Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas PÁGINA 05 | Darli de Fátima Sampaio: O alto preço que as mulheres pagam para ascender no campo profissional PÁGINA 09 | Maria Elina Estébanez: Igualdade de gênero para fortalecer socialmente a ciência e a tecnologia PÁGINA 11 | Mirian Goldenberg: Uma mulher que se reinventa e se redescobre PÁGINA 14 | Adriana Braga: O posicionamento feminino no contexto da cibercultura PÁGINA 16 | Pedro Paulo de Oliveira: A masculinidade ainda valorizada e assumida

» Especial Fidel Castro PÁGINA 20 | Hélio Doyle: As mudanças em Cuba “não representam um retorno ao capitalismo” PÁGINA 23 | Daniel Aarão Reis: “Se existe ainda o socialismo em Cuba, isso é matéria de controvérsia” PÁGINA 25 | Eric Nepomuceno: Como não perder ou sacrificar as conquistas da revolução? Eis o desafio

B. Destaques da semana

» Brasil em Foco PÁGINA 28 | Belluzzo: “Nós não temos uma definição exata nem da profundidade nem da extensão da crise”» » Teologia Pública PÁGINA 32 | Paulo Soethe: Karl-Josef Kuschel faz 60 anos: teologia em diálogo » Filme da Semana PÁGINA 35 | Sangue negro, de Paul Thomas Anderson » Memória PÁGINA 37 | Hugo Assmann (1933-2007) » Invenção PÁGINA 39 | Claudia Roquette-Pinto » Análise de Conjuntura PÁGINA 42 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Agenda de Eventos PÁGINA 45| Larry Antônio Wieznievsky: A ascensão da imagem feminina: um elo para o individualismo? PÁGINA 48| Joe Marçal: Da ingenuidade ao cinismo: o Brasil de Sérgio Bianchi

» IHU Repórter PÁGINA 50| Marcelo Souza Guimarães

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249   SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 O alto preço que as mulheres pagam para ascender no campo profissional

Darli de Fátima Sampaio analisa as transformações da mulher no mundo do trabalho e afirma que não há limites para a capacidade criadora, transformadora e de trabalho das mulheres

Por Graziela Wolfart

s mulheres se superam cotidianamente no mundo do trabalho com a mesma disposição, garra, perspectivas, com que tocam tudo ao seu redor. São capazes de seguir sempre adiante, sem descuidar dos aspectos, sejam eles estéticos, emocionais, afe- tivos de todos que estão à sua volta, não se esquecendo delas “Amesmas. Elas criam resistências domésticas e profissionais, burlam normas. Assumem um papel integrador, unindo o que está separado.” Essa afirmação é de Darli de Fáti- ma Sampaio, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Apoio ao Trabalhador (Cepat), de Curitiba-PR, em entrevista exclusiva concedida por e-mail para a IHU On-Line. Darli é graduada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Realizou aperfeiçoamento em diversas áreas, tais como orçamento públi- co, história da filosofia e fé e política. É também especialista em Economia Solidária, pela Universidade Federal do Paraná. Em seu mestrado, também realizado na UFPR, produziu a dissertação “Relações de gênero na indústria automotiva: um estudo de caso na Renault Paraná”. Sobre essa pesquisa, concedeu uma entrevista publicada nas Noticias do Dia do sítio do Instituto Humanitas - IHU, em 10-02-2008.

IHU On-Line - Quais são as principais com as frustrações presentes. Atua no cando um grande prejuízo em todos os marcas/características que as mulhe- sentido de resolver as pelejas e confli- sentidos para a mulher trabalhadora. res carregam hoje no mundo do tra- tos humanos que costumam aparecer Portanto, é importante rejeitar essa balho, no seu dia-a-dia? em grupos plurais. visão de uma natureza feminina. Darli de Fátima Sampaio - Eu diria Este estilo está ganhando cada vez que a presença da mulher no mundo mais importância num ambiente mar- IHU On-Line - Nesse sentido, quais do trabalho está sendo marcada por cado por um ritmo muito intenso de são as diferenças entre as mulheres um certo estilo de atuação particular. trabalho e por profissionais altamen- operárias e aquelas que exercem Este estilo está presente não só no que te estressados. É de grande utilidade cargos administrativos? diz respeito ao exercício de liderança, funcional. É manipulável e regulável Darli de Fátima Sampaio - Com rela- na maturidade com relação à apren- em vista de maiores e melhores resul- ção às diferenças entre mulheres da dizagem, à destreza, ao cuidado, à tados corporativos. produção e administração, observa- minúcia, ao compromisso e responsa- Este estilo tem demonstrado um se uma preocupação constante com a bilidade profissional, mas também no desempenho tão bom que algumas qualificação profissional nos dois se- que diz respeito à sua forma de rela- empresas procuram caracterizar as tores. É a exigência do mercado. Re- cionar-se no trabalho. A mulher dialo- “habilidades” femininas a partir de quisito fundamental para a decantada ga e é mais perceptiva, contribui e in- uma visão essencializada de gênero. empregabilidade. Mas as diferenças veste para obter um bom ambiente de Busca-se naturalizá-las enquanto qua- são gritantes e vão desde o desnível trabalho, na medida em foi treinada lidades presentes nas mulheres e não salarial até preconceitos estimulados para estar sempre mais atenta ao seu enquanto resultado de um longo trei- entre trabalhadoras da produção e do entorno e dar conta de várias respon- namento ao qual foram submetidas, setor administrativo. Portanto, não é sabilidades ao mesmo tempo. Ela per- desde muito jovens. Com isso, evita- possível fazer uma análise homogenei- cebe as dificuldades e trabalha melhor se uma remuneração à altura, signifi- zadora sobre as mulheres no mundo do SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249  trabalho, pois há vivências, experiên- “Não dá para fazer uma análise homogeneizadora cias, histórias, formação, entre outros aspectos, bastante diferenciados. É sobre as mulheres no mundo do trabalho, pois há preciso pensar e repensar sobre esse sentimento de que todas as mulheres vivências, experiências, histórias, formação, entre são iguais. Das mulheres da produção, espera-se também o cumprimento outros aspectos, bastante diferenciados. É preciso das metas, porém sem reclamações. Espera-se absoluta concentração, pa- pensar e repensar sobre esse sentimento de que ciência, destreza e toda a espécie de cuidado com relação ao produto e à todas as mulheres são iguais” rotina de trabalho. Cada vez mais é valorizada e estimulada a necessida- de de elaboração de propostas e so- lução para os problemas que surgem superiores. São competitivas e cobra- serem ouvidas e/ou consideradas. Há no ambiente de trabalho. As mulheres das sistematicamente nos desempe- carência de reconhecimento e valo- da produção estão confinadas a um nhos. O cargo exige dedicação quase rização. Esta problemática não está pequeno espaço, ao seu posto de tra- exclusiva. Há um reconhecimento que resolvida. Muitas se vêem obrigadas balho e precisam de autorização para no processo de ascensão profissional, a assumirem posturas masculinas no qualquer espécie de ausência. Em al- projetos pessoais devem ser deixados mundo competitivo do trabalho. E de- gumas empresas, ciclos menstruais, de lado. É o preço que muitas pagam pois, como já disse Alexandra Bocchet- hemorragias e incontinência urinária ou já pagaram. ti, “um corpo de mulher não assegura  precisam ser revelados para justificar um pensamento de mulher” , pois este várias idas ao banheiro. A força física IHU On-Line - A mulher, no mercado pensamento nasce, somente, segundo não é uma exclusividade masculina. de trabalho, assume características essa autora, da consciência das outras Na linha de montagem, é preciso ter de postura masculina, ou ela acaba mulheres. Este pensamento é produto um padrão físico combatível para su- transformando o ambiente com um de relações. portar a intensidade e as dificuldades toque mais feminino, marcando sua Agora, no mercado de trabalho, as no posto de trabalho. Não é necessário presença social e cultural? mulheres trazem um diferencial que ter visibilidade, apenas desempenho, Darli de Fátima Sampaio - O merca- vem sendo muito aproveitado nas em- e literalmente “somem” dentro do do de trabalho é marcado pela de- presas. A divisão sexual do trabalho, uniforme de trabalho padronizado e sigualdade de gênero, por relações que sobrecarrega a mulher, continua desconfortável. assimétricas de poder, entre homens interagindo na produção dos bens e na É no setor administrativo que se e mulheres, apresentando um perfil reprodução da vida e dos valores mar- concentram mulheres com maior qua- predominantemente masculino. E, cados pela desigualdade dos processos lificação. Muitas são poliglotas, com embora as mulheres tenham conquis- de inserção de homens e mulheres no largas experiências profissionais e bem tado espaços importantes no trabalho, mercado de trabalho. São obrigadas a remuneradas. Os cuidados com a apa- comparativamente é muito mais difícil dar conta de várias demandas e ainda rência são visíveis e uma exigência da culturalmente para elas se imporem no acrescentar: cor, cheiro, bom gosto, empresa acaba por categorizar a pro- trabalho. Esta situação desfavorável senso estético, organização etc. no fissional e depondo favoravelmente está mais associada a uma formação seu ambiente de trabalho, além, é à empresa. Algumas profissionais de- direcionada para o ambiente privado. claro, de toda a contribuição afetiva sempenham funções de chefia, outras Sabe-se que, muitas vezes, as mulhe- que colocam à disposição em seu am- atuam diretamente com o público, res são obrigadas a assumirem postu- biente profissional, em resumo, o tra- levando a imagem da empresa e “apa- ras tipicamente masculinas, tais como balho imaterial. rando” e eliminando tensões estabele- agressividade, firmeza, falar alto, o cidas, antes que cheguem às instâncias tal falar “grosso” para simplesmente IHU On-Line - Como entender o au- mento do interesse de cada vez mais mulheres na área da tecnologia? “A divisão sexual do trabalho, que sobrecarrega a Como está a aceitação do massivo público masculino ao receber as “co- mulher, continua interagindo na produção dos bens e na legas” do sexo oposto? Darli de Fátima Sampaio - Uma discus- reprodução da vida e dos valores marcados pela são interessante é aquela que aborda o conceito de tecnologia do ponto de desigualdade dos processos de inserção de homens  Bocchetti, A. apud Mulheres no comando. Além do Cairo e Beijing: fortalecendo as ONGs e mulheres no mercado de trabalho” na América Latina. Vol. V, Brasília s/c, 1999, p. 31. (Nota da entrevistada)  SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 vista sócio-antropológico. Um proces- As estudantes que conseguiram so conectado na realidade social, que quebrar antigos paradigmas e entra- IHU On-Line - Quais são os principais o cria e o transforma. Que vai além ram para áreas técnicas, segundo es- desafios que as mulheres ainda têm dos artefatos que caracterizam a vida tudos, têm apresentado um bom de- pela frente? Em que elas podem con- moderna ou que aumentam a produti- sempenho, quando não superior ao tribuir para melhorar o mundo do tra- vidade das empresas. A tecnologia é um desempenho dos estudantes masculi- balho e a sociedade em que vivem? fenômeno que faz parte da vida social. nos. Mas, com relação à convivência, Darli de Fátima Sampaio - São vários Historicamente, os seres humanos sem- os desafios e de toda ordem, envolven- pre se organizaram para produzir bens do discriminação social, racial ou de e serviços necessários tanto para a so- gênero. É preciso lutar por reconheci- brevivência física, como também volta- mento e valorização profissional, por dos para as necessidades sociais e cul- “É preciso lutar por equiparação salarial, por modificações turais. As relações de gênero, fruto de na legislação, obtenção de vitórias ju- construções culturais, são atualizadas reconhecimento e rídicas, direitos no campo da saúde, na dinâmica da vida social e represen- pelo fim da violência contra as mulhe- tam, segundo estudos, um elemento- valorização profissional, res em todas as dimensões da vida hu- chave de compreensão da imbricação mana. Enfim, temos muito que andar da tecnologia com a sociedade. por equiparação salarial, nesse campo de gênero em constan- Estudos realizados nessa área, tra- te transformação. As mulheres estão dicionalmente constituída como um por modificações na exercendo um papel determinante domínio masculino, mas que vem sen- nesse campo da transformação cultu- do ocupada por mulheres, tanto com legislação, obtenção de ral. O feminismo foi capaz de conduzir relação aos cursos quanto em rela- lutas importantes e garantir direitos ção às profissões que exigem conhe- vitórias jurídicas, direitos fundamentais e de transformar a si- cimentos técnicos, mostram que, no tuação e a consciência das mulheres. processo de socialização e obtenção no campo da saúde, pelo Mas hoje elas estão dando grande im- de habilidades técnica, os padrões de portância aos problemas que mexem gênero desempenham forte influência fim da violência contra com a vida pessoal, com as relações na formação dos estudantes. Os me- interpessoais, com a sexualidade, com ninos são orientados, inicialmente, as mulheres em todas a vida no sentido amplo, enfim com os pelas suas respectivas famílias, para problemas culturais, bem apontados interesses que os aproximam das ha- as dimensões da por Alain Touraine, no livro O mundo bilidades técnicas. Eles são estimula- das mulheres. Há uma preocupação dos à curiosidade e à investigação, ao vida humana” com a construção de um novo modelo passo que, com relação às meninas, de cultura que pode ser vivido por to- ocorre exatamente o contrário, na dos, homens e mulheres, que elimine medida em que são desestimuladas e essa oposição entre os sexos, criado distanciadas dessa área, sendo moti- pela ordem masculina, que prejudicou vadas para interesses ligados ao cui- terrivelmente a mulher, mas também dado (casa, bonecas etc.). O resulta- sabe-se que se trata de uma área que a todos. E, nesse sentido, está coloca- do é que os meninos, em se tratando mantém conceitos binários de gênero. da a preocupação e a necessidade de da área técnica, sempre se superes- O público masculino julga que as mu- recomposição do mundo, superando- timam e as meninas se subestimam. lheres são mais disciplinadas, estudio- se os dualismos históricos e atuando Talvez isso explique um pouco da pre- sas e aplicadas, mas com habilidades no sentido do estabelecimento de uma dominância masculina em setores al- diferenciadas, voltadas para o senso aliança que garanta a nossa existência tamente técnicos, como o da automo- estético, mais emotivas, sentimentais, social, especialmente sem opressões tiva, por exemplo, no qual é preciso sensíveis, delicadas, enfim, com menos de gênero. Que possamos compreen- ter habilidade para manusear vários visão lógica e menos aptas para pro- der as mudanças que estão ocorrendo, equipamentos eletrônicos. É uma área gramações etc. Visões essencializadas. em todos os aspectos, e nos renovar bastante robotizada. Segundo apontam alguns estudos, e se sensibilizar, preparando-nos para Mas hoje estamos também envoltos para que haja uma verdadeira mudança os riscos e desilusões que elas podem e dependentes de toda sorte de para- na direção da equidade de gênero, é ne-  Alain Touraine: sociólogo francês, autor do fernália eletrônica com a qual, com cessário mudar também o processo de so- livro Le Monde des Femmes (Paris: Fayard, maior ou menor intensidade, somos cialização de meninos e meninas para que 2006). Confira uma entrevista exclusiva con- obrigados a conviver. E as mulheres ambos cheguem aos cursos técnicos com cedida por ele à revista IHU On-Line na 210ª edição, de 05-03-2007. (Nota da IHU On-Line) têm gradativamente se arriscado nessa as mesmas habilidades e oportunidades. área em franco crescimento e também Aí então teremos um franco crescimento  Em português a obra está publicada sob o atraente do ponto de vista financeiro. do número de mulheres nessa área. título O mundo das mulheres (Petrópolis: Vo- zes, 2006) (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249  “Para as mulheres, há ainda uma carga maior, que é a divisão sexual do trabalho não resolvida e que pesa sobre seus ombros. A presença de mulheres no mercado de trabalho já forçou pequenas mudanças no ambiente doméstico, mas não alte- rou a relação de poder”

gerar, mas também para compreender vo de ampliar as contratações de mu- femininos têm plena consciência dos a potencialidade que uma mudança lheres. A qualificação profissional da desafios colocados para a empregabili- supõe. mulher, aliada a um estilo diferente dade na complexa sociedade de hoje, de trabalhar e de se relacionar, é ava- que vão desde a falta de habilidade IHU On-Line - O que sua pesquisa com liada como positiva e principalmente e qualificação necessárias - não ter a as mulheres de uma fábrica automo- lucrativa no esquema organizacional escolaridade necessária -, até outros tiva mais lhe ensinou em relação ao das empresas. tantos, como a ausência de faixa etá- avanço das mulheres no trabalho e ria exigida pelo mercado. Além disso, na sociedade? IHU On-Line - A mulher sabe lidar faltam também recursos para que se Darli de Fátima Sampaio - Primeiro, melhor com o “fantasma” do desem- possa abrir um negócio próprio, numa como são fortes e terríveis os limites prego? Como a simbologia do medo e possível alternativa de sobrevivência. que se impõem às mulheres em bene- dos obstáculos aparece para homens fício da continuidade do poder mas- e mulheres? IHU On-Line - O que muda no imagi- culino como, por exemplo, a transfe- Darli de Fátima Sampaio - Simbolica- nário e nas expectativas e sonhos das rência para a fábrica da dinâmica da mente, o desemprego é terrível para mulheres do século XXI, que muitas divisão sexual do trabalho, que oprime homens e mulheres. Trata-se do sus- vezes se dedicam tanto ao trabalho e e exaure a mulher. Mas, positivamen- tento, do “ganha-pão”. No entanto, são obrigadas a abdicar de outras ins- te, também se evidencia cada vez mais os seus efeitos são mais danosos entre tâncias na vida que eram igualmente que não há limites para a capacidade os homens, lançados numa situação de importantes? criadora, transformadora e de tra- insegurança tremenda numa socieda- Darli de Fátima Sampaio - Influi na pró- balho das mulheres. Elas se superam de com uma cultura do trabalho que pria percepção de mundo. O mercado cotidianamente no mundo do trabalho se ancora na empregabilidade. Existe de trabalho altamente competitivo e com a mesma disposição, garra, pers- a questão cultural, que faz com que excludente submete os trabalhadores pectivas, com que tocam tudo ao seu a grande maioria dos trabalhadores a uma intensidade de trabalho absurda redor. São capazes de seguir sempre masculinos entenda que o seu traba- e potencialmente estressante. Para as adiante, sem descuidar dos aspectos, lho é o principal para a manutenção da mulheres, há ainda uma carga maior, sejam eles estéticos, emocionais, afe- família. Mesmo que a mulher continue que é a divisão sexual do trabalho não tivos de todos que estão à sua volta, trabalhando e ganhe até mais, a sua resolvida e que pesa sobre seus om- não se esquecendo delas mesmas. Elas renda é entendida como uma renda bros. A presença de mulheres no mer- criam resistências domésticas e profis- complementar ao orçamento familiar. cado de trabalho já forçou pequenas sionais, burlam normas. Assumem um Para os homens, estar desempregado mudanças no ambiente doméstico, papel integrador, unindo o que está representa o inferno, fonte de tensões mas não alterou a relação de poder. separado. Se a dominação masculina e de desorganização. Provoca danos Trata-se de contribuições pontuais re- foi abalada pela ação das feministas, emocionais profundos, baixa estima e cebidas e não de tarefas igualmente a ação das mulheres no mundo do marginalização. As mulheres que co- distribuídas. Então, conciliar de forma trabalho poderá ser capaz de fazer nhecem esses “efeitos” ou sintomas humanamente satisfatória casa, mari- prevalecer outros tipos de relaciona- historicamente acabam tendo uma do, filhos, espaços pessoais, lúdicos, é mentos, resistências e alterações no postura diferenciada, mais propositiva desgastante para as mulheres e mui- seu ambiente de trabalho. Os avanços frente ao desemprego. Elas se ocupam tas optam por adiar ou mesmo colo- com o trabalho feminino são tão signi- com o cuidado dos filhos e das tarefas car num segundo plano expectativas ficativos que as empresas, no caso das domésticas. E vão à luta. Não ficam de e sonhos pessoais. As mulheres que automotivas, não podem mais se dar braços cruzados, imobilizadas, abati- ascendem no campo profissional têm ao luxo de desperdiçar esse potencial das. Buscam alternativas. Mas tanto consciência do preço que pagam. E ele humano e muitas revelaram o objeti- os trabalhadores masculinos como os é alto.

 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 Igualdade de gênero para fortalecer socialmente a ciência e a tecnologia

Para a pesquisadora argentina Maria Elina Estébanez, ainda não se avançou tão claramente no acionar político e na definição de políti- cas específicas para o sucesso da eqüidade de gênero

Por Graziela Wolfart

igualdade de gênero é, em si mesma, um objetivo de desenvol- vimento social e uma via muito eficaz para enfocar o sistema científico e tecnológico para a atenção dos problemas que afe- tam a sociedade”, afirma Maria Elina Estébanez, pesquisadora e coordenadora do Centro de Estudos sobre Ciência, Desenvol- “Avimento e Educação Superior, de Buenos Aires, Argentina. Pós-graduada em Socio- logia e especialista em Sociologia e Ciência, e Ciência e Tecnologia, a argentina é também professora no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia Inova- ção Organizacional, da Universidade Nacional de General Sarmiento. A seguir, na íntegra, a entrevista concedida pela pesquisadora, por e-mail, à IHU On-Line.

