TODA A POESIA QUE VINICIUS VIU NO CINEMA, POR CARLOS A. CALIL O BOLETIM DO ANO 35 N162 CINE CLUBE DE VISEU JUNHO 2019 2 EUROS QUADRIMESTRAL

O INCONTORNÁVEL GODARD NA RETINA DE Vivre sa vie MARIA JOÃO MADEIRA ANA BARROSO NOS PASSOS DO CINEMA LUMINOSO DE Nathaniel Dorsky O NOVO PROJECTO DE EDGAR PÊRA É O MOTE PARA Kinorama UMA CONVERSA COM EDUARDO EGO DE LARS VON TRIER COMEMORA UMA DÉCADA E FILIPE VARELA Antichrist ESCREVE-NOS SOBRE ELE EM ‘NÓS POR CÁ’, FAUSTO CRUCHINHO REFLECTE SOBRE O plano frontal DISCURSO VISUAL E DISTORÇÃO DA REALIDADE em televisão POR MANUEL PEREIRA A retórica do poder JARMUSCH INSPIRA ANDRÉ RUIVO NO Dead Man SEU ‘OBSERVATÓRIO’

162 VIVRE SA VIE NA RETINA DE MARIA JOÃO MADEIRA GRIFFITH DIZIA QUE ERA TUDO O QUE ERA PRECISO, GODARD CITA-O POR ESCRITO: A FILM IS A GIRL AND A GUN. Na capa, Charlotte Gainsbourg, num fotograma de Antichrist (Lars von Trier, 2009).

Por causa de uma crónica, uma ilustração, um ensaio, mais cedo ou mais tarde o Argumento vai fazer falta. Assinaturas €10 5 EDIÇÕES HTTP://WWW.CINECLUBEVISEU.PT/ARGUMENTO-ASSINATURAS

Colaboram neste número:

MARIA JOÃO EDGAR ANA FILIPE FAUSTO MANUEL ANDRÉ MADEIRA PÊRA BARROSO VA R E L A CRUCHINHO PEREIRA RUIVO

PROGRAMADORA DE ESTÁ A TERMINAR ANA BARROSO É ESTUDOU CINEMA, PROFESSOR AUXILIAR FORMADO EM ESTUDOS LICENCIADO EM DESIGN CINEMA, SOBRETUDO. KINORAMA — CINE- INVESTIGADORA NO FILOSOFIA E MATEMÁ- DA FACULDADE DE ARTÍSTICOS NA VA- DE COMUNICAÇÃO PELA MA FORA DE ÓRBI- CENTRO DE ESTUDOS TICA. REALIZOU DUAS LETRAS DA UNIVER- RIANTE DE ESTUDOS FBAUL E MESTRE EM TA, A SEQUELA DO ANGLÍSTICOS DA U.L. CURTAS, UMA MÉDIA E SIDADE DE COIMBRA. CINEMATOGRÁFICOS CINEMA DE ANIMAÇÃO SEU FILME-TESE O TEM ESCRITO SOBRE UMA LONGA-METRAGEM INVESTIGADOR INTE- PELA FLUC, TEM-SE PELO ROYAL COLLEGE ESPECTADOR ESPAN- CINEMA E ARTES EM (ESTREADA EM 2016 GRADO NO CENTRO DE DEDICADO À INVES- OF ARTS, O ARTISTA TADO E A PREPARAR REVISTAS NACIONAIS NO RIO DE JANEI- ESTUDOS INTERDISCI- TIGAÇÃO EM TORNO MULTI-DISCIPLINAR NÃO SOU NADA/THE E ESTRANGEIRAS. TEM RO). VIVE EM VISEU, PLINARES DO SÉCULO DE AUTORES QUE A LISBOETA DIVIDE O SEU NOTHINGNESS CLUB, TAMBÉM DESENVOLVIDO ONDE CO-FUNDOU A XX DA UNIVERSIDADE HISTÓRIA DO CINEMA TEMPO ENTRE A ILUS- UM NEURO-THRILLER TRABALHO COMO AR- ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE COIMBRA. SE ENCARREGOU DE TRAÇÃO, A REALIZAÇÃO PESSOANO. TISTA EM VIDEOARTE. ESTÁTUAS DE VENTO. OBSCURECER. E A MÚSICA.

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Editorial

f all the year were playing holidays, To sport would be as tedious as to work; But when they seldom come, they wished-for come, And nothing pleaseth but rare accidents. I SHAKESPEARE, HENRY IV Enquanto as férias não chegam, o mundo divide-se entre os que desesperam porque ainda falta e os que já relaxam porque falta tão pouco! Para uns, cada hora da contagem decrescente é mais pe- nosa, reservando a primeira semana de férias apenas para recuperar da depressão pré-férias. Para outros, a contagem decrescente é já o melhor das férias, estando 4 prontos para voltar ao trabalho assim que elas começam. Seja qual for o seu caso, a chegada do novo Argumento é certamente uma excelente notícia. BILHETE-POSTAL ENDSTATION.CLUB, BOCHUM, ALEMANHA. Nesta edição recebemos um Bilhete-Postal de Bochum, na Alemanha, do endstation.club, um ponto de encontro, um porto de abrigo, feito de cinema à medida dos seus cinéfilos, um exemplo notável de propósito e plasticidade. Recebemos também Maria João Madeira, que já tinha passado por aqui, mas 5 só agora ficou: estreia-se como membro permanente do grupo de magos que ge- LIVROS DO TRIMESTRE nerosamente partilham connosco o que os seus olhos adivinhos vêem nos filmes. SUGESTÕES DAS EDIÇÕES QUE ENCONTRAMOS NAS ESTANTES, A CADA TRIMESTRE. Uma vez por ano, será a vez dela. Para começar, Vivre sa vie, a propósito da retros- pectiva dedicada a em que esteve a trabalhar nos últimos tempos e que foi apresentada em Lisboa no início do mês passado, uma colaboração entre a Cinemateca Portuguesa e o IndieLisboa. E parece mesmo que o filme não lhe 8 ficou só Na Retina, parece que lhe entrou pelos olhos adentro, tomou-lhe conta NA RETINA •VIVRE SA VIE, POR MARIA JOÃO MADEIRA, das mãos e escreveu por ela um texto nouvelle vaguista. • NATHANIEL DORSKY POR ANA BARROSO. Ainda dentro das estreias, Filipe Varela faz uma análise técnico-poética EM DOSE DUPLA, ESTE ESPAÇO PARA PARTILHA extraordinária de Antichrist, de Lars von Trier, descodificando os recursos DE OLHARES SOBRE UM FILME OU REALIZADOR. que adensam o significado do filme num texto claríssimo e muito apurado. E, também, Ana Barroso fala da luz e da sua potência em Nathaniel Dorsky, numa síntese que parte da voz do próprio realizador. 12 Além disso, Eduardo Ego, nosso mui talentoso repórter, segundo o próprio CINE-COSMOS entrevistado, volta a perguntar perfeitamente às respostas de Edgar Pêra, que nos A CRÓNICA DE EDGAR PÊRA, DE NOVO EM conta da sequela do seu Espectador Espantado, Kinorama, e, já agora, a situa no FORMATO DE ENTREVISTA, POR EDUARDO EGO, seu percurso, fazendo uma reflexão pontual sobre o conjunto da sua obra, a sua A PROPÓSITO DO NOVO KINORAMA. identidade artística, as suas influências, enfim… pelo Cine-Cosmos já passaram alguns filmes, e é nosso privilégio acompanhar e conhecer o seu autor através de cada um deles. 14 No Subsolo, de Manuel Pereira, a exploração das fronteiras de géneros ou ENSAIO modos, nomeadamente o documentário, por Peter Watkins, Craig Baldwin e ANTICHRIST (LARS VON TRIER) É O OBJECTO Emile de Antonio, em nome do boicote ao poder e ao seu discurso manipulador e DE O SOPRO DE SATANÁS, POR FILIPE VARELA. aos seus mecanismos de controlo através da linguagem, essa, que também Fausto Cruchinho analisa, num texto sobre o plano frontal em televisão. E as nossas últimas páginas são de André Ruivo, esse multi-artista do quoti- 19 diano surrealista, na sua interpretação de Dead Man, de Jarmusch. NÓS POR CÁ Mesmo não estando de férias — com Cine Concertos Fora de Portas, sessões ESPAÇO DE ENSAIO COORDENADO POR de cinema 100% Alternativo no Politécnico, Cinema para as Escolas, programa- FAUSTO CRUCHINHO. DIFERENTES AUTORES, TEMAS E ABORDAGENS, QUE NOS OFERECEM ção de cinema ao ar livre e Vistacurta — ansiamos pela volta do nosso trabalho: A VISIBILIDADE DE OUTRAS LÓGICAS a semana sem a nossa sessão não é a mesma coisa, e mal podemos esperar por DE PENSAMENTO SOBRE O CINEMA. começar a programar uma enorme, sôfrega Retoma, em Setembro. Até lá, boas férias! 21 SUBSOLO Estatuto editorial: www.cineclubeviseu.pt/argumento-0-a-50 RUBRICA DE MANUEL PEREIRA, ABARCA Ficha técnica AUTORES, OBRAS E TENDÊNCIAS QUE ENCARNAM UMA VONTADE DE ALARGAR OS PRÓPRIOS EDITOR E PROPRIETÁRIO DIRECÇÃO EDITORIAL HORIZONTES DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA. CINE CLUBE DE VISEU CINE CLUBE DE VISEU INSCRITO NO ICS CONCEPÇÃO GRÁFICA SOB O N.º 211173 MIGUEL R. CARDOSO NIPC 501441182 IMPRESSÃO SEDE DO EDITOR TIPOGRAFIA BEIRA ALTA 23 RUA ESCURA, 62 TIRAGEM 300 EXEMPLARES OBSERVATÓRIO APARTADO 2102 ANO XXXV EDIÇÃO DE TRABALHOS ARTÍSTICOS 3500-130 VISEU BOLETIM INSCRITO NO ICS ORIGINAIS. A DESAFIAR OS CONVIDADOS, TEL 232 432 760 SOB O N.º 111174 UM TEMA COMUM, A CINEFILIA. [email protected] FUNDADO EM 1955

--- PUBLICAÇÃO EDITADA PELO CCV DESDE 1984, PENSADA, ORIGINALMENTE, PARA A DIVULGAÇÃO DE FACEBOOK.COM/CCVISEU ACTIVIDADES E DEBATE DO FENÓMENO FÍLMICO. O BOLETIM TORNOU-SE UM VEÍCULO INDISPENSÁVEL INSTAGRAM.COM/CINECLUBEVISEU DE REFLEXÃO DA SÉTIMA ARTE E DIVULGAÇÃO DO CCV, A JUSTIFICAR UM CUIDADO PERMANENTE DAS SUAS SUCESSIVAS DIRECÇÕES. FUNDADO EM 1955, O CCV É UM DOS MAIS ANTIGOS CINECLUBES cineclubeviseu.pt DO PAÍS, SENDO O ARGUMENTO UM PROJECTO CENTRAL NA SUA ACTIVIDADE. 4

Bilhete-Postal Uma cartografia do movimento cineclubista e projectos afins: o que fazem, para quem e com A endstation.club Magazin é anual que objectivos trabalham. Pelo mundo fora. e gratuita.

BOCHUM, ALEMANHA endstation.club HTTP://ENDSTATION-KINO.DE/ENDSTATION.CLUB.HTML

aos climas políticos. Em 2015 a Alemanha ção, e, junto a outras pessoas, criar e rodar recebeu muitos habitantes novos, e portanto um filme, e depois apresentá-lo em público. nós ganhámos um novo público. Foi assim Mas vamos por partes. Nos primeiros me- que o nosso cinema se transformou num ses do endstation.club tivemos a intenção de ponto de encontro para novos vizinhos, manter vivo o formato interessante que se ti- pessoas que viviam em centros de acolhi- nha consolidado ao longo dos três semestres mento temporário que estavam a poucas de que falámos antes. Assim, continuámos ruas do cinema. Estamos a falar em concreto a projectar filmes e a preparar uma modera- do encontro entre crianças de Langendreer, ção intercultural e multilingue. Projectámos o bairro de Bochum em que fica o nosso ci- vários tipos de filmes, e falámos sobre eles, nema, e crianças que acabavam de chegar ao mas do que mais me lembro é a noite em que bairro. E a este encontro junta-se o encontro tivemos uma sessão de curtas-metragens entre jovens adultos que devido à guerra nos com a presença dos criadores, para conversar seus lugares de origem tinham vindo para a connosco. Rapidamente percebemos, pelas Alemanha e estudantes universitários que perguntas feitas nessa noite, que nas poltro- vivem há algum tempo em Bochum. Nesta nas do cinema, nas sessões do endstation. primeira etapa, os estudantes e os jovens club, se sentavam pessoas com vontade de adultos criaram juntos um ciclo de cinema criar e contar as suas próprias histórias. para crianças, escolhendo com cuidado os Assim surgiram as oficinas de curtas-me- filmes, pensando sempre nas necessidades tragens. Fizemos três oficinas dirigidas a do nosso público. jovens adultos, uma dirigida explicitamente Assim, durante dois semestres projectou- a pessoas que eram novas na cidade. A tela -se um filme infantil por semana, em sessão do cinema é absorvente: as histórias que moderada pelos jovens e estudantes em vá- vimos ali reflectidas inspiraram e motivaram rias línguas. Usar várias línguas era a nossa novas histórias que mais tarde projectámos tentativa de assegurar que as crianças que também nessa tela. íamos buscar todas as segundas-feiras aos Dissemos que muitas das conversas no fi- centros de acolhimento para virem ao cinema nal do filme foram mais longas do que o pró- se sentiam incluídas. No final do filme havia prio filme. E isso só se pode explicar graças uma actividade lúdica, relacionada com o à riqueza e à magia que havia nelas. Numa filme, que se realizava no átrio do cinema. tentativa de capturar essa riqueza e de poder O terceiro semestre começou com a notícia partilhar com outras pessoas o que acontecia de que os centros de acolhimento tinham nessas sessões, surgiu a ideia de as escrever. sido fechados. Muitas dessas famílias já não Assim chega à imprensa a endstation.club O endstation.club é um projecto viviam em Langendreer, pelo que decidimos Magazin. Até agora editámos dois números, para entusiastas do cinema com e sem dirigir a aventura noutra direcção. Para esse em que algumas pessoas, cujas contribuições experiência de vôo, em Bochum. Os mem- bros seleccionam os filmes, organizam semestre pensámos um ciclo dirigido a jovens na discussão se tinham destacado, fizeram as discussões subsequentes e chegam adultos. Agora, em vez de uma actividade o esforço de as pôr em papel. Várias vozes, a filmar curtas-metragens no Outono, lúdica, depois de cada filme havia uma mode- não se trata de críticas de cinema em sentido como parte de um workshop de cinema. ração preparada. Algumas vezes as conversas estrito, mas sim de reflexos sinceros do que depois do filme duraram mais do que o pró- os filmes fizeram ressoar dentro das pessoas. ara nós, o endstation. prio filme, e assim se foi formando o grupo Desde Janeiro de 2019 o endstation. club, o nosso cinema, que hoje mantém vivo o endstation.club. club abriu-se ainda mais: convidou os seus é um lugar de comuni- O endstation.club nasceu da necessida- membros a sentar-se uma vez por mês, para cação. Aqui as pessoas de de conectar histórias, de fazer a sala de um pequeno-almoço, e a formar um grupo P encontram filmes, mas cinema permeável às mudanças e acessível de curadoria para programar o resto das também outras pes- às pessoas. Interessa-nos poder reflectir com sessões do clube. Os curadores propõem soas. Vemo-nos como o nosso cartaz a diversidade cultural e social filmes e escolhem com cuidado o que será um lugar em que a que existe na nossa cidade. E queremos que projectado. Uma das pessoas do grupo fará tela e a sala de cinema são uma arena em essa diversidade também se veja reflectida no a introdução e a moderação da discussão. que diferentes perspectivas encontram um nosso clube. Portanto, fazer parte do ends- Por isso, essa pessoa recebe uma remunera- público, mas também em que muitas vezes se tation.club significa, primeiro, ver um filme ção. Por vezes estas sessões transformam-se negocia e discute a propósito. A experiência juntos; significa também ficar um pouco numa janela sobre o mundo e a cultura de colectiva não passa apenas por ver o filme depois e discutir e conversar sobre ele; ou até um lugar; outras, uma ponte para a biografia juntos, mas também por falar dele, pensá-lo escrever um texto sobre ele ou sobre a sessão e as experiências de algum dos membros do e entendê-lo juntos. em que o vimos. Mas também pode significar endstation.club. Não sabemos que direcção Partindo deste princípio, podemos dizer preparar uma apresentação ou moderação, vai tomar esta aventura no futuro; o que sa- que as actividades do endstation.club estão ou escolher o que se vai projectar. Ou ainda bemos é que queremos continuar a desfrutar muitas vezes ligadas às mudanças sociais e fazer um dos diferentes papéis numa produ- do cinema juntos. ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 5 THE BRAT THE PORQUE NEM SÓ DE FILMES VIVE O , DE JOHN FORD (1931) FORD JOHN , DE CINÉFILO, AS NOSSAS SUGESTÕES DAS EDIÇÕES QUE ENCONTRAMOS NAS ESTANTES, A CADA TRIMESTRE. UMA SELECÇÃO DO QUE NOS TOCA, NOS ENTRETÉM, OU NOS DÁ PISTAS. LEITURAS DE CINEMA E DAS IMAGENS.

LIVROS do TRIMESTRE

TRIBUTO ÀS O CINEMA AO SÃO JOÃO GRAVURAS DO VIVO E AS SUAS DE DEUS VALE DO RIO CÔA TÉCNICAS ------ANDRÉ CEPEDA DUARTE BELO, PEDRO FRANCIS FORD COPPOLA NUNO BRANDÃO COSTA PROENÇA (TEXTO) ------DUARTE BELO EDIÇÕES 70 DAFNE (FOTOGRAFIAS) 220 PÁGS. 200 PÁGS. --- 2019 2019 DOCUMENTA 98 PÁGS. 2019

“ Vale do Côa é hoje considerado o “ a tecnologia que surgiu com o “ obra fotográfica de André Cepeda O mais importante sítio ao ar livre, D desporto — difusores de satélite e A tem estado profundamente ligada com gravuras rupestres, no mundo. servidores de reprodução instantâ- ao Porto. É igualmente recorrente Nestas gravuras a céu aberto, temos o regis- nea, bem como muitas outras tecnolo- o seu interesse por territórios de fronteira to de uma origem, são como que fotografias, gias que surgem mensalmente —, há uma habitados por gente pobre e excluída, zonas imagens retinianas que ficaram fixas para panóplia de equipamentos que poderá ser onde abundam edifícios e casas abando- um tempo longo. Mas estas gravuras são orientada para o storytelling, se assim se qui- nadas, terrenos baldios, traseiras, constru- também o desejo de travar o tempo. Uma ser. Parecem ter chegado ao fim os dias em ções precárias, representados pelo artista espécie que adquire uma poderosa ferra- que a televisão era uma consola em casa e na sua especificidade espacial e material, menta de sobrevivência, que se espraia por os filmes eram vistos na sala de cinema. Os mas também como indícios e sintomas de um muito extenso território, a descoberta de filmes oscilam entre um minuto e 100 ho- uma geografia fragmentada por fenómenos todo um inteiro mundo.” ras e podem ser vistos em qualquer lugar.” e categorias sociais, políticos e morais.”

DAR A VER O JANELA PRATAS QUE NOS CEGA INDISCRETA CONQUISTADOR --- — O QUE DIZEM — A HISTÓRIA ABÍLIO HERNANDEZ AS ESTRELAS DESCONHECIDA CARDOSO --- DE UM CHARLOT --- MÁRIO AUGUSTO (TEXTO) PORTUGUÊS EDIÇÕES 70 ANDRÉ CARRILHO --- 212 PÁGS. (ILUSTRAÇÃO) PAULO M. MORAIS 2019 ------BERTRAND EDITORA CASA DAS LETRAS 352 PÁGS. 264 PÁGS. 2019 2019

“ oi graças à estação de La Ciotat e “ esolvi insistir no tema, percebendo “ urante a minha infância, a avó F ao comboio filmado pelos irmãos R que Al Pacino estava agradado pela D Julieta contou-me histórias do tio Lumière que aprendi a olhar o exigência com que preparei esta Emídio; porém, nunca falou de na- cinema com o corpo todo, e foi a partir entrevista. Perguntei-lhe: «Esse filme foi de da que o relacionasse com o mundo do ci- daí que o meu corpo de espectador se fez tal modo importante para si que, se não ti- nema. Seria realmente possível que o Emy- travelling e me conduziu de estação em vesse entrado em O Padrinho, teria seguido gidio Ribeiro Pratas referido no artigo e o estação, de cidade em cidade e de corpo eternamente a carreira de ator de teatro...» tio Emídio das histórias de infância fossem em corpo, até se tornar ele mesmo um E ele respondeu-me, sem surpresa minha: a mesma pessoa? O tio Emídio, de repente, filme feito de todos os filmes, de todas as «É verdade. Seguramente que não estaria tornava-se a única pessoa da família que cidades e de todos os corpos que nele habi- aqui consigo, mas algures num palco ou criara algo capaz de perdurar no tempo. taram, sempre moldados pelo meu olhar e numa digressão pelo país. Sempre disse que Ele poderia ser o nosso imortal. Desde que sempre moldando o corpo todo.” o cinema era apenas uma passagem».” alguém o continuasse a relembrar.” LIVROS DO TRIMESTRE 6 MODOS DE VER --- EXCERTO JOHN BERGER --- ANTÍGONA 200 PÁGS. 2018 Uma História do Cinema O CINEMA DE AUTOR NO JAPÃO

“ er vem antes das palavras. Mesmo V antes de saber falar, a criança olha e reconhece. Mas há outro sentido TEXTO DE DARIO TOMASI casal que vai à capital visitar os filhos e as em que o ver vem antes das palavras. Trata- respetivas famílias. No centro desse aconteci- -se do ver que estabelece o nosso lugar no e todas as cinemato- mento, está a temática recorrente da disso- mundo envolvente. Explicamos esse mundo grafias não ocidentais, lução da grande família, descrita através do recorrendo a palavras, mas estas nunca po- a japonesa foi sem ponto de vista dos dois genitores, que tomam derão apagar o facto de estarmos rodeados dúvida a que melhor consciência de como os filhos — já chegados por ele. A relação entre o que vemos e o que D soube impor-se no à idade adulta, casados, também eles pais, conhecemos nunca está estabelecida de uma conjunto da história do dominados pelas suas preocupações diá- vez por todas. O conhecimento, a explica- cinema. Para isso tive- rias — se afastaram definitivamente deles. ção, nunca se adequa exactamente à visão.” ram um papel essencial O núcleo dramático da obra é, ainda uma alguns autores, como Yasujiro Ozu, Kenji vez, o da separação — neste caso, a de pais Mizoguchi, Akira Kurosawa, Nagisa Oshi- e filhos — e, principalmente, do modo como ØCRE — TRILOGIA ma, Shohei Imamura e, mais recentemente, ela é aceite enquanto condição inelutável da DAS CORES, Kitano Takeshi, que aos poucos foram sendo existencia humana. Cabe a uma persona- VOLUME 1 exibidos nos ecrãs do mundo ocidental, gem específica, a jovem Noriko, assumir tal --- recebendo não apenas numerosos elogios crí- consciência, quando, ao falar com a cunhada FILIPE RAPOSO --- ticos, mas passando inclusive a ser autênticos Kyoko acerca do egoísmo dos filhos, lhe diz: TINTA-DA-CHINA pontos de referência, quer para os historiado- «Acaba sempre por chegar o dia em que a 32 PÁGS. res e para os especialistas, como para alguns nossa vida passa a ser a coisa mais importan- 2019 cineastas de primeiríssimo plano — pense-se te. Creio que não há maneira de fugir a isso. no modo como os realizadores da nouvelle Todos acabamos por fazê-lo, também a mim vague, e em especial Jean-Luc Godard, esti- me sucederá o mesmo. Não é que o queira, veram atentos a Mizoguchi, as homenagens mas não vou ser diferente.» Emerge nesta “ CRE pertence a uma trilogia de explícitas dirigidas por Wim Wenders a Ozu, fala o tema caro ao realizador — e a uma boa Ø discos que parte da reflexão artísti- a dívida que Steven Spielberg, George Lucas parte da cultura japonesa — do fluir de todas ca sobre a influência de três cores: e Francis Ford Coppola disseram ter para as coisas, da mutabilidade dos sentimentos e o vermelho, o preto e o branco. Perceber a com Kurosawa. da natureza humana, do caráter efémero dos cor, as cores, e o seu simbolismo, repre- Seria contudo um erro pensar no cinema fenómenos terrenos. Não é por acaso que o sentados desde a pintura ao cinema, da japonês como se se tratasse apenas de um filme recorre com frequência a imagens da literatura ao teatro, é perceber também a casual florescimento de grandes talentos. natureza, que desempenham o papel de inser- humanidade, de onde vimos e para onde Até aos anos 1960, na realidade, o cinema ções e de transições, para sublinhar o modo vamos.” Livro e disco de Filipe Raposo, nipónico apoiou-se num vasto e articulado como ela, sim, é permanente, ao contrário da em que cada texto, cada poema e cada cita- sistema produtivo cujo modelo era claramen- mutabilidade dos homens, e para indicar a ção exploram a fundo as origens da música te o de Hollywood. Um sistema que fazia do sua possível função de fonte de paz interior. do pianista e compositor português. cinema uma verdadeira indústria, garantia No plano audiovisual, o filme apresenta a produção de um grande número de filmes, muitos dos estilemas caros a Ozu: a har- formava pessoal especializado, subdividia monia que reina entre o velho casal, tal JÚLIO POMAR — O “JOGO DA a produção em géneros (os principais eram como entre Noriko e Kyoko, é muitas vezes CABRA SÁBIA” dois: os jidaigeki ou, por outras palavras, traduzida pelo jogo das poses paralelas e das --- os filmes históricos, e os gendaigeki, os de movimentações em uníssono que estas per- KELLY BENOUDIS ambiente contemporâneo), e controlava ha- sonagens assumem e realizam no âmbito de BASÍLIO (COORDENAÇÃO) --- bilmente o mercado. As maiores destas casas determinados enquadramentos; o sentido da HÚMUS produtoras, entre as quais recordamos pelo passagem do tempo e da sua inelutabilidade 136 PÁGS. menos a Shochiku, a Daiei, a Toho, a Toheie traduz-se, no plano da coluna sonora, não só 2019 a Nikkatsu, tinham dado origem, sempre ao tique-taque dos relógios, como também à seguindo o modelo hollywoodiano, a uma es- sucessão e à repetição de toda uma série de trutura de género vertical que lhes permitia sons estruturados por um determinado ritmo atuar, não apenas no plano da produção, mas — como o canto das cigarras, o batimento de “ ara o que é rápido é necessária uma também nos da distribuição e da exibição. um martelo, o som de um tambor, o motor P preparação lenta: um bom resultado Isso permitiu — em particular até ao final de uma lancha, o ruído de um comboio, excitante é o contrário do que corre da Segunda Guerra Mundial — um total do- o bater das máquinas de escrever, etc. —, fácil. Um jogo de cabra com o improviso. Um mínio do mercado, que se estendia também rumores esses que, além do mais, confe- jogo de cabra sábia (Júlio Pomar, in Contos à distribuição dos filmes americanos, que rem às imagens um caráter quase abstrato; Murais, 1998). Daí o subtítulo que resolvi gozavam de uma grande popularidade, mas todo o filme, finalmente, está constelado de dar a esta colectânea de ensaios dedicados que só estas grandes companhias decidiam enquadramentos de transição, entre os quais a algumas das diversas artes exercidas por como e quando exibir, garantindo assim um os que elidem a morte da mãe para mostrar Júlio Pomar que, no meu entender, se resu- amplo espaço para a produção nacional. algumas imagens da pequena cidade de mem numa só: a arte lúcida do jogo contra YASUJIRO OZU Onomichi, ligadas todas elas ao motivo da a cegueira do acaso. O jogo é aliás a mais O filme mais conhecido e apreciado de Ozu água que remete ainda uma vez para o tema lúcida das artes.” é Viagem a Tóquio, a história de um velho do fluir de tudo. ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 7

UMA HISTÓRIA DO CINEMA — AUTORES, FILMES, CORRENTES --- PAOLO BERTETTO (COORDENAÇÃO) --- EDIÇÕES TEXTO & GRAFIA 400 PÁGS. 2019

O Intendente Sansho, de Kenji Mizoguchi (1954).

KENJI MIZOGUCHI quase extraordinárias, as quais só recorre samurai nobre. A particularidade do filme Nascido em Tóquio em 1898 e contratado excecionalmente. É por isso que um pri- reside no facto de os episódios-chave da em 1920 pela Nikkatsu, como assistente de meiro plano num filme de Mizoguchi pode narração, a violação da mulher e a morte do realização, Mizoguchi é autor, como muitos provocar um choque emocional que rara- samurai, serem descritos várias vezes atra- dos seus colegas japoneses, de um abun- mente tem intensidade idêntica nos filmes de vés do testemunho das diversas personagens dante corpo de obras, tanto no domínio do qualquer outro cineasta. que participaram no acontecimento, e de um gendaigeki, como no do jidaigeki. Aquilo AKIRA KUROSAWA lenhador que assistiu ao que se passou. As que impressionou parte da crítica ociden- A influência do cinema americano e dos mo- várias versões são nitidamente diferentes en- tal, e em particular os «jovens turcos» dos delos ocidentais é muito evidente, tal como tre si, comprovando a circunstância de cada Cahiers du Cinéma, quando os seus filmes o é a capacidade do realizador de subordi- indivíduo procurar sempre dar da realidade começaram a ser vistos na Europa, duran- nar tais influências às suas necessidades que lhe diz respeito a imagem que mais lhe te os anos 1950, foi a modernidade do seu expressivas, bem como às formas da estética convém. O filme não apresenta nenhuma estilo. Um estilo de direção e encenação tradicional japonesa. Pense-se, por exemplo, solução para os vários enigmas, escolhendo que passa pelos planos-sequência, pelas para ficarmos apenas no âmbito do teatro, assim não tomar o partido de nenhum dos imagens distanciadas, pelos elaborados no Nô, a que vai buscar certos efeitos hierá- protagonistas e proclamando a impossibili- movimentos de câmara, pelos enquadra- ticos, e também de estilização, de declama- dade de chegar à verdade dos factos. mentos em profundidade de campo e pelo ção, de narração elíptica, e no Kabuki, no Uma das características estilísticas mais entrecruzamento e sobreposição de dados qual se inspira no que toca ao tom picaresco, significativas do filme é o uso conjunto da iconograficamente significativos. Soluções aos efeitos cómico-burlescos, à atmosfera profundidade de campo e da montagem. Em que vão todas elas numa específica direção, expressionista. Esta variedade de fontes e quase todos os momentos de maior tensão evitam as formas consolidadas do découpa- de formas — que pode encontrar-se também dramática, em que os três protagonistas ge clássico, privilegiam as modalidades da no plano das adaptações: de Shakespeare a estão perante uma série de possibilidades e montagem interna, convidam o espectador Dostoievski e Gorki, de Ryunosuke Akuta- têm de escolher entre elas, Kurosawa tende para um papel mais interventivo e para um gawa a Shigoro Yamamoto — é apenas um a dispor as personagens em planos com olhar mais crítico e ativo. dos vários elementos que determinam a forte duas ou três figuras, construídos sobre efei- Todavia se — sempre no plano estilísti- tensão que caracteriza o conjunto da obra do tos de profundidade. São enquadramentos co — olharmos para a obra de Mizoguchi autor e dá vida aquele dinamismo que é pro- que vivem da imobilidade das personagens, na sua globalidade, dar-nos-emos conta de vavelmente a sua marca poética e estilística da tensão dos olhares que lançam umas que a estas opções se somam outras. Os mais significativa. E é de facto através da sua sobre as outras, da incerteza quanto ao que seus filmes, de facto, podem ser atravessa- montagem áspera e irregular, das ligações poderá acontecer, da expectativa de que dos por primeiros planos fulgurantes, por a 180º, das frequentes e mesmo constantes alguma delas se decida finalmente a fazer envolventes sintagmas alternados, por cortes justaposições de primeiros planos e campos qualquer coisa. Mas Kurosawa acentua inesperados e reaction shot. No essencial, longos, da alternância de enquadramentos ulteriormente a tensão destas imagens Mizoguchi, tomando embora as suas distân- estáticos e de outros cheios de movimento, através de efeitos de montagem criados com cias, nunca chega a abandonar por completo de ligações que se fazem sobre conflitos de recurso ao princípio do conflito gráfico, o repertório do découpage clássico, reduz, linhas e de direção, em suma sobre cortes dando vida a enquadramentos fortemente sim, o seu peso, privilegia modelos de re- operados com aquele modelo de represen- estilizados, dominados por linhas diagonais presentação alternativos, constrói imagens tação clássico, que no entanto se retoma na que mudam inesperadamente de direção complexas que convidam o espectador a sua globalidade, que Kurosawa consegue — consoante a lição de Eisenstein — na mu- lê-las como se de quadros se tratassem, mas, criar um estilo bastante peculiar, semelhan- dança de um plano para outro. Importante sempre que acha oportuno fazê-lo, reapro- te, pela intensidade expressiva e pela origi- também é o uso dos movimentos de câmara pria-se de modelos de representação mais nalidade dos seus resultados, ao dos grandes que, na sua circularidade — reproduzida clássicos — no sentido ocidental do termo mestrês da tradição, como Ozu e Mizoguchi. no plano sonoro pelo insistente recurso ao —, dando-lhes uma nova força expressiva, Construído a partir de dois contos de Bolero de Ravel —, se configuram como um que deriva em concreto da recusa de os usar Akutagawa, Rashomon conta a história da modelo visual que remete para a circulari- como formas recorrentes e por conseguin- violência exercida por um bandido sobre dade narrativa e para o repetido retorno aos te estereotipadas, mas sim como soluções uma mulher que viaja com o seu marido, um mesmos acontecimentos. 8

emos de nos emprestar terrânico e do sangue explosivo de Pier- aos outros e darmo- rot. Nesta série de filmes há quase sempre -nos a nós mesmos. As pistolas. palavras de Michel Não damos por elas em Une femme est T de Montaigne estão une femme, que varia, esfusiante, o género Vıvre no início do terceiro clássico da comédia musical, nem em Antici- filme de Jean-Luc pation, em que, menos endiabrada, Karina é Godard com Anna a imagem do amor sentimental, por oposição Karina, dedicado à série B, rodado a preto ao amor físico, até à redescoberta das lágri- e branco na fotografia de , mas e do beijo com o Viajante 14 da Galá- sa vıe composto em doze quadros que gravitam xia 4, chegado à Terra para a contracena. à volta da personagem dela. Nana está Nana (nome da heroína de Zola, que Renoir mesmo nos planos em que não aparece, filmou) é-nos apresentada em três grandes está por inteiro no filme e no filme inteiro. planos tipo cadastro, os dois perfis, uma Vive, e sorri e fuma e dança e está nos imagem frontal, no contraste e nas sombras O retrato cafés e vai ao cinema e chora e trabalha e que acentuam o corte de cabelo redondo à filosofa e é alegre e é melancólica, e morre altura da nuca (como Louise Brooks na Lou- com um disparo por que não espera. Vivre lou dela e de Pabst, um reparo comum). sa vie é um retrato dela em 1962, aos olhos A expressão de tristeza de Nana vem- filmado de Godard, uma rapariga e uma pistola. -lhe do fundo dos olhos nesse grande plano Griffith dizia que era tudo o que era preci- frontal de abertura. A citação de Montaigne so, Godard cita-o por escrito nas “Histó- sobrepõe-se a um novo grande plano de per- ria(s) do Cinema”: A film is a girl and a gun. fil. Seguem-se os “doze quadros”, numerados Para registo, que deles consta, Godard e identificados em separadores de caracteres Na Retina, por e Karina protagonizaram, realizador e ac- dactilografados. No último deles, reencon- Maria João Madeira triz, esse encontro fulgurante de sete anos tramos os grandes planos, perfis e olhares em oito obras para bem deles e do cinema para a câmara no diálogo in e off de Nana moderno, portanto para nosso prazer. De e do rapaz que tem os olhos pregados nas 1960, ano da rodagem de Le Petit Soldat, a Obras completas de Edgar Allan Poe, tradução 1967, data de Made in U.S.A. e Anticipation, de Baudelaire, e lê um conto com a voz de ou: L’Amour en l’an 2000, segmento curto Godard. Já lá vamos, ao Retrato Oval. VIVRE SA VIE do colectivo Le Plus Vieux Métier du monde Muitos dos “sumários” dos filmes de Go- FRANÇA, 1962, 85' (em que por profissão Karina, ou antes, dard vão ao coração das obras que apresen- REALIZAÇÃO Eleanor Romeovich, é prostituta, como tam. O de Vivre sa vie fala de “um filme sobre JEAN-LUC GODARD Nana), contam-se Une femme est une fem- a prostituição que conta como uma jovem e ARGUMENTO me, Bande à part, Alphaville, , bonita empregada de balcão parisiense dá o MARCEL SACOTTE (livro) feitos em dueto ao correr de um período seu corpo mas guarda a sua alma enquanto JEAN-LUC GODARD (adapt.) filmográfico em que, não sendo exclusivos atravessa, em aparências, as aventuras que PRODUÇÃO um do outro, sempre os associamos um lhe dão a conhecer todos os sentimentos PIERRE BRAUNBERGER ao outro. Nesses filmes, ela viveu várias humanos profundos e que foram filmadas COM vidas, morreu as duas mortes, de Nana, na por Jean-Luc Godard e interpretadas por ANNA KARINA SADY REBBOT rua deserta de Vivre sa vie, e de Marianne Anna Karina”. Sim, vendo-o como um ANDRÉ S. LABARTHE Renoir, nas cores garridas do azul medi- filme de acção interior em que uma rapariga ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 9

guarda para si a própria alma graciosamen- conversa em que as personagens, sentadas ao bre a responsabilidade pelos próprios actos te cruzando peripécias de superfície que a balcão, são filmadas de costas. O reflexo de e estados de alma, em que Nana acredita, fazem olhar para dentro. A esse movimento Nana está no grande espelho que dá profun- como na liberdade. “As coisas são como da personagem faz Godard corresponder o didade à cena, em diálogo com Paul. É um são, é tudo.” Mas há gravidade nos olhos da do filme, desde logo quando o estrutura no encontro de separação, de que as posições rapariga, quando Jean Ferrat (ele próprio) encadeamento dos quadros que segmentam de enquadramento muito dizem simulta- solta Ma Môme da jukebox. Em raccord, as a narrativa. neamente declarando a quebra de “regras”. pancadas de flippers já soam à rajada de A intimidade de um turbilhão emocional É também a sequência em que Nana repete tiros que aí vem. devolve-se no distanciamento que permite o três ou quatro vezes a mesma frase com A vida de Nana, 22 anos, 1,69m medidos olhar analítico, conjugando o limite do sen- entoações diferentes, porque está à procura a palmos, vive-se pelos cafés, em conversas timental com a ausência de sentimentalismo. da expressão certa para a ideia que quer frente a frente em que dois vultos podem A matriz evidente é o dispositivo brechtiano. formular. Questão de tom e de mise-en-scè- cobrir-se com os Campos Elísios em fundo Ficar prudentemente de fora, disse Godard, ne, construída numa disrupção que aponta fotografado; por quartos de hotel, em tardes sem sublinhado. Ou seja, seguir as reacções reflexivamente para as possibilidades da de negócio já tecnicamente informado, de Nana, mais do que um fluxo dramático, representação de que trata Vivre sa vie. conforme um profissional diálogo off; na para dar a ver o que por dentro lhe suscitam Na loja de discos em que Nana está companhia proxeneta de Raoul e do im- os acontecimentos, nas aparências que dela empregada, e onde se inquieta com dois mil previsto Luigi, numa coreografia de salão fixa a câmara, sincopada e em planos-se- francos em falta, lê-se um texto que fala de de snooker; a fumar encostada a paredes quência, e ainda nas palavras, música e impasse. Os travellings acompanham a falta de rua, em contacto com os gostos sexuais interrupções sonoras, planificação, proximi- de saída e, interiores, desembocam na rua. dos outros, etc., etc. Está quase sempre tudo dade, corte. Numa das mais lembradas cenas, a dina- na expressão dela. No memorável pingue- QUADROS E FRAGMENTOS marquesa Karina refugia-se, como acossada -pongue com o filósofo Brice Parain, num “1 Um café — Nana quer abandonar Paul Nana, numa sala de cinema do Boulevard campo/contra-campo que ilude a filmagem — a máquina de flippers”, “2 A loja de Saint Michel a ver a J o a n a d ’A r c de Dreyer, separada de ambos (sabe-se que na rodagem discos — Dois mil francos — Nana vive a identificada a luz néon no planonoir da Parain respondia a Godard), um perturba- sua vida”, “3 A porteira — Paul — A Pai- fachada. Os muito grandes planos mudos de dor diálogo sobre o que pode a linguagem, xão de Joana d’Arc — Um jornalista”, “4 A Renée Falconetti por Dreyer são entrecorta- Karina toca a essência de Nana. Diz o Polícia — Interrogatório de Nana”, “5 Os dos com os muito grandes planos mudos de filósofo, “o amor pode ser uma solução, mas bairros exteriores — O primeiro homem — O Karina, em lágrimas de comoção diante do só se for verdadeiro”. quarto”, “6 Encontro com Yvette — Um café ecrã, a luz toda no relevo do rosto no muito O Retrato Oval chega perto do desfecho, de subúrbio — Raoul — Tiroteio lá fora”, “7 negro fundo, enquanto a morte se anuncia. lido pelo rapaz louro a quem Godard dá A carta — o Raoul outra vez — Os Campos Cá fora, novos travellings, há o vislumbre a voz nos últimos planos do seu retrato Elísios”, “8 As tardes, o dinheiro, os lavabos de uma vida no cinema discutida na barra filmado. A leitura interrompe-se para um — O prazer — Os hotéis”, “9 Um rapaz — doutro balcão. esclarecimento, se preciso fosse: “É a nossa Luigi — Nana pergunta-se se é feliz”, “10 A Nana Kleinfrankenheim está sem domicí- história: um pintor faz o retrato da sua rua — um tipo — A felicidade não é alegre”, lio quando é interrogada por um polícia em mulher. Queres que continue?” “Sim.” A “11 Praça du Châtelet — O desconhecido — campo/contra-campo. Depois, os travellings morte da amada no conto de Poe, a quem o Nana faz filosofia sem o saber”, “12 Outra sobre os passeios de rua anunciam um novo amante, fixo na imagem, tira a vida, escuta-a vez o rapaz — O retrato oval — Raoul volta a ofício para Nana, de audíveis passos em sal- Nana antes de o filme avançar para o fim, vender Nana”. Eis os tópicos, em que cabem tos altos até ao primeiro cliente, que atende que não a poupa. Com ela caída no asfalto, as linhas e entrelinhas do filme. contra quatro mil francos, um desfecho vio- Vivre sa vie acaba com um último reenqua- A primeira sequência, num café parisien- lento. Noutro encontro de café um branco dramento dentro do plano, voltando a dizer se de perceptível ambiente sonoro, é uma seco e um rosé acompanham o monólogo so- que estamos no cinema. 10

Light Light The visible reminder of Invisible Light.

T.S. ELIOT, CHORUSES FROM THE ROCK

Nathaniel Dorsky e as Intermitências da Vida

Na Retina, por Ana Barroso

profundas. E esta é a beleza do seu cinema: a possibilidade do maravilhamento e da familiaridade; a beleza que toca e transforma o interior do espectador: “Isso é o mais importante. É algo muito emocionante e educativo. Somos uma espécie que reage à beleza das coisas.” A meditação sobre a luz e o tempo enfatiza a relação entre as imagens e a matéria do mundo, rejeitando categoricamente qualquer narrativa para desvendar os mistérios de luz e de sombra. A efemeridade das imagens manifesta-se pela devoção e não pela objectividade do real, assente num equilíbrio frágil e sensível, mas também resistente: ao desenvolvimento temático e a qualquer ex- pectativa criada pelo espectador. Dessa forma, o tempo deixa de ter um antes e depois para se estender em cada imagem num novo mo- mento presente. E, nesse sentido, cada uma delas contém a essência do próprio cinema: a experiência devocional e não a leitura ou a interpretação de sentidos. Dorsky teorizou também sobre o “Cine- Sarabande (2008/15 minutos/COR/MUDO) ma devocional”1, que definiu como “a abertura ou a interrupção que nos permite experienciar aquilo que está escondido e aceitar essa programa Harvard na Gulbenkian realizado dádiva com o coração” (2003: 16). A expressão “Cinema devocio- em 2014 no Centro de Arte Moderna incluiu nal” foi originalmente o título de uma conferência sobre cinema e duas sessões dedicadas ao norte-americano religião dada na Universidade de Princeton em 2001. O cinema e o Nathaniel Dorsky, proporcionando ao público poder dos afectos insurgem-se pela textura, volume e sentido táctil O português um conversa com o realizador, que, da cor ainda permitida pela imagem fotoquímica e que se esgotou de acordo com as questões colocadas, clarifi- nos filmes Winter (2008), Sarabande (2008) e Compline (2009), que cou (e aqui faz sentido usar a palavra no seu fizeram parte do programa da primeira sessão, juntamente com significado mais literal) o seu processo de fil- Aubade (2010), um filme que evoca o nascer do sol e que introduz o magem e de edição, especialmente a importância da luz nos seus realizador a um novo suporte fílmico, o negativo cor. filmes. E da luz e da sua rarefacção, Dorsky discorreu sobre o processo de filmagem orgânico e misterioso: a câmara detém-se no desabrochar do mundo (Blossoms) para lhe intuir todo o mistério e experienciar o eu mais íntimo e profundo — “a conexão entre o olho interior e o olho exterior” — até porque o seu método experi- mental e improvisado — “embarcava num filme sem a mínima ideia do que estava a fazer” — o afasta de um cinema de intenções para se desenvolver de forma impressionista e sensorial, numa relação hepática entre as coisas terrenas (o concreto) e as cores e formas (o abstracto). A captura do real transforma-se num cinema-poema: as imagens espraiam-se no ecrã em toda a sua beleza numa velocidade de projecção de 18 fotogramas por segundo, sob um silêncio pal- pável e absoluto: “As imagens tocam algo que está muito perto e é intocável: é por isso que o silêncio é tão importante. É algo que não pode ser lido, é algo que parece celestial.” As duas sessões foram descritas pelo realizador como “quarte- tos”, e ambas evocaram a paisagem para celebrarem o mundo em todo o seu esplendor; ao mesmo tempo são experiências de um longo movimento de silêncio introspectivo, permitindo o encadea- mento dos elementos da natureza com as emoções humanas mais Aubade (2010/11.5 minutos/COR/MUDO) ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 11

As imagens tocam algo que está muito perto e é intocável: é por isso que o silêncio é tão importante. É algo que não pode ser lido, é algo que parece celestial.

NATHANIEL DORSKY

Numa apresentação dos seus filmes em São Francisco, Dorsky da Primavera, a semana do novo ano lunar e o próprio espírito da admitiu que o seu misterioso método de trabalho esconde uma Criação; o segundo foi filmado algumas semanas depois, em plena preocupação feroz: evitar que os seus filmes possam “colapsar no Primavera, a própria pureza e paixão do Paraíso; Coda foi filma- sentido (significado)”. Fugindo do sentido literal, os seus filmes do no final da Primavera, no rescaldo desta pureza, surgindo os (a maioria deles filmada na cidade de São Francisco) são sobre a primeiros matizes de conhecimento e mortalidade; e o último, já essência do próprio cinema: a cor e as formas no celulóide, não o no início do Verão, é um filme de vermelhos dissonantes da morte, mundo real e concreto que a câmara captura. E por isto, as imagens sementes e renascimento. em movimento não podem nunca assumir-se como algo sólido e contínuo, mas intermitente, de luz e sombras, não opostas à nossa experiência do mundo, mas num reflexo desta: “A um nível visceral, a qualidade intermitente do cinema é semelhante à forma como experienciamos o mundo. A nossa experiência do mundo não acon- tece num continuum existencial sólido. A intermitência invade o nosso íntimo mais profundo e o cinema vibra de forma semelhante ao nosso íntimo.” O cinema tem a capacidade de transformar a existência material do indivíduo em algo extraordinário, pois a experiência cinemática é a dos afectos. Depois de sairmos da escuridão da sala de cinema, o que era antes familiar torna-se estranho e o sujeito sente que uma outra relação metabólica com o mundo foi criada. A materialidade do cinema é a metáfora da materialidade da visão: na sala escura o olho vê luz intermitente e o indivíduo vivencia essa experiência como verdadeira e profundamente pessoal. Em filmes mais recentes,Snow e Spring (2013), estreados no Fes- tival Internacional de Toronto, o artista cria “um mundo flutuante” onde cenas de rua, interiores de casas, prados, rios e florestas se Abaton (2017/19 minutos/COR/MUDO) transformam em espaços de luz, cor e sombra. A série Arboretum foi completada com mais três filmes:Septem - ber, Monody e Epilogue (2017), completando o ciclo anual da luz e do mundo natural. Desta forma, o espectador pode experienciar o ciclo de vida das plantas e a evolução de um processo centrado na exploração da luz como fonte vital de energia criativa. Epilogue encerra o ciclo e repousa na quietude: a energia do jar- dim retorna à terra escura e húmida.

Spring (2013/23 minutos/COR/MUDO)

Em 2017 Dorsky, feliz e deslumbrado com a beleza da Primavera californiana (após quatro anos de seca extrema na zona, a chuva e uma brisa refrescante trouxeram a paisagem verdejante de volta), decidiu fazer um filme sobre a sacralidade da luz, a ser filmado no bonito jardim Arboretum, no parque Golden Gate: “O que eu não sabia é que a grande beleza desta primavera produziria não um, mas Epilogue (2017/15 minutos/COR/MUDO) quatro filmes, cada um imediatamente após o outro. Comecei na segunda semana de Fevereiro e terminei a edição do quarto filme Live in each season as it passes; breathe the air, drink the drink, durante os primeiros dias de Agosto”. taste the fruit, and resign yourself to the influence of the earth. Os quatro filmes sãoElohim , Abaton, Coda e Ode, que se mani- HENRY DAVID THOREAU, WA L DE N festam espontaneamente como as quatro fases da vida: infância, juventude, idade adulta e velhice. O primeiro foi filmado no início 1. Dorsky, Nathaniel. Devotional Cinema. Berkeley, California: Tuumba Press, 2003. 12

Cine-cosmos: Eduardo Ego entrevista Edgar Pêra sobre Kinorama — Cinema Fora de Órbita/ Beyond The Walls of Cinema.

uito obrigado pelo seu and the Origins of the Horror Genre), Rachel reflexo do Homem-Kâmara a filmar, como tempo, sei que está sem- Moore (Savage Theory — Cinema as Modern este tem. Por outro lado, há em Kinorama pre muito ocupado. O Magic). algo de simbiótico entre mim e Lovecraft, que faz actualmente? Entrevistei todos estes autores por Skype dado que é a voz do Keith Esher Davis que M Tantas coisas, sou de e seleccionei as suas respostas de forma a ouvimos dizer tanto os textos de Lovecraft uma incontinência organizar um todo harmonioso, que levasse o como as minhas perguntas. Mas o filme não artística atroz. Cada vez espectador mais longe, para outros territórios, se resume a isso, porque dou voz a diferentes tenho menos “tempos distantes das salas de cinema. Depois de feita pessoas, que reflectem sobre o papel do es- mortos”. Para além dos pequenos filmes de essa selecção, guardei também algumas das pectador e da arte, em particular do cinema, manutenção, estou a preparar freneticamente considerações dos entrevistados sobre o meu e, no caso particular, cinema 3D, e, mais em uma grandiosa aventura pessoana, a longa- trabalho. O que me levou a escolher imagens detalhe, do cinema 3D alternativo às correntes -metragem Não Sou Nada/The Nothingness dos meus próprios filmes, que acabaram por tradicionais de fazer cinema, quer sejam de Club (de que falarei num dos próximos núme- contaminar as imagens das outras respostas. Hollywood, quer seja qualquer outro modelo ros desta excelsa revista), e, simultaneamente, Daí ter acrescentado ao título Kinorama o pa- de narrativa convencional. São muitos os a filmar e a montar Kinorama — Cinema Fora rêntesis (Auto-Propaganda Proto-Mix), porque ingredientes do filme, indo do Cineasta (e do de Órbita/Beyond The Walls of Cinema. se tratava efectivamente de uma sessão de pro- Crítico) como Xamã, ao “Estúpido Sagrado” Esse Beyond The Walls of Cinema tem alguma paganda retrofuturospektiva do meu trabalho. no Cinema, ou à importância do 3D e do VR coisa que ver com o conto de H.P. Lovecraft, Como reagiu o público de Roterdão a essa para a criação de conexões com a realidade Beyond The Walls of Sleep? proto-montagem de Kinorama? física, bem como à função da arte na nossa O Eduardo é um entrevistador muito perspi- A recepção dessa sessão foi muito interessan- sociedade. Estes e outros temas, que, apesar caz..., coisa cada vez mais rara na profissão... te; mais uma vez se provou que as opiniões e de relacionados com o espectador e o cinema, Sim, trata-se realmente de uma referência à críticas dizem mais sobre os espectadores do são abordados sempre dentro da óptica de que obra desse grande escritor. O filme tem uma que sobre os filmes: houve quem se atrapa- houve uma deslocalização do cinema para relação directa com Lovecraft sob múltiplos lhasse com o bombardeamento constante fora da sala. O cinema saiu da sua órbita nor- aspectos. Aliás, a presença no filme de S.T. de informação verbal e visual, houve quem mal e está em rota de colisão com a realidade. Joshi, o maior especialista mundial em Lo- considerasse essa simultaneidade de propos- Os filmes vivem, actualmente, fora da órbita vecraft, confirma a importância desse autor, tas visuais e sonoras um desafio estimulante das salas de cinema, e Kinorama reflecte sobre em Kinorama e noutros filmes em que utilizei para o espectador. essa condição, quer através das entrevistas, excertos da sua obra. Porquê a insistência nas imagens solarizadas quer através das imagens de monitores filma- Então de que filme se trata, esseKinorama ? e nas cores invertidas? Como vos descrever este filme, que ainda não Kinorama é um filme espectral. A dado passo, tem forma final? Posso começar por dizer o J.F. Martel fala de “Espectros Negativos”. que (já) não é: não é a versão que foi apresen- Para ele, a nossa vivência nas redes sociais tada no Festival de Roterdão. Essa versão, é espectral, não somos nós que lá estamos para além das entrevistas, era essencialmente representados, são os nossos espectros. Não constituída por imagens de outros filmes que seja essa a origem para a decisão de meus. Fazia sentido tendo em conta que se manipular as imagens do filme, mas há uma tratava da minha retrofuturospektiva, mas sincronicidade entre os meus pensamentos e depois da sessão de visionamento de monta- os de Martel. Por outro lado, a estética visual gem aberta ao público decidi reequacionar de Kinorama assenta em pesquisas anterio- por completo as variáveis do filme. res, sobretudo em Lisbon Revisited, o filme Talvez seja melhor começarmos em que levo mais longe o factor voyeurismo/ então pelo princípio... exibicionismo do 3D, em que a imersividade Certo. Apesar de ser sempre muito difícil e a inversão de cores reforçam ainda mais o apurar o início. Inicialmente intitulado ape- carácter artificial deste formato. Os momen- nas Fora de Órbita, este projecto começou por tos de maior tridimensionalidade provocam ser uma continuação do filme final da minha espanto no espectador, e nesse sentido Lisbon tese de doutoramento, O Espectador Espanta- Revisited é o verdadeiro filme feito a pensar do. Depois de estreado (também em Roter- no Espectador Espantado. Kinorama conjuga dão) enviei esse filme a alguns autores, cujos esse elemento de espanto de Lisbon Revisited, livros me interessaram particularmente. Eles através das cores e da tridimensionalidade foram: J.F. Martel (Reclaiming Art in the Age de certos planos, com uma pesquisa teórica of Artifice), Justin Brecese (Out of Our Depth: sobre determinados temas que me interessava “Hyper-Extensionality” and the Return of Three- desenvolver. -Dimensional Media), Michele Aaron (Death E qual é o tema do filme afinal? and the Moving Image (Ideology, Iconography Aí está uma excelente pergunta, à qual ainda and I)), Jan Distelmeyer (Über — und einsich- tenho extrema dificuldade em responder. Po- ten. Fragen zum D3D-Dispositiv), S.T. Joshi (The deria começar por dizer que o tema do filme Annotated H.P. Lovecraft), Robert Spadoni sou eu, e é verdade, mas também é verdade (Uncanny Bodies — The Coming of Sound Film para outros filmes, que não têm o leit-motiv do ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 13 dos em diferentes e inesperados contextos. Porquê esta insistência no formato 3D? Lucas, que refazem vezes sem conta o mesmo Mas ouvi falar num ressurgimento Bom, acho que nada melhor do que citar-me. filme. O que me faz lembrar uma entrevista dessas figuras lendárias, que são os Em Kinorama, Michele Aaron pergunta-me ao George Lucas, no início dos anos 90, em Kryptocelulóides... por que gosto tanto de filmar em3D , ao que que lhe perguntavam o que mais desejava, e Está muito bem informado, meu jovem. Tive eu respondo “Acho que preciso, de tempos a ele respondeu “infinite storage”. Armazena- a ideia de recuperar para o Kinorama umas tempos, de algo de novo, uma novidade com mento infinito, para poder ter acesso a tudo entidades camaleónicas que dão pelo nome de que possa jogar/brincar (play), de forma a ao mesmo tempo, essa é a utopia do cine-ar- Kryptocelulóides. Os Kryptocelulóides são que veja através da câmara como se fosse a quivista. Foi esta obsessão pelo arquivismo uns seres que sugam a realidade e a expelem primeira vez que estivesse a filmar. Gosto que me levou a fazer a série Arquivos Kino-Pop, sob a forma de filme. Criados e filmados para de ser espantado, e o 3D ainda me espanta. sobre bandas portuguesas dos anos 80. Mas surgirem como videofotografias no Jornal O Antes disso filmei muito em Super 8, porque isso aprendi com o meu pai, não foi com o Independente no final da década de oitenta do tinha um efeito de espanto oposto, era como George Lucas. século XX, rapidamente passaram a projecto se recuasse no tempo. O Super 8 é um media Que obsessão é esta pelos Cine e pelos Kino? de filme (A Saga dos Kryptocelulóides) nunca instantaneamente nostálgico, as imagens Kinorama, Arquivos Kino-Pop, e agora está a realizado. Só em 2012 rodámos (Bando à parecem do século passado, enquanto as ima- preparar a série sobre BD, Cinekomix. Parte), em Guimarães, uma primeira mate- gens em 3D ainda parece que vêm do futuro, Gosto desta interpenetração dos títulos e rialização dos Kryptocelulóides, para o filme porque é um modo de exibição não conven- dos materiais de diferentes filmes meus. Por Cinesapiens do tríptico 3X3D. Em Kinorama, os cional, não formatado”. exemplo, tenho um filme chamado Visões de Kryptocelulóides ressurgiram, sob a forma de Não parece que tenha sido exactamente Madredeus, outro, Visões Equações Radyações, seres com monitores em vez de cabeça. Nes- isso que disse no filme. Há aqui algum outro, Visões Virtuais, ainda outro, As Visões ses monitores estão imagens, entre as quais as revisionismo nessa tradução... do Senhor Ego. Também gosto de repetir os dos entrevistados. [Incomodado] Como teve acesso ao filme? Não o mesmos textos de filme para filme, porque Isso faz-me lembrar algumas personagens vi na sessão de Roterdão. têm sentidos diferente consoante as imagens e como o Príncipe Robot da BD de ficção [Irónico] Tem a certeza? os sons. Por exemplo, há textos de Pessoa que científicaSaga ... [Duplamente irónico] A sua figura destaca-se, se repetem em Zombietown 23, Lisbon Revisited, É verdade! Admiro-me que tenha detectado meu caro Ego. Caminhos Magnétykos e agora em Não Sou essa coincidência. Mas ainda fiquei mais [Triplamente irónico] Digamos que tenho Nada. Podia escolher outros, de tantos que surpreendido ao saber que no Japão já andam amigos bem posicionados a quem fiz Pessoa escreveu. Mas, apesar de serem os pessoas com capacetes com monitores com uma proposta irrecusável... mesmo textos, assumem formas diferentes. as imagens dos pais que não querem perder [Paternalista] Bom, bom... Não precisamos de As emoções e as sensações do espectador os jogos dos filhos, e mandam alguém ao jogo começar a citar filmes... Confesso que a tradu- são diferentes face ao mesmo texto, se este para eles poderem ver nos seus escritórios ção é ligeiramente diferente, mas isso é algo for interpretado de maneira diferente. Gosto enquanto trabalham. São os verdadeiros que habitualmente faço nas traduções dos de revelar esse potencial multiplicativo do Kryptocelulóides! Sendo Kinorama um filme meus filmes, há momentos em que são mais próprio cinema. 3D, tornou-se ainda mais visível o contraste versões do que traduções, interpreto e recrio E em que fase se encontra Kinorama? da tridimensionalidade dos Kryptocelulóides textos nas legendas. Está simultaneamente nas três fases: roda- (interpretados por João Sodré, Miguel Borges É adepto do revisionismo, portanto, gem, montagem e guião, “não necessaria- e Ana Bustorff, entre outros) com as imagens tal como George Lucas? mente por esta ordem”. Daqui a dois dias vou 2D das entrevistas, exponenciando o efeito É verdade. Se puder fazer uma alteração a mostrar uma proto-montagem ao Olaf Möler, 3D a partir de uma imagem originalmente um filme que me deixou insatisfeito, faço. que já tinha participado em O Espectador captada no formato bidimensional. Compreendo perfeitamente cineastas como Espantado e é a figura por trás das minhas retrospectivas no IndieLisboa e em Roterdão. Depois do visionamento vou filmar o Olaf a comentar Kinorama e incluirei alguns desses comentários na montagem, num processo similar ao da serpente que come a sua própria cauda. É um método em espiral. Não tem medo de enlouquecer com este método? Não. Tenho medo de enlouquecer se não me deixarem usar este método. Mas felizmente tenho condições para trabalhar desta manei- ra, que se assemelha mais à dos pintores, que trabalham em diferentes quadros, deixando um por uns tempos para se dedicarem a ou- tro. E quando regressam ao quadro anterior já têm uma distância que lhes permite ver o caminho que falta percorrer. Regressamos aos caminhos magnétykos... Porquê esta obsessão em seguir um caminho próprio, que de certeza é sempre mais inóspi- to, com muitos mais obstáculos? É o meu GPS a indicar o caminho. Cada um tem uma bússola diferente, como escreveu Branquinho da Fonseca. Cada um escolhe o seu caminho e o meu raramente passa por auto-estradas.

Continua?

Entrevista realizada no Neurolab do Kalvário. Eduardo Ego viajou a convite de Bando à Parte. 14

O sopro de Satanás

de estabelecer afectos, de conceber perspecti- que começa com a morte de Nic, prolonga-se Ensaio por Filipe Varela1 vas futuras, num quadro onde uma Natureza com a degradação física e psíquica de She, e implacável e arbitrariamente homicida destrói finalmente engole He. É significativo que so- as suas próprias criações. É aí que a realidade, bretudo ele tenha alucinações (a dita raposa Vou considerar dois reificada na Natureza, se intersecta com a ideia falante, o corvo imortal, o cortejo de “irmãs” elementos no filmeAn - de mal, se desproporciona esmagadoramente, que, no Epílogo, sobem a colina talvez em tichrist (Lars von Trier assume contornos míticos, passa a ser percebi- direcção à pira onde restam as cinzas de She, [doravante, LvT], 2009): da como uma entidade má, autofágica. Torna- a sua “irmã” caída, que He, após sufocar, I um recurso poético — -se um personagem, e é um inimigo. É preciso incinerou numa fogueira, como se de uma o sopro do vento — e vencê-lo; se não, aliar-se-lhe. bruxa se tratasse). He alucina e entrega-se a um recurso técnico — Os muitos meandros desta investida um supersticiosismo a que não parecia per- um tipo de plano a confluem no agente criativo e gerativo da meável. O sofrimento de She, a sua doença que chamo flow-fly. O objectivo é enfatizar os Natureza por excelência, a mãe e a mulher. mental — o próprio estado psicótico que ele seus lugares singulares na tecedura expressi- Porquê? Porque tem a capacidade de perpe- inadvertidamente instiga à mulher-pacien- va desta obra. tuar este espectáculo infernal. É a própria She te — arrastam He para uma irracionalidade O inciting incident do filme Antichrist2 che- que apresentará o argumento mais tarde, e universal cujo estame é tão-só a impotência ga com um sopro, numa corrente de ar que é tão simples quanto obviamente vicia a sua da razão humana diante do sofrimento. abre uma janela destrancada na sala de estar matéria: a Natureza criativa é má para as suas de um apartamento onde um casal faz amor. criações; eu, mulher e mãe, pertenço à Natureza e Antichrist é um filme de singularida- Pouco depois, cairá dessa janela o pequeno sou um dos seus agentes criativos; logo, eu sou má. II des, mas a que aqui agora considero filho deles, Nic. Com essa queda e a conse- Mas então entra em cena o conflito moral, respeita ao uso de um recurso cinema- quente morte da criança, é-nos dado o primei- distintamente humano: sou má, porém amo tográfico incomum. Antes da reaparição do ro acesso ao problema dramático: o luto dos aquilo que gerei; então, serei capaz de fazer-lhe sopro do vento, LvT introduz um elemento pais e a tentativa de superação da tragédia. mal? Não sou. She pode recusar-se fazer mal técnico com assinalável carácter diegético e O sopro, a brisa, uma rajada de ar são tema. ela própria ao filho (pese embora a questão assinatura estético-estilística, o qual explorará A sua introdução é subtil no Prólogo do filme, dos sapatos invertidos), mas ambos conti- em mais três momentos pontuais. É em cada pelo que as indicações do script ajudam a pre- nuam à mercê dos caprichos aniquiladores um deles que beats decisivos na construção do cisá-la: “Ventilator sucking steam out of the shower da Natureza e do sofrimento que infligirão4. universo psicológico do filme — envolvendo cabinet, but then the wind turns and the steam is E é o que acontece quando a mão invisível do protagonistas e espectador — são dados. thrown back into the room. In the living room, the sopro abre a janela, durante o momento de No script, a primeira aparição desse ele- wind opens a window that has not been fastened.”3 maior intimidade de um casal, no próprio acto mento é na cena cinco, indicado como “from Já conhecíamos o sopro do vento na lingua- de gerar vida, ensurdecidos pela centrifugação handheld [camera] to a steady linear tracking”5. gem narrativa de LvT, na mise-en-scène reifica- da máquina de lavar roupa: Nic cai e morre. O nome é comprido e podemos chamar-lhe, da da noção de mal, entendido na sua apresen- A consciência disto e a dilaceração de numa mnemónica metafórica, flow-fly. A tação mais directa: o sofrimento dos seres. No She transformam os dilemas e a tragédia em estrutura de um plano flow-fly é a seguinte: primeiro episódio de Riget (LvT, 1994), o mal mãos numa narrativa mítica, donde irrom- plano filmado em câmara à mão, com a es- entrava no hospital sob a forma de folhagem pem bruxas e suas irmandades, satanismo, pontaneidade e liberdade de enquadramento empurrada pelo vento, activando o sensor da fantasias masoquistas de autopunição, ani- que lhe são próprias; de súbito, sem corte, a porta automática ainda antes da aproximação mais antropomorfizados, visão telescópica câmara foca um assunto e avança na sua di- de Mrs. Drusse. Porém, ao passo que em Riget e clarividência, astrologia e constelações de recção, num travelling extremamente preciso o mal era sobrenatural, em Antichrist, e apesar sofrimento, profecias, sacrifício de crianças, e em slow motion que seria impossível realizar de chegar a ser nomeado “Satanás”, o mal tem queimas pelo fogo. Mas tudo isso radica na em câmara à mão. E vice-versa: from steady pouco de mítico ou teratológico: é a nomea- psicose de She, que a faz alucinar uma ruína linear tracking to handheld camera, ou, neste ção de expressões concretas no mundo físico de inusitada violência e exuberância, que se jargão, fly-flow. É possível que este recurso (ou através dele). Mas isto é algo estranho de concretiza e arrasta tudo o que se encontra no cinematográfico já existisse e tivesse sido dizer, dado que há em Antichrist coisas pouco seu campo gravitacional. Mesmo o marido. usado noutras obras e registos. Ele é interes- credíveis, como uma raposa falante, braços Num filme pejado de hipertextos (mito- sante, não tanto pelos desafios técnicos que humanos nas raízes emaranhadas de uma lógicos, míticos, religiosos, antropológicos, coloca (o uso de um tipo de dolly hidráulica árvore, ou um corvo imortal. filosóficos, políticos, clínicos, estéticos), é com um carril integrado e muita pós-produ- Ora, o mal torna-se uma personificação interessante que LvT enfrente o mal como ção digital), ou pelo próprio efeito em si — mítica, um dispositivo narrativo e a origem de uma coisa do mundo e da natureza, e toda a pretty cool! —, mas pelo interessante paralelo uma mundivisão através da depressão de She, qualificação do que propriamente chamamos que estabelece com o tema do sopro e como melhor, da terrível psicose que dela exsuda (e mal seja um antropomorfismo sediado na in- “operador” de transição entre o olhar do que o marido impede de tratar quimicamente). capacidade de aceitar e conviver com a cruel narrador e a interioridade dos personagens. Através dessa psicose, o filme devolve-nos à arbitrariedade da realidade, ou da natureza: No filme, o flow-fly aparece após She, ain- origem dos mitos e das superstições, ao porquê o caos reina. Esse caos tomou a forma do da internada no seguimento da morte de Nic, e ao como surgem, no seio de uma consciência, sopro que abriu a janela do apartamento. se irritar com He pelas suas intromissões percepção e cognição adulteradas pela doença. Uma criança cai, a irracionalidade do mal clínicas (He é psicoterapeuta) e por conseguir Eles começam com a impossibilidade de amar, irrompe, solta-se um espectáculo de horror que ela tenha alta e regresse a casa. A cena ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 15

Mais do que ignorância, enquanto houver sofrimento da perda do filho e outros traumas que é impossível que a civilização humana seja racional; conheceremos. A crescente artificialidade do plano remete para a suspensão onírica, o sofrimento faz jorrar a irracionalidade na o devaneio. E o sopro que aqui nos empurra comunidade humana, como o golpe o sangue. para dentro da imaginação de She não nos dá a ver o horror que se esperaria neste recur- so: desemboca nalgumas das imagens mais é filmada em câmara à mão, com o tremor e alusão ao mítico jardim do paraíso, que será sublimes — composição, luz, ritmo — a um proximidade, crueza e amadorismo que insti- no filme um teatro infernal. He decide que tempo tranquilas, familiares e inquietantes, lam uma sensação de realismo e imediatez. O é para lá que devem ir e prosseguir com a unheimlischen. Esta reconstituição imagi- espectador é colocado dentro da cena, como terapia que tem vindo a impor. nativa de She assegura-nos de que não há um observador fisicamente presente e porém O acesso do espectador a Eden, à siné- nada de objectivamente assustador em Eden; imperceptível que, através dos olhos do doque do medo que atormenta She, já tinha há, porém, uma atmosfera, uma dilatação realizador, observa e escolhe como observar. sido dado no anterior flow-fly e noutros do tempo correspondendo à hiperacuidade Quase sempre as tomadas de vista são semi- planos aproximados de locais assustadores perceptiva de She, própria dos traumas. He -subjectivas, os ângulos picados, amorcées, na floresta. E de novo, antes de lá chegarmos, pede-lhe “[to] melt into the green”, que deixe tilts bruscos, e invasivos close-ups; elementos LvT usa um fly-flow para entrar na mente e que a sua imaginação de Eden e a experiên- recorrentes nos vídeos caseiros, no documen- psicologia de She e através delas dar, com o cia real de Eden se fundam. Dada a condição tário, na reportagem, na pornografia e, claro, espectador, os primeiros passos em Eden. psíquica dela isso terá efeitos catastróficos. no cinema do Dogma 95. O plano é sobre She, Durante a viagem de comboio até à floresta, Este plano de contacto entre real e ima- deitada na cama, com o marido sentado aos He sugere que trabalhem nas expectativas ginário é o espaço em que se desenrolará seus pés; conforme o diálogo da cena sugere dela quanto à ida a Eden e convoca a imagi- o filme, desde o meado do segundo acto (a que está concluída, a câmara desliza do rosto nação de She. O plano enquadra She, sentada raposa falante), até ao fim. Ao mesmo tempo, dela como se flutuasse sem rumo até ao mo- num assento, e começa com uma brusca LvT experimenta e amplifica as possibili- mento do corte; mas não há corte: ao fundo sacudidela, como se o comboio desse um dades expressivas e semânticas do flow-fly, do décor está uma jarra com flores e ela torna- solavanco, ou o operador de câmara ainda tornando-o operador de acesso à consciência -se o centro do plano; a velocidade da câmara estivesse a mudar de posição e a reenquadrar. dos personagens, à concepção que têm da abranda, e ficamos brevemente em plano Então, sob a voz meditativa de He, a câmara sua situação e aos seus insights. É, creio, um fixo; a câmara começa então a avançar, num estabiliza e avança num travelling lento e pre- dos modos de trabalhar a empatia do espec- travelling físico em direcção à jarra das flores, ciso, impossível em câmara à mão (quanto tador com os personagens, para depois poder slow-motion. Lento e flutuante, o travelling tem mais num comboio em movimento), percor- retorcê-la e manipulá-la. Ao entrar na mente algo de súbito, como a rápida aceleração de rendo o espaço até terminar num close-up dos personagens, neste plano-sopro, LvT um carro contra a inércia do nosso corpo. de She, do seu cenho, dos seus poros, do seu desdobra a temporalidade narrativa da main Força a nossa deslocação da matéria narra- lobo pré-frontal, conhecido interveniente nos storyline para a enriquecer com as experiên- tiva para um vulgar adereço que, de resto, processos abstractivos e imaginativos. cias subjectivas dos personagens, passadas nunca mais reaparecerá ou terá qualquer Esta transição formal dentro do plano é e futuras, aproximando-nos da intimidade função dramática. Conforme a câmara avan- uma transição entre câmara-à-mão e Dolly, deles, pensando com eles, enquanto entrete- ça, o foco atravessa o vidro da jarra e através entre real e imaginário, mas é também a ce mundo e mente, realidade e fantasias. dele vemos a decomposição das fibras dos própria transição entre o hiper-realismo do caules das flores. Narrativamente, o efeito é Dogma 95 e o onirismo deste filme,Antichrist , Reaparece o sopro do vento. O casal virtuoso e inteligente: LvT filma a protagonis- e de outros como Persona de Bergman (LvT IV chega à floresta que envolve Eden e ta num momento crítico (passa a ser tera- reencena um plano desse filme), ouEspelho She anuncia que chegámos ao Infer- peuticamente acompanhada pelo marido), e e Stalker, que impressionaram LvT ao ponto no: “The ground is burning”. O chão não está introduz-nos uma paisagem da concepção da de dedicar Antichrist a Tarkovsky. Se tal se literalmente em chamas, mas o pé dela tem Natureza que a vai atormentar — tudo num puder dizer, é a passagem do empirismo do bolhas e neste local os planos mais gerais e só plano dentro de um imaculado quarto de cinéma-vérité ao idealismo do cinema-me- panorâmicos são percorridos por um swirl que hospital. She talvez nem repare nas flores tafísico. Num só plano, saímos da viagem os deforma. Exausta, She tem de render-se ou pense nelas. É a realização, através da de comboio e suas contingências, e somos a uma sesta. He aproveita para vaguear pela câmara e de um plano em particular, que nos empurrados para a imaginação de She, as floresta, onde uma súbita rajada de vento o desloca com uma brisa, e abruptamente nos suas memórias das anteriores estadas em detém e atrai: “He looks around and suddenly empurra com um sopro determinado, para a Eden ainda Nic era vivo, entretecidas com a gust of wind passes through the woods. It is like visão do fenecimento e podridão das flores, a perspectiva de aí reentrar após o trauma a warning; the long, stiff wind on a calm day. He a decomporem-se, como o corpo de Nic, ali, ao lado deles6. Não digo que este plano seja o equivalente técnico-formal do tema poético do sopro maligno. Sugiro só que há aqui duas variações, a dois níveis, de uma mesma ideia, com funções expressivas distintas. Com este plano, LvT leva-nos a ver algo de importante e secreto, num outro nível da narrativa — um nível especificamente inter- pretativo —, e que ainda só nós espectadores conseguimos ver. Convida-nos a pensar sobre uma coisa vaga, como as partes feias das coisas bonitas, ou a podridão, a aproxi- marmo-nos para perscrutar, analisar, pensar.

O segundo flow-fly ocorre após o casal III identificar a mais tangível fonte dos medos e do crescente catatonismo de She. Trata-se da floresta, de um retiro par- ticular que o casal possui na floresta,Eden , ENSAIO O SOPRO DE SATANÁS 16 steps into a glade and is suddenly very close to a Nesta fórmula é-se prevenido para o horror e os olhos, não podia ter visto isto agora. He dear. The animal seems as surprised as he is. They a tragédia universais em que se tomará parte tenta distraí-la da cena. Mas é um golpe fa- stare at each other for a while. It is a hind. All at e do qual se será agente, matéria-prima de tal, porque reafirma e reproduz, na natureza once, the mood of the images changes. He sees que LvT avança para a sua reescrita do Géne- selvagem, o inciting incident do filme: a cria something frightening”7. A visão é a de uma sis segundo Satanás, reactualizada em cada que, como o filho dela, cai do ninho. Mais: é corça bebé que pende inerte da vagina da ser, cada geração. O choro de todas as coisas desmembrada e comida viva. corça fêmea, numa espécie de parto aborta- prestes a morrer. Quase todas as próximas Pode ser sugerido que há aqui uma referên- do. A imagem é perturbante, a fotografia tem apresentações do mal através do sopro do cia implícita ao sopro do vento, pois a cria que uma tonalidade feérica acentuada pelo slow- vento serão oferecidas a He, como se a Natu- cai, embora alada, não sabe dominar o vento -motion e pelas baixas frequências sonoras. reza lhe tentasse agora mostrar a ele, depois e voar. