a um grupo (MATHEUS, 2000, p. 117), de estar na “rede”.

Assim, se estabelece um amor fusional entre o indivíduo e a organização em busca de um projeto comum, numa relação fadada ao fracasso, já que a empresa não é uma pessoa que possa nutrir sentimentos.

O que de fato existia e continua existindo é apenas o individuo feito sujeito do seu desejo e da sua vontade de ser grande, nobre, potente, amado, reconhecido e acariciado por seu ideal de ego feito projeto, feito realização potencial. Quando cai o pano, resta apenas o indivíduo olhando para si mesmo, ao mesmo tempo ator e platéia, com motivos para rir e chorar. (FREITAS, 2000, p. 71). 31

3.2 - Breve Retrospectiva Histórica do Império à RFFSA em Liquidação

O passado por ser passado não deixa de existir (MERLAU-PONTY, 1996, p. 563)

Neste capítulo faz-se uma retrospectiva, pois uma organização possui uma memória, uma lembrança estável e dominante reconstruída do passado por um sistema de valores que coincide com o quadro social presente. A memória da Rede Ferroviária Federal remete para a reconstrução do passado de suas ferrovias, não como “memória mecânica”, mas como uma lembrança presente em seus valores culturais.

Em todo o decurso da história da ferrovia brasileira, seja em seus momentos como iniciativa privada ou subordinada à administração do governo, apresenta-se como uma história de empreendores apaixonados, governos e desgovernos. A política do transporte ferroviário, desde seus primórdios, foi norteada de numerosos equívocos que, de conseqüências irreversíveis, geraram serviços onerosos e ineficientes em termos de números, qualidade e traçados incorretos. A ferrovia serviu como um instrumento de subjugação ao imperialismo econômico.

Ao investigar a ferrovia brasileira no decorrer dos 167 anos de existência busca-se o que permanece ao longo do tempo nas diversas transformações decorridas na organização desse meio de transporte no Brasil.

3.2.1 - O Império

No período de 1822 a 1840 – Primeiro Reinado e Regência – “[...] o Brasil não possuía as condições de investimento para obras públicas essenciais”, (TENÓRIO, 1979, p.13). Porém já haviam compromissos financeiros firmados com a Inglaterra para o reconhecimento da independência e pagamento de juros e amortizações do Império. Assim, as 32

obras realizadas não foram significantes para urbanização nem para o desenvolvimento do país.

No entanto, como uma primeira tentativa visando implantar uma estrada de ferro em nosso país, ocorre no Governo de Diogo Antônio Feijó em 1835, a primeira lei de outorga de concessões. Talvez o Regente Feijó estivesse inspirado pelas leis francesas ou seduzido pelas esperanças que o império Britânico tinha na construção das estradas de ferro (BAPTISTA,

1942). Essa lei autorizava a concessão para uma ou mais companhias que se dispusessem a construir uma via férrea que ligasse o Rio de Janeiro com as capitais das províncias de Minas

Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia, totalizando 5.500 km (BAPTISTA, 1942) com as seguintes obrigações e favores: privilégio exclusivo de 40 anos; permissão de ocupação de estradas existentes; obrigação de servir às cidades e vilas que o governo designasse; não definia nem limitava a zona privilegiada; isenção de direitos de importação para os materiais e equipamentos necessários; cessão gratuita dos terrenos necessários, caso pertencentes ao governo ou o direito a desapropriação; prazo de dois anos para o início das obras; e a construção de no mínimo 30 km por ano; os tetos de tarifas eram fixados pelo governo; no caso de uma infração haveria a cobrança de multas. Findo o prazo, se não houvesse a prorrogação por mais 40 anos, a companhia deveria entregá-las em bom em estado à Nação sem indenização alguma.

Fica evidente que os favores consignados por essa lei não foram suficientes para atrair o capital estrangeiro, nem para a concessão da ligação entre Rio de Janeiro, Minas Gerais,

Bahia e Rio Grande do Sul e, muito menos, para a outra concessão que ligaria Santos a São

Paulo. 33

Em 1839, o governo concede ao médico homeopata inglês Thomaz Cochrane, sogro do escritor José de Alencar (RUIZ, 1972), o privilégio exclusivo, pelo tempo de oitenta anos, para construir e explorar uma estrada de ferro ligando o Rio de Janeiro a São Paulo.

Em 1841, essa concessão provocou debates tanto na Câmara quanto no Senado brasileiro, pois o senador Bernado Pereira de Vasconcelos era contra a solicitação de subscrição de ações pelo governo da companhia de Cochrane. O senador argumentava com base na “[...] falta de recursos do tesouro, no custo exagerado das estradas, na pobreza das terras que atravessava e na falta de mercadorias a transportar” (BRITO, 1961, p.13).

Os caminhos de ferro, mesmo na Inglaterra, demandavam grandes quantias, o que resultou na adoção da lei de garantia de juros pelos países que iniciavam a construção de ferrovias. Finalmente, em 26 de junho de 1852, com a semente lançada por Cochrane, e acaloradas discussões na Câmara e no Senado, o governo institui a lei da garantia de juros que alterava e acrescentava benefícios à lei de concessões, de acordo com Tavares (2001) com: garantia de 5% de juros sobre o capital empregado na construção de ferrovias; período de concessão de 90 anos; abolição da prévia fixação de tarifas de frete; faixa de domínio de 33 km para ambos os lados do eixo da ferrovia; limitava em 8%, no máximo, os dividendos que a concessionária poderia auferir e, caso este limite fosse ultrapassado, ela teria que reembolsar o

Governo pela quantia paga por conta da garantia de juros; obrigava a concessionária a reduzir as tarifas em vigor, caso os dividendos ultrapassassem a taxa de 12%.

Cochrane não consegue construir sua ferrovia e perde seu privilégio, porém deixa como produto de sua longa e tenaz luta a lei que possibilitou a atração para o investimento em construções ferroviárias. Assim, qualquer que fosse a receita, e, ainda que não houvesse receita alguma, o capital investido na construção ferroviária receberia dividendos compensadores. Para os capitalistas nativos e estrangeiros, o modal ferroviário tornou-se 34

altamente lucrativo, mesmo quando as regiões onde fossem construídas não oferecessem condições econômicas (RFFSA, 1973).

3.2.2 - O Papel da Inglaterra

De forma a compreendermos as modificações que propiciaram esses investimentos, é necessário esclarecer o cenário mundial em que o Brasil estava inserido naquela época. Até então, o comércio de escravos foi a fonte principal de acúmulo de capitais da Inglaterra, mas passou a representar um obstáculo à ampliação dos mercados de sua indústria quando da sua industrialização. Deste modo, a Inglaterra pressionou o Brasil para que abolisse a escravatura a fim de que os capitais direcionados para o comércio de escravos fossem canalizados para atividades produtivas e, assim, estabelecer o mercado de trocas, essencial para o estabelecimento de um mercado capitalista mundial.

O empreendedorismo manifesta-se no Barão Mauá que escreve em sua Autobiografia:

Reunir os capitais que se viam repentinamente deslocados do ilícito comércio, e fazê-los convergir a um centro onde pudesse ir alimentar as forças produtivas do país, foi o pensamento que me surgiu na mente ao ter certeza de que aquele fato era irrevogável. Apresentei-me, pois, em campo, com a idéia de criar um grande estabelecimento de crédito (MAUÁ, p.21).

O aumento crescente da lavoura cafeeira contribui para o crescimento da balança exportadora, habilitando o país para a compra de produtos manufaturados ingleses e a integração ao sistema econômico mundial, que substitui o mercantilismo (TENÓRIO, 1979).

Como se referem, sobre a Inglaterra, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto no seu livro intitulado Dependência e Desenvolvimento na América Latina:

Os países latino-americanos, como economias dependentes, ligam-se nestas distintas fases do processo capitalista aos diferentes países que atuam como centro e cujas estruturas econômicas incidem significativamente no caráter que adota a relação (...). A Inglaterra, no processo de sua expansão industrial, exigia em alguma mediada o desenvolvimento das economias 35

periféricas, dependentes dela, posto que as necessitava para se abastecer de matérias-primas. Requeria, por conseguinte, que a produção das economias dependentes lograsse certo grau de dinamismo e modernização; essas mesmas economias, além disso, integravam o mercado comprador de seus produtos manufaturados, portanto, também era evidente necessário que se desse nelas certo dinamismo. (CARDOSO, 1973, p.274).

Os ingleses tinham interesse em investimentos e empreendimentos modernizadores no

Brasil porque dinamizavam as atividades ligadas ao comércio exterior, e a Inglaterra obtinha uma maior influência nos processos decisórios brasileiros, além de ganhos compensadores através de juros e lucros muito mais elevados que dentro de seu próprio país (TENÓRIO,

1979). Segundo Manchester (1933), essas intenções ficam evidentes no número de cônsules ingleses servindo no Brasil em 1853, somente superado por Portugal, e em 1870, em que existiam 51 cônsules brasileiros na Inglaterra contra 44, em Portugal. O número de navios com bandeira inglesa nos portos brasileiros, superior ao de qualquer outro país, também era representativo dessa hegemonia.

Nas estradas de ferro foi onde o capital inglês se fez mais presente. Praticamente todas elas foram construídas com capital britânico e com mão-de-obra inglesa que recebia altíssimos salários.

3.2.3 - A Primeira Ferrovia do Brasil – a Estrada de Ferro Mauá

A viação férrea começou a ser concretizada no Brasil quando Irineu Evangelista de

Souza, o Barão de Mauá, recebeu, em 1852, a concessão do Governo Imperial para a ligação entre a Praia da Estrela, fundo da baía de Guanabara, e a localidade de Fragoso, próxima à

Raiz da Serra de Petrópolis. Foi construída por engenheiros ingleses que se encontravam no

Brasil envolvidos nos projetos de Mauá executados nas oficinas de Ponta de Areia, em

Niterói, e nos da Companhia de Abastecimento de Gás. Não era um a ferrovia de integração, 36

mas sua importância era muito grande como catalisadora de outras iniciativas que iriam surgir.

O porto da praia da Estrela era rota obrigatória para os viajantes que procuravam

Petrópolis e vinham da corte em barcos a vapor. Com Mauá, houve a união das duas modalidades de transporte e a empresa passou a ostentar o nome de “Imperial Companhia de

Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis”, para depois, em homenagem ao seu construtor, adotar o nome do Barão de Mauá.

A inauguração, em 1854, foi uma solenidade que contou com a presença do Imperador

D. Pedro II e convidados, acolhidos com foguetes e exclamações. Após a cerimônia, o

Imperador e acompanhantes embarcaram no trem composto pela locomotiva “Baronesa” - atualmente em exposição no Museu do Trem no Engenho de Dentro – pelo carro imperial e outros carros, que fez o percurso de 14,5 km em 23 minutos, atingindo a velocidade de 63 km/hora, um assombro aos participantes.

Nos primórdios da construção de vias de comunicação, como a ferrovia, os critérios utilizados eram os políticos, o econômico e o estratégico. Entende-se o político quando estabelece comunicação entre diversas regiões promovendo a integração entre os habitantes e a administração. O econômico quando liga os centros de produção ao consumo. O estratégico quando tem propósitos de defesa. A ferrovia de Mauá não preenchia nenhuma dessas condições e apesar de escoar uma parte das mercadorias, que utilizavam a estrada União

Indústria, com a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II o empreendimento de Mauá pereceu, em conseqüência da transferência de cargas para a nova ferrovia. Devido à sua situação precária, o Governo Imperial resolveu incorporá-la à Estrada de Ferro Príncipe Grão

Pará, inaugurada em 1883, cuja linha ia da Raiz da Serra de Petrópolis até o centro daquela cidade. Posteriormente, a Grão Pará incorporou-se à Estrada de Ferro Leopoldina. 37

Destaca-se que a ferrovia foi construída sem os favores do governo e garantia de juros.

Entretanto, apaixonado pelos caminhos de ferro, ele participou de outras iniciativas ferroviárias como banqueiro, tais como a própria Estrada de Ferro D. Pedro II, a estrada de

Ferro do Recife a São Francisco, o caminho de ferro da Tijuca, ideado por Cochrane, a São

Paulo Railway, a Bahia a S.Francisco Railway Company, a Curitiba a Miranda no Mato

Grosso e a Santos Jundiaí, mais tarde São Paulo Railway (RUIZ, 1972). A maioria desses investimentos trouxe prejuízos, no entanto o Barão de Mauá honrou sempre os seus compromissos e morreu em Petrópolis em uma casa alugada, ainda com idéias em pleno andamento (RUIZ, 1972).

3.2.4 - A Oposição

No Império não havia um plano ferroviário, o que facilitava as incursões meramente capitalistas e aventureiras como pode ser constatado pela posição do senador Joaquim Nabuco em seu discurso de 22 de maio de 1889: “[...] Foi sempre regra fazer concessões a indivíduos que não tinham outro fim e não as pediam para outra coisa, senão bater moeda esterlina sobre elas” (BRITO, 1958).

No Brasil, a construção de ferrovia enfrentava resistência, basicamente, devido ao custo elevado. Porém, esse fato não era restrito somente ao Brasil, na França os caminhos de ferro sofreram a oposição parlamentar, que empregou todos os recursos contra a sua construção. Isso é demonstrado pelos 434 km de estradas de ferro da França contra os 3.843 km de estradas da Inglaterra em 1837 (OTTONI, 1859).

Apesar das dificuldades, muitas ferrovias foram construídas no Império, chegando a

9.583 km de vias férreas em tráfego no ano de 1889 (VIANNA, 187). Uma das pioneiras que mais se destacaram foi a Estrada de Ferro D. Pedro II, depois Central do Brasil. A história 38

dessa ferrovia ilustra muito bem as mazelas que existiam desde as deficiências do governo até as dificuldades de implantação de uma estrada de ferro, assim como da nascente engenharia brasileira e seus administradores. Entretanto, surge com a única ferrovia que tinha um projeto de integração de diferentes regiões do país entre as suas metas de criação.

3.2.5 - A Ferrovia da Integração – A Estrada de Ferro D. Pedro II

Passados 15 anos após a tentativa de Cochrane de construir uma linha férrea cujo traçado chegava até a Vila de Resende, começando na Pavuna e subindo a Serra do Mar, acompanhando a margem do rio Paraíba, constituiu-se a Companhia Estrada de Ferro D.

Pedro II, com o privilégio concedido por 90 anos e garantia de juros. Justificava-se pelo necessário escoamento dos produtos agrícolas destinados à exportação e ao abastecimento interno. Para presidente foi nomeado por D.Pedro II o engenheiro Cristiano Benedicto Ottoni.

Antes de formada a companhia, o enviado do Governo à Londres, Sérgio Teixeira de

Macedo, contratou o empresário inglês Edward Price para construir a primeira seção de ferrovia. O contrato firmado dava inúmeras vantagens ao empreiteiro (BRITO, 1958) e, além disso, foi feito a revelia dos conhecedores da matéria o que, mais tarde, provocou uma série de protestos.

Os trabalhos eram dirigidos por Cristiano Ottoni, que, algumas vezes, fez uso do auxílio da força pública de forma a impor o cumprimento das condições contratuais. (DAVID,

1983, p. 6). O contrato assinado careceu de um estudo técnico preliminar e continha cláusulas absurdas como a garantia ao empresário do direito a receber o pagamento adicional de 3% ao mês, se o governo deixasse de pagar a quantia devida no prazo determinado. Ao final,

Cristiano Ottoni aponta diversas anomalias no contrato, como os custos triplos em relação ao custo médio da construção de linhas semelhantes, nenhuma possibilidade de fiscalização, 39

liberdades para mudar traçados e materiais, enfim, tudo o que facilitava que fossem empreendidas obras mais dispendiosas. A execução da obra durou três anos e foi entregue com uma linha defeituosíssima, que exigiu quase que toda a sua reconstrução (BRITO, 1958).

Mais tarde, o mediador do contrato de Price declarou que as obras foram recebidas mal construídas para evitar dificuldades ou inconvenientes maiores que poderiam advir da rejeição delas.

A inauguração do primeiro trecho não foi capaz de captar o café que descia a Serra do

Mar. Cristiano Ottoni resolve, então, construir outros trechos que pudessem interceptar as tropas do comércio: com outra modalidade de contrato, ele dizia que construía estradas para o

Brasil do futuro.

3.2.6 - A Encampação pelo Governo Imperial

Mesmo com os bons resultados obtidos pela ferrovia com o transporte de café, não foi possível superar os grandes encargos financeiros derivados da construção das seções de via seguintes. Os gastos com implantação, manutenção e custeio não eram compensados com a receita obtida no tráfego. Assim, o Governo Imperial resolve encampar a ferrovia em 1865.

Já no desenvolvimento da habilitação brasileira na construção, a ferrovia se desenvolveu como uma “escola de engenharia modelar” (DAVID, 1983, p.17), como pode ser constatado pelos seus diversos ilustres dirigentes tais como: Pereira Passos, que depois foi responsável por grande parte da urbanização da cidade do Rio de Janeiro, Mariano Procópio, também um construtor de estradas de rodagem, e o engenheiro Paulo de Frontin. O primeiro presidente da Companhia, Cristiano Benedicto Ottoni, é por muitos considerado o “pai das

Estradas de Ferro”, ele sonhava com linhas férreas desde o Amazonas até o Rio Grande do

Sul. 40

3.2.7 - Cristiano Ottoni e o Futuro das Ferrovias no Brasil

Ottoni preocupava-se com a maneira com que a questão das estradas de ferro era encarada pela sociedade brasileira em geral, por isso escreveu um livro com o objetivo de

“[...] chamar a atenção dos homens ilustrados e dos poderes do Estado” (OTTONI, 1859, p.35).

Seu livro, publicado em 1859, apresenta as diretrizes principais para uma política pública de transporte ferroviário. Com a visão de futuro ele estava preocupado como melhor dirigir os esforços e regulá-los. Dentre as suas idéias cabe destacar:

· Os trilhos de ferro como meio de conciliar a unidade e integração do país com

a descentralização administrativa;

· Princípios reguladores das concessões garantidas para que todas as companhias

convirjam para um grande sistema ferroviário;

· As companhias ferroviárias devem ter em si mesmo elementos de

prosperidade, que contribuam para as rendas gerais do país, para que não

necessitem de auxílio do Tesouro;

· Integração das diversas ferrovias em algum ponto das linhas para que as linhas

façam parte de um plano geral;

· Direção brasileira, mesmo que com capital estrangeiro;

· Levantamento dos fundos de garantia de juros;

· Reversão das estradas ao patrimônio nacional e posterior arrendamento sob

fiscalização, como forma de evitar que as companhias privadas executem

insatisfatoriamente o serviço;

· Admite a incapacidade do Estado de executar uma boa administração, mas

também admite que as empresas privadas podem cometer abusos em busca do 41

lucro. Incentivava as companhias privadas desde que subordinadas aos

interesses nacionais;

· Diminuição das concessões de 90 anos.

3.2.8 - A Questão da Bitola Ferroviária

Chama-se bitola a distância entre os trilhos de uma via férrea. Nos primórdios da ferrovia, a diversificação de bitolas foi muito grande, como nos Estados Unidos, por exemplo, em que existiam 17 bitolas para 48.000 km de linhas (DAVID, p.4), em 1861. Mais tarde, o

Senado americano determinou a padronização das ferrovias americanas com a bitola de 1,435 m, a mais difundida no mundo e de menor custo de implantação.

No Brasil, encontra-se até hoje, como um dos pontos de descrédito do transporte ferroviário frente ao rodoviário a falta de uniformização da bitola. A chamada “quebra de bitola” impede o escoamento de mercadorias do trânsito fácil por toda a extensão da malha ferroviária brasileira.

Esse problema advém do fato que, no caso da Estrada de Ferro Pedro II, a adoção da bitola larga, na primeira seção, foi conseqüência da disponibilidade de material na Inglaterra, que necessitava exportá-lo, já que o Parlamento Inglês, em 1846, definiu a bitola normal como padrão, impedindo, assim, a construção de ferrovias com largura diferente a partir daquele ano. No entanto, em outros trechos da ferrovia foi utilizada a bitola estreita por apresentar um menor custo de construção.

3.2.9 - O Plano de Viação de Predominância Ferroviária do Império

Houve no Império algumas tentativas de estabelecer um plano de viação, como os registrados por Vianna (1949). O primeiro, de 1874, previa algumas ferrovias que foram mais 42

tarde construídas e pressupunha, também, o aproveitamento dos trechos navegáveis dos rios.

No mesmo ano, 1874, o engenheiro André Rebouças previa “paralelas” ferroviárias que cortariam o Brasil de leste a oeste, conjugado com “convergentes” de caráter fluvial.

Mas os favores concedidos às empresas como maneira de acelerar o desenvolvimento, captando capitais estrangeiros, instituíram subvenções por quilômetro construído, estimulando o concessionário a, no mínimo dispêndio, aumentar ao máximo a distância entre dois pontos, já que ao outorgar a concessão estabelecia-se o teto sobre o qual era garantido o pagamento de juros, geralmente fixado em quilômetros construídos. Os contratantes verificaram, desde logo, que quanto maior fosse a quilometragem maior deveria ser a subvenção.

Foi um procedimento que incentivou as construções ferroviárias, mas que estendeu compridas e desnecessárias linhas, antieconômicas e de dispendiosa manutenção.

Construíram-se centenas de estradas de péssimas condições técnicas, evitando-se terraplenagens e obras-de-arte (pontes, drenagens), alongando-se desnecessariamente os traçados nos trechos mais fáceis e encurtando-os nos trechos pesados, além de se dar preferência à bitola estreita, menos dispendiosa para o construtor. No traçado das linhas, como nas condições técnicas da via permanente (leito da linha onde estão os trilhos) e na própria localização das estradas cometeram-se numerosos e graves erros de que, mais tarde, haveriam de resultar pesadíssimos ônus financeiros para a operação e manutenção das mesmas.

Para reduzir progressivamente os privilégios concedidos, o governo Imperial toma algumas medidas, como a redução da faixa de domínio, diminuição da garantia de juros de

9% para 6% e do prazo de concessão que passa para 30 anos. Além disso, quando as ferrovias apresentavam um quadro de falência progressivo as encampava. A garantia de juros 43

continuava, ainda, como um grave problema financeiro a ser enfrentado pelo novo regime republicano.

3.2.10 - A República

O Governo Provisório, tentando consolidar-se em termos econômicos, nomeia Rui

Barbosa como Ministro da Fazenda, que afirmava que o país continuava sob regime colonial, já que se baseava na agricultura e no fornecimento de matérias primas para a Europa. Assim, com o objetivo de transformar o país agrícola em nação industrial, ele substitui o ouro por títulos de dívida federal como lastro de emissões bancárias, além de permitir aos bancos esse direito. Foi uma prática copiada da ação de Lincoln nos Estados Unidos. No Brasil, essas emissões foram desviadas para outros negócios, diferentes da meta industrial, provocando uma desenfreada especulação. Foi o período conhecido como Encilhamento, que frustrou as diversas iniciativas que pudessem propiciar o desenvolvimento industrial, inclusive as expansões ferroviárias.

3. 2.11 - A Política de Transportes na República

O governo da República, reconhecendo os erros da política do Império, nomeia uma comissão para elaborar o “Plano de Viação Federal” em 1890. Segundo Gordilho (1956), esse plano previa um grande número de construções ferroviárias e tinha como característica de sua execução a articulação dos sistemas ferroviário e fluvial. O discurso do Ministro da Viação na

Câmara de Deputados invocou razões de ordem econômica e política que aconselhavam que os países novos fizessem toda a sorte de sacrifícios para desenvolver e aperfeiçoar os meios de transporte. Entretanto, logo passou para “o rol das coisas esquecidas” (GORDILHO, 1956, p.124). 44

Persistiram os mesmos erros e inconvenientes. A cargo do Governo ficaram as construções, ao sabor de influências políticas, forçando a construção de linhas afastadas do melhor traçado, com prejuízo da técnica e da economia (RFFSA, 1964). As linhas passavam por determinadas cidades ou fazendas que satisfizessem interesses eleitorais, beneficiassem zonas de influência pessoal ou promovesse a valorização de propriedades de chefes políticos rurais.

Anos depois, em 1927, o engenheiro Paulo de Frontin apresenta um trabalho sobre a política de viação brasileira. De acordo com Gordilho (1956), parecia, finalmente, traçada uma política dos transportes que determinaria uma colonização nacional e estrangeira para o interior que permitiria o seu povoamento. Mas, ao mesmo tempo, ocorre a expansão do sistema rodoviário que de imediato causa um desequilíbrio financeiro nas vias férreas, maior do que esperado pelo volume de mercadorias que passaram a utilizar o caminhão. Segundo

Gordilho, (1956) o sistema rodoviário selecionou a chamada carga nobre que possuía um maior frete, ficando a mercadoria mais pesada, de frete baixo, com a ferrovia.

3.2.12 - A Decadência do Transporte Ferroviário

Grande parte das linhas construídas com subvenção governamental, depois de inauguradas, jamais conseguiu se manter com seus próprios recursos, sendo logo encampadas pelo Governo. Outras, nas últimas décadas, ante a constante elevação dos custos de operação, viram-se impossibilitadas de fazer face aos crescentes encargos. Para estas, duas soluções se apresentavam: aumentar suas tarifas ou transferir a operação para a União.

O governo optou pela alternativa que encampava as estradas deficitárias e congelava as tarifas, concedendo subsídios cada vez maiores para cobrir os déficits que cresciam em progressão geométrica. 45

Ante a brutal elevação de material e as constantes reivindicações salariais, o pagamento dos déficits tornou-se insuportável mesmo para os recursos aparentemente inesgotáveis do Tesouro, contribuindo para engrossar pesadamente a inflação.

Ao lado disso, os vícios de origem das ferrovias, a ingerência política na sua administração e a demagogia do Governo que impedia a atualização das tarifas, aliados a uma entusiástica doutrina de incentivo às construções rodoviárias, acabaram por levar ao descrédito público do transporte ferroviário. O resultado foi a paralisação de novas construções e o prosseguimento em ritmo lento muito aquém das necessidades do país.

As ferrovias encampadas e administradas pelo Governo tornaram-se “ninhos” de empreguismo, entrando em acelerada decadência econômica, material e técnica.

Cabe ressaltar que o incentivo às construções rodoviárias e o abandono das ferrovias é atribuída por muitos à frase enunciada pelo presidente Washington Luís: “governar é abrir estradas”. Pode ser uma questão de interpretação, já que poderia ter usado o termo estradas no seu mais amplo sentido, o do meio de circulação de riquezas, compreendendo, naturalmente, o aparelhamento dos portos, o reaparelhamento das ferrovias e o estabelecimento de rotas aéreas.

Entretanto, era inegável a simpatia automobilística do ex-presidente resultando, assim, na deflagração da campanha rodoviária, ruidosamente iniciada com uma excursão épica de

São Paulo ao Rio de Janeiro, batizada pitorescamente de “Bandeira Washington Luiz”. Todas as atenções e cuidados dirigiram-se para as rodovias, relegando os outros meios de transportes, sobretudo o ferroviário, ao mais completo abandono. 46

3.2.13 - O Novo Estado que Emerge em 1930

A revolução de 1930 faz surgir o Estado de compromisso que, de acordo com Draibe

(1985), cria na área industrial diversas comissões como resposta aos problemas correntes e oferece diretrizes políticas para o avanço setorial. Entre as comissões criadas estava a

Comissão Nacional de Ferrovias.

As entidades criadas estabeleciam políticas que efetivavam a autoridade pública central sobre os recursos considerados essenciais e estratégicos, um mecanismo típico na formação dos Estados Nacionais. Isso foi o ponto de partida para a presença do Estado empresário nas áreas fundamentais para o desenvolvimento econômico como o transporte.

Em 1934 é elaborado o Plano Geral de Viação que, em linhas gerais, de acordo com

Gordilho (1956), propunha mudança na legislação ferroviária e coordenação e integração dos sistemas de transporte rodoviário, ferroviário e fluvial.

O sistema ferroviário brasileiro que estava implantado atendia somente uma economia exportadora de produtos primários, com ferrovias dirigidas do interior para os portos regionais, era inadequado para responder aos estímulos do intenso processo de industrialização. Além disso, esse sistema econômico primário-exportador brasileiro, devido

às condições geográficas, sempre foi agregação de economias exportadoras regionais, isoladas umas das outras. Devido à origem dos traçados ferroviários, problemas crônicos, como diferença de bitolas, deficiências de traçado, altos custos de construção e períodos longos de maturação dos investimentos ferroviários fazem com que as ferrovias pouco pudessem contribuir para a unificação dos mercados e a integração da fronteira agrícola em expansão, necessárias ao processo de industrialização. A rodovia recebe o papel de destaque da consolidação do mercado nacional. 47

Uma atitude tímida, em 1940, cria a taxa adicional sobre as tarifas das estradas de ferro da União como forma de elevar a receita para executar obras de melhoria e reequipar a ferrovia. Mas a Guerra Mundial impede a importação de materiais ferroviários, degradando o material rodante.

O “Plano Geral de Viação Nacional” de 1934 sofre uma revisão em 1946, pois os sistemas de transporte nacionais, segundo Draibe, encontravam-se em situação dramática, comprometendo os circuitos de movimentação de mercadorias e pessoas, impedindo ou restringindo o abastecimento das cidades e o escoamento ágil da produção. A encampação das estradas de ferro, cerca de 70% dos gastos do setor de transporte, mais uma vez se faz presente.

3.2.14 - O Plano Salte

Em 1948 o DASP elabora o Plano SALTE, detalhando os projetos de investimentos estatal em diversas áreas, inclusive a de transporte que era contemplada com 57% dos investimentos, pois era considerada, junto com a energia, como os entraves mais dramáticos do processo de desenvolvimento econômico. No entanto, o Plano Salte não dispunha de instrumentos e mecanismos institucionais capazes de garantir a sua implementação, e, no que se refere à base de infra-estrutura, clientelista por excelência, os projetos indicados terminavam por responder aos imperativos de ordem política, mais do que a um diagnóstico claro de prioridades econômicas.

Além disso, a unificação de bitolas e a concentração de esforços nas linhas de interligação dos eixos ferroviários como meta de interligação dos sistemas regionais, não foram tecnicamente enfrentadas. No aspecto energético, o Plano Salte, que pretendia também 48

equacionar a balança energética nacional, não contempla o suprimento necessário para as ferrovias.

3.2.15 - O Governo Vargas

O segundo governo Vargas, apoiado por um diagnóstico profundo da economia e da sociedade brasileira, define e ordena um plano de desenvolvimento econômico e social de grande envergadura. O traço característico e peculiar desse plano, de acordo com Draibe

(1985), era a expansão e a generalização da produção e do consumo, a redução do grau de dependência em relação ao exterior. No transporte ferroviário, estimulava o desenvolvimento da indústria de equipamento e material ferroviário, já que o sistema de transporte exigia uma relativa autonomia frente às fontes de energia e à produção de materiais e equipamentos para transporte. Na mensagem programática de 1951 de Vargas no Congresso, Vargas declara:

Esse fato está a impor-nos um critério de preferência, a saber: entre os dois meios de transporte deve se escolher o que menos nos custe em divisas (...). É meu dever advertir que, pelo menos por enquanto, o custo do transporte ferroviário é várias vezes mais leve em termos de divisão, do que o rodoviário, porque aqui mesmo podemos fazer os trilhos e vagões e logo estaremos construindo as locomotivas, e porque a estrada de ferro aceita energia que podemos produzir em quantidades ilimitadas, a exemplo das hidrelétricas, em certas regiões, da lenha ou do carvão nacionais. (DRAIBE, 1985, p.188).

Infelizmente, a construção de estradas de ferro sempre obedeceu a critérios políticos e o Governo Vargas não se tornou uma exceção a esse respeito. De acordo com Draibe (1985),

Vargas chegou a observar que o maior partido nacional era o “Partido Rodoviário”.

3.2.16 - A Comissão Mista Brasil-Estados Unidos

O Plano elaborado por essa missão foi a primeira grande tentativa de planejamento econômico feita no Brasil. Na verdade era um diagnóstico geral da economia brasileira que 49

segundo Barat (1978), selecionava projetos setoriais mais importantes e recomendações para a sua implementação. Destaca o fracasso do Governo na manutenção e renovação da infra- estrutura e propõe investimentos em setores especiais, principalmente na oferta de serviços de transporte e de energia elétrica, pois essas deficiências retardavam o desenvolvimento do país.

Os principais projetos ferroviários recomendados foram: aquisição de locomotivas a

Diesel; aquisição de material rodante e prioridade de investimento entre os trechos de uma mesma ferrovia e, também, entre ferrovias.

Os capitais privados não tinham interesse no transporte e isso obrigou o Governo a responsabilizar-se pela exploração das empresas de transporte ferroviário. Em 1952, foi enviado ao Congresso um projeto de lei que criava a Rede Ferroviária Federal S.A.. A empresa pública era a fórmula operacional utilizada, em substituição aos antigos conselhos de estudos e pesquisa, para implementar as atividades industriais a serem realizadas pelo Estado.

Apesar dos projetos ambiciosos desta Comissão, foi um marco de referência na história do planejamento brasileiro que daria origem mais tarde ao Programa de Metas, efetivado entre 1956 e 1960.

