Critérios De Noticiabilidade Na “Voz Do Brasil”
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Critérios de noticiabilidade na “Voz do Brasil” Renato Delmanto Este artigo tem como objeto de estudo a primeira par- te do programa de rádio Voz do Brasil, que é de responsa- bilidade do governo federal. Criado há mais de 80 anos, o programa se propõe a informar a população a respeito das ações do Poder Executivo. Com transmissão obrigatória por todas as emissoras do país, a partir das 19 horas dos dias úteis, a Voz do Brasil possui um formato jornalístico, com dois apresentadores no estúdio, intervenções de repórteres e apre- sentação de matérias e entrevistas. Possui ainda diretrizes que regem a sua produção jornalística, que foram formalizadas a partir de 2005 e atualmente estão compiladas no Manual de Jornalismo editado pela EBC – Empresa Brasil de Comunica- ção, a estatal responsável pela produção do programa. Essas diretrizes pregam que os jornalistas da Voz do Brasil devem se colocar a serviço do direito à informação da sociedade. A despeito disso, ao longo de sua história, o pro- grama prestou-se ao papel de porta-voz do poder executivo federal, veiculando um conteúdo de interesse do governo ao invés de abordar temas de interesse dos cidadãos. Neste artigo, buscamos referências nos estudos sobre a noticia- bilidade desenvolvidos por autores como Galtung & Ruge, 223 Renato Delmanto Golding & Elliott, Gans, Traquina e Wolf, para analisarmos o conteúdo veiculado pela Voz do Brasil, com o intuito de verificar como são adotados (ou se são adotados) esses cri- térios no processo de seleção das notícias pelo programa. Contexto histórico da Voz do Brasil O programa Voz do Brasil é o mais longevo do país. Foi criado em julho de 1935 pelo presidente Getúlio Var- gas, com o nome de Hora do Brasil. Vargas era governador do Rio Grande do Sul em 1930, quando foi derrotado nas eleições nacionais pelo paulista Júlio Prestes. No entanto, suspeitas de fraude no pleito e o assassinato do paraibano João Pessoa (que tinha sido candidato a vice-presidente na chapa de Vargas) provocaram uma crise institucional no país. Os militares depuseram o então presidente Washin- gton Luís, impediram a posse de Prestes e empossaram o político gaúcho na Presidência. Tinha início a Era Vargas.1 Autor de medidas de forte apelo popular e com uma grande habilidade em falar para a população mais simples, Getúlio Vargas foi o primeiro político brasileiro a usar os meios de comunicação e a propaganda política com o objetivo de construir uma imagem pública – tanto que ficou conhecido como “o pai dos pobres”. Vargas vis- lumbrou o potencial que o rádio, um meio ainda nascente no Brasil, tinha para ser um dos pilares de seu projeto de propaganda oficial. A estratégia de comunicação varguista pretendia promover a integração nacional, eliminar a luta de classes (com medidas populistas em favor dos trabalha- dores), difundir os discursos e principalmente os “feitos” do presidente voltados para os menos favorecidos. 1 O movimento que levou Vargas ao poder reunia jovens políticos como Oswaldo Aranha e Flores da Cunha, políticos da velha guarda, entre eles Artur Bernardes e Venceslau Brás, e expoentes do Movimento Te- nentista, como Juarez Távora e Miguel Costa (CPDOC, 1997). 224 Critérios de noticiabilidade na “Voz do Brasil” Embora o governo Vargas não assumisse publica- mente, seu projeto de comunicação guardava forte inspi- ração nos modelos de propaganda dos regimes nazista e fascista, vigentes à época na Alemanha e na Itália, respec- tivamente. E para que esse projeto fosse bem-sucedido, era necessário que o rádio se popularizasse rapidamente no Brasil. Vargas incentivou empresários a investirem no setor, concedeu licenças de emissoras para a iniciativa privada, regulamentou a exploração da propaganda radiofônica comercial e fomentou o desenvolvimento da indústria na- cional, visando baratear os aparelhos receptores e substi- tuir os equipamentos importados pelos nacionais. Em 1937, um golpe de Vargas deu início à ditadura do Estado Novo, que perduraria até 1945. Sob o regime di- tatorial, o programa Hora do Brasil2 passou a ter transmis- são obrigatória por todas as estações do país e tornou-se uma importante plataforma de divulgação do regime e da figura presidencial. Com a criação do DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, em 1939, o programa passou a ser de responsabilidade desse órgão.3 A origem da Voz do Brasil na Era Vargas foi decisi- va para que o programa ganhasse o rótulo de porta-voz do governo, ou de “chapa branca”, conforme o jargão jorna- lístico.4 Essa característica se manteve após o fim da ditadu- ra Vargas, durante os governos da República Velha (1945- 2 O nome Voz do Brasil foi adotado no governo Dutra, que substituiu Vargas em 1945. 3 O DIP tinha a incumbência de difundir a ideologia do Estado Novo, coordenar a censura aos meios de comunicação e controlar as produ- ções artísticas, como lembra Perosa (1995, p. 40). 