IHU On-Line - Qual a situação da mu- mas, o que afeta a orientação do tra- ricamente restringida para as mulheres lher no campo da ciência hoje? balho científico, a escolha de temas e e, nesse sentido, o âmbito científico e Maria Elina Estébanez - Se observar- a produção de resultados, que logo se tecnológico não constitui uma exceção mos o que tem ocorrido nas últimas voltarão à sociedade. A persistência à regra. Se bem que é certo que duran- décadas, a situação da mulher em es- de estereótipos culturais, durante os te o século XX se produziu um impor- cala mundial tem evoluído favoravel- processos de socialização e educação, tante avanço em matéria de abertura mente no acesso à educação superior incidem nas preferências lúdicas de para as mulheres por parte de muitas e no mundo laboral da ciência e da meninos e meninas e, posteriormente, instituições, por exemplo, as universi- tecnologia. Sua presença é cada vez nas escolhas de estudo durante a ado- dades. Então, a situação se torna um mais relevante nos estudos universi- lescência. Estes fenômenos persistem tanto diferente ao analisarmos as posi- tários de graduação e pós-graduação durante as etapas mais avançadas de ções que estas ocupam dentro de tais e entre os grupos de pesquisadores e socialização secundária, segmentando instituições e, mais ainda, ao analisar bolsistas de diferentes países. as preferências profissionais. outros âmbitos institucionais. Existem Mas, se estes dados indicam uma padrões culturais muito arraigados nos situação favorável para o equilíbrio de Quanto maior a hierarquia do posto ambientes educativos e laborais, que gênero na atividade científica, existem de trabalho, menor é a presença fe- associam determinadas características dois focos de desigualdade que afetam minina da “masculinidade” (como a competi- a grande potencialidade da presença Em segundo lugar, existem impor- tividade, a força, a racionalidade, a feminina. Em primeiro lugar, existem tantes barreiras para o acesso de mu- objetividade) a um exercício mais efi- “vieses” disciplinares: na pesquisa em lheres a postos de maior decisão ou caz de poder. A partir disso, se torna ciências exatas e de engenharias pre- maiores ingressos dentro do campo la- muito comum escutar que os homens dominam os homens, e nas ciências so- boral da ciência e da tecnologia, mes- são mais aptos para ocupar cargos ciais, humanas e da saúde, predominam mo naqueles campos do conhecimento desta natureza. Estes estereótipos as mulheres. Este fenômeno mostra “feminilizados”. Quanto maior a hie- incidem na escolha das pessoas que tanto a existência de diferentes voca- rarquia do posto de trabalho, menor é integrarão posições estratégicas na ci- ções profissionais quanto a masculini- a presença feminina. A possibilidade de ência, como a direção de institutos, a zação e a feminilização da produção ter acesso a instâncias de poder e de integração de comitês avaliadores ou de conhecimento em determinados te- tomada de decisões tem estado histo- as reitorias universitárias.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249  para fortalecer socialmente a ciência “Existem padrões e a tecnologia. IHU On-Line - O olhar feminino sobre culturais muito arraigados nos ambientes educativos o mundo pode instigar descobrimen- tos revolucionários nas áreas da ci- e laborais, que associam determinadas características ência e da tecnologia por parte das mulheres? da ‘masculinidade’ (como a competitividade, a força, Maria Elina Estébanez – Com certeza. Para descobrir o mundo e sua diversida- a racionalidade, a objetividade) a um exercício mais de são necessários “olhares diversos”, o feminino e o masculino, o branco e eficaz de poder. A partir disso, se torna muito comum o negro, e muitas outras diversidades que atravessam bandeiras, sociedades escutar que os homens são mais aptos para ocupar e culturas. Historicamente, têm predo- minado somente algumas perspectivas cargos desta natureza” e outras têm estado subordinadas e me- nosprezadas, apresentando tanto um problema ético como epistemológico. Com isso, se têm desperdiçado capaci- A ascensão na carreira profissional problemática na reflexão acadêmica dades para a ciência e a tecnologia. científica implica no acesso a cate- de distintas regiões do mundo. Assim gorias de maior prestígio e reconhe- mesmo, a questão tem tido reper- IHU On-Line - Qual é a especificida- cimento científico e acadêmico. Esta cussão em ofícios, cartas e recomen- de da mulher latino-americana com ascensão depende dos resultados de dações de organismos internacionais. relação à ciência, à tecnologia e ao uma avaliação realizada por um comi- No entanto, ainda não se avançou trabalho? tê específico, o qual parece estar com- tão claramente no acionar político e Maria Elina Estébanez – Percebe-se posto majoritariamente por homens. na definição de políticas específicas uma tendência positiva no crescimen- Nesta instância, podem operar diver- para o sucesso da eqüidade de gêne- to de sua participação. Por exemplo, sos mecanismos de exclusão, como ro, particularmente no que se refere à a presença das mulheres nos estudos por exemplo, respeito à valorização região latino-americana. Medidas ele- universitários tem passado nas últimas de certas atitudes e a avaliação que mentares, como uma generalização da décadas de uma participação menor se realiza da produtividade científica desagregação do sexo nas estatísticas de 10% para 30, 40 ou 50%, confor- e sua associação com os ciclos vitais nacionais vinculadas à educação su- me alguns países. Também se observa e situações familiares. O trânsito pela perior, à ciência e à tecnologia, ainda um aumento em sua participação nas experiência da maternidade ou pater- tem escassa aceitação. atividades científicas e tecnológicas, nidade não tem a mesma repercussão mas com um posto um pouco mais em mulheres e homens, o que pode IHU On-Line - O que a ciência, a tecno- baixo, sobretudo no exercício de dis- incidir em sua produtividade, embora logia e o mercado de trabalho, em ge- ciplinas de base tecnológica ou físico- não necessariamente na qualidade dos ral, ganham com a presença feminina? matemática. Como ocorre em outras trabalhos que publicam. Também pode Maria Elina Estébanez - A igualdade regiões, também aqui se produzem incidir em sua mobilidade internacio- de gênero é, em si mesma, um obje- processos de segmentação, particular- nal e na disponibilidade estendida de tivo de desenvolvimento social e uma mente os que obedecem a fatores “dis- tempo laboral. Todos estes fatores via muito eficaz para enfocar o sistema ciplinares” (como a masculinização ou são considerados positivamente no científico e tecnológico para a atenção a feminilização de determinados cam- momento de avaliar seu desempenho dos problemas que afetam a socieda- pos do conhecimento) e os que se re- profissional. de. O acesso a uma situação igualitária lacionam com a estratificação vertical de gênero na ciência e na tecnologia é (como o acesso aos postos de poder). IHU On-Line - Os estudos e pesquisas um sucesso ético que reafirma o valor Como especificidade, encontramos na na academia sobre esse tema estão da igualdade de direitos para homens e região a associação destas modalida- aumentando? mulheres no desenvolvimento de seus des de exclusão com outras, como a Maria Elina Estébanez - Um balanço interesses e atitudes. Por outro lado, exclusão étnica. Por exemplo, em pa- preliminar sobre o aporte dos estudos a sociedade se enriquece com a par- íses com população afrodescendente, sobre ciência e gênero mostra um im- ticipação igualitária dos sexos, com a é duplamente difícil para a mulher portante acúmulo de conhecimento e diversidade de seus olhares e seus mo- desta origem ascender aos estudos evidências sobre os problemas para dos de produzir conhecimento. A par- superiores e à carreira científica. Isto um sucesso na eqüidade de gênero, e tir desta perspectiva, a eqüidade de também se observa em países centro- uma importante representação desta gênero é uma estratégia apropriada americanos multi-étnicos. 10 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 Uma mulher que se reinventa e se redescobre

A antropóloga Mirian Goldenberg analisa as transformações nos modelos familiares e aponta que as tendências indicam o fim da família e do casamento como os conhecemos até agora

Por Alessandra Barros e Graziela Wolfart

irian Goldenberg é antropóloga e professora do Departamento de An- tropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universida- de Federal do . Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ela afirma que, “em pouco mais de três décadas, assistimos auma Menorme transformação do corpo carioca: do exercício do prazer à busca da perfei- ção estética, da liberdade à submissão aos modelos, do erotismo à falta de desejo”. Goldenberg é doutora em Antropologia Social, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora de Toda mulher é meio (Rio de Janeiro: Record, 1966); A outra (Rio de Janeiro: Revan, 1990); A arte de pesquisar (4ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000); Nu & Vestido (Rio de Janeiro: Record, 2002); De perto ninguém é normal (Rio de Janeiro: Record, 2004); Infiel: notas de uma antropóloga (Rio de Janeiro: Record, 2006); e O corpo como capital (Rio de Janeiro: Estação das Letras e Cores, 2007). Seu site pessoal é www.miriangoldenberg.com.br.

IHU On-Line - Na obra Novos desejos, A crise dos modelos de família uma vez que o apego sexual é noto- a senhora traz o tema “De Amélias à Portanto, ao falar de família e de riamente instável e os casais que se operárias”, em que expõe os conflitos casamento, o plural impõe-se. Já não apóiam em tal base sujeitam-se a ser de mulheres economicamente ativas, há um único modelo, mas vários. O di- facilmente fragmentados. Na medida tanto nas relações conjugais como na vórcio, a união livre, as recomposições em que a gratificação erótica se torna família. Em que fase está esse debate? familiares abalam o que se chamava, um elemento essencial na existência Mirian Goldenberg - Acredito que o até há pouco tempo, de “modelo de do casal, o risco de dissolução matri- que está ocorrendo, no Brasil, é, na família ocidental”. Este modelo será monial aumenta. O segundo, as mu- verdade, a multiplicidade e flexibi- ainda mais abalado com as novas téc- lheres tornaram-se mais independen- lidade dos atuais arranjos conjugais. nicas de procriação. A doação de óvu- tes economicamente e podem romper Assim, o que está em crise é um de- los, a fecundação por inseminação ar- com uniões indesejadas. As mulheres terminado modelo de família e de ca- tificial ou in vitro, a possibilidade de independentes economicamente têm samento. Como o modelo hegemônico clonagem de seres humanos, levam a consideravelmente mais poder – e um permanece como um valor enraizado que se ponha em causa os princípios maior sentido de autonomia pessoal em cada um, fortalecido pela sociali- fundamentais sobre os quais se assenta – do que as que não são. Com a ca- zação e educação e pela Igreja, mui- o nosso sistema de parentesco: sexua- pacidade das mulheres se sustentarem tos dos que vivem outras formas de lidade e parentesco são dissociados, veio a capacidade de serem livres. relacionamento conjugal sentem-se, paternidades e maternidades são mul- Na inexistência de novos modelos es- ainda hoje, desviantes. A pluralidade tiplicadas (genética e socialmente), o táveis, o estabelecimento de padrões de formas de casamentos e famílias nascimento de um filho não provém de divisão do trabalho na família fica existentes em nossa cultura demons- necessariamente de um casal. na dependência do confronto interpes- tra que homens e mulheres continuam Dois fenômenos recentes enfraque- soal entre os cônjuges. Como se valo- querendo casar e constituir famílias, ceram a força da união permanente na rizam e se exigem, simultaneamente, sem, no entanto, reproduzir o modelo família brasileira. O primeiro é a in- o apoio emocional e o prazer sexual tradicional de conjugalidade. tensificação da vida erótica do casal, recíprocos, a relação conjugal recebe

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 11 uma sobrecarga de exigências. A im- possibilidade de satisfazer todas as condições colocadas como necessárias “Numa cultura, como a brasileira, em que o corpo é à manutenção da parceria conjugal igualitária encontra solução na cres- um importante capital, o envelhecimento pode ser cente aceitação social do divórcio, que acarreta a fragmentação da famí- vivenciado como um momento de grandes perdas” lia original e a constituição de outra, através de novo casamento. Essas tendências colocam em xeque do que as brasileiras. Observei mu- de re-encontrar-se, re-inventar-se, a estrutura e os valores da família e do lheres que pareciam muito poderosas re-descobrir-se apareceu muito nos casamento tradicionais. Não se trata na Alemanha, objetivamente (em suas grupos de discussão, sempre associa- do fim da família ou do casamento, profissões e relações conjugais), mas, das ao fato de fazerem, hoje, as coi- uma vez que outras estruturas estão também, subjetivamente. No Brasil, sas que mais gostam: conversar com as sendo testadas e poderemos, no fim, tenho observado um abismo enorme amigas, sair sozinha, ter tempo para reconstruir a maneira como vivemos entre o poder objetivo das mulheres si mesma, viajar, ler, estudar, ou, até uns com os outros, como procriamos e pesquisadas, o poder real que elas mesmo, encontrar um novo prazer com como educamos de formas diferentes conquistaram em diferentes domí- o marido assumindo mais os próprios e, quem sabe, talvez melhores. Mas nios (sucesso, dinheiro, prestígio, re- desejos, e não buscando agradá-lo. as tendências indicam o fim da família conhecimento, e, até mesmo, a boa É interessante observar que tan- e do casamento como os conhecemos forma física) e a miséria subjetiva que to no discurso de vitimização quanto até agora. Não apenas a família nucle- aparece em seus discursos (decadên- no de libertação, dois foram os eixos ar, mas a família baseada no domínio cia do corpo, gordura, flacidez, insô- centrais das pesquisadas: o corpo e a patriarcal, que tem predominado há nia, doença, medo, solidão, rejeição, relação conjugal, mais especialmen- séculos. Assim, não existe uma crise abandono, vazio, falta, invisibilidade te o casamento de cada uma delas. O de família, mas uma crise da família e aposentadoria). Observando a apa- corpo foi tanto objeto de extremo so- patriarcal. Não é o fim da família, mas rência das alemãs e das brasileiras, frimento (em função de suas doenças o surgimento de uma família nova e as últimas parecem muito mais jovens ou decadência) ou de extremo prazer mais complexa, em que papéis, re- e em boa forma do que as primeiras, (em função da maior aceitação e cui- gras e responsabilidades não serão mas se sentem subjetivamente muito dado com ele). Os parceiros amorosos garantidos pela autoridade patriarcal mais velhas e desvalorizadas do que foram, também, objeto de extrema e terão que ser permanentemente ne- elas. A discrepância entre a realidade dor (alcoolismo, machismo, violência, gociados. Isso inclui a necessidade de objetiva e os sentimentos subjetivos autoritarismo, egoísmo, abandono, dividir o trabalho doméstico, parceria das brasileiras me fez perceber que rejeição, faltas) ou de extremo pra- econômica e responsabilidade pelos fi- aqui o envelhecimento é um proble- zer (companheirismo, prazer sexual, lhos compartilhada. A dificuldade em ma muito maior, o que pode explicar cumplicidade). Numa cultura, como a ter de lidar com todos esses papéis o enorme sacrifício que muitas fazem brasileira, em que o corpo é um im- ao mesmo tempo, quando não mais se para parecer mais jovens, por meio do portante capital, o envelhecimento encontram fixados em uma estrutura corpo, da roupa e do comportamento. pode ser vivenciado como um momen- formal institucionalizada como a fa- Elas constroem seus discursos enfati- to de grandes perdas (de capital). Em mília patriarcal, explica a dificuldade zando as faltas que sentem, e não suas uma cultura, como a alemã, em que os em manter-se relacionamentos sociais conquistas objetivas. capitais mais valorizados são outros, estáveis. No entanto, a frase, “hoje eu pos- como o profissional, o científico eo so ser eu mesma pela primeira vez na cultural, o envelhecimento parece ser IHU On-Line - Em comparação com as minha vida” foi repetida por algumas vivido como um momento de ganhos. mulheres européias, a mulher brasi- das brasileiras pesquisadas que per- leira tem muito a alcançar? cebem o envelhecimento como uma IHU On-Line - Quem é a mu- Mirian Goldenberg - Em minha obser- re-descoberta, altamente valorizada, lher de hoje? Quais são as suas vação comparativa de dois universos de um “eu” que estava encoberto ou conquistas e os seus desafios? (Alemanha e Brasil), as mulheres ale- subjugado pelas obrigações sociais, Mirian Goldenberg - Acho que o gran- mãs me pareceram muito mais con- especialmente no investimento feito de desafio é ser “meio Leila Diniz”. fortáveis com o seu envelhecimento no papel de esposa e de mãe. As idéias Muitas brasileiras já são, muitas estão longe de ser. Quando, em 1971, Lei- la Diniz exibiu sua barriga grávida de “O direito da licença-maternidade deve ser visto biquíni, na praia de Ipanema, escan- dalizou e lançou moda. Foi capa de como direito da criança e não da mulher” revistas e manchete de jornais por ter sido a primeira mulher a não esconder 12 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 sua barriga em roupas soltas e escu- urbanas cariocas, é um corpo contro- Homens mais ativos na criação ras, consideradas mais adequadas a lado, mutilado, que prefere a escuri- dos filhos uma grávida. Não só engravidou sem dão para esconder suas imperfeições. Para ilustrar com uma realidade ser casada como exibiu uma imagem Em pouco mais de três décadas, assis- oposta, na Suécia, a licença de mais concorrente à grávida tradicional que timos a uma enorme transformação do de um ano para cuidar do recém-nasci- escondia sua barriga. A barriga grávida corpo carioca: do exercício do prazer do é para ambos os pais. O casal pode materializou, objetivou, corporificou à busca da perfeição estética, da li- decidir quem ficará sem trabalhar seus comportamentos sexuais trans- berdade à submissão aos modelos, do para cuidar do bebê: o pai ou a mãe. gressores. Ícone das décadas de 1960 e erotismo à falta de desejo. Concluo, A proposta visa estimular os homens 1970, Leila Diniz permanece, até hoje, então, com a constatação de que, no a assumir um papel ativo na criação como símbolo da mulher carioca, que Brasil do século XXI, estamos muito dos filhos e propiciar uma divisão mais encarna, melhor do que ninguém, o longe de poder afirmar que “toda mu- igualitária das tarefas domésticas. espírito da cidade: corpo seminu, se- lher é meio Leila Diniz”. Todos sabem que os meses iniciais dução, prazer, liberdade, sexualidade, são fundamentais para assegurar a alegria, espontaneidade. Leila Diniz IHU On-Line - A guerra entre os sexos adaptação do bebê ao mundo, o que encarna a imagem de uma jovem livre foi intensificada com a libertação fe- significa que cuidar de um recém- e feliz: sua maneira de exibir o corpo; minina. De um lado as mulheres recla- nascido é muito mais do que apenas seu uso da linguagem; sua conduta se- mam da falta de homens e de outro os garantir o aleitamento materno. Esse xual; e suas escolhas de amigos e par- homens sentem-se pressionados pe- tempo é necessário para estabelecer ceiros amorosos estão inteiramente las crescentes exigências femininas. o vínculo afetivo com a criança, indis- presentes em sua ética e estética de O que a senhora destaca sobre essa pensável para o seu desenvolvimento vida. Percebe-se nitidamente, em Lei- discussão de lutas entre os gêneros? emocional e social. la, uma postura de transgressão simbó- Mirian Goldenberg - Para mim, a Cinco (ou 15) dias são suficientes lica, estilo que encerra a afirmação de questão central na discussão sobre a para que o pai participe da formação uma contralegitimidade, por exemplo, igualdade de gêneros se refere ao pa- emocional e social da criança, enquan- pela intenção de dessacralização dos pel masculino no domínio doméstico, to a mãe deve dedicar seis meses ex- valores da moral e da estética domi- especialmente com relação à paterni- clusivamente a essa tarefa? É possível nantes, através de um comportamento dade. A Comissão de Direitos Humanos pensar em uma efetiva igualdade en- sexual livre, de uma linguagem irreve- do Senado aprovou, por unanimidade, tre os sexos quando a mulher detém, rente e sem censuras, da imposição o projeto que aumenta de quatro para quase exclusivamente, o direito e o de novos padrões estéticos e ruptura seis meses o período da licença-mater- dever de cuidar dos filhos? Esse cuida- de tabus sociais (como a exibição da nidade. A autora do projeto, senadora do não pode (e deve) ser igualmente barriga grávida de biquíni), antítese Patrícia Saboya (PDT-CE), comemorou compartilhado pelos homens? quase perfeita do moralismo de deter- dizendo: “Está na hora de respeitar É verdade que muitos homens recu- minados grupos que exigiam, nos anos a mulher brasileira e as crianças”. sam ou duvidam da própria competên- 1960, um comportamento feminino sé- Aplaudimos veementemente a aprova- cia para o exercício da paternidade. rio e regrado. ção do projeto, o reconhecimento e a Contudo, é fácil constatar, inclusive valorização da maternidade. Mas per- com a notável discrepância entre os Nem toda mulher é “meio Leila Diniz”... guntamos: não está também na hora dois projetos, que aqueles que que- O corpo de Leila Diniz (e de muitas de respeitar o homem brasileiro, ou rem exercer plenamente a paternida- mulheres de sua geração) era um cor- melhor, a paternidade? Aparentemen- de estão impedidos de cuidar de seus po voltado para o prazer, para o livre te não, pois a mesma senadora propõe filhos, já que as mulheres são perce- exercício da sexualidade, que exibia um projeto para aumentar a licença- bidas como as legítimas detentoras do sua beleza e plenitude à luz do sol. paternidade de cinco para 15 dias, saber e do poder nesse âmbito. Elas O corpo de muitas mulheres de hoje, com o objetivo de que os pais possam são consideradas as únicas realmen- como constatei na pesquisa realizada “ajudar” as mães nos primeiros dias te necessárias no momento inicial de com indivíduos das camadas médias de vida do bebê. vida, cabendo ao pai, quando muito, a função de “ajudar” a mãe.

“A pluralidade de formas de casamentos e Pais coadjuvantes e mães estrelas? Limitados a um papel secundário famílias existentes em nossa cultura demonstra que ou terciário (quando o bebê é cuidado pela avó, babá ou empregada domés- homens e mulheres continuam querendo casar e tica), são ainda acusados de imaturos, ausentes, irresponsáveis, incompeten- constituir famílias, sem, no entanto, reproduzir o tes e inadequados como pais. Muitas mulheres vivem a maternidade como modelo tradicional de conjugalidade” um poder que não querem comparti-

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 13 lhar e percebem os homens como meros coadjuvantes - ou até mesmo figurantes - em um palco em que a principal estrela é a mãe. Não é possível questionar a su- O posicionamento posta superioridade feminina no domínio privado sem enfrentar uma feminino no contexto da cibercultura forte reação das mulheres, inclusi- ve de muitas que lutam pela com- pleta igualdade entre os gêneros. Para a pesquisadora Adriana Braga, as mudanças socioculturais Mas não seria exatamente nesse conseqüentes do avanço tecnológico são inevitáveis terreno, completamente dominado pelas mulheres, que se enraizaria a mais profunda desigualdade entre Por Bruna Quadros os sexos? É muito difícil transformar uma realidade social quando ela é vista ão acredito que a possibilidade de mudança na represen- como da ordem da natureza; natu- tação feminina esteja na tecnologia, mas na cultura que reza que é usada para justificar o utiliza esta tecnologia para se expressar”, afirma a Prof.ª papel privilegiado da mãe e para Dr.ª Adriana Braga, em entrevista concedida, por e-mail, marginalizar ou excluir o pai dos à revista IHU On-Line. Neste sentido, ela também aponta cuidados com o recém-nascido. No para o conceito de maternidade eletrônica, uma relação de controle sobre os entanto, não existe absolutamente “N nada na “natureza” masculina que filhos que não implica diretamente em confiança. “Se, por um lado, os aparatos impeça um pai de cuidar, alimen- tecnológicos podem auxiliar pais e mães no monitoramento, por outro lado, tar, acariciar, acalentar e proteger podem auxiliar filhos e filhas em suas estratégias para burlar este controle”, seu bebê, assim como não há uma enfatiza Adriana. “natureza” feminina que dê à mãe Esta temática será amplamente debatida no dia 06-03-2008, quando Adria- a autoridade de se afirmar como a na Braga proferirá a palestra Maternidade Eletrônica: a perspectiva feminina única capaz de cuidar do recém- na cibercultura, que integra o evento IHU Idéias, promovido pelo Instituto nascido. Os cinco (ou 15) dias de Humanitas Unisinos – IHU. licença-paternidade e os seis meses Adriana Braga é doutora em Ciências da Comunicação, pela Universidade do de licença-maternidade revelam a Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e professora do Programa de Pós-Graduação em enorme desigualdade de gênero em Comunicação Social da PUC-Rio. É autora do livro Personas Materno-Eletrônicas: nosso país. uma análise do blog Mothern (Editora Sulina, 2008). Nas Notícias do Dia 5-10- Consolida-se, com esse abismo, 2006, do sítio do IHU, foi publicada uma nota intitulada “Feminilidade mediada o monopólio feminino dos prazeres, pelo computador”, a qual se refere à tese de Adriana. Para conferir, acesse www. encargos e sacrifícios com os filhos. unisinos.br/ihu. Adriana já contribuiu com a edição número 40 dos Cadernos IHU Reforça-se, também, a falta de res- Idéias, de 07-10-2005, sob o título Corpo e agenda na revista feminina. peito e de reconhecimento da im- portância do exercício da função pa- terna. Sem desmerecer a conquista das mulheres, muito pelo contrário, é mais do que necessário denunciar IHU On-Line - O aumento das tecnologias na vida cotidiana não sinaliza parar. a injustiça e a discriminação que so- Quais são as vantagens e desvantagens de permitir que estes meios se insiram frem aqueles que querem exercer cada vez mais nas relações sociais? plenamente a paternidade. Adriana Braga - As mudanças socioculturais conseqüentes do avanço tecnológico Se as crianças de hoje aprende- são fenômenos que não pedem permissão para ocorrer, ou seja, são inevitáveis. Os rem que o pai e a mãe podem ser avanços são impulsionados pela própria demanda do mercado consumidor. A única igualmente disponíveis, atenciosos, maneira de controlar a inserção de uma tecnologia na cultura é através de políticas responsáveis, protetores, presentes que regulamentem sua implementação. Uma vez implementada uma tecnologia – e amorosos, é possível que, em um seja de comunicação ou outra –, é impossível prever os modos de apropriação e usos futuro próximo, tenhamos uma ver- pelos diversos grupos ou indivíduos que tiverem acesso a ela. Sendo assim, questões dadeira igualdade entre homens e relativas à redistribuição do poder e a grupos que se beneficiam ou prejudicam com mulheres e a crença de que em ne- a inserção da tecnologia devem ser avaliadas antes da autorização de seu funcio- nhum domínio (público ou privado) namento. Depois, o fenômeno segue seu curso. Sobre vantagens e desvantagens, um é superior ou mais necessário do somos beneficiários e vítimas desses meios, experimentamos cotidianamente os que o outro. embaraços de poder encontrados em qualquer parte e a qualquer momento, por 14 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 meio do celular ou nos livrarmos de sé- lhos e filhas em suas estratégias para mesma temática se estabelece sem a rios apuros com o mesmo aparelho. burlar este controle. Ou seja, as rela- conotação pejorativa e, ao contrário, ções de confiança estabelecidas entre é entendida positivamente, como prá- IHU On-Line - O que se pode esperar familiares não são determinadas pelo tica de mulheres modernas pelo enga- de uma sociedade cada vez mais tec- suporte técnico em que ocorrem. jamento tecnológico. nológica, especificamente no que diz respeito à imagem feminina? IHU On-Line - E qual é o reflexo nas Adriana Braga - A imagem feminina “Não acredito que a crianças que crescem inseridas no tem sido representada nas mais diver- contexto da cibercultura? sas sociedades de todos os períodos possibilidade de mudança Adriana Braga - As gerações mais re- históricos, em tecnologias também centes estão cada vez mais familiari- diversas. Não acredito que a possibi- na representação zadas com os ambientes proporciona- lidade de mudança na representação dos pela tecnologia de comunicação. feminina esteja na tecnologia, mas feminina esteja na Vivemos uma fase de transição, na qual na cultura que utiliza esta tecnologia as gerações mais velhas ainda não domi- para se expressar. Assim, a solução da tecnologia, mas na nam os códigos da cibercultura, que são exploração da imagem feminina, sob corriqueiros para a geração mais jovem. uma perspectiva sexista, é política, e cultura que utiliza esta Entretanto, em pouco tempo mesmo os depende de iniciativas igualmente po- mais velhos estarão aculturados e o do- líticas. De certa forma, o YouTube é a tecnologia para se mínio dos jovens neste âmbito será rela- pintura rupestre do nosso tempo, um tivizado. A influência do contato com a registro imagético da nossa cultura. expressar” cibercultura na formação de uma crian- ça é e sempre será impossível de discer- IHU On-Line - Mesmo que os homens nir ou mensurar. Qualquer característica estejam cada vez mais participativos que a criança apresente será motivada das tarefas domésticas, são as mulhe- IHU On-Line - Esse tipo de relação por múltiplos fatores, sendo equivocada res que ainda têm este domínio. Entre (controle) interfere na privacidade e uma redução a apenas um deles. Mas estes gêneros, há quem seja mais favo- nos direitos dos filhos? Até que ponto uma coisa é certa: como qualquer outra recido com o surgimento e ascensão da a cibercultura pode ser positiva? influência a que a criança esteja expos- cibercultura? Adriana Braga - Esse tipo de relação ta, a atividade on-line deve ser orienta- Adriana Braga - As mudanças ocorrem não é novidade alguma. Pai e mãe da e acompanhada pelos responsáveis. na cultura. A tecnologia, no caso da In- sempre procuraram monitorar os mo- A mediação familiar no consumo desses ternet, forneceu um novo ambiente para vimentos dos filhos, seja pela troca de meios muitas vezes é mais importante as trocas sociais, mais um espaço de ex- informações entre a vizinhança, pela do que o próprio conteúdo. pressão para a cultura já estabelecida. inscrição em colégios internos ou pe- Por exemplo, ainda são os homens que los celulares. A cibercultura é um ter- IHU On-Line – Qual é a contribuição se destacam no domínio tecnológico, ritório amplo, que inclui ambientes das nanotecnologias para este novo ocupando quantitativa e qualitativa- diferentes. As pessoas usam cada uma conceito de sociedade que está se mente os lugares promovidos por esta dessas estruturas conforme a conveni- moldando, o qual imerge na ciber- atividade. A Internet participa como um ência de cada situação específica. cultura? complemento da sociedade, reproduzin- Adriana Braga - As nanotecnologias pos- do seus problemas. IHU On-Line - Diante da cibercultu- sibilitam levar os aparatos comunicati- ra, a imagem feminina, no papel de vos no bolso, estendendo e modificando IHU On-Line - São inúmeras as tecno- mãe, não tende a perder valor? a natureza e os locais de ocorrência das logias que prometem facilitar a vida Adriana Braga - É interessante notar interações comunicativas. As alterações em sociedade. No entanto, algumas que o ambiente midiático-tecnológico decorrentes configuram o “novo concei- remetem à idéia de monitoramento, da cibercultura parece oferecer um to de sociedade”, mas apenas para uma como pagers e telefones celulares. espaço renovado para a recuperação parcela social dominante, conectada às De que forma a cibercultura contri- de uma prática tradicional feminina redes sociais de relacionamento da rede. bui para que os pais tenham cada vez de troca de saberes entre mulheres, Cabe ressaltar que, mesmo com a queda mais controle sobre os filhos? envelhecida nos contextos sociais dos preços dos equipamentos, o acesso Adriana Braga - Tenho dúvidas de que tradicionais. Enquanto a conversação a essas tecnologias continua a ser muito o objetivo dos pais e mães seja contro- entre mulheres sobre filhos, vida con- restrito, principalmente em países pe- lar cada vez mais os filhos. Se, por um jugal e doméstica tem sido desvalori- riféricos como o Brasil. Se no mundo há lado, os aparatos tecnológicos podem zada socialmente, enquadrada como mais de um bilhão de pessoas usuárias auxiliar pais e mães no monitoramen- conversa fútil e desinteressante, nos destas tecnologias, há quase seis bilhões to, por outro lado, podem auxiliar fi- ambientes sociais da Internet, essa de excluídos deste grupo privilegiado.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 15 A masculinidade ainda valorizada e assumida