3.2.17 - Oposição ao Vargas

Apesar das resistências políticas ao plano de Vargas e das realizações econômicas serem consideradas incompletas e fragmentadas se comparadas com o plano original, ocorreram avanços setoriais. O aparelho social consolidou-se com maior consistência e envergadura a partir das políticas sociais implantadas, e o aparelho econômico expandiu-se em níveis de coordenação mais elevada. Naturalmente, isso provocou a oposição dos setores dominantes. 50

O projeto de lei destinado à criação de uma empresa pública no setor ferroviário não foi aprovado durante a gestão de Vargas, nem a reestruturação administrativa das estradas de ferro num sistema de empresas industriais.

3.2.18 - O Programa de Metas

O Programa de Metas preparado para o período de 1956/60 foi considerado um sucesso na realização das metas principais, pois foi alcançada a substituição das importações, os investimentos no setor público atenderam as áreas consideradas prioritárias e havia investimentos e financiamentos externos, assinala Barat (1978). No setor ferroviário as metas foram a construção de linhas com significação econômica que justificassem o investimento e o reaparelhamento do material rodante e da via permanente. A criação da RFFSA surge para permitir que esses programas pudessem ser coordenados por uma organização administrativa específica do setor.

3.2.19 - A RFFSA

Cinco anos após ser encaminhado ao Congresso o projeto de criação da Rede

Ferroviária Federal S. A. – RFFSA, agravara-se, perigosamente, a situação das estradas administradas pela União, chegando a um déficit quase insuportável. Também lamentável eram as condições técnicas das linhas e do material rodante. Finalmente o projeto foi sancionado em março e as atividades da RFFSA foram iniciadas em trinta de setembro de

1957. 51

Quadro 3 Malha Ferroviária da RFFSA em 1957 Estrada Km Empregados E. F. Madeira-Mamoré 366 808 E. F. de Bragança 293 814 E. F. São Luís-Teresina 494 1.614 E. F. Central do Piauí 194 575 Rede de Viação Cearense 1.596 3.275 E. F. Mossoró Souza 243 664 E. F. Sampaio Correia 304 927 Rede Ferroviária do Nordeste 2.655 9.602 Viação F. F. Leste Brasileiro 2.545 7.638 E. F. Nazaré 325 996 E. F. Ilhéus 132 809 E. F. Bahia-Minas 582 1.443 E. F. Leopoldina 3.057 15.229 E. F. Central do Brasil 3.729 50.670 Rede Mineira de Viação 3.989 12.975 E. F. Goiás 478 2.819 E. F. Santos-Jundiaí 139 9.005 E. F. Noroeste do Brasil 1.764 8.227 Rede V. Paraná-Santa Catarina 2.666 12.930 E. F. D. Teresa Cristina 264 906 E. F. Santa Catarina 163 495 Viação Férrea Rio Grande do Sul 3.735 16.393 Total da malha ferroviária 29.713 158.814 Fonte: Revista Ferroviária

Constituída como uma sociedade anônima do tipo holding, ela incorporava e dirigia 18 das 35 ferrovias brasileiras na época. Restavam apenas quatro ferrovias com a iniciativa privada. Além disso, como uma empresa de capital misto, a distribuição acionária do capital se repartia entre Estados, Municípios e o Governo Federal, que possuía mais de 80% do capital.

O patrimônio era formado pelas linhas, pelo material rodante, edifícios e instalações, oficinas, entre outros, que pertenciam às estradas incorporadas, perfazendo um total de 28.800 km de linhas, 2.200 locomotivas, 3.400 carros e 36.300 vagões em 1963, (RFFSA, 1964).

Pelo montante do seu capital, do seu patrimônio e do número de seus 154.000 empregados, a RFFSA era considerada a maior empresa industrial do Brasil em 1965. Os 52

ferroviários e suas famílias constituíam uma comunidade de 750 mil pessoas espalhadas por quase todo o país. O valor de sua folha de pagamento era superior à receita dos Estados, à exceção de São Paulo e do Estado da Guanabara. A RFFSA desempenhava um papel importante no mercado de trabalho do país.

A missão da RFFSA era ambiciosa, já que iniciou suas atividades efetivando a centralização administrativa das estradas incorporadas, visando colocá-la fora do alcance das injunções políticas, ao mesmo tempo em que traçava um programa de recuperação com, inicialmente, os seguintes objetivos:

· Racionalização dos métodos administrativos e operacionais;

· Remodelação completa da via permanente;

· Renovação do parque de tração, com substituição intensiva das velhas

máquinas a vapor pelas modernas locomotivas diesel elétricas;

· Aumento e renovação do material rodante, com a aquisição de vagões

modernos;

· Redução do quadro de pessoal com a abolição da política de “empreguismo”,

que sempre se constituiu um dos fatores de aumento de déficits. Segundo

Tavares (2001), as receitas operacionais das ferrovias originárias não cobriam

as folhas de pagamento;

· Eliminação paulatina dos trechos ferroviários considerados antieconômicos;

· Implantação de uma política agressiva de incremento de transportes.

Cabe ressaltar que a RFFSA grupou e centralizou o comando das ferrovias nacionais, permitindo-lhes um funcionamento mais eficiente, através da eliminação dos múltiplos métodos burocráticos que dificultavam a operação ferroviária. Portanto, era responsável pela direção, operação, manutenção, expansão e reequipamento das ferrovias, exercendo sua 53

autoridade diretamente ou por intermédio das subsidiárias, além de orientar e supervisionar os planos de operação das diversas ferrovias, estabelecer políticas salariais e de pessoal, promover estudos de viabilidade. Sua renda podia advir de rendimentos, dividendos, taxas, tarifas de transportes, contratos de trabalho de terceiros, subsídios do Governo e juros de depósitos bancários.

Até 1964, novas estradas foram incorporadas e extintas, alterando o seu esquema original com base nas condições econômicas e geográficas. Seu pessoal foi reduzido pela não substituição dos empregados que se aposentavam.

Além disso, diversas mudanças organizacionais ocorreram a fim de aumentar o rendimento operacional e o estabelecimento de uma imagem de grande e empresa, com base na redução dos custos, na racionalização dos serviços e na simplificação dos processos administrativos, configurando-se como um agrupamento integrado de sistemas regionais.

Uma reforma na estrutura organizacional foi realizada em 1969, de acordo com o

Plano Estratégico de Desenvolvimento – PED. As 14 estradas a que estava reduzida foram aglutinadas em seis grandes sistemas regionais e em uma divisão especial para o transporte de passageiros de subúrbio do Grande Rio. O transporte de longa distância foi extinto.

Apesar do modal ferroviário estar sempre contemplado dentro dos Planos de Governo da era desenvolvimentista do país, algumas deficiências nas políticas de investimento e operação continuavam a existir, como a ausência de coordenação intermodal, irrealismo das tarifas cobradas ao usuário, falta de padronização dos equipamentos de transporte, ineficiência de operação e custos elevados, resultantes dos baixos níveis de produtividade e o despreparo da empresa pública na competição pelas cargas. 54

Nos anos 70, houve uma preocupação em dar ênfase na especialização das cargas. Os produtos cujo transporte movimentasse grandes massas homogêneas, com elevada concentração entre a origem e destino e exigisse a especialização deveriam ser reconhecidamente mercadorias a serem transportadas pela ferrovia, tais como minério de ferro, carvão, produtos siderúrgicos, cimento, soja, milho, trigo, fertilizantes, derivados de petróleo entre outros.

Em 1974, Braga (1974) sugeriu uma política de transporte com as seguintes linhas principais: ênfase na especialização; prioridade para investimentos ferroviários; vinculação com a política do setor de silos e armazéns; renovação, motivação e valorização do pessoal; modernização administrativa e operacional; política comercial agressiva; revisão do sistema tarifário; Separação do transporte suburbano do Grande Rio e do Grande São Paulo; fusão da

RFFSA com a FEPASA. Este último, justificável pelo forte entrelaçamento das duas empresas e pelo intenso tráfego mútuo, sendo essa divisão um empecilho a uma operação mais flexível e racional, mas que se mantinha por motivos puramente políticos.

3.2.20 - A Questão do Déficit Ferroviário

O sistema ferroviário é considerado como um dos fatores que oneram o orçamento da

União. Porém, no estudo da apuração do déficit ferroviário, não se pode dissociar os resultados da exploração ferroviária da política econômico-social, da qual a ferrovia tem sido um dos instrumentos para as subvenções indiretas do poder público nas atividades econômicas, no favorecimento de determinadas classes sociais e na inclusão de alguns valores estranhos a operação ferroviária, de acordo com RFFSA (1965).

A RFFSA, dentro de seu papel econômico e social imposto pelo governo, executava uma série de atividades sem que pudesse obter a remuneração necessária, tais como: 55

transporte de malas postais de seus respectivos acompanhantes, os chamados estafetas; transporte de passageiros fardados e passageiros suburbanos; transporte de carga com tarifas reduzidas; encargos de manutenção da via, por interesse da segurança nacional, interesse social e interesses decorrentes de acordos internacionais; complementação de aposentadoria e outros benefícios sociais;

A empresa ferroviária não tinha liberdade de tarifária e era obrigada a executar as imposições do Governo, aliás, prática que perdura desde o Império, de acordo com as palavras do Ministro da Viação Joaquim Duarte Murtinho em 1897 (GORDILHO, p. 283): “[...] e quando se agita a questão do aumento ligeiro de tarifas, a idéia é repelida como odiosa e iníqua, como se não fosse da mais rigorosa justiça pedir-se por um objeto, ao menos, o custo de sua produção e como se a justiça fosse, algum dia, odiosa e iníqua”.

Assim, instituiu-se a chamada normalização das contas em 1964, em que o Governo passava para a empresa a receita necessária para cobrir os verdadeiros encargos tarifários e sociais do déficit ferroviário, eliminando as distorções constantes do quadro contábil da ferrovia, de modo a possibilitar a apresentação do resultado efetivo da exploração econômica da estrada de ferro como meio de transporte.

Essas políticas adotadas pelo Governo no que concerne à fixação de tarifas dos serviços públicos em geral provocavam efeitos inflacionários, que se refletiam em grandes parcelas da despesa governamental. No período de 1961/1970, o setor ferroviário era responsável por 90% do total de subvenções concedidas ao sistema de transporte.

Na década de 80, foram tomadas outras medidas como forma de aumentar a eficiência: separação do transporte de passageiros de subúrbio do transporte de carga, criando a

Companhia Brasileira de Transporte Urbano – CBTU e a transferência para a União dos débitos anteriores da RFFSA. 56

A missão da RFFSA estava completa, reduziu a malha, o quadro de pessoal, aumentou a produção, disponibilizou os equipamentos de transporte de maneira razoavelmente uniforme e apresentou déficits operacionais suportáveis, se comparados com os de outros países.

Porém, não possuía capacidade para formular e implementar estratégias agressivas para atrair clientes como a oferta de serviços novos ou de melhor qualidade, quer por ausência de quadros de pessoal ou dificuldades institucionais, quer por incapacidade de cumprir contratos, na medida em que os cortes orçamentários impediam a manutenção adequada das vias e do material rodante.

O modelo de operação deficitário assegurava prioridades aos grandes e poucos usuários, significando uma apropriação de recursos do conjunto da sociedade, pois são subsídios implícitos por alguns poucos através das rubricas de coberturas para déficits fornecidos pelo Governo (REVISTA BNDES, 1999). Pode-se acrescentar os interesses políticos e eleitoreiros que nunca deixaram de existir.

3.2.21 - A Reforma de Estado e a Ferrovia

A política de transporte ferroviário executada durante a gestão do Presidente Fernando

Henrique no sub-setor ferroviário está inserida na Reforma do Estado. Um dos objetivos dessa reforma é retirar a participação do Estado da atividade produtiva, com o propósito de contribuir para a redução do chamado custo Brasil, para a melhoria dos serviços, para o aumento da produtividade do país e para redirecionar os recursos financeiros em prol da área

Social.

Ao considerar-se que os custos do transporte ferroviário são expressivamente menores para longas distâncias, verifica-se que o transporte ferroviário no Brasil não está ajustado a 57

um país de dimensões continentais. O modal ferroviário é de apenas 20%, contra os 60% do rodoviário, dentro da matriz de transportes brasileira.

Dentro desse contexto, o Ministério dos Transportes apresentou como política a reestruturação dos transportes que cria as agências reguladoras, dissolvendo e extinguindo

órgãos, privatizando e abrindo para o capital interno e externo as concessões e arrendamentos.

O governo esperava que suas ações permitissem a multimodalidade, e que a participação da iniciativa privada permitisse que os investimentos fossem direcionados para a infra-estrutura básica, de maneira a aprimorar o papel do Estado na coordenação, normatização e supervisão do setor de transporte.

Antes de tudo, a ferrovia precisava adequar-se às demandas atual e futura e oferecer um maior grau de confiabilidade, disponibilidade e garantia de transporte. Urgia também uma maior integração entre as ferrovias nacionais e a restauração e manutenção de vias e frotas.

Coube ao BNDES preparar o modelo de privatização para a RFFSA.

3.2.22 - A Desestatização da RFFSA

Em meados de 1995, as doze malhas regionais que constituíam a RFFSA, naquela

época, foram divididas em seis malhas e as condições de concessão para a operação e manutenção dos serviços de transporte ferroviário e arrendamento dos bens, por leilão, foram divulgadas em editais.

Os critérios que nortearam a fixação das seis malhas foram: a estrutura organizacional da empresa; a situação geo-econômica de cada uma das malhas; a existência de malhas isoladas; as restrições técnicas, principalmente a bitola, e os principais fluxos de transporte atuais e futuros. As concessões foram fixadas por período de 30 anos, podendo ser renovadas.

O lucro oriundo do leilão foi usado para reduzir a dívida da empresa. A quantia referente aos 58

pagamentos escalonados no edital foi dividida entre o Tesouro Nacional e a RFFSA, que continuaria a receber pelo arrendamento de seus bens.

Com o arrendamento da última malha em 1997, foi concluída a passagem das linhas da RFFSA para a iniciativa privada. O quadro 4 atual das concessionárias originárias da

RFFSA.

Quadro 4 – Concessionárias originárias da RFFSA Denominação da Estrada Km Novoeste 1.626 Centro-Atlântica (FCA) 7.080 MRS Logística (MRS) 1.674 Teresa Cristina 164 América Latina Logística (ALL) 6.355 Ferroviária Nordeste (CFN) 3.601 Total das Concessionárias 20.500 Fonte: Ministério dos Transportes

3.2.23 - A Decretação da Liquidação da RFFSA

Em 7 de dezembro de 1999 é assinado o Decreto 3.277 que dispõe sobre a dissolução, liquidação e extinção da RFFSA em seis meses, de maneira a vender os ativos não operacionais, tais como os supostos 22.000 imóveis, para solver os passivos, entre eles os

39.000 processos cíveis e trabalhistas, em que na maioria é ré, provisionados em torno de

R$480 milhões. Continuam em seus quadros em torno de 600 empregados distribuídos em 13 escritórios regionais e uma administração geral sediada no Rio de Janeiro.

3.2.24 - A Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT

Passaram-se cinco anos desde a privatização da primeira malha até a sanção da Lei no

10.233 de cinco de junho de 2001, que criou a Agência Nacional de Transportes Terrestres - 59

ANTT. Esse lapso de tempo entre as privatizações e a criação da agência já pode ser considerado como uma dificuldade na implementação do modelo de agências reguladoras.

A ANTT tem como desafio inicial as primeiras revisões dos contratos de concessão, além de tentar mudar algumas ações já executadas pelas concessionárias por falta de um

órgão regulador e fiscalizador. Os atuais contratos de concessão são regidos pela Lei 8987 de

13 de fevereiro de 1995, projeto do Senador Fernando Henrique Cardoso.

As empresas concessionárias encontram-se divididas em três grandes grupos que, basicamente, realizam o transporte dentro do seu próprio domínio. A Vale do Rio Doce tem em seu poder o transporte de São Paulo para cima, até o Nordeste e a Brasil Ferrovias possui o de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo; e a ALL Logística fica com o sul do país

(O VALOR, 2002). Como os contratos são específicos para a exploração e desenvolvimento do transporte de carga dentro da faixa de domínio de cada concessionária, questões como tráfego mútuo, direito de passagem, ou seja, a integração Norte-Sul não foi resolvida.

Além disso, os traçados ferroviários continuam praticamente os mesmos, regionalizados, mas com notícias de encolhimento. Não estão sendo aplicadas multas, somente advertência, no caso de descumprimento de metas de transporte e segurança

(TRANSPORTE AGORA, 2001). A concorrência pelo mercado entre empresas, uma das propostas do modelo de regulação, está ameaçada pelo controle acionário de determinados grupos em mais de uma ferrovia. Será que a ferrovia pode se tornar, de novo, um monopólio?

O transporte ferroviário não aumentou sua participação na matriz de transportes do país, ainda perde para o rodoviário, principalmente em termos de regularidade e velocidade.

Atualmente a ferrovia tem uma velocidade média de 20 km/h. As empresas concessionárias. alegando não poder cumprir as metas por falta de investimentos, não aceitam, agora, a condição dos contratos de concessão que considera como irreversíveis os investimentos. 60

3.3 - A Gestão da RFFSA em Liquidação

Como empresa em liquidação, a empresa cumpre uma série de exigências legais e modificações em sua administração. A primeira delas foi a nomeação de um servidor público de carreira como liquidante, que substituiu a figura anterior do presidente. Ao nome da empresa foi obrigatório acrescentar a palavra “em liquidação” e o organograma mudou de acordo com as novas funções.

Uma das prioridades foi o maior controle da função jurídica em conseqüência do enorme contencioso, que gerou despesas impossíveis de serem planejadas dentro de um orçamento fixo. O patrimônio, que sempre esteve longe das prioridades da empresa, tornou-se fonte de receita, mas enfrentou um mercado recessivo para a alienação e com altos índices de inadimplência. Além disso, a empresa continuou a administrar o passivo ambiental, o controle da venda de sucata, a manutenção dos bens históricos, bem como as dívidas com o INSS e o

FGTS.

Passados seis meses após a decretação da liquidação houve uma expectativa muito grande quanto à renovação do decreto, já que o Governo Federal poderia transferir os bens da

RFFSA para Secretaria de Patrimônio Público da União (SPU), e o contencioso jurídico para

Advocacia Geral da União (AGU) com uma “canetada”. No entanto, isso nunca aconteceu apesar da ameaça constante e de sucessivas renovações de seis em seis meses, que vêm acontecendo desde dezembro de 1999.

A RFFSA em liquidação possuía, até janeiro de 2003, um vínculo com o Ministério dos Transportes, mas era subordinada ao Departamento de Extinção e Liquidação da

Secretaria Executiva do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, o que resultava em uma complexa relação de poder. A primeira liquidante, baseando-se na situação da empresa e suas perspectivas em busca de diretrizes para resolver tamanha diversidade de problemas, 61

apresentou o projeto de liquidação da RFFSA (quadro5) em Brasília no dia 27 de abril de

2000.

Quadro 5 Situação da RFFSA em liquidação em 27/04/2000 Aspecto Descrição Propriedade de bens Cerca de 25.843 km de linhas e 166.362 bens operacionais, operacionais arrendados destacando-se 1.708 locomotivas, 48.546 vagões, 59 oficinas que não podem compor o de locomotivas e 69 oficinas de vagões. Esses bens foram pagamento de passivos arrendados às concessionárias, por fazerem parte da operação ferroviária, mas a fiscalização é realizada pela RFFSA em liquidação. Propriedade de bens não Imóveis residenciais e comerciais, em torno de 35.000, operacionais muitos deles ocupados por moradores de baixa renda. A maioria necessita regularização da titularidade, com baixo valor de mercado ou penhorados. Os imóveis de utilização pública são negociados com os governos locais. Locomotivas e vagões não arrendados ou devolvidos pelas concessionárias. Estoque de peças sobressalentes não adquiridas pelas concessionárias. Estoque de equipamentos de eletrificação ferroviária com um valor venal de US$ 150 milhões. Cerca de 13.000 km de linhas a serem erradicadas. Bens históricos e 16 museus. Receita do contrato de R$ 182 milhões arrendamento Bloqueio de receita do R$190 milhões foram bloqueados para pagamento de arrendamento futuro dívidas. Venda de recebíveis à R$ 2.855 milhões foram repassados para pagamento de União passivo fiscal e previdenciário, dívida com a Refer e BNDES e custeio da RFFSA. Venda de recebíveis à R$ 170,1 milhões para custeio da FEPASA. BNDES Contencioso cível e Valor estimado do passivo judicial em R$ 4,2 bilhões, sendo trabalhista que R$ 2,7 bilhões de ações cíveis e R$ 1,5 bilhões em ações trabalhistas. Número de ações estimado em 41.000, sendo 32.000 trabalhistas distribuídas em 830 comarcas em 19 estados brasileiros. A decretação da liquidação acelerou a penhora de muitos bens, créditos e contas correntes da empresa. Acervo documental e Cerca de 200.000 pastas funcionais. pessoal Acervo técnico espalhado nos 13 escritórios regionais e Administração Geral. Fonte: RFFSA em liquidação, Projeto de Liquidação 62

O processo de liquidação da empresa requisitou a realização dos ativos não operacionais para o pagamento dos passivos. Porém, esse processo demonstrou-se de alta complexidade, requerendo diversas ações por parte do governo que exigiriam contratações de consultorias, edição de medidas provisórias que agilizassem os processos burocráticos e acordos que envolvessem o Poder Judiciário e orçamento da União para honrar compromissos financeiros.

A complexidade do processo de liquidação e as perspectivas apresentadas pela liquidante demonstraram que a decretação da liquidação da RFFSA foi subestimada pelo

Poder Executivo. Algumas ações como acordos com o Poder Judiciário, negociação de dívidas, contratações de consultorias para reavaliação dos ativos e recuperação dos depósitos recursais foram efetivadas pela liquidante.

Outras medidas tomadas pela liquidante foram a diminuição do número de cargos de confiança da empresa que passou ao quantitativo de 130 e a criação de uma nova estrutura fictícia, já que a empresa em liquidação tem sua estrutura formal restrita ao liquidante, o

Comitê de Suporte e a Auditoria.

Em dezembro de 2001, com a criação da Agência Nacional de Transportes Terrestres

(ANTT) a liquidante deixou a empresa para ocupar cargo de diretora naquele órgão. A partir de então, a empresa passou a ser dirigida, não mais por um liquidante, mas por uma comissão de liquidação que deveria “[...] imprimir agilidade na resolução dos problemas de natureza diversa pelos quais passa a empresa” (AMORELLI, 2003, p.56).

O discurso da comissão foi o mesmo da liquidante anterior, a começar pela necessidade de deixar claro que os liquidantes são servidores públicos estáveis, enquanto os empregados da RFFSA em liquidação dependem da continuação da empresa e devem continuar a “cavar a própria cova”. A Comissão de Liquidação estabeleceu metas “[...] de 63

alienação de patrimônio, redução de processos judiciais e diminuição de funções gratificadas e escritórios regionais” (AMORELLI, 2003, p. 61).

A empresa continuou com os mesmos problemas de receitas e controle de passivo.

Todavia, verificou-se uma maior burocracia na conduta da administração, o que ficou explicitado nas resoluções da comissão de liquidação no 87/2002 da comissão de ética, no

14/2002 de concessão de audiências e da no 4/2002 sobre o controle protocolar.

A Comissão de Liquidação fez algumas mudanças na estrutura virtual da empresa e extinguiu o escritório da Malha Paulista (ERMAP) que passou a se subordinar ao escritório regional de São Paulo (ERSAP).

As dificuldades de receita foram agravadas pelas restrições do orçamento da União, pela dificuldade de regularizar a titularidade dos imóveis e a inadimplência das locações e alienações. Cabe acrescentar que o número de contratos de alienação e locação dos bens patrimoniais caiu muito no ano de 2002. A tabela 1 fornece os dados fornecidos pelo sistema computacional desenvolvido pela própria empresa, o Sistema de Acompanhamento e Receita

Patrimonial (SARP).

Tabela 1 Número de novos contratos na área de patrimônio Ano Número de Contratos Patrimoniais 2000 11.495 2001 9.635 2002 5.345 Fonte: RFFSA em liquidação: SARP/março 2003

A quantidade de bens a administrar continuou grande, conforme a tabela 2

(AMORELLI, 2003) que fornece os totais de bens imóveis, em agosto de 2002, por escritório e os bens não operacionais em estoque, que podem ser materiais de escritório e equipamentos ferroviários não absorvidos pelas concessionárias. 64

Tabela 2 Classificação e distribuição dos bens não operacionais Distribuição Imóveis Outros Total ERREC 1.954 5.260 7.214 ERBEL 2.022 3.256 5.278 ERJUF 2.739 1.947 4.686 ERSAP 2.241 2.529 4.770 ERCUB 5.227 5.567 10.794 ERPOA 1.663 2.536 4.199 ERSAV 1.054 1.525 2.579 ERCAM 1.933 3.334 5.267 ERTUB 141 534 675 ERBAU 1.683 3.097 4.780 ERMAP 5.297 11.041 16.338 AG 3.376 806 4.182 TOTAL 29.330 41.432 70.762 Fonte: Amorelli (2002, p. 60) agosto/2003.

Os processo judiciais somavam 33.905 em 5 de setembro de 2002, com valor de risco em torno de R$ 5 bilhões (AMORRELI, 2003, p. 59) e distribuído por diversas naturezas, de acordo com a tabela 3.

Tabela 3 Processos Ativos por Natureza Natureza Quantidade Trabalhista 21.938 Cível 6.563 Criminal 31 Fiscal 2.333 Previdenciária 3.040 Total 33.905 Fonte: Amorelli (2003, p. 59)

Além disso, outros serviços estavam disponíveis em bancos de dados centralizados em computadores na Administração Geral, mas acessados por escritórios regionais como o que atende ao controle e pagamento de pensões a 100.000 pensionistas em todo Brasil.

O destino dos serviços executados pela empresa e de seus empregados continuaram como incógnitas. A Comissão de Liquidação reclamou das inúmeras pressões e das dificuldades burocráticas que uma empresa do governo tem em se desfazer de seus ativos e de realizar contratações de forma a agilizar a liquidação (AMORELLI, 2003). Com a posse do 65

novo Presidente do Brasil em 1 de janeiro de 2003, novas perspectivas apontaram para o possível fim da liquidação.

3.4 - Leitura Crítica da Cultura da Empresa a partir de sua Trajetória Histórica

A análise cultural proporciona um guia, um mapa, que se torna um poderoso instrumento para promover a dimensão humana quando indica a hierarquia de significados subjacentes à utilização de recursos e pessoas. Para descrever a cultura da RFFSA é preciso analisar a “teia de significados” (GEERTZ, 1978, p. 15), a Rede como tecido cultural que vai articulando as subculturas nacionais, e a começar pela sua origem que está ligada a ferrovia no Brasil.

A ferrovia no Brasil nasceu do espírito empreendedor e sonhador daqueles que não se esmorecem diante dos obstáculos, sejam eles financeiros ou políticos, a começar pelo Barão de Mauá que em sua biografia apresenta uma vida de grandes realizações e o sonho da primeira ferrovia no Brasil (MAUÁ, [19-]).

Existe e sempre existiu no Brasil a consciência da necessidade da ferrovia para o desenvolvimento do país em virtude de suas dimensões. Como Mauá (MAUÁ, [19-], p.21), como Cristiano Ottoni (DAVID, 293, p. 6), como o Presidente Getúlio Vargas (DRAIBE,

1985, p.188) argumentavam e lutavam. No entanto, os lobbys políticos nunca foram vencidos, como Vargas chegou a observar como o maior partido nacional: o “Partido Rodoviário”

Draibe (1985, p. 188).

O que pode ser observado na retrospectiva histórica da ferrovia brasileira é a alternância entre o governo e o setor privado. O setor privado investe na primeira ferrovia, depois não consegue arcar com seus custos e entrega para o Governo como ocorreu com a primeira ferrovia brasileira, com a Estrada de Ferro D. Pedro II entre outras. Nos dias mais atuais, o ex-Ministro dos Transportes Eliseu Padilha falou no ProFerro (O GLOBO, 2001), de 66

maneira a socorrer as concessionárias Novoeste e a CFN. Será que mais uma vez o Governo arcará com os investimentos ou encampará uma ferrovia?

Além disso, os concessionários do serviço de transporte ferroviário de cargas alegam que, pelos dormentes de aço durarem 70 anos, não cabe só a eles esse investimento, pois eles têm a concessão por 30 anos (TRANSPORTE AGORA, 2001) e, assim, exigem do Governo a sua participação. Será que os concessionários querem que volte a concessão por 90 anos

(OTTONI, 1859) como acontecia no Império?

Acrescente-se que algumas ferrovias, como a FCA, insistem que para crescer precisará duplicar suas linhas e construir novos trechos, seu presidente defende que os recursos devem vir do governo diretamente ou por linhas de crédito especiais (O VALOR, 2001). Para a redução do “Custo-Brasil” é condição imperativa o aumento do modal ferroviário a fim de que haja uma transformação na oferta de serviços de transporte e de logística. Essa mudança exige uma ágil e eficiente agência reguladora de transporte, que não pode estar submetida às forças políticas e deve operar voltada para satisfação dos interesses dos usuários de transportes e para o provimento das condições básicas à operação das empresas concessionárias dos serviços.

A agência reguladora que se instalou é uma conseqüência da Reforma de Estado, em que dentre os seus objetivos estão a saída do Estado das atividades produtivas (MINISTÉRIO

DO PLANEJAMENTO, 2001) e o fim do clientelismo, do patrimonialismo e do nepotismo. É indiscutível que o projeto de lei da ANTT foi muito bem elaborado pelo relator Elizeu

Rezende. No entanto, existem evidências dessas práticas na sua direção.

A ANTT ainda não cumpre seu papel fiscalizador no que tange a ferrovia, esse encargo é executado, até hoje, pela RFFSA em liquidação com pouquíssimos recursos materiais e pessoais. Vale lembrar também que a RFFSA em liquidação possui o domínio dos 67

bens arrendados às concessionárias. Esses bens poderão voltar para a RFFSA após os 30 anos de concessão. Não foi definido, no caso de extinção da RFFSA, quem receberá esses bens.

Assim, o sistema ferroviário brasileiro continua em sua trajetória de busca de um lugar dentro da conjuntura econômica e social do país, em que possa, realmente, prestar um serviço de relevância e com qualidade tão necessária a um país de dimensões continentais como o

Brasil. Por enquanto, desde o Império, ainda não foi possível realizar uma verdadeira transformação do setor ferroviário que fizesse com que sua participação na matriz de transporte o tornasse significativo, como assinalou o último Secretário de Transportes

Terrestres do Ministério dos Transportes (TRANSPORTE AGORA, 2001). A ferrovia continua com os mesmos velhos problemas e, no fundo, as mesmas soluções. O transporte ferroviário no Brasil, hoje, é apenas um velho com cara de novo.

A RFFSA sempre teve um postura paternalista ao oferecer moradia aos seus funcionários, colônia de férias, creche e escola. Essas práticas eram comuns nas relações industriais como já citado em Colbari (1995).

A empresa ferroviária RFFSA não nasceu RFFSA, foi uma fusão de ferrovias cada qual com sua própria cultura. Morin (2002, p. 56) assinala que “[...] sempre existe cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio de culturas”. Assim, a RFFSA tem uma cultura que existe por meio das culturas das ferrovias originárias.

No passado da empresa, esse aspecto nunca foi trabalhado, pelo contrário, a idéia era vencer as resistências culturais em busca da uniformidade do agir. A postura era de intervenção, primeiro acabar com as culturas das ferrovias para depois criar uma única cultura

RFFSA. O que deveria ter sido feito era aceitar a cultura das ferrovias originárias para, depois, criar a “camisa” RFFSA. Um dos entrevistado declara: “[...] O grande erro da Rede 68

foi esse aspecto de não ter criado a camisa Rede Ferroviária Federal em cima das que todas as

ferrovias tinham”.

Na empresa sempre houve, como ainda há, diferentes grupos sociais distanciados,

como é o caso dos engenheiros, dos maquinistas ou dos diversos escritórios regionais da

RFFSA pelo Brasil, que possuem diferentes padrões de comportamento, rituais e normas.

Os engenheiros sempre formaram uma casta, por estarem diretamente ligados à missão

da empresa e existir na ferrovia uma “escola de engenharia modelar” (DAVID, 1983, p.17). A

RFFSA possuía habilitação necessária em suas instalações industriais para produzir até peças

de locomotiva. As suas obras-de-arte (pontes, drenagens) são admiradas como obras de

engenharia. Faltava, porém, a humildade necessária à gestão intercultural (Srour, 1998).

A metáfora da máquina de Morgan (2000, p. 33) é muito apropriada para que os engenheiros, preferencialmente, ocupassem os cargos de confiança, segundo notícias de uma

Resolução de Diretoria datada de 1979 e que, infelizmente, foi impossível de se localizar pelo desmonte ocorrido na biblioteca. Mais tarde isso mudou para empregados na classe universitário (PU). Entretanto, ainda hoje, causa estranheza a nomeação de um empregado para algum cargo de destaque que não esteja na classe PU.