4 Expressão que define veículos de comunicação alinhados aos interesses dos governos, uma metáfora que faz referência à frota oficial de automóveis, que é emplacada com chapas de cor distinta dos carros particulares. 225 Renato Delmanto 1964), ao longo de todo o período militar (1964-1985) e também após a redemocratização do país, com a saída dos militares do poder e a consolidação da democracia, permanecendo até os dias de hoje. Apenas durante dois momentos específicos da história da Voz do Brasil experi- mentou-se praticar o jornalismo no programa: no primeiro ano do governo José Sarney (1985) e no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006).5 Este artigo pretende mostrar que a seleção de as- suntos na primeira parte da Voz do Brasil, que é responsa- bilidade do Poder Executivo,6 não segue os mesmos crité- rios de noticiabilidade de outros veículos de imprensa. Essa hipótese é embasada na análise comparativa do programa com as edições correspondentes de três jornais de grande circulação – O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo (RJ) – para se verificar como temas de grande reper- cussão na imprensa e de interesse da sociedade em geral foram tratados no programa.7 O conceito de noticiabilidade Diversos autores vêm se dedicando a estudar o campo jornalístico – a partir das teorias do jornalismo, da 5 Em 1985, a Voz do Brasil era subordinado à Empresa Brasileira de Notícias – EBN. O jornalista Carlos Marchi fora escolhido para presidir a empresa por Tancredo Neves (que não tomou posse na Presidência, tendo morrido em 1985), e adotou no programa um projeto jornalís- tico que previa até entrevistas com políticos da oposição. De 2003 a 2006, a Radiobrás, empresa responsável pelo programa, foi presidida pelo jornalista Eugênio Bucci, quando foram produzidos os primeiros documentos sobre os critérios jornalísticos a serem adotados na Voz do Brasil, editados em 2005. 6 O restante do programa é dedicado às duas Casas do Congresso Na- cional, ao Poder Judiciário e ao Tribunal de Contas da União. 7 Durante a pesquisa, o programa foi acompanhado diariamente de ja- neiro de 2013 a junho de 2015. 226 Critérios de noticiabilidade na “Voz do Brasil” história do jornalismo, da análise do discurso, da produção da notícia, das narrativas. Para analisar o programa Voz do Brasil, adotamos o conceito que compreende o jornalismo como o ato de informar à sociedade fatos que sejam de interesse geral dos cidadãos. Essa compreensão – pre- sente nas pesquisas de Galtung e Ruge, Golding e Elliott, Gans, Traquina, Wolf e Lage, entre outros – é também adotada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), no Código de Ética da profissão. Esse documento, elabo- rado em 2007, considera que “o acesso à informação de relevante interesse público é um direito fundamental” dos cidadãos e que “a produção e a divulgação da informa- ção devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”. Numa perspectiva histórica do estudo do jornalismo, considerando os conceitos de gatekeper e a teoria do agen- damento (agenda setting), as notícias podem ser entendidas como a existência pública dos acontecimentos, o que se dá por meio da imprensa. O processo de produção da notícia se baseia nos critérios de noticiabilidade (newsworthiness, no termo em inglês) dos acontecimentos, a partir da avaliação de atributos como a novidade (quando o fato é inédito, portanto noticiável), a raridade (quando acontece o ines- perado, conforme o clássico exemplo alegórico do homem que morde o cão), a relevância (a importância do acon- tecimento para a sociedade ou a posição hierárquica dos personagens envolvidos), a proximidade geográfica (se o fato ocorre próximo ao público do veículo) e a negatividade (a questão das bad news e das good news), entre outros. O conceito de noticiabilidade orienta o trabalho jornalístico, permitindo uma avaliação dos acontecimen- tos com base em um conjunto de critérios que definem a aptidão de cada evento para virar notícia. Esses critérios se aplicam nas diferentes etapas da produção jornalística: 227 Renato Delmanto pauta, apuração, reportagem e edição. Num mundo ideal – sem a influência de fatores externos, nem das convicções pessoais dos jornalistas, nem das estruturas organizacio- nais e hierárquicas das empresas de comunicação –, a ava- liação da noticiabilidade poderia ser baseada nos chama- dos valores/notícia. Os valores/notícia são a qualidade dos eventos ou da sua construção jornalística, cuja ausência ou presença relativa os indica para inclusão num produto informativo. Quanto mais um acontecimento exibe essas qualidades, maiores são as suas possibilidades de ser incluído (Gol- ding; Elliott, 1979, p. 114. Tradução do autor).8 Esses valores/notícia são regras práticas que abran- gem um corpus de conhecimentos profissionais em uma redação, e justificam as linhas-guia que orientam o que deve ser enfatizado, o que deve ser omitido e como dar prioridade na preparação das notícias a serem apresenta- das ao público.