Autor do livro A construção social da masculinidade, Pedro Paulo de Oliveira não acredita na crise do homem contemporâneo, mas reconhece a irrelevância dos homens para a concepção de seres humanos

Por Graziela Wolfart

o analisar as transformações no mundo do trabalho hoje e as impli- cações para o universo feminino, o professor Pedro Paulo de Oliveira reconhece: “A posição da mulher na sociedade contemporânea tende a ser cada vez mais aproximada da posição masculina”. No entanto, ele acredita que “não há um tipo único de mulher que emerge desta forma Ade sociabilidade, ou seja, cada vez mais veremos a possibilidade de se ter agentes femininos de tipos variados”, destacando ainda que “não podemos nunca esquecer que a lógica do social tende a reproduzir um modelo de feminilidade em que a idéia de fragilidade e de objeto no mercado matrimonial continuam a orientar os comportamentos hegemônicos, permitindo que o paradigma da feminilidade cen- trado em características como a delicadeza, vaidade e emotividade, entre outras, continue a imperar, mesmo que contestado por outros modelos diferentes que não se enquadrarão neste molde”. Pedro Paulo possui graduação em Ciências Sociais e doutorado em Sociologia, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor de Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor de A construção social da masculinidade (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004). A entrevista a seguir foi realizada por e-mail.

IHU On-Line - Como o senhor define rísticas como a delicadeza, vaidade e o papel da mulher na sociedade con- “O modelo de família emotividade, entre outras, continue a temporânea hoje? Que tipo de mu- adotado como ideal é imperar, mesmo que contestado por lher emerge das grandes transforma- outros modelos diferentes que não se ções sociais dos últimos tempos? enquadrarão neste molde. Pedro Paulo de Oliveira – A posição da aquele que apenas os mulher na sociedade contemporânea IHU On-Line - Como o homem se sen- tende a ser cada vez mais aproximada setores de classe média te e se posiciona em relação a uma da posição masculina. Isto porque as possível crise da masculinidade e do atividades laborais, por exemplo, cada podem sustentar” patriarcado em função das mudanças vez menos requerem especificidades nas atitudes das mulheres contem- vinculadas ao sexo biológico e pode- sociabilidade, ou seja, cada vez mais porâneas, principalmente no merca- mos perceber uma crescente inserção veremos a possibilidade de se ter agen- do de trabalho? de mulheres em atividades antes des- tes femininos de tipos variados. No Pedro Paulo de Oliveira - A idéia de tinadas apenas aos homens. Um pro- entanto, não podemos nunca esquecer crise da masculinidade é, na minha blema é o fato, já constatado, de que que a lógica do social tende a repro- opinião, uma bobagem. Os homens, agora, além de produtivas no mercado duzir um modelo de feminilidade em ou pelo menos a maior parte deles, de trabalho, elas continuam a exercer que a idéia de fragilidade e de objeto não estão em crise. Basta ouvir a letra boa parte das funções domésticas, o no mercado matrimonial continuam a de alguns funks, por exemplo, para se que algumas feministas chamam de orientar os comportamentos hegemô- perceber como alguns jovens se en- dupla jornada. Não há um tipo único nicos, permitindo que o paradigma da xergam frente às mulheres. Recente- de mulher que emerge desta forma de feminilidade, centrado em caracte- mente, trabalhei numa pesquisa com

16 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 “A idéia de crise da masculinidade é, na minha opinião, uma bobagem. Os homens, ou pelo menos a maior parte deles, não estão em crise. Basta ouvir a letra de alguns funks, por exemplo, para se perceber como alguns jovens se enxergam frente às mulheres”

jovens favelados e pude perceber que IHU On-Line - Recentemente, a ciên- a construção social da masculinidade a masculinidade centrada em caracte- cia levantou a hipótese de as mulhe- tem, sim, como correlato o seu “ou- rísticas típicas do machismo é ainda res gerarem os filhos sozinhas, o que tro”, ou seja, a feminilidade. Minha extremamente valorizada e assumida as concederia total autonomia nas preocupação centrou-se nas questões sem nenhum problema. A idéia de cri- relações conjugais. Como o senhor masculinas, mas não é difícil entender se da masculinidade ficou vinculada avalia esta questão? que a construção de um tipo simbólico principalmente a alguns autores, não Pedro Paulo de Oliveira - Vejo de for- tem efeitos e implicações para o seu raro aqueles formados nas diversas ma bastante positiva, pois muitas das antípoda, notadamente ainda quando disciplinas “psi”, que recortam os di- prescrições sociais e modelos de com- se refere à dicotomia centrada na po- lemas de alguns homens de classe mé- portamentos de gênero baseiam-se na larização masculino-feminino. dia, muitos dos quais freqüentadores falaciosa idéia de que as diferenças de divãs de psicanálise, como sendo anatômicas e biológicas são a base IHU On-Line - Que tipos de símbolos típica da masculinidade contemporâ- natural para as assimetrias de gêne- fazia parte do masculino no Medievo nea. Tal crise só pôde ser ventilada ro. Com o advento destas técnicas de e na modernidade e que hoje podem porque a mídia, impressa e eletrôni- reprodução biológica, ficará explíci- ser associados à mulher? Quais são ca, adora esse tipo de abordagem em to o fato de que os comportamentos as conseqüências sociais e culturais que se destaca a idéia de que há um de gênero estão baseados, em última dessa mudança? novo homem, de que o antigo está ul- análise, em idiossincrasias sociocultu- Pedro Paulo de Oliveira - Sobre o pe- trapassado etc., com o beneplácito rais. Para as mulheres, isto é bastante ríodo medieval não posso falar, pois da indústria da moda, de cosméticos positivo, pois explicita a irrelevância abordei de modo bastante sucinto a e do fitness. O fato novo é que hoje dos homens para a concepção de seres passagem do nobre de espada para em dia muitas mulheres já não depen- humanos, o que deve fazer a balança o soldado laborioso da modernidade. dem economicamente dos homens. do poder pender um pouco mais para Não sei se podemos pensar nestes ter- Isto gera uma mudança na assimétri- elas (espero), que viveram e ainda vi- mos, isto é, pensar em símbolos an- ca relação entre homens e mulheres, vem subjugadas por uma injustificada, tes preso à idéia de masculinidade e desfavorecendo os primeiros. Dessa do ponto de vista ético, hegemonia de hoje relacionados à feminilidade. O forma, a hegemonia masculina, que valores simbólicos masculinos. que se pode dizer é que algumas das se centrava, entre outras coisas, no idéias e símbolos associados ao poder, mandato social da provisão familiar, IHU On-Line - Em que elementos o como a racionalidade, a capacidade perde parte de sua legitimidade. Por senhor se baseia para falar sobre a de empreendimento, a moderação e outro lado, voltando aos jovens, per- construção social da masculinidade? equilíbrio das pulsões, entre outros, cebemos que as meninas estão cada Esse processo também se passa com já não são mais vistos como indiscu- vez menos dispostas a serem meras mulheres? tivelmente masculinos em si. Embora presas nas interações amorosas, o Pedro Paulo de Oliveira - Bem, eu eu não pense que estejam completa- que gera um tipo de “desregulação escrevi um livro inteiro sobre isso e mente dissociados da idéia de mascu- interacional”, pois agora os meninos não vou tentar resumi-lo aqui, pois linidade. É só refletir sobre o fato de precisam lidar também com o fato de me sinto completamente desconfor- que, quando uma mulher ocupa uma que são abordados e de que não são tável nesse papel. Diria apenas que posição de poder, ela logo é revestida os únicos predadores neste regime in- teracional. Mas isso é apenas parte de todo um conjunto de mudanças que “Tal crise só pôde ser ventilada porque a mídia, impres- têm ritmos diferenciados, dependen- do de variáveis, como faixa etária, sa e eletrônica, adora esse tipo de abordagem em que se posição econômica e social, origem geográfica, adesão religiosa, entre destaca a idéia de que há um novo homem” muitas outras.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 17 social. Há uma tendência (mas não obrigatoriedade) de se ter gays mais “Não podemos esquecer que a lógica do social femininos, quanto mais jovens, por- tanto, eles se reconhecerem como tende a reproduzir um modelo de feminilidade em gays. As “conversões” mais tardias tendem a seguir um padrão menos ali- que a idéia de fragilidade e de objeto no mercado nhado com um comportamento femi- nino. Isto, no entanto, é apenas uma matrimonial continuam a orientar os comportamentos tendência mais geral e nunca uma re- gra seguida por todos. Com relação à hegemônicos, permitindo que o paradigma da posição socioecônomica, os agentes menos favorecidos tendem a oscilar feminilidade, centrado em características como a entre uma polaridade: ou são gays bem feminilizados ou então machões, delicadeza, vaidade e emotividade, entre outras, conhecidos como “enrustidos”, que só assumem práticas sexuais em que eles continue a imperar, mesmo que contestado por sodomizam, mas que negam a prática de serem sodomizados, reiterando a outros modelos diferentes que não se enquadrarão velha dicotomia ativo e passivo. Um indício desta asserção é constatado, neste molde” por exemplo, com pesquisas feitas com travestis, em que boa parte de- les são originários de classes sociais desfavorecidas. Para explicar melhor a razão disso, eu precisaria lançar de símbolos masculinizados. Pense- própria concepção que estes agentes mão da idéia de profecia que se auto- mos na idéia de “dama de ferro” de têm da mesma. A família passa por cumpre, muito utilizada por alguns Margaret Thatcher ou nos tailleurs ou transformações específicas, que têm sociólogos para tratar das questões de “terninhos” femininos, usados como relação com uma série de fatores ou- identidade pessoal, o que é impossível vestimenta por mulheres em cargos tros, como, por exemplo, a presença neste espaço. de poder corporativos, institucionais da mídia eletrônica nos lares e mais Do ponto de vista das lutas sociais, etc. A vida social muda, mas a inércia recentemente dos computadores, gays e feministas têm muitas bandei- da história deve ser levada em con- bem como com a acirrada luta para ras em comum, porém também muitas ta para não pensarmos em revoluções inserção dos agentes no mercado de divergências, especialmente quando totais que não guardam relação com o trabalho e de consumo. Não vincula- se pensa nas bandeiras do movimento passado. E, com relação às questões ria, assim, a mudança da posição so- gay masculino. de gênero, o peso histórico da he- cial do homem e da mulher como os Não penso que a mulher contempo- gemonia masculina ainda é bastante fatores decisivos que afetam as atuais rânea inspire mais o homem gay atual. considerável. mudanças no ideal de família, pois Afinal de contas, quem é esse homem preferiria analisá-los em conjunto, gay atual? Posso afirmar, com toda IHU On-Line - Em que sentido essas vendo imbricações que devem levar certeza, que significativos contingen- mudanças no papel do homem e da em conta outros fatores. tes gays reprovam e buscam se afastar mulher na sociedade implica em al- de qualquer associação com a femini- terações nos modelos de família? IHU On-Line - Como ocorre a incor- lidade. Evidentemente, isso não é algo Pedro Paulo de Oliveira - A questão poração da feminilidade entre os ho- que possamos generalizar, mas dá a da família mereceria por si toda uma mens gays? A mulher contemporânea idéia de que, ao fazermos referência análise em especial. Na pesquisa que inspira mais o homem gay do século aos gays de modo genérico, estamos fiz com jovens favelados, percebi que XXI? passando por cima de uma miríade de o modelo de família adotado como Pedro Paulo de Oliveira - A questão diferenças, que não são de forma ne- ideal é aquele que apenas os seto- gay é por si só de uma complexida- nhuma passíveis de serem reduzidas res de classe média podem sustentar. de imensa. Durante a minha pesquisa, a um mínimo denominador comum. Isto provoca uma série de problemas percebi, no entanto, que alguns fato- Qualquer pesquisa séria deve levar em para estes jovens. Por outro lado, é res podem ser importantes para que conta o contingente de pessoas que nos núcleos menos favorecidos que alguns gays assumam comportamen- fazem sexo com parceiro(a)s do mes- uma idéia de família estendida sur- tos femininos. Dois são fundamentais: mo sexo, de acordo com as variáveis ge quase como uma estratégia de so- o período em que o agente passa a se sociológicas já aludidas na resposta à brevivência, embora não seja esta a reconhecer como gay e sua condição segunda questão.

18 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 O futuro incerto de Cuba

A renúncia de Fidel Castro, após 49 anos no poder, já era esperada para alguns, mas foi surpresa para a grande maioria. O fato é que o pronunciamento, por escrito, do ex-presidente, realizado no dia 19-02-2008, gerou especulações no mundo inteiro. O futuro da ‘revolução cubana’ está em discus- são. As Noticias do Dia, diariamente publicadas no sítio do IHU, têm reproduzido textos e entrevistas que discutem o momento vivido por Cuba. Querendo contribuir neste debate, a IHU On-Line entrevistou o jornalista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Hélio Doyle, o historiador Daniel Aarão Reis e o jornalista e tradutor Eric Nepomuceno.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 19 Acertos e erros: uma avaliação do governo cubano

As mudanças em Cuba “não representam um retorno ao capitalismo”

Por Patricia Fachin

uba poderia construir o verdadeiro socialismo, “com democracia e li- berdade”, mas as circunstâncias mundiais obrigam os cubanos a “adotar elementos da economia de mercado para sobreviver como nação e asse- gurar o bem-estar de sua população”, comenta o jornalista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Hélio Doyle. Os maiores problemas do Cpaís, como a alimentação racionada, por exemplo, são conseqüências da economia de mercado, adotada pelo país desde a década de 1990, explica ele. Entre tantos equívocos e acertos no regime comandado por Fidel, o pesquisador ressalta que o poder popular cubano não assegura a participação dos cidadãos no governo como deveria, mas “chega mais perto do que nas ‘democracias’ capitalistas de países subdesenvolvidos e mesmo, em alguns aspectos, desenvolvidos, nos quais a democracia que um cidadão goza é proporcional ao dinheiro que tem”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Doyle alerta que possíveis mudanças no regime, mesmo com a sucessão de Raúl Castro, são delicadas e ques- tiona: “Como dar mais liberdade à oposição se ela mesma diz que seu objetivo é abri o país aos Estados Unidos, voltando à situação antes da revolução? Como aumentar a possibilidade de negócios privados sem aumentar as desigualdades sociais e assim aumentar as tensões na sociedade?”. Para ele, independente das alterações dos pró- ximos anos, é imprescindível manter “algumas das características do socialismo que se tentou construir”. Hélio Doyle é autor da dissertação de mestrado Revolução e Democracia: o poder popular em Cuba, realizada em 1992. Sobre o país socialista, ele produziu dois docu- mentários: Cuba, o poder popular (1991) e As crianças de Chernobyl (1990). Ambos foram premiados. O primeiro recebeu o prêmio revelação na Jornada de Cinema e Vídeo da Bahia e o segundo foi o melhor vídeo no I Festival do Vídeo de Brasília. Doyle foi jornalista do Correio Braziliense e atualmente é docente e pesquisador do Núcleo de Estudos Cubanos (Nescuba) da Universidade de Brasília (UnB).

IHU On-Line - O senhor disse que a queio econômico dos Estados Unidos, IHU On-Line - O sentimento do povo renúncia de Fidel não representa que vinha desde 1961. Essas mudanças cubano por Fidel mudou ao longo grandes mudanças em Cuba, e que o na economia ajudaram a retirar Cuba desses 49 anos em que ele esteve regime socialista permanecerá. En- do fundo do poço e reerguê-la, mas ti- à frente do poder? Há um consenso tretanto, é possível vislumbrar algu- veram um alto custo social para o sis- popular sobre a figura do ex-presi- ma mudança na política econômica tema. A situação hoje é bem melhor dente? do país? do que na década de 1990, mas é claro Hélio Doyle - Nenhum dirigente con- Hélio Doyle - A política econômica de que há grandes problemas que ainda segue manter o mesmo nível de apoio Cuba vem sofrendo mudanças desde os têm de ser resolvidos. Logo, são ne- e popularidade em dez anos, quanto primeiros anos da revolução, na déca- cessárias mais mudanças na economia, mais em 49 anos. Fidel, quando luta- da de 1960. Passou por diversas fases, como o próprio Raúl Castro tem dito va contra Fulgêncio Batista, era quase diversas etapas. As mudanças mais sig- e repetiu na Assembléia Nacional. O uma unanimidade, só não tinha apoio nificativas ocorreram a partir de 1990, importante é que essas mudanças pre- do então ditador, de seus apoiadores quando Cuba se viu sem o apoio da tendidas não representam um retorno e dos empresários e latifundiários que antiga União Soviética e dos países do ao capitalismo, mas uma tentativa de se beneficiavam do antigo regime. Co- Leste Europeu vinculados ao Comecom manter o socialismo, ou pelo menos meçou a perder apoio quando mostrou (Conselho Econômico de Assistência algumas das características do socia- que não queria fazer apenas uma tro- Mútua) e ainda sujeita ao violento blo- lismo que se tentou construir. ca de comando, mas uma revolução 20 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 social. O agravamento dos problemas econômicos e as restrições à liberda- de, ao longo dos anos, foram aumen- “O país é pobre e o povo tem um padrão de vida tando a rejeição parcial ou total a ele e ao sistema. Mas a maioria dos opo- baixo, mas não há as enormes desigualdades sociais. sicionistas radicais ao sistema socialis- ta, ao governo de Cuba e a Fidel vive Ninguém passa fome, ninguém mora na rua, a saúde é nos Estados Unidos, na Espanha. São os que rejeitam radicalmente o socialis- de primeiro mundo, há educação gratuita para mo, ou mesmo os que pretendem um nível de vida melhor no capitalismo, todos, da creche à pós-graduação, e nenhum cidadão embora nem sempre consigam isso. Em Cuba, a oposição é ínfima e desar- fica desamparado pelo Estado” ticulada, não tem qualquer respaldo popular. Só existe para os jornalistas estrangeiros e para o escritório de interesses dos Estados Unidos e algu- o adversário político vira inimigo, es- formações na sua estrutura política e mas embaixadas européias. Fidel tem pecialmente quando se sabe que é fi- econômica? Acredita que elas sejam o apoio da maioria da população, até nanciado pelo inimigo. Não é uma situ- feitas por Raúl Castro? porque, se não tivesse, já teria caído. ação desejável. Os níveis de liberdade Hélio Doyle - É preciso mudar muita Não haveria como reprimir uma forte poderiam ser maiores mesmo diante coisa, claro. Não será fácil, por cau- manifestação popular contra o sistema desse quadro, mas é simplista exigir sa das variáveis que limitam o alcan- a 150 quilômetros da Flórida depois de um país acossado que dê liberdade ce dessas mudanças. Como dar mais que terminou a guerra fria. de ação ao inimigo. Nenhum país, ca- liberdade à oposição se ela mesma diz pitalista ou socialista, faz isso. que seu objetivo é abrir o país aos Es- IHU On-Line - Qual é a sua avaliação tados Unidos, voltando à situação de desses 49 anos de governo? Que aspec- IHU On-Line - E o que poderia ser di- antes da revolução? Como aumentar tos do pensamento de Fidel o senhor ferente? a possibilidade de negócios privados considera ainda pertinentes e impres- Hélio Doyle - Não é viável construir sem aumentar as desigualdades sociais cindíveis para a política cubana? o socialismo, como deve ser o socia- e assim aumentar as tensões na socie- Hélio Doyle - O governo cubano, Fidel lismo, em um só país, ainda mais em dade? É possível fazer tudo isso, mas à frente, acertou e errou em muitas uma ilha isolada e ameaçada. O que é óbvio que o sistema não trabalhará coisas. Houve erros admitidos por eles poderia ser diferente é que Cuba po- pela sua destruição. Nenhum sistema próprios e erros que não foram reco- deria estar construindo o verdadeiro e nenhum governo trabalha contra si nhecidos, em todos os campos: políti- socialismo, não aquele que fracassou próprio, em Cuba, no Brasil, nos Esta- co, econômico, social, cultural. Mas, na União Soviética e no Leste Europeu, dos Unidos ou no Congo. As mudanças para mim, o saldo é positivo. Cuba mas um socialismo moderno, com de- necessárias são as que permitirão me- conseguiu sobreviver a todas as hos- mocracia e liberdade, igualdade entre lhorar a qualidade de vida da popula- tilidades dos Estados Unidos, não se as pessoas, solidariedade, em que o ção e aumentar o nível de liberdades rendeu, é um exemplo de soberania de mérito de cada um vem de seu traba- políticas nos marcos do socialismo. uma nação e dignidade de um povo. lho e de seu caráter, não do dinheiro A imagem que passam aqui no Brasil que possui. Mas Cuba é obrigada, pe- IHU On-Line - A imprensa cubana re- é de um país miserável, com o povo las circunstâncias e pela realidade do cebe várias críticas de pesquisado- faminto, vigiado em cada esquina. Não mundo, a adotar elementos da econo- res. Eles alegam, entre outras coisas, é nada disso. O país é pobre, e o povo mia de mercado para sobreviver como a falta de liberdade de imprensa no tem um padrão de vida baixo, mas não nação e assegurar o bem-estar de sua país. Levando em consideração o re- há as enormes desigualdades sociais. população. E são esses elementos da gime político adotado pela ilha, qual Ninguém passa fome, ninguém mora economia de mercado que causam os é a sua avaliação da imprensa cuba- na rua, a saúde é de primeiro mundo, maiores problemas que Cuba enfren- na? Cuba sempre esteve na contra- há educação gratuita para todos, da ta hoje. Os elementos do capitalismo mão no que se refere à liberdade de creche à pós-graduação, e nenhum ci- adotados a partir dos anos 1990 cau- imprensa? Com a renúncia de Fidel, dadão fica desamparado pelo Estado. saram desigualdades, tensões sociais, esse quadro pode sofrer alterações? Há restrições à liberdade, mas não é males próprios dos países capitalistas, Hélio Doyle - Se você racionalizar nos um Estado policialesco. E essas restri- desenvolvidos ou não. esquemas de um país capitalista, ja- ções, em boa parte, são compreensí- mais entenderá Cuba. Cuba é socialis- veis em um país pequeno, hostilizado IHU On-Line - Com a renúncia de Fi- ta, ainda que um socialismo limitado de todas as maneiras pela maior po- del, que mudanças serão oportunas pela globalização, e assim suas estru- tência mundial. Numa situação assim, para a Ilha? Cuba precisa de trans- turas políticas são socialistas. No so-

