Alciane Baccin Alda Cristina Silva da Costa Andressa Bandeira Santana

Caio Macedo Rodrigues Aniceto Célia Maria Ladeira Mota Cida Golin

Dayane do Carmo Barretos Demétrio de Azeredo Soster Diego Gouveia

Diogo Azoubel Duílio Fabbri Júnior Edgard Patrício Fabiana Moraes

Fabiana Piccinin Fabiano Ormaneze Felipe Viero Kolinski Machado

Heitor Costa Lima da Rocha Jaqueline Frantz de Lara Gomes

Karolina de Almeida Calado Lorena Tárcia Geane Alzamora Luana Ciecelski

Luísa Rizzatti Marta Maia Maurício Guilherme Silva Jr. Mayara de Araújo

Mirian Redin de Quadros Monica Martinez Nathan Nguangu Kabuenge

Renira Gambarato Rodrigo Bartz Sergio E. S. Ferreira Junior

Thais Luciana Corrêa Braga Thiago Haas Carlotto Valéria de Castro Fonseca

Vânia Torres Costa Victor Lemes Cruzeiro Marta Maia e Monica Martinez Organizadoras

NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: perspectivas metodológicas

editora

Santa Cruz do Sul 2018 Editora Catarse Ltda Rua Oswaldo Aranha, 444 Bairro Santo Inácio Santa Cruz do Sul/RS CEP 96820-150 www.editoracatarse.com.br facebook.com/editoracatarse

C Copyright dos autores N234 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas metodológicas [recurso eletrônico] / Marta R. Maia e Monica Martinez, organizadoras – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2018. 340 p. : 21x29,7 cm

Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web.

1. Narrativa (Retórica) - Teoria. 2. Jornalismo. 3. Comunicação de massa. I. Maia, Marta R. II. Martinez, Monica. III. Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas.

ISBN: 978-85-69563-27-3 CDD: 808

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Projeto gráfico e diagramação: Mirian Flesch de Oliveira Revisão: Diana Azeredo Edição: Demétrio de Azeredo Soster Sumário 6 APRESENTAÇÃO

PREFÁCIO 8

I - Narrativas, memória e temporalidades 12 O relevo da cidade construído nos gestos memorativos 13 do jornalismo de suplementos: o caso de Cultura de Zero Hora Cida Golin e Luísa Rizzatti

Análise das narrativas sobre a ditadura no jornal Estado de Minas: memória e acontecimento 28 Marta R. Maia e Caio M. Rodrigues Aniceto

Fios narrativos da notícia: uma perspectiva metodológica Valéria de Castro Fonseca e Célia Maria Ladeira Mota 42

Do passado ao presente pelo fio da memória: por uma abordagem semântico-discursiva de perfis 54 Fabiano Ormaneze

Mídia, história e memória na narrativa comemorativa 69 da Rede Globo: os espaços “ocupados” pelos jornalistas Duílio Fabbri Júnior

Memória, reconstituição narrativa e fontes/testemunhas 83 em Notícia de um Sequestro Fabiana Piccinin e Andressa Bandeira Santana

II – Narrativas, subjetividades e rupturas 98 Para além do robô, a reportagem: pavimentando uma metodologia do jornalismo de subjetividade 99 Fabiana Moraes e Diego Gouveia

Percursos metodológicos para análise de atos de subjetivação em narrativas jornalísticas 115 Mayara de Araújo e Edgard Patrício

Um olho na escrita e outro no escritor: desafios metodológicos na análise de narrativas jornalísticas autorais 132 Dayane do Carmo Barretos

As vozes que narram em O olho da rua, de Eliane Brum 147 Jaqueline Frantz de Lara Gomes Últimas palavras? Formas de aproximação do inefável através das narrativas biográficas de suicidas 160 Victor Lemes Cruzeiro

III – Narrativas e contextualizações 177

Metodologia para identificação de processos transcriadores 178 em narrativas jornalísticas Maurício Guilherme Silva Jr.

A juventude ao alcance de suas mãos: uma análise dos discursos sobre a velhice em cinquenta anos de Veja (1968 – 2017) 194 Felipe Viero Kolinski Machado

A Hermenêutica de Profundidade e os apontamentos teórico-metodológicos de análise das narrativas jornalísticas 211 Alda Cristina Silva da Costa, Vânia Torres Costa, Nathan Nguangu Kabuenge, Sergio E. S. Ferreira Junior e Thais Luciana Corrêa Braga

Jornalista e fonte na narrativa jornalística: hierarquia, autonomia e problematizações em conceitos teórico-metodológicos 225 Karolina de Almeida Calado e Heitor Costa Lima da Rocha

IV – Narrativas convergentes 239 Cobertura jornalística transmídia de megaeventos esportivos: proposta metodológica aplicada às Olimpíadas de Sochi (2014) 240 e do (2016) Lorena Tárcia, Geane Alzamora e Renira Gambarato

O jornalismo e as zonas intermediárias de circulação: uma abordagem metodológica 254 Demétrio de Azeredo Soster, Luana Ciecelski, Rodrigo Bartz e Thiago Haas Carlotto

Proposta metodológica para análise de reportagens hipermídia 277 Alciane Baccin

Metodologias de pesquisa em jornalismo: trabalhos apresentados nos congressos da SBPJor (2004-2017) 296 Monica Martinez e Diogo Azoubel

Análise de narrativas jornalísticas radiofônicas: reflexões sobre 317 os desafios metodológicos da pesquisa em rádio Mirian Redin de Quadros

Quem são os autores 332 apresentação

O crescente interesse pelo estudo das narrativas jornalísticas revela, de maneira explícita, a diversidade de angulações possíveis das produções em curso. Explicita ainda a relevância das narrativas como um dos lugares privilegiados da produção de sentidos na contemporaneidade. Acompanhamos, aqui, as palavras de Paul Ricoeur: “Contamos histórias porque, afinal, as vidas humanas precisam e merecem ser contadas” (2010, vol. 1, p. 129). Como pesquisadores da área, nos deparamos com um inquietante problema: a diversidade das possibilidades de escolha de métodos e técnicas mais adequados para o estudo desses relatos. Assim, como aponta José Luiz Braga (2011, p. 3), as pesquisas no Campo da Comunicação indicam uma “extraordinária diversidade de temas, objetos, questões, ângulos, conceitos, paradigmas e teorias que hoje são acionados, conforme as escolas, as áreas de interesse e as linhas de pesquisa”. Desta forma, sabemos que relacionar objetos, sujeitos e fenômenos não é uma tarefa fácil, nem pode ser feita de forma superficial. Tanto que, no primeiro livro publicado em 2017 pela nossa Rede de Pesquisas “Narrativas Midiáticas Contemporâneas”, a Renami, (disponível em http://editoracatarse. com.br/site/2017/10/10/narrativas-midiaticas-contemporaneas-perspectivas- epistemologicas/), trabalhamos as questões epistemológicas desse campo. Agora, neste segundo volume, abordamos os aspectos metodológicos. Entendemos que o compartilhamento de experiências de procedimentos diferentes adotados nas pesquisas deve ser um mote em nosso ambiente acadêmico. Por isso nossa preocupação em reunir, em um único volume, trabalhos que poderão servir de inspiração para futuras investigações, em especial, no campo jornalístico. Procuramos, na medida do possível, costurar apoios e aproximar sentidos, sempre lembrando que as pesquisas só prosperam quando compartilhadas e quando são passíveis de tensionamentos entre os pares. Isso posto, temos prazer em compartilhar este livro, “Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas metodológicas”, idealizado e organizado pela nossa Rede. É com essa perspectiva, compreendendo que a diversidade é uma força e não uma fraqueza de nosso campo, que anunciamos os capítulos que compõem essa publicação, que conta com 37 autores de instituições públicas, comunitárias e particulares de quase todas as regiões do Brasil.

6 No item I, “Narrativas, memória e temporalidades”, são apresentados elementos polarizados entre o que Reinhart Koselleck (2006) define como as categorias de “espaço de experiência” e as de “horizonte de expectativas”. No item II, “Narrativas, subjetividades e rupturas”, aparecem questões que problematizam o chamado jornalismo de referência e amplia os caminhos possíveis para o processo de subjetivação nas narrativas atuais. Já o III, denominado “Narrativas e contextualizações”, além de propor novas formas de análise das narrativas, contextualizam as produções do campo. O item IV, “Narrativas convergentes”, entrega para o leitor e para a leitora a potência das novas narrativas em voga, além de mapear os movimentos das pesquisas específicas sobre metodologias. Advertimos aos leitores e às leitoras que desejam simplesmente textos acomodados que desistam da leitura. Garantimos, por outro lado, aos atentos pesquisadores e pesquisadoras que anseiam por questões novas e experimentações que não se arrependerão do acompanhamento das páginas a seguir. Mais do que ler os capítulos e devolver a obra na estante da casa ou na pasta do computador, no entanto, vivamente recomendamos que empreguem as que julgarem adequadas para tensionar suas próprias pesquisas dentro do contexto da revisão de literatura crítica que é um dos pilares do fazer científico. O que faz nosso campo avançar não é o trabalho solitário do pesquisador de narrativas, mas sim a aventura da descoberta coletiva, onde cada um contribui com seu estudo. Para isso, temos certeza, trazemos aqui trabalhos autorais consistentes e originais, lembrando assim o que nos diz o poeta Manoel de Barros: “Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou”.

As organizadoras, Marta Maia e Monica Martinez (em uma tarde ensolarada de domingo)

Referências

BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. BRAGA, José Luiz. Dispositivos interacionais. In Anais do XX Encontro da Compós, Porto Alegre, junho de 2011. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, vol. 1, 2010.

7 prefácio

Narrar no mundo: um desafio desses nossos tempos

Fernando Resende (UFF)

Narrar no mundo, nos tempos em que hoje vivemos, é um desafio que a mim parece central. Antes de tudo, porque ele nos joga no campo de uma luta contra-hegemônica, já que vai de encontro aos modos legitimados de ver e compreender o mundo. O pensamento moderno, ou o que nele hegemonicamente se constituiu como legítimo, nos ensinou que o fundamento – e o desafio – estaria em narrar o mundo. Foi com este princípio, aparentemente básico e central, que o homem, através da ciência, das religiões, das disciplinas e de muitos outros campos produtores de saberes, se lançou ao projeto de iluminar e explicar as (des)ordens do mundo. Como bem nos lembra D’Amaral (2004), narrar o mundo é a premissa que rege a lógica moderna, esta na qual se ampara o pensamento dito “ocidental”. Diferentemente dos princípios que sustentam esta lógica, que assenta o lugar de quem narra aos dispositivos de legitimação que lhe dão autoridade, instituindo modos que sejam adequados a contextos pré-supostos e/ou imaginados, as nuances guardadas na premissa contrária ao hegemônico inevitavelmente nos impelem a perguntar quem então narra, que mundo e de que modo. Narrar no mundo, por este viés, é uma premissa que nos abre outros muitos desafios. Vejamos, portanto, os desdobramentos que perpassam essas três perguntas. Entender a ideia de narrar no mundo como uma premissa desafiadora implica, antes de tudo, reconhecer o quanto ela coloca em cena problemas que antes pareciam externos às narrativas, em especial às que hoje temos chamado de “midiáticas”. Questões afeitas aos processos de alteridade e aos jogos de poder – que envolvem, por exemplo, gênero, raça e lugares de fala – atrelados a problemáticas relacionadas à memória, ao tempo, ao espaço, à história e às geografias, somente para citar algumas, passam a ser discutidas como próprias das condições narrativas e do seu lugar enquanto “escrita”. É nesse sentido que a pergunta acerca dos modos de narrar ganha outros contornos, reconfigurando- se a partir de outros problemas.

8 Sob essa perspectiva, as mídias, de modo geral, e o jornalismo, em particular – já que são também e cada vez mais campos produtores de saberes sobre o mundo – se veem desafiados a ressignificar os seus modos de agir, o que podemos também chamar de “gestos narrativos”. É exatamente por ser possível produzir narrativas outras, vindas de lugares distintos que invariavelmente se misturam, que se torna evidente o fato de que narrar é estar no mundo. Ricoeur (2010) tece este modo de compreender a narrativa nas entrelinhas do seu pensamento, na medida em que, naquilo que chama de “círculo hermenêutico”, não descola a narrativa do que ele chama de “mundo do agir”. São as lógicas de produção e os jogos de alteridade e poder que se encontram neste que é também chamado de “mundo do autor”. São essas lógicas e esses jogos que, invariavelmente, se apresentam no gesto de narrar. E este livro nos mostra bem este percurso, quando nos coloca frente a problemas tão pertinentes e ao mesmo tempo tão fudantes para as mídias e suas narrativas. As memórias, as temporalidades, os contextos, as convergências, as rupturas e os processos de subjetivação inevitavelmente entrelaçam fios (que são sim narrativos) não mais passíveis de serem mantidos distantes dos olhos dos sujeitos que os tecem e/ou os leem. Assim é que a indagação acerca dos modos de narrar se torna crucial. Pois, também como há muito já nos dizia Barthes (2001), inumeráveis são as narrativas do mundo. Da mesma forma, a entrada da narrativa como um problema no campo de estudos das mídias e do jornalismo pode sempre ser entendida também à luz dos avanços tecnológicos produzidos pelas sociedades contemporâneas, particularmente essas que temos construído desde meados do século passado. Em outras palavras, a variedade e a disseminação dos recursos tecnológicos, aos quais, ainda que de forma assimétrica, passamos a ter acesso, fez com que nós, pesquisadores deste campo, nos voltássemos às suas produções com olhos atentos às pulverizações e às polarizações próprias de um cenário midiático regido pelas convergências e pelas ubiquidades. Nesse sentido, o desafio que este cenário impõe é estritamente ligado à ideia de que narrar no mundo implica o reconhecimento da demanda por fazer uso de outros instrumentos de análise e métodos que nos tornem aptos a criticar e interpretar os gestos narrativos. Se muitos podem falar através de vários lugares que a nós se apresentam, muitas vezes, de forma concomitante, quem fala se torna uma pergunta crucial, pois é este o percurso que também nos fará indagar acerca das legitimidades e dos poderes, dos artifícios de exclusão e das estratégias de produção de autoritarismos. Se tomarmos o jornalismo como exemplo, é no bojo deste cenário que passamos a ter de pensar e discutir o lugar do jornalista, que antes se via confortável no gesto simplório de recuar, ou de fingir estar ausente, no ato próprio de narrar. Neste caso, o que vem à tona, como retórica e estratégia, é a imparcialidade e a objetividade. E é com essas estratégias discursivas que

9 nos deparamos, por exemplo, quando aprendemos que quem narra pode até criar modos, narrativos, para fingir que não está no mundo que narra, mas à luz do cenário midiático contemporâneo, agora sabemos todos, sua presença é incontestável. E mais ainda, sua presença inventada como ausência se traveste, muitas vezes e muito particularmente no jornalismo, de autoritarismos e, sim, parcialidades. Um exemplo de como temos enfrentado parte do desafio que este dilema nos impõe é a emergência da problemática do testemunho – também presente neste livro –, na complexidade que ela hoje nos chega enquanto questão no campo de estudos do jornalismo. No reconhecimento da premissa, a meu ver emancipadora, de que narrar no mundo é o nosso atual desafio, as perguntas sobre os modos de narrar e as indagações acerca de quem narra seriam fortuitas caso não as estendêssemos à ideia própria de Ricoeur de que narramos tanto o mundo que lemos quanto o que vivemos. É neste círculo hermenêutico complexo, que nunca é tautológico, como nos diz o filósofo, que passamos a ter que buscar saber que mundo é este narrado pelas mídias e pelo jornalismo. A questão assim se coloca da seguinte maneira: regidas pela ideia sustentada pela lógica moderna legitimada, as narrativas do mundo, particularmente as devedoras de uma referência à realidade dos fatos – a histórica e a jornalística, por exemplo –, resguardam- se no princípio da transparência. Nesta lógica, os documentos, ou os próprios acontecimentos do passado ou do presente, seriam hipoteticamente revelados na própria narrativa. Em outras palavras, o mundo do passado ou do presente nos seria dado da forma mais limpa e clara possível. O cenário midiático contemporâneo joga por terra este ingênuo pressuposto. O mundo que nos chega, através das narrativas, é o mundo inventado – e esta palavra aqui não tem nenhuma relação com a ideia de “mentira” – por quem narra. Assim, perguntar que mundo é este que acessamos, na lógica comprometida com o gesto de narrar no mundo, é saber, por princípio, que as narrativas inventam geografias (RESENDE, 2014); um processo através do qual territórios são produzidos, criados e legitimados. Sejam territórios-corpo, territórios-cidade, territórios-cor, territórios-religião, ou os muitos outros que acessamos nas narrativas que lemos, o que ali se encena e legitima, muitas vezes, é uma geografia do poder. Nesse sentido, é contra os binarismos, as estereotipias e os autoritarismos inscritos nessas narrativas que também lutamos quando nos inquietamos e duvidamos acerca dos mundos que nos chegam através dos jornais e dos tantos outros aparatos midiáticos. Que a narrativa esteja agora presente no campo de estudos das mídias e do jornalismo é, portanto, um fato que nos implica a todos, na medida em que somos todos partes fundamentais no processo de construção do mundo que vivemos. Este livro nos chama atenção para os relevos da cidade que a narrativa constrói, para a problemática das subjetivações no escopo dos enquadramentos

10 da narrativa jornalística, ativa a ideia da memória como método de trabalho e pesquisa, fazendo-nos particularmente atentos à escrita e aos que a produzem. É isso que a narrativa requer de nós, olhos e ouvidos atentos às vozes e aos sentidos que nos falam também do inefável que habita o mundo que vivemos. Desta forma, ao cumprir a função de nos chamar a todos para estarmos ativos e atentos ao processo de consolidação dos estudos da narrativa no campo das mídias, este livro também nos diz que o tempo que hoje experimentamos não é somente o tempo das convergências. Ele é, antes de tudo – e é aí que está a sua força –, um enredamento de muitas espacialidades e temporalidades dissonantes e em constante estado de confronto. Enfrentar a narrativa como um problema é saber desta dimensão complexa, pois é também nela que as lutas são travadas. Por esta razão, do meu ponto de vista, os estudos da narrativa – do qual este livro agora é cúmplice –, quando afetados pelos desafios que nos são postos pelo ato de narrar no mundo, evocam um gesto político e estético de fundamental importância para o avanço das nossas pesquisas nos campos da comunicação e do jornalismo.

Referências

BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. D’AMARAL, Marcio Tavares. Comunicação e diferença – uma filosofia de guerra para uso dos homens comuns. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. RESENDE, Fernando. The Global South: conflicting narratives and the invention of geographies. Revista IBRAAZ – Contemporary Visual Culture in North Africa and the Middle East, London, 2014. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (Tomos 1, 2 e 3). São Paulo: Martins Fontes, 2010.

11 Narrativas, memória I e temporalidades

12 O relevo da cidade construído nos gestos memorativos do jornalismo de suplementos: O caso de Cultura de Zero Hora1

Cida Golin Luísa Rizzatti

O jornalismo constrói escalas sobre a cidade, projeta determinados relevos sobre ela, espaços de onde se observa e se é observado, exercitando seu poder simbólico de visibilidade. Instituição cultural que se desenvolveu ancorada na experiência urbana, o jornalismo constrói a realidade social ao mediar temporalidades e espacialidades. As mediações do espaço implicam também em mediações simbólicas de contração temporal. Se tanto o tempo como as espacialidades são produções sociais e relações de poder, encontramos no jornalismo uma narrativa particular de produção destas experiências. Situados em uma cultura da memória que preenche uma função importante na experiência temporal contemporânea, os meios enquadram a memória a partir de sua estrutura e forma (HUYSSEN, 2000). O campo jornalístico, por sua vez, constitui-se em um dos tecelões da memória, produz paisagens por onde ela toma forma, em que é inscrita, sobrescrita, reescrita ininterruptamente (ZELIZER, 2014; LAGE, 2013). Este capítulo concentra-se em questionar a construção jornalística da cidade a partir dos gestos memorativos de um suplemento cultural, o caderno Cultura, de Zero Hora (RS), um dos suplementos culturais mais longevos do Brasil que, somente na sua versão semanal impressa, circulou durante 22 anos ininterruptos (1992 – 2014), apostando especialmente no mercado editorial e do livro. Zero Hora é um dos principais diários do sul do Brasil e o quinto do país em circulação conforme dados auditados do Instituto Verificador de Comunicação (IVC).2 Trata-se de um recorte da pesquisa em andamento Jornalismo, memória e cidade: estudo do suplemento Cultura de Zero Hora (2011-2014), com financiamento do CNPq. Buscaremos dar ênfase aos procedimentos metodológicos de construção da pesquisa, detendo-nos especialmente em refletir sobre a leitura das espacialidades citadinas criadas a partir das narrativas jornalísticas

1 Este texto é uma ampliação de papers apresentados nos congressos Ibercom (Golin, 2018) e Orbicom (Costa, 2018), expandindo a discussão e a reflexão sobre os procedimentos metodológicos acionados na leitura de nosso objeto, o caderno Cultura de Zero Hora. 2 Em dezembro de 2017, totalizava a média de 181.129 exemplares somando as edições impressas e digitais. Ver: << https://www.poder360.com.br/midia/tiragem-impressa-dos-maiores-jornais-perde- 520-mil-exemplares-em-3-anos/>> Acesso em: 07 jun. 2018.

13 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS encontradas no universo dos suplementos culturais, ou seja, no encontro entre uma determinada experiência de tempo-espaço mediada pela narrativa. Além da ênfase na discussão de base metodológica, vamos relatar nossas considerações acerca dos personagens visibilizados para serem rememorados pelo suplemento no acionamento das efemérides e no anúncio da morte e, por fim, sistematizar espacialidades projetadas sobre a cidade a partir destes gestos editoriais e biográficos. Partimos da premissa de que, ao iluminar a vida e a morte de sujeitos notáveis, o jornalismo mobiliza um esforço de lembrança, projeta um relevo da cidade, demarca lugares de prestígio e de memória e reverbera rituais de distinção. Tanto no anúncio da morte como na datação da efeméride, trata-se de sintetizar marcações temporais no esforço ilusório das biografias singulares, projetando a notabilidade de suas ações na história cultural de um lugar (COSTA, 2018). Antes de problematizar este recorte, situaremos nosso trabalho de forma mais ampla, recorrendo às leituras anteriores do mesmo objeto.

Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa, de viés qualitativo e exploratório, dialoga com várias investigações desenvolvidas no Núcleo de Estudos em Jornalismo e Publicações Culturais do Laboratório de Edição, Cultura e Design (LEAD | CNPQ).3 Busca investir na relação entre texto e contexto e, especialmente, na consciência de que o objeto é conformado pelo tensionamento da moldura teórica construída pelo pesquisador (BRAGA, 2011). A partir dessa tripla condição – especificidade dos objetos, contexto e perspectiva teórica – é que enfrentamos a complexidade de estabelecer índices para nossos gestos interpretativos. Devido à extensão do corpus (coleção de jornais), buscamos articular determinados procedimentos organizatórios de análise de conteúdo (BARDIN, 2011; GOLIN, CARDOSO, SIRENA, 2015) com o aporte da análise narrativa (RICOEUR, 1994; CULLER, 1999; MOTTA, 2013),4 elemento decisivo para entrelaçar os gestos memorativos do jornalismo na construção do espaço da cidade. Analisar os modos de onde a cidade é falada, a partir do jornalismo, é também tomá-la como personagem, espaço de experiência, cenário de conflitos, como narrativas de cartão postal ou do seu avesso (PERES, 2012). Enfatizamos, aqui, uma pergunta de Resende (2012, p. 193) que nos parece relevante quando se trata do agenciamento da lembrança por meio de uma publicação seletiva e perita: “[...] em que medida essas narrativas nos ajudam a compreender os modos de instalação e reconfiguração de poder no espaço da cidade?”. Em etapas anteriores, sistematizamos o corpus por meio da organização

3 O NEJPC do LEAD tem se concentrado, há mais de dez anos, em cercar as relações entre o jornalismo e o sistema de cultura, especialmente em estudos de viés históricos. 4 Autores que temos como referências para a condução dos estudos, embora a bibliografia acionada na pesquisa como um todo seja muito mais ampla.

14 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS em categorias classificatórias prévias. Sabemos pela literatura especializada (BAUER, 2002; KRIPPENDORFF, 1997) que o exercício da análise de conteúdo presta-se para o manuseio de amostras extensas e longitudinais, buscando formular inferências que deem conta de aspectos mais gerais dos objetos e de suas lógicas. Conforme relatado em Golin (2016), o cruzamento dos dados quantitativos permitiu uma leitura das principais tendências da política editorial da publicação entre 2006 e 2009,5 apontando para um mapa do sistema de cultura ao organizar protagonistas, temas e temporalidades no espaço da cidade, especialmente de Porto Alegre, norte editorial da publicação. A capital emergiu como catalisadora de um fluxo incessante de mercadorias (agentes, eventos, produtos), uma espécie de nó entre circuitos de produção artística e cultural, lugar de passagem de notórios, uma cidade estrategicamente situada numa fronteira geográfica e vista como vitrine ou palco. Por outro lado, ao reduzir o corpus pela metade (104 edições) para refinar os estudos qualitativos, encontramos os gestos recorrentes do jornalismo cultural que reporta a cultura por meio das efemérides e das homenagens, realinhando legados, reinserindo pautas e personagens e produtos na economia de oferta dos bens culturais. Este marcador temporal de leitura projetou uma cidade tecida pelo acionamento seletivo da lembrança (GOLIN; CAVALCANTI; ROCHA, 2015). Entre a sobreposição da cidade vitrine e da cidade lembrança, nosso interesse recaiu nesta última, especialmente nos gestos memorativos do suplemento cultural, foco desta segunda fase em andamento da pesquisa que abrange a leitura da fase final de circulação do suplemento, entre janeiro de 2011 e maio de 2014, reunindo 173 edições. Em um primeiro momento, procuramos catalogar os textos que acionavam a construção da memória sobre a cidade em torno de valores jornalísticos de seleção (morte, notoriedade, notabilidade, entre outros) e os regimes de temporalidade (eventos, eventos-efemérides). Buscou-se, também, sistematizar quais temas, espaços e personagens foram destinados a serem lembrados. A partir dessa primeira análise e organização panorâmica do corpus, delimitamos amostras reduzidas visando a um tensionamento mais produtivo, no contexto da perspectiva narrativa, a fim de refinar a construção de especialidades projetadas pela publicação. É importante demarcar que o suplemento semanal impresso, materialidade na qual estão inscritas nossas narrativas, possui uma periodicidade alargada (semana), abriga temporalidades heterogêneas e carrega consigo parte do conceito etimológico da revista, ou seja, o ato da re-vista, de examinar, de inspecionar mais detidamente, pressupondo o exercício da crítica e do ensaio e, portanto, da reflexividade em relação ao passado e ao porvir, inscrito no agendamento do presente.

5 Os dados obtidos na panorâmica editorial do caderno Cultura de Zero Hora entre 2006 e 2009, a partir do cadastro de 208 edições, totalizaram 1.413 textos lidos e indexados em um banco de dados especialmente criado para a pesquisa. Corroboram resultados alcançados por Keller (2013) na leitura de 422 textos publicados nas 52 edições de 2010. Somadas as duas pesquisas tivemos uma leitura de cinco anos da publicação (2006 – 2010).

15 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Concebido no âmbito das lógicas editoriais do impresso, o suplemento constitui-se como uma espécie de arquivo em relação às demais narrativas efêmeras produzidas na redação jornalística, propondo um vínculo de tempo longo com seu leitor. Constitui um mosaico de fragmentos heterogêneos (materiais jornalísticos, textos analíticos e excertos ficcionais, eventualmente) ancorados pela data da edição. Expressa com clareza uma política editorial de leitura da cultura ao convocar especialistas e intelectuais a participar do campo jornalístico. Nesta montagem, exerce seu poder de demarcar espaços de conhecimento e de circulação de saberes (BAREI, 1999).

Pressupostos da leitura interpretativa

Propomos pontuar agora determinados pressupostos que constituem chaves para nossa leitura interpretativa. Sob o parâmetro amplo de texto – tecido que envolve a cidade e o jornalismo, assim como a lógica do fragmento, da montagem e da superposição que caracteriza a estrutura narrativa de ambos –, partimos da perspectiva da narrativa como lugar de mediação da memória, da cidade e do jornalismo (RICOEUR, 1994). Enfatizamos aqui o círculo hermenêutico da tríplice mimese apresentada por Paul Ricoeur ao pensar na arquitetura temporal que atravessa esses três âmbitos. Ao articular determinados fragmentos de um mundo de referência (prefigurado), cada intriga configura uma mediação deste mundo prefigurado, fazendo a intersecção com o mundo do leitor, aquele que refigura cada narrativa em um processo infinito de interpretação. Não apenas cada texto-fragmento é atravessado por essa estrutura tríplice, como a própria publicação (suplemento cultural) concretiza em si a tríade processual. As narrativas sobre a cidade, quaisquer que sejam elas, também são atravessadas por essa arquitetura. Nesse sentido, enfrentando a complexidade de um objeto como a cidade, buscamos pensá-la como construto simbólico, um lugar socialmente criado em um contexto histórico-espacial; texto feito de camadas e superposições, cenário de disputa de relatos e perspectivas (CERTEAU, 2012; MONGIN, 2009; LIMONAD; RANDOLPH, 2002). Seguimos Pesavento (2004) ao aproximar a cidade, enquanto unidade de espaço e tempo, do palimpsesto, de uma escrita que se oculta sobre a outra, deixando traços e vestígios. Ao definir a cidade como laboratório comunicativo, Ferrara (2015) aponta para duas categorias de leitura, a mediação e a interação. Na categoria da mediação, estaria a imagem midiativa, a cidade apresentada, expressão simbólica de um poder planejado, feita de lugares “iluminados” para a cidade fazer-se ver dentro do panorama da cultura. Na categoria interação, estaria a cidade vivida, que se manifesta nas relações sociais e no espaço vivido, que constitui um processo de pertencimento a um lugar, a um “pedaço” da cidade, que transforma o habitante em parte da cidade e que com ela se confunde. Essas categorias não são separadas facilmente. Elas se superpõem, como de

16 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS resto tudo na experiência citadina. Inseridos, portanto, na categoria da mediação pela escolha de nosso objeto, encontramos aqui a dimensão artífice do jornalismo ao construir espacialidades. Não esqueçamos, contudo, da polissemia do conceito de espaço, cuja definição varia conforme o campo de saberes e que oferece perspectivas instigantes para pensar a narrativa jornalística. Neste momento e em linhas muito sintéticas, exploramos a perspectiva do espaço como relação de poder, como movimento e processo que presume práticas sociais, representações concebidas e vividas, demarcando que toda a representação é também uma espécie de espacialização,6 ou seja, ela representa e produz espaço ao mesmo tempo. Utilizaremos o termo espacialidade para observar o relevo momentâneo de relações do conjunto de narrativas, espacialidades da cidade que se projetam a partir do cruzamento das biografias individuais produzidas pelo suplemento cultural. Entre as 173 edições do Cultura, elencamos uma amostra específica com 32 personagens visibilizados que foram rememorados pelo anúncio da morte e da efeméride, totalizando 55 textos distribuídos nas edições de 2011 a 2014.7 Por mais que apresentem diferenças estilísticas próprias de distintos agentes colaboradores que participam do suplemento, consideramos todos os textos como jornalísticos, já que foram publicados pelo jornal e atendem às expectativas e aos enquadramentos da produção jornalística, ou seja, extensão breve, gancho jornalístico e clareza que visa a atingir um público supostamente mais amplo. Retomamos Certeau (2012) quando pensamos a leitura de nosso conjunto de narrativas como uma espécie de caminhada deambulatória pela cidade- texto, dilatando e ampliando elementos e detalhes presentes no percurso. 6 Estamos nos apropriando livremente de ideias dos filósofos Henri Lefebvre (2013), Pierre Bourdieu (2007) e dos geógrafos David Harvey (2003), Milton Santos (1996; 1997) e Edward Soja (1993). 7 A amostra é composta pelos seguintes acontecimentos e edições: 150 anos do nascimento do cientista Padre Landell de Moura (15.01.2011); Morte da cantora Zilah Machado (15.01.2011); Morte do jornalista Sérgio Jockymann (19.01.2011); 15 anos da morte do escritor Caio Fernando Abreu (26.02.2011); Centenário do nascimento da bailarina e professora Lya Bastian Meyer (12.03.2011); 90 anos do nascimento do escritor e jornalista Josué Guimarães (26.03.2011); Morte do escritor argentino Ernesto Sabato (07.05.2011); Aniversário de 75 anos do dramaturgo e professor de teatro Ivo Bender (21.05.2011); 90 anos do nascimento do professor, gramático e linguista Celso Pedro Luft (28.05.2011); Aniversário de 80 anos do músico João Gilberto (04.06.2011); 15 anos da morte do jornalista e escritor Luiz Sérgio Metz (09.07.2011); Morte do professor de francês, radicado em Porto Alegre, Alexandre Aimé Ernest Roche (24.12.2011); Morte do professor e historiador Telmo Lauro Müller (14.01.2012); Morte do ator e diretor teatral Fernando Peixoto (25.02.2012); Morte do geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber (31.03.2012); Morte de Millôr Fernandes (31.03.2012); Centenário de nascimento do bailarino e professor de balé clássico João Luiz Rolla (07.07.2012); Centenário do nascimento do jornalista e historiador Carlos Reverbel (07.07.2012); Morte do artista plástico Carlos Alberto Petrucci (14.07.2012); 120 anos do nascimento da fotógrafa e artista plástica Margarethe Schoenwald Schneider (08.09.2012); Morte do livreiro e escritor Arnaldo Campos (29.09.2012); Centenário de nascimento do cronista Rubem Braga (12.01.2013); Morte do professor de cinema Aníbal Damasceno Ferreira (20.04.2013); Morte do cartunista Renato Canini (02.11.2013); 130 anos da morte do dramaturgo Qorpo Santo (16.11.2013); Centenário de nascimento do sambista Wilson Baptista (28.12.2013); Morte do músico Giga Giba (08.02.2014); Morte do cineasta e documentarista Eduardo Coutinho (08.02.2014); Morte do artista uruguaio Carlos Páez Vilaró (01.03.2014); Morte de Maria Coussirat Camargo (15.03.2014); Centenário do escultor Vasco Prado (19.04.2014); Morte do escritor colombiano Gabriel García Márquez (19.04.2014).

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Nessa caminhada pelo conjunto de 55 textos, procuramos encontrar repetições e regularidades com foco especialmente nas projeções de espacialidades entendidas como relações. Palmilhamos espacialidades que se repetem, se sincronizam, e que apontam para lugares biográficos, físicos e simbólicos. Esta leitura interpretativa foi conduzida tanto pelas pistas encontradas no próprio objeto como na armadura teórica que ilumina a pesquisa. Neste sentido, nos é bastante cara a dimensão conceitual do lugar8 como um construto simbólico, tecido pelas relações sociais, pelos sentidos impressos pelo uso e pelo vivido, aquilo que se vincula ao conhecido e reconhecido e que diz respeito às formas de habitar a cidade. Ao percorrer as distintas narrativas, percebe-se a formação de uma topografia da distinção composta por uma camada produzida pela política editorial ao dizer quem deve ser lembrado e quem ganha o protagonismo da escrita. A partir desta base, visualizamos o relevo singular e afetivo do habitar pela recorrência à casa, à rua, ao bairro; seguimos com a remissão constante aos sistemas de transmissão de saberes conduzidos pelos campos acadêmicos e jornalísticos. E, por fim, apontamos determinados deslocamentos vividos pelos biografados dentro da topografia da distinção construída pelo suplemento em torno da cidade.

A primeira moldura: quem deve ser lembrado e quem escreve

No contexto do Cultura, conforme relatado em Costa (2018), percebemos que os rituais narrativos de aniversários e de mortes anunciadas são bastante similares na medida em que projetam uma trajetória de vida de sujeitos notórios, figuras que são destacadas pelo esforço de lembrança jornalístico. No intuito de classificar e contextualizar, o suplemento transforma tais rituais em acontecimentos inteligíveis e justificados para seu público dentro de quadros de referência supostos, ou seja, justificam-se a partir do legado cultural deixado por esses sujeitos para a história cultural da cidade. Os notáveis estão inseridos e são reconhecidos no campo da cultura, das manifestações artísticas e do ensino.9 O conjunto reverbera as características de um suplemento voltado para lançamentos do mercado editorial, que tem a literatura, a história, os intelectuais e a música como temáticas constantes. Dos 32 perfilados, temos somente quatro mulheres, indiciando uma forte predominância do gênero masculino na seleção de quem deve ser lembrado. Há também uma prevalência da figura do professor, quase um terço (8)

8 O conceito de lugar abarca uma profusão de sentidos conforme a bibliografia acionada. Interessa- nos, em função de nosso estudo específico, seguir a perspectiva de Carlos (2007) de que a produção espacial realiza-se no plano do cotidiano e aparece nas formas de apropriação, utilização e ocupação de determinado lugar. 9 Nossa amostra é regida pela prevalência do gancho jornalístico da efeméride (15 pautas) e do anúncio da morte (17 pautas). Os perfilados fazem parte do campo da literatura, jornalismo e mercado editorial (11); artes cênicas e dança (5); artes visuais e fotografia (5); música (4); ensino de línguas (2); ensino e pesquisa da geografia e história (2); cinema (2) e ciências (1).

18 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS destas personalidades exerceram a docência como atividade principal, não necessariamente exclusiva. Das figuras evocadas, apenas duas estavam vivas (o dramaturgo e professor de teatro Ivo Bender e o músico João Gilberto) e comemoravam, à época da publicação, seus aniversários de 75 anos e 80 anos, respectivamente. Em geral, o arco temporal das histórias de vida abarca uma média de 70 a 98 anos, com exceção dos escritores Caio Fernando Abreu e Sérgio Metz, que estavam sendo lembrados pela passagem dos 15 anos de suas mortes prematuras. Ao iluminar as trajetórias dos perfilados, os textos configuram um contexto panorâmico especialmente do século XX. Os textos provêm tanto de colaboradores convidados, geralmente do campo acadêmico, como de profissionais da redação de Zero Hora, pontuando uma marca editorial do caderno. Como dito acima, há nesses dados uma camada espacial estruturante feita de escolhas jornalísticas e que indica a perspectiva perita de onde se observam os temas enfocados. Dos 43 autores, 12 (27,9%) são jornalistas, sendo o restante de 31 (72,1%) composto por profissionais especializados. Desses 31 autores, 17 (54,8%) são professores universitários, o que mostra uma forte hegemonia do campo acadêmico. Os outros 14 (45,2%) não são professores, mas estão inseridos dentro de um sistema perito. As universidades, portanto, ocupam um lugar extremamente importante na dimensão narrativa e no ponto de vista do suplemento.10 Entre os 17 autores/professores especializados, verificamos que a Universidade Federal do (UFRGS) é a universidade protagonista, aquela que mais ganha espaço, totalizando 58,8% de predominância. Quase um quarto de todos os autores da amostra vem da UFRGS.11 Seguindo a perspectiva majoritária do conjunto, percebemos o tom de enaltecimento que cerca os percursos biográficos, sintetizando o sujeito pela dimensão cultural de sua ação profissional e artística. A cidade, aqui, serve para demarcar momentos significativos da trajetória de boa parte dos notáveis. As localidades ancoram nascimento, morte, infância, adolescência, vida adulta, vida profissional e estas representações implicam, muitas vezes, em percursos por sobre as ruas, bairros, instituições. Na amostra de quatro anos da publicação, percebe-se a emergência, em um número significativo de textos, da perspectiva da cidade porto seguro, que abriga o personagem durante boa parte de sua vida e que se constitui como espaço acolhedor para o desenvolvimento de sensibilidades artísticas. Junta-se a isso o cultivo de memórias afetivas, elemento que aparece direta ou indiretamente na obra dos criadores e que implica a criação de vínculos com determinados lugares. 10 Os professores contabilizam 39,5% dos autores em relação ao total de 43. Além disso, pensando no total de 17 professores, 65% deles são especialistas em Letras, o que indica a hegemonia dessa área no recorte cultural do jornal. 11 Se formos comparar o número de colaboradores da UFRGS (10) com o número total de autores (43), incluindo os jornalistas, a presença da Federal totaliza 23,25%, que é um valor bastante alto. Os outros professores estão vinculados a PUCRS, Unisinos, Unesp, UFPel e UPF.

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Um breve percurso pelas chamadas de cada uma das edições aponta para outra moldura em que estas narrativas são enquadradas sob o ponto de vista da distinção e da trajetória superlativa e singular – “invenções de um padre genial”, “mestre do cartum”, “pioneiro da escultura moderna gaúcha”, “escritor que fundou a literatura pop”, “a voz do Brasil”, “erudito ímpar”, “maior dramaturgo gaúcho vivo”, “um dos maiores pensadores da língua portuguesa”. Olhando em conjunto, as chamadas mobilizam a atenção do leitor para aquilo que é único, criando expectativa em relação a cada singularidade, narrativas que apontam sempre o raro, mas que se repetem como enquadramento. Dois terços dos personagens (24) têm uma relação direta com Porto Alegre, reverberando a normativa hiperlocalista do jornal estudado. A capital aparece como território construído em que cada um deixou um trajeto singular, trajeto este enfatizado pelo esforço editorial de lembrança. Percebemos também, no conjunto das narrativas, algo que Pollak (1989) sublinhou na recolha de histórias de vida, isto é, certo alisamento dos conflitos e tensões que possam ter havido no percurso dos sujeitos. Há uma tentativa de ordenação cronológica, certa coerência entre acontecimentos-chave, organizando uma dimensão que é da ordem da ilusão biográfica. As narrativas, inseridas no protocolo editorial comemorativo, mesmo quando se trata de anúncios de morte, buscam enquadrar cada história naquilo que ela ilumina do presente. Pelos tipos de mortes relatadas na amostra, percebe-se a morte como uma espécie de vida que prolonga, de um modo ou de outro, a vida individual (e aqui entra em ação o rememorar cíclico dos aniversários), ou seja, o reconhecimento de uma individualidade (MORIN, 1997). Após este relevo de base, seguimos ampliando determinadas espacialidades recorrentes de nossa amostra.

Microcosmos na cidade: as conchas desenhadas nas narrativas

No percurso pela cidade-texto (COSTA, 2018),12 chama atenção a referência da casa, elemento central do habitar no sentido de apropriar-se, de manter relações intensas e de constância (hábito, habitualidade) e que se traduz, justamente, na relação de pertença (MENEZES, 1996), na apropriação de um território. O território, aqui, aparece na sua dimensão de microcosmos, o que pode nos levar a pensar a cidade como agregação de territórios atomizados (BURGOS, 2005). A casa se apresenta como uma primeira concha, um território de identificação e de sedimentação de memórias. Dos 32 personagens, 12 aparecem em relação explícita com sua residência, território de abrigo e criação, e esta em relação à cidade. Nesse sentido, é emblemática a reportagem sobre a busca pela casa-

12 O detalhamento deste percurso, com a superposição e sincronia dos excertos narrativos que, juntos, constroem as espacialidades da cidade-texto, estão em Golin (2018) e Costa (2018).

20 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS esconderijo de João Gilberto, espécie de enclave onde o criador se recolhia. O repórter atravessou com seu texto pelo menos três ruas do bairro Leblon no Rio de Janeiro, trazendo à tona o relevo das ruas, que dá vida a uma cidade e ao próprio jornalismo, compondo outro território tão caro à topografia dos afetos urbanos, o bairro, cidades dentro de uma cidade.13 Se a busca pela casa, universo do homem privado, onde habitar significa deixar rastros (BENJAMIN, 1991), o suplemento, por meio da palavra e das fotografias ou ilustrações, vai escavando escritas ocultas na cidade, suas rugas, como bem definiu Rodrigues (2014). A própria casa, signo material e simbólico de uma história singular, passa a ser objeto a ser preservado, nem sempre bem-sucedido, como aconteceu com a casa do escritor Caio Fernando Abreu. Seus fãs e leitores tentaram, sem sucesso, transformar sua residência no bairro Menino Deus em Porto Alegre em um centro cultural para salvaguardar um acervo de mais de mil itens do escritor.14 Ou o caso da mansão demolida da avenida Vasco da Gama, que pertencera à primeira fotógrafa mulher Margarethe Schneider (1892-1983), e que se esvai na memória cultural de Porto Alegre, sendo novamente reapresentada em fantasmagorias por um esforço de efeméride do suplemento.15 Provavelmente o caso mais emblemático de simbiose entre o sujeito e seu abrigo é a descrição da casa-museu-ateliê batizada Casapueblo pelo artista uruguaio Carlos Páez Vilaró (1923-2014), na ocasião de sua morte, que fez dela uma escultura habitável e um cartão postal de seu país encravado num penhasco à beira-mar de Punta Ballena. A casa-labirinto é tão personagem quanto seu proprietário e criador.16 Sublinhamos a figura de Maria Coussirat Camargo (1915-2014), que dedicou a sua longeva vida à guarda do legado do marido, o pintor Iberê Camargo, organizando registros do processo criativo e da circulação de suas obras. Essa mulher, que se recolheu à casa e aos bastidores do sobrenome,17 personificou como poucos a gestão cotidiana da memória, concentrando em si a função de guarda, de transmissão de uma herança, função tão característica das cidades (MUMFORD, 1998) e que o suplemento, a partir de seus próprios arranjos e fragmentos editoriais, também pedagogicamente configura.

A simbólica distintiva dos circuitos de transmissão

Gestor da lembrança de notáveis no palimpsesto da cidade, o suplemento jornalístico aponta para a topografia da distinção em que as escolas, a universidade e a experiência da aula são espacialidades privilegiadas. A 13 MELO, Itamar. À procura de João Gilberto. Cultura, Zero Hora, sábado, 04 de junho de 2011, p. 4 e 5. 14 MOREIRA, Carlos André. Um escritor vence o tempo. Cultura, Zero Hora, sábado, 26 de fevereiro de 2011. 15 CHAVES, Ricardo. Frau Margarethe. Cultura, Zero Hora, sábado, 08 de setembro de 2012, p. 6. 16 LERINA, Roger. Um homem em busca do sol. Cultura, Zero Hora, sábado, 1 de março de 2014, p. 2 17 ZIELINSKY, Mônica. Caminhos da memória à história. Cultura, Zero Hora, sábado, 15 de março de 2014, p. 2.

21 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS implementação do circuito de aprendizado do balé clássico em Porto Alegre, por exemplo, centralizado em torno da figura de bailarinos que fundam suas próprias escolas ao longo do século XX, pode ser visualizada nos textos dedicados a pontuar os centenários de Lya Bastian Meyer (1911-2006) e de João Luiz Rolla (1912-1999).18 A universidade, por sua vez, é captada nas descrições dos rituais de instituição e de consagração (BOURDIEU, 1998). No processo de seleção de quem precisa ser lembrado, conhecido e reconhecido, o caderno jornalístico ecoa os rituais de investidura, reconhece e sanciona a diferença, atribui uma competência ao retratado, comunicações estas exercidas pelo conjunto de textos memoriosos. O sistema universitário tem protagonismo no caderno, não apenas porque dali provém a maior parte dos colaboradores, como já foi visto, mas pela sua dimensão e legitimidade institucional, de guarda e provocação da memória. Alguns dos perfilados pertenceram aos quadros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ivo Bender, Celso Pedro Luft, Aziz Ab’Saber, entre outros) ou foram por ela homenageados com distinções (doutor honoris causa), exposições ou guarda de arquivos. A universidade, como instituição de preservação e produção da memória, é realçada em iniciativas como as da Universidade de Passo Fundo, no noroeste do Rio Grande do Sul, e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que mantém o arquivo Delfos, reunindo acervos deixados por escritores e intelectuais. Nota-se também uma escritura que o suplemento é capaz de mobilizar no sentido do registro da experiência efêmera da aula, que aparece aqui na sua potência de abertura de horizontes. O perfil, os gestos, a voz do professor, sua maestria, a localização da aula no mapa geográfico da cidade são rememoradas muitas vezes em tom nostálgico, afetivo, da perspectiva de quem foi aluno. Por outro lado, como há predominância da prática literária e do segmento de produção editorial e jornalístico nos sujeitos perfilados, já que pelo menos 15 deles exerceram tais atividades em algum momento de suas vidas, as redações jornalísticas entreabrem-se na sobreposição do conjunto de textos. As redações locais de Porto Alegre cruzam-se com as redações do centro, especialmente do Rio de Janeiro, apontando a referencialidade e a hegemonia do jornal impresso na trajetória cultural de boa parte dos perfilados. Os veículos da empresa Caldas Júnior,19 em Porto Alegre, e o jornal O Pasquim,20 no Rio de Janeiro, são as redações mais citadas por onde passaram alguns

18 Sem autoria. Mestre da dança, Cultura, Zero Hora, sábado, 07 de julho de 2012. MACHADO, Janete da Rocha. Lya Bastian. A primeira dama do balé clássico de Porto Alegre. Cultura, Zero Hora, sábado, 12 de março de 2011, p. 2. 19 Empresa jornalística fundada em 1895 em Porto Alegre, por Francisco Caldas Júnior, com o lançamento do jornal Correio do Povo, principal jornal do Rio Grande do Sul a partir de 1920. No final dos anos 1960, a empresa Caldas Júnior era a sétima maior no ramo jornalístico no país. Uma crise financeira e estrutural levou ao fechamento da empresa em 1984. 20 Emblemática publicação independente que circulou no Brasil entre 1969 e 1991, cuja linha editorial abraçava a contracultura, o humor e a produção de entrevistas sem censura, desafiando o contexto da ditadura civil-militar.

22 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS desses indivíduos. Ao mesmo tempo, percebe-se aqui a construção de figuras referenciais do jornalismo a partir do seu próprio campo. Em um movimento bastante frequente – comum nos aniversários dos veículos, por exemplo –, o jornalismo dobra-se e compõe uma narrativa sobre si, exercendo seu poder de dizer e de escolher, assim como também de silenciar.

Processos de espelhamento e deslocação

Há também outro movimento de espelhamento a ser destacado. Ao longo do curso das existências perfiladas, encontramos as cidades como pontos luminosos que se espelham e se refletem entre si. As matérias dão grande destaque, como vimos, para a perspectiva da cidade porto seguro, que estabelece com o indivíduo uma simbiose, e também para os processos de deslocação. O escritor Caio Fernando Abreu é um desses indivíduos para quem cada mudança de endereço implicava um estranhamento sempre detectado em seus textos. Percebemos também o contraste entre centro e periferia a partir dos índices obtidos nas histórias de vida. Em relação a Porto Alegre, este liame fica bastante demarcado. Pelo menos 10 personagens estabeleceram com ela este vínculo tanto de adoção como de afastamento. Ora porque vêm de pequenos municípios do interior do Rio Grande do Sul e se radicaram na capital para o desenvolvimento de suas atividades profissionais, deixando na cidade algum legado; ora porque fazem o movimento contrário, saindo da provinciana Porto Alegre e encontrando em centros maiores a possibilidade de desenvolvimento de suas aptidões expressivas. Essa condição de sair e retornar, fazendo da experiência de deslocamento um fator de distinção e influência no seu meio de origem, é bastante frequente em algumas trajetórias. Lya Bastian, João Rolla, Carlos Reverbel, Vasco Prado são alguns destes nomes que se deslocaram e fizeram-se reconhecidos justamente pela experiência forânea. A escolha dos destinos das viagens formativas reverbera uma visão eurocêntrica típica, tendo Paris como ideal formativo que se projeta como uma sombra e um espelho nas expectativas cosmopolitas de boa parte desses sujeitos.

Considerações finais

Entendemos que estes parágrafos finais apontam para ideias ainda em processo de amadurecimento. Se as leituras sistemáticas anteriores nos apresentaram a cidade percebida como um palco, uma vitrine, uma ambiência perita, oferecendo dados indicativos das principais instituições e hierarquias do sistema cultural, do seu mapa de valores, das redes de intelectuais em dado período histórico, essa visada em amostras nos aproxima dos processos temporais-espaciais exercidos pelo jornalismo no campo da cultura quando

23 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS configura biografias que, seguindo Harvey (2003), podem ser tomadas como trilhas de vida no tempo e no espaço. Segundo Pesavento (2004), haveria na urbe entendida como palimpsesto uma espécie de reservatório, matriz de outros textos e imagens que, superpostos e camuflados, se desvelariam a partir da atitude hermenêutica do pesquisador. Esse exercício específico de sistematização das espacialidades projetadas pelos gestos memorativos de um suplemento cultural sugeriu algumas pistas amplificadas sobre o movimento que o jornalismo produz quando constrói e reconstrói, junto a outras instituições, as imagens das personalidades a serem lembradas em uma cidade, ao mesmo tempo em que a simboliza na evocação de determinados lugares. Os lugares geográficos, como pondera Oliveira Júnior (2014), são produtos narrativos que se constituem tanto de sua dimensão física e social como dos discursos e falas que se dobram sobre eles. A cidade é um tecido concreto e vivo em permanente construção, e o jornalismo a habita produzindo sempre relações de tempo e espaço. Se toda a relação espacial é também uma relação de poder – e aqui relembramos a pergunta anterior sobre a configuração do poder na cidade –, o suplemento constrói um espaço que chancela e ratifica o prestígio e a singularidade, identificando entre tantos vultos aqueles que se reatualizam quanto mais se deslocam no tempo, ancorados em datas. Verificamos que a maioria das narrativas configurou biografias exemplares de quem já havia conquistado autoridade em vida e no campo cultural. Mesmo conduzida por autores distintos sobre diferentes personagens, há uma série de paralelismos nestas trilhas de vida que apontam para a topografia da distinção construída em torno da cidade. Não é à toa que um suplemento estruturado editorialmente na expertise faça do prestígio do saber a sua principal mirada. A geografia temporal comum às biografias analisadas ratifica instituições canônicas de leitura e transmissão do século XX (a aula, a escola, a universidade, o jornalismo) e personifica a cidade por meio da singularidade dos lugares, especialmente daqueles atravessados pelo recolhimento e afeto como a casa, a rua e o bairro. As cidades aparecem como pontos luminosos das trajetórias, sendo atravessadas pelos processos de espelhamento entre si e pelos deslocamentos dos sujeitos. Por meio de um jornalismo cerimonioso, ritmado pelo ciclo de efemérides e pelo sucessivo ato de prestar tributos aos mortos, o suplemento participa da mediação dos vínculos de pertencimento de um sujeito a um lugar e vice- versa. Ao funcionar pedagogicamente como um gestor de legados, a publicação convoca a temporalidade mais lenta do texto de especialistas, devolvendo ao leitor algum sentido temporal de permanência (HARVEY, 2003). Dentro das múltiplas possibilidades de um mundo prefigurado, o suplemento configura a trama de poder das histórias destinadas a serem contadas, constituindo uma galeria de personagens representativos de uma cidade. Esta

24 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS maneira de reportar, concentrando-se na comemoração – e esta disposição vale também para as mortes relatadas na nossa amostra –, insere os fragmentos de histórias de vida em mapas de valores distintivos, que perduram ao acionar um leitor suposto a quem cabe convocar nesse contínuo tecer dos quadros da memória coletiva, incitando-o a uma relação de reconhecimento a um lugar.

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27 Análise das narrativas sobre a ditadura no jornal Estado de Minas: memória e acontecimento 1

Marta R. Maia Caio M. Rodrigues Aniceto

Introdução

A América Latina foi atravessada, em meados do século XX, por governos ditatoriais em vários países como o Brasil, o Uruguai, o Chile e a Argentina. Destarte várias questões que poderiam ser arroladas nesta Introdução, é lícito afirmar que a ideologia de segurança nacional, consubstanciada no “fantasma” do comunismo, foi um dos elementos-chave para a justificativa de implantação de tais ditaduras. Passadas algumas décadas, alguns países conseguiram implementar uma justiça de transição com o objetivo de averiguar as os abusos cometidos nesse período. No caso do Brasil, esse movimento só veio a ocorrer quase 50 anos após o golpe de 1964, com a institucionalização da Comissão Nacional da Verdade (CNV) por intermédio da Lei 12.528, de 2011, e a sua efetiva instalação, em 16 de maio de 2012. Não obstante esse processo oficial de política de estado, não se pode negar o papel que já vinha sendo realizado, especialmente por familiares dos mortos e desaparecidos políticos e pela própria Comissão de Anistia, em busca da verdade, justiça e reparação dos danos ocasionados pelo poder ditatorial. A CNV foi criada então para investigar as atrocidades cometidas por agentes das Forças Armadas e de outras instituições brasileiras durante o período de 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, a pedido da presidente . Seu objetivo maior era o de esclarecer os abusos cometidos pelos aparelhos repressivos do Estado militar. O relatório final da CNV foi entregue à presidência da república em 10 de dezembro de 2014, identificando mais de 434 mortes e outras centenas de desaparecimentos e de cadáveres ocultados durante o período ditatorial. Entretanto, mesmo com várias recomendações de encaminhamento, como a de que vários militares envolvidos em crimes como tortura e desaparecimento de corpos sejam levados a julgamento, praticamente mais nenhum outro encaminhamento foi dado aos resultados apresentados pela Comissão, visto que algumas dessas recomendações levariam à revisão da Lei de Anistia, promulgada em 1979 pelo Congresso Nacional.

1 Esse trabalho apresenta resultados de parte de pesquisas financiadas pelo CNPq, pela Fapemig e pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que objetivaram acompanhar as narrativas da ditadura do jornal Estado de Minas de 2014 a 2017.

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De todo modo, concomitantemente, foram criadas comissões de investigação em outras esferas, sejam regionais ou institucionais. Em Minas, foi criada a COVEMG – Comissão da Verdade em Minas Gerais. Os trabalhos das duas comissões (e seus resultados) encontraram reverberações nas narrativas midiáticas atuais, que em processo constante de memoração trazem ainda à tona as vozes e os acontecimentos silenciados por um regime que calou durante mais de cinquenta anos muitas de suas vítimas. Esse processo pode ser percebido nas matérias publicadas pelo jornal Estado de Minas, o mais antigo veículo existente no estado, fundado em 7 de março de 1928. Sendo o maior jornal circulante em Minas Gerais, representa um dos contatos mais significativos dos habitantes com os processos jornalísticos, e por este motivo sua escolha para caracterizar o objeto de análise deste trabalho foi crucial. Optou-se por coletar as matérias produzidas pelo jornal entre janeiro a dezembro de 2016 que tangenciassem de alguma forma os acontecimentos da ditadura militar. Dentre vasto material estudado, optou-se por um procedimento que levasse em conta as especificidades não apenas das narrativas jornalísticas, mas também de uma literatura atual que auxiliasse na compreensão sobre as diversas formas de memoração presentes na produção jornalística e midiática, relação ainda escassamente explorada nos estudos contemporâneos da comunicação. Destacamos dentre elas as pesquisas sobre a história e a inserção comunicacional do Estado de Minas (FRANÇA, 1998), os estudos sobre acontecimento (LAGE, 2013; FRANÇA, 2012; QUÉRÉ, 2012), os procedimentos metodológicos para análise qualitativa de narrativas (RESENDE, 2011; MOTTA, 2005) e, compondo a parte mais significativa do trabalho, os estudos sobre memória jornalística (ZELIZER, 2014; TENENBOIM-WEINBLATT, 2014; OLICK, 2014; SCHUDSON, 2014; NEIGER, ZANDBERG, MEYERS, 2014; READING, 2014). Os estudos citados acima, além de alguns outros, foram fundamentais para criar um procedimento metodológico que suprisse as necessidades emergentes no objeto analisado. Com a instalação da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade em Minas Gerais pretendeu-se investigar de que forma os eventos do passado tangentes à ditadura foram retomados, ressignificados e atualizados pela publicação ao longo do ano de vigência do estudo. Almejou-se também compreender de que forma a memória emergiu nessas narrativas e qual sua significância política e social para os debates da arena pública, diante dos recursos de reordenação de narrativas e construções discursivas utilizadas pelo jornal. O procedimento metodológico escolhido visava atender a uma análise adequada da intersecção entre o estudo das narrativas (em especial, voltadas ao jornalismo), do estudo do campo mnemônico, e do acontecimento como ferramenta heurística. Dessa forma, visou-se construir uma análise fundamentada não apenas no texto publicado, mas em camadas mais profundas de significância

29 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS que pudessem perpassar também as dimensões afetivas e da experiência dentro do campo jornalístico, levando em conta também as características produtivas, mercadológicas e até mesmo geográficas da publicação estudada.

Articulações entre memória e jornalismo

Olick (2014) argumenta que jornalistas estariam interessados em memória de diversas maneiras. O jornalismo “não apenas cobre comemorações e efemérides, como as celebra ao publicar reportagens e edições especiais sobre acontecimentos passados” (p. 17). O autor reforça a ideia de que uma memória cultural é impensável sem os media. Ele critica, no entanto, a ausência concreta de pesquisas sobre a área específica do jornalismo: “De fato, a literatura existente sobre memória midiática, mídia e memória, e mídia da memória são agora bastante extensas. Mas não sabe por quais motivos, maneiras ou até que dimensão esse tipo de pesquisa deixou o jornalismo para trás”. (OLICK, 2014, p. 19, tradução nossa) O autor nota também que, frequentemente, o jornalismo é um fator constitutivo dos acontecimentos em si. O jornalismo entraria no fluxo de acontecimentos e os moldaria, tanto ativa como passivamente: “nossa memória dos acontecimentos passados comumente incorporam as imagens jornalísticas que o próprio jornalismo enquadrou. As memórias dos eventos públicos são, então, indivisíveis de suas coberturas jornalísticas” (idem, p. 28, tradução nossa). O resultado apontado por Olick é de que os objetos dos estudos da memória são quase sempre de alguma forma constituídos pelo jornalismo, esteja o campo mnemônico interessado ou não em seu papel constitutivo. Para Paul Ricoeur (2010), se “a ação pode ser narrada, é porque ela já está articulada em signos, regras, normas: está, desde sempre, simbolicamente mediatizada” (p. 100). Isso não quer dizer, entretanto, que a linguagem é transparente; pelo contrário, há disputa de sentidos no campo cultural e comunicacional, visto que a composição da intriga nunca “é o mero triunfo da ordem” (p. 126). As narrativas também se relacionariam intrinsecamente à arte mimética2, ou seja, à imitação da ação que abarca tempo, espaço, transformação e memória. No caso das narrativas jornalísticas, suas especificidades devem ser observadas para que sua análise seja completa. Zelizer (2014) propõe três hipóteses acerca da relação entre memória e jornalismo. A primeira seria a de que o jornalismo tem feito seu “trabalho mnemônico” desde que as primeiras ideias sobre memória coletiva se formaram e que as evidências disso emergem das próprias práticas jornalísticas. A segunda aponta que alguma presença do jornalismo tem sido implícita no que diz respeito às ideias de memória em evolução, “não em sua margem, mas em 2 Ricoeur irá dizer que as narrativas vão além da imitação, já que há uma dimensão criadora nesse processo, seja pelo agenciamento dos fatos na configuração da narrativa, seja pela presença do “leitor” nesse processo de reconfiguração (que ele irá denominar de mímesis III).

30 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS seu centro” (p. 45, tradução nossa). A terceira diz que ideias iniciais e recentes sobre estudos da memória foram uniformemente negligentes ao não articularem o papel mnemônico cada vez mais central do jornalismo. Em um recorte metodológico primário, foram divididas as produções jornalísticas por editorias. De cada uma foi considerada sua materialidade narrativa e significância social e política, já que se considerou desde o princípio “que narrativas e narrações são forma de exercício de poder e de hegemonia nos distintos lugares e situações de comunicação. (...) Todos realizam ações e performances socioculturais, não são só relatos representativos” (MOTTA, 2005, p. 3). Os veículos jornalísticos assumem então seu papel no processo de reconfiguração do passado por diversos eixos. Pollak (1989) ressalta a importância da história oral na emergência de memórias submersas ao analisar os excluídos, os marginalizados e as minorias, opondo-se à chamada “memória oficial”. Por intermédio da valorização da fonte testemunhal, por exemplo, o que foi possível de ser verificado pelos testemunhos agenciados pelas Comissões da Verdade, o jornalismo inseriu-se nesta disputa de sentido cuja arena simbólica é a memória impressa por uma cultura de Estado versus a memória clandestina que surge da “irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de uma memória da dominação e de sofrimentos que jamais puderam se exprimir publicamente” (POLLAK, 1989, p. 5). A produção de sentidos, capitaneada pelas mídias e acionada pela justiça de transição no Brasil, irá gerar a própria memória coletiva no espaço público nacional. Anna Reading (2014) nota o papel já há muito consolidado da mídia como transmissora da história enquanto ela se desenrola. Os jornalistas teriam desempenhado desde sempre um papel crítico no que tange à moldagem tanto da lembrança pública como de seu esquecimento. Graças ao advento da digitalização, o jornalismo tornou-se um componente ainda mais importante na formação da memória coletiva. Disponibilizam-se online, por exemplo, jornais que anteriormente só podiam ser acessados através de grandes livrarias ou arquivos, que hoje não se limitam mais por seu espaço, estrutura e até mesmo resiliência físicas, como foi o caso do presente trabalho, que se valeu de arquivos dispostos pela versão digital do Estado de Minas. Neste processo, torna-se ainda mais visível a importância do que a autora denomina “testemunho midiático” - a maneira imediata pela qual jornalistas presenciam e relatam acontecimentos. Segundo a autora, muitos estudiosos observaram como a globalização e a digitalização estão alterando as vias de intersecção articuladas entre memória e mídia. Desta forma, “a prática jornalística em relação à memória precisa ser compreendida como remodelada dentro de uma ecologia midiática que é digitalizada e globalizada desigualmente, e que nós podemos denominar ‘campo de memória globital’” (READING, 2014 p. 166, tradução nossa). Zelizer e Tenenboim-Weinblatt (2014) enxergam uma ausência do jornalismo em relação aos parâmetros institucionais associados à forma como a memória

31 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS coletiva funciona. Segundo as autoras, esta ausência propiciou que o status da prática jornalística permanecesse como a de um “arquivista primário” de um passado compartilhado que é ao mesmo tempo desarticulado e desarranjado. Apesar da emergência da memória coletiva depender frequentemente de um amplo espectro de engajamentos institucionais, hoje, mais do que nunca, a negligência que circunda o papel do jornalismo no estabelecimento e na legitimação da memória compartilhada deixa uma abertura curiosa em nossa compreensão sobre as formas de apreensão da memória. De acordo com as autoras, o jornalismo demonstra-se tipicamente reticente em relação a mover-se além do que é “tópico, novo, instantâneo e temporal” (p. 2). No entanto, em uma era definida por um turbilhão de domínios performáticos, narrativas recicladas, imagens e impulsos que não podem mais ser rastreados a um único ponto no tempo, de uma informação que parece surgir do nada, é importante não apenas compreender as nuances temporais complexas através das quais as notícias funcionam, mas “entender o papel central do jornalismo como repositório primário da memória coletiva em toda sociedade em que ele se encontra” (idem). Tenenboim-Weinblatt (2014) questiona-se sobre formas por intermédio das quais os jornalistas propiciam o engajamento do público nas narrativas desenvolvidas por eles, e sua continuidade através de longos intervalos. É possível produzir uma notícia sobre um acontecimento se ele não teve novos desdobramentos? Como bem observa a autora, o jornalista não pode simplesmente “inventar as reviravoltas em suas tramas para atrair o público” (p. 100, tradução nossa), a menos que cruze os limites da ética jornalística e negue no exercício jornalístico sua aura de factualidade. Por mais ilusória que seja, o público ainda relaciona o jornalismo a certa ideia de “verdade”. A autora sugere que, na ausência de desenvolvimentos noticiosos padrão, jornalistas frequentemente lançam mão de temas relacionados ao passado e recursos discursivos para manter a continuidade da narrativa, o engajamento dos leitores e um certo nível de visibilidade para as notícias ao longo do tempo. Para Tenenboim-Weinblatt, a prática mnemônica de retomar o passado pode servir como um rico recurso narrativo e discursivo aos jornalistas, permitindo que eles gerenciem os aspectos temporais das notícias, enquanto “conectam informação, rituais e agenda setting, assim como memorações retrospectivas e prospectivas” (p. 109, tradução nossa). Por fim, consideramos na análise também os conceitos de acontecimento e acontecimento jornalístico (QUÉRÉ, 2012; LAGE, 2013 e FRANÇA, 2012). Para Quéré (2012), os acontecimentos representam mudanças existenciais experimentadas de acordo com “as dimensões do afeto, do conhecimento e da prática” (p. 37). Nessa mesma perspectiva, Vera França (2012) explica que o acontecimento possui uma “natureza relacional” (p. 19), que, de alguma maneira, rompe com o estado de normalidade, levantando sentidos que afetam

32 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS os sujeitos: “Eles fazem pensar, suscitam sentidos, e fazem agir (...) E tais ocorrências curto-circuitam o tempo linear; ocorrendo no nosso presente, eles convocam um passado e re-posicionam o futuro (2012, p. 14). Queré (2012) ainda argumenta que o acontecimento, além da instância existencial, também é experimentado como uma configuração do discurso. Dessa forma, as matérias publicadas no jornal são configuradas pelas narrativas jornalísticas em estreita relação com a questão temporal. De todo modo, torna- se importante frisar que antes de instituído discursivamente, os acontecimentos representam um fenômeno. A partir das noções apresentadas por Louis Queré, Vera França (2012) explica que as dimensões do acontecimento podem ser delineadas como “primeira vida” – associada ao âmbito existencial -, e a “segunda vida”, que é o “acontecimento tornado narrativa, tornado um objeto simbólico” (p. 14). E é nessa perspectiva que trabalharemos a análise do material coletado.

Desdobramentos

Ao longo de doze meses, toda e qualquer matéria que tenho feito referência ao período ditatorial ou seus personagens foi arquivada. O resultado final compreendeu 72 notícias que compuseram o corpus de análise.3 Notou-se que, das 72 notícias, a ampla maioria compunha a editoria de Política (40 matérias), seguida pelos cadernos de Cultura (13 matérias), Pensar (7 matérias), Opinião (4 matérias), Editorial (2), Internacional (2), Economia, Nacional, Gerais e Especial (as últimas com 1 matéria cada). Digno de nota, no entanto, é que apesar da maioria das matérias estarem localizadas na editoria de Política, sua constância é irregular: há uma média de quatro matérias publicadas por mês entre janeiro e março de 2016, mas durante o mês de abril existe um aumento de mais de três vezes em relação à média: foram 16 notícias publicadas que fizeram algum tipo de referência ao período ditatorial. Situação que volta a se repetir quando da votação do impeachment pelo Senado em agosto; são 7 matérias só nesse mês. Este pico exponencial deve-se ao discurso proferido pelo deputado Jair Bolsonaro no dia 17 de abril, durante a votação no Congresso que decidiu pelo afastamento da presidente eleita Dilma Rousseff:

Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de [Duque de] Caxias, pelas Forças Armadas, o meu voto é sim. (Jair Bolsonaro, 17/04/2016)

3 Os produtos, com os títulos, datas e posições dentro do jornal, seriam dispostos em tabelas anexadas ao final do trabalho, entretanto, por falta de espaço, as matérias não foram dispostas nesse capítulo, sendo citadas somente algumas delas. De todo modo, todas as matérias estão registradas no Relatório de pesquisa enviado ao CNPq, em dezembro de 2016.

33 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

A fala do parlamentar gerou uma série de manifestações dentro do próprio jornal, mesmo que não necessariamente pela voz da própria publicação. Neste mês, ocorre também um aumento no número de notas opinativas de leitores e especialistas acerca da fala de Bolsonaro e sua representação pejorativa na memória coletiva recente. A partir de novembro de 2016, a memória entra novamente em disputa e a trama é reacionada com a divulgação de notícias sequenciais sobre o desenrolar das narrativas originadas pelo voto do deputado. Em matérias como “Foi 11 a 1” (10/11/16), inicia-se a retomada do conflito entre Bolsonaro e o deputado Jean Wyllys. As figuras políticas tornam-se, aqui, personagens colocados em constante oposição e que se digladiam. Efetivamente, as páginas do jornal tomam a forma de um coliseu simbólico em que os leitores fomentam suas próprias opiniões acerca dos protagonistas (ou antagonistas) nas notícias subsequentes. Já em “O Cuspe como Réu” (06/11/16), matéria publicada na editoria de Política e sem assinatura explícita, causa estranhamento o tom opinativo e até mesmo promotor de juízo de valor, em que o jornal publica: “Partindo de Bolsonaro, é bem provável que motivo sério teve Jean Wyllys. Afinal, se o parlamentar do PSC tivesse conseguido reagir e não fosse contido, seria até covardia. Jean Wyllys, com aquela musculatura que tem, iria apanhar até falar chega. Aliás, nem isso iria adiantar”. Matérias como “Proibido para menores” (07/12/16) chegam até mesmo a transcrever as palavras pejorativas utilizadas pelos políticos em suas discussões. O constante embate entre as personagens promovido pelo jornal encontra reverberação nas participações do público, ativo no processo de construção da intriga. A exemplo, abre-se na editoria de Política um espaço opinativo sobre a notícia “Financial Times fala em avanço do neonazismo no Brasil e cita Bolsonaro” (13/01/17), em que encontramos:

Sendo o único candidato digno a ser presidente, é natural que se façam tais críticas e tais acusações. A única coisa realmente errada em Bolsonaro é acreditar que o país é administrável. Isto aqui é uma torre de babel, com todo mundo querendo o máximo para si e o mínimo para os outros. A melhor prova disso é que o nosso comunismo é o mais ladrão e usurpador da história mundial. Se ser Bolsonaro de carteirinha é ser neonazista, podem me pendurar no poste. (JOSÉ. Opinião. Financial Times fala em avanço do neonazismo no Brasil e cita Bolsonaro. Estado de Minas. 13 de jan. de 2017)

Logo abaixo, outro leitor identificado também somente pelo primeiro nome “Full”, estabelece o contraste: “não se combate violência elegendo figuras esdrúxulas como este Bolsonaro. Existem medidas mais efetivas, inteligentes e democráticas de se combater a violência sem termos que apelar para a ignorância. Bolsonaro é uma figura a ser extirpada da vida política deste país”. O recurso utilizado pelo Estado de Minas é o de deixar a opinião para terceiros, isentando-se dessa forma de um distanciamento da suposta ideia de

34 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS objetividade reforçada pelos jornais diários. É o processo que Motta (2005) denomina “de subjetivação do real”, em que as estratégias narrativas do jornal se disfarçam através dos recursos próprios do discurso jornalístico. Estes recursos linguísticos ocultam o papel de narrador do jornalista, e a responsabilidade de opinar recai aparentemente sobre os leitores. O jornalista torna-se portanto um “narrador que nega até o limite sua narração” (p. 8), fazendo “os fatos surgirem no horizonte como se estivessem falando por si próprios” (idem). Observamos, portanto, que os acontecimentos primários (a fala de Bolsonaro e o cuspe de Jean Wyllys) permitem o desenvolvimento de uma miríade de outras narrativas que são construídas em tempo real e fomentam, como consequência última, a disputa ideológica e mnemônica não apenas entre os personagens como o próprio público do jornal. O problema da narração jornalística – ou melhor, do jornalista como narrador – é também observado por Resende (2005). O autor concorda com Motta ao enxergar na narrativa jornalística um discurso velado, que através de recursos linguísticos e uma forma de narrar inerentemente autoritária, reveste- se da frágil armadura da “factualidade” e da “verdade”, esta que é defendida como fim último do jornalismo, mas que não encontra uma definição absoluta diante da natureza incompleta e difusa do acontecimento. Quando o jornalista, portanto, subtrai-se da ação narrada, não precisa enfrentar “a empiria implícita ao mundo real” (p. 98). Discutindo as narrativas do Holocausto e das vítimas do nazismo, Neiger, Zandberg e Meyers (2014) sugerem o conceito de “memória reversa”: o mecanismo cultural e a prática jornalística de focar no presente enquanto um passado compartilhado é comemorado. “Ou seja, a memória reversa é um dispositivo narratológico no qual a temporalidade funciona em direção oposta, do presente ao passado” (p. 114, tradução nossa). Ao invés do argumento de que as narrativas do passado adaptam as imagens antigas aos ideais do presente, para a memória reversa o passado não seria meramente narrado para servir a objetivos atuais, mas “comemorado pelos meios de narração do presente” (idem). Segundo os autores, a memória coletiva lida com passados compartilhados do “lá e o então”, e as notícias com as informações que concernem o “aqui e o agora”. Mesmo assim, a despeito de sua natureza aparentemente paradoxal, a memória reversa permitiria a criação de narrativas que podem ser qualificadas tanto como itens noticiosos e instrumentos comemorativos. No caso da temática analisada pelos três autores, eles detectam dois conjuntos de valores divergentes e até mesmo contraditórios nas produções noticiosas: de um lado, normas jornalísticas profissionais (como objetividade, neutralidade, valor-notícia e atualidade), e do outro, os valores que são intrínsecos aos processos de construção da memória coletiva, como o etnocentrismo e a solidariedade nacional.

35 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Narrativas da memória coletiva estão sempre atreladas simultaneamente ao passado e ao presente. Neste caso, o presente ofereceria aos indivíduos e culturas uma estrutura e uma perspectiva para avaliar e compreender o passado. Os autores enxergam o passado também como um foco de cobertura, especialmente quando as notícias citam efemérides ou acontecimentos mais obviamente relacionados a eventos anteriores. Quando o jornalismo do Estado de Minas retoma ao período ditatorial, posiciona o passado no centro dos processos de produção noticiosa, narrando efetivamente acontecimentos socialmente significantes enquanto fornece uma leitura deste passado através de “lentes de convicções e percepções em constante transformação” (NEIGER et al, 2014, p. 117). Neste tipo de cobertura, o passado ocupa o primeiro plano enquanto o presente e o futuro pairam constantemente como contextos interpretativos de fundo. Neiger et al sugerem que toda forma de reportagem associada à memória coletiva requer “portadores da memória” que permitem a transformação de eventos passados em produtos noticiosos atuais. Os autores identificam quatro “portadores da memória” proeminentes nesse tipo de notícia:

1. Sujeitos: indivíduos ou grupos relacionados diretamente aos acontecimentos, que servem para atestar sua ocorrência. 2. Lugares: espaços associados aos acontecimentos comemorados - locais onde os fatos ocorreram ou onde são comemorados. 3. Objetos: artefatos emblemáticos que confirmam a ocorrência dos acontecimentos e os simbolizam. 4. Fenômenos: manifestações de comportamento, práticas ou atitudes sociais posicionadas no núcleo de acontecimentos passados, e que são associados a esses acontecimentos.

Os “portadores de memória” também puderam ser identificados dentro do material produzido pelo Estado de Minas. Matérias como “O mineiro que virou lenda” (11/02 /16) e “Com licença, eu fui à luta” (26/06/16) têm os sujeitos como principais vozes trazidas à tona para explicar vivências do período ditatorial. Já produtos como “Morre ex-chefe de centro de torturas na ditadura” (16/10/16) e “Ato lembra os 40 anos da morte de Herzog” (26/10/16) trazem os lugares como portadores da memória, como o centro do DOI-CODI e a Catedral da Sé. Os artefatos que confirmam a ocorrência dos acontecimentos, “portadores” chamados de objetos pelos autores, podem ser acionados pelas matérias: “Acampamento de manifestantes” (12/05/2016), “Roubo de peças sacras de Basílica de Ouro Preto completa 40 anos de impunidade” (01/09/2016) e “A bandeira da desordem” (17/11/2016). Outra característica notável em reportagens analisadas foi a ressignificação de acontecimentos do presente mediante fatos ocorridos no passado.

36 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Textos como “Jornalistas em perigo” (12/03/16), “Vestígios do passado” (25/04/16) e “Tortura resiste à democratização (05/07/16) apresentam análises comportamentais de acontecimentos atuais, remetendo a atrocidades cometidas pelas Forças Armadas durante a ditadura. Nestas matérias, os portadores da memória são fenômenos causados pelo próprio processo de tensionamento das memórias em conflito. Como observa Motta (2005), qualquer narrativa tem como elemento estruturante o conflito, e isso torna-se ainda mais evidente no caso da narrativa jornalística, que “lida com rupturas, descontinuidades e anormalidades” (p. 5). Toda a narrativa orbita ao redor da intriga, e é ela que abre espaço para novas ações, sequências e episódios, “que prolongam e mantém a narrativa viva” (idem). No caso do Holocausto, os autores notam como os veículos noticiosos tendem a dar um papel proeminente às vítimas e sobreviventes como portadores da memória dominantes. Segundo eles, os sobreviventes têm uma autoridade única e exclusiva para narrar – como resultado de muitos e distintos constrangimentos. Primeiramente, o número de sobreviventes está em declínio, e em breve o Holocausto não poderá ser contado por aqueles que o experimentaram na pele. Outro problema decorre do próprio gênero jornalístico, já que as convenções jornalísticas profissionais exigem fontes reais, que falam por si mesmas, personagens que o público pode gostar ou desgostar, confiar ou desconfiar, e assim por diante. A dinâmica própria da narrativa jornalística a torna inapta para apresentar o passado como se ele estivesse ocorrendo no presente – “em contraste, por exemplo, a narrativas ou roteiros dramáticos” (NEIGER et al, 2014, p. 119). Para os autores, a própria presença dos sobreviventes em detrimento de vítimas que já morreram ou especialistas que não experimentaram pessoalmente o Holocausto, personificaria um elo entre o “lá e o então” e o “aqui e o agora”. Como isso pode ser comparado ao exercício jornalístico brasileiro, e mais especificamente, ao jornalismo doEstado de Minas em se tratando da ditadura? Notou-se a presença de indivíduos que experimentaram pessoalmente o regime militar como fontes nas matérias citadas acima, demonstrando que, de fato, os acontecimentos do passado são retomados pelo jornal e que este atribui importância à autoridade das vítimas da ditadura ao conferir-lhes voz e sentido.

Considerações finais

Primeiramente, é mister notar que, apesar de valer-se dos mecanismos formais de ordenação discursiva descritos por Reading (2014), o Estado de Minas reconhece por si só seu trabalho na reconstrução e na retomada do passado através de narrativas do presente, como é o caso da matéria “Verdade Resgatada” (01/11/16). Os acontecimentos obscuros do período ditatorial são,

37 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS portanto, revistos pelo exercício prático do jornalismo. A análise dessas produções indica a dimensão heterogênea do campo jornalístico e a potência que essas narrativas acionam. É possível dizer que algumas matérias, ao menos, evidenciam “uma forma de enfrentamento ao ‘desejo de esquecimento’ mobilizado pelo discurso oficial da ditadura. O que as inúmeras variáveis deixam ver é um processo em aberto, ainda em constituição, provocando fissuras na história oficial e desobstruindo barreiras”. (MAIA, LELO, 2015, p. 142) Neiger et al. (2014) observam que uma das principais questões que a presença da memória reversa traz frente à pesquisa de memória coletiva reside na dúvida sobre quando exatamente um acontecimento do passado é socialmente compreendido como concluído. Quando o passado se torna uma questão resolvida? “Pode a sociedade tomar eventos do passado como encerrados, encapsulados na História, enquanto notícias relacionadas a suas implicações continuam sendo transmitidas?” (p. 125, Tradução nossa). As tentativas de enquadrar acontecimentos do passado como contínuos surgiriam, portanto, do amplo contexto político e à significância da memória reversa a eles atrelados, já que controvérsias sobre a “interpretação de acontecimentos salientes do passado estão sempre ancorados no embate entre agentes de memória rivais; dessa forma, agentes interpretativos podem ganhar capital político ao manterem ocorrências do passado vivas no território do debate público” (Idem, Tradução nossa). Conclui-se ainda que os acontecimentos circundando o regime militar nunca serão de fato absolutamente resolvidos ou terminantemente concluídos, já que o conflito é a categoria estruturante narrativa e o jornal insere-se como meio público de embate entre agentes de memória. O veículo serve então como meio visível da memória globital. Como percebe Resende (2011), os acontecimentos em curso nos escapam aos dedos e qualquer narrativa que os tiver como estruturantes e busque sustentar-se segundo uma noção de verdade só pode sê-la se forem feitos esforços de aplicação teórica ou se forem utilizadas estratégias e recursos linguísticos que explicitem esta relação. Negligenciando o problema da enunciação, de quem fala e media a informação por trás de uma inexistente imparcialidade, reitera-se o uso de tais estratégias e, efetivamente, sustenta-se “uma lógica de comunicação (...) supostamente eficaz” (p. 126). Se o Estado de Minas constitui de fato “uma determinada faceta da socialidade mineira”, como sugere França (1998), ou ainda se há de fato um “olhar mineiro” sobre a informação global regionalizada nas estratégias informativas do jornal, podemos pensar no jornal também como dispositivo capaz de mesclar elementos da memória coletiva nacional (e em muitas instâncias global) à potência mnemônica geográfica dos habitantes de Minas Gerais. Michael Schudson (2014) caracteriza o jornalismo como sendo a membrana mais pública, massivamente distribuída e facilmente acessível da memória social. O autor comenta a amplamente reconhecida ação da mídia

38 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS noticiosa como instituição comemorativa: os jornalistas cobrem feriados, aniversários, mortes de figuras notáveis, etc. Essa afirmação também é válida quando, no contexto dos objetos analisados, a mídia brasileira cobre a efeméride dos 50 anos do golpe militar. De acordo com Schudson, todos esses empreendimentos em memory-keeping influenciam na moldagem, reforço e renovação da memória cultural. Schudson defende que o “jornalismo comemorativo” essencialmente incorpora o passado no presente, de forma que toda vez que uma matéria cobre algum evento ou ação de uma pessoa, grupo, organização “em que a consciência do tempo passado ou do tempo que passa é um fator primordial, a mídia colabora com processos sociais de memória cultural maiores que ela mesma” (p. 85, Tradução nossa). É interessante notar que, a despeito de suas considerações sobre as efemérides no jornalismo, Schudson reflete também sobre a emergência do passado no exercício diário das práticas jornalísticas. Segundo ele, os jornalistas usariam o passado de forma não comemorativa de duas maneiras principais: primeiramente, usando a História para intensificar a noticiabilidade de uma matéria - para demonstrar, por exemplo, que um acontecimento em processo de cobertura é raro ou sem precedentes. Depois, invocam o passado em seus relatos para torná-los mais compreensíveis. O primeiro uso provoca o aumento do valor-notícia e serve para atrair o leitor, enquanto o segundo auxilia o público a entender a notícia. Os dois influenciam de forma igualmente substancial a produção de notícias, e sua presença não pode ser negada nas reportagens analisadas. Evidencia-se assim a importância do universo simbólico na consolidação do discurso jornalístico, e o poder da narrativa de impulsionar acontecimentos e, além de efeitos, fabricar sentidos. Considera-se, por conseguinte, que os quatro “portadores da memória”, a saber: sujeitos, lugares, objetos e fenômenos podem contribuir, conforme se verificou no material analisado, para a ressignificação da memória coletiva. Eles atualizam acontecimentos a partir do presente, por intermédio da produção de matérias e reportagens que produzem sentidos diversos na esfera social. O jornalismo insere-se, portanto, em um núcleo fundamental na junção entre passado, presente e futuro – este sincro-diacronismo é observado como consequência da natureza narrativa do jornalismo, e seu papel na emergência e na ressignificação da memória não deve ser ignorado. Como observam Maia e Ribeiro (2015), o jornalismo, dessa forma, consolida-se não somente como prática, “mas também como sujeito social que participa da recomposição do passado dentro das novas possibilidades que o presente lhe concede” (p. 181). A memória, no contexto da perspectiva adotada nessa pesquisa, então pode ser compreendida como uma força potente e que primordialmente orienta a narrativa noticiosa.

