FACULDADE CÁSPER LÍBERO

Renato Delmanto Barros

‘Voz do Brasil’: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça de relações públicas do governo

SÃO PAULO

2015

RENATO DELMANTO BARROS

‘Voz do Brasil’: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça de relações públicas do governo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Comunicação, linha de pesquisa B: Produtos Midiáticos – Jornalismo e Entretenimento, da Faculdade Cásper Líbero, para obtenção do título de mestre. Orientadora: Profa. Dra. Simonetta Persichetti

SÃO PAULO

2015

Delmanto Barros, Renato

Voz do Brasil: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça de relações públicas do governo / Renato Delmanto Barros. – São Paulo, 2015.

144 f. : il. ; 30cm.

Orientadora: Profa. Dra. Simonetta Persichetti

Dissertação (mestrado) – Faculdade Cásper Líbero, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Comunicação

1. Jornalismo. 2. Notícia. 3. Retórica. 4. Relações Públicas. I. Persichetti, Simonetta. II. Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação. III. Voz do Brasil: proposta de jornalismo de interesse do cidadão que virou peça de relações públicas do governo.

À minha esposa, Priscilla, que caminha comigo há tantos anos e me colocou no bom caminho;

e ao meu pai, Sylvio Homero, por me ensinar a ter uma visão crítica e compreensiva sobre o mundo.

AGRADECIMENTOS

À minha família, que suportou com paciência todo o período de pesquisa e, principalmente, os muitos momentos de ausência durante o mestrado;

À minha orientadora, Profª. Dra. Simonetta Persichetti, que ajudou na definição do foco, conseguiu encontrar suporte teórico para minha ideia e não me deixou desistir da jornada;

Aos professores do Mestrado, pelas aulas ministradas e pelas excelentes oportunidades abertas ao diálogo e à reflexão. O retorno à condição de aluno foi uma experiência gratificante para mim;

Aos integrantes da banca: Dra. Simonetta Persichetti, Dr. Carlos Eduardo Lins da Silva e Dr. Dimas A. Kunsch, que me honram por ter aceitado o convite e pelas ótimas contribuições dadas na qualificação;

Aos jornalistas Carlos Marchi e Eugênio Bucci, personagens importantes da história da Voz do Brasil, que se dispuseram gentilmente a dar entrevistas para esta pesquisa e relembrar suas experiências dentro do governo;

Ao prof. Dr. Carlos Costa, pelo apoio e intervenção que foram decisivos para o início deste Mestrado;

Ao prof. Dr. Júlio César Barbosa, um dos primeiros a conhecer minha ideia de pesquisa e que sugeriu a análise retórica como um caminho a ser seguido;

Aos colegas professores da Coordenadoria de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, pelo incentivo recebido desde o primeiro momento para que eu me dedicasse à pesquisa;

Aos meus colegas de Mestrado, que contribuíram, cada um a sua maneira, com sugestões para a pesquisa, e pela agradável convivência nesses dois anos;

Ao pessoal da Secretaria da Pós-Graduação e da Biblioteca da Cásper Líbero, sempre solícitos e dispostos a ajudar; Aos amigos e colegas que direta ou indiretamente contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa: Claudio Niwcles Arantes, Helena Jacob, Pedro Serico Vaz, Filomena Salemme, Eugênio de Menezes, Ricardo Gandour, Mena de Almeida, Vivian Paixão, Catharina Barros; A Deus, que me dá forças para combater o bom combate.

“Guarde sempre na lembrança que esta estrada não é sua. Sua vista pouco alcança, mas a terra continua” Sidney Miller

RESUMO

A dissertação analisa a primeira parte do programa radiofônico Voz do Brasil – que veicula informações do Poder Executivo Federal –, com base nas características específicas do jornalismo e do trabalho de relações públicas. Produzido pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o programa tem transmissão obrigatória por todas as emissoras de rádio do país e foi criado há 80 anos, pelo governo Getúlio Vargas. Ao longo de quase toda a sua história, o programa foi identificado como veículo porta-voz do governo – independentemente do regime político vigente no país (alternância de ditaduras com períodos democráticos). Esta pesquisa procurou extrair elementos que indicassem, de forma objetiva, que o conteúdo veiculado na Voz do Brasil apresenta características de peça de comunicação institucional do governo – a despeito da existência de diretrizes que definem preceitos jornalísticos e preveem o compromisso com os interesses do cidadão e a defesa do direito à informação. Esta análise apoia-se nos conceitos de jornalismo e notícia (de Nelson Traquina e outros autores), nos critérios de noticiabilidade (apontados por Mauro Wolf) e na comparação do conteúdo do programa com as notícias veiculadas nas edições correspondentes de jornais de grande circulação. Com base ainda na análise retórica do programa, a partir das ideias de Tereza Halliday e de Chaïm Perelman, e nas teorias sobre as relações públicas propostas por Dan Lattimore, Paulo Nassar e outros, concluímos que a Voz do Brasil é um produto “jornalístico” a serviço das relações públicas do governo federal.

Palavras-chave: Jornalismo. Notícia. Retórica. Relações Públicas.

ABSTRACT

The dissertation aims to investigate the official radio show Voz do Brasil (Voice of ) – specifically the part that features news from the federal government –, based on journalism and public relations’ concepts. Produced by the Communication Secretariat of the Brazilian Presidency, the radio show is mandatory for all broadcasting stations in the country. Created under the Getúlio Vargas government, 80 years ago, along almost its entire history the radio show has been presented as the government’s “spokesman” – regardless of the country’s political regime, alternating dictatorships with democratic periods. The goal of this research was to identify elements that could indicate that Voz do Brasil is part of the institutional communication apparatus of government. It happens despite the existence of guidelines that provide the commitment to the citizens’ interests and their right to information. The analysis was based on the theory of journalism (supported by Nelson Traquina and other authors) and the criteria of newsworthiness and news-value (pointed by Mauro Wolf). In order to verify the accomplishment of these criteria, we made a comparison between the radio show and the news published by three national newspapers. We also used rhetorical analysis (based on Tereza Halliday and Chaïm Perelman), and public relations concepts (proposed by Dan Lattimore and Paulo Nassar) to conclude that Voz do Brasil is a “journalistic” product serving as a public relations tool for the federal government.

Keywords: Journalism. News. Rhetoric. Public Relations.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa da Folha de S.Paulo – 08 jul 1980 ...... 56

Figura 2 – Capas dos jornais – 12 jun 2003 ...... 58

Figura 3 – Capas dos jornais – 05 fev 2014 ...... 61

Figura 4 – Capas dos jornais – 19 mar 2015...... 67

Figura 5 – Capas dos jornais – 07 jun 2013 ...... 70

Figura 6 – Capas dos jornais – 08 jun 2013 ...... 71

Figura 7 – Capas dos jornais – 14 jun 2013 ...... 72

Figura 8 – Sites da imprensa internacional – Junho 2013 ...... 73

Figura 9 – Capas dos jornais – 16 jun 2015 ...... 74

Figura 10 – Capas dos jornais – 17 jun 2013 ...... 75

Figura 11 – Capas dos jornais – 18 jun 2013 ...... 75

Figura 12 – Capas dos jornais – 19 jun 2013 ...... 77

Figura 13 – Capas dos jornais – 20 jun 2013 ...... 80

Figura 14 – Capas dos jornais – 21 jun 2013 ...... 82

Figura 15 – Capas dos jornais – 20 set 2014 ...... 92

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Pauta da Voz do Brasil – 04 fev 2014 ...... 62

Tabela 2 – Pauta da Voz do Brasil – 18 mar 2015 ...... 68

Tabela 3 – Pauta da Voz do Brasil – 20 jun 2013 ...... 81

Tabela 4 – Temas tratados pela Voz do Brasil em maio 2014 ...... 97

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 12

CAPÍTULO 1: A história da Voz do Brasil ...... 19

Contexto histórico do rádio no Brasil ...... 19

O populismo de Getúlio Vargas ...... 21

O Estado Novo e a obrigatoriedade da Hora do Brasil ...... 23

O fim da ditadura Vargas e a Voz do Brasil ...... 26

O ocaso do populismo: JK, Jânio e Jango ...... 30

O regime militar e uma nova herança autoritária ...... 32

A Nova República e a “nova” Voz do Brasil ...... 39

Consolidação da democracia e a mesma Voz do passado ...... 46

Uma proposta jornalística para a Voz do Brasil ...... 49

A Voz do Brasil depois de 2007 ...... 51

CAPÍTULO 2: Critérios de noticiabilidade na Voz do Brasil ...... 53

A “notícia” na Voz do Brasil ...... 53

O “protesto” do papa João Paulo II ...... 55

A manifestação que virou “pauta de reivindicações” ...... 57

O conceito de noticiabilidade ...... 59

O “apagão” elétrico de 2014 ...... 60

A polêmica saída do ministro da Educação em 2015 ...... 65

As manifestações de rua em junho de 2013...... 69

CAPÍTULO 3: Análise retórica da Voz do Brasil ...... 84

As origens da retórica na Grécia antiga ...... 84

Retórica enquanto arte de convencer ...... 86

A busca da legitimação pelo discurso ...... 88

O uso do argumento pragmático ...... 89

O argumento da autoridade ...... 91

Espaço público e manipulação ...... 96

A priorização de temas na Voz do Brasil ...... 97

CAPÍTULO 4: Comunicação pública ou relações públicas? ...... 103

Uma definição para comunicação pública ...... 104

Distinções entre jornalismo e relações públicas ...... 106

A origem das relações públicas ...... 107

A Voz do Brasil como “mídia da fonte” ...... 109

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 112

REFERÊNCIAS ...... 114

APÊNDICES ...... 119

Apêndice A – Entrevista com Carlos Marchi – 15 jul 2015 ...... 119 Apêndice B – Entrevista com Eugênio Bucci – 27 jul 2015 ...... 135

INTRODUÇÃO

O presente trabalho sobre a Voz do Brasil surgiu da preocupação de escolher um objeto de pesquisa que permitisse a análise de um produto editorial do ponto de vista jornalístico, mas que esta pudesse ser ampliada com conceitos dos processos de comunicação institucional. Como professor de graduação em Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 2005, profissional de imprensa por mais de 20 anos (com experiências em revista, jornal, TV e internet) e especializado em comunicação corporativa nos últimos 10 anos, a análise da primeira parte do programa de rádio Voz do Brasil, vinculada ao Poder Executivo Federal, atenderia a essa expectativa acadêmica. A Voz do Brasil é transmitida de segunda a sexta-feira, das 19h às 20h, compulsoriamente por todas as emissoras de rádio do país, veiculando “notícias” sobre o governo federal. É o programa radiofônico mais antigo do Brasil, tendo sido criado em 1935, durante o governo do presidente Getúlio Vargas. Passou a ter transmissão obrigatória após o golpe de Estado do próprio presidente Vargas, que deu início à ditadura do Estado Novo (1937-1945). O programa integrava o projeto de propaganda oficial do governo Vargas, que tinha um de seus pilares no rádio – àquela época ainda um meio nascente no país. O projeto de comunicação de Vargas guardava forte inspiração nos modelos de propaganda dos regimes nazista e fascista, vigentes na Alemanha e na Itália, respectivamente. Ao longo de quase toda sua história, a Voz do Brasil desempenhou o papel de porta-voz do governo, funcionando como uma ferramenta de relações públicas oficial, em vez de ser um produto jornalístico de informação à sociedade a respeito dos temas ligados ao Poder Executivo federal. Tradicionalmente, o programa submeteu-se aos desígnios dos governantes, independentemente do regime político que estivesse vigente no país – ao longo de toda a existência da Voz do Brasil, houve no país uma alternância de fases de regimes ditatoriais e de democracia. Nos períodos de ditadura – notadamente na primeira era Vargas1 e no período do regime militar (1964-1985) – essa característica se acentuou, o que conferiu à Voz do Brasil a pecha de “herança autoritária”. Essa “tradição” do programa somente foi rompida em dois períodos específicos, que serão relatados neste trabalho: entre 1985 e 1986, no início da chamada Nova República, quando José Sarney

1 Deposto ao final da ditadura do Estado Novo (1945), Vargas voltaria a ser presidente, eleito democraticamente, cinco anos depois, período conhecido como segunda era Vargas.

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era presidente da República e o jornalista Carlos Marchi esteve no comando da Voz do Brasil; e entre 2003 e 2006, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando o jornalista e professor Eugênio Bucci presidiu a Radiobrás, empresa então responsável pela produção do programa. Bucci relatou sua experiência no livro Em Brasília, 19 horas (2008)2, cuja leitura foi a primeira inspiração para esta pesquisa. A obra indica, no seu subtítulo (“A guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula”), a dificuldade enfrentada pela equipe do programa ao tentar implantar um projeto de jornalismo. Naquele período, foram tornados públicos diversos documentos contendo as propostas editoriais para as emissoras de rádio e TV controladas pela estatal e, especificamente, para a Voz do Brasil. Tanto o livro quanto esses documentos permitiram que se tivesse nessa pesquisa uma visão geral da relação entre a linha editorial do programa e o governo federal. Para a contextualização histórica do programa, foi fundamental o livro A hora do clique – análise do programa ‘Voz do Brasil’ da Velha à Nova República, de Lilian Maria Perosa (1995). A obra permitiu uma compreensão da “convivência” da Voz do Brasil com os diversos regimes que marcaram a história política do Brasil desde os anos 1930. Graças à extensa pesquisa feita pela autora, foi possível identificar o primeiro período da história do programa em que se tentou praticar o jornalismo – entre 1985 e 1986, no primeiro ano do governo do presidente José Sarney, na chamada “Nova República”. Devido à parca documentação existente em relação àquela fase, as informações contidas no livro de Lilian Perosa foram complementadas com uma entrevista com o jornalista Carlos Marchi, que presidiu àquela época a Empresa Brasileira de Notícias (então responsável pela Voz do Brasil) e foi um dos responsáveis pelo projeto editorial idealizado sob a inspiração do primeiro governo civil pós-regime militar, elaborado após a eleição de Tancredo Neves (1910-1985). Esta dissertação traz no primeiro capítulo a história do programa, identificando as características de cada fase política vivida pelo país e as relações da Voz do Brasil com cada um desses contextos políticos – incluindo um detalhamento dos dois períodos em que foram adotados critérios jornalísticos no programa. No segundo capítulo, analisamos os critérios de noticiabilidade adotados pelo programa, a partir da análise comparativa de alguns programas selecionados com as

2 O título do livro faz referência ao jargão usado durante muitos anos na abertura do programa.

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edições correspondentes de três jornais de grande circulação – O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo (RJ) –, com o objetivo de verificar se o programa oficial adota critérios de seleção de notícias distintos dos jornais impressos. O programa foi acompanhado diariamente durante 30 meses (entre 2013 e 2015), e desse período foram selecionadas edições que melhor corroborassem a hipótese, aqui sugerida, de que o conteúdo veiculado, em vez de praticar o jornalismo, presta-se ao papel de peça de comunicação institucional do governo. No terceiro capítulo, desenvolvemos uma análise do conteúdo do programa do ponto de vista retórico, principalmente na questão do uso da retórica em busca de legitimação perante a sociedade. Conforme essa análise, o conteúdo do programa demonstra estar a serviço dos interesses específicos do governo, em detrimento dos interesses dos cidadãos. O quarto capítulo apresenta os conceitos de comunicação pública e de relações públicas, e as características que fazem a Voz do Brasil ser uma “mídia” do próprio governo federal. Nas considerações finais, concluímos que a Voz do Brasil é um produto de relações públicas do governo, a despeito da existência de regras e diretrizes que pautam o trabalho de seus jornalistas. O mais recente documento contendo essas diretrizes foi publicado em 2013: trata-se do Manual de Jornalismo da EBC – Empresa Brasil de Comunicação, estatal vinculada à Secretaria de Comunicação da Presidência da República e que, atualmente, é responsável pela produção da Voz do Brasil. O documento defende o direito à informação dos cidadãos e vaticina que todos os jornalistas da empresa devem ter um “compromisso com a verdade”. Desde o princípio, esta pesquisa se propôs a analisar apenas a parte inicial do programa, com cerca de 25 minutos de duração, que é de responsabilidade do Poder Executivo. O restante do horário de transmissão obrigatória é dedicado às duas casas do Parlamento, ao Poder Judiciário e ao Tribunal de Contas da União. Os conteúdos que não são de responsabilidade da Presidência da República, dos Ministérios e dos órgãos da administração direta não foram considerados como objeto de estudo. Sendo a Voz do Brasil um produto de comunicação vinculado à Presidência da República, e em razão de a “genealogia” do programa mesclar conceitos das ciências da comunicação com conceitos da política, optamos por definir algumas noções que serão adotadas neste trabalho: entre elas jornalismo e notícia, relações públicas, comunicação

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pública, retórica, poder e Estado. Esses conceitos visam facilitar o entendimento das análises desenvolvidas nas próximas páginas.

Jornalismo e notícia – o jornalismo é entendido aqui como o ofício de informar à sociedade a respeito de fatos que sejam de interesse geral dos cidadãos. Ao longo do século 20, diversos autores – entre eles Lippman, Galtung & Ruge, Golding & Elliott, Gans, Gaillard, Hohemberg, Traquina, Wolf, Chaparro e Lage – se dedicaram a definir critérios de noticiabilidade, assim como os valores-notícia (características de um fato em si) que justificam a sua seleção por veículos jornalísticos. Em suas definições – muitas vezes complementares – esses autores sugerem como valores-notícia que credenciam os eventos como “notícias” atributos como novidade (um fato inédito), raridade (o inesperado, como o exemplo alegórico do homem que morde o cão), relevância (importância do fato ou dos personagens), proximidade geográfica (se acontece próximo do público do veículo), negatividade (a questão das bad news e das good news), entre outros. Para efeitos desta dissertação, adotamos o conceito de Nelson Traquina (1993), de que a matéria-prima do jornalismo é a notícia, ou seja, os acontecimentos ou as informações que são transformados em notícia pelo “sistema jornalístico”. Numa perspectiva histórica, as notícias eram os acontecimentos com “direito à existência pública”, que eram selecionados pelos jornalistas para aparecerem nos veículos (conforme o processo do gatekeeper), o que os transformava em temas de discussão da opinião pública (aqui no conceito de agenda setting). Para avaliar o processo de seleção de notícias pelos veículos, optamos pelos conceitos de noticiabilidade (newsworthiness) apresentados por Mauro Wolf (2012). Dentre as várias possibilidades de análise propostas pelo autor – e embasadas por outros autores – adotamos os critérios “substantivos”. Esses critérios podem ser verificados com base no (a) grau hierárquico dos envolvidos; (b) impacto do fato sobre o interesse nacional; (c) quantidade de pessoas que o acontecimento envolve (direta ou indiretamente); e (d) relevância em relação aos desenvolvimentos futuros de uma determinada situação. Acreditamos que esses critérios permitem uma avaliação menos subjetiva do que seriam temas de interesse da sociedade. O desenvolvimento de novas tecnologias e a enorme difusão de informações proporcionada pelas plataformas antes inexistentes (notadamente as mídias sociais e as redes de compartilhamento) vêm transformando o papel do jornalismo, mas este não é o

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foco deste trabalho. Aqui, pretendemos resgatar a liturgia que caracteriza o ofício do jornalista (e que contribui para a credibilidade da profissão): o compromisso com a acuidade, com a veracidade e com a integridade.

Comunicação pública – para a análise desenvolvida nesta pesquisa sobre a Voz do Brasil, optamos por um conceito de comunicação pública sugerido por Jorge Duarte, Eugênio Bucci e outros autores. Neste trabalho, a comunicação pública é entendida como aquela que se ocupa da “viabilização do direito social coletivo e individual ao diálogo, à informação e expressão” (DUARTE, 2012), ou simplesmente “toda comunicação que tematiza um assunto de interesse público” (BUCCI, 2015). Trabalhamos com duas dimensões da comunicação pública: a primeira a define como aquela para a qual concorre o dinheiro público – na forma de recursos, equipamentos, equipes de funcionários ou efetivamente o controle ou participação acionária de algum ente público. Já a segunda dimensão define que comunicação pública é aquela que, obrigatoriamente, deve observar os princípios constitucionais, principalmente o da impessoalidade. Dessa forma um veículo de comunicação pública não pode ter como objetivo servir a interesses de governantes ou autoridades de turno, mas aos interesses do Estado e do cidadão.

Relações públicas – dentre as muitas definições existentes, adotamos aqui um conceito baseado, principalmente, nos autores Lattimore (2009), Kunsch (2003) e Nassar (2007), que consideram como relações públicas ações de comunicação patrocinadas por entidades ou organizações com o objetivo de ter uma visibilidade pública, uma melhor imagem ou conseguir a inserção na esfera pública. Lattimore propõe uma distinção entre o campo específico das relações públicas e o do jornalismo: pois os jornalistas não representam as organizações sobre as quais escrevem, enquanto os profissionais de relações públicas, sim. Para o autor, isso influencia a maneira como os profissionais de relações públicas enquadram ideias e a indpendência na apresentação dos fatos. No entanto, isso não significa que o trabalho de relações públicas dispense o profissional de respeitar preceitos éticos – ao contrário, o bom trabalho de relações públicas não admite a disseminação de informações inverídicas, seja de maneira proposital, seja involuntária. Sant’Anna (2004) sugere que as relações públicas estão englobadas num conceito mais amplo de comunicação institucional – que inclui o conjunto de conteúdos disponibilizados pelas organizações e instituições à opinião pública. A comunicação

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institucional possibilita que sejam desenvolvidos por esses entes jurídicos canais próprios de conteúdo, o que o autor define como mídia das fontes. Essas mídias distribuem informações que são tratadas “editorialmente” por profissionais vinculados a essas organizações, que se utilizam de processos “jornalísticos” semelhantes aos dos veículos de imprensa. No entanto, diferentemente da imprensa, essas mídias das fontes têm o objetivo de defender os interesses das entidades ou organizações às quais estão vinculadas – conceito que se encaixa na análise do programa Voz do Brasil.

Retórica – partindo dos fundamentos de Aristóteles, o conceito de retórica adotado nesta pesquisa tem como base os estudos de Tereza Halliday (1987, 1988) e de Chaïm Perelman (2005). Num processo dialógico entre os dois autores, optamos por uma definição de retórica como um processo comunicacional que busca a legitimação de uma organização ou entidade a partir de discursos institucionais, conteúdos oficiais e propagandas. Halliday mostra que empresas e instituições constroem seus discursos retoricamente, para atender a objetivos específicos, como construir “simbolicamente” a realidade. Já Perelman (2005) propõe um “nova retórica”, na qual a “verdade” não decorre de um raciocínio lógico corroborado por “evidências” empíricas, mas da deliberação do público em aceitá-las como tal. Isso é um fator relevante a ser considerado na análise do conteúdo da Voz do Brasil, visto que se trata de um programa com transmissão obrigatória por todas as emissoras de rádio do país.

Poder – o fato de a Voz do Brasil estar vinculada à Presidência da República e de ter sido criada como instrumento de divulgação do governo Vargas, inspirada em regimes autoritários (fascismo e nazismo), leva-nos a adotar, primeiramente, um conceito de poder no sentido político (a partir de Norberto Bobbio e outros autores). Entretanto, sendo o objetivo de nossa análise o uso do programa como peça de comunicação governamental, optamos por adotar os conceitos propostos por John B. Thompson (2013), que tratam o poder como “a capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e em suas consequências”. Se atualmente costuma-se associar o poder à política – ou às “ações de indivíduos agindo em nome do Estado” –, isso se deve ao fato de os Estados terem se tornado, particularmente, centros importantes de concentração do poder que têm se utilizado dos meios de informação e comunicação. Com esse intuito, os detentores do poder usam a comunicação para provocar reações de determinado teor na opinião pública

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– como sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descrer em determinada tese ou pessoa etc.

Estado e autoritarismo – neste trabalho, optamos por um conceito de Estado baseado na definição de Weber: instituição política que, dirigida por um governo, detém o monopólio da força física, em determinado território, subordinando a sociedade que nele vive. A distinção entre Estado e governo é particularmente relevante na análise aqui desenvolvida: pois a Voz do Brasil é diretamente ligada à estrutura do Estado, mas, ao longo de quase toda a sua história, foi tratada como peça de comunicação a serviço dos governos de turno, aos quais esteve submetida. De Bobbio, emprestamos o conceito de autoritarismo, já que a Voz do Brasil foi criada no governo de Getúlio Vargas, apenas dois antes do golpe que instituiu a ditadura do Estado Novo (1937-1945). Em outro período de sua história, durante o regime militar (1964-1985), o programa foi usado como “porta-voz” da ditadura, o que acabou gerando, na sociedade, a percepção de que é uma “herança autoritária”. Bobbio define autoritarismo como o regime que privilegia a autoridade governamental e diminui “de forma mais ou menos radical o consenso”, colocando em posição secundária as instituições representativas. Em outras palavras, é um contraponto à democracia. Conforme veremos ao longo dessa dissertação, a Voz do Brasil tornou-se um instrumento usado por grupos instalados no interior do Estado (notadamente em regimes autoritários, mas também nos períodos democráticos) para disseminar sua ideologia ou defender seus interesses.

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CAPÍTULO 1

A história da ‘Voz do Brasil’

Contexto histórico do rádio no Brasil A primeira transmissão de rádio no Brasil ocorreu no dia 6 de abril de 1919, em Recife (PE). Naquela data, os cientistas amadores Oscar Moreira Pinto, Augusto Pereira e João Cardoso Alves inauguraram a Rádio Clube de Pernambuco, usando um transmissor importado da França. Apesar dessa primeira transmissão, a data oficial de início da radiodifusão no Brasil é 7 de setembro de 1922, quando o presidente da República, Epitácio Pessoa, discursou na abertura da Exposição Internacional do , como parte das comemorações do centenário da Independência do Brasil. A fala presidencial foi veiculada por um transmissor de 500 watts de potência instalado no alto do Morro do Corcovado. Por iniciativa das companhias Rio de Janeiro and São Paulo Telephone Company, Westinghouse International Company e Western Electric Company, foram instalados 80 receptores no Rio de Janeiro, em Niterói e em São Paulo. O jornal carioca A Noite, na edição do dia seguinte, descreveu o impacto dessa experiência sobre a população: À noite, no recinto da Exposição, em frente ao posto de Telephone Público, por meio do telephone alto-falante, a multidão teve uma sensação inédita. A ópera Guarany, de Carlos Gomes, que estava sendo cantada no Theatro Municipal, foi alli, distinctamente ouvida bem como os applausos aos artistas (ORTRIWANO, 1985, p.13).

Após essa cerimônia, o sistema de radiodifusão seguiu funcionando por alguns dias, com a transmissão de óperas encenadas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. No entanto, como não havia um sistema de transmissão regular nem aparelhos receptores vendidos a preços acessíveis, o rádio deixou de funcionar poucos dias depois do fim da Exposição Internacional. A popularização do rádio no Brasil deve muito ao médico e antropólogo carioca Edgard Roquette-Pinto (1884-1954). Aos 22 anos, ele iniciou uma carreira de professor de Antropologia, Etnografia e Arqueologia do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Naquela época, começou a se dedicar à divulgação científica, por meio de livros, exposições e novas tecnologias, como o cinema e o rádio. Roquette-Pinto tornou-se um entusiasta da experiência radiofônica a partir da Exposição Internacional. Em 20 de abril de 1923, fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que iniciou suas transmissões

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regulares no dia 1º de maio daquele ano e é considerada a primeira emissora educativa do país. A programação era composta por música, notícias e diversos cursos – “aulas de silvicultura prática, lições de história natural, física, química, italiano, francês, inglês, português, geografia e até palestras seriadas” (RANGEL, 2010, p.13). O próprio Roquette-Pinto era quem apresentava o Jornal da Manhã. Ele criaria ainda a Rádio Escola Municipal do Rio de Janeiro, em 1934 e, em 1936, doou ao Governo Federal a Rádio Sociedade – ato que deu origem ao Serviço de Radiodifusão Educativa, do qual o próprio Roquette-Pinto seria diretor até 1943. Em 1946, a Prefeitura do Rio de Janeiro renomeou a rádio como Rádio Roquette-Pinto – sem o aval do próprio homenageado. O entusiasmo de Roquette-Pinto pelo meio rádio e o seu empreendedorismo no setor o transformaram em “patrono” desse meio no Brasil, um “título” informal que se deve a manifestações públicas feitas em diversas ocasiões ao longo de sua vida: O rádio é o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à escola; é o divertimento gratuito do pobre; é o animador de novas esperanças; o consolador dos enfermos; o guia dos sãos, desde que o realizem com espírito altruísta e elevado (OLIVEIRA & COSTA, 2012, p.10).

Além da notável dedicação e dos esforços de Roquette-Pinto, o envolvimento de outros empreendedores – como os empresários Paulo Machado de Carvalho, que adquiriu a Rádio Record de São Paulo em 1931, e Assis Chateaubriand, que inaugurou a Rádio Tupi do Rio de Janeiro em 1935 – contribuíram significativamente para a popularização do rádio no Brasil. O político gaúcho Getúlio Vargas identificou no novo meio uma ferramenta que poderia ser útil para disseminar seu estilo populista. Em 1930, Vargas era governador do quando disputou a presidência da República com o paulista Júlio Prestes. A chamada República Velha tinha sido marcada pela “política do café-com- leite”, em que paulistas e mineiros revezavam-se no poder central.3 Naquele ano, Prestes rompeu o acordo e decidiu candidatar-se à sucessão do também paulista Washington Luís. Aliado aos mineiros e a grupos nordestinos igualmente insatisfeitos com essa oligarquia, Getúlio disputou a eleição em março, mas foi derrotado por Prestes. Denúncias de fraudes na eleição e o assassinato do paraibano João Pessoa (candidato a vice-presidente na chapa de Vargas) provocaram uma crise institucional no país.

3 A expressão vem do café, que era produzido em São Paulo, e da tradição pecuária mineira que produzia leite e queijos.

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Washington Luís foi deposto e preso em 24 de outubro de 1930 pelos ministros militares, que empossaram Vargas na presidência no dia 3 de novembro. Em 1932, o governo de Vargas enfrentou a Revolução Constitucionalista, quando os governos de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e lideranças políticas da parte sul do Mato Grosso se rebelaram contra o poder central. As tropas constitucionalistas acabaram derrotadas, mas o movimento aumentou a pressão sobre o governo, que acabou por convocar uma Assembleia Constituinte. Em 1934, foi promulgada uma nova Constituição e Vargas foi eleito presidente (CPDOC, 1997b). A nova Constituição, “apesar de ser a mais liberal e progressista que (o país) jamais tivera, era ainda uma pérola do autoritarismo e do elitismo”, pois o voto excluía os analfabetos (que representavam cerca de dois terços da população), aumentou o poder de intervenção do Estado na política e na economia, e permitiu a nacionalização de empresas estrangeiras e a criação de monopólios nacionais (GONTIJO, 1996, p.19).

O populismo de Getúlio Vargas Uma das principais características do varguismo era a política populista, com a qual o mandatário se aproximava da população, principalmente das camadas mais pobres. A crise econômica decorrente da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, que descapitalizou a elite produtora de café no Brasil, gerou uma série de protestos de operários nas grandes cidades do país. Vargas teve a capacidade de incorporar ao seu discurso o apelo popular e conseguir elaborar um discurso político que fosse compreendido pela população insatisfeita. Não se tratava de uma mera questão semântica: o povo que protestava queria “comida, casa e trabalho, e não alimentação, moradia e emprego” – e, nesse sentido, o governo Vargas soube “compreender a importância da decodificação de um discurso elitista por outro de apelo popular”. (GONTIJO, 1996, p.18). No projeto populista de poder de Vargas, os meios de comunicação ganharam relevância. Dentre eles, o rádio foi escolhido como um dos alicerces de seu plano de integração nacional. A estratégia de Vargas era profissionalizar o setor, dando concessões de emissoras à iniciativa privada, e incentivando o desenvolvimento da indústria nacional para baratear o custo dos aparelhos receptores – antes importados. Para garantir a sobrevivência das emissoras privadas, Vargas assinou um decreto, em 1932, que autorizava a veiculação de anúncios comerciais no rádio. O objetivo do governo com essas medidas era fazer com que o meio se popularizasse rapidamente. Essa meta foi

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atingida: entre 1937 e 1942, o número de receptores cresceu de 357.921 para 659.762 (CAPELATO, 1999, p.176). Em julho de 1935, foi criado o programa Hora do Brasil, por sugestão de Lourival Fontes, então diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC).4 Embrião da atual Voz do Brasil, o programa tinha um papel estratégico nesse projeto de comunicação varguista. A missão do programa era ser o divulgador oficial dos atos do governo, principalmente dos discursos do presidente. Já o objetivo “extraoficial” da Hora do Brasil era transmitir “uma prestação de contas do governo ao povo, em que a narração pura e simples dos atos e iniciativas da autoridade se torna o melhor e mais convincente elogio do regime” (TOTA, 1987, p.37). O primeiro programa, com a abertura da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, foi transmitido dos estúdios da Rádio Guanabara, no Rio de Janeiro, e apresentado pelo locutor Luiz Jatobá. Nessa ocasião, entraram em cadeia oito emissoras (PEROSA, 1995, p.44).

A consciência de Vargas a respeito da importância do meio rádio ficou clara na mensagem que o presidente enviou ao Parlamento em 1° de maio de 1937, propondo que a União viabilizasse a instalação de receptores de rádio com alto-falantes instalados “mesmo nas pequenas aglomerações”, para dar condições que a população pudesse usufruir momentos de educação política e social, informes úteis aos seus negócios e toda sorte de notícias tendentes a entrelaçar os interesses diversos da Nação. A iniciativa mais se recomenda quando considerarmos o fato de não existir no Brasil imprensa de divulgação nacional. São diversas e distantes as zonas do interior e a maioria delas dispõe de imprensa própria, veiculando apenas as notícias de caráter regional (PEROSA, 1995, p.46).

A tendência autoritária de Vargas só seria conhecida a partir do golpe que daria origem à ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937. Mas a simpatia, ainda que velada, do governo com os regimes nazista da Alemanha e fascista da Itália começava a ser demonstrada no projeto de comunicação e de propaganda política oficial que estava sendo implantado. A própria criação da Hora do Brasil trazia essa inspiração: Lourival Fontes trouxe aquela filosofia de propaganda do Mussolini. Ele foi à Itália numa delegação de futebol, foi recebido por Mussolini e andou estudando tudo aquilo. Voltou de lá apaixonado pelo regime

4 O Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) foi criado pelo governo provisório no dia 10 de julho de 1934, às vésperas da promulgação da Constituição de 1934. O órgão substituiu o Departamento Oficial de Propaganda (DOP), criado logo após a Revolução de 1930. O DPDC se propunha a estudar a utilização do cinema, do rádio e de outros meios de comunicação de massa na propaganda governamental. Após o golpe que instituiu o Estado Novo, em 1937, o órgão foi sucedido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP (CPDOC, 1997b).

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fascista, principalmente em relação à propaganda (PEROSA, 1995, p.40).5

O Estado Novo e a obrigatoriedade da Hora do Brasil Com o golpe de Estado de novembro de 1937, Getúlio Vargas revogou a Constituição e teve início o período ditatorial do Estado Novo. Durante a ditadura Vargas, o governo ampliou a repressão policial aos opositores, implantou um rígido controle sobre a produção artística e submeteu à censura todos os meios de comunicação, pois os considerava estratégicos para a consolidação do regime e para o controle social (CARNEIRO, 1997, p.333). A Hora do Brasil foi então transformada em uma das principais ferramentas da ditadura Vargas para atingir seus objetivos de comunicação. E, em 1938, o programa passou a ter veiculação obrigatória por todas as emissoras do país. O Departamento de Propaganda e Difusão Cultural foi substituído pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável por difundir a ideologia do Estado Novo e a imagem do presidente, além de coordenar todo o programa oficial de radiodifusão e censura aos meios de comunicação e às produções artísticas. Lourival Fontes foi mantido na direção do DIP, e a produção da Hora do Brasil passou a ser de responsabilidade do novo órgão. Criado por um decreto presidencial em 27 de dezembro de 1939, o DIP nasceu com a finalidade de centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional interna ou externa e servir permanentemente como elemento auxiliar de informação dos ministérios e entidades públicas e privadas, na parte que interessa à propaganda nacional (TOTA, 1987, p. 34).

Entre as funções específicas do DIP, destacavam-se: c) fazer censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e esportivas de qualquer natureza, de radiodifusão, de literatura social e política, e da imprensa, quando a esta forem cominadas as penalidades previstas pela lei; (...) p) organizar e dirigir o programa de radiodifusão oficial do governo (PEROSA, 1995, p.40).6

5 Em 1935, Lourival Fontes defendeu a ideologia fascista em entrevista ao Diário da Noite: “O fascismo é um regime que caminha para o povo e que se antecipa e realiza, no campo das conquistas e da cooperação social, os imperativos mais avançados da dignificação, valorização e igualdade do trabalhador”. Além do diretor do DIP, outro integrante do primeiro escalão do Estado Novo assumidamente simpático aos regimes nazi-fascista era Filinto Muller, chefe da polícia política responsável pela repressão aos opositores (CPDOC, 1997b). 6 O interesse estratégico da ditadura Vargas no rádio pode ser medido pela censura prévia do DIP: somente em 1940, quando havia apenas 78 emissoras no país, a Divisão de Rádio do órgão analisou 3.770 programas e 1.615 quadros (ou sketches, na linguagem da época). Desses, foram proibidos 108 programas, sob a alegação de que eram “contrários às determinações legais”. Além disso, o órgão previamente analisou 483 peças de teatro e 2.416 gravações musicais (PEROSA, 1995, p.44).

