UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

ENTRE O ARROUBO E A ESQUIVA œ AS CONFISSÃES DE CAIO FERNANDO ABREU

CAMILA MORGANA LOURENÇO

FLORIANÓPOLIS 2007 2

CAMILA MORGANA LOURENÇO

ENTRE O ARROUBO E A ESQUIVA œ AS CONFISSÃES DE CAIO FERNANDO ABREU

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Literatura – Área de concentração em Teoria Literária

Orientadora: Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos

FLORIANÓPOLIS 2007 3

Banca Examinadora:

______Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos Orientadora e Presidente

______Profa. Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC)

______Prof. Dr. Wladimir Antonio Garcia (UFSC)

______Profa. Dra. Alai Garcia Diniz (UFSC)

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Aos cenários [sonhados]

Ao eterno ensaiar [da vida]

felicidade [escondida]

Ao baú dos afetos [e das recordações]

Ao amanhã [que é branco]

metade [mais doce]

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AGRADECIMENTOS

Profa. Tânia Regina de Oliveira Ramos, em especial. A quem —muito obrigada“ é sempre insuficiente para demonstrar gratidão. Faltam gestos, palavras e pensamentos [sobra admiração]. Seja por Ana Cristina Cesar, seja por Caio Fernando Abreu ou por Roland Barthes e, sobretudo, por mostrar que uma Escola de verdade [p]reserva educadores que vivem a maternagem na sua essência – pela via do respeito, do olhar sincero, do riso espontâneo e da leveza de ensinar enquanto tece uma conversa, um comentário ou qualquer outra forma de discurso.

Ao mestre J. Isaías Venera, admirador de Deleuze, discípulo de Foucault, pesquisador de Lacan e companheiro de tantos outros intelectuais que ajudam a entender melhor o mundo e as gentes. Pela sua mão, conheci e passei a me deliciar com o caminho da pesquisa e das leituras que realmente permitem flanar – à mente, ao espírito e às emoções.

s chefias com quem tenho convivido e aprendido na Universidade do Vale do Itajaí, Profa. Lígia Najdzion e Profa. Amândia Maria de Borba, que me concederam horários especiais de labuta enquanto a pesquisa se desfolhava, entre disciplinas cursadas, apresentações de papers, viagens e orientações.

A quem sabe que ficou de fora da formalidade dos agradecimentos. A quem torceu em silêncio.

família de sangue. família de espírito. família de amigos, que se cansou de ouvir negativas a convites feitos e mesmo assim se fez querida, complacente.

Ao Marcio Markendorf. Minha luz. Meu espelho. Meu ego. Meu poeta. Meu leitor. Meu tutor. Minha metade intelectual. Meu brio. Meu céu. Meu mel.

Profa. Luciane Maria Schlindwein. Lamparina sempre à mão [erguida]. Guta Braun. Pouso moral e anfitrião. Ao Manoel. Desconstrução do olhar [meninil]. Ao Scotto. Pragmatismo lúdico [quase irreal]. Elba. Cidália. Raquel. Ao Zé. Aos sabedores, Prof. Raúl e Prof. Wladimir.

literatura, que me tira do chão e mexe bem dentro, dentro de mim. E ainda empresta energia e lirismo, desejo e estremecimento, vida e encantamento, delírio e insensatez.

A Thomas Dybdahl, Damien Rice, Coldplay, Radiohead e Dido – background da minha história com Caio Fernando Abreu e todo processo de leitura, pesquisa, escrita, reescrita e enamorar.

Ao P., que veio me mostrar de quanto desejo se faz um bem-querer. Não quero nunca me perder de você. Vontade de abraço. Vontade de ternura. Mais que fábula e teimosia. Riso puro. Encanto. Magia. Feitiçaria.

Obrigada. Obrigada. Obrigada [sempre]. 6

O Texto é plural. Roland Barthes

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RESUMO

Este estudo se dedica a investigar a “escrita de si” de Caio Fernando Abreu, tendo como objeto de pesquisa a coletânea Cartas — seleção de correspondências redigidas pelo escritor publicada pela editora Aeroplano, em 2002. Tais cartas são, então, tomadas como lugar de memória do autor, numa leitura que se propõe, a partir do movimento de lembranças e apontamentos, do narrar do prosador acerca das suas histórias pessoais e dos acontecimentos que se fixaram em sua existência, identificar como a subjetividade do escritor é construída, por que caminhos se guia, com base em que produções discursivas fertiliza seu fazer literário e amparado em que experiências conduz seu viver, administra dramas e conflitos íntimos, gerencia amizades e alimenta influências no tempo vivido. Além disso, prevê contribuir para redimensionar o repertório das reflexões já tecidas por pesquisadores de diferentes campos do conhecimento acerca das “narrativas de si” e da “carta enquanto lugar de memória” — reduto de subjetividades, fonte documental que mapeia, de certo modo, aquele que a redige e seu círculo social, por meio de pistas e indiciamentos ofertados pelo missivista.

Palavras-chave: artifício ficcional, Caio Fernando Abreu, correspondência, discurso epistolar, memória, narrativa de si.

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ABSTRACT

This study investigates the “Writing about oneself” of Caio Fernando Abreu. The object of research is the collection Cartas — a selection of correspondence written by the writer and published by Aeroplano, in 2002. These letters are understood as a place of memory of the author, in a proposed reading which is based on the movement of memories and notes, of the act of narrating of the prose writer, on his personal history and the events that have established themselves in his existence, identifying how the subjectivity of the writer is constructed and the paths by which he is guided, based on which discursive productions he fertilizes his literary art, and supported by what experiences he conducts his life, administrates his dramas and intimate conflicts, manages friendships and feeds influences in his time experienced. It also seeks to contribute to widening the repertoire of reflections already made by researchers from different areas of knowledge on the "self narrative" and the "letter as a place of memory" — shelves to subjectivity, a documentary source which maps, in a certain way, the one who writes and his social circle, by means of trails and clues offered by the writer of missives.

Key words: fictional artifice, Caio Fernando Abreu, correspondence, epistolary discourse, memory, self narrative.

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10

1 CARROSSEL EPISTOLAR ...... 14

2 O EPISTOLÁRIO ...... 37 2.1 O ARTIFÍCIO FICCIONAL ...... 38 2.2 [MÁS]CARA[S] & ADEREÇOS ...... 56

3 A MEMÓRIA EM SI ...... 66

4 ENTRE O ARROUBO E A ESQUIVA: EMBARALHAR-SE ...... 82

REFERÊNCIAS ...... 89 OBRAS DE CAIO FERNANDO ABREU ...... 89 OUTROS REFERENCIAIS ...... 89

ANEXOS ...... 95

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INTRODUÇÃO

“O que parece óbvio nem sempre é verdade”1

Prezada leitora, Prezado leitor:

Para dar início a esta trama discursiva que se pretende acadêmica, sugiro que travemos dois ou três dedos de prosa, seja lá o que isso signifique de fato. É um convite. E por que razão? Quero dizer/pensar, minimamente que seja, timidamente que pareça, do escritor

Caio Fernando Abreu2 (1948-1996).

A exemplo de tantos outros companheiros geracionais, Caio Fernando Abreu escreveu muito3 — talvez pela impossibilidade de viver como gostaria: “‘a vida só é possível se reinventada’. Acho que é um pouco isso.”4. Multifacetado — “Ácido, lisérgico, bruxo, esotérico, sexualmente liberado, lixeiro londrino, paulistano perpétuo, gaúcho exilado, viajante intrépido e cosmopolita”5 —, foi jornalista6, crítico, colunista, roteirista, escritor, dramaturgo, missivista. Adotou diferentes “máscaras” para diferentes personagens e períodos vividos. Fez da tessitura ficcional sua correspondência com o mundo e os pares e ainda

1 GUTKOSKI, Cris. Cartas de Caio F. saem do ineditismo. Zero Hora. Porto Alegre, 27 maio 2000. Cultura, p. 3. 2 Autor nascido em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 12 de setembro de 1948, sob o signo de virgem, ascendente em escorpião e Lua em capricórnio, como gostava de declarar [provocar]: “Sou de Virgem, como Cortazar... Quero ser um grande mago...” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 352). Filho de um casal da classe média urbana, teve quatro irmãos, dois homens e duas mulheres — uma delas, Cláudia, aparece entre os destinatários da coletânea Cartas, corpus deste estudo. 3 “A primeira vez que eu escrevi um negócio eu tinha seis anos de idade. Eu tinha aprendido a ler e escrever e tal, em um mês, e a primeira coisa que eu fiz foi escrever um conto. Depois, sei lá, foi indo, assim, por necessidade de escrever.” (ABREU, 2005a, p. 350). 4 Declara ao jornal O Estado de S. Paulo, em entrevista concedida em 23 de março de 1988, reportando-se a poema de Cecília Meirelles, quando perguntado sobre o caráter confessional da sua literatura (In: ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 260). 5 XAVIER, Marcelo. Cartas do viajante intrépido. Disponível em: http://www.rabisco.com.br/colunas/latim/latim05.htm. Acesso: 19 jul. 2005. Caio Fernando Abreu não compactuava com a idéia de exibir os “rótulos” a ele atribuídos com freqüência: gay, depressivo, introspectivo, hippie etc. 6 Caio Fernando Abreu desempenhou várias funções na imprensa brasileira. Foi repórter da revista Veja, redator das revistas Manchete, Pais & Filhos e Pop e dos jornais Zero Hora e O Estado de S. Paulo, além de editor da Leia Livros e da revista A-Z e colaborador da IstoÉ. 11

encontrou espaço e motivação para se embrenhar por outro matiz escritural: a narrativa de si — da qual se originaram inúmeros colóquios, esses de ausente a ausente, para remeter à definição de Libânio7 para a natureza das cartas, postados, em especial, a amigas e amigos das artes, com os quais estabeleceu laços afetivos, espirituais e intelectuais, e a familiares.

“Amigos são também para escrever cartas enormes e um tanto idiotas como esta, cheia de carências, porque gostam de outros amigos e não querem que as relações de amizade tombem nesse poço nojento de brutalidade e vulgaridade que viraram os anos 90.”8

E é a respeito desta fatia da produção textual do autor que me interessa pensar. A escrita epistolar — tradicionalmente caracterizada como “menor”9 na hierarquia literária —, com toda multiplicidade de sentidos que lhe possa ser atribuída. Afinal, diante do papel fino da carta, Caio Fernando Abreu parece fazer mais que vomitar segredos e subjetividades, indo além do biografismo inerente ao gênero epistolográfico e instigando quem, supostamente, devora a “confissão pública” do missivista escritor. “S´as que desisti do amor? Que alívio. É um processo que vem se arrastando há uns quatro anos, desde o que chamo de The Big

Disaster, agora parece que con-so-li-dou-se. Será que é da idade?”10

A partir disso, procuro, na primeira parte deste trabalho, dedicar-me a uma abordagem da teoria epistolar e de alguns de seus principais aparatos — essenciais à composição deste discurso —, sobretudo acerca das questões que perpassam o teor documental das cartas, quando tomadas como “lugar” de memória(s) do emissor, dispondo de elementos conceituais interdisciplinares como referenciais.

7 Apud TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. 8 Escreve Caio Fernando Abreu a Guilherme de Almeida Prado, em extrato de missiva de 12 de abril de 1994 (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 297). 9 Apesar de o “menor” aqui se referir a uma literatura menor, de qualidade “inferior”, prefiro creditar ao termo o estatuto de uma escrita singular, conforme apontam Gilles Deleuze e Félix Guattari, a qual seria tomada enquanto potência criativa e criadora, com condições eminentemente revolucionárias (Cf.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003.). 10 Narra Caio Fernando Abreu a Maria Lídia Magliani, em trecho de correspondência de 16 de junho de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 235). Aproveito para informar que todas as citações reunidas neste trabalho respeitam a grafia e as marcações adotadas pelo autor e reproduzidas na edição de Cartas. 12

Na seqüência, busco promover uma “leitura” das correspondências assinadas por

Caio Fernando Abreu e tornadas públicas ao(à) leitor(a) com a edição da coletânea Cartas11, apontando constantes e variáveis, refletindo a respeito da(s) assinatura(s) do missivista frente seus distintos interlocutores e contextos temporais e tentando lidar, com propriedade, discernimento e amparo teórico, com o limite pueril que se situa entre a indecidibilidade de real/irreal e verdade/mentira nesta narrativa de si que se engendra para se entregar ao olhar do recebedor, passando pelo artifício ficcional, entre outros aspectos que se delineiam no exercício do narrar de si para o outro.

A seguir, apresento algumas considerações pertinentes sobre o discurso epistolar enquanto memória do autor, deste eu que constrói uma narrativa sobre/para si mesmo ou que se [re]constrói por meio desta escrita de si [sendo espelho/refração/invenção], tecendo breves enunciações em torno de possíveis subjetividades, valores e referenciais “revelados” pelo missivista e perpassando pelo viés erótico da escritura referida, além de sinalizar de que forma essas questões pessoais tendem a se refletir na escrita de Caio Fernando Abreu, sem descartar o intento de justificar até que ponto esta pesquisa se reveste de importância para a história da literatura — para, assim, pôr em prática esta leitura, este deslizamento, ao que preferiria

Roland Barthes12, experimental do pensar sobre um campo livre de amarras, observando, e por que não?, neste percurso, um dos imperativos presentes na produção crítica de Ana

Cristina Cesar13, ao considerar que “quem fala de literatura acaba redefinindo literatura”14.

11 ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. 12 “O fragmento barthesiano desliza sem parar e o seu sentido se situa não nos pedaços de conteúdo que vão aparecer aqui e ali, mas pelo contrário no próprio fato do deslizamento”, assinala Alain Robbe-Grillet (In: ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 33), postulando que a estrutura de deslizamento abandona, continuamente, as posições que dá a impressão de terem sido conquistadas. 13 Mesmo não figurando entre os destinatários da coletânea Cartas, a poeta carioca transitou pelos papéis de remetente, recebedor e “personagem” no repertório epistolar de Caio Fernando Abreu. 14 CESAR, Ana Cristina. Literatura, documentário e política cultural, mimeo (In: Apud VIEGAS, Ana Cláudia. Bliss & Blue: segredos de Ana C.. São Paulo: Annablume, 1998, p. 77). 13

Na continuação, à luz do contexto teórico pós-moderno, exponho algumas reflexões empreendidas a respeito da escrita epistolográfica de Caio Fernando Abreu contemplada neste estudo — tendo como amparo principal os referenciais adotados no desenvolvimento da pesquisa —, sem deixar de dialogar, ainda, com as argüições realizadas ao longo desta trajetória investigativa.

“Você nunca escreve histórias felizes? O conto que eu mais gosto desse livro é um conto feliz. É irônico, mas também é uma história iluminada. [...] É uma autocrítica, mas também é um assumir meu lado comovido, verdadeiro, derramado.”15

15 Enuncia Caio Fernando Abreu, referindo-se ao conto Mel & girassóis, em entrevista ao periódico O Estado de S. Paulo, em 23 de março de 1988 (In: ABREU, 2005b, p. 261). Mel & girassóis tem por objeto o encontro entre um homem e uma mulher: “Como naquele conto de Cortázar — encontraram-se no sétimo ou oitavo dia de bronzeado. Sétimo ou oitavo porque era mágico e justo encontrarem-se, Libra, Escorpião, exatamente nesse ponto, quando o eu vê o outro. Encontraram-se, enfim, naquele dia em que o branco da pele urbana começa a ceder território ao dourado, [...] a pele entranhada de sal começa a desejar sedas claras, algodões crus, linhos brancos, e a contemplação do próprio corpo nu revela espaços sombrios de pêlos onde o sol não penetrou.” (ABREU, 2005b, p. 89). 14

1 CARROSSEL EPISTOLAR

“Às vezes, quando você lê um texto, você pode cair que nem um patinho também.”16

My dear: Sempre que te escrevo, faço como agora. Imagino-te abrindo esta carta como quem recolhe, na “praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga”17, uma garrafa lançada ao mar recém-aportada e a abre com delicadeza, apesar da curiosidade de encontrar nesse objeto alguma confissão — um ou outro segredo trocado entre remetente e destinatário.

No mínimo, pueril. Minimamente sugestivo tal apontamento. Ainda mais quando se trata de escritores, sempre comprometidos com a construção textual e a submissão ao

“domínio imperioso das palavras”18 e afastados, pelo ofício mesmo, de enlaces com a sinceridade19. Ou seria, de fato, viável pensar que, ao compor uma missiva, o escritor consiga

[ou deseje] realmente se despir do seu viés literário para tecer uma outra prática de escrita, isenta de ficção, puramente biográfica? Que dizer a respeito? Que olhar empreender acerca da narrativa de si encontrada nas cartas de um escritor, voltado, em sua essência, à “questão da representação”20?

A epistolografia é terreno fecundo para investigações biográficas e estudos literários, a exemplo de como sintetiza Marcelo Xavier: “Além do caráter literário, as cartas possuem um enorme espólio autobiográfico e afetivo que, se associadas à vida de um determinado artista, podem significar muito”21. A partir disso, salutar é percebê-la num contexto interdisciplinar, em que se torna possível cruzar, e mesmo aproximar, olhares distintos acerca

16 CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 263. 17 Título de conto de Caio Fernando Abreu integrante da coletânea Caio 3D: O essencial da década de 1980. 18 CESAR, 1999b, p. 202. 19 Alusão ao discurso de Beatriz Resende (Cf: RESENDE, Beatriz. “Ah, eu quero receber cartas”: a correspondência de Ana Cristina César. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes Femininas: Gênero, mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003. p. 301-309.). 20 Ibid., p. 301. 21 XAVIER, Marcelo. Cartas do viajante intrépido. Disponível em: http://www.rabisco.com.br/colunas/latim/latim05.htm. Acesso: 19 jul. 2005. 15

deste lugar de discurso: documento extraliterário, fiel reduto da memória, ou fragmento de literatura, instância performática — como classificar a correspondência?

“E você, como vai? Detesto perguntar ‘tem escrito?’. Soa sempre como cobrança, e quem faz esse tipo de cobrança geralmente não sabe que a cabeça de um escritor é louca demais para que se possa responder ‘sim’ ou ‘não’”22, exprime Caio Fernando Abreu em correspondência a Charles Kiefer23. “Mesmo que não se esteja escrevendo realmente, a gente sempre está escrevendo por dentro”24, emenda, esboçando um contorno biográfico de si ao destinatário companheiro de profissão.

Mais que escrever cartas, Caio Fernando Abreu dizia gostar de cartas nas cartas —

“foi uma surpresa e uma alegria receber tua cartinha”25, externa à irmã caçula, Cláudia

Abreu26 — e as guardar27 — “Não jogo cartas fora. Remexendo gavetas, pastas, encontrei pelo menos umas 300 de escritores (nos escrevíamos muito nos anos 7028, lembra?)”29.

Enunciava-se leitor de cartas escritas por outros autores, como a correspondência de Clarice

22 Trecho de carta escrita em 14 de abril de 1983. (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 42). 23 Escritor também gaúcho. Conhece Caio Fernando Abreu no início da década de 80, no Sul do país. 24 ABREU, 2002, p. 42. 25 Fragmento de missiva redigida em 21 de dezembro de 1992 (In:ABREU, 2002, p. 253). 26 Cláudia Abreu é dentista. Vive em Porto Alegre. 27 Caio Fernando Abreu parece ter imputado prática semelhante aos produtos ficcionais. Não costumava rasgar e descartar seus escritos. Pelo contrário, apostava na “revisão” da sua literatura, como o fez para o relançamento de Inventário do Ir-remediável (de 1970), Morangos Mofados (de 1982) e Triângulo das Águas (de 1983). Em nota datada de 1995 para a reedição de Morangos Mofados, o escritor declara: “Por saber que textos, como as pessoas, são vivos e sempre podem melhorar na sua contínua transformação, submeti Morangos Mofados a uma severa revisão de forma. [...] O resultado me parece mais limpo, menos literário no mau sentido, mais claro e quem sabe definitivo. Trabalhando pelo menos doze anos distanciado da emoção cega da criação [...], depurar estes morangos foi como voar sobre uma rede de segurança. Só espero não ter errado o salto.” (ABREU, 2005c, p. 13). Ainda em vida, o autor organizou Ovelhas Negras, reunindo contos até então “engavetados”. A edição lhe rendeu, no ano de sua morte (1996), o prêmio Jabuti de melhor livro de contos do ano. 28 Conforme Luiz Costa Lima, a década de 70 consolidou o vazio crítico encampado pelos suplementos de jornal e perpetuado pela produção universitária graças à deficiência dos corredores institucionais somada à “degola promovida pelo Estado e o clima de terror estabelecido” (In: SUSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária: polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 31). 29 Escreve à escritora mineira, Lucienne Samôr, em 27 de novembro de 1995 (In: ABREU, 2002, p. 338). 16

Lispector, de quem tanto gostava e a quem várias vezes prestou homenagem30, para Lucio

Cardoso e a de Camille Claudel a Rodin — que lhe emprestou a frase “Il y a toujours quelque chose d´absente qui me tourmente”31 de inspiração para “tentar escrever quelque chose que ainda não sei bem o que é”32. E se dizia feliz com as missivas que recebia, pedindo, em muitas delas, ao receptor afastado pela extensão geográfica, que lhe escrevesse — “Please, send me a letter”33, assinala, ao final de carta a Maria Lídia Magliani34, ou mais delicadamente: “Te espero em carta”35, em resposta a Vera Antoun36.

O tecer epistolar acompanha a trajetória de vida do autor, conforme a seleção apresentada em Cartas37, desde a saída da casa dos pais, em 1965, ainda na adolescência, para cursar o colegial na capital gaúcha — como aluno interno do Instituto de Porto Alegre —, prosseguindo com ele até o falecimento, em 1996.

De fato, de onde estivesse, Caio Fernando Abreu redigia cartas ou postais, iniciando a escrita quase sempre pela data [ritual]: a cidade que viria com o carimbo do correio — como

Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, Londres, Paris e Berlim, e suas variantes

“ficcionalizadas” (Gay Port, Portinho, Porto Alegríssimo, Sampa) —, o dia, o mês e o ano.