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 21 “Se você raciocinar nos esquemas de um país capitalista, jamais entenderá Cuba”

cialismo, a direção é do partido. Não do capitalismo no mundo, não é possível de de os eleitores revogarem o mandato há imprensa privada. O que poderia construir o socialismo como deve ser o de um eleito, de seis em seis meses há mudar na imprensa? Em vez de ser es- socialismo, e, naturalmente, não é pos- prestação de contas aos eleitores, há tatal, a imprensa cubana poderia ser sível ter uma democracia socialista em conselhos populares. Esse nível de de- pública, com possibilidade de a socie- sua amplitude. Mas Cuba não é a dita- mocracia cai nas assembléias provinciais dade civil ter seus meios de comunica- dura que pintam, como se o povo fosse e na Assembléia Nacional, em termos de ção. Poderia ser mais aberta a algumas subjugado pela força das armas. participação efetiva no governo, mas questões. Eu acho que esse deve ser o Acredito mesmo que haja uma demo- existe, não é uma ditadura, simplesmen- objetivo, ainda distante. Não há mes- cracia no nível das comunidades, das ci- te. E há a questão do método: os temas mo liberdade de imprensa em Cuba, tal dades: a população participa, opina, de- mais complicados, mais espinhosos, são qual a entendemos. E isso é assumido. cide. Respondendo à pergunta, eu vejo amplamente discutidos com a população Mas há muita hipocrisia nessas análi- que Cuba atende as necessidades bási- antes de serem efetivados. Enfim, não ses. Lá, a imprensa é dominada pelo cas do cidadão: alimentação, moradia, é um sistema perfeito, longe disso, mas Estado. Aqui, é dominada pelo capital saúde, educação, assistência aos que não é a ditadura que pintam os inimigos privado. A liberdade de imprensa, em precisam. O povo é educado e culto. do sistema. qualquer país ou formação política, é A expectativa de vida é de mais de 77 limitada pelos interesses dominantes. anos, e o índice de mortalidade infantil IHU On-Line - O poder popular foi fun- é melhor do que o da maioria das ci- damental para garantir a sobrevivência IHU On-Line - Entre tantas críticas dades dos Estados Unidos, incluindo a do socialismo em Cuba? a Fidel, uma das mais ferrenhas diz capital. Como um povo que passa fome Hélio Doyle - Sim, foi fundamental. Não respeito ao seu governo “ditato- pode ter esses índices? A democracia apenas como instituição, mas como mé- rial”. Os países capitalistas alegam no capitalismo é formal. Na verdade, todo, como modo de governar. Os go- que Cuba não vive uma democracia. quem decide é quem tem dinheiro, vernantes, em Cuba, não estão longe da Entretanto, lá, educação e saúde es- quem tem o poder econômico. Uma população. Com exceção de Fidel e Raúl, tão disponíveis gratuitamente para parcela mínima da população vive mui- por razões óbvias, os dirigentes vivem todos os cidadãos. Como o senhor to bem, a maioria vive muito mal, pior normalmente nos bairros, fazem com- avalia esses dois mundos (socialista do que a média em Cuba. pras, entram em filas. Carlos Lage pode e capitalista)? Quais as vantagens de ser visto caminhando na calçada como viver num país “democrático” como IHU On-Line - Como o senhor perce- qualquer cidadão. A população é ouvida e o Brasil, por exemplo, se a maioria be e compreende o poder popular em isso cria consensos, respaldo às medidas. da população não tem condições de Cuba? Ele assegura a participação dos Muitos acharam que o socialismo em comprar medicamentos, alimentos, cidadãos no governo? Cuba cairia junto com a União Soviéti- livros? Esse modelo democrático não Hélio Doyle - Não assegura como de- ca, com a Hungria, a Romênia. Erraram lhe parece uma ilusão? E até que veria ser, mas chega mais perto do que feito porque não entenderam as peculia- ponto um governo socialista pode ser nas “democracias” capitalistas de países ridades de Cuba, as grandes diferenças positivo e negativo? subdesenvolvidos e mesmo, em alguns entre Cuba e esses países. E agora vão Hélio Doyle - Cuba não é uma demo- aspectos, desenvolvidos, nos quais a errar de novo porque continuam base- cracia capitalista e não quer ser. Não é democracia que um cidadão goza é pro- ando suas análises no desconhecimento também o que entendo deve ser uma porcional ao dinheiro que tem. No nível do que acontece em Cuba, na visão dos democracia socialista. Mas eu não cobro municipal, como disse, há um alto grau intelectuais mediáticos que sabem tudo isso dos cubanos, pois sei que no quadro de democracia. Os candidatos às assem- e não sabem nada e nos desejos que têm atual, diante das hostilidades e do blo- bléias municipais são indicados pela po- de ver o socialismo cair em um de seus queio norte-americano, do predomínio pulação, o voto é livre, há a possibilida- últimos refúgios.

 Carlos Lage Dávila (1951): político cubano. Foi dirigente da Unión de Estudiantes Secundarios, “Lá, a imprensa é dominada pelo Estado. Aqui, é da Federación Estudiantil Universitaria (FEU) e da União de Jovens Comunistas (UJC). É membro dominada pelo capital privado. A liberdade de do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba desde 1980 e Deputado na Assembléia Nacional do Poder Popular desde 1976. Desde 1986, é Se- imprensa, em qualquer país ou formação política, é cretário do Comitê Executivo do Conselho de Mi- nistros de Cuba, responsabilidade que na prática é comparável à de um primeiro-ministro de uma limitada pelos interesses dominantes” república presidencial. (Nota da IHU On-Line) 22 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 “Se existe ainda o socialismo em Cuba, isso é matéria de controvérsia”

O tão sonhado socialismo cubano foi profundamente reformulado com a abertura ao capital internacional, avalia Daniel Aarão Reis

Por Patricia Fachin

idel atuou de diversas maneiras enquanto esteve no poder. Mas já deveria ter renunciado bem antes, a exemplo de Nelson Mandela, que “soube sair na hora certa”. A opinião é de Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em entrevis- ta especial à IHU On-Line, por e-mail, o pesquisador destaca quatro pe- Fríodos do mandato do ex-presidente cubano e afirma que todas as transformações ocorridas na Ilha tiveram algo em comum: “a incansável vontade, a descomunal ambição” de Fidel “permanecer no poder”. Aarão Reis é graduado e mestre em História, pela Universite de Paris VII, e doutor em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, atua como docente na Universidade Federal Fluminense (UFF).

IHU On-Line - Qual é a sua avaliação nos ajuda a compreendê-lo? tragédia, uma desgraça histórica. A da renúncia de Fidel? Sob o comando Daniel Aarão Reis - Fidel adotou mui- revolução é um processo social, his- de Raúl Castro, Cuba pode caminhar tas e diferentes políticas enquanto se tórico, quando os movimentos sociais para o socialismo democrático? manteve no poder. E foi esta faculda- exercem sua autonomia. Quando ela Daniel Aarão Reis - A renúncia de Fi- de camaleônica, de mudar conforme se associa a uma pessoa só, é à custa del Castro vem tarde, muito tarde. as circunstâncias, que o ajudou, no da desvitalização do processo social. Ele deveria ter saído há muito tempo, final das contas, a se manter nopo- As pessoas se tornam pequenininhas contribuindo no sentido de que a re- der. Houve a política revolucionária em face da figura gigantesca do Jefe, volução não ficasse tão personalizada, dos primeiros anos; houve, depois, a como se tudo houvesse dependido de e não houvesse tanto culto à sua per- fase de subordinação à URSS, quando uma pessoa só. Elas se transformam sonalidade. Exemplo deste ponto de Fidel foi capaz de aprovar a invasão como as rãs na fábula, clamando por vista foi o Nelson Mandela, que soube soviética da Tchecoslováquia; depois, um Rei, no caso, o Caballo, o grande sair na hora certa, ficando na condi- houve o tempo da retificação e, ago- Fidel, o comandante em Jefe etc. Mas ção de reserva política e moral de seu ra, nestes últimos anos, esta política a associação se fez, está feita, tam- país. Entretanto, a ambição de exer- de abertura ao capital internacional, bém é um processo histórico. Uma cer o poder, pessoalmente, sempre foi inconcebível nos anos heróicos da re- tristeza que tenha acontecido, mas muito forte em Fidel e isto o levou a se volução. São estas mudanças, entre aconteceu. eternizar no poder com conseqüências outras, que ajudam a entender os muito negativas para a revolução. vários Fidéis que existiram ao longo IHU On-Line - Antes da Revolução, deste meio século. Entre todos eles, Cuba era o paraíso das jogatinas e do IHU On-Line - Em que medida a polí- um denominador comum: a incansável tráfico americano. Com a Revolução tica adotada por Fidel nesses 49 anos vontade, a descomunal ambição de e o comando de Fidel por 49 anos,  Nelson Mandela (1918): advogado, ex-líder permanecer no poder. Cuba firmou sua autonomia como na- rebelde e ex-presidente da África do Sul de ção e recuperou sua dignidade? Qual 1994 a 1999. Principal representante do movi- IHU On-Line - Como o senhor avalia a é a sua percepção da condução do mento antiapartheid, como ativista, sabotador e guerrilheiro. Considerado pela maioria das associação que se criou entre Fidel e governo cubano, por Fidel Castro? pessoas um guerreiro em luta pela liberda- a Revolução Cubana? Ele foi transfor- Daniel Aarão Reis - Cuba era o puteiro de, era considerado pelo governo sul-africano mado num mito? do Caribe realmente e com a Revolu- um terrorista. Passou a infância na região de Thembu, antes de seguir carreira em Direito. Daniel Aarão Reis - Avalio como uma ção saiu desta situação. Mas é falso di- (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 23 zer que isso ocorreu “com a revolução Prestes e tantos outros. Veja, não es- e o comando” de Fidel. No momento “Não à toa, as cores da tou dizendo que todos estes ditado- da vitória, Fidel era um grande líder, res foram iguais ou desempenharam certamente, mas havia outros que om- revolução, que eram o mesmo papel histórico. Foram bem breavam com ele, em prestígio e po- diferentes, mas têm entre eles este der: Camilo, o Che, entre muitos ou- múltiplas, e do próprio aspecto comum: corresponderem à tros. Havia outras organizações, como demanda muito humana por seguran- o Diretório Revolucionário Estudantil, Movimento 26 de Julho, ça. A fábula das rãs e do Rei refere-se muito forte em Havana. Desgraçada- à espécie humana e não a marcianos. mente, seus principais líderes foram que eram o vermelho e o mortos no assalto ao palácio de Ba- IHU On-Line - A política e ideolo- tista. Esta outra palavra “comando” negro, se transformaram gia de Fidel ainda são pertinen- foi se afirmando com o tempo, com o tes para os cubanos? Quais são processo de militarização e hierarqui- numa só cor, o verde oliva os principais desafios a serem zação da revolução, centralizada por superados pelo novo governo? Fidel. Quando a liderança política se do exército rebelde” Daniel Aarão Reis - A política e a ideo- torna “comando”, quando os movi- logia de Fidel mudaram muito ao longo mentos sociais se militarizam, adeus à se representam a situação como tendo dos anos. Como comparar, por exem- liberdade de crítica e à democracia, sido “obra de Fidel”. Trata-se do velho plo, as políticas dos anos 1960 e as dos foi o que aconteceu com Cuba. Não à e nefasto culto à personalidade que anos 1970 (período de subordinação, toa, as cores da revolução, que eram devemos evitar a todo o custo. embora nunca incondicional, à URSS e múltiplas, e do próprio Movimento 26 a seus modelos de organização?), ou a de Julho, que eram o vermelho e o ne- IHU On-Line - Questões como o auxi- dos anos 70 (estatização total) com as gro, se transformaram numa só cor, o lio educação, saúde, moradia se tor- atuais (grande abertura em relação ao verde oliva do exército rebelde. Agora, nam pertinentes e importantes num capital internacional)? Os tempos e as realmente foi uma grande conquista governo, mesmo que ele seja visto circunstâncias mudam e impõe mudan- da revolução ter recuperado a digni- como “ditatorial”? É preferível viver ças nas políticas. Fidel foi essencial- dade e a autonomia. Mas isto deve ao num país “democrático”, em que o mente um pragmático, um camaleão, povo cubano e não a um líder só, por Estado não ofereça as necessidades sabendo se adaptar às circunstâncias mais importante que tenha sido. básicas aos seus cidadãos ou numa cambiantes e pensando, antes e acima “ditadura”, mas com as mínimas de tudo, no Estado, no fortalecimento IHU On-Line - Cuba resistiu ao em- condições de sobrevivência? Essas do Estado e de sua posição pessoal no bargo americano e, ao contrário do são comparações possíveis? “comando” do Estado. O fez com ma- que muitos especialistas pensavam, Daniel Aarão Reis - Todas as compara- estria notável, não por outro motivo o sistema socialista permaneceu e, ções são possíveis. A polarização entre conseguiu passar quase 50 anos no po- embora com poucos recursos, Cuba democracia e bem estar social é nefas- der, o que é, a rigor, uma tristeza, um sobrevive e apresenta um dos me- ta. Devemos lutar por sociedades que atestado de miséria, para ele e para as lhores modelos em educação e saú- disponham de democracia, liberdade gentes que o amam. Apesar de tudo, de. Isso pode ser considerado um fei- e bem-estar social, ao mesmo tempo. vale sempre ressaltar que a Revolução to realizado por Fidel? Por que a polarização? Cuba poderia Cubana, sempre liderada por Fidel, Daniel Aarão Reis - Se existe ainda o ter as reformas sociais e a democra- soube preservar certas conquistas fun- socialismo em Cuba, isso é matéria de cia. Por que não? A opção pela milita- damentais: as reformas sociais e a in- controvérsia. Para mim, sim, existe, rização, pela ditadura pessoal, estava dependência nacional. Que sejam man- mas profundamente reformulado em no DNA da revolução cubana, mas não tidas, e aperfeiçoadas, num quadro de relação aos anos 1960, com suas aber- necessariamente teria desabrochado uma democratização que tarda e que, turas ao capital internacional, restabe- como desabrochou, não fosse a ambi- a meu ver, já perdeu suas melhores lecendo inclusive situações vexatórias ção de mando de Fidel e a tendência chances históricas de construção. como a disseminação da prostituição das pessoas em ter a proteção de um e a proibição de cubanos freqüenta- Rei, de um Pai Protetor. Mais lamen- IHU On-Line - Como explicar o “amor” rem determinadas lojas ou lugares de tável nisto tudo é a posição de certos dos cubanos por Fidel? O senhor diz diversão, a menos que estejam acom- intelectuais que exercitam sua capaci- que ele virou um “ditador da Ilha” e panhados por estrangeiros com moeda dade crítica frente a muitas questões, que “não há nada de pior que possa forte. Quanto às reformas no plano da mas que, frente a Fidel, ficam como acontecer a uma sociedade do que saúde e da educação, devem ser im- medusados, demitindo-se da condição amar seus tiranos”. Quais seus argu- putadas ao povo cubano. Claro, hou- de pessoas críticas. Não é a primeira mentos diante dessa posição? ve a liderança de Fidel, sem dúvida, vez que acontece na História. Já tí- Daniel Aarão Reis – É muito comum e ele tem inegáveis méritos por isto, nhamos visto o fenômeno acontecer na história da humanidade as pessoas mas só os aduladores de Fidel é que em relação a Mussolini, Hitler, Stalin, amarem os seus tiranos, principalmen-

24 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 “Neste momento em que Fidel, finalmente, se vai, é preciso combater a Como não perder ou sacrificar as lamentável tradição do conquistas da revolução? Eis o desafio puxa-saquismo, da adulação acrítica, Para o escritor e jornalista Eric Nepomuceno, Raúl Castro, na condução do presente de Cuba, poderá estabelecer mudanças particularmente forte, e de rota, não de rumo, e eliminar alguns problemas crônicos triste, entre intelectuais que assolam a ilha há décadas

que existem para Por Alessandra Barros exercitar a crítica” Eric Nepomuceno é jornalista e escritor. Foi correspondente do te quando eles se associam com refor- Jornal da Tarde na Argentina e da mas – políticas e sociais – que corres- Veja na Espanha e México. Traba- pondem aos interesses gerais. lhou na Rede Globo como editor Ee foi cronista do Caderno B, do Jornal do IHU On-Line - Fidel exerceu alguma Brasil. Seus livros de contos e de não-ficção influência sobre as esquerdas brasi- ganharam vários prêmios, inclusive o Jabuti leiras? pela tradução de autores de língua espanho- Daniel Aarão Reis - As maiores influ- la, como Gabriel García Márquez, Eduardo ências foram do Che e de Regis De- bray. Mas os dois dialogavam muito Galeano, Juan Rulfo, Julio Cortázar e Jorge com Fidel, sem dúvida. Resta, e isto Luis Borges. É autor de 14 livros (romances, foi e é muito importante, o exemplo, a contos e ensaios), entre eles Caderno de no- atitude, a ousadia, em defesa dos pro- tas (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979), obra que visualiza o processo da Re- gramas sociais e nacionalistas. Nisto, volução Cubana e os significados históricos do “cordobazo”. Dedicou anos de a Revolução Cubana foi paradigmática pesquisa sobre um dos mais chocantes episódios de conflito agrário do Brasil, e será sempre considerada como um o massacre de Eldorado do Carajás, em 17 abril de 1996, tema da sua obra marco na história do século XX. O Massacre - Eldorado do Carajás: uma história de impunidade. Atualmente, escreve para os principais diários hispânicos e brasileiros. IHU On-Line - O senhor deseja acres- Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele analisa a centar mais alguma coisa? renúncia de Fidel Castro e afirma que este momento em Cuba tem tudo para Daniel Aarão Reis - Neste momento em ser de renovação. que Fidel, finalmente, se vai, é preci- so combater a lamentável tradição do puxa-saquismo, da adulação acrítica, particularmente forte, e triste, entre in- IHU On-Line - Para o senhor, a renúncia de Fidel já era prevista? telectuais que existem para exercitar a Eric Nepomuceno - Sim, era. Fidel Castro sempre foi um homem de ativida- crítica. Que o pensamento crítico tente de incessante, que dormia pouquíssimas horas por dia, participava de tudo explicar e compreender esta dinâmica que era tipo de ato, reunião, manifestação, debate. Era uma vida no limite personalista da política, das revoluções, permanente do esgotamento. Quando se tornou clara a gravidade de seu es- em particular. Se isto for possível, es- tado físico, quando sua recuperação se mostrou lenta e, além do mais, limi- taremos oferecendo uma contribuição tada, ficou claro, ao menos para mim, que ele não continuaria formalmente a que as pessoas acedam ao que há de à frente do governo cubano. Trata-se, também, de uma estratégia política de mais importante para as sociedades e transmissão de mando, de poder, sem maiores traumas. Ao longo de 19 meses, para as gentes: à autonomia, esta for- Raúl Castro e um grupo específico de dirigentes levaram o barco sem enfren- mosa palavra, tão maltratada em tem- tar problema algum. Muito melhor, para Cuba e os cubanos, foi essa transmis- pos de ditadura e líderes carismáticos. são ter sido feita com a presença de Fidel Castro do que com sua ausência.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 25 “Fidel Castro é, claro, uma personalidade fascinante, um homem cativante e, en- fim, um excelente cozinheiro e um conversador extraordinário”

IHU On-Line - Qual é o futuro de existem e são delimitados, melhorar a que soube conduzir um processo que Cuba com a renúncia de Fidel? O que qualidade do atendimento prestado à resgatou e tornou invulnerável o sen- representa Raúl Castro na condução população e, enfim, melhorar o poder tido de dignidade para o povo cubano. do futuro de Cuba? de renda dos cubanos. Que sobreviveu a dez presidentes nor- Eric Nepomuceno - Creio que haverá es- te-americanos, a uma invasão armada sencialmente uma transferência de man- IHU On-Line - O senhor acredita na planejada, apoiada e financiada pelo do e responsabilidade administrativa. O realização de eleições convencionais governo do presidente John Fitzgerald futuro sem Fidel vinha sendo estrutura- na ilha? Kennedy, a um sem-fim de atentados do desde pelo menos 1991, e com Fidel. Eric Nepomuceno – Nas eleições con- terroristas, cometidos não só contra Houve uma abertura econômica muito vencionais, da democracia burguesa Cuba, mas contra a sua pessoa. Enfim, significativa - e bastante ignorada no representativa (me atenho ao aspecto que soube construir uma história pesso- Brasil -, que assegurou a sobrevivência histórico no termo, sem nenhum senti- al em perfeita harmonia com a história de Cuba, bloqueada por um lado (os Es- do pejorativo, ao contrário), penso que de seu tempo. Creio que Fidel Castro, tados Unidos) e abandonada à deriva por não. Nem a curto nem a médio prazo. em última instância, tem uma estatura outro (o fim da União Soviética e a dis- O sistema representativo cubano tem histórica superior à de Cuba. Maior do solução do bloco socialista). Ao mesmo mecanismos próprios, que poderão até que a dimensão de seu país. tempo, surgiram delicadas e sérias dis- mesmo ser bastante flexibilizados. Mas torções no processo da Revolução. Não é acredito ser muito difícil implantar par- IHU On-Line - Qual foi o seu papel bem que despiram um santo para vestir tidos políticos e promover disputas elei- para Cuba e toda América Latina? outro: vestiram um santo, e esse santo torais convencionais. Eric Nepomuceno - Jamais vi Fidel, revelou-se contraditório, problemático. como nenhuma das figuras míticas da Raúl Castro, na condução do presente IHU On-Line - Esse é um momento de Revolução Cubana - Che Guevara, Ca- de Cuba, poderá estabelecer mudanças renovação para os cubanos? milo Cienfuegos em lugar de destaque de rota, não de rumo, e eliminar alguns Eric Nepomuceno - Talvez seja, tem especial, mas também Juan Almeida, problemas crônicos que assolam a ilha tudo para ser. O importante, em todo Ramiro Valdéz e tantos outros -, como há décadas, a começar pelo excesso de caso, e cada cubano tem plena consci- um modelo. Creio, porém, que foi um burocracia, pelas restrições absurdas e ência disso, é não perder ou sacrificar as exemplo positivo em muitos aspec- injustificadas a uma série de direitos e conquistas da revolução, e não permitir tos, e que cometeu erros graves em benefícios reclamados pelas novas gera- o retorno de um capitalismo predador, outros. Ou seja: exemplo das possibi- ções, melhorar os mecanismos emperra- primário, rasteiro. É preciso conhecer lidades e das contradições do ser hu- dos da distribuição de bens e serviços e, Cuba seriamente, para entender que mano transformado em condutor de um finalmente, incrementar os salários dos renovação é algo que acontece perma- processo histórico, sim. Modelo, não. trabalhadores. Creio, pelo que conheço nentemente na ilha, embora não se es- de Cuba, das gerações intermediárias palhe e ramifique como seria desejável. IHU On-Line - O senhor esteve várias que já ocupam há décadas cargos decisi- É hora de isso acontecer, sempre que, vezes com Fidel. O que mais lhe atrai vos na administração, e do próprio Raúl repito, não se sacrifique conquista algu- na sua personalidade? O que faz dele Castro, que o processo cubano será sen- ma. Recordo claramente que em 1992, um mito político vivo? sivelmente arejado. no auge de uma crise que levou Cuba à Eric Nepomuceno - Sua própria tra- beira do colapso total, com as pessoas jetória, única. Sua capacidade de so- IHU On-Line - Como se dará essa tran- praticamente sem ter o que comer, Fidel brevivência. Sua dedicação obsessiva à sição? Serão necessárias reformas? Castro chamou a atenção para um dado causa de seu país e de sua gente. Sua Eric Nepomuceno - Será uma transição que o mundo, na torcida exaltada pelo integridade de aço. García Márquez, que em nenhum momento afetará a fim da revolução, ignorou: nem naquele amigo de Fidel, diz que o que mais o continuidade do processo cubano. Acho período de escassez absoluta, de miséria impressionou sempre na figura do lí- importante e necessário que agilizem total, foi fechada uma só escola, desati- der cubano - para o bem e para o mal a produção e a distribuição de bens, vado um só leito de hospital. - é que nada do que ele fez deixou de maior abertura para que cidadãos criem ser colossal, pois colossal é sua manei- pequenas empresas privadas prestado- IHU On-Line - Como Fidel Castro fica- ra de ver e entender a realidade e o ras de serviços, um profundo abalo na rá na história? mundo. Compartilho essa impressão. E estrutura absurda da burocracia trans- Eric Nepomuceno - Como uma das fi- Fidel Castro é, claro, uma personalida- bordante. Instauradas essas mudanças, guras mais carismáticas, mais podero- de fascinante, um homem cativante e, se poderá, com muito mais eficácia, sas e controversas não só do século XX, enfim, um excelente cozinheiro e um combater os focos de corrupção, que mas dos últimos cem anos. O homem conversador extraordinário.

26 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 27 Brasil em Foco

“Nós não temos uma definição exata nem da profundidade nem da extensão da crise”

Se não for controlada, a crise imobiliária americana pode gerar outra turbulência no mercado internacional, avalia o economista Luiz Gonzaga Belluzzo

Por Patricia Fachin

omo se fosse uma bola de neve, os desequilíbrios globais estão ga- nhando mais dimensão e tomando um rumo desenfreado na última década. Isso se deve à chamada “fuga para frente”, alternativa adotada com bastante freqüência pelos Bancos Centrais, explica o economista e professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo. CEm conversa com a equipe da IHU On-Line, na última semana, o eco- nomista explicou que, com a repetição de várias crises ao longo dos anos 1990, o mercado internacional acreditava que se podia “cometer qualquer insensatez que os Bancos Centrais seriam capazes de salvar”. Mesmo que o Fed (Federal Reserve) interfira baixando as taxas de juros, ou o tesouro americano tome novas providências para aumentar o dinamismo econômi- co, não se “poderá sair rapidamente dessa situação e recompor o cenário anterior. Isso é uma ilusão”, argumenta Belluzzo. Com tantas elevações no cenário internacional, é necessário discutir como se dará a reforma do sistema monetário e financeiro, sugere o pesquisador. Para ele, um dos pontos fundamentais a serem discutidos diz respeito “à natureza da moeda internacional, hoje exercida pelo dólar”. Embasado nos ensinamentos keynesianos, o economista afirma que enquanto a função de moeda internacio- nal continuar “sendo exercida por uma moeda nacional”, ela levará “a desequi- líbrios cumulativos e difíceis de serem resolvidos”. Belluzzo é graduado em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Economia Industrial, pelo Instituto Latino-Americano de Planifi- cação-Cepal, e doutor em Economia, pela Universidade de Campinas (Uni- camp). Atualmente, atua como professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e editor da revista Carta Capital. O pesquisador já participou de outras edições da IHU On-Line. A entre- vista mais recente, intitulada “Nós fomos ultrapassados pelos outros, o que não quer dizer que isso seja um fenômeno insuperável”, foi publicada na edição 218, O Brasil está se desindustrializando? Um debate, de 07- 05-2007. A versão online dessa edição pode ser acessada através da nossa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu).

28 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 IHU On-Line - Como o senhor des- “Hoje em dia, com essa que o mercado imobiliário também creve o atual momento da economia será salvo pelo Estado? Se sim, a cri- mundial? Está ocorrendo uma crise crise, a dificuldade dos se pode se prolongar a longo prazo de superprodução ou uma crise de e voltar sempre com mais força? A especulação financeira? Bancos Centrais injeção de 150 bilhões de dólares li- Luiz Gonzaga Belluzzo – Essa é uma berados por Bush é uma boa medida crise cujo gatilho é financeiro, existen- aumentou muito. Não sei para amenizar a crise ou evitar que a te por causa dos excessos cometidos economia norte-americana enfrente na década de 1990, quando os Bancos se eles irão conseguir uma recessão profunda? Centrais conseguiram enfrentar a pri- Luiz Gonzaga Belluzzo – A história meira crise de ações e das tecnologias reverter a situação” da segunda metade do século XX tem da informação, dando a impressão de sido essa da fuga para frente. Depois que poderiam superar qualquer adver- que houve a repressão financeira, as sidade. crises começaram a se repetir. O ano Na época, o Fed (Federal Reserve), a se tornar incontrolável. Isso passou a de 1990 iniciou com a crise da serpen- por exemplo, conseguiu enfrentar isso afetar toda a cadeia alimentar da es- te monetária européia. Depois, veio a com eficiência. Ao baixar rapidamente peculação, que termina agora com os crise com a libra, vieram as crises de as taxas de juros e conseguir conter a problemas causados às seguradoras de 1994, a crise mexicana, no início de recessão, ele deu fôlego à continuida- crédito, que se propunham, mediante 1995, a crise asiática, a russa, o colap- de da febre especulativa, agora con- o ganho de uma comissão, a garantir o so da Argentina no começo do milênio, centrada nos imóveis. pagamento integral desses créditos. em 2001. Em 2002, o Brasil sofreu os Ambos os “abusos” incitam a espe- Por isso, essa crise é muito mais efeitos da desconfiança dos mercados culação tanto com artigos reais quanto profunda do que se pode imaginar. em relação à eleição do presidente. E, com perspectivas de ganhos com in- Digo isso, porque não só ela avançou a partir de 2003, as coisas se acalma- vestimento na produção e no sistema muito nessas inovações perigosas, mas ram e os mercados começaram a fun- financeiro. A base de tudo é o descon- também porque ela se espalhou dos cionar com maior fluidez, já que todos trole com a expansão do crédito, mas Estados Unidos para a Europa e prova- os riscos caíram, as condições gerais isso acontece sempre. velmente por alguns países da Ásia. melhoraram, a inflação estava baixa e No caso da crise atual, o desequi- as bolsas se recuperaram. Mas, nessa líbrio se deu com grande velocidade Projeções época, ocorreu um período de bonança com a criação de derivativos como, por Nós não temos uma definição exata que facilitou muito. Tivemos a impres- exemplo, os que protegem ou tentam nem da profundidade nem da exten- são de que se podia cometer qualquer proteger a possibilidade da inadim- são da crise. É claro que isso tem um insensatez que os Bancos Centrais se- plência por parte dos tomadores finais efeito, porque irá afetar muito a situ- riam capazes de salvar o cenário. dos créditos. Essas inovações também ação econômica das famílias america- Hoje em dia, com essa crise, a di- se multiplicaram com a chamada se- nas que estão muito endividadas, não ficuldade dos Bancos Centrais aumen- curitização. Os bancos que fazem os só por causa da aquisição dos imóveis, tou muito. Não sei se eles conseguirão empréstimos securitizavam esses cré- mas também porque elas se endivida- reverter o quadro. É claro que ainda ditos para veículos especiais que os ram muito com compra de duráveis restam alguns instrumentos como, por vendiam para fundos de pensão. Essas nos cartões de créditos. O que está se exemplo, as ações de política fiscal, ações originaram uma pirâmide de ati- observando é que há uma desconfiança que podem ser combinadas com uma vos, cuja base eram os empréstimos dos consumidores. Eles já estão come- tentativa de se criar um espaço maior hipotecários feitos àqueles que pre- çando a cortar gastos. O consumo tem para a capacidade de pagamento dos tendiam adquirir a sua casa própria. um peso importante na formação do devedores em situação mais grave. Como era uma disputa feroz para gasto e da renda nos Estados Unidos, Esse espaço implicaria de certa forma poder ampliar esses créditos e, ao e o nível de endividamento está muito numa moratória, ou seja, uma rees- mesmo tempo, o foco estava, sobre- alto, o que torna muito presente o ris- truturação da dívida concedida a es- tudo, na quantidade e não na qualida- co de uma recessão mais profunda. Se ses devedores. Agora, não sabemos o de do crédito que se concedia, foram isso acontecer, certamente a capaci- quanto irá durar o crescimento abaixo capturados devedores que não tinham dade de pagamento das famílias irá di- do potencial dessas economias. Preci- condições de pagar. Eles foram fisga- minuir e conseqüentemente aumenta- samos lembrar que, no caso do Japão, dos mediante formas de pagamento rá a inadimplência, agravando a crise. uma crise parecida com essa levou dez que sustentavam esses créditos, que anos para ser digerida. previam, por exemplo, o pagamen- IHU On-Line – Como o senhor disse, to de juros favorecidos durante dois em 2000, a bolha da tecnologia da in- Intervenção ou prevenção? anos. Mas, quando essas condições formação não gerou uma crise maior Há, no mercado, uma percepção mudaram e foi feita a revisão das ta- devido às intervenções do Fed. Na equivocada de que, se o Fed inter- xas de juros, a inadimplência começou conjuntura atual, o senhor acredita ferir baixando mais as taxas de juros

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 29 Se a China tiver que enfrentar a inflação com medidas mais duras - eu “Fico muito preocupado com a possível ocorrência de não sei qual será a decisão e nem eles sabem -, nós poderemos passar rapi- uma transição muito rápida de um superávit comercial damente de uma estagflação para uma deflação. A concessão não concorda de 40 bilhões, por exemplo, para uma situação de déficit, com o que eu digo. Eles acreditam que as commodities vão continuar por con- sobretudo de déficit comercial” ta da demanda chinesa e, mesmo que ocorra uma desaceleração, que não irá haver uma queda tão acentuada no preço dessas mercadorias. Mas eu digo ou se o tesouro americano tomar as do Fed, ele dizia que a bolha deveria francamente que não sei, porque nós providências para aumentar o dina- ser curada só depois que ocorresse o temos um componente especulativo mismo econômico, se poderá sair ra- estouro e não antes. Eu diria que os no aumento dos preços das commodi- pidamente dessa situação e recompor críticos às vezes são muito lenientes ties. Quem está conseguindo se salvar a situação anterior. Isso é uma ilusão. no período de êxito e muito duros no da crise financeira está apostando ne- Há questões que devem ser resolvidas, período da derrocada. Então, o Gre- las. E agora há um consenso de que as como a colocação de limites para cer- enspan de fato é um liberal no sentido commodities são uma espécie de refú- tas operações, a supervisão das auto- econômico, pois ele achava que o mer- gio contra os riscos de perda, de baixa ridades em relação aos derivativos, a cado acabava se acomodando, o que rentabilidade nos setores. Isso pode imposição de limites quantitativos à não aconteceu. O fato é que ele prefe- trazer, a médio prazo, conseqüências expansão de certas operações de cré- riu não se utilizar de certos instrumen- muito ruins. ditos. Tudo isso está em questão, mas tos que eram mais intervencionistas, levará tempo para chegar ao consenso como o aumento da margem requerida IHU On-Line - O senhor disse que, das medidas que precisam ser toma- para as operações e a intervenção no na esfera financeira, o “ajustamen- das. Mas, de fato, sem essa interven- mercado de derivativos, por exemplo. to” dos preços dos ativos, em curso ção ampla e abrangente do Estado, Essa leniência contribuiu muito para nos Estados Unidos, não irá poupar não será possível contornar a crise. que a bolha se formasse na proporção o Brasil. Sendo o mercado brasilei- que ela acabou assumindo. De fato, é ro dependente das exportações de IHU On-Line - Levando em conside- claro que teremos uma discussão muito commodities para os EUA, como a ração os desequilíbrios econômicos longa nos próximos anos a respeito da crise americana poderá afetar a nos- internacionais ocorridos nos últimos re-regulamentação. Muitos acham que sa economia nacional? anos, como o senhor percebe a atu- é melhor não re-regulamentar, porque Luiz Gonzaga Belluzzo – Diante da ação dos Bancos Centras? Eles estão isso impediria que a economia tivesse gravidade dessa crise, o Brasil está mais preparados para administrar o dinamismo que realmente teve. numa situação bastante favorável. No uma crise global? Qual o desafio em entanto, não podemos nos descuidar. situações como essas? IHU On-Line - Esses picos altos e bai- Eu fico muito preocupado com a possí- Luiz Gonzaga Belluzzo – Essa é uma xos demonstram que a principal eco- vel ocorrência de uma transição muito discussão que envolve pontos de vista nomia do mundo está enfraquecendo rápida de um superávit comercial de ideológicos diferentes. Há muitos que e perderá continuamente mais espa- 40 bilhões, por exemplo, para uma si- celebravam a gestão do Banco Central ço para a China e o mercado asiático? tuação de déficit, sobretudo de déficit europeu como muito eficaz para com- Luiz Gonzaga Belluzzo – Nós ainda comercial. bater a inflação. Os Bancos Centrais, não temos elementos para fazer um Se a economia mundial entrar em particularmente o Fed, se recusaram julgamento mais preciso dos efeitos da recessão, o Brasil continuar crescen- a interferir na formação da bolha. Se recessão americana no mercado chinês do e crescer acima da média mundial, pegarmos os discursos do Alan Greens- e asiático. Eu diria que é um pouco oti- com essa taxa de câmbio, que está  pan , ao longo dos últimos anos em mista pensar que não vai haver impacto sendo valorizada pela entrada de dó- que ele permaneceu na presidência nenhum, até porque a China está en- lares para aproveitar o diferencial de frentando dois problemas simultanea- taxas de juros ou para ser beneficiado � Alan Greenspan (1926): econo- mente: os efeitos da recessão america- do otimismo em relação às bolsas bra- mista estadunidense. Entre 1987 e na e a inflação, que está em aceleração sileiras, teremos uma esquizofrenia. 2006 atuou como presidente do Fed por conta do seu próprio papel como Por um lado, a economia real sofrerá (Federal Reserve) dos Estados Unidos. demandante de commodities, tanto os efeitos da valorização do câmbio e O livro de Greenspan, A era da tur- metálicas quanto agrícolas. Os preços da desaceleração da economia mun- bulência, as aventuras em um novo estão muito altos, e os chineses terão dial, o que pode reduzir o déficit. Isso mundo (Rio de Janeiro: Campus, que tomar alguma providência para fa- porque, se a economia brasileira co- 2007) foi recentemente traduzido. zer com que a inflação caia. meça a crescer acima da média mun- (Nota da IHU On-Line) 30 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 dial, é claro que nosso superávit cairá. difíceis de serem resolvidos. Enquanto tervenção menor, tanto que houve um E também porque nossas importações, os Estados Unidos foram superavitá- recuo em relação ao Irã e à Coréia do mesmo com uma taxa de câmbio me- rios, não houve nenhum problema com Norte. lhor, irão crescer acima das exporta- o dólar. Mas, quando eles passaram a A política externa americana, desse ções, como já está acontecendo de ser deficitários, sobretudo, depois de modo, precisa ser recomposta. Houve uma maneira dramática. Quando o 1971, nos primeiros déficits da balança fracasso também nas relações com a mercado se der conta disso, a situa- comercial americana, o seu governo América Latina. O Brasil de fato se ção pode se reverter rapidamente. E a fez a desvinculação do dólar em rela- sobressaiu, porque foi capaz de fazer pior maneira de impedir essa situação ção ao ouro, que passou a ser unilate- essa mediação entre americanos, Chá- é fazer com que a taxa de crescimento ral. Isso funcionou razoavelmente bem vez e Morales. caia muito drasticamente por conta de para os Estados Unidos, que consegui- Eu não tenho nenhuma certeza se uma subida dos juros ou de um choque ram expandir seu endividamento ex- Barack Obama ou Hilary Clinton po- cambial. terno sem grandes riscos, ao contrário dem realizar uma mudança expressiva de qualquer outro país. e clara na orientação da crise. Não há IHU On-Line - O senhor disse, no ar- Esse sistema já está começando a dúvida que nós estamos às vésperas de tigo “As transformações da economia afetar o padrão de vida dos america- uma mudança, e que ninguém irá re- capitalista no pós-guerra e a origem nos, porque o déficit e a importação petir as gafes do Bush. dos desequilíbrios globais”, que, no de produtos chineses estão deslocan- Em relação à economia, eu vejo início do século XXI, três movimen- do emprego de melhor qualidade, muitas reticências no que Obama fará, tos interdependentes promoveram jogando uma boa parte da população porque ele apresenta um traço ideoló- profundas transformações na econo- americana nos escalões mais baixos gico e doutrinário. Eu diria que, desse mia global: a liberalização financeira da distribuição de renda. Assim, esses ponto de vista, Hilary me parece mais e cambial; a mudança nos padrões desequilíbrios não são apenas econô- sólida. O Obama está tentando agra- de concorrência e a alteração das re- micos, mas são também sociais, ou dar as várias tendências da sociedade gras institucionais do comércio e do seja, afetam diretamente a vida das americana e por isso mesmo fica preso investimento. Esse arranjo ainda é pessoas. Se a recessão for muito forte a certas opiniões bastante genéricas. pertinente? Esses movimentos tam- e a situação da classe média piorar, há De qualquer maneira, dentro da socie- bém contribuíram para a crise norte- um risco muito grande de ter uma es- dade americana se faz uma corrente americana? calada protecionista. muito forte. Há muito tempo, eu não Luiz Gonzaga Belluzzo – Levando em Esse arranjo, que eu mencionei no ouço falar tanto no New Deal, no Roo- consideração os desequilíbrios globais artigo publicado na Supremacia dos sevelt, na conquista dos anos 1930 que afetaram particularmente a eco- Mercados, está seriamente ameaça- e 1940. Então, a sociedade se move, nomia americana e suas relações com do. É muito difícil dizer qual será o mas não necessariamente na mesma a China, torna-se imprescindível discu- encaminhamento disso, porque essa direção na política externa ou interna. tir como se dará a reforma do sistema questão depende muito da política. Então, não podemos traçar um quadro monetário e financeiro. Obviamente, Talvez a política externa e interna do que será a nova administração dos um dos pontos que devem ser discu- americana venham afetar muito esse Estados Unidos. tidos é a natureza da moeda interna- arranjo. cional, que hoje é dólar. Keynes, em  Barack Obama (1961): político estadu- 1944, dizia que, se a função de moeda IHU On-Line – Como o senhor avalia nidense. Atualmente, senador democrata internacional continuasse sendo exer- o final do governo Bush? Algum dos por Illinois, está concorrendo às eleições cida por uma moeda nacional, isso candidatos à presidência norte-ame- americanas. (Nota da IHU On-Line)  Hillary Clinton (1947): política esta- levaria a desequilíbrios cumulativos e ricana tem condições de transformar dunidense. Atualmente, senadora demo-  John Maynard Keynes (1883-1946): o cenário da principal economia do crata pelo Estado de Nova York, a esposa economista e financista britânico. Sua mundo? do ex-presidente americano Bill Clinton está Teoria geral do emprego, do juro e do concorrendo às eleições nos Estados Unidos. dinheiro (1936) é uma das obras mais im- Luiz Gonzaga Belluzzo – O governo (Nota da IHU On-Line) portantes da economia. Esse livro trans- Bush termina de uma forma melan-  New Deal: nome dado às reformas exe- formou a teoria e a política econômicas, cólica, com uma rejeição enorme por cutadas por Roosevelt nos EUA, a partir e ainda hoje serve de base à política de 1933, que consagrava certa interven- econômica da maioria dos países não-co- conta, sobretudo, dos fracassos da ção do Estado nos domínios econômico e munistas. De Keynes, publicamos um ar- sua política externa. Aumentou muito social. (Nota da IHU On-Line) tigo e uma entrevista na 139ª edição, de a hostilidade em relação aos Estados 2 de maio de 2005, outra entrevista na  Franklin Delano Roosevelt (1882-1945): 144ª edição, de 6 de junho de 2005, dois Unidos. Ele termina seu governo com 32º presidente dos Estados Unidos (1933- artigos na 145ª edição, de 13 de junho um espaço e uma capacidade de in- 1945), o único a ser eleito mais de duas de 2005, e um artigo nos Cadernos IHU vezes presidente. É considerada uma das Idéias número 37, de 2005, intitulado  O entrevistado refere-se ao livro Su- figuras centrais da história do século XX. As concepções teórico-analíticas e as premacia dos mercados. E a política Foi um dos presidentes mais populares da proposições de política econômica de econômica do governo Lula (São Paulo: história americana, tendo emergido a na- Keynes, de autoria do Prof. Dr. Fernando UNESP, 2006), organizado pelo economis- ção da grande depressão de 1930. (Nota Ferrari Filho. (Nota da IHU On-Line) ta Ricardo Carneiro. (Nota da IHU On- da IHU On-Line) Line) SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 31 Teologia Pública

Karl-Josef Kuschel faz 60 anos: teologia em diálogo

Paulo Astor Soethe escreve sobre a importância da obra teológica do sexagenário Karl-Josef Kuschel

Por Paulo Soethe

coordenador do PPG em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Soethe escreveu o artigo que segue com exclusividade para a IHU On-Line. Nele, afirma que “Kuschel é referência impres- cindível para quem esteja atento ao diálogo entre religião e literatu- ra, tanto do ponto de vista da teologia como dos estudos literários. OCom olhar perspicaz e franco, não busca profissões de fé nas obras literárias, mas destaca nos grandes escritores a presença da religião, a tensa confrontação dos textos literários com as tradições religiosas”. Graduado em Letras Alemão-Portu- guês, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Letras, pela Universidade de São Paulo (USP), o Prof. Dr. Paulo Soethe cursou pós-doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha.

Em 6 de março, o teólogo Karl-Jo- teologia não ficou circunscrita a ins- fundamentos para o triálogo entre as sef Kuschel completa 60 anos. Titular tituições confessionais, nem excluída grandes religiões monoteístas: Judeus da cátedra de Teologia da Cultura e do do universo acadêmico “secular”. Sua – cristãos – muçulmanos: origem e Diálogo Inter-Religioso na Faculdade atividade, inserida no âmbito do que perspectiva (Ed. Patmos, Düsseldorf, de Teologia Católica da Universidade chamaríamos uma “teologia públi- 2007). O teólogo propõe e exerce nes- de Tübingen, Alemanha, Kuschel é ca” – hoje a expressão nos diz muito sa obra a prática de um “ecumenismo internacionalmente reconhecido, so- –, repercute em meios eclesiásticos, abraâmico” em que “não se pode mais bretudo em duas áreas: o diálogo in- mas também no universo acadêmico e pensar isoladamente no bem da Igre- ter-religioso entre judeus, cristãos e cultural não-religioso. A presença fre- ja, da Sinagoga ou da Umma”: agora, muçulmanos; e as relações entre teo- qüente na mídia e sua atividade edito- cabe ficar “atento, sem indiferença, logia e literatura. rial (como diretor da série Religião e ao destino dos demais ‘irmãos’” (p. Doutor honoris causa da Universi- estética da Ed. Grünewald, por exem- 609). Não se trata, segundo Kuschel, dade de Lund, na Suécia, Kuschel vem plo) associam-se à autoria de mais de de ignorar diferenças, “mas tornar de uma tradição intelectual em que a 40 livros e centenas de artigos, em passíveis de entendimento mútuo, em  Karl-Josef Kuschel: professor de Teologia uma produção, sobretudo, acadêmica, um espírito benéfico, as pretensões da Cultura e do Diálogo Inter-religioso na Fa- mas também voltada ocasionalmente de verdade sustentadas em cada uma culdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen. É vice-presidente da Fundação a um público mais amplo. das religiões, irredutíveis a uma só” Weltethos (Ética mundial). Sobre Kuschel pu- Em continuidade e aprofundamen- (p. 608). Vice-presidente da Fundação blicamos dois textos. O primeiro no Cadernos to de livros anteriores, desde Discor- de Ética Mundial (Stiftung Weltethos) Teologia Pública nº 21, intitulado Bento XVI e Hans Küng. Contexto e perspectivas do encon- dia en la casa de Abrahan. Lo que desde 1995, Kuschel desenvolve nessa tro em Castel Gandolfo, produzido pelo teólo- separa y lo que une a judíos, cris- linha de trabalho atividade integrada go. O segundo, publicado no Cadernos Teologia tianos e musulmanes (Ed. Verbo Di- à de seu antigo mestre e atual interlo- Pública nº 23, Da possibilidade de morte da  Terra à afirmação da vida. A teologia ecológica vino, Estella/Navarra, 1996), Kuschel cutor, Hans Küng , de quem havia sido de Jürgen Moltmann, foi elaborado por Paulo apresentou em sua obra mais recen-  Hans Küng (1928): teólogo suíço, pa- Gonçalves. Ambos estão disponíveis na nos- te, com 683 páginas na edição origi- dre católico desde 1954. Foi professor na sa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu). Universidade de Tübingen, onde também (Nota da IHU On-Line) nal alemã, uma síntese teológica dos dirigiu o Instituto de Pesquisa Ecumêni- 32 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 assistente científico por duas décadas, até 1989. De outra parte, Kuschel é referên- “Kuschel é referência imprescindível para quem esteja cia imprescindível para quem esteja atento ao diálogo entre religião e li- atento ao diálogo entre religião e literatura, tanto do teratura, tanto do ponto de vista da teologia como dos estudos literários. ponto de vista da teologia como dos estudos literários” Com olhar perspicaz e franco, não busca profissões de fé nas obras lite- rárias, mas destaca nos grandes escri- Kuschel também dedicou atenção a políticas e econômicas – eis os fatores tores a presença da religião, a tensa alguns autores de nosso continente, que ensombrecem a dicção literária confrontação dos textos literários com como Jorge Luis Borges, Augusto Roa de nosso tempo. Sem esquivar-se a as tradições religiosas. Kuschel não Bastos e Mario Vargas Llosa, este últi- isso, Kuschel pode concluir, no entan- incide na manipulação da literatura mo com La guerra del fin del mundo, to, com o olhar do teólogo, que ao fim com fins religiosos, nem na obtusidade sobre o trágico episódio da Guerra de desse percurso resta muito mais que de quem ignora, na produção literá- Canudos – um dos emblemas da fé po- misantropia e indiferença. A paisagem ria consagrada, o elemento religioso. pular e da crise de modelos religiosos obscura delineada em muitas obras Seu princípio é deixar os autores falar em nosso país. serve para aguçar a pergunta sobre o – na dicção que lhes cabe: a literária. Na tradição teológica, Kuschel re- sentido e legitimidade da Criação. E só então posiciona-se como teólogo corre nessa área em especial a Ro- Kuschel mostra-se capaz de atender e interlocutor. Para ele, as grandes mano Guardini e Paul Tillich, para a um público leitor que em geral se vê obras de arte, por seu caráter livre e partilhar com eles a convicção de um frustrado por um discurso religioso e indeterminado, e por sua capacidade caráter de revelação ou antecipação teológico atenuador: sua obra aborda de representar a multiplicidade da presente na arte. Constata na litera- com coragem o problema do sofrimen- existência humana, podem colocar o tura contemporânea o papel central to humano e do desespero diante de homem em contato intenso com o que da descoberta do ser humano como sua aparente absurdidade. É certo que está para além dele. Na verdade, é ser insondável, em constante situa- atitudes defensivas por parte das igre- instável e irredutível que essas obras ção de risco e de incerteza, por conta jas, diante do avanço do pensamento representam (a verdade de vidas hu- da própria liberdade. As atrocidades ateísta, tiveram como conseqüência manas em sua graça e mistério, mas cometidas durante a Segunda Guerra indesejada o cultivo da imagem de um também em sua não rara tragicidade) Mundial, a ameaça ao meio ambiente Deus entronizado: intocável, severo e a verdade divina presente sob a for- e à vida, a inexorável consciência em isento diante da história e da vida dos ma parcial que cabe ao homem apre- relação à culpa do gênero humano e homens. E é certo que a teologia do ender. Kuschel, ao ouvir os escritores, à fragilidade da pátina de civilização amor de Deus e de Sua compaixão com entrega-se a um exercício anunciado que recobre nossas relações sociais, a criatura vem reparar essa distância, e criterioso de teologia intercultural: no mundo cristão, e trazer uma contri- não pretende incorrer em falsa este-  Jorge Luis Borges (1899-1986): escritor e buição inestimável, não só para a ação tização da religião nem em sacraliza- poeta argentino. Borges foi tema de capa da edição 193, de 28-8-2006, intitulada Jorge pastoral. Mas não se pode esquecer, ção da arte. As experiências religiosa Luis Borges. A virtude da ironia na sala de por outro lado, o fato inegável de que e estética preservam cada qual sua es- espera do mistério. (Nota da IHU On-Line) ainda hoje, diante de situações extre- pecificidade e valor próprio, e ilumi-  Romano Guardini (1885-1968): teólogo, mas e aparentemente absurdas de so- nam-se reciprocamente, em uma rela- filósofo, pedagogo e literato italiano. Le- frimento injusto, a teologia do amor ção nem sempre pacífica de afirmação cionou na Universidade de Bonn e na Uni- e da cruz fazem apenas aguçar o pro- e crítica. Esse norte é seguido até as versidade de Berlim, onde permaneceu até a década de 1930, quando o Terceiro blema da teodicéia, e não solucioná-lo publicações mais recentes, como Deus Reich impediu suas atividades docentes. de forma definitiva. Se o sofrimento é adora esconder-se: esboços literá- Em 1945, reassumiu na Universidade de decorrência da liberdade da criatura, rios de Lessing a Muschg (Ed. Grü- Tübingen, passando, pouco depois, à de Munique. Escreveu muitas obras, entre e se nessas situações o amor de Deus newald, Mainz, 2007). elas, De la mélancolie, traduzida por se faz sentir de maneira mais intensa, Ciente do valor e força da literatura Jeanne Ancelet-Hustache (Paris: Points, não se exclui que tal argumentação da América Latina para suas reflexões, 1953) e La Fin des temps modernes (Pa- ris: Seuil, 1952). (Nota da IHU On-Line) soe cínica para quem sofre. Kuschel se ca. Foi consultor teológico do Concílio  Paul Tillich (1886-1965): teólogo ale- Vaticano II. É presidente da Fundação mão, que viveu quase toda a sua vida nos pergunta sobre a plausibilidade de fa- de Ética Global em Tübingen. Na edição EUA. Foi um dos maiores teólogos protes- lar no sofrimento vivido em Auschwitz 240 da IHU On-Line, de 21-10-2007, Pro- tantes do século XX. É autor de uma im- como conseqüência do amor de Deus e jeto de Ética Mundial. Um debate, pode portante obra. Entre os livros traduzidos da liberdade que Ele concede à cria- ser conferida a entrevista A dignidade em português, pode ser consultado Cora- em primeiro plano, a base da moral do gem de Ser (6. ed. Editora Paz e Terra, tura. E lança aí sua dúvida diante de Weltethos, concedida pelo teólogo. O 2001) e Amor, poder e justiça (Editora soluções que, levadas ao extremo, co- material está disponível na nossa página Cristã Novo Século, 2004). (Nota da IHU locariam Deus “em um nível ético in- eletrônica (WWW.unisinos.br/ihu). (Nota On-Line) da IHU On-Line) ferior ao de qualquer pai ou mãe que SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 33 respeitam a liberdade de seu filho, mas que tudo fariam para livrá-lo de situações de infelicidade extrema”. Em inúmeras análises literárias, o “Kuschel, ao ouvir os escritores, entrega-se a um teólogo procura um caminho reflexivo pelo qual se possa fugir ao ateísmo, exercício anunciado e criterioso de teologia mas também a uma teologia indevida- mente apaziguadora. Sua reflexão en- intercultural: não pretende incorrer em falsa frenta problemas como o da atitude de protesto contra Deus – tema freqüente estetização da religião nem em sacralização da arte” na literatura deste século – e entende tal atitude como consideração última diante do Criador, expressão radical de clamor pela justiça divina, emba- sado na experiência histórica de fé e para a teologia senão a linguagem. E como nenhum outro, também na lite- de confiança em Deus, projetada para esse desafio a teologia o tem em co- ratura, a dialética entre impotência o futuro. mum com a literatura moderna: utili- e força, fracasso e vitória, derrota e O esboço de uma “teopoética”, de zar a linguagem para conferir dicção à grandeza. um “dizer bem” teológico, remete-se impossibilidade de dizer plenamente. Desde o surgimento da edição em Kuschel a uma recomendação de Teologia e literatura partilham a con- brasileira de trabalhos de Kuschel no Karl Rahner quanto à sensibilidade fiança na linguagem – mas enquanto volume Os escritores e as escritu- lingüística necessária para o exercício instrumento de articulação da cons- ras no Brasil (Ed. Loyola, São Paulo, de reflexão nesse campo. Para se dar ciência das limitações dessa mesma 1999), o nome do teólogo é referência expressão à “silenciosa insondabilida- linguagem. Eis o aprendizado que a constante em trabalhos sobre litera- de” de Deus, não há outro instrumento teologia pode intensificar em si a par- tura e teologia, arte e religião. Sua  Karl Rahner (1904-2004): importante tir do convívio com a literatura: como visita à América do Sul, por ocasião do teólogo católico do século XX, ingressou formular a falta de ciência plena, fun- lançamento do livro, na época, pode na Companhia de Jesus em 1922. Dou- torou-se em Filosofia e em Teologia. Foi damento e resultado de toda a dicção ser considerada o marco inicial da in- perito do Concílio Vaticano II e professor sobre Deus; como expressar o fato de tegração de pesquisadores brasileiros na Universidade de Münster. A sua obra que não se dispõe do “objeto” de que em torno dessa área do saber. A ini- teológica compõe-se de mais de 4 mil tí- tulos. Suas obras principais são: Geist in se fala; como expressar que aquilo de ciativa conjunta de colegas no Brasil, Welt (O Espírito no mundo, 1939), Hörer que se fala é, afinal, inefável. Trata- no Chile e na Argentina, resultou em des Wortes (Ouvinte da Palavra, 1941), se aqui de uma conclamação aos te- abril de 2007 na fundação da ALALITE, Schrifften zur Theologie (Escritos de Te- ologia, 16 volumes escritos entre 1954 e ólogos, no sentido de que seu dizer Associação Latino-Americana de Li- 1984), e Grundkurs des Glaubens (Curso preserve o mistério de Deus, a irre- teratura e Teologia, atualmente com Fundamental da Fé, 1976). Em 2004, ce- dutibilidade do Criador a fórmulas e sede em Santiago do Chile. lebramos seu centenário de nascimento. A Unisinos dedicou à sua memória o Sim- normas pálidas. É de esperar que outras obras de pósio Internacional O Lugar da Teologia Em sua obra, pautada pela reflexão Kuschel – para além de importantes na Universidade do século XXI, realizado sobre a diversidade religiosa, Kuschel trabalhos seus publicados recente- de 24 a 27 de maio daquele ano. A IHU On-Line nº. 90, de 1º-03-2004, publicou não prescinde da identidade cristã. Ao mente pelo IHU, relacionados ao um artigo de Rosino Gibellini sobre Rah- analisar diversas obras literárias, em diálogo inter-religioso e os direitos ner, e a edição 94, de 02-03-2004, publi- compêndios volumosos como Jesus humanos, e sobre pontos comuns e cou uma entrevista de J. Moltmann, ana- lisando o pensamento de Rahner. No dia na literatura universal. Balanço de divergências entre Hans Küng e Bento 28-04-2004, no evento Abrindo o Livro, um século em textos e apresenta- XVI – ainda venham encontrar eco na Érico Hammes, teólogo e professor da ções (Ed. Patmos, Düsseldorf, 1999), cena intelectual brasileira. Há muito PUCRS, apresentou o livro Curso funda- mental da fé, uma das principais obras revela que para muitos escritores do que ser traduzido. de Karl Rahner. A entrevista com o prof. século XX, Jesus Cristo é representado Após a importante visita de Hans Érico Hammes pode ser conferida na IHU como arquétipo de uma humanidade Küng ao Brasil, em outubro de 2007, On-Line n.º 98, de 26-04-2004. Ainda so- bre Rahner, publicamos uma entrevista inconformista, rebelde e provocativa; antecedida de viagens à Colômbia e com H. Vorgrimler no IHU On-Line n.º 97, que o Filho surge como instância re- ao México, é de esperar que também de 19-04-2004, sob o título Karl Rahner: veladora da discrepância entre o ideal Kuschel retorne em breve, no interes- teólogo do Concílio Vaticano nascido há 100 anos. A edição número 102, da IHU e uma realidade muitas vezes mise- se do projeto de Ética Mundial, que On-Line, de 24-05-2004, dedicou a ma- rável; e que não é “apreensível” de ambos conduzem na Fundação homô- téria de capa à memória do centenário forma plena, escapando a toda repre- nima, em Tübingen. de nascimento de Karl Rahner. Os Cader- nos Teologia Pública publicaram o arti- sentação direta e redutora. Jesus, re- Por ora, cabe saudar Karl-Josef go Conceito e missão da Teologia em Karl lido e novamente representado pelos Kuschel pelo cumprimento dos 60 Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico João escritores modernos, conserva a força anos! E esperar que continue sua obra Hammes. (Nota da IHU On-Line) já presente nos Evangelhos. Incorpora e o diálogo com a América Latina.

34 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 Filme da Semana

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como o Arteplex, do Shopping Bourbon.

Sangue negro

Ficha técnica Título Original: There will be blood Diretor: Paul Thomas Anderson Gênero: Drama Tempo de Duração: 158 minutos Ano de lançamento: 2007 (EUA) Elenco: Daniel Day-Lewis. Dillon Freasier e Paul Dano Resumo: Daniel Plainview é um explorador de petróleo que chega a uma nova comunidade, em que precisa dividir as atenções com um pastor, Eli Sunday. O conflito é mote para mostrar a conquista de petróleo na virada do século XIX para o século XX nos Estados Unidos.

Cobiça e vazio

Por André Dick

Sangue negro, de Paul Thomas An- no espectador, como no fraco Embriaga- rapaz que aspira a ser pastor, Eli Sunday derson, foi um dos indicados ao Oscar do de amor. Sangue negro parece, em (Paul Dano, numa bela interpretação). de melhor filme em 2008, e não por relação a este, filme de outro diretor, ou A partir disso, o mote de todo o enredo acaso. Desde seus minutos iniciais, com melhor, do realizador de Magnólia: al- se dirige a um conflito básico entre ca- um silêncio interrompido apenas pela guém capaz de contar uma história com pitalismo e religião, o qual poderia ser estranha música de Jonny Greenwood, raro talento e se utilizar do talento de sumariamente previsível, tratando da guitarrista do grupo Radiohead, trata-se excelentes atores para atingir seu ob- divisão entre alma e materialismo. Aca- de um tipo de cinema que andava es- jetivo. Daniel Day-Lewis, por exemplo, ba ficando nas mãos do pastor Eli querer quecido em Hollywood: lento, simétri- no papel de Daniel Plainview, o prospec- converter o explorador. Este conceito co, mas de forte impacto emocional. tor que chega, no início do século XX, revela um lugar-comum, por sinal, e An- Não são necessários muitos diálogos – o a comunidades para escavar poços de derson não sabe, a princípio, adminis- que é raro no cinema atual - para que petróleo e trazer riqueza, de preferên- trá-lo, mas ainda assim o filme tem uma o espectador se sinta interessado pela cia para seu próprio bolso, está em seu atmosfera tão forte que nos esquecemos trama apresentada, sobretudo na pri- melhor momento na carreira e recebeu desse maniqueísmo. Isso porque se con- meira e silenciosa meia hora. seu segundo Oscar de melhor ator (o pri- clui, a partir de determinado momento, Baseado no livro Oil!, de Upton Sin- meiro havia sido em 1990, com Meu pé que o cineasta pretende mostrar que as clair, o filme também recupera a carrei- esquerdo). concepções de religião e de capitalismo ra de Paul Thomas Anderson, que depois Plainview é acompanhado pelo filho, estão cercadas por um profundo deses- de Boogie nights e Magnólia, duas obras a quem chama de H.W. (Dillon Freasier). pero em relação à realidade humana. de rara qualidade, caiu no maneirismo Eles são procurados para explorar uma Ambas se constroem, muitas vezes, de movimentar a câmera como se qui- região que tem um potencial petrolífe- lado a lado – a exploração de petróleo sesse dar um impacto a cada seqüência, ro, no Oeste dos Estados Unidos. A ques- é feita ao mesmo tempo em que uma provocando, na maioria das vezes, sono tão é que nela há uma família com um casa é construída para abrigar seguido-

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 35 “Num mundo liderado por homens, no qual as mulheres saem da mesa para que os homens possam falar de negócios, e dominado pelo dinheiro e pela cobiça, os planos longos e a fotografia de Robert Elswit, premiada justamente com o Oscar, mostram o vazio de um universo que não pode ser transformado e não se regenera” res do pastor, na única seqüência mais ligado a conquistar dutos subterrâneos referencial potente de imagens elabora- iluminada do filme, caracterizado por para fazer escoar melhor o petróleo. O das com um cuidado raríssimo. O Oes- cores escuras -, incluindo até a manei- crescimento de uma comunidade imersa te americano é retratado, nesse vazio, ra como entendemos a violência que no pecado é representada por escolher com suas longas planícies e por bosques atinge os principais personagens. Ou sempre entre a religião e o dinheiro, e vazios, numa melancolia que lembra seja, parece não haver sossego nem na ambas as escolhas parecem condenadas. a de Os imperdoáveis, de Clint Eas- imagem de um Deus protetor capaz de Diante disso, nos perguntamos: para An- twood. O céu azul, em muitas imagens, ajudar o indivíduo a escapar de seus derson, se existe um mal, ele está de parece confrontar a terra crua, como no problemas, aqueles que o capitalismo que lado? De quem quer salvar o outro momento em que o pastor se dirige a finge encobrir. sob a premissa de se manter como pro- Plainview e passa por um lodaçal que o Todos os elementos de Sangue ne- feta ou de quem anuncia a prosperidade reflete. A música de Greenwood, por sua gro ajudam a confirmar essa idéia. Num aos quatros ventos quando quer apenas vez, acaba tomando contornos dramáti- mundo liderado por homens, no qual enriquecer? Anderson também é céti- cos, quando quer dar um encerramento as mulheres saem da mesa para que os co em relação à idéia de família. Se há a conflitos baseados no dinheiro e nas homens possam falar de negócios, e do- uma espécie de união entre familiares, trocas comerciais. E a câmera de Ander- minado pelo dinheiro e pela cobiça, os é porque há algo que justifique financei- son, que em outros filmes caía num cer- planos longos e a fotografia de Robert ramente essa união. No caso de Plain- to maneirismo, parece sempre pronta a Elswit, premiada justamente com o Os- view, ele apresenta seu filho como uma fazer com que as ações dos personagens car, mostram o vazio de um universo relíquia para obter um bom olhar sobre se intensifiquem. Por isso, a importância que não pode ser transformado e não ele mesmo, um prospector interessado também do cenário vazio. A cena inicial, se regenera. Esse vazio é cercado pela apenas no dinheiro. que mostra Plainview querendo desco- incomunicabilidade entre os homens, Plainview e Sunday são figuras con- brir jóias, mostra uma dedicação solitá- representada pela relação de Plainview trovertidas exatamente porque não sa- ria digna de alguém que deseja, como com seu filho, que sustenta boa parte bemos de que lado estão: suas ações, um religioso, dar um sentido determina- da trama e eclode perto do final, e com em determinado momento, se mistu- do à sua vida, e essa solidão, de certo o homem que surge dizendo ser seu ir- ram e o vazio que os acompanha parece modo, é ininterrupta mesmo quando ele mão. A única relação explícita do filme contaminar as pessoas que os cercam. tem dezenas de homens trabalhando acaba se baseando apenas exatamen- São personagens delineados, no fim das para o seu crescimento. te na falsidade, seja na tentativa de o contas, com uma complexidade quase Com todos esses aspectos, há uma desbravador de dinheiro ser salvo pelo ausente na cinematografia recente e se complexidade maior do que aquela pastor, que, posicionado como um pro- intensificam, sobretudo com a cena do primeira premissa (a do conflito ente feta, sabe apenas fazer o espetáculo, batismo, sobre a qual não se pode dar religião e capitalismo), que está evi- mas não curar quem está ao seu lado, detalhes, mas que revela a verdadeira dente e parece até óbvia. Diante da seja na figura de executivos com o ob- intenção de Sangue negro. O fracasso violência da última seqüência, de um jetivo de destruir famílias fingindo que- pessoal desses personagens não repre- impacto visual e emocional potenciali- rer ajudá-las. É muito interessante, sob senta, porém, o fracasso das condutas zado pelas atuações de Day-Lewis e de esse ponto de vista, o momento em que que os conduzem: exploradores de pe- Paul Dano, num dueto fantástico, no o pastor pede a Plainview para abenço- tróleo também construíram a América, entanto, o sangue que parece escorrer ar o poço de petróleo, como se fosse o com seus prós e contras, e a religião, não tem contornos definidos, é apenas responsável por trazer dinheiro a uma que oferece um sentido à vida de mui- neutro, como se o maniqueísmo fosse região pobre. tas pessoas, também continua cada vez superado por uma reflexão mais con- Em Sangue negro, uma pergunta mais presente no dia-a-dia. No caso, os tundente. Sangue negro pergunta ao constante é: o que é pecado? Deve- personagens representados em Sangue espectador, a cada minuto, e isso é vi- mos nos basear numa idéia divina para negro representam a si próprios e não a sível na parte final, por que o homem tentar nos salvarmos? Anderson – como todo um sistema com os quais parecem costuma se afastar de um de seus ei- responsável também pela adaptação do se confundir, a não ser que caiamos no xos centrais: a tentativa de compreen- roteiro, ou seja, trata-se de uma obra maniqueísmo. der. A resposta, como sempre, nunca autoral - parece cético em relação a Como cinema, de alto nível, Sangue traz soluções, e é por isso que o filme esta escolha. Para ele, o perdão está negro passa, ao mesmo tempo, a ser um perturba tanto o espectador.

36 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 Memória

Hugo Assmann (1933-2008)

“Hugo Assmann é um dos teólogos mais profundos da Teologia da Libertação”

O irmão Antonio Cecchin fala de sua amizade com Hugo Assmann e da herança que o padre deixou para a Igreja latino-americana

Por Graziela Wolfart

ntônio Cecchin é graduado em Letras Clássicas (grego, latim e portu- guês) e em Ciências Jurídicas e Sociais. Especialista em Economia e Humanismo no IRFED de Paris, ele já trabalhou como diretor do Colégio Marista São Luís, em São Leopoldo, como Coordenador da Equipe de Catequese Libertadora do Regional Sul-3, da Conferência Nacional dos ABispos do Brasil (CNBB), como Secretário particular do Promotor Geral da Fé, no Vaticano, e como assessor do MST, enquanto esse estava ligado às Comunidades Eclesiais de Base (de 1979 a 1984). Cecchin já nos concedeu outras entrevistas. A mais recente, em 11-06-2007, “Os pobres me evangelizaram”, foi publicada na edição 223, intitulada . Pedagogo da esperança. Sobre a vida e obra de Assmann, publicamos no sítio do IHU os artigos “Hugo As- smann: teologia com paixão e coragem”, de Jung Mo Sung ; “Hugo Assmann (1933- 2008)”, de João Batista Libânio ; e “Da teologia da libertação à educação para a esperança”, de Juan José Tamayo.

IHU On-Line - Como era a pessoa de ano de 1971. Já em 1964, 1965, padre personalidade forte. Tinha uma con- Hugo Assmann, sobretudo as carac- Hugo já estava nos dando essa nova versa muito agradável, gostava do terísticas de sua personalidade? O visão a partir, inclusive, da CNBB. Lá, chimarrão e de uma caipirinha. Era que o senhor mais lembra do conví- eu trabalhava com ele. Eu cuidava do uma pessoa de muita alegria. No en- vio com ele? setor de catequese e ele do setor de tanto, foi perseguido no “templo e no Antonio Cecchin – Ele era uma pes- liturgia. Padre Hugo foi pároco tam- pretório”, como se costuma dizer. Ele soa muito forte, de uma inteligência bém da Igreja Mont’Serrat, em Porto precisou sair de Porto Alegre por cau- muito lúcida. Foi muito corajoso sen- Alegre, e, por causa da posição teo- sa das suas visões avançadas dentro do um dos precursores da Teologia da lógica dele, acredita-se que os inimi- da Igreja e depois teve que fugir do Libertação, antes de ela ser consa- gos incendiaram a igrejinha que ele Brasil na véspera dos anos de chumbo. grada com esse nome, que foi dado cuidava. Logo depois, ele fez o pro- Eu e minha irmã colaboramos com ele depois pelo Gustavo Gutiérrez, no jeto da nova igreja em que ele era na compra de alguns objetos, como  Gustavo Gutiérrez (1928): padre e teólogo pároco. Como pessoa, ele era muito uma eletrola, para ele poder ter um peruano, um dos pais da Teologia da Libertação. dado, grande amigo, mas com uma dinheirinho a mais e sair do Brasil. Gutiérrez publicou, depois de sua participação na Conferência Episcopal de Medellín de 1968, a Te- ologia da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1975), traduzida para mais de uma dezena de idiomas, e que o converteu num teólogo polêmico. Uma “Como pessoa, ele era muito dado, grande amigo, década mais tarde, participou da Conferência Episcopal de Puebla (México, 1978), que selou seu compromisso com os desfavorecidos e serviu mas com uma personalidade forte” de motor de mudança na Igreja, especialmente latino-americana. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 37 IHU On-Line – Além de ter sido um “Como sacerdote, padre dos precursores, qual é a importân- cia de Assmann para a Teologia da Hugo Assmann foi para “Ele era uma pessoa Libertação e sua maior contribuição para a Igreja latino-americana? São Paulo, exatamente muito forte, de uma Antonio Cecchin – Hugo Assmann é um dos teólogos mais profundos da pelas idéias avançadas inteligência muito lúcida. Teologia da Libertação. Antes de ela existir com esse nome, ele escreveu que ele tinha” sobre teologia do desenvolvimento, Foi muito corajoso sendo ao lado de outro teólogo, José Com- blin, que escreveu um livro sobre te- um dos precursores da ologia da revolução, e Rubem Alves, de uma polêmica muito forte com os que escreveu sobre a teologia da es- catequistas europeus. Ele conseguiu Teologia da Libertação” perança. Então, eram todos títulos dar uma definição do que seria para para uma nova teologia que estava nós, latino-americanos, a catequese sendo “parida” entre os teólogos la- libertadora. Falamos das comunida- tino-americanos, quando veio Gusta- des eclesiais de base e da evangeli- vo Gutiérrez, com sua tese, firmando zação desse povo pobre, simples, la- esse nome: Teologia da Libertação. tino-americano. As conclusões desse Mas, para mim, o meu pai na Teologia encontro internacional de catequese da Libertação, porque aprendi tudo foram, logo em seguida, aproveitadas “Para mim, o meu pai na com ele, foi Hugo Assmann. Eu estive no documento oficial dos bispos. Tra- com ele em Medellín uma semana an- ta-se do documento da catequese da Teologia da Libertação, tes do famoso encontro da Assembléia Assembléia de Medellín. dos bispos. No mesmo local, fizemos o porque aprendi tudo com Congresso Internacional de Cateque- IHU On-Line - Como era a convivência se, onde estiveram todos os diretores de Assmann, em Porto Alegre, com o ele, foi Hugo Assmann” dos grandes institutos catequéticos então arcebispo Dom Vicente Sche- europeus, norte-americanos, cana- rer? denses, latino-americanos. E aí, en- Antonio Cecchin – A convivência não tão, Hugo Assmann se firmou dentro foi nada fácil. Como sacerdote, padre Hugo Assmann foi para São Paulo, exa-  Joseph Comblin: padre belga, teólogo, tra- tamente pelas idéias avançadas que ele balha no nordeste brasileiro. Foi expulso do Brasil pela ditadura. Escreveu, entre outros, tinha. Mesmo como catequista, numa A ideologia da segurança nacional: O poder linguagem mais de evangelização, de “Hugo Assmann se firmou militar na América Latina (3. ed. Rio de Ja- educação da fé, eu também tive pro- neiro: Civilização Brasileira, 1980) e A liber- dade cristã (Rio de Janeiro: Vozes, 1977). blemas muito sérios com Dom Vicente dentro de uma polêmica Confira uma entrevista com Comblin na 213ª Scherer. Por isso, Padre Hugo saiu do edição da revista IHU On-Line, de 26 de março Rio Grande perseguido pelo templo, de 2007. (Nota da IHU On-Line) muito forte com os  Joseph, Comblin. Théologie de la Revolu- ou seja, pela Igreja, e depois pelo pre- tion (Paris: Universitaires, 1970). (Nota da IHU tório, como eu já disse, pelos anos de catequistas europeus. Ele On-Line) chumbo, que o obrigaram a sair corren-  Rubem Alves (1933): psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros do do Brasil, quando foi para Montevi- conseguiu dar uma e artigos abordando temas religiosos, educa- déu, e depois para a Europa. cionais e existenciais, além de uma série de livros infantis. ��������(Nota da IHU On-Line) definição do que seria �������������� ALVES, Rubem. A Theology of Human Hope.  Dom Vicente Scherer (1903-1996): Washington: Corpus Books, 1969. (Nota da IHU cardeal brasileiro. Dom Vicente Scherer para nós, On-Line) foi ordenado padre em 1926, em Porto  Documento de Medellín: Em 1968, na es- Alegre. Recebeu ordenação episcopal em teira do Concílio Vaticano II e da encíclica Po- fevereiro de 1947. Entre os anos de 1946 latino-americanos, a pulorum Progressio, realiza-se, na cidade de e 1981, foi arcebispo de Porto Alegre. Medellín, Colômbia, a II Assembléia Geral do A obra Dom Vicente Scherer, a voz de Episcopado Latino-Americano que dá origem um Pastor (Padre Réus: 2007), do padre catequese libertadora” ao importante documento que passou a ser Eduardo Moesch, consiste em sua tese de chamado o Documento de Medellín. Nele se doutorado em Teologia e História defen- expressa a clara opção pelos pobres da Igre- dida junto à Universidade Gregoriana em ja Latino-Americana. A conferência foi aberta Roma. Como subsídio, foram utilizadas as pessoalmente pelo papa Paulo VI. Era a pri- alocuções em “A voz do Pastor”, publica- meira vez que um papa visitava a América La- das de 1961 a 1989 no jornal Correio do tina. (Nota da IHU On-Line). Povo. (Nota da IHU On-Line) 38 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 Invenção

Editoria de Poesia

Claudia Roquette-Pinto

Por André Dick

Nascida no Rio de Janeiro, em 1963, ou seja, Claudia lança um pouco de “Os carros, no viaduto, engatam Claudia Roquette-Pinto graduou-se em brumas sobre seus versos, a fim de sua centopéia: / olhos acesos, suor Tradução Literária, pela PUC-Rio. Além que o leitor não consiga desvendá-los de diesel, / ruído motor, desespero disso, dirigiu, de 1985 a 1990, o jornal por completo, como na terceira parte surdo. / O sol devia estar se pondo, cultural Verve e tem cinco livros de de “cinco peças para silêncio”: “corpo agora / - mas como confirmar sua poesia publicados. Em Os dias gagos deitado ao silêncio / sob o sol, exposto trajetória / debaixo desta cúpula de (Rio de Janeiro: Ed. Da Autora, 1991), / ao incêndio de outro rosto / todo ele pó, / este céu invertido? / Olhar o mar livro de estréia, Claudia lidava com o ateasse / surgindo, vertiginoso, / das não traz nenhum consolo”. No poema verso livre e com o verso metrificado cinzas do gozo, em nudez / assim a “Em Saravejo”, por sua vez, escreve, e com rimas. Já em Saxífraga (Rio palavra retorna / à sua íntima forma”. retratando a violência: “Quando a vi, de Janeiro: Salamandra, 1993), ela A sintaxe continua ganhando cada vez ali, distraída, / na escada do ônibus escolhe o caminho das elipses e dos mais espaço na construção de poemas escolar, / nada me preparou para cortes abruptos, dialogando com do livro seguinte, Corola (São Paulo: suas pernas abertas, / no meio a flor obras de pintura (de Monet, Edward Ateliê Editorial, 2001 – Prêmio Jabuti dilacerada / repetindo, entre as coxas, Munch e Frida Kahlo, por exemplo) e de Poesia/2002), evidenciando uma / o buraco da bala no peito: / um dois trazendo imagens botânicas de grande atração pelas imagens de flores de pontos insólito”. E em “Granada” desenvoltura – um dos poemas é, um “hipotético jardim”, como em parece sintetizar a violência dos dias inclusive, dedicado a . Drummond. No entanto, essas escolhas atuais: “Quando as palavras finalmente Também se nota uma tendência a uma aguardam algo mais de interno. se apresentam / (ruídos, balbucios), / poesia com sensibilidade corporal, Claudia parece partidária, assim, da estremunhadas em meio ao motim, / como se percebe no poema “ele:”: “rosa nas trevas” de Mallarmé, e suas sob impacto de granada (sua fala), / “ímã: rege o lapso dos planetas. enigma plantas organizam um mundo que pode o sonho explode”. Ao mesmo tempo, de camiseta. espelho de onde goteja está entre a sensibilidade e o caos, Claudia continua sob influência do o meu corpo. dia a dia. proscrito das definidos por meio da musicalidade. diálogo com a pintura, na seção “No nuances. náufrago da lua. comparsa Antes voltada às imagens mais agora da tela”. de uma fuga, aqui a estrada bifurca: abstratas, Claudia, em Margem de Claudia teve poemas traduzidos toma aquela onde um casal, surpreso, manobra (Rio de Janeiro: Aeroplano, para o inglês, o espanhol, o francês olha pra trás”. 2005 – finalista do Prêmio Portugal/ e o alemão, e incluídos em diversas Há uma mescla entre os ganhos desses Telecom/2006), opta por uma poética antologias e publicações nacionais dois livros em Zona de sombra (Rio longe de óbvia, mas mais interessada e internacionais. No momento, está de Janeiro: 7Letras, 1997), no qual em analisar a violência e o isolamento trabalhando em um livro de prosa Claudia opta por um equilíbrio entre social. Estes elementos, no entanto, infanto-juvenil, preparando um as elipses e o encadeamento sintático, como nos demais livros, são cercados próximo livro, de poemas em prosa, e privilegiando, inclusive, a forma do pelo embate do sujeito com a solidão, pesquisando a linguagem do grafite e poema em prosa em muitos momentos, o que inclui a tensão poética e suas relações com a poesia. Mora no num diálogo com os simbolistas. Volta amorosa. Um poema representativo Rio de Janeiro, com seus filhos Pedro, a dar espaço para imagens calcadas dessa nova etapa em sua trajetória Bruno e Luisa. O poema inédito que na natureza e no corpo, evitando, é “Morro”, focalizando uma espécie ela enviou especialmente à IHU On- por outro lado, a descrição realista, de estado de sítio no Rio de Janeiro: Line é “Parada de Lucas”.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 39 Parada de Lucas

De volta ao mundo das idéias claras onde uma amendoeira é outra vez um incêndio vizinho de outro incêndio na vertigem da estrada. Do viaduto as casas se esfumam na poeira solar em que flutua o descaso ou o torpor de mais uma tarde de subúrbio. Os pára-choques dos caminhões ensaiam previsões em aberto:

Nova União Faísca Mercúrio

enquanto num outdoor veloz um pedaço de barriga anuncia o Caldeirão do Funk - onde todos os desejos se misturam, a sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca, salão de sangues misturados, tão Brasil! E ela volta em pensamento ao velho terreiro aberto, ao chão de lodo e metal, repleto de negros jovens belos de calça jeans e peito nu (os das moças tremem luzindo, escapulindo pelo decote, bundas levitam, sacodem num frenesi de candomblé). O negro que passa num bonde, pensando que ela é gringa grita, fazendo bico, pra loura dançando ali sozinha: “You’re beautifuuuuul!!!” E a menina séria, olhos doídos, reencontra essa mulher desabrida - ela mesma, 30 anos depois - rolando, descalça, entre os braços dos crioulos

40 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 no meio do batidão. As caixas de som ensurdecem, a percussão inebria, às vezes são rajadas de metralhadora (se rolar tiroteio lá fora ninguém vai saber qual é qual). Os corpos se encostam, aproximam, ninguém precisa dizer nada. Um rapaz lindo, quase nu, rosto escuro, gorro escarlate, sobe no palco e improvisa seu torom dom dom. De repente, lá da pista, um sujeito grita: “Aí, Saci!” e a mulher sorri, ao lado do antropólogo tímido que segura bolsa e sandálias, e não deixa que os outros homens cheguem perto demais. Os jornalistas de São Paulo parecem meio desanimados mas a atriz de porcelana e arminho, essa até que rebola bem... A mulher, vertiginosa, dança para esquecer o próprio nome, dança para chegar ao que importa - liquefazer na multidão. A menina, a essa altura, já está até achando graça. “É que ela tomou alegria!”, grita, do fundo da sala, o poeta dentuço que não sabia dançar. Nesta terra pensamento não se cria - aqui, nesta festa da carne, o sangue urgente, todo pulsação.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 41 Destaques On-Line

Essa editoria veicula notícias e entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line disponíveis Alves da Silva nas notícias do dia do sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu) Confira nas Notícias do Dia 27-02-2008 de 03-12-2008 a 09-12-2008. Uma convivência com o semi-árido requer uma gestão comunitária para garantir o uso sustentável da água, ex- Salas de bate-papo da internet: a linguagem para além do plica o pesquisador Roberto Marinho Alves da Silva, dou- corpo humano tor em Desenvolvimento Sustentável, pela Universidade Gabriel de Ávila Othero de Brasília (UNB). Ele acrescenta que essa medida possi- Confira nas Notícias do Dia 25-02-2008 bilitará o abastecimento humano e a produção apropria- Gabriel de Ávila Othero, doutorando em Lingüística, pela da, sem degradar os mananciais hídricos da região. PUC-RS, comenta que as conversas na internet possibi- litam que a língua-padrão conheça outras formas de lin- ‘Eu mesmo, de certa forma, já sou uma espécie de ci- guagem. Em seus estudos, ele tem o intuito de desvendar borgue’ as relações cada vez mais próximas entre o humano e o Richard Dulley computador, como meio de linguagem. Confira nas Notícias do Dia 28-02-2008 Para o pesquisador Richard Dulley, do Instituto de Eco- A relação entre a comunicação e a governabilidade na nomia Agrícola (IEA), as nanotecnologias poderão gerar América Latina muitos excluidos. Para ele, o grande problema do futuro Orlando Villalobos pós-humano será o acesso. Confira nas Notícias do Dia 26-02-2008 Para o professor venezuelano Orlando Villalobos, da Uni- ‘O PAC não se constitui num projeto para a economia do país’ versidad Del Zulía, o exercício do jornalismo se tornou Leda Paulani um risco. Ele argumenta que isso se ocorre porque os Confira nas Notícias do Dia 29-02-2008 governos são muito sensíveis à crítica e a denúncia. Em avaliação ao primeiro aniversário do PAC, a econo- mista e professora Leda Paulani, da Universidade de São Combate à seca no semi-árido e a transposição do São Paulo (USP), comenta o programa não se constitui num Francisco: o desenvolvimento sustentável da região é plano efetivo de desenvolvimento e tão pouco num proje- possível. to para a economia do país.

acesse

www.unisinos.br/ihu

42 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 Agenda da Semana

Confira os eventos dessa semana, realizados pelo IHU. A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Dia 03-03-2008 Páscoa 2008 – Um grito contra a violência Exposição: Martirológio Latino-Americano: “A Páscoa como subversão” Recepção do Instituto Humanitas Unisinos e sala 1G119 Dia 04-03-2008 O declínio do Império americano, de Denys Arcand (1986) Prof. Dr. Larry Antônio Wieznievsky - Unijuí Cinema e Saúde Coletiva III: Mulheres e seus múltiplos desafios Horário: das 19h15min às 22h Sala 1G 119 Dia 06-03-2008 Maternidade eletrônica: a perspectiva feminina na cibercultura Profa. Dra. Adriana Braga – Unisinos Horário: 17h30min às 19hIHU Idéias Sala 1G 119 Dia 08-03-2007 Cronicamente inviável, de Sérgio Bianchi (2000) Profa. Dra. Gláucia Angélica Campregher – Unisinos Prof.Dr. Joe Marçal - PUCRS Páscoa 2008 – Um grito contra a violência Horário: 8h30min às 11h45min Sala 1G 119

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 43 Martírio: uma proposta de humanização espelhada em Jesus Cristo

Por Bruna Quadros

A violência contemporânea e a sua banalização ganham contorno ainda mais reflexivo, durante a Pás- “É mártir quem no substancial vive como Jesus, coa - paixão, morte e ressurreição de Jesus. Através da compreensão do promove a causa sua causa, o reino de Deus, como significado desta data, é possível en- contrar um caminho que leve à disse- boa notícia para os pobres, entra em conflito e luta minação de uma cultura de paz. Esta busca pela libertação do mal perse- contra o anti-reino, contra os poderes opressores gue a humanidade há tempos e tem forte relação com a história de vida deste mundo. Podemos dizer que os mártires são do Homem de Nazaré. “Só olhando para a vida de Jesus, sua cruz e res- modelos de vida, que mostram opções de liberdade surreição é que podemos entender o significado do martírio, uma vez que diante de grandes dificuldades econômicas, sociais, ele é o primeiro mártir, testemunho fiel da vida do Pai para toda a huma- religiosas”, afirma Ana Formoso nidade, testemunho vivente mesmo na morte do Reino de Deus”, afirma a teóloga Ana Formoso. Neste sentido, começam a surgir mártir, a denominação martirológio zação, o Instituto Humanitas Hunisinos outros mártires, pessoas que seguem abrange homens e mulheres, testemu- – IHU promove a exposição Martirológio as pegadas de Jesus até abraçar sua nhas de uma vida dedicada à causa do Latino-Americano: “A Páscoa como sub- própria morte de forma violenta, Evangelho. “Conhecer os mártires é versão”. A mostra integra a programa- testemunhando com seu sangue sua uma realidade teológica que neces- ção do evento Páscoa 2008 – Um grito crença e compromisso de vida. “É sita ser aprofundada, cruza frontei- contra a violência, que será realizada mártir quem no substancial vive como ras, indo além de seu contexto para de 03 de março a 04 de abril de 2008, Jesus, promove a causa sua causa, o inscrever-se no contexto histórico na recepção e na sala 1G119 do Insti- reino de Deus, como boa notícia para de uma cultura de humanização”, tuto, e visa incentivar a comunidade os pobres, entra em conflito e luta explica a teóloga. Dom Romero, Ig- acadêmica a não contribuir com o mal contra o anti-reino, contra os pode- nácio Ellacuria, Pe. Mugica e Irmã que leva a repetir erros que necessitam res opressores deste mundo. Podemos Dorothy Stang são alguns dos nomes ser esclarecidos e combatidos para que dizer que os mártires são modelos de que integram o martirológio latino- a vida possa ser celebrada. vida, que mostram opções de liber- americano. Também fazem parte Os mártires latino-americanos, ao dade diante de grandes dificuldades pessoas que, sem receber o dom do lado de santos venerados pelas Igre- econômicas, sociais, religiosas”, re- martírio, abrem caminhos de vida jas Católica, Luterana, Anglicana, Or- força Ana. e esperança para seu povo, como o todoxa e das religiões afro, ganham Tendo origem no conceito de bispo equatoriano Leónidas Proaño, destaque especial na página do Insti- Dom Helder Câmara, Dom Luciano tuto Humanitas Unisinos – IHU (www.  Ana formoso é graduada e mestre em Te- Mendes de Almeida e as mulheres unisinos.br/ihu). Com isso, busca-se, ologia pela Pontifícia Universidade Católica que morreram na luta pelas terras também, estreitar os laços entre as di- do Rio Grande do Sul - PUCRS. Atualmente, trabalha no Programa de Teologia Pública do no Brasil, como Dorselina Fuladorna, ferentes correntes religiosas, em favor Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Já contri- do Mato Grosso e Rosani Nunes, do da Justiça, da Paz e da Liberdade. Para buiu na edição número 29 dos Cadernos Rio Grande do Sul. essa matéria, a IHU On-Line também Teologia Pública, publicação do IHU, sob o título Na fragilidade de Deus a esperan- Com o intuito de refletir sobre o conversou com a teóloga Maria Cristi- ça das vítimas. Um estudo da cristologia significado da Páscoa, além de cele- na Gianni, da equipe de Atendimento de Jon Sobrino. Também é professora nos brar a memória daqueles que deram a Espiritual do Instituto Humanitas Uni- cursos de Teologia Popular na Escola Superior de Teologia Franciscana (ESTEF). (Nota da IHU vida, em compromisso com a humani- sinos - IHU. On-Line) 44 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 A ascensão da imagem feminina: um elo para o individualismo?

Para o professor Larry Wieznievsky, O declínio do império americano, de Denys Arcand, utiliza recursos simples da produção cinematográfi- ca para montar um quebra-cabeça que divide claramente o universo feminino e o universo masculino

Por Brunas Quadros

credito que existem problemas muito mais graves na socieda- de contemporânea, como a paz mundial, a fome endêmica e o aquecimento global, do que a necessidade de investirmos numa espécie de partenogênese do feminino.” A afirmação é do professor e jornalista Larry Antônio Wieznievsky, da Univer- “Asidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). A discussão gira em torno da temática do filme O declínio do império americano, de Denys Ar- cand, no qual “declínio” faz alusão à perda de poder dos homens, diante da figura feminina. A discussão fomenta o debate sobre o individualismo, num tempo em que a ci- ência levanta a hipótese de as mulheres gerarem sozinhas os próprios filhos. Para Wieznievsky, a questão envolve uma diferença mais complexa entre individualismo e individuação, remetendo para possibilidades de uma vivência cultural mais inte- grada com os indivíduos, que articulam, em redes de comunicação, suas possibili- dades e, principalmente, necessidades de relações humanas. Larry Antônio Wieznievsky irá explanar a temática do filme O declínio do im- pério americano durante o ciclo de debates Cinema e Saúde Coletiva III: Mulheres e seus múltiplos desafios. O evento, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU – será realizado no dia 04-03-2008, das 19h15 às 22h, na sala IG 119. Confira, a seguir, a entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line:

IHU On-Line - A temática de O declínio vasões bárbaras. É uma grande metá- publicação de um livro chamado “Va- do império americano gira em torno fora sobre o início da globalização e o riações sobre a idéia de felicidade”, das relações entre homens e mulhe- cinismo da chamada era yuppie, que escrito por uma feminista. A partir res. No entanto, ao que se atribui a caracteriza o objeto de repúdio dos deste mote, o diretor especula exata- alusão ao império americano? personagens do filme, todos orienta- mente sobre este tema do declínio do Larry Antônio Wieznievsky - Devemos dos ideologicamente para os mitos do masculino, lido e analisado sob o pon- lembrar que o filme é de 1986, no auge socialismo utópico e das bandeiras li- to de vista das questões de gênero que do período Reagan e início do fim da bertárias do maio de 68. caracterizam os debates travados nos Guerra Fria. É um título irônico, como últimos 20 anos. A autora do livro asse- tudo o que envolve a obra do diretor. IHU On-Line - Hoje em dia, vivemos melha-se muito a Camille Paglia que, Na verdade, o extraordinário sucesso em uma sociedade em que a imagem exatamente no período de lançamento deste filme no Brasil se deve ao fato feminina está cada vez mais em as- do filme, arremetia contra os dogmas de coincidir com o fim da ditadura, censão, principalmente no campo do feminismo, a partir de seu livro- o fracasso de um possível governo de profissional, onde assume funções tese Personas sexuais. O filme utiliza, Tancredo Neves e a era Sarney, perí- antes tidas como “de homem”. Pode- de forma muito criativa, recursos sim- odo que caracterizou o debate sobre se entender o declínio do império ples da produção cinematográfica para os conceitos e efeitos de sentido da americano como a perda de poder montar um quebra-cabeça que divide pós-modernidade. Não é à toa que o masculino, diante desta situação? claramente o universo feminino e o filme que deu seqüência a O declínio Larry Antônio Wieznievsky - Com cer- universo masculino, mostrando que o do império americano se chama As in- teza. O filme inteiro gira em torno da segundo percebe a dimensão do pro-

SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 45 blema, mas prefere escamotear esta percepção com cinismo e auto-indul- gência. Já as mulheres, ao contrário, assenhoram-se de seus lugares no mer- cado de trabalho e nas suas funções so- “Na verdade, o extraordinário sucesso deste filme no ciais, expondo com muito mais frieza e objetividade a confusão instaurada Brasil se deve ao fato de coincidir com o fim da no universo masculino. Por esse viés, o filme ainda é extremamente atual e ditadura, o fracasso de um possível governo de situa-se cronologicamente no início de um debate que ainda encontra-se em Tancredo Neves e a era Sarney, período que aberto no campo das representações sociais, bem como na questão relativa caracterizou o debate sobre os conceitos e efeitos de aos gêneros e seu lugar na sociedade contemporânea. O filme de Arcand sentido da pós-modernidade” é, com certeza, o arquétipo de fil- mes como Sexo, mentiras e videota- pe e Closer – Perto demais, bem como aproxima-se muito do modo narrativo da minissérie Queridos amigos, exibida atualmente pela TV Globo. Basta ob- Larry Antônio Wieznievsky - No caso Larry Antônio Wieznievsky - No li- servar mais de perto o modelo narrati- de Hilary, não, pois ela persegue um vro Variações sobre a idéia da felici- vo adotado por projeto político muito anterior ao pró- dade, que aparece no filme, a idéia para perceber o DNA de O declínio do prio Bill Clinton, de certa forma, for- defendida é de que todos os impérios império americano neste processo. jado enquanto personagem por Hilary. culturais que a humanidade criou en- Sua postura de mártir do silêncio por tram em colapso, quando a idéia de IHU On-Line - Em que medida a so- ocasião do affaire Mônica Lewinski in- auto-realização é trocada pela idéia ciedade ganha ou perde, com a mu- valida qualquer tentativa de se levar a de sobrevivência. Acredito que exis- lher à frente de múltiplos desafios, sério sua plataforma como candidata tem problemas muito mais graves na especificamente profissionais? à presidência dos Estados Unidos. Ela sociedade contemporânea, como a Larry Antônio Wieznievsky - Não per- é o correlato objetivo da presença de paz mundial, a fome endêmica e o de nada. Acredito que o espaço da Condoleeza Rice, no governo Bush. aquecimento global, do que a neces- mulher na sociedade e sua ocupação Fica difícil vislumbrar no atual cená- sidade de investirmos numa espécie correspondem ao momento mais lú- rio americano uma mulher verdadeira- de partenogênese do feminino. Vale- cido da luta da mulher, por reconhe- mente apta a esse exercício, sem que rie Solanas, uma feminista radical dos cimento e, principalmente, por ga- se perceba também um enorme e gi- anos 1960, defendia exatamente esta rantias de um exercício profissional e gantesco processo de manipulação na tese em seu famoso SCUM (Manifesto social cada vez menos marcado pelo trajetória da construção desta figura. em que propunha esta possibilidade preconceito. Acredito que o lugar da Basta lembrar-se o caso de Geraldine visando à eliminação do lixo masculino mulher na sociedade contemporânea Ferraro, cuja possibilidade de trânsito da face da terra). Quando suas teses é cada vez mais fundamental, princi- na política foi avaliada por um mari- foram ignoradas, reagiu atirando em palmente pelo modo como as questões do sem-vergonha. Pessoas como Susan Andy Warhol, artista plástico que de- ligadas ao gênero vêm sendo tratadas Sontag e a roqueira Patti Smith con- fendia que no futuro todos teriam di- de um modo geral, agregadas a ques- figuram o melhor modelo da mulher reito aos seus 15 minutos de fama. É tões fundamentais da cidadania, como americana atual. Hilary, infelizmente, impossível prever se a sociedade ruma é o caso dos direitos humanos, para acreditou demais na própria lenda e para um individualismo maior do que ficar apenas num exemplo genérico. acabará envolvida no confronto com aquele que já conhecemos. A questão O feminismo continua sendo uma das sua arrogância e prepotência. O cami- envolve uma diferença mais complexa bandeiras mais importantes do perí- nho, no entanto, está aberto. entre individualismo e individuação, odo em que vivemos, por mais que a remetendo para possibilidades de uma Camille Paglia não concorde. IHU On-Line - Recentemente, a ciên- vivência cultural mais integrada e com cia levantou a hipótese de as mulhe- os indivíduos articulando, em redes IHU On-Line - Nos Estados Unidos, Hi- res gerarem os filhos sozinhas, o que de comunicação, suas possibilidades lary Clinton é uma das candidatas à as concederia total autonomia nas Casa Branca. Para o senhor, qual é o relações conjugais. Como o senhor  Valerie Solanas (1936-1988): Foi uma reflexo desta realidade? É a hora de avalia esta questão? Estamos cada escritora feminista estadunidense. Parte as mulheres mudarem a postura e al- vez mais próximos de uma sociedade de seu reconhecimento se atribui ao livro mejarem a presidência de um país? Scum manifesto, de 1986. (Nota da IHU que ruma para o individualismo? On-Line) 46 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 e, principalmente, necessidades de relações humanas. O máximo do indi- vidualismo apresenta-se na sociedade do supérfluo, caracterizada por Gilles “O feminismo continua sendo uma das bandeiras mais Lipovetsky como a sociedade hiper- moderna. Lixos como Britney Spears importantes do período em que vivemos, por mais e Paris Hilton originam-se exatamente sobre este conceito de individualismo, que a Camille Paglia não concorde” que supera qualquer possibilidade de articulação concreta com o humano e seus problemas.

IHU On-Line - No filme, o diretor pressivo de efeitos mais duradouros. palmente, cinema, preocupa-se em Denys Arcand causou impacto ao O próprio Arcand fez um filme fabu- utilizar como elementos para ampliar desvincular, parcialmente, o exercí- loso sobre este tema chamado Amor a representação desses confrontos. A cio da sexualidade e a manifestação e restos humanos. Quanto ao resto, cultura contemporânea nunca foi tão da afetividade. Até que ponto as re- mantém-se a mesma perspectiva con- rica em variedade e, principalmente, lações que esboçam este distancia- flitada dos anos 1950, quando as rela- em quantidade de objetos estéticos mento são prejudiciais à saúde dos ções pessoais de Sartre e Simone de que exemplifiquem inúmeros aspectos indivíduos? Beauvoir sustentavam obras filosóficas do confronto cultural e ideológico da Larry Antônio Wieznievsky - O fil- maravilhosas e barracos emocionais relação homem-mulher. me situa-se no início do surgimento não menos interessantes. Nesse pon- da epidemia de Aids, que assolaria o to, acredito que a situação não tenha IHU On-Line – E o qual é o grande mundo. A desvinculação das relações mudado muito, Eros e Thanatos conti- diferencial na obra de Arcand, que sexuais com os conteúdos do afeto nuam sua parceria ancestral. consegue prender a atenção dos es- e do compromisso remete à filosofia pectadores, transportando alguns existencialista, base na qual Arcand IHU On-Line - E a forma como a mí- deles para a sua própria realidade? busca os seus principais modelos. Os dia trata as relações entre homens e Larry Antônio Wieznievsky – Utili- riscos para a saúde física e mental mulheres? Os exemplos contribuem zando um recurso muito inteligente são evidentes. Basta ver a quantida- para que se aumentem os confrontos de montagem intercalada e flashba- de de drogas, álcool e outros forma- ideológicos entre ambos? cks estrategicamente colocados em tos semelhantes que os sujeitos con- Larry Antônio Wieznievsky - Depen- partes fundamentais da narrativa, temporâneos consomem no sentido de de. Todas as facetas das relações entre Arcand faz, em seu filme, uma verda- integrar ou desintegrar estas pontes homens e mulheres estão hoje disponí- deira mágica no sentido de transfor- destruídas na tentativa de desvincular veis no universo da mídia. Acredito que mar o espectador na pessoa que mais sistematicamente sexualidade e afe- esta exposição não aumenta necessa- conhece sobre a realidade exibida na tividade. Assim como o LSD, substân- riamente o conflito, mas também per- tela. Isso desaloja os espectadores de cia fundamental para entendermos os mite às pessoas uma maior variedade uma função meramente de observa- anos 1960, surgiu de uma experiência de informação para pensarem suas pro- ção para colocá-los como árbitros de em que se buscava uma aspirina com blemáticas individuais. Este é o tema uma disputa que oscila entre o simbó- gosto menos amargo, o ectasy, droga do filme Três efes, de Carlos Gerbase, lico e o real. Esse processo não é fei- essencial para entender-se o século que, como textos literários e, princi- to de forma ostensiva como é o caso XXI, deriva da busca de um antide- de alguns filmes contemporâneos, como, por exemplo, Desejo e repara- ção, filme excelente, mas que engana “O filme utiliza, de forma muito criativa, o espectador em relação àquilo que mostra. Utilizando-se de um critério recursos simples da produção cinematográfica para hegeliano, Arcand faz um filme em que há uma tese, uma antítese e a montar um quebra-cabeça que divide claramente o possibilidade de síntese é repassada ao espectador, que tem um poder de universo feminino e o universo masculino, mostrando conhecimento e informação superior a todos os personagens representados que o segundo percebe a dimensão do problema, mas na tela. É um exercício de intelectua- lidade que não resulta numa manipu- prefere escamotear esta percepção com cinismo lação vazia do ponto de vista de quem narra, muito ao contrário. e auto-indulgência” SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 47 Da ingenuidade ao cinismo: o Brasil de Sérgio Bianchi

Filme de Bianchi afirma que domínio e opressão são construídos através de relações de poder que estruturam nosso cotidiano, e que vivemos uma transformação da realidade na qual encontramos sinais de justiça aliados à liberdade, diversidade e dignidade entre pessoas, culturas, religiões

Por Bruna Quadros

ão seria a própria sociedade brasileira que estaria reduzida à sonolência e a fazer do próprio país uma latrina? Ora, o que o filme mostra é visível todos os dias nas grandes e pequenas ci- dades. O escândalo flagra a nossa hipocrisia e é ótimo se isso oportuniza o debate ético a que o filme se propõe”, observa “No professor Dr. Joe Marçal, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), falando sobre a obra Cronicamente inviável, do diretor Sérgio Bianchi. O filme será exibido dia 8 de março, próximo sábado, na sala IG 119, junto ao Institu- to Humanitas Unisinos (IHU), durante a programação do evento “Páscoa 2008 – Um grito contra a violência”. Joe Marçal conduzirá um debate com o público ao lado da Profa. Dra. Gláucia Angélica Campregher, da Unisinos. Joe Marçal é mestre e doutor em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST). Sua tese de doutorado intitula-se Por uma teologia da imagem em movimen- to: uma troca de olhar a partir da obra cinematrográfica de Andrei A. Tarkovski, no horizonte da teologia de Paul Tillich.Também é assessor executivo da Secretaria Permanente do Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Confira, a seguir, a entrevista realizada pela IHU On-Line por e-mail com Marçal.

IHU On-Line - Cronicamente inviável brar que o cinema não mostra reali- ca a vegetação retorcida e “amassa- é um filme que revela as mazelas do dade alguma sem antes construir uma da” do cerrado. É uma história bonita, Brasil. Quais as vantagens e desvan- relação com o mundo, com as coisas e que relaciona a noção de criação com tagens de “desmascarar” um país com a vida. A escolha de um ponto de o despertar de um Deus dorminhoco. tido como “tropical, abençoado por vista e um ponto de escuta determina Contudo, na conversa que segue com Deus e bonito por natureza”? o argumento e o olho da câmera. Creio sua ausência, o comentário é que isso Joe Marçal - Sugiro partirmos de outra que é essa relação que importa per- também explica que, uma vez que as questão: sobre o que, de fato, o cine- ceber e refletir. Ora, é evidente que árvores no cerrado continuam tortas, ma pode revelar. O filme de Bianchi, Bianchi fez uma opção por um olhar Deus só vem ao Brasil para dormir e fa- com facilidade, seria alistado entre os que proporcionasse o choque com uma zer o que se faz quando acorda, isto é, “realistas”, aqueles que mostram as visão generalizada em relação ao Bra- necessidades fisiológicas (a expressão coisas como elas são etc. Penso que sil como um país de maravilhas e só. corrente é “fazer merda”, que embora é isso que a idéia de “desmascarar” Esse choque, porém, é assumido como chula, não há equivalente como uma aponta. É mesmo interessante perce- um desencanto e uma frustração tão ação deliberada ao erro com conseqü- ber como se tornou comum chamar de generalizada quanto essa outra visão ências incontornáveis...). Notem, con- realistas filmes que querem mostrar a aparentemente ingênua. Por exemplo, tudo, que são sentidos contrastantes sociedade por sua violência, pobreza e há uma cena em que a moça que per- - da ingenuidade ao cinismo. Essa pas- outras mazelas. Parece que essas coi- deu a infância em uma carvoaria no in- sagem direta acentua a inviabilidade sas são mais reais que a solidariedade terior do Nordeste e se torna a gerente social que o filme declara crônica no e a justiça, por exemplo. Se o filme e traficante de crianças conta sobre um Brasil. Mas nós podemos nos perguntar nos ajudar a perguntar a razão disso, relato de sua avó a respeito de como também por que o escândalo não se já temos aí uma boa razão para assis- Deus criou o mundo, separando céus dá em relação às nossas próprias ex- ti-lo. Ao mesmo tempo, é preciso lem- e terra para ficar de pé – o que expli- pectativas e atitudes nessa dinâmica

48 SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 social. Não seria a própria sociedade diferenças e manter-se responsável brasileira que estaria reduzida à sono- diante delas. Não há vida sem diferen- lência e a fazer do próprio país uma ças e a sociedade, enquanto projeto latrina? Ora, o que o filme mostra é harmonizador da vida em uma comuni- visível todos os dias nas grandes e pe- “A inviabilidade crônica dade perfeita e “limpa”, criou as pio- quenas cidades. O escândalo flagra a res guerras vividas pela humanidade. A nossa hipocrisia e se isso oportuniza o foi inventada por nós, quem cabe essa responsabilidade pe- debate ético a que o filme se propõe, las diferenças? A toda a sociedade, e ótimo. Mas desde que evitando um seres humanos, quando todos e todas aquelas que pertençam cinismo irmão gêmeo da ingenuidade a esse conjunto de diferenças que fa- que o filme também quer criticar. criamos a bomba zem uma sociedade ser o que ela é.

IHU On-Line - Em que medida Croni- atômica. A possibilidade IHU On-Line - No papel de cidadão bra- camente inviável contribui para aler- sileiro, você acredita que o Brasil seja tar a sociedade brasileira, acerca do de inviabilizar a vida de um país cronicamente inviável? A crise quadro que se divide em dominantes social que assola o país tem solução? e oprimidos? ecossistemas, sociedades Joe Marçal - A inviabilidade crônica Joe Marçal - No mínimo, o filme torna foi inventada por nós, seres humanos, mais complexa a questão, desviando e culturas parece não ser quando criamos a bomba atômica. A de rótulos estanques e salientando que possibilidade de inviabilizar a vida de domínio e opressão são construídas coerente com o princípio ecossistemas, sociedades e culturas através de relações de poder que fa- parece não ser coerente com o prin- zem nosso cotidiano. Não me parece, auto-organizativo desses cípio auto-organizativo desses siste- porém, que o filme tem uma intenção mas. E isso, basicamente, porque, ao clara a esse respeito, de distinguir e sistemas” compartilharmos a vida, nós acredita- elaborar uma leitura da questão. Mais mos uns nos outros, e não posso dei- enfático é o recado de que em toda xar de acreditar em mim e em você. e qualquer condição social cada um e Modelos de relação, de produção, de cada uma quer cuidar mesmo é de ga- conhecimento e todas essas ativida- rantir o seu quinhão. Isso poderia nos des que fazem o dia-a-dia é que mu- fazer refletir em como a noção domi- dam ou mesmo encontram seus limi- nante-oprimido nos ajuda a entender cinismo. E não o digo como escola fi- tes. A própria ótica da cidadania já a sociedade hoje. É interessante lem- losófica, mas como forma de antipatia é um convite para uma outra ordem brar a parte da entrevista da sulista individualista mesmo. A resposta não é de relação e organização social. Vol- que se passa durante o filme, quando simples e deve ser elaborada por nós, tando ao filme, eu diria que ele é um diz que “a liberdade de consumo foi espectadores e espectadoras. Nós con- bom exemplo de um olhar cansado a a única que deu certo”. Ela tem ra- tinuamos vivendo com uma realidade respeito da viabilidade de um deter- zão do ponto de vista ideológico, que cuja responsabilidade é nossa e de minado Brasil, mais identificado com é – para bem ou mal - o mais efetivo ninguém mais. E no cotidiano não tem as expectativas de uma classe média da sociedade, em termos de princípio diretor que decide enquadramentos. que, ao final dos anos 1990, vivia ple- de organização. Isso porque a divisão na frustração. É verdade que a frus- do quadro entre dominantes e oprimi- IHU On-Line - Outro título reserva- tração permanece e até alcançou as dos em nosso contexto é muito sutil do para o filme Cronicamente inviá- camadas populares durante o atual go- e, inclusive, pode mudar conforme a vel foi “Eu não tenho culpa”. Neste verno, o que poderia ser tomado como esfera social em que se está. Ocorre- sentido, a quem cabe a responsa- algo que testifica um mal crônico. Mas me Hannah Arendt em suas reflexões bilidade de acabar com as diferen- talvez haja nisso tudo uma inversão sobre liberdade, quando destaca o pa- ças, sejam elas sociais ou raciais? esperançosa, de que soluções deverão pel ilusionista, ou ideológico, que essa Joe Marçal - Não sabia que o filme ser gestadas pela sociedade numa or- noção exerce em nossa sociedade. A poderia ter ganhado esse título, mas ganização mais ampla e participativa. liberdade de consumo é uma ilusão de acho que faria muito jus à obra, por- A crise em que vivemos é de modelo liberdade muito eficiente nesse senti- que ela revela seu ponto fraco, a cul- não do país, ou da nação. Prefiro en- do porque nos ajuda a conviver com o pa. O “x” da questão é justamente tender, portanto, que vivemos uma absurdo colonialismo em qual vivemos passar de uma perspectiva de culpa transformação, cuja visibilidade te- em nosso tempo, e de modo tão pas- para a responsabilidade. A culpa é mos de buscar nos enquadramentos da sível. Porém, o filme deixa a desejar pouco ou nada construtiva. Mas tam- realidade em que encontramos sinais quanto a uma reflexão mais profunda bém não concordo com responsabili- de justiça aliados à liberdade, diversi- da questão, o que é sintomático, con- dade de acabar com diferenças, e sim dade e dignidade entre pessoas, cultu- siderando a via crítica que opta, a do o contrário. Responsabilizar-se pelas ras, religiões, ecossistemas... a Vida. SÃO LEOPOLDO, 03 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 249 49 IHU Repórter

Marcelo Souza Guimarães

Há 10 anos, Izaque Bauer trocou o interior do Estado pelo município Antes de ser alfabetizado, Marcelo Souza Guimarães, 23 anos, já de- monstrava interesse e intimidade com lápis e papéis. O desenho estava entre suas preferências, e a inspiração vinha de filmes. O mais inte- ressante é que Marcelo desenhava o inusitado. Ao contrário de seus colegas de classe, que esboçavam imagens de super-heróis, ele traçava cenas bíblicas. Uma de suas artes, Jesus sendo crucificado, chegou à final em um concurso de desenhos promovido pela escola. Estudante de Educação Física, na Unisinos, ele começou a trabalhar na universidade há seis meses. Em entrevista à revista IHU On-Line, Marcelo relatou as marcas de sua trajetória até agora. Confira, a seguir, a entrevista.

Origens e família – Eu nasci em Por- momento e me inspirei no filme Karatê Da pré-escola à 1ª série, eu estudei no to Alegre, em 5 de fevereiro de 1984. kid, e também nos filmes do Bruce Lee e Colégio Luterano, no bairro Sarandi. Da Quando eu nasci, meus pais eram bem Van Damme. Eu também gostava muito 2ª à 4ª série, eu estudei no Colégio Major novos. Minha mãe, era estudante, tinha de brincar com iô-iô. Quando eu estava Miguel Pereira, no Sarandi também. E da 18 anos e meu pai, militar, 22 anos. Eles com 10 anos, teve a febre de jogar peão. 5ª até o término do 2º Grau técnico em mantêm o casamento até hoje, apesar Uma das coisas que mais me marcou foi Administração, estudei no Colégio Lute- de enfrentar muitas dificuldades, por aprender a andar de bicicleta. Desde os rano Concórdia, em Canoas. terem a responsabilidade de assumir quatro anos, eu já andava em bicicleta um filho, ainda muito jovens. Sou filho com adultos. Para mim, aprender a an- Mudança - Em 1995, ocorreu uma único, mas sempre tive muitos primos. dar sozinho era uma questão de honra. E grande mudança na minha vida. Saímos Esta foi uma maneira que encontrei para eu aprendi. Com cinco anos, ganhei mi- de Porto Alegre e fomos morar em Ca- compensar a falta de irmãos. Honesti- nha primeira bicicleta. noas, porque como o meu pai era mili- dade, simplicidade e sempre procurar tar, tivemos a oportunidade de ir morar ajudar as pessoas foram os valores que Estudos – Antes de ser alfabetizado, na Vila Militar do município, onde havia os meus pais me passaram, além de ter eu já me interessava por desenhos e le- mais segurança. a perseverança de crescer e ser alguém tras. Sempre quis aprender a escrever o na vida. meu nome. E desenhava igrejas, padres Adolescência - Com 12 anos, dei um e Jesus, que, para mim, era tudo. Este pulo da infância para a adolescência. Eu Infância – Eu morava no bairro Saran- fascínio veio dos filmes que eu assistia. gostava de ir à Igreja com a minha mãe. di, em Porto Alegre, em frente à Esco- Certa vez, aconteceu um campeonato Um dia, me interessei em participar do la Ciem. E eu acabava brincando com de desenho na escola, e o meu desenho grupo de jovens, porque eu gostava mui- as crianças do colégio, também. Nunca chegou a ir para as finais, porque eu de- to de vê-los cantando e tocando violão. gostei de jogar futebol, mas gostava de senhei Jesus Cristo sendo crucificado. Quando cheguei ao grupo, tive uma re- brincar de pega-pega, de pular corda, Isso foi um diferencial muito grande, cepção muito boa e fiz muitas amizades. de esconde-esconde. Comecei a gostar porque as outras crianças só desenha- Ia à Igreja, tocava, fazia retiros e excur- muito de lutas, porque, na época, Jas- vam super-heróis. Eu me saía bem nos sões com o grupo de jovens. Dos 13 aos pion e Jiraya eram os super-heróis do estudos, só não gostava de matemática. 15 anos, eu fiquei no grupo de base da

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