Mesmo assim, o mérito para alcançar um cargo de confiança era baseado, na maioria das vezes, unicamente nas relações sociais do empregado. Os chopes depois do expediente, o futebol, as festinhas eram essenciais para aqueles que almejavam uma melhora salarial, apesar da existência de avaliações anuais, que é claro tinham caráter de retaliação pessoal do chefe com o subordinado ou nenhum efeito, quando todos obtinham grau máximo

(VASCONCELLOS, 1995). 69

O paternalismo se expressa na manutenção de casas para seus funcionários

(COLBARI, 1995, p. 208) e nas designações dos cargos de confiança, o personalismo nas

diversas correntes políticas que alternavam seu poder dentro da empresa, normalmente

indicados por caciques políticos. Os subordinados manifestam-se com uma postura de

espectador, com lealdade pessoal, acompanhada pelo formalismo e pela impunidade.

A RFFSA é classificada como uma empresa de economia mista no qual o maior

acionista é o Governo, ainda preserva um pouco de estabilidade e as atitudes não são

diferentes. É comum encontrar aqueles que mudam de função ou carreira para melhorar seu

salário ou até ganhar mais poder (HOLANDA, 1977).

A RFFSA, como empresa pública, foi criada e gerenciada de acordo com os parâmetros administrativos burocráticos weberianos. A burocracia é uma forma de organização humana que se baseia na racionalidade, isto é, na adequação dos meios aos fins pretendidos, de maneira a garantir a máxima eficiência possível ao alcance desses objetivos. Ela é a organização típica da sociedade moderna, base do moderno sistema de produção e das grandes empresas.

A burocracia no Brasil sofreu disfunções causadas pelas influências do nosso passado colonial, no qual a família patriarcal desequilibrava a ordem social. Na RFFSA isso não foi diferente: apesar de normas e leis que garantiam a organização burocrática, seus dirigentes, indicados políticos, na maioria das vezes atendiam aos interesses dos clientes privados em detrimento dos interesses da empresa, (HOLANDA, 1977).

Como assinala (ADIZEZ, 1990, p. 91), a empresa burocrática envelhece com o tempo e se mantém devido ao monopólio. A RFFSA deteve, desde sua criação até o fim do processo de privatização, o monopólio ferroviário e seu gerenciamento não tinha como prioridade atender 70

bem aos seus clientes e conquistar novos mercados, e sim, a eficiência, bater recordes em produtividade.

Decisões operacionais, tais como a erradicação de um ramal ferroviário deficitário, poderia não acontecer se isso atingisse os interesses de algum político, como era muito comum nos estados do Nordeste, normalmente de transporte pouco produtivo.

Na empresa pública encontra-se o espaço que faz com que as diversas categorias do

sentido de ser brasileiro se mostrem. Pode-se situar a RFFSA, de acordo com Srour (1998),

como uma organização na posição de direita, conservadora e autoritária, onde os interesses

privados podem ser colocados acima dos nacionais, como era de esperar de uma cultura

patriarcal e patrimonialista.

Mesmo o processo de extinção não foi capaz de apagar a sua cultura, apesar dos

esforços da nova administração em torná-la mais enquadrada no aparelho estatal, de acordo

com Amorelli (2003). Outro acontecimento ocorrido em 30 de setembro de 2002, também,

corrobora a força dessa cultura.

O dia 30 de setembro é comemorado o aniversário da RFFSA, considerado para os

empregados como o seu dia, portanto, feriado. No ano de 2001, a Comissão de Liquidação

emitiu um comunicado (Anexo A) em que dizia que: na segunda-feira, dia 30 de setembro, o

expediente seria normal, frustrando a maioria dos empregados.

Esse foi um dos acontecimentos que explicita a desconsideração aos rituais da

empresa, em um desejo de morte para a sua cultura, em um posicionamento claro de oposição,

entre os responsáveis pela liquidação e os ferroviários, que pode ser justificado pelo processo

de liquidação. Vale lembrar, a título de curiosidade, que na Administração Geral sediada no

Rio de Janeiro o expediente foi interrompido pelos traficantes que impediram que o comércio 71

e a indústria trabalhassem nesse dia em quase toda a cidade, “Deus é brasileiro” e

“ferroviário”, como já citado em PRATES e BARROS (1997, p. 63).

Ao sofrer a tentativa de morte da cultura da empresa, os valores e crenças nacionais são mais visíveis, as características culturais do “jeitinho brasileiro” tornou-se prática, assim como outras características brasileiras SROUR (1998).

De acordo com os trabalhos de Freitas (1997) e Prates e Barros (1997), apresentados no referencial teórico, apresenta-se o quadro 6, com as categorias predominantes na gestão empresarial brasileira que podem ser encontradas dentro da RFFSA.

Quadro 6 Aspectos e características-chave da cultura RFFSA Aspecto Características RFFSA

1. Patriarcalismo · Entradas, elevadores e estacionamento exclusivos para cargos de confiança · Salas e mesas maiores para os chefes · Privilégios para os engenheiros · Procedimentos definidos pela hierarquia de chefia · Decisões tomadas pela alta direção, sem participação dos empregados 2. Paternalismo · Amizade e parentesco prevalecem sobre o profissionalismo · Garantia de emprego, salário e moradia 3. Patrimonialismo · Posse sobre materiais, áreas, funções de forma individualista 4. Personalismo · Presente na distribuição de promoções e comissões · Ingerência política na distribuição dos cargos · O emprego do “padrinho” para conseguir vantagens pessoais 5. Concentração de Poder · Decisões tomadas pela gerência não têm espaço para serem questionadas 6. Lealdade Pessoal · Ignoram os interesses da empresa para favorecer aqueles que os protegem · Formação de “panelinhas” 7. Postura de Espectador · Falta de inicitiava · Dificuldade em assumir decisões 8. Flexibilidade · Capacidade de buscar soluções apesar dos entraves da máquina estatal 9. Jeitinho · Sobreviver mesmo com poucos recursos · Utilização de gratificação de cargos de confiança como 72

forma de aumentar salário 10. Evitar o conflito · Não existem amigos nem inimigos, e sim, interesses comuns e opostos 11. Formalismo · Uso das normas e regras de acordo com os interesses pessoais 12. Impunidade · Faltam mecanismos punitivos, as normas só eram válidas para os que não tinham padrinho 13. Busca do Prazer · Realização de festas e comemorações. Utilizando uma metáfora, pode-se descrever as festas organizadas na empresa como a orquestra do Titanic, que mesmo com o navio afundando eles continuam tocando

A partir da convivência entre sub-culturas na empresa, forma-se uma cultura.

Compreendê-las, respeitá-las e reconhecer suas singularidades são aspectos essenciais para a sobrevivência de uma organização, de maneira que os aspectos positivos dessa cultura sejam preservados e aqueles que impedem o desenvolvimento se transformem. 73

Capítulo 4 – OS RECURSOS HUMANOS E SUAS POLÍTICAS

Neste capítulo são focalizados os aspectos teóricos sobre gestão de pessoas, que norteiam o trabalho. Com base em pesquisa bibliográfica e documental apresentam-se os aspectos humanos e sociais da ferrovia no Brasil, o antigo Sistema de Pessoal da RFFSA, a política de recursos humanos durante a desestatização e a prática de recursos humanos durante a liquidação.

4.1 - Gestão de Pessoas no Novo Contexto Organizacional

Para situar o objeto proposto, cabe descrever o contexto em que empresas estão inseridas. As grandes mudanças nos ambientes interno e externo das organizações vêm impulsionando transformações dentro das empresas, sob a égide da globalização, que leva a uma incerteza sobre o destino das pessoas.

Surgem novas formas sociais sobre o espaço e o tempo, e muitos imaginam que chegou a era da pós-modernidade (HALL, 2002, p. 71). “[...] Troca-se a experiência pela a aparência, o real pelo virtual, o fato pelo simulacro, a história pelo instante, o território pelo dígito, a palavra pela imagem” (IANNI, 1999, p. 211).

O paradigma dominante tem sua maior representação na “nova economia”. Os traços principais desta nova economia mundial, assinala Boaventura Souza Santos (2001), são os seguintes: economia dominada pelo sistema financeiro e pelo investimento à escala global; processos de produção flexíveis e multilocais; baixos custos de transporte; revolução nas tecnologias de informação e de comunicação; desregulação das economias nacionais; agências financeiras multilaterais; emergência dos grandes capitalismo transnacionais, dos

Estados Unidos, do Japão, e da União Européia. 74

Os chamados países periféricos, entre eles o Brasil, são atingidos, assim como as suas organizações, pelas implicações destas transformações em suas políticas econômicas nacionais. São obrigadas a seguir as seguintes orientações ou exigências:

As economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços domésticos devem adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade à economia de exportação; as políticas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a redução da inflação e da dívida pública e para a vigilância sobre a balança de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o setor empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisão privada, apoiada por preços estáveis deve ditar os padrões nacionais de especialização; a mobilidade de recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulação estatal da economia deve ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no orçamento do Estado, reduzindo a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relação aos estratos sociais, inequivocamente vulnerabilizados pela atuação do mercado.(SANTOS, 2002, p. 170).

Esse novo tempo indeterminado e aberto que surge com essas modificações impostas pela globalização, muda o tempo associado à realização de um ofício, pois não existem mais os parâmetros rígidos e padronizados da produção tayloristas. Faz com que o trabalho, agora, possua contornos fluidos, de qualidades comunicacionais e lingüísticas (LAZZARATO,

2001). O conceito de trabalho imaterial é proposto como o mais adequado para dar conta das dimensões pós-industriais.

Essa ruptura com os modos tradicionais do trabalho tem na palavra flexibilidade sua maior bandeira. Não existe mais rotina, não existe mais longo prazo, não existe mais carreira, não importa o quanto uma pessoa tenha contribuído para uma empresa, o trabalhador é sempre descartável, ou melhor, flexível. Richard Sennet (1999) em seu livro Corrosão do

Caráter, exemplifica essas mudanças. A noção de emprego mudou para empregabilidade. Essa instabilidade atinge também nossas relações (TOMEI, 2001).

A gestão de pessoas substituiu o antigo recursos humanos, pois não se podem considerar os empregados como meros recursos de que a organização pode dispor a seu bel- 75

prazer (GIL, 2001, p. 15), eles passam a ser um componente indispensável do desempenho corporativo e da vantagem competitiva sustentada. A abrangência da gestão de pessoas é muito maior ao considerar a subjetividade inerente ao seres humanos. Ela reconhece que as ações das pessoas em uma organização se processam numa intersubjetividade. Os seres humanos precisam ser entendidos com base na expressão de sua linguagem e comportamento, pois são dotados de vida interior que emerge de sua história pessoal e social (DAVEL, 2001, p. 47).

Na verdade, de acordo com Antonio Carlos Gil (2001, p. 30), a gestão de pessoas passa a enfrentar desafios ambientais, desafios organizacionais e desafios individuais. Dentre os desafios ambientais estão: revolução da informação e da comunicação, globalização, participação do Estado, ampliação do setor de serviços, diversificação da força de trabalho, alteração da jornada de trabalho, ampliação do nível de exigência do mercado e responsabilidade social. Nos desafios organizacionais: os avanços tecnológicos; a competitividade; a integração dos empregados na cadeia de valor; a descentralização; o downsizing; autogerenciamento de equipes; administração virtual; cultura organizacional e terceirização. Nos desafios individuais: identificação com a empresa, conduta ética, produtividade, segurança no emprego, empowerment, manutenção de talentos e qualidade de vida.

Pode-se perceber o tamanho do desafio que se apresenta à gestão de pessoas. Conduzir seres humanos diante de tantas questões em um mundo em transformação, ou seria o que

Dejours chama de guerra (1999, p. 13), não como um conflito armado, mas como uma conjuntura social que exige sacrifícios individuais e sacrifícios coletivos “em nome da razão econômica”. 76

Dejours destaca a resignação com que a sociedade aceita a crise de desemprego, a exclusão dos mais velhos, dos mal preparados, da pobreza e da exclusão social como se isso não fosse uma injustiça. A responsabilidade é atribuída ao liberalismo econômico, sem que nenhuma influência possa ser exercida (DEJOURS, 1999, p. 20).

Diante do sofrimento daqueles que perdem o seu emprego ou daqueles que trabalham sob ameaça, com horários extenuantes, imposições de formação, experiência, capacidade de aprendizagem e salários irrisórios, a sociedade parece indiferente e resignada. Por detrás do progresso, das empresas consideradas bem sucedidas no mercado, revela-se um mundo de sofrimento no trabalho em nome da competitividade. No entanto, a injustiça e o sofrimento não provocam reações de mobilização, talvez por faltarem perspectivas alternativas econômicas, sociais e políticas.

Apenas o reconhecimento daria sentido ao sofrimento e forneceria prazer, pois:

Quando a qualidade do trabalho é reconhecida, também os esforços, as angústias, as dúvidas, as decepções, os desânimos adquirem sentido. Todo esse sofrimento, portanto, não foi em vão; não somente prestou uma contribuição à organização do trabalho, mas também faz da pessoa, em compensação, um sujeito diferente daquele que era antes do reconhecimento. (DEJOURS, 199, 34).

Assim, sem recompensas só existe medo e submissão, a individualidade do trabalhador aumenta e ele é capaz de tudo para se manter em vantagem frente a uma possível lista de demissão. Explica-se, assim, como os gerentes são capazes de aceitar o trabalho sujo, colaborando com os processos de demissão em massa, construindo listas de demitidos para manter seu lugar, conservar seu cargo, suas vantagens e seu futuro na carreira.

Cabe acrescentar que esse universo é propício para construção de mentiras, que baseiam-se em resultado e que não levam em conta as possíveis falhas e fracassos. Para isso, torna-se necessário “apagar todo os vestígios” (DEJOURS, 1999, p. 66), demitindo os antigos que possam fazer oposição, sumindo com os documentos, apagando a memória e a lembrança 77

das práticas do passado que sirvam de referência para a época atual, ou seja, a morte da cultura.

DEJOURS (1999, p. 109) propõe, com base no trabalho de Hannah Arendt, que se retome a questão da banalização do mal para explicar toda essa apatia da sociedade civil às injustiças no mundo do trabalho, da mesma forma como se tentou explicar como o povo mais civilizado do mundo pode participar do nazismo.

A tolerância à mentira, a manipulação da ameaça, a não-denúncia, a cooperação, produção e difusão de políticas que provocam estragos sociais em nome de uma causa economicista são males que já não causam mais estranheza às pessoas. Assim como planos sociais que acenam com falsas promessas de recolocação no mercado de trabalho, ou ligadas a

“[...] justificações caluniosas de incompetência, falta de iniciativa e inadaptabilidade”

(DEJOURS, 1999, p. 77) foram males que se banalizaram frente ao mundo globalizado.

4. 2 - O Humano e Social na Ferrovia

As grandes obras de engenharia ferroviária reuniam um grande quantitativo de pessoal, em sua maioria com habilidades específicas. A partir da união desses ferroviários foram alcançadas muitas conquistas sociais. Além disso, o caráter desbravador das construções ferroviárias incentivou o nascimento de cidades e desencadeou uma série de mudanças urbanas.

4.2.1 O Pioneirismo

As linhas ferroviárias brasileiras seguiam a tendência da direção interior litoral de maneira a cumprir seu objetivo principal, que era o escoamento da produção do interior para o litoral. Assim, foi sendo desbravado o interior do Brasil com túneis, pontes e drenagens 78

construídos, primeiro com o auxílio de engenheiros estrangeiros, depois pelo desenvolvimento da engenharia brasileira.

Eram imensas as dificuldades enfrentadas nas construções das estradas de ferro por conta da geografia brasileira. Mas sua construção significava, em primeiro lugar o emprego de uma quantidade enorme de mão-de-obra. Foi assim na Rede de Viação Cearense, na qual os flagelados das secas eram aproveitados na construção, inclusive, de ramais que facilitavam a construção de açudes (TELLES, 1993, p. 92).

A ferrovia mais famosa pelas dificuldades de construção foi a estrada de ferro

Madeira-Mamoré, conhecida como a ferrovia do diabo, na qual estima-se que 6.200 vidas humanas sucumbiram (TELLES, 1993, p. 64). Essa ferrovia tinha como objetivo contornar o trecho encachoeirado dos rios Madeira e Mamoré de forma a escoar a produção dos seringais do Acre, Rondônia e Bolívia. A construção iniciou-se em 1867 com diversas paralisações até sua conclusão em 1912.

Os trabalhadores, cerca de 21.717 (FERROVIA DO DIABO, 2001), muitos estrangeiros, eram recrutados de forma enganosa pois, ao chegarem, encontravam condições precárias no meio da mata, adoeciam, morriam ou ficavam inutilizados. Ainda existe nos

Estados Unidos a Madeira-Mamoré Association, que reúne para comemorações os sobreviventes americanos dessa ferrovia, uma vez por ano em um hotel em Nova York

(TELLES, p.71).

Com o declínio da borracha, essa ferrovia deixou de ter razão para existir, seu traçado foi aproveitado para a construção de uma rodovia e, hoje, atrai defensores que lutam para resgatar sua história e manter o material ainda existente, como a locomotiva da figura 1, que representa a bravura e a saga dos obstinados ferroviários.

79

Figura 1 Locomotiva centenária em Porto Velho

Segundo Pierre Denis citado por Telles (1993, p. 73):

Os brasileiros constroem estradas de ferro em pleno deserto, em virtude de um princípio verificado nos Estados Unidos, de que as estradas desenvolvem as regiões que atravessam, e que o colono, o industrial e o comerciante seguem atrás das locomotivas... Novos caminhos abertos terminam na estação perto do qual surge logo um pequeno centro comercial, que em poucos anos torna-se uma cidade florescente.

Um dos pioneiros foi o Engenheiro Paulo de Frontin, que chegou a planejar uma formidável ligação ferroviária entre Pirapora e Belém que reduziria o tempo de viagem do Rio de Janeiro a Belém de quinze para quatro dias de viagem. Contudo, esses projetos não saíram do papel em face das inúmeras injunções políticas e da ascensão do transporte rodoviário.

A necessidade de fornecedores de materiais ferroviários impulsionou o desenvolvimento da indústria brasileira. No Rio de Janeiro, a mais importante indústria metalúrgica tinha como atividade principal o reparo e remodelação de carros e vagões da

Estrada de Ferro Central do Brasil até que, com a falência em 1930, suas oficinas em Engenho de Dentro foram incorporadas à Central do Brasil.

A sinalização e a comunicação também foram desenvolvidas, pois não eram só obras de engenharia civil e mecânica que eram executadas,. O vasto sistema de redes de 80

comunicação telegráfica das estradas de ferro prestava serviços para o Telégrafo Nacional.

Além disso, a Central do Brasil foi, possivelmente, a primeira organização brasileira a usar o cartão perfurado “holerite”, antecedentes dos computadores (TELLES, 1993, p. 49).

A previdência social foi outro exemplo de pioneirismo das estradas de ferro. A primeira Caixa de Pensões e Aposentadoria foi criada em 1921 para ferroviários, segundo

Telles (1993, p. 113). Isso demonstra o início de uma preocupação com o bem-estar dos funcionários e familiares.

Possivelmente as ferrovias brasileiras tenham sido as primeiras empresas a sentir a necessidade de treinar e aperfeiçoar o seu pessoal (TELLES, 1993, p. 114), principalmente para substituir a mão-de-obra estrangeira. A primeira dificuldade estava no alto índice de analfabetismo dos maquinistas e foguistas. O engenheiro Octacílio Pereira, ao referir-se a

Viação Férrea gaúcha, declara que encontrava “[...] homens, peritos em sua arte, bons condutores de locomotivas, pela prática de muitos anos, de inteira confiança de seus chefes e preferidos até para os trens especiais de diretoria, e que, no entanto não sabiam ler, nem escrever, nem contar” (TELLES, 1994, p. 114). As empresas ferroviárias, então, providenciaram cursos de alfabetização.

Nos primórdios das estradas de ferro, o ensino profissional era totalmente informal, ajudado pela “[...] incrível capacidade de improvisação dos brasileiros” (TELLES, 1993, p.

114). A primeira escola de aprendizes que se tem notícia foi transformada na Escola Industrial

Silva Freire. Muitos alunos dessa escola cursaram, mais tarde, a universidade e tornaram-se administradores da própria ferrovia.

A ferrovia foi, sem dúvida, segundo a declaração realizada em 1954 numa conferência no Clube de Engenharia pelo engenheiro Alcides Lins citado Telles (1993, p.114) “[...] a 81

única escola ativa e prática de engenharia nacional”. A maior parte dos engenheiros brasileiros, até 1920, trabalhava na ferrovia, por ser o maior empregador.

4.2.2 - O Trabalhador Ferroviário

A vida do trabalhador ferroviário nunca foi fácil. Se fazia parte da construção de novas estradas de ferro, enfrentava condições precárias em locais distantes e perigosos, se na operação da linha, convivia com a emperrada máquina burocrática e a falta de recursos. A ferrovia é basicamente uma empresa de engenharia, por isso os engenheiros eram responsáveis pela coordenação de quase todas as áreas da empresa.

Telles (1993, p. 116) relata que os salários dos engenheiros ferroviários de empresas do Governo nunca foram altos. Além disso, quando ocorreram mudanças políticas como a

Revolução de 1930 ou o Golpe Militar de 1964, os ferroviários sofreram as chamadas sindicâncias que demitiram trabalhadores conhecidos e respeitados por questões meramente políticas.

Vale lembrar a associação que existia entre maquinista e a sua locomotiva. Era comum existir uma certa competição entre os maquinistas em torno de quem tinha a locomotiva mais bem cuidada e reluzente. Faz parte do folclore do subúrbio carioca a história do maquinista

Carlos Pereira da Rocha, “dono” da possante locomotiva apelidada de “Zezé Leone” em referência a Miss Brasil de 1923, que quando passava rebocando o trem noturno Rio-São

Paulo apitava insistentemente, fazendo com que os moradores viessem “[...] à janela ver o trem passar” (TELLES, 193, p. 117).

Rachel de Queiroz, citada por Telles (1993, p. 117) ao escrever a crônica Trem de

Ferro, descreve bem a relação do maquinista e a comunidade, através do apito personalizado: 82

Havia entre a meninada todo um folclore criado em torno de trens e maquinistas,... nossos ídolos eram os duros maquinistas, reis da linha, como Rodolpho, com sua velha máquina, a 109, e principalmente o Abílio, valente na sua invencível 110. Identificávamos, sem erro, qual deles vinha chegando, só pelo jeito de apitar na tangente... Toda extensão do largo pátio da fazenda nos separava do trem, não daria para ler o seu número no tender, mas qualquer de nós reconhecia até de olhos fechados: é a 110! É o Abílio!

4.2.3 - A Influência do Transporte Ferroviário no Mundo da Vida

O transporte ferroviário foi durante muitos anos o único transporte terrestre, em especial no período de 1930 a 1940. Assim, o trem influenciou a literatura, os costumes, a gíria, o folclore, a música popular. Referências ao trem e à estação ferroviária não faltam na cultura popular ou mesmo na erudita, como o “Trenzinho Caipira” de Villa-Lobos. No esporte existe, ainda hoje, vários clubes de futebol com o nome de Ferroviário espalhados pelo Brasil.

O fascínio pela ferrovia atingia, sobretudo, as crianças, era como hoje os foguetes ou os computadores. O trem significava tecnologia e diversão como também viagens de férias, pois era o transporte utilizado para as idas ao interior ou à fazenda da vovó. Entretanto, esse vivido permaneceu na imaginação das crianças de hoje, pois ainda gostam de brincar com o trenzinho, mesmo que nunca tenham entrado em um.

A estação ferroviária é outro símbolo da ferrovia que tinha gosto de reencontro e despedida, local de alegria para os que chegam e saudade para os que ficam. Não devem ser esquecidas as muitas falhas e acidentes nas ferrovias que geravam inúmeras vítimas fatais ou deficientes físicos.

Pode-se citar inúmeras contribuições sociais e humanas da ferrovia a cultura brasileira.

Nada melhor que a declaração do sociólogo Gilberto Freyre, citado por Telles (1993, p.119) para descrever a magnitude do estudo sociológico da influência da ferrovia: “[...] quem diz 83

trem ou transporte, diz todo um rico complexo sócio-cultural; não apenas uma Engenharia

Física, mas essa Engenharia desdobrada em Engenharia Humana e Engenharia Social”.

4.3 - O Sistema de Pessoal da RFFSA

Como empresa estatal, a RFFSA foi envolvida pela política desenvolvimentista dos governos militares. Nesse período as influências políticas no provimento dos cargos da empresa eram menores, as aposentadorias foram incentivadas de forma a diminuir o contingente de pessoal da empresa e de uma maneira geral a empresa, como um todo, tinha recursos para implantar os programas necessários à manutenção da empresa.

A burocracia estatal produziu um Sistema de Pessoal que foi definido no Regimento

Geral da RFFSA aprovado em 1978 (RFFSA, 1978). Era subdividido em três subsistemas, a saber: subsistema de administração de pessoal, subsistema de desenvolvimento de pessoal e subsistema de assistências ao ferroviário, seus objetivos estão descritos no quadro 7:

Quadro 7 Objetivos dos subsistemas de Pessoal Subsistema Objetivo

Administração de Pessoal Realização das atividades relativas à classificação de cargos, remuneração, programação e composição da mão-de-obra, lotação, direitos e deveres dos empregados

Desenvolvimento de Pessoal Suprimento, integração, motivação, capacitação profissional e reciclagem dos recursos humanos

Assistência ao ferroviário Promover o bem-estar social da comunidade ferroviária, mediante atuação nas áreas de higiene e segurança do trabalho, saúde ocupacional, medicina supletiva à previdenciária, serviço social e assistência alimentar

Fonte: RFFSA (1978)

Os empregados da RFFSA foram beneficiados com a aplicação do Plano de

Classificação de Cargos – PCC em 1976, que resultou em um aumento significativo dos 84

salários dos empregados, e a criação da Fundação Rede Ferroviária de Seguridade Social –

REFER, que faz a complementação das aposentadorias.

A partir de acordos mantidos pelo Serviço Nacional da Indústria – SENAI e empréstimos do Banco Mundial, foram implementados avançados programas de desenvolvimento de pessoal expostos no quadro 8.

Quadro 8 Principais Programas de Pessoal da RFFSA Programa Descrição

Programa de Ergonomia Adequação dos escritórios

Sistema Modular de Qualificação Especificação de cargos; formação e desenvolvimento Profissional de cada cargo do PCC, pré-requisitos, objetivos, carga horária, conteúdo programático dos cursos necessários, metodologias e avaliações

Programa de Acompanhamento Planejamento, execução e controle das atividades de Técnico-Pedagógico treinamento e desenvolvimento de pessoal; criação da metodologia de Identificação de Necessidade de Desenvolvimento de Recursos – INDRH

Programa Ferroviário de Ação Desenvolvimento do quadro gerencial Gerencial - PROFAG

Programa de Iniciação ao Trabalho Recrutamento de menores da FEBEM e FUNABEM do Menor Assistido para serviços de contínuo

Fonte: RFFSA/PARADELA (1998, p. 96)

Outro avanço da Área de Pessoal da empresa foi a implantação do Sistema Integrado de Administração de Pessoal – SIAPES, que surgiu da necessidade de promover o acesso unificado das informações de pessoal e da geração da folha de pagamento de forma otimizada.

Após as ditaduras militares, a empresa sofreu com as injunções políticas e com as descontinuidades administrativas. Em face da má administração governamental houve um descontrole sobre a receita e a despesa da empresa, uma das razões das primeiras demissões ocorridas no governo do presidente Fernando Collor de Melo. 85

Com a volta da democracia, as empresas estatais em geral foram submetidas a restrições em todos os níveis. A Área de Pessoal tinha pouco espaço para desenvolver políticas e muitos dos benefícios foram retirados dos empregados e os seus salários achatados.

Inicia-se um período em que se instaurou um clima organizacional de medo e terror

(PARADELA, 1998, p. 100).

Os salários eram muitas vezes parcelados, o décimo-terceiro salário passou a ser pago no último dia previsto na lei, as férias foram restringidas de diversas maneiras e o salário de férias era recebido sem a metade do décimo-terceiro. O trabalho deixava de dar recompensas, tornava-se um sofrimento (DEJOURS, 1999).

As instalações físicas não recebiam a manutenção adequada, havia falta de ar- condicionado, água potável, café, material de higiene e limpeza, além do material mínimo para execução dos serviços adequadamente. Por diversas vezes, os próprios empregados cotizavam-se para comprar água, café e produtos de higiene.

Vale lembrar que a Presidência e a Diretoria da empresa não experimentavam essas restrições, o que reforça a interpretação de que esse era um “ [...] processo de esvaziamento da força de trabalho, intencionalmente desenvolvido, como uma política simbólica, objetivando levar os empregados ao esgotamento, para facilitar a implantação de um plano de demissões”

(PARADELA, 1998, p. 101).

A falta de reajustes salariais teve como uma das conseqüências mais graves a disfunção das gratificações para cargos de confiança. Em geral, a forma de crescer profissionalmente em empresas burocráticas passa necessariamente pela obrigatoriedade de exercer uma chefia. Na RFFSA isso não foi diferente, aqueles empregados que chegavam ao final de sua carreira, pelo Plano de Cargos e Salários da empresa (PCS), precisavam ser nomeados para um cargo para aumentar seus proventos. 86

Com o achatamento salarial, o cargo confiança tornou-se inicialmente uma forma de reter os talentos na empresa, para depois torna-se a única maneira de fornecer um aumento de salário. Por isso, cada vez mais passou a valer desde indicações políticas a conchavos para obtenção de um cargo que, na verdade, deveria ter um significado ligado a uma posição de maior responsabilidade e chefia dentro da empresa.

Outra distorção do cargo de confiança aconteceu com a incorporação do cargo, o chamado 4.5, no qual o empregado apesar de ser destituído do cargo não perde esses valores nos seus vencimentos, fazendo com se realize rodízio de cargos entre os empregados sem também nenhum vínculo com uma atribuição de responsabilidade de gerência. Essas disfunções e suas conseqüências foram resultados de políticas erradas que o governo federal impôs às empresas estatais e seus servidores.

4.4 - A Política de Recursos Humanos na Desestatização

Neste sub-capítulo faz-se um resumo comentado, pelo autor deste estudo, sobre o documento do Banco Mundial, disponível na internet, cujo título é: Labor Redundancy.

Retraining, and Outplacement during Privatization: The Experience of Brazil’s Federal

Railway. Ele ilustrará a falta de sensibilidade para lidar com as questões humanas diante das propostas de âmbito internacional, nas quais o Brasil não ficou imune aos impactos gerados.

Nos países em desenvolvimento em que ocorrem processos de privatização, o impacto social gerado pela redução da mão-de-obra tem sido evidente. Os novos donos das antigas empresas estatais desejam que ao assumir as empresas reduzam os seus custos. Normalmente a primeira medida é dispensar um grande número de empregados.

No caso da RFFSA, a empresa já havia reduzido muito o quantitativo de seus empregados. Primeiramente, porque em sua criação possuía um quadro de pessoal em torno 87

de 160.000 empregados e em maio de 1995 ele estava reduzido para, aproximadamente,

42.000. Além disso, durante a privatização foi implementado um plano de redução de pessoal.

O plano de privatização estabeleceu metas de redução de pessoal a partir de indicadores de conteúdo puramente econômico, a serem realizadas em três anos. A produtividade de 1.000.000 tkm (tonelada-quilômetro) por empregado era considerada baixa, quando comparada com malhas ferroviárias norte-americanas, por isso foi considerado provável que as novas empresas concessionárias realizassem demissões.

Assim, a estratégia adotada foi chamar os gerentes regionais para realizarem um estimativa de empregados a serem desligados por regional, de acordo avaliação deles sobre a necessidade de empregados para cada função e número de empregados excedentes. Esse processo estabeleceu em maio de 1995 uma meta de redução de 20.000 empregados. Com a redução voluntária de 1.953 empregados, a meta divulgada em setembro de 1995 passou a ser de 18.047 conforme o quadro 9.

Quadro 9 Redução mínima do número de empregados (1995) Áreas Regionais No de empregados No de empregados a Redução do quadro (maio/1995) serem desligados de enpregados (%) Nordeste 4.446 1.909 41,9 Centro-Oeste 12.039 5.575 46,7 Sul 10.616 4.547 43,4 Tubarão 367 30 8,3 Sudeste 10.385 4.624 45,0 Administração Geral 1.209 590 48,8 Oeste 2.792 772 28,2 Total 41.991 18.047 43,0 Fonte: TheWorld Bank, 2000

Para preparar o projeto de redução de pessoal financiado pelo Banco Mundial, a

RFFSA levantou o perfil dos seus empregados e realizou um estudo sobre o mercado de trabalho brasileiro. O trabalho conclui que a média de idade do empregado da ferrovia era de

41 anos, 18 anos de empresa, escolaridade mediana, com poucas habilidades ou 88

excessivamente especializadas. A média de idade do mercado de trabalho era seis anos menor e a média salarial 10 a 30% mais baixa, em relação ao ferroviário da RFFSA.