39 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Referências

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40 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

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41 Fios narrativos da notícia: uma perspectiva metodológica

Valéria de Castro Fonseca Célia Maria Ladeira Mota

Introdução: a consciência do tempo

Quando um homem dorme tem em torno de si, como um aro, o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao despertar, consulta-os instintivamente, e, em um segundo, lê o lugar da terra em que se acha, o tempo que transcorreu até seu despertar;” Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, volume 1 (No caminho de Swann)

Pelos fios da consciência do tempo, como os acontecimentos constituem memória? Qual é o destino dos acontecimentos jornalísticos de datas passadas? São esquecidos para dar lugar a novos acontecimentos? Tornam-se fios de espera para possíveis desdobramentos da notícia? Hoje, a narrativa jornalística está imbricada com as tecnologias da informação que dilatam o presente cotidiano em tempo real e expandem o sentido histórico dos acontecimentos. Recursos do jornalismo de dados como infográficos, mapas interativos, tabelas e linhas do tempo revelam fios narrativos que tecem e sustentam a consciência histórica. Sabemos que as narrativas e seus fios constituem a narração dos fatos, envoltos em véus culturais, bem como constituem uma forma de exercício de poder e de hegemonia nos distintos lugares e situações de comunicação. Por conta disso, é preciso lembrar que, “no plano mais profundo, o das mediações simbólicas da ação, a memória é incorporada à constituição da identidade por meio da função narrativa.” (RICOEUR, 2012, p. 98). Claude Lévi-Strauss, num artigo intitulado A Estrutura e a Forma – reflexões sobre a obra de Vladimir Propp, afirma que a narrativa consiste, simultaneamente, numa sucessão de acontecimentos ‘no tempo’ e ‘fora do tempo’, quer dizer, seu valor significante é sempre atual. Paul Ricoeur (2012) nos lembra a asserção aristotélica de que memória é tempo, e que a coisa lembrada é identificada a um acontecimento singular, que não se repete, sendo que “o essencial é que o objeto temporal reproduzido não tenha mais, por assim dizer, pé na percepção. Ele se desprendeu. É realmente passado. E, contudo, ele se encadeia, faz sequência com o presente e sua cauda de cometa.” (RICOEUR, 2012, p. 53). Conforme salienta Claude Bremond (2011), toda narrativa consiste em um

42 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS discurso que integra uma sucessão de acontecimentos dotados de significação, pois estão necessariamente relacionados ao interesse humano e organizados em uma série temporal estruturada. Para Barthes (2011), a significação de uma narrativa não reside no final, mas atravessa toda a narrativa, sendo necessário perceber os encadeamentos horizontais do fio narrativo sobre um eixo vertical, assim como seus estágios. “E é assim que a narrativa ‘anda’: a estrutura ramifica- se, prolifera, descobre-se – e recobra-se: o novo não cessa de ser regular.” (BARTHES, 2011, p. 61). No jornalismo, é preciso então puxar os fios dos acontecimentos e diferentes versões dos fatos passados e as perspectivas e antecipações para o futuro a fim de que a história do presente circule nas praças públicas como itens de atualidade, ou agendas de atributos, que visem o bem comum. Personagens, depoimentos e ações constituem estas agendas de atributos, que foram chamadas por Weaver de “segundo nível” da agenda, sendo que o enquadramento está neste segundo nível – que não é nem mais específico nem mais ou menos profundo que o agendamento – é um desdobramento do próprio agendamento. As agendas de atributos são perspectivas e frames usados pelos jornalistas para chamar a atenção para determinados atributos dos objetos da cobertura de notícias, e a estrutura básica dos fios narrativos tece a agenda, tanto no agendamento quanto no enquadramento da notícia. Vejamos: pelos fios narrativos, devemos ressaltar a conexão temporal da notícia, uma vez que ao desorganizar o presente, o fato narrado estende o tempo para trás e para frente, ligando-se ao passado e a futuros possíveis. Da mesma forma, a conexão dos fios e malhas narrativas do acontecimento jornalístico, juntamente comos acontecimentos sociais desencadeados por indivíduos, grupos e instituições irá tecer no tempo e no espaço a história dos homens como uma grande narrativa, alterando o conhecimento, produzindo efeitos e transformações pelo mundo. As malhas e fios narrativos como estrutura básica de análise da narrativa jornalística constitui inicialmente uma abordagem alegórica, visto ser uma metáfora em movimento: os fios se interligam uns nos outros, possibilitam distinguir os acontecimentos, diferenciar as leituras e níveis da narrativa jornalística, e se engendrarem para formar ‘outras mesmas’ malhas discursivas. Pela análise das realidades factuais, no plano do enquadramento e da narrativa jornalística, a busca é pelo fio de Ariadne que permeia os tempos vividos e os articula ao presente. Os personagens que habitam a narrativa jornalística fazem parte desta história do presente, são fios de referência que proporcionam um dado sentido subjetivo à notícia, informações que dão margem a diferentes sentidos e sinais acerca dos acontecimentos e que podem, num determinado momento, se intercalar a outras malhas narrativas, unidades autônomas do próprio texto, a tessitura da narrativa. Considerando, então, que as malhas e fios narrativos são estruturas específicas do texto jornalístico, é possível consequentemente relacionar as representações sociais com estes fios narrativos

43 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS que sustentam os sentidos da notícia, impedindo que escapem, e desse modo captam os acontecimentos como representações da realidade social. Ademais, visualizar a rede de malhas e fios narrativos nos permite desvendar a lógica textual de episódios, intrigas, personagens e seus conflitos, suas estratégias argumentativas que tecem o jornalismo como a história do presente. Como estrutura básica de análise, entendemos as malhas narrativas como os parágrafos retirados da matéria analisada, as sequências narrativas de referência que irão se entrelaçar aos demais enunciados do texto jornalístico, numa pluralidade de fios narrativos (Fonseca, 2012). A estrutura textual dos fios como tessitura da narrativa compreende os fios nodais que envolvem as informações principais, os fios de referência que revelam nomes, datas, locais, e os fios de espera que trazem fatos já-ditos e sofrem uma descontinuidade no texto (Lima, 1990); (Porto, 2012). Formam-se desse modo as malhas que interligam materialmente a língua e a história através da narrativa jornalística.

Metodologia: fios e representações

Como as narrativas entrelaçam os fios das histórias e representam a realidade? O caminho é o texto da notícia como ponto de partida uma vez que as narrativas só existem em contexto e não podem nunca ser compreendidas isoladamente sob pena de perderem o seu objeto determinante. A notícia como narrativa do fato relata o que deve e o que não deve ser noticiado, envolvendo personagens num jogo incessante de disputa de sentidos, “a narrativa se apresenta assim como uma série de elementos fortemente imbricados; (...) um jogo incessante de potenciais, cujas quedas variadas dão à narrativa seu tônus ou sua energia; cada unidade é percebida no seu afloramento e sua profundidade.” (BARTHES, 2011, p. 60). Revisitando Gonzaga Motta (2004) em seu artigo Jornalismo e configuração narrativa da história do presente, surge a questão: onde encontrar os fios que conectam as histórias e tornam os acontecimentos compreensíveis? E Motta prontamente dá a resposta: um novo tipo de acontecimento vinculado ao jornalismo vislumbra hoje outra história, diferente. E logo vem a indagação: Como? E a resposta: Pelos fios que atravessam as cordas do tempo e do espaço do homo narrans na era do jornalismo digital. É preciso, pois, organizar, estruturar, conceitualizar estes fios para que no campo da comunicação sejam úteis e não apenas metafóricos. Este estudo traz como referência inicial o trabalho de Maria Emília Lima (1990): A construção discursiva do povo brasileiro – os discursos de 1º de maio de Getúlio Vargas, onde se lê:

(o discurso) pode ser considerado como o fio de montagem, como o texto de referência em relação aos discursos que lhe sucederão. Podemos dizer também que este discurso traz ‘malhas’ que serão tecidas na primeira época do governo Vargas; outras ‘malhas’ serão colocadas em um fio de

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espera (como é o caso para o que diz respeito aos trabalhadores rurais); outras ‘malhas’ serão provisoriamente largadas, ‘malhas’ serão perdidas; e, finalmente, ao longo da prática discursiva populista de 1º de maio, outras ‘malhas’ serão acrescentadas. (LIMA, 1990, p. 118)

Sergio Porto (2010) menciona a mesma estrutura dos fios e malhas em Análise de Discurso – as seis camadas de leitura em massa folhada:

Admitindo-se que os textos são tecidos, malhas que podem ser mais bem vistas sob o reflexo da luz, buscar as malhas e as tramas nodais fundamentais, os fios de montagem, as malhas básicas que sustentam as narrativas expressivas do conhecimento humano, assim como outras malhas, tecidos visíveis nos textos e nas práticas culturais que, embora não sendo preponderantes, exercem papéis fundamentais para a compreensão do discurso. Exemplo disso são as malhas de fio de espera, malhas provisoriamente largadas, malhas perdidas e malhas acrescentadas. É o momento da busca do já dito, do já visto, do já ouvido e que travará uma relação expressiva e significativa com as coisas dizíveis, com as coisas que ainda vão acontecer. (PORTO, 2010, p.30-31).

É o momento de busca da arca – que não está perdida – (Porto, 2010), é o momento de descobrir as funções simbólicas da narrativa. Porto afirma ainda que “discurso e narrativa são fios e malhas capazes de tecer o tecido social adotando sempre fios de espera. Nesse sentido os fatos podem ser todos eles arriscadamente equiparados a fait-divers, acontecimentos variados.” (PORTO, 2010, p.30). Para Motta (2013), toda narrativa constitui um permanente jogo entre os efeitos de real (aqui e agora do jornalismo, as citações conferindo veracidade, os lugares, os nomes próprios) e os efeitos de sentido (memória cultural, comoção, dor, compaixão, ironia), sendo que o analista precisa encontrar os fios que alinhavam a trama. “Mantendo a ideia de fio, continuidade, seguimento ou conexão, fica mais fácil compreender as propostas para encontrar as conexões, o caminho de Ariadne das narrativas. A metáfora do fio é útil porque ajuda o analista a fixar a ideia de trilha e encontrar a lógica narrativa em sua análise empírica.” (Motta, 2013, p. 151). Para Célia Mota, “o grande desafio é perceber como a narrativa reconstrói a realidade, numa atividade mimética que não se limita a copiar, mas a reinventar criativamente o real. E algumas questões se tornam o foco da pesquisa: de que maneira as narrativas tecem os fios e constroem o sentido das histórias?” (MOTA, 2012, p. 11). A narrativa jornalística como uma organização textual da notícia traz relatos de acontecimentos que revelam personagens e conflitos, sendo que o enquadramento da notícia evidencia o entrelaçamento de personagens, interligando-os como sujeitos do acontecimento jornalístico. É preciso desnovelar, decompor e recompor a história: “o enunciador constrói as personagens de acordo com suas intenções comunicativas, e através da argumentação antes retórica que dialética remonta e reconstitui os atores

45 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS sociais, mostrando e ocultando alguns traços em detrimento de outros. Forma- se então a malha discursiva e seus fios, que é indissociável das falas e ações das personagens na narrativa jornalística.” (FONSECA, 2012, p. 99). Indagar sobre os diferentes fios e malhas do relato jornalístico nos conduz pelo emaranhado do já-dito, do não-dito e do ainda por-dizer, que se identificam na estrutura básica de análise da narrativa, de forma objetiva, simples e direta, como segue: Fios narrativos: os fios de referência, os fios de espera e os fios nodais formam a estrutura básica para a análise narrativa. Os fios narrativos são atributos da notícia que revelam o acontecimento-intriga através do entrelaçamento do intradiscurso e do interdiscurso, presentes no enquadramento. Entende-se o interdiscurso como a memória e a constituição do já-dito e por isso mesmo do dizível, e o intradiscurso como a formulação do que está sendo dito naquele momento e em determinadas condições, o que inclui os esquecimentos ideológicos (Orlandi, 2009). Daí surge possivelmente a ilusão de os argumentos da narrativa serem considerados a origem do que se diz, ao passo que as estratégias argumentativas do personagem não raro abarcam silêncios fundantes da dominação, ou da resistência. A partir dos fios formam-se desse modo malhas narrativas que interligam materialmente a língua e a história, ao alcance cotidiano da opinião pública pelos jornais, revistas, rádio, TV, internet. Neste ponto, cabe ressaltar que a estrutura e o acontecimento da narrativa integram fenômenos que se encontram em níveis diferentes nas escalas de duração e de eficiência, cabendo à narrativa entrelaçá-los. (Ricoeur, 2012) Fios de referência: informações objetivas no corpo da notícia, como data, local, personagens, que tecem a trama do acontecimento pelo enquadramento do relato, formando a pirâmide invertida. As expressões e locuções adverbiais, tão comuns no jornalismo, são fios de referência muito frequentes na tessitura da malha narrativa. Da mesma forma, novos episódios também se transformam em fios de referência, fazendo surgir narrativas intermediárias semanticamente coesas, com ações autônomas. Daí, surgem também novos personagens, que além de guardarem uma relação estreita com a pessoa, o ser real objeto da narração, habitam a realidade da própria narrativa, que é fática, referencial. Assim, os fios horizontais do sujeito individual se entrelaçam aos fios verticais que compõem o contexto histórico de um dado episódio, fazendo com que os fios de referência irrompam no acontecimento, proporcionando um dado sentido subjetivo ao texto, dando margem a diferentes sentidos e sinais acerca dos acontecimentos. Fios de espera: notícias passadas que sofreram dentro do texto uma descontinuidade; possíveis narrativas que aguardam por novos acontecimentos para um próximo desdobramento da notícia, ou então são simplesmente esquecidas. Documentos, relatórios, mapas, citações, depoimentos a serem divulgados de novo, ou mesmo pela primeira vez. Os fios de espera da narrativa

46 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS trazem informações arqueológicas ao relato e representam um possível e novo frame ou enquadramento da matéria, um desdobramento do próprio agendamento. Os conflitos no jornalismo dispõem as ações e personagens na história, tecendo a trama, e, sobretudo, permanecem pendentes de novos fatos, mantêm as expectativas e tensões do discurso noticioso, fazendo surgir assim os fios de espera. Da mesma forma, os documentos, relatórios, registros e afins, que proporcionam à notícia os sentidos de real, muitas vezes aguardam silenciosos como fios de espera a serem puxados em arquivos confidenciais, cofres, gavetas e envelopes lacrados. Fios nodais: acontecimentos principais da narrativa, geralmente encontrados no lide, evidenciando o personagem e/ou o conflito principal. Qualquer um dos Quês da pirâmide invertida pode constituir o fio nodal, que por outro lado também pode estar subentendido no relato, uma vez que os conflitos que configuram a intriga e ações dos personagens às vezes são manifestações de conflitos mais profundos, de ordem ética e moral, funcionando como estrutura de fundo da narrativa. Identificando o fio nodal do relato, categorias mitológicas e ideológicas irrompem no relato e sobem à superfície do texto, e assim surgem na trama as metanarrativas. Identificar o(s) fio(s) nodal(is) é compreender a lógica textual da notícia, desvendar a essência da narrativa, com as conexões e elos de causalidade entre os incidentes da intriga e possíveis desdobramentos de novos episódios, e assim fazer surgir os sentidos de real do fático, conferindo veracidade à notícia. Sabemos que, no acontecimento jornalístico, os sujeitos e suas ações se manifestam amiúde por meio de contradições, num entrelaçamento de discursos, de estratégias argumentativas, jogos de sentidos subentendidos que podem conduzir o leitor-ouvinte-espectador ao fio nodal da trama, “no processo de historicização que pode seguir dois caminhos distintos, que só em último caso juntam-se no mesmo ponto: o caminho do objeto e o caminho do sujeito” (JAMESON, 1992, p. 9). Malhas narrativas: lides, parágrafos, frases e períodos, unidades autônomas e semanticamente coesas do próprio texto, que entrelaçam os três tipos de fios narrativos – fio de referência, fio de espera e fio nodal. Análise do objeto: Trechos da matéria Por trás do verdadeiro mecanismo de corrupção do Brasil (El PAÍS digital, por Regiane Oliveira, 29 mar 2018) Malha narrativa 1 Anões do Orçamento, Dossiê Cayman, Pasta Rosa, Máfia dos fiscais, compra de votos para a reeleição. À parte a CPI do Banestado, que voltou a ganhar destaque ao ser mencionada de forma caricata na série O Mecanismo, da Netflix, os muitos escândalos de corrupção que assolaram o Brasil após a redemocratização parecem estar fadados ao esquecimento. A sucessão de eventos, crimes, personagens, investigações, bem como as parcas condenações fazem com que a realidade brasileira de combate à corrupção seja difícil, para não dizer quase impossível, de acompanhar. Um projeto de pesquisa da USP, no entanto, aposta na ciência da computação para tirar esses casos do ostracismo, revelar o verdadeiro mecanismo de funcionamento das redes de corrupção no país e, no futuro, até prever como são formadas essas redes.

47 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Identificar os fios narrativos é aprender a desembolar o campo, a deslinearizar o texto para fazer aflorar as diferentes camadas do passado que repousam na lisura, no sentido parafrástico das palavras. Para tanto, é preciso lembrar, reproduzir, reiterar o que foi dito, não-dito e também o que foi esquecido, num processo duplo de retorno da memória e do esquecimento como ausência da memória, uma ausência que por vezes deixa traços, trilhas, fios. O lide da matéria em análise nos mostra fios de espera – osAnões do Orçamento, Dossiê Cayman, Pasta Rosa, Máfia dos fiscais, CPI do Banestado, casos escandalosos de corrupção que se tornaram acontecimentos jornalísticos de datas passadas, sofreram uma descontinuidade como notícia e permanecem à espera de novos fatos. Vale ressaltar que os enquadramentos dos episódios de casos levantados pela mídia demonstram a capacidade que tem o discurso jornalístico de fazer narrativa tanto pela memória, como também por uma organização do esquecimento. Por sua vez, a série O Mecanismo, da Netflix, funciona como fio de referência desta malha narrativa, uma vez que remete a referência propriamente dita de novos episódios com outros personagens, conflitos e ações que sustentam o enquadramento do relato. Da mesma forma, as expressões escândalos de corrupção, crimes, investigações, parcas condenações, combate à corrupção, redes de corrupção, e redes são fios de referência que imprimem efeitos de sentido e tecem a trama do acontecimento, evidenciam o conflito e marcam o território da memória nas narrativas de combate e redes de corrupção, proporcionando um determinado sentido subjetivo ao texto. Outro fio de referência presente no lide é a locução grupo de pesquisa da USP, que apresenta a instituição acadêmica Universidade de São Paulo como personagem do relato, e anuncia o surgimento de outros personagens reais que fazem parte do grupo de pesquisa, bem como prenuncia novas informações no relato que irão compor a trama da notícia. Portanto, a cartografia narrativa está delineada no lide da matéria, cujo enquadramento conduz ao entrelaçamento de fios narrativos que revelam o combate à corrupção. O termocorrupção , que com sua carga semântica antecipa manifestações de conflitos arraigados, representa o fio nodal da matéria, a essência da narrativa que vai conduzir e interligar os fios do relato jornalístico em análise. Malha narrativa 2 Na trama do Brasil real não há um personagem principal que lidera um grande esquema de desvio de dinheiro público, como por vezes ronda a imaginação popular. Mas, sim, uma rede bem engendrada de relacionamentos da qual foram mapeados 404 nomes – entre políticos, empresários, funcionários públicos, doleiros e laranjas –, de pessoas envolvidas em 65 escândalos de corrupção entre 1987 e 2014. “Essas redes criminosas operam de forma similar ao tráfico de drogas e às redes terroristas”, explica Luiz Alves, pós-doutorando no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP, em São Carlos, e um dos cinco pesquisadores do projeto. Para desnovelar os fios narrativos é preciso analisar a linearidade do texto a partir dos diversos funcionamentos, como as reformulações parafrásticas, a

48 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS pluralidade de vozes, o encadeamento do texto. A recontextualização dos fios narrativos reagrupa e reordena o relato, proporcionando um outro modo de leitura que superpõe e desembaraça uns fios dos outros, realizando uma nova tessitura sobre a narrativa. Dessa forma, a segunda malha narrativa está repleta de fios de referência, revelando a terrritorialização da corrupção como “uma rede bem engendrada de relacionamentos”, a corrupção que marca território, os territórios da corrupção. Os termos Brasil real, personagem principal e imaginação popular representam três fios de referência fortemente interligados que proporcionam efeitos de sentido ao texto, juntamente com os termos trama, lidera, ronda, conduzindo à ideia de busca pela identificação do responsável, ou responsáveis, ou até mesmo pela busca do(s) culpado(s) pelo esquema de desvio de dinheiro público no país. O termo rede aparece novamente por três vezes nesta malha narrativa, funcionando como fio de referência que representa a formação de agrupamentos, de pontos e de nós, ligando o termo à ação de entrelaçamento: redes bem engendradas. Por sua vez, os termos nomes, políticos, empresários, funcionários públicos, doleiros, laranjas, são personagens que funcionam como fios de referência do relato, e que podem vir a serem personagens principais em novos acontecimentos, num próximo desdobramento da notícia. Esta pluralidade de personagens ligados à expressão escândalos de corrupção proporciona novos elementos para identificação dos nós presentes no corpus da narrativa. Da mesma maneira, os termos quantitativos 404 nomes, 65 escândalos de corrupção, e a data entre 1987 e 2014 funcionam como fios de referência, são dados empíricos que produzem efeitos de real ao relato e fornecem os elementos que confirmam a existência da prática de corrupção e dão consistência à análise. O personagem principal e fio de referência desta malha narrativa é Luiz Alves, pós-doutorando no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP, em São Carlos, sendo Alves um dos cinco pesquisadores do projeto, descrito no início da matéria, que fazem o mapeamento das redes de relacionamento entre os escândalos de desvio de dinheiro público no Brasil, após a redemocratização. Em discurso direto na matéria, Alves relaciona os termos redes criminosas, tráfico de drogas e redes terroristas de forma explicita e direta, puxando novos fios narrativos para a superfície do texto. A trama narrativa vai se compondo com a conexão dos diversos personagens identificados no texto como fios de referência, e suas ações entrelaçadas pelo fio nodal da corrupção e do combate à corrupção, num engendramento de intrigas e conflitos comuns à narrativa jornalística. Os fios narrativos se entrelaçam ora como fios de espera, ora como fios de referência, todos perpassando pelo fio nodal do relato que abrange as formulações narrativas tanto de forma explícita quanto implícita, constituindo o corpus do relato como um emaranhado de fios, um nó em uma rede narrativa e suas conexões, deslinearizada pela identificação, desconstrução e desnovelamento das malhas e fios narrativos.

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Conclusão

Se “a comunicação tece o véu do mundo codificado” (FLUSSER, 2007, p. 91), os fios narrativos das notícias propiciam o entrelaçamento da história diária do mundo dos homens, unindo o passado e o futuro dos acontecimentos, com seus encadeamentos e reverberações. Pela tessitura desses fios narrativos, a notícia produz diversos nacos de sentido, atua na reestruturação do real, permite a interlocução de diferentes vozes e exerce dessa forma papel importante no sentido de legitimar acontecimentos na comunicação política. O enquadramento exerce influência direta na correlação de poder entre os grupos que se legitimam, trazendo instabilidade e constante reatualização das narrativas jornalísticas. A estrutura dos fios narrativos – nodais, de referência e de espera – tece uma relação de complemento na identificação do enquadramento e das estratégias narrativas, seus efeitos de sentidos e argumentação retórica. O poder de enunciação faz parte do processo de configuração de realidades sociais, sendo a mídia o espaço contemporâneo no entrelaçamento de vozes dissonantes. Retomando o fio nodal da narrativa jornalística selecionada para análise, consideramos que a compreensão de um determinado texto nos remete a ter consciência das raízes de muitos problemas brasileiros. Segundo Gadamer, a consciência histórica é privilégio do homem moderno de ter pleno conhecimento da historicidade de todo o presente. “Os efeitos dessa tomada de consciência histórica manifestam-se a todo instante sobre a atividade intelectual dos nossos contemporâneos” (GADAMER, 2006, p.17). Para um país cuja agricultura surgiu sustentada pelo trabalho servil dos escravos vindos da África, país marcado por práticas de colonização mercantilista, de coronelismo, aliadas a um Estado caracterizado pelo autoritarismo burocrático, a corrupção representa uma chaga que é fruto de um jogo de poder aliado à cultura da impunidade. O texto analisado, mostrando as relações de cumplicidade entre personagens da vida pública brasileira em busca de lucros ilegais, traz à tona o processo de ‘patronagem’, trabalhado por Roberto da Matta em Carnavais, Malandros e Heróis (1981, p.220). Ao desvendar os laços entre os poderosos ao longo da nossa história, o antropólogo caracteriza as relações numa sociedade onde os pobres têm que se associar aos ricos e aceitar suas condições, seus contratos. Trata-se de uma cadeia de hierarquização que se apropria do trabalho alheio em benefício próprio. É o rito do “você sabe com quem está falando?”, que já foi tão popular no Brasil e que caracterizou posições sociais diferentes. Da Matta afirma que o que se vê, no uso desta frase, é uma situação onde o que se deseja é passar por cima de uma lei. Existe uma separação entre uma lei geral, impessoal, e uma pessoa que se define como especial, merecedora de um tratamento acima da lei. É a subversão do artigo constitucional que afirma que a lei é igual para todos. Se a frase saiu de moda, seus efeitos ainda produzem sentidos que ecoam na memória da população que, em geral, acredita que a

50 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS justiça funciona a favor dos ricos. Estes esquemas hierárquicos do passado sobrevivem nos processos de corrupção atuais que mostram o funcionamento de redes organizadas para proveito financeiro. A hierarquia pode ser identificada por uma escala que integra políticos, empresários, funcionários públicos, doleiros e laranjas, em diferentes níveis. Suas práticas já são identificadas como corrupção em relatos noticiosos, assim como estão sendo marcadas por uma palavra chave, que é o escândalo. Este nome sintetiza o efeito de sentido do texto do jornal El Pais. Escândalo é tudo aquilo que estava encoberto e começa a ser revelado. A revelação, por sua vez, determina a adoção de novas posturas por parte da sociedade brasileira. O trabalho dos pesquisadores da USP levantando os esquemas de ‘patronagem’ por trás das atividades de corrupção no Brasil, e divulgado pelos jornais, se insere numa postura de luta por maior igualdade, que vem se fortalecendo no país a partir da Constituição de 1988, que garantiu os direitos civis e humanos da população. Esta é uma posição reflexiva, no sentido dado ao termo por Gadamer, que permite que tenhamos um conhecimento maior dos nossos problemas e de suas origens históricas. Com a divulgação pelos meios de comunicação do modus operandi da corrupção no Brasil, pode-se imaginar que a mudança é possível.

Referências

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51 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

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53 Do passado ao presente pelo fio da memória: por uma abordagem semântico-discursiva de perfis

Fabiano Ormaneze

Narrativa, memória e antologia: breves notas sobre o tornar-se perene

Está lá, em todos os livros e manuais, seja explicitamente ou como uma inferência do leitor: o Jornalismo é a narrativa do presente. Os mais apaixonados nessa defesa poderiam dizer ainda que a “notícia de hoje é a história de amanhã”, enunciado que, por sinal, circula em manuais de redação, como uma das justificativas para que a apuração seja de qualidade, pois o que se está produzindo para ser veiculado num jornal, independentemente do suporte (impresso, TV, rádio, internet etc.), será também, futuramente, uma fonte histórica em potencial:

O campo das práticas [do Jornalismo] não é alheio a essa interação com a História, desde seu próprio âmbito. Ou seja, não são apenas os historiadores que recorrem a jornais para elaborar suas narrativas (e jornalistas que utilizam o conhecimento histórico), mas os jornalistas têm, por vezes, papel importante e ao mesmo tempo polêmico na elaboração da chamada “história imediata”. (ROMANCINI, 2007, p. 24).

Além da perspectiva narrativa dessa história imediata, a relação do jornalista com o passado também ocorre no que Romancini (2007) nomeia de “jornalismo retrospectivo”, que diz respeito à elaboração de materiais ligados à História ou que, de alguma maneira, interseccionam-se com ela, como é o caso das biografias, das edições comemorativas ou mesmo de alguns livros- reportagem1. Para além da “história imediata” ou do “jornalismo retrospectivo”, o foco deste texto é discutir como uma narrativa jornalística, marcada pela atualidade e o interesse público, delimitada pela periodicidade do veículo para a qual é elaborada, produz novos e outros efeitos de sentido, quando, anos após a publicação original, é republicada no formato de uma coletânea em livro, sem, no entanto, deixar de carregar consigo elementos cristalizados na caracterização dos personagens do texto. Com isso, pretendemos contribuir para a discussão sobre métodos de análise da narrativa, considerando a possibilidade de uma 1 Nos últimos anos, diversos livros-reportagem foram publicados, em geral, com bons índices de leitura, recontando fatos da História do Brasil. É exemplo, a trilogia de Laurentino Gomes, que narra os acontecimentos históricos de 1808, 1822 e 1889 (Fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil, Independência e Proclamação da República, respectivamente).

54 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS reflexão semântico-discursiva. Parte de uma pesquisa maior de doutorado centrada na análise de duas antologias que compilam perfis publicados pela revista piauí2, esse percurso metodológico é ilustrado aqui pela análise de trechos do corpus, focando-se, principalmente, nos aspectos relacionados à presença de trechos descritivos e nos títulos dados aos perfis. Por perfil, entende-se um texto jornalístico, que se justifica pelos critérios de noticiabilidade, centrando-se em retratar um indivíduo, que se torna, ao mesmo tempo, foco e protagonista da pauta concretizada3. No perfil jornalístico, um sujeito é retratado por meio de signos verbais ou pela combinação de palavras e outros tipos de signos, no caso de obras audiovisuais. Como diz Maia (2013, p. 176), trata-se de uma “composição textual do sujeito”, em que a não cronologia, a liberdade estético-estilística e a variedade de recursos narrativos, em geral, fazem-se presentes. Acreditamos que, se há palavra, assim como qualquer signo, deve haver aí um espaço para a reflexão sobre o sentido e, por isso, levamos em consideração as questões da narrativa jornalística a partir da Análise de Discurso (AD), em diálogo com a Semântica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002). A análise da narrativa jornalística avança em qualidade quando, à perspectiva dos elementos formais, do conteúdo e das rotinas de produção, associam-se questões relativas à produção de sentidos, à ideologia e à memória, compreendendo o discurso como constituído historicamente, resultado de uma série de outras formulações, que, com dominância de umas sobre as outras, circulam socialmente, o chamado interdiscurso (PÊCHEUX, [1975] 2010). A AD, surgida na França no final dos anos 1960, pelo trabalho de Michel Pêcheux, concebe o discurso como só existente na relação entre os sujeitos, determinados pela ideologia4 e pela história. A abordagem discursiva baseia- se na não literalidade, entendendo a língua como um sistema que organiza sentidos possíveis e não possíveis, a partir do momento histórico e dos sujeitos que participam da enunciação. A Semântica do Acontecimento, por sua vez, dialoga com a AD, ao entender que “o enunciado tem como suporte um dizível historicamente constituído” (GUIMARÃES, 2002, p. 8). A enunciação é tomada, então, como “um acontecimento no qual se dá a relação do sujeito com a língua” (GUIMARÃES, 2002, p. 8).

2 A revista piauí (cujo nome é grafado oficialmente em letras minúsculas) surgiu em 2006, criada pelo jornalista e documentarista João Moreira Salles. Inspirada editorial e graficamente na estadunidenseThe New Yorker, tem periodicidade mensal e é comercializada atualmente pelo Grupo Abril. A tiragem, de acordo com o Instituto Verificador de Circulação (IVC), é de cerca de 20 mil exemplares/mês. Desde a origem, a revista dedica-se a grandes-reportagens, caracterizando-se pelo uso do Jornalismo Literário, ou seja, textos que se propõem à abordagem aprofundada, humanizada e utilizando estratégias estético- estilísticas próprias da literatura, como a descrição, a linguagem metafórica e a voz autoral, entre outros. 3 Sobre a definição de perfis, cf. Vilas-Boas (2003), Maia (2013) e Ormaneze (2013). 4 Uma das contribuições trazidas por Pêcheux, sob influência de Althusser, é o rompimento com a concepção marxista de ideologia. Para a AD, o ideológico não é simplesmente a expressão do poder burguês, mas o local e o meio para a realização dessa dominação. Como lembra Orlandi (2009, p. 9), “a ideologia não é x, mas o processo de produzir x”, levando a uma naturalização dos sentidos.

55 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Temos em mente que, como corpo teórico-metodológico, ambos os campos podem contribuir para os estudos sobre jornalismo e narrativa, à medida que levam em consideração os processos históricos e ideológicos nos quais a produção dos diversos gêneros jornalísticos está imbuída. Mostra ainda que, para além do sujeito coincidente consigo mesmo, herdado do Positivismo, existe um sujeito-Outro, atravessado pelo inconsciente e pela ideologia.

Narrativas antológicas ou antologias narrativas?

As duas produções que analisamos estão organizadas no formato de livro e pertencem a uma coleção denominada “Jornalismo Literário” (Cia. das Letras), que conta com cerca de 30 títulos publicados desde 2002. Em comum, entre os dois volumes com textos de piauí, está o fato de que eles reúnem, exclusivamente ou não, perfis de políticos brasileiros. O livro denominado “Vultos da República: os melhores perfis políticos da revista piauí” (2010) traz nove perfis, publicados originalmente entre 2007 e 2010, em sessão homônima na revista. No segundo caso, “Tempos instáveis: o mundo, o Brasil e o Jornalismo em 21 reportagens da piauí” (2016), entre os textos compilados, há três perfis de políticos brasileiros. Ao contrário do primeiro, exclusivamente de perfis, nesse segundo volume estão republicados textos de vários gêneros que ocuparam páginas da revista entre 2011 e 2016. Ao olhar para as referidas coletâneas, perguntamo-nos, entre outras questões, sobre as regularidades que materializam o sentido de “melhores perfis políticos” e da inclusão de (apenas) três perfis numa antologia que pretende dar conta de meia década do “mundo, do Brasil e do Jornalismo”. Questionamo-nos, por fim, como uma narrativa, centrada no relato do presente, volta a produzir efeitos ao compor uma antologia, por um processo de rememoração e esquecimento e, no caso particular da segunda das coletâneas aqui analisadas, também de comemoração, já que um dos objetivos da publicação foi celebrar os 10 anos de história da revista. Retornar àquilo que já foi dito ou, no caso, publicado, não significa colocar-se no mesmo lugar, mas, justamente pelo fato de retornar em outro espaço e em outro tempo, torna-se imediatamente outro. Nesse ponto, colocamo-nos na tensão entre dizer “narrativa antológica” e “antologia narrativa”. Há três razões para isso. Primeiro, existe o reconhecimento de que, quando textos são agrupados, cria-se um sentido de unidade que se configura como uma nova narrativa. Não há mais como analisar e compreender qualquer um deles como único ou particularizá-lo. Eles passam a fazer parte de um todo que, de outro modo e antes, não existi(ri)a. Significam na relação de uns com os outros. Ao mesmo tempo, a segunda razão é o interesse que existe, por parte dos organizadores, em conceder o atributo de antológica, portanto, de perene, a uma narrativa

56 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS que, fora dessas condições, padeceria pela volatilidade de uma notícia ou de qualquer texto publicado num veículo periódico. Por fim, há a relação entre as duas considerações anteriores: na tentativa de se tornar História e antologia, uma nova narrativa é colocada em circulação, passando a fazer parte do conjunto de já-ditos sobre algo ou alguém. Assim, esses textos produzem memória do que foi a revista durante esse período, mas também são ressignificados numa nova rede narrativa, que tenta reclassificá-los, reordená-los e dar a eles o caráter antológico e comemorativo, o que justificaria a nova publicação. Além disso, os textos pretendem adquirir um caráter histórico, tentando mostrar o que foi uma época, pela ótica da cobertura de uma revista brasileira. Se uma publicação no referido suporte passa “em revista” os acontecimentos que tiveram lugar no tempo que compreende a periodicidade, o que se tem na antologia é uma dupla passagem por esse passado: além do que mereceu espaço no tempo entre duas edições da revista, republica-se o que desponta como o que merece ser relembrado e cristalizado num livro, veículo que carrega, socialmente, o pré-construído de um lugar de saber consolidado e durável. Eco e Carrière (2010) chegam a garantir, inclusive, que é a credibilidade atribuída ao livro como suporte que permitirá sua sobrevivência na era tecnológica. A (re)publicação de textos marcados, em algum momento, pela fluidez da periodicidade contribui ainda para o que Maingueneau (2012) chama de “paratopia”, ou seja, a negociação de estar num ou noutro lugar, no território do Jornalismo, da Literatura ou da História, permitindo que um texto num veículo como um livro coloque-se como um discurso constituinte, ou seja, aquele que confere sentido aos atos da coletividade e tem um estatuto singular. Dito de outro modo, são as “zonas de falas entre outras e falas que se pretendem superiores a todas as outras” (MAINGUENEAU, 2012, p. 61). Como modo de circulação, as antologias são uma das invenções da produção gráfica derivada do mercado livreiro após o surgimento dos tipos móveis em meados do século XV, na Alemanha. Ainda na época das cópias manuscritas, esse formato encontrava similaridade nos chamados “cancioneiros”, comuns tanto na literatura espanhola quanto portuguesa dos séculos XII e XIII. Benedict (1996) promove uma diferenciação entre o que seria uma “coletânea” e uma “antologia”, embora seja comum que os termos sejam tomados, por diversos autores, como sinônimos. As coletâneas, em sua origem, de acordo com a autora, foram comuns no começo do século XVIII, organizadas por livreiros com a proposta de apresentar escritores novatos, que tentavam entrar no mundo literário. Já a designação de antologia, historicamente, diz respeito às compilações, realizadas desde a Antiguidade, de textos já canônicos. Assim, ao fazer memória, a antologia torna-se um gênero discursivo que oferece indícios sobre o modo que se escreve, sobre os lugares de fala e os gestos de leitura de uma determinada época ou, no nosso caso, de uma revista

57 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS e sua relação com a política brasileira. A matéria-prima de uma antologia é o passado, que, como discurso, não é finito, nem está pronto, mas sempre sujeito a ser posto em embates com novas significações. Falar do passado, narrá-lo, significa também falar do presente e do futuro, pela rede de projeções que se permitem materializar. Como diz Serrani (2008, p. 278), na literatura, a reunião de poemas, contos ou quaisquer outros gêneros discursivos em formato de antologia “contribui diretamente para formar e transformar cânones, confirmar reputações literárias e estabelecer ou interferir em práticas letradas de gerações de leitores”. No caso de uma compilação de textos que fazem memória de uma época e de uma trajetória de publicações sobre política, temos uma materialidade que reapresenta visões sobre ser “político”, “ser republicano” e sobre a própria narrativa jornalística, já que a revista piauí é tida como um exemplo de qualidade na imprensa brasileira (CARVALHO, 2014). Lembremos ainda de que, do ponto de vista didático, as antologias sempre tiveram papel sobressalente na constituição de uma história dos gêneros discursivos. “As tradições, os patrimônios literários nacionais e seus leitores foram constituídos, em boa parte, por antologias” (SERRANI, 2008, p. 274). É comum a utilização desse tipo de material como ferramenta didática, seja para o ensino do idioma, quando se tem uma compilação de poesia ou de contos, por exemplo, ou do próprio fazer jornalístico, já que textos da revista piauí são utilizados, com regularidade, na formação de jornalistas, sobretudo quando o assunto é a escrita de perfis ou o Jornalismo Literário.

Ser político na/da narrativa

A piauí, por meio das duas coletâneas aqui analisadas, instaura-se num ritual de dizer o que é ser político e o que é falar sobre político(a) por meio de um perfil jornalístico, além de dizer o que é ser “republicano”, no caso específico da primeira antologia, e o que merece ser “republicado”, no caso de ambas. O jogo de sentidos possíveis entre o “republicano” e o “republicado” materializa-se no subtítulo da primeira antologia: “os melhores perfis políticos da revista piauí”. A designação “melhores perfis” refere-se a quê? Produzem- se aí sentidos que se relacionam tanto ao gênero discursivo a que os textos pertencem (os melhores perfis) quanto à caracterização de um indivíduo, no sentido de que os incluídos na coletânea têm o “melhor perfil” de político. Essa possibilidade de deslize no sentido torna factível que o que esteja em jogo como “melhores” sejam tanto os exemplos de “perfil” quanto de “perfilado”. Estar ou ser incluído nesse grupo, portanto, significa também inscrever tais discursos numa rede de formulações, em que eles se repetem num jogo emaranhado de relações de poder:

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Suponho que em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, [1970] 2004, p. 8-9).

Esse emaranhado é o que dá materialidade à escrita e o que faz pensar sobre os apagamentos que, no processo de inclusão/exclusão, compõem as antologias. No caso de piauí, o sujeito do discurso apropria-se de um conjunto de textos que circularam antes, em determinadas condições de produção, para ressignificá-los, para propor uma identificação com os leitores (novos ou que já tinham lido os textos na revista), num movimento de rememoração, de comemoração e de esquecimento. Ventura (2008) explicita que a rememoração funciona como uma evocação da memória. A comemoração, por sua vez, como uma atualidade. Dito de outra maneira, temos aí o discurso estruturado a partir de uma memória, tomada em suas dimensões vertical e horizontal. Na rememoração, temos a retomada do que fala antes, do já-dito. Já no eixo horizontal, onde está inscrita a comemoração, o que temos é a linearização do dizer, materializado de uma forma e não de outra, dentro de infinitas possibilidades da linguagem. Nesse ponto de nossa reflexão, reunimos três conceitos: as noções de ritual, como prevê Foucault ([1970] 2004), e as de função-autor e de efeito-leitor, de Orlandi (2008). O ritual, como um procedimento de controle, diz respeito “a todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seus efeitos sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção” (ORLANDI, 2008, p. 39). Assim, no lugar de enunciação de piauí, os discursos colocam-se associados a uma prática de ritual que determina, para “os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos” (ORLANDI, 2008, p. 39), o que fica evidente já nos títulos dos perfis, como veremos. O ritual está numa engrenagem de formulação e circulação de discursos da qual fazem parte também a função-autor e o efeito-leitor. Orlandi (2009, p. 75) lembra que “a unidade do texto é efeito discursivo que deriva do princípio de autoria”, e que “um texto pode até não ter um autor específico, mas, pela função-autor, sempre se imputa uma autoria a ele”. O nome piauí tem um papel que delimita fronteiras e tetos, caracterizando-se distintamente e em (o)posição a outras publicações, seja em formato de livro ou de revista. Da mesma forma, a designação como coletânea (ou antologia) e a perspectiva de rememorar atribuída a esses textos caracterizam uma maneira de enunciar. Como prevê um interlocutor, “ao produzir um texto, o autor faz gestos de interpretação que prendem o leitor nessa textualidade, constituindo assim ao mesmo tempo uma gama de efeitos-leitor correspondente” (ORLANDI, 2008, p. 151).

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Pelos modos como se constitui enquanto revista, ao organizar duas antologias sobre (sua) história, a narrativa de piauí constrói um ritual discursivo, inserindo-se como voz de autoridade aos seus leitores e ao próprio jornalismo brasileiro. Para demonstrar essa perspectiva, focalizemos dois trechos. O primeiro, vindo do posfácio de Vultos da República. O segundo, do prefácio de Tempos Instáveis:

A) A piauí, de fato, chegou desafiando uma tendência imperiosa, para não dizer tirânica, que nas últimas décadas tomou conta do jornalismo, e não só no Brasil, baseada na convicção de que o leitor não gosta de ler, razão pela qual é preciso servir-lhe rações de texto cada vez mais reduzidas. (...) O mesmo se diga de tantos textos longos de piauí, capazes de fazer o passageiro da ponte aérea São Paulo-Rio de Janeiro ansiar por um voo bem mais demorado. Entre eles, perfis que, por sua alta qualidade, são capazes de atravessar o tempo para, lá adiante, meses, anos após sua chegada às bancas, fazerem a felicidade de quem se compraz na leitura de revistas velhas. Poderiam, quase todos, se perenizar em livros como esta primeira coletânea da piauí, dedicada ao que aqui se decidiu chamar, com ironia opcional, de vultos da República. (WERNECK, 2010, p. 291-292).

B) A forma de trabalhar da revista foi se tornando uma referência para os jornalistas. Havia duas características cobiçadas e cada vez mais raras: tempo para apurar e espaço para escrever. Além, claro, de independência editorial, sem o que não se faz nada que valha a pena em jornalismo. (...) A aposta na apuração paciente e minuciosa, que requer coleta exaustiva de informações, contato demorado com as personagens e capacidade de observação – o que o entrevistado fala pode não ser tão importante quanto aquilo que o repórter vê -, representou um oásis no semiárido da imprensa brasileira. (...). Este livro pode ser lido como um sismógrafo de uma época. Ao organizá-lo, tive a pretensão de que as reportagens pudessem, cada uma a sua maneira, tomar o pulso do passado recente e, ao mesmo tempo, oferecer um retrato significativo do que fomos capazes de realizar. (BARROS e SILVA, 2016, p. 9-10).

Nesses trechos, diversos elementos produzem sentidos para o efeito de verdade no qual se insere a narrativa jornalística e cujas práticas constituem-se como um ritual. É o caso das menções à apuração detalhada e à independência editorial. Há uma tentativa de construção de um pacto de leitura que busca garantir a veracidade do que os textos narram, buscando demonstrar um dos pilares sobre os quais o Jornalismo se estrutura: a imagem de que há uma relação íntima entre os personagens da narrativa jornalística e as pessoas físicas, “porque personagens representam pessoas reais” (MOTA, 2007, p. 152). Todavia, essa visão não considera que a imagem de um personagem passa também pela representação midiática, por aquilo que a mídia formula como sendo o sujeito- perfilado, trate-se de apenas um texto ou de uma sucessão de regularidades. Isso explicita também a razão pela qual, para este texto, vamos nos deter, no

60 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS próximo item, à análise de trechos descritivos sobre os perfilados. Nos trechos, há também pistas sobre o gesto de rememorar e organizar. A palavra “antologia” não aparece nos textos dos organizadores dos volumes. Entretanto, no caso de Vultos, a orelha do livro diz que “piauí tomou uma ousada e bem-vinda contramão, dedicando largo tempo e espaço à elaboração de perfis, que já poderiam render algumascoletâneas ”. Em Tempos Instáveis, o texto do organizador do volume evidencia a pretensão de fazer história não só daquilo que ocorreu, mas também do que significou a própria revista para a imprensa no período. O trecho finaldo excerto – “fomos capazes de realizar” – tem “nós” como sujeito sintático. No deslizamento do sentido e na ambiguidade aí produzida, tem-se o que é uma antologia: a memória do que “nós” produzimos como “jornalistas da piauí”, mas também do que “nós” produzimos como sendo os “sujeitos políticos” num determinado período da história. Esses excertos trazem ainda exemplos de enunciados que remetem à ideia de comemoração, de rememoração e à tentativa de, pela compilação dos textos, dar a eles o caráter antológico: em Tempos, além de serem definidos como “sismógrafo de uma época” e “retrato significativo”, o prefácio diz que os perfis “são capazes de atravessar o tempo”, entendendo o gesto de colocá-los na história como algo natural e esperado. A esses trechos, acrescentamos outro, retirado da orelha do livro, que produz efeitos semelhantes, ao destacar que a apuração jornalística e as características do texto, por si só, são garantias de verdade e completude: “Lidos em conjunto, esses textos descem a detalhes capazes de revelar aspectos insuspeitos dos temas que abordam, ao mesmo tempo que oferecem ao leitor uma visão abrangente das engrenagens que regeram a política, a imprensa e a história de uma década marcada por instabilidades de toda ordem” (BARROS e SILVA, 2016, orelha).

Memória e narrativa nos títulos dos perfis

Nesse momento, perguntamo-nos: então quem são esses políticos que mereceram a inclusão na antologia? No curto espaço deste capítulo, vamos nos deter aos títulos dos textos, como parte da análise em busca da resposta a essa pergunta. Entendemos que os títulos, mais do que síntese ou estratégia de sedução do leitor para o texto jornalístico, atribuem sentidos aos perfilados, representam os indivíduos de uma forma e não de outra. Usaremos o sumário dos livros para essa análise, já que essa parte da publicação permite-nos atingir a nova temporalidade imputada à coletânea. Como lembra Guimarães (2002, p. 14), o sumário “não é uma mera indicação de onde algo está. É uma indicação que passa pelo sentido que o acontecimento construiu. (...). É uma instrução de como interpretar tanto o modo de chegar à matéria, como a própria construção de algo como notícia, que

61 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS para ser notícia é constituído por uma temporalidade específica”. Em Vultos, temos:

O andarilho: Fernando Henrique Cardoso O consultor: José Dirceu O caseiro: Francenildo dos Santos Costa As armas e os varões: a formação de Dilma Rousseff Mares nunca dantes navegados: Dilma Rousseff da prisão ao poder O mundo dos fundos de investimentos: Sérgio Rosa Na hora da decisão: José Serra Pão e glória: Márcio Thomaz Bastos A verde: Marina Silva

Em Tempos:

A cara do PMDB: quem é e o que quer O soldado do PT: Delúbio Soares explica que ele não inventou a corrupção, apenas cumpriu ordens e serviu ao partido O delator: Delcídio do Amaral fala sobre os tempos de poder, os meses na prisão e a ruptura com Dilma, Lula e o PT

A forma de organizar os títulos materializa o “ser político”, colocando-o numa rede de papéis e de enunciados que se tornam memoráveis. Nesses enunciados, “ser político” e “ser republicano” são características ligadas a uma ação específica, sintetizada no sintagma nominal que, em todos os casos, antecede os nomes próprios, colocados sempre após os dois-pontos. Embora haja uma diferença entre o padrão de escrita na primeira e na segunda antologia (apenas o nome da pessoa em Vultos; uma sentença com ação em Tempos), é possível categorizar a forma como os títulos foram dados. Em parte deles, temos uma espécie de apresentação dos personagens da narrativa: “o consultor”, “o soldado do PT”, “o caseiro”, “o delator”, “o andarilho”, “a verde”. Em outra parte, há uma ação sendo descrita ou sintetizada: “as armas e os varões”, “a hora da decisão”. Num terceiro grupo, o que está em funcionamento são os lugares dessas ações, de modo metafórico: “mares nunca dantes navegados”, “o mundo dos investimentos”. Os títulos, além de representarem um direcionamento de leitura sobre os personagens retratados, constroem também, pela função-autor, um todo narrativo. Estão aí representados os personagens, o tempo, o espaço, o conflito e o desfecho do que é ser “vulto” e estar nos “tempos instáveis”. Com isso, o que se coloca em funcionamento para caracterizar a “república” e “ser republicado” são, exatamente, papéis, a priori, pouco republicanos: a

62 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS coisa pública é colocada de lado para que a política seja enunciada não na relação com o que é público, mas numa rede que se constrói por si e pelos interesses de cada um dos personagens. Assim, vão surgindo, por exemplo, aqueles que “querem” (como no título do texto sobre Michel Temer) e “aqueles que cumprem ordens” (como no perfil de Delúbio Soares). Mas, desse lugar que faz memória, do republicano e do republicado, há também um apagamento. A revista surgiu durante o mandato de Lula como presidente, que, independente de convicções políticas, tem importância histórica reconhecida. A primeira antologia chegou às livrarias em 2010, dois anos depois de encerrados os mandatos do petista. A segunda, em 2016, pretendia fazer memória da década. Lula não figura, no entanto, como “vulto da República”, nem tem texto exclusivamente dedicado a ele “no mundo, o Brasil e o Jornalismo em 21 reportagens”. Em ambas as antologias, o ex-presidente é um personagem coadjuvante, citados diversas vezes, pelas relações ou divergências, pessoais e políticas, com os perfilados protagonistas.

Espaços significantes, imagens e memória

Numa antologia, o passado tem o caráter de uma rememoração de enunciações e, nesse caso, ao ganhar o suporte livro, o texto periódico, volátil, sujeito ao envelhecimento precoce, ganha perenidade. O que é ser “vulto”, para recuperar o título da primeira coletânea? O que é a “ironia opcional” que aí estaria, como afirma o organizador no posfácio do primeiro volume? É ser figura importante, como os dicionários brasileiros trazem numa das acepções da palavra “vulto”? Ou é ser uma imagem pouco clara, figura que não se percebe bem, como diz outra definição para o mesmo verbete? A enunciação de piauí, ao produzir memória, coloca-se nesse confronto. Ser “vulto” é ser uma figura importante da história ou desempenhar, na rede política, papéis nem sempre condizentes com a noção de república. Espaço opaco do dizer, espaço significante da memória. Textos biográficos, incluídos aí os perfis como um subgênero5, trabalham não só com a memória no sentido daquilo que se recorda sobre um determinado personagem, como também como sendo a rede de dizeres que se produzem e se constituem no fio do discurso. Pêcheux ([1975] 2010) nomeia de memória discursiva esse conjunto de dizeres que falam antes, de algum lugar, e se materializam nos enunciados. Nesse caso, inclusive como uma proposta metodológica, tem-se uma discussão que se refere à maneira em que, nos textos biográficos, conjugam-se uma memória sobre o que é ser sujeito político, o que é ser biografado e o que é ser homem ou mulher da política.

5 Consideramos perfis, narrativas de viagens, autobiografias e textos memorialistas, como subgêneros da biografia, por usarem a história de vida como método de pesquisa e elaboração.

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A memória sobre o que é ser biografado carrega uma relação com o fato de que esse gênero discursivo-jornalístico e seus subgêneros, confluências do Jornalismo, da Literatura e da História, devem “nos proporcionar uma descrição detalhada de uma existência” (VILAS BOAS, 2008, p. 21-22). A ideia de uma descrição detalhada, por outro lado, abre-nos para a discussão de como esse princípio, ligado à proposta de humanização6, presente na base conceitual de tais gêneros, também está sujeita e é ela mesma uma forma de manifestação das formações ideológicas. Que detalhes seriam esses que caracterizam essa descrição de uma existência? Na concepção discursiva, mesmo quando há uma tentativa de se desvencilhar dos estereótipos em busca de uma visão mais complexa e completa de um personagem, só se consegue enunciar dentro daquilo que é formulável na formação ideológica em que o sujeito-autor do texto se inscreve. Como exemplo desse funcionamento da memória, citamos o caso de Dilma nas antologias. A ex-presidenta tem dois perfis em Vultos. No primeiro, o título já indica o caminho percorrido: “as armas e os varões”. Toda a narrativa sobre o passado da presidenta é construída a partir de sua relação com homens, seja pela presença grande do pai na primeira parte da narrativa ou pelo destaque dado aos relacionamentos amorosos dela. Ao final do texto, é também um homem que chancela sua (possível, naquele momento) candidatura: “(...) Qual seria a alternativa que Lula teria em mente? O ministro Franklin Martins respondeu de bate-pronto: ‘O presidente pode ter um plano B, mas não pode comentá- lo absolutamente com ninguém. Porque, em política, o aparecimento de um plano B inviabiliza imediatamente o plano A. Por isso, a candidata é Dilma” (CARVALHO, 2010, p. 166). Essa relação entre homens e mulheres está presente em outros trechos da antologia. No caso do perfil de Marina Silva, por exemplo, a menção ao marido, muito menos conhecido que ela no cenário nacional, vem acompanhada de um sentido de concessão e de permissão, materializado pelo uso do mesmo verbo, utilizado para abordar a relação da ex-senadora acreana com o marido, Fábio Lima: “Alto, loiro e corpulento, Lima deixou Santos, onde cursou uma escola agrícola, para morar numa comunidade alternativa no Acre. Filiado ao PT e com um cargo no governo estadual, ele é discreto e deixa os holofotes para a mulher” (PINHEIRO, 2010, p. 282). Em manuais e materiais que tentam explicar como produzir descrições de pessoas em textos jornalísticos e como usá-las em perfis e biografias, é comum a citação às referências corporais ou aos chamados símbolos de status de vida, características do cotidiano do personagem, que oferecem pistas sobre

6 A humanização, por definição, seria o foco na história de vida, na tentativa de compreensão da complexidade do ser humano retratado. O conceito surge em oposição à prática jornalística de usar pessoas apenas para ilustrar histórias, reproduzindo suas falas. Na proposta de humanização, o foco é a história de vida do indivíduo. Cerne da discussão no Jornalismo Literário, a humanização propõe-se a “proporcionar ao leitor uma visão complexa das pessoas e situações retratadas” [contrapondo-se] “à mitificação ou estereotipagem dos personagens” (PASSOS, 2014, p. 67).

64 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS sua forma e padrão de viver. A presença dessas descrições são decisivas para a classificação de um texto como Jornalismo Literário, o que é não sóuma referência habitual à proposta de piauí, como também é o nome da coleção em que as antologias estão publicadas. No entanto, a presença dessas descrições é indicativa de uma memória sobre o que se imagina de um corpo feminino e de um corpo masculino, de modo que a humanização e as descrições são também determinações ideológicas. Dilma, por exemplo, desde o início de suas aparições mais corriqueiras na imprensa ou na política, sempre foi associada a uma imagem de mulher dura, com características historicamente associadas ao masculino. Nos perfis a ela dedicados na antologia, isso se materializa, entre outras formas, na quase ausência de descrições sobre o seu corpo ou seu modo de vestir-se, o que ocorre de modo homólogo com os homens perfilados no material republicado depiauí. Poucas são as referências a roupas nos perfis de Fernando Henrique Cardoso, José Serra ou Márcio Thomaz Barros. No caso de José Dirceu e de Francenildo, a vestimenta é citada pela relação existente com o nível socioeconômico. No primeiro caso, por exemplo, a menção à marca é central na descrição: “Era o começo da tarde de um sábado de novembro e ele vestia uma calça escura, camisa polo com o decote forrado por um estampado Burberry e mocassins sem meias” (PINHEIRO, 2010, p. 37). O mesmo ocorre mais à frente, noutro trecho: “Vestido com um sobretudo azul, carregando uma pasta de uma marca francesa com seu computador e o livro A era da turbulência (...), Dirceu só reapareceu quando faltavam poucos minutos para o avião fechar a porta” (PINHEIRO, 2010, p. 42-43). No caso de Francenildo, a menção às roupas, que inicia o perfil, produz o efeito de rememorar o passado do jardineiro e relaciona as peças também à situação social, a exemplo do ocorrido no texto sobre Dirceu. “Era caseiro, tinha 24 anos, quatro bermudas, três calças jeans, cinco camisetas, três camisas, cinco cuecas, três pares de meia, dois pares de tênis, um sapato e um salário de 370 reais quando tudo começou” (SALLES, 2010, p. 69). Em outro extremo, é sobre a mulher da qual mais se fala sobre maternidade e família, que também se diz mais sobre roupas e atributos físicos: Marina Silva, a quem são feitas referências sobre o peso, “o mesmo da juventude” (SALLES, 2010, p. 269), à “elegância natural”, a que se segue o fato de que “quase sempre usa vestidos longos, arrematados por um xale. Tem perto de 50 deles. O cabelo anelado é amarrado em um coque, circundado por uma fina trança. No dedo anular esquerdo, usa uma aliança dourada com a inscrição Jesus” (SALLES, 2010, p. 270). São também informações sobre ela o

vestido longo de estampa tie-dye em matizes amarelo, verde e azul, que deixava seus braços firmes e finos à mostra. De meia calça cor dapele, equilibrava-se com destreza em altíssimos saltos de verniz preto. Havia trazido um xale cinza, mas pediu que o motorista voltasse em sua casa e buscasse um lilás, ‘que era o certo para aquela roupa’ (SALLES, 2010, p. 270).

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O pedido ao motorista para trocar o acessório é também o único momento do texto em que uma cena de ordem dada por Marina é narrada, apesar de ser tratada como um “pedido”. No restante do texto, ela apenas é descrita como alguém que reage a situações e dá respostas às perguntas que lhe são feitas. Essas características relacionadas aos símbolos de status de vida e às descrições sobre corpo, que aqui fizemos relacionando à memória discursiva sobre gênero, indicam a relação intrínseca e naturalizada e, portanto, ideológica, que existe entre a narrativa e a historicidade, ponto central para um método de análise da narrativa que se proponha a compreender os processos de significação.

Poder da narrativa e narrativa do poder: caminhos de análise

A colocação de um texto jornalístico numa antologia implica diversas questões que, em uma reflexão sistematizada, devem extrapolar os atributos estilísticos, embora sejam estes também essenciais. A breve análise do corpus aqui realizada dá pistas de que uma narrativa não existe dissociada de uma prática política e ideológica. Da mesma forma, uma antologia não se concretiza apenas por uma comemoração. Essas são algumas contribuições que queremos registrar em torno da temática da metodologia de análise de narrativas, tema deste livro. O Jornalismo deve ser entendido, nessa perspectiva, também como uma forma de manifestação da memória discursiva, que determina formas de dizer, de construir personagens (em biografias ou não) e de relacionar sujeitos, uns com os outros, numa trama ou num conjunto delas que se une numa antologia, como no caso aqui abordado. Nesse jogo de significações, é papel do analista desvelar possíveis caminhos que indiquem como funcionam essas determinações, enriquecendo a reflexão sobre o Jornalismo como narrativa do presente. A relação entre poder e narrativa mostra que o ideológico determina tanto o estético quanto os recursos empregados, consciente ou inconscientemente, pelo sujeito-autor. Para além do binônimo “narrativa e poder”, temos, contemporaneamente, muitos textos que se dedicam ao “poder da narrativa”, associando-a, inclusive, a características cognitivas ligadas à absorção e à memorização de informações. No caso de Vultos e de Tempos, a narrativa do poder é também uma forma de cristalizar o que, em determinado momento, o veículo jornalístico compreende como sendo um retrato do período, colocando- se como uma referência para o futuro. Nossa reflexão é no sentido de que todas essas abordagens não esqueçam também da “narrativa do poder”, que não pode ser negligenciada nas análises do Jornalismo. Inclusive, deve ser potencializada quando reportagens, perfis ou quaisquer outros gêneros ganharem suportes que lhe atribuem o status de História, pois isso lhes confere mais força como discurso e como memória, tomando os rumos do porvir.

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68 Mídia, história e memória na narrativa comemorativa da Rede Globo: os espaços “ocupados” pelos jornalistas

Duílio Fabbri Júnior

Introdução

Ao considerar a natureza da atividade jornalística, podemos pensar também na constituição de um espaço privilegiado de produção de memória a partir das narrativas por meio das quais as notícias são produzidas e os suportes utilizados para a veiculação. Como força ideológica, a mídia tende a construir e encadear fatos em um conjunto de enunciados e acontecimentos de forma que apenas sua versão seja memorável, ou seja, possam, em momento posterior, ser retomados como sendo a narrativa da verdade sobre um acontecimento. Neste capítulo, o objetivo é refletir sobre a relação entre história, memória e narrativa, partindo de um caso em particular, ocorrido na principal emissora de televisão aberta do Brasil, a Rede Globo. A estratégia metodológica que utilizamos é a Análise de Discurso, de linha francesa, baseada, sobretudo, em Michel Foucault. Queremos, com isso, discutir o papel da memória, quando a narrativa jornalística não está centrada no presente, no acontecimento das últimas horas ou dias, mas, sim, quando retoma fatos de outro momento histórico, ressignificando-os. Temos, então, a importância de que as análises sobre narrativa considerem também o caráter histórico e de memória, pontos que queremos discutir e demonstrar. Focalizamos nosso interesse na narrativa comemorativa que a Rede Globo criou para comemorar seus 50 anos, em 2015, corpus de nossa pesquisa de doutorado, do qual este capítulo é uma parte. Não temos aqui a narrativa jornalística que, elaborada diariamente, pode, no futuro, ser lida como testemunha ou história de uma época, mas a própria história tratada pelo Jornalismo, retomando fatos do passado numa nova dinâmica, no nosso caso específico, uma efeméride. Entre os dias 20 e 25 de abril de 2015, a Rede Globo exibiu, no Jornal Nacional, uma série comemorativa, com a participação dos mais antigos repórteres da emissora ainda em exercício. O projeto foi idealizado, coordenado e apresentado pelo jornalista William Bonner, também editor-chefe e âncora do telejornal há mais de 20 anos. A cada dia da semana, foram exibidas reportagens marcantes, sobre as quais os repórteres, num estúdio, em formato de arena,

69 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS faziam comentários. A análise desse material não se justifica apenas pela importância da Rede Globo e do Jornal Nacional na circulação de informações no Brasil, mas também por, nesse caso específico, a emissora difundir informações sobre o passado, o que tem efeitos na memória e na constituição dos discursos do presente.

História e memória nos processos de comemoração e rememoração jornalística

Falar de história e memória pressupõe pensar em algo já começado, como uma origem determinada no passado, o que é diferente de trabalhar com o “presente” que, ao cumprir critérios de noticiabilidade, torna-se a matéria-prima da narrativa jornalística. Temos, então, processos discursivos distintos:

A memória cumpre uma importante função de verificação e controle da consistência e da coerência das operações históricas de um sistema. Com base na memória, um sistema social constrói uma história para si mesmo, uma imagem coerente e consistente de si mesmo. A memória permite lembrar, no presente, apenas o que é importante para dar sentido às operações do presente. E permite esquecer todo o restante, todas as contradições, os non senses, os paradoxos. A memória, portanto, é lembrança e esquecimento ao mesmo tempo. (SIMINONI, 2016, p. 183, grifos meus).

Para essa dinâmica, faz-se necessário pôr em relevo as relações entre o que se tem numa narrativa jornalística cujo foco é a rememoração e a comemoração, refletindo sobre que memória é evidenciada. Essa contextualização auxilia-nos a compreender de que maneira aquele que fala com seriedade (e/ou pretensão de) assume, de maneira implícita, um compromisso diante dos seus interlocutores, a saber, o compromisso de que os argumentos apresentados possam ser julgados verdadeiros, não só como memória, mas como história. Como lembra Foucault (1979, p. 12), a “verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças às múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder”. Isto posto, podemos pensar que a memória tem também uma outra função: a de escolher o que pode ser lembrado e o que pode ser esquecido hoje e no futuro. Assim, pode ser usada, no futuro, para evocar fatos que hoje estão esquecidos. E, por outro lado, pode fazer esquecer aquilo que hoje é tido como fundamental para dar sentido às nossas práticas e condições sociais. Sem esse esquecimento, não haveria espaços para novos conteúdos, elaborações e para a constituição e/ou manutenção das relações de poder. É preciso considerar, então, que há na memória um pressuposto de esquecimento, que integra seu funcionamento de forma nunca linear. Como lembra Courtine (2006, p. 79), “a função interdiscursiva como domínio da memória permite ao sujeito, portanto, o retorno e o reagrupamento de enunciados, assim como seu esquecimento ou

70 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS apagamento”. Como interdiscurso, por sua vez, compreendemos todo o conjunto de dizeres que, com dominância de alguns sobre os outros, constituem o que é dito sobre algo. Como pensar essa relação entre interdiscurso, memória e história numa série comemorativa? A cada cinco ou dez anos, a Rede Globo, dentro do Jornal Nacional, realiza comemorações, rememorando fatos tratados pela emissora, em razão de seu valor simbólico. Assim, a narrativa de rememoração de suas principais coberturas nacionais e internacionais visa também a um consenso coletivo nacional e investe em um poder político nas lembranças dos acontecimentos sob a visão da emissora, de maneira a encontrar no passado uma legitimação histórica, que permita consolidar uma memória. Segundo Ricoeur (2007), comemorar é, de certa forma, reviver de maneira coletiva a memória de um acontecimento considerado como ato fundador, constituindo-se no objetivo principal dos valores sociais de uma comunidade ou país. Assim, a memória e a história nos suscitam um questionamento da relação espaço/tempo. O ato de rememorar consiste numa atividade narrativa em que se retira um acontecimento do passado para fazê-lo penetrar na realidade e nas questões do presente, abolindo tempo e distância. Se suscitarmos um eixo, para pensarmos sobre memória, rememória e comemoração, num primeiro momento podemos até considerá-las num espaço de intersecção, mas, ao refletirmos como processos de estruturação do discurso, rememorar faz parte dos processos constitutivos da narrativa sobre o passado. Já a comemoração ocupa o lugar do intradiscurso, ou seja, daquilo que é materializado por meio do arranjo de palavras, imagens e o conteúdo da narrativa. Na relação com o jornalismo, a história ocupa um espaço de registro, fonte e destino. Como registro, queremos dizer que os jornalistas e, por consequência, o discurso jornalístico, como lembra Romancini (2010, p. 24), “têm papel importante na elaboração da chamada história imediata”. Como fonte, entendemos que a história é recorrentemente utilizada pelo jornalismo em função da necessidade da menção a fatos históricos, por efemérides ou na tentativa de explicar fatos atuais. Além disso, é comum a associação do jornalismo como a narrativa do presente e uma das fontes históricas para o futuro, ou seja, o jornalismo, vencida a periodicidade, tem como destino tornar- se arquivo e fonte de pesquisa sobre as narrativas de um determinado fato:

A escrita possibilita o encontro entre a “memória” e sua “prova documental”: lembrar-se — no caso do jornalismo e diante do fato de que as reportagens são “documentos” que ocupam essa posição singular e ambígua — é encontrar não um acontecimento no passado, mas a narrativa desse acontecimento no passado. Com isso, a relação de dependência do acontecido ao narrado torna a narrativa o documento mais importante de todos. (BERGAMO, 2011, p. 5).

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Dessa forma, retomamos a preocupação de Foucault (1979) com o conceito de ideologia, reforçando a importância de compreendermos como determinados discursos inscreveram-se nos domínios de verdade, o que, no caso específico em análise aqui, é reforçado pela importância histórica, cultural e social da emissora e do telejornal em questão.

A narrativa da série comemorativa da Rede Globo

Comparadas às comemorações anteriores da emissora, o projeto dos 50 anos da Rede Globo teve uma configuração narrativa inédita, como a própria emissora destacou no texto lido pela apresentadora Renata Vasconcelos, reproduzido mais à frente e também disponível no site Memória Globo1. Esse ineditismo deve-se ao fato de que essa comemoração foi apresentada em formato de série, dentro do telejornal, numa proposta quase que exclusiva de ser um ponto de rememoração jornalística. Nas efemérides anteriores, abriram- se programas especiais, nos quais a transmissão era ao vivo, envolvendo shows e jornalismo, aberta a convidados. Foi o que ocorreu, por exemplo, na comemoração dos 40 anos da Globo. Naquela ocasião, segundo o Memória Globo, houve uma “noite de gala”, com uma festa numa casa de espetáculos em área nobre no Rio de Janeiro (RJ), cidade sede da emissora. À frente do projeto de comemoração pelos 50 anos, Bonner reuniu os 16 jornalistas mais antigos da emissora para ajudar a contar a história e “para dividir memórias de grandes coberturas jornalísticas” (MEMÓRIA GLOBO, 2015). Essas memórias foram divididas por décadas e as lembranças foram provocadas pelo próprio Bonner no estúdio, onde estavam. As falas dos jornalistas aparecem entremeadas com as reportagens rememoradas. A “série especial”, nomeação que a própria emissora utilizou, contou com cinco episódios, sempre ao final doJornal Nacional. No último dia, Cid Moreira e Sérgio Chapelin, que durante 18 anos apresentaram o telejornal, voltaram à bancada, num exercício de rememoração para eles e para os telespectadores: vê-los novamente dando o “boa-noite” tão característico na TV brasileira. A narrativa construída pela emissora demarca o desejo de fazer memória (NORA, 1993) e de repetição, o que resulta em efeitos de verdade, dados pela legitimação e sustentação institucional, não só pelo que a Rede Globo significa para seus telespectadores como também pelos efeitos de sentido produzidos pela presença de jornalistas antigos da emissora nessa série e pelo fato de sua condução ser feita por Bonner. Jornalistas e âncoras tornam-se, assim, personagens de uma narrativa que pretende não só ser crível, mas também adquirir caráter de história da emissora e do País: “A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e a confirmam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 1979, p. 14). A narrativa sobre

1 Disponível em: https://g1.globo.com/. Acesso em: 20 jun. 2018.

72 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS a história está, assim, indissociável do controle, da seleção, da organização e da (re)distribuição. Ao produzir esses enunciados de rememoração e de comemoração, trabalha-se com a memória discursiva e com o esquecimento, fazendo com que a espetacularização2 seja mais que uma forma de noticiar e constitua-se em uma maneira de promover a difusão de valores e a ideologia. Sobre esse último conceito, convém lembrar que nossa posição é foucaultiana, distinta daquela definida por Marx e Engels ([1867] 2001). Foucault (1979) explicita queo conceito de ideologia deve ser usado com parcimônia, dissociando-o do conceito de falsa consciência. Para ele, o “problema não é fazer a divisão entre o que, em um discurso, provém da cientificidade e da verdade e aquilo que provém de outras coisas, mas sim ver historicamente como se produzem efeitos de verdade dentro do discurso, que não são em si mesmos nem verdadeiros nem falsos” (FOUCAULT, 1979, p. 148). Essa discussão é particularmente interessante porque estamos exatamente no domínio em que historicamente determinados fatos ganharam ou tiveram, durante um período, status de verdade a partir do discurso do jornalismo e, no nosso caso, da Rede Globo. Perguntamo-nos, por exemplo, qual efeito poderia ter essa introdução das imagens das reportagens feitas e a rememoração oralizada por cada um dos jornalistas convidados. De que forma esses sentidos estão sendo produzidos? Isso abre portas para que possamos observar o momento em que um acontecimento é memorizado socialmente e, ao mesmo tempo, torna-se histórico pela credibilidade imputada a ele pelo jornalista que não só cobriu o acontecimento como agora o relembra, em detalhes. Nesse sentido, vale tomar para uma reflexão a mediação do projeto exercida por Bonner. Ele foi o âncora escolhido pela presidência e direção do grupo para falar sobre assuntos até então não discutidos pela emissora, como o caso dos “supostos erros”3 no caso da cobertura das manifestações pelas Diretas Já (1984) e na edição do debate entre Collor e Lula (1989), estando autorizado a falar em nome da empresa. Tanto no caso dos jornalistas quanto de Bonner, trata-se da consolidação de um discurso competente, no qual os interlocutores já foram reconhecidos como tendo o direito de falar. Os lugares e as circunstâncias foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência. De acordo com Foucault (1979), os rituais, ou seja, as normas e as regras, definem a posição que um indivíduo deve ocupar em uma mediação, provocação ou respostas e, consequentemente, os enunciados que deve produzir e o comportamento socialmente aceito e esperado para tal. Quem mais poderia 2 Aqui nós trabalhamos o conceito no sentido de colocar em evidência a notícia de forma exagerada, superestimada. 3 Supostos erros estão entre aspas, porque embora o site Memória Globo apresente-os como erros, na televisão foram tratados apenas como “polêmicas” ou “mal-entendidos”.

73 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS representar a voz da Globo na narrativa sobre sua história do que o âncora casado4, pai de três filhos, branco, hétero, com imagem de trabalhador construída pela mídia, apresentador das “principais notícias” do Brasil e do mundo? A narrativa sobre a história retoma, nesse ponto, características que são próprias dos produtores jornalísticos, como a credibilidade. Isso se manifesta já no texto que abre a série no Jornal Nacional, lido pela editora e apresentadora Renata Vasconcelos:

Nesta semana, a Globo vai completar 50 anos. E a comemoração aqui no JN vai ser de um jeito inédito. Para relembrar as coberturas jornalísticas mais marcantes desse período, nós vamos provocar aqui a memória dos autores daquelas reportagens. Para representar os milhares de profissionais que construíram o jornalismo da Globo em cinco décadas, nós reunimos 16 repórteres para dividirem experiências, lembranças, informações de bastidores e a emoção que tudo isso junto pode provocar.

Já nessa abertura, o telespectador é avisado de que se trata de uma comemoração. Pelas marcas dêiticas5 (grifadas no trecho), o texto da apresentadora deixa claro de que se trata de uma versão oficial da história, sob o olhar da Globo. Há uma ênfase sobre isso, quando a apresentadora diz, por exemplo, “aqui, no JN”. Por outro lado, embora o trecho se construa no sentido de demonstrar que se trata das “coberturas mais marcantes” e que elas representam profissionais e décadas da história, fica apagada qualquer marca de como isso foi feito, de quais elementos foram inscritos nessa memória e quais passaram sem se inscrever ou foram silenciados. Como diz Pêcheux (2007, p. 51):

Não é de se admirar, nessas condições, que a ideia de uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que desempenhou o papel de ponto de referência: - o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever; - o acontecimento que é absorvido na memória, como se não tivesse ocorrido. (PÊCHEUX, 2007, p. 51).

Por mais que se pretenda fazer jornalismo e história, o caráter comemorativo é evidenciado por uma subjetividade e identificação que se busca atingir, pela “emoção que tudo isso junto pode provocar”. Inversamente a essa questão da subjetividade e da emoção, por princípio, o Jornalismo busca trabalhar com a objetividade, tentando imputar, no discurso da comemoração, critérios para

4 Na época da exibição da série em 2015, Bonner e Fátima Bernardes, que também foi sua partner de bancada, eram casados. 5 Marcas dêiticas são elementos linguísticos que não têm valor referencial próprio, mas remetem à situação em que o texto é produzido, permitindo situar o enunciado em relação a tempo, espaço, sujeito e circunstâncias.

74 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS a seleção dos fatos: estão retomados na memória dos jornalistas fatos que já ganharam as páginas da história. A afetividade e emoção são derivadas disso, apagando narrativas que sejam mais emocionais do que históricas, como poderiam ser lembranças sobre coberturas factuais que possam ter marcado sobremaneira os repórteres, mas não se inscreveram como fatos históricos. A objetividade – como um efeito de sentido – é um pilar essencial para autorizar a narrativa jornalística como porta-voz da verdade, da credibilidade infalível, que garante o status de verdade. Na nossa perspectiva, a objetividade funciona como um efeito de sentido do discurso jornalístico, que os veículos de comunicação, sobretudo os hegemônicos destacam como sendo uma característica. Ao usar a objetividade para justificar suas práticas, os veículos ocultam um dizer que é ideologicamente construído. Assim, os enunciados da apresentadora produzem o efeito de que a memória fica atrelada ao que estaria na história e não nos processos subjetivos de cada um dos repórteres que compuseram o projeto. É uma narrativa sobre o passado que é mediada e medida para se tornar uma narrativa sobre a história. Vê-se ainda que “memória” é tomada como uma espécie de lembrança, como se fosse determinada por provocações e por evocações e não por um processo histórico de constituição e formulação de discursos. A lembrança é tida como “rememoração” e não como memória. Podemos perceber desse modo que a memória é um fator de construção, revelação da história e da identidade. No desenvolver da questão, existe uma imposição do tempo presente para que as “memórias” do passado sejam recordadas, lembradas conforme o convite da apresentadora do telejornal. “Como elaboração de variados estímulos, a memória é sempre uma construção feita no presente a partir de vivências/ experiências ocorridas no passado” (KESSEL, 2009, p. 2). Mesmo a memória podendo (re)ver e (re)visitar o passado, ela não pode ser compreendida se não existir a ação no presente do sujeito que a recorda. E é nessa interação com o telespectador e com os outros colegas jornalistas da série que as lembranças são ativadas. Nota-se, então, que a memória é agente articulador do confronto entre identidade, história e narrativa. Ora, se ela se insere nessa posição, também está sujeita à traição6 e ao esquecimento. Para evocá-la, é preciso confronto e que este desencadeie um processo de imaginação, amparado por uma rede de lembranças para preenchimento das lacunas trazidas pelo testemunho dos jornalistas enunciadores:

Deve haver, na experiência viva da memória, um rastro irredutível que explique a insistência da confusão comprovada pela expressão imagem- lembrança. Parece mesmo que a volta da lembrança pode fazer-se somente no modo do tornar-se imagem. [...] A permanente ameaça de confusão entre rememoração e imaginação, que resulta desse tornar-se 6 Por traição, referimo-nos aqui ao aspecto neurológico, mas também à ação do inconsciente.

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imagem da lembrança, afeta a ambição de fidelidade na qual se resume a função veritativa da memória. E, no entanto, nada temos de melhor que a memória para garantir que algo ocorreu antes de formarmos sua lembrança. (RICOEUR, 2007, p. 26).

Não se pode manipular e gerir a maneira como as lembranças são desencadeadas em nós. Não podemos controlar ou confiar em suas impressões, porque nas condições em que a série foi concebida, a partir de uma “arena de lembranças”, não há como saber quais as intenções de seus autores e como suas impressões são desenvolvidas: “o que já passou mantém sempre um relativo caráter de indecifrável” (PADRÓS, 1991, p. 82). Dessa forma, podemos pensar a memória como aquilo que se impregna das imagens e lembranças que rememoram o passado para o tempo presente, para serem (re)construídas. Logo após a apresentação pela apresentadora, as imagens exibidas passam a ser do estúdio onde foi gravada a série. Na abertura, Bonner em trajes informais (sem o terno com o qual apresenta o telejornal) enuncia:

Bonner: É nesse estúdio do Projac7, no Rio de Janeiro, montado especialmente para esse encontro, que nós vamos fazer esse mergulho nos 50 anos de história do jornalismo. Quem vai nos ajudar, a recontar um dos momentos mais importantes dessa história, tá aqui com a gente, são os nossos colegas jornalistas: (Bonner vai andando pela arena, apresentando os jornalistas, dispostos numa bancada em círculo, com o logotipo da Rede Globo ao centro. A cada apresentação, uma foto antiga do jornalista, entre as décadas de 70 e 80, é projetada em telões dispostos no cenário). Renato Machado: Essa imagem me lembra, infelizmente, uma década que já está bem distante. Bonner (ri): Mas você estava muito elegante. (Caminha para o jornalista que está ao lado). De quando é isso, Luis Fernando? Luis Fernando Silva Pinto: De quando eu devia pesar uns 12 quilos. (A imagem corta direto para Glória Maria, que é apresentada apenas com crédito, sem fala de Bonner) Glória Maria: Isso foi quando eu fiz a posse do presidente Jimmy Carter. Era Washington e, se não me engano, o Luis Fernando estava, não? Luis Fernando: Não, não... Eu cobri a do Lincoln8. (Todos riem) Bonner: E temos também Tino Marcos... Olha que franja bonita ali! Tino Marcos: Que fartura! Que saudade dessa fartura! Bonner: De Roma, direto para o estúdio do Projac, Ilze Scamparini! Ilze Scamparini: Obrigada, Bonner. Bonner: E quem está aqui também é o Gaaalvão Bueno. Rapaz, que cabelo, Galvão, que beleza!

7 É nome dado pela emissora ao complexo onde estão localizados os estúdios, cenários de novelas e programas da Globo, no Rio de Janeiro. 8 Trata-se de uma ironia. Abraham Lincoln assumiu a Presidência dos EUA em 04.03.1861.

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Galvão Bueno: Só sei que faz muito tempo. Bonner: Paglia, você não mudou nada. Paglia: Nada. Bonner: A mesma pessoa. Paglia: É praticamente a mesma pessoa. Bonner: André Luiz Azevedo. André Luiz Azevedo: A gravata eu ainda tenho até hoje. Bonner: Temos aqui: Caco Barcelos, magro... Caco Barcellos: E lá atrás uma manifestação, uma periferia como sempre. Bonner: A nossa voz, a nossa imagem no Nordeste, Francisco José. Francisco José: Isso foi no início da minha carreira na Globo há mais de 35, 37 anos. Bonner: E agora eu vou pedir, por favor, palmas para Sandra Passarinho. Essa é a nossa pioneira, que nos honra aqui com a presença, para revisitar um pouco da história desses 50 anos de jornalismo da Globo. (Aplausos) Sandra Passarinho: O tempo passou, né? Bonner: Pedro Bial, olha só, é você magérrimo ali, hein! (Aponta para a imagem no telão). Pedro Bial: Isso aí me parece 85... Bonner: Esse aqui, senhores... e senhoras é o Orlando Moreira. Pra ele, palmas também. Orlando é um pioneiro, como vocês estão vendo por essa imagem. Orlando Moreira: Rio de Janeiro, mesma década dos 50 anos da Globo. Bonner: Temos aqui Fátima Bernardes. Fátima Bernardes: Olha, eu acho que estava a caminho do cabeleireiro, se não me engano (risos). Bonner: Heraldo Pereira, que elegância... Heraldo Pereira: Isso é São Paulo. É São Paulo, década de 80. Bonner: E, aqui, finalmente, o gaúcho de Santa Maria, Marcelo Canelas. Marcelo Canelas: Aí era bem no começo. Saí do Rio Grande do Sul e fui trabalhar em Ribeirão Preto, fim da década de 80. (Entra uma vinheta de filmes antigos e a narração em off de Bonner) Bonner: Vou convidar a todos vocês agora pra ver o primeiro vídeo que a gente preparou especialmente para esse encontro aqui. (Começa vídeo sobre a construção da Rede Globo).

Na narrativa introdutória à história, observa-se o enunciado de apresentação de Bonner sobre o projeto da série. Logo no começo, aparece o advérbio “especialmente”, que retoma a ideia de “série especial”. A ideia de “especial” aparece reforçada, na sequência, por outros termos como “momentos mais importantes dessa história”. Ainda na caracterização do que será essa narrativa sobre o passado, podemos pensar na apresentação dos autores das reportagens, os jornalistas presentes no estúdio, como testemunhas que vão auxiliar o âncora a recontar os

77 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS fatos selecionados como principais para o jornalismo da Rede Globo. Há um jogo nesse processo de seleção: os fatos são considerados como “os mais marcantes”, como se essa característica fosse inerente a eles, como se fossem transparentes, quando, na verdade, há uma seleção e um apagamento entre fatos da história. Durante toda a série, o que se vê é um confronto na constituição da narrativa, entre os “fatos da história” e aquilo que poderia ser compreendido como “fatos na história (contada)” da Rede Globo. O testemunho torna-se, então, elemento central e essencial na narrativa sobre a história. Como lembra Ricouer (2007), o testemunho é um ponto de inflexão no tangenciamento entre o que é memória e o que é história, existindo, então, uma fala que pede crédito:

Existe uma estrutura básica nos depoimentos que trilha um processo epistemológico a partir da memória declarativa, passando pelo arquivamento e culminando com a produção de prova documental. Sua estrutura fundamental é uma fala que relata algo visto e pede crédito: “Eu estava lá; acredite em mim ou não, acrescenta ele; e se não acredita em mim, pergunte a outrem”. (RICOEUR, 2007, p. 737).

O mesmo autor afirma que o testemunho tem um sentido quase-empírico, ou seja, indica o relato de algum acontecimento que foi visto ou escutado por alguém. Dessa forma, o depoimento já é relatado em outras dimensões com um encadeamento de acontecimentos, que transfere o visto para o dito. O testemunho também implica sempre numa relação dual: há aquele que testemunha e aquele que recebe o testemunho. Apenas pela audição do relato, o interlocutor irá acreditar ou não naquilo que lhe chega sobre fatos. Na narrativa, o relato testemunhal serve como um instrumento a serviço de um julgamento, de um juízo. Ele valora os motivos de uma ação, o caráter de uma pessoa, em suma, atribui um sentido aos eventos. Entretanto, não podemos pensar numa articulação ingênua para empregar apenas o uso do testemunho numa operação que envolva a construção de memória e rememória. Ao colocá-los todos juntos, num mesmo espaço, de “arena”, tem- se a imagem de uma possível contestação, de onde abre-se caminho para o debate público de ideias. A testemunha ganhará confiança do telespectador quando for capaz de manter, ao longo do tempo, sua versão sem contradições. Ainda nesse ritual de apresentação, é possível perceber algumas regularidades, como menções a transformações no corpo e ao tempo de carreira dos personagens, ou seja, os jornalistas. Além disso, esse ritual de apresentação tem o papel de inserir os jornalistas na rememoração dos fatos, criando na narrativa o efeito de lembrança e não de roteiro estruturado. A apresentação dos personagens/jornalistas pode ser estruturada, para efeitos de análise, em cinco grupos, a partir do tópico central utilizado por

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Bonner. No primeiro, são as referências ao corpo que trazem as menções ao passado e à rememoração. É o que ocorre com Luís Fernando Silva Pinto ([...] “eu devia pesar uns 12 quilos”), Tino Marcos ([...] “olha que franja bonita ali”), Pedro Bial (“é você magérrimo ali, hein!”), Fátima Bernardes ([...] “eu acho que estava a caminho do cabeleireiro”), Ernesto Paglia ([...] “você não mudou nada”), Galvão Bueno ([...] “Rapaz, que cabelo, Galvão, que beleza”). Na relação com o corpo, também estão as referências à elegância e às roupas, como ocorre com Renato Machado ([...] “estava muito elegante”) e André Luiz Azevedo (“A gravata ainda tenho até hoje”). No segundo grupo, estão as apresentações a partir do pioneirismo, ou do ponto de trabalho da emissora. Nesse caso, além do efeito emocional, produz- se o efeito de testemunhas da história desde o seu princípio, que auxilia nos processos de produção da verdade. É o que ocorre com dois jornalistas: Sandra Passarinho (“nossa pioneira”) e Orlando Moreira (“um pioneiro”). Os dois são também os que merecem reverência por meio de palmas solicitadas por Bonner. Para além das referências ao corpo e da constituição desse pioneirismo, no terceiro grupo, estão os jornalistas cujas apresentações foram feitas a partir da origem geográfica, seja a menção a onde nasceram os jornalistas - caso de Francisco José (“nossa imagem no Nordeste”) e Marcelo Canellas (“o gaúcho de Santa Maria”) -, ao lugar onde trabalham atualmente - para Ilze Scamparini (“De Roma, direto para o estúdio do Projac”) -, ou ao lugar onde trabalharam, em algumas das emissoras da Rede Globo - caso de Heraldo Pereira (“Isso é São Paulo”). O quarto grupo de tópicos de apresentação diz respeito à menção ao tempo de trabalho na emissora ou às datas das imagens que, concomitante à apresentação, iam sendo projetadas. Apesar de recorrente na maioria, o que auxilia a dar o efeito de credibilidade para comemorar e rememorar os fatos, Glória Maria é a única apresentada apenas numa relação com o tempo ([...] “quando fiz a posse do Jimmy Carter”). Apenas em um dos casos, o que nos faz colocá-lo aqui num outro grupo, há a presença de uma marca subjetiva e de estilo do trabalho do repórter, o que caracteriza sua carreira. No caso de Caco Barcellos, ele aparece associado à imagem de uma periferia, a que ele faz questão de reforçar “como sempre”. É o único caso em que, na apresentação, faz-se uma referência a uma perspectiva de trabalho e atuação. Esse ritual de apresentação faz pensar numa discussão sobre o corpo discursivizado compondo a narrativa. Como lembra Foucault (1977), o poder opera sobre o corpo, investe-o, marca-o, obriga-o e dele exige signos específicos. Opera ainda nessa apresentação o que pode ser dito sobre o corpo e o que a memória sobre o corpo masculino e o corpo feminino permite ser enunciado. É interessante pensar ainda que, em todas as apresentações em que o corpo esteve presente no enunciado, quer seja do Bonner, ou do jornalista

79 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS apresentado, trata-se de homens, com exceção de Fátima Bernardes9, que, à época, era esposa de Bonner e faz uma brincadeira com o cabelo. O que está em jogo aí é um confronto entre lugar de fala, relação entre gêneros, (des) autorizações e corpo como discurso. Nesse caso, os sentidos que emanam do discurso de mulher jornalista na televisão, que, pelo pré-construído, deve ser magra, de cabelos lisos, maquiada e com roupas discretas e elegantes, são capazes de instaurar um efeito fundador da posição-sujeito em que o discurso (machista) se inscreve e evidencia as “regras” do que se pode e deve falar sobre o ser mulher. Ao colocar os dois colegas jornalistas na categoria de “pioneiros”, existem algumas tentativas de apagar diferenças, desigualdades e questões sociais como gênero, que marcaram a história da televisão. De uma certa forma, há uma escolha deliberada do diretor do projeto, no caso o próprio Bonner, de quem será considerado pioneiro. Essa escolha é parte do discurso legitimador e dominante, a fim de reconstruir o passado segundo um olhar de classe. Assim, fica clara a necessidade de selecionar alguns nomes e sobrenomes para fazerem parte do rol que deu forma ao jornalismo de TV. Podemos ainda refletir sobre essa categoria “pioneiros/as”, sempre vaga e pouco referenciada, principalmente no que tange à figura feminina, representada no nosso recorte pela jornalista Sandra Passarinho. Historicamente e pelo pré- construído, a mulher não se associa à imagem de bravura que a empreitada pioneira demandaria para ser, por exemplo, correspondente internacional e repórter especial, funções que a referida jornalista desempenhou, ainda nos anos 1970. Outra questão que também pode ser percebida diz respeito ao lugar geográfico, às características e aos estereótipos que esse lugar de origem coloca sob a luz da memória e pré-construídos. As identificações e estigmas sociais são evocados pelas apresentações da abertura da série: “a nossa imagem do Nordeste”, “a negra e o negro”, “o gaúcho”, “a pioneira”, “a estrangeira” etc. Nesse sentido, é relevante, por exemplo, a inserção de Glória Maria, como jornalista, mulher e negra que, desde os anos 1970, faz parte (e é assim rememorada pela série) da história da Rede Globo. A narrativa da série considera na construção dos personagens, não só a trajetória, mas também a representação do caráter abrangente e integrador da proposta do Jornal Nacional, como a inclusão de discussões mais contemporâneas, como a representatividade e o respeito às diferenças. O projeto da série produz discurso, visível desde essa apresentação, que confere aos episódios um status de veracidade, como algo que ocorreu “de fato” no passado, tomado como objeto de que se pode falar e quem são as pessoas autorizadas a falarem. Por fim, lembramos que os enunciados a serem rememorados, ou interditados via esquecimento, estão no bojo do interdiscurso,

9 William Bonner e Fátima Bernardes estiveram casados até 29/09/2016.

80 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS porque buscar o memorável no jornalismo é reconstruir o já enunciado e que, por uma ou mais razões, permaneceu no tempo.