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Mesmo que não assumidamente, o DIP trazia a inspiração dos modelos fascista e nazista de propaganda. Conforme esse modelo, o rádio passou a ter um papel fundamental na formação de uma opinião pública convergente com o regime, seguindo inspiração do próprio ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels: Com o rádio, destruímos o espírito de rebelião. O rádio deve ser propaganda. E propaganda significa combater em todos os campos de batalha do espírito, gerar, multiplicar, destruir, exterminar, construir e abater. A nossa propaganda é inspirada naquilo que chamamos raça, sangue e nação alemães (GIOVANNINI, 1987, p.185).7

Estilo semelhante foi adotado pelo DIP na comunicação de governo; conseguiu trabalhar a imagem de Vargas como um político ligado às massas, que governava defendendo os direitos da população mais carente. A despeito do contexto político vigente, no qual havia repressão aos adversários do regime e censura sobre os meios de comunicação, a propaganda oficial conseguiu consolidar entre a população a imagem de Vargas como o “pai dos pobres”. No Estado Novo, a propaganda política tinha características particulares: uso de insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras; simplificação das idéias para atingir as massas incultas; apelo emocional; repetições; promessas de benefícios materiais ao povo (emprego, aumento de salários, barateamento dos gêneros de primeira necessidade); promessas de unificação e fortalecimento nacional (CAPELATO, 1999, p.167).

Vargas foi o primeiro político brasileiro a usar a propaganda e os meios de comunicação como parte de um projeto de poder e peça de legitimação do regime. E foi também o primeiro político a identificar a importância política do rádio, usando-o, conforme Ortriwano (1985, p.17), dentro de um modelo autoritário. A propaganda política é estratégica para o exercício do poder em qualquer regime, mas naqueles de tendência totalitária ela adquire força muito maior porque o Estado, graças ao monopólio dos meios de comunicação, exerce censura rigorosa sobre o conjunto das informações e as manipula. O poder político, nesses casos, conjuga o monopólio da força física e da força simbólica. Tenta suprimir, dos imaginários sociais, toda representação do passado, presente e futuro coletivos que seja distinta daquela que atesta a sua legitimidade e cauciona seu controle sobre o conjunto da vida coletiva (CAPELATO, 1999, p.169).

Na Alemanha nazista, a propaganda era vista não só como instrumento de persuasão em torno dos objetivos do regime, mas era usada como uma verdadeira

7 Joseph Goebbels (1887-1945), ministro da Propaganda de Hitler, foi o principal idealizador do programa de comunicação do regime nazista.

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ferramenta de “hipnose” coletiva das multidões, com o objetivo de “submeter a população, preparar as massas para as grandes tarefas nacionais e favorecer uma revolução espiritual e cultural”. Capelato destaca que o próprio Hitler e o seu ministro Goebbels destacavam a importância da propaganda e os objetivos dela esperados: Segundo os preceitos de Hitler expressos em Mein Kampf:8 “A arte da propaganda consiste em ser capaz de despertar a imaginação pública fazendo apelo aos sentimentos, encontrando fórmulas psicologicamente apropriadas que chamam a atenção das massas e tocam os corações”. Goebbels também expôs o que se deveria esperar da propaganda: “(...) é boa a propaganda que leva ao sucesso (...). Esta não deve ser correta, doce, prudente ou honorável (...) porque o que importa não é que uma propaganda impressione bem, mas que ela dê os resultados esperados” (CAPELATO, 1999, p.168).

Na ditadura Vargas, nem todos os ideólogos ou adeptos do Estado Novo se assumiam simpatizantes do nazi-fascismo. Mas os integrantes do governo buscaram inspiração no regime alemão para desenvolver o projeto de comunicação varguista – e aperfeiçoar-se na arte de, usando mensagens políticas, “envolver” as multidões em torno de um governo totalitário que se mantinha no poder por meio da força. Nesse tipo de discurso, o significado das palavras importa pouco, pois, como declarou Goebbels, “não falamos para dizer alguma coisa, mas para obter um determinado efeito”. No Estado Novo, o efeito visado era a conquista do apoio necessário à legitimação do novo poder, oriundo de um golpe (CAPELATO, 1999, p.172).

A repressão política e a censura aos meios de comunicação sufocavam a oposição ao regime e permitiram que a propaganda oficial do Estado Novo alcançasse um nível de produção e organização até então sem precedentes no país. Inspirados pelo exemplo alemão, os responsáveis pela comunicação varguista transformaram a Hora do Brasil num dos principais veículos de divulgação do governo e, principalmente, do presidente: Os discursos de Vargas, proferidos em inaugurações, comemorações e visitas, assim como o de seus ministros e assessores, forneciam o conteúdo básico da propaganda. Havia controle direto sobre os veículos de comunicação: jornais, rádios, cinema. A partir de 1940, 420 jornais e 346 revistas não conseguiram registro no DIP. Os que insistiram em manter sua independência ou se atreveram a fazer críticas ao governo tiveram sua licença cassada (CAPELATO, 1999, p.173).9

8 Mein Kampf, ou “Minha Luta”, em tradução livre, é o título do livro de Adolf Hitler que resume as suas ideias em relação ao antissemitismo e ao nacional-socialismo, também conhecido como a “bíblia nazista”. Escrito em dois volumes – o primeiro produzido quando Hitler esteve na prisão, antes de assumir o poder, e o segundo escrito fora da prisão e editado em 1926. 9 O jornal O Estado de S.Paulo foi um dos alvos da ditadura varguista. Em março de 1940, policiais invadiram a sede do jornal e alegaram ter encontrado armas sobre o forro do prédio, que serviriam a uma

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O fim da ditadura Vargas e a Voz do Brasil O processo de desarticulação do Estado Novo começou em 1942, com o envolvimento oficial do Brasil na II Guerra Mundial. O rompimento com a Alemanha nazista e a aliança com os países aliados contribuíram para o enfraquecimento do regime ditatorial. “Como justificar a manutenção da ditadura, se soldados brasileiros lutavam na Europa em prol da democracia?” (PANDOLFI, 1999, p.11). O DIP também teve seu poder reduzido em decorrência do alinhamento do governo federal contra os países do Eixo. Em 1942, o diretor do órgão, Lourival Fontes, e outros ministros de Vargas mais simpáticos às ditaduras alemã e italiana foram exonerados diante de pressões dos movimentos antifascistas. A derrota alemã e o fim da II Guerra Mundial, em 8 de maio de 1945, foram determinantes para o fim do Estado Novo no Brasil. Getúlio Vargas foi deposto pelo Exército no dia 29 de outubro de 1945, e exilado em sua cidade natal, São Borja (RS). Com a deposição de Vargas em 1945, o DIP foi cercado pela polícia do Exército e os funcionários foram presos. O redator Américo Luiz da Silva, da Hora do Brasil, redigiu o noticiário de deposição sob a mira do capitão Pitalunga. Outro redator, Manoel Antunes Macieira, praticamente decretou o desaparecimento da memória do DIP. Nervoso, segundo depoimento do jornalista Henrique Brandenburguer – redator do Departamento desde 1941 –, ele pôs fogo em preciosos documentos do órgão (PEROSA, 1995, p.55).

Em 2 de dezembro daquele ano, foram realizadas eleições presidenciais e o marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito pela coligação PSD-PTB. Dutra tomou posse em 31 de janeiro de 1946, mas como ainda estava em vigor a Constituição de 1937 (promulgada por Vargas no início do Estado Novo), foi convocada uma Constituinte para elaborar uma nova Carta. Os constituintes elegeram o político catarinense Nereu Ramos como vice-presidente (pois a Carta varguista não previa esse cargo). Com o clima de redemocratização no país, o presidente Dutra passou a ser pressionado por empresários do setor de radiodifusão para acabar com a Hora do Brasil, pois o programa era visto como uma obsoleta herança fascista do Estado Novo. Dutra, que havia sido ministro da Guerra durante nove anos do governo Vargas

reedição da revolução de 1932. Durante 5 anos, o jornal esteve sob intervenção, só retornando ao controle da família Mesquita em dezembro de 1945, após a queda de Vargas.

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– e que, portanto, também havia se beneficiado da propaganda oficial feita pela Hora do Brasil, concordou em princípio com a ideia, para logo abandoná-la ante os argumentos dos setores político-partidários que viram no programa um importante meio de propaganda em favor do próprio governo. Receando desagradar os opositores da Hora do Brasil, Dutra admitiu fazer mudanças no programa que refletissem a fase democrática experimentada pelo país naquele momento (PEROSA, 1995, p.57).

As principais mudanças foram a alteração de nome do programa para Voz do Brasil, a ampliação do número de apresentadores para três e a designação de 10 minutos do programa para notícias do Poder Legislativo.10 No entanto, o programa manteve, durante o mandato de Dutra, as mesmas características de veículo porta-voz do governo. Apesar de abrir espaço para a cobertura da Assembleia Constituinte – desde a sua instalação, em 1945, até a promulgação da nova Constituição, em 18 de setembro de 1946, inclusive dando voz a parlamentares comunistas11 –, o programa seguiu a linha ideológica do novo presidente. Eleito pelas mesmas forças políticas que apoiavam Vargas (os partidos PSD e PTB), e pelos militares que haviam derrubado a ditadura do Estado Novo, Dutra tinha algumas diferenças em relação a seu antecessor, principalmente em relação às ideias nacionalistas e à participação política dos trabalhadores. O presidente Dutra era mais influenciado por empresários; abriu a economia para o capital estrangeiro e reduziu a força das estatais. No seu governo, foi criada a Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, que se tornaria um importante centro de formação político-militar anticomunista. Também, durante seu governo, o Partido Comunista voltou à ilegalidade (em 1947), e seus parlamentares tiveram os mandatos cassados – entre eles os 15 deputados federais –, foi dissolvida a Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB) e foram rompidas as relações diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Segundo Lilian Perosa (1995, p.60), todos esses episódios foram narrados “sob o ponto de vista oficial” pela Voz do Brasil. Além da cobertura alinhada aos interesses do governo, o programa ignorou as inovações adotadas naquela época no meio radiofônico – especialmente por emissoras comerciais em programas como o Repórter Esso, da Rádio Nacional

10 O horário destinado a notícias do Congresso Nacional na Voz do Brasil decorria da aprovação de um projeto de lei de autoria do deputado Angelo Mendes de Moraes. 11 Eleitos pelo Partido Comunista Brasileiro, que havia estado na ilegalidade até 1945.

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(lançado em 1941), e o Grande Jornal Falado Tupi, da Rádio Tupi (lançado em 1942), que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem jornalística radiofônica, que deixou de ser “apenas a leitura no microfone das notícias dos jornais impressos” (ORTRIWANO, 1985, p.21). Já a Voz do Brasil manteve o estilo formal, com uma leitura linear e monótona de “textos densos, muitas vezes ininteligíveis ao ouvinte comum” (PEROSA, 1995, p.63). O conteúdo do programa era composto, principalmente de decretos governamentais e discursos do presidente e dos ministros. Também foi mantida, no governo Dutra, a obrigatoriedade de transmissão por todas as emissoras do país. Essa obrigatoriedade da transmissão persiste até hoje e é alvo de uma campanha por parte de entidades do setor, iniciada em 1995.12 Em outubro de 1950, Getúlio Vargas foi novamente eleito presidente pela coligação “Aliança das Forças Populistas”, com a qual retomou a política de reaproximação com as massas e assumiu bandeiras nacionalistas como a do “Petróleo é Nosso”. A Voz do Brasil novamente desempenhou um papel importante nesse propósito do presidente, que enfrentaria um novo contexto político, principalmente com uma cobrança maior por parte do Parlamento e da imprensa. Além da Voz do Brasil, Vargas contava com um único grande aliado na imprensa, o jornalista Samuel Wainer (1910-1980), proprietário do jornal Última Hora.13 Nesse contexto, os conteúdos veiculados pela Voz do Brasil priorizaram nomes em detrimento dos fatos. Explicável, portanto, que episódios como a criação da Petrobrás (1953), e a revisão do salário mínimo, no mesmo ano, foram sempre abordados como dádivas do governo ou, melhor dizendo, de Getúlio Vargas. O

12 A campanha foi iniciada pela Rádio Eldorado, vinculada ao Grupo Estado, e teve a adesão de 850 emissoras e entidades como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Os empresários do setor alegavam que a Voz do Brasil era um resquício do regime autoritário e que o noticiário oficial dos Poderes da República não atraía o interesse dos ouvintes, principalmente nos grandes centros urbanos. Argumentavam também que a obrigatoriedade limita a liberdade de prestar serviços aos ouvintes, dar notícias e cobrir eventos esportivos. O fim da obrigatoriedade segue sendo um pleito do setor, embora algumas emissoras retransmitam o programa em horários alternativos, amparadas por liminares judiciais. Atualmente, tramitam no Congresso o Projeto de Lei nº 595/2003 e a Medida Provisória 648/2014, que não propõem o fim da obrigatoriedade, mas “flexibilizam” o horário de transmissão do programa. 13 O jornal Última Hora foi lançado em 1951, com o apoio de Getúlio Vargas, que viabilizou um empréstimo do Banco do Brasil ao jornalista Samuel Wainer, um ex-repórter dos Diários Associados. O jornal nasceu com o objetivo de ser um veículo de defesa do governo Vargas. A despeito disso, o veículo desenvolveu um estilo editorial revolucionário para a época, com o uso de fotos e títulos em linguagem informal, o que o transformou num sucesso de público. No entanto, o posicionamento político da Última Hora e a ligação de Wainer com Vargas fizeram com que o jornalista passasse a ser alvo de denúncias da oposição. Carlos Lacerda acusava o jornalista (filho de uma família de judeus da Bessarábia, atual Ucrânia) de ter emigrado para o Brasil criança – o que feria a legislação brasileira, que não permitia que estrangeiros fossem proprietários de veículos de imprensa. Wainer foi investigado por uma CPI no Congresso Nacional, o que contribuiu para agravar a crise política do segundo governo Vargas (WAINER, 1988).

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mesmo ocorreu no horário do Legislativo, em que a própria estrutura do programa, voltada principalmente para a divulgação dos discursos da tribuna, favoreceu intensamente o personalismo político. Não foram poucas as vezes que, nesse espaço, o principal adversário político de Vargas, Carlos Lacerda, importante líder da UDN, do Rio de Janeiro, realizou mordazes e agressivos ataques ao projeto nacional-desenvolvimentista do presidente (PEROSA, 1995, p.65).

As condições políticas e a conjuntura econômica minaram o projeto de Vargas. A inflação era crescente, o que corroía o poder de compra dos salários e comprometia a eficácia dos programas sociais do governo. Parte da imprensa fazia forte oposição, buscando escândalos no governo que pudessem ser denunciados. Na imprensa, os principais opositores de Vargas eram os Diários Associados, de Assis Chateaubriand (1892-1968), o Correio da Manhã, de Paulo Bittencourt (1895-1963), e a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda (1914-1977).14 No dia 5 de agosto de 1954, Lacerda sofreu um atentado na Rua Tonelero, no Rio de Janeiro, no qual morreu o major Rubens Florentino Vaz, que fazia a segurança pessoal do jornalista e deputado federal. Um dos envolvidos no atentado era o gaúcho Climério Euribes, integrante da guarda pessoal do presidente, compadre do chefe da guarda Gregório Fortunato (um homem de confiança de Vargas) e afilhado de Lutero Vargas, filho do presidente que era deputado federal. A exploração do atentado pela oposição e pela imprensa gerou uma crise política para o governo: foi instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar o caso, para garantir que não houvesse interferência do governo. Suspeito de estar envolvido, o filho do presidente prestou depoimento ao IPM em 13 de agosto, depois gravou um depoimento com sua defesa para a Rádio Nacional. No texto, que foi revisado pelo ministro da Justiça, Tancredo Neves, Lutero Vargas dizia que era vítima de uma trama engendrada por “maus brasileiros, trabalhados por ódios pessoais mesquinhos” e jurava não ter direta ou indiretamente nenhuma responsabilidade, “por ação ou omissão” no atentado ETO(N , 2014, p.320).15 Naquele mesmo dia, conforme Perosa (1995, p.66), a Voz do Brasil reproduziu o discurso de Lutero Vargas. Ao veicular a fala de um personagem da política com mandato legislativo, mas que não possuía nenhum vínculo institucional com o

14 À exceção do jornal Última Hora, os principais órgãos de imprensa faziam oposição a Vargas. Mesmo projetos desenvolvimentistas como a criação da Petrobrás e do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (atual BNDES), a ampliação da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (RJ) e a proposta de criação do sistema brasileiro de eletrificação, a futura Eletrobrás, sofreram ataques da imprensa. Quando da assinatura do decreto presidencial que criou a Petrobrás, em 1953, apenas o jornal de Samuel Wainer destacou a notícia na primeira página; os outros veículos criticaram a iniciativa de Vargas em seus editoriais. Assis Chateaubriand definiu o projeto como um “capricho caro” do presidente e o Correio da Manhã, como “aventura de nacionalistas rasteiros” (NETO, 2014, p.265). 15 Lutero Vargas acabou não sendo indiciado no Inquérito Policial Militar que apurou o atentado. Em outubro de 1954, reelegeu-se deputado federal com 120 mil votos.

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governo federal (a não ser o fato de ser filho do presidente), o programa prestou-se à defesa incondicional do governo – mesmo diante das evidências que apontavam o envolvimento de correligionários de Vargas no atentado. A crise política causada pelo atentado na Rua Tonelero culminou com o suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954. A carta-testamento deixada pelo presidente foi lida na íntegra pelo locutor da Voz do Brasil. Tal qual ocorrera com o presidente Dutra após o fim do Estado Novo, logo que o vice-presidente Café Filho assumiu o cargo, ainda sob um clima de grande comoção nacional com o suicídio de Vargas, o novo mandatário passou a ser pressionado pelos empresários do setor de radiodifusão para extinguir a Voz do Brasil. Cedendo às pressões, ele baixou um decreto extinguindo o programa oficial. A Agência Nacional distribuiu a notícia aos órgãos de divulgação. No entanto, foi necessário recolher essa notícia das redações dos jornais e emissoras de rádio e televisão; pois Café Filho precisou fazer um pronunciamento à Nação e só lhe foi possível, nesse período, através da Voz do Brasil (PEROSA, 1995, p.68).

O ocaso do populismo: JK, Jânio e Jango Café Filho foi substituído pelo mineiro (1956-1960). No governo JK, a Voz do Brasil tornou-se instrumento de divulgação do “Plano de Metas” e da proposta de crescer “50 anos em 5”. O político mineiro também tinha um estilo populista (tanto que era chamado de presidente “bossa nova”), mas preferiu substituir o nacionalismo característico da era Vargas pelo “desenvolvimentismo”. Nesse sentido, além de implementar a indústria automobilística nacional (entre outras), o governo teve como principal legado a construção da nova Capital Federal, Brasília, “inaugurada” em abril de 1960. JK usou a Voz do Brasil para fazer um “afago” ao povo carioca na despedida do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro: À tranquilidade de consciência pelo dever cumprido se reúne a tristeza do adeus a esta encantadora cidade do Rio de Janeiro, que, com inexcedível generosidade, hospedou o Governo durante quase dois séculos. (...) Estou certo de que, embora de longe, o magnetismo da vossa cidade continuará a imprimir caráter particular a decisões fundamentais para os rumos do Brasil e que os vossos centros de cultura prosseguirão jorrando a luz que dirige a marcha do Brasil para o seu grande destino.16

Em 1960, o governador de São Paulo, Jânio Quadros, foi eleito com uma votação recorde (quase seis milhões de votos) para suceder JK. Também com estilo

16 Discurso de JK trasmitido pela Voz do Brasil em 19 de abril de 1960. In Biblioteca da Presidência da República. Disponível em . Acesso em 12 fev 2015.

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populista, Jânio tinha como principal “bandeira” o combate à corrupção (o símbolo de sua campanha era uma vassoura usada, metaforicamente, para varrer a corrupção), Jânio teve uma carreira política meteórica, iniciada como vereador na cidade de São Paulo até chegar a presidente.17 Com uma grande habilidade para usar recursos publicitários em suas campanhas políticas, como presidente, Jânio aproveitou-se da Voz do Brasil e inculcou- lhe o mesmo “estilo autoritário, moralista e extremamente personificado”, um “populismo de direita, militarista, antiparlamentar”, conforme Maria Victoria Benevides. O presidente “virava” notícia graças a medidas polêmicas ou decretos às vezes insólitos, que eram utilizados como recursos publicitários: eram “decisões pessoais do presidente da República para questões disparatadas e insólitas, obviamente deslocadas da órbita governamental” (BENEVIDES, 1981, p.24). Todas essas medidas eram noticiadas pela Voz do Brasil. Entre as decisões polêmicas de Jânio, estavam a proibição do funcionamento de jóqueis clubes nos dias úteis, o banimento das brigas de galo, do uso de lança-perfume nos bailes de Carnaval e também a proibição de maiôs “cavados” nos concursos de beleza. Apesar de sua orientação política à direita, Jânio condecorou, em agosto de 1961, Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul. Na Voz do Brasil, o presidente era retratado como uma espécie de “salvador da pátria”: Imerso nessa cadeia ideológica provinciana, o programa oficial, embora altamente centralizado, ficou fragmentado em pequenas ordens, proibições, reclamações ou simples avisos, carregados de uma aura onipresente de quem se apresentou, sem o menor pudor, como o messias após o caos (PEROSA, 1995, p.76).

Seis meses após tomar posse, Jânio renunciou ao mandato, e o vice- presidente, João Goulart, assumiu o posto somente após a instituição do regime parlamentarista pelo Congresso Nacional. Mesmo com poderes limitados, Jango, como era popularmente conhecido, seguiu com um plano de reformas de base, que propunha transformações nos sistemas agrário, financeiro, eleitoral etc. Em 1962, foi aprovado pelo Congresso Nacional o Código Brasileiro das Telecomunicações, que provocou mudanças no formato da Voz do Brasil. O decreto que regulamentou o Código, assinado por Jango em 1963, determinava que o

17 Jânio Quadros foi eleito suplente de vereador aos 30 anos e assumiu uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo em 1948, após a cassação dos mandatos dos políticos do Partido Comunista Brasileiro, por determinação do presidente Dutra. Em 1951, foi eleito deputado estadual com a maior votação da época, depois prefeito de São Paulo (1953), governador (1955) e presidente (1960).

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programa tivesse 30 minutos reservados ao Poder Executivo e Judiciário e os outros 30 minutos à Câmara e ao Senado.18 Mais uma vez a Voz do Brasil foi usada como veículo oficial de divulgação das propostas do presidente. Em meio a uma crise política e institucional, decorrentes da reação contrária de setores mais conservadores às reformas propostas por Jango, em 13 de março de 1964, ocorreu um grande comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e pela Assessoria Sindical da Presidência. O objetivo de Jango era pressionar o Congresso a votar as reformas de base, e o comício teve ampla cobertura jornalística da Voz do Brasil. No entanto, o episódio despertou o receio dos militares – e de parcelas de civis mais à direita – quanto a uma possível radicalização do governo à esquerda. Em 31 de março, o governo Jango foi deposto por um golpe e teve início o período da ditadura militar.19 Na edição do dia 1º de abril de 1964, a Voz do Brasil mudou a orientação e abandonou a defesa das reformas sociais. O programa anunciou, de forma solene, a “revolução” (a palavra “golpe” seria prudentemente evitada nos 21 anos seguintes) e destacou que o objetivo do movimento dos militares era deter a “ameaça comunista” que pairava sobre o Brasil e garantir o retorno do país à “normalidade democrática” (CASTRO, 2010). O programa oficial entraria num longo período de controle absoluto de seu conteúdo pelos militares no poder.

O regime militar e uma nova herança autoritária O regime militar começou com uma junta composta pelos chefes das três armas, que editaram o primeiro Ato Institucional da ditadura (AI-1) em 9 de abril de 1964. O texto justificava o golpe como sendo uma “revolução”: É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros

18 Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963. Disponível em . Acesso em 21/07/2014. 19 O golpe militar foi deflagrado na madrugada do dia 31 de março de 1964. No dia seguinte, sem apoio da parcela de oficiais militares “legalistas”, que permitiria uma resistência militar ao golpe, e dos movimentos sindicais, que dariam apoio popular e político à resistência, o presidente João Goulart viajou para Porto Alegre, e em seguida exilou-se no Uruguai.

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movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.20

Apesar de o AI-1 ter adotado medidas autoritárias – como instituir a eleição indireta para presidente e dar poderes aos militares para cassar mandatos de políticos e exonerar funcionários públicos “desde que tenham atentado contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração pública” – foi no governo seguinte, do general Castello Branco (1964-1967), que foram adotadas as medidas que endureceram o regime. O Ato Institucional nº 2 fechou o Congresso após as eleições de outubro de 1965 e implantou o bipartidarismo; dissolveu organizações sindicais como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), as ligas camponesas e a União Nacional dos Estudantes (UNE); e decretou a Lei de Imprensa, que visava controlar o fluxo de informação nos veículos, assim como regular o trabalho dos jornalistas profissionais. Nesse contexto, a Voz do Brasil teve reforçada sua “vocação” de porta-voz oficial. Já no governo Costa e Silva (1967-1969), a preocupação com a legitimidade do poder central levou à criação da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP)21. Entre outros objetivos, o órgão deveria “captar os interesses e as aspirações” e “auscultar os anseios nacionais” e, com base neles, sugerir as ações governamentais; realizar campanhas educacionais para fortalecer o caráter nacional; trabalhar em prol da “criação de um sentimento de aglutinação nacional”; e contribuir para o “incremento de uma sadia mentalidade de segurança nacional”, entre outros (CAPARELLI, 1986, p.34). Apesar de criada no fim do governo Costa e Silva, a AERP entrou, efetivamente, em operação e ganhou força no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Assim que assumiu a presidência, Médici incluiu a comunicação entre as “principais diretrizes” de seu governo, apresentadas em reunião ministerial no dia 6 de janeiro de 1970. Determinava o general-presidente: Objetivando informar a opinião pública, motivar a vontade coletiva para o esforço nacional de desenvolvimento e contribuir para o prestígio internacional do Brasil, será estabelecido um Sistema de Comunicação Social, com base na atuação dos órgãos do Poder Executivo. Princípios de verdade, legitimidade, integração de esforços, eficiência e impessoalidade regerão a comunicação social do governo. O órgão de direção central do sistema será a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP). Integrar- se-ão ao sistema os órgãos de relações públicas dos ministérios e do

20 Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Disponível em . Acesso em 12/02/2015. 21 A AERP foi criada pelo Decreto n° 62.119, de 15 de janeiro de 1968, sendo vinculada ao Gabinete da Casa Militar da Presidência.

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Estado-Maior das Forças Armadas, bem como órgãos similares da administração indireta (MOREIRA, 1998, p.75)

Considerado de linha dura, o governo Médici foi marcado pela violenta repressão aos opositores, pela censura aos meios de comunicação e pela tortura adotada nos órgãos de segurança. A AERP passou a ter papel estratégico na criação de uma imagem positiva do presidente junto à população, que o distinguisse da “realidade” autoritária e repressiva do governo. Para tal propósito, foram colocadas em prática algumas das conclusões do I Seminário de Relações Públicas do Poder Executivo, realizado no final de 1968, ainda no governo Costa e Silva, que visavam humanizar a imagem do presidente, trabalhando uma “propaganda ideológica para que as pessoas se encontrassem na figura de seu governante” (NAVES, 2012, p.2). A AERP transformou-se, assim, no principal instrumento de promoção institucional da imagem do governo e especialmente do presidente Médici, a partir do aproveitamento integral da figura do presidente, no seu aspecto humano, moderado e compreensivo, para caracterizar toda a campanha orientada no sentido da valorização do homem, a única suscetível de criar uma imagem efetiva e imediata do governo (CHAPARRO, 2011, p.43).

Com este mandato, a AERP produziu e difundiu os slogans ufanistas que marcaram essa fase do regime militar, como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Ninguém segura este país”. O tricampeonato de futebol conquistado pela Seleção Brasileira em 1970 também foi usado pela AERP para trabalhar a imagem do presidente – que apreciava o futebol – e que explica, em parte, a popularidade do general Médici, a despeito da tortura e da guerrilha que ocorriam no país naquele período. Como tinha mandato para negociar as verbas de propaganda oficial com os veículos privados, a AERP tornou-se o órgão mais forte da comunicação oficial, gerenciando um orçamento generoso. Essa verba foi usada pelo coronel Otávio Costa, chefe da AERP no governo Médici, para tentar evitar a comparação da agência com o DIP da era Vargas, criando uma nova modalidade de propaganda política no Brasil, que se amparava nos modernos recursos oferecidos pelos meios de comunicação de massa e que absorvia e recriava padrões de comportamento, crenças, instituições e outros valores espirituais e materiais tidos como conformadores da sociedade brasileira. Um tipo de propaganda que subsistiria por muito tempo (FICO, 1997, p.50).

A propaganda oficial trabalhava a ideia de desenvolvimento, de “milagre econômico” e tendia a despolitizar a comunicação.

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A AERP tinha como principal foco a despretensão política em suas propagandas. Abusava de sentimentalismo como o amor e a solidariedade e não fazia referências políticas. Isso para que a “massa”, que os militares consideravam despreparada para o voto, se contentasse com os rumos que o país estava tomando. Para eles, não era um povo de vontade coletiva. Essas propagandas educativas situavam os governantes em uma “autoridade moral”, que era o que mantinha o seu status quo. A ideia era de uma democracia camuflada pelo “milagre econômico”, dessa forma, a justificativa seria a de que, para existir um desenvolvimento, se fazia necessária a presença de um governo forte: o militarismo (NAVES, 2012, p.2).

No governo Médici, a TV se tornou o principal canal de veiculação das propagandas do governo, devido à grande penetração que o meio ganhara desde meados dos anos 60, o que se explica pelo aumento das concessões feitas à inicitiva privada.22 A propaganda oficial mostrava grandes projetos de integração nacional, como a hidrelétrica de Itaipu, a rodovia Transamazônica e Ferrovia do Aço, que contribuíam para construir, nas propagandas exibidas pela televisão, a imagem de um Brasil grande. Apesar do foco na TV, o rádio manteve-se como peça importante para a propaganda governamental, devido à sua capilaridade, principalmente no interior do país. A propaganda oficial era veiculada tanto em horários gratuitos requisitados da programação das emissoras de rádio e TV, quanto pela Agência Nacional, que distribuía as “notícias” do governo para as emissoras e as veiculava na Voz do Brasil (que na época era um programa vinculado à Agência).23 Embora não fosse responsável pela produção da Voz do Brasil, a AERP se preocupava com a audiência do programa oficial. Uma pesquisa de opinião encomendada pelo órgão, em 1971, apontou que apenas 8% dos brasileiros ouviam frequentemente a Voz do Brasil, enquanto 51% nunca a tinham ouvido e 41% só raramente. A pesquisa limitou-se às zonas rurais do país, onde o governo supunha que a penetração do programa fosse maior (PEROSA, 1995, p.95). Nenhuma grande transformação estrutural ocorreu no conteúdo da Voz do Brasil durante o governo Médici; houve apenas a substituição da ópera O Guarani, na vinheta de abertura, pelo Hino da Independência, tocado em tom solene, e a adoção da frase de abertura “Em Brasília, dezenove horas”.

22 Durante os primeiros 14 anos de existência da TV no Brasil (1950-1964), foram concedidas à exploração da iniciativa privada 33 canais; nos 14 anos seguintes (1964-1979), quando o país vivia sob o regime militar, o número de concessões foi de 112 (CAPARELLI, 1986, p.23). 23 Depois de 20 anos subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, a Agência Nacional foi transferida para o Gabinete Civil da Presidência, em fevereiro de 1967, por meio de decreto de Castello Branco. Esse decreto determinou também a criação dos setores de Redação, Estúdio e Televisão, o que fez com que a Agência Nacional assumisse o papel de principal órgão distribuidor das informações oficiais.

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Quando assumiu a presidência, o general Ernesto Geisel (1974-1979) enfrentou um período de desgaste do regime em razão da crise econômica – que esvaziava o discurso do “milagre econômico” usado por Médici. Sob a influência do ministro-chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva, o governo Geisel deu início a um lento processo de abertura política, que se arrastaria por todo o seu governo. Convocado para assumir a AERP, o coronel José Maria de Toledo Camargo passou a usar o rádio com maior frequência para a propaganda oficial, com o objetivo de atingir os lugares mais remotos do país. Na campanha “Este é um país que vai pra frente”, os conteúdos eram renovados a cada 15 dias e, “somente na etapa inicial dessa campanha, cinco mil discos foram distribuídos para 800 estações de rádio e cerca de três mil serviços de alto-falante” (MOREIRA, 1998, p.77). A Voz do Brasil, especificamente, prestava-se ao projeto de abertura engendrado pelo general Golbery. Esse projeto previa uma distensão política “lenta, gradual e segura”. Na data simbólica de 31 de março de 1974 (décimo aniversário do golpe militar), o programa transmitiu a íntegra de um discurso de Geisel sobre as bases do projeto de abertura, no qual o general-presidente assumia que almejava “uma democracia que nos propicie a paz interna, a justiça social e o fortalecimento da segurança nacional” (PEROSA, 1995, p.117). A segurança nacional à qual se referia o presidente passava por uma reorganização do sistema radiofônico brasileiro, com a distribuição de novas concessões de emissoras em frequência modulada (FM), até então usada apenas experimentalmente no país. O Plano Básico de Canais FM, lançado pelo Ministério das Comunicações em 1975, concedeu incentivos à indústria para fabricar receptores com a “nova” faixa de FM, que possuía melhor qualidade sonora e, portanto, era mais adequada à programação musical que ao jornalismo. O projeto pretendia ainda fazer com que o Brasil tivesse mais de mil emissoras em FM no final da década de 70.24 Em 15 de dezembro de 1975, o presidente Geisel sancionou a lei que criou a Empresa Brasileira de Radiodifusão, Radiobrás. Com sede em Brasília, a estatal passou a ser responsável pela produção da Voz do Brasil e pela gestão de todas as emissoras de rádio e TV pertencentes ao governo federal. A centralização do comando dos veículos

24 A distribuição das emissoras em FM à iniciativa privada foi inspirada no “estilo de ocupação militar”. “Seguindo um planejamento anual, o Ministério das Comunicações selecionava, em cada região, primeiro as cidades com mais de 500 mil habitantes, depois aquelas com 300 mil, 200 mil etc., para distribuir os canais de radiodifusão” (MOREIRA, 1998, p.79).

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oficiais de comunicação em Brasília também estava alinhada à doutrina de segurança nacional. A lei que criou a estatal determinava que as emissoras da Radiobrás deverão operar dentro de elevados padrões técnicos e propiciar a cobertura necessária para atender sobretudo as regiões de baixa densidade demográfica e reduzido interesse comercial, e as localidades julgadas estrategicamente importantes para a integração nacional.25

Apesar de anunciar a integração nacional como um de seus principais objetivos, a Radiobrás e, especificamente, a Voz do Brasil prestaram-se ao papel de veículos chapa-branca, conforme o jargão jornalístico.26 Além disso, o fato de a estatal concentrar seus funcionários na Capital Federal fez com que a empresa se tornasse um “cabide” de empregos para correligionários dos detentores do poder. Segundo Bucci, essa característica atravessou o período militar e sobreviveu nos governos civis que o sucederam. Criada pela ditadura militar em 1976, (...) sua função propagandística sobreviveu à ditadura, invadindo sem cerimônia o período precariamente democrático que se seguiu a 1985. Fixou-se, desde então, o costume de que o partido do governo, qualquer que fosse ele, poderia aparelhar a Radiobrás (BUCCI, 2008, p.26).

Pressionado por setores da sociedade civil que pediam a abertura política – em protesto contra episódios como o assassinato, em 1975, do jornalista Wladimir Herzog no DOI- Codi paulista –, o governo Geisel usou novamente a Voz do Brasil para anunciar a promulgação da Emenda Constitucional nº 11, em 13 de outubro de 1978, que revogava todos os Atos Institucionais que ferissem a Constituição Federal – o que na prática permitiu a volta de exilados ao país, o livre exercício dos direitos políticos e a redemocratização política. No último governo militar, comandado pelo general João Baptista Figueiredo (1979-1985), já em meio ao processo de “abertura”, foi criada a Secretaria de Comunicação Social (Secom) – e a Agência Nacional transformou-se na Empresa Brasileira de Notícias (EBN). A Secom passou a ser responsável pela unificação do sistema de comunicação do governo e, principalmente, de suas verbas. A nova estrutura e essa estratégia de comunicação do governo foram documentadas nas Diretrizes Setoriais do Presidente João Figueiredo para a Secom, que previam que o programa Voz do Brasil seria “reformulado, para dar-lhe mais vitalidade e melhores condições de audiência”. No entanto, a Secom teve vida curta e foi extinta em abril de 1981. A Radiobrás passou a ser

25 Lei nº 6.301/75, parágrafo 1º, artigo 1º. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ L6301.htm>. Acesso em 12 fev 2015. 26 Expressão que define veículos de comunicação alinhados aos interesses dos governos, uma metáfora que faz referência à frota oficial de automóveis, que é emplacada com chapas de cor distinta dos particulares.

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vinculada ao Ministério das Comunicações, enquanto a EBN (e a Voz do Brasil) respondia ao Ministério da Justiça. Sob essa nova estrutura, o programa tentou assumir características de um radiojornalismo mais dinâmico, ao estilo das emissoras privadas. Para tanto, foram introduzidas vinhetas (pequenas ilustrações musicais intranoticiário), a participação direta do repórter na apresentação da notícia e gravações de entrevistas ou depoimentos com membros do governo. Além disso, a apresentação do noticiário ficou atribuída a dois locutores, um homem e uma mulher, para suprimir o tom linear de uma única locução masculina (PEROSA, 1995, p.126).