Quadro 10 Perfil da força de trabalho da RFFSA em novembro de 1995 Média Média de Escolaridade Escolaridade Escolaridade Média de idade Tempo de De 1o Grau De 2o Grau De 3o Grau Mensal de (anos) Serviço (%) (%) (%) Salários (anos) (reais) Administração 41 18 16 32 53 2.412 Geral Nordeste 45 18 67 25 7 1.215 Centro-Oeste 40 17 38 54 8 1.186 Sudeste 41 18 38 52 9 1.656 Sul 40 18 66 26 9 1.310 Tubarão 40 17 9 88 3 1.302 Fonte: The World Bank, 2000

Os “grupos” (THE WORLD BANK, 2000, p. 1) interessados na privatização das ferrovias, conscientes das dificuldades dos empregados em competir com o mercado de trabalho, buscaram realizar alguns programas de forma a minimizar as conseqüências sociais apresentados no quadro 11.

Quadro 11 Programa de incentivo à redução de pessoal Projeto de Incentivo Programa Objetivo Conteúdo Incentivo a aposentadoria Incentivar as · Garantia de salário até a regularização da pessoas entre 50 e aposentadoria no INSS 55 anos a se · Pagamento do fundo de pensão (REFER) aposentar até o empregado completar a idade mínima Incentivo para Assegurar que o · Prêmio de acordo com os anos de empresa; desligamento voluntário empregado treinamento deixasse · Autorização para continuar morando nos voluntariamente a imóveis da RFFSA empresa · Pagamento do plano de pensão (REFER) por um ano Treinamento Incentivo · Um salário deveria ser subtraído do pacote adicional de incentivos se o empregados não participasse · Estudo do mercado de trabalho realizado pelo IPEA e PUC, para ajudar a estruturar o treinamento · Desenvolvimento de programas de 89

treinamento pelo SEBRAE, SENAC e SENAI Auxílio à recolocação Auxílio na busca · Preparação de currículos de emprego para · Informações sobre oportunidade de os que deixassem emprego a empresa · Negociações dos novos contratos de trabalho · Informações para criação de cooperativas e de negócio próprio Pacote de Incentivos Redução dos · Os empregados receberiam 80% do valor empregados, caso pago aos voluntários, mas os benefícios a meta não fosse seriam os mesmos alcançada · Critério de seleção: índice de absenteísmo, índice de punições e/ou suspensões; avaliação da chefia imediata; avaliação social composta por estado civil, número de filhos e cônjuge trabalhando na RFFSA

Situação de Ex- Avaliação dos · Pesquisa de campo para saber o que empregados resultados dos aconteceu com os ex-empregados programas de · Verificar se os treinamentos realizados demissão foram efetivos voluntária Treinamento para Adequação dos · Treinar os empregados para acompanhar as empregados da RFFSA empregados nas mudanças e absorver as novas atribuições remanescente novas funções Fonte: The World Bank, 2000

4.4.1 - A Implantação dos Programas

Os empregados receberam um livreto que explicava todo o programa e realizaram-se várias apresentações para os empregados e sindicatos, para esclarecer a irreversibilidade do processo. As adesões eram feitas por meio de formulários, que eram submetidos ao diretor de pessoal da empresa que podia ou não autorizar a demissão do inscrito no plano.

A implantação dos programas aconteceu em momentos diferentes em cada região.

Antes da privatização, a responsável foi a RFFSA e posteriormente as concessionárias, que, de acordo com o contrato assinado no leilão da privatização,ofereciam as mesmas condições aos empregados durante o primeiro ano da concessão. A ordem dos projetos foi: primeiro o 90

incentivo à aposentadoria, depois demissão voluntária e a seguir a demissão com pacote de incentivos. O número de demissões excedeu ao número definido no Documento de Licitação para Concessão (THE WORLD BANK, 2000, p. 12), ou seja, a quantidade de empregados que cada concessionária absorveu foi menor do que o acertado no leilão da concessão.

4.4.2 - O Programa de Incentivo à Aposentadoria

Este programa iniciou-se em janeiro de 1995 e recebeu uma adesão maior do que a esperada, em virtude da reforma da previdência realizada pelo governo Fernando Henrique

Cardoso. Muitos se aposentaram com receio das mudanças nas regras de concessão de aposentadorias.

Este programa foi implementado em três fases, sendo que a última ocorreu após a privatização. O quadro 12 apresenta o cronograma.

Quadro 12 Cronograma do programa de desligamento voluntário Local Cronograma Malha Oeste 01 a 16 de fevereiro de 1996 Malha Centro-Oeste 13 a 31 de maio de 1996 Malha Sudeste 19 de agosto a 02 de setembro de 1996 Malha Tubarão 14 a 28 de outubro de 1996 Malha Sul 14 a 28 de outubro de 1996 Malha Nordeste 14 a 28 de outubro de 1996 18 de novembro a 02 de dezembro de 1996 Administração Geral 30 de outubro a 17 de novembro de 1995 17 a 28 de junho de 1996 14 a 30 de abril de 1997 12 a 30 de novembro de 1999 15 a 31 de agosto de 2001 Fonte: The World Bank/RFFSA, 2000

4.4.3 - O Programa de Demissão – Pacote de Incentivos

Com o objetivo de alcançar a meta de redução da força de trabalho a RFFSA, segundo o World Bank, (2000, p. 15) a empresa demitiu 18 empregados na Administração Geral (AG) 91

e 367 no Nordeste. Entretanto, o Plano de Desligamento Voluntário não foi tão voluntário assim. Pois, em novembro de 1999, as chefias imediatas foram convocadas a fazer uma lista de empregados a serem convidados a aderir ao programa de demissão.

A redução de empregados realizada pela RFFSA antes da privatização não foi considerada suficiente para as concessionárias, que decidiram demitir ainda mais como demonstrado no quadro 13.

Quadro 13 Redução do no de empregados implementado pelas concessionárias Área Regional Redução do No de Empregados Oeste 1.257 Centro-Oeste 4.950 Sudeste 3.548 Tubarão 66 Sul 4.237 Nordeste 757 TOTAL 14.815 Fonte: The World Bank, 2000

4.4.4 - O Programa de Treinamento

Muitos foram os problemas na efetivação desse programa, que resultou em poucas adesões dos empregados demitidos, entre eles podem ser citados:

· Demora nas negociações dos contratos com as empresas de treinamento. Com o

SEBRAE, SENAI e SENAC foram realizados 19, 21 e 12 contratos

respectivamente;

· Tempo entre a saída do empregado e início do programa foi muito grande, em

alguns casos passou de um ano;

· Não houve controle entre os empregados que declararam no momento da adesão

ao plano que iriam participar do treinamento e os efetivamente compareceram ao 92

curso. O salário recebido pelo treinamento deveria ter sido retido até o término do

programa pelo empregado;

· Os cursos mais procurados foram do SEBRAE, o programa esperava que fosse do

SENAC;

· O Banco Mundial impôs que a coordenação do treinamento fosse realizada por

uma consultoria. No entanto, a equipe da RFFSA é que preparou os consultores

para realizar o trabalho. Haveria uma economia de R$ 1.000.000,00 se a

coordenação fosse feita pela própria empresa. Somente em 1998, a RFFSA

assumiu a coordenação do programa.

4.4.5 - O Programa de Recolocação Profissional

Este programa foi mal sucedido, pois apenas 1.061 empregados o aderiram, e somente

172 participaram dos 36 seminários estruturados em três dias, em 16 cidades diferentes.

Foram encaminhados 164 currículos, que foram disponibilizados também na Internet.

4.4.6 - O Programa Sobre a Situação dos Ex-empregados

Para realizar a pesquisa de campo de forma a avaliar a situação dos ex-empregados, a

RFFSA contratou o Grupo de Economia do Trabalho do Departamento de Economia da

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 1999). Este programa iniciou- se em janeiro de 1998, com um universo de 5.334 empregados que deixaram a empresa. Em setembro de 1998 foi realizada uma outra pesquisa por amostragem mais detalhada com 675 ex-empregados. Em março de 1999, também por amostragem, foi realizada mais uma pesquisa. Em geral houve cooperação dos entrevistados. 93

O perfil da amostra apresentou um ex-empregado com uma média de idade de 43 anos, a maioria do sexo masculino (88%), 21% com curso superior completo ou incompleto.

Cerca de 76% mudou de atividade, sendo 58% por conta-própria e 10% estava desempregada,

29% afirmaram estar recebendo um salário maior do que aquele que recebia na RFFSA.

Quanto ao treinamento, 20% das pessoas afirmaram que o curso foi útil para conseguir um novo emprego. Os cursos mais procurados foram do SEBRAE com 54%.

4.4.7 - O Programa de Treinamento para os Empregados da RFFSA Remanescente

Como ainda não havia uma definição clara do Governo de qual seria o novo papel a ser desempenhado pela empresa, a consultoria contratada focalizou o treinamento nas seguintes atividades: administração dos passivos e das receitas, venda de ativos e monitoração do uso de ativos operacionais utilizados pelas concessionárias (THE WORLD BANK, 2000, p. 18). O retreinamento foi realizado entre março de 1998 e dezembro de 1999.

4.4.8 - Considerações Finais

Os coordenadores dos programas consideraram satisfatórios os seus resultados, porque as concessionárias não demitiram no primeiro ano de concessão. Vale lembrar que após esse primeiro ano, as concessionárias não foram obrigadas a oferecer o mesmo pacote de incentivos (THE WORLD BANK, 2000, p. 19).

O quantitativo alcançado pelos programas de redução da força de trabalho da RFFSA foi acima do esperado, devido ao aumento de adesões por aposentadoria como demonstrado no quadro 14. 94

Quadro 14 Redução da Força de Trabalho Programa de Incentivo à Redução da Força de Planejado Implementado (março 2002) Trabalho Aposentadoria 5.000 11.771 Programa de Incentivo ao Desligamento 13.000 7.584 Voluntário TOTAL 18.000 19.355 Fonte: The World Bank/RFFSA, 2000

Os erros aconteceram nos programas de treinamento e recolocação que esbarraram em entraves burocráticos e empresas de consultoria mal preparadas. Muitos ex-empregados conseguiram novos trabalhos antes da realização dos treinamentos.

Não houve atenção aos aspectos humanos daqueles que durante e depois de todo esse doloroso processo permaneceram na empresa. Tampouco houve, após a liquidação, um incentivo para que a área de Recursos Humanos da RFFSA atuasse de alguma forma para verificar as conseqüências e traçar novos programas de adequação do pessoal à nova situação da empresa.

Cabe acrescentar que, no documento do Banco Mundial, é feita uma desvinculação da ação e da responsabilidade que é humana, para uma entidade, “os grupos”, uma forma de facilitar o discurso que impõem ações que infligem sofrimento, o chamado Símbolo

Ilusionismo (GREGORI apud FRAGA, 2003). A forma como foram estabelecidas a metas de redução, expostas no quadro 14, mostra que a dimensão humana não mereceu o mesmo cuidado que os estudos sobre índices econômicos e produtividade.

A chamada “banalização do mal” descrita por DEJOURS (1999) se concretizou na resignação daqueles que foram obrigados a fazer listas de pessoas a serem demitidas. Os programas de outplacement que vendiam a idéia de recolocação no mercado foram uma tímida preocupação com as conseqüências das demissões, sem resultados efetivos. 95

4.5 – Os Recursos Humanos na RFFSA Liquidação

Os últimos momentos da RFFSA antes da liquidação foram marcados por acontecimentos que provocaram profundas seqüelas nos empregados. Ao final do processo de privatização, a diretoria da empresa convocou os gerentes para a tarefa de criar uma lista de demissão, pois havia um quantitativo a ser alcançado sugerido pela alta direção da empresa. A diretoria, então, era composta por diretores que vivenciaram todo o processo de privatização e a presidência era exercida pela pessoa que ocuparia o cargo de liquidante, mas que os gerentes ainda não tinham contato.

Os critérios adotados e a maneira de comunicação da demissão não foi determinada pela empresa, cada gerente escolheu o seu, desde sorteio, situação econômica, possibilidade de arrumar outro emprego, proximidade da aposentadoria ou existência de cônjuge trabalhando na empresa. A comunicação pessoal ou coletiva também foi opção do chefe imediato. Alguns poucos gerentes se rebelaram diante da tarefa, mas tiveram que ceder as imposições superiores.

Foi o desligamento mais traumático para os empregados da empresa. Todavia, a direção negou a existência de demissões quando contatados pela imprensa, na época. A verdade é que todos que saíram assinaram o Plano de Incentivo ao Desligamento – PID e alguns que, apesar de seus nomes estarem na lista de seus chefes, não se renderam ao PID e se mantiveram na empresa, foram convidados para exercer cargos na ANTT ou designados para cargos de confiança.

Com a liquidação, a estrutura formal desapareceu. Não havia mais setores específicos para o desenvolvimento de pessoal ou assistência ao ferroviário. O quantitativo da área de pessoal foi drasticamente diminuído, mas os empregados que permaneceram tentaram contornar a falta de infra-estrutura realizando algum trabalho de recursos humanos. Algumas 96

pequenas concessões como permissão para a realização de aulas de yoga e ginástica, na hora do almoço, foram autorizadas.

Não foi feito nenhum trabalho de apoio ao empregado remanescente bem como não foi permitido que fossem realizadas palestras que esclarecessem, pelo menos, o que era um processo de liquidação. Da mesma maneira que a direção da empresa negou as demissões, os empregados passaram a negar as conseqüências dos acontecimentos pelo qual passaram e a criar uma série de mecanismos de autodefesa. Entretanto, o corpo revela e é na saúde que explode o stress dos empregados da RFFSA em liquidação.

O serviço médico da empresa se restringe a uma médica e uma enfermeira lotadas na

Administração Geral – AG. O depoimento da médica e a figura 2, ilustram alguns dos acontecimentos e sentimentos percebidos no corpo técnico da empresa:

Os empregados da RFFSA viveram durante o processo de privatização um stress contínuo. Não havia, como ainda não há, garantia de emprego, todos estavam ameaçados. Ao lembrarmos dos fatos que ocorreram nos últimos meses de 1999, soma-se uma pressão extra de stress para aqueles que viveram a angústia de fazer uma lista “justa”, se caso isso fosse possível. Outro fator de stress é o endividamento, na maioria das vezes, em conseqüência do mau uso do cheque especial e considerando que o poder aquisitivo do ferroviário vem caindo ao longo dos anos, pela falta de reajustes salariais. As dívidas com o banco atingem, principalmente, as classes inferiores ao nível universitário, porque elas têm mais dificuldade em organizar um orçamento. Além disso, no período da privatização, os ocupantes de cargo de confiança receberam um reajuste de 50%, como quase todos os empregados de nível universitário possuem cargo de confiança, o endividamento nesse segmento é menor, porém, não deixa de existir. O posto médico dentro da empresa tem como função o exercício da medicina do trabalho, suas atribuições são: os exames admissionais e demissionais, periódicos e rotinas de prevenção. Após a privatização continuam, como empregadas efetivas da RFFSA, no serviço médico, apenas uma médica e uma enfermeira. No entanto, os valores e as crenças da história de medicina assistencial ao ferroviário, que visa o bem-estar do empregado permanecem e norteiam o trabalho. Assim, é a partir do periódico, no qual são pedidos exames aos empregados de forma a prevenir problemas mais comuns na faixa etária do indivíduo, que vem sendo detectada a ocorrência de inúmeros casos de hipertensão. Isso explica porque a porcentagem dos totalmente sedentários na pesquisa, aqui apresentada, seja tão pequena, em torno de 16%, já que uma das prescrições para tratamento de hipertensão e doenças cardiovasculares é a prática de exercícios. 97

Os empregados da RFFSA passaram por um trauma que não é verbalizado, por lhes faltar espaço, mas que, no entanto, só aumenta, quando se vê a forma como o transporte ferroviário no Brasil vem sendo conduzido. Desrespeito à ferrovia e a um sujeito com uma história de vida ligada à ferrovia, que sente ao ver uma oficina, que construía uma locomotiva, hoje estar totalmente abandonada.

Figura 2 Parte interna de uma oficina de locomoção de Araguari

Assim, nesse cenário, cria-se uma mágoa e, muitas vezes, até a dificuldade de aceitar a doença. Não é a toa que a hipertensão se manifesta, pois ela é doença daqueles que guardam coisas, não extravasam as mágoas do coração.”

Em um primeiro momento, uma quantidade enorme de rescisões demandou muito trabalho extra para a área de recursos humanos. Em um segundo momento, ela passou a realizar o remanejamento de pessoal de forma a adequar a mão-de-obra existente às novas prioridades da empresa.

A servidora pública nomeada para o cargo de liquidante no primeiro ano da liquidação contratou alguns assessores e mais funcionários onde achou necessário, mas manteve, basicamente, os funcionários com experiência em chefia em suas posições. Todavia, reduziu o 98

número de cargos de confiança de 350 para 130 em 2000, para depois aumentar para 160 em

2001.

A Comissão de Liquidação nomeada após a saída da primeira liquidante continuou a contratar aposentados para cargos de confiança e criou uma gratificação de liquidação para os ocupantes da estrutura virtual, os chamados grupos de trabalhos – GT, como forma de motivar os chefes. Para os demais empregados houve apenas pequeno acréscimo no vale alimentação e qualquer outra melhoria foi negada, sob a alegação de que uma empresa em liquidação não poderia negociar cláusulas financeiras com seus empregados.

O achatamento salarial acirrou a disputa para a obtenção de um nível maior do cargo de confiança. O relacionamento com a Comissão de Liquidação era devido a certas posturas adotadas.

A renovação da liquidação deixou de causar apreensão aos empregados após sucessivas renovações. Contudo, a ameaça de extinção da empresa continuou como muito mais uma questão política do que técnica. Destaque-se que foi a partir de um trabalho político que o artigo que extinguia a RFFSA, na Lei no. 10.233/01 que criou a ANTT, foi vetado.

Vale lembrar que os ferroviários possuem um passado de forte atividade sindical.

Porém, sempre desunidos, dividem-se em classes como engenheiros, maquinistas, originários da Estrada de Ferro Central do Brasil, originários da Estrada de Ferro Leopoldina, aposentados, entre outros. Essa divisão favoreceu o avanço da privatização, como também a falta de reajustes salariais.

A comunicação dos empregados com a direção da empresa nunca foi fácil, mas com a liquidação agravou-se pelo fato de que as pressões políticas e os conflitos de poder tornaram- se mais fortes. Passou a existir dentro da empresa uma crise de autoridade que se intensificou 99

com a eleição de Luis Inácio da Silva para presidente, pois representou para os brasileiros uma esperança de mudança nas políticas neo-liberais e conseqüente valorização do trabalhador, que poderiam significar para os ferroviários um retrocesso em algumas diretrizes do governo, como por exemplo a liquidação da RFFSA. A Comissão de Liquidação se isolou ainda mais, aguardando ordens de Brasília e os empregados passaram a acreditar que a empresa não seria liquidada.

Não só a vitória do Partido dos Trabalhadores trouxe um novo vigor as pessoas da empresa, a “luz no fim do túnel” se acendeu com a conquista da paridade, a lei no 10.478 de

28 de junho de 2002 que estendeu aos ferroviários admitidos até 21 maio de 1991 o direito a complementação de aposentadoria. 100

Capítulo 5 - A PESQUISA DE CAMPO

O norte da pesquisa foi a busca da realidade e ela “[...] precisa ser escavada, contornada de todos os lados virada pelo avesso, sob pena de não passarmos de simples descrições e de fotografias passageiras” (DEMO, 1984, p. 22). Portanto, neste capítulo é descrito como foi elaborada a pesquisa de campo em busca de todas as nuances que descrevem a empresa e os ferroviários que nela trabalham.

As etapas percorridas foram:

· Preparação das perguntas e do plano de codificação do questionário;

· Pesquisa exploratória com teste do questionário;

· Distribuição e recepção dos questionários;

· Tabulação dos dados, tratamento estatístico, elaboração dos gráficos e de

página na intranet da empresa;

· Divulgação dos primeiros resultados através da Intranet;

· Elaboração das perguntas utilizadas na estruturação das entrevistas e seleção

dos sujeitos;

· Transcrição das entrevistas e confecção de um quadro sintético.

5.1 – Elaboração do Questionário

O objetivo deste instrumento (ANEXO B) foi obter dados cadastrais e fatos de conhecimento tácito da organização que podem ser respondidos de maneira simples. Foi composto de 32 perguntas, divididas em quatro categorias: perfil do empregado, desenvolvimento profissional, relações com a empresa e aposentadoria, de acordo com os temas que podem descrever melhor o empregado e a empresa utilizando o referencial teórico. 101

Quadro 15 Temas das perguntas do questionário PERFIL DO EMPREGADO Questões Dado Objetivo 4 Sexo Descrição dos pesquisados 5 Faixa etária Descrição dos pesquisados 6 Estado Civil Descrição dos pesquisados 7 Escolaridade Descrição dos pesquisados 1,2,3 Zonas e bairros de residência Verificar se existe relação da moradia com a ferrovia 9 Dependentes Descrição dos pesquisados 11 Atividade Física Averiguar se existe o cuidado com a saúde 12 Atividade de Lazer Averiguar se existe combate ao stress 13 Atividades Extras Averiguar se complementam o salário financeiramente ou buscam atividades que lhe tragam realização DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL Questões Tema Objetivo 8 Possuir mais de uma Verificar o grau de aperfeiçoamento graduação ou especialização profissional 20 Iniciativa pessoal para Verificar a consciência da necessidade de crescimento profissional educação continuada 21 Cursos freqüentados Apurar que tipo de curso é realizado

28, 29 Planejamento de Carreira Avaliar a auto-gestão RELAÇÕES COM A EMPRESA 14 Tempo de Serviço na Descrição dos pesquisados empresa 15 A empresa como primeiro Descrição dos pesquisados emprego 16 Vínculo familiar Constatar a existência de vínculo do empregado com outros empregados que são ou já foram, também, empregados da empresa

17 Tipos de parentescos Apurar o grau de parentesco

19 Flexibilidade dentro da Verificar a disponibilidade do empregado empresa em se adaptar às novas funções 18 Manutenção do emprego Verificar e existe caso de abdicação de carreira por conta da manutenção do emprego 22 Ambiente Verificar se o empregado se sente bem na empresa 23 Relacionamento com os Avaliar a interferência do processo de colegas liquidação na relação com os colegas 24 Desempenho profissional Avaliar a interferência do processo de dos gerentes liquidação no desempenho gerencial 25 Desempenho profissional Avaliar a interferência do processo de dos empregados liquidação no desempenho do empregado 102

26 Grau de influência da Apurar se o nível de interferência da empresa na vida pessoal empresa na vida pessoal do empregado 27 Acreditam na sobrevivência Buscar a expectativa dos empregados do emprego dentro do processo de liquidação 30 Atribuição de Buscar a capacidade de crítica e autocrítica responsabilidades na dos empregados liquidação APOSENTADORIA Questões Tema Objetivo 32 Planejamento da Avaliar a capacidade de auto-gestão aposentadoria 31 Tempo necessário para se Descrição dos pesquisados aposentar Fonte: Própria

5.2 - A Pesquisa Exploratória e Teste do Questionário

De acordo com a proposta da pesquisa exploratória, inicialmente a pesquisadora percorreu o acervo da RFFSA, no qual encontrou material riquíssimo sobre a história da ferrovia. Infelizmente, a biblioteca ficou sem especialistas em biblioteconomia e espera-se que esse material seja devidamente conservado, mesmo com a conjuntura adversa da empresa.

Com esse material foi possível reconstruir a história da ferrovia e da RFFSA. Além disso, foram coletados dados quantitativos referentes à base de dados de pessoal que poderiam fornecer informações sobre os empregados da RFFSA em liquidação.

Como a pesquisadora é empregada da RFFSA, foi interessante verificar as habilidades, a sensibilidade e a possibilidade de escuta e diálogo na pesquisa. Iniciou-se a apreensão da receptividade das pessoas à pesquisadora em sua nova intenção no convívio com os colegas.

Foi possível compartilhar todos os momentos desta pesquisa com os demais funcionários da empresa. O novo papel a assumir, de empregada a pesquisadora, foi estabelecido, sem que em nada mudasse a relação anterior entre a pesquisadora e o pesquisado. Realizou-se uma total inserção do pesquisado na pesquisa. Os colegas foram receptíveis à pesquisa desde a busca do problema, facilitando, assim, em tudo esta pesquisa. 103

O teste do questionário com 30 questões de múltipla escolha foi aplicado entre 23 e 27 de setembro de 2002 pela pesquisadora. Foram escolhidos 15 empregados de diferentes áreas, funções e níveis, precedidos de uma breve explanação sobre o objetivo da pesquisa, salientando que era apenas um teste e que todas os comentários seriam bem-vindos de forma a tornar o questionário mais completo, fácil e rápido de responder.

Os resultados apurados no teste foram pouco diferentes daqueles obtidos na etapa seguinte. Porém, as aquisições mais importantes nessa fase exploratória foi: testar a habilidade da pesquisadora, aperfeiçoar esse instrumento com base nas sugestões dos respondentes e fazer importantes observações.

A tarefa de aplicação do questionário foi uma experiência em que o “outro nós mesmos” de Merlau-Ponty (1996) se mostrou. Foi gratificante para a pesquisadora não só como aluna de Mestrado, como também funcionária da empresa, a boa receptividade e presteza daqueles que foram solicitados a responder, mostrando o quanto os colegas estavam abertos a colaborar com o trabalho. As sugestões foram pertinentes e incluídas no questionário final. O instrumento foi considerado acessível a todos os níveis da empresa.

O teste aumentou a segurança de que este trabalho seria compartilhado por todos os funcionários, já que no momento da coleta do questionário, percebeu-se o interesse dos empregados em responder ao instrumento, e de que o maior número de pessoas estivesse envolvido na pesquisa.

5.3 - Distribuição e Recepção dos Questionários

O questionário foi distribuído pela própria pesquisadora em todos os setores da empresa na Administração Geral – AG , onde encontram os empregados efetivos. No momento da distribuição do questionário, o período de 2 a 20 de dezembro de 2002, a 104

Administração Geral possuía 270 empregados lotados em seu quadro. Entretanto, considerando os funcionários em férias, em viagem a serviço e cedidos a outros órgãos, foram distribuídos cerca de 203 questionários e devolvidos preenchidos 194.

A apresentação do questionário era realizada pela própria pesquisadora, que fazia uma sucinta explanação na qual expunha os principais aspectos, temas e objetivos e motivações da pesquisa, salientando o seu cunho acadêmico e o sigilo em relação às informações, por se tratar de um questionário não identificável. A aqueles que se dispusessem a responder era entregue o questionário. Dentre as motivações apresentadas, a que mais chamava atenção dos empregados e causava indignação era a referência a um trabalho existente na biblioteca da

FGV, que descrevia os empregados da RFFSA em liquidação como pessoas “[...] sem a mínima condição de recuperação por meio de treinamento por lhes faltar a base”

(PARADELA, 1999, p. 159).

Apesar da função da pesquisadora dentro da empresa atender basicamente aos funcionários da informática, o que diminui muito o círculo de relacionamento interpessoal com os outros empregados da empresa, a receptividade à pesquisadora e à pesquisa foi excelente.

Poucos foram aqueles que se recusaram a responder o questionário quando eram abordados. Alguns deles possuíam razões bem explícitas como algum problema político ou de relacionamento interpessoal já conhecido pelos colegas, que os impediam de se comprometer de alguma forma. Em contrapartida, alguns preenchiam o questionário no momento em que recebiam e aproveitavam para trocar idéias com a pesquisadora ou até procuravam a pesquisadora mais tarde, para entregar o questionário em mãos.

Vale lembrar que, com o objetivo de incentivar a resposta ao questionário, os respondentes que entregavam o questionário concorriam a uma caixa de bombons, que foi 105

sorteada em 20 de dezembro de 2002. Acrescente-se que os empregados lotados nos escritórios de Recife, Juiz de Fora, Salvador e Porto Alegre, também responderam o questionário, mas o quantitativo de empregados efetivos, em torno de 15 por órgão, não era representativo para a realização de uma pesquisa quantitativa.

5.4 - Divulgação dos Primeiros Resultados dos Questionários Dentro da Empresa

A maioria dos respondentes fez cobranças à pesquisadora quanto a divulgação dos primeiros resultados. Assim, foi construída uma página na Internet na qual foram disponibilizados os gráficos resultantes da tabulação dos dados oriundos do questionário.

Entretanto, a direção da empresa não permitiu a divulgação dos dados. Lastima-se o fato, por impedir um compartilhamento maior da pesquisa, um dos objetivos deste trabalho.

Apesar das restrições, revelou-se o cuidado dos ferroviários com um trabalho que valorizou as pessoas da empresa, ou melhor, finalmente após tantos anos, alguém resolveu ouvir o que os ferroviários têm a dizer. Foi possível apreender a vontade e a necessidade dos empregados da RFFSA em liquidação de expressar todos os sentimentos de indignação e injustiça, conseqüentes de todo o processo de privatização e liquidação da RFFSA.

5.5 – Elaboração das Entrevistas

As questões das entrevistas semi-estruturadas foram formuladas de maneira a obter qual a percepção sobre o transporte ferroviário no Brasil, e o quanto o empregado se sentia incomodado com a situação; saber se o empregado gostava de trabalhar para a empresa antes da liquidação; procurar perceber as razões que fazem com que o empregado permaneça na empresa e por que não pediu demissão em 1999; pedir ao entrevistado que, a partir de uma auto-avaliação, explicitasse a característica pessoal que o ajuda a suportar a incerteza; 106

perguntar se o entrevistado acreditava que a RFFSA em liquidação ainda representa a ferrovia no Brasil e, por fim, perceber o quanto o entrevistado se sente ferroviário.

O papel das questões apresentadas acima está relacionado com a possibilidade de estabelecer um diálogo, que favorecesse ao sujeito a tomar a iniciativa no sentido de manifestar a visão da organização e das suas relações com ela de maneira própria. No entanto, não impediu que alguns padrões se configurassem como categorias, que indicariam direções a serem exploradas de forma mais fundamentada. Assim, o entrevistado respondia as questões de forma livre e, quando oportuno, outras questões eram levantadas. O empregado era convidado a acrescentar o que para ele era relevante ao trabalho.

Como conseqüência do processo no qual se encontra a empresa, foi assegurado ao entrevistado o sigilo das informações prestadas, a fim de que ele pudesse sentir confiança e não fosse prejudicado por opiniões ou dados fornecidos.

As entrevistas foram realizadas de acordo com a disponibilidade de horário tanto da pesquisadora quanto dos entrevistados. Todos atenderam ao convite e permitiram que as entrevistas fossem gravadas. No entanto, demonstraram ansiedade em relação ao gravador

(Easterby-Smitth, 1999, p. 79), o que podia ser percebido pela mudança na inflexão da voz e contração do corpo. A pesquisadora procurou minimizar a tensão, garantindo que não divulgaria nomes e citações que pudessem comprometer o entrevistado.

O período das entrevistas iniciou-se em 27 de janeiro de 2003 e encerrou-se em 7 de fevereiro de 2003. Ao final, elas foram transcritas e confeccionou-se um quadro sintético para realização da análise dos resultados.

Somente os empregados sediados no Rio de Janeiro foram contatados para a realização das entrevistas. Assim, foram selecionados 12 empregados das áreas: jurídica, patrimonial, 107

financeira, planejamento, engenharia, informática e pessoal, que possuíssem competência reconhecida pelos colegas na função que exerciam e que demonstrassem, na sua atuação, dedicação à empresa. Dois entrevistados possuíam ou já haviam possuído cargo em órgão de representação de classe e outros dois dos entrevistados foram superintendentes durante o processo de desestatização. 108

Capítulo 6 – ANÁLISE DE RESULTADOS

Neste capítulo apresenta-se os principais resultados dos questionários coletados e das entrevistas realizadas.

Para que a validade dos dados possa ser melhor assegurada, faz-se necessário descrever, como proposto por Easterby-Smith e Thorpe (1999, p. 138), a natureza dos relacionamentos e os cenários nos quais ocorreram as observações e entrevistas e o grau de colaboração envolvido.

As observações mais importantes nessa fase da pesquisa foram quanto ao momento pelo qual passa a empresa e que, dificilmente não deixaram de influenciar o preenchimento do questionário. São elas:

· A conquista da extensão da paridade e da aposentadoria integral para os

ferroviários que entraram na RFFSA até 1991.

Esse era um sonho considerado impossível para os ferroviários, pois só gozavam

desse direito os ferroviários que entraram na RFFSA até 1969. Tendo a frente

nessa luta Clarice Soraggi, presidente da FAEF – Federação das Associações de

Engenheiros Ferroviários, em junho de 2001 foi aprovado pelo Congresso o

projeto de lei no 10.478, de 28 de junho de 2002 que, para alegria de todos os

ferroviários, estende a paridade para os que entraram até 21 de maio de 1991. Foi

um sonho perseguido por muitos anos que se concretizou, trazendo uma “luz no

fim do túnel”, e com uma mensagem subliminar, a de que, se o praticamente

impossível aconteceu, mesmo com a conjuntura do país totalmente adversa, a

partir de agora tudo pode acontecer; 109

· A vitória de Luis Inácio da Silva na eleição para Presidente do Brasil

A esperança na mudança para melhor contagiou todo o país, não só os empregados

da RFFSA. Alguns funcionários acreditavam, no momento da pesquisa

exploratória, que a política que implementou as agências será revista, o que pode,

até, reverter a liquidação da RFFSA;

· Boatos de aumentos salariais

Existem comentários vindos das associações de aposentados e engenheiros sobre a

negociação de algum aumento salarial para os ferroviários.