Considerações finais

A narrativa midiática constitui-se como uma rede dinâmica, inserida em condições de funcionamento, que, em dado contexto, autoriza ou impede certos dizeres, mas que, por outro lado, também produz os saberes desse mesmo tempo. Tal fato nos é ainda mais importante quando o relacionamos à credibilidade e ao discurso de verdade atribuídos ao jornalismo, dois de seus pilares fundamentais. Quando esse discurso midiático opera, produzindo uma “exposição” do sujeito, do “eu”, realizada involuntária e/ou “voluntariamente”, colocando-se em relevo o princípio da governabilidade de si e dos outros, os jornalistas convidados passam a integrar um tenso e complexo jogo, sob o olhar atento de Bonner, que os dispõe a ocupar lugares nessa ordem. Podemos elencar o momento em que, ao serem alvos de uma intensa exposição, os jornalistas se colocam como objetos, em que a experiência e a admiração são espaços para a sujeição, a rendição e, por que não, o controle do indivíduo. O interesse e o envolvimento, manifestados às imagens de arquivo, passam a ser o principal responsável pela reconstrução dos significados simbólicos mobilizados na/para a constituição de memórias, verdades e credibilidade de fatos. Dessa forma, o processo de rememoração de “já ditos”, (re)encetaram-se outros dizeres, promovendo, sobretudo, a emergência de novos sentidos. Através do acompanhamento da apresentação do primeiro capítulo da série de reportagem especial no JN, nesse processo de (re)produção dos discursos, pudemos constatar na narrativa, sobretudo pela movimentação da memória, a presença de elementos relacionados à verdade, à história e aos arquivos, (re) tomados e (re)elencados. A reflexão empreendida neste capítulo colocou-nos diante de uma voz institucional midiática que traz diferentes posições de sujeito enunciador, ou nos termos de Foucault (2008), de descontinuidades no plano da fala, na tessitura do relato midiático em torno da rememoração de fatos jornalísticos. Sabemos que precisamos esquecer para lembrar e que a memória é porosa na sua constituição. Na narrativa, os buracos são preenchidos por dizeres que não se institucionalizam no discurso a não ser pelos fragmentos de rememória, ajudados pelas imagens e depoimentos, encadeando-se para dar sentido ao que ouvimos e compreendemos.

81 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Referências

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82 Memória, reconstituição narrativa e fontes/testemunhas em Notícia de um Sequestro

Fabiana Piccinin Andressa Bandeira Santana

Narrar para lembrar

A ideia de que é pela competência narrativa que os indivíduos sistematizam os fenômenos do mundo, dando ao tempo uma dimensão humana, diz respeito à capacidade, sobretudo, de lembrar do que se experiencia. Ou, como bem diz García Márquez na sua autobiografia Viver para Contar, é a memória agente simbolizador da competência de dar sentido e estruturação à narrativa. Não é sem razão que, também Benjamim (1994), defende que as lembranças são mãe das musas da narrativa, evocando a perspectiva grega. Em razão disso, a memória estabelece uma relação de indissociabilidade à arte de narrar, sendo o recurso subjetivo a que recorrem as narrativas tanto ficcionais quanto reais. Assim, neste capítulo, discutimos a relação da memória com a narrativa no livro-reportagem Notícias de um sequestro, do escritor Gabriel García Márquez. Em García Márquez, esta dupla simbiótica se evidencia em toda obra por ser uma narrativa jornalística que, em razão disso, assume-se em comprometimento de vinculação com o real. Consideramos a importância deste estudo por problematizar o lugar e a natureza das narrativas jornalística, e nelas a referenciação aos fatos, porque construídas a partir da memória como ferramenta estruturante deste processo. Ao entrevistar suas fontes, os jornalistas valem-se de suas memórias e da memória que possuem dos acontecimentos para compor suas narrativas que serão publicadas em jornais, telejornais, rádios, sites, revistas e livros-reportagem. Para darmos conta da problemática proposta, observando o papel da memória nas narrativas jornalísticas, seguimos os seguintes passos metodológicos: 1) revisão bibliográfica referente aos conceitos sobre memória e narrativa como uma construção/versão do acontecido, considerando nesta perspectiva o impacto dessa condição na narrativa jornalística, por seu compromisso com o real, 2) apresentação de um mapa metodológico, construído a partir de categorias de análise, fruto de um primeiro olhar exploratório do texto e, 3) a análise de trechos previamente selecionados de Notícia de um sequestro, embasada no referencial teórico levantado.

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Da memória estruturante da narrativa

O conceito de memória pode ser apresentado a partir de diferentes perspectivas, desde cognitivas até filosóficas, o que demanda considerarmos abordagens oriundas da sociologia e da história e, mais precisamente, da História Oral1. Isto porque, desde a Grécia Antiga, a memória tem sido observada como agente estruturante das narrativas. Para os gregos, era representada pela deusa Mnemosine, a mãe das musas gregas e deusa da reminiscência. Como explica Rosario (2002), o nome da deusa tem relação com a palavra “mimnéskein” que, em grego, quer dizer “lembrar-se de”. Nas narrativas da mitologia grega, Mnemosine era, de acordo com Freixo (2007), uma Titã, irmã de Cronos (o Tempo). É interessante destacarmos a relação da memória com o tempo, visto que as lembranças que utilizamos para narrar são formadas justamente conforme o avanço do tempo, que precisa seguir para que haja narrativa, posto que só somos capazes de narrar o que já aconteceu. Neste sentido, bem atenta Benjamin (1994), quando trata do narrador, para dizer da memória como a mais épica das faculdades, evidenciando a impossibilidade de separação da memória e da narrativa, seja ficcional ou fática. É pela memória que se dá a atualização de experiências passadas afim de que possamos organizar o presente. Para Le Goff (1994), a memória é como uma propriedade de preservação, que remeteria a um conjunto de funcionalidades de natureza psíquica, com as quais o ser humano é capaz de atualizar informações ou impressões passadas. Assim, compreendemos porque, do ponto de vista da História Oral, segundo Hamilton (1996), em grupos, as memórias que são originalmente individuais, nestes casos, podem inclusive produzir conflitos, porque correm o risco de ser compreendidas como idênticas às lembranças dos demais indivíduos. Ou seja, em reuniões de grupos de pessoas, é comum, de acordo com Hamilton (1996), que haja debates entre os participantes sobre as memórias de um evento, mesmo que todos tenham participado dele. A discussão se dá sobre o que passou e sobre a interpretação que se deve dar à rememoração do fato. O que, em última análise, responde pela complexidade de uma narrativa construída a partir de relatos de quem viveu determinada experiência, como é o caso das práticas jornalísticas. O jornalista, portanto, se vale dos testemunhos de suas fontes que, como salientam Maia e Lelo (2014) os testemunhos podem levar a conhecer e refletir sobre passados que podem ser atualizados em qualquer momento. Conforme Halbwachs (2004), as memórias de grupos sociais não são só as lembranças que se tem quando se reconstitui fatos, mas também, lembranças de outras pessoas sobre estes fatos. “Tudo se passa como se confrontássemos

1 A História Oral, conforme Martinez (2016), nasceu depois da Segunda Guerra Mundial como um ramo de estudo e método da História. Para que este ramo da história se desenvolvesse, contou com os avanços tecnológicos e com o desejo dos historiadores, desta época, de fazer o registro das experiências dos envolvidos na Guerra.

84 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS vários depoimentos”. (HALBWACHS, 2004, p. 29). Mais uma vez, é importante pensar desde a perspectiva jornalística, quando o autor diz que é “(...) porque concordam no essencial, apesar de algumas divergências, que podemos reconstruir um conjunto de lembranças de modo a reconhecê-lo”. Portanto, as lembranças do passado sempre sofrem influência das características que definem o indivíduo que recorda no presente. A lembrança atual de algo anterior está, dessa forma, impregnada por diversas experiências além da que se tenta recordar. E lembrar exatamente de algo, como fielmente aconteceu, torna-se praticamente impossível, já que o ser atual contribui na recordação de fatos vividos pelo ser anterior. Assim, sempre que possível, nessa perspectiva, o indivíduo se apoia em testemunhos para que se possa fortalecer ou enfraquecer, ou completar o que sabe de um evento. É claro que o autor não está se referindo a qualquer tipo de depoimento. Para que a memória de um componente de um grupo colabore com a de outros, é preciso que se continue concordando com as memórias uns dos outros e que existam muitos pontos de contato entre as memórias, para que as lembranças sejam reconstituídas em um fundamento em comum. De acordo com Halbwachs (2004), portanto, em um grupo, cada memória individual é como um ponto de vista sobre a memória coletiva. Este ponto pode mudar de acordo com o lugar que o indivíduo ocupa no grupo e as relações que mantêm com outros meios. Essa relação entre os pontos de memória individuais com a memória coletiva podemos ver no livro que analisaremos neste capítulo, Notícia de um sequestro. O autor, no entanto, faz uma ressalva, dizendo que mesmo que a memória coletiva envolva as memórias individuais, estas não se confundem. Como a rememoração não pode tudo, no sentido de que também as ausências são estruturantes da memória que compõe a narrativa, as impressões precisam se apoiar não somente em nossas lembranças, mas também em lembranças de outras pessoas. É por meio dessa cumplicidade, que a confiança que se tem em determinada evocação será ainda maior, porque assim, parece que a experiência é recomeçada, não por uma pessoa, mas por várias (HALBWACHS, 2004). Dessa forma, quanto mais pessoas lembrarem de determinado fato, mais “verdadeiro” ele parecerá. Para Ricoeur (2007), a memória procura insistentemente ser fiel ao passado. O autor percebe o esquecimento como uma forma avessa às regiões que a memória ilumina. Portanto, as deficiências que procedem do esquecimento, não devem ser tratadas como patologias ou disfunções (RICOEUR, 2007). O esquecimento não é um defeito, mas parte integrante da memória. Em razão disso, ao considerar as fragilidades de que a memória é acusada, Ricoeur (2007) adverte que esta pode ser considerada pouco confiável, porque é a única ferramenta de que se dispõe para significar o que se declara para lembrar. Sempre precisamos recorrer ao que nos lembramos para nos referir

85 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS ao passado e, ao fim e ao cabo, é a memória que pode nos levar ao passado individual ou coletivo. Por decorrência da memória ser essa ferramenta de reconstituição do passado, os fenômenos que estão em nossas reminiscências, conforme o autor, estão também sempre perto do que somos. As experiências de que lembramos constroem a narrativa que fazemos de nós, de forma que, memória e narrativa trabalham juntas na constituição e reconstituição de coisas e das pessoas. É possível percebermos a importância que a memória possui na perspectiva de Ricoeur (2007) visto que por meio dela formam-se a identidade de culturas, comunidades e pessoas. As lembranças, ou seja, a memória de uma cultura, uma comunidade ou uma pessoa são as responsáveis por sua constituição, é por meio delas que se formam, se narram e fortalecem suas características e identidades. Em Bergson (1990), encontramos o conceito de memória como uma forma de “sobrevivência das imagens passadas” (BERGSON, 1990, p. 49) na medida em que qualquer percepção que temos é memória, pois, só percebemos, o que já é passado. O que se alcança por meio da percepção, mesmo parecendo recente, configura-se na memória. (BERGSON, 2006). Em relação ao passado, Bergson (1990) o percebe como virtual, cheio de possibilidades de construção e reconstrução a partir do papel da memória na reconstrução dos eventos sucedidos. O presente, portanto, não existe na medida em que tudo que é, já foi. O passado vem justamente por meio de imagens presentes que, assim, deixam de ser. A constituição atual, portanto, afeta continuamente a rememoração do passado (BERGSON, 1990), de modo que as experiências passadas completam as experiências presentes. As imagens passadas, nessa dinâmica, misturam-se com a percepção do presente, podendo substituir essa percepção (BERGSON, 1990), o que aponta, mais uma vez, para a fragilidade da memória. Mesmo que estas imagens se conservem com o objetivo de ser úteis, como salienta Bergson (1990), a todo momento as experiências presentes, misturadas e enriquecidas com as experiências já adquiridas, confundem-se e misturam-se cada qual em seu período de tempo. O que responde, em última análise, pelo poder de “criação” da memória e da ideia de que o narrado será sempre uma versão mais ou menos aproximada do evento sucedido.

Memórias para narrar os feitos jornalísticos

Conforme Sodré (2009), os enunciados que compõem as notícias são também uma sequência de narrativas que, por decorrência, acionam as estruturas de memória de quem as dão a conhecer. A narrativa é, dessa maneira, qualquer discurso que consegue evocar um mundo que pode ser espiritual, material e real e que se encontra em determinado espaço e tempo (SODRÉ; FERRARI, 1986) mediadas pela linguagem. Assim, também Medina (1996) diz que não

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é apenas na literatura que o autor deve ter competência para a manipulação da linguagem – neste caso, escrita – mas também o jornalista, como narrador contemporâneo, que faz da narrativa a essência do seu trabalho, deve possuir esta habilidade. É dizer que, não apenas escritores, mas os jornalistas ao lidar com suas narrativas, acionam competências na manipulação das técnicas de escrita com fins de adequação às demandas das mídias. Gabriel García Márquez é um bom exemplo desta simbiótica relação entre narrativa literária e jornalística, visto que usava as técnicas de escrita de ambas naturezas por vezes juntas, ao longo de sua obra. O que legitima e responde pela eleição de uma de suas obras para análise nesta discussão. A narrativa, assim, estrutura desde reportagens na mídia impressa, audiovisual ou na web e em livros-reportagem, como também constitui, conforme Sodré e Ferrari (1986), os fatos cotidianos dos jornais diários. Para os autores, a narrativa jornalística está até mesmo nas respostas do lead encontradas em notícias. Por outras palavras, é o mesmo possuindo estratégias narrativas diferentes, reconhecemos aí as distinções e pontos em comum entre textos jornalísticos e literários. Assim, é possível que os profissionais que acumulem as funções de jornalista e escritor acabem por aprender a realizar uma narrativa em função da outra. E o próprio García Márquez já disse que o jornalismo o ajudou muito com seu ofício de escritor. “O jornalismo me ensinou recursos para dar validade às minhas histórias” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 47-48). Para Medina (1996), a literatura tem o mérito de auxiliar o jornalismo a ser mais humano. Ou seja, as técnicas que o jornalismo utiliza da literatura, contribuem para que as histórias contadas por ele se tornem mais humanizadas e, por consequência, aproximem o leitor. Além disso, para Sodré (2009), García Márquez pode ser considerado um bom exemplo de acumulador das funções de jornalista e de escritor, não só pela qualidade da produção, mas também por ser um repórter que utiliza de recursos literários em seus textos jornalísticos. É característico de García Márquez, de acordo com as observações de Sodré (2009), o uso do jornalismo como um gênero literário, mesmo que García Márquez estivesse ciente das diferenças entre literatura e jornalismo. Nessa utilização em comum de técnicas jornalísticas e literárias, García Márquez aciona memória como estruturadora das suas narrativas. O que se evidencia no fato de que toda informação trazida pelo escritor/jornalista, para compor sua narrativa, depende da memória de suas fontes. Assim, quando se pensa em narrativa jornalística, Medina (1996) ressalta que a estrutura não deve seguir um modelo fechado de pirâmide invertida posto que o real não cabe em uma fórmula. O real exige a capacidade de sermos maleáveis narrativamente (MEDINA, 1996). Podemos pensar, neste caso, nos livros-reportagem que seguem fórmulas diferentes das que orientam as notícias hard news. Para Lima (2009), a reportagem, em especial no formato livro, é a maneira jornalística que mais se utiliza do fazer literário. Neste sentido, os

87 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS livros-reportagem, como Notícia de um sequestro, têm liberdade de tratar da notícia com mais detalhes. Posto isto, observamos o papel da memória na narrativa jornalística conforme aponta Sodré (2009), quando, diante de um fato, fazemos uma apreensão que, além de racional, é sensível, o que está relacionado também à condição e posição social do indivíduo. Antes de Sodré (2009), Lima (1998) já apontava que o jornalismo transcendia a reprodução dos fatos, visto que a ação jornalística está carregada de intenções, de formas de compreensão do mundo para as quais se aciona a capacidade de interpretar e rememorar. Ao escrever suas matérias, o repórter traz consigo sua visão de mundo, seus valores sociais e culturais, baseado como se viu (LIMA, 1998), no funcionamento da memória. Para recordar, utilizamos do que fomos e do que somos, de nossos pontos de vista, que podem ou não, corroborarem com de outras testemunhas. Assim, perceber algo para poder narrar depois, está totalmente ligado à memória que se possui desse fato. Para Lima (2009), a memória é o resgate de riquezas tanto sociais quanto psicológicas, em um movimento aplicável à construção da narrativa do livro- reportagem. Neste sentido, ainda conforme Lima (2009), justifica-se porque o livro-reportagem vai além da informação bruta e pretende, na humanização do relato, uma compreensão dos indivíduos em seus contextos social e cultural a partir da significância que o fato busca retratar. É dizer que dado o fato de que o livro-reportagem é uma forma de comunicação jornalística de caráter não periódico, é uma narrativa bastante especial enquanto produto cultural. Isso se dá porque o livro-reportagem não se caracteriza por ser um produto jornalístico qualquer. Para o autor, o livro-reportagem dá novos contornos narrativos ao jornalismo, porque, ao demandar a investigação para a construção de uma narrativa mais liberta utiliza de conceitos e técnicas de áreas como a história e a literatura, exigindo, por extensão, um bom manuseio das memórias e suas possibilidades, na medida em que se utiliza da técnica da entrevista das fontes, tomadas aqui como testemunho. Assim, o livro-reportagem, ao lidar com as memórias de longo prazo, é também feito da narrativa para além dos fatos atuais. Como não possui periodicidade, a ligação do livro-reportagem com o tempo é de longa duração, tratando de temas que permanecem interessantes à sociedade, em uma visada diferente das notícias diárias. Para o autor, a grande qualidade do livro-reportagem está em seu poder de estender as funções “orientativa” e informativa do jornalismo de estilo cotidiano. Dessa forma, torna-se característico do livro-reportagem preencher lacunas que o jornalismo do dia a dia2 não cobre (LIMA, 1998) – o que, na perspectiva do

2 A profundidade elencada por Lima (1998) como característica do livro-reportagem demanda o acionamento e recuperação de diferentes memórias de duas formas: 1) o livro reportagem pode ser fruto de compilações de textos já publicados em jornais, como é o caso de Relato de um Náufrago de García Márquez ou 2) um texto pensado para ser livro, construído a partir de critérios jornalísticos pautados pela narrativa aprofundada, baseada em fontes documentais e orais como é o caso do livro-reportagem objeto de análise Notícia de um sequestro também de autoria de García Márquez.

88 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS autor, contribui para que os leitores tenham compreensão mais abrangente da contemporaneidade. Por este mesmo prisma, Martinez, Correio e Passos (2015) salientam o caráter de certa forma atemporal dos textos do Jornalismo Literário que buscam mais retratar grupos e situações do que se preocupar com o valor-notícia. Acreditamos que estes textos permaneçam sendo lidos também por tratarem de condutas não apenas noticiosas, mas também humanas. A memória é problematizada também no que diz respeito à condição fundamental de sua escuta. Para Damasceno (2013), há limitações e dependências do trabalho do jornalista neste movimento porque, diz o autor, este só é “dono” de determinada memória quando está presente no local, podendo-o narrar por conta própria, em primeira pessoa. Mesmo nestes casos, ainda assim, é comum que recorra à memória e às percepções das suas fontes, carregadas por sua vez, de suas memórias que resultarão na construção da narrativa jornalística feita a partir da seleção das ações e falas. Da memória, portanto, dependem tanto os jornalistas quanto as fontes que entrevista. Para Palacios (2010), o jornalismo se configura, pelo exposto, como a própria memória em ato. E como esta é múltipla, individual e coletiva (PALACIOS, 2010), quanto mais fontes forem buscadas para relatar o passado, mais versões do passado existirão (PALACIOS, 2010). Mesmo tão plural, visto que cada indivíduo faz o seu próprio recorte dos fatos que presencia, a memória é claramente evidenciada como ferramenta na narrativa jornalística. Como diz Damasceno (2013), em razão disso, cabe ao jornalista ser o mediador da memória dos fatos que já são públicos. Nesta mesma perspectiva, Maia e Tavares (2017) apontam a relação do jornalismo com o tempo, visto que, o jornalismo é um agente de memória.

A memória em Notícia de um sequestro

O jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez é conhecido mundialmente por suas obras literárias e jornalísticas. Por conta da qualidade de sua produção, em especial o famoso Cem Anos de Solidão, García Márquez foi o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Ao perpassar sua obra, percebemos que a memória lhe foi sempre um assunto caro, tanto como temática, quanto como técnica. No livro-reportagem Notícia de um sequestro, por exemplo, ainda que a memória não apareça como temática, se constitui como a própria técnica de rememoração para que a narrativa avance. Na obra, publicada em 1996, García Marquez narra, por meio dos testemunhos de fontes, os sequestros que ocorreram no auge do poder de Pablo Escobar e seus narcotraficantes, na Colômbia. Diversos jornalistas e parentes de figuras importantes no governo do país foram feitos reféns como moeda de troca, para que Escobar e os seus não fossem extraditados pelos crimes cometidos. Em um pouco mais de 300 páginas, García Márquez mistura técnicas jornalísticas e

89 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS literárias para apresentar, com todo o fôlego, seu poder de apuração jornalística e capacidade de organização narrativa.

Analisando a memória

Para a análise, elencamos três formas mais recorrentes de estratégias de memória utilizadas, observadas por ocasião do primeiro olhar exploratório da obra e que consideramos que mais contribuem para a organização e produção de sentido da narrativa. Foram selecionados trechos de Notícia de um sequestro obedecendo o critério de presença longitudinal ao longo do livro, que pudessem representar essas evidências, buscando dessa forma, identificá-los no decorrer da narrativa. Assim, os excertos escolhidos por evidenciar padrões de repetição relacionados às narrativas baseadas na memória do narrador e de suas fontes foram agrupados a partir do reconhecimento de três tipos de memória: a) a memória de contexto, b) a memória de tempo e c) a memória de verbo. No caso da memória de contexto, seu embasamento é ideia de um sentido conjuntural que a diegese traz, dando lugar a atores e eventos que tecem a estrutura do acontecimento que origina o livro. São trazidos exemplos de memória de fatos relacionados ao sequestro daquelas personagens permitindo a compreensão da situação nos âmbitos sócio-políticos da história. Na memória de tempo, trabalha-se com a dimensão da temporalidade, tentando justamente articular esse conceito com a ideia de que só se narra o que já se viveu e que de algum modo se pode elaborar. Trata-se da conexão memória e marcações cronológicas. Na categoria memória de verbos, destaca-se situações em que a memória aparece com ênfase linguística no texto. É a força da ação ligada à memória que constitui a estratégia narrativa. É importante salientar que, em alguns exemplos selecionados, verificamos a presença de mais de um tipo de memória, o que reforça a estrutura narrativa na perspectiva do objetivo pretendido. E para efeito de destaque às formas de memória presentes nos referidos textos, as construções frasais foram negritadas.

a) memória de contexto: A memória de contexto configura-se numa articulação fundamental à estruturação da narrativa, especialmente do livro-reportagem que parte em sua origem, de um fato gerador inserido em um contexto. Neste sentido, as remissões são indissociáveis a esse narrar, dando-lhe forma e sentido. A narrativa trata de dar ao leitor elementos que o permitem desenhar o mapa e, por consequência, o sentido do sequestro à luz da problemática atuação do narcotráfico na Colômbia

A Colômbia não havia tomado consciência de sua importância no tráfico mundial de drogas até que os narcotraficantes entraram na alta

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política do país pela porta traseira, primeiro com seu crescente poder de corrupção e suborno, e depois com aspirações próprias. Pablo Escobar tinha tentado se insinuar no movimento de Luis Carlos Galán, em 1982, mas Galán tirou-o das listas de candidatos e o desmascarou em Medellín diante de uma manifestação de cinco mil pessoas. Pouco depois Escobar chegou como suplente à Câmara de Deputados por uma ala marginal do liberalismo oficialista, mas não esqueceu a afronta e desatou uma guerra mortal contra o Estado, em especial contra o Novo Liberalismo. (...) No dia 18 de agosto de 1989, Luis Carlos Galán foi metralhado em praça pública no município de Soacha, a dez quilômetros do palácio presidencial e no meio de dezoito guarda-costas bem armados. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p .27).

Por meio da memória de contexto, a obra apresenta fatos importantes para a organização histórica e temporal dos acontecimentos, evidenciando datas que localizam o poderio e a extensão do narcotráfico na Colômbia, bem como suas relações com o poder oficial e não oficial. Além da perspectiva sócio-histórica, o trecho é um exemplo da memória temporal já que a contextualização acaba por usar marcadores temporais como datas e advérbios temporais. Neste sentido, é interessante pensar no que Le Goff (1994) fala sobre a memória ser uma propriedade que serve para preservação e atualização de informações ou impressões passadas. Mais um trecho em que é possível perceber esta estratégia de memória é:

Villamizar, na verdade, já era um sobrevivente. Como deputado havia conseguido aprovar o Estatuto Nacional de Estupefacientes em 1985, quando não existia legislação ordinária contra o narcotráfico mas apenas decretos dispersos de estado de sítio. Mais tarde, Luis Carlos Galán lhe indicou que impedisse a aprovação de um projeto de lei que os parlamentares amigos de Escobar apresentaram na Câmara com o propósito de se tirar o apoio legislativo do tratado de extradição vigente. Foi sua sentença de morte. No dia 22 de outubro de 1986 dois mercenários que fingiam fazer ginástica na frente da sua casa dispararam contra Villamizar duas rajadas de metralhadora quando ele entrava em seu automóvel. Escapou por milagre. Um dos atacantes foi morto pela polícia e seus cúmplices, presos, foram libertados poucos anos depois. Ninguém pagou pelo atentado, mas também ninguém duvidou sobre quem tinha sido o mandante. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 29).

Percebemos o uso da memória de contexto aliada à memória de tempo, visto que, a data do fato é fundamental para organizar a narrativa cronologicamente. Há outro exemplo em que a narrativa usa da memória de contexto para localizar o leitor, mais uma vez, as datas também estão presentes.

O primeiro sequestro daquela série sem precedentes – no dia 30 de agosto, apenas três semanas depois da posse do presidente César Gaviria – havia sido o de Diana Turbay, diretora do telejornal Criptón e da revista Hoy x Hoy, de Bogotá, e filha do ex-presidente da república e

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chefe máximo do partido liberal Julio César Turbay. Junto com ela foram sequestrados quatro membros de sua equipe: a editora do noticiário, Azucena Liévano; o redator Juan Vitta, os cinegrafistas Richard Becerra e Orlando Acevedo, e o jornalista alemão residente na Colômbia, Hero Buss. No total, seis. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 33).

Notamos como essa forma de utilização da memória é usada para que o leitor compreenda a dimensão do que acontecia na Colômbia, e acaba por justificar a importância do livro-reportagem em si. Essa forma de compreender a Colômbia de uma época, utilizando memória e depoimentos, concorda com a forma na qual Ricoeur (2007) compreende a memória como uma formadora de identidades e culturas. Afinal, para quem busca conhecer melhor esse período colombiano, Notícia de um sequestro é um registro da identidade e da cultura dessa época. Mais um trecho que exemplifica o uso da memória de contexto em Notícia de um sequestro, a seguir:

Os primeiros a saber com certeza quem tinha Maruja Pachón e Beatriz Villamizar em seu poder foram Hernando Santos e o ex-presidente Turbay, porque o próprio Escobar mandou dizer isso aos dois por escrito quarenta e oito horas depois dos sequestros através de um de seus advogados. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014 p. 45-46)

Para que as informações acima sejam escritas é necessário o uso de várias memórias. Estamos nos referindo às memórias das fontes entrevistadas e também à memória de García Márquez. O resultado final, da união dessas memórias, é a narrativa de Notícia de um sequestro. Essa colcha de memórias se justifica na perspectiva de Palacios (2010) visto que, para o autor, o jornalismo é a memória em ato. Além disso, as “quarenta e oitos horas” citadas indicam a relação que esta narrativa estabelece entre passagem do tempo e memória. Ainda na categoria de memória de contexto, trazemos mais este trecho:

O projeto do decreto foi discutido com uma diligência febril e um sigilo nada comum na Colômbia, e foi aprovado no dia 5 de setembro de 1990. Este foi o decreto de Estado de Sítio 2047: quem se entregasse e confessasse delitos podia obter como benefício principal a não extradição; quem além da confissão elaborasse com a justiça, teria uma redução na pena de até um terço pela entrega e confissão, e de até um sexto pela colaboração com a justiça pela delação. No total: até metade da pena imposta por um ou por todos os delitos pelos quais tivesse sido solicitada a extradição. Era a justiça em sua expressão mais simples e pura: a forca e o garrote. O mesmo Conselho de Ministros que assinou o decreto rejeitou três extradições e aprovou três, como uma notificação pública de que o novo governo só renunciava à extradição como um benefício principal do decreto. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 83).

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A memória de contexto, o resgate do passado, contribui para o entendimento do livro-reportagem construído. Nos trechos de memória de contexto, podemos retomar como o jornalista é, no olhar de Damasceno (2013), um mediador da memória de fatos que já são conhecidos pelo público em geral. A categoria de memória de contexto, que traz informações complementares sobre os sequestros, evidencia o uso de memórias de diversas fontes e, por conta disso, lembramos de Palacios (2010) ao apresentar que quanto mais fontes são buscadas para tratar do passado, mais versões do passado teremos. García Márquez dá voz às fontes na busca de uma compreensão mais ampla e profunda, profundidade que Sodré e Ferrari (1986), além de Lima (1998), acreditam ser característica do livro-reportagem.

b) memória de tempo: Deste ponto em diante, iremos destacar a categoria de memória de tempo em que consideramos a relação entre memória e tempo. Há momentos em que a memória do tempo é construída por meio das datas, objetiva e precisamente como em: “O desaparecimento da equipe de Diana Turbay continuava sendo um mistério dezenove dias depois, quando sequestraram Marina Montoya.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 37). Percebemos como a memória trata com o tempo “dezenove dias depois”, ou seja, localiza a lembrança em um determinado período depois do sequestro ocorrido. Enquanto em outras situações, se dá de forma mais abstrata e psicológica, mas da mesma forma importante para a construção de sentido do “clima” da narrativa.

Meia hora depois, o ex-presidente Turbay recebeu um telefonema de uma fonte militar dizendo que sua filha Diana e Francisco Santos tinham sido resgatados em Medellín por uma operação do Corpo de Elite. De imediato telefonou para Hernando Santos, que soltou um grito de vitória e mandou as telefonistas de seu jornal darem a notícia a toda a família dispersa. Depois ligou para o apartamento de Alberto Villamizar e retransmitiu a notícia tal como havia recebido. (GARCÍA MÁRQUEZ 2014, p. 159).

As expressões “meia hora depois”, “de imediato” e “depois” evidenciam a organização cronológica que se encaixa na memória de tempo. Afinal, essas informações apuradas por García Márquez sempre passam pelo crivo da memória de cada fonte consultada. Há trechos em que a relação com a memória e o tempo é focada em datas, como a seguir: “Isto recordou às cativas a promessa anterior de libertá-las no dia 9 de dezembro, que tampouco se cumpriu” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 179). A relação com a memória, neste exemplo, vai além da data. Existe o verbo conjugado “recordar”, no caso, “recordou”. Este verbo tem, claramente, estrita ligação com a memória, já que é de comum uso quando falamos de algo que lembramos, que está em nossa memória.

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c) memória de verbos: Em diversos momentos, há palavras utilizadas que fazem com que nos remetemos à memória e que podem ser identificados nos exemplos que seguem. “Agiram tão entrosados e com tamanha rapidez, que Maruja e Beatriz só conseguiram recordar retalhos dispersos dos dois escassos minutos que o assalto durou” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 9). Aqui vemos um típico exemplo do uso da memória na narrativa, visto que além do verbo “recordar”, há o narrador nos dizendo que tudo ocorreu tão rápido que é difícil para as vítimas lembrarem como tudo ocorreu. Assim, por ser um momento de muita tensão, cheio de emoções e rápido, as lembranças ficam confusas, transformam-se em retalhos difíceis de unir, para ao final, recordar. Há também a ideia apresentada por Halbwachs (2004) de que os depoimentos de uma mesma cena devem ser parecidos entre si para que possamos reconhecer de que evento se trata. Mesmo Maruja e Beatriz não podendo lembrar de tudo e recordar de formas diferentes, é possível perceber que falam dos mesmos momento e fato. Ainda neste trecho é possível perceber a importância da memória individual para compor uma memória coletiva. Como Halbwachs (2004) enfatiza, a memória individual serve como ponto de vista sobre a memória coletiva. Neste caso, a memória coletiva do dia do sequestro recebe dois pontos de vista individuais, o de Maruja e de Beatriz. Outro exemplo de memória de verbos é encontrado em: “Maruja enrolada como um novelo no fundo do assento, nem lembrou que estava com um anel de diamantes e esmeraldas que fazia par com os brincos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 10). Evidenciando que Maruja não havia lembrado, no momento, de seu anel, a memória é apresentada por sua falta neste momento. Assim, não são apenas os verbos que remetem ao bom funcionamento da memória que compõem Notícia de um sequestro. Há os momentos em que a memória não funciona como deveria. “Só então Beatriz percebeu que tinha esquecido a bolsa no banco do seu automóvel, mas já era tarde. Mais que o medo e a incomodidade, o que não conseguia suportar era o fedor de amoníaco da jaqueta” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 11). Ao trazermos essa parte da narrativa, evidenciamos a ideia apresentada por Ricoeur (2007) de que o esquecimento não é um defeito e, sim, parte da memória e que estas “ausências” completam o sentido da narrativa. Sobretudo, compreendemos que, embora se use dados objetivos, a memória narrativa é sempre uma criação e interpretação possível do evento. Na página 14, há mais um exemplo da memória que não é única, evidenciando as visões plurais e multifacetadas que se pode ter de um mesmo evento.

Beatriz, no outro automóvel, não pôde chegar a nenhuma conclusão sobre o trajeto. Ficou o tempo todo estendida no chão do carro e não recordava ter subido uma ladeira tão empinada como a de La Calera, nem passaram por nenhuma barreira, embora talvez o táxi tivesse algum privilégio para não ser detido. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 14).

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No trecho acima, percebemos como os fatos podem ser diferentemente elaborados pelas personagens, de forma similar à própria experiência de viver, em acordo com as distintas retenções que as memórias podem ofertar. A memória de Beatriz, que, contribuiu para a experiência do sequestro dela foi diferente da experiência de sua amiga Maruja, bem como o modo como o narrador utiliza dessa memória para narrar as impressões da sequestrada. A memória de verbos segue sendo usada no livro todo e há exemplos mais simples também, como em “Maruja lembrou de repete que tinha no bolso do blazer algumas sementes de cardamomo, que são um tranquilizante natural, e pediu aos sequestradores que a deixassem mastigar algumas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 12).

Considerações interpretativas: a memória como forma de organização da narrativa

A partir do levantamento teórico a respeito da memória e da análise empreendida na obra de García Márquez, observamos como a memória é uma estratégia fundamental para a organização da narrativa. Capaz inclusive de autenticar os eventos sucedidos especialmente por conta de o texto ser fruto da escuta de fontes jornalísticas e documentais. Ou seja, é por meio da memória, em sentido amplo, especial nas categorias analisadas, que García Márquez desenvolve uma narrativa informativa, jornalística e esteticamente refinada, já que possui estratégias linguísticas tanto do jornalismo quanto da literatura. Por ser uma obra indexada como jornalística, os fatos apurados e narrados por García Márquez são pautados na realidade e reconstruídos com base em narrativas que, tanto documentais quanto fruto da oitiva das fontes, é muito complexa pela dependência exatamente da memória individual e coletiva para tal. E como dissemos, tendo a memória seu componente subjetivo, tanto para quem lembra quanto para quem narra e escreve a partir disso, a narrativa será sempre uma construção vista de uma determinada perspectiva. Por conta disso, evidenciamos também, nos exemplos, que as categorias de memória se misturam, já que, tratando de fatos reais, em um livro-reportagem, também estão sempre submetidas à recriação do que lembram e como lembram do fato as fontes consultadas. Assim, concluímos que a memória, enquanto capacidade mobilizada para a estruturação da narrativa, ainda que com todas as suas limitações e complexidades, é o que de fato se pode dispor para a narrativa. O que permite pensar que, qualquer interpretação sobre o narrado, é sempre um “narrado possível” fruto do acionamento das memórias daqueles recursos - documentais e da escuta de alguém - fontes/entrevistados. E no caso da narrativa de Notícias de um sequestro, esta é a versão oferecida por meio da memória do narrador sobre as memórias das fontes acionadas por García Márquez para a elaboração do livro-reportagem.

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97 Narrativas, subjetividades II e rupturas Para além do robô, a reportagem: pavimentando uma metodologia do jornalismo de subjetividade

Fabiana Moraes Diego Gouveia

Introdução

O mercado de jornalismo no mundo vem passando por intensas e aceleradas transformações provocadas, principalmente, pelos impactos das novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Nesse cenário, o avanço dos estudos em Inteligência Artificial (IA) tem modificado a produção de notícias, que agora podem ser realizadas por robôs, por exemplo. Embora não esteja com amplo uso nas redações, acredita-se que, em breve, esse modo de produção domine o campo do jornalismo. Em sites como o da revista Forbes, robôs, desde 2010, estão escrevendo notícias. Esse passo foi dado depois que pesquisas da “Northwestern’s Medill School of Journalism” resultaram na empresa Narrative Science, responsável pela produção de programas de computador capazes de redigir informações. Esse investimento no uso de IA tem se intensificado também em um contexto de jornalismo de dados. Desafiado pelo Big Data, termo utilizado para nomear conjuntos de dados grandes e complexos que os mecanismos de processamento tradicionais não conseguem lidar, o jornalismo de dados ganha novas configurações diante da figura dos robôs-jornalistas que surgem como ferramentas eficientes para lidar com a análise, captura, curadoria de dados, pesquisa, compartilhamento, armazenamento e transferência das informações. Assim, a observação do cenário atual leva a acreditar que a existência de robôs-jornalistas é uma realidade irreversível para o campo da comunicação. Dessa forma, a IA impõe novas demandas à área enquanto provoca reflexões relacionadas ao fim do jornalismo. Há quem defenda, como o editor gráfico do The New York Times, Wilson Andrews, que, neste primeiro momento, o trabalho do jornalista não deve ser totalmente substituído. De acordo com ele, os jornalistas devem continuar atuando quase como curadores, orientando e calibrando os sistemas de inteligência artificial de modo que eles possam ser mais eficientes, tanto do ponto de vista de informação de qualidade quanto de adequação da linguagem (LEITE, 2017, informação eletrônica). Essa perspectiva já corresponde à realidade de alguns profissionais da área que atuam monitorando e programando as atividades dos robôs-jornalistas. No

99 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS entanto, restringir a atividade jornalística no futuro a apenas essa função seria reduzir a capacidade do jornalismo no desenvolvimento de conteúdos. A IA, apesar de configurar um processo de precarização do campo da comunicação, não é a única responsável por essa realidade – entendendo, importante frisar, essa precarização causada não pela IA em si, mas pelo movimento de mera substituição desta pelo trabalho das e dos jornalistas, sem levar em conta as diferentes dimensões impostas pela prática de narrar o mundo. As redações funcionam hoje, segundo Trigueiro e Lins (2017), com muitas colaborações dos cidadãos-repórteres e repórteres amadores que acabam por atender, obviamente, a uma tendência de estímulo à participação dos consumidores na produção da notícia, mas também a uma demanda de empresas cada vez menores, estagiários assumindo papel de profissionais formados e demissão dos jornalistas com mais tempo de carreira. A sobrevivência do jornalismo enquanto atividade profissional e campo de produção de conhecimento está sujeita também, entre outros fatores, a um retorno a sua origem: a ênfase na sua capacidade investigativa, na sua potência narrativa, que se mostravam férteis já no início do desenvolvimento da prática (permeada por interesses econômicos desde seu nascimento). A investigação é apontada como a busca e comprovação de informações, mas não somente isso. Não existe consenso entre os pesquisadores sobre o jornalismo investigativo: para alguns, é uma categoria diferenciada e, para outros, é parte constituinte do processo de produção de notícias. Na produção de notícias feitas pelos robôs- jornalistas, há investigação de dados. Isso não pode ser negado, mas o jornalismo investigativo começa a ganhar novos contornos com a contemporaneidade, passando a utilizar outros elementos em sua constituição. De acordo com Lage (2006), o futuro da notícia ficará mais bem representado por meio da reportagem. E, hoje, tem sido observado o investimento em reportagens investigativas que priorizem a subjetividade como estratégia metodológica para o desenvolvimento de narrativas na contemporaneidade. Schudson (2010) explica que, até 1830, a objetividade não era fator determinante na divulgação de informações nos jornais. Isso porque, no mundo, a imprensa era deliberadamente partidária. Os periódicos da época tratavam assuntos relacionados ao comércio e à política com opinião. O público, na verdade, esperava encontrar nos textos posicionamentos, bússolas para o pensar (ou reiterar o já sabido). Esse retorno do jornalismo às suas origens não está ligado a produções sensacionalistas, como as do século XIX, mas à fuga de um modelo que prioriza quase exclusivamente a objetividade nas narrativas do jornalismo. Essa fuga parece ser, mesmo com o crescimento da IA, algo irreversível e reclamado pela própria audiência (leitores, espectadores) atual, uma “massa” heterogênea que cada vez mais questiona as representações geradas pelo campo noticioso. É entendido que esses recortes, enquadramentos, usos e indagações sistematizados dentro do jornalismo são gerados por sujeitos – e cada um desses

100 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS processos é atravessado pela subjetividade. Este artigo problematiza, então, como o jornalismo de subjetividade (MORAES, 2015) constitui um método importante para produção de narrativas e também para a própria manutenção do campo, focando suas peculiaridades e sua dimensão humana. O objetivo é apresentar o jornalismo de subjetividade e sua metodologia, pensando em meios de sustentabilidade da área em um cenário de precarização e automação.

Abordagem metodológica

Como procedimento metodológico, este trabalho recorre à pesquisa bibliográfica quando

[...] se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, com livros, artigos, teses etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados. (SEVERINO, 2007, p. 122).

Dessa forma, foram consultados livros, artigos e outros trabalhos acadêmicos sobre jornalismo, produção de notícias, reportagem, subjetividade, novo jornalismo. Além de promover uma contextualização sobre o jornalismo e produção da notícia, resgatando aspectos teóricos do campo, será proposto um caminho metodológico de investigação para produção de jornalismo de subjetividade, que começou a ser esboçado no livro O Nascimento de Joicy para demonstrar o uso de elementos subjetivos necessários para dar conta de uma cobertura jornalística mais íntegra - e integral. Dando continuidade à pesquisa iniciada no livro, Moraes (2015) adiciona autores e autoras de áreas diversas, mas que se tocam, como Didi- Huberman (2013), Perec (2010), Veiga da Silva e Marocco (2017) e Kilomba (2013) na busca por um fazer jornalístico que fissure a epistemologia positivista sobre a qual a prática - e parte de seu ensino foram construídos. A pavimentação das estratégias metodológicas do jornalismo de subjetividade é feita, neste trabalho, a partir dos recursos utilizados por Moraes (2015) na reportagem observada nesta pesquisa. Por fim, este artigo se propõe a contribuir para as reflexões relacionadas a narrativas na contemporaneidade, traçando um caminho que não desprestigia a IA, mas que analisa os métodos tradicionais e modernos do jornalismo como meios para garantir sua própria manutenção.

Os novos jornalismos investigativos Deslocamento do modo de objetivação jornalística

Os primeiros produtos jornalísticos atuaram como irradiadores de histórias, faziam com que o desconhecido se tornasse próximo dos leitores. E essa realidade que nos parece natural é, na verdade, construída pelos meios de comunicação.

101 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

No entanto, nos estudos do jornalismo, nem sempre as notícias foram vistas dessa forma. Se, no começo, como vimos, os periódicos eram carregados de opiniões, a partir de 1948, com a Associated Press, as notícias, utilizando-se da tecnologia do telégrafo, que garantia agilidade na transmissão das informações, passaram a focar na objetividade de forma que atrairiam também a atenção de clientes de diversas bandeiras partidárias. Com a mudança de reportagens com valores e posicionamentos a uma pautada em fatos, emergiu uma necessidade de se estabelecer técnicas e normas que dessem credibilidade ao gênero. A objetividade aparece nesse cenário (MOURA; ALVES, 2015). A partir daí o que se viu no jornalismo foi uma preocupação em não evidenciar a autoria dos textos, apagando a experiência e a voz de quem narra, ideal preconizado pela teoria do espelho, segundo a qual as notícias são um espelho da realidade. A notícia teria, assim, a função de orientação dos agentes sociais no mundo, veiculando conteúdos que se tornam relevantes para a manutenção da ordem social. Priorizam-se mais fatos e menos opiniões, numa visão positivista da objetividade. A linguagem jornalística é, então, ancorada em alguns princípios como objetividade, imparcialidade, universalidade e pirâmide invertida. O uso da última determina o emprego de um modelo de perguntas e respostas na construção do texto que atende à estrutura clássica de apresentação de uma notícia. No modelo da pirâmide invertida (técnica surgida em 1861 no jornal The New York Times), a narrativa é feita pela ordem de importância da informação e não por ordem cronológica do acontecimento, ou seja, consiste em colocar as informações mais importantes no primeiro parágrafo, o lead, respondendo “o quê, quem, quando, onde, como, por quê?”. A questão é que essa hierarquização, aparentemente técnica, própria de um campo, colabora fortemente com a manutenção de hierarquias sociais que emudecem e invisibilizam pessoas, grupos, regiões. Quando o jornalismo afirma que um determinado “quem” deve ser prioritariamente noticiado, ele também afirma que outros “quem” não devem sê-lo. É justamente nesse tipo de notícia que os processos de automação têm alcançado êxito. Por meio da Inteligência Artificial, robôs-jornalistas têm conseguido desenvolver o lead, informando satisfatoriamente o público interessado em uma leitura tradicional e rápida sobre um determinado assunto. O desafio da IA, atualmente, é fazer com que os robôs avancem na progressão textual estruturando notícias com título, lead e complemento do texto. Os avanços mostram que a Inteligência Artificial não deve levar muito tempo para conseguir isso. Com o avanço do capitalismo, a notícia baseada no modelo da pirâmide invertida se torna cada vez mais mercadoria, produto da indústria cultural. Os manuais de redação, espécies de bíblias do como fazer notícias, vão perdendo força dentro das salas de aulas, é verdade, mas ainda repercutem intensamente no fazer. É interessante observar que um deles, o Manual da Redação da Folha

102 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS de S. Paulo, ainda comum em algumas universidades, redações e assessorias de imprensa, reconhece a impossibilidade de alcançar a objetividade, mas ressalta que “procedimentos consagrados de apuração e redação ampliam o distanciamento crítico e tornam as descrições dos eventos tão exatas quanto possível” (MANUAL da redação, 2018, p. 16). Esses fatores geram um ciclo vicioso de informação com notícias repetidas e escritas praticamente sob os mesmos pontos de vista (sem entrarmos aqui em questões político-empresariais que permeiam os jornais, assim como todas as empresas). Para romper isso, é preciso transgredir, acabar com esse jogo de espelhos refletindo-se mutuamente. É preciso lembrar que as funções que competem ao jornalista vão além do que meramente informar, mas também incluir humanização de histórias, representação de sentimentos e emoções, estes importantes para a compreensão de um fato, fenômeno. Da dinâmica social, enfim. Como contraponto à teoria do espelho, a partir da década de 70 do século passado, teorias construtivistas passam a observar as notícias como formas de ver, perceber e conceber a realidade, numa perspectiva mais de construção social da realidade. De acordo com Traquina (2004) e Pena (2012), a objetividade não seria uma negação da subjetividade, mas uma técnica que ajuda o profissional a ordenar as ideias na hora de escrever os textos. A objetividade não precisa ser negada, mas sim compreendida dentro de um quadro mais complexo. “Uma boa reportagem se faz com precisão, rigor e correção, mas também e sobretudo com emoção” (VENTURA apud SQUARISI; SALVADOR, 2004). Há uma contestação do modelo da pirâmide invertida. Jornalistas como Tom Wolf, Truman Capote, Gay Talese são exemplos de profissionais que abandonaram a estrutura clássica e acrescentaram elementos literários, criando um estilo que se popularizou sob o nome de Novo Jornalismo. No Brasil, a revista Realidade (primeira edição lançada em 1966) continua sendo um dos exemplos desse novo narrar. Chaparro (2006 apud ROCHA; XAVIER, 2013, p. 141) considera que os avanços da tecnologia e a rapidez da informação instigam os jornalistas de hoje não apenas a dizer o que acontece, mas também a serem capazes de compreender e atribuir significados aos fatos. Os robôs-jornalistas se encarregam, em algumas redações, de criar os lides necessários para compreensão de um fato, mas a função do jornalismo não é somente de informar: a ele cabe também apresentar leituras sobre a sociedade. Nesse modelo de jornalismo, há um forte investimento em levar imagens, sensações e sons para o leitor a partir de um texto que busca fissurar e abrir novas perspectivas. Há uma negação, nesse estilo de jornalismo, dos valores-notícia como preponderantes para o repórter ir ao mundo. Se esses critérios definiam que pessoas, situações e lugares mereciam ser pautas jornalísticas, com esse novo procedimento, há uma quebra de pautas e/ou argumentos baseados em ideias

103 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS pré-concebidas e novos elementos se tornam temas de reportagens. As reportagens ligadas ao novo jornalismo são, de acordo com Neveu (2016), textos que exploram a base da vida social. Outro destaque dado pelo autor é o método de trabalho utilizado nestes textos cujos temas passam por uma revisão bibliográfica na área de sociologia, ciência política ou economia. Para Neveu (2016), alguns métodos de trabalho foram emprestados de hábitos acadêmicos, tais como pesquisa em bibliotecas, consulta a arquivos, leitura de revistas científicas. Há, nos textos, assim, pesquisa acadêmica, representações de afetos e sensibilidades. No processo de escrita, a observação continua como um dos processos mais importantes na apuração dos fatos, mas não é o único. Um importante recurso empregado é a representação de detalhes da vida das pessoas e dos grupos que são objetos da reportagem. As emoções são reconhecidas pelas reportagens. Há, de fato, uma valorização das subjetividades. Entre as técnicas utilizadas, destacam-se o perfil, a narrativa em fluxo de consciência, a presença do narrador em sua história e o uso criativo da linguagem. Essas experiências se relacionam com o que vem se chamando de jornalismo de subjetividade, conceito em desenvolvimento que será detalhado na sequência.

Jornalismo de subjetividade: emoção também é informação

Com O Nascimento de Joicy, Moraes (2015) desenvolve uma reflexão teórica sobre os limites da objetividade e as consequências que esta gera sobre os enquadramentos da vida das pessoas. Para a jornalista, “[...] é preciso pensar em um jornalismo que se utilize, sem constrangimentos, da subjetividade, reconhecendo-a como um ganho fundamental na prática da reportagem e mesmo na notícia cotidiana” (MORAES, 2015, p. 159). Para isso, se propõe a realizar um percurso centrado no que chama de jornalismo de subjetividade, articulando sua vivência enquanto repórter e postulações de campos variados do conhecimento como a Filosofia, Sociologia, Etnografia. A ideia da autora é estimular uma produção jornalística que produza novas representações e que não se restrinja a uma objetividade limitante (STASIAK; SCHWAAB, 2016). Entretanto, ela faz questão de destacar que o jornalismo de subjetividade não significa um abandono da linguagem jornalística e do mundo sensível como referência, mas “uma contestação à concepção reducionista de objetividade gravada nos manuais de jornalismo, que castra a autonomia do repórter e o condiciona a apenas ‘relatar fatos’” (MORAES, 2015, p. 14). É uma recusa a um jornalismo positivista, verificável e, como veremos mais à frente, que privilegia um gênero em detrimento de outro. Nesse sentido, se quer contribuir para uma discussão que parece longe de se findar no campo do jornalismo: repensar os ideários de uma objetividade que, ao apagar o

104 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS subjetivo, acaba dificultando a reflexividade dos profissionais e contribuindo para a reprodução de estereótipos e valores sociais dominantes nos processos simbólicos – que ocorrem nas produções jornalísticas a partir dos sentidos gerados nos jornalistas. Um caminho primeiro para o desenvolvimento da prática jornalística subjetiva está na própria forma de enquadramento da realidade: aprende- se, comumente, que o que deve ser levado ao conhecimento do público é o espetacular, o extraordinário. A questão é que este é um olhar muitas vezes exotificante, aquele que busca enquadrar o outro sempre pelo que ele apresenta como “diferente”. As semelhanças são deixadas de lado. Essa assimetria proporciona aquilo que Hall (2016) chamou de “espetáculo do outro”, termo feliz para pensar na vasta construção e difusão de estereótipos pelo equipamento midiático. A prática subjetiva vai em busca de um modo de apreensão da realidade não respaldado no espetacular, mas que se interessa também pelo banal; não pelo insólito, mas aquilo o que é evidente; não pelo exótico, mas pelo endótico (neologismo criado por George Perec para dar conta do evidente que não se vê). Segue-se, assim, aquilo que o romancista e ensaísta francês classificou como infraordinário, um método de observação do mundo baseado naquilo que não chama atenção, naquilo que jamais, em tese, poderia ser alvo do interesse de alguém. No pequeno e inspirador ensaio “Aproximações de quê?”, que abre o livro no qual analisa o método, o autor observa:

O que nos fala, ao que me parece, é sempre o acontecimento, o insólito, o extraordinário: cinco colunas na primeira página, largas manchetes. Os trens só começam a existir quando descarrilam, e quanto maior é o número de viajantes mortos, mais eles existem; os aviões só ganham existência quando se perdem; os carros têm por único destino chocar- se contra os plátanos: cinquenta e dois finais de semana por ano, cinquenta e duas estatísticas: muitos mortos, e tanto melhor para a informação se os números não param de crescer! É preciso que haja por detrás do acontecimento um escândalo, uma fissura, um perigo, como se a vida só devesse se revelar através do espetacular, como se o eloquente, o significativo fosse sempre anormal: cataclismos naturais ou reviravoltas históricas, conflitos sociais, escândalos políticos […] (PEREC, 2010, p.13).

Esse (re)olhar de Perec (2010) é essencial, pensamos, para a produção de um jornalismo de subjetividade, que não está preocupado em se guiar pelo rosário de importâncias preconizado pelos valores-notícia. “Ver miúdo”, aqui, vai além de descrições densas (necessárias e reveladoras). Há o exercício de um olhar menos condicionado sobre o outro, a tentativa de desmonte de um certo cinismo construído pela objetividade, aquele no qual jornalistas se escondem atrás do fato e defendem-se dizendo que apenas “relataram a verdade.” Assim, o ordinário é entendido como importante na construção de sentidos. Mais: eles

105 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS podem nos informar bem mais que as questões espetaculares, estas servindo tanto para visibilizar determinado acontecimento - explosão, denúncia, acidente, vitórias - quanto para invisibilizar o cotidiano que se esconde por trás destes. Diz Perec (2010, p. 178) que o “escândalo não é a explosão, é o trabalho nas minas. As ‘perturbações sociais’ não são preocupantes em períodos de greve, elas são intoleráveis vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano”. É preciso dizer que a adoção por um olhar miúdo na construção das representações começou a ser alvo de interesse no campo do jornalismo já a partir dos anos 30, durante o fortalecimento da Escola de Chicago. Criada em 1910, ela fazia parte de uma certa “virada etnográfica” observada na antropologia: o interesse migrava das ilhas distantes e dos “povos desconhecidos” para cidades, suas populações, seus bairros e imigrantes, seus problemas, suas mudanças. Agier (2015), ao fazer uma análise dos enquadramentos antropológicos iniciais, aponta para um olhar imensamente exotificante e eurocêntrico por parte dos que iam a campo - geralmente escolhendo aquilo que era distante, “estranho”, aquilo que melhor podia se configurar como sendo “o outro”. Esse enquadramento também transforma aquele que é visto em agente passivo, visto que é o meu olhar o que perscruta. Enquanto observo, não me uno, mantenho uma distância segura. Mas, quando abandonamos esse lugar (essencial também na prática jornalística) que não se fecha ao encontro, abro a possibilidade de meu olhar não ser o que domina, o entendido como não-contaminado, o isento. O objetivo, enfim. É claro que o mero deslocamento do campo/objeto do olhar não significa de saída a redução desse olhar exotificante sobre o outro, mas sem dúvida o trabalho de autores como Robert Park, sociólogo e também jornalista, mostrou que o jornalismo se favorecia bastante com a adoção de análises mais apuradas e menos espetaculares para falar do comportamento humano. A prática etnográfica, própria do campo das ciências sociais, é importante na construção de um método para o jornalismo de subjetividade. Apesar de sua enorme potência no fazer jornalístico, ela foi ora negada ora mal realizada pelo próprio campo, em que se pese investigações que deixaram importantes contribuições, aquelas que Neveu chamou de “jornalismo etnográfico” (2006). É vital, aqui, também trazer a noção da visibilidade e de visibilidade distorcida trabalhadas por Brighenti (2007) enquanto categoria para as ciências sociais, como lugar de hierarquizações. Para o autor, visibilidade é uma propriedade que pode ser usada para dividir as pessoas. Nesse sentido, trazer focos de luz para grupos pouco ou mal representados também é importante não como “temas” em si, mas justamente pelo fato de, nas relações assimétricas midiáticas, estes ocuparem um lugar de desvantagem. Esses estilos e modos de acesso são centrais na discussão. Há, sabemos, a visibilidade de grupos vários em ambiente midiático, como indígenas, quilombolas, mulheres marcadas pela violência, adolescentes, gays, mas como

106 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS essa visibilidade acontece? Frequentemente, com a utilização de enfoques que não dão conta da diversidade e complexidade das pessoas e grupos retratados. Assim, o que antes de tudo temos é uma visibilidade distorcida, que perpetua estas pessoas e grupos em lugares de violência não só simbólica. Há um outro elemento importante na sustentação de um jornalismo de subjetividade: o entendimento de que a “contaminação” da emoção é antes um ganho, e não algo a ser negado na construção das reportagens. Necessário entender que o uso dessa emoção pelo jornalismo não é novo: desde o início de sua história, a imprensa se utilizou da lágrima, do riso, da comoção, como maneira de relacionar-se mais intimamente com o público - uma maneira até hoje articulada, enfim, para vender mais exemplares, livros, programas. Mas a instrumentalização da emotividade, para nós, no entanto, é uma estratégia tão objetiva quanto a pirâmide invertida ou valor-notícia. Entendemos que o uso da emoção, nesse jornalismo que preza também o subjetivo, se dá primeiramente pelo não apagamento da jornalista/do jornalista na produção que ela/ele realiza (entendendo que o lugar do jornalista não é o do protagonismo, não é do heroísmo). A procura pela tradução desse encontro do eu- outro na composição dos textos potencializa justamente a desconstrução de um olhar de autoridade sobre a vida alheia, principalmente aquelas experenciadas por pessoas/comunidades vulnerabilizadas. Nas reportagens, principalmente aquelas nas quais a repórter cruza o caminho de pessoas historicamente marginalizadas, de grupos desempoderados, das “ralés” (SOUZA, 2018), não há possibilidade de não ser afetado pelo campo, pelo cotidiano de outrem - a não ser que se vá para rua com a arquitetura da reportagem pronta e hermética, com pressupostos que não podem ser contrariados. Em síntese, é dizer que emoção e reflexividade não estão em separado - outra falsa dicotomia empreendida pelo modo positivista, científico e verificável de estruturação do jornalismo (e não só dele). Pensar o quanto situações vividas em campo colocam em xeque nossa própria forma de enquadramento são necessárias para um fazer jornalístico mais rico1. É claro que entender emoção como falta de rigor, no jornalismo, é olhar assentado no positivismo e, atrelado a esse, a um modo masculino que permeia a prática (muito embora sejam as mulheres a maioria na profissão hoje, grande parte seguindo pressupostos preconizados pela prática). O fato é que os valores convencionais da profissão, um modo de fazer, permeiam o jornalismo de maneira quase consensual. Duas questões aqui se impõem: o entendimento da emoção como algo hierarquicamente menor que a razão e, ainda, o entendimento de

1 Aqui, eu, Fabiana, penso nos encontros com uma personagem maculada pelo crack e pelo sofrimento, Carol (reportagem Casa Grande e Senzala, 2013, Jornal do Commercio), que ao me ver fotografá-la em mais um de nossos encontros, em um dia em que havia passado algum tempo mendigando comida, me olhou e disse: “tu quer me ver suja, né tia?”. As fotos eram para meu caderno de campo e não seriam publicadas, mas a interpelação de Carol foi poderosa no sentido de mostrar sua compreensão do que acontecia ali, dos enquadramentos midiáticos comuns sobre a pobreza. Decidi levar aquela frase a público, para a reportagem, pois queria que ela desconcertasse e ensinasse não só a mim.

107 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS que são as mulheres aquelas “naturalmente” ligadas ao primeiro, enquanto os homens comandam, servindo como referência, o barco da racionalidade. Em um simpático livro cujo texto original foi redigido para uma palestra cuja plateia era de adolescentes, Didi-Huberman (2013) mostra brevemente que a emoção historicamente foi relegada a um espaço do menos confiável (aos loucos, aos velhos, crianças, mulheres). Esticando a corda, ele percebe que a mesma desvalorização se dá entre os filósofos clássicos, totêmicos na cultura ocidental. A razão (logos) deveria ser o farol do mundo, o guia, enquanto a emoção (phatos) foi entendida como uma fraqueza, um defeito, uma incapacidade, o não confiável (o “patético”) (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 21). Esse lugar hierárquico menor ocupado pela emoção, associado a “todo resto” que não foi civilizado, europeizado, tem relação direta com relações de gênero e também de cor, com discursos autorizados e discursos pouco considerados. Esse projeto de racionalidade trazido por Darwin e Platão é questionado em instâncias várias - uma delas, a arte. Em O Projeto Desejo (2015), série de três vídeos exibidos na Bienal de São Paulo, em 2016, a teórica e artista portuguesa Grada Kilomba sintetiza de maneira poderosa as relações de poder estabelecidas entre discursos, os autorizados sendo percebidos como os lugares da razão, da neutralidade; os seguintes, os das prováveis distorções e calcados não em um saber rigoroso, mas antes de tudo em impressões. No vídeo “Enquanto Falo”, ela diz:

Comentários e avisos parecem-me aprisionar-me em uma velha ordem colonial Inadvertidamente, dizem-me o que conta como a verdade e em quem acreditar lembrando-me de uma estranha dicotomia: o que eles falam é científico quando nós falamos, é não científico. Quando eles falam, é imparcial. Quando nós falamos, é parcial. Quando eles falam, é objetivo. Quando nós falamos, é subjetivo. Quando eles falam, é neutral. Quando nós falamos, é pessoal. Quando eles falam, é racional. Quando nós falamos, é emocional. Eles têm fatos, nós temos opiniões. Eles têm conhecimento, nós temos experiências. Não estamos a lidar aqui com um simples jogo de p-a-l-a-v-r-a-s Mas sim com uma violenta hierarquia que define:

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quem pode falar e sobre o que se pode falar.

Veiga da Silva (2010) realizou uma importante análise teórico-etnográfica sobre como as questões de gênero atravessam o fazer jornalístico e contribuem na manutenção de desigualdade, na continuidade dessa hierarquia violenta à qual Kilomba se refere em seu potente trabalho. Percebeu que esse fazer é permeado por uma série de cânones estabelecidos culturalmente, sendo a masculinidade (e toda a objetividade atrelada a ela) como o mais latente entre eles. Mais tarde, em uma análise sobre livros-reportagem realizados por mulheres (no qual também se debruça sobre O Nascimento de Joicy), Veiga e Silva e Marocco (2017, p. 35) escrevem: “As lógicas positivistas-masculinistas se evidenciam no jornalismo hegemônico tanto nas relações de poder como no delineamento das práticas e nos tipos de conhecimento social”. Nesse bojo, a subjetividade é algo a ser expelido da prática jornalística.

Discussão dos resultados Metodologia – o subjetivo como elemento político no jornalismo

É possível identificar o caminho teórico proposto no jornalismo de subjetividade articulado à reportagem O Nascimento de Joicy. Importante dizer que esse caminho não estava estruturado durante a reportagem, mas que ele nasce antes, na própria realização de outras investigações (a exemplo das reportagens “A Vida Mambembe”, 2007; “Os Sertões”, 2009; e “Quase Brancos, Quase Pretos”, 2010, todas publicadas no Jornal do Commercio). Aqui, a partir de um contato contínuo com a Sociologia, área na qual escolheu realizar seu doutorado, a autora vai realizando investigações que procuram visibilizar pessoas e grupos cujas representações são diversas vezes realizadas com lentes opacas, enquadramentos repletos de reduções (travestis e negros no lugar da violência ou exotificação, por exemplo). Nessa busca, é empreendido o esforço pelo encontro, pela semelhança, e não pela diferença (o espetacular “Outro”). Também há a recusa a modelos de existência previamente estabelecidos, assim como a abertura para o que o campo poderia trazer. Assim, Joicy, apesar de não se enquadrar em um perfil de mulher transexual que está previamente estabelecido em nosso imaginário - adornos como brincos e batom, trajes como vestidos e saias - passou a ser a personagem de uma investigação que durou meses e resultou na série publicada durante três dias. Essa decisão rendeu, mais tarde, ruídos no ambiente da redação, quando um editor escreveu na capa de jornal na qual Joicy surgia em sua casa como uma Vênus de Botticelli: “você escolheu uma bicha pobre, feia e ignorante”. A violenta frase - e uma série de cartas contrárias à presença de Joicy no jornal - demonstrava que, se a repórter tivesse conformado a personagem no corpo da

109 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS mulher que leitores e chefes tinham previamente na cabeça (aquela vista nos jornais, nas redes sociais, nas piadas, no cinema etc.), o assombro teria sido menor ou mesmo não existiria. A imagem da mulher construída socialmente, culturalmente, foi maculada, trazendo uma nova perspectiva sobre as construções do feminino. Era fissura, e não repetição de modelos, algo que, entendemos, é também obrigação de jornalismo. Optou-se ainda pela não espetacularização da moradora de Alagoinhas (agreste de Pernambuco), por uma observação densa, participante, com ênfase no enfoque do cotidiano: foram vários dias acompanhando o movimento do salão de beleza, as consultas médicas, as conversas com vizinhos e familiares. Nessa observação, a repetição das ações, a banalidade dos fatos, traziam dados importantes: a relação contínua com o celular, este um companheiro contínuo da cabeleireira, quase sempre enfrentando solidão; as conversas no mercado público, com frequentadores fazendo piadas ou olhando de maneira risível quando Joicy passava. A escuta no pequeno sofá, enquanto Joicy cortava os cabelos de seus clientes também era preciosa: ali, a contínua necessidade de falar sobre o sonho que tivera com um anjo que lhe dissera seu novo nome mostrava como de certa maneira o divino era usado como proteção por Joicy, como moeda para sua aceitação em sua comunidade. O infra-ordinário mostrava sua potência. Acusar a presença da repórter também é outra estratégia subjetiva assumida nesse método, uma vez que ela proporciona um melhor entendimento da construção própria que o jornalismo realiza de seus personagens. Não se trata de dar ênfase a um testemunho, e mais acusar um processo de construção (ou seja, uma verdade entre muitas). O processo de construção dessa metodologia, como dito, está sendo pavimentado, mas podemos começar a sintetizar esse percurso, que nasceu do abraço da longa prática com a teoria. Na busca por uma reportagem que privilegie tanto a objetividade quanto a subjetividade, temos:

- Investimento na visibilidade de pessoas e grupos sociais cujas representações são diversas vezes realizadas com lentes opacas em enquadramentos repletos de reduções; - Busca pelas semelhanças e não diferenças; - Recusa a modelos de existência previamente estabelecidos; - Não espetacularização, recusa da exotificação; - Apuração e checagem intensas; - Observação densa e participante (inclusive com registros imagéticos); - Acatar a presença da repórter; - Ter um tempo estendido para realização da reportagem; - Trazer opinião e informação; - Ser necessariamente polifônica; - Convivência maior com as fontes – inclusive secundárias.

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Considerações finais

A ascensão do modelo do jornalismo imparcial e objetivo atende a uma lógica industrial e capitalista de produção das informações. Não é, portanto, de se estranhar os incentivos para redução de custos associados ao mercado de notícias. De um lado, é possível identificar o encolhimento das redações e, do outro, percebe-se o avanço e estímulo às pesquisas relativas à automação do processo. A sobrevivência do jornalismo e do campo está em despertar no público o interesse por histórias e, sem dúvida, as reportagens investigativas com investimento na metodologia do jornalismo de subjetividade são um caminho possível. Indo absolutamente de encontro a práticas positivistas estabelecidas na maioria dos meios de comunicação, a subjetividade ganha, na contemporaneidade, novo status com capacidade de atrair a atenção de um público exausto do modelo mercantil de informações. Ela, ao reverter uma noção de uma realidade que precisa ser espetacular para caber no jornalismo, vai além do que é preconizado pelo valores-notícia, estes responsáveis por boa parte da invisibilidade de grupos e/ou pessoas não vistas/ouvidas (ou vistas/ouvidas de maneira distorcida) nos jornais, televisões, redes etc. Também possibilita que o encontro jornalista- personagem seja mais explorado, evidenciado, mostrando que cada encontro é um encontro em si, não repetível. Evidencia, mais ainda, o que a história de cada uma dessas pessoas gera e desemboca nessas trocas:

Como poderia, pensando na questão de dar ou não dinheiro a Joicy, deixá-la com apenas alguns trocados no bolso quando, após dois dias a acompanhando, eu voltava para casa e ela permanecia, recém-operada, sozinha e sem condições de trabalhar? [...] Como não sentir decepção no momento em que Irene, mãe idosa da ex-agricultora, a visitou pela primeira vez após a redesignação sexual2 e foi quase totalmente ignorada pela filha que ela sempre julgou filho? No fim, o que é mais importante? Respirar fundo e colocar esses “ruídos” de lado em nome do preconizado e quase mítico distanciamento? Ou torná-los parte de uma escrita que, de saída, se reconhece múltipla de sentidos e, é claro, imperfeita? (MORAES, 2015, p. 22).

O jornalismo de subjetividade é, paralelamente às notícias produzidas por robôs, uma tendência nas produções do campo, uma resposta ao próprio desenvolvimento da IA, e este artigo lança um olhar diante de tema que continua inquietando profissionais e pesquisadores para desvendar as tendências das narrativas contemporâneas. Mais: é uma maneira de potencializar o jornalismo,

2 Termo usado no momento da escrita da matéria – hoje, entende-se que é melhor usar readequação sexual.

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área que perdeu boa parte de seu crédito nos últimos anos, uma forma de assegurar espaço para pessoas e grupos cujas representações foram historicamente mancas – e a própria mídia é responsável por boa parte desse fenômeno. Se profissionais e mesmo estudantes desse campo aprenderam historicamente que a prática, atravessada pela velocidade (outro bastião para defesa do privilégio da objetividade), forja pessoas que não têm tempo para pensar (MORETZSOHN, 2007) – o que nos transformaria, ironicamente, em quase robôs – é hora de reparar a produção massiva de sub-representações lançando um olhar mais longo, generoso e integral sobre nossas realidades.

Referências

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114 Percursos metodológicos para análise de atos de subjetivação em narrativas jornalísticas

Mayara de Araújo Edgard Patrício

Introdução

O que é o jornalismo hoje? Quem são os jornalistas hoje? Estas perguntas têm surgido com certa constância, estando no cerne de diversos estudos de jornalismo contemporâneos, em um esforço de acompanhamento das transformações inerentes ao campo. Na pesquisa que desenvolvemos, seguimos semelhante caminho de questionamentos, abrindo, no entanto, uma vereda paralela, à beira da estrada, circunscrita aos estudos sobre a problemática da narratividade no discurso jornalístico (MOTTA, 2013; RESENDE, 2005): como fazemos jornalismo hoje? Interessa-nos investigar, nesse sentido, os modos de apreensão da realidade operados pelo jornalismo – que singra histórica e conceitualmente entre fatos e valores (SCHUDSON, 2010) – e, assim, compreender como construímos e somos construídos pelo real. Para tanto, voltamo-nos aos sujeitos, buscando identificar como se dá a interação entre objetivação e subjetivação no texto jornalístico e nas práticas e, mais especificamente, ensaiando a construção de indicadores de atos de subjetivação nas etapas produtivas. Pensar em como o jornalismo se enverga ao Outro na contemporaneidade é entrevê-lo numa rede espessa (porém dinâmica) de poderes, firmada à base de pequenas e grandes resistências, e em um cenário de transições. As rupturas paradigmáticas ocorridas no campo, uma vez afetadas por transformações nas práticas sociais (FAIRCLOUGH, 2010) – dada a relação umbilical do jornalismo com o modelo sócio-político-econômico capitalista, urbano e industrial, interferem diretamente no modo como os conceitos de objetividade e subjetividade foram/ são operados pelos múltiplos sujeitos da narrativa jornalística, estimulando e desestimulando, autorizando e desautorizando, abrindo espaços ou silenciando objetivações e subjetivações (assim, no plural), seja nos textos ou nas práticas discursivas (FAIRCLOUGH, 2010). Charron e Bonville (2016) distinguem quatro períodos em que as práticas jornalísticas passaram por transformações paradigmáticas, que ajudam a perceber a trajetória nada linear do discurso e das práticas jornalísticas, marcados, entre outros, pelo tensionamento entre objetividade e subjetividade, fatos e valores. O jornalismo de transmissão, próprio de meados do século XVIII, aponta para um

115 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS estágio inicial, quando os jornais funcionavam como canais, cujos conteúdos não obedeciam necessariamente a critérios pré-estabelecidos – o impressor atuava como um curador de anúncios, notas, pequenos registros. Funcionava como um “elo entre ‘fontes’ e leitores” (CHARRON; BONVILLE, 2016, p. 28), mas não necessariamente desenvolvia uma identidade discursiva. Já no jornalismo de opinião, durante o século XIX, como o termo já indica, parcialidade e subjetividade dão o tom dos conteúdos, produzidos com intenções de ataque e revide. Nesta fase, no entanto, ainda que os jornais tenham se tornado um importante campo de disputas por poderes simbólico e político, o analfabetismo e os parcos recursos tecnológicos, impedem os periódicos de alcançar uma maior parcela da população. É durante o jornalismo de informação (no início do século XX) que, de fato, os produtos jornalísticos terão um alcance considerável, interferindo de forma mais relevante e estratégica no cotidiano das sociedades urbanas. Isto se dá graças a uma série de transformações ocorridas à época: industrialização, produção em massa, melhoria dos transportes e investimentos em publicidade (consequência da evolução das práticas de comércio). Este momento é marcado, portanto, pela percepção do jornalismo como oportunidade de negócio. Neste paradigma, também como o termo sugere, vive-se uma nova virada, desta vez apontando para a consolidação da imparcialidade e da objetividade como princípios norteadores da produção jornalística – fenômeno justificado, entre outros fatores, como uma estratégia comercial de ampliação do público-alvo. Na contemporaneidade, por sua vez, percebem-se intenções de ruptura com princípios até então canônicos, como a objetividade, a imparcialidade e a percepção do jornalismo como a verdade dos fatos – tentativas estas que se revelam em pesquisas acadêmicas e em experimentações midiáticas, no seio das redações. No entanto, inclusive como marca da dinâmica entre paradigmas (já que os autores admitem o entrecruzamento de elementos paradigmáticos distintos numa mesma época e até em um mesmo produto), ainda que tais princípios já sejam amplamente contestados (fazendo com que tal discussão soe datada), eles são operados por muitas empresas de comunicação e por jornalistas, como modo de atrair leitores e de conquistar credibilidade (MIGUEL; BIROLI, 2010). As transgressões do discurso e da prática jornalística a partir da subjetivação, por sua vez, uma das características do jornalismo de comunicação – atual paradigma que o jornalismo atravessa, segundo Charron e Bonville (2016), dialogam com estudos de Medina (2014) sobre as narrativas da contemporaneidade, produzidos desde a década de 1970. A pesquisadora compreende esse cenário recente de transformações como um momento de revisão de conceitos basilares do jornalismo e de se assumir um fazer jornalístico que abrace a subjetivação, a contradição, a pluralidade de vozes – que se afete. Para Medina (2014), o que se observa é uma espécie de transição do jornalismo de explicação ao jornalismo de compreensão dos

116 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS sujeitos. “Os narradores da contemporaneidade abdicam então da arrogante divulgação de realidades e de protagonistas preestabelecidos na generalização plana e linear” (MEDINA, 2014, p. 44), dando lugar à sensibilidade e a fontes não-convencionais, não-oficiais, complexas. A autora ensaia um caminho para o fazer jornalístico contemporâneo que se coaduna com a valorização da subjetividade observada por Charron e Bonville (2016) no contexto do jornalismo de comunicação e com o conceito de intersubjetividade pontuado por Bucci (2000). A autora propõe ao repórter o mergulho na experiência, “para resgatar os perfis dos protagonistas sociais, sobretudo aqueles que ainda não se consagraram como vedetes” (MEDINA, 2014, p. 43), e a adoção do pensamento complexo, “que transcende a dicotomia racional/irracional” (MEDINA, 2014, p. 43). Também para Bucci (2000), é necessário romper com dicotomias. Segundo o autor, a resposta à possibilidade de se fazer jornalismo objetivamente é subjetiva: “a objetividade depende de quem for o jornalista e de qual for a história a ser investigada e contada. A melhor objetividade no jornalismo é, então, uma justa, transparente e equilibrada apresentação da intersubjetividade” (BUCCI, 2000, p. 93), que seria o intercâmbio de saberes e experiências entre os sujeitos envolvidos no acontecimento, direta e indiretamente. Nesse sentido, “o jornalista é, portanto, um sujeito falando de outro sujeito para um terceiro sujeito. Ou é um sujeito falando com outro sujeito sobre um terceiro. E um quarto. Rigorosamente, então, o jornalismo não tem objetos – só tem sujeitos” (BUCCI, 2000, p. 93), o que dialoga com a perspectiva de múltiplos narradores encampada por Motta (2013): não apenas o jornalista narra, mas também a empresa jornalística e as fontes (com influências e intencionalidades distintas, constantemente, em negociação). Para Resende (2007), diante das transformações próprias da contemporaneidade – o alargamento do espaço público, o avanço tecnológico, a midiatização das relações e das sociabilidades, olhar para a narratividade no jornalismo é também romper com as relações de dualidade que permeiam o campo, uma vez que

(...) em se tratando de narratividade – espaço que não sobrevive de dicotomias como opinião/informação/interpretação ou objetivo/subjetivo, para tratarmos somente de algumas das noções com as quais opera a epistemologia dominante no jornalismo –, um dos aspectos que prevalece diz respeito à ordem própria da vida: não ser estanque. A narratividade – e aí vale pensar a discursividade em seu sentido ampliado – busca conhecer as falas, inclusive nas suas dissonâncias, com suas respectivas personagens, naquilo que elas também apresentam de contraditório. (RESENDE, 2007, p. 89).

O que esses autores contemporâneos apresentam, portanto, é um convite a se repensar o modo como definimos o próprio jornalismo, que deixa de ser

117 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS encarado como a produção massificada de uma entidade jornalística idem para uma população ibidem para ser lido como uma narrativa construída por sujeitos, sobre sujeitos, com sujeitos. Segundo Motta (2013), narramos para compreender quem somos e entender como representamos o mundo. Narrar está, como afirmara Benjamin (2012), estreitamente relacionado com algo de primitivo da atividade humana: através da contação de histórias, traduzimos e fazemos perdurar representações da realidade e de quem somos: assimilamos o mundo na medida em que o traduzimos em palavras, quando superamos o emudecer que se abateu sobre os soldados da I Grande Guerra retratados por Benjamin (2012). O mesmo se aplica à compreensão dos sujeitos – emoções, sensações, histórias de vida se apresentam na medida em que “empalavramos” os partícipes do acontecimento. É possível perceber algo de revolucionário nesta ação:

Para o autor [Lluís Duch], exercer o ofício de homem equivale a dar consistência verbal à realidade. Viver, resume, é um affair linguístico: o homem só pode conhecer, conjecturar, assombrar-se, duvidar ou questionar a realidade mediante a linguagem (DUCH, 1998). A linguagem é o instrumento privilegiado pelo qual o homem se nega a aceitar o mundo tal como ele é. (MOTTA, 2013, p. 64).

O termo “empalavrar”, cunhado pelo antropólogo catalão Lluís Duch e citado por Motta (2013), coaduna-se com a atividade jornalística. Para além da divulgação de eventos, o jornalismo se propõe a empalavrar sujeitos (a partir de distintas intencionalidades e contextos idem). Perceber o jornalismo como narrativa e o jornalista como narrador traz, portanto, ricas possibilidades de leitura, em termos epistemológicos e metodológicos, pois, desse modo, se assimilam jornalismo e jornalista como categorias mais amplas e menos estanques. Para Resende (2005), em função dos “pressupostos conceituais que formatam o seu texto – a necessária busca da verdade, valor encravado na pressuposta imparcialidade de quem relata o fato” (RESENDE, 2005, p. 89), o repórter “se esvai do narrado e raramente se apresenta enquanto autor” (RESENDE, 2005, p. 89), produzindo narrativas “autoritárias” (RESENDE, 2005, p. 89), justamente porque eliminam o sujeito que as conta. Este narrador-jornalista transfigura-se, pois, enquanto elemento participante da história e conceitualmente liberto de amarras próprias ao autor: o narrador flexibiliza obrigações na organicidade da tessitura textual.

Em um texto habitado pelo narrador-jornalista, o seu criador é liberado da obrigação de revelar qualquer verdade que seja; é o narrador quem observa e conta a história, subtraindo-se da ação narrada (pressuposto máximo da narrativa jornalística), sem ter de enfrentar a empiria implícita ao mundo real. Ele é uma estratégia textual, e é no texto que ele se revela. (RESENDE, 2005, p. 98).

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Os desafios epistemológicos (e metodológicos, inclusive) desta premissa se constituem no fato de que a instância narrativa está circunscrita no texto, mas fundada numa prática discursiva (FAIRCLOUGH, 2010). E se, na intradiegese (MOTTA, 2013), o narrador-jornalista, segundo Resende (2005), se aparta de determinações e obrigações, no seio das rotinas produtivas, as amarras constituídas pela rede de poderes na qual o enunciado se funda ainda estão lá – interferindo, alterando, dinamizando. Pode ser, por exemplo, percebida quando Amaral (1986, p. 51) relaciona o que se exige do jornalista com as dificuldades que ele enfrenta:

(...) do jornalista, na busca diária da notícia, exige-se isenção e imparcialidade. E nessa luta constante, ele enfrenta não só as dificuldades criadas pela sua formação, posições e preconceitos, como outras cujo controle escapa à vontade pessoal. É o caso dos interesses materiais da empresa para a qual trabalha, da pressa para entrega do material, da confiabilidade de informações prestadas por terceiros ou da omissão dos mesmos.

O rol de interferências externas ao trabalho do repórter, listado pelo autor, sugere que o produto jornalístico entregue por esse profissional é resultado de um processo coletivo, constituído por muitos sujeitos, cada um com as suas intencionalidades e imposições. É perceptível a atuação, por exemplo, da empresa jornalística (“interesses materiais da empresa”), do(s) editor(es) ou dos chefes imediatos desse repórter (“pressa para entrega do material”) e das fontes (“informações prestadas por terceiros ou da omissão dos mesmos”). Portanto, ainda que o repórter protagonize a escolha da pauta (motivada inclusive por preferências/afetações pessoais), a produção e a escrita do conteúdo, não atua isoladamente na construção dele. Por sua vez, não se deve esquecer que o produto jornalístico é fruto ainda de um processo e se constitui ao longo de diversas etapas: produção, apuração, edição, planejamento gráfico (ERBOLATO, 1978). Assim, repensar o jornalismo é repensar suas rotinas. Segundo Traquina (2005), quando a fé nos fatos entra em crise – ainda durante o jornalismo de informação (CHARRON; BONVILLE, 2016), os jornalistas passam a substituí-la por uma fé nas regras e nos procedimentos, fazendo da objetividade não uma “negação da subjetividade, mas uma série de procedimentos que os membros da comunidade interpretativa utilizam para assegurar uma credibilidade” (TRAQUINA, 2005, p. 139). Desse modo, a questão da objetividade passa a se revelar mais explicitamente pelas rotinas produtivas: “a objetividade traça os métodos que o jornalista deve seguir. Forçado pela exigência de rapidez, o jornalista precisa de métodos que possam ser aplicados fácil e rapidamente. Assim, a objetividade ajuda o jornalista a vencer as ‘horas de fechamento’” (TRAQUINA, 2005, p. 141). Para o autor português, apesar das críticas à objetividade enquanto ritual, “mesmo os proponentes do movimento de renovação do jornalismo norte-americano (...) que encara o valor da objetividade como um inimigo a abater, não encontram uma forma de o substituir” (TRAQUINA,

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2005, pp. 142-143). Assim, o que se ensaia na contemporaneidade, segundo os autores consultados, é o fim de uma percepção opositiva do binômio objetividade- subjetividade, assumindo-os ambos como elementos fundantes do jornalismo, com suas contribuições e limitações. Esses pressupostos à produção predominante do jornalismo de comunicação – produzida coletivamente por sujeitos narradores, cujas marcas (ora mais subjetivas, ora mais objetivas) se apresentam ao longo do processo – são centrais na construção da metodologia aqui descrita. Sob essa perspectiva, questionamos: como a subjetivação se revela em produtos jornalísticos originados no jornalismo de comunicação? Como objetividade e subjetividade se alternam, fluem, nessas narrativas jornalísticas (que formas assumem)? E, considerando a influência dos fatores externos, de que modo as rotinas produtivas do narrador- repórter e a lógica empresarial da redação (narrador-jornal) estão relacionadas a essa subjetivação dos discursos?

Construção metodológica

A fim de identificar os sujeitos narradores e os atos de objetivação e subjetivação nos textos e nas práticas jornalísticas, optamos por construir um percurso metodológico, em que se apliquem duas etapas de análise: uma à narrativa textual, ou intradiegética, e outra à processual, ou extradiegética, entendendo que os processos produtivos do jornalismo (a prática discursiva) constituem também uma narrativa. Em ambas, pretende-se: 1. Identificar e perceber a atuação dos narradores; 2. Identificar os atos de subjetivação por eles empregados (e como interagem com os atos de objetivação). O método aqui exposto vem sendo produzido a partir de contribuições da Análise Crítica da Narrativa (ACN), desenvolvida por Motta (2013), e da Análise do Discurso Crítica (ADC), de Fairclough (2001; 2016), além de outros autores – Tuchman (1999), Medina (2014), Fígaro (2013), Miguel e Biroli (2010) e Tanikawa (2017).