Essas “inovações”, no entanto, estavam limitadas pelo que Lilian Perosa (1995, p.126) define como “limitações históricas e burocráticas” do programa, a principal delas ligada ao fato de sua equipe de produção ser formada, predominantemente, por jornalistas e por profissionais de outras áreas sem o domínio da linguagem radiofônica. O ministro da Justiça, Ibrahim Abi Ackel, anunciou em discurso na própria Voz do Brasil os princípios da “nova” comunicação do governo: pretendia “tornar possível e fácil o acesso dos meios de comunicação e de crítica aos atos do governo”. No entanto, o discurso ministerial gerou desconfianças, pois ao anunciar o propósito da EBN de não “dirigir, distorcer ou condicionar a informação”, deixava escapar a sugestão de que isso costumava ocorrer na Voz do Brasil. Na prática, esse propósito acabou negado pelo próprio conteúdo veiculado na Voz do Brasil, que preservou o estilo de subserviência às autoridades. A diferença era que, no governo Figueiredo, as “proibições” passaram a ser tratadas como “orientações” de ministros e de outros integrantes do governo. Durante a campanha presidencial de 1985, na qual o candidato da oposição, Tancredo Neves (da Aliança Democrática), disputaria com o candidato oficial Paulo Maluf (PDS) os votos do Colégio Eleitoral, tanto a Voz do Brasil quanto a EBN receberam a “orientação” de concentrar a cobertura apenas na candidatura oficial. Dois repórteres e um fotógrafo da EBN foram contratados para acompanhar diariamente o candidato do PDS. Os próprios funcionários encararam a orientação com ironia e comentaram que a agência deixou de ser EBN – Empresa Brasileira de Notícias – e passou a ser EBM – Empresa Brasileira do Malufismo (PEROSA, 1995, p.127).

A Voz do Brasil não veiculou, antes da eleição indireta, em janeiro de 1985, nenhuma notícia sobre o candidato da oposição. No entanto, jornalistas da EBN em Brasília e dos escritórios regionais foram mobilizados para acompanhar todos os comícios de Tancredo Neves. Os relatos desses comícios funcionavam como uma espécie de “monitoramento” da

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campanha: detalhavam o desempenho do candidato, os principais políticos presentes em cada evento, a quantidade de público, o número de bandeiras vermelhas etc. Os jornalistas faziam um trabalho de “patrulha” da chapa da oposição, visto que nenhuma dessas informações teve aproveitamento na Voz do Brasil (PEROSA, 1995, p.127).

A Nova República e a “nova” Voz do Brasil Com a eleição de Tancredo pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, a EBN e a Voz do Brasil tiveram de se adaptar aos novos ares da República, que voltaria a ser comandada por um civil após 21 anos de presidentes militares. Tancredo montou o novo ministério, mesclando forças progressistas (do PMDB autêntico e de partidos mais à esquerda) e conservadoras (quadros oriundos do PDS que o apoiaram na eleição). Na véspera da posse, 14 de março de 1985, o presidente eleito foi internado no Hospital de Base de Brasília e submetido a uma cirurgia. Quem assumiu o cargo foi o vice-presidente da chapa, José Sarney. Tancredo morreu 38 dias após a eleição e Sarney completou o mandato até 1990, no período conhecido como Nova República. As mudanças pelas quais passariam a EBN e a Voz do Brasil, a partir do início da Nova República, tiveram inspiração nas ideias de um grupo de professores da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Coordenado por Venício Lima, Murilo César Ramos, Salomão Amorim e Luiz Gonzaga Motta, esse grupo vinha se dedicando, desde a segunda metade dos anos 70, a pensar políticas de comunicação pública adequadas a um governo democrático. Ao grupo acadêmico juntaram-se alguns jovens jornalistas de Brasília, que faziam oposição à então diretoria do sindicato da categoria, que consideravam “pelega”. Entre eles, estavam Helio Doyle, Armando Rollemberg e Carlos Marchi. A chapa deles ganhou a eleição sindical em 1976, tendo como candidato a presidente o veterano Carlos Castello Branco (1920- 1993), o Castelinho, reconhecido colunista político do Jornal do Brasil. Também se juntaram ao grupo parlamentares de oposição ao governo militar, como a deputada Cristina Tavares (1934-1992), da ala “autêntica” do PMDB. Desse grupo diverso, nasceram as ideias que inspirariam um novo modelo de comunicação oficial. A gente fazia reuniões bastante produtivas. E essas reuniões começaram a se encaminhar para projetos. Talvez essa seja a grande diferença entre a Voz do Brasil que sempre se fez e a Voz do Brasil que se fez naquele período, porque [o programa] era parte desse projeto maior. A gente entendia que a comunicação institucional, acima de tudo, tinha de ser pública, não estatal. Esse era um fundamento essencial. Não era um serviço que a gente prestaria ao governo, era um serviço que a gente

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prestaria à sociedade. Portanto, tinha aí engatado e subentendido o compromisso da absoluta verdade, da não mistificação, da não demagogia (MARCHI, 2015).27

Carlos Marchi, jornalista carioca que estava radicado em Brasília há anos e que participava desse grupo, havia se integrado à campanha de Tancredo Neves em meados de 1984. Escolhido para a presidência da EBN após a vitória da Aliança Democrática, em janeiro de 1985, indicou os outros três diretores da empresa para viabilizar a implantação do novo projeto editorial: o professor Luiz Gonzaga Mota, da UnB, foi escolhido para o cargo de diretor de Planejamento, que não existia antes; já o diretor responsável pelo conteúdo jornalístico seria Luiz Roberto Serrano; e, como diretor Financeiro, Marchi convidou Emerson Almeida, que havia trabalhado nessa área no Ministério da Educação (MEC). A despeito dessa diretoria comprometida com o projeto, o processo de mudança editorial na EBN não foi fácil, pois havia resistências às transformações na Voz do Brasil por parte do próprio governo – o projeto de comunicação da Nova República e as mudanças na Voz do Brasil haviam sido pensados para serem implantados num governo Tancredo Neves. Com a doença e a morte do presidente eleito, a equipe da EBN teve de se submeter a José Sarney, político oriundo do partido governista, que representava a oligarquia nordestina e tinha perfil bem mais conservador, conforme depoimento de Luiz Gonzaga Mota a Fernando Oliveira Paulino: Embora Tancredo fosse um político conservador, ele era um político tolerante, que era muito próprio da política mineira daquela época. Você era conservador, mas tolerava. E, na área da cultura, dizia-se que você era de esquerda; na área de política, de centro; e na área da economia, conservador. Então como ele era, mesmo no conservadorismo, um pouco avançado na área da cultura, o Tancredo se abriu muito (PAULINO, 2009, p. 108).

A EBN era vinculada ao Ministério da Justiça, para o qual Tancredo Neves havia indicado Fernando Lyra (1938-2013), político de perfil progressista e que apoiava o projeto de renovação da Voz do Brasil. Apesar do apoio do ministro Lyra – que era amigo de Marchi havia anos –, a direção da empresa logo percebeu que não seria fácil “fazer jornalismo com independência dentro de um governo, ainda mais um governo pluripartidário”. O primeiro embate da nova direção da EBN com outros setores do governo ocorreu após a demissão de 10 jornalistas que eram considerados “malufistas”, logo no início da gestão de Carlos Marchi. “Nós os ‘justiçamos’ em praça pública”, relata

27 Entrevista concedida ao autor, em 15 jul 2015, reproduzida na íntegra nos Apêndices desta dissertação.

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o jornalista. Fernando César, assessor de Sarney e que conhecia o presidente da EBN dos tempos de redação do Jornal do Brasil, telefonou para ele com um pedido do Planalto para que voltasse atrás nas demissões. Marchi negou-se a readmiti-los. “Sarney não era propriamente um presidente, era um ‘subpresidente’ que tinha eventualmente assumido o governo, e Tancredo ainda estava vivo”, lembra. Além do Sarney, eu comecei a receber telefonemas de colegas meus jornalistas, principalmente os que cobriam a Câmara e que eram muito ligados a todos os partidos. (...) Isso foi um fator de intenso desgaste, até que a gente venceu a parada, não os readmitimos. Mas ficou uma cicatriz (MARCHI, 2015).

Em relação ao projeto editorial em si, a equipe de Marchi contava com o apoio incondicional do ministro da Justiça, conforme depoimento ao próprio programa, em 19 de março de 1985: De uma empresa de notícias se espera mais: a notícia expressando fielmente os fatos acontecidos em um país livre e soberano e não a informação a serviço do governo ou de seu partido, mas a notícia real que o público tem direito de saber e o governo de prestar contas sem escamoteações, subterfúgios, interesses inconfessados ou objetos de servilismo (PEROSA, 1995, p.140).

Na comemoração dos 50 anos da Voz do Brasil, em 22 de julho de 1985, o próprio presidente Sarney fez um pronunciamento em defesa do programa: “Modernizada, reformulada, a Voz do Brasil tem estabelecido um amplo diálogo do governo com a sociedade e cumpre um importante papel para a Nova República, estabelecendo um largo canal de comunicação entre o governo e o povo” (PEROSA, 1995, p.141).

Sob a gestão de Carlos Marchi, o programa resgatou a introdução da ópera O Guarani como tema de abertura e passou a usar uma linguagem menos pomposa no noticiário. “O novo projeto tratou logo de suprimir o tom marcial dos locutores, herança do DIP, e adotou uma narração mais natural, procurando instaurar uma linguagem mais descontraída e direta” (PEROSA, 1995, p. 142). Mas as principais mudanças adotadas na gestão Marchi foram no conteúdo: para combater o estilo “chapa-branca”, foi adotado um sistema de pautas e uma rotina de reuniões de avaliação do programa entre diretores, repórteres e editores. O projeto editorial estava alinhado com os princípios democráticos da Nova República. Em um artigo escrito para o Jornal de Brasília, Marchi definiu o conteúdo da Voz do Brasil como “um jornalismo oficial com dignidade”: “Temos que libertar o jornalista em seu trabalho. Dar-lhe condições de operar sem limitações, o que antigamente era norma. Por exemplo: o

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repórter da EBN deve perguntar e não se omitir nas entrevistas, como se não tivesse aquele direito. Deve escrever tudo. Não deve ignorar as críticas eventualmente feitas a setores do governo, desde que partam de oposição responsável. Enfim, deve liberar sua competência e criatividade”.28

Entretanto, ao colocar em prática a proposta de abrir espaço para líderes da oposição, a Voz do Brasil passou a receber críticas de dentro do governo, principalmente os militares. Um exemplo desse embate se deu quando foi feita pela EBN uma entrevista com o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que fazia oposição a Sarney. Antes de decidir se a entrevista seria incluída na Voz do Brasil, Marchi distribuiu, via telex, a matéria aos jornais, para checar a repercussão que teria. Logo que a matéria foi distribuída, Marchi recebeu um telefonema informando que o general Ivan Mendes de Almeida, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), tinha ido reclamar da EBN com o próprio presidente da República. Sarney teria respondido ao chefe do SNI que “o pessoal” da EBN era “meio rebelde” – mas o general não ficou convencido. Ciente de que o projeto talvez não tivesse vida longa, Marchi decidiu colocar a entrevista na Voz do Brasil, pois seria o seu álibi: se Sarney o demitisse, ele poderia dizer que havia sido demitido por ter feito bom jornalismo. No início de 1986, passando por uma crise econômica devido a uma inflação alta, Sarney promoveu uma reforma ministerial. Fernando Lyra foi substituído na pasta da Justiça por Paulo Brossard (1924-2015), político gaúcho mais conservador. Diante das incertezas e “completamente desprotegido”, o presidente da EBN buscou uma “blindagem” para o seu projeto jornalístico: Quando o Fernando Lyra saiu, a gente pensou: “Não teremos mais tempo, a gente tem que correr para implantar dignamente um projeto”. Sabia que não poderia levar até o fim (o projeto), mas a gente queria implantar uma série de coisas que fossem difíceis de serem revertidas depois, que criassem história, que criassem vínculo (MARCHI, 2015).

Uma dessas estratégias de blindagem foi reforçar o papel de agência noticiosa da EBN, por meio de parcerias editoriais com agências oficiais de outros países – como Portugal, Espanha, Argentina e Angola. Marchi sabia que essa não era a diversidade de conteúdos ideal, mas permitiria que a EBN “se desvinculasse da via hegemônica do jornalismo dos Estados Unidos”. Conseguiu convencer o chefe do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty, o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima, de que

28 O artigo “EBN: a Voz do Brasil vai ser ouvida”, de autoria de Carlos Marchi, foi publicado pelo Jornal de Brasília em 26 mar 1985 (PEROSA, 1995, p.141)

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esses acordos eram importantes para o comércio internacional do país. O diplomata passou a defender o projeto editorial da EBN e, indiretamente, contribuiu para que a equipe que comandava na empresa fosse preservada. Desde antes da saída de Fernando Lyra do ministério, já havia um movimento dentro do governo para que a EBN fosse transferida para o Ministério das Comunicações, comandado pelo baiano Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), o ACM, uma das principais lideranças oriundas do PDS que dava suporte à Aliança Democrática. O aval de Flecha de Lima ao projeto da EBN também foi importante porque o embaixador era muito próximo do ministro. “E quando o ACM começou a avançar sobre a gente, o Paulo de Tarso nos protegia, dizendo que estávamos trabalhando em conjunto” (MARCHI, 2015). Apesar do perfil mais conservador de Paulo Brossard, não foi isso que levou à saída de Marchi do governo. Uma das medidas administrativas adotadas na EBN para engajar os seus jornalistas havia sido a elaboração de um plano de carreira para aqueles que atuavam na chamada área “fim” da empresa (os jornalistas), definindo faixas salariais e regras de entrada na equipe jornalística da estatal. A nova equipe do Ministério queria fazer indicações de jornalistas para a EBN, ignorando essas regras de entrada. Esse embate durou até a saída de Marchi da EBN, sem que ele tenha atendido aos pedidos do ministro. Mesmo após a reforma ministerial de janeiro de 1985, quando boa parte dos profissionais de orientação mais à esquerda deixou o governo, não houve uma maior pressão sobre o conteúdo da Voz do Brasil, ou tentativas de interferência na pauta do programa. Nem quando foi lançada a principal bandeira do governo Sarney, o Plano Cruzado,29 que congelou os preços e salários para tentar conter a hiperinflação, a Voz do Brasil foi pressionada a mudar a forma como cobria os assuntos do governo: Na época, todo mundo acreditava no Plano Cruzado – a cobertura da imprensa da época foi muito favorável, porque as pessoas estavam sufocadas pela inflação, pelos males da economia, e queriam uma saída, queriam acreditar que aquela saída era boa, exequível. Eu não me lembro de nenhuma pressão; pouquíssimas vezes eu recebi um telefonema do Planalto para cobrir ou deixar de cobrir alguma coisa” (MARCHI, 2015).

29 O Plano Cruzado foi anunciado em 28/02/1986 pelo então ministro da Fazenda, Dilson Funaro. O plano econômico tinha características heterodoxas (inspiradas em John Keynes), pois adotava como medidas de combate à hiperinflação o congelamento de preços, salários e da taxa de câmbio, entre outras.

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Se historicamente a Voz do Brasil sempre foi um produto que atraiu o interesse dos políticos no poder, o programa não era o principal foco da equipe de Marchi. Na verdade, eles queriam implantar seu projeto jornalístico em toda a EBN, fazendo com que a empresa fosse reconhecida internacionalmente como uma agência noticiosa brasileira de credibilidade, não apenas como a produtora da Voz do Brasil. Tanto que Marchi chegou a propor ao presidente da República um projeto para acabar com o programa de rádio: O Sarney deu pulo da cadeira e disse: “Você não é do Nordeste, você não sabe o que que é a Voz do Brasil no Nordeste. Leva esse projeto para o Congresso e mostra para um deputado do interior do Nordeste e pergunta o que ele acha. Ele vai pular na sua carótida” (MARCHI, 2015).

O projeto de transformação da EBN em uma agência de notícias internacional incluiu ainda uma “utopia inovadora”, segundo Marchi: a proposta para que os grandes jornais brasileiros se tornassem sócios da estatal, pois assim poderiam se beneficiar dos conteúdos fornecidos por outras agências internacionais: A ideia era incorporar os jornais à EBN, como acionistas da empresa, e permitir que eles fossem abastecidos com as notícias nacionais produzidas pela agência – e com notícias internacionais enviadas de outros países. A intenção era livrar os jornais brasileiros da dependência das grandes agências internacionais (MARCHI, 2015).

Os jornais receberam a ideia com enorme desconfiança. “Ao primeiro contato, o Estadão reagiu como um leão ferido e me brindou com um editorial”, relembra Marchi. O editorial criticava o projeto de internacionalização da EBN e questionava os reais propósitos da estatal em querer a participação da iniciativa privada. O editorial chamava a EBN de “agência Tass cabocla”, numa referência à agência oficial soviética, criticava a obrigatoriedade da Voz do Brasil e não reconhecia as mudanças implantadas no programa durante a gestão de Carlos Marchi, afirmando que isso não passava de mero engodo para disfarçar o que tal programa oficial sempre foi: um instrumento de propaganda do governo, uma intromissão indevida do poder público em um campo de atividade que é exclusivo da iniciativa privada em quaisquer democracias que se prezem e — last but not least — um exemplo de “cabide de empregos” governamentais.30

30 O editorial “Uma Agência Tass cabocla?!?” foi publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo no dia 24/06/1986 e questionava o fato de a proposta de participação societária dos jornais pretender dar maior credibilidade à agência oficial, o que significaria que as empresas estatais de notícias de outros países não mereciam credibilidade. “Nisso (Carlos Marchi) está perfeitamente certo, pois qual a credibilidade, por exemplo, que merece a Agência Tass dos soviéticos, ou que merecia a ADN dos nazistas?”, perguntava o jornal.

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As críticas da imprensa se somaram às críticas de dentro do próprio governo. Ao longo do primeiro ano da Nova República, os repórteres foram orientados e incentivados pela direção da EBN a serem imparciais nos contatos com as autoridades. Mas como muitos órgãos do governo estavam acostumados à tradição subserviente da Voz do Brasil, e não a uma postura crítica dos repórteres, isso acabou se tornando um problema. Os jornalistas da Voz do Brasil perceberam que tinham mais liberdade e começaram a afrontar ministros em entrevistas. Choviam reclamações. E então, eu que tinha dito antes para as pessoas que “valia tudo” para fazer jornalismo, tive que chegar para eles e dizer para maneirarem, porque não podia ser assim (MARCHI, 2015).

Os embates da direção da EBN com a equipe do ministro Brossard, os desgastes com outros órgãos públicos (devido às coberturas feitas), somados ao episódio da demissão dos 10 jornalistas no início da gestão (que não havia sido esquecido) e às desconfianças do SNI de que a equipe da EBN era formada por comunistas (que vinham desde a entrevista de Brizola), culminaram com a saída de Marchi da estatal, cerca de seis meses depois da nomeação de Brossard. “Era uma guerrilha (...) e eu sabia que não poderia enfrentar isso nem no governo Tancredo, quanto mais no governo Sarney” (MARCHI, 2015). No entanto, o projeto implantado na EBN, no início da Nova República, não acabou com a saída de Carlos Marchi, até porque foi mantido pelos seus sucessores imediatos – depois de um breve período comandada pelo porta-voz do governo, Frota Neto, a EBN foi presidida pelo jornalista Ruy Lopes, de boa reputação no mercado, que havia sido chefe da Sucursal de Brasília da Folha de S.Paulo, e que assumiu a estatal com o objetivo de modernizá-la tecnicamente. Lopes permaneceu menos de um ano no cargo, pois as pressões sobre a EBN e a Voz do Brasil aumentaram conforme o governo perdia a batalha contra a inflação (PEROSA, 1995, p.148). Ruy Lopes foi substituído por Getúlio Bittencourt (1952-2009), outro conhecido repórter de Brasília, mas que não conseguiu evitar que a Voz do Brasil, sob sua gestão, cedesse às vontades do governo. Getúlio comandou a empresa na fase em que o presidente Sarney empregou todos os métodos para assegurar a dilatação de seu mandato, e não vacilou em engajar a primeira meia hora da Voz do Brasil na campanha de promoção dos cinco anos de mandato acalentados por Sarney (PEROSA, 1995, p.149).

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Isso não significava que o programa tivesse voltado a ser totalmente “chapa- branca”; ainda se praticava um certo jornalismo na Voz do Brasil. Tanto que Getúlio Bittencourt foi sumariamente demitido em 1988, por causa da veiculação de uma entrevista exclusiva do brigadeiro Paulo Roberto Camarinha. O chefe do Estado Maior das Forças Armadas fez duras críticas à política econômica do governo nos microfones da Voz do Brasil. Sarney teria ficado tão irritado que, além de demitir o presidente da EBN, decretou a incorporação da empresa pela Radiobrás (PEROSA, 1995, p.149).31

Consolidação da democracia e a mesma Voz do passado No governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), o jornalista Marcelo Netto assumiu a presidência da Radiobrás. Amparado na popularidade de “caçador de marajás”, quando era governador de Alagoas, Collor liderou as pesquisas durante a campanha presidencial e se utilizou de forma muito eficaz do que hoje é chamado de marketing político. O jornalista Ricardo Setti, que cobriu as eleições de 1989 para o Jornal do Brasil, definiu a campanha de Collor como um “videoclipe político”: Para o grande teórico da comunicação Marshall MacLuhan, como se sabe, o meio é a mensagem. Para Fernando Collor de Mello, a campanha é a mensagem. Basta seguir o candidato em sua busca pelos votos pelo país para perceber que são os símbolos emitidos pela campanha, muito mais que os discursos, que comunicam a mensagem de Collor (SETTI apud CONTI, 1999, p.191).

Logo que assumiu a Presidência, Collor e sua equipe econômica surpreenderam o país com o Plano Collor,32 mais uma tentativa oficial de combater a inflação, que chegava a 80% ao mês no fim do governo Sarney. O anúncio do plano foi feito em uma conturbada entrevista coletiva no dia seguinte à posse do presidente, pela ministra da Economia, Zélia Cardoso de Melo, e por dois membros da equipe econômica, Antônio Kandir e Ibrahim Eris. Os três não conseguiram se fazer entender. Não diziam o que pretendiam nem quais eram os fundamentos do plano. A ministra falava em “transferência de titularidade” com a naturalidade de quem diz “hoje está calor”. Eris, o presidente do Banco Central, nascido e criado na Turquia, dizia “os torneiras” e “as critérias” (CONTI, 1999, p.324).

31 O decreto nº 96.212, de 22 jun 1988 extinguiu a Empresa Brasileira de Notícias, que havia sido criada em 1979 e alterou o nome da Radiobrás de Empresa Brasileira de Radiodifusão para Empresa Brasileira de Comunicação S.A. O decreto definiu ainda que a Radiobrás seria subordinada ao ministro chefe da Casa Civil. 32 As medidas do Plano Collor incluíam a volta do cruzeiro como moeda e uma desvalorização do cruzado, congelamento de preços e salários, criminalização dos aumentos não autorizados e bloqueio de todos saldos bancários do país acima do valor correspondente a 1.250 dólares.

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A Voz do Brasil daquele dia demonstrou que, a partir de então, seria adotado um novo estilo editorial. O programa não apenas abriu espaço para que o próprio presidente anunciasse as medidas do plano econômico, mas incorporou o mesmo discurso maniqueísta do presidente, conforme anunciado pelo locutor: Após traçar um perfil da atual situação do país no primeiro dia de trabalho com todo o seu ministério, o presidente Fernando Collor enumerou o conjunto de medidas e afirmou que, antes de tudo, é preciso fazer um saneamento moral na área econômica33 (PEROSA, 1995, p.170).

Em sua fala na Voz do Brasil, Collor enumerou seis medidas adotadas, entre elas a criminalização do abuso do poder econômico, que levaria à cadeia gerentes e donos de empresas que escondessem mercadorias, a demissão e prisão de servidores públicos que lesassem o fisco e a taxação das grandes fortunas e dos ganhos em bolsa de valores. Individualizando as complexas questões sociais, Color extraiu delas o caráter político inerente, e a luta de concepções sociopolíticas e econômicas diferenciadas e conflitivas (...) ficaram diluídas no âmbito de subjetividades moralistas e, portanto, mistificadoras de todo um processo histórico real e dinâmico que é a luta pela sobrevivência e pela liberdade desenvolvida pelos homens (PEROSA, 1995, p.171).

Entretanto, em seu pronunciamento na Voz do Brasil, Collor não falou no confisco da poupança. Preferiu ressaltar a retórica populista, por exemplo, ao explicar a taxação de ganhos no mercado financeiro: “O assalariado pagava o imposto de renda sobre seu salário de fome e o patrão obtinha os seus ganhos especulativos sem recolher um centavo aos cofres da União” (PEROSA, 1995, 171). Desde o primeiro dia do governo Collor, a Voz do Brasil tornou-se novamente um veículo estratégico para a comunicação oficial, principalmente devido à sua capilaridade no interior do país, sendo compulsoriamente retransmitida pelas 2.231 emissoras de rádio existentes àquela época. Marcelo Netto decidiu “popularizar” a linguagem do programa, começando pela substituição do tradicional “Em Brasília, 19 horas” por “Em Brasília, são sete horas da noite”. A introdução de O Guarani deu lugar a um arranjo de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e o texto do noticiário passou a ser mais informal, para ser compreendido por todos os brasileiros e, assim, evitar que os aparelhos de rádio fossem desligados quando o programa começasse. As mudanças adotadas na Voz do Brasil durante o governo Collor não foram apenas estéticas. O programa abdicou de qualquer tentativa de fazer jornalismo isento e passou a ser “fonte de informação obrigatória” sobre os temas ligados ao governo,

33 Grifo nosso.

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tratando a palavra governamental como “elemento prioritário da notícia”, conforme definiu Tairo Arrial, gerente de Radiodifusão da Radiobrás à época: Como apêndice do poder, a Radiobrás e, por conseguinte, a Voz do Brasil, propagou, com a precisão e o detalhamento inerentes a um órgão de comunicação oficial, a ideologia do governante em exercício, agora em formato radiojornalístico mais dinâmico, mas ainda unilateral na sua abordagem. O pensamento divergente não seria autorizado, até porque a “personalização do poder” voltou à ordem do dia, como forma de suprir o “desgoverno” herdado de Sarney (PEROSA, 1995, p.170).

Como muitas das estatais da época, a Radiobrás era considerada um cabide de empregos. No governo Collor, a empresa passou por um processo de desestruturação dentro do plano anti-estatista do presidente, que provocou uma redução de salários e sucateamento de equipamentos e instalações. A empresa teve dois presidentes na era Collor – Marcelo Netto (1990-1991) e Ruy Pontes (1991-1992) –, e nesse período 439 funcionários foram dispensados e outros 32 pediram demissão – “alguns porque foram constrangidos a isso” (BUCCI, 2008, p.95). Collor sofreu o processo de impeachment e foi afastado da Presidência em 22 de setembro de 1992, sendo substituído pelo vice-presidente, Itamar Franco, que completou o mandato até 1995. Mineiro, com um estilo mais discreto que Collor, Itamar colocou na presidência da Radiobrás Luiz Otávio de Castro Souza. A Voz do Brasil perdeu o estilo personalista da gestão anterior, mas a estatal ainda enfrentava desafios de ordem administrativa, herdados de seu antecessor. A companhia entrou num período errante e errático. A inconstância virou a regra. Entre 1990 e 1998, cinco presidentes se sucederam na Radiobrás, com cinco linhas administrativas inteiramente distintas. (...) Por volta de 1992, o descontrole atingiu o ápice. Os integrantes do Conselho Fiscal tinham renunciado e o Conselho Administrativo se dissolvera. Praticamente não havia prestação de contas (BUCCI, 2008, p.95).

A crise administrativa não permitia grandes investimentos na Voz do Brasil. A crise da estatal perdurou no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), que sucedeu Itamar Franco. Bucci (2008, p.97) destaca o importante papel, no processo de saneamento administrativo da empresa, exercido pelo jornalista Carlos Zarur, o primeiro profissional formado nos quadros da Radiobrás a assumir a presidência da estatal, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2003). Apenas durante esse segundo mandato de FHC é que a empresa superou as dificuldades financeiras e começou a ter condições de se dedicar mais às “atividades fim”. No entanto, como era subordinada à Secretaria de

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Comunicação Social da Presidência da República (Secom), a Radiobrás ainda se ressentia dos “pedidos” que costumavam chegar do Palácio do Planalto. Esse cenário só mudaria em 2003, a partir da posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência e a indicação do jornalista Eugênio Bucci para comandar a Radiobrás. Em janeiro de 2003, encontrei uma organização que mantinha a cabeça baixa diante do governo, qualquer que fosse o governo. Lembro-me bem de que as secretárias reagiam esbaforidas a qualquer telefonema da Secom: interrompiam reuniões, batiam na porta do banheiro, corriam pelos corredores para chamar imediatamente quem quer que fosse. (...) Aquelas pessoas ainda tinham a ideia de que o chefe de todas elas era alguém que não trabalhava ali, apenas telefonava para dar ordens (BUCCI, 2008, p.98).

Uma proposta jornalística para a Voz do Brasil Ao assumir a presidência da Radiobrás, em janeiro de 2003, no primeiro governo petista, Eugênio Bucci propôs a adoção de mudanças editoriais, visando extinguir o jornalismo “chapa-branca” da Voz do Brasil e de outros veículos controlados pela estatal, como a TV Nacional de Brasília, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro e a Agência Brasil de notícias. Professor e doutor em Comunicação, Bucci debatia nos meios acadêmicos e na imprensa questões ligadas à ética e ao direito à informação. Em 1994, quando da segunda campanha de Lula à Presidência, Bucci foi escalado para escrever o capítulo “A razão da comunicação” no documento que elencava 13 motivos para se votar no petista. Em seu texto, intitulado “Um país que dialogue”, Bucci dizia que o candidato representava “a marcha cidadã, inclusive nos campos do direito à informação, que vem sendo tão desprezado, e do direito à livre expressão do pensamento” (BUCCI, 2008, p.197). Sem que esse direito seja atendido, a democracia não funciona, uma vez que o debate público pelo qual se formam as opiniões entre os cidadãos se torna um debate viciado. (...) Quando o poder age no sentido de subtrair do cidadão a informação que lhe é devida, está corroendo as bases do exercício do jornalismo ético, que é o bom jornalismo, e corroendo a sociedade (BUCCI, 2000, p.33).

À frente da Radiobrás, Bucci tentou pôr em prática as ideias que havia defendido ao longo de sua carreira acadêmica. Apesar de a estatal ser encarregada, por lei, de noticiar os atos do governo, isso era entendido no governo e na própria Radiobrás como o dever de fazer promoção das “realizações” das autoridades. Nós entendíamos de outro modo. Para nós, ela deveria apenas informar, sem omitir fatos relevantes e sem fazer propaganda, pois a mesma lei não incumbia à Radiobrás as funções de assessoria de imprensa, de porta-voz, de

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publicidade governamental – essas funções pertenciam diretamente à Presidência da República e às suas secretarias (BUCCI, 2008, p.30).

Procurou-se implantar um modelo de jornalismo que tivesse como premissa o direito à informação do cidadão e isenção na cobertura. Mas, de maneira similar ao que ocorreu com Carlos Marchi no início do governo Sarney, o projeto adotado por Bucci para a Voz do Brasil também sofreria resistências na própria Radiobrás e no governo. O projeto ia contra a cultura do Estado, dos partidos, da Radiobrás e também de boa parte da esquerda. O bloqueio cultural era uma unanimidade que afirmava e reafirmava sem descanso: uma estatal com emissoras de radiodifusão existia para defender o governo e preservar a imagem dos governantes (BUCCI, 2008, p.21).

O projeto editorial adotado na estatal e na Voz do Brasil foi formalizado publicamente em 2005, nos Documentos sobre o Jornalismo da Radiobrás. O texto definia que informação é um direito do cidadão tão importante quanto a educação e a saúde. “É um direito de todos, independentemente das inclinações ideológicas de cada um”. Nossos jornalistas, comunicadores e todos aqueles que atuam no processamento da informação que oferecemos ao público têm o dever de evitar o partidarismo, a pregação religiosa, o tom promocional e qualquer finalidade propagandística. (...) Nós noticiamos fatos novos que façam diferença na vida do cidadão. Não produzimos comentários opinativos, textos autorais nem análises ou interpretações. Não é nosso papel. Noticiamos e explicamos os acontecimentos (RADIOBRÁS, 2005, p.4).

Em 2006, foi publicado o Manual de Jornalismo da Radiobrás, o primeiro documento do gênero em 30 anos de história da estatal. Organizado pelo jornalista Celso Nucci,34 o Manual consolidava as diretrizes e os procedimentos a serem adotados pelos jornalistas da empresa. O próprio Eugênio Bucci, no texto de apresentação do Manual, ressaltava que, até 2003, as equipes da Radiobrás estavam habituadas a produzir conteúdos com “vícios do discurso chapa-branca”, e ressaltava que já tinham assimilado esse conceito. Gradativamente, a Radiobrás conseguiu se adequar à nova idade da democracia no Brasil, contribuindo para imprimir mais transparência à gestão da coisa pública. (...) No regime democrático, o que define a qualidade das notícias produzidas por uma empresa pública — sobre a qual não pesa nenhuma atribuição legal de fazer assessoria de imprensa para o governo ou de fazer relações públicas para as autoridades. (BUCCI, 2006, p.11).

34 Celso Nucci havia sido chefe de Eugênio Bucci na Editora Abril por mais de 10 anos, e assumiu a assessoria especial da presidência da Radiobrás, em agosto de 2003. Segundo Bucci, era o maior especialista em planejamento editorial que conhecera (BUCCI, 2008, p.251).

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A defesa do direito à informação incomodou alguns setores do governo, que consideravam que a Radiobrás (e a Voz do Brasil, especificamente) não deveria noticiar certos assuntos que não eram de interesse do Planalto.35 Entre as queixas vindas de outras áreas do governo até Bucci, estava aquela de que deveria ser instalado nas redações um “filtro governista”. “Queriam que a Radiobrás agisse com Lula do mesmo modo que agia antes [com os outros presidentes]”. Uma democracia pode perfeitamente conviver com empresas públicas encarregadas da prática do jornalismo – empresas públicas porque de propriedade pública, que recebem financiamentos públicos –, mas nessas empresas os representantes do governo não podem interferir nem na gestão administrativa nem na gestão editorial. Quanto mais democrático é um Estado, mais o Poder Executivo se afasta da função de editar conteúdos jornalísticos (BUCCI, 2008, p.79).

Eugênio Bucci permaneceu na Radiobrás até abril de 2007. Em 2008, foi criada a Empresa Brasil de Comunicação – EBC Serviços, que sucedeu a Radiobrás em suas atribuições. A nova direção da empresa, no entanto, não revogou as diretrizes adotadas na gestão de Bucci até 2013, quando foi lançado o novo Manual de Jornalismo da EBC.

A Voz do Brasil depois de 2007 Criada por iniciativa do então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Franklin Martins, um jornalista com grande experiência na cobertura política, a EBC reuniu as emissoras pertencentes à Radiobrás e à Fundação Roquette-Pinto (ligada ao Ministério da Educação e controladora da Rádio MEC). A Voz do Brasil manteve-se como um veículo relevante da nova empresa, mas o principal projeto do ministro foi a criação, em dezembro de 2007, da TV Brasil, uma emissora pública com transmissão em rede nacional. A emissora foi criada para “atender à antiga aspiração da sociedade brasileira por uma televisão pública nacional, independente e democrática” (EBC SERVIÇOS, sd) e para cumprir um preceito constitucional de formar um “sistema nacional de televisão”, junto com a televisão privada (ou comercial) e a televisão estatal (a serviço do governo). Grosso modo, a televisão comercial, de massa, estaria mais voltada para o entretenimento e um pouco de jornalismo, sustentada por inserções comerciais; a estatal, sustentada pelo governo, estaria mais voltada para a divulgação dos feitos oficiais, do governo de plantão, com alguma prestação de serviços de utilidade pública e programas educacionais; e a pública, equidistante das duas, sustentada pela sociedade, estaria

35 Entre os temas noticiados pela Voz do Brasil nesse período que geraram polêmica no governo estão a greve de agentes da Polícia Federal em 2004 e a queda do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, em março de 2006, em meio a um escândalo de violação de sigilo bancário.

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voltada para os interesses dos cidadãos em sua dimensão mais humana. Nas outras duas, ele seria o consumidor, o eleitor, o telespectador apenas (MENDONÇA, 2007).

Sob a gestão da EBC, a Voz do Brasil não teve imediatamente uma nova diretriz editorial, apesar de não terem sido revogadas as políticas elaboradas anteriormente para a Radiobrás – pois não foi esclarecido ao público se aqueles documentos ainda estavam em vigor, visto que a estatal já não existia mais. Em abril de 2013, a EBC lançou o Manual de Jornalismo, no qual o então presidente da empresa, Nelson Breve, definiu jornalismo como um serviço público, sem o qual a sociedade “não consegue exercer seus direitos de cidadania”. Seu texto defendia ainda que os jornalistas da estatal deveriam atuar com independência, mas alertava que essa tarefa não era fácil e que estava “sempre sujeita a tentações e interpretações subjetivas”. Num arroubo que parece inspirado em Descartes do senso comum (a defesa da razão, da evidência e da certeza), Nelson Breve argumenta ser imprescindível aos jornalistas da EBC a adoção de regras de conduta muito claras, precisas e transparentes para que o resultado do trabalho de apuração, edição e divulgação das informações seja realmente o que a sociedade espera e necessita: a verdade, somente a verdade, nada a mais ou a menos que a verdade (BREVE, 2013, p.7).