Na verdade, não existiu nenhum fato concreto, além da conquista da paridade, que justificasse o fato de existir, naquele momento, tanta esperança. A direção da empresa, representada pela Comissão de Liquidação, não se manifestou a respeito de nenhum dos acontecimentos acima frente aos empregados.

Quanto a abordagem escolhida, foi a mais adequada dentre as pesquisas qualitativas tradicionais, por permitir obter a compreensão e clarificação das possibilidades das vivências dos sujeitos no estudo de caso proposto.

Os fundamentos da fenomenologia, como ciência descritiva, rigorosa, concreta, que mostra e explicita, que se preocupa com a essência do vivido, estão presentes nos estudos de

Capalbo ([196-?]), Dartigues(1973), Rezende(1990) e Fraga(2003). Eles embasam a retomada para explicitação de falas e situações que emergem na pesquisa de campo.

6. 1 – Fundamentos Fenomenológicos para Análise de Resultados

Para conhecer as relações profissionais e humanas entre as pessoas que permanecem na organização, durante o processo de liquidação, a postura fenomenológica apresenta-se 110

como muito mais que um método, uma atitude filosófica que possibilita apreender o sentido, além das características organizacionais, de relacionamento humano e vivências do aprendizado da situação de liquidação da empresa.

Falar em uma abordagem fenomenológica implica falar em mundo e falar em mundo em fenomenologia é recorrer ao horizonte husserliano que entrelaça em um universo percepções de "[...] todos os objetos e de todos os horizontes reais e possíveis" (BELLO,

1998, p.38).

Segundo Husserl, o mundo é destacado de duas maneiras muito importantes para este estudo, como o mundo "circunstante", isto é aquele no qual vivemos e o "mundo da vida",

(BELLO, p.38), uma expressão que se tornou a própria expressão da fenomenologia.

O mundo da vida é considerado um referencial obrigatório à leitura dos resultados deste estudo, da forma como ele foi proposto, porque é um fundamento que diz respeito a tudo o que fazemos, pensamos, vivemos, diz respeito à nossa existência em todos os seus aspectos e momentos, mas em especial, porque diz respeito simultaneamente ao que é de cada um e ao coletivo.

A partir da “volta às coisas mesmas”, proposta por Husserl, e a elucidação do “puro reino das essências” (DARTIGUES, 1973, p. 23/24) na interpretação da pesquisa, que se desvela o dado original, colocando entre parênteses todas as informações secundárias obtidas, livres de preconceitos ou pressupostos interpretativos.

Além disso, a reflexão histórica neste estudo destacou os momentos, que mesmo pertencendo a diferentes fases temporais, conectam-se e estabelecem relações, formando um todo unitário para a concepção e compreensão histórica, chamado “pre-sença”, que constituem o sentido especificamente histórico dos fenômenos (CASSIRER, 2000, p. 42). A 111

fenomenologia “[...] sabe reconhecer a importância histórica dos acontecimentos como lugares de emergência do sentido” (REZENDE, 1990, p. 93), distinguindo entre a significância, a pertinência e a relevância.

Como procedimento, a fenomenologia cumpre as etapas necessárias ao recorrer ao discurso com o objetivo de “[...] se aproximar o mais possível da densidade semântica do fenômeno humano” (REZENDE, 1990, p.18). Um discurso descritivo que seja significante, pertinente, relevante, provocante e suficiente. Uma busca de compreensão, apesar da consciência que nunca alcançará seu sentido pleno. Uma atitude interpretativa dos aspectos simbólicos, estruturais, históricos, culturais, sociais, pessoais dentro do contexto do mundo, sem ignorar os conflitos necessários à ambigüidade própria da fenomenologia e o respeito à singularidade.

Na fenomenologia todas as perspectivas são possíveis, trazendo uma compreensão da realidade e da verdade, dependentes da posição e da situação em que se está inserido, e “[...] de acordo com o ponto de vista da percepção, do meio social ou intelectual, do meio sócio- cultural, histórico ou religioso” (CAPALBO, sem data, p. 35).

A postura em aberto da fenomenologia traz uma liberdade no campo da interpretação, que, de acordo com Paul Ricoeur, citado por Capalbo (1983, p. 15), não considera nenhuma interpretação sozinha, como a única e válida, porque se isto for afirmado, será uma imposição ou uma dominação, que encobre conflitos de grupos, de classes sociais sobre outras ou de uma cultura dominante sobre outra. Assim, estabelece-se o conceito de verdade polissêmica, em uma experiência humana em aberto de respeito mútuo e de acolhimento, pois o verdadeiro

é sempre um saber em contraste com uma opinião.

No desenvolvimento deste estudo, recorreu-se a várias fontes, a fim de melhorar o desempenho no campo e obter uma maior compreensão dos resultados da pesquisa, para 112

ultrapassar a experiência finita de significados adquiridos, em busca de outros novos. A compreensão verdadeira jamais é plena, totalmente clara ou transparente (CAPALBO, 1990, p. 50).

A exigência de objetividade presente nas ciências naturais distancia as coisas de si mesmas, faz com que se perca a compreensão, pois conhecer não é compreender. O conhecimento é um saber geral, explicativo, conceitual e teórico que não trabalha o singular.

Para compreender alguém é preciso estar disponível, remetendo-se ao sujeito, ao seu modo de ser singular, compreendendo o seu sentido (DONZELLI, 2002).

Essa percepção de mundo no estudo da organização escolhida encaminhou o pesquisador a assumir uma postura filosofante - respeitada a delimitação deste estudo e reconhecendo a sua condição de iniciante. Dessa decisão, decorreu um esforço fundamental , realizado para atender ao propósito desta pesquisa, no sentido do que é possível justamente apreender e aprender não somente o que o conhecimento oferece, mas percebendo seus limites.

Neste ponto, é importante trazer as reflexões de Muraro e Boff sobre “[...] a função crítica da filosofia, ao recordar o alcance e o limite de todo o conhecimento”, porque apresentam o filosofar como um permanente estado de alerta sobre a existência de “[...] um não dito no dito e silenciado no falado” (2001, p. 68).

Enquanto se utiliza o conhecimento, seus “[...] modelos, representações e projeções que colhem suas dimensões reais da realidade” manifestam o limite do conhecimento. Os autores continuam a argumentar que a teoria científica não representa diretamente a realidade, mas a reconstrói, segundo posições, "[...] sob condicionamentos histórico-sociais e expectativas culturais" (MURARO;BOFF, 2002, p. 69). 113

Não caberia a discussão do termo condicionamento no escopo desse estudo, mas fica registrada a questão teórica implicada a título de sugestão para estudos futuros.

Muraro e Boff reconhecem o desafio da relação entre o conhecimento, o eu e a realidade quando declaram: "[...] por mais que estejamos mergulhados na realidade e até, por intuição e comunhão, nos sentirmos fundidos nela, nunca somos a realidade que conhecemos"

(2002, p. 68).

Essa posição dos autores citados está sintonizada com os sentimentos e a percepção do pesquisador desde a construção do projeto desta pesquisa porque, no momento de esboçar a formulação do problema relativo à organização que, na verdade, inclui grande parte de sua própria vida, a ambigüidade foi a característica marcante desse momento de pensar e decidir: o suposto conhecimento daquela realidade, a intimidade, o pertencimento, passaram a conviver com a dúvida e até com a estranheza.

Esse desconforto contribuiu fortemente para não resistir a uma postura fenomenológica, porque passou a ser uma necessidade assumir uma atitude que favorecesse à organização, mostrar-se por si mesma.

Neste ponto, a base fenomenológica apareceu como a orientação que o pesquisador, por um lado, estava buscando e, simultaneamente, como o que já vinha praticando mais por intuição. Por essa razão, foi possível perceber a afinidade do problema, da situação crítica vivida pelos sujeitos da pesquisa, incluindo o pesquisador com a descrição a seguir:

[...] o mundo da vida se mostra fundamental para a gestão, porque é o terreno no qual se pode avaliar se os propósitos e os atos do agente na gestão, se suas ações, têm possibilidade de atender o beneficiário, ou melhor, de serem legitimados. (FRAGA, 2003, p. 40) 114

6.1 1 - O Fenômeno

O fenômeno, para a fenomenologia, não se limita ao que é percebido sensorialmente na natureza. Ele inclui aquelas realidades apreendidas pelo sentido como sentimentos, vontades, desejos, pensamentos que se tornam visíveis para a consciência. Considera-se, também, assim, o que é julgado, imaginado, fantasiado, temido (MOREIRA, 2002, p. 66). O fenômeno, para a fenomenologia, não é sinônimo de fato, ela lida com fatos, embora não os ignore, ela trata do vivido, isto é, ela parte do fato em um movimento inverso ao da ciência que os explica, para apreender o seu sentido, para “des-cobrir” para onde eles se orientam

(FRAGA, 2003, p. 84).

É fundamental para a fenomenologia que o fenômeno seja compreendido como que se mostra por si mesmo, embora, veladamente (FRAGA, 2003, p. 83).

6.1.2 - O Que É Fenomenologia?

A fenomenologia é um movimento filosófico do século XX que se iniciou com grande relação com a psicologia, mas que se tornou disponível, através do seu método, para as ciências humanas e sociais tão carentes de uma legitimação científica.

Edmund Husserl foi quem fundou esse saber nas bases que possui hoje. Ele era um judeu alemão que desenvolveu tese em matemática e questionou-se quanto ao caminho que a

Alemanha nazista estava tomando, apesar de ser a nação um centro da capacidade de pensamento mundial. Em seguida surgiram outros como Heidegger, Alfred Schutz, Mearlau-

Ponty, Paul Ricoeur, entre outros, cada um apresentando movimentos diferentes, desde a fenomenologia transcendental de Husserl à hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur. 115

A fenomenologia surge da crise das ciências, do paradigma vigente, que agora está atingindo seu ápice. Esse paradigma carece de compreensão e a fenomenologia oferece essa possibilidade de compreensão a partir de uma investigação transcendental.

Husserl, com seus questionamentos, produziu uma obra que confere a fenomenologia o rigor das ciências e a amplidão da metafísica. Ele defende a crítica ao saber conhecimento.

Na proposta do seu método, o primeiro passo é a redução fenomenológica, a partir da suspensão do conhecimento, da redução ao fenômeno lastrado de pensamento, que se mostra em si mesmo, que se dá em pessoa. Em seguida, a redução eidética, purificando o fenômeno de tudo o que comporta de supérfluo, de “fático”, pra fazer aparecer o que lhe é essencial. E então a redução transcendental, fundante, na busca do resíduo da consciência, pode-se, assim, remeter ao sujeito, compreender o seu sentido.

Cabe ressaltar que o movimento de idéias que a fenomenologia produziu tem uma história, pois foi um resgate da essência perdida dentro do mundo de saberes científicos, em que os números, conceitos, cronologias, objetivos e fatos obscurecem o ser. No entanto, não tem um acervo, pois o fenômeno não pode ser conservado, precisa da busca de uma compreensão nova e atual (GREUEL, 1996, p. 16).

O que é fenomenologia tem muitas respostas, segundo Dartigues (1973, p.14), “[...] como um rio de múltiplos braços que se cruzam sem se reunir e sem desembocar no mesmo estuário”. É ser em aberto, pura possibilidade, é uma postura. A palavra fenomenologia é derivada de outras duas palavras de origem grega, a primeira phainomenon (que se mostra por si mesmo) e logos (ciência ou estudo). Assim, ela é a ciência do fenômeno, aquilo “[...] que se manifesta por si mesmo ou se revela por si mesmo” (MOREIRA, 2002, p. 63).

Na fenomenologia, o mundo está sempre aí, antes de qualquer investigação, cabe a fenomenologia reencontrar o originário, a “volta as coisas mesmas”, como uma instância 116

fundante. Ela funda o conhecimento, questionando o sentido das coisas. Porque tudo já está aí, mas não está mostrado diretamente, é preciso desvelar o sentido (informação verbal)1. O mostrado-escondido através da “hermenêutica da arqueologia do sujeito” de Paul Ricoeur

(CAPALBO, 1983, p. 22).

São diversos os fenomenólogos com elaborações diversas singulares e que alguns chegam a considerar discordantes. Mas é próprio da postura fenomenológica ser em aberto e dar lugar a verdade polissêmica. Para o leitor pode tornar-se uma leitura incomoda, por criar uma aparente “ambigüidade” (FRAGA, 2003, 49) que, na verdade, proporciona uma riqueza de vivências que se complementam em um mesmo discurso, com o mesmo rigor, em um

“encontro de avenidas” (MERLAU-PONTY apud FRAGA, 2003, p. 49).

Segundo Merlau-Ponty (1996) , “[...] tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada”. De acordo com Husserl citado por Moreira

(2002, p. 69), “[...] trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar” e, como um saber rigoroso, descrever como o maior número possível de nuances.

As fases dessa descrição, segundo Capalbo (1990, p. 49), são: “[...] situação de presença do sujeito em face do fenômeno a ser descrito, descrever o que é significativo ou essencial do próprio fenômeno e descrição compreensiva e interpretativa”. Sem conceitos preconcebidos, suspendendo o conhecimento, as coisas mesmas da forma como se mostram a consciência.

A consciência é sempre consciência de algo, logo a “[...] consciência humana que vai realizar a descrição caracteriza-se por ser intencional” (FRAGA, 2003, p. 2).

______1 Notas de palestra da professora Telma Donzelli na FGV em fevereiro de 2003 117

A fenomenologia vai expor a maneira de dar-se comunicação entre as vivências, analisar esse visar intencional do objeto. “[...] Perceber um objeto é intencioná-lo e torná-lo significativo” (FRAGA apud CAPALBO, 2003, p. 5), assim, na relação sujeito-objeto, o sujeito é “[...] tomado como parte do objeto intencionado” (FRAGA, 2003, p.2).

6.1.3 - A Fenomenologia na Gestão

A abordagem fenomenológica na gestão possibilita considerar o humano em suas relações no trabalho, com outras pessoas e a empresa, não cabendo considerá-lo como um mero recurso, como um fator ou índice de desempenho como qualquer outro dentro da organização.

O agente na gestão é reconhecido em suas singularidades, ele é compreendido, a ele não se aplicam generalizações, essas ficam limitadas a processos (FRAGA, 2003, p. 3) evitando-se as aplicações, pacotes e prescrições tão comuns nas organizações.

A ação administrativa implica uma ação com pessoas, no sentido de co-humanidade, na qual não cabem atitudes intervencionistas, mas ações de inserção (FRAGA, 2003, p. 8).

O reconhecimento da singularidade favorece, “[...] também, as especificidades de cada situação funcional, articuladamente ao que é próprio da singularidade de cada agente”

(FRAGA, 2003, p. 3). O agente que assume, na gestão, responsabilidade por seu atos e que reconhece “[...] o sujeito e o outro mais como subjetividades” que são mais intersubjetividades, (FRAGA, 2003, p.6) mantém seu estilo como gestor em sua dinâmica própria, possibilitando que sua metamorfose e integralidade sejam possíveis simultaneamente.

Capalbo (1990, p. 54) alerta para um ponto importante sobre a intersubjetividade que deve ser considerado na gestão: o poder só não será dominador se entrecruzar-se com o seu dever, o que é experimentado na vida cotidiana como expressão de liberdade e ética. 118

A apreensão do outro, que permite compreender o que acontece com outro sem que se viva o que o outro está vivendo, só é possível com a intersubjetividade. A relação intersubjetiva de uma comunidade de pessoas forma a significação de mundo em constante transição. Portanto, um mundo isento de objetivos individualistas, aberto ao respeito mútuo e

às diferenças, próprio da verdade polissêmica.

O homem vive no mundo em uma atitude natural, mesmo antes de qualquer escolha, mas tem possibilidade de mudar (FRAGA, 2003, p. 9-10), de acordo com Merlau-Ponty, “[...] há uma certa escolha no exercício da liberdade, cujo engajamento no mundo a presentifica como uma certa forma de exercer o poder do agente, que é o seu tempo e espaço fenomenológico, com a intencionalidade operante que o institui em aberto”.

Recorrendo a Teixeira, sustenta Fraga

Essa abertura é fundamental à relação eu e outro nas organizações. O sujeito que cria, trabalha, produz é o mesmo que usa e consome e a ciência, nas palavras de Teixeira, “que já transformou os métodos de produção, não acompanhou. os fins humanos no seu uso e consumo”. O desafio do conhecimento é acompanhar o espírito humano e não reduzir sua atuação ao mundo físico, daí o papel do conhecimento filosófico ser considerado vital ( 2003, p. 75).

É preciso esclarecer a diferença entre intencionalidade do sujeito e intencionalidade operante. A primeira refere-se ao movimento que o sujeito sofre no mundo e a segunda à ação do sujeito quando intenciona um objeto para dar-lhe um sentido (FRAGA, 2003, p. 60).

Retornando à questão do tempo, é necessário esclarecer que esse tempo fenomenológico não é cronológico, ou seja, não é uma “sucessão de agoras” (MERLAU-

PONTY, 1996, p. 239). A compreensão desse tempo possibilita compreender o sujeito como o que permanece na síntese de transição, quando o presente passa a ser passado, o passado recente torna-se mais antigo e o futuro passa a ser presente, deixando um novo porvir

(FRAGA, 2003, p. 11). 119

A transformação acontece nesse enredamento sujeito e tempo, que permite a ação de retomada, na qual “[...] as pessoas e as organizações articulam seu conhecimento e saber para se redirecionarem no mundo” (FRAGA, 2003, p. 12). Neste ponto, é preciso lembrar também do espaço fenomenológico, pois existe uma simultaneidade entre o tempo e espaço, que constitui o sujeito. Essa relação espacial somada à temporal, é básica para a leitura do vivido da organização estudada por muitas razões que emergem nas entrevistas mas, em especial, pelo fato de ser uma rede e de ter uma longa história.

Merlau-Ponty destaca que o passado por ser passado não deixa de existir (MERLAU-

PONTY, 1996, p. 563), assim “[...] além da distância física que existe entre eu e as coisas, uma distância vivida me liga as coisas que contam e existem em mim; essa distância mede, a cada momento, a amplidão da minha vida” (MERLAU-PONTY apud FRAGA, 2003, p. 13).

Essa situação ilustra vários depoimentos apreendidos no campo.

As organizações são feitas de pessoas, por isso têm corpo e espírito necessitando de compreensão. Quando investigamos suas ações, sua missão ou estratégia, precisamos apreender o seu sentido e os seus significados. É por isso que a gestão das organizações, bem como a pesquisa em gestão carece de uma dimensão filosófica, capaz de compreender o humano, tantas vezes negligenciado, reduzido a um mero instrumento, mas que, na verdade, é a própria organização.

Cabe acrescentar que o estudo da cultura da empresa e o encontro de suas sub-culturas só acontece autenticamente, ao se reconhecer as singularidades e ao se assumir a postura de respeito mútuo, necessário para a compreensão que só a fenomenologia, com seus fundamentos, é capaz de desvelar.

Diante do desafio de realizar uma leitura que busca a compreensão do humano em um processo de liquidação de empresa, com sua forte carga emocional e de vivências intensas, a 120

abordagem fenomenológica foi considerada fundamental porque, segundo Fraga (2003, p.

83):

A reflexão fenomenológica:

· vai buscar o que é, não a representação do que é;

· descreve, não explica;

· é movimento de mostração, não de revelação;

· desvela o que se mostra por si mesmo, já que não se mostra

diretamente.

É nesses termos que a abordagem fenomenológica se desenvolveu neste estudo, um método sobre o qual é preciso deixar claras algumas peculiaridades. Buscar o que é nas relações enfocadas neste estudo em gestão está relacionado ao homem concreto e não a sua representação, diz respeito aos empregados da empresa como pessoas no mundo da vida, não toma emprestado as abstrações da ciência, e inclui o pesquisador. A descrição proposta pela fenomenologia não se refere a fatos, mas o vivido, por essa razão não é uma mera descrição tradicional de acontecimentos e de apresentação de características relacionais em busca de conceituação, mas uma atitude diante do mundo, considerando o engajamento ético da co- humanidade que a fenomenologia exige e que o pesquisador investiga a presença ou a ausência nas relações estudadas. Não há expectativa de descoberta no sentido científico dos termos, porque o fenômeno é interpretado como se mostra, independentemente do pesquisador. Porém, como não se mostra diretamente, ou se mostra veladamente, abre espaço para a investigação que favoreça essa mostração (FRAGA, 2003). 121

6.1.4 - O Humano na Gestão

Considerar o humano dentro das organizações é considerar esse “mundo da vida”, o leabenswelt, onde as relações são estabelecidas dentro de um universo de possibilidades e sob a intencionalidade operante que vai além da vontade, que age à nossa revelia. Desvelar esse mundo complexo é um grande desafio.

Isso porque, reconhecer o mundo da vida, diz Fraga citando Gadamer: implica reconhecer o horizonte husserliano, um fundamento vital à interpretação fenomenológica, para captar a maneira pela qual toda a intencionalidade limitada dos significados se funde na continuidade fundamental do todo (FRAGA,2003, p. 34). É esse todo que torna as organizações humanas, devido à possibilidade de uma co-humanidade.

Essa é uma questão importante para não reduzir o humano a uma área, a um mero fator ou meio para alcançar objetivos, mas assumir que o humano é o fim último de uma organização na gestão com pessoas, por pessoas e para pessoas.

Nessa direção, convivendo com a realidade social de um sistema vigente em que a tecnologia aliada à economia é primazia, que desconsidera a possibilidade de um enfoque mais compreensivo à organização, Fraga faz uma revisão na teoria do desenvolvimento organizacional (D. O), e propõe a “[...] retomada da questão da relevância do humano na ação administrativa”, articulando critérios científicos da administração a critérios filosóficos fenomenológicos, da seguinte forma2:

______122

2 FRAGA V.F. Gestão pela formação humana: uma abordagem fenomenológica. Niterói:

Impetus, 2003 (no prelo), ver Quadro no 8.

Quadro 16 Estrutura da ação, critérios, dimensões, objetivos, sentido2.

Critério da EFICIÊNCIA Dimensão Técnica administrativa Objetivo da Organização Sentido Instrumental e Relevante ao ser do humano

Critério da RELEVÂNCIA Critério da EFICÁCIA Dimensão: Filosófica Dimensão: Econômico-financeira Objetivo do Ser em Comum Critério : da legitimação no Objetivo do Negócio Sentido Subjetividade/ MUNDO DA VIDA Sentido Instrumental e Intersubjetividade Dimensão: do Homem Concreto Conseqüente quanto Objetivo: Formação Humana ao ser do humano Sentido do Ser do Humano, Agente/Objetivo/Fim último

Critério da EFETIVIDADE Dimensão: Sócio-Política e Estratégica Objetivos: da Cidadania Sentido do Espírito Público das Organizações Humanas

Sob o critério da relevância, encontra-se a dimensão filosófica, pois na gestão das organizações é urgente compreender o humano, deixando de reduzi-lo a mero recurso. É fundamental o reconhecimento das pessoas como singulares, possibilitando uma subjetividade também como intersubjetividade no mundo das organizações. Na leitura dos documentos que definiram a política de recursos humanos na desestatização da RFFSA, verificou-se o quanto esse fundamento foi ignorado.

Sob o critério da eficiência, a literatura corrente apresenta a dimensão técnica administrativa, com objetivos centrados na organização, uma posição que Fraga retoma para revolucionar, sem violência, desconsiderando o ser humano reduzido a fator, para resituá-lo como fim último das organizações, não prejudicando a aplicação do critério científico da 123

eficiência, apenas reposicionando-o em sua devida dimensão, isto é, em seus limites técnicos importantes na gestão.

Essa linha de reflexão vai articulando os demais critérios apresentados no esquema, como a eficácia e a efetividade até chegar aos critérios filosóficos da relevância do humano e da legitimação da ação administrativa no mundo da vida, o que não seria possível concretizar se essa não fosse uma postura assumida desde o início do processo, conforme é apresentado no movimento que a figura 3, baseada em Fraga, descreve.

As implicações dessa ampla e profunda revisão envolve dimensões sócio-políticas e estratégicas, cidadania e responsabilidade social não só diante das organizações públicas, mas das organizações humanas em geral, porque a abordagem fenomenológica faz aparecer o seu enredamento no mundo concreto.

A relevância do humano se apresenta como uma dimensão difícil de assumir na gestão, frente ao pensamento neo-liberal predominante. Na gestão do mundo de hoje, que impõe medidas econômicas e comportamentos massificantes sob critérios meramente normativos. A visão econômico-financeira tem se apresentado superdimensionada e orientada para resultados sem considerar possíveis conseqüências vitais ao humano e suas organizações.

Esse ponto é discutido por Fraga, mas não será retomado neste estudo, devido à profundidade da discussão exigida e às limitações inerentes à proposta de uma dissertação.

Porém, fica aqui registrado como uma antecipação à sugestão para pesquisa futura.

Neste estudo, todavia, é preciso salientar que o agente na ação administrativa, deve considerar as possíveis conseqüências de suas ações, independemente dos objetivos propostos, porque por trás de cada método ou técnica de trabalho, de números ou estratégias, há pessoas. 124

O agente administrativo no agir com o outro, tomado como condição ética, o que

Scheler, citado por Dartigues, (1973, p. 144) chama de “co-responsabilidade”, vai em busca do melhor para a organização, contribuindo simultaneamente para o bem de cada pessoa.

O humano na ação administrativa que vê a constituição do mundo como um fenômeno intersubjetivo, não como uma representação científica ou como a percepção específica de um sujeito, mas como um “intermundo” (MERLAU-PONTY, 1996), possibilita intercâmbios entre sujeitos e/ou culturas. Esse é um referencial importante para a análise e compreensão dos motivos dos empregados que optaram por permanecer na organização em liquidação, porque favorece a leitura do intermundo amplo e complexo da RFFSA, com suas raízes históricas e sua cultura singular discutidas no capítulo três, justamente devido ao intercâmbio temporal e espacial no qual os sujeitos estão envolvidos.

É no “mundo da vida”, na dimensão do homem concreto com todas as singularidades, que os critérios são validados. Neste ponto, começa a aparecer o sentido da ação orientada não apenas para resultados. Logo, esse sentido não pode ser fechado como fator ou dimensão, pois o mundo da vida ou o leabenswelt reconhece o horizonte husserliano como um fundamento que possibilita a participação e contribuição de cada um para este mundo. Como esse mundo e o ser são compreendidos em aberto, revelam-se as infinitas possibilidades.

A objetividade nas ciências da gestão, de acordo com Dartigues (1973, p. 74),

“colocou entre parênteses o sujeito humano” e os modos de apreensão subjetivos da realidade.

No entanto, Nas organizações as relações se estabelecem entre pessoas concretas, mas acabam sendo analisadas e explicadas como abstrações. Por isso, há necessidade de legitimação da ação administrativa no mundo da vida, quando os resultados das decisões e ações são postas em cheque em termos da autenticidade de suas intenções. Trata-se do centro de uma proposta de reconhecimento e de diálogo com o outro, de busca de compreensão, de uma atitude de 125

inserção, não da violência de uma intervenção, freqüentemente protegida por suposto rigor científico, encoberto por procedimentos legais precários em legitimidade.

No caso da liquidação de uma organização que se mostrou misturada na história nacional e na cultura de seu povo, os critérios de análise propostos pareceram fundamentais.

6.2 - O Que os Dados Quantitativos Descrevem

Os dados obtidos dos questionários foram tratados com base em planilhas e gráficos.

Neste sub-capítulo os gráficos são apresentados em quatro categorias: perfil do empregado, desenvolvimento profissional, relações com a empresa e aposentadoria.

6.2.1 – Perfil do Empregado

A partir das 11 perguntas que investigam o empregado em seus aspectos individuais, segue-se a análise dos resultados.

Gráfico 1- Distribuição por Sexo

Sexo

Feminino 35%

Masculino 65%

126

Verificou-se que a maioria dos empregados pesquisados são do sexo masculino. Isso refletiu o caráter técnico de engenharia ferroviária da empresa, muito mais uma opção masculina dentro das escolas de engenharia. Além disso, deve-se levar em consideração o caráter discriminatório na distribuição de oportunidades a mulher dentro da sociedade brasileira. Considerando um quantitativo feminino mais baixo, deve-se observar que as mulheres aposentam-se mais cedo em virtude da legislação previdenciária em vigor.

Gráfico 2 – Distribuição por faixa etária

Faixa Etária

90 85

80

70

60

50 40 40 37 30 30

20 Número de Empregados na AG 10 2 0 Abaixo de 40 40-44 45-49 50-55 Acima de 55

A empresa não realiza processos seletivos há 15 anos, fato que elevou a idade média do empregado na empresa. Em dezembro de 1999, segundo o relatório de uma pesquisa realizada pela PUC - Rio (1999), a idade média do funcionário da RFFSA era de 43 anos.

Após três anos, a média de 46 anos aparece nesta pesquisa dentro da faixa etária entre 45 e 49 anos. 127

Gráfico 3 – Distribuição por estado civil

Estado Civil

Outros 7% Solteiro Divorciado 18% 5%

Casado 70%

A maioria declarou-se casada. Pela faixa etária deve-se considerar que podem estar em um segundo casamento. Demonstrou-se que a maioria tem compromisso com a família.

Acrescente-se que vários respondentes fizeram questão de declarar que dedicam para a família o seu tempo fora da empresa.

Gráfico 4 – Distribuição por escolaridade

Escolaridade

Mestrado 6% o Pós-graduação Até 2 Grau 18% 29%

3o Grau 47%

Apenas 29% dos pesquisados têm escolaridade até 2o grau. Essa classe de empregados possui os menores níveis salariais. Destaque-se que, quando ocorre um plano de incentivo ao 128

desligamento, aqueles que se situam nas camadas salariais mais baixas podem se impressionar mais facilmente com as quantias razoáveis de dinheiro.

Além disso, a estabilidade fornecida pelo Plano Real juntamente com a falta de reajustes deixou muitos empregados endividados. O hábito de usar o cheque especial e fazer prestações pertenceu ao tempo de inflação. Mas muitas pessoas, ainda não conseguiram se adaptar e continuam com esses hábitos que levam à inadimplência. Aqueles que têm os salários mais baixos caem mais facilmente nessas armadilhas e a indenização da demissão torna-se uma forma de saldar as dívidas.

Vale lembrar que a política de recursos humanos presente na Reforma de Estado

(Ministério do Planejamento, 1998, p. 46) incentivou a terceirização das atividades intermediárias, principalmente aquelas de nível médio. Portanto, nas indicações para demissão ocorridas na empresa, os níveis universitários foram mais preservados.

Gráfico 5 – Localização da residência por zona

Localização da Residência por Zona

Outros Municípios 7% Baixada 11%

Oeste 11% Norte 53%

Sul 16% Centro 2%

129

Gráfico 6 – Bairros mais freqüentes

Bairros Mais Freqüentes

35

30 30

25

20

15 13

10 10 9 9

Número de Empregados 5 5 5

0 Tijuca Méier Copacabana Jacarepaguá Grajaú Engenho Engenho de Novo Dentro

Gráfico 7 – Bairro onde mora possui ferrovia?

Bairro Onde Mora Possui Ferrovia?

Sim 44% Não 56%

Interessante observar que 16% dos empregados respondentes moram na zona sul, o que demonstra a ligação da moradia do ferroviário com a ferrovia. Fato que era rotineiro no passado, pois a empresa oferecia casa para os seus funcionários, uma prática comum das empresas tradicionais brasileiras (COLBARI, 1995). Mesmo assim, esse vínculo ainda se 130

manifesta e é distorcido pela quantidade enorme de empregados que moram na Tijuca, a chamada “zona sul” da zona norte. Até que surgisse a Barra da Tijuca como opção de moradia, a migração natural para população que habita a zona norte quando melhorava seu padrão aquisitivo era a Tijuca.

Cabe acrescentar que pelo teste de independência3, com de 5% de significância, constatou-se que existe relação entre o vínculo familiar e o fato do bairro em que o empregado vive possuir ferrovia (ANEXO D).

Gráfico 8 – Possuem filhos menores

Possuem Filhos Menores

Não 32%

Sim 68%

Cerca de 68% dos empregados da amostra possuem filhos menores e dependentes.

Pode-se considerar que, quando começou o processo de desestatização, a idade desses filhos poderia ser ainda menor. Assim, com base nos depoimentos dos respondentes que declararam utilizar seu tempo extra em atividades que envolvam a família e na quantidade de empregados(68%) que possuem filhos dependentes, pode-se considerar que o fator família com dependentes teve algum peso na decisão dos empregados em permanecer na empresa.

______3 Qui-quadrado

131

Gráfico 9 – Acreditam em Deus

Acreditam em Deus

Não 1%

Sim 99%

A origem católica da colonização brasileira (RIBEIRO, 1995, p. 40) se mostra nos empregados que confirmam sua fé em um Deus maior. Essa confiança em Deus pode fornecer apoio espiritual aos ferroviários da RFFSA em liquidação nos momentos de intenso stress que lhe foram impostos.