ACN: contribuições para análise da narrativa textual

A ACN é composta por sete movimentos de análise, que podem ser aplicados integralmente ou em separado. Nesta construção metodológica, optamos por adotar duas contribuições de Motta (2013): o sexto movimento de análise, voltado para a identificação das estratégias de objetivação e subjetivação no texto, e o estudo das vozes narrativas. O sexto movimento é a identificação dos dispositivos retóricos presentes nas narrativas jornalísticas. Para Motta (2013, p. 196), “toda narrativa é um permanente jogo entre os efeitos de real (veracidade) e outros efeitos de sentido (a comoção, a dor, a compaixão, a ironia, o riso, etc.)”. Partindo desse princípio, o autor aponta alguns indícios desses efeitos, que podem ser percebidos em recursos linguísticos e extralinguísticos: a “profusão de advérbios

120 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS e de expressões adverbiais de tempo e de lugar” (MOTTA, 2013, p. 200); o uso de citações das fontes; “estratégias de referenciação” (MOTTA, 2013, p. 200); e identificação sistemática de lugares e de personagens. Por estratégias de referenciação, o autor entende “o uso de diversos recursos de linguagem no texto narrativo para ancorar a significação na realidade referente” (MOTTA, 2013, p. 200). “Será preciso perguntar: (...) o que faz a linguagem dar a impressão de que as coisas pareçam evidentes? Quais operações linguísticas realizam a tarefa de convencer o leitor de que o texto é uma representação fiel da verdade e da realidade do mundo?” (MOTTA, 2013, p. 201). Alguns desses referenciais são: de atualidade: “(dimensão de instantaneidade, de algo que acaba de acontecer, de momento presente)” (MOTTA, 2013, p. 201), geográfico: “(dimensão de um espaço configurado, de uma localização identificada)” (MOTTA, 2013, p. 201), de autoridade para dizer: “(dimensão de poder técnico, perito ou político) que autentica e legitima a relação” (MOTTA, 2013, p. 201), de condições de verdade: “(a precisão, a lógica da transparência jornalística, da representação fiel)” (MOTTA, 2013, p. 201). Também o uso das citações se justifica como estratégia de objetivação porque daria, segundo o autor, “a impressão de que são as pessoas reais que falam, de que o jornalista não está intervindo. (...) As citações produzem a sensação de uma proximidade entre a fonte e o leitor, dissimulam a mediação” (MOTTA, 2013, p. 202). Já a subjetivação tem por objetivo humanizar os fatos brutos, além de produzir identificação e efeitos catárticos no leitor, comovê-lo. Estes recursos estão:

(...) nas escolhas léxicas, no uso de verbos prospectivos, verbos de sentimento, verbos negativos, verbos de conselho, de advertência, etc.; no uso de adjetivos afetivos, potenciais ou adjetivos de possessão; no uso de substantivos estigmatizados como terroristas, radicais, pivetes, etc. Estão nas exclamações, interrogações, comparações, ênfases, repetições e reticências, mais comuns no noticiário que se pensa. Estão nas figuras de linguagem (metáforas, sinédoques, sinonímia, hipérboles). Estão nas ironias e paródias, que abrem âmbitos de significação. Estão nos conteúdos implícitos, nas implicaturas de advérbios como “apenas”, “de novo”, “só”, “ainda”, comuns nas manchetes. Estão nas pressuposições e tantos outros recursos linguísticos e extralinguísticos que proliferam na linguagem jornalística verbal e audiovisual. (MOTTA, 2005, p. 12).

Nesse sentido, o trabalho do analista consiste em “revelar a presença de cada recurso da retórica jornalística, investigar sua dimensão semântica e relacioná-lo à estratégia narrativa do narrador e do meio que utiliza” (MOTTA, 2005, p. 12). Essa orientação se torna mais complexa (e interessante para o estudo que aqui intentamos) quando associada à perspectiva plurivocal do texto jornalístico. Ao se considerar que a instituição jornalística e a fonte também narram, retira-se do narrador-jornalista o mito de total autonomia em relação ao texto final e a todo o processo produtivo.

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O Primeiro-narrador, o jornal como instituição que fala, é extradiegético: enuncia uma estória da qual não tomou parte, não testemunhou nem apurou diretamente. O jornalista, Segundo-narrador, desempenha o papel de narrador intradiegético, dentro da estória, porque ele apura, seleciona, dispõe e hierarquiza as ações, conflitos, personagens, cenas e enredo. A personagem, Terceiro-narrador, é um narrador definitivamente intradiegético e detém menor poder de voz que o jornal e jornalistas na cadeia. (MOTTA, 2013, p. 225).

No corpus selecionado para esta investigação, intentamos identificar que marcas textuais indiciam a presença de três grupos de narradores: o narrador- jornal (a instituição jornalística, neste caso o Diário do Nordeste), o narrador- jornalista (Melquíades Júnior) e o narrador-fonte (indivíduos, empresas e grupos sociais diversos consultados pelo narrador-jornalista), além de tentarmos perceber que peso cada narrador tem nas narrativas: com que frequência surgem, de que modo influenciam uns aos outros, em que momento parecem possuir mais ou menos poder de voz – isso valendo-nos da análise de termos e elementos visuais do projeto gráfico que indiciem a presença deles (como referências diretas ou indiretas, no texto, à empresa jornalística; ou marcas de oralidade próprias da fonte). É importante, no entanto, considerar a parcela de subjetividade inerente ao método, principalmente porque nem sempre a negociação se expressa como “um jogo explícito de forças colocadas sobre a mesa por esses atores. Realiza-se mais frequentemente por meio de sutis jogos de interesses (...) como um poder que está em toda parte e em parte alguma” (MOTTA, 2013, p. 224). Por exemplo, ainda que o autor reforce a existência de uma hierarquia de poder, “que flui de fora para dentro, do Primeiro para o Segundo-narrador, e deste para o Terceiro” (MOTTA, 2013, p. 225), ele mesmo alerta para uma negociação constante, podendo ocorrer de este poder simbólico “refluir de dentro para fora, dependendo do capital político de cada ator e da correlação de forças em cada situação concreta” (MOTTA, 2013, p. 226): muitas vezes, a influência exercida pelo narrador-jornal pode torná-lo parte da história (e, portanto, assumir-se intradiegético) ou a, depender dos arranjos contratuais, o narrador-jornalista pode se fundir ao narrador-jornal. Ao detalhar o método, Motta (2013, p. 211) reforça em diversos momentos a importância de um olhar tridimensional e panorâmico: “o sentido provém não só dos conteúdos, mas também dos artifícios discursivos postos em prática em um ato comunicativo em contexto”. Aqui, os pontos de contato entre ACN e ADC se explicitam.

ADC: contribuições para análise da narrativa processual

Para a ADC, o discurso contribui para a construção de identidades sociais, de relações sociais entre as pessoas e de sistemas de conhecimento e crença, estando, portanto, relacionado a uma dimensão textual, mas também de interação

122 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS e de ideologia. Possui, portanto, um formato tridimensional, como dissemos: texto, prática discursiva e prática social. Na prática discursiva, que nos interessa particularmente na construção deste percurso metodológico, o analista se dedica a perceber os “processos de produção, distribuição e consumo textual, e a natureza desses processos” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 106-107). Já a prática social constitui-se terreno em que hegemonia e poder atravessam o objeto analisado. Para o autor, hegemonia é “a construção de alianças e a integração, muito mais do que simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões nos meios ideológicos para ganhar seu consentimento” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 122). Ele associa, portanto, a luta hegemônica a uma negociação constante, que se reflete e constrói em todas as dimensões do discurso, justamente porque em todas elas o aspecto ideológico está presente - dialogando, portanto, com a plurivocalidade de Motta (2013). A ideologia é compreendida como elemento responsável por negociar essas relações de dominação e por articular as dimensões social e discursiva, principalmente, interferindo não apenas na reformulação de discursos, mas nos modos de produzi-lo:

(...) a produção, a distribuição e o consumo (como também a interpretação) de textos são uma faceta da luta hegemônica que contribui em graus variados para a reprodução ou a transformação não apenas da ordem de discurso existente (por exemplo, mediante a maneira como os textos e as convenções prévias são articulados na produção textual), mas também das relações sociais e assimétricas existentes. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 123-124).

Nesta pesquisa, como dissemos, procuramos voltar nosso olhar analítico não apenas para o produto jornalístico acabado, mas para o processo de produção das reportagens. É nesse sentido que Fairclough (2001) contribui, ao perceber a importância de se investigar as condições de produção do discurso jornalístico. Motta (2013) não se aprofunda no estudo das rotinas produtivas (tanto que, ao elencar categorias de identificação d os efeitos de real e de sentido, considera apenas o texto e não os processos de produção, apuração e edição, por exemplo), ainda que aponte para a necessidade de se investigar os contextos. Fairclough (2016) dá pistas de como analisar os processos de produção ao afirmar que os processos produtivos estão necessariamente relacionados aos “recursos disponíveis pelos membros” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 113) e à “natureza específica da prática social da qual fazem parte” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 113). Por recursos dos membros entende que sejam “estruturas sociais efetivamente interiorizadas, normas e convenções, como também ordens do discurso (...) que foram constituídos mediante a prática e a luta social passada” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 113). O autor sugere, portanto, que para se compreender como os participantes

123 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS produzem e interpretam textos, é preciso antes conhecer “a natureza dos recursos dos membros a que se recorre para produzir (...), e se isso procede de maneira normativa ou criativa” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 120). Mais adiante, o autor lança ainda algumas perguntas-chave: “o texto é produzido individual ou coletivamente? Há estágios distintos de produção? As pessoas do(a) animador(a), autor(a) e principal são as mesmas ou diferentes?” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 297). Considerando isto, que atos (condutas, normas, convenções, estratégias) dos narradores, afinal, poderiam apontar/indiciar subjetivação nos processos de produção jornalísticos? O que seria agir mais objetivamente e agir mais subjetivamente no trabalho jornalístico?

Indicadores de objetivação e de subjetivação nos processos produtivos

Tuchman (1999, p. 74) aponta que jornalistas definem a objetividade como “um ritual estratégico”, utilizado com o objetivo de proteger “o jornalista dos riscos de sua profissão”, “impostos pelos prazos de entrega de material, pelos processos difamatórios e pelas reprimendas dos superiores” (TUCHMAN, 1999, p. 76). Desse modo, percebe-se uma referência à objetividade que transpõe o texto, revelando-a como uma necessidade procedimental. Partindo desse pressuposto, Tuchman (1999) elenca algumas estratégias de objetivação utilizadas pelos jornalistas. Para melhor visualizarmos esses indicadores, construímos um quadro, apontando por que etapas produtivas estariam espraiadas.

Quadro 1 – Indicadores de objetivação segundo Tuchman (1978)

O que é agir objetivamente? Etapas produtivas Indicadores de objetivação Planejamento/ Apuração/ Planejamento produção Checagem Redação Edição gráfico Seguir uma rotina produtiva Atender à política editorial da empresa jornalística Verificação dos fatos Apresentação de possibilidades conflituais Apresentação de provas auxiliares Uso de aspas Estruturação da informação numa sequência apropriada Definição dos fatos mais importantes e interessantes Separação dos conteúdos sub- jetivos em espaço específico Fonte: Quadro desenvolvido pelos pesquisadores.

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Importante reforçar que Tuchman (1999) se mostra crítica a esses procedimentos, apontados por seus entrevistados, pontuando sobretudo o perigo de se adotar essa perspectiva datada de que os fatos falam por si e de se acreditar numa relação quase de sinônimos entre objetividade procedimental e profissionalismo. Para pensarmos os indicadores de subjetivação nos processos, precisamos primeiramente considerar as andanças históricas e teóricas dos dois conceitos. De modo geral, como Tuchman (1999) revela, a objetividade se alinha à homogeneização de produtos e à padronização de processos, com vistas à continuidade de uma lógica hegemônica (SCHUDSON, 2010; AMARAL, 1986; TRAQUINA, 2005). Já a subjetividade aponta para a humanização e a particularização dos processos, o que muitas vezes gera, em consequência, resistências às hegemonias vigentes e propostas alternativas a elas (MEDINA, 2014; BUCCI, 2000; RESENDE, 2005). Pode-se, portanto, pensar o binômio objetividade-subjetividade como uma luta entre ordens discursivas que privilegiam aspectos distintos (FAIRCLOUGH, 2010; 2016). Ler objetividade-subjetividade segundo essa lógica é salutar porque situa o embate não como uma rigorosa distinção dominador-dominado, mas como uma troca dinâmica de posições. Assim, consideramos haver ordens discursivas objetivadas e subjetivadas, que articulam e rearticulam procedimentos a todo momento, com vistas a suprir seus interesses. Seguindo a lógica de Tuchman (1999), que aponta para a objetividade como ritual estratégico utilizado para dirimir riscos, acelerar processos e, assim, preservar uma cultura organizacional hegemônica, acreditamos que a subjetividade, neste jornalismo de comunicação, seria também um ritual estratégico, cuja finalidade seria reorientar os mesmos procedimentos para agendar a humanização das pautas e dos processos (fortalecendo o princípio de responsabilidade social do jornalismo), a afetação dos narradores, a emoção (MEDINA, 2014; BUCCI, 2000; CHARRON; BONVILLE, 2016) - não necessariamente uma contraposição à objetividade, mas uma reorientação. A partir das bases apontadas, indicamos como possíveis marcas de subjetivação dos procedimentos jornalísticos as seguintes condutas: resistência à compressão do tempo, reorientação das rotinas produtivas à valorização dos sujeitos da narrativa jornalística, negociações com a política editorial da empresa jornalística (com vistas à responsabilidade social do produto), adoção eventual de imprecisões (afrouxamento de referenciais), parcialidade justificada, mescla de discursos entre narradores (sobretudo narrador-jornalista e narrador-fonte), legitimação de impressões do repórter como provas auxiliares, ruptura à pirâmide invertida, desconstrução/reorientação de valores-notícia, e diluição das fronteiras entre informação e opinião. Tais indicadores estariam assim posicionados ao longo das etapas:

125 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Quadro 2 – Indicadores de subjetivação na rotina produtiva jornalística

O que é agir subjetivamente? Etapas produtivas Indicadores de Produção/ Apuração/ Planejamento subjetivação Redação Edição Planejamento Checagem gráfico Resistência à compressão do tempo Enfrentamentos/ negociações à política editorial da empresa jornalística (priorizando a responsabilidade social) Reorientação das rotinas produtivas à valorização dos sujeitos Adoção eventual de imprecisões Parcialidade justificada Adoção de impressões do repórter como provas auxiliares Mescla de discursos entre narradores Ruptura à pirâmide invertida Desconstrução/ reorientação dos valores-notícia Diluição das fronteiras entre opinião e informação Fonte: Quadro desenvolvido pelos pesquisadores.

a) Valorização dos sujeitos e resistência à compressão do tempo

Como dito, transformações recentes no campo do jornalismo interferem diretamente na definição dessas categorias. A compressão do tempo éum exemplo. Entendida como uma das principais características pós-fordistas assimiladas pelas rotinas de produção jornalística, a nova concepção de temporalidade tem transformado a cadência nas redações de jornais. Para Figaro (2013, pp. 1-2), “o tempo e o espaço, comprimidos pelas possibilidades das tecnologias de comunicação e informação, foram assimilados nos processos de produção de modo a reduzir o tempo para a reflexão, a apuração e a pesquisa no trabalho jornalístico”. Assim, agir objetivamente no contexto do jornalismo de comunicação implica não só seguir as etapas de uma rotina produtiva, como sugere Tuchman

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(1999), mas o mais rápido possível. Uma ordem discursiva subjetivada aponta para uma resistência a esse imperativo temporal, perseguindo a reflexão, a apuração e a pesquisa que a lógica hegemônica de trabalho retira do jornalista. Sugere ainda, de modo geral, a reorientação dos métodos já utilizados em prol da valorização dos sujeitos da narrativa jornalística (MEDINA, 2014).

b) Negociações com a política editorial da empresa e parcialidade justificada

Outra característica do atual paradigma é a aproximação entre jornalismo, publicidade e marketing (FIGARO, 2013). Nesse sentido, ser objetivo no jornalismo de comunicação não significa apenas “atender à política editorial da empresa”, mas também estar alinhado à lógica de atendimento “às demandas desenhadas pelo setor comercial” (FIGARO, 2013, p. 10). Ao considerar esse aspecto, entende-se por marca de subjetivação negociações e enfrentamentos às limitações impostas pela política editorial da empresa jornalística quando esta cria obstáculos para a valorização dos sujeitos e o protagonismo da responsabilidade social do jornalismo. Um jornalismo que se afeta, que encampa certas bandeiras sociais e políticas, está sujeito a chocar-se com os interesses empresariais do narrador-jornal, que, dentro da lógica capitalista, orienta sua produção para que seja não apenas sustentável, mas lucrativa. A adoção de uma parcialidade justificada também está relacionada a esse tópico: quando se prioriza a responsabilidade social do jornalismo à mera escuta aos dois lados do acontecimento. Miguel e Biroli (2010) associam o ideal de imparcialidade praticado pela sociedade e pela mídia ao papel de silenciamento de perspectivas antagônicas e de reprodução de estereótipos. Os autores apontam a imparcialidade, portanto, como um risco à democracia, porque invalidaria as diferenças, as especificidades dos grupos. Como alternativa a essa imparcialidade reducionista, os autores apontam para a explicitação dos conflitos nas narrativas jornalísticas, num movimento contrário ao simulacro de neutralidade proporcionado pela técnica de escuta igualitária aos “dois lados”, pois “(...) o conhecimento mais abrangente das relações sociais se funda justamente na interação entre as diferentes perspectivas” (MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 67), e citam Young (2000, p.117 apud MIGUEL; BIROLI, 2010, p. 67) para melhor definir o conceito de interação entre “outros multiplamente situados”:

A inclusão não deve significar simplesmente a igualdade formal e abstrata entre todos os membros de um público de cidadãos. Ela significa considerar explicitamente as divisões e as diferenciações sociais e encorajar grupos diversamente situados a dar voz a suas necessidades, interesses e perspectivas sobre a sociedade, de maneira que correspondam a condições de publicidade e razoabilidade.

A parcialidade justificada constitui-se dessa explicitação de realidades

127 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS múltiplas, a partir de seus próprios atores, sem temer o conflito entre versões e o desajuste da balança discursiva. O consenso ou a gestão neutra dos interesses comuns nem sempre é alcançável e o produto jornalístico não deixa de ser menos profissional por abrir mão dessas metas – pelo contrário.

c) Mescla de discursos, impressões do repórter e imprecisões

A ruptura da lógica asséptica de “apresentação de possibilidades conflituais” (TUCHMAN, 1999, p. 79) se dá ainda através da mescla entre as vozes dos narradores. Medina (2014, p. 76), por exemplo, defende uma ideia de “fidelidade ao Outro reportado (...) que não é o mesmo que objetividade”. Para a pesquisadora, um trato subjetivado demanda estabelecer uma relação EU-TU com as fontes de informação.

O jornalista que apenas divulga não participa da esfericidade do signo da relação, não compreende a dimensão humana na plenitude do encontro sujeito-sujeito. O Outro não passa de uma fonte de informação, objeto indistinto da rotina profissional. Por sua vez, esse objeto assim tratado apenas declara o conveniente e o aparente, oferece a público a informação permitida pela razão instrumental. Nem repórter nem fonte se alteram. (MEDINA, 2014, pp.76-77, grifos da autora).

Quando, no entanto, se cumpre a relação sujeito-sujeito, ambos os partícipes do diálogo abrem-se às incertezas, às imprevisibilidades, e se põem em igual condição. Dessa atitude deriva não só a mescla entre vozes dos narradores, mas também a adoção eventual de imprecisões, circunstância comum quando se prioriza a fluidez da narrativa à descrição sequenciada e pretensamente imparcial de informações.

d) Rupturas à pirâmide invertida e aos valores-notícia objetivados

Quanto ao reordenamento da informação, pesquisas como a desenvolvida por Tanikawa (2017, p. 3520) apontam que “os jornais estão se tornando como revistas de notícias”. A justificativa para essa transformação é o advento da mídia on-line, com cujos fechamentos a mídia impressa não pode concorrer. Assim, “os jornais se destacam reforçando a profundidade da informação, análise e cobertura de tendências que não são publicadas em outro lugar” (TANIKAWA, 2017, p. 3520). Ainda que os jornais impressos procurem manter sua identidade, é possível perceber um maior investimento em históricos, panoramas e interpretações a acontecimentos, “desfocando a linha entre notícias diretas e artigos analíticos. Notícias diretas podem também empregar tipos de leads situacionais, anedóticos e outros descritivos, em vez da tradicional estrutura de pirâmide invertida” (TANIKAWA, 2017, p. 3520).

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Essa tendência se alinha à relativização do real apontada por Charron e Bonville (2016) como característica do jornalismo de comunicação. Segundo os autores, “os jornalistas estão conscientes de poder ‘criar’ algo real a partir do real, por exemplo, escolhendo o ângulo sob o qual abordar as ocorrências (...) ou ainda se interessando por partes menos evidentes do real, como as ‘vivências’ das pessoas comuns” (CHARRON; BONVILLE, 2016, p. 199). É diante desse panorama que se desenha a valorização da subjetividade: a valorização do ethos interpretativo dos jornais impressos abre espaço para a incorporação de outros valores aos critérios de noticiabilidade, não apenas nas grandes reportagens (historicamente entendido como gênero e lócus de experimentação), mas também na produção diária de notícias – o que proporciona uma ampliação de possibilidades de temas, fontes e angulações antes não categorizadas como importantes ou relevantes. Finalmente, assim se aplicariam os procedimentos aqui pormenorizados:

Quadro 3 – Procedimentos metodológicos da análise em duas etapas de atos de subjetivação em produtos jornalísticos

Análise de atos de subjetivação em produtos jornalísticos (narrativas textual e processual) Primeira etapa: narrativa processual

Descrever processos Identificar Identificar atos de subjetivação Que estratégias de produção, narradores Que indicadores (a partir da tabela apuração, escrita e edição foram Quem são construída) se manifestam ao utilizadas? Tratam-se de recursos eles? Como longo das etapas? normativos (já impostos pela se indiciam? instituição à qual está vinculada De que modo a equipe ou à cultura profissional influenciam de que fazem parte) ou criativos uns aos outros? (improvisados ou resultantes de uma subversão às regras já existentes)?

Segunda etapa: narrativa textual

Apresentar textos Identificar Investigar efeitos de sentido Data de lançamento, tipo(s) de narradores Identificar os efeitos de sentido plataforma(s), quantidade de Quem são e de Motta (2013): descrição páginas, disposição, elementos como negociam pormenorizada, figuras de gráficos etc. (a partir de linguagem, verbos de sentimento termos e (ênfase/intensidade), quem os elementos utiliza, e investigar sua dimensão gráficos). semântica e intenção narrativa.

Fonte: Quadro desenvolvido pelos pesquisadores.

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Considerações finais

Para compreender as aproximações entre real e imaginário/informação e opinião, indicadas por Charron e Bonville (2016) como sendo tão próprias do jornalismo de comunicação, assumimos, através deste método, algumas premissas: a compreensão do repórter como narrador, sujeito que conta histórias e negocia com outros sujeitos, da reportagem como construção coletiva e plurivocal, e da existência de uma narrativa processual, além da textual. Detalhados os indicadores de objetivação e subjetivação, ressaltamos, por fim, o caráter provisório dos quadros descritos. Tais características serão observadas (ou não) no objeto desta pesquisa, mas não intentam ser grilhões, engessando a análise. Elas devem funcionar sobretudo como lanternas, orientando o olhar dos pesquisadores e das pesquisadoras, mas poderão (e arriscamos dizer que tenderão a) ser modificadas ao longo do estudo. Acreditamos que a identificação de atos de subjetivação nos textos e nas rotinas produtivas auxilie, de modo geral, na adoção sistemática dessas ações, por parte dos narradores jornal e jornalista sobretudo, dando vazão a uma lógica subjetivada de produção jornalística, na qual se orientem texto e prática em função da valorização dos sujeitos e da desconstrução/reorientação de princípios canônicos que já não atendem às demandas da contemporaneidade. Uma ordem discursiva subjetivada oferece ao paradigma atual importantes insumos simbólicos, como a ampliação de possibilidades narrativas do conteúdo – a partir da inserção do jornalista na narrativa ou da reorientação das angulações, como sugerido por Charron e Bonville (2016); a transformação do jornalismo em um exercício de empatia e compreensão entre os sujeitos, para além de descrição objetiva/distanciada dos acontecimentos (MEDINA, 2014; BUCCI, 2000); a oportunidade de uma representação mais ‘real’ da sociedade (MIGUEL; BIROLI, 2010; CHARRON; BONVILLE, 2016), fortalecendo o vínculo entre jornalismo e democracia; e ainda a imersão e a fidelização do público leitor, através dos efeitos de sentido (MOTTA, 2013).

Referências

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130 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

ERBOLATO, Mário L. Técnicas de codificação em jornalismo: redação, captação e edição no jornalismo diário. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1978. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001. ______. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2016. FÍGARO, Roseli. As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista. São Paulo: Atlas, 2013. MEDINA, Cremilda. Atravessagem: reflexos e reflexões na memória de repórter. São Paulo: Summus, 2014. ______. Criador da assinatura coletiva ou artífice do diálogo social. In: MOURA, D. et al. Jornalismo e literatura: Aventuras da memória. Brasília: UnB, 2014. MIGUEL, L. F.; BIROLI, F. A produção da imparcialidade: a construção do discurso universal a partir da perspectiva jornalística. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 73, 2010. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: UnB, 2013. RESENDE, Fernando. O jornalismo e a enunciação: perspectivas para um narrador-jornalista. Revista Contracampo, n. 12, p. 85-102, 2005. ______. Discursividade e narratividade: vértices redimensionados no jornalismo. Fronteiras-estudos midiáticos, v. 9, n. 2, p. 81-90, 2007. SCHUDSON, Michael. Descobrindo a notícia: uma história social dos jornais nos Estados Unidos. Petrópolis: Vozes, 2010. TANIKAWA, Miki. What Is News? What Is the Newspaper? The Physical, Functional, and Stylistic Transformation of Print Newspapers. International Journal of Communication, v. 11, pp. 3519-3540, 2017. TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2005. TUCHMAN, Gaye. A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e estórias. Lisboa: Vega Editora, 1999.

131 Um olho na escrita e outro no escritor: desafios metodológicos na análise de narrativas jornalísticas autorais

Dayane do Carmo Barretos

Notas sobre um percurso de pesquisa

Neste capítulo a proposta é adentrar em questões metodológicas diversas que permearam a minha experiência de pesquisa durante o mestrado (BARRETOS, 2017). Inicio as considerações aqui trazendo algumas inquietações que me acompanharam desde que comecei a discutir os rumos da investigação que desejava empreender, partindo do pressuposto de que as inquietações metodológicas estão presentes em todo o processo, desde a definição do objeto empírico. Na sequência, apresento os caminhos que tornaram possível o desenvolvimento de uma estratégia metodológica múltipla, que possibilitou o tensionamento tanto de obras jornalísticas como das inquietações das repórteres autoras das produções. Por fim, descrevo o processo metodológico e as conclusões a que cheguei no âmbito deste estudo. A entrada no mestrado representa o início efetivo no campo da pesquisa acadêmica, que vem acompanhada de um amadurecimento no que diz respeito à definição de interesses de investigação, de formas de abordagem e de modos de tensionar problemas de pesquisa. Desde o meu ingresso, havia um interesse explícito em estudar narrativas jornalísticas potentes, que permitissem vislumbrar possibilidades para o fazer jornalístico no Brasil atualmente. A minha escolha foi, então, por uma reflexão acerca dos aspectos que norteiam a construção de narrativas jornalísticas acerca da alteridade e da partilha de sentidos possível por meio da escrita. Assim, de saída, a escrita já se mostrava como o centro da investigação e para abordá-la houve a necessidade de promover um olhar que permitisse uma maior compreensão do narrar enquanto processo múltiplo e complexo no âmbito das produções jornalísticas de caráter autoral. Desse modo, o caminho metodológico que propus foi elaborada com o intuito de contemplar essas questões a partir de uma coleta mista, composta pela realização de entrevistas qualitativas semiestruturadas de três jornalistas Adriana Carranca, Daniela Arbex e Fabiana Moraes. Além de uma leitura do material fornecido por Eliane Brum devido à impossibilidade da realização de entrevista. Assim como uma entrada nas obras de caráter jornalístico mais recentes de cada uma das repórteres, sendo elas: Malala, a menina que queria ir para a escola (2015), Cova 312 (2015), O Olho da Rua (2008) e O nascimento de Joicy (2015). Assim, tanto na coleta, como na análise posterior, busquei direcionar

132 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS o olhar para as próprias sujeitas narradoras, a fim de questioná-las sobre suas motivações e estratégias discursivas, sobre a constituição de seu estilo de narrar e sua relação com os sujeitos que permeiam o relato, indagando o modo como elas se apresentam por meio da escrita e o que revelam da relação com o outro. É preciso destacar a necessidade de um olhar que se atente não só para a dimensão textual, mas que leve em conta os diversos aspectos que perpassam a narrativa, como o contexto cultural e sócio-histórico, a temporalidade e a espacialidade apresentadas e as pistas que elas trazem consigo sobre a constituição textual dos sujeitos. Para tanto, parti de uma compreensão da narrativa especialmente inspirada pelo pensamento de Paul Ricoeur (1994), principalmente no que se refere à sua discussão acerca da tríplice mimese. Assim, a proposta foi buscar articular à contribuição de Ricoeur (1994) uma visada complexa das falas e das produções das jornalistas, construindo uma reflexão sobre como as escolhas durante a construção narrativa como um todo, desde a captação, da configuração da intriga até o leitor que está pressuposto, revelam acerca da relação com o outro em um jornalismo que anseia pelo encontro e se permite ser consciente do si de que depende a escrita.

Ponto de partida: contextualizando o objeto dentro de um campo de estudos

Antes de dar início às considerações sobre as escolhas metodológicas propriamente, mostra-se pertinente voltar o olhar para os caminhos teórico- conceituais que foram percorridos de forma a permitir que eu chegasse a um procedimento metodológico que considero múltiplo. Esse movimento de retorno eu chamarei aqui de contextualização do objeto empírico dentro de um campo de estudos, tendo em vista as diversas possibilidades quando se fala em estudos do jornalismo. Minha opção desde o início foi pela narrativa, tal interesse se articulava com os objetivos do estudo e as inquietações centrais. Desse modo, defini que a minha abordagem partiria de uma problematização da atividade jornalística a partir da centralidade do sujeito no processo de construção da narrativa das reportagens. À reflexão acerca do sujeito narrador no jornalismo, aliei discussões sobre a alteridade e o processo de escrita. Assim, foi fundamental direcionar o olhar para o sujeito que narra, mais especificamente no caso deste estudo, para as jornalistas brasileiras enquanto narradoras, cumprindo o papel de enunciadoras na construção da narrativa jornalística. Resende (2014) acredita que a enunciação, no caso do jornalismo, está intrinsecamente relacionada à problemática da representação das diferenças. O autor parte da discussão de Benveniste (1995), que considera que o sujeito da linguagem ocuparia o centro da reflexão, distinguindo o enunciado do ato da enunciação. Segundo ele, “a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso”

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(BENVENISTE, 1995, p. 286). Já Bakhtin (1979, 2003), outro teórico dos estudos da linguagem que tratou da enunciação, defende que ela seria um fenômeno social e que o contexto histórico seria determinante, chegando a conformar a subjetividade. A relação que é estabelecida com outros discursos na construção de um enunciado também foi tratada pelo autor e constituem as suas explanações acerca do que ficou conhecido como dialogismo bakhtiniano, segundo o qual o significado de um enunciado ocorre a partir da sua relação com o não dito, com o lugar social do qual se profere a enunciação e com os outros discursos que a compõem. A questão da autoria em Bakhtin (2003) vai além da ideia de um sujeito que escreve; em sua definição, o autor é o “agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento particular desta” (BAKHTIN, 2003, p. 10). Desse modo, o autor é, portanto, a unidade responsável pela obra, é ele quem dá conta do todo da obra, ainda que esta seja formada de outras unidades, como personagens. Há ainda uma outra diferenciação feita por Bakhtin (2003) ao tratar da concepção de autor. Segundo o filósofo, existiria o autor-pessoa e o autor-criador, este último seria um elemento da própria obra, que existe apenas nela. A partir dessa percepção surge uma relação intrínseca entre o autor, nesse caso o autor-criador, e a obra que produz. Ao levar essas considerações para o objeto de interesse dessa investigação, podemos compreender as jornalistas e as relações construídas durante a apuração como elementos da obra final. Ambos habitariam a reportagem, e só nela teriam sentido pleno. O cuidado aqui é para não submeter o processo de escrita e de construção narrativa ao enunciado final, ou até apagar o sujeito jornalista em função da reportagem. É necessário pensar essas duas dimensões como elementos que se articulam em uma unidade, sem relação de submissividade. As proposições desses dois teóricos da enunciação, de forma complementar, colocam em cena o sujeito da enunciação em sua interação com o contexto social, cultural e histórico que o cerca, bem como em relação com as demais unidades da produção do enunciado. Em ambos o foco sai do âmbito do texto produzido (enunciado) e volta-se para o processo (enunciação) e tudo que dele faz parte, principalmente o sujeito e suas marcas. O jornalista-narrador deve ser compreendido, portanto, não a priori, mas sempre em relação, tanto ao próprio campo do jornalismo, com suas transformações constantes, como ao entorno que o envolve e a produção da reportagem, com seus sujeitos, realidades e processos complexos. É essa múltipla gama de relações que deve ser abarcada ao centralizar o olhar no sujeito que narra. Partindo da perspectiva do sujeito que narra em sua articulação com a obra que produz, avancei para a discussão da escrita no jornalismo. Entendi que o processo de construção da narrativa jornalística envolve uma série de questões que vão desde o olhar lançado para a realidade até a sua apropriação pela

134 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS escrita, passando pela relação com os diversos outros que surgem no processo e dele passam a fazer parte. Assim, o jornalista, visto a partir de uma óptica autoral, constrói um modo de narrar que compreende, além de estratégias discursivas, modos de olhar o mundo e de se relacionar com os personagens e fontes, construindo-se também como narrador. Assim, se falar do outro é falar de si, está posto um diálogo, uma polifonia que pressupõe a alteridade em contraste com uma polarização que segrega e aparta. As grandes reportagens são um exemplo disso: a presença do enunciador, seja ao narrar em primeira pessoa ou ao trazer para o relato elementos só possíveis a partir da sua própria experiência no local, como descrições subjetivas do espaço, dos sujeitos e dos processos retratados, traz consigo o rastro da experiência do narrador repórter. “‘Ter’ uma experiência, nesse sentido, não significa controlá-la, possuí-la, e sim vivenciá-la, tornar-se sujeito nela e para ela” (LEAL, 2013, p. 33). A experiência nesse âmbito pode ser entendida em dois níveis. O primeiro diz respeito à vivência do acontecimento, ao testemunho, já um segundo relaciona- se ao contato com as pessoas que testemunharam, a escuta desses sujeitos e a experiência tanto da relação como do contexto no seu sentido espacial. A jornalista Adriana Carranca, em sua fala em uma mesa1 sobre narrativas diversas, destacou a importância de se hospedar na casa de pessoas da própria comunidade do local que aborda, como fez na Síria e no Paquistão, o que possibilita um maior contato com a realidade vivida por aquelas pessoas, ouvindo o que elas têm a dizer sobre a guerra, mas, acima de tudo, experienciando o cotidiano daqueles sujeitos que sobrevivem à guerra. Dessa forma, por mais que a jornalista não viva a experiência dos bombardeios, ela vivencia o cotidiano da guerra, aproximando-se daquilo que é contado pelas pessoas. Com base nessas questões, levando em conta que o meu interesse principal passava pela problematização do narrar e das narrativas das quatro repórteres, foi importante discutir alguns aspectos da prática jornalística vistos aqui enquanto elementos-chave do processo de construção de uma reportagem, sendo eles: o tempo, o cotidiano, o olhar, a escuta, a aproximação e o diálogo. Tais pontos são tratados a partir da visão tanto de pesquisadores que se debruçaram sobre o fazer jornalístico, como de outros jornalistas que expuseram os desafios e potências vivenciados por eles. Novamente, o interesse era articular esses dois lugares de produção de conhecimento sobre o jornalismo e, assim, cercar o meu objeto empírico.

O tempo e o cotidiano

A relação entre jornalismo e tempo vai além da simples afirmação de que uma maior disponibilidade de tempo promove um maior aprofundamento. O

1 Trata-se da mesa “Narrativas diversas” que fez parte da programação do Ciclo Jornalismo e Literatura do Fórum das Letras de 2015, em Ouro Preto.

135 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS tempo conforma o discurso jornalístico e o discurso sobre a prática jornalística. Tendo a abordagem do presente como um desses principais discursos sobre a prática, o jornalismo instituiu a sua função social por meio da necessidade de dar significado a esse tempo tão arredio. Com isso, podemos dizer que as narrativas, que possuem o real como referente, como é o caso do jornalismo, e buscam dar significado a um tempo, constituem em si uma temporalidade singular que, mesmo tendo o presente como marco, também são habitadas pelo acionamento de um passado e de um futuro que contribuem para a compreensão dos eventos de que se trata. Sobre esse aspecto, Antunes (2007, p. 289) considera que:

A mídia curto-circuita os tempos: ao mesmo tempo em que ela é padronizadora do tempo atual – ritma e ordena cronologicamente o cotidiano –, ela põe também em circulação representações de relações temporais diversas, fazendo emergir outros tempos de outros estratos.

Dessa forma, podemos perceber que o tempo habita e tensiona a narrativa jornalística das mais diversas maneiras, promovendo uma ruptura e criando uma temporalidade própria que só existe na/pela narrativa. A narrativa não reflete uma linearidade cronológica, ela constrói o seu próprio ritmo por meio da escolha do modo como os eventos serão narrados. Seguindo essa linha, podemos então delimitar duas possibilidades para a relação entre tempo e a escrita no jornalismo: 1) o tempo que é constituído a partir do jornalismo, ou seja, o tempo do jornalismo; 2) a apropriação do tempo pelo jornalismo, que ocorre por meio da escrita, ou seja, o tempo no jornalismo. Essas duas possibilidades, longe de serem excludentes, estão em contínua articulação no fazer jornalístico, determinando e caracterizando o modo como o jornalismo se apresenta hoje. Em se tratando do tempo no jornalismo é possível problematizar a forma como a prática jornalística, e em especial a narrativa jornalística, apropria-se do tempo de forma a dar significado às nossas experiências sobre ele, principalmente de um presente múltiplo, contribuindo para o modo como compreendemos esse presente. Conforme nos diz Antunes (2014, p. 157), “a informação produzida no sistema midiático poderia significar novas possibilidades de experimentação social do tempo”. O processo de escrita cumpre um importante papel na conjugação entre sentidos, tempos e saberes. Ao narrar episódios que não ocorrem só no tempo, como também ao longo do tempo, há a reconfiguração de memórias que carregam diversos sentidos e saberes acerca dos eventos abordados e, ainda que pertençam ao passado, são ressignificadas pelo presente na trama da narrativa, bem como possíveis desdobramentos e afetações na vida dos sujeitos que apontam para um futuro.

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Nesse sentido, o cotidiano é determinante para o jornalismo, pois promove uma articulação entre o tempo do jornalismo, através da importância da experiência do cotidiano pelo repórter durante a captação, propiciada por uma maior disponibilidade de tempo; e o tempo no jornalismo, por meio da apropriação desse cotidiano no momento da escrita, do modo como o jornalista traz as experiências cotidianas para a narrativa.

O olhar e a escuta

Além de tempo, abordar o cotidiano demanda um modo de olhar que desperte para as minúcias que revelam sobre as pessoas e os contextos. O olhar deve dar conta não só do que está explícito, mas também do que se esconde pelos silêncios, daquilo que só a percepção do sujeito é capaz de captar e desvelar na narrativa. Esse olhar é único de cada narrador, que vai desenvolvendo o gosto por determinados temas e assuntos. O narrar diz sobre essa óptica singular que se materializa em forma de marcas do sujeito narrador no texto e acaba por limitar a visada ao narrador, evidenciando tanto uma unicidade autoral como a proposta de compartilhamento que advém da enunciação que prevê o outro. Não há como submeter a enunciação ao enunciado em um narrar assim. É aí que habita a sua riqueza. Um olhar alargado está intimamente ligado a uma escuta atenta. O jornalista e escritor Gay Talese destaca a importância da escuta e revela a sua tática: “nunca interromper quando alguém tem dificuldade para se expressar, pois nesses momentos hesitantes e confusos as pessoas quase sempre são muito reveladoras” (TALESE, 2009, p. 73). O cuidado de Talese vai desde a entrevista e a captação até a escrita, denunciando o nível de detalhamento do jornalista – uma de suas marcas –; é como se nada escapasse ao seu olhar e escuta atentos e, mesmo que na lapidação da escrita nem tudo vá para o texto, essa atenção é essencial. Em suas palavras: “das informações que recolho das pessoas, 80% terminam na cesta de lixo. Ainda assim, eu não teria conseguido descobrir os 20% úteis sem abrir caminho através dos 80%, que acabam virando lixo” (TALESE, 2009, p. 59).

A aproximação e o diálogo

O que deve estar no horizonte de qualquer jornalista durante a apuração e as entrevistas que servirão de base para a escrita é a importância da relação a ser construída com as pessoas envolvidas na história que ele quer contar. Para Kapuscinski (apud BERGER, 2007, p. 181), “toda reportagem fala de gente”, de modo que é necessária uma habilidade para se aproximar dessas pessoas e, caso elas percebam que não há um interesse verdadeiro em seus problemas, elas reagirão de forma negativa (KAPUSCINSKI apud BERGER, 2007).

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Essa aproximação na relação entre o jornalista e os sujeitos é abordada por Medina (2008) pela chave do diálogo possível na entrevista, sendo que, para tanto, a entrevista não deve ser encarada como simples técnica, pois esta, “fria nas relações entrevistado-entrevistador – não atinge os limites possíveis da inter-relação, ou, em outras palavras, do diálogo” (MEDINA, 2008, p. 5, grifo da autora). Assim, para que a entrevista deixe de ser apenas uma ferramenta de captação e constitua-se enquanto proposta de diálogo, é necessário dar a ela o contorno dos significados humanos, torná-la parte da interação entre sujeitos que aponta para além do texto, não insistir apenas na competência do fazer (MEDINA, 2008). No entanto, devemos ponderar que não se trata aqui de um diálogo que, por si só, seja harmonioso, tendo em vista que ele também traz consigo tensionamentos e dissensos. O cotidiano, o tempo, o olhar, a escuta, a aproximação e o diálogo são determinantes para a constituição narrativa jornalística, seja de um acontecimento, um tema mais amplo ou um processo. É durante a escrita que eles se constituem e se articulam com a realidade, os relatos e as percepções dos repórteres. Como descreve Coelho (2012, p. 158), “o jornalismo foi uma travessia que me permitiu fazer esta ponte entre a escrita e o mundo, que me permitiu viajar e ver o mundo. E aprender a ouvir as pessoas e aprender a olhar para as pessoas”. Segundo Maia (2013, p. 182), “quando o mediador social segue um caminho menos ortodoxo, em especial por estar lidando com seres humanos, consegue traduzir as ideias e a vida de maneira mais plural”. A escrita de um texto que consegue romper com modelos, como o lead no primeiro parágrafo e a pirâmide invertida, possibilita inúmeras formas de narrar. O jornalista pode tomar as rédeas da sua produção, desenvolver o potencial criador do encontro com os sujeitos e suas realidades, reivindicando a autoria do seu relato, da enunciação. Os aspectos aqui elencados não são tratados enquanto uma outra forma de conceituar o fazer jornalístico, uma vez que se trata de uma atividade complexa que envolve processos diversos como disputas de poder e econômicas, além das dinâmicas próprias das instituições. Sendo assim, é necessário ponderar, que ao defender a centralidade do jornalista, não desconsidero as dificuldades e particularidades que envolvem e limitam o narrar no jornalismo, mas busco evidenciar possibilidades em que esse protagonismo é possível e profícuo para a narrativa, como é o caso dos livros-reportagem.

Os caminhos metodológicos como construção múltipla

Tendo em vista que a intenção era compreender os aspectos que norteiam a construção de narrativas jornalísticas, no que tange à alteridade e à partilha de sentidos possível por meio da escrita de jornalistas brasileiras, o protocolo metodológico foi desenvolvido com o intuito de contemplar essas questões, tanto

138 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS na realização de entrevistas com as jornalistas, como na apreciação de entrevistas realizadas nos dois últimos anos e na análise posterior das entrevistas e das obras mais recentes de cada uma delas. O desafio nessa fase foi desenvolver um procedimento de coleta e de análise que contemplasse duas dimensões distintas: os relatos das jornalistas acerca da sua produção e as produções em si. Além disso, a análise teve como base as reflexões teórico-conceituais presentes no decorrer do trabalho, que diziam das inquietações centrais. A proposta metodológica foi contemplada pela Análise da Narrativa, uma vez que ela permitiu um exame ampliado que se atentou não só para a dimensão textual, mas levando em conta diversos aspectos que perpassam a narrativa, como o contexto cultural e sócio-histórico, a temporalidade e a espacialidade apresentadas e as pistas que ela traz consigo sobre a constituição textual dos sujeitos, tanto do si como do outro. Dessa forma, mais que dissecar as produções em busca de expressões recorrentes e seus correspondentes na realidade, a Análise da Narrativa permite um olhar para todos os sentidos que atravessam as narrativas. Desse modo, tendo em vista que a investigação buscou tensionar os sujeitos em cena no processo de construção narrativa, as potencialidades do encontro com o outro e os agenciamentos possíveis, bem como dizer da escrita em si, a proposta consistiu em direcionar a atenção para as narradoras, a fim de questioná-las sobre suas motivações e estratégias discursivas, sobre a constituição de seu estilo de narrar e sua relação com os sujeitos que permeiam o relato. Além das entrevistas efetuadas, estabeleci que seria necessário examinar também os relatos produzidos pelas jornalistas acerca do seu próprio trabalho, como outras entrevistas veiculadas na mídia e outros textos em que as autoras expõem inquietações e processos de produção, como é o caso do segundo capítulo de O Nascimento de Joicy (2015) e dos textos posteriores às reportagens do livro O Olho da Rua (2008) em que Eliane Brum conta sobre a produção de cada uma delas. Assim, em um primeiro momento, realizei entrevistas com três jornalistas, Adriana Carranca, Daniela Arbex e Fabiana Moraes, leitura das obras selecionadas e posterior análise dessas narrativas. O projeto inicial dessa pesquisa contava também com a possibilidade de entrevista com a jornalista Eliane Brum, o que não foi possível devido a questões pessoais e profissionais da própria repórter que inviabilizaram o nosso encontro. No entanto, houve um grande interesse por parte da autora em contribuir para o trabalho, sendo que ela mesma indicou o livro O Olho da Rua (2008) como o espaço em que ela melhor revela da sua visão de jornalismo e da sua relação com o sujeito, além de disponibilizar o posfácio da nova edição (naquele momento ainda no prelo) dessa obra em que ela tece reflexões acerca da sua produção. Assim, devido à importância da produção da autora no tocante a um exercício do jornalismo, que tem como central a interação com o outro, a opção foi por mantê-la no recorte empírico, analisando a obra indicada e o material fornecido por ela.

139 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

De posse das entrevistas, passei para uma reflexão sobre o movimento de análise do material, sendo ele de caráter misto visto que constituído pelas entrevistas e relatos das autoras e pelas obras das jornalistas, já citadas anteriormente. A decisão por adentrar nas produções em livro mais recentes das jornalistas se deveu a uma necessidade de discutir a forma como as inquietações, as visões sobre a prática jornalística, as preferências e as escolhas das repórteres estão presentes em suas obras, avaliando como narrativamente elas foram constituídas. Desse modo, com o intuito de problematizar a articulação entre o processo de escrita e o encontro com o outro na narrativa jornalística dessas repórteres, desenvolvi um protocolo de análise que tem como base três operadores a fim de contemplar as narrativas que constituem o material, tanto das entrevistas, como das obras, buscando tensionar o modo como elas se apresentam por meio da escrita e o que revelam da relação com o outro. Cada um dos três operadores conta com alguns eixos norteadores que se baseiam nos principais conceitos e autores discutidos no trabalho e que guiaram a minha análise e as considerações tecidas a partir dela, além de questões que emergiram do próprio material empírico. Sendo assim, são esses os operadores e os seus respectivos eixos norteadores: 1. A relação entre o narrador e os personagens durante a captação: esse operador aborda a constituição das relações entre as jornalistas e os demais sujeitos envolvidos no processo de captação de informações que serão organizadas narrativamente. A reflexão a partir desse primeiro aspecto percorreu as pistas sobre essa relação nas falas das repórteres e nos livros. Os eixos norteadores desse primeiro operador são: o movimento de aproximação do outro, além de refletir sobre outras possibilidades como o distanciamento, o julgamento e a compreensão, baseados nos planos axiológico, praxiológico e epistêmico de Todorov (1983); o acionamento de uma responsabilidade para com o outro, a partir da discussão de Levinas (1982, 2005, 2008), sendo que, como responsabilidade, entendemos o chamado do outro a que o narrador responde durante a relação que ele constrói com os sujeitos, por meio da escuta, e que atravessa a escrita. 2. A construção da narrativa: esse operador trata da configuração textual da narrativa. É examinando as escolhas do modo de narrar efetuadas pelas jornalistas, a proposta estrutural, a forma escolhida para organizar os sentidos, as vozes e as presenças dos sujeitos, a presença do narrador, entre outros, que podemos compreender sobre o processo de escrita em si e o modo como os sujeitos são constituídos narrativamente desde a apropriação do eu-narrador. Assim, os eixos norteadores deste segundo operador são: as temporalidades envolvidas na constituição das narrativas, problematizando as nuances do tempo do jornalismo e do tempo no jornalismo e como essas temporalidades são determinantes para a construção das narrativas jornalísticas; e o olhar próprio

140 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS do sujeito narrador que as narradoras evidenciam e que são reveladores de uma dimensão subjetiva do trabalho, tanto sobre a realidade de que tratam, como sobre a própria prática jornalística. Além disso, questões relacionadas à estrutura da narrativa também serão abordadas neste operador. 3. O processo de compartilhamento que pressupõe o leitor: este último operador diz sobre o retorno dos sentidos ao mundo da experiência, à reconfiguração efetuada pelo leitor. Essa reflexão ancorou-se na ideia de um leitor que é pressuposto da construção narrativa, a quem a narrativa é dirigida e para quem ela é feita. Nesse sentido, foram examinadas questões da relação última de compartilhamento da narrativa jornalística: do jornalista com o leitor. Os dois eixos norteadores aqui são a transparência, partindo da discussão de Maia (2008), pensando a escolha em deixar claros os procedimentos adotados durante a investigação e, indo além, examinando a evidenciação de outras questões, como detalhes das relações com outros sujeitos, dos percalços durante a captação, das críticas e autocríticas que as autoras efetuam e a visibilidade a partir de uma reflexão sobre momentos em que as autoras problematizam a missão de dar a ver do jornalismo, promovendo uma espécie de conscientização cujo intuito claro seja alcançar o leitor. Assim, acredito que esses três grandes operadores e os eixos norteadores se complementam em uma visada complexa das falas e das produções das jornalistas, contribuindo para compreendermos sobre como as escolhas dessas jornalistas durante a construção narrativa, desde a captação, da configuração da intriga até o leitor que está pressuposto, revelam sobre a relação com o outro em um jornalismo que anseia pelo encontro e se permite ser consciente do si de que depende a escrita. É pertinente pontuar que em nosso campo de estudos, em que os objetos se modificam incessantemente, principalmente devido à sua vinculação com o social e suas dinâmicas, a escolha metodológica é sempre um desafio. Afirmar que utilizamos determinado método preexistente, advindo de outras áreas do conhecimento, é um risco, uma vez que a adaptação que nossos objetos demandam podem desconfigurá-la. Sendo assim, a minha escolha nesse trabalho foi por desenvolver um procedimento autoral para a análise do material empírico, ainda que eu tenha me balizado pela Análise da Narrativa, inspirada por sua aplicação em outros trabalhos da área. Parti de uma compreensão da narrativa especialmente a partir das contribuições de Paul Ricoeur (1994), principalmente no que se refere à ideia de mimese. O conceito de mimese como imitação na obra de Ricoeur não se baseia em um decalque do real, mas diz respeito à ideia de uma imitação criadora (RICOEUR, 1994). Essa apreensão vai ao encontro da discussão proposta, uma vez que olho para o jornalismo a partir do seu caráter de referencialidade em um real, pensando a apropriação desse real na construção da narrativa jornalística, um texto que traria rastros dessa realidade em consonância com uma dimensão criadora própria da enunciação.

141 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

À discussão de Paul Ricoeur (1994) busquei articular os demais conceitos abordados na pesquisa, presentes nas reflexões sobre a alteridade, sobre a prática jornalística a suas características, sobre o sujeito narrador e sobre o processo de escrita, além de aspectos que surgiram da leitura exploratória do próprio material.

Apontamentos sobre as análises

Ainda que o interesse nesse texto seja pela discussão metodológica, considero importante destacar algumas considerações que foram tecidas a partir das análises do corpus proposto, a fim de uma maior compreensão das potencialidades desse procedimento metodológico desenvolvido no âmbito de uma pesquisa mais ampla. A análise efetuada no trabalho buscou contemplar aspectos da relação entre as jornalistas e os sujeitos que fazem parte da produção jornalística. As falas das entrevistadas foram articuladas às obras de modo a examinar quais aspectos citados e problematizados pelas autoras, enquanto norteadores das suas produções, estavam presentes nas narrativas produzidas. No caso da escrita, como processo de organização do material captado, dos sentidos, das vozes e dos sujeitos, podemos destacar que ela demanda uma reflexão por parte do sujeito narrador, principalmente em se tratando de grandes reportagens. Daniela Arbex conta que na escrita dos livros-reportagem, o processo é o mesmo do dia a dia da redação, com uma grande preocupação em tornar o texto de fácil compreensão. Já para Fabiana Moraes, a escrita é compreendida como uma grande responsabilidade, pois é no processo de escrita que ocorre a desnaturalização de questões arraigadas. O papel do jornalista no momento da escrita é, portanto, determinante no combate a preconceitos e sub-representações. Adriana Carranca destaca a importância da escrita em imortalizar histórias. Eliane Brum considera a escrita como algo vital para ela, não só em uma dimensão profissional. O seu cuidado com a escrita envolve a responsabilidade que é narrar as histórias das pessoas, que não se limitam ao dito. Transpor a oralidade para o texto é para a jornalista uma tarefa desafiadora, mas faz parte do pacto firmado entre ela e os sujeitos com os quais se relaciona durante a produção de uma reportagem em que ela se compromete em contar as suas histórias para o mundo. Nas falas das quatro jornalistas percebi uma atenção ao delicado processo de levar a complexidade da realidade que desejam retratar e que envolvem sujeitos para o texto de caráter jornalístico. Nas obras analisadas, é possível observar como algumas dessas questões estão presentes, como o texto de fácil compreensão de Cova 312 (2015) e a promoção de reflexões acerca da realidade vivenciada por Joicy, da própria condição da transexual em O nascimento de Joicy (2015) e o respeito a expressões e formas de falar das parteiras do Amapá

142 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS na construção textual de A floresta das parteiras, do livro de Eliane Brum. Trazer o outro para o texto é um trabalho que demanda do narrador desde o primeiro olhar, a escolha dos personagens, das fontes até o espaço que é destinado aos sujeitos no texto publicado. A escrita é reveladora desse olhar, dessa relação com o outro que nunca é neutra, que, por vezes, é conflituosa e transformadora para todos os sujeitos envolvidos, o jornalista, os personagens e fontes e o próprio leitor. A aproximação do outro é abordada pelas repórteres, seja de forma explícita e, em alguma medida, já analítica, como fazem Fabiana Moraes e Eliane Brum em suas obras, ou de forma mais sutil, como ocorre nas produções de Adriana Carranca e Daniela Arbex, que tratam dessa aproximação no decorrer do texto, descrevendo as relações e as suas experiências no contato com os sujeitos na apuração. Assim, todas as autoras retrataram de alguma forma os percalços e as percepções sobre essa interação com o outro. A escuta exerce um importante papel nessa relação. Para Eliane Brum, a escuta não se limita ao ato de ouvir o que o outro está dizendo, gravar e depois reconstituir textualmente, a escuta é um processo multissensorial, que demanda uma atenção não só para o conteúdo da fala, mas também para a escolha das palavras, o modo de falar, os silêncios, a postura do sujeito, seus gestos. Na visão de Fabiana Moraes, a escuta ganha na medida em que o jornalista compreende que é necessário entender a realidade em que o outro está inserido para evitar que os valores e visões do repórter apaguem as vulnerabilidades desses sujeitos. Do mesmo modo, a disponibilidade do repórter em ouvir, em vivenciar o cotidiano local com os habitantes, como é o caso de Adriana Carranca, ou em construir um diálogo que demanda um contato mais duradouro, conforme relata Daniela Arbex, é fundamental não só para uma reportagem potente, mas para o cultivo de um jornalismo com primazia pelo caráter de compartilhamento próprio da comunicação, da partilha entre sujeitos. Essa partilha depende do leitor que já está pressuposto em toda produção jornalística. Para as jornalistas, o papel do leitor é essencial, é ele quem irá dar significação à narrativa, tirar suas conclusões sobre o que foi relatado, completar os sentidos através da leitura. Se Fabiana Moraes vê a necessidade de conscientização do leitor e, consequentemente, da sociedade, Daniela Arbex destaca o caráter formador do jornalismo. No texto, esse aspecto aparece quando Arbex traz as versões contraditórias e deixa a cargo do leitor escolher no que acreditar. Já Adriana Carranca aciona o leitor no seu texto, chega a interpelá-lo diretamente. E Eliane Brum destaca o desejo de que o leitor se aproxime dos sujeitos retratados por uma escrita que busca trazer a complexidade do outro. A necessidade de deixar transparecer para o leitor o processo de produção da reportagem também é unânime, seja ao descrever como foi a investigação, destacando possíveis intenções, ou deixando claro que o texto traz apenas determinada parte da história. O si que narra está presente nas narrativas não apenas por meio do uso da primeira pessoa, de que Adriana Carranca, Daniela Arbex e Eliane Brum

143 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS lançam mão em partes do texto, mas também através do compartilhamento da experiência da produção da reportagem que aparece na narrativa textual. Descrições de ambientes, de diálogos, propostas de reflexão pelo destaque de determinados aspectos observados, como faz Fabiana Moraes ao descrever o contato das outras pessoas com Joicy, são outras formas de revelar o olhar do sujeito que narra no texto jornalístico, rompendo com um discurso de distanciamento e impessoalidade. Por fim, um último ponto que vale destaque é a questão do tempo. Embora as autoras concordem que o tempo é essencial para uma apuração mais cuidadosa, para a construção de uma boa história e, principalmente, para possibilitar uma aproximação com os sujeitos e o seu cotidiano, Fabiana Moraes cultiva uma posição crítica com relação ao tempo do jornalismo. Segundo a jornalista, o tempo não adianta sem que haja uma disposição do jornalista em não reproduzir posturas preconceituosas de escrita. Portanto, mesmo concordando com Adriana Carranca e Eliane Brum quando as repórteres nos dizem que cada história tem o seu tempo, que não é o tempo do jornal, novamente o olhar do jornalista que irá narrar e a sua conduta na escrita se mostram definidores do texto final da reportagem. Sendo que o ideal é aliar um olhar cuidadoso, uma escuta atenta, uma aproximação que não promova o julgamento e uma disponibilidade de tempo que permita um aprofundamento em uma escrita que seja reveladora do si e do outro presentes na narrativa jornalística.

Considerações finais

O exercício de refletir sobre um narrar que é ação no mundo requer um movimento metodológico que complexifique ao invés de reduzir. Ao buscar escapar de procedimentos descritivos que concluam como tais narrativas são, torna-se possível desenvolver uma investigação acerca das formas múltiplas com que elas operam. Neste capítulo, ao compartilhar o percurso que tracei, a intenção foi apresentar as potencialidades e os desafios enfrentados na aplicação de uma Análise da Narrativa que, longe de ser uma ferramenta pronta para ser empregada em qualquer estudo, requer atenção para uma construção complexa. No âmbito das narrativas jornalísticas, deve-se levar em conta os contextos e as dinâmicas da produção, as relações constituídas durante o processo, a escrita e a reverberação. Tal caminho me permitiu olhar para as obras e para os relatos das suas autoras de forma articulada, possibilitando uma maior compreensão de um fazer que foge aos padrões hegemônicos de produção jornalística, que mostram novas possibilidades para esse narrar. A dificuldade que ainda se delineia diz respeito ao leitor: alcançá-lo ainda é um desafio para os estudos de jornalismo que discutem a narrativa. Na trajetória que apresentei neste texto, o leitor revelava-se a partir das intenções das narradoras - era, portanto, um pressuposto. Nesse sentido, ainda é necessário avançar.

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Por fim, é pertinente destacar que, durante todo o percurso, pude observar que olhar apenas para a materialidade dos produtos jornalísticos não é suficiente para uma reflexão sobre as narrativas. O narrar envolve sujeitos em uma relação de partilha que é tensa, atravessada pelo social e possível pela linguagem. Sendo assim, estudá-lo demanda um olhar que busque abarcar tal multiplicidade.

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146 As vozes que narram em O olho da rua, de Eliane Brum1

Jaqueline Frantz de Lara Gomes

Introdução

Fáticas ou ficcionais, as narrativas produzem sentidos e constituem a realidade. Como diz Motta (2013), as narrativas permeiam toda a nossa existência. A teoria de Genette (1973) reforça este entendimento, uma vez que relata que nada é mais natural do que contar uma história, o que é perceptível na rotina do ser humano, quando ele busca suporte narrativo para entender e processar a realidade. Se a narrativa deriva da necessidade de compreender o mundo em que se vive (RESENDE, 2009), observamos que as narrativas jornalísticas, resguardadas suas especificidades, também são uma forma de conhecimento da realidade e sua face mais conhecida é a da reportagem. Em face às reconfigurações do fazer jornalístico ao longo dos anos, em grande parte marcadas pelo caráter das inovações sócio-técnico-discursivas, que permitem, pelo viés da internet, por exemplo, produzir e divulgar narrativas a qualquer tempo, é interessante estudar manifestações jornalísticas que fogem aos padrões convencionais da notícia pautada pela grande mídia. Por outras palavras, é dizer que frente ao paradigma da objetividade e da velocidade ditado pelos veículos com suporte na internet, ficou cada vez mais latente a configuração de narrativas aprofundadas, a busca pelos relatos de situações, cenários e pessoas que, tradicionalmente, não figuram na grande mídia, além da aposta na linguagem com artifícios literários para seduzir o leitor ante a multiplicidade de conteúdos disponíveis na contemporaneidade. A partir desse contexto, muitos jornalistas contemporâneos, tendo variadas possibilidades tecnológicas, buscam praticar em livros, revistas, sites e diferentes plataformas hipermidiáticas, o que autores dos anos 1960 e 1970 fizeram no meio impresso norte-americano: a mescla entre jornalismo e literatura. Observa- se, portanto, na aproximação do jornalismo com a literatura, a importância de olhar para a narrativa e o que emerge da figura do narrador, tendo em vista a sua capacidade de caracterizar social e culturalmente um determinado espaço e carregar em si uma crítica ao momento/acontecimento histórico de uma época. Partindo deste viés, e entendendo a reportagem como sendo uma narrativa jornalística polifônica, contextualizante e estética, tal qual entende Medina

1 Artigo produzido a partir da dissertação “Narrativas jornalísticas contemporâneas e as vozes que narram em O olho da rua, de Eliane Brum”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), em junho de 2017.

147 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

(1996), observaremos a figura do narrador e a disputa de vozes presente na narrativa jornalística em questão. Enfim, a ênfase à presença de características da narrativa literária na reportagem jornalística deve-se ao fato de que a obra a ser analisada em nossa pesquisa, O olho da rua, de Eliane Brum, é classificada como um livro-reportagem, na qual estão reunidas reportagens publicadas pela jornalista gaúcha durante sua atuação na revista Época. Diferentemente da publicação original na revista, no livro as reportagens ganham um adendo: as páginas que tratam dos bastidores da produção. Contudo, nossa proposta é fazer um olhar mais atento para duas reportagens, como explicaremos metodologicamente mais adiante. Nosso objetivo central nesta pesquisa é, portanto, uma perspectiva possível de análise do gênero reportagem e seus múltiplos níveis narrativos. Dessa forma, adotaremos, para melhor compreensão e posterior análise, o diagrama dos níveis de poder na narração jornalística apresentado por Motta (2013), o qual segue o modelo de Genette (1998). Então, a partir da perspectiva de que a narrativa existe desde que o indivíduo conseguiu dar alguma explicação acerca da realidade que o cerca, pode-se pensar a experiência da vida ao narrar contemporâneo e suas múltiplas formas e plataformas. E é exatamente essa concepção que procuramos na narrativa de O olho da rua para compreensão do posicionamento das vozes narrativas e os sentidos que dela emergem.

Disputa de vozes

Para subsidiar a análise da obra de Eliane Brum, recorremos ao conceito de vozes narrativas de Motta (2013). Quem são as vozes narrativas? A voz (ou as vozes) seria aquela que se dirige ao leitor (ouvinte ou espectador). A categorização proposta por Motta, a partir de Genette, discrimina três níveis básicos de narradores, conforme a posição diegética, a hierarquia de cada um e a disputa pelo poder de voz. São elas: primeiro-narrador é o narrador-jornal ou revista; segundo-narrador é o jornalista/repórter; terceiro-narrador é personagem, que antes era a fonte. Por esta categorização, cada narrador é detentor de um capital relativo, de um poder, o qual manifesta de acordo com o seu interesse ou os de seu grupo. Vejamos os três narradores discriminados no diagrama de Motta (2013, p. 225): O Primeiro-narrador, o jornal como instituição que fala, é extradiegético: enuncia uma estória da qual não tomou parte, não testemunhou nem apurou diretamente. O jornalista, Segundo-narrador, desempenha o papel de narrador intradiegético, dentro da estória, porque ele apura, seleciona, dispõe e hierarquiza as ações, conflitos, personagens, cenas e enredo. A personagem, Terceiro-narrador, é um narrador definitivamente intradiegético e detém menor poder de voz que o jornal e jornalistas na cadeia. Entre estes três níveis há, portanto, uma hierarquia de poder que flui de fora para dentro, do Primeiro para o Segundo-narrador, e deste

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para o Terceiro. O narrador principal, a partir do qual os outros dois se expressam, é o narrador-jornal [...].

É o narrador quem dispõe do poder de voz. Ele organiza, encadeia, hierarquiza o discurso, dá pistas ao seu interlocutor por meio das quais pretende que seu discurso seja interpretado. “Entretanto, ele faz isso em uma situação de comunicação na qual está em constante processo de interlocução com o seu destinatário”, o que implica influências recíprocas, de acordo com o que pontua Motta (2013, p. 211-212). Motta (2013) indica que é preciso observar as relações de conflitos e negociações entre os atores envolvidos – empresa/jornal – profissionais – personagens – para revelar os poderes que delas resultam. Então, quem é o narrador que nos conta diariamente notícias e reportagens? Ou, como pergunta Motta (2013, p. 222), “se as narrativas jornalísticas são polifônicas, entrelaçam vários narradores, de quem são essas vozes sobrepostas?”. Na busca por delimitar essas vozes, nas relações de hierarquias entre os narradores, seus papéis e negociações de sentido e de poder entre eles, Motta (2013) sugere um diagrama dos níveis de poder na narração jornalística, no qual os três níveis de domínio se manifestam através de “uma escala de subordinação relativamente nítida”. O Primeiro-narrador é o veículo (jornal, revista, portal, telejornal). Este detém o maior poder de voz, inclusive sobre o jornalista, que é o Segundo-narrador. O narrador-jornalista, por sua vez, detém mais poder em relação às personagens que são, no caso, o Terceiro-narrador. Na hipótese de Motta (2013), o produto jornalístico é, então, resultado de uma permanente negociação entre os interesses do veículo, dos jornalistas e das fontes (posteriormente personagens). Essa negociação nem sempre é explícita, mas são acirradas e “implicam o poder de reter a voz e dominar a versão hegemônica em cada relato que se torna público. (...) Jornal e jornalista são também atores deste jogo de poder, onde entram com seus interesses próprios” (MOTTA, 2013, p. 224). Embora o poder opere predominantemente de fora para dentro, de acordo com o diagrama, essa relação nem sempre é linear, uma vez que o poder simbólico é continuamente negociado. “O Segundo e o Terceiro narradores possuem, cada um, força política própria e manobram astutamente artimanhas que põem em prática um contrapoder em cada momento” (MOTTA, 2013, p. 226). Nos filiamos à proposta de Motta (2013), segundo Genette, todavia, lembramos que esses esquemas foram oferecidos sob a ótica de narrativas jornalísticas com circulação quase que diária, como o caso de jornais diários e revistas. Trazemos isso à tona porque é preciso pensar os níveis narrativos quando da publicação de narrativa de natureza jornalística em outros dispositivos, como o livro, tal como é o caso do livro-reportagem de Eliane Brum, cujo recorte vamos analisar.

149 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Disputa de vozes reconfiguradas

Bem vimos, pelo exposto acima, que o nível de poder entre os narradores flui, predominantemente, de fora para dentro. Contudo, há questões a serem consideradas em torno desse esquema de ascendência de poder. Desta forma, pensamos que quando a disputa de vozes narrativas se estabelece em um dispositivo de circulação temporal mais larga, em que não há pressões de espaço e tempo como no caso de jornais diários e até mesmo de revistas semanais, há uma reconfiguração no esquema de poder. Como o modelo do qual tratamos na seção anterior foi elaborado pensando em narrativas jornalísticas publicadas, principalmente, em jornais diários, recorremos a Soster (2015), que traz um olhar que consideramos importante para subsidiar nossa análise acerca do livro- reportagem O olho da rua. Vamos destacar alguns pontos principais. Ao ponderar sobre as reconfigurações de ordem processual na emissão de vozes narrativas em uma perspectiva de jornalismo midiatizado, Soster (2015) chamou a atenção para o fato de haver uma reconfiguração na hierarquia de vozes em função da periodicidade do diálogo dos dispositivos com seu público- alvo, como no caso do livro. Isso porque, tanto jornais diários como, por exemplo, livro, “são geridos, em termos de processos, por uma hierarquia produtiva composta, de um lado, por organizações, que interferem hierarquicamente nas demais instâncias narrativas, caso dos repórteres, e assim sucessivamente” (SOSTER, 2015, p. 28). Assim, se, na instância apresentada por Motta (2013), a interferência tende a ser mais incisiva do primeiro para o terceiro narradores, essa lógica é diferente quando muda a periodicidade. Soster (2015, p. 28-29), então, lança mão de alguns questionamentos, entre os quais, “o que ocorre em modelos de relatos jornalísticos em que a periodicidade não interfere em sua forma de ser, caso dos livros-reportagem e das biografias de natureza jornalística?”. O pesquisador aponta que “nestes casos, ainda que o primeiro-narrador (organização) se faça igualmente presente, a hierarquia na emissão de vozes parece se reconfigurar” (SOSTER, 2015, p. 29), inserindo novas vozes enunciativas no sistema. Embora seja objeto de análise do autor, não daremos foco à questão da configuração de uma quarta voz narrativa. Optamos, neste momento, apenas pela reconfiguração do poder das vozes já conhecidas no sistema jornalístico. Então, a partir dessa proposição de reconfiguração das vozes, Soster (2015), juntamente com membros do grupo de pesquisa Jornalismo e literatura: narrativas reconfiguradas2, sugeriu um novo esquema analítico em vista dos tempos diferenciados de narrativas jornalísticas. Com base no modelo já proposto por Genette (1988) e adotado por Motta (2013), a sugestão é que há uma diferença estabelecida no que se refere à emissão das vozes quando se 2 O grupo, constituído em 2013, é ligado, de um lado, ao Programa de Pós-graduação em Letras (PPG Letras), enquanto que, de outro, ao Departamento de Comunicação da Unisc.

150 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS trata de narrativas de natureza jornalística nos livros-reportagem e biografias. Sendo assim,

Como não há, no caso dos livros, exigência de processos produtivos repetitivos, caso do que ocorre com um jornal diário, em decorrência da periodicidade, que não existe usualmente no caso dos livros, podemos pensar que a voz do segundo narrador (jornalista) ganha uma relevância igual ou superior ao primeiro narrador (organização), e que ambos seguem falando “mais alto” que o terceiro narrador. (SOSTER, 2015, p. 30).

De tal modo, diferente do esquema em que o poder age, geralmente, de fora para dentro – do primeiro para o segundo e então para o terceiro narradores, trata-se de um esquema em que o segundo narrador ganha evidência. É preciso reforçar que a processualidade acima descrita, mesmo reconfigurada na relação com o modelo original, diz respeito, principalmente, ao dispositivo, embora esteja ele também inserido no sistema jornalístico. Sendo assim, o primeiro, o segundo e o terceiro narradores têm visibilidade no esquema. No caso do primeiro narrador, extradiegético, sua identificação se dá pelas marcas existentes no livro (capa, índices, referências etc.). Por esta perspectiva, o segundo narrador adquire centralidade operacional. Em particular, reiteramos, pelas considerações de Soster (2015), que determinados formatos de narrativa, caso dos livros-reportagem - presos a temporalidades diferenciadas na comparação com jornais e revistas – há uma reconfiguração da perspectiva de poder de vozes de enunciação narrativa. Tem-se a potencialização do segundo narrador, que passa a exercer influência diferenciada sobre o primeiro e o terceiro narradores. Pelo exposto, assim como o modelo original dos níveis narrativos, as considerações de Soster (2015) serão utilizadas para observar a narrativa de Eliane Brum no livro-reportagem O olho da rua.

Estratégias de análise

Feito o aporte teórico precisamos, agora, explicitar os procedimentos metodológicos de análise do livro-reportagem O olho da rua, da jornalista Eliane Brum. Nossa escolha pela obra se deu pela observação prévia de que havia, nela, consideráveis disputas de vozes narrativas. São 10 reportagens que compõem o livro, mas originalmente publicadas na revista Época, entre 27 de março de 2000 e 18 de agosto de 2008. No livro, contudo, além das reportagens, Eliane Brum apresenta espaço dedicado aos bastidores da produção do conteúdo, onde descreve métodos de apuração, aspectos positivos e falhas na construção das mesmas, algo que não é usualmente encontrado nas estruturas narrativas de natureza jornalística com as quais dialogamos. Para a análise no presente trabalho, no entanto, a proposta é um recorte

151 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS da obra, de modo que faremos a discussão dos níveis narrativos na primeira e na quinta reportagens do livro, A floresta das parteiras e O Povo do Meio. Consideramos, previamente, que as narrativas concentram as múltiplas disputas de vozes apresentadas no esquema de Motta (2013), o que permite um panorama geral da obra. Mais especificamente, emO Povo do Meio, daremos mais atenção ao espaço dos bastidores da reportagem. Como método, propomos a pesquisa qualitativa, pois entendemos que ela não centraliza atenção na representatividade numérica, mas na compreensão interpretativa de experiências dentro de um contexto, ou seja, um estudo imersivo (MINAYO, 2003; GODOY, 1995). Seguimos nossa observação por meio de um estudo de caso que, embora parta do texto da narrativa jornalística, visa à compreensão do problema de pesquisa pelo viés da enunciação, não uma análise de conteúdo. Então, para alcançar nossos objetivos desenvolvemos uma tabela que nos auxiliará a identificar, nas narrativas analisadas, a presença do narrador e como ele se posiciona nos diferentes níveis narrativos existentes nas reportagens e nos bastidores de cada publicação. Sendo assim, conforme o modelo que segue abaixo, a tabela apresenta linhas horizontais nas quais indicamos marcas da presença dos três níveis narrativos do modelo de original de Genette (1998), apresentado por Motta (2013), tanto para as reportagens como para o espaço dedicado aos bastidores da produção. Nas três colunas, a tabela dedica espaço para a localização, por página, de excertos do texto que caracterizam a identificação dos diferentes níveis narrativos:

REPORTAGEM 1 Título NÍVEIS NARRATIVOS PÁGINA EXCERTO 1º narrador 2º narrador 3º narrador BASTIDORES DA REPORTAGEM NÍVEIS NARRATIVOS PÁGINA EXCERTO 1º narrador 2º narrador 3º narrador

Fonte: Elaborado pela autora.

Dessa forma, a partir dos excertos da reportagem postos na tabela é possível identificar os múltiplos níveis narrativos apresentados por Motta (2013), segundo seu poder de voz (veículo/suporte – repórter – personagem). Sendo assim, na primeira linha, temos a localização de um excerto indicativo do primeiro narrador, neste caso, o livro. Na segunda linha, a atuação do segundo

152 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS narrador, conforme o modelo exposto por Motta, é o narrador-jornalista, ou repórter. A terceira e última linha é dedicada à identificação e localização, no texto, da performance do terceiro narrador, a personagem. Entendemos que a adoção de uma tabela para a análise da perspectiva de enunciação dialoga com a proposta de pesquisa qualitativa, uma vez que os exemplos possibilitam discutir o quê, dentro do texto, permite pensar sobre uma possível reconfiguração das vozes narrativas. Entendemos que os exemplos dão conta de subjetividades e interpretações que emergem das vozes na enunciação da narrativa jornalística de Eliane Brum. Feita a identificação das marcas no texto que sugerem os níveis narrativos, o próximo passo é a análise desses indicadores pelo viés interpretativo da pesquisa qualitativa, de forma a perceber se eles dão conta de extratificar a disputa de vozes presente na narrativa jornalística de Eliane Brum.

Considerações interpretativas

Identificadas as marcas, passamos à análise dessas referências. Entretanto, o primeiro aspecto a destacar, brevemente, é que nas dez reportagens e nos seus bastidores o primeiro narrador se apresenta basicamente da mesma forma, seja pelo layout de apresentação das páginas, fontes dos títulos e textos, assim como nos marcadores de data nas quais, originalmente, os conteúdos foram publicados, assim como constam fotos e legendas e o indicativo de crédito para os respectivos fotógrafos. São referências que revelam o primeiro narrador sendo a revista (pela data, fotos e créditos), agora transcritos para o suporte livro que, igualmente, destaca esses indicadores e deixa as suas marcas pelo novo layout de apresentação das reportagens. Servem para a padronização do texto, uma uniformidade narrativa em sua primeira instância, quando nos referimos à tabela dos níveis. Assim como padronizam, também organizam a leitura e criam uma identidade na relação com o leitor na medida em que ele avança pelas páginas. Sendo assim, adiante, daremos atenção aos demais níveis narrativos nas considerações que se seguem.

A floresta das parteiras

A primeira reportagem do livro, intitulada A floresta das parteiras, foi veiculada na revista Época em 27 de março de 2000. Na produção, localizamos um dos poucos momentos em que o segundo narrador aparece de forma evidente como participante da história. É quando a repórter refere que “A parteira da Amazônia dá adeus enquanto nossa canoa some no rio” (BRUM, 2008, p. 23). A expressão “nossa canoa” revela muito bem a participação da mesma na condução da cena, logo em seguida dando detalhes descritivos do cenário que enxerga no cruzar da canoa pelo rio, reforçando, dessa forma, sua presença

153 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS entre as personagens da matéria3. Eliane Brum é mais do que observadora das parteiras da Amazônia. A linguagem empregada na observação também denota riqueza de informação e técnica de apuração e de escrita, assim como observamos no jornalismo literário e no New Journalism. Por exemplo, quando descreve uma das personagens da história: “Negra, negríssima, como a terra do quilombo do Curiaú, nos arredores de Macapá. Abre os braços gorduchos, musculosos de pegar menino, alinhavar vestidos e benzer doentes” (BRUM, 2008, p. 28). É mais comum, no entanto, a apresentação do segundo nível narrativo do modelo de Genette (1998), pela repórter que observa e conhece a história. É como o narrador heterodiegético (REIS; LOPES, 1988), colocando-se como testemunha objetiva dos fatos, citando dados e falas dos personagens, como neste caso:

A voz de Dorica, a mais velha parteira da floresta, ecoa em cada mulher quando sentencia: “É o tempo que faz o homem, e não o homem que faz o tempo. Parto é mistério. E menino, a gente nunca arranca. Só recebe”. (BRUM, 2008, p. 34)

Assim, na maior parte desta reportagem, observa-se que o narrador não é um personagem do que narra, mas a perspectiva da enunciação passa por este narrador. E é assim que encontramos o terceiro nível narrativo, uma vez que as personagens são apresentadas pela observação do segundo narrador, este que também define em quais momentos elas detém o poder de voz, pelas citações e diálogos colocados entre aspas. O único momento em que uma das personagens, leia-se fonte da reportagem, detém o poder de voz de forma mais intensa é em espaço aparte da construção da matéria jornalística, situada na página 35 do livro. É quando Juliana Magave de Souza, por exemplo, realiza um relato de página inteira sobre sua história como “pegadora” e suas “mãos aleijadas pelo sangue da mulher”. Ainda assim é um relato escolhido pela jornalista, por a considerar, no texto, “uma pegadora em prosa e verso”. Em três páginas dedicadas aos bastidores de produção da reportagem, Eliane Brum revela ter cometido equívocos pelo pouco tempo disponível para a apuração. Apesar de fazer referência à primeira instância narrativa em seu relato, o destaque fica por conta do segundo narrador, que aparece sem qualquer timidez. Ao abrir os bastidores, Eliane Brum explicita que era a sua primeira reportagem para a revista Época e que ela e a fotógrafa que a acompanhava tinham, além da pauta sobre as parteiras para fazer em quatro dias, uma entrevista com a então governadora do Maranhão. Apesar de não ter esperado um parto acontecer pelas mãos de uma parteira da Amazônia, Eliane confessa que a reportagem “por

3 Aqui, utilizamos o termo matéria para nos referirmos como sinônimo de reportagem, pauta, notícia.

154 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS cesariana” é “um filho bonito” devido ao respeito à linguagem das parteiras:

Minha reportagem por cesariana, ainda assim, é um filho bonito. Porque minha pressa de obstetra com agenda lotada foi parcialmente compensada pelo respeito à linguagem das parteiras. O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. (BRUM, 2008, p. 37).

É uma posição diferente do que, em geral, ocorre no jornalismo dito tradicional, em que a opinião do repórter não pode aparecer frente aos ideais de imparcialidade e objetividade. Por outro lado, se observadas as complexificações que emergem da relação entre jornalismo e literatura, podemos encontrar nesta questão indicativos de estratégias de efeito de sentido, como humanização do relato e efeito de real, ao dizer que estava lá, como viu e como procedeu, valorizando a riqueza a partir da simplicidade das suas fontes.

As palavras também nasciam dessas mulheres extraordinárias de parto natural. E emergiam como literatura da vida real. Elas falavam tão bonito, com uma variedade e uma fundura tão impressionantes, que meu trabalho era mínimo. Bastava escutar e anotar cada suspiro para não perder nada. Nem que eu quisesse, nem que eu estivesse fazendo ficção e pudesse inventar, eu chegaria perto da beleza com que elas se expressavam. (BRUM, 2008, p. 38).

O terceiro nível narrativo não aparece no espaço dos bastidores de A floresta das parteiras. Não tem manifestação, a não ser pelas menções de nomes referidos pela jornalista Eliane Brum em sua confissão do equívoco na apuração da pauta devido ao deadline da redação. É uma ascendência do segundo nível narrativo sobre os demais quando Eliane Brum tenta justificar o fato de não ter esperado um parto acontecer antes de encerrar a apuração da reportagem.

O Povo do Meio

O Povo do Meio é a quinta reportagem do livro O olho da rua. Nela, Eliane Brum conta sobre a população que vive no coração da Amazônia e o faz por meio de personagens como Raimundo, aliás, a maioria dos homens atende por esse nome, segundo diz, na Terra do Meio. Fruto de sua observação, Eliane Brum transforma as fontes em personagens ao trazer riqueza de detalhes nos gestos, nas características físicas e emocionais destas. Com sensibilidade, apresenta um povo analfabeto, esquecido do mundo. A maior parte da reportagem é conduzida por sua observação e nas poucas intervenções com falas, citações entre aspas, as personagens têm preservadas características do modo de falar do lugar e a simplicidade que denota a falta de

155 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS conhecimento de um outro mundo para além da floresta. Joga com as palavras, quase que transportando o leitor para dentro da Terra do Meio. Em alguns momentos, deixa transparecer mais a sua presença como observadora e alguém que, mesmo por alguns dias, vive a vida das personagens. Por exemplo, quando diz que “nessas madrugadas, o silêncio da selva é feito de ruídos” (BRUM, 2008, p. 167), denota-se um segundo narrador participante da história, o que adiante é comprovado no espaço dedicado aos bastidores da reportagem. O primeiro narrador sempre evidente pelo projeto gráfico e um segundo narrador que se posiciona diante das escolhas feitas na apuração e escrita da reportagem. Nesta, especialmente, Eliane Brum apresenta duas vezes o espaço dos bastidores da reportagem. Na primeira, conta que o texto foi produzido para a internet, na semana da publicação da reportagem na revista Época. Na sequência encontramos os bastidores dos bastidores da produção, uma vez que no segundo momento Eliane Brum escreve para o livro. Se não fizesse esta revelação, a atualidade do texto não permitiria tal constatação. Assim, compreendemos uma vez mais que a reportagem parece ter continuidade e atualização por meio do conteúdo dos bastidores. Eliane Brum revela, mais do que a ascendência de um primeiro narrador que, de certa forma, normatiza o seu trabalho (neste caso, na revista) e revela- se como narradora que precisa fazer escolhas: “Como testemunhar a luta de um punhado de brasileiros esquecidos, invisíveis e terrivelmente frágeis muito depois do fim do mundo e contar isso em alguns parágrafos, páginas?” (BRUM, 2008, p. 181). Na segunda parte do trecho em que expõe sobre a produção da reportagem, a jornalista volta a mencionar as personagens da história, atualizando informações dadas na reportagem original para a revista Época, ainda em 2004:

No final de outubro, Raimundo Belmiro, Herculano Porto e Luiz Augusto Conrado, o Manchinha, foram retirados de helicóptero da selva e levados até Brasília para dar notícias da guerra na floresta. Nessa viagem ao país oficial, Raimundo se transformou num cidadão brasileiro ao fazer sua primeira carteira de identidade. (BRUM, 2008, p. 182).

E mais: a jornalista revela que no momento em que esse texto foi escrito, em maio de 2008, conquistas foram obtidas dada a repercussão da publicação e das notas veiculadas depois da reportagem, como a instalação da primeira escola na reserva extrativista. Por isso, para Eliane Brum, “este é um daqueles momentos em que a felicidade de ser repórter não cabe nas letras. Vale uma vida.” Isso quer dizer que no livro há uma possibilidade de atualização da reportagem, dada a perspectiva temporal diferente do que ocorre com a revista.

156 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

A republicação em livro permitiu o espaço revelador sobre a apuração, sobre a jornalista em sua posição de segundo narrador e, por vezes, terceiro também. Em síntese, encontramos nas reportagens e seus bastidores, diferenças na evidência dos níveis narrativos. Nas reportagens, o primeiro narrador se manteve presente da mesma forma, a partir do projeto gráfico do livro. Já o segundo narrador se apresentou em diferentes performances, com focos narrativos mais ou menos revelados à percepção do leitor, especialmente o leitor leigo quanto ao posicionamento narrativo. Já as personagens, enquanto detentoras de poder de voz, estão perfeitamente visíveis. O mais interessante, pelo analisado, é a ascendência do segundo narrador no espaço dos bastidores. Enfim, são diversos os indícios para levarmos às conclusões acerca do poder de voz nas narrativas de Eliane Brum no livro- reportagem O olho da rua.

Considerações finais

Após o levantamento dos níveis narrativos, temos algumas inferências. Para tanto, seguimos o que postula Motta (2013, p. 92) sobre a necessidade de considerar “o foco no processo de comunicação narrativa, na atitude e na posição do narrador, em suas intencionalidades e estratégias (...) nos efeitos de sentido possíveis” e não apenas o produto. Cabe uma indagação: por que a publicação dos bastidores das reportagens só ocorre no livro editado por Eliane Brum? Temos algumas pistas e acreditamos que a mais latente delas esteja na perspectiva da periodicidade. Ou seja, diferente da revista Época, com edições semanais, o livro não tem um prazo rotineiro de publicação e circulação. Embora estejam datadas no livro, segundo sua publicação original na revista, o conteúdo das reportagens nos parece atemporal. Perspectiva que, em nosso entendimento, reforça que o que Eliane Brum faz não é puramente notícia factual e que por meio das suas pautas consegue universalizar o interesse pelo conteúdo, a abrangência das temáticas abordadas e o alcance da narrativa. A jornalista conduz a narrativa por meio das fontes, que se tornam personagens. A partir de profunda observação destas, dá a elas poder de voz na narrativa, ainda que este poder seja controlado pelas aspas permitidas pela jornalista que é, no caso, o segundo narrador. De outra parte, entendemos que a classificação dos níveis narrativos existente, segundo apresentado por Motta (2013) não dá conta da análise da narrativa construída pela jornalista Eliane Brum. Todavia, o modelo original serve de amostra e indica caminhos para a compreensão de uma nova oferta de sentidos a partir do poder de voz que emana da figura do narrador quando considerada a perspectiva das reportagens reunidas no livro. Vejamos alguns aspectos a partir dessa compreensão. As inferências, longe de serem conclusivas,

157 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS norteiam uma possibilidade de estudo acerca dos níveis narrativos, do poder de voz em questão e de suas múltiplas significações. A partir dos bastidores das reportagens publicadas na revista Época e apresentados, exclusivamente, no livro O olho da rua, entendemos que a ascendência de poder de voz atua de forma diferenciada quando o suporte é o livro. Se, na revista, o poder de voz é exercido de forma mais intensa do primeiro para o terceiro narradores, no livro, quando tratamos do espaço dos bastidores, essa ordem é transgredida. Vimos sobre esse aspecto em Soster (2015) e concordamos que há uma ascendência, através dos bastidores das reportagens de Eliane Brum, do segundo narrador sobre os demais. A repórter, como segundo narrador, conta do processo narrativo e entrega novas significações ao leitor ao descortinar a apuração e suas impressões, bem como a própria crítica. Sendo assim, entendemos que quando a periodicidade muda, como no caso do livro, o segundo narrador tem ascendência sobre o primeiro. A publicação dos bastidores revela uma crescente da jornalista Eliane Brum, ou seja, o segundo narrador, sobre os demais. O suporte livro permite essa elevação do poder de voz da repórter que, tradicionalmente, não é permitida nos veículos, cuja pressão do tempo e critérios de noticiabilidade norteiam a prática da narrativa jornalística. Como vimos, podemos compreender o livro-reportagem como um “(...) veículo de comunicação impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios jornalísticos periódicos” (LIMA, 2009, p. 26). Tem, portanto, a possibilidade de experimentar novas formas de captação sem ser premido pelo tempo. Então, no diálogo com Soster (2015), percebemos que para extratificar os níveis narrativos para a análise das vozes que narram no livro-reportagem O olho da rua, de Eliane Brum, é preciso que se reconfigure o esquema de poder de voz. Podemos pensar os sentidos que emergem do narrador proposto por Motta (2013), pensando a disputa de vozes numa perspectiva jornalística temporal, o que se aplica à revista Época, por exemplo, mas a extratificação não funciona quando falamos da narrativa de Eliane Brum no livro. Ou seja, quando falamos da narrativa transposta e reconfigurada pelo viés dos bastidores no livro - e já concluindo com a certeza de que há ainda mais para compreender a partir dessas inferências - temos que pensar na ascendência do segundo narrador sobre os demais níveis narrativos, diferentemente do que ocorre na apresentação de Motta (2013), segundo o qual o poder de voz flui, predominantemente, de dentro para fora.

158 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Referências

BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. São Paulo: Globo, 2008. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa, Portugal: Vega, 1976. GENETTE, Gérard. Nuevo discurso del relato. Madrid: Cátedra, 1998. GODOY, Arilda Schmidt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 57-63, abr. 1995. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 4. ed. revisada e ampliada. Barueri: Monole, 2009. MEDINA, Cremilda. Povo e personagem. Canoas: Ed. da ULBRA, 1996. MOTTA, Luís Gonzaga. Narrativas: representação, instituição ou experimentação da realidade? In: ENCONTRO DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 7., 2009, São Paulo. Anais... São Paulo: SBPJor, 2009. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013. MINAYO, Maria Cecília de Souza. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 22. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. REIS, C.; LOPES, A. C. M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988. RESENDE, Fernando. O jornalismo e suas narrativas: as brechas do discurso e as possibilidades do encontro. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 7., 2009, São Paulo. Anais... São Paulo: SBPJor, 2009. Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2017. SOSTER, Demétrio de Azeredo. A reconfiguração das vozes narrativas no jornalismo midiatizado. Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 1, p. 23, jul./2015.

159 Últimas palavras? Formas de aproximação do inefável através das narrativas biográficas de suicidas

Victor Lemes Cruzeiro

Introdução: Getúlio e Virginia

Este capítulo se inicia com a evocação de duas personalidades bastante conhecidas: o presidente brasileiro Getúlio Vargas (1882-1954) e a escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941). Ainda que com histórias e vidas tão distintas, esses dois contemporâneos compartilharam um mesmo terrível destino: o suicídio. E, tão diversas quanto suas trajetórias, são distintas as suas cartas que, cada uma a seu modo, coroam essa derradeira opção:

Sigo o destino que me é imposto. [...] Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. (VARGAS apud NETO, 2013, p. 346).

Eu sinto que eu fui longe demais dessa vez para voltar [...] estou certa que não vou superar isso dessa vez. (WOOLF apud DALLY, 1999, p. 131).

Esses breves trechos das duas cartas de suicídio, tão diferentes em seus contextos, estilos e destinatários, servem como uma demonstração do alcance do autoextermínio. Enquanto Virginia escrevia para sua irmã e seu marido, Getúlio endereçava suas palavras a todo o povo brasileiro. Contudo, apesar de qualquer diferença que os separe, ambos uniram-se no inexorável momento de dar cabo das próprias vidas. À guisa de introdução, essas cartas e seus dois singulares autores abrem este trabalho sobre um assunto que permeia toda a história da humanidade, a despeito de ser pouco discutido com profundidade. Estima-se que 800 mil pessoas tirem a própria vida todos os anos, e acredita- se ainda que, para cada suicídio, ocorram mais de 20 tentativas frustradas (OMS, 2017). Isso torna o suicídio a 15ª maior causa global de mortes, perdendo apenas para as chamadas “doenças não-comunicáveis” (doenças cardiovasculares, câncer, diabetes etc., responsáveis por mais de 70% das mortes globais) e ultrapassando a soma de todas as mortes violentas – incluindo homicídios, conflitos e terrorismo (RITCHIE, 2018). São inúmeras as motivações, desde econômicas a emocionais, mas o fato é que suicídios aconteceram e acontecerão.

160 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Frente a tal cenário implacável, como compreender esse obtuso impulso de tirar a própria vida? Coloca-se aqui, imediatamente, um obstáculo que emerge de uma atitude evasiva da racionalidade frente a um tema tabu como esse. Pouco se fala sobre suicídio, e menos ainda se publica sobre. Em um estudo sobre obituários dos jornais The New York Times, dos EUA, e da Folha de S. Paulo, do Brasil, Martinez (2018) não identifica nenhuma referência a mortes por suicídio durante o período pesquisado: outubro e novembro de 2007 (MARTINEZ, 2018, p. 156). E, ainda que o período seja breve, há um consenso de que pouco ou nada se publica sobre o assunto. Além do medo do “contágio” – o incentivo a novos suicídios – são várias as causas desse silêncio, conforme analisa a escritora Hersh (2010)1:

Eu compreendo porque as pessoas escondem o suicídio. Algumas religiões não vão enterrar seus mortos se a família é honesta sobre a causa da morte. Frequentemente cláusulas de seguros de vida trazem dispensas no caso de suicídio. A vergonha também tem um papel importante. Os padrões sociais devem ser protegidos.

É possível, no entanto, enfrentar essa aporia pelos lampejos sutis dessa vontade derradeira nas palavras e vidas daqueles que optaram por essa solução drástica. Assim, os encontros das notas de despedida das duas figuras que iniciam esse capítulo, com duas biografias sobre eles, possibilitarão a construção de pequenas pontes nesses abismos que se espraiaram entre suas vidas, suas ações, seus afetos... e suas mortes. Deste encontro, irá nascer uma teia, que alinhava o estudo exploratório das vidas – e mortes – das personagens (MATTAR, 2001), com a análise comparativa com suas biografias, buscando pontuais semelhanças e diferenças (ANDRADE, 1999). Para nortear o corpus de comparação, o trabalho estabelece o Jornalismo Literário como ferramenta de libertação da voz do escritor e acolhimento de outras formas de linguagem dentro do discurso jornalístico (SIMS, 1995; LIMA, 2009) para, dentro das narrativas biográficas sobre estas vidas, encontrar essas vozes que se foram sem explicação. Essa dissonância, entre as vozes dos mortos e dos vivos, em Getúlio e Virginia não é, no entanto, algo novo, nem tampouco uma exclusividade de um campo exclusivo chamado “Jornalismo Literário”. Muito antes de abraçar ferrenhamente o título, deve-se lembrar que este é apenas uma das faces do Jornalismo, e como tal, compõe a grande galeria de portas que sua pesquisa possibilita. Afinal, muito antes de Lira Neto escrever a biografia do suicida Getúlio, o grande Alberto Dines (1932-2018) já escrevera Morte no Paraíso: a Tragédia de Stefan Zweig (1981), jogando luz, com sua voz única, sob a voz colossal de uma das mais fascinantes personalidades do século XX, que também decidiu dar cabo da própria vida – e 1 Disponível em: https://www.psychologytoday.com/intl/blog/struck-living/201005/dont-omit-the-obit. Acesso em: 03 ago. 2018.

161 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS que foi, também, um exímio biógrafo. Mesmo não sendo um crítico do chamado Jornalismo Literário, Dines não o compreendia como um campo separado da área, mas como uma de suas melhores formas, a que ele também chamava de “beletrística” (PEREIRA, 2008), as belas letras do jornalismo. Dito isto, parte-se agora para uma imersão no campo fértil de visões e possibilidades do Jornalismo Literário, presente nas biografias que possibilitarão – introdutoriamente – o encontro com essas emoções tão avassaladoras que, escondidas na escuridão inefável do irracional, levam alguém a botar fim à própria vida.

Os portões das biografias

A metodologia desta investigação se ampara em dois polos. No primeiro, percebe-se a grandeza do sentimento doloroso, grande demais para qualquer registro científico oficial. No outro oposto, invoca-se o Jornalismo Literário, como forma de registro distinta, que carrega em si um amálgama rico entre o factual e o ficcional, abarcando níveis do real e o irreal, do criativo e do não ficcional, do certo e do errado (CASTRO, 2010; CORSI, 2017; MYERS, 2012). É entre esses extremos, no meio do caminho, que se encontra o caminho para o centro, onde reside a possibilidade de compreender o inexprimível a partir dos lampejos da sua própria invisibilidade. Tentativas similares foram feitas ao analisar a incapacidade de se descrever a dor física de Frida Kahlo (1907-1954), a partir de quatro biografias romanceadas da pintora mexicana (CRUZEIRO, 2017) e a própria narrativa íntima do diário como fortalecimento das narrativas biográficas (CRUZEIRO, 2016). A questão da narrativa se apresenta sempre como fio condutor dessas pesquisas, por se apresentar como a zona interseccional entre o jornalismo dos manuais strictu sensu, e suas várias faces literárias e autorais (CALADO; ROCHA, 2017). Neste trabalho, em especial, busca-se, dentro da narrativa biográfica, uma das formas da amplidão da vida do outro: o biografema (BARTZ, 2014). Retirado da teoria do literato francês Roland Barthes (1915-1980), o biografema é o ponto de partida para compreender que escrever sobre uma vida é selecionar. Ao decidir escrever a história de alguém, um biógrafo não possui toda a vida que passou. Mesmo de posse do mais rico acervo de cartas, diários, gravações, filmagens e testemunhos, sempre haverá pontas soltas e lacunas. Philippe Artières, teórico francês do arquivamento do eu, nos lembra que não há registro exaustivo, pois “não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos” (ARTIÈRES, 1998, p. 11). Portanto, toda biografia é um apanhado de traços selecionados – afetiva e cuidadosamente – para a construção de um mosaico de uma vida. E, no caso daqueles que

162 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS decidiram peremptoriamente pelo suicídio, o biografema torna-se uma pequena relíquia, o resgate de uma vida inteira que foi, e que corre o risco de desaparecer sob o manto áspero do tabu. Assim, o biografema apresenta-se como um traço, um detalhe, um rastro que se escolhe – obrigatório e voluntariamente – no tatear de uma vida que já se foi. É a partir dos biografemas que nasce a biografia, habilidosamente tecida pelas mãos do seu autor como uma teia, com lacunas desiguais, que abrem espaço para o movimento violento de criação e recriação de mundos da escrita (BARTZ, 2014). A singularidade do uso do biografema está, especificamente, na sua ligação com a vida. Mesmo que ele sempre conduza uma narrativa através de um caminho selecionado pelo autor, o biografema não é absoluto, e sequer é o mesmo para o biógrafo que é para o biografado – dado que para este ele não existe. O que para o autor é um fato selecionado, que gera lacunas a serem preenchidas pela escrita, para o outro é uma peça imperceptível de uma vida inteira que foi percorrida e vivida sem a menor opção. Assim, a biografia, tal como a entende Bartz (2014) e Artières (1998), coloca o autor frente a uma questão ética2: a vida não é a sua. Frente a um colosso de uma vida que sequer conheceram, biógrafos e biógrafas se aventuram a recontar, renarrar, o que aconteceu, mas não viram. Mesmo no caso de exceções, como a argentina Raquel Tibol e o britânico Quentin Bell, que conviveram com seus respectivos biografados – Frida Kahlo e Virginia Woolf – não há garantia – nem epistemológica, nem narrativa – de que aquela vida contada se desenrola da maneira exata como ocorreu, e vice-versa. Aplicada à investigação das notas de despedida, então, essa tessitura biografemática dá abertura a uma multiplicidade de sentidos que vem da narrativa do autor (a), através de uma leitura de uma carta (b) escrita por outro sob o peso do impulso suicida (c) – algo como: “Lira Neto conta (a) que Getúlio escreveu (b) depois de longa dificuldade (c)”, ou “Peter Dally relata (a) que Virginia despediu-se da irmã (b) após tanto sofrer (c)”. Este exemplo apresenta ainda alguns problemas que dizem respeito à efetividade da empreitada biográfica. Nem Dally (1999) nem Lira Neto (2013) possuem dados concretos sobre Virginia e Getúlio além de registros escritos, outras biografias, gravações e, claro, as cartas de suicídio. Frente a uma limitação de fontes, em que cada uma já apresenta um número imenso de biografemas e

2 A questão ética que aqui se apresenta não tem tanto um tom moral, mas uma nuance epistemológi- ca, como a que cabe ao filósofo, e que o austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) coloca na premis- sa 7 do seu Tractatus Lógico-Filosófico: “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”. Ao contrário do cientista das ciências duras ou exatas, que não precisa se engajar diretamente no seu trabalho de apresentar os fatos, dados de maneira objetiva, o cientista da complexidade – para trazer a noção de Morin à discussão – seja o filósofo, o antropólogo, ou o escritor, envolve-se direta e demoradamente na maturação de suas ideias. Antes do período de confecção desses fatos em sua subjetividade, é inútil pronunciar-se. É importante evitar o “fascínio linguístico da exatidão” (MORENO, 2000, p. 71).

163 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS maior ainda de lacunas, deve-se abrir caminho para discussões sobre as formas de construir narrativas. E, no que tange especificamente sobre o ato de construir narrativas – e não somente narrar –, deve-se lembrar que ele está intimamente ligado ao espírito arquivístico do Ocidente, conjurado pela escrita alfabética e materializado em uma série de objetos como o livro de contabilidade, o relógio, o calendário e, por extensão, o livro3. Tal desejo de registro contumaz floresceu no desejo pela biografia definitiva, aquela que, afastada do seu objeto (como preza a ciência), esgota os detalhes, dos mais triviais, como o nascimento e a carreira, aos mais sórdidos, como a sexualidade e o suicídio, esgotando até mesmo os biografemas. A biografia romanceada, no entanto, está arvorada na multiplicidade combinatória dos biografemas, e na infinitude de estilos e vozes oferecida pelo Jornalismo Literário, não busca ser definitiva. Ela não deve ser vista como um ponto de partida para uma narrativa linear e uma voz única, mas como um grande pátio onde se encontram os corredores das várias narrativas de uma vida. E, no caso específico de Getúlio Vargas e Virginia Woolf, um pátio onde terminam as obscuras galerias por onde correram tantas perturbações, quase invisíveis, e que os levaram à decisão última do suicídio.

Os corredores do fim da vida

Cabe investigar agora que tipo de biografema se selecionará nessa investigação. Frente a uma miríade de eventos reais definitivos, tudo pode ser recontado pelo biografema. E é curioso que, ainda que possam se selecionar inúmeros, há sempre aqueles que dificilmente podem deixar de ser selecionados, que geralmente foram divisores, definidores ou finalizadores de algo. A pintora Frida Kahlo, por exemplo, teve a vida completamente transformada pelo acidente de ônibus que sofreu aos 18 anos, fato que está sempre nas suas biografias. A que se atribui a recorrente escolha desse biografema, e não dos seus casos conjugais ou de sua primeira exposição solo? A explicação está no fato de que a jovem pintora quase morreu, tendo sido submetida a um longuíssimo e doloroso período de convalescência – muitas vezes visto como início de sua pintura – que de certa forma estendeu-se por toda sua vida com uns poucos momentos de paz e ausência de dor. Mais do que o caráter novidadesco do acidente que quase matou Frida, a presença do acidente nas suas biografias é explicada por uma vontade, ainda que confusa, de compreender aquela dor. Conta-se que o namorado de Frida, Alejandro, descreveu os gritos que a menina deu ao ter arrancado um corrimão que lhe havia atravessado o abdome, como “mais altos do que as sirenes das ambulâncias que chegavam” (MORRISON, 2003, p. 8).

3 Para uma discussão mais aprofundada da genealogia material do registro, principalmente íntimo, cf. CRUZEIRO, 2018, capítulo 1.

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Essas várias camadas de narrativa conduzem de um sendeiro luminoso para um insondável claustro onde não se divisa mais nada, nem mesmo a exatidão da língua, eclipsada pelo grito ensurdecedor. Scarry (1987, p. 4), ao investigar a dor física, diz que esta “garante uma incompartilhabilidade [unsharability] por meio de uma resistência à língua”. Contudo, a dor não apenas resiste ao vernáculo, mas o destrói. Não há idioma capaz de suportar a força de uma dor de um corte profundo ou, como será visto adiante, de um desespero infinito. A teórica estadunidense prossegue, dizendo que a dor resiste à linguagem porque ela não possui um conteúdo referencial. A consciência humana, diz a autora, se baseia na união entre um estado interior de percepção e um objeto no mundo exterior. Assim, os indivíduos não apenas “têm sentimentos”, mas “têm sentimentos por algo ou por alguém” (SCARRY, 1987, p. 5). O amor, o medo, e mesmo a dúvida, não existem por si na consciência, mas são o amor por a ou o medo de b. E mesmo as sensações somáticas, como fome e sede, não existem sem a conjunção com um objeto externo, pois sente-se fome de p ou sede de q. É através dessas relações referenciais que os humanos são capazes de mover-se para além de seus próprios limites corporais, alcançando o mundo externo e, assim, tornando-o compartilhável [sharable]. Com a dor, esse processo inexiste, pois não há conexão alguma entre o estado de consciência interno de sentir dor e um objeto externo que a causa ou motiva. Não há conteúdo referencial objetivo na dor, pois não há dor de ou por ou sobre ou com ou para algo. Há apenas dor. O médico húngaro Victor Cornelius Medvei (1906-2000), conforme cita Scarry (1987), percebeu na expressão da dor física por seus pacientes a existência de um mecanismo de “como se”. Segundo o autor, no livro Os Efeitos Mentais e Físicos da Dor (1948), há duas – e apenas duas – metáforas que pacientes com dor utilizam: a primeira especifica um agente externo causador da dor, na forma de uma arma (“Dói como se um martelo estivesse esmigalhando minha espinha!”), e a segunda especifica um dano corporal que acompanha a dor (“Eu sinto como se meu braço estivesse quebrado em cada articulação e os pedacinhos pontiagudos estivessem rasgando a minha pele...”). Essa premência ativa e contumaz demonstra a limitação linguística que a sua sensação carrega (SCARRY, 1987, p. 15-16). Contudo, como relacionar essa limitação da dor com o encerramento voluntário e premeditado de uma vida? Como compreender e, em seguida, preencher o espaço vazio deixado pela decisão secreta – e não registrada – e deliberada – portanto, racional – de pôr fim à própria vida? Que espécie de biografema ajuda a divisar o ato do suicídio? E como a carta de despedida pode auxiliar nesse encontro entre o silêncio da morte e a voz da ficção?

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Para responder a essa pergunta, deve-se ir além das discussões médicas que Scarry (1987) fornece, pois não há uma causa física que, sozinha, possa esclarecer o mecanismo do suicídio. O sociólogo alemão Émile Durkheim (1858-1917), precursor na investigação do tema no Ocidente, define primariamente o suicídio como “toda morte que resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo, realizado pela própria vítima” (DURKHEIM, 2005, p. xl). Mais adiante o pensador, buscando criar uma fórmula definitiva na qual enquadra o evento singular do autoextermínio, conclui que “no momento da ação a vítima tem consciência do resultado definitivo de sua conduta, independente da razão que o levou a agir dessa forma” (DURKHEIM, 2005, p. xlii). O suicídio aparece, portanto, como uma decisão consciente de interromper a própria vida. Sem aviso, sem recuperação e, muitas vezes, sem justificativa. Para compreender uma ação ao mesmo tempo tão singular e universal, tão subterrânea e decisiva, é possível colocá-lo sob a ótica de um acontecimento. Gómez- Esteban (2016, p. 134), em uma revisão sobre o tema, define acontecimento como “aquilo que recai intempestivamente no decorrer da vida do indivíduo, cedo ou tarde transformando radicalmente sua experiência e seu ser-no-mundo”. Essa definição aproxima-se muito do conceito alemão da vivência [Erlebnis], resgatado da tradição romântica pelo filósofo alemão Hans-Georg Gadamer e trazido para o campo dos estudos biográficos pela argentina Leonor Arfuch. A vivência é a experiência de um momento que se destaca do todo, adquirindo uma totalidade de sentido que não apenas se completa, como se volta para além de si própria – adquirindo assim um caráter fortemente estético (CRUZEIRO, 2018). Dela, pode-se extrair três significados principais, a saber:

1) algo efetivamente vivido por si, sem o intermédio de nenhuma construção exterior; 2) algo de tal forma significativo e intenso, que modifica o contexto geral da vida; e 3) algo cujo conteúdo édetal forma transformador, que não pode ser apreendido racionalmente, mas esteticamente apenas (CRUZEIRO, 2018, p. 28).

De fato, acontecimento e vivência se aproximam, compartilhando uma singularidade, uma carência de nexos causais lógicos, uma irrupção inesperada e imprevista e um caráter contingente e descontínuo. Sua análise exige, portanto, procedimentos metodológicos distintos, que possibilitem recuperá-lo, tornando-o inteligível e dando voz ao indizível que ele carrega – em uma palavra: narrando (GÓMEZ-ESTEBAN, 2016). De maneira concisa, o pesquisador investiga o acontecimento através das tradições de análise da relação entre indivíduo e sociedade, já que ele envolve o ser-no-mundo de cada indivíduo, sendo compreendido como algo que necessita, portanto, de uma narração. O autor prossegue debruçando-se sobre as principais tradições metodológicas da socialização, para concluir que

166 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS essas categorias se modificaram, partindo de um caráter vertical, individual e micro, como pregava o estadunidense Charles Wright-Mills (1916-1962), para uma natureza horizontal, integradora e plural, como implica a sociologia fenomenológica de Alfred Schütz (1899-1959):

A ideia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino localizando-se em sua época. Ele só pode conhecer suas próprias possibilidades na vida se conhece todos os indivíduos que se encontram nas mesmas circunstâncias. (WRIGHT- MILLS apud GÓMEZ-ESTEBAN, 2016, p. 135).

Ao viver no mundo, vivemos com outros e para outros, orientando nossas vidas em direção a eles. Ao vivenciarmos com os outros, como contemporâneos e congêneres, como antecessores e sucessores, ao unirmos com eles na atividade e no trabalho comum, influenciando eles e recebendo sua influência, ao fazer todas essas coisas, compreendemos a conduta dos outros e supomos que eles compreendem a nossa. (SCHÜTZ apud GÓMEZ-ESTEBAN, 2016, p. 137).

No entanto, ainda que a noção de acontecimento envolva uma noção subjetivista, como busca Wright-Mills, ou constitua-se a partir da alteridade, como propõe Schütz (e como superlativa Deleuze), é importante notar que o acontecimento prescinde, ou melhor, exige, um atributo de socialização. O sujeito, aquele apto a experimentar o acontecimento/a vivência, só o faz quando se identifica como tal no mundo (como se engaja no mundo, como prefere Maurice Merleau-Ponty4), na presença de seus pares. Na ausência do outro, a sociabilidade deixa de existir e, por conseguinte, o sujeito torna-se incapaz de reconhecer experiências modificadoras como o acontecimento. Assim, a socialização deve ser compreendida como os galos que tecem a manhã no poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999)5. Passando de um para outro, cria-se uma teia de socialização em que se projetam os acontecimentos que atingem cada um – pois ainda que invisíveis, não são imperceptíveis. Como essa noção de acontecimento, no entanto, se liga ao ato suicida? Ora, o suicídio é uma própria forma de negação do acontecimento, pois exclui

4 O fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) traz uma importante noção de enga- jamento no mundo que envolve a percepção do indivíduo como sujeito e como objeto, num circuito de existência que serve muito bem à discussão da dor, que o autor invoca na discussão sobre o membro fantasma. (Cf. MERLEAY-PONTY, 2014, p. 121-131). 5 “1. Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos./De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro; de um outro galo/que apanhe o grito de um galo antes/e o lance a outro; e de outros galos/que com muitos outros galos se cruzem/os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/se vá tecendo, entre todos os galos./2. E se encorpando em tela, entre todos,/se erguendo tenda, onde entrem todos,/se entretendendo para todos, no toldo/(a ma- nhã) que plana livre de armação./A manhã, toldo de um tecido tão aéreo/que, tecido, se eleva por si: luz balão.” (MELO NETO, 1973, p. 15-16).

167 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS o próprio sujeito da equação do outro que o percebe. Ao se matar, uma pessoa se exclui – repentina e violentamente – da tessitura da socialização, deixando uma lacuna por onde passariam afetos e vivências de outros (como acontece com uma rede neural). Sem uma justificativa racional – nos moldes do “fascínio pela exatidão” – o suicida nega, temporariamente, a possibilidade do acontecimento, da vivência para o outro, pois surpreende o outro com a negação da própria subjetividade: a característica básica para enfrentar e compreender tais eventos. Feita uma breve compreensão desse ato, de tantos ângulos, sombrio, volta-se à pergunta de como construir, registrar e compreender a narrativa do fim drástico da própria vida? Dado que a biografia é apenas um eco colorido do som de outrem, é preciso voltar-se àqueles que já se foram para responder essa pergunta.

Tiros e pedras

No dia 24 de agosto de 1954, por volta das 8h30 da manhã, ouviu-se no Palácio do Catete, no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, um estampido surdo. Aqueles que imediatamente entraram correndo no quarto de onde veio o barulho, após disparar pelas escadas do suntuoso palacete, encontraram o então chefe da nação, Getúlio Vargas, morto:

[...] deitado, com meio corpo para fora da cama. No pijama listrado, em um buraco chamuscado de pólvora um pouco abaixo e à direita do monograma GV, bem à altura do coração, borbulhava uma mancha vermelha de sangue. O revólver Colt calibre 32, com cabo de madrepérola, estava caído próximo à sua mão direita.

Getúlio ainda lançou um olhar indefinido pelo quarto. Era como se nos segundos que lhe restavam de vida estivesse procurando, entre os que o rodeavam, identificar a presença de alguém.

Os olhos, depois de um derradeiro vaguear, permaneceram imóveis, as órbitas fixas em Alzira.

“Joguei-me sobre ele, numa última esperança”, a filha escreveu, anos depois. “Apenas um leve sorriso me deu a impressão de que ele me havia reconhecido”. (NETO, 2014, p. 344).

Quatorze anos antes, em 1941, enquanto Vargas ainda era presidente – ou melhor, ditador – a mais de nove mil quilômetros dali, na pequena cidade de Lewes, no interior do Reino Unido, o editor e político Leonard Woolf, então com 60 anos, achou sua esposa, Virginia, aparentemente calma e serena na manhã de 28 de março, pouco antes de ela sair:

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[...] e qualquer um que encontrasse Virginia no seu caminho até a margem do rio [Ouse] não notaria nada fora do comum. Quando chegou no rio, ela encheu os bolsos com pedras, deixou sua bengala no chão, e entrou nas águas geladas.

Quando ela não voltou para o almoço, Leonard correu pelos campos até o rio e encontrou sua bengala na margem. Após uma busca infrutífera, ele chamou a polícia. O corpo foi encontrado três semanas depois por crianças, perto de onde ela se afogou.

Ela foi cremada em Brighton, em 21 de abril, e Leonard enterrou suas cinzas aos pés de um dos dois grandes olmos entrelaçados, na vila de Rodmell, que os Woolfs chamaram de Leonard e Virginia. (DALLY, 1999, p. 132).

Essas duas breves descrições coroam e encerram duas biografias: Getúlio (1945-1954) – da volta pela consagração popular ao suicídio, do jornalista/ escritor João Lira Neto, e O Casamento do Céu com o Inferno – Depressão Ciclotímica6 e a Vida de Virginia Woolf, do psiquiatra/escritor Peter Dally. Ambas trazem curiosos subtítulos longos, e compartilham entre si algumas valiosas contribuições para entender a biografia daquele que acaba com a própria vida, seja com tiros ou pedras. Os dois trechos, curtos, praticamente encerram as obras. Lira Neto (2014) ainda dedica sete páginas para apresentar, na íntegra, a carta de suicídio do presidente e dizer o que aconteceu com cada um dos principais personagens da tragédia varguiana, à maneira de um epílogo. Já Dally (1999) oferece três parágrafos contando o destino do viúvo Leonard Woolf, e oferece, também, numa espécie de epílogo-educativo, a relação entre a depressão, a insanidade e a criatividade. É curioso pensar, de antemão, por que as biografias terminam nesse ponto. Ora, sendo construções narrativas de vidas, não há como e tampouco por que continuar. A fortuna crítica ou repercussão de obras ou feitos já não é mais biografia, mas análise. Sem o centro gravitacional daquele universo, todos os objetos que lhe orbitavam ficam à deriva. Importante notar também, como as descrições são totalmente objetivas, sem a menor tentativa de colocar uma recriação de um pensamento nela. E longe de classificar esse artifício como ferramenta de biografias mais poéticas, como a biografia de Frida Kahlo escrita por Jamis (2008), são vários os momentos em que Lira Neto (2014) coloca falas em seus personagens, retiradas de documentos como cartas ou transmissões de rádio, garantindo ao seu reconstruído Brasil dos anos 40 uma inegável fidelidade e veracidade, facilmente atestada com uma visita a um arquivo ou acervo oficial.

6 O subtítulo original utiliza o termo Manic Depression, outro termo para o Transtorno Afetivo Bipolar (CID-10 F31). No entanto, o próprio Dally, psiquiatra por formação, identifica as variações de humor da escritora como ciclotimia (CID-10 F34.0), teoricamente excluído do grupo dos transtornos bipolares. Essa diferenciação é, no entanto, meramente técnica, buscando classificar com exatidão uma variação singular de espírito, de caráter biológico e emocional, que, como consequência, leva indivíduos ao suicí- dio. Dally, compreendendo bem isso, colocou Manic Depression no título de forma a chamar a atenção para a condição e suas consequências.

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No entanto, mais do que a ausência de recursos factuais para transpor os seus personagens, a ausência de uma subjetividade aparente nos relatos do suicídio existe pelo completo mistério que cerca esse momento. O suicídio é compreendido aqui como a decisão racional – e, portanto, subjetiva – de anulação do próprio sujeito. É nele que se encontra o ato máximo da vontade com o abandono completo da racionalidade. Deve-se lembrar, ainda, que, fora do âmbito estritamente racional, na esfera religiosa, a decisão de tirar a própria vida também é tabu, precisamente porque vai contra a deliberação máxima do Divino. Diz o Salmo 13:15 que “Todo o tempo da minha vida está nas Tuas mãos” e, portanto, a decisão de tirar a própria vida antes do tempo determinado por Deus – aquele que dá a vida (Jó 1:21) – é uma afronta. Nos sete casos que a Bíblia faz referência ao suicídio, cinco eram expressamente homens vis, sendo o mais famoso deles Judas, o traidor de Cristo (Mateus 27:5). Assim, seja no campo sociológico ou religioso, o suicídio se mostra como um ataque de uma vontade extrema – incompreensível – de abrir mão do que é tido como norma – a subjetividade, o Divino. O encontro destes dois opostos, como luz e sombra, céu e inferno, vida e morte, que convivem no exato mesmo local ao mesmo tempo, cria um turbilhão de onde não saem nomes precisos ou certezas conceituais, mas persiste um afã de narrar, para compreender e amenizar a angústia que emerge de tamanho mal:

O mal não é nenhum conceito. É mais como um nome para o ameaçador, algo que questiona a consciência livre e que ela pode conceituar. Questiona a natureza, ali onde esta se fecha à exigência de sentido, no caos, no acaso, na entropia, no devorar e ser devorado, no vazio exterior, no espaço cósmico, assim como na identidade, no turbilhão da existência. E, ali, a consciência pode eleger a crueldade, a destruição, por consideração de si mesma. Os fundamentos para o mal são o abismo que se abre no homem. (SAFRANSKI, 2010, p. 14).

O mal que apresenta o filósofo alemão Rüdiger Safranski é, ainda, bastante similar ao sublime que apresenta o também alemão Immanuel Kant, o sentimento de inibição momentânea que surge da contemplação de algo grande demais (como uma das grandes pirâmides do Egito) ou poderoso demais (como uma tempestade no oceano). O Sublime paralisa a Razão, a Subjugadora de Mundos. Frente a uma pirâmide, a mente não consegue medir sua altura com a facilidade com a qual faz com uma palmeira ou uma pessoa. Não há um referencial disponível. Da mesma forma, não há um referencial disponível para a dor, seja física ou, tampouco, emocional. Assim, a dor do viver, avassaladora como o mais doloroso e implacável câncer, sublima a razão, e abre caminho para a antinomia que é suicídio. E, deve- se lembrar que essa antítese entre vida e morte, razão e insanidade, não apenas

170 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS termina com uma vida, mas cria um rasgo na teia vivencial dos sujeitos, abrindo uma lacuna que, apesar de ser reparada com o tempo, cria – ao seu modo – uma paralisação da razão, agora coletiva. O suicídio é, também, sublime7. É ao auxílio desta aporia que surge novamente Gómez-Esteban (2016, p. 140), que ao tentar resgatar o acontecimento “em uma perspectiva geopolítica e cultural concreta”, para compreender os modos de existência latino-americanos, sugere o uso de duas estratégias biográficas: a epifania e a ficcionalização da biografia. Interessa ao suicídio a epifania, que ele resgata da tradição literária de James Joyce (1882-1941) e Ernest Hemingway (1899-1961) – ele mesmo um suicida, assim como seu próprio pai8. Enquanto o irlandês Joyce considerava a epifania “uma súbita manifestação espir itual, quer pela vulgaridade da língua e do gesto, ou por um momento memorável da mente” (VALVERDE, 1982 apud GÓMEZ-ESTEBAN, 2016, p. 141) para descrever os momentos mais delicados e fugazes, Hemingway buscava-a para descrever não apenas a ação que um personagem realizava, mas “a emoção produzida por essa ação, um ‘evento no instante em que acontece’” (BOTERO, 1992, p. 222 apud GÓMEZ- ESTEBAN, 2016, p. 141). A epifania é, portanto, uma maneira de traduzir, na biografia, a vivência. Trazendo consigo a carga etimológica do grego, das revelações divinas aos mortais, a epifania é o fato, o acontecimento, o biografema que traz o elemento fantástico, de desvelamento do incomensurável, do inefável, para a frágil mente humana. Voltando-se, por fim, às últimas palavras de Getúlio Vargas e Virginia Woolf, tem-se dois trechos marcantes que elencam, num único lampejo, não apenas a fragilidade de seus espíritos, mas também a solidez de seu desespero.

Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. (VARGAS apud LIRA NETO, 2013, p. 346).

Eu sinto que eu fui longe demais dessa vez para voltar. Estou certa agora que estou ficando louca de novo. É exatamente como foi da primeira vez, eu estou sempre ouvindo vozes, e estou certa que não vou superar isso dessa vez. (WOOLF apud DALLY, p. 131).

7 Deve-se lembrar da delicada tomada do suicídio pela geração romântica, que desde Os Sofrimentos do Jovem Werther, do alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), aos sonetos do brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852), carregam consigo um profundo pessimismo ultrasentimental, que vê na morte a solução para as desilusões e os pesos do mundo. O livro de Goethe, em especial, que narra as desventuras de um jovem aristocrata que se suicida por uma desilusão amorosa, gerou pela Europa um efeito de contágio apelidado de Efeito Werther. 8 A jornalista estadunidense Janet Flanner, cujo pai também se suicidou, reconta o suicídio de Hemin- gway como “o melodrama final da sua existência espetacular” (FLANNER, 2006, p. 18). Em seguida, ela define o suicídio, a partir de uma visão “mais racionalista e agnóstica” que a do escritor, “como um ato de busca de liberdade [...] possível e permissível de libertação de qualquer cativeiro humilhante, na Terra, que não pudesse mais ser tolerado com respeito próprio” (FLANNER, 2006, p. 19).

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A transcrição de uma carta de suicídio9, portanto, mais do que a própria cena ou a miríade de circunstâncias que construíram o ambiente em volta do suicídio10, é a epifania perfeita, o lampejo divino da imensidão do sentimento absurdo que levou aquela pessoa àquela decisão. E este lampejo é, ainda, duplo, pois não só se tem a revelação privilegiada do que foi redigido – a transcrição na íntegra, somada a um contexto factual anterior, que leva o leitor a sentir a pressão que levou à sua escrita – como também se revive, em certa medida, a sensação daquele que a leu pela primeira vez – também imerso naquele mesmo contexto particular, além de possivelmente próximo ao suicida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos [...] Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. (VARGAS apud LIRA NETO, 2013, p. 346).

Eu queria dizer que você me deu felicidade absoluta. Ninguém poderia ter feito mais do que você fez. Por favor acredite nisso. Mas eu sei que eu nunca vou superar isso, e eu estou desperdiçando sua vida [...] Você vai poder trabalhar, e você vai estar melhor sem mim. (WOOLF apud DALLY, 1999, p. 131).

Desta forma, a epifania nada mais é do que uma outra forma de identificar o afeto por trás do real, é um biografema que une o factual ao fantástico. Amparado pela riqueza factual da vida, a biografia possibilita espaços de sensibilidade igualmente ricos, eleitos pelo próprio autor, que em seguida os oferece ao leitor. E, em meio a esses salões recriados dos escombros de uma vida que já se foi, o autor tem a chance de compartilhar também sentimentos impossíveis, como a dor e o desespero. A carta de suicídio não é, finalmente, uma resposta a uma questão inconcebível, mas um chamado a um afeto incompreensível. É o brilho de uma joia escondida na escuridão mais densa.

Considerações finais

O biografema, então, que por si já é um vislumbre da vida que já se foi, torna-se, na medida em que é retirada da vida de um suicida, um lampejo 9 Por uma questão de economia de espaço, as cartas não serão disponibilizadas na íntegra aqui, mas são oferecidos links onde elas podem ser conferidas: Seguem as três notas de Virginia Woolf, para sua irmã, Vanessa (http://virginiawoolfblog.com/virginia-woolfs-suicide-note-to-vanessa-bell/), e duas para seu marido (http://virginiawoolfblog.com/virginia-woolfs-misquoted-suicide-note/ e http://virginiawoolf- blog. com/vir ginia-woolfs-last-day/), e a carta-testamento de Getúlio Vargas: https://pt.wikipedia.org/ wiki/Cart a-testamento_de_Get%C3%BAlio_Vargas. 10 Lira Neto leva quase mil páginas em seus três volumes da biografia de Getúlio, enquanto Peter Dally ocupa pouco mais de 100 com o histórico familiar e relacional de Virginia Woolf.

172 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS desse impulso tão inefável. Ao ser invocada como biografema, a carta de suicídio – a mais real e derradeira ligação do desespero do suicida com o mundo real – amplia-se para além do factual, revelando ao leitor – e ao autor – uma miríade de sentimentos até então invisíveis, não encontrados nas descrições de eventos anteriores ou mesmo da personalidade do biografado. A carta de suicídio é um biografema único, irrepetível e intenso, que traduz algo que nem mesmo os mais próximos conseguiram visualizar: o ímpeto de terminar com tudo. Assim, ao tentar preencher as lacunas da vida de alguém, com sua delicada escolha de fatos e vozes, estilos e direções, o biógrafo tenta reconstruir ao máximo um ambiente e um espírito, para passar ao leitor o máximo possível de afeto que aquela vida lhe proporcionou. No entanto, ao tentar preencher as lacunas de uma vida que se interrompeu, o biógrafo se depara com uma imensidão vazia, de onde parece não haver fatos nem vozes o suficiente para romper o silêncio. A partir da última e principal relíquia deste mundo secreto, da carta de despedida, o biógrafo abre à sua frente um abismo, de onde sobem os ecos de um sofrimento intenso, bem como as sombras de toda uma vida que não pode ser negada. É importante notar, ainda, que a riqueza ficcional em torno da biografia se torna uma vantagem e uma necessidade no caso do suicídio. Dado que a insondabilidade do autoextermínio, a reconstrução dos momentos e encontros, do cotidiano e dos personagens envolvidos, serve como cenário e anteparo para o choque incomensurável da epifania da carta de despedida. Em suma, ao se detalhar a vida de um suicida, garante-se que houve, por trás desse evento perturbador, uma vida com sentido, sonhos, tristezas, conquistas, percalços, amigos e inimigos. A carta de suicídio como recurso biográfico é, portanto, uma derradeira revelação de uma peça da qual já se sabe o fim, mas cuja abrangência surpreende mais do que o próprio enredo biografado. Torna-se um recurso para a discussão dessa dramaturgia tão complexa que é a subjetividade suicida, que deve ser melhor trabalhada, e urgentemente publicizada – não só no campo das narrativas, mas de toda a comunicação.

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176 Narrativas IIIe contextualizações Metodologia para identificação de processos transcriadores em narrativas jornalísticas

Maurício Guilherme Silva Jr.

Introdução

A proposta metodológica aqui desenvolvida, para análise ético-estrutural de narrativas jornalísticas, resulta de investigações teóricas e experiências práticas elaboradas e desenvolvidas ao longo de 22 anos. Em 1996, ainda como estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – e estagiário da então Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da instituição –, deparava-me com o (vasto) desafio da “tradução” discursiva requerida, à escrita jornalística, para abordagem de temáticas científicas. Em tal período, percebia-se a necessidade de problematização de parâmetros para organização de textos e textualidades1 jornalísticos, destinados a “leigos” – cidadãos com pouco conhecimento acerca de feitos, produtos e métodos científicos em certas áreas do saber –, capazes, ao mesmo tempo, de preservar rigores técnicos e tornar legíveis inúmeros processos e problemáticas da ciência. Com o passar dos anos, a própria ideia de “tradução” – do discurso científico ao texto jornalístico – acabaria por se revelar limitadora, no que tange à natureza da abordagem almejada. Em primeiro lugar, tal método não se resume a mera atividade tradutória, devido ao fato de que, durante o processo de escrita jornalística, faz-se necessária uma série de procedimentos criativos e adaptativos – para explicitação, ao público leigo, de conteúdos científicos repletos de especificidade técnica. Os trâmites de criação, por sua vez, alimentam-se não apenas de similaridades entre as searas discursivas (ciência & jornalismo), mas, também, e principalmente, de contradições, assimetrias, incompatibilidades, assincronismos etc. Em função disso, o jornalismo (no caso, científico) recorre a inúmeras alternativas linguísticas e/ou estruturais para desenvolvimento de texto(s) condizente(s) ao conhecimento tácito do(s) público(s) almejado(s). O título da discussão proposta neste capítulo remete, justamente, à essência de tais mecanismos adaptativos da narrativa jornalística, aos quais,

1 O vocábulo texto, conforme aqui empregado – e em referência a Leal (2016, p. 206) –, não diz respeito ao “artefato semiótico (verbal, na maioria das vezes)” para simples exposição do conteúdo (jornalístico) abordado. Para muito além disso, trata-se de “composto necessariamente heterogêneo de signos, fortemente vinculado a uma dada situação comunicativa”, ou de um modo “de apreender os acontecimentos e os fenômenos sociais”. Em outras palavras: “a vida e o agir humanos podem ser vistos como ‘textos’”. Já o termo textualidade há de ser compreendido como aquilo que faz “de um texto um texto”

178 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS hoje, reservo a alcunha de “processos de transcriação”. Tal conceito – a ser melhor delineado nos tópicos subsequentes – agrega parte significativa das problematizações por mim realizadas nas pesquisas de mestrado e doutorado2 – no campo dos estudos literários –, e, principalmente, no pós-doc em Comunicação Social3. Trata-se, em essência, dos procedimentos da adaptação jornalística – o que inclui a práxis da composição de pautas, angulações, apurações, escritas, edições e diagramações – necessária à transcriação do “discurso do outro” (fontes as mais diversas) em “discurso outro”. A narrativa jornalística transcriada, porém, não se revela apenas em função de metodologias de estruturação linguística, semântica etc. Há que se levar em conta, também, uma série de imbricações éticas, relativas à capacidade de o “discurso outro” estimular debates e inquietações – e não apenas de apresentar versões parciais/totais acerca da vida, do tempo, dos seres. Em outros termos, para que se fale em processo de transcriação, a composição jornalística deve estimular mecanismos de (trans)leitura em seu(s) público(s)-alvo, assim como “instigar, esclarecer, entregar e promover as bases para interpretações (pessoais) acerca do mundo da vida” (SILVA JR., 2017, p. 261). A proposta metodológica apresentada no presente capítulo busca, justamente, facilitar a identificação do processo de transcriação em narrativas jornalísticas. Para tal, além do desenvolvimento teórico de elementos constitutivos do mecanismo de composição discursiva aqui investigado, recorreu-se à análise experimental de um objeto empírico, qual seja: a reportagem “O procedimento – Como Rebeca Mendes se tornou um símbolo da luta pela descriminalização do aborto”, publicada na edição 141 da revista piauí, de junho de 2018. Ao dissecar o referido trabalho jornalístico, de autoria de Mônica Manir, busca-se não apenas identificar a existência de mecanismos de transcriação na narrativa, como, também, problematizar os modos como o “discurso outro” – a reportagem em si – instiga o que aqui chamaremos de “emancipação intelectual do espectador”, mecanismo a ser problematizado, com mais ênfase, nos tópicos seguintes. Em síntese, pretende-se, neste capítulo, a partir de novo desenvolvimento dos princípios norteadores do que ora se delineia como “processo de transcriação” – calcado na noção de “transleitura”, terminologia proposta por José Paulo Paes (1995), em diálogo com os desafios do procedimento de tradução abordados por Paul Ricoeur (2011) e com as teorias do escritor Haroldo de Campos –, a construção de caminho metodológico de análise e/ou observação de mecanismos transcriadores em textos jornalísticos.

2 Ambas as pesquisas foram realizadas no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários (PosLit) da UFMG. 3 Realizado no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da UFMG.

179 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Abordagem metodológica Preâmbulo conceitual: transcriação

Ao observar, apurar, decodificar, editar e diagramar, os profissionais da informação buscam qualificar o “acontecimento”, por meio de estruturações técnicas e vetores ideológicos, além de recorrência a angulações sociopolíticas, econômicas, culturais etc. Tais processos culminam em ressignificação do discurso jornalístico, sob a égide de estratégias narrativas calcadas em construção de significados, contratos cognitivos (com “o outro”) e procedimentos de natureza objetiva e subjetiva (MOTTA, s/d)4. Construtor de narrativas, o jornalista (trans)criador há de transfigurar saberes e informações – recolhidos junto a fontes (diretas e/ou indiretas) diversas, como fruto de práticas múltiplas, a exemplo de entrevistas, coletivas de imprensa, documentações, processos imersivos e/ou de observação, dentre outros –, em “narrativas dialógicas”, substanciadas por linguagens, ações e/ ou formatos relacionados a experiências recorrentes ao cotidiano (profissional, pessoal, afetivo) daquele(s) a quem tais discursos se destinam (leitor, ouvinte, espectador, usuário etc.). Narrativas jornalísticas originadas de processos de transcriação, enfim, mostram-se capazes de “problematizar/decodificar/descrever o(s) movimento(s) do mundo” (SILVA JR., 2017, p. 255). Em função da alta complexidade das categorias envolvidas em tal natureza de discurso, revela-se amplo o arcabouço teórico para sua identificação e consequente investigação. Eis o motivo pelo qual os processos transcriativos, no jornalismo, dizem respeito, também, a conceitos e teorizações vinculados a vastos “ambientes” epistemológicos – do Jornalismo à Comunicação Social; dos estudos literários à Linguística; da Hermenêutica às teorias da tradução. Fruto de teorizações do crítico e escritor Haroldo de Campos (1929-2003), o termo “transcriação” nasce circundado por inquirições relativas à teoria literária da tradução5. Em torno do vocábulo, o autor desenvolve argumentação acerca dos princípios e das possibilidades da chamada “tradução criadora”, definição amparada em discussões semiológicas6. O que se revela seminal nas investigações de Campos é a análise do processo tradutório como algo esteticamente compromissado com a criação – termo que, somado ao prefixo trans, acaba por simbolizar a potencialidade

4 MOTTA, Luiz Gonzaga. A análise pragmática da narrativa jornalística. Disponível em http://www. portcom.intercom.org.br/pdfs/105768052842738740828590501726523142462.pdf. 5 O autor debruça-se sobre a temática em trabalhos como “Da tradução como criação e como crítica”; “Tradução: fantasia e fingimento”; “Texto literário e tradução”; “Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução” e “Tradução, ideologia e história”. 6 “Tradução e reconfiguração: o tradutor como transfingidor”; “Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora”; “Tradição, transcriação e transculturação: o ponto de vista do ex-cêntrico”; e “Tradução/Transcriação/Transculturação”.

180 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS inovadora do rico convívio entre “territórios” discursivos relacionados (porém, categoricamente distintos): o “original” e o “transcriado”. O autor destaca a dialética entre elementos macro e microestéticos. No que se refere à transcriação de textos literários, soluções dialéticas podem ultrapassar a construção de meras (e simplórias) “réplica[s] aproximativa[s]”. Afora as conjecturas de Campos, importante ressaltar, como fundamentação teórica imprescindível à estruturação da proposta metodológica aqui explicitada, as ideações de Jacques Rancière (elaboração do princípio de “espectador emancipado”, José Paulo Paes (“transleitura”), e Paul Ricoeur (complexidades da tradução”).

Conversações críticas com “o outro”

Ao abordar questões ligadas ao teatro, Rancière (2012) problematiza o olhar do espectador como ação antagônica ao conhecer e ao agir – visto que possa permanecer isento perante aparências, de modo a ignorar processos: “É preciso um teatro sem espectadores, em que os assistentes aprendam em vez de ser seduzidos por imagens, no qual eles se tornem participantes ativos em vez de serem voyeurs passivos” (RANCIÈRE, 2012, p. 9). Trata-se, na visão do autor, de espectadores aptos a inquirir o mundo que os cerca. Para tal, precisariam ser “arrastados” ao “círculo mágico da ação teatral” (RANCIÈRE, 2012, p. 11), como forma de buscar emancipação intelectual, único caminho para que passem a escolher, a problematizar e a interpretar relações, símbolos, gestos, modos, ambientes e silêncios. Em analogia à composição de narrativas jornalísticas dialógicas, para além do que o jornalista almeja transmitir, há que se investir em transcriações capazes de promover “interações complexas” entre texto e leitores/usuários/ouvintes/ telespectadores etc., afeitos a conversações e debates críticos7.

7 Importante ressaltar, neste ponto, o conceito de “tríplice mimese”, elaborado por Paul Ricoeur, no que diz respeito aos atos de “resistência e contestação” do leitor (e/ou usuário etc.) diante de algo a ser consumido e interpretado. Apesar de, neste capítulo, buscar-se percorrer tal “movimento” interpretativo sob outros aspectos teóricos – com base, principalmente, em Paes (1995) e Rancière (2012) –, há que se ressaltar certos pressupostos conceituais e éticos elencados por Ricoeur (2007, p. 159), a serem me- lhor desenvolvidos em trabalhos futuros, de modo a também aproximá-los da lógica metodológica aqui apresentada: “Em ‘architecture et narrativité’, Catalogue de La Mostra ‘Identitá e Differenze’, Triennale de Milan, 1994, eu havia tentado transpor para o plano arquitetural as categorias ligadas à tripla mime- sis expostas em Tempo e Narrativa (...): prefiguração, configuração, refiguração. Eu apontava no ato de habitar a prefiguração do ato arquitetural, na medida em que a necessidade de abrigo e de circulação desenha o espaço interior da moradia e os intervalos dados a percorrer. Por sua vez, o ato de construir se dá como o equivalente espacial da configuração narrativa por composição do enredo; da narrativa ao edifício, é a mesma intenção de coerência interna que anima a inteligência do narrador e do cons- trutor. Enfim, o habitar, resultante do construir, era tido pelo equivalente da ‘refiguração’ que, na ordem da narrativa, produz-se na leitura: o morador, como o leitor, acolhe o construir com suas expectativas e também suas resistências e suas contestações. Eu concluía o ensaio com um elogio da itinerância”.

181 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Tradução e transleitura

Conforme destaca Ricoeur (2011), o ofício da tradução deriva da possibilidade de aceitação de uma série de perdas. Na contramaré de certas tradições teóricas – cujos princípios calcam-se na idealização de modus operandi passíveis de produzir adaptações “idênticas” ao original –, o autor não se furta a admitir a existência de expressões intraduzíveis, tanto linguística quanto culturalmente. Importante destacar, pois, o papel – recreativo ou transcriador, na acepção de Campos (2015) – do que se pode chamar de “luto”, causado, justamente, por tais impossibilidades tradutórias. O pensador francês, portanto, desconsidera a possibilidade de “traduções perfeitas”, elaboradas a partir de racionalidades isentas de “imposições culturais e de limitações comunitárias” (RICOEUR, 2011, p. 28- 29). Na verdade, estaria na essência do exercício de adaptação tradutória a necessária articulação (“transcriadora”, diríamos nós) entre impossibilidades linguísticas e culturais. Ao abordar riquezas inatas à experimentação necessária ao ofício da tradução, Ricoeur (2011) constrói o conceito de “hospitalidade linguística”, por meio do qual destaca como é compensatório habitar a língua do outro “na acolhida de sua própria morada” (RICOEUR, 2011, p. 30). Em narrativas jornalísticas, a interpretação transcriativa de informações advindas de fontes as mais diversas (a “língua do outro”) requer mecanismos específicos de reordenação de sentidos, tanto linguísticos quanto culturais, sociais, econômicos, políticos etc. Faz parte do dia a dia de jornalistas a transcriação de “estrangeiridades” – concepções originais do acontecimento a ser transcriado – e, conforme já ressaltado em outros movimentos deste capítulo, o fomento de diálogos críticos e complexos com leitores/ouvintes/usuários. No que diz respeito à natureza de convívio com “aquele a quem se destina a narrativa jornalística”, faz-se necessário, neste momento, promover a aproximação entre conceitos de Campos, Rancière e Ricoeur e o neologismo transleitura, criado por Paes (1995). Tal termo busca sintetizar o caleidoscópico mecanismo interpretativo de textos (no caso, literários) por parte de leitores:

O prefixo trans- visa simplesmente, no caso, a acentuar que a leitura de uma obra literária é um ato de imersão e de distanciamento a um só tempo. Tal duplicidade do ato de leitura responde, simetricamente, à duplicidade do ato de criação literária” (PAES, 1995, p. 5).

“Transleitura”, portanto, trata da ideia de que os livros integram um complexo sistema, constituído por todas as obras literárias escritas ao longo do tempo, além de interpretações e/ou comentários críticos por elas suscitadas. Paes (1995, p. D4) fala de um “corredor de ecos, em que uma voz responde à outra e vai-se formando aquele coro de vozes isoladas de certo modo se articulando”.

182 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Quaisquer leituras, portanto, requerem, dos “transteitores”, sensibilidade para com as “instigações extratextuais” do texto. No que diz respeito às narrativas jornalísticas, o conceito de “transleitura” apresenta-se como vital à problematização dos mecanismos de transcriação do acontecimento em notícia. Afinal, os prosumidores8 de narrativas jornalísticas atuam como transleitores, ao acionar, no ato de transleitura, de modo consciente ou não, outros tantos e tantos símbolos, lembranças, experiências, significados etc.

“Discurso do outro” e “Discurso outro”

Em narrativas jornalísticas transcriadas, o “discurso do outro” (fontes diversas) é reconfigurado em “discurso outro”, de modo a estimular mecanismos de transleitura, e, “ao mesmo tempo, instigar, esclarecer, entregar e promover as bases para interpretações (pessoais) acerca do mundo da vida” (SILVA JR., 2017, p. 261). Em resumo, trata-se da invenção de novos e instigantes modos de diálogo – por meio, conforme ressaltado acima, da transcriação de um “discurso outro” (a narrativa jornalística transcriada) – com a sociedade.

O método

Em resumo, mecanismos de transfiguração do acontecimento em notícia nutrem-se da recriação de discursos, para que, então, seja possível expandir a(s) habilidade(s) de reflexão e autorreflexão do(s) público(s). Com base em tal máxima, a presente proposta metodológica, para identificação e análise de narrativas jornalísticas transcriadas, calca-se na presença de quatro princípios básicos, a serem identificados e dissecados, pelo pesquisador, em seus objetos empíricos (as narrativas jornalísticas):

A) Presença de descrições contextualizadas do fenômeno acontecimental (a realidade noticiável/reportável/interpretável), com recorrência ao uso de multitemporalidades discursivas (tempos factual, psicológico, histórico etc.) e à construção de cenários complexos (elaborados a partir de múltiplas vozes), no que diz respeito ao tratamento narrativo em torno de personagens, fatos, conceitos, ideias etc. Destaque-se que, neste tópico, a investigação busca avaliar, nas narrativas, questões de natureza formal e estrutural, e não ético- social (“território” a ser explicitado no item D, logo abaixo).

B) Diálogos (diretos e/ou indiretos) com o outro (leitor, espectador, ouvinte, usuário, prosumidor), de modo a tratá-lo como sujeito ativo, emancipado, e a

8 Referência a termo cunhado por Alvin Toffler, no livro A terceira onda, em teoria acerca dos novos consumidores de informação, que, agora, também atuam como produtores.

183 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS incitá-lo à interpretação de processos – “e não apenas ao consumo rasteiro de signos sem profundidade e contextualização social, cultural, política etc.” (SILVA JR., 2017, p. 261). Os diálogos podem se consolidar em “conversas” diretas com o público, ou, por exemplo, em questionamentos estimulados, na narrativa, pelo próprio jornalista.

C) Narratividade polissêmica, experimental e/ou esteticamente atraente/ inovadora, como resultado da superação de lógicas “fordistas” de produção jornalística – a exemplo do lead e da pirâmide invertida –, além do uso de recursos investigativos (jornalismo de dados, entrevistas em profundidade, mecanismos de imersão, chat bots etc.), e literários (metáforas, analogias, neologismos, dentre outros). Em tais narrativas, também devem se destacar uma série de problematizações em torno do “discurso do outro” (depoimentos, documentos etc.), que será aproximado, no “discurso outro”, de “experiências vividas” pelos (trans)leitores (público-alvo da iniciativa jornalística).

D) Preocupação ético-social da narrativa, no que diz respeito à ampliação das problematizações discursivas e/ou dos fenômenos acontecimentais apresentados – por meio, principalmente, do estímulo ao debate e à criticidade dos transleitores. Neste sentido, o pesquisador de narrativas jornalísticas transcriadas deve se atentar à capacidade de o jornalista (autor da narrativa) não apenas apresentar versões da(s) história(s), mas, principalmente, de (re) inventar, criativamente, modos de amplificação/alargamento do diálogo entre a narrativa transcriada e questões contemporâneas caras à sociedade. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio da explicitação e da sugestão de outros modos de convívio e/ou interpretação com/de questões abordadas pela narrativa: sites, links, livros, filmes, reportagens, dissertações, teses, produtos audiovisuais etc.

Aplicação da proposta metodológica em reportagem de piauí

Conforme revelado na introdução deste capítulo, pretende-se, neste tópico, revelar as potencialidades da proposta metodológica aqui delineada, para identificação do processo de transcriação em narrativas jornalísticas, por meio de objeto empírico determinado: a reportagem “O procedimento – Como Rebeca Mendes se tornou um símbolo da luta pela descriminalização do aborto”, publicada na edição 141 da revista piauí, de junho de 2018.

A revista

Idealizada pelo documentarista João Moreira Salles, a revista piauí passou a circular, mensalmente, no Brasil, em outubro de 2006. Elaborada pela Editora Alvinegra, e impressa e distribuída pela Editora Abril, a publicação pratica o

184 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS que muitos chamam de “jornalismo literário”: pautas experimentais, narrativas delongadas, descrições pormenorizadas e recursos linguísticos que ultrapassam a lógica “industrial” da maior parte das construções noticiosas factuais. Na visão de Moreira Salles, porém, “o que a piauí faz é contar bem uma história”9. Publicada em formato 26,5 cm X 34,8 cm, a revista é impressa em papel especial, de alta qualidade, da Companhia Suzano de Papel e Celulose, o mesmo usado em impressão de livros, e produzido em bobinas exclusivas para sua impressão.

Case “O procedimento”

A reportagem intitulada “O procedimento – Como Rebeca Mendes se tornou um símbolo da luta pela descriminalização do aborto” – a ser dissecada por meio da estratégia metodológica para identificação de narrativas jornalísticas transcriadas, conforme proposto no presente capítulo – foi escrita por Mônica Manir Miguel, jornalista graduada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), com mestrado e doutorado em Bioética, pelo Centro Universitário São Camilo. No jornal O Estado de S. Paulo, a profissional atuou como repórter especial e, ainda, como editora do caderno “Aliás”. Atualmente, como freelancer, escreve reportagens para BBC, piauí e Folha de S.Paulo. Publicada entre as páginas 34 e 39 da edição de junho de 2018 de piauí, a reportagem busca reconstituir a trajetória de Rebeca Mendes, figura simbólica na luta das mulheres brasileiras pela descriminalização do aborto. Em exatos 67 parágrafos, Mônica Manir almeja transportar o transleitor da revista ao “território” de experiências e acontecimentos significativos da vida da personagem retratada, que culminariam com a ida da estudante à Colômbia, com o objetivo de interromper uma terceira – e imprevista – gestação, fruto de relacionamento com o pai de seus filhos. Nos tópicos seguintes, a reportagem será analisada à luz dos quatro “movimentos” metodológicos propostos neste capítulo. Busca-se, em suma, investigar possíveis mecanismos de transcriação na narrativa jornalística (o “discurso outro”) de Mônica Manir, como, também, problematizar os modos como tal discurso estimula múltiplas interpretações por parte dos transleitores.

A tétrade da transcriação, passo a passo Descrições contextualizadas do fenômeno acontecimental

A reportagem de Mônica Manir inicia-se com detalhada descrição da participação da estudante Rebeca Mendes em evento anual que busca “discutir inovação e diversidade”. Já no início do texto, destaca-se a busca da jornalista, em seu “discurso outro”, por revelar detalhes, aparentemente marginais à lógica

9 TAVELA, Marcelo. “João Moreira Salles fala sobre revista piauí e evita o jornalismo literário”. Comunique-se, 2007.

185 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS central – qual seja: a luta da protagonista pela descriminalização do aborto –, mas bastante importantes para recomposição da cena primeva. Para além de explicações sobre a natureza do evento, percebe-se, na narrativa, o resultado do criterioso processo de apuração – da reconstituição de cenários à atenção aos detalhes:

Rebeca Mendes pegou a bolsa do chão e, risonha, subiu ao palco. Dentro de alguns minutos, iria compor uma das 302 mesas do Festival Path, em São Paulo. O evento anual – que, desde 2013, se propõe a discutir inovação e diversidade por meio de shows, palestras, filmes e exposições – ocorreu no mês passado, durante um fim de semana. Entre os trinta espaços do bairro de Pinheiros ocupados pelo festival, destacava-se o Instituto Tomie Ohtake, justamente onde aconteceria o debate vespertino de que Mendes iria participar. Alisando a barriga com oito meses de gestação, a mediadora Maíra Liguori, diretora da ONG feminista Think Olga, comunicou à plateia que chegara o momento de tirar “a capa de nebulosidade” que ainda encobre um dos temas mais caros às mulheres do país: o direito de manter ou não uma gravidez. Olhou carinhosamente para a jovem debatedora e afirmou: “Se um dia houver uma lei que descriminalize o aborto no Brasil, teremos que chamá-la de Lei Rebeca Mendes (MANIR, 2018, p. 34).

Ao longo de toda a reportagem, uma série de minúcias do fenômeno acontecimental – no caso, a vida de Rebeca e as nuances de sua luta pelo direito ao aborto – estrutura a narrativa, como forma de, ao mesmo tempo, “transportar” o transleitor aos “territórios” do mundo da vida e a searas de múltipla temporalidade. É possível, neste sentido, acompanhar pensamentos e fatos da vida da protagonista em diversos instantes de sua(s) trajetória(s), tanto pessoal quanto “imaginária e/ou metafísica” – termos que, aqui, dizem respeito a elucubrações (pensamentos, ideais, crenças etc.) particularíssimas da personagem central. Senão, vejamos:

Seis meses antes daquele fim de semana, na noite de 13 de novembro de 2017, Rebeca Mendes encarava o teste de gravidez sobre a pia do banheiro. Em poucos segundos, confirmaria se o atraso na menstruação era o que temia ser. “Mãe!”, chamou Felipe. Foi o tempo de responder não lembra o quê ao menino e lá estava a cruz no visor do exame. O teste se mostrara tão rápido quanto o Super-Homem, o Homem-Aranha e toda a constelação de heróis que povoa a porta da geladeira e as paredes da casa dela. Cruz azul. Positivo. Mendes engravidara pela terceira vez (MANIR, 2018, p. 36).

[...]

A “pior hora” já durava certo tempo. A mãe de Thomas, 9 anos, e Felipe, 7, fazia malabarismos para equilibrar o orçamento doméstico com duas

186 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

fontes de renda mensais: a pensão do ex-marido, pai dos meninos, que variava de 700 a 1 mil reais, e o salário de 1 200 reais, fruto de um trabalho provisório no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Só o aluguel da modesta casa em que a família vivia abocanhava 600 reais. Restavam, ainda, os gastos com alimentação, luz, água, roupas, transporte, remédios… Não bastasse, o emprego temporário findaria em três meses (MANIR, 2018, p. 36).

[...]

Confusa e aflita, a estudante recebeu de bom grado uma mensagem enviada por um colega de Junior. O texto mencionava a campanha Eu Vou Contar, que estimula mulheres a relatarem no Facebook suas experiências com o aborto. Lançado em setembro de 2017 pelo Think Olga e pela ONG Anis – Instituto de Bioética, o movimento toma o cuidado de só divulgar casos que aconteceram há mais de oito anos. “Se uma mulher interrompeu a gravidez em 2009, por exemplo, e as autoridades nunca a investigaram, não poderão condená-la agora, já que esse tipo de crime prescreve em oito anos”, explica a advogada Sinara Gumieri, da Anis (MANIR, 2018, p. 37).

Conforme se pode perceber, as descrições pretendem não apenas reconstituir os “passos” de Rebeca em nome de sua causa, mas, principalmente, contextualizar temporalidades e fatos imprescindíveis à teia de causas e efeitos da problemática em debate. Que o diga a abordagem dos trâmites da descriminalização do aborto na Colômbia, país para onde a protagonista parte em busca de solução a seus problemas.

Em 2006, a sentença C-355 despenalizou o aborto na Colômbia em três circunstâncias: quando a má-formação do feto inviabiliza sua vida fora do útero, quando a gravidez resulta de uma relação sexual não consentida e quando há perigo à saúde da mãe. A partir de então, a Justiça passou a aprovar outras sentenças sobre o assunto. Em 2007, permitiu que mulheres com deficiência mental ou física interrompam a gravidez, arvorando-se exclusivamente em sua própria vontade. No ano seguinte, estipulou que não existe limite de idade gestacional para o procedimento em situações previstas por lei. Assim, uma gestante com 28 ou trinta semanas de gravidez tem a prerrogativa de solicitar a retirada do filho. Em 2010, o país declarou o aborto um direito reprodutivo e, em 2016, determinou que a “objeção de consciência do médico” não pode impedir a intervenção. Caso um profissional se julgue impossibilitado de realizá- la por razões morais ou religiosas, precisa indicar à paciente um colega que o substitua (MANIR, 2018, p. 38).

Por fim, importante ressaltar, como aspecto fundamental ao processo de contextualização acontecimental, a permanente tensão entre universos (políticos, por que não?) de dimensão micro (Rebeca e seu universo íntimo) e macro (julgamentos, leis decisões governamentais etc.).

187 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

No fim de novembro, a estudante já amargava os primeiros enjoos. O café, de que gostava muito, não descia mais. Havia sido assim, com o Miojo, na gestação de Felipe. Mas agora ela se sentia pior: o estômago virado se associava ao choro convulsivo. [Narratividade micro] Embora esperançosas de que Rosa Weber aprovaria o procedimento, Mendes, a Anis e outras ONGs feministas se preocupavam com o calendário. A Justiça não caminha na mesma velocidade da divisão celular. Anais médicos indicam que abortos praticados nas primeiras semanas de gravidez são mais seguros. Esperar aumentaria os riscos. “Por isso, desde o início, tínhamos um plano B”, contou Debora Diniz (MANIR, 2018, p. 38). [Narratividade macro]

[...]

Depois da jovem, quatro brasileiras viajaram para Bogotá a fim de fazer aborto na Profamilia. A ONG também recebeu gestantes do Chile, onde a intervenção é permitida apenas em casos de estupro e anormalidade fetal. Mas boa parte das estrangeiras que recorreu à instituição nos últimos meses provinha da Venezuela. Elas atravessaram a fronteira na região de Cúcuta, fugindo do colapso econômico e da violência que imperam no país sob o governo de Nicolás Maduro. [Narratividade macro] Antes de se despedir, Rebeca Mendes passou num supermercado para comprar frios e biscoitos de polvilho doce. “Se não levar nada, os meninos brigam comigo.” Três semanas depois, avisou que a cachorra Tequila havia fugido e que a gata prenhe dera à luz seis filhotes. “Jurei que não ia adotar nenhum e acabei ficando com dois…”, contou, rindo (MANIR, 2018, p. 38). [Narratividade micro]

Nos breves trechos analisados neste primeiro tópico da problematização de narrativas jornalísticas transcriadas, buscou-se, tão somente, compor parte do cenário de descrições minuciosas – com proposta de interlocução entre territórios de narratividade micro e macro – e contextualizações (multitemporais) do fenômeno acontecimental. O “discurso outro” de Mônica Manir proporciona ao transleitor, neste sentido, a experiência de “viagem no tempo”, tanto no que tange ao histórico das políticas de proibição e liberalização do aborto (no Brasil, na Colômbia e em outros países) quanto das motivações (internas e externas; íntimas e sociais) das atitudes e dos pensamentos de Rebeca Mendes.

Diálogos críticos com o outro

Na narrativa de “O procedimento”, Mônica Manir não se dedica, de maneira especial, a “diálogos” explícitos com o transleitor. Em outros termos, a autora não recorre a debates diretos com seu público-alvo. Isso não quer dizer, porém, que a dialogicidade crítica esteja ausente do “discurso outro” elaborado pela jornalista. Afinal, a narrativa conta com uma série de “provocações” temáticas, capaz de estimular, no sujeito em processo de transleitura, outras tantas possibilidades de apreensão da realidade.

188 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Que o digam os exemplos a seguir, nos quais a repórter estimula novas transleituras do tema por meio do uso de analogias e/ou do destaque de frases de efeitos (proferidas, por vezes, pelas próprias fontes entrevistadas para a reportagem):

Alisando a barriga com oito meses de gestação, a mediadora Maíra Liguori, diretora da ONG feminista Think Olga, comunicou à plateia que chegara o momento de tirar “a capa de nebulosidade” que ainda encobre um dos temas mais caros às mulheres do país: o direito de manter ou não uma gravidez (MANIR, 2018, p. 34).

[...]

Não, ninguém pode dizer o que uma mulher deve fazer com o próprio corpo. Felipe, o caçula, estava com febre e dor de garganta. Será que o pai do menino lhe ministrara as gotas de ibuprofeno? (MANIR, 2018, p. 34).

[...]

Mais conhecido como Cytotec, um de seus nomes comerciais, o medicamento foi aprovado pelo governo dos Estados Unidos na década de 80 para tratar gastrite e úlceras estomacais. Por provocar contrações uterinas, também passou a ser usado em clínicas e hospitais com o objetivo de induzir o parto ou o aborto nos casos previstos em lei. No Brasil, não é possível achá-lo em farmácias. Pelo menos, não deveria ser. Desde 1998, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) limita a oferta de remédios com o princípio ativo do misoprostol a instituições de saúde credenciadas. Ocorre que o potencial abortivo da substância caiu nos ouvidos do povo, e o Cytotec, há tempos, é vendido clandestinamente no país (MANIR, 2018, p. 36).

[...]

“Procedimento” é uma palavra-chave não só na Justiça, mas nas entrevistas que a estudante passou a dar depois de se expor. “O termo ‘aborto’ choca as pessoas”, justificou Mendes, enquanto limpava com alvejante a mesa em que as crianças haviam acabado de comer pastel (MANIR, 2018, p. 37). [Grifos deste pesquisador]

Os trechos da narrativa em negrito revelam o interesse da jornalista em informar, contextualizar, e, ao mesmo tempo, estimular, no transleitor, o interesse por apreciações próprias. Tais provocações dialógicas servem de incitação à busca por novas fontes de informação acerca não apenas do leit motiv da reportagem, mas, também, a uma série de demandas, litígios, questionamentos e discussões marginais.

189 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Narratividade polissêmica

Em comparação com inúmeras outras narrativas presentes em diversas edições da revista piauí, o texto de Mônica Manir não se destaca pelo uso de recursos literários, com ênfase em ambientações metafóricas e/ou expressões hiperbólicas etc. Apesar disso, pode-se dizer que há recorrência de estratégias capazes de estimular a polissemia discursiva da narrativa. No exemplo a seguir, o processo de transcriação do fenômeno acontecimental em “discurso outro” está na analogia entre o universo ficcional dos heróis cultuados na infância e a natural apreensão de Rebeca Mendes diante da confirmação da imprevista gravidez.

Em poucos segundos, confirmaria se o atraso na menstruação era o que temia ser. “Mãe!”, chamou Felipe. Foi o tempo de responder não lembra o quê ao menino e lá estava a cruz no visor do exame. O teste se mostrara tão rápido quanto o Super-Homem, o Homem-Aranha e toda a constelação de heróis que povoa a porta da geladeira e as paredes da casa dela. Cruz azul. Positivo. Mendes engravidara pela terceira vez (MANIR, 2018, p. 34).

Preocupação ético-social

Para além da natureza ética da própria angulação de pauta da reportagem “O procedimento”, a narrativa de Mônica Manir amplia o debate em torno de problematizações sociais ao reconstituir, parágrafo a parágrafo, inúmeras temporalidades, histórias, embates, políticas e legislações acerca da descriminalização do aborto. Ao recorrer à trajetória de Rebeca Mendes, é possível não apenas trazer luz à luta da estudante, mas, principalmente, conforme descrito no quarto item do caminho metodológico aqui proposto, “(re) inventar, criativamente, modos de amplificação/alargamento do diálogo entre a narrativa transcriada e questões contemporâneas caras à sociedade”. O leque de referências da narrativa jornalística transcriada de “O procedimento” explicita o vasto fôlego do processo de apuração, por meio do entrelaçamento entre nuances de foro particular (as dores e os desafios de Rebeca, tempo a tempo, gesto a gesto, pensamento a pensamento) e universal (os embates – no Brasil e na Colômbia, principalmente – acerca do aborto, e, de modo mais amplo, em torno da autonomia das mulheres em relação ao próprio corpo).

Considerações finais

A estratégia metodológica apresentada e experimentada neste capítulo busca “dar conta” do que se compreende por “narrativas jornalísticas transcriadas”. Trata-se, conforme ressaltado, da possibilidade de elaboração de textos/textualidades capazes de, ao mesmo tempo, informar e incitar, crítica e criativamente, o debate em torno de questões prementes ao mundo

190 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS contemporâneo. Neste sentido, para que haja transcriação, faz-se necessária a identificação, na narrativa jornalística, de mecanismos de estímulo à emancipação intelectual do espectador (o transleitor). Na reportagem “O procedimento”, aqui analisada como forma de pôr a proposta metodológica em estado de experimentação, foi possível perceber, na escrita de Mônica Manir, elementos constitutivos das quatros bases seminais às narrativas jornalísticas transcriadas: descrições contextualizadas do fenômeno acontecimental; diálogos (diretos e/ou indiretos) com o outro (leitor, espectador, ouvinte, usuário, prosumidor); narratividade polissêmica, experimental e/ou esteticamente atraente/inovadora e preocupação ético-social. Para além de apresentar acontecimentos e vivências, a referida reportagem “edifica um ‘discurso outro’ capaz de configurar (trans)experiências dialógicas com seu público – conclamado, então, a olhar o mundo da vida não somente em função de sua aparência imediata” (SILVA JR, 2017, p. 261). A narrativa jornalística transcriada de Mônica Manir, portanto, estimula o transleitor à complexa interpretação de processos sociais, culturais, políticos, econômicos etc. Por fim, destaque-se que a referida análise da reportagem de piauí serv, neste trabalho, como demonstração dos princípios, critérios e potencialidades de sugestão metodológica ainda em processo de azeitamento. Importante ressaltar, porém, que tal tétrade investigativa de narrativas jornalísticas transcriadas apresenta-se como proposta capaz de agrupar e problematizar (além de dialogar com) outras tantas correntes de análise de textos e textualidades (obviamente, ligadas ao jornalismo). Em trabalhos futuros, pretende-se aprimorar nuances teóricas e estruturais de tal iniciativa metodológica, assim como ampliar a análise empírica referente a outros tantos “territórios” e formatos – da web aos meios audiovisuais, do jornal impresso às narrativas transmídia.

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193 A juventude ao alcance de suas mãos: uma análise dos discursos sobre a velhice em cinquenta anos de Veja (1968 – 2017)

Felipe Viero Kolinski Machado

Introdução

O texto ora em tela é resultado de pesquisa desenvolvida entre os anos de 2011 e 2013 e que culminou em minha dissertação de mestrado (KOLINSKI MACHADO, 2013). Uma versão inicial desse capítulo foi publicada em 2016, em coautoria com a orientadora da dissertação, professora Christa Berger (BERGER; MACHADO, 2016). O presente trabalho, cuja questão norteadora é perceber como, ao longo de seus cinquenta anos (1968-2017), Veja mobilizou e construiu sentidos sobre a velhice, consiste em uma reflexão ampliada dessas produções e, ainda, em um exercício metodológico de aplicação da Análise de Discurso francesa (AD). Na pesquisa aqui relatada, indo ao encontro das propostas de Berger e Luckmann (2009), compreende-se o movimento e a consolidação dos sentidos e o desenvolvimento de uma cultura comum, dentro da qual se percebe o fazer jornalístico, de um ponto de vista construcionista. Sob tal lógica, o real, cotidianamente vivenciado, e a partir do qual os sujeitos mobilizam-se, consistiria não em algo imutável, mas em um conjunto de relações que, via disputas de poder, teria assumido uma posição hegemônica e, via apagamentos de ordem ideológica, adquirido o caráter daquelas coisas que parecem sempre ter sido tal qual são, independente da volição dos indivíduos. O discurso, então, como lembra Foucault (2007), é aqui percebido não apenas como aquilo que oculta ou que manifesta o desejo, mas como o seu próprio objeto. Sob essa perspectiva ele tampouco se resumiria à tradução dos sistemas de dominação, mas consistiria em sua própria motivação. Compreende- se, ainda, o discurso como o trânsito dos sentidos, o mover dos significados e o espaço de errância dos sujeitos (ORLANDI, 2009). Considerando que, dentro de dado cenário, nem tudo pode e também nem tudo deve ser dito, o discurso funciona igualmente, via materialização daquilo que diz (e via materialização daquilo que não diz e, portanto, silencia), como espaço de observação das disputas ideológicas que assinalam a consolidação dos significados (PÊCHEUX, 1997). A velhice, nesse contexto, pode ser percebida de múltiplas formas.

194 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Como questão biológica e discursiva, constitui-se tanto nos corpos físicos dos sujeitos, que percebem em si as marcas da passagem dos anos, quanto no corpo social de uma coletividade (ocidental, ao menos) que é assinalada por um hedonismo crescente (LIPOVETSKY, 2005) e pela promoção da juvenilidade (MORIN, 1997). Conforme lembra Beauvoir (1990), apesar de ser um fato que transcende a história (o homem sempre esteve, de uma forma ou de outra, sob a tutela do tempo) a velhice, em seus múltiplos aspectos simbólicos, foi percebida de maneiras plurais, variando conforme o contexto. Podendo, ainda, ser vista como o resultado do investimento do discurso médico sobre o corpo envelhecido (KATZ, 1996), a velhice traz, de modo intrínseco, desde essa origem, as ideias de que a decrepitude seria uma característica invariável desse ponto do ciclo vital e de que, nesse momento, o corpo se degeneraria inevitavelmente. A juventude, em contrapartida, configurando- se em valor, deixa de ser restrita a determinado instante do desenvolvimento e passa a ser meta e desejo, um sonho de uma sociedade (DEBERT, 1999; LINS DE BARROS, 2004). Com o crescimento demográfico mundial da população com mais de 60 anos, contudo, todo um mercado buscou ressignificar tais traços estigmatizados (GOFFMAN, 2008), na tentativa de consolidar uma identidade, em um sentido de produção cultural e discursiva (HALL, 2000), mais plena de realização (SARTRE, 1997). A terceira idade, a melhor idade e o público sênior (não mais chamado de velho, deve-se perceber), assim, seriam tentativas não de superação de imagens negativas, mas de postergação delas (LENOIR, 1979), associando matizes menos nebulosas a um nicho comercial em expansão. Em relação ao Brasil, de modo mais específico, há uma premência de se discutir a questão da velhice mais profundamente. Entre os anos de 2012 e 2017, a população idosa no país aumentou 19% e, em 2017, o número de pessoas com mais de 60 anos atingiu a marca de 30 milhões. Estima-se, ainda, que em 2031 o Brasil já será composto, demograficamente, mais por idosos do que por crianças e adolescentes (COSTA, 2018). Discutir e compreender tais elementos, bem como seus impactos políticos, econômicos e sociais, mostra-se então fundamental. O jornalismo, pois, é aqui percebido como o “discurso revelador/plasmador da sociedade contemporânea” (BERGER, 1996, p. 188) e como prática social e discursiva cujas tramas costuram o presente, ao passo que dá a ver/ corrobora para a construção de determinados reais. Ainda sob esse ponto de vista, o jornalismo pode ser compreendido como “um lugar de circulação e de produção de sentidos” (BENETTI, 2008, p. 107) e como um discurso dotado de características específicas. Conforme lembra Benetti (2008), o discurso jornalístico poderia ser concebido como dialógico, polifônico e opaco, uma vez que apresentaria um caráter interdiscursivo e intersubjetivo, que seria composto,

195 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS a princípio, por múltiplas vozes e que não seria transparente, apresentando possibilidades de interpretação por parte dos sujeitos. Seria, ainda, ao mesmo tempo, efeito e produtor de sentidos e condicionado às suas rotinas e às suas condições produtivas específicas. A revista Veja, enquanto veículo jornalístico específico, construiu-se como objeto de análise coerente com as propostas e os questionamentos dessa pesquisa. Criada em 1968, pelo Grupo Abril, Veja foi fundada com o intuito de, através da informação, integrar o território nacional. A partir da retomada de diferentes elementos de sua história (CONTI, 1999; MIRA, 2001; HERNANDES, 2004; KOLINSKI MACHADO, 2013), pode-se observar uma trajetória não linear, assinalada pela diminuição das vendas e por diferentes mudanças de caráter editorial e estratégico a fim de alcançar, finalmente, o “sucesso” pretendido. Contemporaneamente, Veja é a segunda maior revista de informação do mundo e a maior do Brasil. Com uma circulação média que supera um milhão de exemplares, levando-se em consideração seu efeito multiplicador, estima- se que seus leitores ultrapassem a marca de seis milhões de pessoas todas as semanas (MEDIA KIT VEJA, 2018). A escolha por Veja, igualmente, reside no fato de ela possuir um arquivo digital com todos os seus exemplares disponíveis1 (o que permitiu, por conseguinte, observar os modos pelos quais os sentidos sobre a velhice se materializaram ao longo do tempo) e no fato de ela, progressivamente, ter voltado sua atenção às questões de saúde, de comportamento e bem-estar (HERNANDES, 2004; AUGUSTI, 2005; KOLINSKI MACHADO, 2013), espaços nos quais, usualmente, enquadrou a temática da velhice.

A Análise de Discurso francesa como aporte teórico e metodológico

Recuperando as proposições de Charaudeau e Maingueneau (2008), é possível constatar que as análises de discurso possuem uma origem transnacional e plural, dificultando a precisão de um ato fundador. Sobre a Análise de Discurso francesa (AD), em específico, os autores apontam que ela teria surgido em meados dos anos 60, tendo como base a associação de uma linguística estrutural à noção de ideologia e à psicanálise. Cabe, aqui, lembrar daquilo que postula Orlandi (2009, p. 20).

Desse modo, se a Análise do Discurso é herdeira das três regiões do conhecimento – Psicanálise, Linguística e Marxismo - não o é de modo servil e trabalha uma noção – a de discurso – que não se reduz ao objeto da Linguística, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando 1 O acervo com as 2562 edições consultadas nessa pesquisa (todas as edições publicadas entre setembro de 1968 e dezembro de 2017) encontra-se totalmente disponível (para assinantes) no site de Veja. https://acervo.veja.abril.com.br/#/editions Acesso em: jun. 2018.

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pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialidade relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele.

Pêcheux (1997), autor mais representativo dessa corrente, ao falar sobre as três épocas que assinalariam o desenvolvimento da AD, ressalta diferentes elementos desse percurso. De um primeiro momento, marcado por uma concepção da produção discursiva como “uma máquina autodeterminada e fechada sobre si mesma” (PÊCHEUX, 1997, p. 311) e assinalada pelos esquecimentos do sujeito, passa-se a um outro instante em que se atribui uma centralidade ao conceito de Formação Discursiva (FD) e à perspectiva de retomada dos já-ditos. A centralidade das questões da heterogeneidade, a qual seria uma característica constitutiva de todo e qualquer dizer, a importância do gesto interpretativo e o caráter de acontecimento do discurso já seriam marcas de uma terceira e última fase. Acerca da noção de Formação Discursiva (FD), torna-se importante discuti-la, uma vez que essa será, posteriormente, no instante das análises, operacionalizada. Para Foucault (2012) uma FD está relacionada à regularidade, à ordem e às correlações que, mediante um certo número de enunciados e a um semelhante sistema de dispersão, puderem ser observadas e descritas. Pêcheux (1997), ao estabelecer nexos com aquilo que é exterior a essa formação e ao acionar o conceito althusseriano de ideologia, permite que se desenvolva a perspectiva de que as FDs representariam, na linguagem, as Formações Ideológicas que, então, lhes seriam correspondentes. O conceito de ideologia, central nos trabalhos produzidos a partir dessa matriz, advém da obra de Louis Althusser. Para Althusser (1974, p. 77), a ideologia “representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência”. Será assim, pelo viés da ideologia, que os indivíduos de fato serão interpelados em sujeitos. Nesse contexto, é com base em Marx e em Althusser que se consolida a ideia de Formação Ideológica, a qual faria referência às

[...] posições políticas e ideológicas, que não são feitas de indivíduos, mas que se organizam em formações que mantêm entre si relações de anta- gonismo, de aliança ou de dominação [...] podendo incluir uma ou vá- rias formações discursivas interligadas. (HAROCHE; HENRY; PÊCHEUX, 1971 apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 241)

Ao encarar o jornalismo como um discurso que, ao mesmo tempo, é leitor e hiperprodutor de uma grande conversação (FAUSTO NETO, 1999), é compre- ensível que se recorra à AD como uma forma possível de se constatar e de se analisar os significados daí provenientes. Benetti (2016) sugere que a Análise de Discurso seja tomada como um dos possíveis dispositivos metodológicos para a pesquisa em comunicação.

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Ao passo que lembra que a AD consiste em um gesto de interpretação e que o próprio pesquisador, portanto, está inserido nas tramas do discurso sobre o qual se debruça, Benetti (2016) aponta três tipos de objetos então cabíveis para os quais, no cenário da comunicação, a AD é pertinente: a) estudo de textos de mídias tradicionais e organizações (textos jornalísticos e publicitá- rios – caso dessa pesquisa); b) estudo de textos autônomos (tais como inter- venções urbanas e grafite) e c) estudo de textos metodológicos (que seriam aqueles coletados pelo pesquisador (entrevistas, grupos focais)). Benetti (2016) define, igualmente, que existem quatro abordagens pro- dutivas a partir das quais a AD poderia ser mobilizada. Sumariamente, a análise dos sujeitos (1) refletiria sobre quem fala e para quem se fala; a análise do silenciamento (2) abordaria, tendo em vista aquilo que pode e aquilo que não pode ser dito em dadas condições, o que é silenciado; a análise da estruturação do discurso (3) abordaria os modos pelos quais o discurso se organiza, levando em conta, por exemplo, como se estabelecem lugares de fala e de injunção à interpretação; a análise de sentidos (4), aqui desenvolvida, refere-se à busca pelas marcas discursivas que permitam estabelecer regularidades e, para além da superfície textual, as Formações Ideológicas correspondentes. Nos trabalhos aí inseridos, como procedimento metodológico, faz-se necessário extrair do corpus fragmentos significativos (chamados então de sequências discursivas).

A sequência discursiva é o trecho arbitrariamente recortado pelo pes- quisador, do texto em análise, porque contém elementos que respondem à questão de pesquisa; seu início e seu final são definidos pela corre- spondência a essa questão. É habitual numerar cada SD, para facilitar a organização do corpus de pesquisa. (BENETTI, 2016, p. 248).

Empreendendo a análise: entre sequências e sentidos

Objetivando perceber os sentidos construídos e movimentados por Veja, sobre a velhice, ao longo das 2562 edições analisadas (referentes ao período 1968-2017), restringiu-se o corpus da pesquisa àquelas reportagens que, dentre todas essas revistas, trouxessem essa temática como um dos assuntos centrais. Dessa forma, a partir da análise individual, de cada um dos números de Veja aí englobados, chegou-se ao universo de 118 reportagens, distribuídas, não proporcionalmente, ao longo desses 50 anos de jornalismo e, então, a 241 sequências discursivas. A tabela abaixo (tabela 1) traz esses textos, distribuídos ao longo de dois blocos, destacando as décadas de publicação e as editorias em que eles foram veiculados.

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Tabela 1 – Seções de publicação e ocorrência das reportagens em blocos (1968 – 1989 e 1990 – 2017)

Período de tempo e ocorrência Seção na qual o texto foi publicado 1968-1989 1990-2017 Beleza 0 16 Ciência, medicina ou saúde 10 30 Comportamento 02 05 Especial 02 17 Previdência ou Aposentadoria 01 01 Vida moderna, sociedade ou população/demografia 02 12 Outras 0 20 Total de textos 17 101 Fonte: Elaborada pelo autor.

Pode-se perceber, desde um primeiro momento, que há um crescimento progressivo do número geral de reportagens cuja temática central envolve a velhice. Separando, então, essas cinco décadas em dois grandes grupos, com base em uma questão temporal, é possível constatar que em seus primeiros vin- te anos de existência Veja publicou apenas 17 reportagens nas quais a velhice correspondeu a um ponto de destaque. Todos os outros 101 textos, que corres- ponderiam a cerca de 85% do material coletado, foram publicados no espaço de tempo 1990-2017. Mais do que um movimento próprio do veículo que tende, conforme foi discutido em outras pesquisas, a dar uma maior ênfase às questões de saúde, de estética e de comportamento nos últimos anos, em detrimento da política e da economia, ênfase no período inicial de sua trajetória (AUGUSTI, 2005; CONTI, 1999; HERNANDES, 2004; MIRA; 2001), as justificativas para tais proporções extrapolam meras questões editoriais. Socialmente, a velhice, con- forme lembra Debert (1999), vem passando por intensas modificações, che- gando a ser reinventada. Em um contexto assinalado pela promoção de um discurso que dota o corpo de características plásticas, apontando-o como ma- leável conforme o empenho e a dedicação de cada um (LE BRETON, 2003) e que delimita a juventude como esse valor a ser obtido em qualquer etapa da vida (LINS DE BARROS, 2004), não é surpresa que o discurso de Veja traga a maior parte de seus textos sobre a velhice circunscritos a questões de ordem estética. Mesmo sob as editorias de Saúde e de Comportamento, por exemplo, o foco central foi, em geral, as formas de combate e de prevenção ao envelhe- cimento e às suas marcas. Apesar de discutir a velhice também sob um ponto de vista de interesse público (tais como ao abordar aposentadorias insuficientes ou mesmo o aumen- to demográfico do número de idosos), usualmente, Veja contribuiu, conforme será exposto, para a redução da complexidade do tema a procedimentos cirúr- gicos rejuvenescedores e a dietas milagrosas.

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Algumas sequências discursivas dão a ver os modos pelos quais os sentidos sobre a velhice foram sendo postos em trânsito por Veja. Vale salientar que os textos, assim como as sequências, foram numerados em ordem crescente e essas informações situam-se ao lado de cada trecho aqui reproduzido.

Em 145 clínicas espalhadas pela Romênia, sob orientação da Dra. Ana Aslan, procura-se retardar a velhice. Como método de diagnose usam-se a bioquímica do sangue, os raios X, dosagem das gorduras sanguíneas e a oscilometria – nada de operações. Depois, algumas injeções de procaína, e os velhos se sentem rejuvenescer. (CERCO..., 1973, p. 49) (T05 SD10). A síndrome de julho não é o único fenômeno a aquecer esse ramo da medicina, impulsionado pela sadia vaidade de pessoas dispostas a retardar os sinais de ação do tempo sobre seus rostos e corpos e pelo desejo manifestado por outros de livrar-se de traços herdados cujos contornos considerem indesejáveis. A cirurgia plástica, no que diz respeito ao desenvolvimento de novas técnicas, vive um período de ouro. (CONSTRUÇÃO..., 1986, p. 60) (T16 SD30). Haja aeróbica. A academia Competition, uma das mais completas de São Paulo, avalia que uma em cada cinco clientes são mulheres na idade da loba. O índice sobe para 50% na lista de pacientes dos dermatologistas. Nos consultórios dos cirurgiões plásticos, elas são 60%. O corpo é reconstruído a bisturis, choques elétricos contra a celulite, aluviões de cremes, massagens e malhação. (CAPRIGLIONE; LEITE, 1995, p. 87) (T28 SD59). Isso mesmo: Madonna, a loira de músculos definidos, magérrima e conservadíssima é cinquentona. Sua figura é fruto de uma dose excepcional de disciplina (e de exercícios), mas estar bem na sua idade não tem nada de incomum. Só no mundo dos artistas, onde a imagem não é tudo, mas chega perto, também acabam de dobrar o cabo dos 50 anos as atrizes Sharon Stone (em março) e Michelle Pfeiffer (em abril), beldades de parar o trânsito em qualquer tapete vermelho. (A AURORA..., 2008, p.98) (T84 SD180). A ciência deu um grande passo para vencer uma batalha humana que nos acompanha desde sempre: a luta contra as marcas do tempo. Uma fórmula desenvolvida por um grupo de pesquisadores da Universidade de Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), ambos nos Estados Unidos, mostrou-se capaz de reduzir em até 40% as rugas e as bolsas abaixo das pálpebras quase instantaneamente (MELO, 2016, p. 96) (T115 SD237)

Dentre algumas das percepções as quais se foi chegando, mediante análise e recuperação de outros trabalhos que com esse guardavam alguma semelhança, pode-se destacar o caráter pedagógico (FISCHER, 2002) assumido pela revista. Veja, via citação de estudos e de pesquisas e através de testes e de quadros dirigidos a seus leitores (intensificados a partir da década de oitenta), foi, continua e progressivamente, delimitando as formas adequadas de se portar e de se viver, apontando o que viria a ser, para ela, um “envelhecimento saudável” e, aí, como obtê-lo. Desenvolveu, assim, um verdadeiro receituário performativo,

200 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS conforme sugere Prado (2009), a partir do qual os enunciadores-cartógrafos, sempre especialistas, designaram (e designam, ainda) os melhores caminhos a serem seguidos. A revista, assim, configurou-se em um dispositivo discursivo da velhice.

Para quem faz questão de ser bonita, manter a forma é uma luta que dura toda a vida. Mas existem alguns cuidados que devem ser tomados desde cedo e problemas que só surgem em determinadas etapas da existência. Fazer ginástica ajuda a manter o peso e a elasticidade da pele. Já foi criada até uma série de exercícios para manter o rosto sem rugas. Para fazê-los, basta articular, forçando os músculos da face, as cinco vogais nessa ordem: A, O, U, E, I. (A MEDICINA..., 1981, p. 64) (T13 SD 24). A blogueira Carol Magalhães, 38 anos, é um exemplo de como a preven- ção precoce é a maior aliada do espelho: “Só uso produtos antienvelhe- cimento para a minha idade, vou atrás deles. Sei que com isso chegarei aos 50 anos com uma pele boa e jovem, algo diferente da referência que tenho de mulheres nessa faixa etária quando eu tinha 20 anos”. É um bom sonho de juventude. (VIDALE, 2017, p. 92) (T118 SD 241).

Igualmente é importante ressaltar que Veja, ao relacionar a velhice ao declínio físico e à perda de valores estéticos, situa em diferentes lugares homens e mulheres. Indo ao encontro de Attias-Donfut (2004), que ao falar em envelhecimento masculino e feminino, diz que no seio de uma sociedade patriarcal o frescor, a beleza e a doçura são cobrados muito mais da presa, do que do predador, observa-se que Veja não se omite ao ressaltar o charme de algumas marcas (para eles) e a premência de evitá-las (para elas).

Como cabelo grisalho e rugas discretas nunca foram impedimentos para o sucesso social masculino, permanecem galãs (ou por causa) da idade madura os irresistíveis Pierce Brosnan, um poço de charme aos 55 anos, Richard Gere, inalterável jeitinho carente aos 58, e José Mayer, que aos 59 e longe de sua melhor forma (por força do papel, ressalta-se), anda aos beijos com Juliana Paes em A favorita, folhetim das 8 da Globo. (A AURORA..., 2008, p.99) (T84 SD181). Sabendo-se, portanto, que depois dos 60 lipo ondula, lifting estica demais, Botox paralisa e preenchimentos inflam em excesso, conclui-se que fórmula perfeita para o bem envelhecer não há. Ou melhor, há, só que é privilégio de pouquíssimas – quem diz que Suzana Vieira, capaz de tirar de letra cenas tórridas de paixão em novelas, tem 64 anos? Ou então é questão de encarar a passagem dos anos da melhor forma possível, exibindo rugas e cabelos brancos com pose e altivez, como faz, aos 80 anos, a rainha Elizabeth da Inglaterra – provavelmente a única milionária do planeta que jamais se submeteu a uma cirurgia plástica. (ALISAR..., 2007, p. 93) (T78 SD167).

As tensões entre uma velhice temerosa (em geral asseverada pela aparência física indesejada) e uma terceira idade positiva (sempre assinalada pelas possibilidades de consumo) também se manifestaram no discurso de Veja,

201 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS dando a ver questões como uma escassez de discursos sobre a pauperização na velhice (em especial mais contemporaneamente) e a apresentação de um envelhecimento positivo sempre como reflexo das ações de cada um.

Nesta faixa [dos 45 aos 55 anos], a deterioração age rapidamente, a qualquer descuido. O cabelo cai depressa, a postura tende a mudar e a pele exige mais. É o último momento para uma primeira cirurgia plástica rejuvenescedora e para o transplante de cabelos, para quem não pretende chocar amigos e conhecidos e pretende continuar em forma. (A MEDICINA..., 1981, p. 64) (T13 SD26). Nos últimos anos, os cinquentões passaram a se divorciar mais, a construir novas famílias, a paquerar como na juventude. Também adiaram a decisão de pendurar as chuteiras no trabalho por ainda ter energia sobrando. Ficaram mais saudáveis e estão mais vivos do que nunca na cama. Além de incrivelmente mais bem conservados, graças às inúmeras benesses das cirurgias plásticas, da ginástica e dos tratamentos estéticos. [...] Calcula-se que hoje a turma chamada ‘terceira idade’ (a que preferimos nos referir como ‘melhor idade’) já movimente 90 bilhões de reais por ano no país. Para esses novos consumidores velhos, há uma indústria trabalhando a todo o vapor [...] Pela primeira vez Veja publica uma edição especial a esse grupo. [...] A iniciativa vai ao encontro de uma tendência mundial. Só nos Estados Unidos, há cerca de quinze revistas mensais destinadas ao público maduro. Boa leitura! (A MELHOR ..., 2005, p. 06) (T71 SD144). Quem se cuida vai empurrando a velhice com a bem malhada barriga, como atesta o analista financeiro Juarez Aguilar, 47 anos. Ele passa três horas por dia numa academia de ginástica em São Paulo. “Chego em casa muito mais disposto para namorar”, afirma ele, que cortou frituras e gasta 200 reais por mês em suplementos vitamínicos com apoio da mulher, Salete. (VEIGA, 2000, p. 124) (T48 SD94).

Tendo em vista aquilo que foi coletado e analisado, foi possível constatar dois grandes núcleos de sentido, duas grandes categorias dentro das quais, mesmo em diferentes momentos e de diferentes modos, sentidos comuns foram reiterados por Veja. A tabela a seguir (tabela 2) expõe, portanto, as Formações Discursivas percebidas, o número de sequências que cada uma agrega e a sua ocorrência.

Tabela 2 – Formação Discursiva, número de sequências englobadas e ocorrência

Número de sequências Ocorrência Formação Discursiva (FD) discursivas percentual Formação Discursiva 01 177 73,45 Velhice como questão privada Formação Discursiva 02 64 26,55 Velhice como questão pública Fonte: Elaborada pelo autor.

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A FD que se mostrou dominante, uma vez que agregou mais de setenta por cento das sequências coletadas em todo o período de análise, permitiu que uma velhice muito específica fosse constituída e consolidada nas páginas de Veja. Não se trata da velhice do número crescente de idosos, tampouco da velhice pauperizada à qual estão submetidos muito velhos brasileiros, mas da velhice que é de uma esfera privada, de um processo de envelhecimento que está nas mãos dos sujeitos que o vivenciam diariamente e que, portanto, possuem meios de torná-lo menos agressivo ou até mesmo impedi-lo. Trata-se de um discurso que tende a reprivatizar o processo de envelhecimento (DEBERT, 1999).

O KH-3, uma espécie de fonte da juventude que cientistas alemães descobriram em seus laboratórios e conseguiram comprimir numa pequena cápsula, está entrando no Brasil pela porta do contrabando. No Rio, o seu consumo entre as pessoas de idade já começa a se transformar em moda: por 250 cruzeiros novos consegue-se uma caixa de 150 cápsulas – e alguma esperança. (JUVENTUDE..., 1969, p. 47). (T01 SD01). Para quem não se preveniu a tempo e já exibe os sinais da passagem dos anos, a cosmeatria e a cirurgia plástica desdobram-se em criatividade, novas ideias e técnicas mais apuradas. Em matéria de bisturi, a ideia geral também é fazer intervenções mais precoces, quase preventivas, e menos traumáticas. (VIVER..., 1993, p. 91) (T25 SD50). Mas milagres, infelizmente, não existem. Fazer aniversário sem envelhecer exige empenho e dedicação. Por mais que a natureza dê sua forcinha, só chega à maturidade exibindo formas e pele admiráveis quem investe tempo e dinheiro na fórmula plástica-dieta-creme-ginástica. (PINHEIRO, 2003, p. 89) (T61 SD121). Vê-se o resultado da bichectomia em mulheres lindas, que aparentemente não teriam nada a corrigir e que agora desfilam as maçãs faciais protuberantes [...] Diz o cirurgião João de Moraes Prado Neto da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica: “O rosto ganha um aspecto mais jovem e magro com a valorização das maçãs”. É o sonho de absolutamente todas as mulheres do mundo. (MELO, 2015, p. 88) (T113 SD 234).

Para além desse núcleo de sentidos, contudo, uma segunda FD também foi percebida. Com um total de 64 sequências, e uma representatividade da ordem de 26,55%, ela construiu espaços para uma velhice pública, de características coletivas e sociais. Aspectos sobre a velhice que ultrapassam a esfera privada, concernentes, por exemplo, a políticas públicas, foram aqui englobados. Questões como aposentadoria, legislação específica, aumento demográfico do número de idosos e sobrecarga da previdência tiveram vez, opondo-se à perspectiva que toma a velhice meramente como relativa ao sujeito. A terceira idade, tomada como fase positiva, gerando impacto social, também foi o foco em alguns textos. As sequências abaixo ilustram tais pontos.

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Do completo desconhecimento das aspirações que pudessem motivar esse contingente de 5 milhões de pessoas, vive-se agora o período das primeiras certezas. Já se sabe, por exemplo, que, embora arredio aos contatos iniciais com outros parceiros da mesma faixa etária, o idoso acaba por integrar-se completamente a grupos, clubes, equipes, que simplesmente realizem bailes, ou se dediquem à fabricação de artesanato, ou até se reúnam para lembrar os tempos da mocidade. [...] A descoberta das possibilidades do que os gerontólogos chamam de ‘terceira idade’ tem sido, na verdade, o grande denominador comum a todos os movimentos pró-idosos. (VIVENDO ..., 1976, p. 94) (T08 SD16). ‘Se o estado desse uma aposentadoria decente e fornecesse assistência às famílias dos idosos, os velhos brasileiros estariam em melhores condições’ a gerontóloga e psicanalista paulista Elvira Abreu e Melo Wagner. (DIREITO..., 1993, p. 70-71) (T24 SD46). Em 2050 haverá apenas três pessoas em idade potencialmente produtiva para cada uma com 65 anos ou mais. É uma proporção que torna impossível financiar o sistema. E o mais preocupante é que o Brasil tem andado na contramão, insistindo num modelo de cobertura muito amplo, em vez de restringir o acesso aos benefícios. (VENTUROLLI, 2004, p. 108) (T67 SD139). O Brasil será, em poucas décadas, um dos países com maior número de idosos do mundo, e precisa correr para poder atendê-los no que eles têm de melhor e mais saudável: o desejo de viver com independência e autonomia. (ALLEGRETTI, 2016, p. 88) (T114 SD 235).

O que um “veículo indispensável” tem a dizer sobre a velhice?

No que se refere à opção pela Análise de Discurso francesa (AD), enquanto aporte teórico e metodológico, cabe salientar que foi através de sua operacionalização que os objetivos dessa pesquisa puderam ser alcançados. A partir de um mapeamento inicial, chegou-se a 118 reportagens veiculadas em Veja que, ao longo de 50 anos, abordaram a velhice. Tendo em vista esse corpus então arquitetado, foram selecionadas 241 sequências discursivas as quais, ao exporem os sentidos principais então mobilizados e construídos, e tendo em vista a questão norteadora, permitiram a configuração de dois núcleos de significação (Formações Discursivas). Acredita-se assim, coadunando com as proposições de Benetti (2016), que a AD conforma-se, a depender do trabalho proposto, em um potente dispositivo metodológico para a pesquisa em comunicação e em jornalismo. Nesse caso, em que se desejava perceber os sentidos materializados acerca da velhice, em um corpus jornalístico extenso e ordenado, observando aí os sentidos reiterados ao longo do tempo, consistiu em uma decisão pertinente. Essa pesquisa diferencia-se em razão do modo como se dá o tensionamento entre objeto empírico e fundamentação teórica e metodológica, resultando em uma abordagem com contornos próprios em relação ao fenômeno. Em busca no banco de dissertações e teses da Capes, não foram encontradas referências para pesquisas realizadas na área da comunicação que, debruçando-se sobre um corpus jornalístico conformado a partir de um recorte temporal tão amplo, voltem

204 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS sua atenção aos sentidos então constituídos acerca da velhice e empreendam uma análise de caráter discursivo. A partir dessa pesquisa foi possível constatar um movimento, por parte de Veja, contínuo, mas com maior fôlego a partir de década de 90, no sentido de reprivatizar a velhice, ou seja, de reduzi-la, a partir dos sentidos então mobilizados em seus discursos, a uma série de questões de ordem individual e particular (DEBERT, 1999). Avanços na área da medicina estética e um maior conhecimento do organismo humano, acionados pela revista, poderiam então fornecer aos seus leitores atentos o elixir da vida longa e saudável. Uma dieta balanceada (e mais contemporaneamente com restrições ao consumo máximo de calorias diárias), exercícios físicos constantes (aeróbica, musculação, natação), hábitos de consumo (por que não usar a mesma saia que a filha?) e uma vida ativa poderiam gerar mudanças entre a idade verdadeira (marcada no calendário) e a idade real (idade do corpo), conforme ensina Michael Roizen, médico que se torna espécie de guru para Veja, especialmente a partir dos anos 2000. Ser jovem, sob tal percepção, não corresponderia a uma característica de dado estágio do desenvolvimento biológico, mas, ao invés disso, em um ideal a ser cotidianamente buscado e desejado. Na corrida pela manutenção da juventude e pelo adiamento da velhice, entretanto, conforme ressalta Veja em alguns momentos, nem todos largariam do mesmo ponto. Homens e mulheres, por exemplo, correriam em pistas diferentes afinal, de acordo com a publicação, se, por um lado, as rugas de Richard Gere são um charme a mais do galã americano, os cabelos brancos, da maior parte das mulheres, continuam sendo vetados por remeterem ao anátema supremo: a velhice. Do mesmo modo, embora em pouquíssimos casos problematize essa questão, entre pobres que sobrevivem com um sistema público de saúde muitas vezes ineficaz e ricos que podem, a cada dez anos, recorrer a um cirurgião plástico para pequenos retoques, existe um grande abismo social que se reflete diretamente nas experiências de velhice ou de não-velhice. Nesse cenário, o corpo, então, deve ser diluído, não deve chamar a atenção pelas suas características negativas. Por outro lado, o imperativo da forma exige que o corpo seja exposto. “Fique nu”, ele diz. Mas reitera: “Para isso, seja belo, jovem e bronzeado”. Um corpo que deve desaparecer não sendo estrangeiro. Um corpo que não deve ser estranho, mas, ao contrário, plenamente incluído. Bio-poder, nos termos de Foucault (1988) que, se dirigindo ao indivíduo, visa a ensiná-lo a portar-se como ser vivo, ao passo que objetiva otimizar suas chances de viver mais e melhor. Práticas bioascéticas, pois, que enquadrariam sujeitos plurais nos formatos únicos da juventude e da magreza, por exemplo. Em um mar de incertezas, o indivíduo/mercadoria pós-moderno de Bauman (1998; 2008) clamaria por definições, por uma rota segura que lhe garantisse a

205 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS longevidade da não-velhice. O jornalismo então, e o jornalismo de Veja, analisado aqui, assume o papel de conselheiro, reveste-se em manual de comportamento e, pedagogicamente, ensina aos seus leitores como as vidas devem ser vividas (FISCHER, 2002). Em contrapartida, torna-se pertinente salientar, os discursos não são proferidos em uníssono e, invariavelmente, na disputa simbólica e material em torno do sentido, existem espaços para dizeres que são de outra instância, para aqueles significados que vêm de outros lugares. A segunda Formação Discursiva localizada nesse trabalho, “Velhice como questão pública”, sinaliza empiricamente essa perspectiva. Apesar de minoritária, as sequências que compõem a FD02 movimentam e estruturam sentidos que se opõem àqueles presentes na FD01. De uma velhice de tons privados, cuja administração caberia a cada um, chega-se, aqui, a uma velhice cuja responsabilidade extrapola os hábitos e as vontades pessoais. A participação do Estado, então, passa a ser percebida como essencial para que a maior parte dos sujeitos possa ter uma vida longeva e plena. Igualmente, quando aqui inserida, a velhice passou a ser vista como uma questão de interesse público, a partir do aumento demográfico do número de idosos e das revoluções propiciadas pelo desenvolvimento da terceira idade. Hegemonicamente, apesar disso, mediante análise de seus cinquenta anos de prática jornalística, pode-se dizer que Veja, que se intitula como “indispensável” ao cidadão brasileiro, movimenta e constrói sentidos sobre uma velhice de tons muito restritos. Se tomarmos o jornalismo como uma forma de conhecimento, tal qual propõe Genro Filho (1987), e pensarmos ainda no potencial de construção de outros mundos possíveis, por um jornalismo pautado pelo interesse público, podemos pensar que Veja, no que tange à questão aqui analisada, falha miseravelmente. Em contrapartida, se desejamos um arquivo (FOUCAULT, 2012) sobre práticas rejuvenescedoras, que diga do sonho de uma não-velhice eterna, então, teremos, na maior revista do Brasil, um excelente material de consulta.

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VIDALE, Giulia. O sonho da juventude. Veja. São Paulo: Editora Abril, ano 50, ed. 46, 2017. VIVENDO a terceira idade. Veja. São Paulo: Editora Abril, ano 06, ed. 428, 1976. VIVER bem é a melhor vingança. Veja. São Paulo: Editora Abril, ano 25, ed. 1306, 1993.

210 A Hermenêutica de Profundidade e os apontamentos teórico-metodológicos de análise das narrativas jornalísticas

Alda Cristina Silva da Costa Vânia Torres Costa Nathan Nguangu Kabuenge Sergio E. S. Ferreira Junior Thais Luciana Corrêa Braga

Introdução

Narrativas que convocam à compreensão, que mobilizam falas, que dão a entender aspectos da vida social, que são parte de disputas e tentativas de estabilizar sentidos. Todas essas são formas de caracterizar as narrativas jornalísticas, sobretudo, quando pensamos que elas se processam no bojo de relações sociais complexas que não podem ser reduzidas a concepções excessivamente construtivistas, segundo as quais a mídia conforma a realidade social ou produz a realidade de maneira irrefletida. Antes, trata-se mesmo de um processo de mediação que só é possível pelo trabalho narrativo que o jornalismo opera sobre essa realidade. Em que medida é possível, então, adotar metodologias que deem conta de elucidar tal processo? Partimos aqui de uma apropriação do projeto teórico de J. B. Thompson (1995, 1998), de uma Hermenêutica de Profundidade (HP) para o estudo de formas simbólicas, que visa a compreender os processos sociais de configuração e espraiamento de formas culturais na sociedade contemporânea. Para ele, as formas simbólicas são “um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos. Falas linguísticas e expressões, sejam elas faladas ou escritas, são cruciais a esse respeito” (THOMPSON, 1995, p. 79, grifo nosso). Trata-se, portanto, de construções culturalmente significantes, integrantes de processos comunicativos, cuja análise é essencialmente um problema de compreensão e interpretação. Advinda da Sociologia, essa perspectiva dialoga de modo bastante profícuo com os estudos da Comunicação, já que se baseia em preocupações com as relações sociais em torno da mídia e da cultura, abarcando contexto e a os sentidos socialmente gestados pelos e em razão dos produtos midiáticos (GOMES, M. B., 2012; GOMES, D. C. A., 2015). A esse respeito, é relevante o

211 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS levantamento de produções acadêmicas com referências à HP feito por Prediger, Scherer e Allebrandt (2018), a partir das plataformas Redalyc, SciELO, SPELL e IBICT, entre 2000 e 2016. De acordo com sua pesquisa, foram localizados 207 trabalhos, entre artigos, teses e dissertações. Desse total, 100 trabalhos – quase a metade – eram oriundos das Ciências Sociais Aplicadas, dos quais 63 estavam situados na área da Comunicação, fazendo com que os autores inferissem que “a investigação sobre as formas simbólicas, sobre as mensagens transmitidas, influenciadas e influenciadores da cultura, fazem da comunicação uma área de conhecimento bastante ligada a Hermenêutica Profunda” (PREDIGER; SCHERER; ALLEBRANDT, 2018, p. 15). Apesar de fazermos recurso a essa metodologia e fazermos eco aos atravessamentos das narrativas pelos sociais, não se trata de uma ordem de preocupações isolada. Pelo contrário, dialoga com bastantes visadas contemporâneas em torno das narrativas jornalísticas. Por exemplo, a proposição que buscamos fazer se depara com um desafio apontado por Quadros, Motta e Nasi (2017) quanto às metodologias para o estudo das narrativas jornalísticas. De acordo com as autoras, houve um aumento na produção recente sobre narrativas a partir dos estudos de jornalismo, com esse representando de fato um novo viés para as encarar. No entanto, ao mesmo tempo em que há um cenário de diversidade quanto à adoção de metodologias, também há a carência de sistematização na sua aplicação nas análises – algo que poderia sinalizar para a fragilidade de um âmbito de pesquisa nascente. Junto a isso, detectaram também uma tendência segundo a qual “mesmo os trabalhos que se voltam às textualidades buscam alcançar as vinculações sociais e os sentidos implícitos nos textos, denotando uma preocupação em romper com o texto em si como única superfície de análise” (QUADROS; MOTTA; NASI, 2017, p. 45). Sob outro prisma, Soster (2017), em um estudo sobre narrativas de violência em redes sociais, assinala que se trata de narrativas midiatizadas que se dão diante de uma “irritação” – algo conflitivo que irrompe no sistema social –, que é ressemantizada em um processo de circulação, de reconfiguração de lugares, nos quais a “a forma por meio da qual a violência é incorporada pelo sistema e, posteriormente, devolvida ao meio e demais sistemas, é pelo viés da ressemantização do acontecimento em questão, a partir de lógicas discursivas midiatizadas” (SOSTER, 2017, p. 55). Diante disso, tem um processo no qual, “ao transformar pessoas comuns em atores, e atores em pessoas comuns, o sistema realiza ofertas de vínculos cujo objetivo é estreitar os laços entre as ofertas de sentido e quem as acessa” (SOSTER, 2017, p. 55). Essas preocupações acima – tanto de romper com o texto quando de encarar processos narrativos em torno de violências – estão presentes no que nos impele a trabalhar com essa proposição teórico metodológica da HP. Assim, na seção seguinte buscamos apresentar as bases e o percurso da HP em Thompson,

212 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS de modo a apresentar na seção posterior uma leitura de um acontecimento violento a partir desse caminho metodológico. Para tanto, trazemos narrativas sobre uma chacina, no contexto da violência urbana de Belém/PA – um evento que marca um contexto social contemporâneo e que exige de nós um processo hermenêutico de análise das narrativas e do social. Cumpre, por fim, ressaltar que a origem desse elemento empírico está nos esforços de investigação de duas propostas: o Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia)1 e do Projeto de Pesquisa Mídia e Violência: Percepções e Representações na Amazônia2.

Abordagem metodológica

É com o filósofo Paul Ricoeur (1976, 1998, 2010) que se tem uma contribuição bastante original aos estudos da hermenêutica, na medida em que ele busca refletir sobre o ato interpretativo como fenômeno e utilizando o subsídio da linguagem para entender a compreensão como um modo de ser. O projeto hermenêutico de Ricoeur constitui-se em um guia metodológico, de orientação de leitura e escrita de obras literárias e outros textos; configura- se como um método cujo objetivo é compreender uma obra. Para o filósofo, hermenêutica diz respeito à “teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos”, a fim de desvelar o sentido do ser pelos movimentos de leitura (RICOEUR, 1988, p. 299). Desse modo, o autor acredita que a hermenêutica pode oferecer tanto uma reflexão teórico- conceitual quanto uma ferramenta metodológica que se expressa nos seguintes termos:

[...] é tarefa da hermenêutica reconstituir o conjunto de operações pelas quais uma obra se destaca do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dada por um autor a um leitor que a recebe e assim muda seu agir. [...] preocupa-se em reconstruir todo o arco das operações mediante as quais a experiência prática dá a si mesma obras, autores e leitores. [...] A questão é portanto o processo concreto pelo qual a configuração textual faz a mediação entre a prefiguração do campo prático e sua refiguração pela recepção da obra. (RICOEUR, 2010, p. 94-95).

1 O Narramazônia é um grupo de pesquisa e estudos, implementado em 2015, a partir de uma parceria entre a Universidade Federal do Pará e a Universidade da Amazônia, com objetivo de promover reflexões epistemológicas sobre o ato de narrar, fundamentalmente na compreensão da Amazônia paraense e das diversas linguagens narrativas dela e sobre ela. Hoje, o projeto é uma espécie de guarda-chuva que abriga outros projetos de pesquisa e extensão. 2 Projeto de pesquisa realizado desde 2016, na Universidade Federal do Pará, em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Edital Universal. Integra um conjunto de pesquisas que tem como finalidade compreender percepções, representações, usos e apropriações feitos pelos receptores do conteúdo das mídias, considerando que não estão no processo de produção e difusão das narrativas de violência, mas representam, no caso do receptor, a dimensão de repercussão social e simbólica dessas narrativas.

213 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Tal ordem de preocupações impacta a proposição da hermenêutica de profundidade (HP), realizada por J. B. Thompson (1995) a partir dessa ênfase ricoeuriana e da sua “semântica de profundidade” (RICOEUR, 1976). Como referencial metodológico, a HP reflete sobre formas de análise complementares entre si a partir de um processo interpretativo complexo de realidade social – não no sentido de revelar alguma verdade, mas de compreender os processos de constituição sociossimbólica da realidade a partir da interação de elementos diversos, como contexto sócio-históricos, saberes práticos, interpretações já vigentes no social, entre outros. A HP desenvolve-se dentro do que o autor chama de estudo das formas simbólicas, entendidas como “um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos. Falas linguísticas e expressões, sejam elas faladas ou escritas, são cruciais a esse respeito” (THOMPSON, 1995, p. 79). Trata-se, portanto, de construções culturalmente significantes, integrantes de processos comunicativos, cuja análise é essencialmente um problema de compreensão e interpretação (THOMPSON, 1995, 1998). O trabalho da HP inicia-se pela interpretação da doxa, ou seja, da vida cotidiana e do entendimento dos sujeitos nessa realidade, suas opiniões, crenças e compreensões. A partir disso, desenvolvem-se três eixos de análise: 1) análise sócio-histórica, em que são identificados os elementos do mundo sócio-histórico que condicionam as narrativas; 2) análise formal ou discursiva, em que é possível recorrer à narrativa a fim de compreender a sua textualidade; e 3) interpretação/ reinterpretação, já que as formas simbólicas são formas já produzidas no bojo de interpretações que inserem a sua configuração de mundo possível de volta no mundo sócio-histórico. É interessante perceber a existência de uma produção recente faz recurso à HP nas Ciências Humanas e Sociais e na Comunicação. No primeiro âmbito, há uma prevalência de estudos que focalizam em um processo analítico das configurações complexas em torno da realidade, dos sentidos viáveis – e não ocultos – das formas simbólicas (MOTTA, 2014), aspectos de contextualização social em face da proximidade de objetos e a situações sociais (MOURA; ALMEIDA, 2017), a inserção da HP em um quadro de possibilidades interdisciplinares de abordagem (NASCIMENTO, 2017; PREDIGER; SCHERER; ALLEBRANDT, 2018). Já na Comunicação, a abrangência das preocupações sobre a HP se dá quanto ao seu uso na compreensão das narrativas como processo de inscrição de acontecimentos na vida social (CARVALHO, 2010), ao desenvolvimento de uma reflexão que vá do texto para processos sociais em seu entorno (GOMES, M. B., 2012), à ideia de que a interpretação é um processo aberto que confere papel relevante aos sujeitos dos processos comunicacionais (GOMES, D. C. A, 2015), assim como à consideração do contexto social também como contexto

214 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS comunicacional (NAZÁRIO; REINO; MANFREDINI, 2016). Trata-se, portanto, de contribuições à reflexão sobre as formas de adoção da HP como metodologia, naquilo que ela tem de expresso em sua proposta e como potencial heurístico dos processos individuais de pesquisa. Assim, diante dos processos da análise requeridos pelos objetos ou realidades em análise, Thompson (1995, p. 359) ressalta que, na medida em que os analistas sociais procuram interpretar uma forma simbólica, eles “estão procurando interpretar um objeto que pode ser, ele mesmo, uma interpretação, e que pode já ter sido interpretado pelos sujeitos que constroem o campo-objeto, do qual a forma simbólica é parte”. Ou seja, estão oferecendo uma interpretação de uma interpretação, estão reinterpretando um campo pré-interpretado”. De acordo com Thompson, o campo-objeto pode ser entendido também como um campo-sujeito, tendo relevância para o analista e para os sujeitos nele inseridos. Como espaço da vida social, esse campo, sujeito e objeto, é permeado pelas formas simbólicas, que convidam a uma (re)interpretação de um domínio já interpretado. Esse campo-sujeito-objeto se perfaz socialmente e se refere àquilo que se processa culturalmente nas sociedades e pode ser reinscrito compreensivamente por meio de um processo interpretativo. Desse modo, na adoção do método e na realização desse processo interpretativo complexo, é preciso remontar às condições sócio-históricas da produção e difusão dessas representações e dessas narrativas, desses objetos significantes que fazem parte da vida social. Trata-se de conceber o contexto como constitutivo das maneiras como elas serão socialmente construídas e percebidas. Essa visada nos é relevante, pois a produção e reprodução das narrativas jornalísticas de violência estão relacionadas a um contexto específico que engloba rotinas midiáticas, modus narrandi convencionados, mas também envolvem reinscrição do mundo sócio-histórico. Dentre os elementos arrolados para cada uma das fases analíticas, na análise sócio-histórica, Thompson dá ênfase à estrutura social, que diz respeito a relações estáveis de assimetria e diferença, relacionadas ao acesso de recurso e ao exercício do poder, além de dar ênfase aos meios técnicos de construção de mensagens, compreendidos como substratos materiais em que as formas simbólicas são fixadas, reproduzidas e postas em circulação. Na fase da análise discursiva ou formal, há a utilização de alguns métodos que servem para analisar a estrutura da forma simbólica, que é considerada uma construção simbólica significativa, que representa algo (ou o diz) para alguém (THOMPSON, 1995, p. 369). Nessa fase analítica, Thompson dá ênfase à análise narrativa, que abarca os textos a partir da sua configuração narrativa, como história que articula intrigas, personagens, temporalidades etc. Já na terceira fase, a HP se constitui como (re)interpretação. De acordo com o autor, esse procedimento representa um esforço criativo de síntese, por

215 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS meio do qual se constroem e reconstroem significados, além da conjuntura em que se insere a forma simbólica, pois “as formas simbólicas representam algo, elas dizem alguma coisa sobre algo, e é esse caráter transcendente que deve ser compreendido pelo processo de interpretação” (THOMPSON, 1995, p. 376).

Narrativas jornalísticas de violência sob as lentes da HP

Diante desse entendimento, voltamos o nosso olhar para a narrativização de uma chacina que ocorreu nos dias 20 e 21 de janeiro de 2017, a primeira daquele ano em Belém/PA, a qual consistiu em uma série de mortes ocorridas após a de Rafael da Silva, 29 anos, integrante da Ronda Tática Metropolitana (Rotam) da Polícia Militar do Estado do Pará (PM/PA), durante uma troca de tiros no bairro da Cabanagem, quando o policial foi atingido na cabeça (OAB- PA, 2017). De acordo com o Relatório da Situação dos Casos de Chacinas e Extermínio de Jovens Negros no Estado do Pará, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará, houve 29 mortos e 20 feridos durante os ataques relacionados à chacina (OAB-PA, 2017). Notícias dos dias posteriores à chacina dão conta de números difusos de mortos, já que se referem aos casos ocorridos após o assassinato do soldado, que poderiam mesmo virtualmente ser parte da “resposta” à sua morte. Houve vítimas em diversos bairros da Região Metropolitana de Belém, abarcando, além da própria capital, os municípios de Ananindeua e Marituba. Houve ampla reverberação a respeito desse acontecimento, tanto nas mídias noticiosas locais (como nos jornais Diário do Pará e O Liberal ou mesmo nos portais Diário Online e G1 Pará), quanto em manifestações para além deles (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017; CAMPELO, 2017; MENEZES, 2017). Todas essas reverberações abarcam o episódio desencadeador, caracterizando a chacina pelo número das mortes, pela ligação com milícias e pela brutalidade policial, além de abordarem os depoimentos de testemunhas e das instituições de segurança pública. O nosso olhar se volta especificamente para um desses meios locais, o jornal Diário do Pará3. Observamos ao longo do período, após a série de assassinatos, uma cobertura que abarca aspectos bastante concretos de uma descrição dos eventos, com destaque para a quantidade de mortos, os nomes das vítimas, as ações de investigação, a problematização da política de segurança pública, em um processo de narrativização da chacina que configura uma totalidade constituída de episódios, marcada por relatos jornalísticos, pela continuidade na cobertura do acontecimento.

3 O jornal Diário do Pará, do grupo Rede Brasil Amazônia de Comunicação, é considerado, segundo Castro (2012, p. 180), um dos cinco grupos político-comunicacionais mais importantes da Amazônia. Ele foi fundado em 22 de agosto de 1982, com a finalidade de subsidiar a candidatura de Jader Barba- lho (PMDB), dono do referido grupo, ao governo do Estado do Pará.

216 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Como episódio inaugural que demarca o surgimento da chacina, temos a morte do PM, para a qual as mortes ocorridas na cidade são a “resposta”. Esse início da narrativa lança luz sobre a morte, informando os detalhes sobre o assassinato, suas circunstâncias. De acordo com o jornal, a morte ocorreu durante o que deveria ser uma ação rotineira dos policiais em um bairro periférico, para atender a uma ocorrência de assalto. Os PMs realizaram uma perseguição a um veículo e se engajaram em uma troca de tiros, momento em que Rafael Costa foi atingido. A matéria, desse modo, dá ênfase ao evento desencadeador da chacina, que aparece primeiramente pela referência a “14 assassinatos” em um intertítulo, conforme segue:

PM morre em dia de assassinatos em série

Mais um policial militar foi morto em confronto com criminosos na Grande Belém. A vítima foi o soldado PM Rafael da Silva Costa, de 29 anos, lotado no Batalhão de Policiamento Tático Operacional (BPOT) da Polícia Militar. Ele estava em serviço por volta das 6h40, de ontem, com outras guarnições, em busca de assaltantes armados em um veículo no Bairro da Cabanagem em Belém. Houve troca de tiros e o militar foi atingido na cabeça. Ele chegou a ser socorrido para o Hospital Metropolitano de Urgência e emergência, em Ananindeua, mas não resistiu aos ferimentos. [...]

14 ASSASSINATOS

Após a morte do soltado da PM Rafael da Silva Costa, a Região Metropolitana de Belém viveu um dia de extrema violência, com outros 14 assassinatos. O caso é muito similar à chacina ocorrida na cidade em 2014, após o assassinato do cabo Pet (leia no caderno Polícia) (BECMAN, 2017, p. A3).

Nesse episódio, a vinculação das mortes à chacina é realizada pela referência a outro acontecimento similar, também narrado no espaço midiático, a chacina de 2014 (FERREIRA JUNIOR; LOUREIRO; COSTA, 2016), demarcando também uma espécie de trabalho narrativo que informa o contexto da ocorrência e da sua compreensão, pois, assim como essa chacina, aquela ocorreu após a morte de um policial militar, contou com envolvimento de assassinos não identificados, mas com suspeitas (e posteriormente evidências) de ligações com milícias, vitimou jovens negros em áreas periféricas da cidade. Esses são elementos do mundo sócio-histórico no qual se forma a narrativização desse acontecimento violento, que informam a configuração narrativa das ações que se seguirão, ao mesmo tempo em que abrem possibilidades de enredamento de outras narrativas. A narrativização nessa mesma edição prossegue em outro espaço do jornal, o Caderno Polícia, suplemento que cotidianamente apresenta matérias sobre violência urbana e mortes violentas no estado do Pará. No

217 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS interior do caderno, encontramos ainda a matéria “Violência sem limites: 16 assassinatos” (D’ALMEIDA, 2017). Com um pouco mais de detalhes, ela foca nos homicídios que sucederam a morte do policial, dando uma visão geral sobre o quadro das mortes na chacina. O que foi apenas citado no episódio inaugural passa a ser dimensionado aqui, fornecendo-se mais pistas para a compreensão dos elementos constitutivos dessa nova chacina. Há um desdobramento no gesto narrativo que enfatiza o escalonamento de uma violência letal – por meio, por exemplo, da relação entre a quantidade de mortos e o período das ocorrências –, que traz novos elementos à intriga narrativa do acontecimento, com novas ações. Assim, voltamos à HP para realizar a incursão analítica ao percurso de narrativização apontado acima. Cumpre ressaltar que é possível iniciar tal processo por meio dos três passos da HP definidos por Thompson: 1) análise sócio-histórica; 2) análise formal ou discursiva; 3) interpretação/reinterpretação, conforme explicados nas seções anteriores. Esse movimento é possível pelo fato de as narrativas do jornalismo estarem em um lugar que é de atravessamentos e tensões em relação ao social, em relação ao qual a sua constituição como forma simbólica é inegável. Buscamos apontar tais aspectos, assim, dentro do que é possível no espaço deste artigo. Na medida em que falamos de narrativas jornalísticas sobre violência, a primeira indagação é mesmo sobre os elementos do mundo sócio-histórico que a condicionam e as perfazem. De um modo muito concreto, podemos falar dos acontecimentos em contexto de violência urbana na cidade de Belém, de um recente contexto de “crise de segurança pública”, de uma mítica dos carros de milícias que percorrem a cidade e assassinam jovens nas periferias da cidade, em uma teia de eventos e de saberes da violência, que fazem seu caminho às narrativas jornalísticas e às falas cotidianas e institucionais (COSTA et al., 2017, 2018; FERREIRA JUNIOR; LOUREIRO; COSTA, 2016). Não obstante, essa violência policial, especialmente em Belém, é recorrente em um cotidiano no qual a chacina é a identificação que se dá a esses massacres por policiais e a um perigo que ronda o espaço periférico. De muitos modos, é possível pensar que a ocorrência da violência e o fato de ela constituir cenas a partir de uma lógica de narrativa policial é tributária também de uma continuidade autoritária que faz a polícia repressiva ser o único braço do Estado a chegar nesses espaços das cidades brasileiras (PERALVA, 2000; SMITH, 2016). Do ponto de vista de sua caracterização formal ou discursiva, já apontada também na seção anterior, é possível pensar que o trabalho narrativo confere à chacina uma conformação na vida social, fazendo com que se possa falar sobre as chacinas e sobre os eventos que as cercam. Essa inscrição narrativa envolve não só um agenciamento dos acontecimentos, mas também produz um percurso a partir do qual a violência urbana e letal passa a ser perspectivada. Não é um

218 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS processo de influência sem mediação, mas justamente de relações complexas com os saberes sobre a violência que povoam o mundo sócio-histórico e aqueles que as novas vinculações das narrativas geram. A narrativização da chacina da RMB alinhava, entre outros elementos, essa relação com os acontecimentos anteriores, a respeito da própria menção da chacina de 2014, mas se insere em um universo no qual outras chacinas já ocorreram e outros ocorrerão, apontando para uma narrativização que ultrapassa a leitura de um único acontecimento, ancorando em uma classe de eventos que mobiliza a narrativa jornalística por expedientes similares. Daí a emergência desses elementos que encontramos na configuração sobre as chacinas: vêm à cena personagens, como o policial morto – cuja morte inaugura a série de assassinatos –, em oposição aos mortos anônimos, aos quais se refere a partir da sua quantificação, que ocupam o centro desse cenário conflitivo da narrativa, cuja intriga se desenvolve apontando as ações e acontecimentos que emergem a cada novo episódio, produzindo uma descrição que configura simbolicamente esse acontecimento na vida social e faz com que ele exista em uma relação de compreensão do social pelo trabalho narrativo. Essa relação, por sua vez, nos conduz à possibilidade de interpretação/ reinterpretação, conforme apontada por Thompson. O substrato para a emergência das narrativas está na sua condição de inteligibilidade e circulação no ambiente social do qual emerge, o que permite esse movimento de reinterpretação. Do ponto de vista do que encontramos em relação aos dois primeiros movimentos, tanto dos elementos sócio-históricos quanto dos discursivos, é possível apontar para um contexto problemático no qual a violência é socialmente reproduzida e reafirmada com base em distinções que são também historicamente constituídas e que permitem a emergência do acontecimento que ocorre a alguém - neste caso, as mortes –, assim como a sua reinscrição na vida social a partir dos sentidos que a chacina e seus mortos adquirem. Daí, portanto, ser possível afirmar que o fato de haver milícias e esquadrões da morte agindo nas periferias da cidade é algo que pode informar estas ocorrências situadas nesse contexto histórico do presente, ao mesmo tempo em que é parte de uma realidade da violência presente no espaço brasileiro, que marca os corpos negros e periféricos como alvo da violência letal, muitas das vezes chancelada pelo Estado – atentando-nos, portanto, para a dimensão necropolítica da violência contemporânea no espaço brasileiro (MBEMBE, 2018; SMITH, 2016). Esse processo caracteriza, assim, uma situação problemática em que, mais do que naturalizada, a chacina passa por um processo de estabilização de sentidos que se opera em toda a cadeia dos elementos aqui apresentados, da sua emergência à sua recorrência, daquilo que ela dá a ver e daquilo que faz compreender.

219 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Discussão dos resultados

Diante disso, cumpre ressaltar que tal abordagem da narrativa no bojo da HP nos permite abarcar os aspectos de uma problemática social em caleidoscópio, sem incorrer em essencializações em relação à própria linguagem ou ao papel do jornalismo ou sobre uma dissociação completa entre contexto e forma simbólica. Na verdade, faz com que nos atentemos ao caráter principalmente de mediação das narrativas na experiência social, lançando mão de uma visada hermeneuticamente informada a fim de garantir uma abrangente leitura sobre esse atravessamento pelo social, que forja e que anima os acontecimentos na vida da sociedade. Se essa dimensão problemática destacada acima não é autoevidente na narrativa, ela emerge justamente no processo de leitura que realizamos, que alinhava mesmo a ideia ricoeuriana da dialética da explicação e da compreensão (RICOEUR, 1976). Assim, diante da chacina, é o percurso por esse arco hermenêutico abarcado pelo enfoque da HP que nos habilita a poder reconstruir os fragmentos da cobertura de “um crime”, pondo-os como partes de uma narrativa e de um percurso de narrativização de um fenômeno social, que convoca à fala e à solução nos limites e para além do espaço midiático. Se é possível dizer que há elementos da realidade social sobre os quais as narrativas jornalísticas de violência silenciam ou buscam apaziguar, o processo que alinhava o mundo sócio-histórico, sua textualidade e a sua reinscrição no social é tornado possível pelo movimento hermenêutico aqui proposto. Portanto, fazemos eco de modo concreto a considerações presentes já em estudos anteriores que enxergam na HP um aporto teórico-metodológico pertinente às Ciências da Comunicação. Os resultados dessa incursão dialogam com a perspectiva de Nazário, Reino e Manfredini (2016), para quem os sentidos que circulam por meio das notícias dão conta das dimensões conflitivas da produção de imagens e textos sobre a realidade, sendo capazes de revelar incongruências entre fins institucionais e a realidade do contexto de que essas notícias tratam. De modo similar, Gomes (2012) ressalta que o caminho analítico da HP se baseia nessa potencialidade de correlação de lógicas de pesquisa aparentemente heterogêneas, mas que permitem desenvolver uma reflexão que parte das narrativas da mídia e alcança processos sociais mais amplos em torno delas. Especificamente em torno da relação entre narrativas e acontecimento, Carvalho (2010, p. 355) aponta a HP como relevante na compreensão de que “os sentidos […] não se apartam do ambiente em que são construídos. Antes, se configuram precisamente pelas diversas modalidades de interações sociais verificáveis”. Essa postura resulta-nos também relevante nos cenários de apropriações da HP, na medida em que – mais do que estruturar um caminho demasiado rígido – enxerga nas etapas dessa proposta uma possibilidade de

220 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS maior abertura e de assunção de pressupostos hermenêuticos em relação à inserção das narrativas jornalísticas em negociações e disputas de sentidos. Assim, fazer esse percurso em relação a narrativas sobre a violência é uma das formas de destacar o potencial desse caminho metodológico na compreensão dos saberes em torno dessa violência e como eles se situam em cenários sociais quer de tensão quer de silêncios, cuja configuração analítica se torna viável ao se realizar uma incursão às narrativas jornalísticas. A HP, nesse sentido, apresenta- se como ferramenta que nos impele a pensar a violência além de seus aspectos “objetivos”, mas faz com que seja reinserida em processos comunicacionais nos quais importa pensar as narrativas não como atestado da realidade social, mas como reveladora dos trânsitos que as constituem.

Considerações finais

Ao final deste trabalho, cumpre assinalar que o referencial da HP como forma de analisar as narrativas do jornalismo fornece um caminho metodológico que é ao mesmo tempo prescritivo e aberto, na medida em que pressupõe aspectos de uma reflexão sociológica – sobretudo, quando da análise sócio- histórica –, mas também nos permite estar atento a movimentos de sentidos outros, quando nos interpela a usar métodos explanatórios da análise formal/ discursiva, como a própria análise da narrativa ou análise de conteúdo, e requer de nós que fechemos esse ciclo ou mesmo arco hermenêutico com uma visada original, criativa, pertinente, empírica e teoricamente informada. Como hermenêutica, ela requer abordagem qualitativa por excelência e não se furta a assumir a subjetividade desse processo, que é incontornável. Lançamos o nosso olhar em torno da violência, mas o escopo desse proposta é capaz de abarcar basicamente qualquer domínio da vida social no qual as formas simbólicas sejam produzidas, circulem e integrem processos de interpretação. Desse modo, ao trazer essa contribuição para os estudos das narrativas jornalísticas, buscamos assinalar possibilidades heurísticas que ultrapassem dinâmicas muito restritivas, como a de pensar em diegético versus não diegético, realismo versus estetização etc., já que cremos que o narrar nos conduz a novos lugares de fazer problema, muito mais claro se o pensamos em interface com a vida social. Portanto, por meio dessa abordagem é possível delinear em processo como o jornalismo apresenta relações entre saberes, dizeres, sujeitos e produções discursivas, projetando cenas narrativas que os alinhavam e constituem as narrativas jornalísticas tal como as encontramos no espaço midiático. Tal elemento é relevante para nossa reflexão, já que as fissuras, as tensões e os conflitos que são possíveis divisar a partir dessa incursão hermenêutica não são projetadas pelo jornalismo em isolamento com a sociedade, advindo desse social para tornar-se um saber animado e inscrito nas tessituras que o jornalismo configura.

221 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Referências

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224 Jornalista e fonte na narrativa jornalística: hierarquia, autonomia e problematizações em conceitos teórico-metodológicos

Karolina de Almeida Calado Heitor Costa Lima da Rocha

O narrador e a personagem na narrativa jornalística

Este capítulo busca refletir sobre qual o melhor aporte teórico-metodológico para aprofundar a compreensão da relação de autonomia entre o jornalista e a fonte na narrativa jornalística, tendo em vista as intencionalidades de cada pessoa envolvida na trama, as rotinas produtivas e a linha editorial do veículo. Partimos, então, do pressuposto desenvolvido por Motta (2013) que considera o jornalismo um campo em disputa, no qual o veículo, o jornalista e a personagem expõem conflitos e interesses capazes de moldar a realidade conforme os sentidos almejados. A partir desse argumento, objetivamos associar o estudo da articulação das falas no modelo de análise proposto por Motta (2013) à teorização de Genette (1989) e Stuart Hall et al (2016) sobre as variadas vozes presentes na narrativa. Nossa discussão está ancorada ainda em autores como Maia e Rodrigues (2009), Rocha (2007), Breed (2016) e Cornu (1999). Os sete movimentos1 ou categorias analíticas indicadas por Motta (2013), embora deem margem para a observação das várias vozes existentes na narrativa, possuem como maior foco a figura do narrador-jornalista. Ele explica que as fontes transformadas em personagens trazem as máscaras construídas pelo narrador, pois o mesmo é responsável por mediar os fatos e caracterizar as pessoas conforme a imagem idealizada. Seu conjunto teórico apresenta o caminho a ser seguido pelo analista que busca elucidar as estratégias utilizadas pelo narrador em sua fala, a fim de camuflar a narração, uma vez que grupos de mídia não admitem o jogo intersubjetivo e narrativo na produção noticiosa; e ainda insistem em validar o mito da objetividade e imparcialidade que implicam na ocultação da autoria do jornalista como narrador. Ideais de objetividade, imparcialidade e neutralidade já causaram calorosos embates científicos sobre a origem e apropriação desses pelo jornalismo. Pesquisadores como Genro Filho (1996), Hohlfeldt (2001), Goulart

1 1º - Compreender a intriga como síntese do heterogêneo; 2º - Compreender a lógica do paradigma narrativo; 3º - Deixar surgirem novos episódios; 4º - Permitir ao conflito dramático se revelar; 5º - A personagem, metamorfose de pessoa a persona; 6º - As estratégias argumentativas; 7º - Permitir o florescimento das metanarrativas (MOTTA, 2013).

225 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

(2002), Sponholz (2008) e Rocha (2007) apresentaram importantes estudos denunciando as distorções e mitificação de tais conceitos no campo jornalístico. Para Rocha (2007), a busca pela imparcialidade gera uma supressão da figura do narrador, transformando o mesmo em mero reprodutor da realidade, “o uso de técnicas precisas de descrição do real, ao retirar do jornalista parte do seu poder de manobra como codificador, retira-lhe também parte de sua responsabilidade. Não é o repórter quem fala e escreve, e sim a realidade por ele espelhada” (ROCHA, 2007, p. 172). Maia e Rodrigues (2009) complexificam o debate ao argumentarem que a noção do “jornalismo espelho da realidade” não leva em consideração a trama social permeada de conflitos, nem o processo hierárquico com que determinadas vozes sobressaem em detrimentos de outras. “O discurso com a típica ‘aura de objetividade’ acaba por pedir para que as pessoas não participem dos conflitos sociais. Se uma sociedade tem uma pluralidade de vozes, uma delas exercerá hegemonia e procurará mantê-la, ou seja, não permitirá que todas as vozes falem com o mesmo caráter de verdade” (MAIA; RODRIGUES, 2009, p. 3). Acreditar que é possível transcrever a realidade tal como ela aparece, é não enxergar as desigualdades existentes e as posições sociais assimétricas nas quais os indivíduos estão situados. Essa concepção serve, certamente, para reforçar o falso ideal de igualdade que busca manter o discurso da classe dominante nos grandes meios de comunicação. “Um discurso comunicacional que não dê conta dessa desigualdade de acesso ao controle dos órgãos de comunicação não pode estabelecer um elo com a sociedade, já que privilegiará determinada classe dominante ao difundir uma comunicação que se isenta de julgamentos de valores, que se limita a apresentar os fatos” (MAIA; RODRIGUES, 2009, p. 3). De acordo com os autores, entretanto, é possível construir um ideal de verdade, mesmo que ciente da falibilidade, a partir da captação na construção da notícia, a qual é caracterizada pelo método investigativo, apuração, diálogo e tratamento humano entre o profissional e as fontes envolvidas. Esse prazer pela construção de um bom texto jornalístico, humano, próximo do real, que envolve apuração e tratamento na narrativa jornalística, acompanha boa parte dos jornalistas, os quais agem a partir do valor-notícia denominado por Motta (2013) de valor-narrativa, que descreve uma intenção estética por trás da ação do jornalista. Além do valor-narrativa que revela o desejo do jornalista de tornar seu texto chamativo, emocionante e coerente, existe o dilema de perceber sob qual enquadramento o profissional direcionará sua reportagem. Há uma tensão gerada entre personagens e narrador quando cada um defende interesses díspares. Se por um lado o repórter tem uma autonomia maior em boa parte do tempo, por outro, a fonte que se torna personagem, pode ser detentora de uma informação à qual o veículo é dependente, transformando-se em “definidora primária”. Para Hall et al. (2016), após uma fonte oficial definir

226 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS o “enquadramento do problema”, dificilmente uma fonte alternativa, ou seja, um contradefinidor o desconstruirá. Neste sentido, Cornu (1999) chega a considerar a existência de uma “assimetria fundamental”, em face da necessidade dos jornalistas de elaborarem estratégias para enfrentar a sua complexa relação com as fontes, que se desenvolve em níveis diferentes segundo o estatuto dos próprios jornalistas com o objetivo de superar a condição de inferioridade.

A obtenção de informações é sempre o resultado de uma negociação implícita, de uma relação de forças entre um dominante (o informador) e o dominado (o que procura). Por um lado, a oferta é monopolística (o informador pode escolher o momento e o conteúdo da oferta); por outro, a procura é concorrencial (em muitos casos são vários jornalistas que procuram a mesma informação). Esta assimetria só raramente respeita o princípio da alternância. As fontes permanecem de uma forma geral senhoras da situação, sobretudo quando representam o poder (os representantes dos corpos constituídos do Estado) e o seu aparelho (a administração), ou os meios influentes no seio da sociedade. (CORNU, 1999, p. 271).

Ao encontro dessa discussão, uma outra perspectiva teórica pode auxiliar nossa compreensão acerca das vozes presentes na narrativa: trata- se da ideia de níveis de poder, extradiegético, intradiegético e metadiegético (GENETTE, 1989). Esses se relacionam ao processo de subordinação entre os envolvidos na narrativa, especialmente narrador e personagens. A partir dessa teorização, Motta (2013) faz uma alusão à hierarquia entre veículo, jornalista e personagens. Interessa-nos, então, desenvolver o diálogo sobre o esquema teórico-metodológico de ambos os autores, estabelecendo uma ponte sobre os limites conceituais propostos por Hall et al. (2016).

As vozes na narrativa a partir de distintos embasamentos teórico- metodológicos

A abordagem de Motta (2013) sobre a presença de fontes na narrativa jornalística nos ajuda a compreender as estratégias argumentativas dos narradores, bem como o jogo de sentido desenvolvido pelas próprias personagens em questão. Fundamentado na teoria pragmática, cuja proposta leva em consideração a intencionalidade dos indivíduos, Motta (2013) propõe que não há ingenuidade na narrativa, e que a fala de cada um, seja do jornalista, seja da fonte, atua para construir efeitos de sentidos pretendidos, conforme seus valores e interesses, embora ele reconheça a hierarquia de forças nesta relação. Seu modelo de análise trata-se de um guia que concebe o texto jornalístico não mais como uma versão objetiva e imparcial, capaz de revelar a verdade e transcrever a realidade. Sua concepção enxerga o texto jornalístico como

227 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS narrativa e demonstra que cada notícia ou reportagem apresenta apenas uma versão da história dentre tantas possíveis. Essa constatação é possível após análise da estrutura das narrativas e seus recursos discursivos. Dos sete movimentos encontrados, entre os quais o foco na análise pode ser a estrutura da narrativa ou o pano de fundo ideológico, dois deles, em particular, chamam nossa atenção para a discussão aqui presente. O primeiro busca dar suporte ao analista na observação do processo de transformação da personagem em persona, ou seja, perceber as máscaras em que uma pessoa é vestida; e o segundo traz o enfoque para as estratégias argumentativas do narrador. Ele propõe uma série de pistas sobre como identificar as características, o uso de dêiticos e adjetivos usados pelo narrador. É possível identificar, inclusive, o esforço para tornar um texto objetivo ou imparcial quando se lança mão de dados, lead ou da fala das fontes. Motta (2013) mostra a complexidade que há na relação dos atores envolvidos na narrativa jornalística e prevê três diferentes narradores para a narrativa jornalística: o veículo, o jornalista e a personagem. Destaca que os três estão na luta simbólica pela melhor versão, para estabelecer qual informação será considerada a “verdade-verdadeira”. Propõe que o narrador-personagem, que está numa posição subordinada em um momento, pode estar no comando em uma situação seguinte, pois na comunicação a relação entre os indivíduos é dialética. Entretanto, Motta (2013) não esconde a relação de poder do veículo para com o jornalista e do jornalista para com o personagem. Ancorado em Genette (1989), Motta (2013) discute o processo hierárquico do exterior ao interior da narrativa, da autoria até a personagem. O autor faz um esquema gráfico baseado em Genette (1989) para ilustrar como as vozes estão presentes no texto e como as mesmas se articulam a partir de uma posição extradiegética e intradiegética. “Na produção jornalística, os três níveis de domínio de voz de modelo de Genette se manifestam através de uma escala de subordinação relativamente nítida (embora haja sempre situações controversas e complexas)” (MOTTA, 2013, p. 223). A proposição de Genette (1989) coloca em cheque a sobreposição de vozes na narrativa literária, a partir do momento em que se concebe a diegese, ou seja, a virtualidade, o universo ficcional ou o “mundo real” pertencente à narrativa. Há uma adaptação do modelo literário para o jornalístico, embora saibamos que a própria reportagem faz uso também da ficção, a exemplo de personagens que são transformados em mito, vilão, vítima ou herói. A articulação dessas vozes no texto é cara para Genette (1989) que divide em três níveis as vozes na narrativa: extradiegético, o intradiegético e o metadiegético. O primeiro é a voz externa que pode pertencer ao autor; o segundo é a voz das personagens e a terceira está associada a outros narradores internos que também podem pertencer a outros personagens dentro daquela história. Motta (2013) faz alusão a Genette (1989) para explicar a articulação das

228 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS vozes no texto jornalístico. “No jornalismo os sujeitos envolvidos na narração são sempre pessoas ou instituições vivas e ativas que assumem no ato de enunciação o papel de atores do discurso, que se projetam sobre os sujeitos interlocutores da representação (mimese)” (MOTTA, 2013, p. 233). A primeira voz que aparece em sua teoria pertence ao narrador-veículo, que pode ser um jornal, uma revista, um telejornal ou um jornal online - esse, por sua vez, possui o maior poder de voz na hierarquia e utiliza de seu poder para subordinar os demais narradores. O narrador-veículo é extradiegético e atua no gerenciamento de atenção, busca audiência a partir da sedução de manchetes, chamadas e títulos e objetiva o aspecto econômico com a venda de boas histórias. “(…) O veículo joga assim, um jogo de atração, sedução e persuasão no sentido semiótico da palavra, mas que põe também em operação interesses comerciais e institucionais desse narrador” (MOTTA, 2013, p. 227). É o veículo que possui a legitimação social para ser portador da verdade. “Na divisão social do trabalho moderna, os veículos de comunicação recebem da comunidade não só a incumbência de dizer e narrar, mas ao mesmo tempo uma autoridade pressuposta e reconhecida (ainda que não diretamente outorgada) para contar a estória verdadeira” (MOTTA, 2013, p. 227, grifo do autor). Já o narrador-jornalista é subordinado ao narrador veículo, mas possui uma relativa autonomia de voz, utiliza-se de uma performance para construir a tecitura da intriga e interpretar os papéis de cada componente do conflito. Ele seleciona os atores sociais e posiciona no espaço que lhe convém, conforme seus interesses pessoais, profissionais e o interesse do jornal para o qual trabalha, “(...) inclui, exclui, destaca, hierarquiza segundo seus valores pessoais, profissionais e os interesses do jornal ao qual está subordinado, que ele assimila como uma cultura profissional, e de acordo ainda com a sua negociação com as fontes” (MOTTA, 2013, p. 228-229). O narrador-jornalista tem, segundo o estudioso, uma relativa autonomia. Ele media sua atuação em relação às outras vozes ali presentes e age para que o conteúdo que deseja ressaltar seja formatado segundo seus moldes preestabelecidos, respeitando prazos e se fazendo compreensível. “Ele negocia a configuração da estória com o jornal e com as fontes a partir de sua posição e ethos profissional: todo jornalista é possuído de forte ethos e age em função dele – o desejo de contar uma boa estória (uma estória coerente, equilibrada, verídica)” (MOTTA, 2013, p. 229). Conforme anteriormente falado, o jornalista atua a partir do valor-narrativa, com o objetivo de desenvolver uma boa narrativa que cause impacto positivo. “(…) Imbuído desse desejo, ele negociará com os outros poderes movido pela exigência profissional de configurar uma boa narrativa. O valor-narrativa, desejo de ordenar uma estória coerente, atraente e verídica rege, portanto, a sua ação” (MOTTA, 2013, p. 229). O narrador-personagem, subordinado ao jornalista e ao jornal, traz consigo também uma relativa autonomia de voz, porque ele é fonte de informação à qual

229 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS o jornalista precisa recorrer, “(…) esses atores sociais passam muitas vezes a narrar como testemunhas, ganham status de personagens e voz ativa na estória, transformando-se, em última instância, também em narradores” (MOTTA, 2013, p. 230). Ciente de seu papel enquanto ator social, ele age para defender seus próprios interesses. Dependendo do cargo que ocupa e de sua posição na narrativa, poderá ter maior ou menor poder de voz. O autor deixa claro que aquele que está subordinado em um primeiro momento poderá ser subordinador em um momento posterior, pois essa relação é fluída e dinâmica. No modelo de análise de Motta (2013), o primeiro narrador, ou seja, o veículo, tende a exercer o maior poder da cadeia, estipulando o que o repórter vai abordar e investigar, mas isso não significa que não haja abertura para distintas perspectivas. A personagem-fonte que está sendo abordada pelo jornalista também não é ingênua. Ela sabe do poder social que a mídia possui. Seu discurso, portanto, estará alinhado aos resultados que deseja alcançar mediante exposição, mediante fala (MOTTA, 2013). As fontes sabem de sua importância para o jornalismo, sabem que o jornalista busca suas informações para associar credibilidade aos seus relatos. A fala da personagem poderá permear todo o texto jornalístico com citações diretas ou indiretas dependendo de sua relevância para a narrativa. Ao tomar consciência da visibilidade que a mídia proporciona, as fontes tentam distorcer fatos em seu próprio benefício e em prol do favorecimento das instituições das quais fazem parte; para isso, contam com o apoio de assessorias de imprensa. Para Hall et al. (2016), a fonte e o jornalista possuem uma relação diferente daquela pensada por Motta (2013). Hall et al. (2016) procuram dar o enfoque para as fontes, pois as consideram mais decisivas em termos de enquadramento do que o jornalista, seus olhares estão sobre a fonte, enquanto Motta (2013) busca complexificar tal questão. Os autores trazem à tona a discussão sobre os critérios de noticiabilidade e enfatizam o quão relevantes são os rituais na rotina de produção para facilitar que alguns objetivos sejam atingidos, a exemplo dos ideais de imparcialidade e de objetividade. Para tanto, os jornalistas procuram fontes oficiais disponíveis que possam dar mais confiabilidade ao conteúdo. A partir desse critério, vozes que comumente falam se tornam cristalizadas e desenvolvem um domínio sobre as demais. Os jornalistas transferem a responsabilidade do conteúdo para as fontes noticiosas, munidos de um ideal de objetividade, fingindo não narrar e fingindo descrever os fatos tal como acontecem. Wolf (2003) e Tuchman (2016) acreditam que a consulta a determinadas vozes acontece não exatamente por uma questão ideológica, mas por um exercício rotineiro atrelado à rotina de produção. Limitados pela lógica do tempo e do furo de reportagem, e para se resguardar de problemas em relação a questionamentos sobre a parcialidade na interpretação dos fatos, os jornalistas consultam geralmente as mesmas fontes em seu dia a dia. Para Wolf (2003), os

230 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS valores-notícia permitem que as rotinas produtivas nos meios de comunicação garantam o funcionamento da produção noticiosa, sem os quais dificilmente se conseguiria produzir em tão pouco tempo, com um menor custo financeiro. O posicionamento desses autores é pertinente e revela uma parte da problemática, mas não a sua totalidade. Em relação ao fator tempo, na concepção de Wolf (2003), a fonte que possui maior credibilidade e tempo tem mais chance de se tornar uma fonte regular. “As fontes não são, por isso, todas iguais e todas igualmente relevantes, assim como o acesso a elas e o seu acesso aos jornalistas não está uniformemente distribuído” (WOLF, 2003, p. 198). Tal discussão vai ao encontro da proposição de Gans (1979, p. 81 apud WOLF, 2003, p. 224): “Aqueles que detêm o poder econômico ou político podem, facilmente, ter acesso aos jornalistas e são acessíveis a estes; aqueles que não têm qualquer poder, mais dificilmente se transformam em fontes e não são procurados pelos jornalistas até as suas acções produzirem efeitos noticiáveis enquanto moral ou socialmente negativos”. Corroborando a posição de Gans (1979) e Wolf (2003), Hall et al. (2016) analisam a hierarquia da credibilidade proposta por Becker e enfatizam que os media reproduzem as estruturas de poder existentes na sociedade. “(…) Deste modo, os media tendem, fiel e imparcialmente, a reproduzir simbolicamente a estrutura de poder existente na ordem institucional da sociedade” (HALL et al., 2016, p. 316). Para Hall et al. (2016), os meios de comunicação atuam ideologicamente, mas sem deixar pistas. Devido aos ideais de objetividade e imparcialidade, transferem para as fontes de informação a responsabilidade da fala, daquilo que é dito no seu conteúdo midiático (MOTTA, 2013; HALL et al., 2016). Ao questionarem o modo como as vozes são incluídas no texto jornalístico e problematizarem que o jornalismo faz um recorte de classe em seu discurso, Hall et al. (2016) observam que tal postura resulta no fato de a ideologia dos media ser, quase sempre, a da classe dominante. A partir do conceito de definidores primários, eles explicam que as fontes “credíveis” são aquelas que estão hierarquicamente em posições sociais distintas e a elas cabe a função de oferecer a “versão oficial” dos fatos. Essas fontes fazem o que Hallet al. (2016) chamam de “enquadramento do problema”, ou seja, são responsáveis por formular a versão oficial da história, a “verdade”; não possibilitando uma versão distinta ou alternativa oriunda de um contradefinidor. Tal postura reverbera em um oligopólio da fala por grupos de poder, em que grupos minoritários não possuem ressonância nesses grandes grupos de comunicação.

Principais considerações

Conforme explicado no tópico anterior, estamos diante de duas perspectivas teóricas que se diferenciam, mas há possibilidade de convergirem. No primeiro

231 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS caso, observamos que a teoria de Motta (2013) busca orientar para o relativismo e a importância da voz de cada figura na narrativa, atribuindo poderes a cada uma delas. Embora também esse autor deixe claro que o poder é transitório e depende do papel que cada um exerce em um determinado contexto: o veículo orienta a linha editorial a ser seguida; o jornalista enquadra a história; e a fonte decide se fala, e em quais condições. Entretanto, um poder considerável é destinado ao jornalista por sua capacidade de negociar com o veículo e com a fonte, pois é ele quem narra a partir do critério de noticiabilidade valor-narrativa. O modelo de análise de Motta (2013) está voltado à teoria da narrativa, portanto, é compreensível que haja uma importância especial ao narrador. Seu modelo teórico dividido em sete movimentos busca exatamente direcionar o foco para quem narra os fatos, a exemplo de como o narrador estrutura a narrativa, qual modelo organiza seu texto, como constrói seu enredo com base na intriga, como elenca a sequência dos episódios, em torno de qual conflito dramático a narrativa se estrutura, quais as pessoas que escolhe para fazer parte do texto, quais as estratégias argumentativas utilizadas e em qual pano de fundo cultural a narrativa está estruturada. Trata-se de um material muito rico, porém, alguns questionamentos podem ser desenvolvidos com base na responsabilização do profissional, entre elas: não contar com a possibilidade de o editor atualizar o texto do repórter e ali estarem impressas não necessariamente o recorte de quem assina a matéria, em uma atitude que deixa evidente o poder do narrador-veículo sobre os demais narradores. Na teoria problematizada por Hall et al. (2016) temos também uma abordagem diferente que evidencia a importância da fonte em detrimento das demais vozes na narrativa. A concepção revelada no artigo “The Social Production of News: Mugging in the Media” publicado primeiramente no livro “The Manufacture of News” de Stanley Cohen e Jock Young e, posteriormente, no livro de Nelson Traquina “Jornalismo: questões, teorias e estórias”, traz à tona a importância das fontes de forma decisiva nos meios de comunicação, uma vez que possuem legitimidade por portarem o discurso da classe dominante. Elas são privilegiadas e estão em um patamar de superioridade em relação aos demais membros da sociedade, pois revelam um ethos distintivo e ocupam cargos como representantes de órgãos do poder executivo, legislativo, judiciário, administrativo, entre outros. Essas figuras públicas são consultadas todas as vezes que há necessidade de checar alguma informação, ou seja, determinadas pessoas são mais portadoras da verdade do que outras e, na narrativa jornalística, elas se tornam personagens centrais, são os primeiros a definir uma situação, a construírem o enquadramento do problema. Essa concepção não leva em consideração que, dependendo da linha editorial de um veículo, o poder de decisão de uma fonte, a exemplo de um político de um determinado partido, é quase nulo, uma vez que o veículo não dá espaço para o seu conteúdo específico ou mesmo age para distorcê-lo.

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Assim, além de não distinguir na produção jornalística o espaço de atuação do jornalista e da política editorial da organização empresarial, a visão estruturalista de Hall et al. (2016), a despeito de sua auspiciosa concepção de que a definição primária das notícias está, em grande medida, determinada pelas fontes oficiais da estrutura de poder dos grupos que controlam o aparelho de Estado e as grandes corporações do mercado, conclui que o alinhamento da mídia noticiosa com a ideologia dominante se dá de forma involuntária, embora autônoma. O construto teórico que poderá ser utilizado em uma análise da narrativa pode levar em consideração tanto a teoria de Motta (2013), quanto a teoria de Stuart Hall et al. (2016). A relação entre o jornalista e a fonte é imbricada e complexa, não sendo possível defender em absoluto o estruturalismo e mostrar apenas que o poder de decisão está nas mãos das fontes ou do jornalista. Tomemos, por exemplo, o caso da Lava Jato, em que determinados veículos dão espaço e poder de fala a personagens da Polícia Federal, Justiça Federal ou determinados políticos, enquanto outros tipos de mídia enquadram a narrativa de modo a tornar a fala da Polícia Federal inválida e ressaltar a defesa de outros réus - cada um a partir de uma abordagem específica. É primordial que a função de integrantes de uma narrativa seja analisada tanto em termos de intencionalidades quanto em termos de relações estruturais que determinam as posturas dos narradores. Um caminho metodológico que dê conta de compreender intencionalidades e estruturas pode relacionar a demarcação da predominância de falas de fontes oficiais, por exemplo, com o modelo de análise proposto por Motta (2013), a partir do estudo das estratégias argumentativas, ou seja, das pistas deixadas pelo narrador-jornalista, a exemplo de figuras de linguagem, dêitico espaço-temporal e dados estatísticos para criar efeitos estéticos ou de real, bem como transformar pessoas em personagens conforme objetivos específicos. A perspectiva teórico-metodológica que poderá ser associada a função da fonte em relação ao jornalista a partir da concepção de “definidores primários” e “secundários”, questionará a voz que sobressai em determinadas narrativas, atentando para quem e como elaboram o “enquadramento do problema”. Essa análise pode acontecer de forma simultânea. Portanto, a análise das estratégias argumentativas propostas por Motta (2013), junto à noção de definidores primários e secundários, é importante para diagnosticar o jogo de poder e sobreposição de vozes por motivos ideológicos e/ou comerciais. Na concepção de Stuart Hall et al (2016), a importância da fonte é evidenciada de forma superior em relação ao jornalista e ao veículo, pois sendo ela detentora da informação da qual o jornalista precisa, ela procura administrar de forma a desenvolver um perfil que valorize suas características positivas, ou seja, ressaltará determinados aspectos e não outros. Os autores propõem que as fontes possuem poder de dar um enquadramento definitivo e, justamente, por estarem de acordo com a classe dominante, os mesmos

233 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS procuram trazer o foco para tais falas. Essa concepção é confirmada por Miguel e Biroli (2010), os quais mostram que, como os jornalistas pertencem à classe dominante, os mesmos abrem espaço para a voz dessa classe, não havendo, portanto, um pluralismo. Na complexa relação dos jornalistas com as fontes e a política editorial da organização empresarial, podem-se registrar duas perspectivas diametralmente opostas, ainda que igualmente consideradas equivocadas por Serra (2001). Por um lado, uma abordagem liberal-pluralista, vinculada a uma concepção dos veículos de comunicação de massa como “organizações independentes da estrutura de poder da sociedade, controladas principalmente externamente pelos seus consumidores e pela competição entre as fontes e internamente pelos seus profissionais, influenciados pelos valores comuns da sociedade” (SERRA, 2001, p. 85). Dentro dessa perspectiva, compete, idealmente, à mídia noticiosa as funções de vigilância sobre os governos, garantia de acesso de todas as interpretações e a disponibilização de representações objetivas para o estabelecimento de um debate amplo e geral nas questões de interesse público. Por outro lado, na perspectiva oposta, a abordagem radical denuncia que os meios de comunicação exercem, principalmente, a função de veiculação da ideologia da classe dominante, devido à sua subordinação aos interesses do Estado capitalista e demais organizações poderosas na sociedade, apresentando uma atuação controlada pelos governos, anunciantes e proprietários, sob a influência das condições econômicas do mercado, a exemplo da concepção marxista estruturalista de Althusser (1980). Na superação deste reducionismo dicotômico entre a liberdade absoluta de atuação do jornalista, porteiro responsável pela passagem de acontecimentos, fontes e versões para se transformarem em notícia, por um lado, e, por outro, a determinação total da atuação do profissional pela política editorial ditada pelos controladores do investimento de capital no negócio da indústria das notícias, apresenta-se como esclarecedora a reflexão de Breed (2016). Segundo o teórico estadunidense, idealmente, numa democracia plena, não existiria nenhum problema de “controle” ou de “política” no jornal. As decisões estariam condicionadas exclusivamente pela natureza do acontecimento e a habilidade do repórter para o descrever. Na realidade empírica, porém, verifica- se que o proprietário define a política editorial que é, geralmente, seguida pelos membros do corpo redatorial. Para Breed (2016), a aceitação, no entanto, não é automática devido às normas éticas da ideologia profissional do jornalismo, que prescrevem aos veículos uma autocompreensão normativa comprometida com a autoridade do público; ao fato dos jornalistas funcionários terem posições e interesses ideológicos diferentes dos seus patrões e poderem invocar as normas éticas para justificar enquadramentos além dos limites da política editorial; e ao “tabu ético”, que impede o proprietário de obrigar abertamente seus subordinados a seguirem a sua orientação, sob pena de desmoralizar a imagem do veículo e

234 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS comprometer a sua credibilidade junto ao público (BREED, 2016). O imprescindível desafio do conquistar a credibilidade do público, no entendimento de Breed (2016), impõe o cuidado evidenciado no “tabu ético” de não transparecer, na visibilidade midiática ou mesmo nos manuais de redação, os aspectos mais delicados da política editorial, exatamente aqueles que demonstram compromisso com interesses particulares poderosos em detrimento do interesse público e do bem-estar coletivo. Para constranger os jornalistas a se conformarem nos limites da política editorial determinada pelo proprietário e seus executivos, que, muitas vezes, transgride as normas deontológicas do jornalismo, Breed (2016) registra que a organização empresarial conta com uma série de mecanismos dissimulados, que podem ser sintetizados em seis fatores para evitar desvios dos jornalistas funcionários. 1 - A autoridade institucional e sanções, por suas implicações evidentes. 2 - Sentimento de obrigação e de estima para com os superiores. Como as questões mais delicadas da política editorial não são explicitadas nos manuais de redação, os novos jornalistas aprendem a evitar reprimendas através de conselhos dos mais experientes. 3 - Aspirações de mobilidade. Como todo jovem profissional, o jornalista iniciante tem a expectativa de conseguir viabilizar sua carreira. 4 - Ausência de grupos de lealdade em conflito. As características de uma atividade profissional altamente intelectualizada motivam aspirações elitistas e posições refratárias à organização sindical ou mesmo em comissões de ética. 5 - O prazer da atividade. O trabalho cooperativo de elaboração dos conteúdos que servem de referência para a noção de realidade das pessoas reveste-se de uma satisfação especial. 6 - A notícia torna-se um valor. Como as notícias são um desafio constante que deve ser superado diariamente pelo jornalista, há uma recompensa gratificante com a realização dessa tarefa. Por outro lado, Breed (2016) teve a admirável sensibilidade para reconhecer a existência de cinco fatores significantes dentro da área de influência do repórter que o ajudam a abrir brechas na orientação política do veículo. 1 - As normas da política editorial nem sempre são explicitadas claramente, pois muitas são vagas e não estruturadas. Assim, política editorial é dissimulada por natureza e tem um largo raio de ação, o que faz surgir uma “zona de crepúsculo que permite um raio de desvio”. 2 - Os executivos podem desconhecer alguns dados de informação e os jornalistas-repórteres, que têm que ir às ruas para obter notícias, podem utilizar os seus melhores conhecimentos na subversão da política editorial, uma vez que têm a opção de seleção em muitos pontos. 3 - Os repórteres podem utilizar a tática da “prova forjada”, quando obtêm uma boa notícia e a política editorial veta sua publicação, repassando a informação para colegas de outros veículos publicarem e, assim, posteriormente, poder abordar o assunto. 4 - Quando setoristas, os jornalistas usufruem uma certa autonomia, já que têm a oportunidade de sugerir pautas e, assim, influir no seu enquadramento e orientação política. 5 - Os jornalistas mais experientes e conceituados, com um

235 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS estatuto de “estrela”, podem, frequentemente, transgredir a política editorial, pois seus superiores, em geral, temem entrar em controvérsia com eles e, assim, ficarem desmoralizados na redação devido ao seu notório maior acervo de conhecimentos na atividade profissional. Desta maneira, Breed (2016, p. 163) conclui que “estes cinco fatores indicam que, sob certas condições, os controles que levam ao conformismo com a política editorial do jornal podem ser ultrapassados”, aprofundando a compreensão sobre as complexas contradições de interesses entre os jornalistas, a organização empresarial e o público.

Conclusão

Procuramos ressaltar em nossa presente abordagem duas perspectivas que estudam a relação entre o jornalista e a fonte, entre o narrador e o personagem. Concluímos que ambas possuem sua importância, mas também específicas fragilidades. A primeira mostra o poder do narrador-veículo intensificado, o primeiro na hierarquia, e considera o jornalista com relativa autonomia de voz, entretanto, faltou especificar melhor a atuação do narrador-veículo no papel do editor ou diretor, os quais podem influenciar de tal forma a transformar o texto jornalístico de acordo com a linha editorial. Em sua teoria, o enfoque é dado ao repórter por esse ser responsável pela elaboração da estrutura textual, mas há condicionamentos externos de cunho político e ideológico, não somente no que diz respeito ao pano de fundo tratado pelo autor como metanarrativa. A intencionalidade do jornalista não é meramente casual e pessoal. Dentro desse argumento podemos colocar que há uma rede de repórteres que podem atualizar informações em uma cobertura. O jornalista lança mão do valor-narrativa para escrever um bom texto, mas ainda é influenciado por estruturas dominantes que o levam a querer abordar um específico projeto-dramático a partir de uma ótica e não de outra, a entrevistar determinadas pessoas tendo em vista a repercussão entre anunciantes, etc. A responsabilidade dada ao indivíduo por toda estrutura e direcionamento do texto é passível de discussão, uma vez que até mesmo as temáticas são independentes da atuação do veículo, pois sua credibilidade é posta em xeque quando não noticia fatos que estão circulando em veículos concorrentes. A narrativa pode ser desenhada conforme o desejo do narrador, mas, ao mesmo tempo, pode ter um direcionamento que independe dele. Sugerimos, nesse sentido, que no momento da análise, a teoria pragmática da narrativa jornalística proposta por Motta (2013) seja associada a alguma base teórica de cunho estruturalista, no sentido de observar não apenas a narrativa em si, mas os contextos social e histórico, em uma análise que extrapola a materialidade textual e as intencionalidades dos indivíduos. Ao trazer o jornalista como definidor secundário, acreditamos que Hallet al.

236 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

(2016) não dão conta da compreensão mais ampla do problema. Entendemos que o jornalismo é um campo em disputa, e que os interesses de todos ali envolvidos formam uma trama complexa. Por mais que se tenha a predominância de uma voz, a exemplo de uma fonte oficial poderosa, se o conteúdo não estiver de acordo com a linha editorial do veículo, o editor e os repórteres agirão no sentido de adequar, distorcer ou omitir informações. Falta na teoria de Hall et al. (2016), por sua vez, a ponderação sobre a complexidade que permeia os narradores. Eles compreendem o jornalista como força secundária e a fonte como força primária, ao contrário de Motta (2013). É relevante evidenciar que não apenas as classes dominadas estão fora do discurso, mas parte da classe dominante que não está de acordo com a linha editorial do veículo. Sabemos que a leitura de classe é muito importante inclusive nos dias atuais, mas em uma sociedade heterogênea em que os interesses são múltiplos e estão no nível simbólico e econômico, a compreensão do discurso presente na mídia de modo polarizado é um tanto simplista e perigosa.

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238 Narrativas IVconvergentes Cobertura jornalística transmídia de megaeventos esportivos: proposta metodológica aplicada às Olimpíadas de Sochi (2014) e do Rio de Janeiro (2016)

Lorena Tárcia Geane Alzamora Renira Gambarato

Introdução

No cenário midiático contemporâneo, os fluxos de informação permeiam meios de comunicação variados pela ação integrada de produtores e consumidores de informação. Surge, nesse contexto, o conceito de Narrativa Transmídia (NT), bastante difundido por Jenkins (2006). Trata-se de super-sistemas comerciais de intertextualidade transmídia, tal como proposto por Kinder (1991), em referência a franquias robustas distribuídas por múltiplas plataformas midiáticas. O conceito pressupõe a construção de universos, fictícios ou não, expandidos por distintos meios e enriquecidos a partir da participação das audiências. Embora Kinder (1991) e Jenkins (2006) considerem, principalmente, o domínio do entretenimento e Freeman (2016b) identifique a origem dos fenômenos transmídia nas estratégias publicitárias, os princípios das NTs, conforme Jenkins (2010), estendem-se para esferas como ativismo, branding, política, educação e jornalismo, entre outras. Kerrigan e Velikovsky (2016) argumentam que as formas transmídia não-ficcionais seguem os mesmos princípios e definições das franquias de entretenimento e reconhecem o fortalecimento e contínuo crescimento do fenômeno. O jornalismo transmídia apresenta dinâmicas semelhantes às do entretenimento, ao expandir narrativas noticiosas por plataformas diversificadas e cultivar a participação cidadã em suas dinâmicas produtivas. O público pode estar envolvido nas etapas de apuração, edição ou compartilhamento, via websites ou mídias sociais digitais, contribuindo, desta forma, para a construção de narrativas não-ficcionais ampliadas.

Em suma, consideramos que o jornalismo transmídia, bem como outras aplicações da NT em perspectivas ficcionais ou não-ficcionais, é carac- terizado pelo envolvimento de (1) múltiplas plataformas de mídia, (2) expansão de conteúdo e (3) engajamento da audiência. O jornalismo transmídia pode tirar proveito de diferentes plataformas de mídia como televisão, rádio, mídia impressa e acima de tudo, internet e mídias mó-

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veis para contar histórias mais profundas. A expansão do conteúdo, em oposição à repetição da mesma mensagem em várias plataformas, é a essência da NT e, portanto, também deve ser o ponto focal deste tipo de jornalismo. (GAMBARATO; TARCIA, 2017, p. 1387).

Outra característica relevante da Narrativa Transmídia, com implicações diretas no jornalismo, diz respeito às expansões contingentes ou planejadas. Fast e Örnebring (2015) chamam de emergente/ad hoc os universos transmídia que evoluem ao longo do tempo, cocriados por profissionais e amadores; já a essência planejada/estratégica, para estes autores, diz respeito à estruturação e cuidadosa repartição de narrativas por várias plataformas de mídia. Gambarato e Tárcia (2017) enfatizam o aspecto planejado envolvido na otimização do jor- nalismo transmídia, pois se torna um processo proativo planificado, com jorna- listas assumindo a responsabilidade pela estruturação do universo constituinte da história, em seus diversos ângulos e ampliações, fazendo uso estratégico das oportunidades de engajamento da e com a audiência. Embora um jornalismo noticioso inserido em rotinas produtivas diárias seja possível, Moloney (2011, p. 12) argumenta que “o jornalismo diário, com sua brevidade restrita no tempo, não é uma opção viável. Transmídia deve ser pro- jetada com cuidado e desenvolvida com um longo prazo para ser efetiva”. Além disso, Renó (2014) reforça a necessidade de projetar e planejar não só o conte- údo a ser produzido, mas também como o público irá experimentá-lo.

A construção do conteúdo deve ser desenvolvida a partir de um script transmídia, que é programado para que todos os fragmentos vinculados se relacionem cognitivamente entre si e, ao mesmo tempo, não assumam o papel de conteúdo multimídia, ou seja, o mesmo conteúdo em platafor- mas distintas. (RENÓ, 2014, p. 11).

Uma das aplicações possíveis desta prática planejada são os megaeventos midiáticos globais como as Olimpíadas, aqui analisados. Neste trabalho, obser- vamos o jornalismo transmídia pelo viés do planejamento editorial de cobertura transmídia, o qual lida, de modo bastante significativo, com a produção de in- formações proveniente da audiência engajada.

Megaeventos midiáticos globais

Por eventos planejados, compreendemos, a partir de Getz (2012), ocor- rências temporais esquematizadas e divulgadas antecipadamente, com local, hora e programa revelados com antecedência. Incluem-se aí os megaeventos midiáticos globais como os Jogos Olímpicos, objeto deste artigo. Hepp e Couldry (2010) estendem a conceituação de evento midiático a par- tir da globalização e de uma estrutura de poder multifacetada dos processos de

241 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS comunicação, reforçados pelo papel da internet e da produção multiplataforma característica das mídias digitais. Assim, a cobertura jornalística em perspectiva transmidiática dos megaeventos planejados é abrangente e engloba mais do que a esfera esportiva. No nosso entendimento, a relevância do jornalismo transmídia na cobertura de eventos como os Jogos Olímpicos baseia-se no fato de que, geralmen- te, envolvem (1) aspectos ad hoc/emergentes, atraindo grandes públicos nacionais e internacionais, potencialmente envolvendo-os e integrando-os no processo de pro- dução de notícias e (2) aspectos planejados/estratégicos, implicando quantidade significativa de recursos humanos, técnicos e financeiros, com provisão de inúmeros protagonistas e histórias primárias e paralelas (GAMBARATO; TÁRCIA, 2017). Conforme discutido por Gambarato, Alzamora e Tárcia (2018) e Tárcia (2015), a cobertura de notícias multiplataforma de eventos planejados globais, com cidadãos envolvidos na produção e distribuição de conteúdo, é uma prá- tica que ganhou força especialmente durante os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Os Jogos Olímpicos realizados na capital inglesa (com produção em múltiplas telas), confirmaram o surgimento de um cenário distinto no jornalis- mo, um híbrido da lógica midiática verticalizada, transmissiva de massa, com a lógica horizontalizada de compartilhamento das redes sociais. No caso das Olimpíadas, o COI impõe um conjunto rigoroso de regras e re- gulamentos aos atletas, treinadores, funcionários e organizações de mídia, entre outros, que podem interferir deliberadamente nesse processo híbrido (INTER- NATIONAL OLYMPIC COMMITTEE, 2015, 2016). De acordo com o historiador olímpico David Wallechinsky (BARKHO, 2016), ao longo dos anos, o COI tem procurado controlar a forma como as Olimpíadas são percebidas e, portanto, tem guardado de perto o conteúdo com base em regras conservadas e datadas.

Abordagem metodológica: modelo analítico

A análise das estratégias transmídia para a cobertura jornalística de even- tos planejados tem como objetivo contribuir para uma compreensão mais clara da produção de notícias em perspectiva transmídia e estimular tais práticas enquanto possibilidades narrativas em múltiplas plataformas, com o engaja- mento da audiência. O método escolhido para a análise da cobertura dos Jogos Olímpicos de Sochi (2014) e do Rio de Janeiro (2016) é o modelo analítico para megaeventos midiáticos planejados proposto por Gambarato e Tárcia (2017). O modelo aborda as especificidades de tais produções de notícias multiplatafor- ma, esclarecendo como os recursos podem ser estruturados e implementados. Conforme proposto por Freeman (2016a, p. 205), “o nosso papel como estu- diosos da indústria de mídia é talvez ser brainstormers e analistas para ajudar teoricamente a avançar o funcionamento da indústria de mídia de ponta”. O método baseia-se no modelo analítico de projetos transmídia desenvolvido por Gambarato (2013) e estabelece dez tópicos primordiais e subsequentes ques-

242 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS tionamentos sobre práticas possíveis, por exemplo, plataformas utilizadas, par- ticipação do público, possibilidades narrativas. Uma descrição concisa do modelo é fornecida na Tabela 1. Em um modelo semelhante, esta proposta foi aplicada para analisar a dinâmica transmídia da cobertura brasileira da Copa do Mundo FIFA 2014 (GAMBARATO et al., 2017).

Tópicos Questões relacionadas 1. Objetivos Trata-se de um evento planejado? Qual o tema principal? e Premissas Qual o objetivo fundamental do evento? Qual o objetivo primeiro da cobertura? Informar, engajar, entreter etc.? O evento é local, regional, global? Qual a magnitude? (Detalhar dias, horários, esforço necessário para a cobertura etc.) Qual a mídia principal da cobertura (impresso, tv, rádio...) 2. Estrutura Qual a empresa responsável pela cobertura? Seu tamanho, estrutura? e contexto Qual a infraestrutura disponível por parte dos organizadores para a cobertura? Todos os jornalistas têm acesso a esta estrutura? Como funciona o credenciamento? Há restrições ao número de profissionais envolvidos? Qual o orçamento disponível para a cobertura? A cobertura foi planejada para ser transmidiática? Ao final do evento, as extensões continuarão ativas? Como foi estruturada a cobertura transmidiática? Quais departamentos foram envolvidos? 3. News Quais os elementos básicos da história (quem, o que, quando, onde, por Storytelling que e como)? Quais os eventos centrais ou desafios envolvidos na cobertura? A cobertura envolve elementos de gamificação, personagens, vencedores ou perdedores? Quais as estratégias para expandir a cobertura ao longo do tempo e das mídias? Existem lacunas estratégicas e pistas migratórias (formas de levar as pessoas de uma plataforma a outra) na estratégia de cobertura? É possível identificar intermidialidade entre as plataformas? 4. Construção Onde acontece o evento? do Universo Ele envolve alguma característica ficcional? Como pode ser representado geograficamente? Há zonas de tempo diferentes que exigirão atenção na cobertura (diferentes fusos horários, por exemplo)? Se houver, como as diferentes plataformas podem ser utilizadas de forma estratégica? Há regulamentações e restrições à atuação jornalística? Quais os desafios, riscos e prazeres envolvidos nesta cobertura? O evento tem porte suficiente para permitir expansões multiplataforma? 5. Personagens Quem são os principais personagens da cobertura. Quantos são? Há outros a serem agregados posteriormente? Quais as fontes principais e primárias? Como se dá o acesso a essas fontes? Há coletivas, restrições quanto à aproximação, tempo limitado para entrevistas? Quais as fontes oficiais e não oficiais? A audiência pode ser considerada como personagem também?

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6. Extensões Quais as extensões incluídas na cobertura? Estas extensões são mera reprodução do mesmo conteúdo ou expansões genuínas? A cobertura tem continuidade nas diferentes plataformas? Há um planejamento para manter a atualização em cada plataforma? Cada uma das extensões é canônica? Contribuem para enriquecer a cobertura? As extensões possibilitam outras expansões? Além de expandir a informação, as extensões permitem o aprofundamento? A cobertura atiça a curiosidade da audiência para buscar e se aprofundar nas informações? Como? Se o evento for muito extenso, como a cobertura lida com o desafio de manter a atenção e o interesse durante todo o tempo? 7. Plataformas Quais as plataformas utilizadas na cobertura (televisão, rádio, impresso, e gêneros web, mídias móveis)? Quais os equipamentos utilizados na cobertura (computadores, tablets, câmeras, Go Pro, celulares, drones etc.) Como cada plataforma participa e contribui com a cobertura? Qual a função de cada uma? O que caracteriza cada uma das plataformas? Existe uma estratégia temporal para lançamento de informações em cada uma das plataformas? Se existe, como funciona este planejamento? Quais gêneros jornalísticos estão envolvidos na cobertura (notícias, reportagens, artigos, debates, entrevistas, infografias, quadrinhos, jogos) Quais as editorias envolvidas? 8. Audiência Qual o público-alvo da cobertura? Quem é o leitor / usuário / espectador / e mercado ouvinte pretendido? Como podemos caracterizá-los? Que tipo de informação lhes interessa? Que tipo de tecnologias e aparelhos utilizam? O que pode lhes interessar em uma cobertura transmidiática? Existem outras experiências de cobertura semelhantes? Atingiram seus objetivos? Qual o modelo de negócio da cobertura? Envolve plataformas abertas e fechadas? A cobertura é lucrativa? 9. Engajamento Qual a porcentagem do público que comparece ao evento e aqueles que acessam o conteúdo por meio das mídias? Qual o papel da audiência na cobertura? Quais os mecanismos de interatividade na estratégica de cobertura transmídia? Os leitores/usuários/telespectadores/ouvintes participam diretamente da cobertura? Existe a possibilidade de imersão na cobertura? Há políticas restritivas à divulgação de Conteúdo Gerado pelo Usuário (CGU)? Eles podem adquirir e levar consigo elementos do evento a serem incorporados em suas vidas (DVDs, camisas, lembranças, merchandising)? Existe conexão entre as manifestações populares e a cobertura? A audiência participa por meio das redes sociais? De que forma? Há um sistema de recompensas pela participação? E de punição, como bloqueio, remoção de comentários?

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10. Estética Que tipo de elementos visuais (vídeo, fotos, infográficos, animações, newsgame, holografia etc) são utilizados na cobertura? A aparência geral da cobertura é realista ou um ambiente composto (uso do grafismo, a holografia, o jornalismo de imersão, realidade aumentada)? É possível identificar estilos de design específicos na cobertura? Como funciona o áudio na cobertura? Existe som ambiente, efeitos sonoros, música, e assim por diante? Existem experiências visuais com incorporação de drones por exemplo?

Cobertura jornalística dos Jogos Olímpicos de Sochi (2014) e Rio de Janeiro (2016) Objetivos e premissas

Os XXII Jogos Olímpicos de Inverno ocorreram de 7 a 23 de fevereiro de 2014, em Sochi, Rússia. Participaram mais de 2.800 atletas (mais de 40% mulheres) e 12 esportes foram adicionados ao programa daquele ano, incluindo snowboard e o salto de esqui para mulheres. As Olimpíadas de Verão de 2016, conhecidas como Rio 2016, ocorreram de 5 a 21 de agosto de 2016, no Brasil. Mais de 11 mil atletas representaram 205 Comitês Olímpicos Nacionais, incluindo os estreantes Kosovo, Sudão do Sul e a Equipe Olímpica de Refugiados. Trezentos e seis eventos, de 42 disciplinas esportivas, aconteceram em 32 locais de competição, em 16 dias. Rio de Janeiro tornou-se a primeira cidade sul-americana a sediar os Jogos Olímpicos de Verão.

Estrutura e contexto

A ANO Sports Broadcasting - abrangendo Channel One, Rússia 1 e NTV+ - foi responsável pela cobertura oficial em Sochi. A acreditação da imprensa, com 2.800 credenciais, começou dois anos antes do evento. Um número limitado de credenciais foi concedido às organizações não oficiais (denominadas ENR pelo COI), e houve restrições de credenciais, mesmo para os membros da emissora oficial, com um total de 12.000 credenciais. Para as Olimpíadas de Verão de 2016, no Rio, os canais de televisão brasileiros Rede Globo, Rede Record e Rede Bandeirantes foram responsáveis ​​pela geração de sinais internacionais de rádio e TV. A acreditação de mais de 25.100 profissionais oficiais da mídia começou três anos antes do evento. Mais de 7.000 horas de cobertura de vídeo e áudio foram produzidas e distribuídas para uma audiência de seis bilhões de pessoas em 220 países. O Channel One tinha quatro estúdios em Sochi para programas de entrevistas, um programa de entretenimento pela manhã e notícias. No Rio, a equipe foi dividida em dois grupos: um grupo foi posicionado na sede da Rede Globo, Globo Network no Rio de Janeiro, e o outro foi baseado em uma redação no Centro Internacional de Transmissão (IBC). As operações voltadas ao público da emissora ocorreram dentro da instalação do Estúdio Olímpico da rede, localizado no coração do Parque Olímpico. Rede Globo supostamente

245 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS investiu cerca de US $ 250 milhões nesta cobertura (FELTRIN, 2016).

News Storytelling

Embora em ambos os casos a temática central fossem os atletas e as disputas esportivas, a cobertura jornalística incluiu, nos dois países, os eventos e contextos paralelos, como questões de segurança, controvérsias sociais, políticas e econômicas. Em Sochi, entre as controvérsias estavam as questões LGBT, o doping, ameaças terroristas e as críticas ao local e ao custo das obras, que transformaram o resort de verão em espaço apropriado aos Jogos de Inverno. No Brasil, a cobertura incluiu (1) manifestações e controvérsias sociais e políticas, (2) um surto contínuo do vírus Zika transmitido por mosquitos no Brasil, (3) a poluição da Baía de Guanabara, cujas águas foram utilizadas para competições de vela e windsurf , (4) instabilidade política e crises econômicas, (5) criminalidade no Rio de Janeiro, (6) o escândalo de doping russo e restrições de participação, entre outros. O modelo de expansão de conteúdo desenvolvido pelo Comitê Olímpico inclui diversas camadas temporais e narrativas, de maneiras a permitir ampla visibilidade do evento, antes, durante e depois do período dos Jogos.

Construção do universo

O universo construído no entorno dos Jogos Olímpicos de Sochi se desenvolveu em várias plataformas de mídia, on e offline. O fato de os Jogos Olímpicos estarem rodeados de muita ação oferece amplas oportunidades de expansão em toda a cobertura multiplataforma. No Rio de Janeiro, o evento se expandiu por várias partes da cidade, o que proporcionou a oportunidade de construir universos ainda mais ampliados. Numerosas manifestações artísticas e shows foram programados durante o período dos Jogos. O Grupo Globo - que inclui a Rede Globo (televisão), Globosat (televisão a cabo), Infoglobo (mídia impressa) e Sistema Globo de Rádio (rádio) - envolveu várias plataformas de conteúdo na cobertura. Foram criados diferentes conceitos para cada plataforma de mídia, característica fundamental da narrativa transmídia e, consequentemente, do jornalismo transmídia.

Personagens

Além da impressionante variedade de atletas internacionais, que foram o foco principal da cobertura de notícias, a personagem-chave da transmissão olímpica é o COI e suas ramificações. Várias personagens, além da série de atletas internacionais, foram fontes da cobertura jornalística em 2014 e 2016. Historicamente, a criação de personagens-âncora e as construções narrativas no entorno de suas trajetórias de superação têm sido incentivadas e promovidas

246 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS pelo Comitê Olímpico, com suporte das emissoras oficiais (TÁRCIA, 2015). No Rio, a visibilidade do estúdio da Rede Globo, no Parque Olímpico, criou um fenômeno diferenciado em termos de coberturas Olímpicas. Durante as principais transmissões televisivas, muitas pessoas se aglomeraram na frente do prédio e acabaram sendo incorporadas ao show. Mesmo com esta iniciativa, o controle excessivo, os regulamentos e os interesses econômicos do COI restringiram a capacidade geral do público para participar ativamente da cobertura de notícias de forma colaborativa. Portanto, o público não pode ser considerado personagem principal da mídia em nenhuma das duas coberturas.

Extensões

A cobertura olímpica da Channel One incluiu transmissão de TV, transmissão ao vivo on-line, um site especial (olymp.1tv.ru), redes sociais online globais e locais (Facebook, Twitter, VKontakte e Odnoklassniki) e aplicativos móveis. O Channel One, em colaboração com a RIA Novosti, criou um aplicativo móvel de segunda tela para aumentar a cobertura de tela plana de Sochi 2014. Os esforços do Channel One para tornar a experiência da segunda tela disponível durante as Olimpíadas foram alinhados com a tendência internacional, especialmente depois de Londres 2012. Não obstante, Channel One não avançou muito em direção a uma experiência transmídia, porque tendeu a reorientar as informações, em vez de oferecer novos conteúdos. Apesar das restrições impostas pelo COI, a Rede Globo planejou a “maior cobertura na história da emissora, após a inauguração do seu Estúdio Olímpico” (REDE GLOBO, 2016c). A cobertura alargada envolveu todas as plataformas de mídia do Grupo Globo: televisão, mídia impressa, internet e rádio. Durante as transmissões, a participação pública nas mídias sociais online, mediada pela hashtag #SomosTodosOlímpicos foi exibida ao vivo em uma tela gigante no Estúdio Olímpico. Em uma parceria sem precedentes (REDE GLOBO, 2016a), o perfil “Snapredeglobo” ofereceu conteúdo específico para o recurso “Histórias ao vivo” no Snapchat, incluindo fotos e vídeos dos bastidores do evento, gravados por jornalistas, comentaristas e fãs. Assim, foi estabelecida uma estratégia de cobertura de notícias baseada em transmissão multiplataforma, na qual o conteúdo específico foi atribuído a determinadas extensões para promover o engajamento.

Plataformas e gêneros

A cobertura de notícias Channel One convergiu para a televisão, internet e plataformas de mídia móvel. A tecnologia móvel representa uma grande mudança na cobertura Olímpica em todo o mundo, contribuindo para expandir o público e a produção de conteúdo. As regras de mídia social do COI incentivaram a postagem no ponto de vista da primeira pessoa, mas proibiram a divulgação de

247 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS informações confidenciais ou privadas relacionadas a equipes ou organizações envolvidas nas Olimpíadas (IOC, 2013). A perspectiva multiplataforma que delineou a cobertura de notícias dos Jogos Olímpicos produzidos pela Rede Globo envolveu numerosos estilos jornalísticos, como notícias, artigos, entrevistas e opinião. Embora a cobertura multiplataforma do evento tenha se concentrado principalmente na televisão e na internet, o rádio e os meios impressos também foram incluídos. Em suma, o conteúdo produzido pela Rede Globo no âmbito da cobertura multiplataforma dos Jogos Olímpicos foi complementar e, eventualmente, redundante, favorecendo as escolhas dos usuários de acordo com seus hábitos de consumo midiático. Nesse sentido, foi possível identificar a valorização de aplicativos e geolocalização de segunda tela, bem como a interação nas redes sociais online, decorrentes do conteúdo jornalístico oferecido pela emissora.

Audiência e mercado

De acordo com o Comitê Olímpico Internacional, para um registro de 102.000 horas de transmissão em televisão e plataformas digitais, o número potencial de telespectadores durante os Jogos foi de 4.1 bilhões. Sochi 2014 foi transmitido por um número recorde de canais de televisão, mais de 300, incluindo um número recorde de canais gratuitos, mais de 200. A diversidade da cobertura e a variedade de modelos de negócio disponíveis durante os Jogos contribuíram para experiências transmidiáticas simplificadas. O público multiplataforma da Rede Globo registrou uma taxa de crescimento incomparável. No que diz respeito ao impacto produzido pelo evento em diferentes plataformas de mídia, a transmissão televisionada registrou um aumento de 40% das pessoas alcançadas, em comparação com as Olimpíadas de Londres de 2012. Esses números mostram que a estratégia de cobertura multiplataforma foi bem-sucedida: a Rede Globo bateu os recordes do público e tornou-se líder desse segmento, atingindo um público variado com um projeto editorial robusto e diversificado. No entanto, isso não significa que a participação cidadã tenha permeado o planejamento editorial, mesmo que a participação tenha sido discernível em contextos específicos, principalmente nas redes sociais online.

Engajamento

A relação entre o Movimento Olímpico e o público foi desafiada pela lógica protetiva econômica do COI de exclusividade na geração e uso de imagens e desejo das pessoas de compartilhar e participar. Em geral, a estratégia de engajamento da audiência privilegiou a interação em detrimento da participação. A interação pressupõe que o público possa “agir / reagir / interagir, mas não pode interferir com a narrativa”, no sentido de que o “público pode decidir o caminho

248 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS para experimentá-lo, pode clicar aqui ou ali, pode reagir às entradas das redes sociais, mas não é capaz de colaborar e co-criar” (GAMBARATO, 2012, p. 76). A participação implica cocriação, envolvendo o público “de uma forma que expressa sua criatividade de forma única e surpreendente, permitindo-lhes influenciar o resultado final” (GAMBARATO, 2012, p. 74). Como reflexo, Channel One, em sua cobertura, privilegiou a interação em detrimento da participação real. Portanto, a cobertura do Channel One funcionou como um atrator cultural que conquistou “uma comunidade de pessoas que compartilham interesses comuns” (JENKINS, 2009, p. 26), mas não como um ativador cultural, o que daria à comunidade algo significativo a fazer em perspectiva colaborativa. De acordo com o estudo divulgado pela empresa de marketing SocialBrain (SOUTELO, 2016), a Rede Globo alcançou o maior envolvimento de qualquer marca em mídias sociais online durante os Jogos Olímpicos do Rio 2016. Entretanto, como já ressaltado, as regras e regulamentos do COI diminuíram as oportunidades para promover a participação, em perspectiva cocriativa, da audiência na cobertura dos Jogos.

Estética

Historicamente, as coberturas midiáticas dos Jogos Olímpicos têm servido como vitrine para uso e exposição das tecnologias de ponta disponíveis em cada período (TÁRCIA, 2015). Em Sochi, a estética foi ampliada pelo uso de drones na captura de imagens, infografias computadorizadas e imagens de alta resolução. A inovação tecnológica marcou a cobertura jornalística dos Jogos Olímpicos efetuada pela Rede Globo. Por um lado, não foram observadas inovações linguísticas em relação, por exemplo, a iniciativas de incorporação de narrativas de realidade virtual ou de newsgames na expansão de conteúdo. Por outro lado, o planejamento editorial produziu estratégias sofisticadas de transmissão e acesso à informação, disponibilizadas pela emissora em várias plataformas de mídia. Por exemplo, o uso da realidade aumentada em aplicativos móveis, como o Globo Rio 2016, permitiu ao público apontar seus smartphones em um local de competição e receber informações em tempo real sobre o que estava acontecendo naquele local específico. Os avanços tecnológicos foram destacados pelas projeções holográficas e pela parceria estabelecida entre a Rede Globo e a organização japonesa NHK para transmissões ao vivo no formato 8K de Ultra-Alta Definição (UHD) durante as cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos. A série de narrativas especiais produzidas pela equipe do site globoesporte.com - que empregou amplamente infografia, quadrinhos e animações - é outro exemplo das preocupações com a criação de uma estética refinada, fundamentada na produção de narrativas autônomas e complementares nas conexões digitais da cobertura jornalística da Globo. No entanto, como em outros exemplos, este

249 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS elemento apresentou possibilidades limitadas para a participação cidadã, um aspecto crucial para o desenvolvimento de narrativas transmídia.

Considerações finais

Os Jogos Olímpicos de Sochi e do Rio de Janeiro estiveram (e continuam) cercados por controvérsias, antes, durante e após o evento, como tem acontecido com todas as edições dos Jogos modernos, principalmente após o advento da televisão (TÁRCIA, 2015). De questões ambientais a econômicas, da falta de estabilidade política às ameaças terroristas, violações de direitos humanos e corrupção alegada, as cidades e países-sede estiveram e ainda estão na mira da imprensa mundial. Em relação à perspectiva transmidiática das coberturas, em Sochi, podemos falar de uma modesta expansão do conteúdo, especialmente por meio de aplicativos online e móveis. A interação com o público existiu de forma bastante limitada, principalmente nas redes sociais. Pode-se dizer que a cobertura russa esteve mais próxima à proposta multitelas das Olimpíadas de 2012, do que de uma experiência transmídia integral, particularmente em relação à cultura participativa. As limitações da participação concreta do público na cobertura oficial devem ser consideradas em suas várias facetas: (a) o fato de o Channel One não oferecer oportunidades reais para o jornalismo participativo, que ainda é uma nova experiência a ser desenvolvida na Rússia; (b) as restrições impostas pelo COI; e (c) características inerentes à sociedade russa, como a autocensura social (MOROZOV, 2011). Segundo este autor, «sabendo que podem ser vistos por agentes do governo, mas não sabendo exatamente como essa vigilância acontece, muitos ativistas podem se apoiar na autocensura ou até parar de se envolver em comportamento de risco online» (MOROZOV, 201, p. 145). Mesmo com a grande ressonância que, por exemplo, a hashtag #sochiproblems tinha na Rússia, a resposta da audiência doméstica era mais humorística do que crítica, com comentários como «não temos problemas na Rússia, temos aventuras» (KEENEY, 2014, p. 8). Apesar de uma modesta transmidialidade durante a cobertura olímpica, o Channel One estava ciente das possibilidades desta proposta narrativa e anunciou, em abril de 2014, a criação de um novo departamento responsável pela expansão do conteúdo do canal por diferentes plataformas de mídia (KITAEVA, 2014). O mesmo conhecimento já existia na Rede Globo de Televisão, emissora pródiga em produções transmídia no âmbito do entretenimento. A cobertura jornalística da Rede Globo das Olimpíadas de 2016 envolveu, até certo ponto, as três dimensões principais dos fenômenos transmídia. Em relação às plataformas de mídia diversificadas, a Rede Globo aproveitou o consórcio de meios de comunicação subsidiários no Grupo Globo, incorporando televisão, internet,

250 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS mídia impressa, redes sociais e rádio. O suporte principal da cobertura era a televisão e a experiência da segunda tela foi amplamente oferecida ao público. Não obstante, as redes sociais, como Instagram e Snapchat, desempenharam um papel importante na expansão do conteúdo e na participação do público. Um destaque da cobertura da Rede Globo foi o processo estrategicamente orquestrado e o proativo, planejado com jornalistas que estruturaram uma abordagem transmídia avançada. Este aspecto planejado/estratégico (FAST; ÖRNEBRING, 2015) da cobertura, notável em 2016, é um passo à frente em relação ao que a emissora ofereceu por ocasião da Copa do Mundo da FIFA 2014. O planejamento e a integração transmídia de múltiplas plataformas, disseminando conteúdo através de aplicativos móveis, transmissão em tempo real na internet e em redes sociais, e uma experiência imersiva baseada em inovações tecnológicas foram os principais destaques da cobertura da Rede Globo. No entanto, a melhoria no engajamento da audiência, especialmente em termos de participação cidadã, ainda deixa a desejar nas coberturas das Olimpíadas.

Referências

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251 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

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253 O jornalismo e as zonas intermediárias de circulação: uma abordagem metodológica

Demétrio de Azeredo Soster Luana Ciecelski Rodrigo Bartz Thiago Haas Carlotto

Primeiros movimentos

Este capítulo busca refletir, em uma perspectiva qualitativa, nos moldes de Demo (2000), sobre o que ocorre com os dispositivos de natureza jornalística que integram o sistema midiático1 quando, em suas operações internas, formam-se Zonas Intermediárias de Circulação (ZICs). Tratam-se, as ZICs, de “(...) ‘zonas de contato’ de processualidade complexa, indeterminada, de fluxo informacional contínuo, não previsível (...)” (SOSTER, 2017, 2017-a, 2017-b). Ou de “ambiências”, na nomenclatura de Gomes (2017) e Sodré (2006), que se formam no interior dos dispositivos quando estes se veem atravessados por circuitos informacionais múltiplos. Circuitos informacionais múltiplos são fluxos de informação que se interpõe, de forma autorizada ou não, nos processos de enunciação dos dispositivos (BRAGA, 2012). E que tensionam, com estes atravessamentos, agora no diálogo com Fausto Neto (2010), uma vez mais (SOSTER, 2017, 2017-a, 2017-b), as gramáticas de produção e reconhecimento quanto às suas intenções de origem tanto em termos de emissão quando de recepção. As ZICs são “intermediárias” de uma forma substantiva, ou seja, porque são bioindicadores da ação da circulação em um lugar usualmente pouco observado nos estudos sobre este tema; neste caso, as processualidades internas dos dispositivos. A afirmação se justifica à medida que o fluxo dos circuitos informacionais geralmente é observado a) no espaço sistêmico existente entre os dispositivos; b) entre os dispositivos e o sistema em que se inserem; c) entre os dispositivos e outros sistemas; e, finalmente, d) entre os sistemas e o meio, considerando-se que não se pode pensar sistema sem meio onde ele se insira (LUHMANN, 2009). Pensar a circulação de informações nesta perspectiva,

1 O sistema midiático, no que ele tem de jornalístico, objeto de nosso interesse neste capítulo, é composto pelo conjunto de dispositivos, em seus aspectos organizacionais ou institucionais, que, isola- damente ou em seu conjunto, oferecem sentidos de natureza jornalística, caso, por exemplo, dos sites, jornais, revistas, rádios etc.

254 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS portanto, implica delegar à mesma estatuto distinto daquele que usualmente compreendiam-na como “zona insondável”, “intervalo” ou “lugar de passagem” (FAUSTO NETO, 2010); espécie de caminho por meio do qual se alcançava este ou aquele objetivo. Observamos, em nosso percurso de pesquisa (SOSTER, 2017, 2017-a), que a emergência das ZICs nestas ambiências se insere um fenômeno que se verifica quando a midiatização, por meio da presença de circuitos múltiplos na tessitura do sistema midiático, provoca interposições e atravessamentos nos referidos dispositivos. Quando isso ocorre – e eis a essência da reflexão aqui proposta – tem lugar uma série de reconfigurações narrativas, materializadas nos sentidos que usualmente emergem das operações internas dos dispositivos, à revelia de intencionalidades. É dizer, por outras palavras, que a circulação midiática, por meio da presença de circuitos informacionais múltiplos na tessitura do sistema midiático, interfere com cada vez mais potência nas operações dos dispositivos de natureza jornalística, alterando seus “modos de dizer” e exigindo, de quem analisa estes fenômenos, novas gramáticas explicativas. O exemplo a seguir permite que observemos, preliminarmente, o que estamos afirmando. No dia 11 de fevereiro de 2018, um domingo, durante a transmissão do desfile de carnaval, que estava se realizando na Avenida Marques do Sapucaí, no Rio de Janeiro (RJ), os comentaristas da Rede Globo, a maior emissora de televisão do país, omitiram que a Escola de Samba Paraíso do Tuiuti realizara, em seu desfile, severas críticas à conjuntura político-econômica do país. Estas incluíam, entre outros, a caracterização do presidente Michel Temer como “vampiro neoliberal” entre as alegorias que desfilavam naquele momento, referências ao trabalho escravo no Brasil e outras de tonalidade semelhante. O silêncio dos comentaristas em relação aos protestos que estavam ocorrendo na avenida pela Paraíso do Tuiuti não passou despercebido das redes sociais, caso do Facebook e do Twitter: logo em seguida, mensagens que circularam pelas redes criticavam, em sua maioria, a forma parcial por meio da qual a cobertura da Globo estava sendo realizada, como pode ser observado na matéria do site Fórum2:

A Rede Globo, enfim, não conseguiu mais esconder o que o Brasil todo havia visto e repercutido nas redes sociais: protestos contra a violência no Rio de Janeiro e críticas aos políticos, especialmente Michel Temer, e às questões sociais foram uma marca forte e indiscutível deste Carnaval. Inicialmente, o telejornal deu um tempo bem menor para a Paraíso do Tuiuti no dia anterior, em relação às outras escolas. Além disso, durante a transmissão dos desfiles, os apresentadores se calaram e sequer citaram os protestos.

É dizer, por outras palavras, que estes circuitos informacionais múltiplos, ao

2 Disponível em: [https://www.revistaforum.com.br/globo-se-rende-forca-das-redes-e-da-com-desta- que-tuiuti-e-protestos-no-jn//] Acesso em: 29 maio 2018.

255 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS chegarem ao conhecimento da emissora de televisão, acabaram por determinar mudanças de angulação no conteúdo por meio da qual a transmissão vinha sendo realizada. O que se viu, a partir desde momento, foi um novo perfil editorial onde a tônica do protesto não apenas era salientada como ganhava lugar de destaque no conteúdo do noticiário. É o que está dito, literalmente, no título de uma matéria veiculada no site da Folha de S. Paulo: “Globo de redime de omissões sobre desfile da Tuiuti com edição do ‘carnaval dos protestos’”3 Instaurou-se, dessa forma, no âmbito das processualidades internas do dispositivo “programa de televisão”, uma ZIC, cuja emergência, como vimos, foi provocada pelas críticas que a mesma recebeu por meio das centenas de mensagem que circularam pela internet tecendo comentários negativos à mesma. O indício discursivo mais visível de sua presença, no exemplo demonstrado, é a capitulação, por parte da emissora, do que vinha sendo noticiado: ao invés de omissão, passaram a ser oferecidos noticiários com destaque às críticas que vinham sendo realizadas na avenida. Observar graficamente a composição das ZICs talvez nos auxilie a compreender como isso se dá. As setas em vermelho representam os circuitos múltiplos; as setas em azul, os diálogos correferenciais, uma das características do jornalismo midiatizado4 (SOSTER, 2009). Graficamente, então, e com as limitações inerentes a este modelo de representação, podemos compreender o exemplo acima a partir do seguinte cenário:

Gráfico 1 – A formação das ZICs

Fonte: Elaboração do autor.

3 Matéria disponível em: [https://telepadi.folha.uol.com.br/globo-se-redime-de-omissoes-sobre-desfi- le-da-tuiuti-com-uma-geral-sobre-o-carnaval-dos-protestos-no-jn/] Acesso em: 29 maio 2018. 4 As demais características são autorreferência, descentralização, dialogia e atorização.

256 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Reiterando o que afirmamos anteriormente, as ZICs se tornam visíveis, por assim dizer, quando informações que circulam pela internet “invadem” os dispositivos e acabam por interferir na processualidade interna destes. Não se trata de um movimento de autorreferência, ou mesmo acoplamento estrutural, na linguagem sistêmica (LUHMANN, 2009), provocados, em essência, pela irritação, mas de atravessamentos, interposições. O gráfico 2, ao particularizar a criação da ZIC no âmbito do dispositivo, permite que observemos melhor como isso se dá.

Gráfico 2 – Formação das ZICs no interior do dispositivo

Fonte: Elaboração do autor.

No exemplo que usamos acima (Gráfico 2), o círculo azul representa o dispositivo telejornal da Rede Globo que transmitiu o desfile de carnaval. Isso em seus aspectos organizacionais, ligados a emissores de televisão, e institucionais, referentes ao caráter jornalístico da empresa. As setas vermelhas, por sua vez, são os circuitos informacionais, ou seja, todas as mensagens que passaram a ser veiculadas pela internet a partir do momento em que o noticiário omitiu, em suas enunciações, as críticas que vinham sendo feitas na avenida. De sua interseção e atravessamentos com o dispositivo, emergem as ZICs, ilustradas pelos círculos em cinza.

Primeiros obstáculos metodológicos

De imediato, e antes mesmos das necessárias delimitações conceituais, devemos observar que a emergência das ZICs no interior dos dispositivos é fenômeno de delicada apreensão metodológica. Isso se deve a pelos menos dois fatores, o primeiro deles ligado ao fato de o objeto estar em movimento5; transformando-se, 5 Desde 2010, pelo menos, alertávamos, no prefácio ao livro “Midiatização e processos sociais: aspectos metodológicos” (Edunisc, 2010), que a principal dificuldade, quando o assunto é pensar as reconfigurações decorrentes da processualidade da midiatização, era justamente o caráter efêmero dos fenômenos observados e a intensidade com que ocorriam, cada vez mais acelerada. Em particular, quando se estabelecem em objetos cujas matrizes constitutivas são seminalmente propensas a transfor- mações, caso dos sites e redes sociais, de materialidade intermitente, portanto, não obstante as pistas discursivas que suas operações deixam pelo percurso em que transitam e que nos permitem, ao fim, reconhecê-los como tendo existido, pelo menos.

257 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS portanto, a cada momento. Significa, considerando Bergson (2005) na discussão, que toda tentativa de o apreender, ou mesmo circunscrever em margens muito precisas, dirá, antes, de um excerto do que do objeto propriamente dito. O segundo obstáculo epistemológico é decorrência do primeiro e diz respeito à materialidade dos sentidos que são gerados a partir da emergência das ZICs no cenário proposto; neste caso, o interior dos dispositivos. Por materialidade dos sentidos, vamos compreender o lugar onde as regras discursivas são explicitadas e podem, portanto, ser reconhecidas como tal (TRAVERSA, 2014). É perguntar, por outras palavras, se os sentidos que emergem, na forma de enunciados, das reconfigurações provocadas pela ação das ZICs na processualidade interna dos dispositivos são suficientes para que possamos apreendê-los de forma satisfatória. No primeiro caso, podemos adiantar que o caráter intermitente, portanto transitório, dos sentidos gerados a partir das ações produzidas pela emergência das ZICs, será considerado “em essência”, ou seja, antes como característica primeira do objeto que como obstáculo à sua análise. Partindo-se deste pressuposto, as marcas, ou resíduos decorrentes da processualidade de suas operações se posicionam como indexadores de instâncias mais profundas de significação (SOSTER, 2016). Estamos nos referindo à existência de camadas superpostas de significação textual que se estabelecem como pistas discursivas por meio das quais podemos chegar a níveis narrativos de compreensão. Uma vez identificadas estas pistas, ou marcas não homogêneas, na nomenclatura de Verón (1980, 2004), distribuídas na superfície dos objetos analisados, podemos alcançar, então, identitariamente, as ZICs pelo viés da análise das operações linguísticas que interferem diretamente nas “(...) formas de organização de circulação de discursos” (FAUSTO NETO, 2013, p. 6). No estágio atual da pesquisa, debruçamo-nos, do ponto de vista empírico, sobre cinco casos em que as interposições e atravessamentos de circuitos múltiplos provocaram a emergência de ZICs no interior dos dispositivos de natureza jornalística. São eles 1) denúncia de assédio sexual da Rede Globo (envolvendo funcionários da maior emissora de televisão do Brasil); 2) E se não der certo? (sobre manifestações realizadas por alunos de uma escola de ensino médio de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul); 3) Ladrão e vacilão (sobre castigos físicos que um tatuador impingiu em um menino que flagrou furtando em seu estúdio, em São Paulo); 4) cartografias da diferença (manifestações sexistas contrárias a uma exposição em Porto Alegre); e, finalmente, 5) crime no futebol (sobre goleiro de um time e futebol acusado de matar a sua mulher e esconder o corpo dela). Por se tratarem de eventos muito complexos, e considerando os constrangimentos espaciais, ilustraremos nossa reflexão com os casos de número 1), 2) e 4), considerando, na escolha, que, por meio delas, podemos ter uma visão das demais na problemática proposta. Antes disso, porém, as necessárias delimitações conceituais.

258 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Delimitações conceituais

As tentativas de delimitações conceituais que faremos a partir desde momento vêm sendo refletidas, e tensionadas em sua relação com o objeto de pesquisa – a emergência das ZICs, desde 2016, pelo menos, em eventos científicos6, capítulos e artigos, ou mesmo junto aos esforços decorrentes do trabalho que desenvolvemos junto ao Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas (Genalim), ligado ao CNPq. Trata-se, portanto, aqui, de uma revisão crítica de conceitos norteadores que busca, a um tempo, esclarecer, delimitar e sistematizar as chaves hermenêuticas utilizadas neste capítulo, refletindo sobre as mesmas neste movimento e confrontando-as com os novos cenários que se interpuseram em nosso caminho de pesquisa. Comecemos por salientar que a circulação midiática, nos moldes que estamos pensando, é substancialmente distinta do conceito canônico de circulação jornalística. A diferença se estabelece (SOSTER, 2016; 2017) à medida que, para o jornalismo, circulação tem a ver, processualmente, a) com o percurso por meio do qual determinada informação segue até alcançar seu destino, mas, também, em um aspecto organizacional, b) com setores da empresa jornalística responsáveis por fazer com que isso se dê dessa forma (BAHIA, 2010; ZAGO, 2012; MACHADO, 2008; NEIVA, 2013; RABAÇA, BARBOSA, 1995). Assim, no caso dos veículos impressos, por exemplo, circulação tanto é o caminho por meio do qual o jornal ou revista faz para chegar à casa do assinante como os locais (bairros, bancas etc.) onde são distribuídos e o departamento da empresa responsável por este trabalho. Pensando-se nos eletrônicos – rádios, televisões e sites, por exemplo, algo semelhante se verifica, mesmo que, nestes casos, não se tenha um controle tão aproximado7 como se tem com os impressos8; considerando o caráter eletrônico, portanto difuso, das transmissões. Já na perspectiva midiatizada, portanto não circunscrita apenas à atividade jornalística, circulação tem a ver, antes, com “espaço gerador de potencialidades” (FAUSTO NETO, 2010) do que como percurso existente entre uma instância e outra de determinados processos produtivos, ainda que não exclua estes, o que nos permite pensá-la como dispositivo. É dizer, de outra forma, que não se trata mais de se observar “para onde se vai e de onde se partiu”, considerando, no olhar, o percurso e o caminho, mas o que acontece entre estas instâncias. Transformamos, dessa maneira, a circulação em “lugar de inscrição” capaz

6 Caso dos encontros anuais da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), Centro Internacional de Semiótica e Midiatização (Ciseco); Seminário Internacional de Pesquisa em Midiatização e outros de natureza e relevância semelhantes. 7 Preferimos a expressão “aproximado” porque a experiência em 25 anos de redações jornalísticas de todos os portes ou matizes nos permite observar que, por mais racionais que sejam os processos de circulação, em particular nos veículos impressos, nunca se obtém um grau absoluto de controle dado à complexidade de operações dessa natureza. 8 É o que fez Zago (2012) criar o conceito de recirculação, ou seja, a circulação que ocorre além dos “limites” previstos.

259 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS de se transformar ela própria em “operadora de novas condições de produção” (FERREIRA, 2013, p. 147). Tem-se, no cerne dessa delimitação, a emergência de uma nova perspectiva para se pensar a circulação, que, vista como novo objeto (FAUSTO NETO, 2010), deixa de ser um conceito associado a defasem, ou mesmo diferença, e passa a ser compreendido como articulação entre as gramáticas de produção e reconhecimento. Observe-se que são, sob outro ângulo, as duas formas de se pensar a circulação, antes complementariedades que diferenças, à medida que a presença de uma (circulação jornalística) pode ser pensada concomitantemente à existência da outra (midiática), mas com uma diferença a ser considerada: no cenário atual, e com cada vez mais frequência, a circulação midiática não apenas interfere como reconfigura processualmente a circulação jornalística. Não enfrentaremos esta discussão neste momento, sob o risco de desviarmos o foco da atenção. Importa observar, antes, que a materialidade da circulação midiática se estabelece, como sugerido acima, a partir da ação dos fluxos informacionais na tessitura do sistema midiático, onde os dispositivos de natureza jornalística se inserem. E que estes fluxos, gradativamente (BRAGA, 2012), não apenas interferem, relacionalmente, em todos os setores da sociedade (dispositivos, sistemas e meio) como reconfiguram gramáticas secularmente instituídas:

O fato de que os circuitos em desenvolvimento tenham a tendência assinalada – de “atravessar” os campos sociais estabelecidos – mesmo quando o ponto de origem de um circuito é um desses campos (...), leva a uma espécie de “recontextualização”. As referências habituais se encontram deslocadas ou complementadas por referências menos habituais – fazendo com que os próprios circuitos em desenvolvimento elaborem e explicitem os contextos requeridos para atribuição de sentidos aos produtos e falas que circulam. (BRAGA, 2012, p. 49).

Os deslocamentos, ou complementaridades, a que se refere Braga (2012), que são, ao fim, decorrência dos atravessamentos ocorridos nos campos sociais pelos circuitos múltiplos, nos ajudam a compreender, por exemplo, porque uma das características mais evidentes das ZICs é, justamente, a reconfiguração na produção de sentidos em decorrência das referidas interposições. Em palavras mais simples, por que o jornalismo tem se mostrado tão suscetível a inferências externas ao ponto de mudar, com cada vez mais frequência, o conteúdo de seus relatos sempre que se vê atingido por circuitos externos, o que até há bem pouco tempo não ocorria, pelo menos não de forma tão imediata, em decorrência da posição axiomática que ocupava na estrutura social em que nos inserimos? Dito isso, vejamos, agora, três exemplos de como as ZICs reconfiguram as processualidades internas dos dispositivos de natureza jornalística.

260 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

A processualidade do objeto Assédio sexual na Rede Globo de Televisão

Partiremos, agora, para análise empírica da forma como as ZIC interferem na processualidade dos dispositivos. O primeiro evento que analisaremos envolve, de um lado, José Mayer, ator da Rede Globo, a maior holding do setor da comunicação no país, com televisões, rádios, jornais, sites etc., e Susllem Meneguzzi Tonani, de 28 anos, figurinista da emissora. Em carta veiculada no blog #Agoraéquesãoelas9, do site UOL, ligado ao jornal Folha de S. Paulo, concorrente da Rede Globo, a funcionária de 28 anos realiza um relato de 16 parágrafos, em tom confessional, intitulado “José Mayer me assediou”. Um trecho da denúncia:

Em fevereiro de 2017, dentro do camarim da empresa, na presença de outras duas mulheres, esse ator, branco, rico, de 67 anos, que fez fama como garanhão, colocou a mão esquerda na minha genitália. Sim, ele colocou a mão na minha buceta e ainda disse que esse era seu desejo antigo. Elas? Elas, que poderiam estar no meu lugar, não ficaram constrangidas. Chegaram até a rir de sua “piada”. Eu? Eu me vi só, desprotegida, encurralada, ridicularizada, inferiorizada, invisível. Senti desespero, nojo, arrependimento de estar ali. Não havia cumplicidade, sororidade10.

Na sexta-feira, dia 31 de março de 2017, a denúncia é retirada do blog #Agoraéquesãoelas sob alegação de que feria os princípios editoriais da empresa, haja vista que teria sido veiculada sem o depoimento da parte acusada11. Isso viria a ocorrer somente às 17h30 daquele dia, liberando, portanto, dessa forma, a veiculação do conteúdo escrito pela figurinista Susllem Meneguzzi Tonani no blog #Agoraéquesãoelas. Após o momento da liberação da informação no blog #Agoraéquesãoelas”, uma frase de duas linhas no texto que antecedia o relato com um link para outra matéria do site do jornal Folha de S. Paulo informava que “(...) devido ao trabalho de apuração e investigação do jornal e o esforço de redação de escuta do outro lado (...)12” a mesma estava sendo finalmente liberada à leitura.

9 Disponível em < http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2017/03/31/jose-mayer-me-asse- diou/> 10 Disponível em: http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2017/03/31/jose-mayer-me-assediou/ Acesso em: 10 abr. 2017. 11 Disponível em: Acesso em: 10 abr. 2017. 12 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/03/1871543-jose-mayer-da-globo-e- -acusado-de-assedio-por-figurinista-ator-nega.shtml > Acesso em: 10 abr. 2017

261 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Imagem 1: notícia irrita sistema midiático por meio de um blog

Fonte: #Agoraéquesãoelas

A partir deste momento, e em decorrência de um complexo processo de correferenciação, o assunto deixa a esfera Globo/Folha de S. Paulo e se espraia entre os demais dispositivos do sistema midiático. Depois de ser veiculada pelo dispositivo blog com o título “José Mayer me assediou” escrito entre aspas, denotando à fala um tom confessional, a notícia irritou gradativamente os demais dispositivos do sistema que, por meio de operações de natureza correferencial, passaram a repercutir o acontecimento. É o caso da revista Isto É13, que o faz em seu site por meio da veiculação de matéria intitulada “José Mayer é acusado de assédio por figurinista”:

Imagem 2: demais dispositivos passam a repercutir o acontecimento

Fonte: Revista Isto É.

13 Disponível em : < http://istoe.com.br/jose-mayer-e-acusado-de-assedio-por-figurinista/> Acesso em: 10 abr. 2017.

262 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

E de texto veiculado no Jornal O Dia14 por meio de uma coluna especializada em “destaques do mundo dos famosos”.

Imagem 3: abordagem a partir de aspectos familiares

Fonte: O Dia.

O site ClicRBS, ligado à holding Rede Brasil Sul de Comunicações, segue a repercussão a partir de outras pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o autor, neste caso uma atriz que afirma ter passado o mesmo que a figurinista:

Imagem 4: novas denúncias

Fonte: ClicRBS.

14 Disponível em: < http://leodias.odia.ig.com.br/pronto-falei/2017-04-08/pronto-falei-mais-juntos- -do-que-nunca-declara-mulher-de-jose-mayer.html> Acesso em: 10 abr. 2017

263 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Em um primeiro momento, por meio da criação de ZICs no âmbito dos dispositivos; depois, no sistema como um todo. No exemplo que estamos analisando, podemos observar, no primeiro caso, que um circuito informacional se interpôs na processualidade das gramáticas de produção do dispositivo blog e causou tensionamentos internos. O mais evidente deles diz respeito ao fato de, mesmo já tendo sido veiculada, a notícia é retirada de circulação sob o argumento de que “fere as normas internas de veiculação da empresa que dá sustentação ao blog”, sendo disponibilizada novamente somente quando estas exigências internas foram observadas. Sabemos dessas operações por meio de marcas textuais deixadas na superfície do dispositivo, caso da matéria publicada na editoria de “Cotidiano” do jornal Folha de S. Paulo sob o título “Folha tira do ar texto que cita o ator José Mayer” (Imagem 5), veiculada às 14h22 do dia 31 de março de 2017. Em quatro frases, e de forma autorreferencial, é afirmado que 1) o texto foi retirado do ar; 2) isso ocorreu porque feria as normas internas da empresa; 3) uma vez sanado o “defeito”, a matéria era disponibilizada novamente e, finalmente, 4) é dado em reportagem veiculada às 17h30 o espaço para o contraditório, ou seja, para a opinião do autor José Mayer.

Imagem 5: marcas da presença de ZIC

Fonte: Folha de S. Paulo.

Observe-se, ainda, que não se trata apenas de um movimento segundo o qual o dispositivo, irritado por uma informação vinda do meio em que se insere, ou dos demais sistemas, absorve-a, pelo viés da irritação, e reduz sua complexidade por meio de operações autorreferenciais. É mais do que isso: trata-se, antes, de um atravessamento que tensiona o próprio dispositivo, e que é classificado,

264 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS textualmente, conforme enunciado no terceiro parágrafo, de “defeito”; ou seja, algo que não estava previsto. Por meio dessa marca identificamos a presença, no âmbito do dispositivo, de uma zona intermediária de circulação. As redes sociais (Facebook, Twitter, blog etc.) exercem papel fundamental nesta processualidade, à medida que é por meio delas que os circuitos informacionais usualmente se estabelecem e atravessam o sistema midiático. Importante lembrar que as redes sociais se tratam, igualmente, de dispositivos, nos moldes daqueles que compõem o sistema midiático, mas não estão institucionalmente incorporados a este, ainda que estes se valham de dispositivos/ redes sociais como Instagram, Facebook, Twitter etc. para estabelecer seus diálogos e realizar suas consequentes ofertas de sentido. É o que se constata quando se observa que o assunto “assédio sexual” deixou o âmbito do sistema e passou a ser discutido livremente, sem a mediação institucional dos jornais, revistas, rádios etc. por estes dispositivos.

Imagem 6: outros atores15

Fonte: Facebook.

15 É o que demonstra este post: https://www.facebook.com/leticia.sabatella.1/ posts/1265007726939521. Ou este: https://www.facebook.com/ticosantacruz/ posts/1104924556306850

265 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Imagem 7: outras redes sociais16

Fonte: Twitter.

Imagem 8: blogosfera17

Fonte: Blog Escreva Lola Escreva

A reação a esta espécie de entropia provocada pela instauração de ZICs no sistema midiático se deu por meio de uma operação de natureza autorreferencial

16 Exemplos: https://twitter.com/VEJA/status/849292165524180992 e https://twitter.com/ThaiCo- menta/status/849323205215100928 17 Disponível em: Acesso em: 10 abr. 2017.

266 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS ocorrida no âmbito das gramáticas de produção do dispositivo Rede Globo. Nela, a emissora, pelo viés de notícia veiculada no Jornal Nacional, um de seus principais programas informativos, anunciou a suspensão do ator José Mayer “por tempo indeterminado”18. Uma apresentadora leu, no mesmo programa, editorial em que salientou as medidas que tomaria diante das denúncias, solidarizando-se com as manifestações e com a denunciante. No mesmo contexto, foi lida, pela apresentadora do telejornal, carta de José Mayer em que este admitia, publicamente, no programa em um quadro negro ilustrado com uma foto sua e o símbolo da emissora, sob o título “Nota de José Mayer”, não apenas sua culpa no episódio como a necessidade de uma retratação em caráter ‘público’: “(...) A atitude correta é pedir desculpas. Mas isso só não basta. É preciso um reconhecimento público, que faço agora19.” O retratado afirmava, textualmente, mais adiante, e ainda pela vozda apresentadora, “que o mundo havia mudado”, ou seja, que agora havia outros valores, outras regras, e que ele achava bom que isso estivesse acontecendo. Necessário salientar que, operacionalmente, não obstante o texto sugerir que o autor do pedido de desculpas fosse mesmo José Mayer, quem o fazia era o primeiro narrador, ou seja, a organização/instituição Globo, pela voz do segundo narrador, neste caso a apresentadora do programa. Coube a Mayer, neste contexto, o papel de personagem de sua própria história.

Imagem 9: reação do sistema

Imagem 10: reação do sistema

Fonte: G1.

18 Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/globo-suspende-jose-mayer-atrizes-fazem-pro- testo-contra-assedio.ghtml Acesso em: 10 abr. 2017 19 Disponível em http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/globo-suspende-jose-mayer-atrizes-fazem-pro- testo-contra-assedio.ghtml Acesso em: 13 abr. 2017.

267 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Imagem 10: vozes narrativas no dispositivo

Fonte: G1.

Cartografias das diferenças

O segundo caso que ilustra a ação das ZICs é a exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. Inaugurada a 15 de agosto de 2017, no Centro de Cultura Santander Cultural, em Porto Alegre, a mostra (Imagem 1120) foi cancelada no dia 10 de setembro após manifestações nas redes sociais. Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, os trabalhos ficariam em cartaz até 8 de outubro. Entretanto, o espaço cultural cedeu às pressões de internautas, que a criticaram nas redes sociais sob o argumento de que algumas das obras desrespeitavam símbolos e crenças estabelecidos na sociedade.

Imagem 11: anúncio da mostra

Fonte: Facebook Santander Cultural.

20 Disponível em: https://www.facebook.com/pg/SantanderCultural/posts/ Acesso em: 7 maio 2018>

268 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Um dos críticos foi o advogado Cesar Cavazzola Junior, que publicou um texto opinativo no portal Lócus21, de Passo Fundo, interior do Rio Grande do Sul, no dia 6 de setembro, criticando a realização do evento (Imagem 12).

Imagem 12: críticas

Fonte: Lócus.

Novas postagens nas redes sociais (Imagem 1322) se multiplicam e grupos políticos entram em cena.

Imagem 13: novas críticas

Fonte: Facebook

21 Disponível em: http://www.locusonline.com.br/2017/09/06/santander-cultural-promove-pedofilia- -pornografia-e-arte-profana-em-porto-alegre/ Acesso em: 3 maio 2018. 22 Disponível em: https://www.facebook.com/direitasulista/posts/ Acesso em: 3 maio 2018.

269 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

A partir disso, o Santander Cultural vê-se obrigado a posicionar-se e divulga nota, via site (Imagem 14), configurando efetivamente a Zona Intermediária de Circulação (ZIC), para esclarecer os propósitos da mostra. Logo em seguida, anuncia, igualmente por meio do dispositivo site (Imagem 15), o cancelamento da exposição.

Imagem 14: formação de uma ZIC

Fonte: Facebook Santander Cultura

Imagem 15: cancelamento da mostra

Fonte: Facebook Santander Cultural.

270 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

E se não der certo?

O terceiro e último caso analisado envolvendo a criação de ZICs no interior de dispositivos jornalísticos ocorreu no dia 17 de maio de 2017, quando o site Bambô23, do Grupo Editorial Sinos, de Novo Hamburgo – o segundo maior grupo editorial do Estado (RS), veiculou fotorreportagem em slideshow dando conta de evento ocorrido em uma escola daquele município. Na fotorreportagem, os alunos do último ano do Ensino Médio perguntavam-se, por meio de cartazes, fantasias e performances teatrais, o que fariam de suas vidas depois da escola “se nada desse certo”. A ideia era ironizar a possibilidade de um futuro sombrio aos olhos dos estudantes.

Imagem 16: profissões “menores”

Fonte: Bambô.

Imagem 17: notícia em primeira mão

Fonte: Bambô

23 http://www.bombors.com.br/ Acesso em: 10 abr. 2017

271 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

A exemplo do que ocorreu no movimento anterior, a notícia começa a circular na internet e provoca, neste movimento, a emergência de atores “não autorizados” à discursividade midiática. Estes, por sua vez, começam a disparar circuitos informacionais múltiplos, que acabam por irritar os demais dispositivos que compõem o sistema midiático. Valem-se, para isso, de blogs e redes sociais, por meio dos quais posicionam-se a respeito do assunto, invariavelmente de forma contrária. Importante lembrar (SOSTER, 2016) que os dispositivos repetem, em seu interior, a mesma processualidade do sistema do qual fazem parte, de natureza autorreferencial. Ou seja, sofrem, igualmente, irritações do meio em que se inserem, absorvendo-as, como veremos em seguida. É o que nos sugerem os exemplos abaixo (imagens 18 e 19):

Imagem 18: comentários via Twitter

Fonte: Twitter.

272 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Imagem 19: Redes sociais

Fonte: Facebook.

Estes movimentos, gradativamente, como sugerimos acima, acabam por afetar os dispositivos do sistema midiático. Estes, por sua, vez, passam a divulgar a notícia do evento na mesma tonalidade que os circuitos múltiplos, ou seja, tecendo, em seus enunciados, comentários negativos à ação veiculada pelo site Bambô. É o que ocorre, por exemplo, em matéria local do site G1 (Imagem 20), cujo título é “Atividade com alunos vestidos de vendedores e garis em caso de não aprovação no vestibular causa polêmica”.

Imagem 20: dispositivos repercutem ação

Fonte: G1.

273 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

À medida que todos os atravessamentos e interposições prosseguem, uma Zona Intermediária de Circulação (ZIC) acaba por se formar no site Bambô, que é obrigado a rever sua estratégia discursiva frente à “pressão” formada pela presença de circuitos múltiplos no sistema midiático. Isso é feito por meio de dois movimentos: o primeiro, e mais imediato, pela retirada do conteúdo original. O segundo, por uma “Nota de esclarecimento” assinada pela instituição que promoveu a ação em que esta afirma, em um texto de seis parágrafos, que não houve intenção, de sua parte, em discriminar quem quer que fosse, muito menos profissões: “(...) até porque, muitas delas fazem parte do próprio quadro administrativo e são essenciais para o bom funcionamento da instituição” (Imagem 21).

Imagem 21: reconfigurações

Fonte: Bambô.

Considerações interpretativas

Quando o assunto é refletir, metodologicamente, sobre o impacto das Zonas Intermediárias de Circulação (ZICs) na processualidade dos dispositivos, para além dos que já foram elencados neste artigo, dois obstáculos se interpõe ao esforço de pesquisa. O primeiro deles está relacionado ao fato de que, não obstante haver referências, na literatura, às zonas de contato que se formam em decorrência dos atravessamentos e interposições provocados pela presença de circuitos múltiplos na tessitura do sistema midiático (FAUSTO NETO, 2010; GOMES, 2017), nenhuma delas observa a questão na perspectiva jornalística. Ou seja, não considera, deontologicamente, as especificidades desta reconfiguração, que se estabelece no referido cenário, como procuramos fazê-lo aqui, limitando-se, na análise, a perceber a existência de fenômenos de natureza

274 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS semelhante às ZICs (as zonas de contato). É dizer, por outras palavras, que, em se tratando de compreender reflexivamente as ZICs na perspectiva jornalística, todo movimento é seminal, da ordem do porvir. O segundo aspecto está relacionado à estratégia metodológica mais adequada para dar conta de uma problemática dessa natureza. Se, de um lado, sugerimos, neste capítulo, que “seguir as pistas” discursivas nos permite compreender, ao fim, as reconfigurações narrativas que sofrem os dispositivos, também é importante lembrar, como dito, e agora com Bergson (1995), que o objeto está em movimento. Assim, muda constantemente, constituindo-se, esta, antes uma característica do mesmo que um obstáculo. Bem por isso, segue sugerindo que as ferramentas metodológicas utilizadas até então, sejam no plano na comunicação, ou em sua especificidade jornalística, talvez não sejam as mais adequadas para dar conta de uma problemática dessa dimensão. É bem verdade que a abordagem qualitativa, com suas dimensões pragmáticas e reflexivas, nos posiciona melhor diante do objeto. É por meio dela, por exemplo, que definimos caminhos empíricos (gráficos, marcas textuais, processualidades etc.) e sua necessária interpretação, mas isso antes de maneira indiciática que peremptória. Ou seja, usando uma expressão referenciada em algum momento neste capítulo, como indicador da existência de camadas mais profundas de significação que como resultado efetivo. Resta ainda, portanto, considerando que nossos esforços de pesquisa caminham neste sentido, o movimento do objeto e a relevância e atualidade do fenômeno em questão, compreender este como um desafio a ser considerado doravante em nosso percurso de pesquisa.

Referências

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276 Proposta metodológica para análise de reportagens hipermídia

Alciane Baccin

Ensaios gerativos

A proposta deste capítulo parte de discussões provocadas durante meu doutorado. Na tese “Como contar histórias? O hipertexto jornalístico nas reportagens hipermídia”, defendida em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação da professora Luciana Mielniczuk (in memorian), aplico esta proposta de análise. A questão que move este capítulo é a carência de uma metodologia que dê conta de analisar tanto as características hipertextuais das reportagens hipermídia quanto a estruturação narrativa. O objetivo deste texto é apresentar um caminho metodológico para a análise de reportagens hipermídia, com vistas a atender dois eixos de investigação – o hipertexto, enquanto modo de escrita do ambiente digital, e a estrutura organizativa da narrativa. O percurso metodológico parte da Teoria do Hipertexto, especificamente com base nos trabalhos de George Landow (1995, 1997, 2009). Landow é professor de inglês e emérito de história da arte na Brown University (EUA), é um dos principais teóricos do hipertexto, dos efeitos da tecnologia digital na linguagem e da mídia eletrônica na literatura. De acordo com a pesquisadora Katherine Hayles (2007), o livro Hypertext: The Convergence of Contemporary Literary Theory and Technology, publicado pela primeira vez em 1992, é um “marco” no estudo acadêmico de sistemas de escrita eletrônica, sendo o pioneiro no uso do hipertexto e da web no ensino superior. A Teoria do Hipertexto elaborada por Landow ao longo de pelo menos 30 anos, desde os primeiros textos em 1987, sempre teve como foco as narrativas literárias. Os livros do autor que reúnem a Teoria do Hipertexto são das décadas de 1990 e 2000. Em sua última obra, Hipertexto 3.0 (2005)1, Landow reúne toda a teoria. Em virtude do limite de espaço neste capítulo não é possível citar todos os autores que estudaram ou estudam as teorias do hipertexto, em Baccin (2017, p. 46) construo um quadro com 119 obras que tive acesso, agrupando-as de acordo com as várias abordagens sobre o hipertexto (estudos seminais, análise da tecnologia ou da estrutura, análise dos elementos da escrita hipertextual, estudo do hipertexto a partir do vies do leitor e abordagem das possibilidades do hipertexto).

1 Trabalhei com a versão espanhola de 2009.

277 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

O espaço de escrita digital e dinâmico e se transformou ao longo desse período, de 2005 a 2017 muitas mudanças ocorreram tanto na web quanto no jornalismo. Os autores do campo do jornalismo digital (PALACIOS, 1999; PAVLIK, 2001, 2005; DÍAZ-NOCI, 2001, 2009; PRYOR, 2002; LONGHI, 1998, 2003, 2004; MIELNICZUK, 2003, 2005; SALAVERRÍA; DIAZ-NOCI, 2003, 2005; CANAVILHAS, 2007, 2008a, 2008b; LARRONDO URETA, 2004) que fizeram aproximações com a Teoria do Hipertexto também as fizeram há mais de uma década. Desse período até o momento atual, as narrativas jornalísticas digitais passaram por modificações provocadas pelo melhor aproveitamento das características do jornalismo digital (hipertextualidade, multimidialidade, interatividade, memória, personalização, instantaneidade, ubiquidade). A proposta de construção de uma matriz teórico-metodológica representa os caminhos que encontrei para organizar o pensamento teórico de modo que a metodologia escolhida não limitasse a construção teórica proposta na análise, pois acredito que o potencial hipermidiático, que o espaço de escrita digital dispõe ao jornalismo, possibilita aproveitar as características dos meios aliadas ao hipertexto e ao uso de recursos expressivos que acionam sensações a quem experiencia as histórias, aprofundando-as e ampliando o entendimento da informação (BACCIN; DANIEL, 2014; CANAVILHAS; BACCIN, 2015; BACCIN, 2017). E a partir dos níveis de análise (características das narrativas hipertextuais e eixos estruturantes da reportagem) que aciono conceitos e técnicas, que permitirão atender as necessidades de compreensão e interpretação da narrativa hipermídia nas reportagens, resultando numa contribuição efetiva para o campo do jornalismo digital.

Entendendo a teoria

O desenvolvimento do hipertexto como área de conhecimento científico inicia na década de 1980, quando as pesquisas se ramificaram em vários campos do conhecimento: da linguística, da literatura, da filosofia, da sociologia, da tecnologia e da educação. A Teoria do Hipertexto, proposta por Landow (1987, 1995, 1997, 2009), identifica características que o hipertexto apresenta nas narrativas construídas para e no espaço de escrita digital: intertextualidade, descentralização, multivocalidade, rizoma e intratextualidade. 1) Com forte influência do filósofo Jacques Derrida2, Landow (2009) desenvolve os conceitos de intertextualidade e de descentralização, como duas das características do hipertexto. A intertextualidade refere-se ao texto composto de unidades discretas de leitura (lexias - fragmentos de textos que compõem a obra), que permitem tornar mais explícito o que se relaciona com este texto, seja por iniciativa do leitor ou uma ação já prevista pelo próprio autor. Esta característica

2 É a partir de Derrida que Landow reconhece que o hipertexto incorpora a abertura textual defendida pela teoria pós-estruturalista.

278 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS do hipertexto abre o texto para uma gama de relações com outros textos e libera o usuário à percepção de múltiplas interconexões. Essas interconexões são possibilitadas pelos links que unem os vários textos que se relacionam. 2) Já o conceito de descentralização caracteriza o hipertexto como um todo composto por vários fragmentos de textos conectados, formando um sistema onde o leitor escolhe o centro de experiência, onde “o hipertexto se experimenta como um sistema que se pode descentrar e recentrar até o infinito, em parte porque transforma qualquer documento que tenha mais de um link em um centro passageiro”3 (LANDOW, 2009, p. 89, tradução nossa). Isso quer dizer que o texto principal é determinado pela lexia, nó ou fragmento de texto que o leitor lê no momento, na medida em que acessa outra lexia o centro se desloca também. A descentralização se refere também à ausência de uma hierarquização mais rígida dos textos. 3) Para definir a multivocalidade como uma característica do hipertexto, Landow (2009) recorre a Bakhtin (1981). De acordo com Bakhtin, o conceito de polifonia é como se na narrativa estivesse inserida a réplica do outro, “o nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas, fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos nossas próprias palavras (...); por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções” (BAKHTIN, 1981, p. 181). A conceituação de polifonia de Bakhtin pode abarcar duas formas de interpretação: tanto a de que a narrativa do autor é construída a partir da multiplicidade de vozes de outras pessoas com as quais o autor se relaciona em toda a sua vivência, bem como a possibilidade de uma escrita colaborativa, onde outros vozes possam elaborar a narrativa de modo cooperativo. 4) O rizoma, outra característica do hipertexto identificada por Landow (2009) está intimamente relacionado com o conceito desenvolvido por Deleuze e Gattari (1995), a partir da metáfora com a botânica4. Segundo os autores, no rizoma não existem caminhos certos, não há uma forma fechada, não há conexões definitivas, pois qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro, conectando assim cadeias semióticas de toda natureza. O rizoma contrapõe-se a ideia de hierarquia porque um rizoma pode oferecer muitos começos e muitos fins. 5) Embora Landow (1995, 1997, 2009) não deixe claro que considera a intratextualidade uma característica do hipertexto. Essa característica fica subentendida na obra do autor quando aborda a questão dos enlaces eletrônicos

3 “El hipertexto se experimenta como un sistema que se puede descentrar y recentrar hasta el infinito, en parte porque transforma cualquier documento que tenga más de un enlace en un centro de pasajeros” (LANDOW, 2009, p. 89). 4 A noção de rizoma foi adotada da estrutura de algumas plantas cujos brotos podem ramificar-se em qualquer ponto, assim como engrossar e transformar-se em um bulbo ou tubérculo; o rizoma da botânica, que tanto pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independente de sua localização na figura da planta, servindo para exemplificar um sistema epistemológico onde não há raízes - ou seja, proposições ou afirmações mais fundamentais do que outras - que se ramifiquem segundo dicotomias estritas.

279 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS que podem ser utilizados “para elaborar um mapa das alusões e referências do texto, tanto internas como externas – sua inter e intratextualidade”5 (LANDOW, 2009, p. 106). A intratextualidade diz respeito às ligações internas que podem existir entre lexias dentro de uma mesma obra. Nas reportagens jornalísticas hipermídia, a intratextualidade é percebida em vários momentos da narrativa: para acionar vídeos e áudios, acessar galerias de imagens e infográficos, direcionar a narrativa para outros capítulos. Essas características atribuídas por Landow ao hipertexto dizem respeito às narrativas ficcionais. Por outro lado, de acordo com Landow (2009, p. 279), o hipertexto informativo precisa utilizar-se de retóricas de orientação, navegação e ponto de partida para que o leitor possa orientar-se na informação. A partir dessa afirmação, percebo a necessidade de identificar quais características então são pertinentes ao hipertexto jornalístico.

Tensionando a teoria

Após a observação sistemática das reportagens hipermídia publicadas de 2012 a 2016 pela Folha de S.Paulo (Brasil), The New York Times (EUA), The Guardian (Inglaterra), Público (Portugal), El País (Espanha) e Clarín (Argentina), identifiquei que duas (rizoma e descentralização) das cinco características, apontadas por Landow comum ao hipertexto literário, não qualificam o hipertexto jornalístico. Nas reportagens hipermídia, as informações são organizadas hipertextualmente a partir de um eixo central que conduz as histórias. O mesmo ocorre com o rizoma. O próprio Landow admite que o rizoma e essencialmente um contraparadigma, não algo realizável, mas que pode servir como ideal para o hipertexto. Embora algumas particularidades do rizoma convergem com o hipertexto jornalístico, como a possibilidade de multilinearidade, que permite ao leitor escolher o caminho que seguira na narrativa jornalística conforme seu interesse por mais informação, há sim um começo e um fim nas narrativas jornalísticas, mesmo que o percurso ao longo do caminho seja escolhido pelo leitor. Na reportagem hipermídia o leitor pode eleger apenas seguir a sequência estabelecida pelos repórteres e editores (pelo menu ou índice das reportagens) ou escolher alternar a leitura entre os capítulos da reportagem. Como salienta Larrondo Ureta (2009, p. 72, tradução nossa), “esta escrita fragmentada não implica em si mesma uma ausencia de organização ou ordem lógica, já que o autor mantém sua responsabilidade de articulação hierárquica de todo o conjunto6”. No hipertexto informativo o enlace coerente e relevante e necessário.

5 “... para elaborar un mapa de las alusiones y referencias del texto, tanto internas como externas - su inter e intratextualidade” (LANDOW, 2009, p. 106). 6 esta escritura fragmentada no implica en si misma ausencia de organizacion u orden logico, ya que el autor mantiene su responsabilidad de articulacion jerarquica de todo el conjunto.

280 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

A partir da breve constatação de Landow (2009) e das observações das reportagens hipermídia, percebo que, como no texto jornalístico existem especificidades próprias, como um eixo norteador da narrativa e um pontode partida para a história. Para dar conta de analisar as retóricas de orientação de navegação e ponto de partida que as narrativas jornalísticas hipermídia apresentam, identifico características (estrutura de navegação e camadas informativas) que direcionam o leitor na narrativa. Essa foi a primeira pista teórica que reconheço para construção das categorias de análise que aponto mais a frente. A segunda pista acionada pela teoria surgiu da análise do ambiente de escrita digital. No espaço digital o campo físico e visual e topográfico, porque não possui limites pré-estabelecidos para se desenvolver, diferente de todos os espaços anteriores que eram limitados. Com a textualidade digital, a escrita que ate então era física, se converte em códigos matemáticos. Esses códigos, por sua vez, podem ser alterados, são flexíveis. A regra da qual derivam os processadores de texto e “muda o código, muda o texto”7 (LANDOW, 2009, p. 126). No papiro, no pergaminho e no papel, o espaço visual é físico e se caracteriza por ser bidimensional, tenho a visão da altura e da largura do texto, do começo e do fim. Na escrita digital, o espaço visuale multidimensional, e o hipertexto que possibilita essa multidimensionalidade, porque há algo oculto que esta em outra camada de informação. Posso dizer que há uma estreita relação entre os espaços físico e visual da escrita com as práticas e os usos da escrita e da leitura. Logo cada espaço tem práticas próprias tanto de escritura quanto de leitura. Por exemplo, quando a escrita era feita em superfície de argila, era impossível escrever grandes narrativas porque o espaço físico e visual era extremamente limitado e, nas escrituras em pedras, outro limite era a mobilidade, que interferia nas práticas de leitura e escrita, porque os textos não podiam ser transportados. Logo, o espaço de escrita não se caracteriza somente pela tecnologia, mas também pela interação do escritor e do leitor com esse espaço. As pistas identificadas a partir da Teoria do Hipertexto e do que constitui o espaço de escrita digital nos possibilitam pensar as especificidades das narrativas hipermidiáticas, em especial das reportagens escritas nesse espaço. Na próxima seção, aciono essas teorias para a construção das categorias de análise e do desenho metodológico.

Abordagem metodológica

A construção das categorias de análise

Nesse primeiro momento do desenho da metodologia identifico as características específicas do hipertexto jornalístico e a estrutura da narrativa no espaço de escrita digital onde o hipertexto se configura. Na observação atenta

7 “Cambia el codigo, cambia el texto”.

281 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS do objeto de estudo (as reportagens hipermídia) e no olhar criterioso durante o estudo da teoria, pude perceber que a multivocalidade e a intratextualidade são duas características que também ocorrem nas reportagens. No ambiente digital, a multivocalidade pode ser compreendida tanto como uma narrativa construída com a cooperação dos leitores – seja no envio de imagens, no relato de quem presenciou o acontecimento ou nos comentários das notícias, que contribuem com a construção e com a ampliação da narrativa – quando uma informação jornalística e construída pelas inúmeras vozes que compõem a história: as fontes, o repórter, o editor e ate mesmo as que estão representadas na linha editorial do meio. E verdade que todas essas múltiplas vozes já eram possíveis de compor as narrativas jornalísticas antes do espaço de escrita digital, mas o hipertexto jornalístico aproxima a comunicação entre leitores e jornalistas, podendo resultar em um discurso hipernarrativo polifônico (LARRONDO URETA, 2009), no qual a narrativa e enriquecida com maior ou menor participação do leitor e com a possibilidade de ampliação de vozes, tanto pelo espaço menos limitado, quanto pelas relações que possam ser estabelecidas com outros textos, por meio dos links. Para refletir sobre a intratextualidade como uma característica das narrativas jornalísticas no ambiente digital, amplo a análise e identifico a tipologia dos links que promovem a conexão dos vários formatos de textos dentro da reportagem. Os links representam uma possibilidade de ganho no jornalismo, porém De Maeyer (2012, 2013, 2014) ressalta que este ganho ainda não e bem explorado porque “o nosso mundo social não e ainda inteiramente feito de pedaços de dados e meta-dados, ordenadamente mapeados e interconectados”8 (DE MAEYER, 2014, p. 538, tradução nossa), o que possibilitaria que as informações estivessem totalmente acessíveis a poucos cliques de cada um de nós. O objetivo principal dos links entre lexias de uma mesma obra e aprofundar a história, levar o leitor mais fundo ao contexto do acontecimento. Repórteres descrevem os links internos como uma maneira de estender reportagens e o poder explicativo dessas (CODDINGTON, 2012). E o link que possibilita a construção de camadas de informação no espaço de escrita digital, quanto mais informações o leitor desejar, mais fundo entra na narrativa, a projetando dentro desse espaço virtual (DOHERTY, 2014). Nas reportagens hipermídia, os links também sugerem a multimidialidade, que contribui para o enriquecimento da narrativa, proporcionando que os jornalistas selecionem as formas expressivas que melhor expressam a complexidade do que e narrado. A partir da importância que o link tem nas histórias que são contadas no jornalismo e nos estudos aos quais refiro, direciono o foco de análise aos vários tipos de links que existem na reportagem e não apenas ao seu universo

8 ... even with trends such as “big data” or the “internet of things” gaining momentum, our social world is not yet entirely made of pieces of data and meta-data, neatly mapped and interconnected.

282 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS de abrangência, se são links internos ou externos. Durante a observação sistemática identifiquei que as reportagens hipermídia praticamente não apresentam links externos. Isso chamou a atenção para a carência de intertextualidade nas histórias jornalísticas de um modo geral, que ocorre devido a preocupação de editores de perderem os leitores na medida em que estes acessem outros sites que não sejam o da própria organização jornalística (CODDINGTON, 2012). Esse entrave comercial tem inibido o uso da intertextualidade no hipertexto jornalístico. Landow (1995, 1997, 2009) defende que a descentralização como característica do hipertexto. No jornalismo, as informações são organizadas hipertextualmente a partir de um eixo central que conduz as histórias. O próprio Landow admite que “o rizoma e essencialmente um contraparadigma, não algo realizável em algum tempo ou cultura, mas que pode servir como ideal para o hipertexto”9 (LANDOW, 2009, p. 95, tradução nossa). Por isso, algumas particularidades do rizoma convergem com o hipertexto jornalístico. O mais visível e a questão da multilinearidade, que permite ao leitor escolher o caminho que seguira na reportagem jornalística, conforme seu interesse por mais informação. Na reportagem hipermídia, o leitor pode eleger seguir a sequência estabelecida pelos repórteres e editores ou escolher alternar a leitura entre os capítulos da reportagem. Como bem salienta Larrondo Ureta (2009, p. 72, tradução nossa), “esta escrita fragmentada não implica em si mesma uma ausência de organização ou ordem lógica, já que o autor mantém sua responsabilidade de articulação hierárquica de todo o conjunto”10. Como as características de descentralização e rizoma, identificadas por Landow no hipertexto não se efetivam na plenitude no hipertexto jornalístico, proponho (BACCIN, 2017) uma característica que de conta de analisar essas retóricas de orientação nas reportagens hipermídia, a estruturação da navegação. Logo, as categorias de análise que dizem respeito às características do hipertexto jornalístico são: multivocalidade, tipologia dos link e estruturação da navegação. Como a proposta é analisar dois níveis das reportagens hipermídia, um relacionado às características do hipertexto jornalístico e outro com os eixos que estruturam a reportagem, desenvolvo agora as categorias que dizem respeito a este segundo nível, como essas narrativas são construídas nesse espaço digital, onde a multidimensionalidade, a multimidialidade e a possibilidade ilimitada de contextualização são características próprias desse espaço. De acordo com Yara Medeiros (2017), “o repórter tem hoje um arsenal de possibilidades visuais”. A reportagem hipermídia é um dos caminhos para os

9 El rizoma es esencialmente un contraparadigma, no algo realizable en algun tiempo o cultura, pero que puede servir como ideal para el hipertexto, y el hipertexto, al menos el hipertexto nelsoniano ideal, se acerca tanto a el como cualquier creacion humana. 10 “esta escritura fragmentada no implica en si misma ausencia de organizacion u orden logico, ya que el autor mantiene su responsabilidad de articulacion jerarquica de todo el conjunto..”

283 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS repórteres aproveitarem as possibilidades proporcionadas pelo espaço digital. As reportagens hipermídia, assim como as demais narrativas construídas no espaço digital, estão projetadas em camadas ou níveis de informação. Os elementos que possibilitam essa arquitetura são os links e as lexias. O link e o elemento que da acesso às camadas mais ocultas, onde estão dispostas lexias com conteúdo mais aprofundado (BACCIN, 2017). A estruturação das histórias em camadas informativas ocorre por meio dessas hiperligações que são estabelecidas nas narrativas hipermídia. Nessas narrativas jornalísticas hipertextuais as informações são construídas em camadas que agregam níveis de profundidade a reportagem hipermídia, possibilitando ao leitor acesso às camadas mais profundas de informação e da estrutura narrativa. E necessário que o leitor percorra o espaço narrativo, que se configura nas camadas, para ter acesso a partes da história que estão ocultas. As camadas informativas formam uma das categorias de análise do nível eixo estruturante da reportagem (BACCIN, 2017). Este espaço também possibilita além da utilização de recursos multimídia para contar as histórias, o uso de outras modalidades de comunicação, como infográficos, mapas, tabelas animações, que extrapolam o conceito de multimídia. Conceituo a segunda categoria deste nível como modalidades comunicativas, pois dizem respeito aos recursos utilizados pelas reportagens hipermídia para informar, interpretar, opinar, complementar, ilustrar, detalhar informações; podendo ser reconhecidas como texto, som, vídeo, mapa, animação, infográfico, fotografias, arquivos de documentos. Elas fazem parte da narrativa com o objetivo de enriquecer o relato, pois, quando o jornalista expressa uma informação em uma determinada modalidade comunicativa a seleciona de acordo com a capacidade de cada modalidade, a que melhor expressa a informação. Outra especificidade do espaço de escrita digital é a possibilidade ilimitada de contextualização. A terceira categoria defino como variante contextual da reportagem, que pode ser expressa pela utilização de bancos de dados, de recursos imersivos, da humanização do relato e da utilização da narrativa longform. A humanização do relato faz parte das características inerentes ao gênero reportagem (CANAVILHAS; BACCIN, 2015), porém defendo que no espaço de escrita digital essas características podem ser potencializadas e assim colaboram ainda mais na contextualização das histórias. As bases de dados se configuram como recurso narrativo e tecnológico de contextualização (CANAVILHAS; BACCIN, 2015). Estão presentes na estruturação da reportagem hipermídia, dando suporte a maneira de apresentar o conteúdo. A utilização de bases de dados na reportagem vai além das potencialidades tecnológicas desse recurso, como a estrutura das informações e as combinações possíveis das informações entre si. As bases de dados também fazem parte da construção textual das modalidades comunicativas. Outra variante contextual, a imersão, oferece formas de

284 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS experimentar a notícia, que pode facilitar a interpretação dos acontecimentos (CANAVILHAS; BACCIN, 2015), por meio de recursos linguísticos e visuais. A imersão nas reportagens hipermídia oportuniza aos leitores um nível diferente de compreensão das histórias. A reportagem hipermídia com recursos imersivos conecta o público com a informação, ampliando a contextualização das histórias narradas. Como variante contextual, o longform (CANAVILHAS; BACCIN, 2015; LONGHI; WINQUES, 2015; BACCIN, 2017a, 2017b;) e muito mais que um formato longo de contar história. O longform nas reportagens hipermídia requer estratégias que contemplem apuração aprofundada das informações, apresentação atraente dessas informações e verticalização da narrativa. Como proposta para os dois níveis de análise sugiro:

Nível das características das narrativas hipertextuais

• Tipologia dos links - E a classificação dos links da reportagem de acordo com o conteúdo a que se destina. • Multivocalidade - E a expansão do espaço retórico, que pode ser materializado nos comentários dos leitores; bem como na construção da história enriquecida pela multiplicidade de vozes. • Estrutura de navegação - E composta por links do tipo de navegação que determinam quais desses levam para outras lexias capitulares ou para fora da reportagem, e quais links mantêm a história na mesma lexia capitular.

Nível dos eixos estruturantes da reportagem hipermídia

• Camadas informativas - E a organização da informação por níveis de profundidade, possibilitada pelos links que dão acesso às lexias que estão em outro nível de informação, nas demais dimensões textuais. • Modalidades comunicativas - São recursos expressivos utilizados nas reportagens hipermídia para comunicar a informação, como texto, som, vídeo, fotografia, mapa, animação, infográfico e outros elementos. • Variantes contextuais - E a combinação de recursos narrativos e tecnológicos para melhor contextualização da história a ser narrada. As variantes contextuais são: base de dados, recursos imersivos, narrativa longform e humanização do relato.

Como parte da abordagem metodológica apresento na sequência o objeto selecionado para a análise neste capítulo e a construção da matriz metodológica.

285 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

O objeto de análise

A construção das seis categorias de análise tem como base as teorias discutidas e a observação sistemática das reportagens publicadas de 2012 a 2016 pelos seis jornais listados. Para exemplificar a proposta de análise de reportagens hipermídia que apresento neste capítulo a reportagem “A Crise da Água – Líquido e Incerto11”, publicada pela Folha de S.Paulo em 2014. Essa reportagem rendeu ao jornal, em 2015, os prêmios de Excelência Jornalística, na categoria Cobertura Multimídia, organizado pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e o ExxonMobil (antigo prêmio Esso), na categoria de Informação Científica, Tecnológica ou Ambiental. O trabalho levou quatro meses de produção, apuração e edição da reportagem, no qual participou uma equipe formada por 13 profissionais, sendo seis repórteres, quatro artistas gráficos e três profissionais de vídeo e de foto, que se debruçaram sobre todos esses problemas hídricos em três regiões do país. A Crise da Água reúne várias modalidades comunicativas para expressar e traduzir a complexidade desses problemas e as consequências para a vida das pessoas. Além do texto que rege todos os quatro capítulos da reportagem, são ao todo 23 infográficos, 11 vídeos, seis galerias, 28 fotografias individuais (fora das galerias), quatro imagens em formato 360o, quatro vídeos em loop e dois videográficos. A reportagem e a terceira da série Tudo Sobre que o jornal desenvolve desde 2013. A reportagem e dividida em quatro capítulos, onde apresenta a radiografia dos principais problemas hídricos brasileiros: a crise deágua que atinge a região metropolitana de São Paulo, os impactos das enchentes do rio Madeira em Rondônia e os problemas históricos de falta de água no Nordeste do país, dando ênfase às obras incompletas de transposição do rio São Francisco.

O desenho da matriz metodológica

Na definição dos critérios de análise para cada categoria é importante construir os limites da análise e os parâmetros que vão nortear o olhar para a reportagem. Para isso, organizo um quadro para cada categoria, conforme demonstro no Quadro 1, onde estão expostos a delimitação e os parâmetros de análise.

11 Reportagem disponível em: http://arte.folha.uol.com.br/ambiente/2014/09/15/crise-da-agua/index. html

286 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Quadro 1 – Síntese das categorias de análise

287 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Fonte: Elaboração da autora.

Com base nessa delimitação e construção dos parâmetros de cada categoria a análise das reportagens hipermídia é realizada. A partir dessa análise é possível destacar o que e comum a cada nível e a cada categoria. Após essa análise, os resultados são cruzados entre os dois níveis, as características do hipertexto jornalístico e os eixos estruturantes da reportagem hipermídia, conforme representação gráfica (Quadro 2). Com essa matriz- metodológica são extraídos os indícios para a elaboração de elementos que apontem especificidades da reportagem no espaço de escrita digital.

288 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Quadro 2 – Matriz teorico-metodologica dos cruzamentos entre as categorias

Fonte: Elaboração da autora.