Como o Manual de Jornalismo da EBC prega que a empresa deve praticar uma comunicação “que visa em primeiro lugar o interesse público” e que o jornalista tem a missão de representar a sociedade “onde estiver, reportando com fidelidade, precisão e honestidade os fatos e acontecimentos de interesse público” (EBC SERVIÇOS, 2013, p.7), esta dissertação analisará, nos próximos capítulos, o conteúdo veiculado pela Voz do Brasil entre 2013 e 2015 para verificar se os conceitos de jornalismo defendidos em seu Manual são colocados em prática. Como veremos, levando-se em conta que se trata de um programa com transmissão obrigatória por todas as emissoras do país, alguns acontecimentos de grande impacto sobre a sociedade não foram abordados com o mesmo destaque que em jornais de grande circulação, a despeito dos preceitos definidos pelo Manual de Jornalismo da EBC.

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CAPÍTULO 2

Critérios de noticiabilidade na ‘Voz do Brasil’

A “notícia” na Voz do Brasil Diversos autores vêm se dedicando a estudar o campo do jornalismo – investigando as teorias do jornalismo, a história do jornalismo, a análise do discurso, a produção da notícia, as teorias da narrativa. Não se pretende aqui, neste trabalho, um aprofundamento das teorias da notícia, mas optamos por um dos conceitos de jornalismo, compreendido como o ato de informar à sociedade a respeito de fatos que sejam de interesse geral dos cidadãos, para analisar o programa Voz do Brasil. Essa compreensão – presente nas pesquisas de Lippman, Galtung & Ruge, Golding & Elliott, Gans, Gaillard, Hohemberg, Traquina, Wolf, Chaparro e Lage – é também adotada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), no Código de Ética da profissão. Esse documento, elaborado em 2007, considera que “o acesso à informação de relevante interesse público é um direito fundamental” dos cidadãos e que “a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”. Para exercerem esse ofício, conforme a Fenaj, os jornalistas não podem admitir que o exercício desse direito seja impedido por algum outro tipo de interesse. O Código de Ética determina ainda que o compromisso fundamental do jornalista deve ser “com a verdade no relato dos fatos”, e que seu trabalho deve ser pautado “na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação”. Numa perspectiva histórica do estudo do jornalismo, considerando os conceitos de gatekepper e a teoria do agendamento (agenda setting), as notícias podem ser entendidas como a existência pública dos acontecimentos, processo que se dá por meio da atividade jornalística. As notícias contribuem, também, para a “construção de significações sobre acontecimentos e ideias e para o agendamento de temas na lista de preocupações do público” (SOUSA, 2002, p.198). Para Molotch & Lester (1993, p.34), as notícias nos apresentam fatos importantes “a que nós não assistimos diretamente dão como observáveis e significativos acontecimentos que seriam remotos de outra forma”. Tuchman (1993, p. 262) afirma que os relatos noticiosos “são documentos públicos que colocam o mundo à nossa frente”.

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Vários autores reconhecem também a relevância do jornalismo para a construção da democracia. Nas sociedades democráticas, o acesso à informação, mais que um direito, pode ser entendido como uma necessidade “que emana dos próprios fundamentos do sistema” (SOUSA, 2002, p.198). Traquina ressalta especialmente o papel da imprensa como fiscalizadora dos poderes constituídos, por meio de uma relação “simbiótica”, em que o jornalismo desempenha um papel de adversário do poder político – tanto que passou a ser chamado de Quarto Poder. A democracia não pode ser imaginada como sendo um sistema de governo sem liberdade e o papel central do jornalismo, na teoria democrática, é de informar o público sem censura. Os pais fundadores da teoria democrática têm insistido, desde o filósofo Milton,36 na liberdade como sendo essencial para a troca de ideias e opiniões, e reservaram ao jornalismo não apenas o papel de informar os cidadãos, mas também, num quadro de checks and balances (a divisão do poder entre poderes) a responsabilidade de ser o guardião (watchdog) do governo (TRAQUINA, 2005, p.22).

O autor destaca ainda que tal como a democracia sem uma imprensa livre é impensável, o jornalismo sem liberdade é farsa ou tragédia. O que é o jornalismo num sistema totalitário (...) é fácil de definir: o jornalismo seria a propaganda a serviço do poder instalado (TRAQUINA, 2005, p.23).

Diante desses pressupostos e considerando-se o histórico da Voz do Brasil como porta-voz do governo, cabe a pergunta: seria possível praticar o jornalismo no programa, visto que esse ofício implica numa função de fiscalização dos poderes constituídos a partir de um compromisso com o interesse público? E qual seria o conceito de “notícia” adotado pela Voz do Brasil, que justificaria que determinado acontecimento ou informação fosse selecionado para estar no programa? Para avaliar o processo de seleção de notícias em veículos jornalísticos, optamos pelos conceitos ligados à noticiabilidade e aos valores-notícias dos acontecimentos. Dentre os atributos propostos para se avaliar a noticiabilidade, encontramos a novidade (quando o fato é inédito, portanto noticiável), raridade (quando acontece o inesperado, conforme o exemplo alegórico clássico de que um cachorro que morde um homem não é notícia, mas se o homem morde o cão será noticiado), relevância

36 O poeta e filósofo britânico John Milton (1608-1674) dedicou sua vida à defesa das liberdades civis, políticas e religiosas, razão pela qual é frequentemente citado em temas ligados à liberdade de expressão e ao direito à informação. Não se encontra nos seus escritos passagem que se refira expressamente à “liberdade de informação”, visto que essa terminologia não era adotada na sua época. No entanto o conceito se faz presente na sua obra Areopagítica: “Dai-me liberdade para saber, para falar e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades” (Give me the liberty to know, to utter, and to argue freely according to conscience, above all liberties).

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(a importância do acontecimento para a sociedade ou a posição hierárquica dos personagens envolvidos), proximidade geográfica (se o fato ocorre próximo ao público do veículo), negatividade (a questão das bad news e das good news), entre outros. Nesta dissertação, para avaliar o processo de seleção de notícias pela Voz do Brasil e pelos jornais analisados, optamos pelos conceitos de noticiabilidade apresentados por Mauro Wolf (2012) e outros autores, especificamente os critérios “substantivos”, que permitem uma avaliação menos subjetiva do que seriam temas de interesse da sociedade, vis-à-vis os interesses do Poder Executivo federal e dos órgãos da administração direta. Para tal análise, foi feito o acompanhamento das edições da Voz do Brasil durante 30 meses,37 com o objetivo de se identificar exemplos que melhor exemplificassem a hipótese aqui apresentada, que os interesses do governo se sobrepõem aos da sociedade. Apesar de a pesquisa se limitar ao período entre 2013 e 2015, buscamos duas referências anteriores desse padrão de seleção de notícias pela Voz do Brasil – pois as consideramos emblemáticas para a análise aqui desenvolvida e por terem sido documentadas em outros trabalhos. A primeira delas, relatada por Lilian Perosa (1995, p.124), ocorreu em 1980, durante a primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil, quando o país ainda vivia sob o regime militar. Na ocasião, o principal líder da igreja católica reproduziu em sua fala um protesto da população de Teresina, capital do Piauí.

O “protesto” do papa João Paulo II Era o dia 8 de julho de 1980. Durante uma rápida escala de seu voo no Aeroporto de Teresina, o papa João Paulo II foi recebido por cerca de 100 mil pessoas, que o aguardavam debaixo de um sol escaldante. No meio da multidão, foi levantada uma faixa que trazia os dizeres: “Sto Padre, o povo passa fome”. Uma manifestação como essa, naquela época de ditadura militar, era passível de enquadramento na Lei de Segurança Nacional (LSN). Embora as redações não mais estivessem sujeitas à censura prévia, os jornalistas temiam ser enquadrados na Lei de Imprensa e na própria LSN. Portanto, a cobertura da imprensa sobre a visita papal dificilmente reproduziria aquele protesto popular. No entanto, após rezar a oração do Pai Nosso, o próprio João Paulo II falou à multidão: “Pai Nosso, o povo passa fome”. A frase pronunciada pelo pontífice transformou-se em uma espécie de “alvará” para que a imprensa a publicasse com

37 O acompanhamento do programa se deu entre janeiro de 2013 e junho de 2015, com o objetivo de identificar edições em que houvesse fatos amplamente noticiados pelos demais veículos de imprensa, e que permitissem a comparação do programa radiofônico oficial com os três jornais impressos de circulação nacional escolhidos para compor esta análise.

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destaque – e que, no caso da Folha de S.Paulo, fosse publicada a foto da faixa para “justificar” a principal manchete daquela edição.

Figura 1 – Capa da Folha de S.Paulo – 09 jul 1980

Fonte: Jornal Folha de S.Paulo de 09 de julho 1980

Já o programa Voz do Brasil daquela data ignorou a fala papal. Conforme Lilian Perosa, a justificativa foi que o programa – assim como todos os demais veículos ligados ao governo federal e controlados, na época, pela Empresa Brasileira de Notícias (EBN) – somente veiculavam informações que tivessem caráter “oficial”. Deve-se entender esse “oficial” como o endosso de alguma autoridade do governo federal ao acontecimento. Portanto, segundo a autora, o fato jornalístico por si só (no caso, o protesto estampado na faixa e a fala do papa) não bastava para a sua divulgação: Sua veracidade e, portanto, sua credibilidade, estariam condicionados à sua confirmação pela “autoridade governamental”. A palavra oficial, nesse caso, determinaria o fato. O fato sem a palavra oficial não existiria, portanto, não seria publicável (PEROSA, 1995, p.123).

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A manifestação que virou “pauta de reivindicações” Em 11 de junho de 2003, quando já estava há seis meses à frente da Radiobrás e buscava implantar conceitos jornalísticos na Voz do Brasil, Eugênio Bucci vivenciou o que posteriormente definiu como tentativa de “tapear” a nação no programa radiofônico. Naquele dia, entidades sindicais de vários Estados organizaram uma manifestação contra a reforma previdenciária, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. O protesto contou com a participação de cerca de 20 mil funcionários públicos. Aquela era a primeira manifestação popular contra o governo Lula, que tinha suas origens justamente no movimento sindical. “O protesto serviu também para expor as divergências internas do partido do presidente”, pois alguns parlamentares do PT “entraram em marcha em apoio aos manifestantes, agravando as fissuras internas do PT e da base aliada” (BUCCI, 2008, p.154). No programa Voz do Brasil, a manchete daquele dia foi: “Os remédios de uso contínuo devem ficar mais baratos”, com direito a uma informação complementar: “Os diabéticos e os hipertensos estão entre os beneficiados”. As duas chamadas principais, sobre os remédios que “deveriam” ficar mais baratos, não noticiavam nenhum benefício direto para o ouvinte. Tudo se reduzia a uma intenção do ministro da Saúde, Humberto Costa, que anunciara, naquele dia, que o governo estaria preparando uma lista de medicamentos para serem vendidos a preços menores. Mas isso, de acordo com o próprio governo, só aconteceria no final daquele ano – e não aconteceu nunca (BUCCI, 2008, p.151).

Em relação ao protesto dos servidores federais, a Voz do Brasil anunciou a notícia da seguinte maneira: “Sindicalistas entregam ao governo propostas para a reforma da Previdência”. Conforme Bucci, a reivindicação dos servidores foi relatada no programa como um episódio “diplomático”: ao ser perguntado pela apresentadora como a proposta havia sido recebida pelos ministros, o repórter, de forma bem informal, respondeu ao apresentador: “Olha, muito bem”. Em seguida, o repórter reproduziu os argumentos do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, “como se lesse um texto sem querer dar a impressão de que lia” (BUCCI, 2008, p.152). A Voz do Brasil daquele dia ainda abriu o microfone para que o então presidente do PT, José Genoino, emitisse sua opinião sobre o episódio: “A manifestação

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de servidores públicos contra a reforma da Previdência faz parte do processo democrático, mas a retirada da proposta do governo é inegociável”.38 As “reportagens” apresentadas naquela noite não estavam à altura da palavra reportagem. (...) O ouvinte que insistisse em acreditar no programa saía dele sem ter uma visão mínima do que tinha se passado em Brasília naquele 11 de junho. Depois, era um texto mal- intencionado. À indigência jornalística vinha se somar o propósito de mentir, de esconder os acontecimentos (BUCCI, 2008, p.153).

Nos principais jornais do dia seguinte, a imagem dos servidores públicos ocupando a Esplanada dos Ministérios foi estampada na primeira página, com títulos que destacaram as diferenças existentes entre o governo e os sindicatos: Estado: “Servidores agridem líderes do PT e da CUT” Folha: “Servidores fazem maior ato contra Lula” Globo: “Ato de 20 mil divide sindicatos e PT”

Figura 2 – Capas dos jornais – 12 jun 2003

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 12 de junho de 2003

A Voz do Brasil daquela data, na avaliação de Bucci (2008, p.154), agredia o cidadão no seu direito à informação, “pela conduta premeditada da equipe responsável pela produção do horário reservado ao Poder Executivo”. O episódio foi usado por Bucci como símbolo do tratamento da notícia que deveria ser evitado no programa e acelerou as

38 Do ponto de vista formal, não caberia a um veículo de comunicação ligado à Presidência dar espaço para o presidente de uma sigla – mesmo que ele fosse do mesmo partido que o presidente da República, pois ele não exercia nenhuma função na administração direta federal.

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mudanças feitas na equipe – que passou a ter apresentadores e editores “sem vícios” –, para que se pudessem adotar novos princípios editoriais no programa, voltados para o direito à informação.

O conceito de noticiabilidade O conceito de noticiabilidade (newsworthiness, no termo em inglês) orienta o trabalho jornalístico, permitindo uma avaliação dos acontecimentos com base em um conjunto de critérios de relevância que definem a aptidão de cada evento para virar notícia. Esses critérios se aplicam nas diferentes etapas da produção jornalística: pauta, apuração, reportagem e edição. Na avaliação do conteúdo da Voz do Brasil, adotamos o que Wolf (2012) define como critérios substantivos de avaliação das notícias, que se articulam com base em dois fatores básicos: a importância e o interesse do acontecimento.

Num mundo ideal – sem a influência de fatores externos, nem das convicções pessoais dos jornalistas, nem das estruturas organizacionais e hierárquicas das empresas de comunicação – a avaliação da noticiabilidade poderia ser baseada nos chamados valores-notícia. Os valores-notícia são a qualidade dos eventos ou da sua construção jornalística, cuja ausência ou presença relativa os indica para inclusão num produto informativo. Quanto mais um acontecimento exibe essas qualidades, maiores são as suas possibilidades de ser incluído (GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.114).39

Esses valores-notícia são regras práticas que abrangem um corpus de conhecimentos profissionais em uma redação, e justificam as linhas-guia que orientam “o que deve ser enfatizado, o que deve ser omitido, onde dar prioridade na preparação das notícias a serem apresentadas ao público” (GOLDING-ELLIOTT, 1979, p.114). Wolf (2012, p.186) destaca que o contexto profissional-organizacional- burocrático das empresas exerce uma influência decisiva nas escolhas dos jornalistas – da mesma forma que influencia as relações entre repórteres e editores, e as relações entre jornalistas e executivos das empresas de comunicação nas quais trabalham. A fonte de recompensas do jornalista não está entre os leitores, que são manifestamente os seus clientes, mas entre seus colegas e superiores. Em vez de aderir a ideais sociais e profissionais, o

39 Do original em inglês: “News values are qualities of events or of their journalistic construction, whose relative absence or presence recommends them for inclusion in the news product. The more of such qualities a story exhibits, the greater its chances of inclusion” (tradução do autor).

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jornalista redefine os próprios valores no nível mais pragmático do grupo redacional (BREED, 1999, p.84).40

No caso da Voz do Brasil, o fato de o programa estar vinculado hierarquicamente à estrutura da Presidência da República permitiu a disseminação de uma espécie de consenso, baseado em uma falsa premissa: por ser estatal e controlar emissoras de rádio e TV, a empresa existia para defender o governo e para preservar a imagem das autoridades. Formalmente, não há na Voz do Brasil qualquer orientação para que o programa se preste a este papel (BUCCI, 2008, p.33). Ao contrário, as políticas e manuais que já foram tornados públicos – incluindo o Manual de Jornalismo da EBC, lançado em 2013 e ainda em vigor – defendem a imparcialidade no trabalho jornalístico. Um exemplo é o texto introdutório do Manual, assinado pelo então presidente da estatal, Nelson Breve: A liberdade de expressão e o direito à informação são princípios fundamentais da democracia e razão essencial da existência da imprensa. Portanto, o jornalista é um servidor da sociedade. Ele tem a missão de ser os olhos, ouvidos e demais sentidos do povo, onde estiver, reportando com fidelidade, precisão e honestidade os fatos e acontecimentos de interesse público (BREVE, 2013, p.7).

No entanto, não é isso que se nota no programa, conforme alguns exemplos compilados entre 2013 e 2015, que serão analisados a seguir.

O “apagão” elétrico de 2014 No dia 4 de fevereiro de 2014, uma terça-feira, houve uma falha no fornecimento de energia elétrica em boa parte do país. O problema ocorreu no início da tarde em uma linha de transmissão no Estado do Tocantins e, em decorrência de uma reação em cadeia, parte do sistema interligado de transmissão nacional foi desligado, por razões de segurança. Esse “apagão”, na linguagem popular adotada pela imprensa, atingiu 11 Estados, nas regiões Sul, Sudeste, Norte e Centro-Oeste. A falta de energia afetou, diretamente, seis milhões de clientes das empresas distribuidoras de energia (entre residências, estabelecimentos comerciais e outras instituições), ou cerca de 11 milhões de pessoas. Nos grandes centros, a falta de energia

40 Do original em inglês: The newsman’s source of rewards is located not among the readers, who are manifestly his clients, but among his colleagues and superiors. Instead of adhering to societal and professional ideals, he redefines his values to the more pragmatic level of the newsroom group (tradução do autor).

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provocou problemas nos transportes públicos, notadamente nos metrôs e trens urbanos, assim como no trânsito, pois afetou o funcionamento dos semáforos. A notícia foi destacada como manchete de primeira página, nos três jornais aqui analisados, nas edições do dia seguinte: O Estado de S.Paulo: “Apagão atinge 11 Estados e analistas veem sistema frágil” Folha de S.Paulo: “Apagão atinge 11 Estados, e 6 milhões ficam sem luz” O Globo: “Sistema opera no limite e apagão pode se repetir”

Figura 3 – Capas dos jornais – 05 fev 2015

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 05 de fevereiro de 2014

Além das manchetes, o “apagão” mereceu dos jornais uma ampla cobertura nas páginas internas, que relataram os impactos sociais e políticos do episódio e buscaram explicações para o incidente. O impacto, principalmente nas grandes cidades, foi tamanho que o Ministério de Minas e Energia convocou uma entrevista coletiva para o final daquela tarde, em Brasília. Apesar da atenção que o próprio ministério responsável pela gestão do setor elétrico brasileiro deu ao episódio, o programa Voz do Brasil daquela data, transmitido ao vivo das 19h00 às 19h25, não considerou a notícia do apagão entre as três manchetes destacadas no teaser de abertura do programa – que optou por temas ligados a políticas públicas do governo (como a agricultura e a saúde pública).41

41 As manchetes foram as seguintes: (1) “Mais de R$ 5 bilhões foram investidos, nos últimos 10 anos, para a compra de quatro milhões de toneladas de produtos da agricultura familiar”; (2) “Um bilhão e 300 milhões de reais vão ser dados de incentivo fiscal, esse ano para projetos e pesquisas de combate ao câncer e de apoio às pessoas com

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O assunto “apagão” só foi tratado decorridos 14 minutos de transmissão – portanto, mais da metade do programa. A primeira participação ao vivo da repórter que acompanhou a entrevista coletiva do Ministério das Minas e Energia abordou um tema correlato tratado pelos porta-vozes: o impacto do baixo nível de água nos reservatórios do país sobre o sistema de geração nacional.42 Somente em sua segunda participação no programa é que a repórter falou sobre a falha no fornecimento de energia: - O Operador Nacional do Sistema (...) afirmou que houve um curto-circuito em uma parte da linha de transmissão no Estado do Tocantins que comprometeu 8% da carga do país. O secretário executivo do Ministério de Minas e Energia, Márcio Zimmermann, afirmou que o Operador Nacional do Sistema irá fazer uma avaliação sobre o fato, que não foi causado pela alta do consumo de energia no país. E diz que, sempre que acontece uma ocorrência como esta, há desligamento da carga para evitar problemas mais sérios. A interrupção na transmissão de energia foi às duas horas e três minutos desta tarde e, de acordo com o Operador Nacional do Sistema, a energia começou a ser restabelecida 35 minutos depois. [fala da repórter Priscila Machado]43

O relato acima durou exatos 55 segundos, sem qualquer réplica ou questionamento por parte dos apresentadores do programa, como recomendaria a prática do bom jornalismo e o compromisso com o direito à informação. Por exemplo, os ouvintes não foram informados quanto tempo demorou para que a energia fosse totalmente restabelecida, já que a jornalista informou em seu relato apenas que “a energia começou a ser restabelecida 35 minutos depois” do incidente.44 Além disso, uma análise da distribuição do tempo daquela edição da Voz do Brasil entre os 14 assuntos incluídos na pauta também indica uma priorização de temas de interesse do governo federal, em detrimento da notícia do “apagão”, conforme ostram a tabela:

Tabela 1 – Pauta da ‘Voz do Brasil’ – 04 fev 2014 Ordem de apresentação Assunto Duração 1 Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) 3min01seg

deficiência”; e (3) “Brasil deve receber esse ano, no Carnaval, quase 6,5 milhões de turistas. A expectativa é injetar mais de R$ 6 bilhões na economia do país”. Ainda que sejam pautas ligadas a políticas públicas (1 e 2) e ao potencial turístico do país (3), as notícias destacam temas de interesse do governo, e não da população, e destacam grandes cifras, que, nos casos 2 e 3, ainda não haviam se materializado. 42 A primeira participação da repórter Priscila Machado durou 1 minuto e 28 segundos. 43 A transcrição integral dos programas Voz do Brasil analisados nesta dissertação estão disponíveis em . Acesso em 01 jul 2015. 44 O texto publicado pela Folha no dia seguinte informou que “no fim da tarde (...), em São Paulo e no Rio, havia indústrias sem luz e semáforos apagados”.

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2 Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura 2min50seg 3 Dia Mundial do Câncer e apoio a pessoas com deficiência 3min8seg 4 Desembarque de cubanos para o Programa Mais Médicos 47seg 5 Receitas com turismo previstas para o Carnaval 2014 1min57seg 6 Reforma do Cristo Redentor no Rio de Janeiro 52seg 7 Nível de água nos reservatórios das hidrelétricas 1min28seg 8 Interrupção no fornecimento de energia 55seg 9 Indicadores da produção industrial do país 39seg 10 Posse do ministro Aloizio Mercadante na Casa Civil 2min07seg 11 Agência-Barco da Caixa Econômica na Ilha de Marajó 2min17seg 12 Programa Rotas de Integração Nacional na Ilha de Marajó 39seg 13 Caravana da Secretaria da Micro e Pequena Empresa 36seg Serviço Aéreo Fácil tira dúvidas sobre direitos de 14 45seg passageiros Fonte: Cronometragem feita pelo próprio autor com base no arquivo em áudio da EBC Serviços.45

Wolf propõe uma análise da noticiabilidade a partir do que chama de “admissões implícitas” ou de “considerações relativas”. São elas: (a) as características substantivas das notícias ou seu conteúdo, uma categoria de considerações que diz respeito a quanto o evento é apto a se transformar em notícia; (b) a disponibilidade de material e os critérios relativos ao produto informativo, que se refere ao conjunto dos processos de produção e de realização do trabalho jornalístico; (c) o público, ou seja, a imagem que os jornalistas têm a respeito daqueles que serão destinatários das notícias; e (d) a concorrência, que diz respeito às relações entre os meios de comunicação de massa presentes no mercado (WOLF, 2012, p.207). Para efeitos desta análise, optamos por trabalhar com os critérios substantivos propostos pelo autor. Esses critérios articulam-se com base em dois fatores principais: a importância e o interesse gerado pela notícia. Para que sejam avaliados esses fatores, Wolf (2012, p.208-214) sugere que a análise das notícias seja baseada a partir de quatro variáveis: (1) o grau hierárquico dos envolvidos no acontecimento; (2) o impacto do fato sobre a nação e interesse nacional; (3) a quantidade de pessoas que o acontecimento envolve (direta ou indiretamente); e (4) a relevância do fato em relação aos desenvolvimentos futuros de uma determinada situação.

45 A íntegra dos conteúdos em áudio dos programas analisados nesta dissertação estão disponíveis em . Acesso em 01 jul 2015.

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Na primeira variável, o autor indica que quanto mais o acontecimento envolver ou interessar membros da elite política ou econômica, mais chance terá de se tornar notícia. “A hierarquia governamental é visível (...) e auxilia os jornalistas em sua avalição de importância” (GANS, 1979, p.147). O valor/notícia “importância” de um evento é definido com base em fatores como o grau de poder institucional, a visibilidade dos personagens (a capacidade de serem “reconhecidos” pelo público em geral) e o peso das organizações envolvidas. Se analisado com base nessa variável, o “apagão” deveria ter tido destaque na Voz do Brasil, visto que se tratou de um tema de gestão do Ministério das Minas e Energia e de interesse direto do governo, a ponto de ter merecido uma entrevista coletiva naquele mesmo dia, com a participação de representantes do alto escalão do ministério. Na variável “impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional”, Galtung e Ruge (1993, p.63) sugerem a análise com base no valor/notícia “significatividade”, ou seja, o potencial do acontecimento em influir ou incidir sobre os interesses do país. A cobertura sobre o “apagão”, feita pelos jornais impressos analisados, destacou os efeitos sobre o sistema elétrico: além do O Globo, que destacou na manchete o risco de novo “apagão” devido à suspeita de o sistema operar “no limite”, a Folha de S.Paulo informou que a presidente da República havia convocado uma reunião de emergência (informação que não foi dada pela Voz do Brasil) e o Estado de S.Paulo questionou o fato de o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) descartar uma sobrecarga do sistema, sem mesmo saber as reais causas da pane. A terceira variável, “quantidade de pessoas que o acontecimento (de fato ou potencialmente) envolve”, correlaciona-se diretamente com a anterior – pois há uma complementaridade entre o interesse social de um episódio e o número de pessoas atingidas. Gans (1979, p.151) diz que quanto mais elevado for o número de pessoas envolvidas, mais importante será a notícia. No caso do “apagão”, o fato de ter deixado sem luz cerca de 11 milhões de pessoas – e de ter afetado outros milhões de moradores das grandes cidades (usuários ou não de transportes públicos) – já justificaria um destaque maior na Voz do Brasil. Na quarta variável, “relevância e significatividade do acontecimento quanto à evolução futura de uma determinada situação” (GANS, 1979, p.152), avalia-se a capacidade de uma cobertura manter o interesse do público e, portanto, merecer uma cobertura prolongada. No caso do “apagão” em si, a notícia não teria uma “cauda longa”, visto que a pane foi solucionada em algumas horas, mas o contexto do setor elétrico nacional tem esse potencial (no

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que se refere à insegurança jurídica dos contratos com os geradores de energia, falta de investimentos em infraestrutura (atraso nas licitações e licenças de novas obras) e o decorrente risco de um novo “apagão”. Tanto que foi destacado pelos jornais impressos. Na cobertura feita pela Voz do Brasil, o “apagão” foi tratado como assunto de menor relevância. O programa omitiu algumas informações passadas pelo próprio Ministério das Minas e Energia e pelo Operador Nacional do Sistema – como o fato de o problema ter afetado seis milhões de unidades consumidoras em 11 Estados (o programa citou apenas que o curto-circuito “comprometeu 8% da carga do país”). A reportagem do programa também evitou o uso do termo “apagão”, preferindo “interrupção na transmissão”. Vale pontuar que essa opção semântica do programa não está incorreta; está mais em conformidade com a norma padrão da língua portuguesa do que “apagão”, pois evita o uso de uma gíria que começou a ser incorporada ao repertório dos brasileiros a partir de meados dos anos 1980, em substituição à expressão em inglês até então usada nesses casos de falta generalizada de energia (blackout). No entanto, se analisado conforme os conceitos de noticiabilidade aqui adotados, o programa deveria ter destacado o problema do “apagão”, em vez de privilegiar temas de abrangência e repercussão limitadas – tanto geograficamente quanto no quesito relevância.

A polêmica saída do ministro da Educação em 2015 Em março de 2015, o ministro da Educação, Cid Gomes, compareceu ao Plenário da Câmara dos Deputados depois de ser convocado pela Casa para se explicar sobre declarações que havia feito a respeito dos parlamentares. A convocação do ministro foi aprovada pelo Plenário da Câmara, que se transformou em uma Comissão Geral para receber o ministro da Educação. Conforme o regimento da Casa, caso ele não comparecesse, poderia sofrer processo por crime de responsabilidade. Ex-governador do Ceará e no cargo de ministro há cerca de três meses, Cid Gomes disse, durante uma visita à Universidade Federal do Pará (UFPA), no dia 27 de fevereiro, que tem lá [no Congresso] uns 400 deputados, 300 deputados que, quanto pior, melhor para eles. Eles querem é que o governo esteja frágil porque é a forma de eles achacarem mais, tomarem mais, tirarem mais dele, aprovarem as emendas impositivas. [ministro Cid Gomes, em pronunciamento na UFPA] (SOUZA, 2015)

Da tribuna do Plenário, o ministro disse que “partidos de oposição têm o dever de fazer oposição” e que os “partidos de situação têm o dever de ser situação ou então larguem o osso, saiam do governo”. Essa frase causou uma reação dos

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parlamentares no plenário, que resultou em uma discussão com os deputados. O ministro dirigiu-se ao presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ): – Eu fui, Sras. e Srs. Deputados, acusado de mal-educado. O Ministro da Educação é mal-educado. Pois muito bem, eu prefiro ser acusado por ele [apontando para o presidente da Casa, Eduardo Cunha] de mal-educado do que ser, como ele, acusado de achaque! [ministro Cid Gomes, no Plenário da Câmara]46

Houve uma sequência de reações dos parlamentares; o deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ) falou ao microfone: “Esse cidadão não vai vir aqui debochar da cara dos representantes da população brasileira!”; o deputado Sergio Zveiter (PSD-RJ) chamou o ministro de “palhaço”. O ministro tentou revidar, mas teve seu microfone desligado por determinação do presidente da Câmara – alegando que a palavra estava com o parlamentar. Depois disso, o ministro abandonou a tribuna do Plenário. O deputado Eduardo Cunha encerrou a Comissão Geral e anunciou que iria processar o ministro. – Não vou admitir que alguém que seja representante do Poder Executivo não só agrida esta Casa, como agrediu a todos os seus Parlamentares, como vem aqui e reafirme a agressão, inclusive chegando ao ponto de querer dominar. Então, a Procuradoria vai processar. A Presidência vai processar. (...) Esta Casa vai se dar ao respeito, dependendo desta Presidência e, pelo que estou depreendendo, da maioria dos Parlamentares que não se sentem achacadores e não vão levar essa ofensa para casa. [deputado Eduardo Cunha, no Plenário da Câmara]

Minutos depois, o próprio presidente da Câmara foi quem primeiro anunciou a demissão do ministro aos deputados presentes no Plenário – após ter sido informado pelo ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante. A demissão do ministro da Educação, após a acalorada discussão no Parlamento, virou manchete nos jornais do dia seguinte. Estado: “Ministro é demitido depois de bate-boca no Congresso” Folha: “Após bate-boca na Câmara, Eduardo Cunha anuncia queda de ministro” Globo: “PMDB ameaça sair da base, e Cid Gomes deixa governo”

46 Transcrição da Sessão Plenária da Comissão Geral da Câmara dos Deputados, realizada no dia 18 mar 2015, está disponível em . Acesso em 01 jul 2015.

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Figura 4 – Capas dos jornais – 19 mar 2015

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de março de 2015

Nos textos publicados nas primeiras páginas, os jornais contextualizaram a saída do ministro e a crise entre os poderes Executivo e Legislativo que ela simbolizava. A Folha definiu o fato de o presidente da Câmara anunciar a saída do ministro antes do próprio Palácio do Planalto como um “episódio inusitado e constrangedor para o governo”. O Estado de S.Paulo informou que o ministro foi demitido em razão do bate- boca com o presidente da Câmara e que, devido ao episódio, o PMDB ameaçava romper com o governo. Já O Globo destacou que “a demissão foi comunicada a Cunha, e anunciada em plenário, antes mesmo de Cid chegar ao Planalto”. Para a Voz do Brasil, daquele dia, o principal assunto foi a assinatura do Projeto de Lei de combate à corrupção, anunciado em cerimônia no Palácio do Planalto. Na pauta do programa, o tema mereceu duas matérias, ocupando um tempo total de mais de sete minutos, trazendo trechos dos discursos da presidente da República e do ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso. Para o jornal O Globo, o episódio envolvendo o ministro na Câmara “ofuscou a divulgação do pacote anti-corrupção de Dilma”, anunciado pela presidente naquele mesmo dia, no Palácio do Planalto. Na pauta do programa Voz do Brasil, a notícia da demissão do ministro Cid Gomes apareceu como segundo assunto, portanto foi considerado um conteúdo relevante. No entanto, a notícias não detalhou as circunstâncias que provocaram a saída – sequer foi citado que o ministro havia comparecido ao Congresso, quanto mais que houve um bate- boca com os parlamentares. Além disso, a notícia sobre a saída do ministro ocupou

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apenas 11 segundos do programa (a menor duração dentre todos os assuntos incluídos na pauta daquela edição da Voz do Brasil) e foi dada da seguinte forma pelos apresentadores: – O ministro da Educação, Cid Gomes, entregou hoje o seu pedido de demissão à presidenta . [locutor Luciano Seixas] – A presidenta agradeceu a dedicação do ministro que estava à frente à pasta. [locutora Kátia Sartório]

Tabela 2 – Pauta da ‘Voz do Brasil’ – 18 mar 2015 Ordem de Assunto Duração apresentação 1 Pacote Anti-Corrupção 1 4min14seg 2 Pacote Anti-Corrupção 2 3min06seg 3 Demissão do ministro da Educação, Cid Gomes 11seg 4 Venda de bebida a menores vira crime 2min55seg 5 Leilão da Ponte Rio-Niterói 5min16seg 6 Programa de cisternas 57seg 7 Recadastramento no Bolsa Família 1min 8 Prêmio Bloomberg de combate ao tabaco 1min08seg 9 Força Nacional de Segurança no RN 44seg 10 Assentamento de famílias do Maranhão 28seg 11 Prazo final para declaração da RAIS 46seg

Fonte: Cronometragem do próprio autor com base no conteúdo da EBC Serviços.

Conforme declarado no site da EBC Serviços, o objetivo da Voz do Brasil é levar “aos cidadãos dos mais distantes pontos do país” notícias de seu interesse sobre o Poder Executivo. Mas, apesar da proposição de veicular notícias que sejam de interesse do cidadão, a análise do conteúdo do programa revela a influência exercida pela estrutura da estatal sobre o trabalho jornalístico, o que faz prevalecer os interesses do poder constituído. O processo jornalístico nas redações é submetido a “restrições ligadas à organização do trabalho, sobre as quais se constroem convenções profissionais” (WOLF, 2012, p.195). A noticiabilidade, portanto, está estreitamente ligada aos processos rotineiros e à padronização das práticas jornalísticas, que por sua vez são influenciados pela estrutura organizacional das empresas de comunicação. Os sistemas que regem o fazer jornalístico nas empresas funcionam a partir de uma ideologia dominante, que é socializada entre os que lá trabalham. No processo de avaliação da

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noticiabilidade, “a relevância de um acontecimento é determinada e comensurada com base nas exigências organizacionais do aparato” (WOLF, 2012, p.265). No caso da Voz do Brasil, essa influência do aparato se fazia onipresente desde os tempos do DIP da era Vargas, quando todos os jornalistas sabiam o que se podia e o que não se podia noticiar. Durante o regime militar, certos nomes de políticos e de personalidades eram rigorosamente censurados no programa – entre eles, nomes tão díspares como o do ex- presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) e o do arcebispo de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara (1909-1999). Já no fim do período militar, “o programa não ficou ileso às investidas grotescas do regime autoritário”, como a ordem para que fosse suprimida nos textos da Voz do Brasil a patente do general Golbery do Couto e Silva, sempre que o então ministro da Casa Civil fosse mencionado, ou para que os redatores acatassem os desejos da esposa do presidente João Figueiredo, dona Dulce Figueiredo, e jamais a tratassem como “primeira-dama” na Voz do Brasil. Também, naquela fase, o programa foi proibido de se referir à residência oficial do presidente como Granja do Torto, “para evitar trocadilhos” (PEROSA, 1995, p.108). Mas orientações dessa ordem não foram exclusivas dos regimes autoritários. Mesmo durante os períodos em que o país experimentou a democracia, a Voz do Brasil submeteu-se aos desígnios dos governantes, independentemente de sua orientação política. Bucci lembra que o programa jamais tivera a atribuição legal de bancar “ a advogada dos governantes” perante o público. Nenhum órgão de radiodifusão sob gestão do Estado pode virar defensor de um “ponto de vista” em detrimento de outros pontos de vista, mesmo que seja o ponto de vista do presidente da República. Quem oficialmente defende os governos são os porta-vozes, os ministros, a base de sustentação do governo no Congresso (BUCCI, 2008, p.259).