Gráfico 10 – Atividades Físicas

Atividades Físicas

120 106

100

80

60 52 42 40 31 29 18 18 20 10 7 6 Número de Empregados na AG

0

Yoga Futebol Outras Nenhuma Caminhada 132

Apenas 16% dos empregados pesquisados declararam não executar nenhuma atividade física, um percentual pequeno que mostra a consciência da necessidade de cuidados com a saúde. A realização de exames periódicos vem detectando problemas cardiovasculares que, segundo o serviço médico funcional, podem ser prevenidos também com uma caminhada diária.

Gráfico 11 – Atividades de Lazer

Atividades de Lazer

180 156 160

140 117 120 107

100 94 82 80 62 60 60

40 Número de Empregados na AG 20 8

0 Música Leitura Cinema Viagem Chopp Internet Teatro Outras

A observação de Darcy Ribeiro sobre o povo brasileiro: “[...] mais alegre porque mais sofrida” (1995, p. 449), se revela no ferroviário pelo interesse pela música e pelas festinhas em que, além da música, não falta a dança. Dentro da própria empresa existe um curso de dança de salão promovido pelos empregados e intensa troca de compact-disks. 133

Gráfico 12- Atividades extras

Atividades Extras

80 71 70

60

50 47

40 33 30 30 20 18 16 20 12 10 3 Número de Empregados na AG 0

"Bico" Outras Nenhuma Filantropia Consultoria

Atividades Religiosas

A falta de reajustes salariais sugeriria que serviços de consultoria e correlatos fossem utilizados pelos empregados como uma forma de aumentar seus vencimentos mensais. No entanto, somente 37% dos empregados pesquisados declararam não realizar nenhuma atividade extra, talvez tenha havido algum receio em responder sinceramente esta questão.

O fato das atividades religiosas tomarem o tempo ocioso dos empregados parece ser uma tendência crescente, ao se observar a proliferação de igrejas evangélicas e de movimentos carismáticos. Por outro lado, possuir apoio espiritual constitui-se uma base importante para suportar as pressões do mundo atual.

Vários respondentes fizeram questão de declarar que seu tempo extra-empresa é dedicado a atividades que envolvem a família. 134

6.2.2 - Desenvolvimento Profissional

Os dados coletados nas perguntas do questionário, que pesquisam os aspectos profissionais e de perspectiva de carreira do empregados, são expostos nos gráficos a seguir:

Gráfico 13 – Realização de curso nos últimos três anos

Realização de curso nos últimos três anos

Sim Não 49% 51%

No início do período de liquidação foram realizados alguns cursos, de forma a preparar os empregados para as novas funções a serem desempenhadas, como avaliações imobiliárias ou aspectos regulatórios e de contrato de concessão de serviços públicos. Esses cursos utilizaram verba de contrato com Banco Mundial. Com o fim do contrato, os cursos que foram oferecidos a uns poucos funcionários tinham caráter muito específico e pontual, pois a área de treinamento foi extinta.

Entretanto, os empregados demonstraram preocupação com a sua atualização profissional ao custear sua própria educação. 135

Gráfico 14 – Cursos realizados nos últimos três anos

Cursos Realizados nos Últimos Três Anos

50

45 43

40 38

35

30

25 19 20 17

15

10

Número de Empregados na AG 5 5 5

0 Informática Outros Pós- Inglês Graduação Espanhol Cursos Graduação

Cursos de informática são os mais procurados, por ser uma condição quase necessária no mundo globalizado. Além disso, são os encontrados com menor custo e maior facilidade de acesso. 136

6.2.3 - Relações com a Empresa

Os dados analisados a seguir foram coletados com objetivo de obter informações sobre o empregado dentro da empresa.

Gráfico 15 – Tempo de Serviço na RFFSA

Tempo de Serviço na RFFSA

35

30 29

25

20 19 19 17 15 15 13 12 11 10 10 7 7 7 6 Número de Empregados na AG 5 5 4 3 3 3 1 1 1

0 13a 14a 15a 16a 17a 18a 19a 20a 21a 22a 23a 24a 25a 26a 27a 28a 29a 30a 31a 33a 37a

O tempo médio do funcionário respondente da amostra foi de 21 anos, em dezembro de 2002. No relatório da pesquisa realizada pela PUC - Rio (1999) realizado em 1999, o tempo médio do empregado na empresa era de 18 anos.

Com 21 anos de trabalho em uma mesma empresa, pode-se considerar que para esse empregado essa empresa faz parte de toda sua vida produtiva. Nesse tempo ele conviveu com pessoas, possivelmente sempre as mesmas, criou vínculos, construiu um patrimônio.

137

Gráfico 16 – Existência de vínculo familiar

Existência de Vínculo Familiar

Sim Não 48% 52%

Cerca de 48% dos empregados da amostra possuem vínculo familiar, fato comum nas antigas empresas estatais. Além disso, a RFFSA tem origens anteriores em que o ofício era passado de pai para filho ou o amor à ferrovia era cultivado na família. Ser ferroviário já foi motivo de orgulho por oferecer a garantia de um bom emprego.

Gráfico 17 – Número de empregados por tipo de vínculo familiar

Número de Empregados por Vínculo Familiar

50

45 43

40

35 32 30 30

25 24

20

15 14

10 Número de Empregados na AG 7

5 1 0 Pai Outros Irmãos Cônjuge Avós Mãe Filhos 138

Cerca de 22% dos empregados respondentes declararam que o pai trabalhou na empresa. Isso favorece a “[...] construções míticas como a de grande família que sustentam representação sobre empresa e poder” (COLBARI, 1996, p. 224), que vai fundamentar a gestão paternalista.

Gráfico 18 – A RFFSA como primeiro emprego

A RFFSA Como Primeiro Emprego

Sim 35%

Não 65%

A RFFSA foi o primeiro emprego para 35% dos empregados pesquisados. Muitas vezes foram os próprios pais ou outros familiares que indicavam os seus familiares para a trabalhar na empresa, quando havia um posto de trabalho vago.

139

Gráfico 19 – Adequação à nova função a partir da liquidação da RFFSA

Adequação à Nova Função a Partir da Liquidação da RFFSA

Sim 27%

Não 73%

Com a mudança na missão da empresa que deixou de ser uma operadora ferroviária, os funcionários foram remanejados para desempenhar novas funções, como por exemplo: engenheiros tornaram-se avaliadores imobiliários ou passaram a cuidar da condução de processos judiciais.

A maioria dos empregados tem formação em engenharia. Na RFFSA, evidencia-se a flexibilidade da carreira de engenharia, por ser um formação profissional que se enquadra em diversos tipos de atividade. 140

Gráfico 20 – Funções na RFFSA de acordo com a graduação, pós-graduação ou Curso Técnico

Funções na RFFSA de Acordo com a Graduação, Pós-Graduação ou Curso Técnico

Não 40%

Sim 60%

Cerca de 40% dos empregados pesquisados submetem-se a um trabalho diferente do conhecimento adquirido em sua graduação, pós-graduação ou curso técnico, para manter o seu emprego, o que Livia Barbosa (2001) chama de cultura do emprego. Além disso, Sérgio

Buarque de Holanda (1977) observa que os brasileiros são capazes de abandonar a carreira inicial, de forma a obter mais segurança e estabilidade.

141

Gráfico 21 – Avaliação dos empregados sobre o ambiente atual

Avaliação dos Empregados sobre o Ambiente Atual

Hostil 17%

Agradável 38%

Indiferente 45%

O conceito de ambiente não foi definido para o respondente intencionalmente. O objetivo da questão era saber se o empregado se sentia bem na empresa. Alguns até questionaram o que poderia ser considerado como ambiente, se o convívio com os colegas ou instalações físicas e de trabalho que a empresa oferece.

O que mais se revelou foi que apesar das condições da empresa, o relacionamento com chefes imediatos e colegas tornavam o ambiente agradável. O aspecto relacional constitui-se como forte aspecto de nossa cultura (BORGES, 1997, p. 48). Além disso, de acordo com

Colbari (1996, p. 219), os empregados podem confundir “gostar do trabalho” ou “gostar da empresa” com “gostar dos colegas”.

Um respondente atribuiu o ambiente hostil aos “dirigentes da empresa que não vestem a camisa da empresa, só estão aqui para liquidarem-na”. Na verdade não existiu nenhuma intenção por parte da empresa em fornecer condições que possibilitem um ambiente agradável 142

em qualquer sentido, já que em uma empresa em liquidação não há nada a fazer, senão vender ativos e quitar passivos. O que pode ser um erro de estratégia por parte dos liquidantes pois, sem a cooperação dos empregados que detêm o conhecimento do negócio fica difícil realizar o hercúleo trabalho de liquidação de uma empresa do porte da RFFSA.

Foi encontrado durante a pesquisa documental um material que ilustra a imagem de independência das ações da empresa e da percepção de ambiente pelos funcionários. Os empregados receberam no dia do ferroviário, em 30 de setembro de 1995, um marcador de livro com a seguinte uma citação: “A é uma dádiva e não uma aquisição. Ela depende mais de temperamento do que de ambiente” (ANEXO C). Assim, mostra-se mais uma vez o ser ferroviário com felicidade, apesar de tudo.

Gráfico 22 – Avaliação dos empregados sobre o relacionamento com os colegas

Avaliação dos Empregados Sobre o Relacionamento com os Colegas a Partir de 1999

Piorou 20% Melhorou 35%

Indiferente 45%

No povo brasileiro o relacionamento interpessoal é muito importante. Para o ferroviário cumpre-se essa tendência. Um respondente escolheu a opção indiferente, 143

comentando que para ele o ambiente foi “sempre bom”, mesmo depois da decretação da liquidação da empresa.

Outro ponto observado pelos respondentes foi que ficou mais fácil para que todos se conhecessem melhor e se aproximassem, com a diminuição do efetivo da empresa e o remanejamento de pessoal.

Gráfico 23 - Avaliação dos empregados sobre o desempenho dos Gerentes

Avaliação dos Empregados sobre o Desempenho dos Gerentes a Partir de 1999

Melhorou 17% Piorou 34%

Indiferente 49%

A avaliação negativa e a indiferença pode demonstrar um ressentimento devido a distância entre o discurso e a ação. Os empregados em geral não acreditam mais na autoridade dos chefes, uma conseqüência do processo de privatização em que os empregados foram constantemente ameaçados de demissão e, no entanto, a própria empresa declarou que essas demissões não aconteceram, e da ameaça de extinção da empresa que não se concretiza e se estende de seis em seis meses. 144

A opção “melhorou” foi escolhida por aqueles que reconheceram o esforço que precisa ser feito para administrar, com poucos recursos, uma empresa cuja missão é a sua própria morte.

Gráfico 24 - Avaliação dos empregados sobre o seu desempenho

Avaliação dos Empregados sobre o Seu Desempenho a Partir de 1999

Piorou Melhorou 30% 28%

Indiferente 42%

As observações dos respondentes para a opção "melhorou" se justificou com o seguinte argumento “[...] tendo em vista o enxugamento de pessoal, a produtividade obrigatoriamente aumentou”. Para a opção, "piorou", alegaram que tudo piorou “[...] pelo clima de insegurança, que acaba levando tanto os chefes como os empregados a trabalharem em clima de terror, e não há quem possa se sentir bem”. 145

Gráfico 25 – Grau de influência da decretação da liquidação da RFFSA na vida pessoal

Grau de Influência da Decretação da Liquidação da RFFSA na Vida Pessoal do Empregado

Pequena 14%

Média Grande 28% 58%

A porcentagem de 14% de pesquisados que declarou não ter sido atingida pela liquidação frente à violência da finalização do plano de desestatização foi muito alta. Ao buscarmos possíveis interpretações para a escolha dessa opção, acredita-se que os respondentes podem não ter compreendido bem a questão ou possuir um controle emocional que os tornam imunes às turbulências da empresa ou, por fim, esses respondentes podem ter construído um mecanismo de autodefesa em que se nega a causa do sofrimento, por ser algo insuportável. 146

Gráfico 26 – Acreditam na manutenção do emprego com a extinção da RFFSA

Acreditam na Manutenção do Emprego com a Extinção da RFFSA

Não 17%

Sim 83%

A cultura brasileira se manifestou nesse momento crítico da empresa, pois também foi possível observar o brasileiro com sua natureza otimista já que, não existiu nada de concreto que os assegurasse a garantia de emprego. “No final, tudo acaba bem”, “Deus é brasileiro”, ou

“acredito no messias”, como escreveu um dos respondentes, demonstra uma característica bem brasileira de otimismo, apresentada por PRATES e BARROS (1997).

Além disso, nada é muito claro dentro da sociedade brasileira, fruto do “próprio processo de formação nacional” (RIBEIRO, 1995, p. 23). Existe um distanciamento na comunicação com os empregados e aqueles que realmente decidem. Acrescente-se a falta de coerência das decisões tomadas que agrava o descrédito da autoridade na empresa que discursa sobre a extinção. 147

Gráfico 27 – Atribuição de Causas da Decretação da Liquidação

Atribuição de Causas para a Decretação da Liquidação da RFFSA

180 164 160

140

120 106

100

80 55 60 40 40

Número de Empregados na AG 15 20 11

0 Política de Má Pressão do Setor Falta de União Outros Falta de Governo Administração Privado dos Ferroviários empenho Profissional dos Ferroviários

A política de governo é considerada a maior causa da situação em que se encontra a empresa. Atribuir ao governo a responsabilidade pelos acontecimentos negativos é prática brasileira, pois se percebe nas ações políticas situações em que se legisla em causa própria, deixando o país a mercê de imposições de organismos internacionais, que privatizam empresas públicas sem medir as conseqüências sociais geradas em troca de empréstimos.

Na opção outros, os respondentes escreveram declarações que demonstraram conhecimento sobre a realidade em que a empresa se insere:

· “Subordinação do Governo às determinações do “consenso de Washington”

O respondente soube situar-se dentro do contexto da globalização;

· “Queima de arquivos”

Quando se realiza uma mudança do tipo intervencionista, como é uma

privatização, nada melhor que apagar os vestígios, matar a cultura. Assim, não 148

existirá nem pessoa, nem documento que possa contestar a nova ordem

implantada;

· “Falhas conjunturais”

Existe um sentimento de auto-crítica, de compreensão do novo contexto;

· “Distribuição do patrimônio da RFFSA pelo Governo”

Crítica à política neo-liberal;

· “Interesses dos que conduzem o processo de privatização no uso do

patrimônio da empresa para auferirem vantagens e ocultarem os atos escusos

particulares”

Espírito de denúncia daqueles que resistem na defesa do patrimônio público;

· “Avaliação incorreta da empresa”

Revela-se um espírito crítico conciliador;

· “Estratégia de governo para consolidar uma desestatização”

· “O governo se afasta da atividade econômica”

Consciência do processo de desestatização como política de governo na

Reforma de Estado;

· “Ausência de uma política de transporte”

Transparece uma capacidade de visualização do problema sob um contexto

mais amplo; 149

Gráfico 28 Empregados por tempo necessário para se aposentar na proporcional

Empregados por Tempo Necessário para se Aposentar na Proporcional

60

51 50

40

30

20

Número de Empregados na AG 15 15 12 12 13 10 10 9 10 10 3 3 4 3 4 3 4 3 3 2 1 1 0 0a 1a 2a 3a 4a 5a 6a 7a 8a 9a 10a 11a 12a 13a 14a 15a 16a 17a 18a 19a 20a 22a

Cerca de 25% dos empregados pesquisados atendem aos requisitos de tempo de serviço e idade exigidos pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Trata-se de um número muito significativo considerando que poderiam estar em casa, recebendo uma quantia mensal maior do que aquela que lhe é depositada todo mês como salário, pois os aposentados da RFFSA possuem complementação de aposentadoria, ou seja, recebem o mesmo que os da ativa, só que sem os descontos e além disso, possuem complementação da REFER, a previdência dos ferroviários, o que pode totalizar uma quantia de um salário e meio por mês.

Esse fato merecia um estudo profundo, mas pode-se interpretar com base em dois aspectos em um primeiro momento. Existia a expectativa que pudesse ser aberto mais um

Plano de Incentivo ao Desligamento (PID) e assim, eles poderiam ir para casa com aposentadoria, prêmio em dinheiro e os 40% do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

(FGTS). Como não houve mais nenhum indício que o Plano de Incentivo seria reaberto e a 150

perspectiva do governo do Partido dos Trabalhadores era de retirar a RFFSA da liquidação, o habilitado passou a esperar que ele pudesse ser premiado com a demissão e assim, receber os

40% de FGTS, pelo menos.

Acrescente-se a esperança de alguns remanescentes na empresa em conseguir um cargo que aumentasse o seu contra-cheque, nas vésperas da aposentadoria. Com a iminência da aprovação da Reforma da Previdência, os possíveis aposentados correm o risco de ter que permanecer mais algum tempo na empresa, em conseqüência de mudanças nos requisitos de idade. Seriam apenas essas as razões que fazem com que as pessoas permaneçam na empresa?

Além desta última questão, inúmeros pontos indicados nesta pesquisa merecem uma retomada dialogada, quando o pesquisador procurará, a cada momento, assumir uma postura simultaneamente de inserção na condição de pesquisador, sem obscurecer a sua real situação de empregado, como os demais sujeitos do estudo de caso.

6.2.4 – Síntese dos Principais Resultados do Questionário

· Perfil do empregado

o Maioria do sexo masculino, entre 45 e 49 anos, casados, com filhos

menores. Gostam de música e futebol. Fazem caminhada por conta da

hipertensão. Muitos participam de atividades religiosas. Moram em

bairros por onde passa a ferrovia, se possuem vínculos familiares com

ferroviários.

· Desenvolvimento profissional

o Mão de obra especializada e de nível superior; 151

o Buscam atualizar-se profissionalmente.

· Relações com a empresa

o Manifestam flexibilidade ao se ajustar às novas condições da empresa;

o Tempo médio de empresa é de 21 anos, sendo o primeiro emprego para

35% dos respondentes;

o Cerca de 48% dos respondentes possui vínculo familiar com algum

empregado ou ex-empregado. O pai ferroviário foi a maior ocorrência

dentre os tipos de vínculo familiar;

o O ambiente da empresa é considerado hostil para apenas 17% dos

empregados. Transparece a valorização da relação interpessoal;

o Acreditam na manutenção do emprego mesmo com a extinção da

RFFSA;

o Em dezembro de 2002, cerca de 25% dos respondentes já preenchiam

os requisitos necessários para se aposentar.

Enquanto esta etapa visou caracterizar os ferroviários como pessoas que permanecem na empresa até o momento, uma segunda etapa irá investigar o sentido dessas decisões e os aprendizados decorrentes desse engajamento na liquidação. 152

6.3 - As Percepções dos Empregados

Para a análise dos dados escolheu-se questões que se manifestaram nas falas das pessoas. Com base em quadros sintéticos das entrevistas revelou-se a verdade polissêmica e a singularidade da percepção de cada entrevistado, bem como as raízes comuns da empresa.

A primeira observação sobre a fala dos entrevistados foi sobre a utilização da palavra

“rede” ao se referir à Rede Ferroviária Federal como empresa. A palavra “rede” denota entrelaçamento, a formação de um tecido. Assim, pode ser que o empregado da RFFSA a utilize como um mero apelido. Porém, não se pode ignorar o sentido dessa palavra, segundo

Vigotski (1996, p. 125) “[...] o sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência”, para ele “[...] o significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que uma pedra no edifício do sentido”.

O conceito de rede como um conjunto de nós interconectados permite que o termo

“rede” seja utilizado em diversas áreas de conhecimento. Portanto, ao se buscar o sentido de

“rede” para o empregado da RFFSA que se refere a empresa por essa palavra, não se pode negar que não haveria melhor termo para descrever o entrelaçamento e sentido de identidade partilhada que existe entre a empresa e seus empregados.

No livro Sociedade em Rede, Manuel Castells (1999, p. 23) fala da “[...] condição de esquizofrenia estrutural entre a função e o significado”, pois a sociedade atual está posicionada entre a rede e o ser. Organizações em rede e rede de computadores conectam e desconectam o indivíduo dependendo dos objetivos de fluxo da própria rede. Para o ser que dentro dessa nova estrutura de mundo sente-se isolado e perdido cria-se, para a palavra rede, o sentido de necessidade de uma “[...] identidade partilhada, reconstruída” (CASTELLS, 1999, p. 40). 153

O contraste da rede virtual com a rede que constitui a empresa, por conta de sua estrutura física que favorece o contato das pessoas concretamente. Essa percepção de um serviço que oferecia a sociedade brasileira a possibilidade de encontro, passou a ser um símbolo de articulação de âmbito nacional. A compreensão desse papel da empresa pelos seus funcionários durante a vida da organização gerou um forte sentimento de orgulho de pertencer, que se manifesta nas falas dos entrevistados independentemente dos cargos, da hierarquia e, até mesmo, se revelam nos ex-funcionários, como a seguir:

Figura 3 Recorte do jornal da Associação de Engenheiros Ferroviários Ano X, n0 9, fevereiro/2003

Era de se esperar que reações e sentimentos os mais diversos emergissem entre os funcionários da empresa com o anúncio da sua liquidação. Provavelmente a vulnerabilidade 154

de ser desconectado no caso de uma rede virtual tenha tomado um vulto dramático, porque neste caso o desligamento se dá com o homem concreto.

Durante o convívio no trabalho, bem como durante a presença na empresa como pesquisadora, foram observadas reações que percorreram uma escala, da desistência, do abandono, até a manutenção de toda a dedicação possível e inclusive, emocional de liquidação.

Observa-se ação e postura profissional que revelaram diferenças individuais gritantes diante do mesmo processo, isto é, a liquidação. Emergiram iniciativas de abertura e flexibilidade para assumir novas funções e atribuições até mesmo em atividades não relacionadas como básica dos funcionários e que se mantém até o momento. Em contraste, surgiram o desencanto, o anonimato e um certo grau de revolta, que se evidencia nos relatos sobre a ferrovia. Essa realidade complexa apresenta um centro comum, que é a significância da empresa para a vida de todas essas pessoas, que se mostram em suas manifestações singulares a cada momento.

6.3.1 - Visão dos Entrevistados Sobre o Transporte Ferroviário no Brasil

Os entrevistados demonstraram estar conscientes da situação atual do transporte ferroviário conforme as narrativas as seguir: “[...] ele existe muito menos do que ele poderia existir”, “[...] o transporte ferroviário não existe”, “[...] o transporte ferroviário é a solução, mas não é a realidade”, “[...] o transporte ferroviário no Brasil tem uma deficiência muito grande”.“ [...] até transporte de passageiros entre Estados, que não ocorre deveria ser muito grande”.

Reconheceram o quanto a ferrovia foi e é negligenciada nas narrativas: “[...] a ferrovia sempre foi tratada como uma coisa sem importância”, “[...] a ferrovia está muito abandonada 155

há muito tempo”, “[...] o que nós temos visto, nesses últimos anos, é que muita coisa que já existia sendo abandonada”, “[...] estamos muito mal servidos em ferrovias e não vejo grande interesse do Estado nisso.

Os entrevistados demonstraram conhecer o valor da ferrovia para o crescimento um país das dimensões do Brasil, de acordo com as narrativas:

[...] o principal transporte teria que ser, obrigatoriamente, a ferrovia e ela sempre foi deixada em segundo plano”, “a gente fica entristecido de ver a nação, que não está se desenvolvendo e pagando caro por isso, por essa falta de visão, “um país como o nosso sem um transporte ferroviário de expressão, é um país que perde competitividade e bem estar do povo.

Apontando causas como “[...] transporte rodoviário deslocou muita coisa que deveria ser do ferroviário para o rodoviário, tanto de passageiros como de carga”. Falam que mesmo com a privatização, nada foi feito para melhorar a posição desse modal na matriz de transportes brasileira: “[...] o transporte ferroviário não se modificou nos últimos 30 a 40 anos, mesmo após a privatização”, “[...] os últimos anos de Ministério dos Transportes foram para administrar buraco, nunca crescimento e visão de futuro”. Eles levantam, inclusive, hipóteses para a falta de crescimento desse transporte, como a fala seguir: “[...] não existe melhoria no transporte porque não tem como atender novos clientes e não é esse o objetivo”.

Assim, os entrevistados mostraram possuir a plena noção da importância da ferrovia, pois o discurso é bem uniforme em relação ao que foi feito e o que vem sendo realizado pelo

Governo, referente às políticas do setor de transporte ferroviário. Eles revelaram o quanto eles próprios valorizavam o seu trabalho perante a sociedade brasileira, ao fazer parte da empresa ferroviária. 156

Quadro 17 Visão dos entrevistados sobre o transporte ferroviário no Brasil Respondente Fala 1 “ele existe muito menos do que ele poderia existir” “O transporte rodoviário deslocou muita coisa que deveria ser do ferroviário para o rodoviário, tanto de passageiros como de carga 2 “o transporte ferroviário não existe” 3 “o transporte ferroviário é a solução, mas não é a realidade” 4 “a gente fica entristecido de ver a nação, que não está se desenvolvendo e pagando caro por, isso, por essa falta de visão” 5 “a ferrovia está muito abandonada há muito tempo” 6 “o transporte ferroviário no Brasil tem uma deficiência muito grande” 8 “o principal transporte teria que ser, obrigatoriamente, a ferrovia e ela sempre foi deixada em segundo plano”...“a ferrovia sempre foi tratada como uma coisa sem importância”...“até transporte de passageiros entre Estados, que não ocorre deveria ser muito grande” 9 “o transporte ferroviário, hoje, não tem mais aquela importância que tinha, alguns anos atrás, a Rede transportava tudo” 11 “o transporte ferroviário não se modificou nos últimos 30 a 40 anos, mesmo após a privatização”...“não existe melhoria no transporte porque não tem como atender novos clientes e não é esse o objetivo” 12 “um país como o nosso sem um transporte ferroviário de expressão, é um país que perde competitividade e bem estar do povo.”...“estamos muito mal servidos em ferrovias e não vejo grande interesse do Estado nisso”...“Os últimos anos de Ministério dos Transportes foram para administrar buraco, nunca crescimento e visão de futuro”

6.3.2 - A Visão dos Entrevistados Sobre Transporte de Passageiros

Por ser recorrente nas falas e apesar da RFFSA não fazer mais transporte de passageiros há muito tempo, o transporte ferroviário de passageiros mereceu destaque por reforçar a existência de uma consciência, enquanto cidadão, do serviço que era prestado as comunidades, conforme as narrativas:

[...]gostaria, também, como todo o brasileiro de ter o transporte de trem de passageiros com qualidade adequada”, “o transporte ferroviário no Brasil tem uma deficiência muito grande”, de passageiros não existe”, “até transporte de passageiros entre Estados, que não ocorre deveria ser muito grande”, “em termos de passageiros o Brasil está altamente deficiente.

Revela-se um saudosismo como: “[...] a Rede transportava carga, passageiros e várias outras coisas”, ou valoriza-se até mais o transporte de passageiros de acordo: “[...] o 157

transporte de carga.. eu não vejo com uma perspectiva, assim, tão favorável, já o transporte de passageiros vai deslanchar a curto prazo.

O entrevistado número 12 faz uma referência ao transporte social, que a empresa realizava em áreas mais carentes do Brasil. A RFFSA era o único meio de transporte para muitas populações interioranas e com a erradicação desses ramais sociais, essas populações foram excluídas da possibilidade de locomoção. Vale lembrar o famoso trem que transportava

água no Nordeste.

Quadro 18 Visão dos entrevistados sobre transporte de passageiros Respondente Fala 1 “O transporte rodoviário deslocou muita coisa que deveria ser do ferroviário para o rodoviário, tanto de passageiros como de carga 4 “gostaria, também, como todo o brasileiro de ter o transporte de trem de passageiros com qualidade adequada” 6 “o transporte ferroviário no Brasil tem uma deficiência muito grande”, de passageiros não existe” 8 “até transporte de passageiros entre Estados, que não ocorre deveria ser muito grande” 9 “a Rede transportava carga, passageiros e várias outras coisas” 10 “o transporte de carga.. eu não vejo com uma perspectiva, assim, tão favorável. Já o transporte de passageiros vai deslanchar a curto prazo” 12 “em termos de passageiros o Brasil está altamente deficiente”

6.3.3 - Os Sentimentos dos Entrevistados Quanto à Situação da Ferrovia

Revelou-se o desconforto e indignação existente tanto como empregados de uma empresa ferroviária quanto à condição de cidadão brasileiro. Alguns até se incluem nessa situação ao declarar: “[...] como brasileiro e como empregado da Rede me incomoda” “[...] esse tratamento com o transporte ferroviário me incomodou até um tempo, mas depois da liquidação, eu me senti, particularmente, totalmente abandonado pelo sistema” ou “[...] me sinto agredido nesse ponto”, “[...] a gente fica entristecido de ver a nação, que não está se desenvolvendo e pagando caro por, isso, por essa falta de visão”. 158

O desconforto causado pelo declínio desse transporte faz transparecer o amor ancestral

à ferrovia nesta declaração: “[...] isso me incomoda, sempre me incomodou. Acho que porque, desde criança, criança gosta de trem, que a gente tem aquele amor à ferrovia, pelo trem. A gente gostaria de ver, até pelo bem do país, que o transporte ferroviário tivesse o valor que merece”.

Cabe ressaltar que as falas também demonstraram “sua capacidade de ter esperança em tempos melhores, entregue à proteção de um Deus que é brasileiro” (PRATES;BARROS, p. 63), uma das características da cultura brasileira.

Algum dia vai cair a ficha daqueles que trabalham nas políticas de transportes, eles vão enxergar isso”, “Eu acredito que a ferrovia, ainda, alguma vez, alguém vai descobrir que a melhor maneira para o país crescer, o interior já cresceu muito, quando a ferrovia era maior”, “que um dia a gente possa ter uma ferrovia adequada”, “se houver mais incentivo, ainda há muita coisa que pode ser feita.

Acrescente-se que existe uma posição crítica quanto à situação, quando é proposta uma possível solução na seguinte fala: “[...] a gente tem que começar a nos reeducar para primeiro, a gente aprender, realmente, a planejar, a montar a estrutura... a gente faz o projeto em cima da perna e começa a executar, aí, dá tudo errado e volta para trás, trazendo custos absurdos”.

Quadro 19 Sentimentos dos entrevistados quanto à situação da ferrovia Respondente Fala 1 “como brasileiro e como empregado da Rede me incomoda” 2 “esse tratamento com o transporte ferroviário me incomodou até um tempo, mas depois da liquidação eu me senti, particularmente, totalmente abandonado pelo sistema” 3 “Algum dia vai cair a ficha daqueles que trabalham nas políticas de transportes, eles vão enxergar isso” “Eu acredito que a ferrovia ainda, alguma vez, alguém vai descobrir que a melhor maneira para o país crescer, o interior já cresceu muito, quando a ferrovia era maior” 4 “que um dia a gente possa ter uma ferrovia adequada” “a gente fica entristecido de ver a nação, que não está se desenvolvendo e pagando caro por isso, por essa falta de visão” 159

5 “não gostaria que isso acabasse não” 6 “isso me incomoda, porque a nossa visão era atender toda a federação... , era transportar essas mercadorias perigosas pela ferrovia e aconteceu justamente ao contrário” 7 “se houver mais incentivo, ainda há muita coisa que pode ser feita” 8 “isso me incomoda, sempre me incomodou. Acho que porque, desde criança, criança gosta de trem, que a gente tem aquele amor a ferrovia, pelo trem. A gente gostaria de ver, até pelo bem do país, que o transporte ferroviário tivesse o valor que merece” 11 “me sinto agredido nesse ponto” 12 “A gente tem que começar a nos reeducar para primeiro a gente aprender, realmente, a planejar, a montar a estrutura... a gente faz o projeto em cima da perna e começa a executar, aí dá tudo errado e volta para trás, trazendo custo absurdos”

6.3.4 - A Visão dos Entrevistados Quanto ao Trabalho na Empresa

Os empregados têm o conhecimento de que uma empresa para existir necessita de uma missão definida e objetivos, como declara o entrevistado a seguir: “[...]a empresa tinha mais objetivos”. Ele também reconhece a falta de alinhamento entre política e objetivos: “[...] apesar de achar que a empresa não voltava a sua política para os seus objetivos”.

Uma organização é autêntica se existe “[...] o reconhecimento da co-humanidade, do ser com o outro” (FRAGA, 2003, p. 12), se existe uma articulação do saber e do conhecimento das pessoas e da organização de forma a se redirecionarem no mundo. Na

RFFSA em liquidação é flagrante a dissonância entre a empresa e as pessoas na ação de retomada, como explicita o entrevistado 1: “[...] a empresa de liquidação tem objetivos que não são de interesse do empregado, porque se eu liquido a empresa estou jogando fora o meu trabalho, estou trabalhando para acabar com o meu trabalho, não é uma coisa agradável” ou o entrevistado 6: “[...] você via a luz no final do túnel, você sabia o que ia acontecer, hoje não, estamos estagnados. Antes da privatização, havia investimento, havia deveres, tinha objetivos”. 160

Os entrevistados deixaram transparecer com emoção o seu prazer em trabalhar para a

RFFSA antes da liquidação, como nas falas: “[...] gostava muito, muito de trabalhar na

RFFSA” ou “ah! Gostava! Gostava muito, muito.” Não que tenham desgostado de trabalhar a partir da decretação da liquidação, mas o prazer era maior: “[...] gostava de trabalhar para a

Rede, como ainda gosto de trabalhar”.