“Te escrevo de frente para o mar dramático de Bretagne, coberto de bruma, num 10º andar —

é a tal de ‘Maison des Écrivains Étrangers’, onde fico até 31.12. Toda Benedita tem seu dia

Maria Antoinette: me deram um ap. com três quartos”38, detalha em correspondência a

30 Como exemplifica na apresentação da edição revista pelo autor em 1991 de Triângulo das Águas: “ repetia sempre que não queria ser ‘um profissional da literatura’. Como minha mestra, eu também não...” (ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 13). 31 Retalho de carta endereçada a Maria Adelaide Amaral, em 10 de novembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 239). 32 Id. 33 Fração de correspondência composta em 19 de março de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 181). 34 Maria Lídia Magliani é pintora. Vive no Rio de Janeiro. Torna-se amiga de Caio Fernando Abreu nos anos 70, em Porto Alegre. Trabalha com ele no jornal Zero Hora. 35 Trecho de carta escrita em abril de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 466). 36 Vera Antoun é psiquiatra. Conhece Caio Fernando Abreu em 1970, aos 14 anos, quando o escritor lança Limite branco, no Rio de Janeiro, onde vive. 37 ABREU, 2002. 38 Fragmento de missiva redigida em 19 de novembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 243). 17

Guilherme de Almeida Prado39, postada em Saint-Nazaire. “Escrever cartas é algo que, no estrangeiro, tem outro gosto. Muito melhor. Um tanto Jane Austen, concordo. E receber então?” [...] Hoje me senti perdido. Queria consultar búzios, runas, pai, mãe, de santo ou não, qualquer coisa que me APONTASSE O RUMO, caralho.”40

A relação de proximidade com o narrar de si talvez encontre justificativa no fato de o autor julgar-se melhor entendido ao ser lido. É uma impressão. “Quando eu escrevo eu consigo ordenar tudo aquilo que eu penso. Agora, quando eu falo ou quando eu sou, simplesmente, não consigo ordenar nada. Eu sou da maneira mais caótica possível”41, confessa em depoimento concedido na década de 70. Além disso, o ato de lidar com a ficção, segundo ele, equivalia ao de lidar com a emoção [porção biográfica?] e, desse modo, aproximar-se do mistério, com o qual não se podia mexer [pose discursiva?]. “Talvez seja sina, essa de escrever, e então ter as respostas da vida real na vida recriada, nunca na própria vida real — como as pessoas que não criam costumam ter. E deve estar certo assim, deve haver ordem e um sentido nisso”42, registra em carta a Sérgio Keuchgerian43, retomando o assunto um ano à frente (1988), em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ao declarar que o impulso de escrever se dava por “uma espécie de deficiência de viver a vida real, objetiva, apenas ela”44 — quem sabe numa sutil referência à escrita como reação ao peso de viver, para remeter a Ítalo Calvino45.

Para além de produto de rituais viscerais, a escrita de Caio Fernando Abreu o fazia sentir-se intensa e declaradamente vivo. Ao transcender a palavra, o prosador buscava

39 Guilherme de Almeida Prado é cineasta. Conhece Caio Fernando Abreu na década de 80, em São Paulo. 40 Extrato de epístola escrita a Jacqueline Cantore, em 05 e 06 de janeiro de 1991 (In: ABREU, 2002, p 197). 41 ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 350. 42 Trecho de missiva escrita em 27 de janeiro de 1987 (In: ABREU, 2002, p. 149-150). 43 Sérgio Keuchgerian é escritor e fotógrafo de moda. Conhece Caio Fernando Abreu nos anos 80, em São Paulo. 44 ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 260. 45 No capítulo Leveza, o autor pondera: “Resta ainda aquele fio que comecei a desenrolar logo ao princípio: a literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver.” (CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 39). 18

compreender o próprio tempo e exercitava a possibilidade de experimentar uma outra vida — o que lhe permitia burlar o vácuo que supunha existir entre a vida que tinha e a que vislumbrava para si, como se estivesse em um carrossel, de mãos dadas com o brinquedo e vertendo, em meio ao binômio vida/arte, um terceiro elemento: a máscara. “O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável”46, redige noutra missiva a Sérgio

Keuchgerian. “Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos. Não há nenhum subtexto nisto que te escrevo”47, acrescenta, conduzindo o interlocutor à compreensão/confusão pretendida para a narrativa — esta mesma que se insere na condição impura do discurso, lembrando a impossibilidade do grau zero da escritura teorizado por

Roland Barthes48 e operado por Gilles Deleuze49 enquanto plano de imanência.

Com base nisso, importante é considerar que o discurso epistolar é normalmente absorvido com distinção entre pesquisadores da História e das Letras. Enquanto estes preferem apostar cada vez mais numa percepção menos ingênua da correspondência enquanto esfera de memória e subjetividades, aqueles parecem investir com mais ênfase no teor documental das missivas, tomando-as como objeto não-literário, fruto da enunciação de sujeitos históricos acerca do seu campo vivencial — como reconhece Marlon Salomon, ao pontuar que o historiador comumente é levado a se utilizar dos conteúdos das cartas e a examiná-los sem se preocupar em problematizar as possibilidades de sua produção,

“questionando os diferentes regimes de escrita”50, pois se detém na identificação dos “reflexos

46 Fragmento de correspondência composta em 10 de agosto de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 141). 47 Id.. 48 Cf: BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1971. 49 Cf: DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... Educação & Realidade, Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 10-19, jul./dez. 2002. 50 SALOMON, Marlon. As correspondências: uma história das cartas e das práticas de escrita no Vale do Itajaí. Florianópolis: UFSC, 2002, p. 59. 19

de realidades”51. Para ele, toda análise voltada única e exclusivamente ao conteúdo das correspondências está fadada a cair em uma rede de estratégias daqueles que as escrevem, por vezes de resistência, por vezes de dissimulação. Difícil não lhe dar ouvidos.

Acerca desse aspecto, Käte Hamburger52 entende que a correspondência é sempre um documento histórico que abriga testemunhos pessoais, sendo igualmente histórico o sujeito dessa enunciação. Sophia Angelides53, mais cautelosa, pondera que as cartas de um escritor podem figurar como objeto de fruição estética, no qual literário e extraliterário se alternam [feito o movimento de “subir-descer” das peças de um carrossel], embora admita que, de modo geral, as missivas nascidas das mãos de um escritor “constituem fragmentos valiosos que refletem a personalidade do seu autor, o seu ambiente e as circunstâncias que envolveram seu trabalho criativo”54 — enfatizando o caráter fluido predominante entre a criação literária e a afirmação lingüística não-literária, mesmo que o discurso se volte ao relato de um acontecimento ou à expressão de um sentimento, ambos não ficcionais, “o material lingüístico é submetido ao crivo altamente seletivo do escritor, que recria a sua experiência pessoal”55. Trata-se, conforme elucida E. M. de Melo e Castro, de uma narrativa não ficcional que comunica uma metarrealidade — a qual se presta a fornecer nada mais que uma versão ficcionada daquilo que o remetente pretende dizer e o que realmente escreveu e, mais tarde, será lido pelo destinatário. “Escrever cartas é assim um pequeno ofício ‘literário’ no sentido mais restritivo e convencional desse termo, pois ao escrever uma carta não se pode fugir a um código que modela e altera o que tão simplesmente queremos e gostaríamos de

51 Id.. 52 HAMBURGER, 1975 apud ANGELIDES, Sofhia. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: USP, 2001. 53 Cf: Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: USP, 2001. 54 ANGELIDES, Sofhia. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: USP, 2001, p. 13. 55 Ibid., p. 23. 20

dizer”56 — entender que, dito de outra forma, ganha sustentação no postulado crítico de

Roland Barthes, no que se refere à impossibilidade de se representar o “real”: “quer o definamos, com [Jacques] Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso”57, reconhecendo, assim, a incompatibilidade da linguagem ao real, “quer se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem).”58.

Neste sentido, para Sophia Angelides, tanto a linguagem poética quanto a linguagem informativa permeiam o gênero epistolar e lhe são inerentes. “A passagem da simples comunicação não-literária para a linguagem literária, e vice-versa, confere à carta um aspecto particular, misto de documento informativo e texto literário”59 — assertiva que ganha relevo se combinada a fragmentos como este em que Caio Fernando Abreu tempera o simples relato biográfico de transitar por uma via paulista com condimentos ficcionais para se reportar a

Jacqueline Cantore60: “Vim descendo a Augusta. Marilene, estou todo INTENSO. Minha epígrafe agora seria: ‘Pode deixar que eu seguro’. [...] Sofri tanto, fiquei de cama, sabias? Pois hoje emergi calçando salto 15, ombros muito para trás, porte ereto e saia justíssima”61.

À leitura de tal trecho epistolar, viável me parece aliar alerta perspicaz assinado por

Michelle Perrot, para quem as correspondências, “embora sejam testemunhos insubstituíveis,

56 CASTRO, E. M. de Melo e. Odeio cartas. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 15. 57 BARTHES, Roland. Aula. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 22. 58 Id.. 59 ANGELIDES, op.cit, p. 23-24. 60 Jacqueline Cantore é produtora executiva da Fox, em Los Angeles. Mantém intensa amizade com Caio Fernando Abreu, iniciada por meio de cartas, depois que escreve para ele motivada pela admiração pelos textos do autor. 61 Extrato de carta redigida em 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 128-129). A destinatária ganha nova identidade ao ser tratada por Caio Fernando Abreu como Marilene. Segundo Italo Moriconi, Marilene é um dos apelidos mais usados pelo ficcionista nas cartas a Jacqueline Cantore. O mesmo codinome é adotado por Caio Fernando Abreu em missivas destinadas a outros recebedores. 21

nem por isso constituem os documentos ‘verdadeiros’ do privado”62. Ademais, conforme salienta ela, as cartas nada têm de espontâneo — originam-se de manipulações discursivas colocadas a serviço de um verdadeiro game [esconder para mostrar, revelar para ocultar] — e são regidas por normativas “de boas maneiras e de apresentação de uma imagem pessoal”63 que regulam, ao mesmo tempo, sua natureza informativa e seu estatuto ficcional.

Olhar semelhante é apresentado por Walnice Nogueira Galvão e Nádia Battella

Gotlib, ao mencionarem, na coletânea Prezado Senhor, Prezada Senhora64, que as correspondências — ou a literatura epistolar, como preferem nomear —, apesar de ocupar uma zona intermediária entre o ficcional e o histórico, a ficção e o documento, podem ser tomadas como fonte privilegiada ao desvendamento dos universos público e privado, pois também figuram como auto-retratos e decalques de relações pessoais e sociais. Para Nádia

Battella Gotlib, a epistolografia, enquanto gênero híbrido, constitui campo fértil às diferentes instâncias das experiências do relato e se presta ao cumprimento da tarefa de aproximar remetente e destinatário, “tendo em vista, fundamentalmente, a incontrolável necessidade de contato e de mútua aproximação, durante a ausência do outro”65.

Pareceres distintos. Emaranhado teórico. Proposições instigantes. Neste entremeio, há quem sustente que aquele que abre “um livro de correspondência arromba uma gaveta atrás do publicamente inconfessável”66 ou, ainda, que “a carta sempre possui um algo a mais, um

62 PERROT, Michelle. Introdução. In: História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. PERROT, Michelle (Org.).Tradução: Denise Bottmann (partes 1 e 2) e Bernardo Joffily (partes 3 e 4). São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 11. 63 Id.. 64 Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 65 GOTLIB, Nádia Battella. Correspondências: a condessa de Barral e o imperador D. Pedro II. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 239. 66 PILAGALLO, Oscar. Carta ao leitor. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jan. 2004. Sinapse. p. 4. 22

elemento transcendente”67 — sobretudo quando quem a escreve é um escritor, quando “então uma reles correspondência pode ser uma janela aberta ao infinito”68. Será?

Em missiva a Luciano Alabarse69 — na qual afirma: “Tua carta me fez muito bem. E muito mal. Compreendo tudo que você diz. São coisas que me digo, também”70 —, Caio

Fernando Abreu discorre, aparentemente sem timidez, sobre questões do foro privado, conduzindo a narrativa com apontamentos notadamente reflexivos: “há uma diferença entre você saber intelectualmente da inutilidade das procuras, da insaciabilidade [...] do corpo e conseguir passar isso para o seu comportamento — tornar ato o que é pensamento abstrato.

Os caminhos são individuais/intransferíveis”71.

Sendo assim, se, de fato, e como quero crer, toda escritura se reveste de marcas e perpetua “rastros” de seu autor — como ilustra o fragmento anterior —, aceitável é admitir a potência intrínseca a esta narrativa não ingênua, não neutra, não livre de sinais autorais, que se origina à moda dos demais gêneros narrativos, de uma relação erótica com o papel — para recorrer a Roland Barthes e à idéia de jogo com as palavras, sobre a qual teoriza, designando escritura e teatro enquanto instâncias inseparáveis —, efetivando, desse modo, este lugar de celebração, espetáculo, que é o texto: “Quarta cheirei toneladas [...] e hasta hoy no me recuperei. Não puedo me drogar. Questã de saúde, infelizmente: desequilíbrio total. Fico depois comendo e vomitando sem parar, linha Petra von Kant. Mas tchê, vai tudo de vento em popa”72, exprime o prosador em correspondência a Luiz Arthur Nunes73, exibindo graça e pompa ao tecer, com digitais tipicamente literárias, a narrativa.

67 XAVIER, loc.cit. 68 Id.. 69 Luciano Alabarse é diretor de teatro. Vive em Porto Alegre. Foi grande amigo de Caio Fernando Abreu, a quem admirava pelo temperamento forte, pela língua afiada, pela generosidade e pela afinidade com o tempo em que vivia. 70 Trecho de missiva escrita em 1º de agosto de 1984 (In: ABREU, 2002, p. 91). 71 Id.. 72 Fração de carta redigida em 25 de junho de 1984 (In: ABREU, 2002, p. 80). Trecho transcrito como no original, a exemplo dos demais. 23

Ao assegurar que “o apelo irresistível das cartas”74 reside no fato de os autores não policiarem a escrita de si, “deixando correr a pena de um jeito ‘desenfeitado’”75, motivados pela certeza de que serão lidos apenas pelo destinatário — confiantes de não correr o risco de circular de mão em mão, feito um objeto familiar —, Oscar Pilagallo apimenta a discussão sobre a natureza epistolar. Tal entender, de certo modo e com todas as ressalvas cabíveis, aproxima-se do discurso de Fernando Pessoa em missiva de rompimento com a namorada

Ofélia de Queiroz: “Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto”76.

Sobre essa questão, Maria Lucia de Barros Camargo estabelece que, em princípio, emissor e destinatário compartilham espaços de privacidade e segredo — o que se insinua em trecho de carta postada por Caio Fernando Abreu à mãe, Nair de Abreu77, na qual sustenta que

Triângulo das Águas78 é seu melhor e mais terrível livro: “porque é preciso falar claramente sobre certas coisas, é preciso alertar as pessoas para as vidas erradas que levam, a alimentação errada, as emoções erradas, os relacionamentos errados”79, justifica, ressaltando, na narrativa, o fato de não querer se posicionar como dono da verdade e o desejo de colocar a nu alguns de seus aprendizados: “pode parecer ambicioso, mas de repente gostaria de ajudar a transformar este mundo numa coisa melhor”80, confidencia —, ao mesmo tempo em que partilham o mesmo tempo histórico em que estão, irremediavelmente, inseridos.

73 Luiz Arthur Nunes é diretor teatral e professor de teatro no Rio de Janeiro. Conhece Caio Fernando Abreu ainda no Rio Grande do Sul. Assina com o ficcionista a autoria de várias peças teatrais. 74 PILAGALLO, loc.cit. 75 Id.. 76 PESSOA apud PERRONE-MOISÉS, Leyla. Sinceridade e ficção nas cartas de amor de Fernando Pessoa. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 183. 77 Professora e orientadora educacional. Morre pouco tempo depois de Caio Fernando Abreu. 78 Publicado em 1983, um ano depois de Morangos Mofados, reúne três novelas sobre o tema da solidão e conquista o prêmio Jabuti no ano seguinte. “Triângulo está nas ruas e o que vai acontecer com ele depende agora dele mesmo. Eu gosto, eu na verdade nem sei dizer se ‘gosto’ — sei que doeu muito para nascer, foi o que mais exigiu, foi o que mais trabalhei”, narra Caio Fernando Abreu a João Silvério Trevisan (ABREU, 2002, p. 70). 79 Fragmento de missiva datada de 15 de setembro de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 62-63). 80 Id.. 24

Nesse viés, Maria Lucia de Barros Camargo esclarece que o teor das correspondências pessoais, escritas por um sujeito e encaminhadas a um destinatário específico, “ancora-se no real e nas circunstâncias e quase sempre trata da intimidade, tendo, por isso mesmo, um cunho íntimo e, até, confessional”81. Além disso, a pesquisadora observa que, ao ultrapassar o ambiente privado, a carta assume também função documental — sempre que passa a “ser esclarecedora sobre os costumes de uma época, representando assim uma verdadeira documentação histórica”82, ao que compendia Lucette Petit —, legitimada pela sua inserção na história e pelo caráter de “sinceridade” de suas confissões — interpretação que alude à de que “não é realmente de surpreender que nos deixemos cair em tentação pelas nossas próprias narrativas biográficas, ou que pensemos que as narrativas contadas por outras pessoas sobre seu passado sejam críveis e convincentes”83. Afinal, “o que se passa na cena da escritura não se oferece assim tão facilmente à decifração”84, embora deixe o convite ao leitor.

Janet Malcolm que o diga.

Ao examinar as cartas redigidas por Sylvia Plath à mãe, Aurélia Plath, entre 1950 e

1963 — e publicadas sob o título Letters home, em 1975, a partir de seleção feita pela matriarca —, Janet Malcolm85 não dispensa luvas de perito e lentes de sobreaviso para depreender que o rosto[a máscara?] exibido(a) pela escritora à mãe se diferenciava daquele(a) apresentado(a) por ela ao leitor. A publicação do livro, segundo Janet Malcolm, com o propósito de levar ao público o lado amoroso, gentil e subserviente da filha, em oposição à conduta imperante entre as personas de suas composições literárias — tingidas[maquiadas]

81 CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. Chapecó: Argos, 2003, p. 223. 82 PETIT, Lucette. A propósito de A correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 118. 83 RUSCH, Gebhard. Teoria da história, historiografia e diacronologia. In: OLINTO, Heindrun Krieger (Org.). Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 155-156. 84 BRANCO, Lucia Castello. A branca dor da escrita: três tempos com Emily Dickinson. Rio de Janeiro: 7Letras; Belo Horizonte: UFMG, Programa de Pós-graduação em Letras, 2003, p. 17. 85 MALCOLM, Janet. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. Tradução: Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 25

conforme Sylvia Plath desejava ser percebida —, não obteve o resultado esperado, servindo para violar a privacidade da autora, ao expor, ao voyeurismo irrestrito de quem se interessasse, tormentos pessoais vividos pela filha e entre ela e a própria mãe.

A esse respeito, ao se deter na análise das cartas enviadas por cidadãos “comuns” ao memorialista Pedro Nava, Marília Rothier Cardoso atenta para o papel mediador das correspondências — entre os espaços público e privado, a recordação espontânea e o seu registro formal, a experiência e a linguagem — para intuir que as mesmas “produzem memórias, que se desdobram em críticas, que desencadeiam cartas, que engendram memórias... É o grande circuito dos discursos, onde se pode observar a inscrição das trajetórias de leitor e autor, de remetente e destinatário”86.

Caio Fernando Abreu oferece inúmeros exemplos ao parecer de Marília Rothier

Cardoso e exercita, na escrita de si, um outro papel peculiar às missivas: o de banir distâncias, conforme formulação feita por Eliane Robert Moraes — em estudo sobre as epístolas do marquês de Sade, que, em reclusão, fez desse lugar de discurso instrumento de comunicação com o mundo: “Sensual ou enfermo, a evocar delícias ou suplícios, o corpo do marquês se faz presente com tal intensidade em sua correspondência que acaba por convocar fisicamente o leitor”87, numa espécie de cumplicidade muito ao gosto de Michel Foucault, para quem a carta torna o emissor presente àquele a quem se remete, numa “espécie de presença imediata e quase física”88. Inferência cujo cerne se evidencia em correspondência expedida por, por exemplo, Franz Kafka a Felice Bauer, no extrato em que afirma: “o que confere a importância que aquela carta tomou para mim. É que você a respondeu por uma outra que agora tenho em

86 CARDOSO, Marília Rothier. Carta de leitor. Reflexões a partir de uma seção do arquivo de Pedro Nava. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 339. 87 MORAES, Eliane Robert. A cifra e o corpo: as cartas de prisão do marquês de Sade. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 58. 88 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3. ed. [s.l.: Vega, 1997?], p.150. 26

mãos, por esta carta que me causa uma felicidade ridícula e sobre a qual eu coloco a mão para sentir que ela é totalmente minha.”89. E é de Ana Cristina Cesar este outro fragmento que dá conta de ilustrar o caráter suplementar da correspondência enquanto objeto corporal:

“Cheguei em casa e tinha a tua carta. É ótimo como uma carta reata, esquenta, anima. Eu vinha com a garganta apertada na viagem, cercada da família e triste de deixar o mato. E tua carta me devolve várias alegrias.”90

Leitura semelhante é possível de ser empregada em Caio Fernando Abreu à medida que o escritor insinua manter uma relação de fetiche com as missivas a ele endereçadas — a correspondência como suplemento da existência; corpo que se faz presente e é tocado e guardado pelo recebedor; corpo que abriga um eu que se fraciona em outros eus para se apresentar ao destinatário, originando, muitas vezes, máscaras plurais, ou seja, novas moldagens de si mesmo [ora autor do discurso, ora personagem da narrativa], num movimento freqüente no qual a estrutura íntima do discurso migra para a estrutura ficcional da narrativa e vice-versa. Carrossel de palavras. Jogo discursivo. Artimanha autoral.

Percepções cabíveis se amparadas na sentença que assegura que o fingimento [e suas formas irmãs] é o único meio de o sujeito se processar na escritura. E quem avisa é Roland Barthes91.

Acerca disso, Michel Foucault pondera que as cartas viabilizam, de certo modo, o face to face, sendo uma forma de o remetente se entregar ao olhar do destinatário pelo que lhe diz a respeito de si — prerrogativa que se assemelha à proposição apontada por Demétrio, ao considerar que o missivista redige a carta “como retrato de seu próprio ânimo, sendo ela a forma de composição literária em que mais se pode ver o caráter do escritor”92, registra,

89 KAFKA, Franz. Cartas a Felice. 2. ed. Rio de Janeiro: Anima, 1985, p. 14. 90 Fragmento de missiva remetida a Ana Cândida Perez e datada de 18 de abril de 1976 (In: CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 203). 91 Cf: BARTHES, 1996. 92 TIN, Emerson. Introdução. In: TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Unicamp, 2005, p.19. 27

lembrando juízo emitido também por Cícero93, que acredita que a correspondência manifesta o caráter de quem a escreve, permitindo que o destinatário veja, nesse objeto — nessa prática não canônica do terreno literário —, seu emissor.

Em carta escrita aos pais, Zaél94 e Nair de Abreu, Caio Fernando Abreu narra a alegria contagiante que é, para ele, estar no Rio de Janeiro, entre artistas badalados, como

Clarice Lispector e Nélida Pinõn, e novas perspectivas profissionais e pessoais, que passa a reunir no baú privado dos afetos e das emoções: “Estou no quarto que pertenceu a Lúcio

Cardoso, o grande escritor irmão de Maria Helena. Isso me comove: fico pensando na minha infância, tão perdida no tempo e no espaço, e não compreendo [...] como de repente me tornei um escritor.”95. O tom da narrativa esboça, de fato, o deslumbramento do autor com as experiências travadas na capital fluminense, confirmando, ainda, o status de simplicidade e espontaneidade do estilo epistolar caracterizado por Erasmo de Rotterdam96: “Bem, desculpem, estou escrevendo como se falasse comigo mesmo. Não sei ainda se fico ou não aqui. [...] é esta a cidade que eu queria, é esta a vida que eu amo e procuro — embora vocês, as pessoas que eu amo, estejam tão longe”97.