As manifestações de rua em junho de 2013 As manifestações de rua realizadas no mês de junho de 2013 começaram a ganhar vulto no dia 6 de junho, com protestos em quatro capitais que haviam sido, inicialmente, organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento de 20 centavos nas tarifas do transporte público. A cidade de São Paulo presenciou, naquele dia, cenas de depredação no fim dos protestos. As capas dos jornais do dia seguinte destacaram essas cenas de violência – o Estado de S.Paulo deu a manchete para o assunto, enquanto na Folha e no O Globo, as cenas de depredação ilustraram a foto principal da página, com chamadas de texto secudárias: Estado: “Protesto contra tarifa acaba em depredação e caos em SP” Folha: “Vandalismo marca ato por transporte mais barato em SP” Globo: “Protestos contra passagens de ônibus em quatro capitais”

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Figura 5 – Capas dos jornais – 07 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 07 de junho de 2013

Os protestos voltaram a ocorrer nos dias 7, 11 e 13 de junho, sendo replicados em outras capitais. Aos poucos, as manifestações passaram a ter a participação mais ativa de grupos black blocs47, que se tornaram os principais responsáveis pela destruição de carros de polícia, mobiliário urbano (pontos de ônibus, telefones, lixeiras) e de lojas. As cenas de objetos incendiados nas ruas tornaram-se comuns naquele mês de junho, nos telejornais, nos jornais impressos, revistas, sites de notícias da internet e redes sociais. No dia 7 de junho, houve uma grande manifestação em São Paulo, que interrompeu o trânsito em um dos corredores de tráfego mais movimentado da capital (a Marginal do Rio Pinheiros, na zona sul). Uma estação de metrô foi depredada e houve conflito dos manifestantes com a polícia. No dia seguinte, os jornais paulistas destacaram o episódio – e, apesar das cenas impactantes, o carioca O Globo não tratou do assunto em sua capa. Estado: “Protesto fecha Marginal e lentidão chega a 226km” Folha: “Manifestantes causam medo, param marginal e picham ônibus”

47 Grupo de jovens vestidos com roupas pretas e com rostos cobertos com lenços, que foram responsáveis por algumas das depredações durante as manifestações e foram alvo de repressão pela Polícia.

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Figura 6 – Capas dos jornais – 08 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo de 08 de junho de 2013

Conforme aumentava a violência dos protestos, e os enfrentamentos entre os manifestantes e a polícia militar, os jornais ampliavam o destaque nas suas primeiras páginas. No dia 12 de junho, os jornais de São Paulo voltaram a destacar as depredações e os atos de vandalismo das manifestações.48 Vale destacar ainda que, nas edições do dia 14 de junho, embora as cenas de violência tenham ocorrido na cidade de São Paulo, também o jornal carioca O Globo destacou na primeira página os episódios nas ruas. Dessa forma, o jornal atestou a relevância nacional que o tema começava a ganhar, extrapolando a questão do reajuste das tarifas de transporte público e se tornando um assunto que atendia aos critérios de noticiabilidade do jornal. As manchetes das edições de 14 de junho foram: Estado: “Confronto fere mais de 100; paulistano vive dia de caos” Folha: “Polícia reage com violência e SP vive noite de caos” Globo: “Confronto se agrava em SP, com mais prisões e feridos”

48 No Estado, a manchete de 12 de junho foi: “Maior protesto contra tarifa tem bombas e depredação”; já a Folha destacou: “Contra tarifa, manifestantes vandalizam o centro de SP”.

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Figura 7 – Capas dos jornais – 14 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 14 de junho de 2013

As manifestações ocorreram às vésperas do início da Copa das Confederações, evento que tradicionalmente é organizado um ano antes do Mundial de Futebol pelo país- sede da Copa, reunindo seleções representantes de todos os continentes. O torneio teve início no dia 15 de junho, em Brasília. Os protestos não perderam força, mesmo após a redução das tarifas de transporte, e os manifestantes ampliaram o leque de reivindicações, pedindo melhores condições de saúde e educação. As pessoas nas ruas questionavam os gastos oficiais com as obras voltadas para a Copa do Mundo e pediam serviços públicos com o mesmo “padrão Fifa”, numa referência às exigências para a construção e reforma de novos estádios, feitas pelo órgão que administra o futebol mundialmente.49 O fato de os protestos ocorrerem simultaneamente ao evento esportivo da Fifa atraiu também a atenção da imprensa internacional para os protestos no Brasil. Alguns desses veículos destacaram o fato de a população brasileira ter “acordado” para os problemas do país e ocupado as ruas, conforme mostram os três exemplos abaixo: New York Times (EUA): “Protests Widen as Brazilians Chide Leaders” Le Monde (França): “Au Brésil, manifestations contre la vie chère à l'approche du Mondial” The Economist (Reino Unido): “The streets erupt” 50

49 Os manifestantes pediam ainda a prisão de políticos corruptos condenados pelo mensalão do PT, eram contra a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional que limitava as investigações do Ministério Público (PEC-37) e contra as greves que paralisavam os serviços de ônibus e metrô em São Paulo (CARLOS, 2015, p.15). 50 A matéria do Le Monde foi publicada no dia 17 de junho; as do NYT e da Economist foram publicadas em 18 de junho. Em tradução livre: “Protestos se espalham enquanto brasileiros repreendem políticos” (NYT); “No Brasil, manifestações contra os altos custos da Copa do Mundo” (Le Monde); e “A explosão das ruas” (Economist).

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Figura 8 – Sites da imprensa internacional – Junho 2013

Fontes: New York Times de 18 de junho, Le Monde de 17 de junho e The Economist de 18 de junho.

Mesmo extrapolando as reivindicações para temas de responsabilidade do governo federal (como saúde e educação) e ganhando, cada vez mais, destaque na imprensa nacional e internacional, os protestos somente foram abordados pelo programa Voz do Brasil no dia 18 de junho, doze dias depois da primeira grande manifestação. No evento de abertura da Copa das Confederações, no sábado, 15 de junho, a presidente da República foi vaiada pelo público presente ao Estádio Mané Garrincha, em Brasília, no momento em que sua imagem apareceu no telão. Do lado de fora do estádio, houve confronto entre manifestantes e a polícia, que deixou 39 feridos e 29 detidos.51 O episódio virou manchete nos jornais do dia seguinte, que trouxeram também as primeiras análises sobre uma semana de protestos pelo país, com títulos como: “A semana em que São Paulo ardeu” (Folha) e “Ritual de Passagem – A questão da tarifa de ônibus extrapolou os centavos e culminou em repressão, feridos e centenas de presos” (Estado). Nas manchetes, foi dado destaque às vaias à presidente da República: Estado: “Torcida vaia Dilma na festa de abertura em Brasília” Folha: “Estreia do Brasil tem vaia a Dilma, feridos e presos” Globo: “Torneio começa com vaias a Dilma e vitória da seleção”

51 Conforme reportagem da Agência Brasil, 29 pessoas foram detidas pela polícia do Distrito Federal e o Corpo de Bombeiros fez 39 atendimentos de emergência, entre eles três manifestantes com ferimentos de bala de borracha e quatro policiais.

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Figura 9 – Capas dos jornais – 16 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 16 de junho de 2013

Na segunda-feira, 17 de junho, os jornais apontavam a disposição do governo do Estado de São Paulo em negociar com os manifestantes – e seu comprometimento em não reprimir com violência os protestos. A Folha destacou, na capa, uma foto do confronto entre manifestantes e policiais do lado de fora do Maracanã, durante um jogo da Copa das Confederações. A Folha ainda revelou que a presidente da República havia desistido de fazer discurso no jogo de abertura do torneio, temendo justamente ser hostilizada pelos torcedores. Em O Globo, embora a manchete tenha sido voltada à reinauguração do Maracanã, a capa trouxe foto do confronto no Rio e a preocupação com os novos protestos que estavam marcados para ocorrer em São Paulo. Estado: “Protesto ganha apoio e governo busca diálogo” Folha: “Governo de SP pede e terá reunião com manifestantes hoje” Globo: “O Brasil e o mundo de olho em São Paulo”

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Figura 10 – Capas dos jornais – 17 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 17 de junho de 2013

Diante do compromisso do governo paulista de não reprimir com violência as manifestações, novos protestos ocorreram na segunda-feira, 17 de junho. Mais de 240 mil pessoas foram às ruas em 12 capitais, sendo que uma das imagens mais emblemáticas ocorreu em Brasília, com a ocupação do teto do Congresso Nacional pelos manifestantes, e que foi reproduzida nas capas dos três jornais analisados. Estado: “Protesto se espalha pelo país e políticos viram alvo” Folha: “Milhares vão às ruas ‘contra tudo’; grupos atingem palácios” Globo: “O Brasil nas ruas – Convocados pelas redes sociais, protestos mobilizam pelo menos 240 mil pessoas em 11 capitais”

Figura 11 – Capas dos jornais – 18 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 18 de junho de 2013

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Somente no dia 18 de junho, as manifestações foram incluídas na pauta da Voz do Brasil. O programa destacou que as manifestações eram legítimas e faziam parte da democracia. A Voz do Brasil reproduziu trechos de um discurso da presidente da República e de uma entrevista do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, que havia se reunido com representantes de alguns dos movimentos representados nas manifestações. Com 3min30seg de duração, a matéria foi o primeiro tema da pauta do programa: – As vozes das ruas querem mais cidadania, mais saúde, mais educação, mais transporte, mais oportunidades. A afirmação é da presidenta Dilma Rousseff, que reconheceu as manifestações em todo o país como legítimas e parte da democracia. [apresentadora Kátia Sartório] – A presidenta diz que as pessoas que foram ontem às ruas deram uma mensagem direta ao conjunto da sociedade, sobretudo aos governantes de todas as instâncias. [apresentador Luciano Seixas]52

A presidente Dilma Rousseff tratou do tema durante a cerimônia de anúncio do projeto de lei do novo Código de Mineração, no Palácio do Planalto, diante de uma audiência formada por políticos e empresários. Em matéria publicada no dia seguinte, a Folha considerou que, até aquele momento, a presidente vinha “buscando se manter distante de uma avaliação mais aprofundada sobre as manifestações” e contextualizou a decisão presidencial como tendo sido tomada em conjunto com a equipe de marketing do governo: Dilma incluiu as manifestações em seu discurso sobre o novo Código de Mineração após avaliar com o marqueteiro João Santana que era preciso se posicionar para não dar a imagem de que seu governo está na defensiva. “O meu governo, que quer ampliar o acesso à educação e à saúde, compreende que as exigências da população mudam. Mudam quando nós mudamos também o Brasil” (FOLHA DE S.PAULO, 2013b, p.C7).

Na Voz do Brasil, a fala da presidente foi editada em blocos, destacando os trechos que tentavam “responder” às reivindicações dos manifestantes. O discurso presidencial foi redigido cuidadosamente, utilizando-se do recurso da repetição para ressaltar determinadas expressões (como a expressão “mensagem direta das ruas”). Percebe-se também que, em alguns desses trechos, a fala é interrompida pelos aplausos dos presentes, indicando a presença de uma plateia amistosa no Palácio do Planalto: – Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, por melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à participação. Essa mensagem direta das ruas mostra a exigência de transporte público de qualidade e a preço justo. Essa mensagem direta das ruas é pelo direito de influir nas decisões de todos os governos, do

52 As transcrições da Voz do Brasil reproduzidas aqui foram retiradas do site da EBC Serviços. Disponível em . Acesso em 6 jun 2015.

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Legislativo e do Judiciário. Essa mensagem direta das ruas é de repúdio à corrupção e ao uso indevido do dinheiro público. [aplausos] Essa mensagem direta das ruas comprova o valor intrínseco da democracia, da participação dos cidadãos em busca de seus direitos. E eu queria dizer aos senhores: a minha geração sabe quanto isso nos custou (PORTAL DO PLANALTO, 2013).

Na noite daquele mesmo dia 18 de junho, manifestantes em São Paulo tentaram invadir a sede da Prefeitura, no centro da cidade, provocando um confronto violento com a Guarda Civil Metropolitana. Esse episódio e os saques de lojas ocorridos no centro mereceram o destaque principal dos jornais do dia seguinte, em detrimento da fala presidencial. Estado: “SP tem noite de caos, com ataque à Prefeitura e onda de saques” Folha: “Ato em SP tem ataque à prefeitura, saque e vandalismo; PM tarda a agir” Globo: “Capitais já baixam tarifas de ônibus; protestos continuam”

Figura 12 – Capas dos jornais – 19 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de junho de 2013

A inclusão do tema das manifestações na pauta da Voz do Brasil apenas depois de passados 12 dias do início dos protestos, indica a adoção de critérios peculiares de noticiabilidade no programa, se comparado seu conteúdo ao dos jornais da grande imprensa. O programa ignorou, por exemplo, o critério de “importância”, no que se refere ao impacto do fato sobre o interesse nacional e a quantidade de pessoas envolvidas. A Voz do Brasil abordou o assunto apenas quando a presidente da República veio a público com um “discurso” cuidadosamente elaborado – e, além disso, pronunciado em um ambiente “controlado”, cercada de aliados e distante da população insatisfeita. Isso

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nos leva a deduzir que, ao dispensar os critérios de noticiabilidade, o programa não apenas abriu mão dos preceitos de seu Manual de Jornalismo, mas tentou construir uma imagem de um governo aberto ao diálogo, a partir de técnicas das relações públicas. A administração da visibilidade através da mídia é uma atividade perseguida não somente nos períodos intensivos de campanhas eleitorais, ela faz parte também da própria arte de governar. A condução de um governo exige um contínuo processo de tomada de decisões sobre o que, a quem e como se pode tornar público. A tarefa de tomar e executar essas decisões pode ser confiada em parte a uma equipe especializada de assessores, responsáveis pela administração da relação entre governo e a mídia (THOMPSON, 2013, p.181).

No caso das notícias sobre as manifestações veiculadas pela Voz do Brasil, o critério de seleção esteve mais ligado à agenda governamental do que ao desenrolar dos acontecimentos. Nos dias que se seguiram à primeira menção no programa, o assunto seguiu na capa dos jornais, mas só voltaria a ser abordado pela Voz do Brasil quando algum representante do governo tinha algo a declarar – e não em decorrência de novos acontecimentos. Debord, ao analisar a postura do poder espetacular, alerta para o uso da desinformação por parte das autoridades: Contrariamente à pura mentira, a desinformação, e é nisto que o conceito é interessante para os defensores da sociedade dominante, deve fatalmente conter uma certa parte de verdade, mas deliberadamente manipulada por um hábil inimigo. O poder que fala de desinformação não acredita estar ele mesmo absolutamente sem defeitos, mas sabe que poderá atribuir a toda a crítica precisa esta excessiva insignificância que está na natureza da desinformação; e que deste modo não terá de reconhecer nunca um defeito particular. Em suma, a desinformação seria um mau uso da verdade (DEBORD, 1997, p.52).

O fato de a Voz do Brasil ter ignorado uma notícia de interesse nacional durante vários dias – ou de tê-la reproduzido apenas quando amparada por algum posicionamento oficial – pode indicar uma tentativa de convencer o público de que os acontecimentos nas ruas não seriam exatamente como foram. Ou que a percepção do público a respeito das manifestações estava errada – a despeito das evidências concretas, como o comércio fechado, as escolas com atividades canceladas, o trânsito comprometido pelos protestos e as cenas de depredações e de repressão policial. Uma postura assim poderia ser interpretada como um “discurso de propaganda”, conforme Ramonet: Um discurso de propaganda é um discurso que tenta, criando fatos, ou então ocultando-os, construir um tipo de verdade falsa, o que está longe de ser o desígnio de nossos próprios sistemas informacionais. (...)

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Propriamente falando, o discurso de propaganda é um discurso de censura, mas a censura, em compensação, não é necessariamente da ordem da propaganda. Esta consiste em suprimir, amputar, proibir um certo número de aspectos dos fatos, ou mesmo o conjunto dos fatos, em ocultá-los, em escondê-los (RAMONET, 1999, p.48).

No dia seguinte à primeira referência da Voz do Brasil aos protestos, dia 19 de junho, o programa tangenciou o tema, ao noticiar que o governo federal havia proposto uma desoneração para as empresas de transporte público – o que poderia provocar, indiretamente, uma queda no valor das tarifas. O anúncio foi feito no programa pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega: – Fizemos várias reduções em toda a cadeia de transportes, começando pelos mais importantes. A desoneração da folha de pagamento do setor de transporte, que beneficiou tanto o transporte coletivo quanto o transporte metroviário. Recentemente, fizemos também a redução do PIS e Cofins sobre passagens para todo o sistema. [ministro Guido Mantega]

Naquele mesmo dia, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e o governador do Estado, Geraldo Alckmin, anunciaram a redução do preço das passagens de ônibus e metrô. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes também reduziu as tarifas. A notícia ocupou a manchete dos principais jornais do dia seguinte. O anúncio da redução das tarifas foi comemorado pelas multidões reunidas naquela data em locais públicos, para assistir ao jogo entre Brasil e México pela Copa das Confederações – e esses governantes que tomaram as iniciativas foram vaiados quando a imagem deles foi exibida no telão, durante a notícia da redução das tarifas. A Voz do Brasil não deu a notícia da redução das tarifas nas capitais – o que é justificável por se tratar de um programa com informações do governo federal, enquanto essas medidas foram tomadas nos âmbitos municipais e estadual. Mas ao tentar divulgar as iniciativas federais que contribuiriam para a redução das tarifas – a desoneração para o setor de transportes – o programa não fez qualquer referência aos protestos. No programa, a medida foi relatada como uma demonstração de antecipação do governo diante das demandas populares (pois já havia um projeto semelhante em tramitação no Congresso): – O governo federal já tinha se antecipado às desonerações de tributos, previstas em um projeto aprovado na Câmara e que vai ser apreciado agora no Senado. De acordo com o ministro, a isenção total ou parcial de impostos permite uma redução de aproximadamente 10% nas tarifas de trens e metrô e de mais ou menos 7% nas tarifas de ônibus. [repórter Ricardo Carandina]

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Os jornais do dia seguinte destacaram que o preço das passagens havia baixado nas duas capitais por pressão das manifestações. Estado: “Haddad e Alckmin cedem, tarifa volta a R$ 3 e MPL mantém ato” Folha: “Protestos de rua derrubam tarifas” Globo: “Protestos derrubam aumentos em São Paulo e no Rio de Janeiro”

Figura 13 – Capas dos jornais – 20 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de junho de 2013

Apesar da redução das tarifas, os protestos no dia 20 de junho foram mantidos e reuniram cerca de um milhão de pessoas em várias capitais, sendo marcados pela violência. Em Brasília, os manifestantes tentaram invadir o Palácio do Itamaraty e, no Rio de Janeiro, a Prefeitura foi alvo dos manifestantes. A situação levou a presidente da República a cancelar uma viagem que faria ao Japão. Na edição daquela quinta-feira, a Voz do Brasil não noticiou as manifestações que ocorreram em Brasília e em outras capitais.53 O programa optou por abordar novamente a desoneração do setor de transportes, que havia sido citada no programa do dia anterior. Para tal, introduziu a informação no contexto dos protestos, mas sem se referir aos protestos daquele dia e sem trazer qualquer informação nova ou factual: – Manifestações estão acontecendo em todo o país, e uma das principais reivindicações é o preço das passagens de ônibus, trens, metrôs. [apresentadora Kátia Sartório] – Pois é, Kátia. Ontem, divulgamos, aqui na Voz do Brasil, que o governo federal já implementou medidas para reduzir os custos das empresas de transporte público. [apresentador Luciano Seixas]

53 Vale destacar que a tentativa de invasão do Itamaraty ocorreu no início da noite, no momento em que o programa entrava no ar, o que pode ter inviabilizado a inclusão dessa informação na Voz do Brasil.

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– A ideia, Luciano, é baixar o preço das passagens aqui no país. E, agora, vamos saber, ao vivo, com o repórter Ricardo Carandina, mais detalhes sobre todas essas medidas. [apresentadora Kátia Sartório]

Em sua participação ao vivo, o repórter esclareceu algumas medidas que haviam sido adotadas pelo governo: a redução a zero do imposto sobre combustíveis (Cide), implantada em junho de 2012; a eliminação da contribuição previdenciária de 20% sobre a folha de pagamento das empresas; e a isenção de PIS/Cofins para empresas de transporte. E voltou a se referir à fala do ministro da Fazenda, na véspera: – De acordo com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, essas medidas permitem uma redução no custo (...) das passagens de ônibus de aproximadamente 7%. E no caso das passagens de trens, a redução poderia chegar a 10%. Com isso, as passagens poderiam ser reduzidas ou pelo menos ter reajustes menores.54 [repórter Ricardo Carandina]

Além de cancelar a viagem ao Japão, a presidente convocou uma reunião de emergência para o dia seguinte, em Brasília, com os principais assessores e ministros. Os jornais destacaram o intuito da reunião, que era elaborar um plano de resposta à crise: Na reunião, a presidente vai fazer um balanço dos protestos e analisar se faz ou não um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV. (...) Assessores presidenciais disseram ontem reservadamente que o governo estava “atônito” e “perplexo” com as manifestações em todo o país, mas monitorava a evolução dos protestos para tomar medidas de emergência em caso de necessidade (FOLHA DE S.PAULO, 2013a).

A Voz do Brasil daquele dia ignorou o cancelamento da agenda internacional da presidente e também a convocação da reunião de emergência. A notícia não foi incluída entre os 13 assuntos da pauta daquela edição da Voz do Brasil:

Tabela 3 – Pauta da Voz do Brasil – 20 jun 2013 Ordem Assunto 1 Balanço parcial da vacinação contra a paralisia infantil 2 Desoneração do setor de transportes 3 Pesquisa Antaq sobre vias fluviais na Amazônia 4 Visita ao Centro Aberto de Mídia da Copa das Confederações 5 Inscrições no programa Pronatec Copa 6 Rua de Fortaleza é eleita a “mais enfeitada” para a Copa 7 Começam as Conferências Municipais de Assistência Social 8 Programa de Integração Educação Profissional-Básica

54 A matéria sobre a desoneração dos transportes públicos ocupou 2’51”, sem fazer qualquer referência ao cancelamento da viagem da presidente da República.

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9 Um milhão de alunos matriculados em cursos a distância do MEC 10 Taxa de desemprego em abril ficou em 5,8% 11 Fim do prazo de inscrição no plano “Viver sem Limites" 12 Três cidades do Ceará no programa “Crack, é possível vencer” 13 Último dia para inscrições no programa "Atletas nas Escolas" Fonte: Fonte: Análise do próprio autor, com base no conteúdo da EBC Serviços.

Já os jornais do dia seguinte não só noticiaram os protestos, como destacaram o cancelamento da viagem e a convocação da reunião de emergência: Estado: “Um milhão vai às ruas, violência cresce e Dilma chama reunião” Folha: “Protestos violentos se espalham pelo país e Dilma chama reunião” Globo: “Sem controle – Em noite de novos conflitos, depredações e saques, Itamaraty e prefeitura do Rio são atacados”

Figura 14 – Capas dos jornais – 21 jun 2013

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 21 de junho de 2013

Os protestos perduraram ainda por algumas semanas, embora tivessem perdido força com o passar do tempo. A “cobertura” das manifestações de 2013 pela Voz do Brasil, aqui analisada, representa bem o padrão de alinhamento do programa à agenda governamental, assim como o compromisso com os interesses do governo, em detrimento dos interesses do cidadão e da defesa do direito à informação.

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Ao optar por um discurso oficial que guarda apenas uma relação tangencial com os acontecimentos nas ruas, a Voz do Brasil ignorou critérios de noticiabilidade e não praticou o jornalismo defendido em seu próprio Manual de Jornalismo – segundo o qual os fatos de interesse público devem ser reportados “com fidelidade, precisão e honestidade”. Ao assumir como seu o discurso das autoridades, a Voz do Brasil adota uma “retórica da legitimação”, ou seja, um recurso utilizado por instituições e organizações para “enfrentar grupos com visões e interesses diversos ou por vezes incompatíveis aos seus ou para obter identificação junto a seus públicos” (HALLIDAY, 1987, p.91). O uso de recursos retóricos pela Voz do Brasil para desenvolver esse discurso de propaganda será objeto de análise no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 3

Análise retórica da ‘Voz do Brasil’

As origens da retórica na Grécia antiga O primeiro documento do qual se tem notícia a respeito da “arte” retórica é atribuído a Córax de Siracusa, no século 5 a.C. Ele redigiu um “manual” que servia de base para as argumentações de qualquer cidadão perante os tribunais gregos. O documento era um guia para as pessoas dedicadas ao ofício de escrever esses discursos e arguições a serem apresentados perante a Justiça. Philippe Breton, um autor contemporâneo que é uma referência em relação ao estudo da retórica, considera que Córax foi “o primeiro professor de retórica, de certa forma seu inventor”. No seu manual, do qual restam apenas vestígios e referências de outros autores (como Cícero e Quintiliano), Córax propõe um conjunto de procedimentos de natureza técnica que permitem argumentar de maneira mais eficaz diante dos tribunais. O retórico nasce ao mesmo tempo num contexto judiciário e no cerne de uma reflexão sobre os métodos que permitem sistematizar a eficácia da palavra (BRETON, 1999, p.48).

O sistema judicial da Grécia antiga permitia que tanto o queixoso quanto os acusados se defendessem a si mesmos diante de juízes e dos júris populares. Esse processo garantiria a avaliação da “autenticidade” de causa cada um. O tratado escrito por Córax trabalhava o conceito de que todo discurso, para ser convincente, necessitava ser “organizado”. Ele desenvolveu, então, um “roteiro” do discurso retórico, baseado no “domínio da situação” por parte de quem o proferisse. O orador, diante dos juízes ou dos cidadãos reunidos em assembleia política, deveria, em primeiro lugar, (...) procurar “acalmar por meio de palavras insinuantes e lisonjeiras a agitação da assembleia”. Será esse o papel do exórdio. Em seguida, depois de ter obtido a atenção, ele expõe o tema da deliberação, passa à discussão, intercala-a de digressões, que confirmam suas provas; por fim, na recapitulação ou conclusão, resume seus motivos e reúne todas as suas forças para arrebatar um público já abalado (BRETON, 1999, p.49).

Definida por Breton como “primeira retórica”, o tratado de Córax era “ensinado” aos retores especializados na preparação de discursos jurídicos, a partir de “fórmulas feitas, de exórdios preparados, que só esperavam para ser usados nesta ou

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naquela circunstância”. Essa fórmula permitia que se inventassem “lugares” 55 ou “argumentos típicos” que podiam ser empregados em qualquer defesa ou arguição – como sugere Breton: “No exórdio, começar por dizer que não se é orador, elogiar o talento do adversário”. É à composição de um caderno de exórdios e perorações que o orador ateniense se dedicava mais cuidadosamente: pois a falta da peroração significava comprometer o sucesso de todo o discurso; hesitar no começo era expor-se a ser retirado da tribuna (BENOÎT apud BRETON, 1999, p.50).

A contribuição de Córax à arte retórica foi grande. Mesmo que estivesse, primordialmente, preocupada com a eficácia (jurídica ou política) do discurso, com sua capacidade de convencer, essa primeira retórica surgiu como uma “alternativa possível à violência das relações sociais”, pois as decisões eram tomadas pela maioria, com base em uma discussão coletiva. Nesse sentido, “a retórica, como instrumento do debate, assume todo o seu sentido” (BRETON, 1999, p.50). Pouco mais de um século depois de Córax, na mesma Grécia, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) avançou com os estudos sobre a arte retórica, ao questionar a “mecânica sofística, com seus lugares pré-fabricados, seus procedimentos e, em suma, seu cinismo a serviço do poder” (BRETON, 1999, p.50). Aristóteles definiu retórica como “a arte de procurar, em qualquer situação, os meios de persuasão disponíveis”. Para Aristóteles, nenhuma outra arte possui essa função, pois as outras têm a possibilidade de “instituir e de persuadir” apenas sobre o objeto que lhes é próprio, enquanto a retórica parece ser capaz de, “no que concerne a qualquer questão, descobrir o que é próprio para persuadir” (ARISTÓTELES, 2000, p.26). Para Aristóteles, a retórica fazia parte da vida democrática, pois os cidadãos da polis usavam a força da argumentação em vez da “argumentação” da força para convencer os demais em favor de terminada ideia. Mas uma característica relevante o distingue de Córax: com Aristóteles, a retórica se apoia numa ética que não privilegia a eficácia – o que a ajudou a se tornar uma técnica “completa”. O objeto da retórica antiga era, acima de tudo, a arte de falar em público de modo persuasivo; referia-se, pois, ao uso da linguagem falada, do discurso, perante uma multidão reunida em praça pública, com o intuito de obter a adesão desta a uma tese que se lhe apresentava (PERELMAN, 2005, p.6).

55 Philipe Breton alerta que desse conceito de “lugares” usado pelos retores é que surgiu a expressão “lugar- comum”.

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Aristóteles acentua, com veemência, que a função da retórica não é persuadir a qualquer custo. Essa arte não se reduz aos expedientes guiados, exclusivamente, pelo objetivo de vitória nos embates políticos ou forenses – uma acusação comumente feita contra os sofistas da época. O pensador grego pretendia evitar que qualquer encadeamento de proposições pudesse ganhar o estatuto de “argumentação dialética, apenas baseada na retórica de quem a proferisse. Em outros termos, a preocupação do pensamento filosófico no sentido de não legitimar todas e quaisquer manifestações do intelecto humano – mas apenas as resultantes de determinado método, que possibilite o controle de sua pertinência – também estava, de algum modo, presente na reflexão aristotélica (COELHO, 2005, p.XIII).

A matriz proposta por Aristóteles perdurou por séculos como paradigma do estudo da retórica. No entanto, de comunicação pragmática para resolver os negócios humanos, na Antiguidade, a retórica adquiriu má fama quando, no século XIX, banalizou-se como “verniz de estilo” e passou a ser associada ao uso floreado de figuras de linguagem. (...) Acentuou-se daí a sua desvirtuação, que os maus políticos do nosso tempo acabaram por exacerbar, reforçando uma das acepções populares de “retórica”, registrada pelos dicionários: “discurso de forma primorosa, porém vazio de conteúdo” (HALLIDAY, 1988, p.122).

Retórica enquanto arte de convencer Apenas no século XX, os estudos sobre a retórica foram incorporados às pesquisas sobre Comunicação, sob a rubrica de rhetorical criticism (crítica retórica). Filósofos e estudiosos passaram a estudar a retórica tanto sob seu aspecto formal quanto sob o aspecto de instrumento de persuasão. Um pesquisador se destaca nos estudos sobre retórica no século passado: o filósofo de origem polonesa radicado na Bélgica Chaïm Perelman (1912-1984), que propôs o que definiu como “nova retórica”. Perelman percebe que considerar irracional a aplicação do direito importa renunciar a qualquer filosofia prática e abandonar a disciplina da conduta humana ao sabor de emoções e interesses, quer dizer, confiá-la à violência. Insatisfeito com a afirmação da irracionalidade da aplicação do direito, Perelman elege como projeto teórico a pesquisa de uma “lógica dos julgamentos de valor”. Daí nascerá a nova retórica (COELHO, 2005, p.XV).

A preocupação básica de Perelman é entender os meandros pelos quais os valores se introduzem no processo de argumentação. Para Coelho, a nova retórica pode ser considerada o “discurso do método” de uma racionalidade que não consegue evitar os debates, portanto se abre ao diálogo.

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Já não se trata de privilegiar a univocidade da linguagem, a unicidade a priori da tese válida, mas sim de aceitar o pluralismo, tanto nos valores morais como nas opiniões. A abertura para o múltiplo e o não-coercivo torna-se, então, a palavra-mestra da racionalidade (COELHO, 2005, p.XX).

A nova retórica incorpora o processo comunicacional à arte de persuadir e convencer por meio do discurso. Uma das propostas de Perelman que o distingue de Aristóteles é a ampliação do conceito de auditório (poderíamos aqui adotar “audiência”), diante das possibilidades dos meios de comunicação. Perelman trabalha o conceito de “auditório universal”, pois quando uma argumentação se dirige apenas a um “auditório particular”, o orador acaba adaptando suas teses “ao modo de ver de seus ouvintes”, ou seja, pode colocar em risco seus argumentos e ficar exposto a questionamentos de outras pessoas, que não fazem parte daquele grupo. Isso enfraquece sua argumentação.

Uma argumentação dirigida a um auditório universal deve convencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas. “A verdade”, diz-nos Kant, “repousa no acordo com o objeto e, por conseguinte, com relação a tal objeto, os juízos de qualquer entendimento devem estar de acordo” (PERELMAN, 2005, p.35)

Apenas uma asserção assim pode ser afirmada, ou seja, expressa “como um juízo necessariamente válido para todos”. Esse processo pressupõe a “adesão do espírito” da audiência, mas essa depende de uma “verdade coerciva”: O indivíduo, com sua liberdade de deliberação e de escolha, apaga- se ante a razão que o coage e tira-lhe qualquer possibilidade de dúvida. No limite, a retórica eficaz para um auditório universal seria a que manipula apenas a prova lógica (PERELMAN, 2005, p.36).

No entanto, a argumentação dirigida a um auditório ampliado não consegue convencer a todos, o que leva os retores a “desqualificar o recalcitrante, considerando-o estúpido ou anormal”. Esta era uma prática comum entre os pensadores medievais, mas que se pode encontrar em alguns pensadores modernos. Mas a adesão da maioria da audiência a esse procedimento só será possível “se o número e o valor intelectual dos proscritos não ameaçarem tornar ridículo semelhante procedimento” (PERELMAN, 2005, p.37).

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A busca da legitimação pelo discurso Para analisarmos o conteúdo da Voz do Brasil, além dos conceitos de Perelman, recorremos às ideias de Halliday (1987, 1988), cuja obra estuda os discursos institucionais de organizações e empresas, enquanto “atos retóricos” em busca de legitimação perante a sociedade. Halliday lembra que a nova retórica proposta por Perelman superou as “conotações negativas” derivadas do mau uso dessa arte por “retores irresponsáveis” e permitiu o retorno a seu sentido denotativo de ação comunicativa que visa influenciar o ambiente à sua volta. Desde a Antiguidade, a prática retórica consiste no uso da argumentação como instrumento de gestão dos negócios humanos – uma arte e uma estratégia, antípoda do uso da força para resolver conflitos (HALLIDAY, 1998).

Conforme a autora, a base da legitimação de governos e organizações está na aceitação deles por parte da sociedade. No caso de empresas – especificamente seu tema de estudo – refere-se a um conceito específico de “fronteiras” (uma metáfora tirada da Teoria dos Sistemas e aplicada às organizações enquanto sistemas sociais), ou seja, um conjunto de “valores, normas e ideologias” existentes na sociedade que deixa ou não essa organização atuar. “Deixar funcionar” significa aceitar o ramo de negócios, a conduta e os objetivos da organização com base na convicção de que esses três aspectos da existência organizacional são compatíveis com as necessidades e/ou interesses da sociedade (HALLIDAY, 1987, p.12).

A partir dessa “aceitação”, empresas e organizações tentam construir sua legitimidade por meio do discurso, recorrendo ao que Habermas (1975, p.112) define como “interpretações, apresentações narrativas, ou... explanações sistematizadas e cadeias de argumentos”. Atos retóricos são atos de comunicação verbal e não-verbal (...) que visam manter ou mudar percepções, crenças e comportamentos. Atos administrativos são decisões implementadas para tornar a organização persona grata junto aos setores do ambiente externo dos quais ela depende para sobreviver. Servem de apoio aos atos retóricos e são também investidos de significados (HALLIDAY, 1998).

Como procuraremos demonstrar nas próximas páginas, o conteúdo da Voz do Brasil apresenta, em diversas oportunidades, a opção por determinadas abordagens dos acontecimentos que, se comparados com a cobertura de outros veículos de imprensa a respeito dos mesmos temas, demonstram uma tentativa de legitimação do governo federal.

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O uso do argumento pragmático Perelman denomina “argumento pragmático” aquele que permite “apreciar uma coisa consoante suas consequências, presentes ou futuras”. Este tipo de argumento permite, por exemplo, que alguém que tenha sido acusado de algum malfeito possa transferir o valor das consequências de seu ato para as causas – rompendo o vínculo causal e lançando a culpa para outra pessoa ou para as circunstâncias. “Se conseguir inocentar-se terá, por esse próprio fato, transferido o juízo desfavorável para o que parecerá, nesse momento, a causa da ação”. Esse argumento não requer qualquer justificação para ser aceito pelo senso comum. “O ponto de vista oposto, cada vez que é defendido, necessita, ao contrário, de uma argumentação” (PERELMAN, 2005, p.303). Um exemplo do uso do argumento pragmático na retórica da Voz do Brasil está no programa do dia 24 de janeiro de 2013. O principal destaque daquela edição foi o anúncio de uma redução das tarifas de energia – que havia sido feito na noite anterior, em pronunciamento em rede nacional de TV, pela presidente da República. A matéria da Voz do Brasil trouxe, além de um trecho do pronunciamento da presidente, entrevistas com o ministro das Minas e Energia, com o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e com três consumidores. Se comparado com os jornais do dia seguinte (que repercutiram as medidas anunciadas), o conteúdo da Voz do Brasil buscou simplificar a explicação para o financiamento da medida (que se daria por meio do adiantamento de receita devida pelo Consórcio Binacional da Usina Hidrelétrica de Itaipu ao Tesouro Nacional). A repórter do programa reproduziu o discurso oficial, que justificava a necessidade de uso de recursos do Tesouro em decorrência da recusa de concessionárias de Estados governados pela oposição em “bancar” a redução da tarifa de energia: – O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, reuniu a imprensa para detalhar as medidas e destacou que os programas sociais, como o Luz para Todos e Tarifa Social, vão ser mantidos. Edison Lobão disse que o Tesouro Nacional vai bancar quase R$ 8,5 bilhões para conseguir a diminuição da tarifa. São créditos gerados pela usina hidrelétrica de Itaipu, já que quatro companhias de energia não aceitaram a proposta do governo para renovar concessões de parte de algumas usinas hidrelétricas (…) [mas] esclareceu que mesmo a população dos Estados onde as concessionárias não aderiram ao plano vão ter redução nas contas de luz. [repórter Mara Kenupp]56

56 As concessionárias de energia estaduais que não aderiram à proposta foram as empresas dos Estados de São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais e Paraná.