Revela-se o vínculo familiar no entrevistado 3: “[...] o que mais me atrai na rede é o fato de haver uma família ferroviária, é um ponto importante”. Como o profissionalismo do entrevistado 10, que no final reconhece sua atração, também, pela ferrovia:

Gostava. Mas, não tenho ligação familiar com a ferrovia.Eu vejo a Rede de uma forma profissional. Eu entendo, reconheço esses laços e respeito muito, mas não é minha história. Trabalho em ferrovia, como trabalharia em rodovia. Para ser bem sincero, eu sempre gostei mais da engenharia que da ferrovia. É indiscutível que eu gosto do tema, a gente acaba se direcionando, é difícil não se ter algum tipo de atração.

O entrevistado 7 em sua narrativa descreveu a empresa de uma maneira muito comum dentro da RFFSA, o que revela um traço forte de sua cultura quando diz: “[...] a Rede era uma mãe, é uma mãe.”. Essa fala expressa todo o acolhimento que os empregados sentem por parte da empresa. O mais interessante é que a empresa não tem mais essa postura de prover o bem-estar de seu trabalhadores, por conta do processo de transformação em que se encontra.

No entanto, os empregados mantém esse sentimento, como se a “Rede” estivesse desvinculada da ação e da responsabilidade humana de seus atuais dirigentes e seus empregados buscassem no vivido, na “pré-sença”, o verdadeiro espírito da organização. 161

Quadro 20 Visão dos entrevistados quanto ao trabalho na empresa Respondente Fala 1 “A empresa tinha mais objetivos, apesar de achar que a empresa não voltava a sua política para os seus objetivos. A empresa de liquidação tem objetivos que não são de interesse de empregado, porque se eu liquido a empresa, estou jogando fora o meu trabalho, estou trabalhando para acabar com o meu trabalho, não é uma coisa agradável” 3 “O que mais me atraia na rede é o fato da família ferroviária, é um ponto importante” 4 “Sempre gostei de trabalhar na Rede. Sempre gostei de trabalhar e, particularmente aqui na Rede.” 5 “Gostava muito, muito de trabalhar na RFFSA” 6 “Claro que gostava. Porque, você via a luz no final do túnel, você sabia o que ia acontecer, hoje não, estamos estagnados. Antes da privatização, havia investimento, havia deveres, tinha objetivos 7 “Claro, adorava. Isso aqui, para mim, a Rede era uma mãe, é uma mãe.” 8 “Sempre gostei de trabalhar para Rede.” 9 Ah! Gostava! Gostava muito, muito.” 10 “Gostava. Mas, não tenho ligação familiar com a ferrovia.Eu vejo a Rede de uma forma profissional. Eu entendo, reconheço esses laços e respeito muito, mas não é minha história. Trabalho em ferrovia, como trabalharia em rodovia. Para ser bem sincero, eu sempre gostei mais da engenharia que da ferrovia. É indiscutível que eu gosto do tema, a gente acaba se direcionando, é difícil não se ter algum tipo de atração.” 11 “Gostava de trabalhar para a Rede, como ainda gosto de trabalhar” 12 “Sempre gostei. Eu entrei para ferrovia e vesti a camisa da ferrovia”

6.3.5 - Os Entrevistados e a Possibilidade de Permanência na Empresa

Os entrevistados estavam conscientes da situação do mercado de trabalho, como também de que as suas vivências na empresa têm valor. Alguns fizeram avaliações que evidenciaram baixa auto-estima, certo comodismo, mas de acordo com um “algo mais antigo do que eu” (MERLAU-PONTY, 1996), evidenciou-se a esperança.

Dentre as narrativas colhidas destacam-se:

Ø O salário é compensador em relação ao mercado:

“[...] o mercado ainda não chegou ao nível de salário que a gente tinha em 89, por isso ainda estou aqui, senão, seria até obrigado a sair, porque baixaria meu padrão de vida.” 162

“[...] Eu tenho que sobreviver”

Ø A força dos vínculos familiares com a empresa

“[...]O pai ferroviário, o avô ferroviário, faz com que eu tenha um carinho especial pela rede “[...]depois, era meu sonho, sempre foi, meu pai era ferroviário, era um sonho de criança ser ferroviária como ele. E eu consegui isso. Então, ninguém ia me fazer sair daqui, eu ia apagar a luz” “[...]Meu pai era ferroviário, meus tios, meu marido, minha família era ferroviária. Então, eu sou muito ativa, eu gosto muito das atividades que eu exerci”

Ø A aposentadoria na RFFSA como projeto de vida

“[...]essa onda de demissão não foi novidade. A única diferença foi que quando entrei para a rede eu recebi a informação, que hoje é de até achar graça, que eu estaria aposentado duas vezes, a rede e REFER.” “[...]estamos resistindo e contando nosso tempo, até ele chegar normalmente, no meu caso, estou esperando ter direito a REFER” “[...]eu dê continuidade ao que eu projetei que era me aposentar ferroviário” “[...] aliás, o primeiro motivo, eu acho que eu investi muito tempo da minha vida na empresa.” “.[...]não ia jogar fora uma carreira de 27 anos fora para me arriscar no mercado. ... a gente precisa”

Ø Esperança que no final tudo acaba bem

“[...]eu tinha esperança que a coisa que ia passar e de uma certa forma ia se acomodar, a gente tem esperança, podia ser até que desse errado. Não é que eu não acredito que eles vão mandar embora, eles podem mandar embora, mas eu continuo acreditando que as coisas podem terminar de uma forma boa.” “[...] Primeiro que eu sempre acreditei e acredito, até hoje, que a Rede não vai ser liquidada.” [...]Porque eu acho que nós teremos algum aproveitamento de pessoal da Rede, as pessoas que ficarem, a experiência que elas adquiriram nesses anos todos de operação, eu acho que elas ainda têm muita coisa para oferecer...Eu tenho uma esperança de que vai haver uma solução, para o pessoal da Rede, no sentido de aproveitar em algum órgão, de alguma forma.

Ø Amor à ferrovia

“[...]Nosso trabalho é difícil, mas é gratificante. Qualquer prazer nos diverte” “[...]Primeiro por obrigação com a empresa, porque os governos passam e já estava na empresa há bastante tempo” 163

Ø O ambiente da empresa por conta da convivência com os colegas

“[...]Nosso trabalho é difícil, mas é gratificante. Qualquer prazer nos diverte” “[...]Eu tenho bom relacionamento com as pessoas. Eu sempre me relacionei bem nas áreas em que eu trabalhei. O caminho vir trabalhar na Rede, com as pessoas de quem eu gosto, é um prazer para mim.” “[...]você sabendo que as pessoas estão contando com você, com o seu trabalho. Isso, de uma certa forma, motiva. E, também, como eu disse, o ambiente.”

Quadro 21 A possibilidade de permanência na empresa Respondente Fala 1 “O mercado ainda não chegou ao nível de salário que a gente tinha em 89, por isso ainda estou aqui, senão, seria até obrigado a sair, porque baixaria meu padrão de vida.” 2 “Essa onda de demissão não foi novidade. A única diferença foi que quando entrei para a rede eu recebi a informação, que hoje é de até achar graça, que eu estaria aposentado duas vezes, a rede e REFER. Isso caiu por terra, quando [...]” 3 “O pai ferroviário, o avô ferroviário, faz com que eu tenha um carinho especial pela rede” 4 “Eu tenho que sobreviver” “Estamos resistindo e contando nosso tempo, até ele chegar normalmente, no meu caso, estou esperando ter direito a REFER. Esperando que dias melhores aconteçam para nós também, e lutando para que isso aconteça” 5 “Nosso trabalho é difícil, mas é gratificante. Qualquer prazer nos diverte eu tinha esperança que a coisa que ia passar e de uma certa forma ia se acomodar, a gente tem esperança, podia ser até que desse errado. Não é que eu não acredito que eles vão mandar embora, eles podem mandar embora, mas eu continuo acreditando que as coisas podem terminar de uma forma boa. E também um pouquinho de covardia, de não ter ousado” 6 “...eu dê continuidade ao que eu projetei que era me aposentar ferroviário”

7 “Primeiro que eu sempre acreditei e acredito, até hoje, que a Rede não vai ser liquidada. Depois, era meu sonho, sempre foi, meu pai era ferroviário, era um sonho de criança ser ferroviária como ele. E eu consegui isso. Então, ninguém ia me fazer sair daqui, eu ia apagar a luz.” 8 “Já tive oportunidade de sair da empresa...A gente não pode só pensar em carreira, tem que pensar em qualidade de vida, também. Tive essa oportunidade e achei melhor permanecer aqui” “Porque eu acho que nós teremos algum aproveitamento de pessoal da Rede, as pessoas que ficarem, a experiência que elas adquiriram nesses anos todos de operação, eu acho que elas ainda têm muita coisa para oferecer” “Eu tenho bom relacionamento com as pessoas. Eu sempre me relacionei bem nas áreas em que eu trabalhei. O caminho, vir trabalhar na Rede, com as pessoas de quem eu gosto, é um prazer para mim.” “...você sabendo que as pessoas estão contando com você, com o seu 164

trabalho. Isso, de uma certa forma, motiva. E, também, como eu disse, o ambiente. Eu tenho uma esperança de que vai haver uma solução, para o pessoal da Rede, no sentindo de aproveitar em algum órgão, de alguma forma.” 9 “Eu não pedi o PID porque não tinha tempo. Mas, eu ia, como uma imposição dos próprios colegas. Aqui na empresa, as pessoas estão muito desgostosas, então, elas querem sair e acham que você tem que sair. Elas não entendem que eu sempre gostei de trabalhar como ferroviário. Meu pai era ferroviário, meus tios, meu marido, minha família era ferroviária. Então, eu sou muito ativa, eu gosto muito das atividades que eu exerci. Então, em determinado momento houve pressão, por eu ter tempo de aposentar...Tudo que eu tenho foi graças a ferrovia. Eu consegui estudar, fiz provas para Rede. As pessoas não dão valor.” 10 “Eu permaneço na empresa por vários motivos. Aliás, o primeiro motivo, eu acho que eu investi muito tempo da minha vida na empresa.” “Quando você fica muito tempo numa empresa, você se especializa muito em determinada área. Em terceiro, eu acho, que era a conjuntura que nós vivíamos na época da privatização, que tinha dificuldades de alternativas. A tendência, quando você está estruturado, é não fazer uma grande mudança sem necessidade.” 11 “...não ia jogar fora uma carreira de 27 anos fora para me arriscar no mercado. ... a gente precisa” 12 “Primeiro por obrigação com a empresa, porque os governos passam e já estava na empresa há bastante tempo. Mas, aí, hoje, eu acho que é sujeira comigo eu sair sem a empresa me dar nada.”

6.3.6 - Uma Auto-avaliação que Revela a Singularidade dos Ferroviários

Cada um dos entrevistados procurou buscar em uma característica pessoal o suporte para os momentos difíceis que a empresa e seus empregados passaram. As narrativas a seguir revelaram um fio condutor entre a singularidade de cada empregado.

Ø A mesma perseverança dos pioneiros da ferrovia

“[...] Em primeiro lugar sou otimista e em segundo, sou perseverante. Se a gente tem um objetivo, tem que persegui-lo, se a gente não perseguir a gente não consegue nada em nenhuma vertente da vida.” “[...] Eu sou muito paciente e acredito em ficar aqui a vida inteira” “[...] Eu sou perseverante” “[...] Sou teimosa. A gente tem que ser teimosa, senão eles te destroem” 165

Ø A esperança no futuro:

“[...] Só se vive em insegurança geral. Mas, aqui, no aspecto da rede, eu acredito, realmente, que é confiança” “[...] Eu tenho esperança que as coisas vão melhorar, e acredito que vamos sair dessa situação” “[...] A esperança de que alguma coisa vai mudar. Como entrou um governo novo, a gente está com esperança que alguma coisa vai acontecer.” “[...] Eu não consigo acreditar que não vai ter um desdobramento da Rede, a menos que resolvam acabar com o transporte ferroviário”

Ø Gratidão à empresa

“[...] Tudo que eu tenho consegui pela empresa, foi meu emprego, tudo meu, tudo, tudo oriundo da Rede Ferroviária. Então, eu me sinto muito mal, com atual situação da empresa.” “[...] Tudo que eu tenho foi graças a ferrovia. Eu consegui estudar, fiz provas para Rede. As pessoas não dão valor.”

Ø Amor à empresa e à ferrovia

“[...] Amor à empresa e à ferrovia.” “[...] Se houver uma mudança na previdência eu, até vou me embora da empresa, mas vou obrigada, porque tem que ir. Eu gosto daqui.” “[...] Na realidade, eu diria a você que a principal característica nesse processo todo é o meu envolvimento com a Rede. Eu, na realidade, eu me sinto filho, dono, participante de uma empresa que eu acredito. Acho que isso é uma das principais coisas que me levam a não jogar a toalha. Ainda hoje, eu fico extremamente chateado e brigo quando alguém fala mal ou tem notícias com informações distorcidas da empresa, eu não aceito. Não aceito...”

As manifestações de gratidão, amor, perseverança e até uma certa teimosia revelam um envolvimento muito grande entre os ferroviários e a ferrovia, como o entrevistado 1 (um), que apesar de possuir um discurso racional, revela-se enredado pela empresa ao declarar: “[...] só se vive em insegurança geral. Mas, aqui, no aspecto da rede, eu acredito, realmente, que é confiança no que disse antes, nesse fim, com base no que eu te falei antes. Um fim que não vai ser antes do meu, nem do país. Até o fim do mundo foi primeiro que o da Rede” (o fim do mundo refere-se as previsões de Nostradamus para o fim do mundo em agosto de 2001). 166

Entretanto, o mais importante é que os trabalhadores da ferrovia como os pioneiros têm um sonho, como declarou a entrevistada: “[...] sou um pouco sonhadora. Acho que se a gente não sonhar, a gente não persegue”.

O sonho pertence ao “[...] puro reino das essências” (DARTIGUES, 1973, p. 23). A

RFFSA, como sonho, tem uma essência que permanece no corpo e espírito da organização.

Quadro 22 Uma auto-avaliação que revela a singularidade dos ferroviários Respondente Fala 1 “Só se vive em insegurança geral. Mas, aqui, no aspecto da rede, eu acredito, realmente, que é confiança no que disse antes, nesse fim, com base no que eu te falei antes. Um fim que não vai ser antes do meu, nem do país. Até o fim do mundo foi primeiro que o da Rede...Para a mim a empresa dura até o fim. Só vai terminar no fim. Um modo de dizer. A Rede acaba, mas só acaba no fim. No meu fim.” 3 “Eu sou muito paciente e acredito em ficar aqui a vida inteira” 4 “Em primeiro lugar sou otimista e em segundo, sou perseverante. Se a gente tem um objetivo, tem que persegui-lo, se a gente não perseguir a gente não consegue nada em nenhuma vertente da vida. Em terceiro lugar sou um pouco sonhadora. Acho que se a gente não sonhar, a gente não persegue” 5 “Tudo que eu tenho consegui pela empresa, foi meu emprego, tudo meu, tudo, tudo oriundo da Rede Ferroviária. Então, eu me sinto muito mal, com atual situação da empresa.” 6 “Amor à empresa e a ferrovia. Eu tenho esperança que as coisas vão melhorar, que acredito que vamos sair dessa situação” 7 “Sou teimosa. A gente tem que ser teimosa, senão eles te destroem” 8 “Eu sou perseverante” 9 “A esperança de que alguma coisa vai mudar. Como entrou um governo novo, a gente está com esperança que alguma coisa vai acontecer. Se houver uma mudança na previdência eu, até vou me embora da empresa, mas vou obrigada, porque tem que ir. Eu gosto daqui.” 10 “Eu não consigo acreditar que não vai ter um desdobramento da Rede, a menos que resolvam acabar com o transporte ferroviário” 11 “Essa característica é inerente a todos os ferroviários. A própria Rede Ferroviária, ainda como operadora,transmitia uma certa segurança para você porque era aquela empresa típica japonesa, nunca demitia ninguém. Você tinha sempre a certeza que você vinha trabalhar, que você tinha aqui uma família e que você, sempre, bem ou mal, poderia até ter situações em que você não estivesse muito bem perante a sua carreira, mas você sempre tinha gente para te acudir, para te atender. Então, eu acho que a característica é muito mais no sentido de você ter essa segurança no teu sangue pelo fato da Rede ter sido sempre normal para você.” 12 “Na realidade, eu diria a você que a principal característica nesse processo todo é o meu envolvimento com a Rede. Eu, na realidade, eu me sinto filho, dono, participante de uma empresa que eu acredito. Acho que isso é 167

uma das principais coisas que me levam a não jogar a toalha. Ainda hoje, eu fico extremamente chateado e brigo quando alguém fala mal ou tem notícias com informações distorcidas da empresa, eu não aceito. Não aceito...”

6.3.7 - A Cristalização da Empresa

Quando indagados se a empresa de alguma forma ainda representava a ferrovia no

Brasil, interpretou-se esse “ainda” com a conotação de uma “[...] brecha para a possibilidade de suas expectativas de avanços a cada momento de desencanto, à beira do abismo da descrença” (FRAGA, 2003, p. 7). Como uma pequena brasa de esperança daqueles que permaneceram na empresa.

Na verdade, a RFFSA em liquidação não tem como função executar transporte ferroviário. Como empresa em liquidação, suas metas são vender os ativos para saldar os passivos. No entanto, para a sociedade e seus empregados o passado mais recente da RFFSA não se transformou em um passado mais antigo e seu futuro, sem expectativas, não se torna presente. Assim, o movimento da síntese de transição não acontece.

Ser e tempo que permanecem na síntese de transição, para a fenomenologia, são a mesma coisa (FRAGA, 2003), portanto a empresa cristalizou-se no passado, um passado onde a missão era definida como a empresa ferroviária brasileira. Por isso que, muitas vezes, as pessoas trabalham com o mesmo cuidado com que trabalhavam antes da liquidação e apesar de reconhecer que a empresa está em liquidação, a afinidade com a ferrovia permanece, criando-se uma confusão como mostram as narrativas:

Eu não vou dizer para você que eu acho, eu tenho certeza que sim. Se você sair na rua, o nome mais marcante é Rede Ferroviária Federal S A, o nome que está marcado, a marca é Rede Ferroviária Federal, como a marca é FEPASA. Então, ela mesma em liquidação, acrescentaram a palavrazinha, Rede Ferroviária Federal, tracinho, em liquidação, mas isso não faz parte da 168

marca da Rede, não faz parte do emblema da Rede, do símbolo da Rede. A Rede, ainda é uma marca muito forte em todo Brasil, como algumas você, ainda tem, a Noroeste, Central da Brasil. A liquidação só é viva na Rede, para a sociedade ela é Rede Ferroviária Federal, graças a Deus;

Ninguém representa. Se não for a rede. Muitas vezes, a gente ainda houve falar, e vai ouvir falar durante muito tempo, que RFFSA tal e já é a concessionária que está fazendo aquilo. A rede tem uma afinidade muito grande com o transporte ferroviário, no nome Rede Ferroviária...Agora uma empresa em liquidação não pode representar nada;

“Eu acho que RFFSA é um nomezinho, são cinco letrinhas, que até pelo próprio logotipo dela, até pelo dois F, o próprio F, insinua ferrovia, trilho, de onde foi tirado o logotipo. Acho que é muito difícil, não representar ferrovia.”;

“Representa porque mesmo privatizada, as concessionárias usam o logotipo da rede. Está enraizado, é uma cultura, ninguém conhece FCA, se conhece Rede. A marca Rede que não acaba aqui, são mais de 50 anos da marca Rede.”;

“[...] vai extinguir sendo ferrovia”.

Os entrevistados foram muito enfáticos na defesa da RFFSA como empresa ferroviária, somente um dos entrevistados, em virtude de uma situação específica pois sua

área ganhou prestígio após a liquidação, nega essa condição. Contudo, não deixou de reconhecer que a ferrovia permaneceu por conta do nome.

De maneira alguma. A Rede é vendedora de bens e pagadora de seus passivos e obrigações. Numa enquete popular a Rede, sem dúvida, é enxergada como uma ferrovia, apesar dela não ser operadora, mas eu acho que a grande parte do seu capital humano não tem mais essa característica de ferroviário.

6.3.8 - A Questão da Marca RFFSA

A marca RFFSA, como narra o entrevistado 5, tem a imagem do trilho até no logotipo, a missão retratada na palavra. Compara-se a dificuldade existente para extinguir a marca

RFFSA com a dificuldade que existe quando há uma troca no nome de uma rua, pois existe para as pessoas todo um referencial histórico, que precisa de muito tempo para ser substituído como narrou o entrevistado 2: “[...] a marca RFFSA, assim como a marca Central do Brasil, 169

as marcas Leopoldina Railway ou Oeste de Minas, ainda, representam alguma coisa para o

Brasil, que tem história, como preservação ferroviária e tudo mais”.

A marca que resiste ao tempo e à extinção também cria mal-entendidos como o seguinte relato:

As pessoas confundem muito, até hoje, CBTU, FLUMITRENS e as pessoas acham que é uma coisa só. Isso não vai ser esclarecer nunca. A gente tem que explicar que está em liquidação, quando as pessoas ligam oferecendo serviços, a gente fala que quem transporta, agora, é a concessionária

O entrevistado 10 fez uma avaliação interessante dos pontos positivos e negativos que a marca RFFSA pode insinuar: “[...] a marca Rede tem coisas positivas e negativas. O positivo é a história, o negativo a própria administração ao longo do tempo com todos os seus percalços, que acabou chegando a essa situação. É uma marca de duas faces.”

Quadro 23 A cristalização da empresa e a questão da marca RFFSA Respondente Fala 1 “Ninguém representa. Se não for a rede. Muitas vezes, a gente ainda houve falar, e vai ouvir falar durante muito tempo, que RFFSA tal e já é a concessionária que está fazendo aquilo. A rede tem uma afinidade muito grande com o transporte ferroviário, no nome Rede Ferroviária.” “Agora uma empresa em liquidação não pode representar nada. Para mim a empresa dura até o fim. Só vai terminar no fim. Um modo de dizer. A Rede acaba, mas só acaba no fim. No meu fim.” 2 “A marca RFFSA, ainda é vista como sistema de transporte ferroviário, agora, a rede não representa absolutamente nada de transporte, nem de carga nem de passageiros, nem de carrinho de mão, acabou. A marca RFFSA, assim como a marca Central do Brasil, as marcas Leopoldina Railway ou Oeste de Minas, ainda, representam alguma coisa para o Brasil, que tem história, como preservação ferroviária e tudo mais” 3 “Não. Ela não representa, mas deveria. A marca RFFSA está se esvaziando. O que é até natural” 4 “Acredito que a Rede ainda representa a ferrovia no Brasil. Acredito. Nós, aqui, estamos fazendo a fiscalização do patrimônio. Já fizemos a fiscalização da concessão” 5 “Eu acho que RFFSA é um nomezinho, são cinco letrinhas, que até pelo próprio logotipo dela, até pelo dois F, o próprio F, insinua ferrovia, trilho, de onde foi tirado o logotipo. Acho que é muito difícil, não representar ferrovia. As pessoas confundem muito, até hoje, CBTU, FLUMITRENS e as pessoas acham que é uma coisa só. Isso não vai ser esclarecer nunca. A gente tem que explicar que está em liquidação, quando as pessoas ligam oferecendo serviços, a gente fala que quem 170

transporta, agora, é a concessionária.” “...vai extinguir sendo ferrovia” 6 “Representa porque mesmo privatizada, as concessionárias usam o logotipo da rede. Está enraizado, é uma cultura, ninguém conhece FCA, se conhece Rede. A marca Rede que não acaba aqui, são mais de 50 anos da marca Rede.” 7 “A RFFSA ainda representa a ferrovia no Brasil e vai representar sempre. Acho, até hoje, se você chegar na gare da Central do Brasil, eles acham que o trem de transporte urbano é da Rede Ferroviária e, faz muitos anos que não é mais a Rede. Até hoje, é a Rede Ferroviária, realmente, a marca não vai mudar.” 8 “Ela ainda é solicitada para fornecer para realizar trabalhos e como fonte de informação. Diversos órgãos, como o Ministério do Transportes e outros órgãos quando precisam de informação sobre ferrovia se dirigem a Rede. Temos um acervo muito grande...” 9 “A Rede ainda representa, porque ela é uma empresa forte, isso não se apaga, mesmo em liquidação. A marca muito forte, todo lugar tem ferrovia. Foi uma questão política que acabou, mas ela pode voltar. Eu acredito que ela vai voltar.” 10 “Eu acho que no momento não. Agora se isso vai ser revertido. Isso é uma questão importante, a liquidação da Rede não é uma coisa simples, indiscutivelmente...” “A marca Rede tem coisas positivas e negativas. O positivo é a história, o negativo a própria administração ao longo do tempo com todos os seus percalços, que acabou chegando a essa situação. É uma marca de duas faces.” 11 “De maneira alguma. A Rede é vendedora de bens e pagadora de seus passivos e obrigações. Numa enquête popular a Rede, sem dúvida, é enxergada como uma ferrovia, apesar dela não ser operadora, mas eu acho que a grande parte do seu capital humano não tem mais essa característica de ferroviário.” 12 “Eu não vou dizer para você que eu acho, eu tenho certeza que sim. Se você sair na rua, o nome mais marcante é Rede Ferroviária Federal S A, o nome que está marcado, a marca é Rede Ferroviária Federal, como a marca é FEPASA. Então, ela mesma em liquidação, acrescentaram a palavrazinha, Rede Ferroviária Federal, tracinho, em liquidação, mas isso não faz parte da marca da Rede, não faz parte do emblema da Rede, do símbolo da Rede. A Rede, ainda é uma marca muito forte em todo Brasil, como algumas você, ainda tem, a Noroeste, Central da Brasil. A liquidação só é viva na Rede, para a sociedade ela é Rede Ferroviária Federal, graças a Deus.”

171

6.3.9 - O Sentido de Ser Ferroviário

Eles desvelaram o amor e o orgulho de pertencer a ferrovia com a declaração: “[...]eu me vejo como ferroviário e me orgulho disso”. Também há o amor fruto do carisma que a ferrovia exerce mundialmente, como um transporte que significa desenvolvimento e pioneirismo. Para exemplificar a força da ferrovia no imaginário pode-se verificar pela internet a quantidade enorme de sites que visam a preservação ferroviária, além de organizações não governamentais constituídas por pessoas que nunca foram trabalhadores da ferrovia.

Dentro do contexto do imaginário brasileiro, outro exemplo do papel da ferrovia se mostra em uma matéria publicada no caderno Boa Chance do jornal O Globo em 14 de julho de 2002 (O GLOBO, 2002), em que se divulgava a abertura de empregos em agências reguladoras do governo e que tinha como fundo a imagem da velha Maria Fumaça.

O entrevistado 4 (quatro) declarou que a resistência dos empregados da RFFSA é devida a esse amor à ferrovia:

Vejo-me como ferroviário, a gente tem um amor pela ferrovia. A gente sem nenhum investimento, já perto do processo de desestatização, e a Rede, ainda, estava batendo recorde de transporte. Então, isso só pode ser explicado por esse amor que o ferroviário tem. Porque, senão, não bateria recorde, não iria resistir até hoje. Se a gente não ligasse, deixasse para lá, a gente não gritaria com os meios que a gente tem, a associação, os políticos, que a gente, agora, descobriu que dá certo, para reverter o quadro.

Percebeu-se que essa resistência não foi só do empregados da RFFSA em liquidação, foi também daqueles que reconhecem o valor do transporte ferroviário, o que pode ser exemplificado na ata da assembléia geral extraordinária de 29 de novembro de 2002, na qual o Procurador Regional da República, Luís Cláudio Pereira Leivas, fez declarações contundentes sobre a necessidade de manter a RFFSA, por ser “carne e sangue do Brasil”

(ANEXO E). 172

A maioria afirmou que se via como ferroviários até “[...] pra sempre”. Um entrevistado não foi tão afirmativo ao declarar: “[...] já me vi mais. Hoje, sou imobiliário.”. Compreendeu- se a reação desse entrevistado pois, com a liquidação sua área passou a ter uma maior projeção dentro da empresa por ser fonte de receita, uma situação muito específica. Essa postura pôde mostrar que os empregados da RFFSA, em liquidação, foram capazes de absorver novos serviços de forma a preservar o seu emprego. Entretanto, pôde revelar que eles foram capazes de se engajar tão fortemente em outra atividade, que puderam até mesmo deixar de ser ferroviários, desde que a RFFSA fosse preservada, apesar de tudo.

Como contraponto a aqueles que podem dizer que o ferroviário da RFFSA é um acomodado, que quer apenas manter seu emprego, apresentou-se o entrevistado 8 com sua história de vida, uma amostra importante do que é capaz de fazer um ferroviário por amor a ferrovia, um amor que passa de pai para filho:

Eu me vejo como ferroviário. Eu concluí o curso de engenharia civil e, logo depois, fui fazer Mestrado em transporte em São Carlos, na USP, e eu tinha a oportunidade de fazer o Mestrado em transporte, lá mesmo, só que a especialização de lá era a construção de estradas e aeroportos e não era o que eu queria. Eu queria fazer o Mestrado em transporte ferroviário e, na ocasião, o lugar que eu conheci e que alguns colegas já tinham ido fazer lá, recomendaram e gostaram; foi a Universidade Federal da Paraíba em Campina Grande. Eu saí de São Carlos, interior de São Paulo, fui para a Paraíba, porque lá existia um Mestrado em transportes com ênfase em transporte ferroviário...Eu creio que o fato do meu avô, por parte de mãe, ter trabalhado na Estrada de Ferro Santos-Jundiaí e meu tio, irmão da minha mãe, também, ter trabalhado nessa ferrovia, fez com que eu desde pequeno tivesse contato com coisas de ferrovia. Meu avô, até antes...

6.3.10 - Outras Considerações

A maioria dos ferroviário da RFFSA é bem qualificada, quando comparada com outros empregados de outras ferrovias como relatou um entrevistado, que sempre ocupou diversos cargos na hierarquia da empresa: 173

Eu me senti bastante gratificado ao conversar com o diretor de uma das concessionárias, que disse que o funcionário da Rede era muitíssimo bem preparado, que ele considerava o funcionário da Rede melhor técnico que o ferroviário da Vale do Rio Doce, porque o empregado da Rede não tinha essa dimensão da sua capacidade de trabalho, porque o funcionário da Vale era muito bom, altamente capazes, etc... mas eles sabiam trabalhar com muito dinheiro e o ferroviário da Rede era altamente técnico, tanto quanto, mas só que sabia trabalhar com pouco dinheiro, sabia tirar água de pedra. Esse foi o elogio desse diretor de concessionária. Para mim foi gratificante ouvir, não porque não achasse isso, o funcionário da Rede com poucos recursos fazia chover, isso em todos os setores da empresa.(entrevistado 12)

Entretanto, o empregado da RFFSA que passou por um longo processo de transformação de sua empresa, até sua liquidação encontra-se com um sério problema de motivação e crise de autoridade, pois não há nenhum programa de recursos humanos para atender os empregados, nem reajustes salariais, bem como não existem sentidos comuns entre os liquidantes e os empregados. O relato de um entrevistado exemplifica parte desse problema:

Hoje, na minha opinião, a Rede tem um corpo técnico maravilhoso. O que ela tem, também, é um corpo técnico extremamente desmotivado e desconfiado, isso é que é o grande problema. O corpo técnico, não acredita porque, na realidade, construíram isso. Então, os funcionários não acreditam nas políticas de governo, não acreditam na direção da empresa, não acreditam nos seus chefes, porque viveram períodos, extremamente, tenebrosos, períodos de mentira, períodos de serem apunhalados pelas costas, etc...., esse é o grande problema. Agora, nós ainda temos, hoje trabalhando dentro da empresa, nesse quadro altamente reduzido, pessoas altamente capacitadas, muito preparadas para enfrentar a empresa. Continuamos tendo, não é essa história que os melhores foram para a ANTT etc... e o que ficou na Rede é a sobra, isso é mentira, nos temos em todas as áreas pessoas. Eu falo isso com a experiência e conhecimento da casa. Na realidade, botaram todo mundo no paredão e de frente para essas pessoas um monte de metralhadoras, esperando que essas pessoas fossem para a rua. (entrevistado 12)

Os objetivos de uma organização são relacionados com os resultados previstos, entre o objetivo da atual atividade da empresa nessa situação e a própria liquidação. Engajados nesses objetivos estão tanto o grupo que administra quanto os empregados que resolveram ficar, só que o sentido que move os liquidantes e o empregados da empresa são divergentes. 174

O sentido do liquidante é atingir os objetivos propostos dentro das metas e de acordo com a burocracia governamental. Especificamente, o sentido do liquidante está relacionado com a extinção.