Assim como Caio Fernando Abreu e outros “escritores missivistas”, Raymond

Chandler se rende à exibição das expressões do íntimo e do seu entorno social ao explorar a escrita de si, conforme aponta ensaio de Michael Hall98. Segundo ele, é no gênero epistolar que Raymond Chandler encontra brechas para desvelar características da própria personalidade — “não sempre cativante na sua ranzinzice e no seu esnobismo”99 —,

93 Cf: TIN, 2005. 94 Militar reformado. Falece pouco tempo depois do filho. 95 Trecho de carta datada de 21 de agosto de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 375). 96 ROTTERDAM, Erasmo de. Brevíssima e muito resumida fórmula. In: TIN, Emerson. A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Unicamp, 2005. 97 ABREU, 2002, p. 375. 98 HALL, Michael. Raymond Chandler. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 69-75. 99 Ibid., p. 73. 28

esmiuçando no papel facetas de si até então preservadas do olhar alheio, já que as narrativas escritas para a publicação contemplavam versões distorcidas, rearranjadas ou cifradas do foro privado do autor.

Perita na arte de dissimular confissões e conduzir a vida sob o falso signo do despojamento de si, Ana Cristina Cesar — interlocutora de Caio Fernando Abreu, para quem o ficcionista redigiu o texto da contracapa de A teus pés100, publicado em 1983 — jamais depositaria um espio ingênuo sobre o epistolário de Raymond Chandler ou de quem quer que fosse. Ao analisar coletânea de cartas de Álvares de Azevedo, a poeta alerta para o perigo de uma leitura inocente da publicação, repudiando a certeza de que as correspondências seriam o reflexo fiel do autor e salientando a ineficácia de cotejar literário e extraliterário a fim de detectar a “insinceridade” autoral. “Escrever cartas é mais misterioso do que se pensa”101, frisa Ana Cristina Cesar. “No entanto, quem se debruçar com mais atenção sobre essa prática perceberá suas tortuosidades. A limpidez da sinceridade nos engana, como engana a superfície tranqüila do eu.”102

De fato, como previne, com expertise, a poeta, na prática epistolar, à medida que o narrador não é fictício, supostamente não deveria haver lugar para dissimulações literárias, pois o eu da carta corresponderia, pela lógica, ao eu “verdadeiro” — mas a “literatura mexe com essa contradição: desconfia da sinceridade da pena e do cristalino das superfícies; entra a fingir para poder dizer; nega a crença na palavra como espelho sincero — mesmo que a afirme explicitamente”103. E o fingimento, para Ana Cristina Cesar, “é próprio da literatura”104, assim como o escritor, para Caio Fernando Abreu, “sempre é um fraudulento”105

100 Único livro publicado por Ana Cristina Cesar via editora comercial em vida, reunindo três outros livros publicados independentemente: Cenas de abril, Correspondência completa e Luvas de pelica. 101 CESAR, 1999b, p. 202. 102 Id.. 103 Id.. 104 Ibid., p. 203. 105 ABREU, 2005b, p. 259. 29

— um feitor de simulacros, arredio “à verdade”, para aproveitar diagnóstico de Ana Cristina

Cesar106 a respeito dos poetas.

Ao romper o lacre que originalmente separava apenas remetente e destinatário, a publicação das cartas do autor põe fim também a todo pacto de sigilo existente entre emissor e receptor, oferecendo-se ao leitor antes como objeto de voyeurismo — delivery à “devoração”

[de uma suposta intimidade] que, com freqüência, sequer evoca a possível falta de verdade sobre o verdadeiro do corpus epistolar — que fonte de literatura. E se, para Caio Fernando

Abreu, “tudo é passível de uma outra interpretação”107, na medida em que “toda formulação linguageira implica uma retórica, mesmo que mínima”108 — ao que Michel Riaudel concordaria, pautando-se na linguagem enquanto falsa moeda, dadas as confusões “que cria, com a sua indecifrabilidade”109 e a “ausência de referência certa”110 —, nada se afigura empecilho para o leitor que busca, no epistolário, desenovelar o fio das individualidades do emissor, crente de estar desnudando lembranças, conhecendo ecos de leituras, projetos, vivências e subjetividades e entrando na privacidade e na memória mais íntima do epistológrafo. “Ando bem, mas um pouco aos trancos. Como costumo dizer, um dia de salto sete, outro de sandália havaiana. É preciso ter muita paciência com esse vírus do cão. E fé em

Deus. E falanges de anjos-da-guarda fazendo hora extra”111, [in/per]forma Caio Fernando

Abreu a Mario Prata112, em carta-resposta enviada em 1995, reportando-se à doença que lhe

106 CESAR, 1999b. 107 ABREU, 2005a, p. 347. 108 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Sinceridade e ficção nas cartas de amor de Fernando Pessoa. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 179. 109 RIAUDEL, Michel. Correspondência secreta. In: GALVÃO, Walnice; GOTLIB, Nádia (Org.). Prezado senhor, Prezada senhora. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 99. 110 Id.. 111 ABREU, 2002, p. 334. 112 O escritor conhece Caio Fernando Abreu em 1982, em São Paulo, num jantar feito para Ana Cristina Cesar. Desenvolve trabalhos com ele. 30

tiraria, no ano seguinte, a vida e fazendo exibir um pouco do misticismo113 de que tanto se servia, na vida e na literatura.

E se o autor se refere à saúde pessoal — “Pois é, amiga. Aconteceu — estou com

AIDS — ou pelo menos sou HIV+ (o que parece + chique)”114, conta a Maria Lídia Magliani

—, tocando o biográfico de si, apimenta a narrativa epistolar com tom genuinamente polifônico: “Depois de pegar o teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente.

Ligando pra família e amigos, no 3º dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de

‘um quadro de dissociação mental’. Pronto-Socorro na bicha”115, acrescenta, extraindo ainda mais graça, na seqüência, dos exames a que é submetido em razão do vírus — num fazer que amplia as margens da experiência, ao verter rascunhos de subjetividade e rabiscos de literatura, enquanto brinca e/ou teatraliza com a própria condição116. “Tiraram líquido da minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com computador, furaram as veias, enfiaram canos (tenho I no peito, já estou íntimo do tripé metálico que chamo de ‘Callas’, em homenagem a Tom Hanks), etc, etc”117, detalha, dramatizando o espelho de si e se mostrando preocupado com a reação da interlocutora, ao apresentar no “PS” o seguinte teor: “Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra morte eu poderia ter? É a

113 Em entrevista publicada no jornal Zero Hora, no dia 24 de dezembro de 1972, Caio Fernando Abreu declara praticar ioga, ser rosacruz e estudar astrologia, quiromancia e numerologia, além de ter como maior ambição o desejo de ser um grande mago. A abertura da matéria exibe as seguintes impressões a repeito do escritor: “Quero ser um mago. Um grande mago. Caio Fernando não está fazendo charme. Pelo menos, não totalmente. Não é difícil imaginá-lo com seu rosto estranho, seu corpo comprido e fino, seus olhos enormes, sua fala lenta e embebedida de sentidos, como o sacerdote de uma seita esotérica e extremamente abstrata” (ABREU, 2005a, p. 351). 114 Trecho de missiva escrita em 16 de agosto de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 311). 115 Id.. 116 Em decorrência da doença, Caio Fernando Abreu morre aos 47 anos de idade, em 25 de fevereiro de 1996, de infecção em múltiplos órgãos, no Hospital Moinhos de Ventos, em Porto Alegre (RS). De fato, conforme relatos de vários amigos que o acompanharam durante a fase das internações hospitalares, para espantar o tédio, Caio Fernando Abreu inventava jingles para os medicamentos a que era submetido no tratamento contra a Aids. 117 ABREU, 2002, p. 312. 31

minha cara! [...] convenhamos que é muito moderno, muito in... Só choro às vezes porque a vida me parece bela [...]. Mas é de emoção, não de dor.”118.

O vigor do discurso realimenta parecer de Michel Riaudel, quando pontua que a carta

é, por excelência, “o lugar da retórica do desvio, em que a literatura finge desaparecer atrás de uma voz gerando um sujeito, em que se trata de seduzir, deixando acreditar que quem escreve poderia estar se esquecendo de si mesmo e se voltando todo para o outro”119. E quem se atreve a garantir que não seria exatamente este o eixo do repertório epistolar de Caio

Fernando Abreu, que — e por que não? —, à semelhança de Emily Dickinson, conforme aponta pesquisa de Lucia Castello Branco sobre a escritura da poeta, “não se deixaria ver assim tão facilmente, interpondo, entre sua presença e o mundo, uma ‘door ajar’”120? Afinal, a correspondência, como também credita Michel Riaudel, dada a sua natureza híbrida, confere

à escrita um estatuto ambivalente e ambíguo entre o biográfico e o literário, a confissão e a ficção, o segredo e a revelação.

Em carta a “La Moreira”121, Caio Fernando Abreu faz questão de dar a ver uma face corada de vida, de planos e expectativas felizes, apesar da condição já sabida de HIV positivo:

“honey, ando muito feliz. Não é insensato? E Marina canta ‘e eu? Sigo latindo’. Eternamente

Laika, mas sabe que todo esse bode me forçou a tomar decisões que adiava há anos, como se fosse imortal”122, relata, revelando, na continuação da narrativa, o desejo de voltar a morar no

Menino Deus, em Porto Alegre, “esta ilha verde separada do resto pela ponte da Ipiranga”123, e colocar em prática outros intentos protelados ao longo da vida nômade que levava, como manter um jardim, escrever o dia todo e “bem tia — acompanhar o crescimento dos meus

118 Ibid., p. 313. 119 RIAUDEL, op. cit, p. 99. 120 BRANCO, op. cit., p. 53. 121 A cantora Cida Moreira conhece Caio Fernando Abreu em Porto Alegre, na década de 70. Torna-se vizinha do escritor na década seguinte, em São Paulo. 122 Fragmento de carta de 18 de novembro de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 319). Laika é outro codinome usado pelo autor na escrita das correspondências. 123 ABREU, 2002, p. 319. 32

sobrinhos”124, aos quais atribui uma série de características “intertextuais”, depois de os nominar gremlins: “Rodrigo, um Virgo-corpio de 11 anos, very enfrentative e informático;

Laurinha, um sex symbol de quatro anos, que fala corretissimamente com todos os esses e erres, desenha muito bem e adora Frida Kahlo”125, a quem se dirige como “aquela mulher de bigode”126; além de Felipinho, o sobrinho caçula louco por frangas. “Criança, descobri, é mais curativo que AZT. Então estou assim, muy tia, e daquelas tias solteironas carentes exploradas pelos sobrinhos, a quem cobre de presentes e estraga completamente a educação dos pais.”127

Sob o signo da carta e o peso da pena sobre o papel, o eu que se escreve, além de obedecer às regras de persuasão características dos gêneros escritos — “e a persuasão de sinceridade, numa carta afetiva, é o imperativo maior”128, certifica Leyla Perrone-Moisés —, também se dramatiza, ao passo que conserva, na tessitura, o viés criativo e criador, ao se denominar, a exemplo do trecho anterior, “tia” — por ora a face, a identidade e a voz escolhidas pelo destinador que se oferece ao olhar quase sempre míope do recebedor, que nunca se sabe estar realmente vis-à-vis da [in]fidelidade biográfica e sua densidade

[emo/fic]cional —, turvando qualquer tentativa segura de caracterizar este eu que se dá ao carteio sob a designação tia, tia solteirona carente, e ao final se assina “Caio F.” aos olhos do interlocutor. Camuflagem autoral?

Mais que especular, viável é observar o emprego notório de personas nesta combinação autoral, tendo em vista o caráter de persona apresentado por Sergio Vilas Boas, que a entende enquanto canal de expressão de si especialmente útil na adaptação social e no trato com outros indivíduos. “Como máscara, o arquétipo da persona refere-se ao que é esperado socialmente de um sujeito e à maneira como ele acredita que sua imagem deva

124 Id.. 125 Id.. 126 Id.. 127 Id.. 128 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 179. 33

parecer publicamente”129 — numa preocupação que parece combinar muito mais com uma

“publicização” do teor privado do eu na escrita de si.

Para além da falta de intencionalidade, os retalhos epistolares muitas vezes resistem à decifração, obrigando o dito a sugerir um pouco mais ou um pouco menos do que aquilo que enuncia e aquele que lê a interpretar além daquilo que está dito: “ando meio fatigado de procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis, e a minha saída (uma saída gostosa) tem sido essa: a literatura. Claro que me dá um puta medo de estar me transformando numa criatura intoxicada de palavras escritas”130, resume Caio Fernando Abreu em missiva a João Silvério

Trevisan, deixando entrever frames típicos dos bastidores emocionais do autor ou de sua persona artística.

E se a saída para as procuras inúteis está na literatura, não a esmo poderia estar também na epistolografia, enquanto exercício similar de escrita, admitindo-se a existência das zonas de contágio entre os gêneros e a suplência do gozo sexual — possível graças ao tecer textual [de si para si mesmo e de si para o outro], para reportar a Lucia Castello Branco131 lendo Jacques Lacan —, sem falar no ato de se dirigir e/ou se projetar ao recebedor, firmando uma relação com ele e esperando deste a recepção do objeto, sua leitura e a resposta a ele, por mais breve que for.

Sob esse prisma, aceitável é conduzir à baila juízo expresso por Renato Mezan — em análise da produção epistolar de Freud —, que confere à carta o estatuto de “mescla muito bem-sucedida de proximidade e distância, de atividade auto-erótica (sexualização do ato físico de escrever, e também gozo na formulação das próprias palavras) e relação verdadeira

129 VILAS BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002, p. 125. 130 Fração de correspondência datada de 20 de novembro de 1977 (In: ABREU, 2002, p. 496). 131 Conforme Lucia Castello Branco, sob “o viés da psicanálise lacaniana, tanto a letra quanto o amor funcionarão como suplência para a inexistência da relação sexual” (BRANCO, 2003, p. 60), ou, em outras palavras, “digamos, com Lacan, que a escrita serve ao gozo” (BRANCO, 2003, p. 58). 34

com o outro”132 — avivando o caráter de aplacador de saudade comumente atribuído às missivas.

Nesse viés, a impressão que se configura é a de que se está diante de um game no qual as palavras são costuradas, uma a uma, com euforia, impedindo a entrada pelas vias oficiais na intimidade do emissor e oferecendo, desse modo, pistas nem sempre confiáveis sobre o bio que é grafado nas teias da escrita epistolográfica do autor — que a transcende para virar excesso, sobra, rasura, ausência, trapaça discursiva, esquiva —, levando o leitor, muitas vezes, a esbarrar nas máscaras do sujeito autoral, enquanto fareja suas pegadas sem perceber que a trilha fora desenhada com as mesmas tintas escolhidas para grafar verdades forjadas.

“Tô morando, trabalhando, estudando e amando. Esses são os quatro foles da minha vida, no momento, e sobre cada um deles eu teria milhares de páginas a preencher.”133

E se o tom da narrativa é privado, os segredos são preservados [fora dali]. Segredos não existem para ser desvelados — afinal, a intimidade “não é comunicável literariamente”134, já decretava Ana Cristina Cesar, salientando que “o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura. [...] Eu queria jogar a minha intimidade, mas ela foge eternamente. Ela tem um ponto de fuga”135. Para a poeta, o ato de transpor para o papel uma história pessoal prevendo fazer dela literatura acaba por modificá-la, transmutando sua essência e seu teor.

“Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca da minha subjetividade. É uma impossibilidade até.”136 Art as life? Life as art?

Motivada a validar um trabalho de scholar, com a prudência de um autopsiador, em oposição ao de postular fúrias biografistas, elejo a correspondência ativa e seu conteúdo como

132 MEZAN, Renato. As cartas de Freud. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 171. 133 Carta a Vera Antoun, datada de 19 de outubro de 1973 (In: ABREU, 2002, p. 451). 134 CESAR, 1999b, p. 259. 135 Id.. 136 Ibid., p. 273. 35

matéria-prima de leitura [labial137] nas páginas a seguir, levando em conta, sempre que viável, este lugar de discurso enquanto refúgio da memória, do inconsciente, da intimidade e do cotidiano do autor, o qual viabiliza, de certa forma, ao pesquisador, “pensar as ligações sociais”138 do destinador e “a constituição de uma esfera de privacidade em seu entorno, bem como a constituição do indivíduo como sujeito”139 — reconhecendo, entretanto, o teor ficcional potencialmente presente na percepção e na projeção do eu que se enuncia na escrita de si e, ao mesmo tempo, admitindo que o “filtro da memória impede a objetividade”140 no relato da experiência e as “fronteiras entre imaginação e memória são difíceis de determinar”141. Ao que aproveito fração de missiva redigida por Franz Kafka, a qual parece corroborar com alguns dos aspectos citados: “Minha memória é muito ruim, mas se ela for a melhor de todas, não me ajudará a transcrever exatamente nem mesmo um pequeno parágrafo concebido e anotado anteriormente, pois [...] há mudanças que, antes de serem colocadas por escrito, devem ficar em suspenso.”142.

Ademais, enquanto continente favorável ao borramento entre os gêneros, num contínuo aproximar-se distanciando-se, a epistolografia não se esquiva de fornecer um retrato de Caio Fernando Abreu ou fragmentos biográficos do autor, apesar da imbricação entre as personas pública e privada. “Muito ascendente em Libra, Caio preferia revelar apenas o que supunha ser agradável ao outro”143, segreda a amiga de longa data, Márcia Denser144, para quem o escritor gaúcho “é mestre — de dizer pelo não dito, significar pelo oposto ou pelo

137 Com o sentido que lhe emprega Maria Lucia de Barros Camargo: leitura enquanto prática da hermenêutica da suspeita. Cf: CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. Chapecó: Argos, 2003. 138 SALOMON, op. cit., p. 15. 139 Id.. 140 VILAS BOAS, op. cit, p. 60. 141 Id.. 142 KAFKA, op. cit., p. 14. 143 DENSER, Márcia. A crucificação encarnada nos anos 80. In: ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 12. 144 Escritora e jornalista paulista. 36

implícito, pelo subtexto e pela elipse — suas ilhas de silêncio”145. E não é exatamente Caio

Fernando Abreu quem diz que “com o mistério não se pode mexer”146?

A partir disso, como localizar a narrativa epistolar de Caio Fernando Abreu, flanar um percurso validável e avistar mais que arcanos e dizeres de si, pessoais e/ou ficcionais, em meio a zonas de sombra, sobrepondo o desejo recorrente de, a todo momento, lançar olhos de furor sobre este lugar de memória?

“Ando feliz, feliz-clichê: amo Paris. Acho que nunca disse isso para cidade nenhuma.

As cidades, você sabe, são falsas e traiçoeiras. Paris, você quer casar comigo?”147, relata Caio

Fernando Abreu, com pretensiosa malícia discursiva. “Acampei na sala de Alexandre, a falta de espaço é terrível, para qualquer movimento preciso abrir malas e bagagens, e nunca sei nunca sei exatamente aonde está a cuia, onde está a calcinha... Males de um viajante.”148

145 DENSER, op. cit., p. 10. 146 ABREU, 2005b, p. 255. 147 Extrato de correspondência escrita a Maria Lídia Magliani, em 26 de março de 1994, durante estada do autor na França (In: ABREU, 2002, p. 292). 148 Id.. 37

2 O EPISTOLÁRIO

“Para mim são muito mais verdadeiras as coisas que não são reais.”149

A epistolografia permite, ao missivista, borrar a fronteira entre os gêneros e habitar uma zona híbrida, na qual é possível experimentar uma outra espécie de narrativa — que ultrapassa suas características subjacentes: [auto]biográfica, confessional, documental. É nesse entremeio que procuro me inscrever com a pretensão de sinalizar alguns “excessos” — como o compromisso com a linguagem, num fazer escritural que a dispõe em revelo, segregando a fidelidade das impressões do íntimo ao pano de fundo — que se incrustam na narrativa de si de Caio Fernando Abreu quando na [re/a]presentação de si ao destinatário. É uma tentativa. E um amparo.

Para dar conta de trilhar o percurso investigativo sugerido, sob o escrutínio acadêmico, este movimento de leitura não se furtará ao direito de se beneficiar do uso de lentes de aumento para, assim, verter um olhar aguçado e, sobretudo, cauteloso sobre o continente epistolar do escritor mencionado — que firma pactos biográficos com o leitor até mesmo quando produz literatura, como ao recomendar: “Descobre, desvenda. Há sempre mais por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real”150.

Com base nisso, que leitura seria possível travar acerca da escrita de si reunida em

Cartas151? Ao tecer a escrita epistolográfica, o prosador se guarnece de máscaras, desdobrando-se em vários eu(s)? Esconde-se por trás de sujeitos “construídos”, eu(s) ficcionalizado(s), a fim de alçar vôos performáticos? Lança mão da prática confessional para

149 FELLINI apud COSTA, Vidal A. A.. A pertinência do irreal: reconhecendo faces inexploradas na ficção especulativa. Revista Letras, Curitiba, n. 62, p. 81-95, jan./abr. 2004, p. 81. 150 ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 40. 151 ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. 38

documentar, de fato, a escrita de si e/ou se rende ao estatuto ficcional para gerar uma literatura que se disfarça de correspondência [pastiche de gênero]?

2.1 O artifício ficcional

“MAL. Põe mal nisso. Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei contar direito.

Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um poço de saúde ao lado dela.

Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu)”152, descreve Caio Fernando

Abreu. O fragmento, ao contrário do que se possa pensar, não diz respeito ao legado ficcional do escritor. Trata-se, à primeira vista, de outro gênero. O epistolar.

O trecho, que relata contato travado com Ana Cristina Cesar — companheira geracional do escritor, com quem manteve intensa amizade153 nos idos de 80 —, integra correspondência remetida a Jacqueline Cantore. Nela, ao detalhar a condição da poeta, Caio

Fernando Abreu parece incrementar o “real”, ora imprimindo humor à construção textual —

“Conversando com GM, somos mais por uma terapia bageense, tipo te fresqueia, prenda, come uma costela gorda, toma uns mates, dança uma chula, uma tirana do lenço, te joga nua no açude na hora da sesta”154, complementa —, ora comparando Ana Cristina Cesar, mais à frente na carta, à Isabelle Adjani — “em Nosferatu, depois que começa a ser sugada. Linda, naturalmente, mas troppo morbo”155 —, característica que se repete também ao adotar para si codinomes femininos, como Marilene ou Laika.

“Cheguei na editora rindo: meu Deus, a Laika de São Paulo, a negra sem ter onde morar, vivendo com 500 dólares por mês, lavando roupa num balde sob o chuveiro, fazendo a

152 Trecho de carta escrita a Jacqueline Cantore em 20 de maio de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 46). 153 Cf: MORICONI, Italo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta. n. 14. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; RioArte, 1996. (Perfis do Rio). 154 ABREU, 2002, p. 46. 155 Id.. 39

feira toda sexta — dando autógrafo em Saint-Germain!”156, redige a Guilherme de Almeida

Prado. “Mas te juro que perdi o pique: Marilene já não é mais a mesma, quem diria. Acordei

às quatro da tarde com aquele gosto de tabuleiro de xadrez na boca (o da alma é pior) e recebi

Ana Maria para longas sessões de I-Ching, cores & Tarot”157, segreda a Jaqueline Cantore — mesma destinatária dos extratos seguintes, nos quais o missivista escritor se enuncia na terceira [Marilene] e na primeira pessoas do singular para narrar um pormenor doméstico:

“S´as que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE MORREU QUEIMADA? Estava ela no fogão, mui lépida, assando umas coxas de franga, quando eis senão que sente um odor estranho vindo das bandas do dito fogão”158, relata à interlocutora. “Ela estava, mui poeticamente, de costas para o fogão, observando aquela pêxa grávida no aquário, que não se decide a parir (vão ser arianos, os demônios, eu esperava pêxes de Pêxes, s´as?)”159, estende.

“Então me viro (observe a mudança espontânea & natural da tercêra para a primêra pessoa) e eis que, atrás do fogão, vejo CHAMAS ENORMES ATÉ QUASE O TETO. [...] Marilene, ousadíssima, queria avançar entre as chamas para DESLIGAR O FORNO”160, esmiúça o prosador, explicando que a motivação para o ato heróico estava em evitar a carbonização do assado, dada a então escassez de recursos para comer.

Tal postura, assumida pelo autor na escrita de si, à medida que lustra o discurso de comicidade — “Preciso ter uma ilusão de segundo mundo — você sabe que, embora Laika, tenho uma alminha très chic”161 — e impregna a linguagem com termos gauchescos e códigos idiossincráticos — “Gerd Alberto da Silva Hilger, como o senhor é guloso! Já pedindo foto da

156 Fração de missiva de 12 de abril de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 299). 157 Fragmento de correspondência de 5 de março de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 112). 158 Extrato de epístola de 26 de março de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 115). 159 ABREU, 2002, p. 115. 160 Id.. 161 Trecho de carta escrita em 30 de julho de 1993 e postada ao tradutor alemão de Dulce Veiga e de outros trabalhos de Caio Fernando Abreu, Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p. 272). 40

MINHA lasanha completamente pelado(a)...”162, exprime, exibindo graça ao tecer a conversa escrita —, conforme inferência de Italo Moriconi, vai apresentar-se, notadamente, em correspondências dirigidas também a outros recebedores, como Marcos Breda163: “Mas o apelo dos seus verdes olhos foi mais forte que a najice. Agora planejamos falsificar várias cartas de leitores nervosos querendo a todo custo saber quem, afinal, é esse casal maravilhoso nas sombras?”164.

De posse dessas particularidades e amparado no uso de termos como “jacira (= bicha); lasanha (= homão bonito); rodenir (= coisa brega)”165, Italo Moriconi aposta no caráter lúdico das cartas de Caio Fernando Abreu, reconhecendo a existência de um jogo vertiginoso de máscaras e de um vocabulário criado pelo autor e introduzido não apenas na produção epistolar, como também em crônicas166 e ficções — concebendo, desse modo, uma modalidade de “‘humor bicha’ ou ‘queer’”167/168, com a qual, particularmente, não compactuo por preferir tomá-la enquanto estratégia discursiva operada a partir da experiência do autor.

Vida reinventada pelo discurso — ora para gerar literatura, ora para engendrar confissão —, ao que aproveito análise pertinente de Pedro de Souza a respeito de produção de Caio

162 Fragmento de correspondência redigida em 18 de novembro de 1994 a Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p. 322). 163 Ator. Conhece Caio Fernando Abreu em São Paulo, na década de 80. 164 Extrato de missiva de 22 de abril de 1988 (In: ABREU, 2002, p. 158). 165 Cf: MORICONI. In: ABREU, 2002, p. 44. Italo Moriconi presta o esclarecimento em nota de rodapé. 166 Na crônica As quatro irmãs (psicoantropologia fake), Caio Fernando Abreu brinca com os nomes Jacira, Telma, Irma e Irene, que, na narrativa, são quatro irmãos que atendem por nomes femininos que também caracterizam grupos distintos de homossexuais: “Vírus e suas saias-justas sem nesga à parte, na verdade a aids não mudou muito o comportamento das quatro. Elas são arquetípicas, atávicas, eternas. Freud, por exemplo, na opinião geral era irmésima. Já Platão parece ter sido uma boa Irene. Ninguém colocaria em dúvida a jacirice de Oscar Wilde. Rimbaud, por sua vez, dá a impressão de ter começado como Jacira (quando chegou a Paris) para transformar-se — o que é raro — em Telma (Abissínia). Já Verlaine, teria sido uma Irma que se ajacirou. [...] O que pode acontecer (vide Rimbaud & Verlaine) são transmutações: Irenes que se ajaciram; Irmas (com tendência etílica) que viram Telmas; Telmas que — bem comidas — se irenizam ou mesmo ajaciram, etc.” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006, p. 144-145). 167 Cf: MORICONI. In: ABREU, 2002, p. 44. Italo Moriconi presta o esclarecimento em nota de rodapé. 168 Em estudo de parte da produção literária de Caio Fernando Abreu, Bruno Souza Leal apresenta a noção de “espaço queer” enquanto espaço virtual resultante “da comunicação com outro, ou seja, de exposição de um desejo, de um sentimento íntimo a alguém, e da redefinição de espaços públicos [...] pelo trânsito que resulta desse contato” (LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 26). Para ele, os “territórios queer” são potencialmente compostos pelo movimento de “estrangeiros”, sujeitos sempre em trânsito, à procura de uma forma de contato com o outro que o identifica. 41

Fernando Abreu: “os ornamentos na escrita cumprem a finalidade de o narrador, cometendo maneirismos estilísticos em sua escrita, construir a imagem de si como protagonista da cena no ato mesmo de narrar/escrever”169.

Nesse viés, inquietante é tentar vislumbrar a apresentação de “verdades” nesta escritura, teoricamente, biográfica — “Hoje estou torcendo pela queda final da besta Collor e

— pour quoi pás? — pela entrada do nosso país num tempo de astral melhor”170, redige a

Maria Adelaide Amaral171, cutucando [com vara] o panorama político brasileiro172 e conduzindo à reflexão: Afinal, Caio Fernando Abreu se dedica a narrar/escrever o “real” — ou a não-ficção — nas correspondências ou se mantém construindo, performando, ficcionalizando — muito ao gosto de Roland Barthes, quando, em entrevista173 à revista Tel

Quel, dispõe-se a teorizar, desviando-se serenamente das questões que não deseja responder, como quem se afasta, de fininho, na ponta dos pés, deixando o campo livre?

Para Márcia Denser, as cartas de Caio Fernando Abreu apontam, entre outras dominantes, a “absoluta necessidade que tinha de mentir para os outros”174, ocultando sua

169 SOUZA, Pedro de. Escrita e imagem de si: subjetivação inconclusa em narrativas homoeróticas. In: LOPES, Denílson [et al.], (Org.). Imagem e Diversidade Sexual – estudos da homocultura. São Paulo: Nojosa edições, 2004, p. 190. 170 Fragmento de carta redigida em 29 de dezembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 258). 171 Escritora consagrada, dramaturga e autora de novelas. Conhece Caio Fernando Abreu em 1979, na Editora Abril, em São Paulo. 172 Pela leitura das “escrevinhações” do autor, é possível perceber o diálogo com o contexto político-social e o período vivido. Ainda mais para alguém como Caio Fernando Abreu, que fez questão de mergulhar nas correntes culturais da sua época, aderindo ao movimento hippie — “Vivi como hippy no Rio durante um certo tempo. Cheguei a passar uma semana sem fazer nada, sem comer — só tomando cafezinho e comprimido para passar a sensação de fome. Dormia na praia do Leme. De noite, ia ao Conservatório de Teatro para fazer um curso sobre Alquimia.” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 352) —, submetendo-se ao regime ditadorial e experimentando, por conseqüência, a censura e o exílio. “Dentro da engrenagem, ser hippy é a única forma digna de sobreviver”, expõe o prosador, em depoimento concedido na década de 70 (ABREU, 2005a, p. 347). “Eu acho que poderia comparar os hippies brasileiros com os dos países desenvolvidos. Dentro de um certo limite, claro. Na Europa, os hippies são revoltados contra uma sociedade superdesenvolvida. No Brasil, não se pode dizer que eles são revoltados contra uma sociedade subdesenvolvida, porque o Brasil não é um país subdesenvolvido. É um país mal desenvolvido [...] um hippy paulista é igual a um hippy inglês ou parisiense, mas ninguém consegue imaginar um hippy amazonense. No Amazonas ele não tem por que se marginalizar, se ele já é um marginal.” (ABREU, 2005a, p. 347). 173 Realizada em 1963. Cf: BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 174 DENSER, op. cit., p. 11. 42

natureza privada. “Caio era cheio de mistérios, segredos”175, situa a escritora, esclarecendo que o autor sempre silenciava suas ligações com o Rio Grande do Sul para o grupo176 de escritores com o qual conviveu nos anos passados em São Paulo, “supondo que o julgássemos provinciano”177 — mesmo procedimento adotado com as peças teatrais e as produções para a televisão, as quais também eram mantidas em segredo, o que, segundo Márcia Denser, dava- se porque Caio Fernando Abreu temia parecer menor aos olhos dos pares178, “uma vez que o

‘núcleo duro’ de escritores desconsiderava tal produção enquanto arte”179.

Ao comentar a publicação das missivas, Italo Moriconi não afasta a associação vida/obra. “O Caio que fala nas cartas é mais o Caio pessoa, embora, claro, o Caio-pessoa fosse integralmente, 24 horas por dia, o mesmo Caio escritor”180, pontua, constatando a qualidade poético-literária da escrita epistolar do prosador: “no meio de descrições do cotidiano e observações sobre comportamentos e sentimentos, emergem parágrafos, trechos inteiros, cartas inteiras que são pura literatura, puro vôo criativo e poético”181. É fácil entender por quê.

175 Id.. 176 Segundo Márcia Denser, faziam parte do grupo, além dela, , Marcos Rey, Raduan Nassar, Ignácio de Loyola e Ivan Ângelo, entre outros escritores. 177 DENSER, op. cit, p. 12. 178 A aparente autocensura do escritor talvez encontre justificativa no cenário vigente no período: “Em meados dos 80, o Brasil do nacional-desenvolvimentismo descrito por Roberto Schwarz cai na real. Os planos Cruzado (1986) e Collor (1990) são entremeados por uma inflação de 300 por cento ao ano. Sob tais condições, não existe futuro, mas é nesse contexto que os heróis anônimos de Caio Fernando Abreu fazem todo o sentido. Abstraindo- se a aids, o contexto econômico da época era tão adverso que por si só explicaria a ausência de projeto existencial e prospecção futura dos seus personagens”, assinala Márcia Denser (DENSER, op.cit, p. 10), com quem Caio Fernando Abreu compartilhou a ambição de vencer na carreira literária. Nessa época, em correspondência remetida a Jacqueline Cantore em 24 de junho de 1981, o escritor comenta ligação com Márcia Denser: “Raramente saio à noite, praticamente nunca vou a lançamentos literários: — tenho medo e desgosto do astral competitivo, fofoqueiro. Mas tinha ontem duas pessoas que gosto muito: Márcia Denser, lançando O animal dos motéis (você ficou assustada com o título? a Márcia é assim, meio atrevida, mas no fundo uma Luluzinha querendo fingir de Messalina — como me dirijo mais à Luluzinha e ignoro as messalinices dela, costumo dizer que temos um relacionamento muito especial).” (ABREU, 2002, p. 32). 179 DENSER, op.cit, p. 12. 180 In: MOSCOVICH, Cíntia. Um poeta nos passos de Caio. Entrevista concedida por Italo Moriconi. Zero Hora. Porto Alegre, 21 dez. 2002. Cultura - Segundo Caderno, p. 4. 181 Id.. 43

“Não te enfosses com os editores. Tem um poema da Florbela Espanca que diz assim: ‘As coisas vêm a seu tempo/quando vêm, essa é a verdade’. Um dia a coisa sai. E eu acredito no mecanismo do infinito, fazendo com que tudo aconteça na hora exata”182, profere em carta a Hilda Hilst183, legitimando parecer de Italo Moriconi no que toca ao fazer escritural de Caio Fernando Abreu, visto pelo pesquisador enquanto labor: “na medida em que o trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais, suas resenhas e matérias jornalísticas, assim como presumivelmente seu diário”184 — ou seja, tudo fruto “de um mesmo processo de vida se fazendo na escrita, enunciação e enunciado condicionando-se mutuamente, escrita alimentando-se da vida, vida transcendida pelo simbólico, metáfora que universaliza”185 — assertiva que retoma análise travada por Félix Guattari e Gilles Deleuze acerca da literatura de

Franz Kafka, quando sinalizam que, se as cartas fazem plenamente parte da obra, “é porque são uma engrenagem indispensável, uma peça motriz da máquina literária tal como Kafka a concebe”186, e que se combina, de certa forma, à percepção de Beatriz Resende187, ao presumir que artistas jamais são ingênuos. Ingenuidade seria admitir que vida e obra, confissão e ficção não possam integrar a mesma trama narrativa.

Dentro dessa esfera, salutar é apresentar adendo de Caio Fernando Abreu, no qual se reporta às influências que incidiram na formação como escritor: “Tenho um excesso de

182 Missiva de 29 de abril de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 369). 183 A escritora conhece Caio Fernando Abreu nos anos 60. Exerce forte influência na formação literária do autor. 184 MORICONI, Italo. Introdução. In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 15. 185 Id.. 186 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003, p. 58. 187 RESENDE, Beatriz. “Ah, eu quero receber cartas”: a correspondência de Ana Cristina César. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes Femininas: Gênero, mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003. Neste ensaio, a autora certifica que: “O que [Roland] Barthes faz ao negar a sinceridade de seu diário é reivindicar para a condição literária uma ingenuidade tão impossível quanto inútil. Condenando o diário como simulação, termina por garantir sua literaridade, sua importância como escritura, autorizando sua publicação” (p. 308-309). 44

fantasia e a necessidade de sempre criar um mundo imaginário, paralelo ao mundo real”188, confidencia, em depoimento à Gazeta do Povo. “Bob Dylan, numa entrevista, disse: ‘Minhas influências vêm de tudo o que vi, ouvi e vivi’. É mais ou menos isso”189, acrescenta o prosador, ressaltando a honestidade mantida com o leitor e a pessoalidade na sua expressão textual — “Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente”190, escreve Caio Fernando Abreu, dirigindo- se, diferentemente do que se possa, numa primeira leitura, deduzir, não a um determinado interlocutor, mas a vários interlocutores. Leitores de suas crônicas publicadas em O Estado de

S. Paulo.

O extrato integra a crônica Última carta para além dos muros191 — misto de escrita confessional e profissional, correspondência e crônica. “Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mas claramente.

Não vejo nenhuma razão para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo” 192, amplia o escritor. A “carta-crônica”193 encerra uma série de três. Na primeira delas, à qual chama Carta para além dos muros194, o autor decide dar viva-voz à doença que lhe tiraria, mais tarde, a vida, disseminando, ao revelar estar internado com Aids num hospital paulista, a verdade sobre seu estado de saúde.

Neste caso, entre o mascaramento e o despojamento de si, Caio Fernando Abreu privilegia o segundo sem se descolar do primeiro. Elege o espaço público do periódico para

188 In: FERNANDES, José Carlos. Um lugar para plantar morangos. Gazeta do Povo. Curitiba, 3 jul. 1995. Caderno G, p. 3. 189 Id.. 190 ABREU, Caio Fernando. Última carta para além dos muros. Zero Hora. Porto Alegre, 26 fev. 1996. Segundo Caderno – Especial, p. 3. 191 Publicada em 21 de agosto de 1994. Cf.: MACHADO, Cassiano Elek. Cartas do escritor narram amor nos tempos da Aids. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 dez. 2002. Ilustrada, p. 4. 192 ABREU, 1996, loc.cit. 193 Tomo a liberdade de chamá-la “carta-crônica” tendo como justificativa o seu caráter público privado e o seu teor documental ficcional. Publicada em 18 de setembro de 1994. Cf.: Segundo Caderno – Especial do jornal Zero Hora de 26 de fevereiro de 1996, p. 3. 194 Um dos contos de Caio Fernando Abreu integrantes de Caio 3D: O essencial da década de 1970 se chama Carta para além do muro. In: ABREU, 2005a, p. 249-251. 45

explicitar sua condição íntima ao leitor e à leitora, que parecem figurar na narrativa como velhos confidentes, destinatários de longa data, caso pondere-se que particularidades como essa seriam trocadas apenas, e tão apenas, com pessoas a quem se quer bem. “Não parei e pensei: ‘Vou tornar isso público’ (imitando voz lenta e tenebrosa)”195, declara à Gazeta do

Povo. “Eu estava no hospital e deveria mandar uma crônica para o Estado. Tinha passado três dias inconsciente. E só poderia escrever sobre aquilo. [...] Sempre fui muito pessoal naquilo que produzo, honesto com o leitor”196, esclarece o prosador.

Ao assumir-se enquanto figura pública [que noticia o privado de si], o escritor se pauta na experiência mais imediata e, num ato de cumplicidade com o leitor e a leitora, sai do confinamento hospitalar para travar um tête-à-tête — ao mesmo tempo “íntimo”, a carta, e

“público”, o jornal; “documental”, a correspondência, “ficcional não ficcional”, a crônica — com esse interlocutor [des]conhecido, desvelando a “novidade biográfica” e plantando a confusão: Por que se enunciar desse modo? Há quem garanta que o ficcionista “acreditava nos mistérios, nas transcendências, nas divindades”197. A justificativa pode estar aí — “sempre fui ligado à filosofia oriental, ao budismo. Por isso creio que esta vida é ilusão. Acho que a coisa está ali. Do outro lado. O que nós chamamos de morrer é como nascer para outros planos. [...] morrer deve ser algo prazeroso”198.

A intenção das “cartas-crônicas” talvez estivesse na aproximação de Caio Fernando

Abreu com cada um de seus leitores, amigos ou não — “Conto para você porque não sei ser senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo.

Sei que você compreende. Sei também que, para outros, esse vírus de science fiction só dá em

195 In: FERNANDES, 1995, loc.cit. 196 Id.. 197 ALABARSE, Luciano. O ousado viajante do Menino Deus. Zero Hora. Segundo Caderno Especial. 26 fev. 1996. p. 4. 198 Trecho de depoimento concedido ao Jornal da Tarde e originalmente publicado em 11 de outubro de 1994. Cf.: ABREU, 2006, p. 277. 46

gente maldita”199, registra. A forma encontrada lhe permite, assim, o tom de conversa, o desnudamento, ao pé do ouvido, da intimidade e das miudezas cotidianas, da mesma forma que lhe concedia o face to face com os destinatários queridos das cartas “verdadeiras”.

“Caio buscava a verdade na palavra”200, exprime Luciano Alabarse. “Verdades duras, deitadas sobre tapetes que pareciam ser sempre de cor púrpura desbotada, mirando tetos invariavelmente manchados de mofo e solidão, como no conto Linda, uma História

Horrível”201, complementa, em entrevista ao jornal Zero Hora, tangendo o caráter visceral da escrita de Caio Fernando Abreu e encontrando na ficção exemplo evidente disso.

Sendo assim, como não desconfiar da sinceridade da pena? Como não reconhecer a viabilidade de confissão e ficção habitarem a mesma trama narrativa? Antes de ensaiar qualquer trajetória discursiva, é preciso observar, ao que alerta Maria Helena Werneck, que o

“corpo, sujeito ao olhar alheio, amarelece como o papel, encarquilha, range e se rói, mas não se oferece em suplício. Ao contrário, revigora-se ao tornar visível no abatimento, ao narrar os cuidados de si”202 — narrar este que favorece a “percepção de si”203 do autor, que a transfere para o papel fino da carta, no lugar do “personagem social”204. Será?

Acerca disso, prudente é considerar também o desejo expresso por Caio Fernando

Abreu de que as correspondências tomassem os rumos públicos depois de sua morte — sem

199 ABREU, 1996, loc.cit. 200 In: GUTKOSKI, Cris. Cartas de Caio F. saem do ineditismo. Zero Hora. Porto Alegre, 27 maio 2000. Cultura, p. 3. 201 Id.. No conto referido, Caio Fernando Abreu narra, logo na abertura: “Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor?” (In: ABREU, 2005b, p. 21). Mais à frente na narrativa, um dos personagens faz, então, referência ao tal teto de que trata Luciano Alabarse: “Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão.” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 26). 202 WERNECK, Maria Helena. “Veja como ando grego, meu amigo.” Os cuidados de si na correspondência machadiana. In: GALVÃO, Walnice; GOTLIB, Nádia (Org.). Prezado senhor, Prezada senhora. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 141. 203 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos & abusos da história oral. 6. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 170. 204 Id.. 47

arrombamentos invasivos à “intimidade” do autor —, numa postura que desencadeia inúmeras divagações: “nós nos escrevemos dezenas de cartas. Não sei se você guardou as minhas como guardei as suas. Se você guardou, uma idéia [...] é você publicá-las. Vamos que eu me torne um mito literário (melancolicamente póstumo...)”205, sugere a Lucienne Samôr, numa referência muito próxima ao desejo de ter o epistolário também lido por destinatários diferentes daqueles referenciados no alto da carta de origem — instigando quem atenta para a prática epistolográfica do autor: “Já leste carta tão besta? Pois é, vai saindo. Nas minhas obras póstumas, você jura que elimina as mais imbecis?”206.

Afinal, estaria, Caio Fernando Abreu, a partir do escancaramento dessa vontade, forjada ou não, policiando-se enquanto missivista que emite pareceres sobre si e seu círculo de relações pessoais e profissionais? Estaria, ele, utilizando-se de máscaras quando na

[re/a]presentação de si e dos pares nesta escrita dita confessional? Lustrando o discurso na confecção e na ambientação da narrativa de si? Maquiando experiências cotidianas, sob o signo do artifício? Construindo “rasgos de verdade”, simulacros e/ou pastiches de confissão?

Tingindo revelações — à sombra de Roland Barthes, que, com freqüência, “deu a seus fragmentos auto-narrativos um leve tom de farsa”207, amparado pela certeza de que a sinceridade não passava de “um imaginário de segundo grau”208? “De qualquer forma, se você as tem, são suas. É a minha herança para você”209, enfatiza o missivista, colocando a recebedora a par da doação de cartas remetidas por outros escritores, as quais mantinha guardadas em gavetas e pastas, à Fundação Casa de Rui Barbosa210.

205 Fragmento de epístola redigida em 27 de novembro de 1995 (In: ABREU, 2002, p. 340). 206 Retalho de carta escrita a Jacqueline Cantore com data de 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 127). 207 Cf.: PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 18. 208 BARTHES, Roland. Deliberação. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 447. 209 ABREU, 2002, p. 340. 210 Em correspondência redigida em 1º de dezembro de 1995 a Flora Süssekind, Caio Fernando Abreu informa que lhe está encaminhando as cartas preciosas da poeta Ana Cristina Cesar [ainda não publicadas]. Nela, sugere 48

“Ontem fez uma manhã linda. Apanhei horrores de sol na piscina, o verde da tez vai esmaecendo. Tenho feito muita ginástica e yoga. [...] Na verdade estou ótimo. E vou ficar melhor ainda”211, narra Caio Fernando Abreu, promovendo uma verdadeira fusão entre as linguagens literária e extraliterária — na contramão de Erasmo de Rotterdam, para quem “o estilo epistolar deve ser simples e mesmo bastante descuidado, no sentido de um descuido planejado [...], quase improvisado e sem preparação”212. O trecho, extraído de correspondência remetida a uma velha amiga, poderia perfeitamente sinalizar a tensão entre a

“mentira do documento e a verdade da ficção”213. Armadilha discursiva? Como depurar o

“não depurável”?

Neste entremeio, viável é recorrer às impressões de Deonísio da Silva, que entende que qualquer coisa se torna tema quando o que está em jogo é a literatura. “Para um romancista, tudo é tema, todos são personagens, inclusive o próprio escritor”214, propõe. A partir disso, se aspectos da vida pessoal — a exemplo da Aids e das experiências e preferências sexuais e literárias, como o escritor Reinaldo Arenas, cuja literatura Caio

Fernando Abreu insere na novela Bien Loin de Marienbad, segundo José Castello215 — ganham voz na produção ficcional do autor, que não obstrui a entrada de referências autobiográficas, descartar o indicativo de que o contrário — que recursos ficcionais seriam adotados na escrita das cartas, potencialmente no preenchimento de lacunas residentes na memória216 e no esquecimento — poderia se verificar na sua escritura epistolar tomaria

a publicação da produção epistolar: “Tive uma idéia: essas cartas, na minha opinião, são tão belas que mereciam ser publicadas” (ABREU, 2002, p. 341). 211 Em extrato de missiva escrita em 20 de maio de 1983 a Jacqueline Cantore (In: ABREU, 2002, p. 45). 212 ROTTERDAM, Erasmo de. Brevíssima e muito resumida fórmula de elaboração epistolar. In: TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp, 2005, p. 112. 213 CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 69. 214 SILVA, Deonísio. O escritor se defende com a palavra. Zero Hora. Porto Alegre, 7 jan. 1995. Segundo Caderno, p. 5. 215 CASTELLO, José. A condenação que virou alegria de viver. O Estado de São Paulo. São Paulo, 11 dez. 1994. Caderno 2 - Especial Domingo, p. 3. 216 Neste entremeio, vale trazer à cena discursiva formulação esclarecedora de Ecléa Bosi: “A memória não é 49

dimensões de ingenuidade. Afinal, trata-se de um espaço de subjetividade igualmente fértil ao missivista enquanto zona de contágio e enovelamento entre biográfico e literário.

A esse respeito, interessante se afigura questionamento de Wolfgang Iser a respeito do lugar do fictício nos textos ficcionais: “Os textos ficcionados serão de fato tão ficcionais e os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?”217. E é, então, com desconfiança que Wolfgang Iser deposita um olhar [de soslaio] no senso comum que postula, enquanto opostos, conceitos como realidade e ficção, colocando em xeque todo “repertório de certezas que se mostra tão seguro a ponto de parecer evidente por si mesmo”218.

De fato, validar qualquer raciocínio sob esse prisma seria mero reducionismo, especialmente diante de fragmentos tomados de empréstimo da produção oficialmente ficcional de Caio Fernando Abreu, como estes: “não fui eu quem mentiu, mas uma parte de mim, e se quiserem perguntar também a essa parte de mim que desconheço quase tanto quanto vocês, se eu conseguisse localizá-la”219, narra no conto Dodecaedro, “talvez ela dissesse: [...] nada do que acontecia aqui [...] até que minha mentira nos ameaçasse aconteceria realmente se minha mentira não fosse verdade e nada tivéssemos a defender além da verdade inteira de um próximo momento mais verdadeiro”220.

Partindo desse viés, recorro mais uma vez ao aparato teórico de Roland Barthes para lançar luzes sobre tais inquietações e, então, especular: Se, à leitura das cartas de Caio

Fernando Abreu, o crítico aplicasse percepção semelhante à com que tomou a novela

Sarrasine — ambas figurando como texto —, plausível seria apostar na verdade lúdica da

sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado ‘tal como foi’, e que se faria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.” (In: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 55). 217 ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. vol. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 384. 218 Id.. 219 ABREU, 2005d, p. 52. 220 Id.. 50

produção epistolar em pauta, já que, segundo o autor221, cada texto contém seu jogo de verdades — recordando que a verdade, para Roland Barthes, somente existe na sua forma lúdica, inexistindo, assim, uma verdade objetiva ou subjetiva da leitura.

O discurso acima realimenta e redimensiona incursão teórica anterior do autor, na qual opera o conceito de efeito de real — “fundamento desse verossímil inconfesso que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade”222. Na análise, Roland Barthes intui que, na ideologia imperante, o fator de ordem nas ciências humanas, na literatura e no comportamento reside naquilo que há de concreto, “como uma máquina de guerra contra o sentido”223.

Com base nesse entender, o crítico adota a noção pontual de “ilusão referencial”224, cuja verdade, informa, é a seguinte: “suprimido da enunciação realista a título de significado de denotação, o ‘real’ volta a ela a título de significado de conotação: no momento mesmo em que se julga denotarem tais detalhes diretamente o real, nada mais fazem, sem o dizer, do que significá-lo”225. E o que vem a ser o real? Há o real? Para Roland Barthes, “não o conhecemos nunca senão sob a forma de efeitos (mundo físico), de funções (mundo social) ou de fantasmas (mundo cultural)”226, sintetiza, acertadamente, sinalizando que o real é sempre uma inferência: “quando se declara copiar o real, isto quer dizer que se escolhe tal inferência e não tal outra”227.

Sendo assim, aceitável é reconhecer que este efeito de real do discurso de que trata

Roland Barthes nada mais fornece do que variantes de verdade, pois é preciso considerar que a linguagem não dá e não pode dar conta do real, mas, sim, de representações do real. Ou

221 BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. 222 Ibid., p. 163. 223 Id.. 224 Ibid., p. 164. 225 Id.. 226 BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 78. 227 Id.. 51

ainda: “A linguagem constitui e articula uma realidade”228, conforme alerta, com perspicácia,

Marcio Markendorf, na espreita de Jean Baudrillard, para quem a realidade não passa de um conceito ou um princípio, ao qual se conecta todo o sistema de valores. “O Real enquanto tal implica uma origem, um fim, um passado e um futuro, uma cadeia de causas e efeitos, uma continuidade e uma racionalidade. Não há real sem estes elementos, sem uma configuração objetiva do discurso.”229

Neste sentido, mais que vislumbrar a verdade lúdica como a única possibilidade salutar de leitura, Roland Barthes oferece uma outra leitura edificante: a que visualiza o efeito de real. “A narrativa mais realista que se possa imaginar desenvolve-se segundo as vias

[mais] irrealistas”230, reflete o teórico, remetendo, a meu ver, a uma missiva um tanto melancholic escrita por Caio Fernando Abreu durante estada na Inglaterra, em 1991, na qual se mostra saudoso pela pátria deixada para trás: “Quando saí daí, saí gritando ‘gentalha, gentalha!’ em todas as direções (Marcos Breda [...] que o diga). Então vem o inverno, e a neve (as temperaturas do início de fevereiro aqui foram literalmente siberianas), e essa gente fria, e essa língua”231, relata a Guilherme de Almeida Prado, admitindo se deixar invadir por um amor desesperado por esse país de “gentalhas” e emendando, mais à frente, a resposta encontrada para abrandar a saudade que o acometia — “com aquele accent de João Gilberto, a música que mais cantei aqui — baixinho, só para mim mesmo — nesse tempo todo foi ‘isso aqui ôôô, é um pouquinho de Brasil iáiá’, quando via algo ou alguma coisa que me lembrava o Brasil”232.

228 MARKENDORF, Marcio. Autobiografia como artifício ficcional. In: Encontro Internacional Fazendo Gênero, 6., 2004, Florianópolis. Ensaio cedido pelo autor (pesquisador do Doutorado em Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina). 229 BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Tradução: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 69. 230 BARTHES, 1988, p. 164. 231 Trecho de missiva redigida em 9 de marco de 1991 (In: ABREU, 2002, p. 211). 232 Id.. 52

Acerca disso, coerente é levar em conta também a essência ideológica da linguagem e, diante desse aspecto, não desprezar que esta esteja incrustada nas representações trabalhadas por Caio Fernando Abreu quando a serviço da expressão epistolar, podendo recair sobre a [re/a]presentação de si e/ou do outro na escritura referida. “De vários fragmentos escritos em Londres em 1974 nasceu este diário, em parte verdadeiro, em parte ficção. [...] De qualquer forma, talvez consiga documentar aquele tempo com alguma intensidade”233, crava

Caio Fernando Abreu na dedicatória do conto Lixo e purpurina.

A referida estada em Londres, além de ser aproveitada como matéria-prima para a ficção, também lhe rende matéria-prima epistolar, como este extrato remetido a Vera Antoun:

“Homero quis ir ainda a uma livraria. Fomos. Aí fiquei alucinado por uma biografia de

Virginia Woolf, com fotos belíssimas, dois volumes. Apanhei um, Homero outro. Saímos.

Dois caras nos viram, nos seguiram. Nos apanharam na esquina”234. Resultado [válido para vida e arte]: passar a noite na prisão. Na manhã seguinte, conta na carta, Homero e ele foram julgados e obrigados a pagar multa no valor de 30 libras — equivalentes “a mais ou menos

500 contos”235, informa, exagerando na dimensão discursiva para a punição.

No espaço da ficção, o suposto relato pessoal ganha a seguinte configuração:

“Passamos a noite na delegacia de Earl’s Court. Motivo: Hermes e eu fomos presos roubando uma biografia recém-lançada de Virginia Woolf [...]. Ficamos rondando, eram dois volumes cheios de fotos [...]. Enfim apanhamos um volume cada um e saímos”236, pormenoriza no conto mencionado. “Chamaram a polícia, Hermes nervosíssimo, achando que seríamos deportados. Brinquei, dizendo que de agora em diante Virginia Woolf seria nossa padroeira, nossa fada-madrinha. E que anyway era um roubo muito digno”237, amplia o prosador,

233 ABREU, 2005a, p. 193. 234 Fragmento de carta escrita a Vera Antoun, em abril de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 469). 235 Id.. 236 ABREU, 2005a, p. 209. 237 ABREU, 2005a, p. 209-210. 53

pontuando na narrativa literária, como o fizera na narrativa epistolar, que o parceiro do furto e ele foram obrigados a dormir cada um em uma cela e, a seguir, submetidos a um julgamento que determinou o pagamento de multa no valor de 30 libras — “todo o dinheiro que eu pretendia levar para o Brasil”238.

De posse desses e de outros tantos exemplos, não há como se esquivar de uma leitura “biográfica” das correspondências de Caio Fernando Abreu, nem deixar de perceber este lugar de discurso como instância de intimidade e confissão, do cotidiano de quem a escreve, recordando assertiva de Marlon Salomon, quando dispõe que o missivista, por meio da escrita de si, “se define, articula ou rearticula a si”239 próprio — proposição à qual emendaria: “o que quer que escrevamos transmite sentidos que não estavam ou possivelmente não podiam estar na nossa intenção, e as nossas palavras não podem transmitir o que queremos dizer”240, em concordância com outra exposição igualmente bem-vinda: “A gente quando escreve é determinado pelo inconsciente. Há coisas que acontecem na escrita sobre as quais não há como ter controle, coisas que desembarcam no papel e surpreendem”241. Efeitos de leitura.

Sob esse ponto de vista, a impressão que se configura é a de que o prosador, ao escrever sobre si nas correspondências, confecciona um efeito de realidade ou um efeito de referente ao transpor experiências da vida pessoal para o papel fino da carta, via linguagem escrita, numa atividade discursiva que se serve da fabricação de “cópias da realidade” [entre muitas aspas]. “Eu andava cheio de suspeitas, pintaram muitas estórias paranóicas na minha

238 ABREU, 2005a, p. 210. 239 SALOMON, Marlon. As correspondências: uma história das cartas e das práticas de escrita no Vale do Itajaí. Florianópolis: UFSC, 2002, p. 58. 240 HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 7. ed. São Paulo: Loyola, 1992, p. 54. 241 TABET apud MILAN, Betty. O jardim secreto da escrita. Entrevista concedida por Paul Tabet. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 ago. 2003. Mais!, p. 3. 54

cabeça — com base no real, infelizmente (se fosse demência pura seria mais fácil). [...] porque a realidade dos meus textos é tão ou mais (?) terrível do que o real dia-a-dia.”242

Diante de tais abordagens, Anatol Rosenfeld, numa postura respeitável, pondera que a intenção de verdade é fator vigorante nos enunciados de um texto científico e na maioria das notícias, das correspondências e dos diários. Para ele, os enunciados “constituem juízos, isto

é, as objectualidades puramente intencionais pretendem corresponder, adequar-se exatamente aos seres reais [...] referidos”243 — sentença que se assimila ao caráter de inatingível conferido à questão da verdade por Lucia Santaella, que insiste, na carona de Peirce, que se está “sempre a meio caminho da verdade”244, motivada pela convicção de que é impossível nutrir certeza absoluta sobre coisa alguma. Para a pesquisadora, se houvesse a possibilidade de “atingir a verdade, ela coincidiria com o real, seria a revelação manifesta do real, ponto de encontro (nó górdio) do passado com o futuro”245.

Nesta direção, é interessante pensar com David Harvey, que, ao teorizar a respeito do pós-modernismo, partilha a opinião de que os sentidos operam fora do controle e de que a vida cultural é uma série de textos em intersecção com outros textos, gerando novos entreteceres — condição da qual os escritores não estão excluídos. “Esse entrelaçamento intertextual tem vida própria”246, sintetiza, postulando a inutilidade de se tentar dominar um texto, tendo em vista que “o perpétuo entretecer de textos e sentidos está fora de nosso controle; a linguagem opera através de nós”247. Impossível não lhe atribuir razão ou deixar de lembrar, conforme adverte Terry Eagleton, a partir de reflexão do postulado teórico

242 Trecho de carta remetida ao também escritor Luiz Fernando Emediato, em julho de 1977 (In: ABREU, 2002, p. 489). 243 CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Salles. A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva,1968, p. 18. 244 SANTAELLA, Lucia. A assinatura das coisas: Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 155. 245 Ibid., p. 191. 246 HARVEY, op. cit, p. 54. 247 Id.. 55

derridiano, que toda linguagem “encerra esse ‘excedente’ em relação ao significado exato, está sempre ameaçando ultrapassar e escapar do sentido que tenta limitá-la”248.

De fato, como corifeu da escrita a frio, Caio Fernando Abreu não se privava da literatura e das demais formas de arte249, pelas quais nutria cumplicidade, quando no exercício da suspensão da emoção possível na tessitura epistolar — improvável seria tal possibilidade.

Ao se dedicar à prática epistolográfica, o escritor não rejeitava, por exemplo, o contexto social250 [e o caldo cultural] em que estava imerso — fator que se aproxima do viés documental a que se referem, para exemplificar, Maria Lucia de Barros Camargo e o próprio escritor, na dedicatória do conto Lixo e purpurina, cujo formato e linguagem remetem a um diário: “Devo ter ficado tão acostumado às roupas e ao feeling londrino que simplesmente esqueci que, além da ilha, existem outras coisas. A memória é sempre muito sacana”251.

E é em torno desses apontamentos que repouso meu olhar para arrematar este movimento de leitura — e retomá-lo novamente a seguir — que, na esteira de Roland Barthes, detém-se não em postular verdades absolutas ou conceitos fixos e normativos, mas indicar validades da linguagem [em sua natureza escorregadia], numa ousadia nutritiva e infindável:

“Anotar na agenda mental: reler Fernando Pessoa, principalmente Alberto Caeiro (em anexo, poema de Ricardo Reis); re-ouvir Terra de Caetano; reler aqueles poemas zen póstumos de

248 EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 185. 249 A cumplicidade com todas as formas de arte parece ter acompanhado o escritor por toda a vida, estando presente até mesmo nos momentos de dor extrema. Pouco antes de morrer, Caio Fernando Abreu brincou com o amigo e produtor musical, Marcelo Sebá, que reproduz o chiste queer do prosador: “Quando chegava uma visita no hospital, ele dizia: ‘Welcome to Philadelfia (alusão ao filme sobre a Aids, com Tom Hanks)’” (In: BARROS, André Luiz; MITCHELL, José; PAIVA, Anabela. Com a Aids, a descoberta real da vida. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 fev. 1996. Caderno B, p. 5). 250 A exemplo de como narra, em carta redigida a Guilherme de Almeida Prado, algumas impressões dos ingleses a respeito do Brasil: “Brasil aqui é uma coisa tão por baixo. Semana passada, no channel 4, passou Na avenue called Brazili, um documentário horripilante de Otávio Bezerra, filmado na Av. Brasil do Rio. Parecia filme de horror. Mas é a visão inglesa sobre o mundo. Todo o dia leio coisas sobre as adolescentes prostitutas de Calcutá, as criancinhas com Aids da Romênia, os refugiados da Albânia. Estive em Liverpool, falando na Universidade (o melhor foi ver o ‘Cavern Club’, onde os Beatles começaram), e sobre o Brasil, as pessoas só querem saber desse tipo de baixaria. Tenho que rebolar para explicar que o Brasil são muitos Brasis (...)” (ABREU, 2002, p. 214). 251 ABREU, 2005a, p. 214. 56

Cecília Meireles. Ou não reler nem ouvir nada”252, redige Caio Fernando Abreu a Maria Lídia

Magliani, a quem chama “Maglim, menina-loba”253, na abertura da carta. “Pegar as pedras fortemente, apertá-las contra o peito, comprimir a cabeça e o corpo inteiro contra as árvores, pisar descalço na terra, colocar balas e doces (sempre em número ímpar) ao pé das árvores grandes para os duendes e devas e erês comerem”254, emenda o autor, confirmando o caráter de confidência da epístola e penetrando no plano dos afetos e do misticismo que tanto estimava: “e ficarem teus amigos, deixar na cabeceira toda noite copos de água com açúcar para as fadas virem beber de madrugada. Acender velas para chamar Luz, jogar rosas amarelas nas águas dos rios para Oxum. [...] ritualizar, para dialogar com O Mistério.”255.

2. 2 [Más]Cara[s] & adereços

“Et voilá: sou também um pouco tolo, um pouco naive, um pouco pêra — e eternamente Bambi. Quando a barra pesa, compro flores e ouço Mozart. [...] Que enorme desgaste trocar najices — gastar um cartão lindo daqueles [...].”256

Diferentes destinos, intimidades com diferentes adereços e “graus” de sinceridade e

[re/a]presentação de si, enquanto remetente, e do mundo. Baile de máscaras. Caracterizações distintas para distintos personagens. Intercâmbio de papéis: arte/vida. Teatro mental. “Toda carta é encenação, a própria sinceridade na carta é uma encenação”257, avisa Italo Moriconi, no embalo de outro alerta, este de Alai Garcia Diniz: “a linguagem existe tanto para mostrar

252 Trecho de correspondência escrita em 10 de setembro de 1991 (In: ABREU, 2002, p. 223). 253 ABREU, 2002, p. 220. 254 ABREU, 2002, p. 223. 255 Id.. 256 Fração de missiva escrita em 12 de abril de 1994 a Guilherme de Almeida Prado, durante período em que estava na França (In: ABREU, 2002, p. 298-299). 257 MORICONI, op. cit., p. 19. 57

como para ocultar”258, num movimento que tanto cala no que enuncia quanto revela no que esconde — sem demarcações: “Virei uma mulher misteriosa, reclusa, raramente vista, something between Garbo e Jackie O.”259, dramatiza Caio Fernando Abreu em trecho de epístola.

A partir disso, como enfrentar o jogo de verdades desta tessitura pertencente ao gênero epistolar? Como distinguir cada estratégia, decodificar suas nervuras e entender seus excessos literários e/ou suas incursões no veio ficcional?

Dosagens variadas de comicidade, alteridade, sinceridade e honestidade acompanham a prática da escrita de si de Caio Fernando Abreu, numa postura comum à de outros escritores — como Ana Cristina Cesar [“parece que em cada carta transmito uma coisa diferente. Essa instabilidade intensa também é real, é cotidiana”260], que instiga o olhar de sobreaviso de Italo Moriconi, para quem a poeta jamais teria escrito cartas inocentes: “As que enviou a Caio [Fernando Abreu] são pura pose, pura malícia, como convém à boa literatura.

No entanto delas é possível extrair verdades fortes da vida, mais cruéis que qualquer intenção documental”261; e Sylvia Plath, que velava sua vivência ao narrá-la para a mãe, manejando verdades sob o signo do travestimento e da efabulação —, que, conforme o interlocutor e a relação mantida com ele, regulam o tom do discurso, economizando e/ou exagerando nas suas construções discursivas, para se ajustar a expectativas e/ou se adequar a ditames sociais — reafirmando o entender de que se está diante de uma prática de escrita peculiar a um gênero mestiço que se tece [sem disciplinas], com elasticidade, segundo “as múltiplas instâncias

258 DINIZ, Alai Garcia. Máquinas, corpos, cartas: imaginários da Guerra do Paraguai. Tese de doutorado em Literatura Espanhola e Hispano-americana do Departamento de Línguas Modernas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1997, p. 176. 259 Escrita em 03 de fevereiro de 1994 e remetida a Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p. 285). 260 CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 116. 261 MORICONI, Italo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta. n. 14. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; RioArte, 1996. (Perfis do Rio), p. 11. 58

abrigadas pelas experiências do relato”262, pautada na ressignificação das impressões do passado com as experiências ao longo da vida, tendo em vista que “rumar ao passado é sempre um ato provisório carregado de sentidos do presente”263.

Em Cartas, Caio Fernando Abreu assume diferentes assinaturas para diferentes destinatários e fases da vida. Enquanto sujeito narrador, brinca com o próprio nome próprio264

— “Caio F. ou Marilene, a Incendiária”265, ele assina — e vira personagem de si, ao adotar a assinatura ficcionalizada “Caio F.” para encerrar mais de 80 correspondências, entre as 104 epístolas escritas e postadas entre 1980 e 1996266 e reunidas na edição, numa declarada alusão

à personagem Christiane F.267, e ao se expressar no feminino — prática também vigente na produção oficialmente literária: “Hoje estou passando pelo AUGE da posição Urano-Urano.

Stadenervos perde. Não durmo há uns cinco dias. Mas estou pegando a coisa pelo lado profissional, do pique (trabalha-trabalha-nêga)”268, narra em missiva a Jacqueline Cantore, “e fazendo o possível, à noite, para ficar na base dos chás, jogando coisas repousantes como

262 GOTLIB, Nádia Battella. Correspondências: a condessa de Barral e o imperador D. Pedro II. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 239. 263 DINIZ, op.cit, p. 2. 264 Acerca disso, é fundamental visitar o ensaio A ilusão biográfica para extrair dele os seguintes apontamentos firmados por Pierre Bourdieu: “O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais, [...] ele só pode atestar a identidade da personalidade, como individualidade socialmente construída, à custa de uma formidável abstração.” (BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos & abusos da história oral. 6. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 187). 265 ABREU, 2002, p. 120. 266 Em 1980, Caio Fernando Abreu recebe o prêmio Status de literatura pelo conto Sargento Garcia. No ano seguinte, passa a editor da Leia Livros. Em 1982, lança Morangos Mofados pela editora Brasiliense. Em 1983, volta a viver na capital fluminense, onde trabalha como colaborador da revista IstoÉ. Publica Triângulo das Águas — vencedor do prêmio Jabuti no ano seguinte, quando tem a peça Pode ser que seja só o leiteiro encenada em Porto Alegre, com a direção de Luciano Alabarse. Em 1985, volta a São Paulo. Trabalha como editor da revista A-Z, escreve roteiro para a série de TV Joana Repórter, protagonizada por Regina Duarte, e tem Morangos Mofados adaptado para o teatro. Em 1986, passa a integrar a equipe de redatores do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo. Em 1988, volta para a revista A-Z. Lança Os dragões não conhecem o paraíso, também premiado com o Jabuti, e Mel e girassóis e recebe o prêmio Moliére de melhor autor. Em 1994, tem publicada em Paris a novela Bien loin de Marienbad e retorna a Porto Alegre, depois de assumir publicamente ter a doença que o vitimaria dois anos depois (Cf.: ABREU, 2005b.) 267 Segundo Italo Moriconi, o escritor gostava de se assinar Caio F. e, nas cartas, “faz jogos entre essa assinatura e a de Christiane F., a adolescente alemã cujas experiências são relatadas no livro Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, lançado no Brasil em 1982 (...)” (ABREU, 2002, p. 53). 268 ABREU, 2002, p. 156-157. 59

Schuman, Mozart, Nana Caymmi (surpreendentemente relax) ou Nara Leão. Acho que funciona. Trata-se, principalmente, de aquietar a periquita”269.

Sujeito dual. Sujeito de papel. Desdobramento(s) de si. Movimento de pôr e retirar máscara(s)270. “Em vez de o sujeito de enunciação se servir da carta para anunciar a sua própria chegada, é o sujeito de enunciado que vai assumir inteiramente um movimento que se torna fictício ou aparente.”271 Pois é assim, muito ao enlevo de Franz Kafka, que Caio

Fernando Abreu enreda seu duplo — ora Marilene, ora Laika — antes de o endereçar ao recebedor, firmando uma espécie de pacto diabólico — produto da máquina literária —, mesmo que inocentemente, como diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Maquinar cartas: não é de todo uma questão de sinceridade ou não, mas de funcionamento”272, situam os autores, apostando na conservação da dualidade do sujeito emissor no fluxo epistolar — sujeito este que talvez exista apenas no papel [e dentro das cartas]: “Mas eu, quietíssima.

Santa. Mais que santa: deusa. A Europa acaba com o meu libido. A periquita sossega”273, provoca o contista, estampando “uma verdade”, a verdade tramada para se reportar ao então interlocutor, Gilberto Gawronski, e, não ao acaso, colando o produto narrativo à análise elaborada por Jacques Lacan a respeito do conto A carta roubada274, quando aponta que o registro da verdade reside “onde o sujeito não pode apreender nada mais do que a própria subjetividade que constitui um Outro em absoluto”275. Reflexão que vem reforçar o olhar depositado sobre o sujeito dual ou o sujeito plural, como prefere Jacques Lacan, para quem o inconsciente é próprio discurso do outro.

269 Id.. 270 Assertiva que facilmente remete à definição feita por Flora Süssekind a respeito do poeta como “máscara capaz de se desdobrar em muitas outras” (SUSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária: polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 81). 271 DELEUZE; GUATTARI, op. cit., p. 61. 272 DELEUZE; GUATTARI, op. cit., p. 58. 273 Trecho de correspondência de 24 de abril de 1994, postada a Gilberto Gawronski (In: ABREU, 2002, p. 302). 274 The Purloined Letter (no original) foi escrito por Edgar Allan Poe e traduzido por Charles Baudelaire. 275 LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 26. 60

Nesta fase da seleta epistolar, que acompanha e mapeia, em certo grau, a faceta adulta de Caio Fernando Abreu, o corpo de carteadores é extenso [falar em constelação de destinatários não seria exagero]: grandes amigos, colegas de profissão, gente de teatro, televisão, música, familiares. “Essa persistência em conquistar um lócus pessoal fê-lo desde cedo estabelecer uma rede afetiva/espiritual com diversos intelectuais e artistas, sobretudo com representantes das letras paulistas”276, assegura Marcelo Pen277.

Luciano Alabarse, Jacqueline Cantore e Maria Lídia Magliani, grandes amigos de

Caio Fernando Abreu, são os principais interlocutores desta faixa da coletânea, cuja maioria dos destinatários é escritor ou trabalha com arte e/ou cultura. Com eles, o missivista troca figurinhas sobre assuntos que vão muito além da literatura — da qual se serve enquanto leitor e da qual é pai, crítico, refém. Faz confidências, fala de política, arte, cultura, misticismo, astrologia, discorre sobre as crises da idade e a eterna penúria financeira, divide gostos musicais e impressões teatrais e atualiza o recebedor a respeito das viagens, das mudanças de cidade e de emprego, dos planos pessoais, das paixões, dos amores, dos flertes e das desilusões: “Ando me sentindo extremamente bem. O romance trancou um pouco [...] vou tentar trabalhar nele no Rio e em Porto Alegre. Nessas aí, pari outro conto, uma versão para adultos de Os sapatinhos vermelhos, de Andersen. Nunca escrevi nada tão obsceno”278, relata a Luciano Alabarse, a quem também segreda affair com : “Sa´s que ele me dedicou Só as mães são felizes no show aqui em SP? Fiquei num exibimento insuportável: foi o maior elogio de toda mi perra vida. Aí fui dar uns amassinhos nele, no final. Luciano, Cazuzinha está com no máximo 50 quilos. Lindo”279, explana o prosador, reconhecendo, mais à frente, a proximidade da morte ao encarar o cantor. E é com intimidade semelhante que tece cada

276 PEN, Marcelo. Quem tem medo de Caio F.? In: ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006, p. 09. 277 Crítico literário e tradutor paulista. 278 Fragmento de carta de 29 de julho de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 136). 279 Trecho de epístola de 31 de agosto de 1988 (In: ABREU, 2002, p. 161). 61

conversa epistolar com Jacqueline Cantore, a quem também nomina Anthea e M’r’lene

[brincando com o nome próprio alheio], conforme é possível verificar ao longo desta longa carta tomada como exemplo: “Preciso me sentar contigo e tomar uns bons mates.

Astrológicos, principalmente. [...] No meio dessas turbulências emocionais, uma sensação de estar aqui em férias, de estar de passagem. E culpas: que tenho mais é que ir pro tanque e me punir um pouco”280 — fragmento que poderia perfeitamente estar dirigido a Maria Lídia

Magliani, com quem o missivista desenovela o mesmo fio de intimidade, em especial aquele que envolve as miudezas de si, dos pedaços de vida que insiste em colar e colar e colar seguidamente enquanto há sopro de vida: “No meio da aflição objetiva de sobreviver nesta cidade, neste país, neste planeta, neste tempo — ando também bastante sereno. [...] Desisti de achar que o príncipe vai achar o sapatinho (ou sapatão) que perdi nas escadarias. Não sinto mais impulsos amorosos”281, partilha, relatando que, apesar de ter deixado de sentir os tais impulsos amorosos, ainda se permite experimentar impulsos afetivos e eróticos. “É estranho, e não me parece falso, mas ao contrário: normal. Era assim que deveria ter sido desde sempre. E não se trata de evitar a dor, é que esse tipo de dor é inútil, é burra, é apego à matéria”282, esclarece, na sucessão da narrativa, arrematando com a seguinte novidade: “Tenho passado escrevendo, cozinhando, ouvindo música (a Laurie Anderson [...] linda) e falando — cada vez mais — sozinho. Acertei uma alta com meu terapêutico, mas não consigo evitar de pensar que engambelei o pobre com a minha sanidade-teresinha”283.

Trato epistolar diferenciado é conferido a renomadas estrelas “globais” como Regina

Duarte e Bruna Lombardi, ainda nesta etapa, a quem o prosador reserva certa formalidade, prestando-se à emissão de pareceres “técnicos” sobre trabalhos literários e produções

280 Extrato de missiva com data de 05 de junho de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 58). 281 Fração de correspondência de 19 de março de 1990(In: ABREU, 2002, p. 180). 282 Id.. 283 ABREU, 2002, p. 180-181. 62

televisivas: “amei seu livro [...] Acho corajoso, bonito, forte. Principalmente quando você solta o emocional. Várias vezes, me comovi, li em voz alta para amigos, para mim mesmo.

Gostava, e muito, do primeiro, mas acho que você cresceu ainda mais”284, exprime, com comedimento, em correspondência a Bruna Lombardi.

Rumo ao passado, “Caio” é a assinatura favorita para encerrar 42 das 50 cartas selecionadas para compor o conjunto epistolar de 1965 a 1979 — a segunda fatia da coletânea. Neste período285, as cartas exibem dez destinatários e têm os pais de Caio Fernando

Abreu, Zaél e Nair de Abreu, mais e a “amiga namorada”286 Vera Antoun entre os principais interlocutores: “aqui estou, novamente, [...]. Por enquanto, às mil maravilhas.

Quando o ônibus entrou no chão do Rio Grande quase tive uma coisa: era tão diferente da loucura paulista, tão sem asfalto, tão não sei como, aquele céu dum azul como nunca vi em outro lugar”287, comunica a Hilda Hilst, dizendo-se aliviado por retornar às origens, apesar do receio de retomar a convivência ao lado da família e das circunstâncias todas que acompanhariam o regresso: “minha mãe [...] achando geniais os meus cabelos, a minha barba, os meus colares [...]. Pai, tu sabes como é: a gente nunca consegue perceber exatamente o que eles estão pensando. Mas desde que não perturbem com críticas, a gente vai levando”288.

284 Trecho datado de 16 de fevereiro de 1981 (In: ABREU, 2002, p. 29). O livro a que alude o missivista se chama Gaia (Ed. Codecri, 1980). 285 Em 1967, Caio Fernando Abreu inicia os cursos de Letras e Arte Dramática na UFRGS. Não os conclui. No ano seguinte, passa a viver em São Paulo e participa como repórter da primeira equipe de Veja. Ganha menção honrosa do prêmio José Lins do Rego com o conto Três tempos mortos. Em 1969, conquista o prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores, com o livro Inventário do ir-remediável, publicado em 1970, juntamente com Limite branco e a antologia Roda de fogo. Em 1971, Caio Fernando Abreu se muda para o Rio de Janeiro. Trabalha como redator na revista Manchete. No ano seguinte, de volta a Porto Alegre, trabalha no jornal Zero Hora e recebe premiação do Instituto Estadual do Livro pelo conto A visita. Em 1973, viaja à Europa e conquista menção honrosa do Prêmio Nacional de Ficção com O ovo apunhalado. Em 1977, lança Pedras de Calcutá. Em 1978, volta a São Paulo, onde trabalha como redator da revista Pop (Cf.: ABREU, 2005a.). 286 “Não ia ser legal você vir agora porque eu não sei exatamente o que sinto por você. Eu gosto de ficar ao seu lado, gosto quando você me escreve. Quer dizer, a sensação geral é boa, é clara. Mas eu não sei se posso dizer que te amo, que gostaria de ficar para sempre com você.”, escreve Caio Fernando Abreu em fração de missiva a Vera Antoun, com data de 09 de julho de 1974 (ABREU, 2002, p. 478). 287 Fragmento de correspondência de 13 de abril de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 359). 288 Id.. 63

Entre os assuntos abordados no carteio do período, além dos não atípicos — a literatura (lida e produzida) e o desfolhar da carreira como escritor —, estão as idas e vindas na vida acadêmica, as crises emocionais e espirituais — que perpassam todas as fases do conjunto epistolar —, as tentativas de sobreviver nos grandes centros urbanos, os projetos pessoais e profissionais e as percepções a respeito dos contextos político e social brasileiros:

“o Fascismo tem um SENHOR pau, e não se contenta em botar um pouquinho, quer empurrar tudo”289, escreve a Hilda Hilst, referindo-se à censura militar do período. “O Povo Brasileiro começa a se sentir incomodado, pensa vagamente em reclamar, mas conclui que, afinal, homossexualismo é uma coisa válida e se tantos suportam (pensa rapidamente no seu amigo

Povo Espanhol [...]) ele pode também suportar”290, exprime à escritora, acrescentando, na seqüência: “Aí, de repente, o Fascismo empurrou tanto que não é mais possível tirar. Ficou entalado. E goza trezentas e quarenta e cinco vezes seguidas enquanto o Povo Brasileiro morre de hemorragia anal. The end.”291.

Diferentemente do “gingado narrativo” — descontraído e ao mesmo tempo pop, tendo em vista a freqüente utilização de vocábulos pertencentes a idiomas estrangeiros

[prática também adotada na produção literária oficial292] — estampado nas cartas remetidas a

Hilda Hilst, nas quais o autor parece exercitar sua escritura livremente, sem se preocupar com pré-julgamentos ou conclusões equivocadas ou não desejadas, a leitura das correspondências expedidas aos pais de Caio Fernando Abreu e à amiga Vera Antoun revela certo “controle lingüístico”. Ao relatar assuntos comuns aos contemplados em cartas dirigidas à ficcionista

289 Trecho de carta de 04 de março de 1970 (In: ABREU, 2002, p. 402). 290 Id.. 291 Id.. 292 “Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago o cigarro (americano). But sometimes, yo hablo también un poquito de español, e if it faut, aussi un peu de français: navego, navego nas waves poluídas de Babylon Ciy, depois sento no Hyde Park, W2, e assisto ao encontro de Carmenmiranda com uma rumbeira-from-Kiúba. Perhaps pelas origens tropicais e respectivas back-grounds comunicam-se através de requebros brejeiros, e quizá, pelo tom dourado das folhas de outono”, narra no conto London, London ou Ajax, Brush and Rubbish (ABREU, 2005a, p. 239-240). 64

mencionada, o missivista se serve de rédeas curtas para poupar, da mira alheia, o defrontamento com termos comumente reconhecidos como vulgares e expressões notoriamente julgadas chulas e inapropriadas para a composição de uma conversa entre familiares e sujeitos afeitos a uma convivência mais conservadora.

É, portanto, com fino trato, contenção e polidez discursiva que Caio Fernando Abreu se reporta aos consangüíneos — dos quais o contista também preserva sua natureza homossexual [nesta faixa da seleta] — e a Vera Antoun, a quem presenteia, de certa forma, com fragmentos essencialmente belos, sensíveis e intimistas — “te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas confusas não saibam amar. Pena que também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito”293, segreda o prosador —: “só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.”294.

Neste sentido, para além de um lugar de fonte documental — foro confessional e biográfico, objeto de pesquisa fidedigno, retrato fiel de pares e épocas e elemento legitimador

—, as correspondências podem assumir a propriedade de uma armadilha discursiva, à medida que se dispõem a burlar a própria autenticidade ao gosto do remetente, passando a entretecer confissões ficcionais e ficções documentais, num flerte contínuo: “Ouvi hoje várias vezes: você está com a cara tão boa! S´as que Marilene desespera, mas não perde o tino, não? Entre duas cachoeiras de lágrimas, há sempre espaço para um pouquinho de creme Nívea”295, registra Caio Fernando Abreu, sob a faceta de Marilene — borrando o “verdadeiro” retrato de si para construir um outro desenho de si que é postado ao recebedor, que não deixa de obter um retrato do emissor, pois a máscara acaba por dissimular a própria dissimulação de si,

293 Extrato de missiva postada em 21 de março de 1972 (In: ABREU, 2002, p. 425). 294 Ibid., p. 426. 295 ABREU, 2002, p. 125. 65

recordando assertiva lacaniana sobre o jogo da verdade [no qual preconiza que justamente por se esconder é que a verdade se oferece do modo mais verdadeiro296], numa atividade discursiva que se fertiliza neste lugar sem fronteiras, neste “espaço de conversões, de transformações e disfarces: o espaço da linguagem”297.

Fluxo discursivo — no que se aplica à tal força motriz que as correspondências, por meio “do sangue que elas trazem, fazem disparar completamente a máquina”298, a “máquina de escrever”299 —, por isso pensá-las enquanto produtos da “máquina de expressão”300, como ponderariam Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao investigar o corpus epistolográfico [ou a literatura “menor”] de Franz Kafka. “Talvez seja em função das cartas, das suas exigências, das suas potencialidades e insuficiências que as outras peças são montadas”301, refletem os teóricos, ampliando e reativando a necessidade e a viabilidade de examinar a narrativa epistolar como fruto e [re]fluxo da escrita, seja da obra ou para além dela — “as coisas passando eu quero é passar com elas: é mais do que isso aí. Por enquanto estou nessa batalha de abrir as cucas alheias porque é impossível a minha fluir sozinha cercada de caretice.”302.

296 Cf: LACAN, 1996. 297 SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 48. 298 DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 68. 299 Ibid., p. 63. 300 Id.. 301 Ibid., p. 58. 302 Fração de epístola escrita por Caio Fernando Abreu a Vera Antoun com data de 18 de janeiro de 1973 (In: ABREU, 2002, p. 434). 66

3 A MEMÓRIA EM SI

“Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela.”303

“Querida mãe, querido pai, não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos — quase 40 — anos. Devo estar acostumado.”304 Mise en scène. É com esse tom, eminentemente performático, que Caio Fernando Abreu introduz conversa epistolar com os progenitores, engendrando pormenores autobiográficos ao longo da correspondência:

“Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como ‘eu gosto de você’. Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores”305.

Numa leitura compartilhada com Maurice Blanchot, os retalhos de si mencionados apontariam para a solidão essencial gozada pelo autor do discurso no exercício da escrita. O que equivale a afirmar que, ao escrever sobre si, Caio Fernando Abreu experimenta, na cena discursiva, não o isolamento ou o recolhimento, enquanto produtos derivados do individualismo, mas a solidão essencial [na qual o silêncio habita] e, ao mesmo tempo, uma realidade que não é “real”306 — seja sobre si e/ou sobre o outro, seja do mundo exterior e/ou da própria linguagem. “Quando estou só, não estou aí. Isso não significa um estado psicológico, indicando o desaparecimento, a supressão desse direito de sentir o que sinto a

303 ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 192. O fragmento integra a obra ficcional do autor. 304 O trecho, voltado aos pais do escritor, tem data de 12 de agosto de 1987 (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 153). 305 Id.. 306 O que, segundo formulação de Maria Gabriela Llansol citada por Lúcia Castello Branco, pode também ser compreendido desta forma: “Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros.” (BRANCO, Lúcia Castello. Os absolutamente sós – Llansol – A letra – Lacan. Belo Horizonte: Autêntica; Faculdade de Letras/UFMG, 2000, p. 11). A citação foi extraída de Maria Gabriela Llansol em Um falcão no punho (Lisboa: Rolim, 1985). 67

partir de mim mesmo como de um centro”307, prescreve Maurice Blanchot, complementando:

“O que vem ao meu encontro não é que eu seja um pouco menos eu mesmo, é o que existe

‘atrás do eu’, o que o eu dissimula para ser em si.”308

Desse modo, ao olhar para dentro de si prevendo captar memórias e/ou recolher traços da intimidade e do privado de si, num movimento que precede o ato da escrita, o missivista vai preenchendo o lapso, o vazio, a ausência, o esquecimento, com uma realidade por vezes imaginária, quebrada em sua veracidade, desdobrando-se sobre si mesmo para conceber, também, uma identidade forjada, postiça, estrangeira e/ou até desejada, possível graças ao exercício da linguagem — enquanto pura dissimulação: “por que eu falaria mais de ‘mim’, já que ‘mim’ não é mais ‘si’?”309 —, à fluência lingüística [e o seu “traquejar”] e à sintonia do epistoleiro com o mundo310. Pois, nesse entremeio, é necessário considerar, conforme postula

Sigmund Freud311, a aversão da memória em recordar tudo que remonta aos sentimentos de desprazer e à reprodução daquilo que renova o desprazer. Além do quê, é preciso ter clareza de que “cada instante é único e jamais será resgatado em seu inteiro teor”312, segundo propõe

Adriana Cörner Lopes do Amaral em leitura empreendida a respeito da memória em Jacques

307 BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 253. 308 Id.. 309 BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 179. 310 Artista pop, Caio Fernando Abreu exibia a falta de rédeas e rejeitava convenções. Citizen do mundo, viajou muito — “estou perdido: feliz na estrada, alone as always” (ABREU, 2002, p. 195) —, feito um andarilho, sempre que pôde e, em especial, à custa da literatura que produzia — seja pelos lançamentos no exterior, mais ao final da carreira e da vida — “London 10.12.90/ Jacklie C./Rapidinho entre um conhaque e um Chet Baker. Aaaaaaaaaiiiiiiiiiii — (sta´d´nervos) Lancei livro, dei entrevista pra Time, pro Independent, saí na Time Out, falei da BBC. Agora estou aqui waiting for a Nobel, claro.” (ABREU, 2002, p. 194) —, seja pelos prêmios que ia arrebatando, ainda no início da trajetória como escritor. Os períodos de “exílio” da terra mãe podem ser conferidos em várias correspondências reunidas na primeira fase da coletânea Cartas, por meio da identificação do local de onde são redigidas pelo missivista [no alto da página] e do próprio teor das epístolas: “Hoje tive medo. Estou vivendo numa espécie de Harlem londrina. É muitíssimo Sammy and Rose, embora eu preferisse que fosse mais para Beautiful Laundrette. Em cima, uma negrona grita o tempo todo fuck you little devil! I´ll kill you, bastard: para nigrinhos. Grita mais coisas que não entendo, mas me soam mais para David Lynch do que para T.S. Eliot.” (ABREU, 2002, p. 197). 311 FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Comentários e notas de: James Strachey e Anna Freud. Direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, c1969, v. 15. 312AMARAL, Adriana Cörner Lopes do. Sobre a memória em Jacques Derrida. In: NASCIMENTO, Evando; GLENADEL, Paula (Org.). Em torno de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p. 38. 68

Derrida. Afinal, o testemunho da memória fornece, ao recordador, “uma mera reprodução, cópia que nunca será perfeita, e já sempre diferente, em diferença (sempre ficção e não a cena em si)”313 da lembrança evocada, tendo em vista que o exercício de rememorar, operado no tempo presente, atualiza e modifica a lembrança sob a batuta da ressignificação314 — ou, como acredita Sigmund Freud315, o passado de uma pessoa está sujeito à distorção e à reelaboração, sempre que observado na perspectiva de um período posterior.

Tal questionamento — “por que eu falaria mais de ‘mim’, já que ‘mim’ não é mais

‘si’?”316, “indaga” Roland Barthes —, que talvez não se proponha realmente o questionar de si, dada a natureza do texto em que se localiza, originalmente, o trecho citado, dialoga com a própria escrita de si do teórico, sobre a qual ele externa: “tudo se joga aqui, estou fechado para sempre na liça pronominal: o ‘eu’ mobiliza o imaginário [...] o ‘eu’ pode não ser o mim

[...]; posso me chamar de ‘você’, como Sade o fazia, para destacar em mim o operário, o fabricante, o produtor de escritura”317 — assertiva que facilmente alude às personas exibidas no epistolário de Caio Fernando Abreu, como as nomeadas Marilene, Laika, Caio F.

[dramatis personae].

Eu(s) da escrita. Pela escrita. Escrita contaminada por alteridades pertencentes a outros espaços discursivos. Escrita para além do gênero. Eu(s) para além da biografia e da fidedignidade da paisagem íntima. Eu(s) performático(s): “Não sei fazer ‘jogo social’. Até saberia, mas não me interessa, tenho preguiça. Como Dulce V., eu sempre quis só ‘outra coisa’, e vou chegando a um ponto em que tenho pensado se essa ‘coisa’ não será a solidão

313 Id.. 314 Para Marilena Chauí, por exemplo, a memória não apenas guarda impressões do passado, mas ressignifica, a todo instante, as lembranças do passado com as experiências ao longo da vida (Cf: CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986). 315 FREUD, op.cit, v. 17. 316 BARTHES, op. cit., p. 179. 317 Id... 69

mais completa”318, “escrevinha” ao destinatário Guila319, em epístola postada com selo e carimbos parisienses, comparando um desejo seu ao de uma de suas personagens da ficção

[Dulce V.] e adicionando, a seguir: “e se não ela, essa solidão idealizada, porrada de gatos, rosas, Mozart e livros, será quem sabe somente a morte. Há que ter paciência para esperar por ela, que é a única certeza entre todas as nossas ilusões tolas.” 320.

De fato, o imaginário — enquanto “indiscernibilidade entre o real e o irreal”321 — do missivista se reveste de diferentes máscaras, conforme o palco do discurso [e a platéia], modelando a encenação de si, alargando suas margens e transindo suas linhas de fuga — pela erupção de uma subjetividade [polifônica] que se desvela pela razão, pela crítica e, sobretudo, pelo pathos literário322, que passa a orquestrar o ritmo, a intensidade e a dicção desta escrita de si tecida a partir de um processo retórico norteado, essencialmente, pela dramatização da experiência de si. Ao que é indispensável observar que “um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”323, segundo pontua, com habitual pertinência, Michel Foucault, pois, além de se vincular a um gesto de escrita e/ou à articulação de um vocábulo, um enunciado “abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro”324.

Extensão identitária. Margem que se quer corpo. Prolongamento de si. “Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o

318 Fração de correspondência com data de 12 de abril de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 299). 319 Guilherme de Almeida Prado. 320 ABREU, 2002, p. 299. 321 DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992, p. 84. “O imaginário é a imagem-cristal. [...] O que se vê no cristal é o falso, ou melhor, a potência do falso. A potência do falso é o tempo em pessoa, não porque os conteúdos do tempo sejam variáveis, mas porque a forma do tempo como devir põe em questão todo modelo formal de verdade.”, explica o autor (DELEUZE, 1992, p. 85). 322 Enquanto criação, produto discursivo, que se origina pela convergência das linhas de fuga, conforme trata Gilles Deleuze, ao teorizar acerca da subjetividade, que, segundo ele, além de ser um campo de possibilidades, de invenção, é composta por linhas duras, linhas flexíveis e linhas de fuga (Cf: DELEUZE, 1992). 323 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6. ed. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 32. 324 Id.. 70

áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco — todas as pessoas são loucas [...]. Mas amor de verdade”325, profere aos pais, acrescentando, mais

à frente na narrativa epistolográfica: “Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão.

Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto”326.

Ao teatralizar com a condição de adulto que é, Caio Fernando Abreu amplia a sua memória “consciente” invocando sua memória “inconsciente”327 — muito mais rica e inventiva328. Com base nisso, dá “asas” ao conteúdo presente, formado de traços da memória, fios de reminiscências, lapsos de experiências passadas, rearranjando-os, de maneira diferenciada a cada processo de rememoração, de acordo com as circunstâncias vigentes e, muitas vezes, distanciando-se da realidade [ou a recusando] para se servir da fantasia329 ao lidar com o material extraído do passado330, o qual é submetido a um processo de retranscrição331. Ao que recorro a Henri Bergson para frisar que toda consciência é memória

— “conservação e acumulação do passado no presente”332, mesmo que numa chave de diferença.

325 Retalho de correspondência de 12 de agosto de 1987 (In: ABREU, 2002, p. 153). 326 Id.. Na ocasião, Caio Fernando Abreu conta com 38 anos de idade. 327 FREUD, op.cit, v. 6. 328 Em trecho de carta postada a Hilda Hilst em 14 de junho de 1970, Caio Fernando Abreu exibe uma de suas facetas performáticas: “Ando deprimido, agressivo cansado — perdi uns cinco quilos: pareço um fantasma, tenho insônia e pesadelos horrendos, idéias negras durante a noite. [...] tenho participado de festas louquíssimas, na base da maconha, da nudez, jogo da verdade, bacanais surubas. [...] Ando muito sozinho, nessas festas se reúnem artistas plásticos, atores atrizes, escritores — todos jovens, perdidos, desesperados — é uma coisa terrível. Chega a ser comovente a maneira errada como eles buscam a pureza, como eles tentam se convencer que os bacanais são a forma mais absoluta de comunicação: finjo o tempo todo, rio, sou alegre, dispersivo, com aquele brilho superficial e ridículo. E em cada fim de noite me sinto um lixo.” (ABREU, 2002, p. 407). Ao final da missiva, o escritor inclui o seguinte “PS — Depois de reler — não é tão grave assim. Fui muito dramático. Faça boas vibrações por mim.” (ABREU, 2002, p. 409). 329 Para Roland Barthes, a recusa à realidade por meio de uma fantasia configura o próprio irreal. Cf.: BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 5. ed. Tradução de Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1985. 330 FREUD, op.cit, v. 17. 331 FREUD, op.cit, v. 1. 332 BERGSON, Henri. Cartas, conferências e outros escritos. 2. ed. Tradução de Franklin Leopoldo e Silva e Nathanael Caxeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 71. 71

Mais que narrativa de si, re[a]presentação de si, escrita para si333 — “escrevendo-me

[...] sou eu mesmo meu próprio símbolo, sou a história que me acontece”334, exterioriza

Roland Barthes, ao edificar uma suposta biografia de si ou viabilizar a própria desconstrução de uma concepção de autobiografia. Bailar do desejo. Identidade que se quer escritura.

Colagem. Decolagem. Gozo. Gozo de linguagem e, por essa razão, genuinamente literária:

“Pensam que vão acabar comigo? Nunca. Marilene foi às compras — como é uma intelectual, no fundo, comprou outro Isherwood — essa paixão vai me levar à ruína — e o final daquela

Doris Lessing/Martha Quest.”335, relata Caio Fernando Abreu, apresentando-se ao interlocutor com dicção genuinamente feminina e tom de brincadeira — é Marilene quem aparece no diálogo epistolar para autenticar a ficção [documental]. Espaço documental maquinado de espaço ficcional [ou “conficcional”] ou vice-versa, no qual convergem personagens e viveres, invenções e ações, registros e apagamentos — ao que aproveito, novamente, análise oferecida por Adriana Cörner Lopes do Amaral acerca da memória em Jacques Derrida, a qual estabelece que “o ser se inscreve em se apagando”336 ou, noutros termos, que “o ser se apaga e a escrita se inscreve”337, respaldando-se no postulado freudiano, à medida que este propaga que, por intermédio da escrita, o sujeito que deveria mesmo se apagar se inscreve na escrita e para além da escrita.

Por essa razão é que a escritura passa a responder por aquele que a originou, “torna- se a memória dele, em nome dele”338 — seja ela um sopro biográfico ou um esforço ficcional ou o imbricar de ambos, dado que a memória tem como característica fundante o processo

333 A esse respeito é interessante pensar com Sergio Vilas Boas, para quem “o ato de narrar e de recordar é uma arma contra a solidão e a dor, memória formada de saberes, um saber transmitido e compartilhado” (VILAS BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002, p. 59). 334 BARTHES, 1975, p. 64. 335 Fragmento de carta remetida a Jacqueline Cantore com data de 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 129). 336 AMARAL, op.cit, p. 37. 337 Id.. 338 Id.. 72

reativo que a realidade provoca no sujeito, como bem exprime Antonio Torres Montenegro:

“Ela se forma e opera a partir da reação, dos efeitos, do impacto sobre o grupo e o indivíduo, formando todo um imaginário que se constitui em uma referência permanente de futuro”339.

Justaposição de técnicas, recursos, intenções, dicções340. Intercâmbio. Travestimento.

Metamorfose. Contágio.

Nesse viés, notoriamente [e sem prenúncios], missivista e ficcionista se [con]fundem neste lugar de memórias que mais parece um repositório de trapaças discursivas, jogos de engano e embustes confessionais — fazeres mais emergentes que a emergência de qualquer verdade no delinear de si do autor. A representação de si e do meio, de tão subjetiva, arbitrária e conjetural, aproxima-se do mesmo universo de representação que a ficção, muito mais que qualquer outro discurso, é capaz de tramar: “Agora ando mais calmo. Não muito, verdade.

Mas desde que ganhei meu PhD em desilusão amorosa, aos 40 anos, tenho me divertido como nunca. Ai, que maravilha arrebentar o mito do Amor Eterno!”341, compartilha Caio Fernando

Abreu com José Márcio Penido342. “Me associei ao Zé Simão na campanha ‘sem medo de biscate’, e assim vou indo, até que algum Richard Burton resolva me dar um diamante do tamanho do Ritz (o hotel, não o bar, please). Pouco provável. Até lá, tento ser profissional.”343, apimenta o prosador, dialogando com o entorno social344 — como de

339 MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3. ed. São Paulo: Contexto, 1994, p. 19. 340 “Com pessoas, essa forma de criação mais imperfeita que Deus colocou sobre a Terra, tenho deixado pra lá. Minha energia é para o texto, as plantas, os passarinhos que alimento com sementes de girassol. A minha autocura no braço, na raça, na solidão que ninguém compreende, e por isso mesmo não dói. Me dóem as feridas físicas, as queimaduras de nitrogênio líquido pelo corpo. Tenho visto anjos, sa´s?/E as fadas também existem, baby.”, narra Caio Fernando Abreu em fragmento de carta dirigida a Jacqueline Cantore com data de 09 de março de 1995 (ABREU, 2002, p. 331). 341 Trecho de missiva datada de 2 de novembro de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 190). 342 Jornalista. Amigo de Caio Fernando Abreu desde os anos 70, quando o conhece, em São Paulo. Trabalha com o escritor no jornal O Estado de S. Paulo. 343 Fração de correspondência postada a José Márcio Penido em 2 de novembro de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 190-191). 344 “Guilherme, mon cher, precisamos — eu e você e todo mundo — tomar muito cuidado com esses tempos. São tempos de horror. Tudo fica ainda mais grave neste país de là-bas, como é o Brasil, e mais ainda numa cidade como São Paulo — onde a crise econômica, a corrupção, a violência, a falta de futuro, a miséria material foi gerando sem que as pessoas percebessem também uma histeria psicológica, uma miséria espiritual ainda mais 73

costume nas narrativas ficcionais345 —, numa espécie de extensão ficcional, franqueando os limites entre a memória e a fabulação. “Quando escrevo para você é como se escrevesse pra mim mesmo — às vezes o jeito me escapa, e [...] as cartas ficam parecendo bestas. Tento ler, não consigo. Uma carta é difícil — imagine um conto. [...] Não consigo ser verdadeiro o tempo todo. Mas você me saca, eu sei.”346

Espelho de si. Reflexo que deseja de si. Imagem que quer para si. Fabulação que, ao invadir o teor privado da narrativa, amplifica-se e se projeta ao olhar do recebedor enquanto verdade [mesmo que transitória, relativa, pela metade] do sujeito emissor, que revive seus artifícios ficcionais [auto]biográficos no processo da escrita de si — no qual a ação “atenua os perigos da solidão: dá o que se viu ou pensou a um olhar possível; o fato de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro”347 —, mantendo a salvo o segredo enraizado no próprio enganar de si diluído na narrativa epistolar, que, muitas vezes, assume- se enquanto experimentação lingüística, laboratório literário, termômetro do exercitar artístico, como já esmiuçava Ana Cristina Cesar348, ao trabalhar a estetização do olhar.

“Quando você estetiza, quer dizer quando você mexe num material inicial, bruto, você já constrói alguma coisa. [...] você finge, é a questão do fingimento novamente. Aí você sai do

âmbito da Verdade [...] saca que ela nem existe, que ela nem pode ser transmitida.”349. Tudo porquê, conforme preceitua Maria Esther Maciel, com distinta validade, “as palavras podem deflagrar realidades imprevistas, fingir um mundo que não existe senão apenas dentro delas

terrível e mais patética.”, redige Caio Fernando Abreu em trecho de epístola remetida a Guilherme de Almeida Prado, em 12 de abril de 1994 (ABREU, 2002, p. 298). 345 “Se foram duros? Foram, foram duros. Mas foram também cheios de sonhos e encontros e pequenas e grandes esperanças. Foram anos em que não se podia viver muito para fora: a repressão política nos empurrava para dentro.” (ABREU, 2005b, p. 141). 346 Fragmento de carta escrita a Vera Antoun em 19 de outubro de 1973 (In: ABREU, 2002, p. 455). 347 FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução de Elisa Monteiro e Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 130. 348 “Reli hoje cartões-postais que mandava da Europa, todos literatura”, cita a poeta em fragmento de carta remetida a Ana Candida Perez (CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 217). 349 CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 273. 74

ou a partir delas”350. Trata-se, portanto, seguindo argüição acertada de Bruno Souza Leal, de um ritual literário que se esgota em si mesmo: “Quando o texto se arma para trair o leitor [que

é o próprio emissor], portanto, ele o faz para desviá-lo de sua verdade. Acena, então, com um segredo, com uma outra verdade que não se revela, se apresenta”351 — lacuna esta que acaba por deixar “o leitor só, com o texto, com seu próprio olhar, diante de um engano, de seu próprio engano” 352.

Neste contexto, Bruno Souza Leal reforça que o engano referido faz parte da própria narrativa — traiçoeira por natureza, “acena com uma outra versão de si mesma, com uma outra possibilidade, em que se expõe, ela mesma como artifício, como algo arbitrário e/ou aleatório, colocando-se sob suspeita”353. Com base nisso e sob a tutoria de Jean Baudrillard, o pesquisador identifica o caráter sedutor da escrita — enquanto jogo com o real, os signos e o outro — como estratégia para desviar o leitor de qualquer intenção de verdade. “Assim, ‘eu serei seu espelho’ significa não ‘serei seu reflexo’ mas ‘serei seu engano’. Seduzir é morrer como realidade e produzir-se como engano” 354.

Desse modo, é importante considerar que a sedução de que trata Jean Baudrillard opera sobre “a intuição do que no outro permanece eternamente secreto a si mesmo, sobre o que nunca saberei dele e que, entretanto, me atrai sob o selo do segredo”355, ou seja, a sedução funciona sob o signo do segredo, que é sempre o do artifício.

Sendo assim, a sedução da escrita de si estaria sempre associada ao segredo, ao não desvelado, ao que se mantém secreto, fantasioso, enganoso, à medida que joga com o estatuto

350 MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004, p. 120. O fragmento integra ensaio sobre o poeta mineiro, Altino Caixeta de Castro. 351 LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 62. 352 Id.. 353 LEAL, 2002, p. 63. 354 BAUDRILLARD, 1992, p. 73 apud LEAL, 2002, p. 62. 355 BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos. 8. ed. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papipus, 2004, p. 177. 75

da verdade, do real, do autêntico, que aparecem, na narrativa, apenas como possibilidade, como alegoria. “A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o mais difícil no tempo que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a montanha de lembranças que você vai juntando por dentro”356, insere Caio Fernando Abreu, em prosa ficcional.

Ao depositar o olhar sobre a escrita epistolar de Caio Fernando Abreu, Márcia

Denser oferece percepções acuradas e elucidativas a respeito, apostando na “absoluta necessidade que [Caio Fernando Abreu] tinha de mentir para si próprio, auto-enganar-se, seja nos seus amores, seja na sua morte”357 — na contramão da escrita ficcional, na qual, segundo ela, o escritor jamais mentiria, tendo em vista que é justamente no espaço da ficção358 que há o desenrolar do questionamento de si, bem como a revelação e o desnudamento do autor. É possível. O parecer encontra esteio, por exemplo, na introdução do conto Anotações sobre um amor urbano, na qual o escritor revela que o texto em questão passara por várias versões e que, apesar disso, ele nunca o sentira, de fato, concluído: “Mas talvez o jeito meio sem jeito destes pedaços mais parecidos com fragmentos de cartas ou diário íntimo afinal seja a sua própria forma informe e inacabada”359 — uma escrita sempre em reelaboração.

Além do exposto, Márcia Denser acredita na função terapêutica que as cartas assumem para o missivista, cumprindo o papel de “manter sob controle — ‘ocupada’ no sentido positivo — aquela ‘ânima desocupada’, fútil, atenta a banalidades e coisas de

356 ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 187. 357 DENSER, Márcia. A crucificação encarnada nos anos 80. In: ABREU, 2005b, p. 11. 358 No conto Uma história confusa, Caio Fernando Abreu desenvolve o enredo com base no recebimento de cartas anônimas por um dos personagens, explorando, na narrativa em forma de diálogo, a dúvida do recebedor das correspondências quanto à veracidade do teor da escrita: “— E ele pode estar mentindo. Essa data, por exemplo, essa data pode ser inventada” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 188). Além disso, o destinatário comenta com o interlocutor o fato de ter ido a um astrólogo para se informar a respeito do emissor das missivas sem identificação: “Ele nasceu a 22 de setembro de 1954 [Caio Fernando Abreu em 12 de setembro]. Entre mais ou menos dez e meio-dia. É de Virgem [...] Pelos meus cálculos, o ascendente deve ser Escorpião” (ABREU, 2005a, p. 188) — narra o prosador para, na seqüência, comentar que isso tudo credita ao missivista oculto predicados como inteligente, secreto, misterioso, intenso. “Só pelas cartas qualquer um percebe que ele tem certa... estrutura” (ABREU, 2005a, p. 189). 359 ABREU, 2005a, p. 155. 76

somenos, ridícula, menor, tola, como qualquer mulher inculta e ávida por mexericos”360, sintetiza, frisando que a ânima à qual se refere nada mais é que um arquétipo, “um resumo da experiência da mulher que existe no inconsciente masculino, logo não é (nunca foi) uma mulher real, mas um esquema, um estereótipo feminino”361.

Acerca desse enfoque, prefiro tomar as correspondências [públicas] de Caio

Fernando Abreu enquanto lugar para os modos de ser do autor e/ou do personagem autoral que o representa, e aqui caberia, de certa forma, uma aproximação com a natureza terapêutica de que trata Márcia Denser — no que as cartas, enquanto território clínico, conservam de uma provável psicanálise de si que permite o extravasar do inconsciente do sujeito emissor, de seus eus guardados e seus desdobramentos privados, que se colocam em movimento nesta suposta

“conversa sem fim”, estabelecida pelo desejo de manter o vaivém das prosas entre os interlocutores, de aguardar a chegada de uma nova carta, de alimentar entredizeres, de apimentar a experiência de si transformada em linguagem e compartilhada com o recebedor:

“Não ando bem. Como não ando bem há exatos 41 anos e quatro meses, concluo que nada de grave. Mas — digamos — problemas brasileiros. Trabalho demais, trabalho em todas as direções, trabalho mal pago, suado, sofrido. Contas, contas & contas.”362, dramatiza o escritor em missiva a Maria Lídia Magliani. “Nenhum amor, há tanto tempo, ando até pensando que amor é como uma espécie de fantasia com Papai Noel, só que dura até os 40. Será? Por favor, me desmente.”363

A esse respeito, ao dissertar a respeito da conversa, Roland Barthes intui que a linguagem é uma pele e, como tal, pode ser esfregada no outro — “Minha linguagem treme de

360 Ibid., p. 12. 361 Ibid., p. 13. 362 Trecho de correspondência escrita em 10 de janeiro de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 171). 363 Continuação do fragmento anterior, em que Caio Fernando Abreu se reporta a Maria Lídia Magliani (In: ABREU, 2002, p. 171-172). 77

desejo”364 —, remetendo ao caráter erótico da escrita epistolar e à intenção de, por seu intermédio, seduzir o interlocutor: “toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é ‘eu te desejo’, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma)”365. Tal formulação, se combinada ao fato de a linguagem, segundo indica Henri Bergson366, ter por função primitiva o estabelecimento de uma comunicação, permite supor que o diálogo epistolar se institui pelo desejo do próprio fluxo comunicacional entre emissor e receptor —

“é a carta (letra) e seu desvio que rege suas entradas e seus papéis”367. A correspondência como instrumento de comunicação. Meio e fim de expressão [fática, estética]. Por vezes codificada368, seja na forma, seja no trânsito de envio. “O diálogo é a conversa perfeita, porque tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de acompanhamento, em estrita referência àquele com quem fala”369, precisa Friedrich

Nietzsche, comparando o diálogo à troca epistolar, na qual o sujeito que se enuncia dispõe de inúmeras maneiras de se exprimir, orientado “conforme escreva a este ou àquele indivíduo”370

— sem ingenuidades ou purezas discursivas.

Ao apresentar contribuições pontuais a respeito da performance epistolar, em estudo feito com a produção da cineasta Chantal Akerman, Ivone Margulies371 acaba fornecendo outros elementos para a leitura da narrativa epistolográfica de Caio Fernando Abreu, ao assinalar que as correspondências abarcam um escambo contínuo entre texto e informação

364 BARTHES, 1985, p. 64. 365 Id.. 366 BERGSON, op. cit. 367 LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 37. 368 “Parei um pouco mas estou com a cabeça a mil. Deito entre as cobertas para escrever. Reli a carta e achei um modelo de confusão epistolar. Finja que é literário! Controlando o intempestivo desfiar de palavras”, redige Ana Cristina Cesar em trecho de correspondência dirigida a Maria Cecilia Fonseca (CESAR, 1999a, p. 147). 369 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 196. 370 Id. 371 MARGULIES, Ivone. A fala em Chantal Akerman: performance epistolar, monólogo e blablablá. In: Vozes Femininas: Gênero, mediações e práticas da escrita. SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003, p. 285-292. 78

extratextual e que o “real” da carta é definido pelas identidades “reais” do remetente e do destinatário. O que valida um outro entender — aquele que pressupõe a interdependência entre o eu e o outro, dado que um se define por meio do outro: “No diálogo há uma única refração do pensamento: ela é produzida pelo interlocutor, como o espelho no qual desejamos ver nossos pensamentos refletidos do modo mais belo possível.”372

A partir disso, viável é partilhar parecer sustentado por Jacques Lacan, quando assegura que o emissor “recebe do receptor sua própria mensagem sob uma forma invertida”373, impulsionado pelo fato de que “uma carta chega sempre à sua destinação”374, conforme adverte — como se a epístola fosse escrita para si mesmo [feito uma mentira que se quer verdade refletida no espelho] e para nenhum outro alguém além de si mesmo. “Detesto ouvir minha voz no gravador ou ver minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. [...] Tão bom ator que ninguém percebe minha péssima atuação”375, redige Caio Fernando Abreu em carta postada a

Sérgio Keuchgerian, rendendo-se a um jogo comunicativo. Comunico a outrem o que quero comunicar376 a mim mesmo — ação que repercute novamente na noção de solidão essencial sustentada por Maurice Blanchot: “Escrever é fazer-se eco do que não se pode parar de falar

— e, por causa disso, para vir a ser seu eco, devo de uma certa maneira impor-lhe silêncio [...]

Esse silêncio tem sua origem no apagamento a que é convidado aquele que escreve”377.

Mago da prosa breve, Caio Fernando Abreu não [se] escreve para ser compreendido.

Nem para salvaguardar verdades a respeito de si. Escreve pelo ato de escrever [e se inscrever].

Pelo fluxo da escrita. Pelo jorro das palavras que desembarcam no papel — caixas de ressonâncias dispostas à interpretação do leitor. Afinal, o eu que se escreve no tempo presente

372 NIETZSCHE, op. cit , p. 196. 373 LACAN, op. cit, p. 48. 374 Id.. 375 Trecho de missiva de 10 de agosto de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 140). 376 Communicare, do latim, é difundir, tornar comum a. 377 BLANCHOT, 1987, p. 17. 79

está sempre sendo enredado pelas reminiscências inconscientes do passado, que está, recorrentemente, sendo reescrito, repensado, reconstruído, por traços inconscientes do seu próprio passado — recordando que subjetivo e objetivo não são categorias isoladas, existem na própria interação, e que a memória trapaceia o próprio eu. “Sou terrivelmente tímido e, na verdade, acho que tenho mais é um ar de cachorro surrado, daquele que levou muita porrada, passou fome, dormiu ao relento. [...] Tenho um passado hippie que me deixou muitas coisas boas. Estou sempre preocupado com a ética [...].” 378

Sendo assim, salutar é tocar na questão do erotismo da escrita epistolar de Caio

Fernando Abreu, que pode estar para o interlocutor de modo semelhante ao estar do objeto artístico para o espectador — num contato inicial que é sempre permeado de sensualidade —, e que, neste caso, resulta da sedução da memória, da sedução textual. Por essa razão, a comunicação estabelecida entre um e outro por força das correspondências exibe uma carga também erótica, colada ao desejo, ao impulso, à conexão, à união, à tentativa de permanência para além da efemeridade.

Ao urdir a narrativa de si, Caio Fernando Abreu experimenta a sensação de continuidade da sua expressão artística, da sua comunicação com outrem — que é, também, para si próprio — num vaivém discursivo, num balé de linguagem. Por meio dela, o missivista se nutre do gozo estético e/ou do gozo erótico. Viabiliza o prazer pelo prazer. O friccionar das peles. A sensação de completude — pois é graças ao erotismo que o desejo permanece, ganha em extensão, fusão com o outro. “Os magnetismos das pessoas cruzam-se e descruzam-se, acho, meio que aleatoriamente, por algum tempo, por nenhum tempo, por

378 Fração de correspondência postada a Guilherme de Almeida Prado, em 12 de abril de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 296). 80

muito tempo. É mais complexo que isso, mas anyway: não deve doer. E não deve porque no fundo não tem importância, como todo o resto.”379

Dessa maneira e mais que pelo erotismo do gesto de introduzir o envelope selado na caixa de correio, Caio Fernando Abreu aparenta manter uma relação de fetiche com a correspondência. O corpo como extensão da própria memória. A carta como suplemento da existência — corpo que se torna presente e é tocado, contemplado e guardado pelo recebedor enquanto se desdobra em outros eus: “A pluralidade dos sujeitos não pode, evidentemente, ser uma objeção para todos aqueles que irromperam desde há muito nas perspectivas que nossa fórmula resume: o inconsciente é o discurso do Outro.”380

Assim, da mesma forma que a literatura, as correspondências desempenham o papel de atuar como uma das muitas possibilidades de comunicação e descrição das experiências de si. Pois é pela existência da verdade, da experiência, que a ficção é elaborada. “Pensando (ou lembrando) bem, não foram tão verdes assim. A memória tem sempre essa tendência otimista de filtrar as lembranças más para deixar só o verde, o vivo. Antigamente, sempre era melhor, ainda que não fosse”381, ressalta Caio Fernando Abreu em crônica publicada no jornal Zero

Hora, na qual registra algumas “rememorações” sobre os anos 70 — período verde justamente para aqueles que ainda não guardavam marcas de morte e tortura, mas exibiam motivação para lutar, mesmo que sem aparentar —, dos quais sobrevive a lição de que

“quando a barra pesa, gosto de pensar que dentro do agora talvez exista também um verde qualquer, que não estamos vendo”382.

379 Fragmento de carta remetida a Maria Lídia Magliani, em 19 de março de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 180). 380 LACAN, op. cit., p. 22. 381 ABREU, 2005b, p. 141. O trecho abre a crônica Pequenas e Grandes Esperanças, originalmente publicada no jornal Zero Hora, em 04 de abril de 1984, na qual trata dos anos 70. 382 ABREU, 2005b, p. 141-142. 81

Ademais, se a literatura, como bem manifesta Bruno Souza Leal, “dialoga com o mundo: inscrita na escrita da história, a literatura é prenhe de histórias”383, a narrativa de si, por sua diferença, estará e não estará onde está, aonde quer que ela vá384 — inscrevendo-se e escrevendo-se sem alianças com a lucidez biográfica ao proceder ao registro do tempo e ao evocar a matéria-prima da memória, o cintilar da intimidade, um esboço de si. Memória contaminada pela fabricação da literatura. Memória inventada. Memória inventiva. Trajetória discursiva efabulada e sedutora. Enlear narrativo que, permanentemente, desperta suspeitas quanto à veracidade385 do privado e os estados de alma exibidos pelo recordador: “Para me dar força, escrevi no espelho do meu quarto: ‘Tá certo que o sonho acabou, mas também não precisa virar pesadelo, não é?’ é o que estou tentando vivenciar.”386.

383 LEAL, 2002, p. 45. 384 LACAN, op. cit.. 385 “Tem coisas, tem coisas que ele escreve que parecem. Não sei, parecem verdade, entende? Ele me toca, mexe comigo”, narra Caio Fernando Abreu em prosa ficcional (ABREU, 2005a, p. 189). 386 Fragmento de epístola destinada a Vera Antoun, com data de 09 de julho de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 474). 82

4 ENTRE O ARROUBO E A ESQUIVA: EMBARALHAR-SE

“Escrever implica calar-se, escrever é, de certo modo, fazer-se ‘silencioso como um morto’”387

Ao introduzir esta conversa, eu indagava-me essencialmente a respeito de como classificar a correspondência — se documento, se literatura. Vislumbrava uma condição binária: o estatuto do isto ou aquilo. Agora, ao chegar à etapa final do percurso investigativo proposto e validável, o que me parece mais sensato pensar ou pôr em questão nesta prosa que, pelo visto, não vê final a traçar é: Seria realmente possível aplicar uma taxonomia à correspondência?

Por um lado, sim. Por outro, não. A classificação ou uma classificação, por si só, embora figure como instrumento facilitador à aplicação de estratégias de ensino “tradicionais”

— condizentes com uma pedagogia “clássica” —, pode limitar o olhar [e estampar uma aura de reducionismo caducante]. Para quem ainda deseja alcançar o sublime, dentro do ambiente acadêmico [nos fazeres da docência e da pesquisa] e além dele, a classificação, pura e simples, faz broxar os ânimos mais efusivos. E é fácil vislumbrar o motivo.

Uma leitura mais atenciosa do conjunto epistolar publicado/publicizado de Caio

Fernando Abreu leva a pensar que o que se tem nas mãos é mais que um produto da expressão do inconsciente do autor — prática discursiva que coloca em xeque o estatuto documental da correspondência e o próprio conceito de literatura, provocando, particularmente, questionamentos aos estudos literários.

Enquanto lugar de memória, universo de afetos e emoções, esfera de efabulação e confissão, “real” e ficcional, arroubo e esquiva, a epistolografia se [re]apresenta como um gênero originalmente mestiço, ambíguo, polissêmico e polifônico por conveniência —

387 BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 15. 83

ademais, não há porque alimentar qualquer imprecisão quanto a sua natureza, pelo menos não quando o epistolário de Caio Fernando Abreu está em jogo: “Magli Magoo, menina loba, devidamente empacotado, sem entender grande coisa, mas no meu duríssimo caso acho que não faz mesmo diferença, eis que sento para te escrever às oito da matina. Toca Lulu Santos no rádio. Adoro rádio de manhã cedo”388.

Nesse sentido, é coerente depreender também que a correspondência — de modo geral389 e, especificamente, no caso de Caio Fernando Abreu — pertence plenamente à escrita e dela é fruto — para aproveitar pormenor gerado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. E aí reside seu poder e sua potência discursiva. A escrita epistolar passa a conviver com a escrita literária, numa contaminação típica dos limiares contemporâneos de que trata Jean

Baudrillard390 — numa percepção muito barthesiana de contemplação deste objeto, aquela que lê uma coisa na outra, prevendo seus imbricamentos sem fim, no que representam de livre orquestração da palavra e formação de alianças que favorecem o avançar da ciência.

Ao escrever sobre si, Roland Barthes, por exemplo, testemunha ser ele mesmo seu próprio símbolo e sua própria história391 — “Quando finjo escrever sobre o que outrora escrevi, acontece [...] um movimento de abolição, não de verdade. Não procuro pôr minha expressão presente a serviço de minha verdade anterior”392, exprime o teórico, salientando que, ao se escrever, não se dispõe a se restaurar: “‘Escrevo um texto e o chamo de R.B.’.

388 Extrato epistolar remetido à Maria Lídia Magliani com data de 19 de março de 1990 (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 178). 389 “Você se grila de receber cartas datilografadas? Eu acho legal porque bato rápido e não tenho muito tempo de pensar, sai quase como um papo. É claro que eu estou sabendo da pouquíssima falta de inocência de uma carta. Mas os papos também não são inocentes.”, redige Ana Cristina Cesar em correspondência a Ana Cândida Perez, datada de 03 de dezembro de 1976 (CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 238). 390 BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos. 8. ed. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papirus, 2004. 391 “O fato (biográfico, textual) se abole no significante, porque ele coincide imediatamente com este: escrevendo-me, apenas repito a operação extrema pela qual Balzac, em Sarrasine, fez ‘coincidir’ a castração e a castratura: sou eu mesmo meu próprio símbolo, sou a história que me acontece”, observa o teórico (BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 64). 392 BARTHES, 1975, p. 64. 84

Dispenso a imitação (a descrição) e me confio à nominação. Então eu não sei que no campo do sujeito não há referente?”393 —, viabilizando a certificação concedida por Gilles Deleuze e Félix Guattari ao agenciamento de vida e arte, experiência e escrita, as quais somente “se opõem do ponto de vista de uma literatura maior”394, pois é graças ao status de uma literatura menor, que Franz Kafka, mesmo “moribundo”, [sobre]vive enquanto potência narrativa:

“Kafka é transido por um fluxo de vida invencível que lhe vem tanto das cartas, das novelas, dos romances como de seu inacabamento mútuo por razões diferentes, comunicantes e permutáveis. Condições de uma literatura menor.”395.

A legitimidade de tais apontamentos, reconhecida por mim, é corroborada por Bruno

Souza Leal à medida que o pesquisador sustenta que o texto trabalhado enquanto documento

“se torna um rico material que pode, e deve ser recortado, reorganizado, burilado, fazendo com que venham à tona não só as brechas e os hiatos de sua tessitura interna, como também as fissuras e interrogações inerentes à sua condição de estar-no-mundo”396.

A partir disso, ancorada num contexto eminentemente pós-moderno e amparada na leitura que Michel Foucault propõe a respeito do intérprete em Friedrich Nietzsche — para quem o intérprete é o verídico, o verdadeiro, não por se apropriar de uma verdade adormecida a fim de proferi-la, “mas porque ele pronuncia a interpretação que toda verdade tem por função velar”397 —, arrisco pontuar que este percurso acerca da escrita epistolar de Caio

Fernando Abreu procurou operar entre e além de um movimento infinito. Deslizante.

Desafiando-se, sempre, na tentativa de experimentar a liberdade de entender o(s) sentido(s)

393 Id.. 394 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003, p. 78. 395 Id. 396 LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 45. A assertiva está alicerçada em Michel Foucault e seu Microfísica do poder, do qual Bruno Souza Leal retoma o conceito de documento. 397 FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). 2. ed. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 48. 85

que se incrustam neste gênero híbrido fora do sistema e da busca ilusória pela verdade objetiva. Caminho de leitura que permite, neste trabalho dissertativo, o enamorar das associações livres, da verdade lúdica — tendo em vista que “ler é meio puxar fios, e não decifrar”398, conforme designa Ana Cristina Cesar399, com peculiar sagacidade, e que é necessário supor, a todo momento, a existência da linguagem para além da própria linguagem, como tão bem dimensiona Michel Foucault400.

Sendo assim [e até o arremate deste diálogo], mais que apostar numa “literatura de cartas” ou admitir a composição de “cartas literárias”, salutar é tomar a produção epistolar de

Caio Fernando Abreu como tudo isso e mais: como documento e como texto, escritura, trama amorosa, tessitura plural, travessia401 que não cessa de se realizar — num gesto de generosidade com o destinatário que, neste caso, é o próprio leitor a “espiar” [mesmo que não propriamente pelo buraco da fechadura] um Caio Fernando Abreu missivista que nutre apenas uma [pre]ocupação: a prática da escrita. Escrita esta que se reescreve a partir de si mesma, intercambiando pormenores viscerais, aproveitando “escrevinhações” literariamente “menores ou vulgares”, alimentando fantasmas e provocações autobiográficas. Atentar para a veracidade biográfica da escrita epistolográfica do prosador seria o mesmo que esvaziar seu jogo de verdades transitórias e alegóricas, seu fluxo de dizeres de viés, despejando fora sua potência e plenitude — seu estatuto de uma literatura [de cartas] que se quis menor, sim, e, por essa razão, singular.

398 CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 264. 399 Em missiva remetida a Ana Candida Perez em 29 de maio de 1980, Ana Cristina Cesar relata que acaba de ler uma biografia de Katherine Mansfield, a qual tem, então, confrontado com outras fontes documentais, como a correspondência completa da autora biografada: “estou fascinada pelo conflito entre as versões, e pelo conflito entre as cartas de KM para diferentes interlocutores, e pela tentativa de fazer da literatura um lugar menos obsceno que toda essa aparente confusão da verdade — higher up. Sei que alguns modernos já brincaram com isso, as várias versões por onde se filtra ou escapa a verdade, os mosaicos e focos narrativos da vida”, testemunha a poeta (CESAR, 1999a, p. 283). 400 Cf: FOUCAULT, 2005. 401 Como neste exemplo extraído de correspondência expedida à amiga pintora, Maria Lídia Magliani, em 1991: “Caminho, olho as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se cruzaram. Londres continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta. Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso mesmo, I love it.” (ABREU, 2002, p. 203). 86

De fato, impossível seria sequer imaginar apreender Caio Fernando Abreu fora da literatura sem se render a um exercício fátuo, assim como igualmente falível seria identificar, na leitura das cartas de Cartas, na sua textualidade, um traçado biográfico que descartasse a malícia retórica do escrevente, as oscilações da memória, o discurso planejado, as pinceladas de um artista letrado.

Com base nisso, coerente me parece atestar que o impulso do narrar de si do autor esteve sempre além dos limites do gênero — afinal, o escritor desconhecia até mesmo o significado do termo limite [e a sua dimensão física], a começar pelos limites originários da fronteiriça cidade natal, Santiago do Boqueirão —, prevendo, por meio da liberdade narrativa e da desterritorialização das formas discursivas, agora geminadas, o transbordar inerente a sua condição menor.

Pois é exatamente assim que se apresenta, a meu ver, a escritura epistolográfica do prosador. Transida de intenções infraliterárias — num fazer muito alinhado ao que Lúcia

Castello Branco identifica em Maria Gabriela Llansol, quando prescreve que esta inventa não exatamente uma história ou um produto ficcional, mas “uma memória dos ‘existentes-não- reais’, em que o sujeito que escreve destitui-se da literatura e passa para a margem da língua”402, margem esta que é a morada do texto403 enquanto outra modalidade de escrita —, permeada de artifícios ficcionais — elementos colocados a serviço deste corifeu da escritura:

“Procuro deixar à parte essa compreensão muito intelectual do que estou fazendo. Deixo as teorias sempre de lado. Fiz Faculdade de Letras durante dois anos e fiquei intoxicado, com medo de elucubrações”404, avisa Caio Fernando Abreu, performático, em entrevista ao jornal

Correio Brasiliense.

402 BRANCO, Lúcia Castello. Os absolutamente sós – Llansol – A letra – Lacan. Belo Horizonte: Autêntica; Faculdade de Letras/UFMG, 2000, p. 42. 403 Para Lúcia Castello Branco, “o texto é capaz de promover encontros inesperados do diverso e de lançar a escrita ao exterior de si mesma” (BRANCO, 2000, p. 42). 404 ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 255. 87

Ao se desnudar ao olhar alheio ou, o que é ainda melhor, ao simular uma possível nudez biográfica ao destinatário [seu interlocutor, num primeiro momento, nominado], Caio

Fernando Abreu se beneficia da sua condição de escritor, manejando, com excelência, pares conceituais bastante discutíveis, ambíguos e contraditórios — como real/irreal, verdade/mentira, documental/ficcional —, os quais não se apresentam devidamente delimitados na narrativa epistolar405, urdida com artimanha e segundas intenções [como a publicação póstuma]. Construção artística que impede a separação entre joio e trigo, pois tudo se torna substrato literário. E nada é espelhamento — a memória como fantasia, a fantasia enquanto memória, o caótico ordenado pela linguagem, a mentira como verdade, a verdade enquanto mentira —, ao que é determinante reconsiderar que realidade e verdade não deixam de ser abstrações, representações, arranjos lingüísticos, ressonâncias: “escrever não é

‘traduzir’ um referente em um nome, é sim introduzir uma diferença, um suplemento”406. E é justamente nessa impossibilidade, na própria incapacidade de transformar a intimidade do sujeito em linguagem, vertê-la em palavras, que a escrita de si é gerada. O privado de si se mantém, dessa forma, em suspenso — condicionado ao erotismo da prática narrativa.

Conserva-se secreto sob o envelope selado com segredo e carimbado com sedução discursiva.

Puro vestígio. Pura vertigem. Puro artifício. Imaginar sem fim: “Toda a verdade está além, na ordem das coisas, numa equação intuída, incompleta e inapreensível, a não ser através da forma oblíqua e efêmera da tessitura, do delírio, do sonho, da ficção”407.

405 Como diria Ana Cristina Cesar, em trecho de missiva destinada a Ana Cândida Perez: “Ninguém escreve uma poesia e bota junto: isto é uma poesia, não me peçam pra explicar! Até que seria engraçado. É que em carta fica difícil o limite entre o arbitrário, o gratuito, o vôo e a correspondência, a significação, a comunicação. Ou melhor, a gente tem medo de desembestar para o vôo. De dizer coisas que não sabe explicar. A leitora pedirá explicações, sutilmente exigirá que se desfaça o feitiço, o jogo. Só por insegurança. Ou como ajuizada medida pra não receber de volta cartas em que a literatura vá ocupando cada vez mais terreno, até que não sobre nada, mas a literatura.” (CESAR, 1999a, p. 197). 406 LIMA, Luiz Costa. O fingidor e o censor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 339. 407 LEAL, op. cit., p. 86. 88

O desafio, portanto, reside em exatamente experimentar o sabor desse sentimento de plenitude possível no ato de escrever do autor que, por meio dele, ao que apontaria

Emile Cioran408, liberta-se de remorsos e rancores e vomita segredos. Verdadeiros ou não.

Ficcionais ou não. De que importam? Fico com a escritura e o desejo dela, ao que Roland

Barthes certamente emendaria: “Não se discorre para ser mais preciso, mais verdadeiro, discorre-se para exibir metáforas, isto é, felicidades de expressão, ainda isto é, expressões como felicidades, para usar as palavras de [Maurice] Blanchot”409.

Sem mais, viável é ponderar, ainda, que a literatura nunca é resultado somente de uma competência, seja ela lingüística e/ou estilística, a exemplo do que elege o crítico há pouco referendado — “a literatura não é uma graça, é o corpo dos projetos e das decisões que levam um homem a se realizar (isto é, de certo modo, a se essencializar) somente na palavra”410. O bálsamo de Caio Fernando Abreu eram as letras, as fantasias, as plumas e os paetês discursivos. Sua escritura habita num entrelugar. É fruto de amor. Pela palavra escrita411 — como entendo e quero crer, prevendo mais que fantasmar esta condição, mesmo que minha suposição não ultrapasse a categoria de um biografema412 emprestado [por mim] ao escritor estudado.

Por fim, antes de avançar, lacrar o envelope e postá-lo ao seu destino, coloco-me à espreita. Pensativa. Lamparina na mão, é na ponta dos pés guarnecidos pelos “sapatinhos vermelhos” que sigo em frente. Obrigada, Caio[s].

408 Cf: CIORAN, Emile M. Exercícios de admiração: Ensaios e perfis. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 409 BARTHES apud ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 37-38. 410 BARTHES, 2003, p. 35. 411 “Escrevi essas histórias porque elas exigiram que eu as escrevesse. Vivo em um tempo e tento compreendê-lo através da palavra escrita” (ABREU, 2005b, p. 255). 412 De acordo com Leyla Perrone-Moisés, biografemas “são pequenas unidades biográficas” (PERRONE- MOISÉS, Leyla. Roland Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 09) pertencentes ao campo do imaginário afetivo e, por isso, não se prestam a ser verdades objetivas, o que, de forma alguma, não os invalida ou os diminui. 89

REFERÊNCIAS

OBRAS DE CAIO FERNANDO ABREU

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OUTROS REFERENCIAIS

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ANEXOS

ANEXO A

A edição da coletânea Cartas está estruturada conforme sumário a seguir:

Prefácio ...... 9 Introdução ...... 11 Todas as horas do fim: 1980-1996 ...... 23 Começo: o escritor: 1965-1979 ...... 349 Sobre os destinatários ...... 525

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ANEXO B

Ao final da seleção de correspondências de Cartas, o organizador da coletânea, Italo Moriconi, apresenta, em ordem alfabética, o rol de destinatários presentes na edição, pontuando, individualmente, a atividade profissional do(a) recebedor(a) na época da publicação do livro (2002) e o vínculo dele(a) com Caio Fernando Abreu.

Destinatários: • Adriana Calcanhotto; • Albert von Brunn; • Bruna Lombardi; • Charles Kiefer; • Cida Moreira; • Cláudia, Nair e Zaél de Abreu; • Déa Martins; • Flora Süssekind; • Gerd Hilger; • Gilberto Gawronsky; • Guilherme de Almeida Prado; • Hilda Hilst; • Jacqueline Cantore; • João Silvério Trevisan; • José Márcio Penido; • Luciano Alabarse; • Lucienne Samôr; • Luiz Arthur Nunes; • Luiz Fernando Emediato; • Marcelo Sebá; • Marcos Breda; • Maria Adelaide Amaral; • Maria Lídia Magliani; • Mário Prata; • Myriam Campello; • Regina Duarte; • Sérgio Keuchgerian; • Sonia Coutinho; • Stella Miranda; • Suzana Saldanha; • Thereza Falcão; • Vera, Henrique e Maria Augusta Antoun.

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—Me sinto triste e a palavra vilipendia minha tristeza. Me escreve?“ Ana Cristina Cesar