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Já os jornais do dia seguinte optaram por uma explicação mais detalhada sobre como essa conta seria paga: para a Folha, tratava-se de um “buraco”, pois o valor representava mais que o dobro do que havia sido previsto; o Estado alertou que esse montante teria de ser coberto por meio de um “subsídio”; enquanto O Globo dizia que o financiamento da medida era resultado de uma “manobra fiscal”. Folha: Para garantir o desconto maior na conta de luz (...) o governo federal vai ter de desembolsar R$ 8,5 bilhões neste ano. O valor é duas vezes e meia o previsto inicialmente. Para cobrir o buraco, a União vai usar receitas de Itaipu. A usina foi construída por Brasil e Paraguai, mas financiada com recursos brasileiros. Há dívida de US$ 15 bilhões, a ser paga até 2023. A estratégia é antecipar esses valores e receber. No entanto, segundo o Ministério da Fazenda, a forma como isso será feito ainda não está definida. Uma das possibilidades é vender esse “crédito” para o BNDES. Estado: A união teve de ampliar os subsídios cobertos pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), encargo que incide sobre a tarifa de luz e subsidia programas do governo, que agora terão de ser financiados pelo Tesouro. Globo: Para garantir a tarifa menor, o Tesouro fará aporte de R$ 8,46 bi, que deverá ser viabilizado por manobra fiscal envolvendo operação de triangulação com o BNDES.57

Diferentemente dos jornais, que buscaram explicar os impactos financeiros da medida sobre as reservas do Tesouro Nacional – já que iriam consumir recursos sem o respectivo lastro –, a Voz do Brasil adotou o que Perelman chama de “manobra dilatória” (uma expressão emprestada do repertório jurídico)58 ao selecionar, para “abrir” a reportagem, um trecho do discurso da presidente que relacionava a medida à “garantia” do fornecimento de energia, negando o risco de racionamento: Isso significa que o Brasil vai ter energia cada vez melhor e mais barata, significa que o Brasil tem e terá energia mais que suficiente para o presente e para o futuro, sem nenhum risco de racionamento ou qualquer tipo de estrangulamento, no curto, no médio ou no longo prazo. [presidente Dilma Rousseff]

Diferentemente da retórica otimista da presidente da República, o risco de racionamento tornou-se uma possibilidade real no final de 2014, devido à crise hídrica que o país enfrentou, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste. Além disso, conforme os jornais haviam alertado, o “rombo” nas contas públicas do governo federal revelou-se um desafio para o novo governo que assumiria o mandato em janeiro de 2015.

57 Fonte: Jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo de 25 de janeiro de 2013. 58 No vocabulário jurídico, essa manobra é o ato de tardar, adiar ou prorrogar a execução de determinados processos.

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O argumento da autoridade Outro argumento retórico que pode ser usado para “comprovar” determinada tese é o chamado “argumento da autoridade”. Esse tipo de argumentação se aproveita dos atos ou juízos de uma pessoa ou grupo de pessoas que ocupam certas posições hierárquicas para justificar determinada medida. Dentre os modos de raciocínio retórico, o argumento de autoridade é um dos que foi mais intensamente atacado pelos pesquisadores, por ter sido muito usado nos meios hostis à livre pesquisa científica, “de uma maneira abusiva, peremptória”, ou seja, como se as autoridades invocadas fossem infalíveis (PERELMAN, 2005, p.348). Perelman alerta para o risco de, mesmo sendo a doutrina do consentimento do britânico John Locke a base dos regimes democráticos, a “vontade da maioria” pode ser imposta a todos com base apenas na intimidação exercida pelo poder da autoridade – cuja reputação é ancorada na “instrução, eminência, poder, ou alguma outra causa”. Assim qualifica-se de imprudente qualquer contestação aos argumentos das autoridades. Outra maneira que os homens [que estão no poder] usam para guiar outros, forçá-los a submeter-se a seus julgamentos e acolher a opinião em debate consiste em exigir que o adversário admita o que eles alegam como uma prova, ou para assinalar uma melhor (LOCKE, 1999, p.303).

Perelman complementa: Apenas a existência de uma argumentação, que não seja nem coercitiva nem arbitrária, confere um sentido à liberdade humana, condição de exercício de uma escolha racional. Se a liberdade fosse apenas adesão necessária a uma ordem natural previamente dada, excluiria qualquer possibilidade de escolha; se o exercício da liberdade não fosse fundamentado em razões, toda escolha seria irracional e se reduziria a uma decisão arbitrária atuando num vazio intelectual (PERELMAN, 2005, p.581).

Ao pautar seu conteúdo por uma interpretação seletiva das informações, baseada na hierarquia e na “agenda” das autoridades, a Voz do Brasil recorre ao expediente do argumento da autoridade. Um exemplo é a forma como foram noticiados, em 2014, os resultados da Pesquisa Nacional de Análise de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Todos os anos, em meados do mês de setembro, o instituto divulga os indicadores sociais do país, que são usados para comparar o desenvolvimento nacional com o de outros países. Em 2014, a divulgação desse índice ocorreu no dia 18 de setembro, em meio à campanha eleitoral para a Presidência da República. Os dados foram

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destacados na manchete dos jornais do dia seguinte, que ressaltaram o aumento na desigualdade, interrompendo uma tendência verificada há duas décadas. Estado: “Desemprego cresce e desigualdade para de cair” Folha: “Sob Dilma, queda da desigualdade trava no país” Globo: “Desemprego e desigualdade aumentam, mas renda sobe”

Figura 15 - Capas dos jornais – 19 set 2014

Fontes: Jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo de 19 de setembro de 2014

Os dados da Pnad costumam merecer uma atenção especial por parte da imprensa, que chega a publicar cadernos especiais (caso do Estado e do O Globo em 2014) sobre os avanços ou recuos do país nos aspectos sociais, em relação ao ano anterior. Nas matérias publicadas em 2014, os jornais basearam-se nos dados do IBGE e nas informações de técnicos do próprio instituto para tentar explicar a seus leitores os motivos da piora dos indicadores sociais. Para o Estado, o Índice Gini59, que mede a concentração de renda, piorou. (...) A explicação para o que o IBGE considera estagnação está na disparidade de ganhos entre pobres e ricos. O rendimento do trabalho emendou o nono ano seguido de crescimento em 2013, mas 324 mil brasileiros entraram para a extrema pobreza.

59 O Índice Gini é um parâmetro adotado internacionalmente para medir a desigualdade social, que foi desenvolvido em 1912 pelo estatístico italiano Corrado Gini (1884-1965).

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A Folha baseou sua análise na avaliação de especialistas de fora do governo, embora tenha mantido espaço na chamada de capa para o posicionamento da presidente da República, que “minimizou” os resultados: Para especialistas, há esgotamento de fatores que levaram a bons resultados desde 1990, como emprego em alta e programas para transferir renda. A presidente Dilma (PT) minimizou os dados da pesquisa. Disse haver flutuação normal na estagnação da queda da desigualdade e taxa de desemprego pontual.

O jornal O Globo destacou, num subtítulo, dois pontos de melhoria (“Saneamento melhora e cresce acesso à internet”), mas destacou que a inflação “corroeu” os ganhos dos mais pobres: O freio na economia e a inflação mais alta fizeram a desigualdade avançar em 2013, o que não ocorria há 20 anos. A pesquisa (...) mostrou ainda que o desemprego subiu de 6,1% para 6,5%, com 6,693 milhões de desempregados. Apesar disso, a renda dos trabalhadores aumentou 5,7%. O ganho foi maior para os 10% mais ricos. Entre os 10% mais pobres, o avanço foi de só 3,5%. Isso explica a piora na distribuição de renda.

Enquanto os jornais buscaram contextualizar os indicadores sociais – com base nos próprios dados do IBGE – a Voz do Brasil adotou um discurso que destacou apenas os avanços verificados no campo social. No teaser de abertura do programa, a apresentadora anunciou: – Aumento da escolaridade, da renda do brasileiro e também do acesso à água, à rede de esgoto e à internet, queda no analfabetismo e no número de crianças e adolescentes que trabalham. Esses são alguns dados da pesquisa divulgada hoje pelo IBGE. [apresentadora Kátia Sartório]

Na introdução da reportagem propriamente dita, que foi o primeiro tema da pauta daquela edição do programa, também prevaleceu o discurso ressaltando os aspectos positivos da pesquisa: – Divulgada hoje pelo IBGE a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Brasil referente ao ano de 2013, com informações sobre população, migração, educação, trabalho, rendimento e domicílios para todo o Brasil, grandes regiões, estados e regiões metropolitanas. [apresentadora Kátia Sartório] – Entre os dados, a pesquisa mostra que a população do país foi estimada em 201,5 milhões de pessoas, e traz também um aumento da escolaridade, da renda da população brasileira e também do acesso à água, à rede de esgoto e à internet. [apresentador Luciano Seixas]

Na sequência da reportagem, foram apresentadas falas dos ministros Marcelo Neri, da Secretaria de Assuntos Estratégicos, da ministra Tereza Campello,

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do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e de Henrique Paim, titular da pasta da Educação: – O crescimento das boas ocupações, ocupações com carteira, e redução das ocupações desprotegidas, isso confere proteção ao trabalhador, mas eu diria que o dado mais representativo é o aumento do salário real, 5,7% real em um ano. Então eu diria que esse talvez seja o principal indicador de melhora da qualidade. Certamente o que está por trás disso é a melhora educacional brasileira dos últimos anos. [ministro Marcelo Neri] – Eu acho que o dado mais importante para o Ministério do Desenvolvimento Social é a redução de mais de 11% em um ano do trabalho infantil. Isso é resultado de um trabalho de longo tempo de política pública de combate ao trabalho infantil. As crianças hoje trabalham cada vez menos, então estão cada vez mais na escola e o que é que nós precisamos fazer? Continuar melhorando não só a fiscalização do trabalho para reduzir a zero o trabalho infantil no Brasil, como também para que a gente mude essa cultura de que o trabalho infantil é bom. Não é bom. É criança na escola. [ministra Tereza Campello] – Essa tendência de queda [no analfabetismo], ela se dá em todas as faixas etárias. Isso é muito importante destacar. (...) Significa dizer que nós fechamos a torneira, especialmente de 15 a 29 anos, ou seja, o Brasil não está mais produzindo analfabetos. Essa é uma conversação muito importante e fundamental, o que demonstra que há um acerto nas políticas de alfabetização das crianças e dos jovens. [ministro Henrique Paim]

A Voz do Brasil recorreu ao “discurso da autoridade” para justificar a abordagem adotada, amparada na “patente” dos ministros entrevistados. Além disso, esses discursos adotam expressões que ressaltam as opiniões pessoais em detrimento dos dados técnicos da pesquisa. Diz o ministro Marcelo Néri: “eu diria que o dado mais representativo...” e depois “esse talvez seja o principal indicador...” Já a ministra Tereza Campello arrisca: “eu acho que o dado mais importante...” e o ministro da Educação diz que “é muito importante destacar”.60 Ou seja, a autoridade tenta impor determinada interpretação dos dados com base na “reputação” do seu cargo ou no seu currículo como titular da pasta.61 A opção da Voz do Brasil pelo “argumento da autoridade” fica clara ainda no fato de o programa ter dedicado 11 minutos ao tema, mas ter ignorado alguns dados relevantes da própria pesquisa. Na entrevista coletiva organizada pelo IBGE, no Rio de Janeiro, a gerente do instituto responsável pela pesquisa, Maria Lucia Vieira, tratou

60 Grifos nossos. 61 No caso do ministro Marcelo Néri, a reputação pessoal reforça ainda mais o argumento da autoridade, pois se trata de um economista com reconhecida carreira acadêmica, PhD pela Universidade de Princeton (EUA), fundador e diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e ex- presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, um dos principais centros de pesquisas sobre avanços sociais do país, ligado ao governo federal.

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abertamente das questões que foram evitadas pela Voz do Brasil – como o aumento da taxa de desemprego. Também o press-release divulgado pela IBGE, sobre os resultados do Pnad, abordou o tema: A população desocupada cresceu 6,3% em relação a 2012, e a ocupada cresceu 0,6%. A taxa de desocupação se elevou de 6,1% para 6,5% em 2013 (foi o ano com a segunda menor taxa na série harmonizada de 2001 a 2013). O trabalho com carteira assinada, no entanto, continuou a crescer, subindo 2,3% em relação a 2012. (…) O trabalho das crianças e adolescentes recuou 10,6% em relação a 2012, o equivalente a menos 379,8 mil crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos no mercado de trabalho (IBGE, 2014).

Na Voz do Brasil, optou-se por colocar um trecho do depoimento da gerente do Pnad, Maria Lucia Vieira, mas que tratava do aumento da taxa de escolaridade: – Observou-se também um aumento muito importante na taxa de escolarização para as crianças de quatro a cinco anos, é o que mais vem crescendo. Isso pode ser algum reflexo da inserção da mulher no mercado de trabalho, que as crianças precisam ir mais cedo para as escolas, para as creches. [gerente do Pnad, Maria Lucia Vieira]

Do ponto de vista retórico, a participação dos jornalistas da Voz do Brasil também reproduz o ufanismo do discurso oficial: – O nível de instrução e os anos de estudo do brasileiro aumentaram de 2012 para 2013 e a taxa de analfabetismo 0,4%, com quase 298 mil pessoas aprendendo a ler e escrever no Brasil. [repórter Paulo La Salvia] – A pesquisa também revela que o Brasil registrou a menor taxa histórica de trabalho infantil. Em um ano, houve queda de 15% no número de crianças entre 5 e 13 anos que trabalhavam. [repórter Priscila Machado]

Ao adotar o argumento da autoridade, representado pela fala dos ministros e pela “seleção” de trechos dos técnicos do IBGE, a Voz do Brasil tentou construir um discurso que, mostrando apenas parte da realidade, destacasse os dados que interessavam ao governo. Não é o caso aqui de se analisar se o fato de a divulgação da pesquisa ter ocorrido em meio à campanha eleitoral para presidente poder ter causado alguma influência sobre a cobertura da Voz do Brasil – pois uma possível influência eleitoral sobre o programa não é o escopo desta pesquisa.62

62 A análise da amostra de programas nos leva a concluir que, durante a campanha eleitoral, foram evitadas na Voz do Brasil abordagens que destacassem a figura da presidente candidata à reeleição. Evitou-se, também, citar os nomes de certos programas sociais do governo, já que esses programas sociais foram citados como plataforma de campanha da presidente no horário eleitoral. Com isso, a Voz do Brasil evitou o descumprimento da legislação sobre a propaganda política – que ocorre entre os meses de julho e outubro nos anos em que há eleições.

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Espaço público e manipulação Entre as atribuições formais da Voz do Brasil está aquela que a define com a missão de apresentar aos cidadãos as notícias referentes ao Poder Executivo Federal. Conforme Kenneth Burke, a retórica possui uma função reparadora num mundo repleto de facções e interesses conflitantes – em que os processos de comunicação substituíram o contato face a face estudado pelos gregos. Promover “a identificação entre as pessoas é a razão de ser da retórica” (Burke, 1969, p.25). Como produto informacional do governo federal, o programa se prestaria ao que Habermas define como instrumento de formação de opinião a respeito do governo: “Opinion” assume em inglês e em francês o sentido nada complicado do termo latino opinio, a opinião, o juízo sem certeza, não plenamente demonstrado. (...) Para nosso contexto, contudo, o outro significado de opinion é mais importante, ou seja, “reputation”, a reputação, a consideração, aquilo que se coloca na opinião dos outros. Opinion no sentido de uma concepção incerta, que primeiro ainda teria de passar pelo teste da verdade, liga-se a opinion no sentido de um modo de ver da multidão, questionável no cerne (HABERMAS, 2003, p.110).

O noticiário da Voz do Brasil, nesse contexto, teria então a função de construir a reputação do governo, por meio da veiculação de “notícias” sobre os atos do poder central. No entanto, esses atos são “retóricos”, e as notícias embutem outros significados – que podem ser “trabalhados” no discurso. Para Halliday (1988, p.124), as situações retóricas “são construções simbólicas da realidade – um composto de realidade objetiva mais a interpretação de quem as vivencia”. Habermas lembra que a publicidade é uma ferramenta para se criar “uma aura de good will” para certas autoridades e governos, pois [a publicidade] possibilita a peculiar ambivalência de uma dominação sobre a dominação da opinião não-pública: serve à manipulação do público na mesma medida que à legitimação ante ele. O jornalismo crítico é suprimido pelo jornalismo manipulativo (HABERMAS, 2003, p.210).

Bourdieu alertava para a capacidade de o poder simbólico “constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo”. No auge de seu exercício, o poder simbólico é “quase mágico” e permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (...) O que faz o

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poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia (BOURDIEU, 1989, p.14).

São tênues as linhas que separam a informação parcial, a informação manipulada e a desinformação. Breton alerta que, nem sempre, o que parece informação segura para o público o é de fato. Efetivamente, a desinformação é uma ação que consiste em fazer validar, por um receptor que se quer intencionalmente enganar, certa descrição do real favorável ao emissor, fazendo-a passar por uma informação segura e verificada. Toda a habilidade técnica da desinformação reside justamente no mecanismo que permite travestir uma informação falsa numa informação “verdadeira” que seja perfeitamente crível e que oriente a ação daquele que a recebe num sentido que lhe é desfavorável (BRETON, 1999, p.53).

Debord sugeria que a desinformação não é a simples negação de um fato que não convém às autoridades, mas deve necessariamente “conter uma certa parte da verdade, mas deliberadamente manipulada” (DEBORD, 1997, p.52). Para Golding e Elliott (1979, p.12), manipulação é uma “distorção deliberada das notícias com fins políticos ou pessoais (...), devido à influência do preconceito, da conspiração ou dos que detêm o poder político e comercial”. Na Voz do Brasil, não se percebe claramente uma tendência à manipulação, tal qual sugerem os autores acima. Mas é possível identificar a prevalência de determinados temas de interesse do governo, conforme análise feita a partir da pauta dos programas veiculados no mês de maio de 2014, que veremos a seguir.63

A priorização de temas na Voz do Brasil Nos 21 programas veiculados durante o mês de maio de 2014, os temas mais destacados pela Voz do Brasil podem ser considerados diretamente de interesse do governo. Foram eles: educação, infraestrutura, políticas sociais, saúde, segurança e agricultura.

Tabela 4 – Temas tratados pela Voz do Brasil em maio 2014 Tema Número de citações Educação 27 Infraestrutura 26

63 A escolha do período foi aleatória: evitou-se propositalmente o período de campanha eleitoral (entre julho e outubro de 2014) e o período imediatamente posterior às manifestações de junho de 2013, para que a análise não fosse “contaminada” por episódios pontuais da conjuntura.

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Políticas sociais 21 Saúde 21 Segurança 16 Agricultura 15 Cidadania 13 Cultura 10 Economia 10 Ambiental 8 Relações internacionais 7 Turismo 7 Direitos humanos 6 Emprego 5 Moradia 5 Esporte64 3 Previdência social 2 Outros 9 Fonte: Análise do próprio autor, com base no conteúdo da EBC Serviços.

Quando trata desses temas, a Voz do Brasil tende a ressaltar programas governamentais relacionados a eles e procura destacar grandes cifras ou números envolvidos em cada um deles. Destacaremos, a seguir, alguns desses exemplos, que mostram como a retórica é usada para construir uma imagem positiva do poder público federal – ou para dar-lhe legitimidade. Para efeitos desta análise, os projetos e ações governamentais foram agrupados em temas afins, definidos a nosso critério.65 No programa do dia 6 de maio de 2014, foram anunciados recursos destinados ao saneamento básico em municípios com menos de 50 mil habitantes, em 26 Estados da Federação. Percebe-se, no conteúdo da Voz do Brasil, que a retórica governamental, reforçando as grandes cifras, é reproduzida nas falas dos jornalistas do

64 Em razão da proximidade da Copa do Mundo, o tema esporte foi citado 18 vezes pelo programa; no entanto, 15 dessas citações se referiam à itinerância da taça do torneio, aberta à visitação pública em diversas capitais brasileiras. Optamos por expurgar essas notícias, por se tratarem de um tema sazonal que não contribui para a análise desejada. 65 São exemplos desses critérios: o programa “Minha Casa, Minha Vida” foi classificado no tema moradia; “Mais Médicos”, em saúde; “Pronatec”, em educação; e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em infraestrutura.

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programa, de forma que o discurso oficial acaba incorporado às intervenções dos repórteres e apresentadores, com direito à repetição dos valores e das cifras:66 – Ao todo, são mais de R$ 2,8 bilhões para as cidades, recursos que fazem parte da terceira etapa das ações de saneamento do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC 2. [apresentador Luciano Seixas] – Os R$ 2,8 bilhões investidos em projetos (...) vão beneficiar cerca de 5,3 milhões de brasileiros. Na cerimônia de assinatura do convênio, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, falou da importância do investimento em saneamento básico para a saúde da população. [repórter Carolina Rocha]

Do ponto de vista jornalístico, chama a atenção o fato de os repórteres e apresentadores da Voz do Brasil se prestarem ao papel de “promotores” das autoridades, reforçando a retórica dos discursos oficiais: – O investimento vai aumentar o atendimento à população e contribuir para alcançar as metas estabelecidas do Plano Nacional de Saneamento Básico. A presidenta Dilma Rousseff disse que com os recursos anunciados hoje já são quase R$ 7 bilhões destinados para a construção de redes de água e esgoto em cidades com até 50 mil habitantes. [repórter Carolina Rocha]

No fechamento da reportagem, a jornalista informou que os municípios que assinaram o convênio seriam os responsáveis pela licitação e pelo monitoramento das obras. Portanto, nenhuma das obras teria início imediatamente. A reportagem tampouco apresentou um “balanço” de quantas obras de saneamento contempladas nos “quase R$ 7 bilhões já destinados” para este fim haviam saído do papel e estavam efetivamente em fase de construção. Conforme os “cânones” do ofício de jornalista, esse tipo de questionamento deveria constar em uma reportagem como esta. No dia 13 de maio de 2014, o principal destaque do programa foi para a visita que a presidente da República fez às obras da transposição do Rio São Francisco, nos estados da Paraíba, Piauí e Pernambuco. Novamente, foram destacadas as grandes cifras envolvidas no empreendimento. A Voz do Brasil escalou três repórteres para a cobertura, que foi anunciada pela apresentadora a partir dos “benefícios” que a transposição proporcionaria à população nordestina: – O Projeto de Integração do Rio São Francisco vai levar água para os municípios do Nordeste que sofrem com a seca e deve beneficiar 12 milhões de pessoas. [apresentadora Kátia Sartório]

66 Grifos nossos.

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No entanto, na intervenção do primeiro repórter, enviado especial à Paraíba, foi informado que esse benefício estava previsto para começar a ser usufruído pela população nordestina apenas após um ano e meio: – De acordo com o Ministério da Integração Nacional, mais de 120 municípios paraibanos vão ser atendidos e mais de 2 milhões de pessoas serão beneficiadas quando toda a obra for concluída, até o final de 2015. [repórter João Pedro Neto, na Paraíba]

Na participação de outro repórter, no Ceará, revelou-se que as obras de dois trechos do projeto no Estado não estavam finalizadas; além disso, o jornalista incorporou ao seu texto uma “literalidade” do discurso presidencial que faz uma relação de causa e efeito puramente retórica: – O trecho de 140 quilômetros, que vai da captação do Rio São Francisco em Cabrobó, Pernambuco, até Jati, tem 65% das obras executadas. O trecho de 39 quilômetros, que começa em Jati e vai até Brejo Santo, tem 25% de execução. (...) A presidenta disse que a integração do São Francisco vai trazer de volta nordestinos que foram embora fugindo da seca. [repórter Ricardo Carandina, no Ceará] 67

Em Pernambuco, acompanhada por outro repórter da Voz do Brasil, a comitiva presidencial visitou uma estação de bombeamento que começara a ser construída dois meses antes. – A água que vai passar pelos canais vai chegar não só nos grandes centros urbanos aqui do Nordeste. Vai também abastecer centenas de pequenas e médias comunidades do semiárido nordestino. Ao todo, serão mais de 12 milhões de pessoas beneficiadas. (...) O valor total do Projeto de Transposição do Rio São Francisco chega a mais de R$ 8 bilhões. [repórter Leandro Alarcon, de Pernambuco]

Nesta cobertura da Voz do Brasil, as intervenções dos jornalistas reforçam o discurso governamental, não apenas ao retransmitir as informações passadas pelas autoridades e as suas interpretações (o “discurso da autoridade”, proposto por Perelman), mas principalmente por não questionar a veracidade dessas informações e a efetividade da realização desse projeto. Boa parte dos números informados no programa referem-se a etapas do projeto ainda a serem implementadas, portanto sem benefício imediato para a população. A opção da Voz do Brasil por assumir a retórica governamental é notada em diversas matérias veiculadas no mês analisado, conforme exemplos selecionados a seguir.

67 O projeto de transposição do São Francisco prevê a construção de um total de mais de 700 quilômetros de canais de concreto, que passam por vários Estados do Nordeste e que não têm data prevista para serem concluídos. As obras visitadas pela comitiva presidencial no Ceará, portanto, equivalem apenas a cerca de 25% do total do projeto.

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Em algumas delas, a notícia de alguma iniciativa ou obra do governo sempre incorpora o valor “total” do investimento, não apenas do trecho em questão que está sendo anunciado ou inaugurado. O conteúdo do programa deixa a impressão de que o importante é passar a mensagem de que o montante total é expressivo – ainda que não esteja finalizado, que o valor não tenha sido, efetivamente, desembolsado, ou ainda que não haja garantia orçamentária de que será realizado. Os trechos a seguir foram retirados das intervenções dos jornalistas do programa, ao longo do mês de maio de 2014: – A BR-381 será duplicada. A presidenta Dilma Rousseff assinou, nesta segunda-feira (12), em Ipatinga (MG), ordem de serviço para as obras do trecho que liga Belo Horizonte a Governador Valadares. Vão ser investidos R$ 2,5 bilhões em toda a rodovia. [12/maio] – Foi inaugurado trecho de 855 quilômetros da Ferrovia Norte-Sul, entre as cidades de Anápolis (GO) e Palmas (TO). A obra recebeu investimentos de mais de R$ 4 bilhões. [22/maio] – Para a safra, que se inicia no próximo dia 1º de julho e se estende até 30 de junho de 2015, o governo federal anunciou, nesta segunda-feira, crédito recorde. O Plano Safra da Agricultura Familiar vai destinar R$ 24,1 bilhões para investimentos no setor, aumento de 14% em relação ao período anterior. [26/maio] – Nesta segunda-feira, a presidenta Dilma Rousseff também lançou o segundo Plano Safra específico para a região do semiárido, que vai receber R$ 4,6 bilhões entre 2014 e 2015. [26/maio]

Outro recurso utilizado pelo programa para reproduzir a retórica do governo é ampliar a abrangência das iniciativas e dos programas oficiais, destacando o total de pessoas beneficiadas – mesmo que não o sejam imediatamente, ou que estejam ainda nos planos oficiais, mas sem prazo definido para tal. Esse recurso impede a aferição das promessas anunciadas pelas autoridades, por parte dos cidadãos e da imprensa: – Mais de 3,2 mil alunos da Paraíba e do Piauí receberam o certificado de cursos do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). O programa já matriculou 6,9 milhões de alunos no país. A meta é matricular 8 milhões até o final de 2014. [16/maio] – O investimento na aquisição das 147 máquinas para as cidades mineiras superou R$ 52 milhões. (...) Ao final deste semestre, o governo federal vai ter investido quase R$ 5 bilhões em todo o país na aquisição de mais de 18 mil máquinas, beneficiando mais de 91% dos municípios brasileiros. [30/maio]

A Voz do Brasil recorre ainda ao recurso retórico de ampliar o escopo da notícia, incorporando a ela um período bem mais longo (passado ou futuro) de abrangência, de forma a “inflar” os resultados já obtidos ou previstos pelos programas e ações governamentais. – Mais de R$ 160 milhões foram liberados para a instalação de cisternas em seis estados brasileiros. O recurso é do programa Água para Todos,

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que já beneficiou 2,9 milhões de brasileiros com cisternas de consumo. [20/maio] – O Programa Brasil Sorridente completa dez anos. Neste período, a Política de Saúde Bucal do Ministério da Saúde permitiu o acesso gratuito a tratamentos odontológicos a cerca de 80 milhões de usuários do SUS. [28/maio]

Conforme mostrado nos exemplos acima, o conteúdo da Voz do Brasil incorpora recursos retóricos próprios do discurso oficial, que acabam por comprometer a isenção que se espera de um produto jornalístico. Disso decorre a imagem de veículo porta-voz do governo – ou “chapa-branca” –, que marca quase toda a sua história. Mais que isso, a despeito das diretrizes que regem o trabalho dos jornalistas da EBC – que definem o interesse do cidadão como objetivo primeiro do trabalho jornalístico, assim como o compromisso com a verdade –, os exemplos compilados nesta pesquisa demonstram se tratar de um produto de comunicação institucional, a serviço das relações públicas do governo.

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CAPÍTULO 4

Comunicação pública ou relações públicas?

Conforme visto nos capítulos anteriores, ao longo de quase toda a sua história, a Voz do Brasil prestou-se ao papel de porta-voz do governo federal, ou parte de um projeto oficial de relações públicas – à exceção de dois períodos específicos aqui analisados. Essa característica se deu a despeito da existência de diretrizes que definem o modelo de “jornalismo” que deveria ser adotado no programa – diretrizes formalizadas e tornadas públicas desde o ano de 2005. O atual Manual de Jornalismo da EBC, lançado em 2013, é definido como um “código de conduta” dos jornalistas que trabalham na estatal, entre eles a equipe responsável pela produção da Voz do Brasil: Mais do que um conjunto de regras e normas de comportamento, trata- se de um compromisso social da empresa e seus jornalistas com a busca da verdade, com a precisão, com a clareza, com o respeito aos fatos e aos direitos humanos, com o combate aos preconceitos, com a democracia e com a diversidade de opiniões e de pontos de vista (BREVE, 2013, p.8).

O Manual trabalha com uma definição de jornalismo muito semelhante aos conceitos propostos por diversos estudiosos da comunicação – e que também foi adotada aqui nesta dissertação. A EBC considera que jornalismo é espaço público por onde são transferidas informações relevantes, com potencial para alterar a realidade, que se sucedem no tempo e no espaço, objeto de interesse da coletividade e abrangidos pelos seus critérios de cobertura. Essas informações têm de ser transmitidas com honestidade, fidelidade, precisão e responsabilidade. Devem ser mediadas por um processo ético, rigoroso, criterioso, isento, imparcial, sem preconceito e independente (EBC SERVIÇOS, 2013, p.21).

O documento determina ainda que essas informações devem estar amparadas por contextualizações e análises “confiáveis” e que sejam apresentadas ao público com uma linguagem clara e objetiva, que permita elucidação e esclarecimento de seus significados, de suas causas e de seus efeitos na sociedade. E, dessa forma, ofereçam aos indivíduos e sujeitos sociais melhores condições de agir e tomar decisões para transformar a realidade em benefício dos interesses coletivos (EBC SERVIÇOS, 2013, p.21).

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O Manual tenta “traduzir” na forma de princípios éticos e operacionais as regras que pautam o trabalho dos jornalistas da EBC.68 O texto traz referências de outros documentos semelhantes disponíveis no Brasil (incluindo os produzidos anteriormente pela própria Radiobrás) e em outros países. Nesse processo, foram identificados temas transversais que permeiam todos esses documentos e manuais, como a busca da verdade, a fidelidade aos interesses da sociedade e o respeito aos direitos humanos e à democracia. Com base nesses pilares, o Manual se propõe a ser “orientador e promotor do desenvolvimento das boas práticas de comunicação pública no Brasil” (EBC SERVIÇOS, 2013, p.13).

Uma definição de comunicação pública Nas sociedades democráticas, a comunicação pública é entendida como aquela proporcionada pelos entes púbicos, que ajuda o cidadão a ter pleno conhecimento sobre os seus direitos. Ampliando essa “deontologia”, Jorge Duarte ressalta que esse conceito de comunicação pública é válido mesmo nos casos em que o cidadão não tenha procurado por essa informação: A comunicação pública ocorre no espaço formado pelos fluxos de informação e de interação entre agentes públicos e atores sociais (governo, Estado e sociedade civil – inclusive partidos, empresas, terceiro setor e cada cidadão individualmente) em temas de interesse público. (...) A comunicação pública ocupa-se da viabilização do direito social coletivo e individual ao diálogo, à informação e expressão. Assim, fazer comunicação pública é assumir a perspectiva cidadã ̃ na comunicação envolvendo temas de interesse coletivo (DUARTE, 2012, p. 59).

Wilson da Costa Bueno prefere a terminologia “comunicação de interesse público”, e defende uma distinçãoentre ela e a comunicação de governo propriamente dita: Há diferenças importantes entre a visão moderna de comunicação pública e comunicação dita política ou governamental. A comunicação de interesse público visa abranger as ações e atividades que têm como endereço a sociedade, independente de sua origem (pública ou privada). (BUENO, 2012, p.136).

Eugênio Bucci complementa essa definição alertando que, para que seja “pública”, a comunicação deve, necessariamente, preencher dois requisitos: o primeiro é ser uma comunicação “para a qual concorrem recursos públicos – dinheiro, trabalho, equipamentos”; e o segundo, decorrente do primeiro, é “observar os princípios

68 Com um texto bastante adjetivado, o Manual de Jornalismo da EBC possui 79 páginas, nas quais as diretrizes estão classificadas tanto por especificações técnicas do trabalho jornalístico – como pauta, apuração, entrevistas e edição –, quanto por temas que devem ser abordados no conteúdo (por exemplo, educação, saúde, política, economia, ciência e tecnologia, meio ambiente, movimentos sociais etc.).

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constitucionais, entre eles e principalmente o da impessoalidade”, assim como contemplar o direito à informação dos cidadãos. Sem atender a esses requisitos, conclui: “ou ela agride a Constituição ou é ilegal” (Bucci, 2015a).69 Conforme esse entendimento, o programa Voz do Brasil e a estatal responsável pela sua produção deveriam estar voltadas para atender ao direito dos cidadãos de serem informados a respeito dos temas de seu interesse – já que toda a sua estrutura é mantida com recursos públicos. Uma empresa pública de comunicação como a Radiobrás, que controla emissoras e agências de notícias, só tem razão de ser se atender o direito à informação. (...) Qualquer prática fora desse imperativo constitui uma usurpação (BUCCI, 2006, p.12).

Em um ambiente democrático, a comunicação pública pode dar uma importante contribuição para a mediação do debate público – juntamente com a atuação da imprensa livre. Isso não acontece nos regimes autoritários, em que a atuação da mídia é controlada pelos governos – sejam os aparatos de comunicação oficiais, sejam os veículos de imprensa privados. Na ditadura, o objetivo da comunicação ligada ao governo era angariar a obediência e a concordância passiva do público. Na democracia, ao contrário, o sentido da comunicação pública é estimular a participação crítica dos cidadãos nas instâncias de poder. Para a ditadura, a divergência é um problema. Para a democracia, a divergência é a solução (BUCCI, 2006, p.12).

Apesar de a Voz do Brasil ter sido submetida a períodos autoritários ao longo de sua história – e tenha começado a “moldar” seu estilo editorial durante a ditadura de Getúlio Vargas, como parte do aparato de comunicação do Estado Novo –, o programa já registra mais da metade de sua existência sob o regime democrático, o que lhe deveria proporcionar condições para a prática de uma comunicação de interesse público. Instrumentos formais para tal não lhe faltam: as atuais diretrizes da EBC, vigentes desde 2013, orientam os seus jornalistas da estatal a se empenharem para fazer com “independência” a cobertura jornalística e a “dar ao cidadão elementos para formular, com autonomia, sua visão crítica sobre a realidade” (EBC SERVIÇOS, 2013, p.55). Como demonstrado nos capítulos anteriores, não é isso que se pratica na Voz do Brasil. O que pode justificar a discrepância entre a diretriz e a prática editorial adotada na Voz do Brasil é a sua subordinação direta à estrutura do Poder Executivo. Esse fator pode

69 Entrevista concedida ao autor, em 21 jul 2015, reproduzida na íntegra nos Apêndices desta dissertação.

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abrir espaço para que haja uma “contaminação” do conteúdo do programa pela agenda privada dos governantes, em vez de abrigar apenas a agenda pública (do Estado). Thompson considera que instituições estatais acabam permitindo que a agenda privada se sobreponha à agenda de interesse público, pois “os indivíduos normalmente exercem poder em muitos contextos que pouco ou nada têm a ver com o Estado” (THOMPSON, 2013, p.38). Bucci é mais explícito ao definir essa subordinação: O programa Voz do Brasil é “do” governo federal. A relação com o governo é quase de uma prestação de serviço; o “cliente” é o governo, ainda que formalmente não seja assim, é isso que acontece: o cliente é o governo federal. Aquele é um horário “do” governo federal. (...) O objeto da notícia, o narrador da notícia e a fonte da notícia são o governo” (BUCCI, 2015a).

Apesar desse “pertencimento” à estrutura do Poder Executivo federal, e de sua vocação histórica para fazer relações públicas para o governo, a equipe do programa é formada basicamente por jornalistas. Esses profissionais deveriam, portanto, seguir as diretrizes editoriais preconizadas para o exercício do trabalho “jornalístico” na Voz do Brasil. Como veremos a seguir, há distinções conceituais entre os jornalistas e os profissionais de relações públicas – assim como entre os objetivos específicos de cada uma dessas profissões.

Distinções entre jornalismo e relações públicas Para Lattimore, a diferença básica entre o jornalista e o profissional de relações públicas se deve aos papéis assumidos por cada um deles perante as empresas nas quais atuam e o impacto que esse papel provoca no trabalho final. Os jornalistas não representam as organizações sobre as quais escrevem, mas os profissionais de relações públicas o fazem, e isso pode influenciar a objetividade e a forma como enquadram ideias e apresentam os fatos (LATTIMORE, 2012, p.27).

Um dos principais objetivos dos jornalistas é informar à sociedade a respeito de fatos que sejam de interesse do cidadão. Já o profissional de relações públicas identifica na imprensa uma forma de divulgar os temas de seu interesse (ou de interesse da empresa ou instituição que representa), conferindo-lhes “a legitimidade que a organização pode não obter com a propaganda paga” (LATTIMORE, 2012, p.179). O jornalismo não lida prioritariamente, portanto, com a “divulgação” de relatos. Ao contrário, sua justificativa é descobrir segredos que não se quer divulgar. Seu objetivo primordial não é difundir aquilo que governos, igrejas, grupos econômicos ou políticos desejam contar ao público, embora também se sirva disso, mas aquilo que o

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cidadão quer, precisa e tem o direito de saber, o que não necessariamente coincide com o que os outros querem contar (BUCCI, 2002, p.42).

Lattimore considera que essas são “responsabilidades” que os jornalistas assumem diante da sociedade e do sujeito da matéria, pois eles concebem a si próprios como os olhos e ouvidos do público, vigiando instituições públicas, e consideram que seu trabalho é buscar a verdade, colocá-la em perspectiva e publicá-la para que as pessoas possam tratar de suas questões estando bem informadas (LATTIMORE, 2012, p.179).

O vínculo direto com a Presidência da República não permite à Voz do Brasil praticar o jornalismo, tal qual aqui definido, pois faltam-lhe alguns pressupostos básicos, como um espaço para a interlocução necessária entre as partes envolvidas – visto que, no programa, apenas a voz do governo tem espaço. Para Bucci (2015a), trata- se de comunicação governamental, institucional – que poderia ser definida também como um “proselitismo”, ainda que disfarçado. Assim, mesmo que sejam abordados no programa temas de interesse do cidadão (como a prestação de serviços que sejam de competência exclusiva do governo), existe uma linha tênue que separa essa característica de um proselitismo “assumido”. Na Voz do Brasil, a prestação de serviços (que é própria da comunicação pública) é tratada editorialmente e presta-se aos objetivos de gerar visibilidade às autoridades. Devido às suas características de canal de informações sobre o governo, a Voz do Brasil representa um ambiente propício para que as autoridades se “mostrem” para a sociedade da forma como julgarem mais adequada. O programa acaba sendo um alvo dos governantes, quando se veem diante da necessidade de construir uma imagem positiva ou reverter uma imagem negativa. É isso que tem caracterizado o programa ao longo de quase toda a sua história.

A origem das relações públicas O conceito de relações públicas surgiu no início do século XX, nos Estados Unidos. O pioneiro foi um jovem jornalista, Ivy Lee (1877-1934), que depois de trabalhar para a campanha democrata à Prefeitura de Nova Iorque, em 1903, decidiu criar a primeira agência de relações públicas daquele país. À época, existia no meio jornalístico um personagem conhecido como “agentes de imprensa”. Esses agentes haviam surgido na segunda metade do século anterior e atuavam como organizadores de atrações

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circenses itinerantes e também como divulgadores desses espetáculos para a então imprensa emergente. Não raras vezes, os agentes de imprensa recorriam a expedientes pouco éticos para dar publicidade a seus eventos – alguns dos textos preparados por esses agentes podem ser considerados “floridos e exagerados, o que os distanciava da verdade e os aproximava do charlatanismo” (NASSAR, 2007, p.39).70 Ivy Lee esforçou-se para se diferenciar dos agentes de imprensa, lançando um manifesto público sobre a forma de atuação de sua nova agência de relações públicas: Este não é um serviço de imprensa secreto. Todo o nosso trabalho é feito às claras. Nosso objetivo é divulgar notícias. Isto não é uma agência de propaganda. Se acharem que o nosso material ficaria melhor na seção de classificados, não o usem. (...) O trabalho que desenvolvemos em nome de empresas comerciais e de instituições públicas consiste em fornecer para a imprensa e para o público dos Estados Unidos matéria informativa, rápida e precisa, sobre todo assunto cujo valor e interesse se faça merecedor de reconhecimento por parte deles (NASSAR, 2007, p.43).

Apesar dessa declaração de propósitos, Lee não é uma unanimidade entre os pesquisadores da história das relações públicas, sendo criticado por alguns deles.71 Outros pioneiros da profissão, como Edward Bernays (1891-1995), também são acusados de manipulação da informação no trabalho de relações públicas. Bernays nasceu na Áustria e era sobrinho de Sigmund Freud. Radicado nos Estados Unidos desde criança, entrou para a área de relações públicas quando já tinha desenvolvido uma carreira de sucesso no jornalismo. Ele defendia a “teoria da persuasão”, segundo a qual os públicos podem ser convencidos sobre determinado assunto se a mensagem sustentar os mesmos valores e interesses deles. O trabalho de Bernays consistia em acentuar algumas tendências na mídia e “capitalizá-las” conforme os interesses de seus clientes. Essa teoria foi consolidada no livro de sua autoria que é considerado a primeira obra existente sobre relações públicas, Crystallizing public opinion, publicado em 1923 (TYE, 2001, p.24).72

70 O mais famoso agente de imprensa foi Phineas Barnum (1810-1891), que utilizava em seus comunicados uma linguagem “hiperbólica” para chamar a atenção dos jornalistas, repleta de “disfunções”, como o desvituarmento da realidade, uma de suas especialidades. Quando Barnum morreu, o jornal London Times o definiu como “um enganador inofensivo” (NASSAR, 2007, p.39). 71 Chaparro (1996, p.135), por exemplo, considera o manifesto de Ivy Lee “hipócrita”, pois antes de se tornar relações públicas, Lee havia sido um jornalista conceituado e possuía amigos nos postos de direção da imprensa. “Na prática, atuando como fonte, inventou técnicas e procedimentos de influência nas decisões jornalísticas, para divulgar informações, tendo em vista o objetivo principal de construir a nova imagem pública de Rockfeller”, uma referência ao empresário que se tornou cliente de Lee em 1914. 72 No mesmo ano em que publicou seu primeiro livro, Bernays assumiu a recém-criada cátedra de relações públicas da Universidade de Nova Iorque (NASSAR, 2007, p.45).

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Na época, ele [Bernays] considerava as relações públicas como sendo mais ou menos um sinônimo de propaganda, que ele definia como “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões organizados das massas”. Ao longo de toda a sua carreira, Bernays descreveu as relações públicas como a ciência de criar circunstâncias, montar eventos que fossem calculados para se destacar como notícias, mas que ao mesmo tempo não parecessem encenados. “Eventos de mídia” encenados eram claramente uma característica definidora da agência que Bernays começou em 1919 (LATTIMORE, 2012, p.44).

Essa técnica de “criar” eventos para a mídia acabou sendo definida nas relações públicas como spin. Em propaganda, o termo spin representa o fornecimento de uma interpretação tendenciosa de um evento ou campanha com o objetivo de persuadir a opinião pública a favor ou contra algo ou alguém. Já nas relações públicas, spin implica o uso de táticas enganosas e manipuladoras, com o objetivo de influenciar a opinião pública. Os encarregados dessas tarefas no trabalho de relações públicas são denominados spin doctors (HARCUP, 2014, p.286). Aqui neste trabalho, entendemos manipulação como a distorção deliberada de uma determinada informação. Embora possam ser identificados indícios de manipulação em algumas opções editoriais adotadas na Voz do Brasil, principalmente na cobertura de assuntos de interesse do governo, não se pretendeu, nesta pesquisa, desenvolver-se uma análise do programa sob a ótica da manipulação.73

A Voz do Brasil como “mídia da fonte” Enquanto veículo de comunicação oficial, a Voz do Brasil tem sido usada como mídia alternativa de distribuição de conteúdos sobre os atos do governo. No complexo cenário atual de produção e difusão da informação, em que a imprensa perdeu a hegemonia de definir o que é notícia e de pautar a agenda do debate na esfera pública, o cidadão passou a ser impactado por diversos conteúdos, oriundos das mais diversas fontes – como blogs, perfis “influenciadores” das redes sociais, veículos criados diretamente no ambiente digital e o que chamamos de mídia tradicional. Entre essas fontes encontram-se novos veículos informativos diretamente ligados a organizações públicas ou privadas. São “mídias” a serviço dessas

73 No caso da Voz do Brasil, seria necessário, para essa abordagem, uma análise das origens da manipulação, suas implicações em um veículo de comunicação, assim como dos interesses e objetivos, institucionais ou particulares, escusos ou involuntários, que a caracterizariam no programa de rádio. No nosso entendimento, isso poderia render uma outra pesquisa acadêmica específica com esse fim.

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organizações ou instituições, que veiculam conteúdos do interesse delas ou que contribuam para a construção de uma imagem pública. Chico Sant’Anna define esses conteúdos como “jornalismo corporativo” e esses veículos como “mídias das fontes”: São mídias difusoras de um jornalismo corporativo, mantidas e administradas por atores sociais que até então desempenhavam apenas o papel de fontes de informação. (...) Deter uma visibilidade pública é o objetivo desses grupos. Estar inserido na esfera pública é a meta (SANT’ANNA, 2004, p.107).

Essas “mídias das fontes” reproduzem algumas etapas do processo de produção jornalística, de tal forma que as informações veiculadas ao público são “coletadas, selecionadas, tratadas editorialmente, filtradas e difundidas” por empresas que possuem seus próprios interesses corporativos (SANT’ANNA, 2004, p.107). Utilizada como “mídia da fonte”, a Voz do Brasil dedica-se a “informar” o público sobre os atos do Poder Executivo, no entanto traveste como “notícias” informações muitas vezes de interesse institucional do governo federal – e que não respeitam as regras definidas pelo Manual de Jornalismo da EBC. A natureza jurídica da EBC e a subordinação da Voz do Brasil à Presidência da República não permitem que seja praticado o jornalismo no programa. Conforme demonstrado ao longo desta dissertação, as tentativas, nesse sentido, sucumbiram às pressões do campo político-institucional.74 A característica de peça de relações públicas oficial poderia ser motivo de questionamento por parte da sociedade, já que se trata de um veículo financiado com recursos públicos. Se considerada ainda a obrigatoriedade de transmissão por todas as emissoras do país, em um regime democrático como o brasileiro, o mérito desse questionamento passa a ser outro: por que a Voz do Brasil deve continuar existindo? Para Bucci, a obrigatoriedade mina qualquer autoridade natural ou moral que o programa possa reivindicar. Afinal, a Voz do Brasil foi criada na década de 1930, em uma sociedade que era integrada pelo rádio, cujo horário nobre era às 19 horas, com o objetivo de garantir ao governo o controle sobre os meios de comunicação.

74 No sentido de Bourdieu.

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Todas aquelas condições que tornavam a Voz do Brasil compreensível, ainda que inaceitável, desapareceram. Hoje, além de inaceitável, a Voz do Brasil é incompreensível. Incompreensível do ponto de vista ético, do ponto de vista funcional, do ponto de vista institucional (BUCCI, 2015a).

Quando o governo se incumbe da função de informar a população sobre os atos do governo, corre-se o risco de os interesses institucionais se sobreporem aos interesses dos cidadãos. Em um regime democrático, se isso acontecer, estaremos diante de um trabalho de relações públicas – não de jornalismo nem de comunicação pública.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa sociedade democrática, a imprensa desempenha um papel importante na vigilância dos poderes constituídos, do uso de recursos e da gestão da coisa pública, e na fiscalização da atuação das corporações privadas. O jornalismo tem a sua origem ligada aos movimentos democráticos, que defendiam a ideia de que o poder emana do povo e deve ser exercido em nome dele. Desde o século XIX, a imprensa foi considerada, por boa parte dos teóricos da democracia, como um dos principais sustentáculos da esfera pública. Sem a imprensa, dificilmente as sociedades contemporâneas conseguiriam se informar sobre as questões coletivas, o que poderia inviabilizar um debate público autônomo em relação ao Estado. Surgido com a tarefa de mediar o debate público, o jornalismo contribui para formar cidadãos e permitir a eles o acesso às informações necessárias para que formem as próprias opiniões, tenham livre arbítrio e possam livremente eleger seus governantes. Para garantir uma independência editorial em relação aos poderes constituídos, a imprensa tradicionalmente optou pela existência como empresa privada. Essa característica garante a independência em relação ao poder político – e permite que a imprensa informe aos cidadãos sobre os assuntos que interessam a eles e sobre os quais eles têm o direito de serem informados – mesmo que isso não seja do interesse dos governantes de turno. Não cabe ao Estado exercer esse papel que é próprio da imprensa. Se o aparato oficial se volta para essa função, o debate público passa a ter uma mediação “viciada”. Além disso, a estrutura estatal não fornece os fundamentos para o exercício do jornalismo – o máximo que consegue fazer é um trabalho de relações públicas ou de comunicação institucional do governo. Procuramos demonstrar, nesta dissertação, que a Voz do Brasil prestou-se, durante quase toda a sua história, ao papel de porta-voz do governo federal, sendo em muitas oportunidades parte de um projeto oficial de relações públicas – à exceção de apenas dois períodos específicos demonstrados no Capítulo 1. Essa característica de porta-voz se deu a despeito da existência de diretrizes que definem o modelo de “jornalismo” a ser seguido pelos profissionais que trabalham na Voz do Brasil. Conforme demonstrado neste trabalho, essas diretrizes foram formalmente estabelecidas desde o ano de 2005, e ainda está vigente um Manual de Jornalismo, lançado em 2013. O compromisso com a verdade

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preconizado pelo Manual não se sustenta quando analisamos o conteúdo da Voz do Brasil conforme critérios de noticiabilidade, especialmente em episódios de alto impacto para a população e de grande interesse da sociedade em geral, conforme mostrado no Capítulo 2. Também a diretriz do Manual para que a Voz do Brasil transmita informações com honestidade, fidelidade e precisão, por meio de um processo ético, isento e independente, foi contrastada com os recursos retóricos aos quais o programa recorre para legitimar determinadas ações do governo. As informações veiculadas pelo programa são embaladas por recursos retóricos e visam ressaltar a agenda de interesse do governo – seja na abordagem do conteúdo, seja na priorização de temas destacados no programa, tal qual demonstrado no Capítulo 3. Enquanto peça de relações públicas do Poder Executivo, a Voz do Brasil produz um conteúdo que se assemelha mais a press-releases radiofônicos do que a notícias sobre atos do governo federal – embora esse conteúdo seja apresentado no programa como se fosse “notícia”. Ao moldar seus conteúdos aos interesses do governo, a Voz do Brasil deixa de fazer comunicação de interesse público e, devido à sua vinculação à estrutura do poder central, não dá aos seus profissionais espaço para o exercício do jornalismo, como se mostrou no Capítulo 4. A Voz do Brasil, que nos seus cânones se propõe a praticar um jornalismo de interesse do cidadão, prestou-se, ao longo de quase toda sua história, ao serviço de legitimação ideológica das forças políticas no poder. Tornou-se, assim, peça de relações públicas do Poder Executivo federal.

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APÊNDICES

Apêndice A - Entrevista de Carlos Marchi concedida ao autor – 15 jul 2015

Pergunta – O Sr. foi presidente da EBN no primeiro ano da Nova República. O Sr. trabalhou na campanha do candidato Tancredo Neves e aí foi indicado para a EBN? Como se chegou àquele projeto editorial para a Voz do Brasil? Carlos Marchi – Realmente carece contar uma pequena história, porque a nossa chegada à EBN veio no bojo de uma história muito mais ampla do que até a própria EBN. Em janeiro de 1984, estava começando a campanha das Diretas, um dia eu estava de plantão no Jornal do Brasil, em Brasília, estava sozinho, era um domingo, comecei a ligar para as pessoas – a gente fazia isso nos plantões de domingo, quando não tinha nenhuma notícia evidente no ar –, a gente ligava para os políticos para garimpar alguma coisa, para ver se “pescava” alguma informação nova e precisa. Naquele domingo, eu liguei para um amigo meu, o governador do Ceará na época, o famoso Totó, Luiz Gonzaga Mota, e logo no começo da ligação ele disse: (com voz sussurrante) “Marchi, eu não posso falar muito com você porque eu tô afônico, então não vai dar pra gente conversar muito”. Uma hora depois, quando eu desliguei o telefone, eu tinha uma interrogação na cabeça: ele tinha me dito muitas coisas que eu julgava não entender, porque, acima de tudo, se ele estava afônico e, no preâmbulo, ele tinha dito que não podia falar muito, por que ele tinha ficado uma hora no telefone comigo? Eu voltei a ligar para ele e disse claramente: “Totó, você me disse alguma coisa que eu não consegui perceber”. Ele disse: “Não, pois é, você sabe essa coisa de telefone como é...”, e aí começou a dizer algumas coisas por sinais, e eu entendi, por esses sinais, que ele estava tentando acenar para mim para uma aproximação entre Tancredo Neves e alguns governadores mais liberais do PDS. Eu liguei em seguida para o Roberto Magalhães, que era um desses governadores, e ele, embora sem dizer nem 30% do que disse o Totó, sinalizou com algumas simpatias nesse sentido. Eu me enchi de coragem e mandei a manchete do dia seguinte do Jornal do Brasil – e isso aconteceu nas vésperas do comício das Diretas de São Paulo: “Tancredo prepara sua candidatura pela via indireta”. Evidente que a manchete foi uma bomba e, no dia do comício, quando Tancredo chegou ao palanque – e ele não poderia deixar de ir – foi cercado por jornalistas e toda a imprensa só perguntava uma coisa: e aquela manchete do JB? Aí o Tancredo disse que aquela manchete era obra de um mentiroso, irresponsável e leviano. Quando eu olhei para trás, estava a redação toda do JB olhando pra mim, olhava

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para a televisão, olhava pra mim, pensando assim: esse cara é um mentiroso, inventou a manchete. Nesse momento, o Jornal do Brasil já estava sob domínio do senhor Paulo Maluf – fui entender esse processo agora, quando fui escrever o livro do Castelinho, e entendi os meandros do Jornal do Brasil, e agora eu sei, o Jornal do Brasil já estava praticamente vendido ao Maluf – e eu fiquei muito mal no Jornal do Brasil, porque eu cobria a oposição. Passei mais uns meses e, no final das contas, o Rio tinha desautorizado minhas matérias. Mas como as minhas matérias eram boas, elas iam para o Rio sem a minha assinatura, ou então em nome do chefe de reportagem, que na época era o Abdias Silva. Eu estava defenestrado no Jornal do Brasil. Em junho, dois amigos meus me perguntaram se seu queria ser assessor de imprensa do Tancredo. Tancredo já estava montando a sua estrutura.

Pergunta – Entre esses dois momentos, o senhor não teve um contato com Tancredo? Marchi – Não, absolutamente nenhum. Esses dois amigos se chamavam Fernando Lira, que era muito meu amigo pessoal, e o outro, que era um pouquinho menos amigo, chamava-se Fernando Henrique Cardoso. Os dois me levaram pessoalmente ao Tancredo. Eu me lembro até hoje do dia em que entrei na sala do Tancredo; o Fernando Lira que era mais falastrão foi na frente e disse: “Dr. Tancredo, estamos trazendo aqui o Carlos Marchi para ser seu assessor, do qual já tínhamos falado com o senhor. Esse é o Carlos Marchi”. E aí o Tancredo, que estava em pé diante da mesa, ajeitando alguns papéis, disse: “Fernando, eu conheço o Carlos Marchi há mais de 15 anos, você não precisa me apresentar ele”. Eu cheguei e parei em frente da mesa e ele continuava ajeitando os papéis, não olhava para mim. E atrás dele, o Fernando Lira e o Fernando Henrique enfileirados, empertigados. E aí eu disse ao Tancredo: “Dr. Tancredo, o Sr. já me conhece bem, mas eu vou fazer o Sr. me conhecer um pouco melhor: eu quero dizer que eu sou aquele jornalista irresponsável, leviano e mentiroso que fez aquela manchete do Jornal do Brasil no dia tal de janeiro”. Ele disse assim: “Que manchete?” Eu falei: “Aquela manchete: ‘Tancredo prepara sua candidatura pela via indireta’, que lhe deu tantos problemas.” Ele falou: “Eu não me lembro”. E não olhava pra mim. Virava papel, tirava daqui, botava pra lá, tirava daqui, botava pra lá. Eu insisti: “Bom, eu acho que, se eu vier trabalhar com o Sr., não tem como eu trabalhar sem tratar desse assunto cara a cara, com toda a crueza que esse

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assunto merece”. Eu me lembro que olhei, de soslaio, para o lado e vi que o Fernando Henrique estava assim: (sussurrando) “Para, porra! Não provoca, não provoca! Chega!” (Gesticula com a mão, fazendo o sinal de negação com as duas mãos.) Os políticos têm um timing que só eles sabem mensurar. O Dr. Tancredo finalmente botou as mãos na mesa e aí sim olhou nos meus olhos e falou assim: “Deixa eu te falar: vamos parar de falar de bobagem e vamos falar do que é sério. Isso daqui vai ser uma guerra; você está disposto a entrar numa guerra?” Eu falei: “Claro, se não tivesse não estava aqui”. E ele falou: “Então é isso o que interessa, vamos juntos”. E eu comecei a trabalhar com Tancredo a partir daquele momento. Na verdade, nós já trazíamos – eu vou já te dizer quem é o “nós” – uma tendência a juntar forças e a celebrar acordos político-ideológicos amplos para enfrentar a ditadura, já era de um tempo atrás. Em 1975-76, nós começamos a montar, em Brasília, um monte de jornalistas jovens, um grupo para tomar o sindicato, que na época era uma coisa extremamente importante do ponto de vista da democracia.

Pergunta – Mas era pelego o Sindicato? Marchi – Era pelego e nós, jovens, começamos a montar uma oposição sindical. Éramos eu, o Helio Doyle, o Armando Rollemberg, Andrei Almeida, enfim vários outros amigos. Ali se juntavam, num caldeirão, muitas tendências de esquerda: nessa época, eu era do Partidão, o Andrei também era do Partidão, o Helio Doyle era da ala vermelha, do PC do B, o Armandinho Rollemberg não era exatamente uma coisa definida, mas ele estava naquela linhagem que mais adiante desaguaria no PT, assim como o Helio, enfim, nós fizemos uma frente e tomamos o Sindicato, tendo como candidato a presidente o Castelinho. A gente sentiu que os jovens não podiam assumir aquilo, porque não teria credibilidade entre a categoria, para ganhar os votos indecisos. Essa experiência já tinha nos dado uma força muito grande. A gente ganhou o sindicato e, logo em seguida, em 1980, houve a reeleição do sindicato e eu fui ser vice-presidente da Fenaj, nesse mesmo acordão de forças unidas. Em 1983, eu saí da Fenaj e voltei pro jornalismo, no Jornal do Brasil. Em 1984, começou a acontecer isso, então essa tendência de juntar forças era muito óbvia, já estava mais ou menos encaminhada. (10:50) Nesse momento, em que a gente começou a juntar forças em torno do processo de redemocratização, a gente perdeu metade desses companheiros: o pessoal que estava

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tendendo para o lado do PT se foi, virou petista, até porque o PT já estava fundado, assim mesmo nós éramos um grupo mais que ponderável. Eu me lembro que a gente começou a trabalhar de uma forma muito ampla e muito generosa; eu era muito ligado ao pessoal de comunicação da UNB – e a gente juntou muitos professores da UnB, o Murilo Cesar Ramos, o Salomão Amorim, o Venício Lima. E esses professores acionaram outras universidades, a Bahia estava muito próxima da gente, o pessoal de São Paulo começou a se aproximar muito rapidamente, o pessoal de Santa Catarina, o pessoal de Curitiba, tudo em Universidades federais. Nós começamos a trabalhar a ideia de um projeto de comunicação institucional para um governo democrático. Isso tudo tinha um patrocínio acima da gente, que era uma figura notável sob todos os sentidos, que era a deputada Cristina Tavares, que tinha uma grande liderança no PMDB da época, no PMDB autêntico. Ela conseguiu cobertura em todos os sentidos para essa generosa união que se fazia. Cobertura em termos de alguma proteção, pois era preciso na época, uma certa institucionalidade dentro do Congresso, a gente começou a trabalhar junto de Comissões técnicas do Congresso, começou a se reunir no Congresso, pois um problema pra gente era um local de reunião. Nós éramos todos relativamente pobres, tínhamos casas pequenas, não podíamos fazer reunião com 50 pessoas. Ela acionava isso, e a gente começou a fazer reuniões, por exemplo, no apartamento de deputada dela, um apartamento imenso, com uma sala muito grande. A gente fazia reuniões bastante produtivas nesse sentido. E essas reuniões começaram a se encaminhar para projetos. Talvez essa seja a grande diferença que você vai captar entre a Voz do Brasil que sempre se fez e a Voz do Brasil que se fez naquele período, porque [ela] era parte desse projeto maior. A gente entendia que cada comunicação institucional, acima de tudo, tinha de ser pública, não estatal. (14:00) Esse era um fundamento essencial pra gente. Não era um serviço que a gente prestaria ao governo, era um serviço que a gente prestaria à sociedade. Portanto, a gente tinha aí engatado e subentendido o compromisso da absoluta verdade, da não mistificação, da não demagogia. A gente sabia que isso era pouco praticável quando a política se explicitasse, quando a gente tivesse no poder – ia ser um negócio extremamente complicado. Mas a gente pretendia estender isso até onde desse. A gente sabia que era por um tempo, era apenas uma coisa que a gente ia plantar, sabia que não era para todo o sempre, mas a ideia era essa: estender o mais que fosse possível.

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Evidente que a gente contava com o governo Tancredo – a gente não contava com o governo Sarney. Esse foi o primeiro tombo que a gente levou. No governo Tancredo, a gente tinha uma previsão razoável de como essas coisas iriam se desenvolver, porque a gente tinha por trás da gente Fernando Lira, o Fernando Henrique, que começava a crescer politicamente, a Cristina Tavares, o grupo jovem dos autênticos (do PMDB) – eles todos nos dariam cobertura – e vários outros deputados que nem eram tão autênticos assim nos ajudaram muito. Eu me lembro, por exemplo, do Carlos Santana, que veio da Arena e era do PDS, e nos ajudou intensamente. Bom, isso tudo veio se desenvolvendo ao longo da campanha do Tancredo. Quando chegou no final da campanha, a gente já tinha praticamente um projeto pronto. Então, a gente fez uma das coisas mais pragmáticas que a política pode produzir: a gente fez uma grande reunião na casa da Cristina (Tavares) – eu me lembro que, como não cabia todo mundo sentado nas cadeiras, nos sofás, tinha gente sentada no chão todo –, fechou o projeto que foi entregue ao Tancredo – projeto do que seria essa comunicação setor por setor –, e o setor crucial era o Ministério das Comunicações. E fizemos mais do que isso; a Cristina abriu a reunião dizendo assim: “Hoje, cada um vai dizer aqui o que quer ser no novo governo, para não dar briga lá na frente”. Ficou uma timidez, um constrangimento, porque dá a impressão de que você está querendo arrumar um emprego, e não era isso. Mas era uma forma política de a gente chegar na frente, de a esquerda chegar na frente – porque ali era todo mundo de esquerda. Vários se candidataram a cargos, por exemplo, no controle da radiodifusão – no Dentel da época –, muita gente estava de olho na Radiobrás, evidentemente que tinha as assessorias de comunicação de cada ministério, que tinham de seguir determinado parâmetro, determinado padrão, mas um negócio delicado, porque que dependia da confiança do ministro – o ministro levaria seu assessor -, mas de qualquer maneira a gente queria impor certos padrões de comportamento. Tinha um pessoal que queria cuidar de publicidade especificamente e eu fui o único que disse assim: “Eu quero a EBN”. As pessoas olharam para mim, porque a EBN era “bucha”, era o cabo do guarda-chuva. Ninguém queria a EBN, porque não dava muito prestígio, não dava dinheiro. Mas eu sabia que o outro lado estava minado e não podia dizer.

Pergunta – Minado por quê? Marchi – Mais ou menos por (volta de) outubro, final de outubro, eu arriscaria dizer que era o dia 25 ou 26 de outubro de 1984, eu estava em casa, morava no Lago Norte, e tocou

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meu telefone, eu atendi, eram 6 horas da manhã. Era o Aécio (Neves). \e o Aécio disse assim: “O que você está fazendo?” Pô, cara, não deve ser muito difícil adivinhar... às 6 horas da manhã. Ele era um garoto, era meio o “mascote” da campanha. Ele falou assim: “Vai para o escritório. Queria te contar um negócio”. Senti que era alguma coisa importante e fui. Cheguei lá, não tinha ninguém, só o segurança da noite, a gente entrou ficou lá no fundo e me disse: “Tem um negócio que eu preciso falar pra porque eu não aguento segurar. Mas você tem que jurar pra mim que você não vai dizer nem um milímetro do que eu vou te contar. E eu quero que você interprete isso como uma coisa de absoluta confiança. Se você quiser perder a minha confiança, você conte isso a alguém.” Nesse momento, ele me falou: “Eu não dormi essa noite. Eu estou vindo de casa, e vou te contar um negócio: Vô fechou com o Antônio Carlos (Magalhães)”.

Pergunta – O que era crucial... Marchi – Ganhamos a eleição. Naquele dia, eu passei a saber que nós tínhamos ganhado a eleição e eu tinha que chegar todo dia com aquela cara de “bunda” olhando pros lados, dizendo “nossa, estamos lutando amargamente por um final honroso”, mas eu sabia que a gente ia chegar. Então, quando as discussões se encaminharam para, por exemplo, ter o controle do Ministério das Comunicações, eu já sabia que isso não era possível. Era evidente que aquele acordo, naquela noite, abrangia o Ministério das Comunicações.

Pergunta – Ele virou ministro das Comunicações do governo Sarney... Marchi – Evidente. Mas era mais do que óbvio que a primeira coisa que ele pediria ao Tancredo seria o Ministério das Comunicações. Eu, como pedi a EBN, acabei sendo um dos poucos... Eu fique nesse movimento. Eu falei com todo o entorno do Tancredo – eu não liguei pro Tancredo e disse “eu quero ser presidente da EBN” – e eu tinha um projeto na mão, que a gente tinha feito e que seria trabalhado.

Pergunta – E que vinha desse grupo de jornalistas e professores... Marchi – Que vinha desse grupo.

Pergunta – O Sr. ainda tem esse documento?

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Marchi – Eu não tenho mais cópia disso. Eu me lembro que o nosso documento foi fechado com o Salomão, professor da UnB, o Murilo Cesar Ramos e o Venício Lima. Eu cheguei pro Fernando Lira, que no finalzinho a gente já sabia que ia ser ministro da Justiça – isso encaminhou uma facilitação pra mim, porque a EBN era subordinada ao Ministério da Justiça, não sei por que, era uma coisa absurda, mas era isso –, e aí eu fiquei muito tranquilo em relação aos meus passos. Mas quem trabalhou muito por mim foi o Fernando Henrique. E eu me lembro que, na antevéspera da posse, no dia 13, eu encontrei com o Fernando Henrique não sei aonde e me disse: “O teu decreto já está assinado. Não falapra ninguém”. Depois eu descobri que o Tancredo, naquele dia 13, tinha assinado 4 decretos de nomeação: o primeiro deles, por ordem de importância, era o do presidente da Petrobrás, os outros dois eu não me lembro, e o quarto era a minha nomeação. Curiosamente, essa nomeação assinada pelo Tancredo foi publicada no Diário Oficial e eu tomei posse na EBN com um decreto assinado pelo Tancredo, que nunca foi presidente da República. Para se ver o que é a institucionalidade de um processo de redemocratização.

Pergunta – Como foi o início do seu trabalho, após a posse de Sarney? Marchi – Eu tomei posse, e comecei a implantar o projeto. Eu aprendi politicamente como é que se fazia isso. Eram quatro diretores na EBN e eu me lembro que eu queria levar, evidentemente, os outros três. Estabeleceu-se, nos primeiros dias da Nova República, um processo que se chamava nihil obstat 75 da Aliança Democrática; as nomeações eram feitas da seguinte maneira: tinha um papelzinho, com pouquíssimos dados – nome do indicado, cargo, indicação e, embaixo, o que referendava aquilo era um carimbinho redondinho [faz gesto indicando um diâmetro com cerca de 2 centímetros], com uma “A” e um “D” dentro, Aliança Democrática. E em cima daquilo, como se fosse o carimbo de um médico que faz uma receita, a rubrica do Marco Maciel. Com dez dias de governo, meu amigo, sem aquilo, você não entrava em lugar nenhum, não passava. Eu ainda não tinha percebido, mas naquele momento já tinha começado a briga Frente Liberal-PMDB, Ulysses (Guimarães) e Aureliano (Chaves), ou quem fosse o líder, Antônio Carlos (Magalhães).

75 Do latim, “nada impede”. Nihil obstat era uma autorização dada pelos censores da Igreja Católica, sem a qual não poderiam ser publicados livros.

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Só que eu decidi as nomeações da EBN no primeiro e no segundo dia, eu arranjei padrinhos para os outros diretores. E os diretores foram Luiz Roberto Serrano, que tinha o apadrinhamento de Ulysses e, portanto, era inquestionável, eu vinha indicado pelo próprio Tancredo, eu indiquei o diretor financeiro, pois sem financeiro eu não vou, que era um sujeito seríssimo, que trabalhava na área financeira do MEC, Emerson Almeida. Quem me indicou o Emerson foi um tio de minha então mulher [apelidado de Biju], que era um funcionário de longuíssima data do MEC, que eu conhecia de dentro de casa, e que foi ser meu assessor de “putarias”, aquele que indicava o “vai dar merda”, ele chegava pra mim e dizia assim: “não assina isso, porque vai dar merda”. Ou então: “Isso aqui você pode assinar”. Nos três primeiros dias eu consegui nomear. No quarto, foi o Luiz Gonzaga Mota, que era professor da UnB, que era do grupo de pensadores e foi ser diretor de Planejamento, um cargo que eu criei, que não tinha na EBN, para pensar a modernização da EBN. O Luiz Gonzaga Mota, eu disse que ele tinha sido indicado pelo Carlos Santana – o Carlos Santana ligou para não-sei-quem e disse: “É meu mesmo”. Carlos Santana nunca tinha visto o Luiz Gonzaga Mota na vida... Isso facilitou muito o nosso projeto.

Pergunta – Quer dizer que o Sr. conseguiu logo de cara ter a aprovação desses nomes e montar a equipe? Marchi – Sim, e aí a gente começou a montar uma redação da utopia – como o Eugênio (Bucci) de certa forma conseguiu fazer. Só que para o Eugênio foi mais fácil porque o partido dele era hegemônico. No meu caso não era. Mas a gente abriu o projeto na mesa e disse: “Vamos por aqui”. Claro que a gente tinha um grande inimigo, que era a absoluta incapacidade de gestão, porque, de todo mundo ali, ninguém nunca tinha gerido “porra” nenhuma. Nós éramos repórteres de jornal. Mas eu tinha, do meu lado, o fabuloso Biju, que era o tio da minha mulher, que conhecia todas as “putarias” de dentro do MEC. Por exemplo, num dos primeiros dias, eu dei uma assim de grande gestor público. Eu recebi a direção do Bradesco, os pagamentos dos funcionários da EBN eram feitos pelo Bradesco, e tinha uma malandragem que o Biju me apontou: com aquela “puta” inflação da época, a EBN mandava o cheque pro Bradesco e o pagamento era feito seis dias depois. Veio a direção do Bradesco conversar comigo, pois era uma conta importante, eram 1.200 funcionários, e eles disseram é tal, primeiro pagamento, para não atrasar, o pagamento de março, e eu falei: “Muito bem, então”. Tinha aquele monte de folhas e

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papéis, eu assinei tudo, entreguei pra eles e no finalzinho fiz menção de que acabou a reunião, e o diretor do Bradesco em Brasília falou assim: “Mas o Sr. esqueceu do cheque”. Eu falei assim: “O cheque vai na véspera do pagamento, para dar o tempo de ser compensado”. Quer dizer: o dinheiro sai da EBN aqui, entra na conta dos funcionários ali. E ele respondeu: “Mas assim não é possível”. E eu falei: “Então o Bradesco acabou de perder a Folha de pagamento da EBN”. “Daremos um jeito, daremos um jeito”. No mês seguinte, como o Banco do Brasil não podia aceitar, a gente botou num banco estatal, não sei se o Banerj ou o Banco do Rio Grande do Sul. E a gente então começou a implantar o tal projeto. Já trabalhei em muitas redações boas, no Jornal do Brasil, o Globo, no Estadão duas vezes, mas aquela redação da EBN foi uma das melhores que eu já vi até hoje. Por exemplo, a diretora de Redação era a Rosvita Saueressig, que tinha uma cultura jornalística preciosa e, segundo, ela sabe ser vigorosa e rigorosa ao mesmo tempo; tinha um menino que está hoje em Santa Catarina, César Valente, que era muito bom também; o chefe de reportagem era o Zanoni Antunes. Ao mesmo tempo em que a gente começou a fazer bom jornalismo, a gente começou a bater nos muros da política.

Pergunta – Essa “redação da utopia” foi montada, começou a ser implantado novo projeto, houve alguma resistência dentro do corpo de funcionários da EBN? Marchi – Tinha (na EBN) muito burocrata, muita gente que não trabalhava, e nós começamos a atacar isso de forma inábil. Também éramos todos garotos novos, não sabíamos direito como tocar a coisa. Um dos nossos compromissos era reduzir o quadro (de funcionários) da EBN em geral, mas reduzir principalmente o quadro administrativo. A EBN tinha, em números redondos, 1.200 funcionários, eram 400 na área fim e 800 na área meio. Então eu comecei, de todas as maneiras, a tentar me desfazer desses funcionários da área meio. Primeiro fizemos um programa de demissão incentivada, não me lembro exatamente como era, não existia na época esses programas estruturados como são hoje, mas a gente pagava a mudança se o cara fosse mudar de cidade, tinha algumas vantagens que permitiam o incentivo. Depois a gente começou a ceder funcionários para outros órgãos, mas o outro órgão pagava o salário, e assim eu aliviava a conta. Quando eu saí (da EBN, em 1986), estava meio a meio.