Em contraste, o sentido que move as ações dos empregados que resolvem permanecer na empresa, até o final, é o sentido de continuar a fazer bem feito, a dedicar-se a zelar pela empresa até o fim.

Quadro 24 O sentido de ser ferroviário Respondente Fala 1 “Sim.” 2 “Sim.” 3 “Sim.” 4 “Vejo-me como ferroviário, a gente tem um amor pela ferrovia. A gente sem nenhum investimento, já perto do processo de desestatização, e a Rede, ainda, estava batendo recorde de transporte. Então, isso só pode ser explicado por esse amor que o ferroviário tem. Porque, senão, não bateria recorde, não iria resistir até hoje. Se a gente não ligasse, deixasse para lá, a gente não gritaria com os meios que a gente tem, a associação, os políticos, que a gente, agora, descobriu que dá certo, para reverter o quadro.” 5 “Sim.” 6 “Sou ferroviário. Minha família é de ferroviários e pretendo me aposentar como ferroviário.” 7 “Claro que me vejo como ferroviária, pra sempre.” 8 “Eu me vejo como ferroviário. Eu concluí o curso de engenharia civil e, logo depois, fui fazer Mestrado em transporte em São Carlos, na USP, e eu tinha a oportunidade de fazer o Mestrado em transporte, lá mesmo, só que a especialização de lá era a construção de estradas e aeroportos e não era o que eu queria. Eu queria fazer o Mestrado em transporte ferroviário e, na ocasião, o lugar que eu conheci e que alguns colegas já tinham ido fazer lá, recomendaram e gostaram; foi a Universidade Federal da Paraíba em Campina Grande. Eu saí de São Carlos, interior de São Paulo, fui para a Paraíba, porque lá existia um Mestrado em transportes com ênfase em transporte ferroviário.” “Eu creio que o fato do meu avô, por parte de mãe, ter trabalhado na Estrada de Ferro Santos-Jundiaí e meu tio, irmão da minha mãe, também, ter trabalhado nessa ferrovia, fez com que eu desde pequeno tivesse contato com coisas de ferrovia. Meu avô, até antes...” 9 “Sim. Tudo que eu tenho foi graças a ferrovia. Eu consegui estudar, fiz provas para Rede. As pessoas não dão valor.” 10 “Eu me vejo como ferroviário, sem dúvida, metade da minha vida passei ligado à ferrovia, isso não tenho dúvida.” 11 “Já me vi mais. Hoje sou imobiliário.” 175

12 “Eu me vejo como ferroviário e me orgulho disso. Acho que a Rede foi para mim uma empresa fantástica e acho que eu dei à Rede tudo que eu podia dar, eu posso dar mais coisa, porque eu ainda não saí da Rede. Embora eu seja até crítico, etc... achando que eu podia ter feito mais coisa, na realidade o que eu podia fazer na Rede eu fiz. Tanto briguei por ela, desde o meu início de vida briguei por ela, briguei com meus chefes, sempre de uma forma construtiva, mas tive oportunidade de brigar com todos os meus chefes, por incrível que pareça. Mas todos os meus chefes, na verdade, acabaram aceitando minhas ponderações e minhas brigas nunca representaram, para eles, motivos de me tirar de serviço. Nunca não, quando eu trabalhei em Campos, eu tive problema com um substituto”

6.3.11 – Síntese dos Resultados das Entrevistas

A partir das entrevistas o vivido se manifestou nas percepções dos empregados que:

· Conhecem e reconhecem o contexto social e econômico do transporte

ferroviário no Brasil, enfatizando a importância da ferrovia para o

desenvolvimento do país;

· Lembram dos serviços prestados pela ferrovia às comunidades, como o

transporte de passageiros no interior, demonstrando orgulho de pertencer;

· Transparece desconforto e expectativa quanto à atual situação da ferrovia

brasileira, como cidadãos;

· Expressaram saudosismo, somado a um sentido de família, que existia na

empresa antes da privatização, permanecendo o sentido do co-humano;

· O processo de liquidação foi percebido pelas pessoas como uma exclusão do

mundo da vida, manifestado nos sentimentos de indignação quanto a falta de

transporte ferroviário em um país de dimensões do Brasil;

· O processo de liquidação não atingiu a imagem que os empregados têm da

empresa acolhedora. No entanto, há uma indiferença quanto a organização do

trabalho e a gerência 176

· Os empregados permanecem na empresa por:

o achar o salário ainda compensador em relação ao mercado;

o Força dos vínculos familiares;

o Ter um projeto de vida que inclui a aposentadoria pela RFFSA;

o Ter esperança que no final tudo acaba bem;

o Amor à ferrovia;

o Ambiente de convivência com os colegas é agradável.

· A singularidade dos ferroviário se mostra:

o Na perseverança dos pioneiros;

o Na esperança no futuro;

o Na gratidão à empresa;

o No amor à RFFSA e à ferrovia.

Assim, a partir da riqueza de vivências apresentadas e da enorme quantidade de informações, pode-se apreender o sentido de ser ferroviário e obter os aprendizados que decorrem do processo ao qual a empresa e seus empregados foram submetidos.

6.4 - As Possibilidades para Novas Pesquisas

Os dados obtidos a partir dos questionários e das entrevistas podem ser utilizados por diversos outros estudos organizacionais. Eles estão disponíveis para pesquisadores que queiram utilizá-los, pois a ferrovia carece de muitos estudos humanos e sociológicos.

Em face da existência de vínculos familiares entre seus empregados, a empresa poderia ser considerada em pesquisas que buscassem organizações, que contém núcleos familiares em seus quadros. 177

Apresentam-se como sugestões para novas pesquisa:

· A contribuição da ferrovia para a formação da cultura brasileira e suas

influências na urbanização da cidades formariam um belo estudo sociológico.

· As condições de trabalho, as motivações e a saúde dos ferroviários que

permaneceram na empresa sob intenso stress.

· A situação dos empregados demitidos de forma a realizar uma avaliação dos

programas da desestatização.

· Buscar a compreensão da atitude dos empregados que permaneceram na

empresa, mesmo com tempo para se aposentar. 178

Capítulo 7 - CONCLUSÃO

Após a posse do presidente Luis Inácio Lula da Silva, encontra-se em debate nos diversos setores de infra-estrutura do governo qual o verdadeiro papel das agências reguladoras, em face das deficiências que o modelo regulatório apresentou no setor energético e de telecomunicações.

No setor de transportes, as agências reguladoras existentes também vêm enfrentando resistências, em especial na atual conjuntura, em que até o transporte aéreo passa internacionalmente por dificuldades, o que agrava a situação dos transportes no Brasil.

Acrescente-se o desafio apresentado por levantamentos recentes sobre o sistema rodoviário nacional, que revela a precariedade de inúmeras rodovias, carentes de manutenção ou recuperação, exigindo vultosos recursos. É muito provável que no modal ferroviário surja uma parceria entre o público e o privado, já que a iniciativa privada não possui o capital e tampouco as garantias de financiamento necessárias para os altos investimentos indispensáveis ao desenvolvimento do país, nesse setor.

Esses fatores levam a concluir pela relevância deste estudo em termos de oportunidade, tendo em vista que ele pode contribuir para revigorar as discussões a cerca de investimentos e soluções de transporte, para um país que deseja e precisa escoar sua produção e exportação.

Os aspectos legais, técnicos e procedimentais da liquidação, apesar do clima inevitavelmente desconfortável decorrente da solução adotada, transcorrem normalmente. 179

Os resultados do estudo revelam que as características e, em especial, as posturas manifestas pela expressiva maioria dos empregados é o ponto chave para o andamento adequado dos trabalhos de liquidação, por mais incoerente que essa conclusão possa parecer.

Características como, orgulho de pertencer, amor pela “arte da ferrovia”, a empresa como parte integrante da vida de cada um, a perseverança, a gratidão à empresa e a esperança no futuro, estimulam os que se mantém na empresa a zelar por todos os processos e procedimentos até o fim.

Da mesma forma, atitudes como respeito pela missão organizacional, que assume a amplidão de missão nacional de serviço público com muitos componentes sociais, motiva os funcionários a não abandonar a sua causa até o encerramento legal dos trabalhos. Os depoimentos revelam a lealdade a esses ideais nacionais e a profunda admiração pela organização, chegando, em muitos casos, à paixão pelo ofício, como “a locomotiva que carrega uma energia que vai deixar um legado histórico” a espera de novas soluções do mesmo porte e sentido social.

Neste ponto, começam a emergir os aprendizados, dessa vivência crítica para os empregados que permanecem e que são valiosos para o estudo da gestão.

O primeiro deles é a surpreendente complexidade de emoções envolvidas, em contraste com a variedade de soluções que os empregados foram encontrando para administrar suas vidas, como profissionais e como pessoas, sem optar por abandonar seus postos de trabalho, mesmo sob os argumentos pouco animadores e as tensões decorrentes de uma liquidação, decidindo-se por ficar até o fim.

Em continuidade, os resultados da pesquisa revelaram raros casos inícios de conformismo ou certa alienação. Para a maioria expressiva, a experiência se transformou em 180

um desafio, porém, não livre de tensões que exigem adaptabilidade, flexibilidade, criatividade, teste de limites de tolerância. Uma verdadeira revolução de atribuições e aquisição de novos conhecimentos e práticas, tais como: avaliações e regularizações imobiliárias, leilões, locação e alienação de bens, controles de processos judiciais, negociação de acordos judiciais, especialização em cálculos trabalhistas, atendimento aos pensionistas e aposentados e fiscalização dos bens operacionais arrendados.

Os resultados do estudo confirmaram a RFFSA como uma ferrovia que possui um grande carisma, que faz parte do fenômeno mundial de amor à ferrovia. A história leva a concluir que esse forte sentimento de admiração e pertencimento deu visibilidade a pessoas determinadas, pioneiros capazes de enfrentar a selva, sonhadores, mas idealizadores de ação, que dedicaram toda uma vida à construção de uma estrada de ferro, como é possível exemplificar tanto com personalidades como o Barão de Mauá e de engenheiros como

Cristiano Ottoni, empenhados em transportar com eficiência, apesar das ingerências políticas e dos parcos recursos.

Analisando o nome da empresa foco deste estudo - Rede Ferroviária Federal S A - verifica-se que ela traz em seu próprio nome a palavra rede, o que revela a sua origem, pois foi fundada a partir de várias ferrovias. Em termos organizacionais, poderia ter sido uma empresa de vanguarda se tivesse conseguido preservar e implementar a organização em rede,

à época um conceito nada rotineiro em contraste com o que é percebido atualmente nos mais diversos ramos de atividades empresariais. Integrando, mas preservando as diferenças culturais e regionais das ferrovias articuladas, poderia minimizar conflitos de poder, evitando, talvez, que lhe viesse a ser imposta uma privatização.

Após a leitura de sua história, enriquecida por depoimentos sobre uma realidade vivida, é possível dizer que a empresa cumpriu um papel social muito importante, ao realizar 181

transporte em ramais ferroviários considerados deficitários, mas que atendiam a populações interioranas que tinham no trem a sua única opção de transporte. Além disso, ela também desempenhou um outro papel social fundamental, ao fazer transporte de água e ao favorecer oportunidades de trabalho aos flagelados pelas secas no Nordeste do país.

A tendência cultural brasileira ao paternalismo, somada à uma política do Estado de bem-estar social, poderia ser considerada como razão fundamental ao estilo de gestão praticado e que incluía o fornecimento de moradia aos funcionários, formando núcleos que deram origem a vilas, bairros e cidades. Acrescente-se as escolas e oficinas que formaram especialistas, os quais contribuíram significativamente para desenvolver a engenharia brasileira e deixando, nos ferroviários que permaneceram na RFFSA em liquidação, a sensação de segurança do pai provedor.

Essa postura de gestão demonstra, sobretudo, a relevância do humano em sua história, mas não limitada à sua clientela interna, ao contrário, preocupada com a população, com a nação. É possível que novos estudos revelem que considerar apenas paternalismo e idealismo as referidas características da organização seja uma conclusão apressada e que esse modelo estratégico de gestão, em um território da extensão do país, tenha sido muito inteligente.

Os comentários anteriores objetivaram situar este estudo de caso no contexto nacional e organizacional em busca de conclusões, com base na cultura e na trajetória histórica, a partir de raízes que pudessem favorecer a compreensão da questão do humano no processo de liquidação.

A partir de ações e reações das pessoas que continuam na empresa, mesmo que não haja perspectivas profissionais futuras para elas como empregadas na RFFSA, o estudo descreveu posturas assumidas no exercício das atribuições, em geral novas e até diversas da formação profissional das pessoas. Essa atitude visou a apreensão do sentido dessas vivências 182

conforme circula na empresa, em termos de relações entre as pessoas, nesse fenômeno organizacional de liquidação que, embora se mostre por si mesmo, mostra-se veladamente.

Neste ponto, é possível dizer que a metodologia qualitativa adotada considerando a indistinção entre sujeito e objeto favoreceu “des-cobrir” esse velamento. Essa linguagem fenomenológica faz aparecer a diferença entre a descoberta científica e a fenomenológica: enquanto a primeira se refere ao encontro de algo novo, em decorrência da aplicação de um método, de um caminho a ser seguido e proposto a priori, a abordagem fenomenológica considera o fenômeno no mundo já aí e que não precisa do pesquisador para estar aí. O papel do pesquisador é apenas o de fazer ver o que se mostra por si mesmo, mas veladamente.

As percepções apreendidas foram não somente discutidas de forma participativa com e entre os sujeitos da pesquisa, mas foram situações e experiências convividas desde a fase exploratória até a conclusão. Isso não somente em virtude da condição do autor como funcionário da empresa, mas, especialmente, em decorrência da oportunidade de reflexão que este trabalho proporcionou. Cabe destacar, nesse convívio intenso – em que o papel do autor como funcionário se ampliou para o de pesquisador, articuladamente com os colegas – a possibilidade de resgatar a auto-estima que o processo de autocrítica, implicado na metodologia desta pesquisa, pôde proporcionar aos envolvidos.

O processo de liquidação que exclui a organização do mercado foi percebido pelas pessoas como uma exclusão de cada um do mundo da vida, isto é, as pessoas passaram a perceber-se como o ser da organização. Esse sentimento legítimo revelou-se nos depoimentos que manifestaram indignação diante da falta de transporte ferroviário, em um país de grande extensão territorial, com precariedade de transportes, mas que segue na esperança de que os novos governantes dediquem um maior cuidado a esse modal de transporte. 183

No processo de desestatização, o ferroviário sentiu-se tratado dentro da política de recursos humanos como um mero fator, que deveria ser reduzido como qualquer outro recurso material, para atender à abstração de um indicador de desempenho (tku/empregado).

Vale lembrar que, no documento elaborado pelo Banco Mundial (THE WORLD

BANK, 2000) e consultado neste estudo - porque descreve o trabalho efetuado na RFFSA relativo à privatização, percebe-se uma desvinculação da ação processual quanto à relevância do humano, devido ao estilo de atribuição aos chamados “grupos” na direção dos programas a serem executados, uma forma de facilitar um discurso pré-estabelecido, a partir de um quase anonimato, o chamado símbolo ilusionismo, de acordo com Gregori, citado por Fraga (2003).

O que o referido autor quer dizer é que os procedimentos e processos são explícitos, mas as origens das decisões e suas intenções são veladas.

Observa-se que o documento consultado não traz qualquer indício de que tenha sido questionado pelos chamados “grupos”, por exemplo, quais as competências necessárias para a operação ferroviária, aspectos culturais ou históricos envolvidos ou possíveis conseqüências das medidas a serem tomadas. Não há vestígios de preocupação com a relevância do humano, que dirá sobre sofrimentos decorrentes que recairiam sobre milhares de famílias.

Entretanto, no estudo realizado, o empregado da RFFSA em liquidação não atribuiu à empresa – RFFSA - a responsabilidade pelos acontecimentos. O que se mostra no fenômeno de liquidação é cuidado, é sentimento de gratidão à empresa e uma crença de que o processo de liquidação será revertido, em contraponto com o desprezo ao discurso de dirigentes de que a empresa será extinta. Mas esses sentimentos não são sinônimos de mera emoção e ingenuidade, é possível ler no sentido dos depoimentos a consciência de que o papel da empresa e o que ela representou para as pessoas, empregados e usuários, não se liquida por decreto. 184

1. Os depoimentos dos pesquisados revelaram aprendizados em diferentes

dimensões de relações, a saber: De cada um com a empresa como empregado

>> seus direitos, deveres e expectativas, tais como adaptação às novas funções

na liquidação, participação da empresa no projeto de vida e crença na

manutenção do emprego;

2. Dos empregados entre si como colegas >> envolvidos em uma mesma cultura,

com um sentimento comum de pertencimento, como membros de uma

organização e de uma sociedade à qual prestam serviços que são

centenariamente reconhecidos;

3. De cada empregado consigo mesmo como pessoa >> em uma situação de vida

peculiar> a empresa como parte de sua vida, recorrentemente como tradição

familiar, como uma “herança” de valores, como uma história viva;

4. De cada um consigo mesmo como profissional >> em um processo de

liquidação, dramático, em alguns momentos implicando decisões irreversíveis

como afastamento ou cotidianas reações desde tolerância e acomodação,

podendo chegar à submissão ou rebeldia.

5. De cada um e de todos como cidadão >> diante do papel social da empresa

para a população e a economia nacional, tanto no sentido de auto-análise como

profissional e de autocrítica como pessoa, convivendo em uma mesma

situação.

A cada um desses momentos dimensionais correspondeu uma retomada de cada um dos envolvidos, para situar-se e re-situar-se permanentemente, o que a fenomenologia considera requisito do ser. 185

Para poder ser é preciso estar situado, e esse é o aprendizado humano de cada momento vivido que pode transformar as pessoas e suas organizações (FRAGA, 2003, p. 19).

Descuidar-se dessa possibilidade permanente na gestão é reduzir as organizações a operações para resultados, ignorando-se as razões de sua existência e as implicações de suas ações, é abdicar da capacidade de realizar de uma leitura crítica de ações e omissões.

Os resultados revelam que os participantes demonstraram flexibilidade, capacidade de aprender e uma compreensão de que a vivência deles têm valor. Desse sentimento de que permanecer está valendo a pena devido, em especial, ao autoconhecimento e aprendizado, é uma conclusão que abre perspectivas para os mesmos enquanto pessoas, na sociedade e enquanto profissionais, no mercado.

Entre os aprendizados que esta pesquisa proporcionou, além dos já comentados, é possível distinguir os seguintes:

· Habilidades para inserção em situações tensas, a fim de apreender a essência

da problemática vivida, é fundamental na gestão de pessoas;

· Desenvolvimento de disposição para ouvir e acolher o outro em situações

críticas, é básico em um processo de liquidação;

· O exercício do diálogo, franco, verdadeiro, autêntico, reforçou os laços entre as

pessoas, para se disporem a produzir até o final;

· A compreensão de que cultura nacional e organizacional são enredadas, não

significa dizer que cada uma delas não tenha peculiaridades, ao contrário,

perceber o que é próprio de cada âmbito, é o que contribui para compreender o

todo; 186

· Um grave erro é fracionar a organização em grupos despersonalizados, como

aconteceu no documento consultado (THE WORLD BANK, 2000), os quais

ignoraram a presença do humano, a partir do momento em que eles próprios

foram tratados com o mesmo descaso do patrimônio: isto é, abandonados;

· As pessoas que se mantiveram produzindo e embora reconhecendo sua

situação dramática, tomaram a liquidação como uma agressão à organização,

como desmantelamento de uma instituição nacional, por uma questão de

cidadania e, de acordo com essas pessoas, por uma questão de amor. A força

da cultura centenária, da qual se sentem parte integrante, os manteve ativos,

flexíveis, criativos, engajados. Esse patrimônio intangível foi a força que os

moveu com profissionalismo, até o fim;

· Percebeu-se entre aqueles que se dedicam intensamente à empresa nesses

momentos críticos, que existem raízes ferroviárias que foram geradas na

infância. Hoje, o ferroviário mantém vivo o desejo de pertencer à ferrovia, de

prestar-lhe serviço como seu pai e/ou avô, não somente por tradicionalismo ou

hábito, mas devido à laços que revelam valores como a crença no serviço como

uma missão;

· O ser ferroviário que historicamente suporta o desbravamento e as

adversidades se mostra naqueles que decidiram continuar na empresa. Alguns

manifestando resignação, outros submetidos a um poder decisório que gerou

medo, mas a presença dos que lutam até o fim manifestam expectativas, que

uma leitura fenomenológica chamaria de um saber de “algo mais antigo” do

que o vivido por cada um e que “sabe”, no final tudo pode acabar bem, porque

não acaba. 187

Na verdade, o que se conclui é que a interpretação de rede por esses empregados não é limitada a um tempo e a um espaço organizacional definidos, porque é tanto uma presença histórica quanto uma dinâmica atemporal, não é algo que nasce e morre, mas em permanente transformação. Locomover e servir são reconhecidos pelos que manifestam sua decisão consciente de permanecer, como necessidade inerente ao humano e essa é a grande motivação, pertencer a uma “locomotiva” em ação no mundo da vida.

Em que pese a paixão encontrada nos depoimentos analisados, não se percebe pieguice ou mero saudosismo para minimizar a perda ou subsidiar a auto-estima. Se há por um lado, reconhecimento amargo do abandono de grande parte do patrimônio com o processo de liquidação - o qual é considerado integrante da história nacional – e, conforme este estudo descreveu e comprovou com base em outros estudos, por outro, não há ausência de autocrítica, em especial quanto à benevolência na gestão.

A percepção de rede como estrutura viva, mais compreensiva do que uma organização que se constitui e que é liquidada, com um espírito de inserção tão amplo quanto o território e tão profundo quanto a cultura, com seus valores fundamentais é interpretado como um fenômeno que não morre. É, na verdade, visto como um espírito que permanece por ser o sonho dos que amam a ferrovia e que a vivem como um saber e um poder de articulação. Essa

é a concepção de sujeito fenomenológico: um poder de articulação (FRAGA, 2003, p.6).

Essa compreensão de rede que circula nos depoimentos analisados e manifesto no orgulho de pertencer, essa visão da ferrovia como algo único, próprio, que a palavra rede ajuda a clarificar, foi possível apreender com uma leitura fenomenológica dos depoimentos e diálogos.

A compreensão de tempo cronológico ou de tempo histórico, embora muito importantes para o entendimento dos processos implicados na liquidação, não foram 188

suficientes para descrever o sentido dessas vivências, isto é, sua orientação atemporal e a sua consciência social. Não possibilitariam encontrar nos depoimentos a questão do passado que não deixa de existir, mas que, também, não existe apenas como memória e, sim, como uma vivência remota que o mundo “já aí” da fenomenologia oferece a todo o ser que é lançado a ele, no qual o pesquisador se inclui.

O que importa na finalização desse estudo é o reconhecimento das implicações do enredamento homem e mundo, que por um lado, leva à conclusão de que a reconstrução da realidade pode representar um passo importante para este estudo, e por outro, o que a etapa exploratória da pesquisa de campo constatou, a de que “ela não é realidade da mesma”. A realidade é sempre transbordante e se retrai atrás de cada interpretação e de cada teoria construída. Além disso, o filosofar, segundo Muraro e Boff, inclui uma atitude de humildade diante dessa constatação, porque a realidade “desborda” (2002, p. 69).

Esse alerta encaminha as considerações finais deste estudo para considerá-lo, apenas suficiente, para reconhecê-lo como o que foi possível apreender e compreender com as relações humanas e profissionais vividas com as pessoas que permaneceram na organização, no processo de liquidação.

Tendo em vista os resultados quantitativos complementares a este estudo – correspondentes à fase exploratória da pesquisa de campo – no que se refere ao empregado da

RFFSA em liquidação, é possível concluir que o perfil do profissional que permanece na organização é o de uma mão-de-obra altamente especializada e em busca de sempre mais qualificação. Esse é um aspecto visível mesmo na faixa etária que vai dos 46 aos 49 anos.

Além disso, percebe-se auto disciplina em busca de condições de saúde favoráveis para enfrentar as dificuldades e impactos emocionais decorrentes do processo de liquidação; há um 189

cuidado especial com a saúde física e mental que se manifesta nas mais diversas alternativas de formas de apoio, para conviver melhor com a conjuntura adversa.

Constata-se naqueles que decidiram permanecer na empresa uma certa segurança manifesta através do valor do trabalho e os seus reais objetivos. Para esses, o seu trabalho continua, independemente do lugar ou empresa. A história de tenacidade somada aos depoimentos e ao convívio mostra uma alta capacidade em suportar pressões, o que reporta aos personagens da história da ferrovia.

O comprometimento com a empresa RFFSA - sem o complemento: em liquidação - revelado nos depoimentos apaixonados sobre a ferrovia, demonstra que esses ferroviários, de espírito poderiam contribuir, em muito, com o desenvolvimento da ferrovia no Brasil. No entanto, foram tratados como mero fator a serviço de uma política sem visão de futuro.

A chefia, em geral, encontra-se sem poder de decisão em virtude da indefinição do poder central de Brasília sobre o destino da empresa e da situação de liquidação que, formalmente, tem um organograma restrito. A autoridade sobre os funcionários também se tornou fraca, em virtude das ameaças de demissão não cumpridas e da sempre eminente extinção da RFFSA, que possivelmente significaria o fim do emprego. Assim, para a reconquista desses poderes será preciso compreender profundamente a cultura organizacional, buscando uma reformulação da missão da empresa e do seu papel na sociedade.

Os empregados que já haviam preenchido as condições necessárias para a aposentadoria, cerca de 25% dos pesquisados, e permaneciam na empresa apresentam-se como mais uma recorrência de lealdade e comprometimento com a RFFSA. Pode-se levar em conta que eles estivessem esperando por um novo Plano de Incentivo à Demissão – PID, ou esperando que fossem mandados embora para receber a multa do FGTS. “Mas, quem não está satisfeito com seu trabalho, não espera por nada e pede demissão”. Principalmente se sabe que 190

pode ganhar em casa uma pensão de, no mínimo, o mesmo valor do salário da ativa. A verdadeira razão para não deixar a empresa pode estar no acolhimento, no sentimento de família, no estar em casa que os empregados vivenciam, então, não há pressa.

O drama, a paixão, a história da nação formam, neste caso, um tecido tão denso que muitos estudos serão ainda necessários para iluminar sempre novos aprendizados para a gestão.

Todavia, há algo que emerge como aprendizado fundamental e que pode ser resumido

da seguinte forma: a compreensão de uma organização como um recorte descolado da

sociedade é um desvio do sentido da relevância do humano, porque ignora as

implicações de suas ações no mundo da vida e não reconhece que os impactos de sua atuação são concretos. Esse aprendizado que o caso fez aparecer e que serve de alerta a

liquidantes e empregados, independentemente de hierarquia, não se limita às

liquidações. O que se mostra é que, nessa categoria de estratégia de gestão, ela apenas

surge com maior dramaticidade. 191

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ANEXOS

Anexo A - Aviso sobre o expediente do dia 30 de setembro de 2001

Anexo B - Questionário

Anexo C - Marcador de livros oferecidos aos empregados da RFFSA em 30/09/1995

Anexo D - Teste da independência das variáveis bairro ferroviário e vínculo familiar

Anexo E - Ata da assembléia da RFFSA em liquidação em 29 de novembro de 2002

199

ANEXO A

200

ANEXO B Questionário

PERFIL DO RESPONDENTE

1. UF de Residência

2. Cidade de Residência

3. Bairro de Residência

4. Sexo 1. r Masculino 2. r Feminino

5. Faixa 1. r Abaixo de 2. r 40 – 3. r 45 – 4. r 50 – 5. r Acima de Etária 40 44 49 55 55

6. Estado 1. r Solteiro 2. r Casado 3. r Divorciado 4. r Viúvo 5. r Outros Civil

7.Grau de 1. r Até 2o Grau 2. r 3o Grau 3. r Pós Graduação 4. r Mestrado 5. r Doutorado Escolaridade

8. Possui mais de uma graduação ou especialização? 1. r Sim 2. r Não

9. Possui filhos menores de idade? 1. r Sim 2. r Não

10. Você acredita em Deus? 1. r Sim 2. r Não

11. Quais são suas atividades físicas? Você pode marcar mais de uma opção. a) Futebol b) Ginástica c) Dança d) Natação e) Hidroginástica f) Yoga g) Outras...... h) Nenhuma 201

12. Quais são suas atividades de lazer, excluindo as físicas? Você pode marcar mais de uma opção. a) Música b) Leitura c) Cinema d) Teatro e) Viagem f) Chopp com os amigos g) Internet h) Outras...... 13. Dedica parte do seu tempo fora da empresa a alguma atividade, tal como: a) Entidade Filantrópica b) Atividades ligadas à religião c) Comércio d) Clube ou Associação e) Ensino f) Consultoria g) Prestação de serviços (“bico”) h) Nenhuma i) Outras......

DADOS PROFISSIONAIS

14. Quanto tempo de serviço você possui na RFFSA? ......

15. A RFFSA foi o seu primeiro emprego? a) Sim b) Não 16. Algum familiar seu, trabalha ou trabalhou na RFFSA? a) Sim. MARCAR E IR PARA A PERGUNTA 17 b) Não. MARCAR E IR PARA A PERGUNTA 18 202

17. Se SIM, que tipo de parentesco? Você pode marcar mais de uma opção. a) Avós b) Pai c) Mãe d) Irmão/Irmã e) Cônjuge f) Filho(a) g) Outros...... 18. As funções que você exerce na RFFSA são atribuições da sua carreira de graduação? a) Sim b) Não 19. Você mudou de função após a decretação da liquidação da RFFSA em 1999? a) Sim b) Não 20. Freqüenta ou freqüentou algum tipo de curso nos últimos 3 (três) anos? a) Sim. MARCAR E IR PARA A PERGUNTA 21 b) Não. MARCAR E IR PARA A PERGUNTA 22 21. Caso SIM na pergunta anterior, qual(is) curso(s) ? Você pode marcar mais de uma opção. a) Inglês b) Espanhol c) Informática d) Graduação e) Pós-graduação f) Outros 22. O ambiente da empresa é para você: a) Hostil b) Indiferente c) Agradável 23. O relacionamento com os colegas depois de 1999: a) Melhorou b) Indiferente c) Piorou 203

24. Você considera que o desempenho profissional dos gerentes da RFFSA, a partir da liquidação: a) Melhorou b) Indiferente c) Piorou 25. Você considera que o desempenho dos empregados da RFFSA, a partir da liquidação: a) Melhorou b) Indiferente c) Piorou 26. Qual o grau de influência da decretação da liquidação da RFFSA na sua vida pessoal? a) Grande b) Médio c) Pequeno 27. Você acredita que com a extinção da RFFSA os empregados serão aproveitados em alguma outra empresa ou órgão do Governo? a) Sim b) Não 28. Você tem algum plano caso a extinção da RFFSA concretize-se e você fique sem emprego? a) Sim. MARCAR E IR PARA A PERGUNTA 29 b) Não. MARCAR E IR PARA A PERGUNTA 30 29. Caso SIM na pergunta anterior você pretende mudar de profissão? a) Sim b) Não 30. A que você atribui a decretação da liquidação da RFFSA? Você pode marcar mais de uma opção. a) Política do governo b) Falta de união do ferroviários c) Má administração d) Pressão do setor privado e) Falta de empenho profissional dos ferroviários f) Outros...... 31. Aproximadamente, quanto tempo falta para sua aposentadoria proporcional? ...... 204

32. Você planeja o que vai fazer na aposentadoria? a) Sim b) Não 205

ANEXO C

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ANEXO D

Teste de Independência

Variáveis Qualitativas Descrição Bairro Ferrovia Assinala se o empregado reside em bairro que possui estação ferroviária Vínculo Familiar Assinala a existência de vínculo familiar do empregado com outro empregado ou ex- empregado da empresa

Formulou-se o teste e utilizou-se o SPSS para rodar o teste do Qui-quadrado

Ho: As variáveis são independentes, ou seja, não existe relação entre bairro-ferrovia e vínculo familiar H1: Existe relação entre bairro-ferrovia e vínculo familiar

Bairro Ferrovia X Vínculo Familiar Vínculo Familiar Total Sim Não Sim 50 35 85 Bairro Não 44 63 107 Ferrovia Total 94 98 192

Teste do Qui-quadrado Valor df Asymp. Sig. (2- sided) Pearson 5,940 1 0,015 Chi- Square a. Computed only for a 2X2 table

Para um Qui-quadrado calculado igual a 5,940

Como a significância é igual a 0,015 para um nível de significância igual a 5%, ou seja Sig < a, 0,015 < 0,05, rejeita-se Ho, ou seja, existe relação entre bairro-ferrovia e vínculo familiar.

Portanto, concluo que existe relação entre o fato do bairro do empregado possuir ferrovia e a existência de vínculo familiar do empregado com outro empregado ou ex-empregado da empresa. 207

ANEXO E Titulo: Extrato da Ata - AGE - Parte I Veiculo: Jornal do Commercio Seçao: Rio Pagina: A19

Titulo: Extrato da Ata - AGE - Parte II Veiculo: Jornal do Commercio Seçao: Rio Pagina: A19

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