Para cada análise das categorias são acionadas técnicas variadas de pesquisa. Na identificação da tipologia dos links, por exemplo, foi realizada a análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Seguindo os links, analiso a função de cada um no hipertexto. Na reportagem encontrei 80 links, sendo três do tipo participação do público (botões para Twitter, Facebook e Google+), nove do tipo organizativo (acesso ao site da Folha de S.Paulo, índice da reportagem que leva aos quatro capítulos e setas que direcionam a sequência sugerida pela reportagem, no final de cada capítulo) e 68 do tipo narrativo (que contribuem para contar a história). Já e possível perceber que o esforço hipertextual concentra-se no contar a história. Ao olhar para as camadas informativas, aciono a análise da estrutura da informação, como a apresentação das informações influencia a facilidade ou a dificuldade de encontrar e/ou entender a informação. Na reportagem existem duas camadas informativas, uma da conta da informação que esta disposta no primeiro plano da tela e outra que esta em um segundo plano, inicialmente oculta. Os links distribuídos nos capítulos remetem a lexias que estão numa segunda camada. As camadas informativas existem no âmbito da profundidade da navegação e efetivam a multidimensionalidade da narrativa hipertextual. Para facilitar o entendimento, identifico cada capítulo como sendo uma Lexia Capitular, então tenho LC1, LC2, LC3 e LC4 referente aos quatro capítulos da reportagem. Cada uma dessas lexias maiores e formada internamente por vários links e lexias menores, as quais chamo de Lexias Modulares (Lm). São algumas dessas que compõem o segundo plano de camadas informativas. O primeiro plano e formado pela visualização das informações que estão na vertical (por meio da barra de scroll) e na horizontal (entre os capítulos). Para acessar o segundo plano, que da acesso às informações que estão ocultas, preciso acionar os links que abrem as lexias para serem reveladas. O conteúdo que eu não visualizo esta no segundo plano, inicialmente oculto, escondido,

289 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS por trás da primeira camada (ver Figura 1). Os conteúdos das lexias Lm3, Lm6 e Lm7 estão na segunda camada informativa, onde cada um assume a denominação de lexias modulares ocultas: Lm3O, Lm6O e Lm7O. As demais informações da Lexia Capitular 1 (Figura 1) estão todas na primeira camada.

Figura 1 - Camadas informativas da Crise da Água

Fonte: Elaboração da autora.

Outra técnica utilizada na análise da reportagem é a técnica da moldura12. Para facilitar a visualização da distribuição das modalidades comunicativas na reportagem, construímos uma apresentação esquemática (Quadro 3) utilizando a técnica da moldura que demonstra além da localização de cada modalidade

12 Tecnica utilizada em pesquisas sobre interfaces digitais. Permite que o pesquisador congele no tempo o objeto. A partir da imagem estatica, e possivel cartografar seu comportamento e o carater. Para mais detalhes ver Bittencourt (2007), Grossmann (2008), Daniel (2015).

290 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS comunicativa nos capítulos, o que cada uma expressa. Na reportagem Crise da Água – Líquido e Incerto reconheço cinco modalidades comunicativas diferentes: texto, vídeo, fotografia, infografia e videografia. A modalidade que mais vezes aparecee a fotografia, precisamente 56 imagens estáticas diferentes compõem a reportagem. Para compreender o objetivo de cada modalidade comunicativa na composição da história contada, identifico assuntos que perpassam por várias modalidades. No geral, as modalidades comunicativas nesta reportagem são utilizadas para expressarem problemas, informar sobre questões técnicas, ambientar temáticas, expor a avaliação de especialistas, apresentação de personagens e soluções possíveis. Para entender os objetivos das modalidades comunicativas, em utilizar determinado tema para contar a história, realizo a análise de cada modalidade.

Quadro 3 - Modalidades Comunicativas – Crise da Água Líquido e Incerto (Folha de S.Paulo)

Após a análise das categorias, o cruzamento dos resultados possibilita apontar as especificidades da reportagem hipermídia, o que de comum e de singular existe nas reportagens. Na sequência, demonstro o cruzamento feito

291 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS com os resultados das análises dos dois níveis e seis categorias construídas com a matriz teórico-metodológica proposta.

Quadro 4 - Cruzamentos das categorias de Crise da Água – Líquido e Incerto

Tipologia dos links Multivocalidade Estrutura de navegação A primeira camada informativa Das 33 vozes utilizadas, 18 são Os 62 links conjuntivos levam apresenta todos os tipos de expressas ao longo dos textos para lexias que se revelam na links: participação do público, escritos, 11 em vídeos e quatro segunda camada informativa. Os organizativo e tipos narrativos. são vozes que comunicam em sete disjuntivos por sobreposição Na segunda camada, situam- textos e em vídeos. As múltiplas levam para lexias que se se apenas os links dos tipos vozes que compõem os textos mantêm na primeira camada. Camadas narrativos de complementação estão apenas na primeira Dez links do tipo disjuntivo por informativas e detalhamento. A diversidade camada informativa. As que opção levam tanto para lexias da de tipos de links é menor nas estão em vídeos são expressas segunda camada como para fora camadas mais profundas. Na na segunda camada. As quatro da reportagem e um deste tipo segunda camada, com os links de vozes que compõem as histórias mantém na primeira camada. complementação e detalhamento, narradas estão expressas em O maior número de links há aprofundamento do conteúdo. textos e em vídeos e constam conjuntivos revelam o cuidado tanto nas primeiras quanto nas que a edição teve para manter o segundas camadas das LC2, leitor atento à LC, que está indo LC3 e LC4. mais fundo na história. Os links de complementação estão As vozes expressam, via Nas 31 modalidades presentes nas várias modalidades, modalidades comunicativas, comunicativas que possuem permitem na primeira camada problemas que enfrentam com links, esses links somam informativa o acesso a todos a falta ou com o excesso de 68, sendo 62 conjuntivos e os infográficos, videográficos, água, expõem histórias de vida seis disjuntivos por opção. A vídeos, galerias de imagens e e contraposição de ideias. As modalidade comunicativa que fotografias em 360o. Os links de 18 vozes de personagens estão apresenta a maior quantidade de detalhamento estão presentes na distribuídas: nove em vídeos, links conjuntivos é o infográfico, primeira camada em infográficos e sete em textos escritos e duas que reúne 28 links. Os links Modalidades videográfico. Os links de ilustração são expressas em vídeos e disjuntivos por opção estão comunicativas estão em fotografias em 360o textos. Quanto às vozes oficiais, localizados nas quatro imagens e em galerias de imagens. Os seis estão em textos e uma em 360o e nas duas infografias. links de particularização e de em texto e vídeo. Quanto às A utilização de links conjuntivos contraponto estão ligados aos vozes institucionais, duas estão nas modalidades comunicativas vídeos. São os links narrativos que em textos e uma em texto e contribuem para manter a atenção permitem o acesso às modalidades vídeo. As vozes de personagens e o interesse pela história, porque comunicativas, contribuindo para o são expressas na modalidade não dispersam o leitor para outras enriquecimento da história. vídeo, enquanto que as demais lexias capitulares, sem que este compõem principalmente textos. termine a leitura da LC.

As bases de dados são reveladas A multivocalidade tem relação O formato longo de narrativa por links narrativos do tipo direta com a humanização requer que a maioria dos links complementação e detalhamento. dos relatos, quando expõe a de navegação sejam conjuntivos, Os recursos de imersão são história de 18 personagens necessitando apenas da barra distribuídos em todos os tipos que têm suas vidas impactadas de scroll para o acesso à de links narrativos. Nos links de pelos problemas hídricos. Os reportagem. Os links sendo particularização e contraponto, a relatos das histórias de vida conjuntivos também viabilizam proposta imersiva é acionada por e dos dramas vividos pelos uma das características do meio de recursos de linguagem. Os personagens têm potencial longform que é a verticalização recursos visuais e sonoros também imersivo. As múltiplas vozes da narrativa. Os links Variantes contribuem para a proposta podem acionar por meio conjuntivos também contribuem contextuais imersiva. Os links de detalhamento de recursos de linguagem para a imersão, mantendo o e complementação ativam o a sensação de imersão. O leitor com a atenção focada potencial imersivo por meio de longform, enquanto variante na história, e não nas idas e recursos de interação e animação. contextual, também colabora na vindas de páginas ou abas de Os links de complementação multivocalidade, por meio do navegação. e de detalhamento são os que texto longo, apuração profunda mais aparecem no longform. e verticalização da história. A humanização do relato está presente nos links do tipo narrativo de particularização. Fonte: Elaboração da autora.

292 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Este capítulo se propôs a apresentar a proposta de análise de reportagem hipermídia, a partir de seis categorias que contemplam os níveis das características do hipertexto jornalístico e dos eixos estruturantes da reportagem hipermídia. Por meio da construção e da aplicação da matriz metodológica analiso a reportagem da Folha de S.Paulo. Os resultados que emergem dessa análise dizem respeito a este recorte. Essa proposta metodológica foi também aplicada por alunos do 7º semestre de Jornalismo da UFRGS, de maneira experimental, como exercício da disciplina de webjornalismo, sob orientação da professora Luciana Mielniczuk no primeiro semestre de 2017. Outros exemplos de aplicação dessa proposta podem ser encontrados em Baccin (2017). A construção dessa matriz metodológica é exemplo de que teoria e metodologia devem são dependentes das escolhas que o pesquisador faz na sua trajetória de investigação, por isso é importante que identifique nas teorias eleitas as pistas que possam apontar o caminho a ser seguido, bem como quais técnicas precisam ser acionadas para atingir os objetivos propostos na pesquisa. É relevante deixar claro que não tenho a pretensão de propor um modelo pronto, fechado, onde possa ser enquadrado outras pesquisas sobre narrativas midiáticas contemporâneas, mas confesso que é minha intenção servir de inspiração para que outros pesquisadores construam seus próprios caminhos metodológicos em suas pesquisas, que deixem os rastros percorridos e contribuam de alguma forma para a geração do conhecimento científico.

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295 Metodologias de pesquisa em jornalismo: trabalhos apresentados nos congressos da SBPJor (2004-2017)

Monica Martinez Diogo Azoubel

Considerações preliminares

As pesquisas sobre o estado da arte da produção científica de um dado campo, como o Jornalismo, ainda não são tão comuns no Brasil quanto em outras nações, particularmente as de tradição investigativa anglo-saxônica. Esforços empreendidos nessa frente são importantes para a compreensão da configuração dos estudos na área a partir da abordagem de questões como perfil das estudiosas/estudiosos, filiação e referencial teórico utilizado, além dos resultados dos próprios estudos em si. Como propõem Machado e Sant’Ana (2014, p. 27):

A construção de metodologias específicas para Jornalismo destacada como uma das prioridades desde meados dos anos 1940, entre outros, por (NAFZIGER; WILKERSON, 1968; MOTT, 1968; MACHADO, 2005, 2010; GROTH, 2011) continua uma tarefa ainda muito incipiente entre os especialistas da área. A comunidade de pesquisadores em Jornalismo vive o paradoxo de ao mesmo tempo que demonstra capacidade de institucionalização através da criação de sociedades científicas, grupos de discussão permanentes em congressos acadêmicos e revistas especializadas revelar poucas iniciativas para pensar as metodologias do ponto de vista epistemológico, uma vez que são escassas as discussões metodológicas sobre a prática da pesquisa em Jornalismo.

Devido ao fato de a comunidade científica do campo do jornalismo brasileiro ter uma forte herança ligada à Europa, em particular à França, país de grande tradição ensaística no campo da pesquisa, o trajeto metodológico da pesquisa no campo parece ter permanecido subliminar, desde sua construção no início dos anos 1970. Como apontam Machado e Sant’Ana (2014, p. 28):

Ao longo de todo o século XX, os estudos sistemáticos de Groth e Bruchner e as coletâneas de ensaios de Nafziger; Wilkerson (1968) e de Marques De Melo (1970) são exceções entre uma comunidade de pesquisadores que raras vezes empreendeu esforços institucionais para elaborar manuais de referência para orientar o trabalho científico na disciplina, como, por exemplo, os livros Metodologias de Pesquisa

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em Jornalismo (BENETTI; LAGO, 2007), Global Journalism Research (Theories, Methods, Findings, Future) (LÖFFELHOLZ, Martin; WEAVER, 2008), The Handbook of Journalism Studies (HANITZSCH; WAHL- JORGENSEN, 2009).

A proposta neste capítulo é a de pormenorizar os estudos sobre metodologia de pesquisa no âmbito das 15 edições do Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, organizados de 2004 a 2017 pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Trata-se, portanto, do Jornalismo enquanto área do conhecimento humano. Optou-se pela abordagem quali- quantitativa (MARCONI; LAKATOS, 2010) e os métodos de procedimento monográfico e estatístico a partir da revisão de literatura e das análises comparativa e de conteúdo (BARDIN, 2011; HERSCOVITZ, 2010; MARTINEZ; PESSONI, 2015) como técnicas de pesquisa. Mapeamentos como este têm sido testados pelo Grupo de Pesquisas em Narrativas Midiáticas (NAMI-Uniso-CNPq) há cinco anos. Assim, podemos afirmar que esta própria abordagem metodológica vem sido desenvolvida e aprimorada ao longo do tempo por meio de estudos individuais ou em coautoria de Martinez (2017, 2016, 2015a., 2015b., 2014a., 2014b., 2014c., 2014d. e 2014e.), Azoubel (2016a., 2016b., 2016c., 2016d., 2015a., 2015b., 2015c., 2015d., 2015e., 2015f. e 2015g.), Iuama (2016a., 2016b. e 2015), Paiva (2017a., 2017b. e 2017c.), Silva (2017 e 2016), Fidelis (2018) e Heidemann (2017), entre outros. Trabalhamos a seguir sobre duas categorias a saber: 1) referencial teórico sobre metodologia de pesquisa em Jornalismo (LAGO; BENETTI, 2010); e 2) perfil das pesquisadoras/pesquisadores investigados. Sobre as hipóteses, acreditamos que: I) a investigação tende a revelar as regiões Sudeste e Sul do Brasil como as que mais produzem estudos sobre o tema; II) haja predominância das referências no formato livro assinados em detrimento dos artigos científicos; III) a metodologia de pesquisa adotada para efetivação de cada estudo não seja claramente descrita nos textos; e IV) baseados em pesquisa recente (VALENTOVA et al., 2017), haja equilíbrio de gênero das pesquisadoras/pesquisadores do campo da Comunicação e Informação.

Metodologia de pesquisa

Para compor o corpus deste capítulo partimos de consultas à Sala de Pes- quisa no sítio da SBPJor. Em 2 de março de 2018, fizemos uma checagem preliminar a partir da busca por palavras-chave que julgamos poderem nos conduzir aos estudos sobre a metodologia de pesquisa em Jornalismo, conforme consta no Quadro I:

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Quadro I - Resultados obtidos na checagem preliminar

Palavra-chave Resultados obtidos Metodologia de pesquisa em jornalismo -- Metodologia 30 Pesquisa 30 Jornalismo 29 Metodologia de pesquisa 04 Metodologia de jornalismo -- Pesquisa de jornalismo -- Fonte: Autoria própria.

Em 15 de junho de 2018, no mesmo sítio, foi realizada uma segunda pesquisa por palavras-chave, tentando combinar termos como “metodologia + pesquisa” e “pesquisa + jornalismo”. As pesquisas realizadas não retornaram resultados. Em 25 de junho de 2018, decidimos investigar manualmente os resultados apontados em 2 de março. A investida resultou em cinco ocorrências (25% a mais que na pesquisa automática), como demonstrado no Quadro II.I.:

Quadro II.I – Metodologia de pesquisa como palavra-chave principal

Autoria Título Conferência Tipo de comunicação Gislene Silva Análise de cobertura jornalística: VIII SBPJor (2010) Flávia Dourado Maia proposta de um protocolo metodológico para Coordenada estudos do acontecimento Carine Massierer A contribuição da etnografia para os estudos VII SBPJor (2009) Leandro José Brixius em Jornalismo Individual Marcos Palacios Metodologia de pesquisa em jornalismo V SBPJor (2007) digital: algumas reflexões a partir de um Coordenada caminho percorrido Tattiana Teixeira Metodologias de pesquisa sobre infografia no V SBPJor (2007) jornalismo digital: uma análise preliminar Coordenada Aline do Amaral Análise global de periódicos jornalísticos IV SBPJor (2006) Garcia Strelow Individual Fonte: Autoria própria.

Durante a busca manual, identificamos um texto a partir da palavra-chave “metodologias de pesquisa”, o único assim configurado na base de dados da SBPJor (CORRÊA; CORRÊA,1 2007), incorporado ao corpus estabelecido. Opta- mos por desconsiderar os dois outros resultados em que os termos “metodologia

1 Embora no texto ora analisado Luís esteja grafado com S e com acento agudo no I, optamos por grafá-lo neste capítulo com Z e sem acento, como consta no currículo cadastrado na Plataforma Lattes pelo referido pesquisador.

298 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS científica” aparecem associados a Jornalismo e Comunicação2, respectivamen- te. Desta forma, nosso corpus consiste em seis trabalhos (SILVA; MAIA, 2010; MASSIERER; BRITOS, 2009; CORRÊA; CORRÊA, 2007; PALACIOS, 2007; TEIXEIRA, 2007; STRELOW, 2006), conforme o Quadro II.II:

Quadro II.II – Metodologia de pesquisa como palavra-chave principal

Autoria Título Código Conferência Tipo de comunicação Gislene Silva Flávia Análise de cobertura jornalística: T1 VIII SBPJor (2010) Dourado Maia proposta de um protocolo Coordenada3 metodológico para estudos do acontecimento Carine Massierer A contribuição da etnografia para os T2 VII SBPJor (2009) Leandro José Brixius estudos em Jornalismo Individual Elizabeth Saad Convergência de mídias: primeiras T3 V SBPJor (2007) Corrêa Hamilton contribuições para um modelo Individual Luiz Corrêa epistemológico e definição de metodologias de pesquisa Marcos Palacios Metodologia de pesquisa em T4 V SBPJor (2007) jornalismo digital: algumas Coordenada4 reflexões a partir de um caminho percorrido Tattiana Teixeira Metodologias de pesquisa sobre T5 V SBPJor (2007) infografia no jornalismo digital: uma Coordenada5 análise preliminar Aline do Amaral Análise global de periódicos T6 IV SBPJor (2006) Garcia Strelow jornalísticos Individual Fonte: Autoria própria.

Deles, três (50%) apresentados em comunicações coordenadas (16,66% em cada); e três (50%) em comunicações individuais.

Discussão dos resultados

Esta análise consiste em duas categorias: 1) referencial teórico sobre metodologia de pesquisa em Jornalismo (LAGO; BENETTI, 2010); e 2) perfil das pesquisadoras/ pesquisadores investigados. Trata-se de análise de conteúdo a fim de, entre outros, “descrever e classificar produtos, gêneros e formatos [...]” e de abordar a “produção de indivíduos, grupos e organizações, para identificar elementos típicos, exemplos representativos e discrepâncias” (HERSCOVITZ, 2010, p. 123).

2 São eles: 1) A discussão metodológica e a construção do campo do jornalismo (2008); e 2) Análise Global de Processos Jornalísticos (2007), ambos de Aline do Amaral Garcia Strelow. 3 Jornalismo e construção do acontecimento: reflexões empíricas e metodológicas. 4 Metodologias de pesquisa em Jornalismo Digital. 5 Infografia.

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Referencial teórico sobre metodologia de pesquisa em Jornalismo

A categoria a) referencial teórico revela que apenas dois artigos (33,33%, ou seja, um terço do total) trazem a adequada indicação de quais autores e/ou obras são usados para conduzir a reflexão sobre metodologias de pesquisa em Jornalismo. O primeiro (T1) traz [Louis] Quéré [2005] como “inspiração teórica” para a reflexão. Já o quinto (T5) aponta autores como [Antonio Carlos] Gil (2002), [Robert K.] Yin (2005) e [Lucia] Santaella (2001) associados às obras de [Gonzalo] Peltzer (2001), [José Luis] Valero Sancho (2001), [Ramón] Salaverría (2005a e 2005b) e [Javier] Díaz Noci (2003), além de artigos publicados em periódicos científicos. Essa constatação demonstra o quanto pode ser aprimorada a descrição metodológica dos estudos do campo. Não podemos, a partir deste corpus, indicar o que se poderia estabelecer como literatura básica às investigações sobre metodologia de pesquisa no Jornalismo no âmbito dos encontros nacionais da SBPJor. Isso porque não se observa qualquer repetição de autor, obra e/ ou conceito. Destaca-se, também, que os resumos dos textos analisados não contemplam o seu percurso metodológico. O caminho está ali, mas invisível aos olhos dos demais estudiosos do campo, o que não permite a refação do caminho por outras pesquisadoras/pesquisadores. Isso posto, verificamos como se estruturam os textos no intuito de perceber se incluem a descrição da escalada metodológica respectiva:

Tabela I – Metodologia no corpo dos textos

Código Palavras-chave Sentenças T1 metodologia de pesquisa, Embora repetidas ocorrências das palavras- método, técnica, abordagem chave, nenhuma está ligada às frases sobre a construção da reflexão T2 metodologia de pesquisa, Embora repetidas ocorrências das palavras- método, técnica, abordagem chave, nenhuma está ligada às frases sobre a construção da reflexão T3 metodologia de pesquisa, Embora repetidas ocorrências das palavras- método, técnica, abordagem chave, nenhuma está ligada às frases sobre a construção da reflexão T4 metodologia de pesquisa, Embora repetidas ocorrências das palavras- método, técnica, abordagem chave, nenhuma está ligada às frases sobre a construção da reflexão T5 metodologia de pesquisa, Indicam como ponto de partida o modelo de método, técnica, abordagem avaliação de desempenho global, de Hamilton Luiz Corrêa T6 metodologia de pesquisa, Indicam como ponto de partida o circuito técnica, abordagem comunicacional, de Richard Johnson, para construir proposta metodológica sem, entretanto, constituir “uma fórmula certeira”

Fonte: Autoria própria.

300 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Percebe-se que apenas dois (33,33%) dos seis textos (T3 e T6) apresentam a metodologia empregada – embora esse entendimento decorra da leitura e interpretação do material mais do que da descrição da escalada metodológica empreendida. Dos seis textos abordados, contudo, nenhum descreve a metodologia empregada no resumo e no corpo do texto. Quatro deles (66,66%) trazem pistas dessa caminhada, dois (33,33%) no resumo e dois (33,33%) no corpo do texto. Em seguida, foi efetuada a checagem de referências citadas e listadas do corpus para estabelecer a literatura de base sobre o tema metodologia de pesquisa em Jornalismo:

Tabela II – Referências

Autoras/Autores e obras Código Referenciadas Citadas Autorreferenciadas T1 11 11 2 (uma de cada coautor) T2 18 16 1 (de uma das coautoras) O texto é integralmente construído a T3 Não há Não há partir de reflexões do autor6 T4 36 22 4 T5 19 67 1 (de um dos coautores) T6 45 108 -- Total 129 65 8

Fonte: Autoria própria.

É preocupante que das 129 referências listadas nos cinco artigos, apenas 56 (43,41%) estejam devidamente citadas. Excluídas as oito obras autorreferenciadas, nenhuma das e dos proponentes cumpriu a regra básica segundo a qual todas as obras citadas no corpo do texto devem estar listadas nas referências e vice-versa. Fato que confirma a nossa terceira hipótese, segundo a qual a metodologia de pesquisa adotada para efetivação de cada estudo não é claramente descrita nos textos. Ao contrário, há artigo em que apenas dez (22,22%) das 45 obras listadas são citadas; e outro em que, das 22 referências, quatro (18,18%) configuram autorreferenciação, já excluídas na Tabela III: ______6 Conforme acusa a primeira frase do resumo do mesmo, segundo a qual: a “comunicação decorre de um percurso de experiência pessoal na área de pesquisa voltada para o jornalismo digital [...]” (PALACIOS, 2007, p.1). 7 Uma das referências listadas aparece no corpo do texto sem data, a saber: FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Org: Rafael Cardoso. Trad.: Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. Acreditando tratar-se de equívoco de digitação, optamos por mantê-la na lista de obras listadas e devidamente citadas. 8 Uma das referências aparece no corpo do texto com data diferente daquela citada, a saber: MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1985, citado como se de 2003. Novamente acreditando tratar-se de equívoco de digitação, optamos por mantê-la na lista de obras listadas e devidamente citadas.

301 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Tabela III – Perfil da(o)s pesquisadora(e)s investigada(o)s Nº. Autor Obra(s) Citações Total Teorias do Jornalismo – Por que as notícias 2 são como são Vol. I 1 TRAQUINA, Nelson 4 Jornalismo: questões, teorias e estórias 1 O estudo do jornalismo no século XX 1 Redacción periodística en Internet 2 2 SALAVERRÍA, Ramón Géneros periodísticos en los cibermedios 3 1 hispanos (em coautoria com CORES, Rafael) JOHNSON, Richard O que é, afinal, Estudos Culturais? 3 2 2 MANOVICH, Lev The language of new media Lector in fabula ECO, Umberto Seis passeios pelos bosques da ficção El relato en la infografía digital VALERO SANCHO, José Luis La infografia: técnicas, análisis y usos periodísticos 4 Infographics: a journalist`s guide 1 2 STOVALL, James Glen Web journalism: practice and promise of a new medium A discussão metodológica e a construção STRELOW, Aline do Amaral do campo jornalístico Garcia Análise global de processos jornalísticos

Fonte: Autoria própria.

Destaca-se que são referenciadas tanto obras teóricas, como os títulos de Eco, como metodológicas, mescla que sugere a fragilidade da fundação adequada sobre metodologia. Assim, Nelson Traquina é o único autor citado quatro vezes com três obras distintas; seguido por Ramón Salaverría, com três citações de duas obras. Teorias do Jornalismo (Vol. I) é, junto à Redacción periodística en Internet; O que é, afinal, Estudos Culturais?, de Richard Johnson; e The language of new media, de Lev Manovich, a obra mais citada (duas vezes cada). Já Jornalismo e O estudo do jornalismo no século XX (TRAQUINA); Géneros periodísticos en los cibermedios hispanos (SALAVERRÍA; CORES); Lector in fabula e Seis passeios pelos bosques da ficção (ECO); El relato en la infografía digital e La infografia (VALERO SANCHO); Infographics e Web journalism (STOVALL); A discussão metodológica e a construção do campo jornalístico e Análise global de processos jornalísticos (STRELOW) são citadas apenas uma vez cada e aparecem na Tabela III em decorrência de suas autorias, usadas duas vezes nos textos analisados. A rigor, podemos dizer que há apenas cinco obras que poderiam de fato ser classificadas como manuais metodológicos, quatro delas sobre infografia/jornalismo on-line, a saber:

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Quadro III – Autores e obras mais usados sobre metodologia

1. El relato en la infografía digital 2. La infografia: técnicas, análisis y usos periodísticos 3. Infographics: a journalist`s guide 4. Web journalism: practice and promise of a new medium 5. A discussão metodológica e a construção do campo jornalístico Fonte: Autoria própria

Essas últimas são as únicas de autoria feminina e, ainda, em formato artigo científico nacional identificadas entre as referências mais buscadas – o que confirma a nossa segunda hipótese, segundo a qual há predominância das referências no formato livro nos estudos ora analisados.

Perfil do(a)s pesquisadore(a)s investigado(a)s

Quanto à segunda categoria de análise, observa-se que se tratam de investigadoras em sua maioria: seis (66,66%), que assinam dois trabalhos individualmente (33,33%); um em coautoria com outra pesquisadora (16,66%); e dois em coautoria com pesquisador (33,33%). Há, ainda, um texto assinado individualmente por pesquisador (16,66%), fato que, a princípio, refuta a nossa quarta hipótese, segundo a qual haveria equilíbrio de gêneros (eles são apenas dois, 33,33% do total), conforme o Quadro IV:

Quadro IV – Autoria e gênero

Autoria Total de textos % Feminina individual 2 33,33 Feminina em coautoria feminina 1 16,66 Feminina em coautoria masculina 2 33,33 Masculina 1 16,66 Masculina em coautoria masculina -- -- Masculina em coautoria feminina -- --

Fonte: Autoria própria.

Sobre o perfil das pesquisadoras, trabalhamos com as informações contidas nas notas de rodapé originais associadas aos dados coletados na Plataforma Lattes, do CNPq: três delas (33,33%) eram doutoras quando da submissão dos textos, uma doutoranda (11,11%), uma mestra (11,11%) e uma mestranda (11,11%). Na mesma direção, dois dos pesquisadores eram doutores (22,22%) e um mestre (11,11%), conforme Quadro V:

303 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Quadro V – Perfil

Gênero Feminino % Masculino % Total % Titulação Doutorado 3 33,33 2 22,22 4 55,55 Doutorado em andamento 1 11,11 -- -- 2 22,22 Mestrado 1 11,11 1 11,11 2 22,22 Mestrado em andamento 1 11,11 -- -- 1 11,11 Total 9 100

Fonte: Autoria própria.

Desses dados desprende-se o balanceamento em relação ao perfil formativo das pesquisadoras e dos pesquisadores e, mais, a predominância delas na abordagem científica da metodologia de pesquisa em Jornalismo. O Quadro VI destaca as principais atividades desenvolvidas quando da submissão dos textos.

Quadro VI – Atividades desenvolvidas quando da submissão dos artigos Gênero Feminino % Masculino % Total % Atividade Jornalística 1 11,11 1 11,11 2 22,22 Docente 3 33,33 2 22,22 5 55,55 Discente 2 22,22 -- -- 2 22,22 Total 9 100

Fonte: Autoria própria.

A partir desses dados, é possível destacar a predominância do perfil docente em relação ao de jornalista, sendo a primeira reunindo sete dos nove indivíduos [cinco docentes (55,55%) e dois discentes (22,22%)] e a segunda apenas dois (22,22%). Destaca-se, ainda, as mulheres como maioria na academia quando da submissão dos artigos: cinco (55,55%), sendo três docentes (33,33%) e duas discentes (22,22%); contra dois (22,22%) homens. Se considerarmos os vínculos atuais, da forma como estão dispostos na Plataforma Lattes, os números se configuram como estabelecido no Quadro VII:

______9 Não tencionamos, entretanto, abordar vínculos e/ou atividades exercidas concomitantemente, haja vista a intenção de situar as reflexões abordadas apenas entre a prática acadêmica ou mercadológica.

304 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Quadro VII – Atividades desenvolvidas em julho de 2018

Gênero Feminino % Masculino % Total % Atividade Jornalística 2 22,22 1 11,11 3 33,33 Docente 4 44,44 2 22,22 6 66,66 Total 9 100

Fonte: Autoria própria.

Percebendo que uma das duas estudantes citadas no Quadro VI labora atualmente como professora (Aline Strelow) e outra como jornalista (Flávia Maia), o total de mulheres docentes sobe para quatro (44,44%) e o de jornalistas no mercado para duas (22,22%); enquanto o de homens permanece inalterado: dois (22,22%) docentes e um (11,11%) jornalista no mercado. Quanto à formação básica desses sujeitos, e considerando a insuficiência de subsídios nas notas de rodapé de cada reflexão analisada, elaboramos o Quadro VIII com base exclusivamente nos dados cadastrados na Plataforma Lattes, conforme segue:

Quadro VIII – Formação básica

Gênero Feminino % Masculino % Total % Atividade Jornalismo ou Co- 3 33,33 1 11,11 4 44,44 municação Social – Jornalismo Comunicação ou 2 22,22 -- -- 2 22,22 Comunicação Social Administração 1 11,11 1 11,11 2 22,22 Sociologia -- -- 1 11,11 1 11,11 Total 9 100

Fonte: Autoria própria.

O primeiro ponto a ser destacado diz respeito à nossa opção por diferenciar os cursos de “Jornalismo” e “Comunicação Social – Jornalismo” dos de “Comunicação” e “Comunicação Social” por entendermos serem essas nomenclaturas reflexos da própria configuração da área. Isso posto, chama atenção o fato de que três (33,33%) indivíduos vêm de outros campos, sendo dois [22,22%, a saber uma mulher (11,11%) e um homem (11,11%)] da Administração e um (11,11%) da Sociologia. Como poder-se-ia supor, quatro (44,44%) dos sujeitos vêm do Jornalismo, seja esse configurado como

305 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS habilitação da Comunicação Social ou não, sendo três (33,33%) mulheres e um homem (11,11%). Na mesma direção, duas (22,22%) das pesquisadoras vêm da Comunicação (11,11% para cada curso respectivamente). Tal achado comprova a grande inserção das mulheres no mercado jornalístico brasileiro, que seria da ordem de mais de 70% (MICK; LIMA, 2013). Para investigar a predominância das formações acadêmicas em Jornalismo – como formação principal ou habilitação – em nível de pós-graduação na efetivação dos estudos, elaboramos o Quadro IX em que é possível perceber não apenas uma profusão de cursos de Comunicação e suas interfaces, mas apenas uma (11,11%) ocorrência de curso denominado como sendo do Jornalismo, conforme segue:

Quadro IX – Formação em nível de pós-graduação

Gênero Feminino % Masculino % Total % IES Administração -- -- 1 11,11 1 11,11 Ciências da 1 11,11 1 11,11 2 22,11 Comunicação Ciências Sociais / 1 11,11 -- -- 1 11,11 Antropologia Comunicação 1 11,11 -- -- 1 11,11 e Cultura Contemporânea Comunicação e 1 11,11 -- -- 1 11,11 Informação Comunicação 1 11,11 -- -- 1 11,11 Jornalismo 1 11,11 -- -- 1 11,11 Sociologia -- -- 1 11,11 1 11,11 Total 9 100

Fonte: Autoria própria.

Percebe-se que contribuições ao campo de metodologias de pesquisa em Jornalismo vindas de áreas como a Administração (11,11%), as Ciências Sociais / Antropologia (11,11%) e a Sociologia (11,11%) somam um terço (33,33%) do total de artigos analisados. Este fato pode ser percebido, a partir das considerações de Peruzzo (2018, p. 30), como parte do “processo contínuo de desenvolvimento epistemológico e de metodologias de pesquisa em desafio à compreensão dos fenômenos mais diversos desse mundo”. Acreditamos, também, na importância de se investigar o efeito do teto de vidro, fenômeno que limita o acesso das mulheres aos cargos de comando e, consequentemente, aos melhores salários e possibilidade de tomada de deci- são, incluindo o destino de aportes financeiros (IBGE, 2018). Como principal

306 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS consequência, o acesso limitado a recursos financeiros e ao tempo em si tam- bém restringem o acesso às práticas públicas (MIGUEL; BIROLI, 2011). No caso brasileiro, um dos parâmetros fundamentais é a obtenção de bolsas que permitam a prática da pesquisa, como a Bolsa de Produtividade (VALENTOVA et al., 2017). Por isso, o Quadro X registra, em ordem alfabética a partir das informações da Plataforma Lattes, quais das pesquisadoras e dos pesquisadores do corpus estão atualmente inserida(o)s no campo da pesquisa em Jornalismo, se continuam se dedicando ao estudo das metodologias de pesquisa ou se o trabalho rastreado foi uma produção isolada; se estão em posição de comando no momento e se dispõem de recursos para realizar pesquisas:

Quadro X – Autoria e apoio às pesquisas

Pesquisadora / Bolsas ativas Realiza / realizou Ocupa posição ou Pesquisador estudos sobre cargo de comando (Jul. metodologia da 2018)? pesquisa em Jornalismo?

Aline Strelow -- Sim Não Carine Massirrer -- Não Não Elizabeth Corrêa -- Sim Líder da Comissão de Tecnologia da Informação e usos Pedagógicos e Vice-coordenadora do Programa de Pos- Graduaço em Ciências da Comunicação Flavia Maia -- Sim Não Gislene Silva Bolsista de Produtividade Sim Não em Pesquisa do CNPq - Nível 2 Hamilton Corrêa -- Sim Presidente da Comissão de Pesquisa do Departamento de Administração e Vice- presidente da comissão de graduação Leandro Brixius -- Sim Não

Marcos Palacios Bolsista de Produtividade Sim Não em Pesquisa do CNPq - Nível 1A Tatiana Teixeira Bolsista de Produtividade Sim Não em Pesquisa do CNPq - Nível 2

Fonte: Autoria própria.

307 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

O resultado sugere que o maior número de estudos conduzidos por mulheres também se reflete na distribuição de bolsas de Produtividade em Pesquisa do CNPq na proporção de duas mulheres para um homem. Embora o representante masculino seja bolsista nível 1A e as bolsistas do sexo feminino são nível 2, há que se considerar, neste caso, a questão da senioridade. Já sobre as Instituições de Ensino Superior (IES), estados e regiões brasileiros que sediaram tais investigações, o Quadro XI foi montado com a inclusão dos vínculos declarados e/ou ativos quando da submissão dos artigos aos eventos anuais da SBPJor. Nele notamos a predominância do eixo Sudeste- Sul na gestação de tais reflexões com destaque para os estados de São Paulo [com quatro indivíduos (44,44%), sendo três (33,33%) pesquisadoras e um (11,11%) pesquisador] e do Rio Grande do Sul com duas pesquisadoras (22,22%), conforme segue:

Quadro XI – IES, estados e regiões nacionais quando da submissão dos artigos

Gênero Feminino % Masculino % Total % Atividade PUC-SP 1 11,11 -- -- 1 11,11 PUC-RS 1 11,11 -- -- 1 11,11 UFBA 1 11,11 -- -- 1 11,11 UFRGS 1 11,11 -- -- 1 11,11 Unicamp 1 11,11 -- -- 1 11,11 Unisinos -- -- 1 11,11 1 11,11 USP 1 11,11 1 11,11 2 22,22 University of -- -- 1 11,11 1 11,11 Liverpool Total 9 100 Fonte: Autoria própria.

Destacamos dois fatos: o primeiro é que apenas dois sujeitos vêm da mesma IES (um pesquisador e uma pesquisadora da USP, totalizando 22,22% do total); o segundo é que apenas dois pesquisadores vêm de outras regiões, sendo um da Nordeste (11,11%) e outro da Inglaterra (11,11%), o que confirma a nossa primeira hipótese no que toca à distribuição das pesquisas no Brasil. Uma explicação possível pode ser a própria configuração dos programas de pós-graduação nacionais, notadamente concentrados nas regiões Sudeste-Sul. De acordo com o Documento da Área de Ciências Sociais Aplicadas I elaborado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), “os programas de pós-graduação da Área se concentram na Região ‘Sudeste (52,2%), especialmente, no Estado de São Paulo (27,8%), seguido pelo Rio

308 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS de Janeiro (17,8%). [...] a segunda maior concentração ocorre na Região Sul (21,1%) com distribuição equilibrada entre Rio Grande do Sul (8,9%) e Paraná (7,7%)’” (CAPES, 2013, p. 3-4 apud AZOUBEL, 2016d. p. 93). Finalmente, no que tange aos anos em que cada reflexão foi gestada, ela- boramos o Quadro XII, em que dispomos os textos no intervalo entre 2006 e 2010, conforme segue:

Quadro XII – Anos

Anos Total % 2010 1 16,66 2009 1 16,66 2007 3 50 2006 1 16,66 Total 6 100

Fonte: Autoria própria.

Do total de reflexões analisadas, um texto foi circulado em 2010 (16,66%), um em 2009 (16,66%), três em 2007 (50%) e um em 2006 (16,66%), o que indica completa ausência de textos similares aos que analisamos circulados nos eventos realizados nos cinco anos mais recentes no âmbito da SBPJor. Curiosamente, trabalhos apresentados no próprio evento (MACHADO, 2007; 2012) não foram rastreados pelo mecanismo durante o levantamento do corpus, o que endossa as inquietações sobre a eficácia desses mecanismos de busca. Um estudo que mapeou 509 trabalhos apresentados nos encontros anuais da SBPJor de 2003 a 2007 (MACHADO; ROHDEN, 2016) aponta que:

Além das características formais básicas como título, resumo, palavras- chave, divisão em partes, introdução e conclusão, analisamos a explicitação metodológica. Em todos os anos, com exceção de 2004, os artigos que explicitavam sua metodologia no resumo e no corpo do trabalho foram maioria (Tabela 3). Identificamos ainda alto índice de artigos que não explicitam a metodologia em nenhum momento. Dos 509 artigos apresentados entre 2003 e 2007, 151 (29,6%) não explicitam a metodologia. Dentre os 358 (70,3%) artigos que explicitam a metodologia, 199 (39%) explicitam no resumo e no trabalho; 85 (16,6%) apenas no resumo, enquanto 74 (14,5%) apenas no corpo do trabalho. A explicitação da metodologia é, como afirmamos em Machado e Sant’anna (2014), uma demonstração de maturidade científica e uma pré-condição para comprovação dos resultados e replicação em outros objetos empíricos (MACHADO; ROHDEN, 2016, p. 235).

309 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Além do questionamento da confiabilidade dos mecanismos de busca em si, este estudo alerta para a necessidade de pesquisadoras e pesquisadores do campo do Jornalismo no Brasil explicitarem de forma mais clara a descrição do percurso metodológico empregado em suas reflexões. Machado e Rohden (2016, p. 234) apontam três hipóteses para esse déficit: “número reduzido de formação de pesquisadores em programas de iniciação científica, pouco rigor formal entre os pesquisadores da área e falta de disciplinas teórico- metodológicas nos programas de pós-graduação”. Sugerimos aqui duas hipóteses complementares. A primeira é decorrente da própria configuração dos cursos de jornalismo no país, tradicionalmente focados na formação de profissionais, nos quais a disciplina de metodologia não seria uma prioridade para os alunos. A segunda é que, na esfera da pós-graduação, no Brasil como no exterior, os alunos podem prosseguir os estudos para aumentar as chances de empregabilidade como docente em nível de graduação ou manter seu posto de trabalho se já atuam nesse segmento – e não necessariamente para se tornarem pesquisadores.

Referências

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310 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

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Mecanismos de busca

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Demais referências

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316 Análise de narrativas jornalísticas radiofônicas: reflexões sobre os desafios metodológicos da pesquisa em rádio

Mirian Redin de Quadros

Introdução

Assim como as narrativas textuais lidas diariamente em jornais, revistas ou páginas na internet, as narrativas radiofônicas também nos traduzem simbolicamente os acontecimentos factuais, hierarquizando-os diante do caos e ensinando-nos como devemos interpretá-los. A grande questão quando nos voltamos às narrativas do rádio reside em “como” estudá-las. Isso porque as bases teóricas que fundamentam as reflexões sobre narrativas vêm de uma tradição impressa. Desde as análises estruturais, com Barthes et al. (2008) e Genette (1998), até a proposta de análise pragmática sugerida por Motta (2007, 2013b), o foco dos estudos vem recaindo, principalmente, sobre produtos impressos, sejam livros, contos, reportagens ou notícias de jornal, considerando, fundamentalmente, elementos textuais e discursivos. Olhar para o rádio, uma mídia originalmente sonora, desde esta perspectiva, exige uma virada epistemológica e uma adaptação metodológica. Afinal, o rádio vai além da palavra escrita, agregando uma série de outros elementos: música, ruídos, efeitos sonoros, entonações de voz, silêncios (BALSEBRE, 2007). Apresentamos neste capítulo o percurso metodológico de análise de narrativas radiofônicas desenvolvida em Quadros (2018). Nosso objetivo aqui é expor um relato parcial da trajetória de investigação em que propomos uma adaptação da Análise Crítica da Narrativa, a partir das proposições de Motta (2007, 2013a, 2013b), para o estudo do jornalismo radiofônico. Para tanto, no primeiro tópico, a seguir, contextualizaremos a pesquisa, apresentando nossos objetivos, o objeto empírico e o estado da arte dos estudos sobre narrativa e rádio. Em seguida, detalharemos o processo de adaptação metodológica, a partir dos movimentos analíticos sugeridos por Motta (2013b).

Contextualizando a pesquisa: o rádio como objeto empírico

Em Quadros (2018), tínhamos como objetivo geral de pesquisa identificar os diferentes critérios que norteiam os profissionais do rádio no processo de concessão de voz aos ouvintes, durante a configuração de narrativas jornalísticas

317 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS radiofônicas transmitidas em tempo real. Nosso foco recaía sobre quem narra as narrativas radiofônicas, quem são os sujeitos autorizados a enunciar as narrativas factuais no rádio e, especificamente, como se dá o acionamento dos ouvintes-enunciadores1 enquanto personagens das narrativas. Mas por que escolhemos abordar essas questões a partir da perspectiva da narrativa? Acreditamos que a abordagem pela narrativa enfatiza a função mediadora do jornalismo, como o nexo simbólico entre os acontecimentos do mundo factual e a experiência humana. Este viés reforça o caráter processual do jornalismo, compreendendo-o como ação comunicativa, polifônica e intencional. A narrativa, assim, permite-nos visualizar as porosidades do jornalismo, interpretando-o como um palco de disputas, onde diferentes vozes entram em conflito por visibilidade, inclusive a dos receptores, antes vistos apenas como o ponto final do processo comunicacional. Inicialmente identificado como um veículo de massa, em que a comunicação se daria de maneira unilateral (FERRARETTO, 2000), o rádio também se caracteriza pela sua capacidade de interação com o público, propriedade que lhe é atribuída, principalmente, pelo emprego de estratégias enunciativas que criam a sensação de proximidade entre locutor e ouvintes (FERRARETTO, 2014; ZUCULOTO, 2012; ORTRIWANO, 1985), mas também pela adoção de diferentes ferramentas e práticas que viabilizam a relação entre as duas instâncias comunicacionais (LOPEZ, 2010; LOPEZ et al., 2015; CEBRIÁN HERREROS, 2007; KISCHINHEVSKY, 2016). A interação com a audiência acompanha o rádio desde sua origem, mas, atualmente, é potencializada pelas tecnologias de informação e comunicação disponíveis. Essa capacidade de intervir, contudo, segue sendo “limitada e filtrada por produtores que, nos bastidores da emissora, decidem quais ouvintes poderão expressar suas opiniões no ar” (KISCHINHEVSKY, 2016, p. 97). Assim, nossa pesquisa partia do pressuposto de que a participação do ouvinte no radiojornalismo é convocada pelos jornalistas durante o processo de configuração das narrativas com diferentes objetivos e com base em critérios – tanto objetivos quanto subjetivos – que orientam a seleção e o acionamento destes sujeitos. A fim de investigarmos nossas suposições, nos dedicamos à análise da participação dos ouvintes em um programa radiofônico do segmento jornalístico com transmissão ao vivo. Elegemos como objeto a Rádio Gaúcha2 em virtude

1 Em Quadros (2018), empregamos a denominação “ouvinte-enunciador” como forma de diferenciar o ouvinte que busca estabelecer uma relação com a emissora, utilizando-se de ferramentas interativas para enviar informações, opiniões, perguntas, correções ou críticas, e que tem sua voz, ainda que de forma indireta, inserida na narrativa daquele ouvinte que somente consome a programação radiofônica sem interagir com o meio. 2 Emissora pertencente ao Grupo RBS sediada em Porto Alegre, com filiadas em Santa Maria, Caxias do Sul e Rio Grande. Caracteriza-se como emissora jornalística com formato talk and news (KLÖCKNER, 1997), com programas jornalísticos (de notícias, entrevistas e debates) e de jornalismo esportivo (jornadas esportivas e mesas redondas). Transmite em AM, FM, via internet e TVs por assinatura.

318 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS de seus índices de audiência3, que a destacam no cenário radiofônico do estado do Rio Grande do Sul, e, principalmente, por suas estratégias interativas, analisadas anteriormente em Quadros (2013). A adoção, por parte da emissora, de ferramentas de interação e o amplo incentivo à participação dos ouvintes ao longo da programação são diferenciais que tornam a Gaúcha um objeto profícuo para o estudo da influência do público na configuração das narrativas jornalísticas. Dentro da programação da Gaúcha, selecionamos o programa Gaúcha Atualidade4 para a coleta das narrativas. Nossa escolha deu-se, primeiramente, pelo formato do programa que sintetiza o modelo de programação da emissora como um todo. Além disso, o programa é marcado pela intensa participação dos ouvintes, característica que é evidenciada com frequência por uma das apresentadoras, a jornalista Rosane de Oliveira, que costuma utilizar expressões como, por exemplo, “rede de repórteres voluntários”, para se referir aos ouvintes que contribuem com o envio de mensagens. Como recorte empírico, selecionamos cinco narrativas configuradas no interior do programa e transmitidas entre julho e setembro de 2016. Para a coleta e seleção das narrativas do corpus, adotamos como critérios: a) a existência de uma intriga, um elemento gerador da narrativa; b) o desenvolvimento da “estória”, ou seja, o encadeamento dos fatos e personagens; e c) um volume significativo de participações dos ouvintes. Chegamos, assim, a cinco narrativas sobre temas distintos. São elas: • Narrativa 1: Instabilidade climática, veiculada em 14 de julho de 2016; • Narrativa 2: Queda da marquise, veiculada em 21 de julho de 2016; • Narrativa 3: Greve dos servidores do Detran, veiculada em 25 de julho de 2016; • Narrativa 4: Crise na segurança, veiculada em 26 de agosto de 2016; • Narrativa 5: Protestos contra reformas, veiculada em 22 de setembro de 2016. É importante ressaltar que a seleção de narrativas com temáticas distintas teve como objetivo nos permitir observar de modo comparativo o acionamento dos ouvintes, fornecendo subsídios para refletirmos sobre as diferentes condições e circunstâncias que influenciam a instância de produção no processo de concessão de voz à audiência. Cada uma das narrativas selecionadas foi analisada de modo individualizado por meio da aplicação dos movimentos que descreveremos 3 De acordo com medição realizada pela Kantar Ibope Media, entre abril e junho de 2017, a Gaúcha era a líder de audiência no segmento FM em Porto Alegre e Região Metropolitana (EXCLUSIVO..., 2017), posição que, de acordo com a própria emissora, era mantida há 26 meses (). Nova medição da Kantar Ibope Media, entre abril e junho de 2018, confirmou a liderança da emissora no mercado gaúcho (PANORAMA..., 2018). 4 Veiculado ao vivo de segunda a sexta-feira, das 8h10 às 10h, com apresentação de Daniel Scola, Rosane de Oliveira e Carolina Bahia. O formato do programa articula notícias, entrevistas, esporte e debates, com participação de comentaristas, repórteres e interação com a audiência. Em 2017, o Gaúcha Atualidade completou 40 anos na grade de programação da emissora.

319 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS a seguir. Os resultados, a posteriori, foram cruzados entre si, permitindo-nos a sistematização dos principais critérios e circunstâncias responsáveis por determinar o acionamento dos ouvintes nas narrativas radiofônicas transmitidas em tempo real – nosso objetivo principal em Quadros (2018)5. O desenvolvimento da pesquisa em questão abordou a participação do ouvinte no radiojornalismo desde uma perspectiva pouco aplicada nos estudos do meio. A consulta ao Banco de Teses da Capes e à Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) nos revelou a inexistência de pesquisas que investigassem o rádio por meio da análise da narrativa, tampouco abordassem a questão da interação/participação dos ouvintes no radiojornalismo por este viés6. Já em Quadros, Nasi e Motta (2017), observamos que apenas 4% dos artigos apresentados em três dos principais eventos científicos da área da Comunicação no Brasil7, entre 2012 e 2016, que associavam as palavras-chave “jornalismo” e “narrativa”, tinha como objeto empírico o rádio. Enquanto isso, análises de veículos impressos – jornais, revistas e livros-reportagem – chegavam a 54% dos trabalhos analisados. Contextualizada brevemente nossa pesquisa, na sequência direcionamos a discussão para o processo de construção do ferramental metodológico aplicado.

Analisando narrativas radiofônicas: o percurso da pesquisa

O entendimento do jornalismo como narrativa, sobretudo a partir das reflexões de Motta (2007, 2013a, 2013b, 2017), Leal (2013) e Leal e Carvalho (2015), reconhece o papel dos sujeitos envolvidos na construção narrativa da realidade, enfatizando seu caráter processual e considerando o emprego de diferentes estratégias discursivas na disputa pelo poder de enunciação. Justamente por elucidar esses embates por visibilidade, reconhecendo e, ao mesmo tempo, questionando a aparente polifonia do discurso jornalístico, que a perspectiva da narrativa nos serviu como aporte teórico e metodológico para o estudo a que nos propusemos desenvolver. Tomamos, então, como principal referência, a Análise Crítica da Narrativa sugerida por Motta (2007, 2013a, 2013b), a partir da qual elaboramos uma estratégia metodológica própria, ajustada ao nosso objeto empírico e a nossos objetivos de pesquisa.

5 Como resultados da pesquisa, identificamos sete critérios de acionamento dos ouvintes-enuncia- dores, que consideramos os mais frequentes no corpus analisado: o tipo de acontecimento narrado; a atualidade e a imediaticidade das mensagens enviadas pela audiência; a saturação de mensagens com conteúdo semelhante; o testemunho e a credibilidade da informação enviada pelo ouvinte; a localização geográfica do ouvinte-enunciador; a qualificação do ouvinte-enunciador; e a adequação e reforço do projeto dramático assumido na narrativa. O detalhamento dos critérios pode ser consultado em Quadros (2018). 6 Consulta realizada em novembro de 2017. 7 Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Com- pós); Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom); e Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).

320 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Motta (2007, p. 147) explica que os procedimentos da análise pragmática da narrativa visam a “interpretar dinâmica e sistematicamente a essência do fenômeno observado, compreender as diversas camadas significativas do objeto empírico como objeto intencional de nossa percepção”. O método, dessa forma, conduz a uma desconstrução gradual da narrativa, evidenciando aspectos como as intenções dos narradores, as estratégias enunciativas empregadas, a caracterização das personagens, os recursos de encadeamento dos fatos, entre outros. A análise individualizada destes elementos permite descortinar o processo, o contexto e os conflitos por trás das narrativas. Operacionalmente, Motta (2013b) organizou sete movimentos que seguem essa lógica de desconstrução da narrativa, conduzindo a uma análise de caráter hermenêutico. Os sete movimentos podem ser sintetizados da seguinte forma: 1º) Compreender a intriga como síntese do heterogêneo: tem como objetivo compreender a intriga central da narrativa a partir de procedimentos de leitura e releitura da estória narrada; 2º) Compreender a lógica do paradigma narrativo: visa a identificar o fio condutor da estória; 3º) Deixar surgir novos episódios: aqui o objetivo é identificar e nomear os episódios que compõem a narrativa; 4º) Permitir ao conflito dramático se revelar: neste movimento, o analista deve observar como o narrador organiza os conflitos, posiciona as personagens e em que medida concede espaço e tempo a cada uma delas; 5º) Análise das personagens: Motta (2013b) sugere, neste movimento, a identificação das personagens e suas respectivas ações, bem como a observação dos designantes textuais; 6º) Análise das estratégias argumentativas: nesta etapa busca-se reconhecer as estratégias argumentativas empregadas pelo narrador, distinguindo as estratégias de produção de efeitos de real, de referenciação e de produção de efeitos estéticos; 7º) Permitir às metanarrativas aflorar: o último movimento tem como objetivo identificar as metanarrativas, o fundo ético e moral subjacente à narrativa analisada. Para a discussão que propusemos em nossa pesquisa, julgamos não ser necessário o percurso analítico ao longo dos sete movimentos. Seguindo a orientação do próprio autor, que afirma que os passos metodológicos propostos não se configuram como um modelo a ser aplicado de forma engessada, mas devem, sim, ser adequados aos objetivos de cada investigação, procedemos uma reconstrução do método. Nossos movimentos de análise, então, foram sintetizados em quatro: 1º) Reconstruir a narrativa;

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2º) Compreender o paradigma narrativo; 3º) Identificar as personagens; 4º) Identificar os critérios de acionamento dos ouvintes-enunciadores. Nos tópicos seguintes, elucidaremos cada um dos movimentos empreendidos na pesquisa, descrevendo os procedimentos e os desafios metodológicos de cada fase.

Primeiro movimento: reconstrução da narrativa

Uma das especificidades que caracterizam a narrativa radiofônica é a emissão continuada. Assim como ocorre na televisão, a programação de conteúdos no rádio se dá de modo contínuo e sucessivo, encadeando uma série de elementos discursivos (GUARINOS, 2009): programas de diferentes formatos, programetes, quadros, boletins, vinhetas, teasers, jornadas esportivas, intervalos comerciais, blocos de música, entre vários outros. Aparentemente isoladas e independentes, as unidades que compõem a programação de uma emissora de rádio se inter-relacionam, alinhando-se à identidade, ao segmento e ao formato adotado pela emissora. A emissão continuada garante ao rádio informativo diversas camadas narrativas. Há a continuidade narrativa interior a cada microtexto, em que cada notícia é uma narrativa em si, com início, meio e fim. Da mesma forma que cada programa conforma uma outra narrativa ao articular diferentes elementos: entrevistas, boletins, comentários e recursos sonoros, por exemplo. Ao se relacionarem entre si e com a identidade sonora da emissora, cada um destes microtextos contribui para a construção de uma narrativa maior, um macrotexto. Enquanto os microtextos narram pequenos recortes da realidade, o macrotexto formado pela programação como um todo, reflete uma visão ampliada sobre o contexto social e histórico em que a emissora está situada (QUADROS, 2018). Tendo em vista essa característica, em Quadros (2018), nossa primeira etapa de pesquisa consistiu em analisarmos separadamente cada programa, identificando e registrando todos os trechos em que as pautas sob análise eram abordadas. Operacionalmente, denominamos cada trecho como Sequência Narrativa (SN) – em referência às Sequências-Tipo, referidas por Motta (2013b), com base nas Análises Estruturais da Narrativa. Cada SN foi transcrita, cronometrada e classificada em categorias construídas a partir do referencial teórico sobre linguagem radiofônica (Abertura/Encerramento, Comentário, Entrevista, Manchete, Participação do Ouvinte, Previsão do Tempo, Reportagem e Teaser). O Quadro 1 a seguir, extraído da análise da Narrativa 1, sobre a instabilidade climática que afetava o Rio Grande do Sul naquele período, exemplifica esta primeira etapa da pesquisa:

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Quadro 1 – Categorização das sequências narrativas

Identificação Duração Categoria Transcrição 14.07 SN 24 14” Teaser SCOLA – Eu to recebendo mensagens aqui de ouvintes, a gente vai falar mais sobre isso depois do intervalo. Olha, tá marcando o dia aqui, marcando o dia mesmo a instabilidade no Estado. Tem granizo em várias cidades do Rio Grande do Sul agora. 14.07 SN 25 3’59”” Previsão do tempo SCOLA – Cleo Kuhn essa chuva vai até quando, Cleo? Granizo e tudo o mais que está acontecendo agora de manhã aqui no estado, hein? 14.07 SN 26 31” Participação SCOLA – O 9699-5218 tá revelando hoje pra gente que tem, olha, muitos, muitos pontos do Rio Grande do Sul com instabilidade e queda de granizo nessa manhã. Tem mais mensagens. O ouvinte aqui de Maratá tá corrigindo o Cleo Kuhn. Maratá fica no pé do Vale do Caí, na região do Vale do Caí. Uma cidade muito bonita, inclusive Maratá, onde está sendo registrado granizo nessa manhã. Fonte: Elaboração da autora.

O isolamento das SNs relacionadas com cada caso analisado nos permitiu extrair, dentre as várias outras pautas abordadas ao longo de cada um dos programas, cinco narrativas coerentes. Ao quantificarmos e mensurarmos temporalmente as SNs pudemos observar que tipo de recurso jornalístico foi priorizado – atuação da reportagem, inserção de comentários, concessão de voz aos ouvintes, entrevistas – permitindo-nos a comparação com as demais narrativas analisadas. Este primeiro movimento também nos permitiu visualizar a história em si, preparando a narrativa para a etapa seguinte, em que direcionamos nosso olhar para a reconstrução da intriga e a identificação dos pontos de virada, episódios e conflitos.

Segundo movimento: compreender o paradigma narrativo

Com a narrativa reconstruída, nesta segunda ação analítica reunimos três movimentos sugeridos por Motta (2013b): a compreensão da lógica do paradigma narrativo, a identificação de episódios e dos conflitos dramáticos. A fusão dos passos foi determinada visando a melhor operacionalização da pesquisa. Assim como na análise de produtos impressos, nesta etapa foi necessário retornar constantemente à narrativa, ouvindo as SNs sucessivamente e de modo sequencial buscando, de fato, a compreensão do paradigma narrativo.

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Aqui é preciso lembrar que, por se tratarem de narrativas radiofônicas configuradas em tempo real, as histórias nem sempre seguiam uma linearidade evidente. Essa característica é consequência de outra especificidade do meio: o imediatismo, que se refere à capacidade do rádio de transmitir os fatos no instante em que estes ocorrem (ORTRIWANO, 1985). Diferentemente de outras mídias, no rádio ao vivo não há tempo para a estabilização dos fatos e a hierarquização das informações – os acontecimentos são narrados à medida que ocorrem ou que são percebidos pelos narradores, particularidade que Prado (1989) denomina como “reportagem simultânea” e que Meditsch (2007) classifica como “ao vivo em quarto grau”. Nesses casos, é comum que procedimentos de apuração, checagem e até mesmo correções de informações façam parte da narrativa. Em função disso, a intriga central muitas vezes muda de rumo ao longo da narração, avança e recua; episódios são conduzidos de modo simultâneo (e não sucessivo); e conflitos secundários assumem, momentaneamente, uma relevância maior que a própria intriga. Voltando à aplicação do método no caso específico da nossa pesquisa, identificamos, inicialmente, a intriga central de cada narrativa, ou seja, o tema ou fato gerador. Em alguns casos ele foi bastante específico – a queda da marquise de um prédio em obras – enquanto em outros se revelou mais abrangente – a instabilidade climática ou a crise na segurança no estado do Rio Grande do Sul, por exemplo. Em todos os casos buscamos situar a narrativa dentro do contexto social e histórico de sua ocorrência, recorrendo a outras mídias sempre que necessário8. A partir da intriga, diferenciamos episódios, pontos de virada e conflitos secundários9. Entendemos os episódios, alinhando-nos, novamente, a Motta (2013b), como unidades temáticas intermediárias, semanticamente coesas e relativamente autônomas, mas conectadas ao todo da história narrada. Em outras palavras, podemos entender os episódios como fatos ou microacontecimentos que, geralmente, se sucedem para compor o todo da narrativa. A conexão entre os episódios se dá por meio dos pontos de virada, entendidos por nós como elementos que provocam certo grau de ruptura no continuísmo da narrativa, demarcando o início de um novo episódio. Já os conflitos secundários são situações relacionadas ou decorrentes da intriga central que são abordadas em paralelo na narrativa, sem que evoluam a ponto de se caracterizarem como um episódio. Como exemplo deste movimento, trazemos o reconhecimento dos elementos que compunham a quarta narrativa analisada, que tinha como intriga central a crise na área da segurança pública no Rio Grande do Sul. Quatro acontecimentos motivaram a abordagem desta pauta no programa Gaúcha Atualidade do dia 26 de agosto, conduzindo à configuração da intriga. Entendemos o relato desses acontecimentos como episódios. São eles:

8 Além de consultarmos as notícias publicadas no site da própria emissora, recorremos, também, a publicações de outros veículos do Grupo RBS, como o jornal Zero Hora e a emissora de televisão RBSTV. 9 Nem todas as narrativas apresentaram estes três elementos.

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1) Investigação do assassinato de uma mãe, morta em frente a uma escola em Porto Alegre; 2) Exoneração do secretário estadual de segurança, Wantuir Jacini; 3) Criação e primeira reunião do Gabinete de Crise do governo do Estado; 4) Viagem do governador José Ivo Sartori a Brasília, em busca de apoio do governo federal e liberação da Força Nacional de Segurança. Somados aos episódios, nesta narrativa identificamos, ainda, dois conflitos secundários abordados em paralelo e de forma breve: uma discussão sobre a receptação de bens furtados e sua influência no aumento da criminalidade e o impacto dos investimentos em segurança em escolas e universidades da rede privada de Porto Alegre e região. A identificação das sequências narrativas e o posterior encadeamento dos episódios, pontos de virada e conflitos secundários nos permitiu compreender o processo de configuração das narrativas, considerando suas especificidades. Após visualizarmos o ordenamento dos fatos que compunham cada uma das histórias, nos preparamos para analisar outro elemento fundamental: as personagens.

Terceiro movimento: identificar as personagens

Neste terceiro momento, após estabilizada e compreendida a narrativa em si, voltamo-nos ao nosso principal foco de reflexão na pesquisa: a investigação de quem fala nas narrativas radiofônicas e, principalmente, o espaço destinado à voz do ouvinte. Para tanto, aqui procedemos com novos passos de análise, inicialmente identificando a quem pertenciam cada uma das vozes presentes na narrativa e classificando-as de acordo com sua função e posição narrativa. Antes de seguirmos com a explanação acerca dos procedimentos em si, é importante ressaltar o entendimento que assumimos para o conceito de voz. Filiamo-nos a Reis e Lopes (1988), para quem a voz se refere fundamentalmente à voz do(s) narrador(es), identificando todas as manifestações observáveis da sua presença no enunciado. A noção de voz na narrativa distingue-se da voz da Análise do Discurso (AD). Prince (1989, p. 102-103, tradução nossa) assinala essa diferença explicando que a voz, enquanto ponto de vista (sob o viés da AD, portanto), “fornece informações sobre ‘quem vê’, quem percebe, que ponto de vista governa as narrativas”, à medida que a voz, como instância narrativa, “fornece informações sobre ‘quem fala’, quem é o narrador, em que consiste a instância narradora”10. Quando nos referimos ao texto jornalístico, observamos sua natureza polissêmica ao identificarmos diferentes vozes. Para Motta (2013b), esses

10 No original: “provides information about ‘who sees’, who perceives, whose point of views governs the narratives” e “provides information about ‘who speaks’, who the narrator is, what the narrator ins- tance consists of”.

325 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS narradores jornalísticos estão em permanente negociação política e simbólica, buscando sobrepujar seus próprios pontos de vista e, assim, conquistar o poder de fazer crer, dominando a versão hegemônica do relato. É Genette (1998), por meio de sua metáfora dos balões sucessivos, quem nos ajuda a visualizar esses embates por visibilidade entre os diferentes narradores no interior do processo de narração. O autor apresenta um modelo em que se encontra representada a hierarquia das vozes narrativas. O primeiro narrador encontra-se fora da estória e narra um primeiro relato – o primeiro balão – dentro do qual se encontra o segundo narrador. Este segundo narrador também emite um balão, em que se situa o terceiro narrador, que pode emitir um novo balão, evocando novos narradores e assim sucessivamente. Adaptando o modelo proposto por Genette (1998) para o estudo da mídia, Motta (2013a, 2013b) sugere que compreendamos o primeiro narrador como o veículo de comunicação ao qual está subordinado o segundo narrador – o jornalista, que, por sua vez, detém poder sobre o terceiro narrador – as fontes da narrativa jornalística. O autor defende a hipótese de que o poder enunciativo opera predominantemente de fora para dentro: do primeiro narrador para o segundo e deste para o terceiro. Pode, porém, inverter-se: “o poder simbólico é continuamente negociado e pode refluir de dentro para fora, dependendo do capital político de cada ator e da correlação de forças em cada situação concreta” (MOTTA, 2013b, p. 226). Partindo dessas reflexões, identificamos nas narrativas analisadas a quem pertenciam todas as vozes, considerando a função jornalística que cada uma exercia – se como apresentador(a), repórter, produtor(a), comentarista, entrevistado ou ouvinte – e sua posição na narrativa, com base na metáfora dos balões sucessivos. Em seguida, atendendo aos objetivos específicos da pesquisa, isolamos as sequências narrativas que continham participações de ouvintes e nos detivemos a analisá-las de modo individualizado. Ao voltarmo-nos às inserções dos ouvintes, observamos como estes foram identificados. Os trechos a seguir, extraídos da análise da narrativa número 2, sobre a queda da marquise de um prédio em obras, no Centro de Porto Alegre, ilustram as diferenças observadas na inserção dos ouvintes enquanto personagens das narrativas:

35 - [Rosane de Oliveira] Ouvinte informa que caiu uma marquise no centro da cidade, na Rua Annes Dias, perto da Santa Casa, onde tem um prédio em reforma e que, segundo esse ouvinte, há três pessoas embaixo dos escombros [SN 01]. - [Daniel Scola] O nosso ouvinte, o Severo, manda foto inclusive do local com grande presença de Bombeiros, Brigada Militar, Samu [SN 05]. - [Rosane de Oliveira] Deixa eu ler pra ti uma mensagem de um arquiteto. Sou arquiteto com vários anos de experiência em laudos de segurança predial. Não vou me identificar. Tem várias leis que proíbem qualquer

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objeto ser colocado sobre marquise, tais como ar condicionado, vaso de planta, painéis publicitários, entre outros, justamente para evitar sobrepeso e colapso da estrutura [SN 14].

A partir da observação dos designantes textuais empregados na narração, inferimos sobre as diferentes formas de identificação e inserção dos ouvintes nas narrativas. De maneira geral, consideramos que quanto mais elementos de identificação eram atribuídos aos ouvintes acionados – nome, sobrenome, profissão e localização, principalmente – maior era a credibilidade e o destaque atribuídos a sua participação.

Quarto movimento: identificar os critérios de acionamento dos ouvintes- enunciadores

Nosso último movimento analítico foi adaptado a partir do sexto movimento sugerido por Motta (2013b), que orientava para o reconhecimento das estratégias argumentativas. Consoante aos nossos objetivos de pesquisa, direcionamos nossa análise para a identificação dos atributos das mensagens e dos próprios ouvintes, responsáveis por influenciar seu acionamento nas narrativas. Nesta etapa, então, analisamos cada SN participativa, classificando os diferentes critérios em três grandes categorias construídas com base nas reflexões de Charaudeau (2013) : os atributos dos ouvintes-enunciadores, os atributos das mensagens e os efeitos valorativos gerados pela associação entre ambos os atributos. Para a análise dos atributos dos ouvintes-enunciadores, nos fundamentamos nas características do sujeito informador. Tomamos como referência os quatro diferentes status dos sujeitos informadores: notoriedade, testemunha, plural e organismo especializado (CHARAUDEAU, 2013). A estes, acrescentamos dois outros atributos emanados da análise do próprio objeto: a localização geográfica, que reconhece o lugar desde onde falavam os ouvintes-enunciadores como fator de distinção em determinadas narrativas, e o reconhecimento do sujeito comum que, destituído dos demais atributos, tem seu acionamento determinado essencialmente pelo conteúdo e o efeito provocado por sua mensagem. Seguimos com Charaudeau (2013)11 para a construção dos operadores de análise dos atributos da mensagem. Tomamos como ponto de partida a discussão do autor acerca das provas de verdade de uma informação: Autenticidade, Verossimilhança e Explicação. Considerando que o conteúdo das mensagens enviadas pelos ouvintes e incorporadas às narrativas não são apenas informativas, mas também opinativas e interpretativas, acrescentamos às provas de verdade

11 Recorremos à via discursiva como forma de complementar nosso percurso metodológico. À medida que os movimentos da Análise Crítica da Narrativa não se mostraram suficientes para que pudéssemos atingir nossos objetivos, encontramos nas sistematizações propostas por Charaudeau (2013) os conceitos necessários para a construção de nossas categorias de análise.

327 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS indicadas pelo autor atributos outros, novamente advindos da própria análise. Desta forma, consideramos também: a atualidade das mensagens, destacando os relatos fatuais enviados de modo simultâneo às ocorrências narradas; a avaliação, que abarca as contribuições de cunho opinativo; e o relacionamento, atributo presente em mensagens por meio das quais o ouvinte busca estabelecer um vínculo pessoal com a emissora. Por fim, a análise cruzada dos atributos do ouvinte-enunciador eda mensagem levou-nos a identificar os efeitos valorativos atrelados às interações. Estes efeitos incidem sobre o jornalista durante o processo de narração, influenciando no acionamento e no modo de inserção das mensagens edos ouvintes na narrativa. A recorrência dos atributos nos levou à sistematização dos critérios de acionamento dos ouvintes-enunciadores. O Quadro 2, a seguir, sintetiza os operadores aplicados nesta etapa:

Quadro 2 – Síntese dos operadores de análise

Atributos do ouvinte-enunciador Atributos da mensagem Efeito valorativo das mensagens Ouvinte-enunciador tem notoriedade Atualidade Efeito de Decisão Ouvinte-enunciador é uma testemunha Autenticidade Efeito de Saber Ouvinte-enunciador é um sujeito-comum Avaliação Efeito de Opinião Ouvinte-enunciador representa uma Elucidação Efeito de Descrição e coletividade Veracidade Ouvinte-enunciador detém um saber Reconstituição Efeito de Interação especializado Ouvinte-enunciador encontra-se bem Relacionamento localizado

Fonte: Elaboração da autora, a partir de Charaudeau (2013).

Apontamentos finais: as contribuições da Análise Crítica da Narrativa

Sob a perspectiva da narrativa, compreendemos o jornalismo como um produto simbólico que, por meio de estratégias e técnicas enunciativas, estabelece uma mediação entre os acontecimentos “reais” e a sociedade. Ao ordenar fatos e personagens, inserindo-os em um contexto histórico-social, as narrativas jornalísticas cristalizam o presente expondo uma representação simbólica e efêmera da realidade. Essa representação, todavia, não é um reflexo, mas, sim, uma versão dos fatos, narrados desde um ponto de vista singular, por narradores autorizados e, principalmente, com intencionalidades específicas. Em concordância com Motta (2013b), entendemos que toda narrativa é intencional e argumentativa: ensina, defende, desconstrói ou condena algo;

328 NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS oferece uma visão de mundo singular e um modo de interpretar os fatos de acordo com as vinculações sociais do veículo, dos profissionais e dos sujeitos a quem concede voz. Diferentes das narrativas de ficção, entretanto, as narrativas jornalísticas são configuradas a partir do entrelaçamento de diferentes vozes e personagens, numa busca idealista por imparcialidade e objetividade. A construção de um discurso plural é uma característica e um valor intrínseco à prática jornalística e sua função mediadora. As diferentes vozes acionadas neste discurso, contudo, também almejam sobrepor suas próprias visões de mundo, provocando uma disputa por poder e visibilidade no interior do processo de narração. As intencionalidades subjacentes às narrativas jornalísticas, dessa forma, são negociadas e disputadas entre os diferentes interlocutores. A Análise Crítica da Narrativa, nesse sentido, mostrou-se um lugar e uma ferramenta de observação propícia para descortinarmos as relações de poder implícitas ao processo de narração no rádio. Este aporte teórico e metodológico nos permitiu enxergar as intencionalidades por trás da configuração das narrativas jornalísticas e, principalmente, do acionamento e concessão de voz aos ouvintes-enunciadores. Para além dos resultados específicos obtidos após nosso percurso analítico e reflexivo, a opção pela aplicação e, consequente, adaptação da Análise Crítica da Narrativa em uma pesquisa em rádio nos serviu para reforçar a importância de constantemente buscarmos outros modos de olharmos criticamente para nossos objetos midiáticos e seus processos. A escolha por um aporte teórico e metodológico até então pouco aplicado aos estudos radiofônicos nos permitiu refletir sobre a interação entre ouvintes e rádio – uma temática já amplamente debatida entre os pesquisadores da área – desde uma perspectiva discursiva, jogando luz sobre aspectos que, frequentemente, passam despercebidos em investigações mais focadas na técnica e na prática radiofônica.

Referências

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331 Quem são os autores e as autoras:

I – NARRATIVAS, MEMÓRIA E TEMPORALIDADES

Cida Golin é jornalista, doutora em Letras, professora do Curso de Jornalismo e do Curso de Museologia da FABICO, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, participa do Laboratório de Edição Cultura & Design (LEAD), onde coordena o núcleo de estudos em jornalismo e publicações culturais. Como bolsista CNPq, desenvolveu pesquisas em torno do jornalismo de suplementos culturais, memória e cidade. E-mail: [email protected]

Luísa Rizzatti é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 2016, foi vencedora do 58º prêmio ARI-Banrisul de Jornalismo, cedido pela Associação Riograndense de Imprensa (ARI), com o documentário “Tradução como Ressurreição”, na categoria Jornalismo Universitário - Rádio. Faz parte do Laboratório de Edição, Cultura & Design (LEAD) da Fabico/UFRGS. Colaborou com a pesquisa: “Jornalismo, memória e cidade: estudo do suple- mento Cultura de Zero Hora (2011-2014)”, financiada pelo CNPq. Atualmente, é mestranda em Letras na UFRGS. E-mail: [email protected]

Marta R. Maia é professora do curso de Jornalismo e do Programa de pós- Graduação em comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pela Linha 1 – “Práticas comunicacionais e tempo social”. Doutorado em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-doutorado em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Líder do Grupo de Pesquisa “Jornalismo, Narrativas e Práticas Comunicacionais” (JorNal/ CNPq). Uma das coordenadoras da Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami) da SBPJor. Orientadora de Projetos de pesquisa sobre narrativas jornalísticas. E-mail: [email protected]

Caio Macedo Rodrigues Aniceto é jornalista formado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi bolsista de Iniciação Científica do Projeto “Verdades escolhidas: jornalismo e novas narrativas sobre a ditadura no Brasil” (2015/2016). Integrante do JorNal – Grupo de Pesquisa Jornalismo, Narrativas e Práticas Comunicacionais (CNPq/ UFOP). E-mail: [email protected]

332 Valéria de Castro Fonseca é graduada em Letras-Tradução e Letras-Língua Inglesa pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Comunicação e Sociedade pela FAC- UnB. Autora da dissertação sobre a construção discursiva da Comissão Nacional da Verdade. Pesquisadora jornalista (Mtb 8713), faz parte do Grupo de pesquisa “Jornalismo e Construção Narrativa da História do Presente”, (UnB/CNPq). É autora de artigos publicados em periódicos e livros, e participa de encontros internacionais do campo da Comunicação. E-mail: [email protected]

Célia Maria Ladeira Mota é professora de Telejornalismo na Faculdade de Comunicação/UnB. Doutora em Comunicação associada ao Programa de Pós- graduação da FAC/UnB. Membro do grupo de pesquisa Jornalismo e Construção Narrativa da História do Presente (UnB/CNPq). Membro da rede de pesquisa RENAMI e da rede de Telejornalismo (SBPJOR). Livros (autoria e organização): Narrativas Midiáticas. Florianópolis: Editora Insular, 2012. Narrativas da Identidade Nacional: Jornalismo e Redes Sociais. Brasília: Editora Kiron, 2015. Hermenêutica e análise dos discursos em Jornalismo. Florianópolis: Editora Insular, 2017. E-mail: [email protected]

Fabiano Ormaneze é doutorando em Linguística, com pesquisa na área de biografias, pela Unicamp, onde fez também o mestrado em Divulgação Científica e Cultural. Especialista em Jornalismo Literário pela ABJL. Graduado em jornalismo pela PUC-Campinas. Professor nos cursos de graduação em Comunicação no Centro Universitário Metrocamp (Unimetrocamp) e na pós- graduação do Centro Universitário Senac-SP (Unidade Campinas). Autor do livro “Do jornalismo científico ao literário: biografia, discurso e representação” (2015), entre outros. E-mail: [email protected]

Duílio Fabbri Júnior é doutorando em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero e graduado em Jornalismo pela PUC-Campinas. Professor no Centro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta), em Jundiaí-SP e no Centro Universitário Salesiano (Unisal), Campus Americana, onde também é coordenador de curso. É professor- convidado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Centro Universitário Senac-SP, Unidade Piracicaba. E-mail: [email protected]

Fabiana Piccinin é jornalista e licenciada em Letras. É professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação Mes- trado e Doutorado em Letras (UNISC). É vice-líder do GENALIM (CNPQ) Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas, integrante do GAIA (CNPQ) Grupo de Estudos sobre Autonarrativas e Investigações Autopoéticas e do GIP Tele Grupo Interinstitucional de Pesquisa sobre Telejornalismo. E-mail: [email protected]

333 Andressa Bandeira Santana é formada em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Bolsista CAPES, integrante do GENALIM, Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas (CNPQ) e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). E-mail: [email protected]

II – NARRATIVAS, SUBJETIVIDADES E RUPTURAS

Fabiana Moraes é professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco. Jornalista e doutora em Sociologia, tem pesquisas acadêmicas e reportagens voltadas para a questão da hierarquização social com foco na (in)visibilidade de grupos vulneráveis. É vencedora de três prêmios Esso: Os Sertões (2009); O Nascimento de Joicy (2011) e A Vida Mambembe (2007). Recebeu ainda os prêmios Petrobras de Jornalismo (2015); o Embratel (2011) e três prêmios Cristina Tavares (Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco). Lançou cinco livros: Os Sertões (2010), Nabuco em Pretos e Brancos (2012); No País do Racismo Institucional (2013); O Nascimento de Joicy (2015); Jormard Muniz de Britto - professor em transe (2017). Investiga narrativas midiáticas, jornalismo, subjetividade e a relação entre celebridade e pobreza. E-mail: [email protected]

Diego Gouveia é jornalista e professor do Núcleo de Design e Comunicação do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco. Tem mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE. Tem desenvolvido pesquisas com foco na cultura da convergência e na cultura participativa, além de se interessar por estudos que envolvam processos de subjetivação estabelecidos pelas mídias. E-mail: [email protected]

Mayara de Araújo é jornalista. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM-UFC/Turma 2017). Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Centro de Treinamento e Desenvolvimento (Cetrede/UFC). Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela mesma Universidade. E-mail: [email protected]

Edgard Patrício é professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC (PPGCOM-UFC). Coordena o Programa de Extensão Comunicação e Políticas Públicas. É jornalista por formação, mestre e doutor em Educação Brasileira (UFC) e graduado em Tecnologia de Processamento de Dados pela mesma Universidade. E-mail: [email protected]

334 Dayane do Carmo Barretos é jornalista formada pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Concluiu o mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação na mesma instituição e atualmente cursa o doutorado no Programa de pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É professora substituta no curso de jornalismo da UFOP e integrante do JorNal – Grupo de Pesquisa Jornalismo, Narrativas e Práticas Comunicacionais (CNPq/UFOP). Possui interesse nos estudos de alteridade, gênero e sujeitos nas narrativas e práticas jornalísticas. E-mail: [email protected]

Jaqueline Frantz de Lara Gomes é jornalista, graduada pelo Curso de Co- municação Social, mestra em Letras e doutoranda pelo Programa de Pós- -Graduação em Letras – Mestrado e Doutorado, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Bolsista FAPERGS/CAPES. Integrante do Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas (GENALIM), no qual está inserido o grupo “Jornalismo Midiatizado e Circulação”. E-mail: jaqlara@ yahoo.com.br

Victor Lemes Cruzeiro é formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), com uma dissertação sobre a comunicação da dor através dos diários íntimos de Frida Kahlo e Roland Barthes, interseccionando a área com a filosofia, a psicologia e a medicina. Membro da Rede de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Renami), vinculada à SBPJor, atualmente dedica-se a analisar o suicídio através do Jornalismo Literário e da biografia. como forma de encontrar uma leitura racional e necessária para um ato de desespero tão complexo e terrível. E-mail: [email protected]

III – NARRATIVAS E CONTEXTUALIZAÇÕES

Maurício Guilherme Silva Jr. é graduado em Jornalismo (1999) pela UFMG, mestre e doutor em Estudos Literários, além de pós-doutoramento em Comunicação Social – também pela UFMG. Professor do Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), integra, ainda, o Programa de Comunicação Científica e Tecnológica (PCCT) da Fapemig – por meio do qual é editor-chefe da revista Minas faz Ciência –, assim como os grupos de pesquisa Educomuni, do UniBH; SBPJor Narrativas, formado por diversas instituições; Narrativas Midiáticas (Nami), da Universidade de Sorocaba; NERCOPC, da UFMG; e a Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami). E-mail: [email protected]

335 Felipe Viero Kolinski Machado é bolsista de Pós-Doutorado Junior (PDJ/CNPq) junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais e professor substituto do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto. É doutor e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Jornalista pela Universidade Federal de Santa Maria. Em suas pesquisas interessa-se, principalmente, pelos sentidos que se constituem, na mídia e no jornalismo, acerca das gerações, dos gêneros e das sexualidades, tendo em vista seus discursos e rotinas produtivas. E-mail: [email protected]

Alda Cristina Costa é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professora do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA) e coordenadora do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia). E-mail: [email protected]

Vânia Maria Torres Costa é doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA) e coordenadora do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia). E-mail: [email protected]

Nathan Nguangu Kabuenge é mestrando em Ciências da Comunicação no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA) e integrante do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: nathannguangu@ yahoo.fr

Sergio E. S. Ferreira Junior é Mestrando em Ciências da Comunicação no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA) e integrante do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: [email protected]

Thaís Luciana Corrêa Braga é doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho (UMinho), mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Federal do Pará da Universidade Federal do Pará (UFPA), jornalista do quadro de técnico-administrativos da UFPA e integrante do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia). E-mail: [email protected]

336 Karolina Calado é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, onde desenvolve pesquisa sobre a influência do financiamento coletivo na construção de narrativas jornalísticas plurais. E-mail: [email protected]

Heitor Costa Lima da Rocha é jornalista pela Universidade Católica de Pernambuco (1983), mestre em Ciência Política (1989) e doutor em Sociologia (2004) pela Universidade Federal de Pernambuco, com Estágio Sênior Pós- Doutoral (CAPES) na Universidade da Beira Interior Covilhã/Portugal (2015). Atualmente, é Professor Associado do Departamento de comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]

IV – NARRATIVAS CONVERGENTES

Lorena Tárcia é jornalista, mestre em Educação, doutora, com pós-doutoramento em Comunicação (UFMG). Estágio doutoral na Universidade Pompeu Fabra (Barcelona). Professora de Webjornalismo e Narrativas Transmídia no Centro Universitário de Belo Horizonte. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no projeto de divulgação científica Minas Faz Ciência. Coordena a pós-graduação Jornalismo em Ambientes Digitais, no UniBH. pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermedia/Centro de Convergência de Novas Mídias (UFMG). E-mail: [email protected]

Geane Carvalho Alzamora é jornalista (PUC Minas), mestre e doutora em Comunicação e Semiótica (PUC SP), com estágio doutoral na Universität Kassel (Alemanha) e pós-doutorado na Universitat Pompeu Fabra (Espanha) na área de comunicação transmídia. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG/ Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermedia/Centro de Convergência de Novas Mídias (UFMG). Desenvolve pesquisas com auxílio financeiro do CNPq, FAPEMIG e UFMG. E-mail: [email protected]

Renira Rampazzo Gambarato é professora de Mídia e Comunicação na Jönköping University, na Suécia. Concluiu pós-doutorado em Cinema na Concordia University, no Canadá, doutorado e mestrado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, e bacharelado em Desenho Industrial na UNESP-Bauru. Ela é co-editora dos livrosExploring Transmedia Journalism in the Digital Age (com Geane Alzamora, IGI Global, 2018), The Routledge Companion to Transmedia

337 Studies (com Matthew Freeman, Routledge, 2018) e Kulturdialoge Brasilien- Deutschland–Design, Film, Literatur, Medien (com Geane Alzamora e Simone Malaguti, Verlag Walter Frey, 2008). E-mail: [email protected]

Demétrio de Azeredo Soster é doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com pós-doutorado pela mesma Instituição. É mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Letras - Mestrado e Doutorado e do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Um dos coordenadores da Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami) da SBPJor. Integra os grupos de pesquisa vinculados ao CNPq “Midiatização das práticas sociais” e “Grupo de estudos sobre narrativas literárias e midiáticas” (Genalim). É editor da revista Rizoma: midiatização, cultura, narrativas. E-mail: [email protected]

Luana Ciecelski é Bacharel em Comunicação Social - habilitação Jornalismo - pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), jornalista e membro do grupo de pesquisa Jornalismo Midiatizado e Circulação, ligado ao grupo de estudos sobre narrativas literárias e midiáticas (GENALIM) do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Unisc. E-mail: [email protected]

Rodrigo Bartz é doutorando em Letras pelo PPGL – UNISC (Universidade de Santa Cruz do Sul). Membro do grupo de pesquisa Jornalismo Midiatizado e circulação, ligado ao Grupo de estudos sobre narrativas literárias e midiáticas (GENALIM). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

Thiago Carlotto é Bacharel em Comunicação Social - habilitação Jornalismo - pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e membro do grupo de pesquisa Jornalismo Midiatizado e Circulação, ligado ao grupo de estudos sobre narrativas literárias e midiáticas (GENALIM) do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Unisc. E-mail: [email protected]

Alciane Baccin é jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior (UBI – Covilhã/Portugal), mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e especialista em Comunicação Midiática e graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É professora da graduação em Jornalismo e do Mestrado Profissional em Jornalismo do FIAM-FAAM Centro Universitário. E-mail: [email protected]

338 Monica Martinez é doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, com pós-doutorado pela UMESP e estágio de pesquisa junto ao departamento de Rádio, Televisão e Cinema da Universidade do Texas. É docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso). Uma das coordenadoras da Rede de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Renami). E-mail: [email protected]

Diogo Azoubel é professor da Secretaria Estadual da Educação do Maranhão (Seduc-MA). Doutorando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COS|PUC-SP). E-mail: [email protected]

Mirian Redin de Quadros é jornalista pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), com mestrado e doutorado em Comunicação Midiática pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Com experiências profissionais em mídia impressa e radiofônica, atua, hoje, na área de assessoria de comunicação, junto à Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

339 Ao cumprir a função de nos chamar a todos para estarmos ativos e atentos ao processo de consolidação dos estudos da narrativa no campo das mídias, este livro também nos diz que o tempo que hoje experimentamos não é somente o tempo das convergências. Ele é, antes de tudo – e é aí que está a sua força –, um enredamento de muitas espacialidades e temporalidades dissonantes e em constante estado de confronto. Enfrentar a narrativa como um problema é saber desta dimensão complexa, pois é também nela que as lutas são travadas. Por esta razão, do meu ponto de vista, os estudos da narrativa – do qual este livro agora é cúmplice –, quando afetados pelos desafios que nos são postos pelo ato de narrar no mundo, evocam um gesto político e estético de fundamental importância para o avanço das nossas pesquisas nos campos da comunicação e do jornalismo.

Fernando Resende (UFF)