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O primeiro muro em que a gente bateu foi assim: nós pegamos uns 10 nomes de pessoas que eram notoriamente malufistas e justiçamos em praça pública. Demitimos. Ficou claramente explicitado – e eu tenho que reconhecer hoje – que houve um certo sentimento de revenge, que era uma bobagem naquele momento. E o presidente era o Sarney, que era das hostes adversárias. Eu me lembro que recebi um telefonema do Fernando Cesar (assessor do Sarney), que do ponto de vista do valor político valia menos que eu, porque eu era próximo do Tancredo, e ele não teria coragem de me dizer: “Marchi, reveja essas demissões”. Porque Sarney não era propriamente um presidente, ele era um subpresidente que tinha eventualmente assumido o governo, e Tancredo estava vivo naquele momento. Fernando César tinha sido meu colega de Jornal do Brasil durante muito tempo, éramos amigos. Ele me ligou e disse: “O presidente está pedindo para que você reveja essas demissões”. Eu disse: “Eu não posso voltar atrás, Fernando. Você sabe o valor político-ideológico que isso tem na praça, todo mundo sabe o que a gente fez”. Ele insistiu, eu resisti, e no dia seguinte eu recebi uma ligação do Sarney, pedindo para rever as demissões. E eu resisti novamente. Eu comecei a ver que fazer jornalismo com independência dentro de um governo, ainda mais um governo pluripartidário, era muito complicado. Além do telefone do Sarney, eu comecei a receber telefonemas de colegas meus jornalistas, principalmente os que cobriam a Câmara e que eram muito ligados a todos os partidos: “Pô, que bobagem, você está tirando o fulano, bota ele de volta, para com isso, etc.” Isso foi um fator de intenso desgaste, até que a gente venceu a parada, não os readmitimos, mas ficou uma cicatriz, que depois seria devidamente cobrada pelo Sarney. E foram se sucedendo os fatos. A segunda batida foi quando, um belo, dia o Serrano entrou na sala e disse assim: “Nós temos uma entrevista do Brizola; a gente bota no ar ou não?” Eu disse: “Faça o seguinte: distribui a matéria antes para os jornais, para ver a repercussão que vai ter, e aí a gente descobre se vai botar na Voz do Brasil ou não”. E a gente botou a matéria na rede, via telex, e cinco minutos depois tocou meu telefone, a minha linha direta – tinha um telefone que só tinha um botão, e eu descobri que aquilo era uma linha direta com o porta-voz do Planalto – e era o Fernando César, para me dizer: “Você acabou de soltar uma entrevista com o Brizola”. Eu disse assim: “É de interesse do público brasileiro”. “Mas Brizola é oposição!” Eu disse: “O que a gente reclamava é que antigamente eles não davam espaço pra gente, agora a gente não pode fazer a mesma coisa”. E ele falou: “Mas você não entende: assim que você botou no ar, o general Ivan Mendes de Almeida destacou a folha

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– o general Ivan Mendes de Almeida era o ministro do SNI (Serviço Nacional de Informações) –, levou para o presidente e você precisa ver a cara com que ele botou a folha na frente do presidente. Com o EBN entre parênteses grifado em vermelho e o nome Brizola também. E aí seguiu-se uma conversa entre ele e o presidente, e o presidente disse: “Esse pessoal que está lá (na EBN) é meio rebelde, tal...” Eu comecei a pensar que o nosso projeto ia durar menos do que a gente tinha imaginado. Depois desse telefonema, eu liguei para o Serrano e falei: “Ponha o Brizola no ar na Voz do Brasil, porque vai ser o nosso álibi. Se ele demitir a gente, podemos dizer que demitiu porque fizemos bom jornalismo”. O Serrano ficou até meio assustado na hora, E assim a gente foi, de topada em topada, com pressão dos dois lados. Uma das primeiras coisas que a gente fez foi estruturar um quadro de salários, porque era uma bagunça, passamos a ter um quadro de carreira em que se tinha repórter 1, 2, 3 e 4, e tinha redator 1, 2, 3 e 4. E esse plano de carreira aprovado pela gente dizia que ninguém poderia entrar como repórter 4, tinha que entrar como repórter 1. Isso, de certa maneira, começou a frear as indicações. A gente começou a lidar com uma questão que era previsível: os repórteres começaram a sentir que liberdade para fazer as coisas. Eles começaram a se mostrar senhores dessa liberdade; em seguida eles começaram a se achar administradores dessa liberdade. E começaram a afrontar ministros em entrevistas. Choviam reclamações. E então, eu que tinha dito antes para as pessoas que “vale tudo” pra fazer jornalismo, tive que chegar para eles e dizer para maneirarem, porque não podia ser assim. As pessoas têm que começar a se acostumar com as situações. Mas o ser humano, nesse sentido, é inadministrável. Quando você diz a ele “Você tem liberdade”, ele sai para enfrentar o mundo, enfrentar os moinhos de vento. Foram firmados acordos, mais ou menos amplos com a Telan (argentina), a portuguesa Nope (que, durante o governo socialista de Mario Soares, era comandada pelo jornalista Carlos Caceres Monteiro, que ele havia conhecido nos tempos de sindicalismo, e que trazia muita notícia dos países africanos de língua portuguesa), com a Efe espanhola, com a France Presse, com a Ansa). Não era a diversidade ideal, mas era uma diversidade que permitia que a EBN se desvinculasse da via hegemônica do jornalismo dos EUA.] Se você me perguntar se eu comuniquei a alguém (do governo) o que eu estava fazendo, vou dizer que sim, ao Fernando Lira, mas ele era meu amigo e eu falava pra ele que era uma boa – e era isso que ele queria saber. Pois não havia cultura no Brasil do que era uma agência de notícias estatal. Nenhuma.

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Alguns setores, principalmente os setores militares, começaram a ver com alguma preocupação, e a todo tempo chegavam “sinais”, boa parte deles originários do SNI, dessa desconfiança inicial plantada com o Ivan Mendes, de que a gente era um bando de comunistas que tinha tomado a parte do governo.

Pergunta – Eles seguramente tinham as fichas de vocês e sabiam quem era do Partidão, etc. Marchi – Sim, mas Serrano não tinha sido de partido nenhum, nem o Luiz Gonzaga Mota, que era professor da UnB, o Emerson muito menos, e isso, de certa maneira, dava o mínimo de confiança para manter o projeto.

Pergunta – Mas o que de fato acabou com esse projeto na EBN? Marchi – O que derrubou a gente foi, primeiro, esse ato desastrado de ter demitido esses 10, porque esses 10 tinham uma penetração muito grande na imprensa de Brasília. Eu me lembro de que tinha um cara chamado Marcone Formiga que tinha uma coluna no Correio Braziliense – para quem mora em Brasília, todos os jornais são importantes, Estadão, Folha, O Globo, mas o Correio Braziliense é o primeiro que você lê, é o primeiro impacto, é o primeiro a chegar na casa das pessoas – e essa coluna era o “Ancelmo Goes” da época no Correio, e esse Marcone Formiga se especializou em publicar notinhas contra a gente – incontáveis vezes ele publicou uma nota assim: “O presidente da EBN, Carlos Marchi, está com os dias contados...” Chegou dezembro (de 1985), houve a reforma do ministério e o Fernando Lira saiu. Quando o Fernando Lira saiu, a gente pensou: “Não teremos mais tempo, a gente tem que correr para implantar dignamente um projeto digno do nome”. Sabia que não poderia levar até o fim, mas a gente queria implantar uma série de coisas que fossem difíceis de reverter depois, que criassem história, que criassem vínculo. E para isso, eu tinha muito apoio do Carlos Santana, que era ministro da Saúde e que, como tinha vindo do PDS e da Arena, enchia muito os ouvidos do Sarney em favor da gente. Mas quando houve a reforma do ministério, o que havia de esquerda no governo pulou fora. E ainda se tinha os olhares gananciosos do pessoal do PFL, da Frente Liberal...

Pergunta – Eles queriam levar a EBN para o Ministério das Comunicações, segundo relato de Lilian Perosa...

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Marchi – Eu me lembro de uma vez, que o assessor do ACM, um cara liso, muito escorregadio, indefinível, me ligou e disse: “O ministro gostaria de te ver, de te conhecer melhor, conversar”. E então marcamos uma data e eu fui lá. Cheguei e não esperaram nem dois minutos para me introduzir no gabinete do ministro e pensei: “Pô, estou importante...” Eu entrei, estava o ACM lá numa mesa falando ao telefone, ele acenou para mim um aceno largo, e ficou falando no telefone quase uma hora. Quando desligou, chegou até mim e disse assim: “Mas e aí, fulano me falou que você queria falar comigo. O que você manda?” Àquela altura eu já estava me lixando e disse: “Ministro, tem um engano aqui. Ele me disse que o Sr. queria falar comigo.” Na maior cara de pau, o que ele queria é que eu engatasse alguma conversa do tipo “me protege, me dá uma força”. Evidentemente que essa coisa não se cristalizou ali, naquele momento. Eu fui embora pensado: “Esse cara está de olho na EBN mesmo”. O Lira já tinha saído em dezembro e a gente começou a correr o ano de 1986 completamente desprotegido. É claro que eu saí buscando outro tipo de proteção, porque quando está no governo você tem que ter esse tipo de proteção, se não você não fica. E um dos guarda-chuvas que eu encontrei mais interessante naquele momento foi conseguir vender para o Itamaraty a ideia de que esses acordos (com agências de notícias estrangeiras) eram interessantíssimos para o comércio internacional brasileiro. Na época, o chefe do Departamento de Promoção Comercial era o embaixador Paulo de Tarso Flexa de Lima comprou completamente o meu projeto. Ele disse: “Você vai ser o meu grande aliado”. E tinha um detalhe: o Paulo de Tarso era mais que amigo do ACM. E quando o ACM começou a avançar sobre a gente, o Paulo de Tarso nos protegia, dizendo que estávamos trabalhando em conjunto. Até a crise final. Quando desatou a crise final, entrou um ministro chamado Paulo Brossard, que o meu amigo Zanoni (Antunes), chefe de reportagem, chamava de Souza Pinto, porque o nome dele era Paulo Brossard Souza Pinto. Paulo Brossard é gaúcho, e gaúcho sempre trabalha em “patota”, quando um gaúcho assume um cargo de direção, vai trazendo os amigos do Sul, um atrás do outro, não sabe trabalhar em equipe. (...)

Pergunta – O livro de Lilian Perosa vincula a sua saída da EBN à gestão do Brossard no ministério, dizendo que ele um ministro mais conservador que o Lira. Você concorda? Marchi – Não tinha nada a ver com a qualidade do trabalho jornalístico que a gente estava fazendo. Brossard é um cara extremamente conservador; eu cobri ele durante anos

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e anos no Senado, depois na vida lá em Brasília. Quando ele tomou posse, fomos na cerimônia, e eu fui cumprimentá-lo e ele foi absolutamente seco; ele me conhecia do Senado, há muito tempo, ele podia ter dito: “não quero falar com você agora” ou então “oh, meu amigo, venha cá me dê um abraço”; mas ele não fez nem uma coisa nem outra, ele foi extremamente seco. Eu pensei: “Bom, não temos espaço”. E a gente durou ainda muito tempo com ele, seis ou sete meses. Eu saí em junho ou julho. E aí a coisa começou a se dar aos trambolhões. Mas não teve nenhuma relação com ser mais conservador ou menos conservador, até porque quem me substituiu não jogou fora o nosso projeto.

Pergunta – Houve alguma pressão do ponto de vista jornalístico para a EBN cobrir o Plano Cruzado, lançado em fevereiro de 1986? Marchi – O que houve no Plano Cruzado que eu me lembro muito bem é que nós acreditávamos naquele governo como quem acredita na ressureição de Jesus Cristo. Ele era a única saída para o Brasil, nós acreditávamos que podia e que tinha que dar certo. Então, na época, todo mundo acreditava no Plano Cruzado – se pegar a cobertura da imprensa da época, foi muito muito favorável, porque as pessoas estavam sufocadas pela inflação, pelos males da economia e queriam uma saída e queriam acreditar que aquela saída era boa, exequível. Eu não me lembro de nenhuma pressão, pouquíssimas vezes eu recebi um telefonema do Planalto para cobrir ou deixar de cobrir alguma coisa. Tinha aquele episódio do Brizola, em que a gente acabou vencendo a parada, porque líderes oposicionistas continuaram saindo na Voz do Brasil aqui e acolá, e a gente acabou se envolvendo em uma outra discussão que não me interessava muito: eu queria notabilizar a EBN como agência noticiosa brasileira , não como produtora da Voz do Brasil, tanto que cheguei a levar ao Sarney um projeto para acabar com a Voz do Brasil. E o Sarney deu pulo da cadeira, e dizia assim: “Você não é do Nordeste, você não sabe o que que é a Voz do Brasil no Nordeste. Leva esse projeto pro Congresso e mostra para um deputado do interior do Nordeste e pergunta para ele o que ele acha. Ele vai pular na sua carótida”. E ele então me desencorajou completamente – “Não faça isso!” No tocar do projeto, nós dávamos muito mais atenção à agência noticiosa do que à Voz do Brasil.

Pergunta – Na sua opinião, como o conceito de conceito de comunicação pública e compromisso com o interesse do cidadão foi posto em prática na EBN daquela época?

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Marchi – Havia muito a ideia – e eu confesso que eu partilhava dessa ideia naquela época, mas hoje acho que o mundo mudou – a respeito do papel do Estado como distribuidor de informações. Eu tinha uma noção muito estrita quando falava em distribuição de informações, e não tinha base teórica para falar disso. Na verdade, eu tinha feito Comunicação na UFRJ numa época muito difícil, 1970-71, e praticamente não se tinha aula, era um inferno, o Dops estava lá todo dia (o Dops era do lado da escola, e a escola era isolada na Praça da República), e eu tinha aula de Matemática 1 e Matemática 2, e eu me perguntava o que eu estava estudando ali, eu estava lá porque queria aprender a fazer jornal. E eu acabei abandonando a escola, até porque no segundo ano eu fui ser repórter especial do Globo e pensei “O que eu posso querer mais?”. Assim me faltou essa base teórica, e eu procurei suprir, ao longo dos anos, mas quando eu encontrei esse grupo – já eram meus amigos, mas eu não me sentava com eles para discutir Teoria da Comunicação, a gente lia McLuhan e Althusser, mas lia atabalhoadamente, de forma rasa. Eu confesso que eu era discípulo dessas pessoas, eles tinham muita base teórica – eu me lembro do Othon (Jambeiro Barbosa), que era professor da Bahia, conhecia muito de Teoria da Comunicação –, então a gente embarcava um pouco na canoa deles. E a gente fazia uma espécie de “meio termo”, que era muito interessante: eu e outros colegas trazíamos o pragmatismo político, o dia a dia da política, como é que se realizavam as coisas, como é que se abordavam as pessoas, como é que se ganhava espaço, e eles traziam a teoria. A gente fazia uma média disso e é evidente que um professor desses não poderia ter sido presidente da EBN, porque ele não conhecia o jogo político. Eu acho muito interessante se você pudesse conversar com o Murilo (Cesar Ramos). Advindo do Partidão, eu tinha muito ainda aquela ideia de dar excelência estatal, de que o Estado pode fazer tudo; eu acreditava que a EBN, num dado momento, poderia concorrer com a Agência JB, com a Agência Estado e com a Agência Globo, que na época era nascente – a Agência Folha nem existia nessa época. A agência Estado caiu matando na gente. Eu me lembro de que houve um editorial “A Tass Cabocla”. E eu me lembro, que cedinho em casa, o Fernando Cesar me ligou e disse: “Você viu o editorial do Estadão?”, e eu não tinha visto e ele completou “a Tass cabocla”. Eu disse pra tirar da mesa do presidente, mas ele me disse que o Sarney já tinha lido em casa e que era a primeira coisa que ele comentou quando chegou ao Palácio.

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Então, era uma guerrilha e a gente achava que não podia enfrentar isso – eu sabia que não poderia enfrentar isso nem no governo Tancredo, quanto mais no governo Sarney. A gente tinha muito essa noção de que o Estado poderia suprir essas coisas, até que eu entendi, hoje, que absolutamente o Estado não pode ser provedor de informações, não pode ser um distribuidor de informações, porque não tem isenção para fazer isso. A gente era muito stalinista. A gente era muito contaminado por essa coisa estatista...

Pergunta – Ao lado de uma até certa ingenuidade, de achar que não haveria interferência política... Marchi – A gente sabia que ia haver, mas a gente achava que era possível a gente resistir, e que principalmente que era possível montar uma blindagem – que poderia ter sido o acordo com a Abrajori, ou negociar com jornais. Eu me lembro que tentei negociar com jornais, mas, por exemplo, o Estadão não queria sentar na mesa comigo para conversar. Tentei marcar uma visita ao Estadão, para falar com o meu amigo Antônio Carlos Pereira, chefe dos editorialistas, e ele me disse que eles não tinham interesse em conversar comigo. Foi aí que agente sentiu que o buraco era mais embaixo.

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Apêndice B – Entrevista de Eugênio Bucci ao autor – 27 jul 2015

Pergunta – Qual o conceito de comunicação pública com o qual o Sr. trabalha? Eugênio Bucci – O conceito de comunicação pública está melhor explicado no livro “O Estado de Narciso”, que tem um capítulo inteiro dedicado a debulhar essa conversa toda, em que há vários conceitos diferentes, há linhas diferentes, e ali eu chego à seguinte conclusão: Nós precisamos de um conceito que “corte” um lado e outro e que diferencie uma comunicação (pública) das demais. Os conceitos existentes são muito flexíveis: “comunicação pública é toda comunicação que tematiza um assunto de interesse público” – então o Programa do Ratinho poderia ser considerado comunicação pública; esse é o problema: tem várias investidas diferentes, passando pelo espaço público político, e acabamos não saindo do lugar. E vendo tudo isso, e pensando no ambiente institucional em que isso se dá no Brasil, eu proponho um conceito em dois níveis: nós obrigatoriamente temos, no primeiro nível, que a comunicação pública é aquela para a qual concorre o dinheiro público – de algum jeito. Porque, se não, toda comunicação é pública. Devemos lembrar que a televisão é concessão pública, então eu tenho um caminho para dizer que toda comunicação da TV, por ser prestação de um serviço público, assim definido na Constituição, poderia se chamar de comunicação pública. Então eu chego, nesses termos, àquele paradoxo do Tim Maia: “Tudo é tudo e nada é nada”. E então o conceito não me serve para nada. Como eu recorto algo que seja identificável e tenha a capacidade de ser igual a si mesmo e diferente do que o cerca? É definindo, nesse primeiro plano, que a comunicação pública é aquela para a qual concorre especificamente o recurso público, equipes públicas, de funcionários públicos, equipamento público, etc. Tem participação (do poder público) ali. Eu não posso também dizer que uma ONG faça comunicação pública, embora isso seja de interesse público, porque de novo eu chego no Tim Maia: “Tudo é tudo e nada é nada”. E eu não consigo estabelecer uma diferença entre a campanha “Criança Esperança” e a “Voz do Brasil”. Pois aí o conceito não me adianta. É aquele para o qual concorre o dinheiro público. Sendo isso, a comunicação pública leva consigo, é marcada por certas obrigações, certos deveres, ela deve observar certos princípios, pois afinal de contas ela é feita com recursos, todos, públicos. Então a comunicação pública se define também pelo dever de observar os princípios constitucionais, entre eles e principalmente o da impessoalidade – e claro que também o da legalidade, o da economicidade, etc.

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Pergunta – Isso está na Constituição? Bucci – O princípio da impessoalidade está na Constituição.

Pergunta – Não especificamente em relação à comunicação, mas em relação às estatais... Bucci – Isso, mas mesmo para a comunicação, e em várias passagens da Constituição existem observações e determinações ou princípios em que há claramente a adaptação do princípio da impessoalidade para aquela prática pública, por exemplo o impedimento de que propaganda ou a comunicação de governos façam a identificação da pessoa que é o governante. Isso é a aplicação do princípio da impessoalidade na comunicação pública. Então, o que define a comunicação pública é o fato de que ela usa recursos públicos – dinheiro, trabalho, equipamentos – e ela, por isso, se obriga a observar os princípios constitucionais. Fora do que, ela agride a Constituição ou ela é ilegal. Simplesmente. E o que acontece no Brasil é um festival de ilegalidades – em todos os sentidos. Então, o que orientou a elaboração dos Documentos da Radiobrás foram essas noções.

Pergunta – E os Seminários sobre TV Pública desenvolvidos em Brasília, foram anteriores a esses Documentos? Bucci – Os seminários de Televisão pública são posteriores. E deu-se o contrário; não estou aqui nem faltando pelo excesso nem por escassez de modéstia. Porque, no primeiro Seminário de Televisão Púbica, dos oito grupos de discussão quatro eram dirigidos por gente da Radiobrás. Naquela altura, já existiam os princípios do jornalismo da Radiobrás, já existiam os protocolos, e coisas que se desenvolveram. A Radiobrás era uma das organizadoras daquele Seminário, era o Ministério da Cultura e a Radiobrás.

Pergunta – Diante desse conceito de comunicação pública, o Sr. diz no livro (“Em Brasília, 19 horas”) que a TV Pública é algo que não é possível de existir. Vale para rádio também? Bucci – Vale, vale. Eu falo de radiodifusão. E acho que não existe. Nós temos alguns “ensaios” disso, a TV Cultura e a Rádio Cultura, atualmente, um pouco – e depois que eu saí –, a TV Brasil – que é hoje uma televisão melhor do que a que existia no meu tempo, é mais bem feita, tem mais alcance nacional, tem um conteúdo mais independente do que eu consegui fazer, e é hoje, possivelmente, a melhor experiência que nós temos depois da

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TV Cultura – que eu ainda reputo como sendo a principal experiência de rádio e televisão pública no Brasil.

Pergunta – Voltando à Radiobrás, o Sr. pode concluir, a partir da sua experiência, que era possível fazer um jornalismo na empresa e na Voz do Brasil especificamente? Bucci – Acho que não, mas isso precisa ser circunstanciado. A primeira coisa que precisa ser dita: é possível fazer jornalismo numa empresa pública? Existe uma grande discussão a respeito. E a minha resposta é sim. O conceito de empresa pública é um pouco “alargado”, porque ela pode ser uma estatal, como pode ser uma empresa da sociedade, mas com características de ser pública por não ser comercial, e por ser de uma gestão aberta, com um Conselho, com uma gestão fiscalizada pelos poderes públicos, por diversos instrumentos, entre eles o próprio Ministério Público, pelas casas legislativas. São critérios que afiançam essa questão. O que me leva a dizer que é possível fazer jornalismo numa organização desse tipo: além da BBC, da Radio France, que são experiências conhecidas e com passado incontestável, existem experiências muito boas e contemporâneas na National Public Radio, NPR, que pratica um jornalismo de altíssimo nível. Eles não são empresas estatais, mas eles são claramente empresas públicas, garantidas por regimes públicos, ou seja, por regramentos de ordem pública – inclusive a lei – e com um lugar na radiodifusão assegurado nos Estados Unidos pelo marco regulatório daquele mercado que é de responsabilidade do FCC, uma agência reguladora que já tem 80 anos. Então, embora a proprietária das emissoras associadas à National Public Radio não seja a figura do Estado, são os regramentos públicos que decidem e que estruturam o lugar de existência dessas organizações. E elas se beneficiam, eventualmente, de recursos públicos dos mais diversos e não têm finalidade comercial – o que é fundamental. Definitivamente, elas não são organizações com fins de lucro e tudo o mais. E ali se faz jornalismo. Portanto, nós podemos dizer que é possível fazer jornalismo (numa empresa pública), não em função de um wishful thinking ou de uma utopia, mas em função da experiência real que mostra isso. A BBC é uma claríssima expressão de empresa pública, em todos os sentidos. Agora, poderíamos fazer jornalismo na Voz do Brasil? Não! Mas aquilo poderia ser muito melhor do que tem sido. O primeiro passo para isso, como eu sempre preconizei, é que ela não pode ser obrigatória. Mas a Voz do Brasil tem um problema: é um tipo de comunicação completamente anacrônica, suas premissas já foram revogadas há muito

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tempo, ela não deveria mais existir nessa forma. E o problema é o seguinte: na Voz do Brasil, o objeto da notícia, o narrador da notícia e a fonte da notícia é o governo. Não há, de saída, a interlocução necessária para que se estabeleça o jornalismo, não há o pressuposto necessário. Portanto, não se pode falar em jornalismo ali, e, na melhor das hipóteses, poderia haver um proselitismo mais civilizado, uma prestação de serviço um pouco mais desinteressada, mais voltada ao direito do cidadão à informação. A gente tentou forçar nessa linha, com consciência sobre isso, mas não foi possível. Alguma coisa ficou, mas...

Pergunta – Com qual a definição de jornalismo o Sr. trabalha? Bucci – Em relação ao conceito de jornalismo, até por necessidade das nossas escolas, eu trabalhei nisso – e em dois ou três textos meus eu tento investigar em que termos nós podemos estabelecer um conceito de jornalismo. Por que precisamos fazer essa discussão no Brasil? Porque o Brasil não teve coragem de fazer a diferenciação entre jornalismo e assessoria de imprensa. O que é um grande embaraço para o desenvolvimento das duas atividades. Nenhuma outra sociedade democrática, uma sociedade livre, sociedade de mercado, isso se verifica da mesma maneira. São duas atividades diferentes. Então o maior problema de se falar de jornalismo hoje, na cultura jornalística do Brasil, é [o fato de] as escolas acharem que assessoria de imprensa é jornalismo. Nas diretrizes curriculares do MEC, a assessoria de imprensa é descrita como uma especialização do jornalismo, como o jornalismo econômico. E quando eu falo de um conceito de jornalismo, eu também não quero aqui falar o que já foi falado, pois o conceito de jornalismo é óbvio, em todo lugar. Mas no Brasil ele é fator de confusão.

Pergunta – Só no Brasil ou em outros países também? Bucci – Não, eu nunca achei. Diploma obrigatório é praticamente só no Brasil – no Chile tem, por causa de uma reescritura de algo que havia na ditadura, e temos os países que não são democráticos. Acho que na Venezuela tem... Em todo lugar, jornalista é um profissional e o assessor de imprensa é outro. No Brasil, o jornalista e o assessor de imprensa estão no mesmo sindicato. O Código de Ética do Sindicato dos Jornalistas tem passagens hilariantes. O artigo 12, por exemplo: “O jornalista deve, ressalvadas as especificidades da assessoria de

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imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas na cobertura jornalística”. Ouvir os dois lados, ouvir as pessoas afetadas por um fato é o primeiro dever do jornalista, porque ele tem o dever da verdade, da transparência, e o dever da liberdade. Como é que o artigo 12 que fala dos deveres do jornalista, diz que “o jornalista deve... a não ser quando não deve”. Então o assessor de imprensa não tem que ouvir os dois lados...

Pergunta – Pode mentir, portanto... Bucci – Não, eles não estão dizendo isso. Eles estão dizendo que não precisa ouvir os outros lados. O assessor de imprensa não precisa mentir. O assessor de imprensa pode fazer um trabalho excepcional, superimportante para a democracia, para o esclarecimento da sociedade, ético. Só que é outra profissão. Esse é o ponto fulcral da nossa discussão. Na nossa cultura jornalística, assessoria de imprensa é uma especialidade do jornalismo, é uma forma de jornalismo – e muita gente fala isso com as melhores das intenções, não é gente interessada em lesar o direito à informação, falam sinceramente, acreditam nisso. Como é que o jornalista (que atua como assessor de imprensa), que tem o dever de ouvir os vários lados, fica dispensado desse dever – que é o primeiro dos deveres listados no artigo 12. E tem o artigo 7o: “O jornalista não pode realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não- governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário”. Olha o que está escrito: um jornalista que trabalha para a Folha de S.Paulo não pode fazer uma matéria sobre o PMDB, se ele for assessor do PMDB. Ele não pode fazer uma matéria sobre o PMDB, mas ele pode ser jornalista num veículo jornalístico e assessor de imprensa. Ele não pode fazer matéria, mas ele pode defender os interesses. E eles emendaram isso depois: “...nem utilizar o referido veículo para defender os interesses dessas instituições”. O mais importante que está dito neste artigo não é o que diz que “não pode”, mas o que tacitamente ele autoriza que o jornalista trabalhe para outra organização. Isso não aconteceria em nenhum lugar do mundo; isso é óbvio. Mas no Brasil não é óbvio. Nós precisamos discutir esse assunto, precisamos aprofundar esse conceito de jornalismo, porque nós vivemos num país que não sabe a diferença ente assessoria de imprensa e jornalismo. As escolas não sabem; o MEC não sabe – as diretrizes curriculares do MEC estabelecem que assessoria de imprensa é uma especialização do jornalismo. Essas

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diretrizes foram aprovadas faz 3 ou 4 anos, não é uma coisa dos anos 60. É por isso que temos de fazer a discussão do conceito de jornalismo. Mas nesse país, com essa cultura, a Voz do Brasil é “jornalismo”. Eles falam: “Agora, o repórter fulano de tal...” Eu trabalhei lá. Só que ele não está fazendo uma reportagem, ele vai entrevistar um ministro que manda demitir ele. É o governo falando do governo, a partir de fontes do governo. E o que é pior: para o governo. Porque a Voz do Brasil é feita para o governo escutar e ficar contente. Essa é a receita. Pois a Voz do Brasil fala coisas que os rincões não entendem. Esse é um dado curioso: o ouvinte da Voz do Brasil é o “aspone” do governante, do ministro, que diz a ele “Saiu na Voz do Brasil, ministro, saiu legal, o Sr. saiu muito bem...” O ministro vai ficar contente e vai achar que as pessoas estão ouvindo e estão entendendo. Mas as pessoas não sabem o que é “escoamento da safra de grãos”. Esse é o problema. Para saber se dá para fazer jornalismo, é preciso saber o que é jornalismo. Então, nesse país, nessa situação, essa é que é a discussão. Não daria para fazer jornalismo nessa Voz do Brasil. Aí a gente chega na questão institucional. A Radiobrás é uma estatal, é responsável pela Voz do Brasil, e aqui cabe fazer uma distinção porque as pessoas acham que estatal é governamental, mas não é. As Forças Armadas são estatais, o Supremo Tribunal Federal é estatal, a TV Câmara é estatal. O problema é que, na Radiobrás, a Presidência da República decide quem é o Conselho de Administração, que é um órgão obrigatório em toda estatal.

Pergunta – Esse Conselho tem mandato? Bucci – O Conselho tem mandato. Mas o real poder de gestão é do Conselho de Administração e a equipe é designada pelo governo, com mandato – e essa é uma inovação que não havia antes – mas é uma empresa inteiramente dependente em mais de um sentido – não apenas econômico – do governo federal. Hierarquicamente, culturalmente... E o programa Voz do Brasil é “do” governo federal. A relação com o governo é quase de uma prestação de serviço; o “cliente” é o governo, ainda que formalmente não seja assim, é isso que acontece: o cliente é o governo federal. Aquele é um horário “do” governo federal, assim como existe uma parte do horário, depois, do Poder Legislativo e os minutos do Poder Judiciário. A Voz do Brasil, portanto, é um programa do Poder Executivo, não é a Radiobrás que faz aquilo, é uma atividade do governo – a Radiobrás presta um serviço para o governo.

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Pergunta – O que fazer com isso? Bucci – A Voz do Brasil poderia até continuar, mas ele não poderia jamais ser obrigatória. A obrigatoriedade acaba com a autoridade natural, com a autoridade moral que ela poderia ter, e ela não teria de ter tudo isso de duração. Aquilo foi pensado num mundo, nos anos 30, em que o Brasil era integrado pelas emissoras de rádio. E naquele tempo as rádios comerciais eram fraquíssimas, as emissoras surgiram como rádio-clube, rádios mais ou menos comunitárias, e aquilo era do governo, tudo era do governo. Era o jeito de você integrar o país. Às sete horas da noite era o horário nobre do rádio, o rádio reinava, o Estado era autoritário, era um mundo completamente diferente. Todas aquelas condições que tornavam a Voz do Brasil compreensível, ainda que inaceitável, desapareceram. Hoje, além de inaceitável, a Voz do Brasil é incompreensível. Incompreensível do ponto de vista ético, do ponto de vista funcional, do ponto de vista institucional, e também incompreensível do ponto de vista discursivo, pois as pessoas não entendem o que eles falam. Eu não sei se o cenário é de se pensar uma comunicação pública com a Voz do Brasil. Ela tem que desaparecer. Ou fica. É um programa que quem quiser usa, quem não quiser não usa. A Voz do Brasil não serve para nada. Só serve para deixar a autoridade contente. E qual autoridade fica mais contente? É o baixo clero. Por isso aquilo é irrevogável.

Pergunta – Como foi criada a missão da Radiobrás? Bucci – A Radiobrás fazia proselitismo abertamente, e era usada pessoalmente pelo poder em caráter pessoal. Um caso exemplar é as câmeras da Radiobrás gravando as festas da dona Dulce Figueiredo, que não tinha nenhum interesse público, nenhuma função pública. Assim como existia a cozinha, a piscina do Palácio do Planalto, existia a Radiobrás, e era a agência de fotografia do governante, uma história espantosa. Ora, esse uso [da coisa pública] não encontra justificativa em nenhum lugar. Então o nosso truque foi: a lei não diz que é para fazer isso; a lei não diz que é para fazer publicidade do governo; a lei não diz que é para ser porta-voz do governo; a lei não diz que é para fazer assessoria de imprensa ou relações públicas. A lei diz que ela tem que explorar emissoras de rádio – e o que define o papel das emissoras de rádio está na Constituição, que não diz isso. Então, não temos que fazer o que a lei não diz que nós temos que fazer.

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Eu falei: o uso que está sendo dado não encontra amparo na lei. Então eu usei leis – às vezes até a ditadura – para afirmar o princípio da impessoalidade. Isso aqui tem que ser de interesse público, assim como uma escola tem que ser de interesse público, um hospital tem que ser de interesse público, qualquer instituição pública tem que ser de interesse público e não pode fazer propaganda pessoal. Isso instaurou ali dentro uma zona de conflito, que foi terrível, e que só poderia terminar da forma como terminou.

Pergunta – Mas o Sr. saiu da Radiobrás em 2007 e as diretrizes definidas em sua gestão não foram revogadas, certo? Bucci – Nada, é uma coisa incrível. A abertura da Voz do Brasil até hoje é a mesma, que nós fizemos. Os marcos ficaram lá. E até recentemente – eu estive lá em algumas ocasiões –, as balizas eram basicamente essas. Se tentou ir mais longe – e eu acredito que tentaram mesmo.

Pergunta – Então por que o projeto não avançou? Bucci – A Radiobrás tem sido pensada como uma extensão do aparato de comunicação do partido / governo. Isso aparece naquele documento da Secom que vazou no começo do ano (2015); aquilo é uma confissão de um modo de pensar e está tudo ali. Ou seja: a Voz do Brasil, a propaganda, os blogueiros progressistas – conceito que apareceu recentemente –, são “armas” ou uma estratégia militar que você aciona num momento ou no outro. É assim que ela é pensada.76

Pergunta – E o Sr. já disse em outra oportunidade que isso não é coisa de um partido específico... Bucci – Não é coisa de um partido: é uma unanimidade suprapartidária. Nunca ninguém chegou no governo e fez alguma coisa diferente. E não acredito que vá mudar agora. Acho que é uma agenda que vai crescer. É um dos sintomas ou uma das evidências ultrajantes do atraso brasileiro. É um tremendo de um atraso você ter na televisão um governo gastando rios de dinheiro – no [livro] O Estado de Narciso eu levanto algumas

76 Documento vazado à imprensa em março de 2015, intitulado “Onde estamos”, supostamente de autoria do então titular da Secom, Thomas Traumann. Disponível em . Acesso em 31 mar 2015.

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dessas cifras – para falar que o governo é legal e que se preocupa com as crianças, com os aposentados, com os trabalhadores. Isso tinha de ser interrompido, isso é uma distorção que afeta a reprodução do poder, e conspira contra a alternância do poder.

Pergunta – Quando chegou à Radiobrás em 2003, o Sr. tinha esperança de mudar esse quadro? Bucci – Eu tinha a esperança. Mas foi-se desenhando no horizonte um desencanto muito grande, não é um vexame menor o que vem por aí, mas eu achava que havia jeito de dar uma nivelada por cima na vida institucional e me cabia ajudar parte da comunicação. Eu acreditava que a gente poderia fazer mais do que fez, mas a agenda não era aquela, e não deu certo. Alguma coisa, você mesmo constatou, vai ficando; um pouco da cultura a gente conseguiu mudar – tanto que não teve uma regressão, mas é difícil. Eu acho que isso vai vir numa outra onda, em outro momento. Parece que algumas manifestações, algumas correntes de manifestantes contra o governo têm uma proposta de extinção da publicidade governamental. Eu acho boa essa ideia, porque o Estado não tem necessidade de se comunicar; o Estado e o governo têm o dever prestar contas, mas devem de prestar contas para a sociedade; quem faz propaganda de uma causa é o partido. E essa separação é fundamental para o funcionamento da democracia, porque se o Estado vira um partido, o resultado é desastroso – temos tantos exemplos – o Estado não tem que ditar o modo de vida, é uma coisa tão simples, tão básica, mas aqui nós estamos fazendo o contrário. Ainda.

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Impresso na Alphagraphics Faria Lima – SP, em outubro de 2015, em papel sulfite A4 produzido com fibras de celulose de eucalipto, plantado em áreas de reflorestamento.

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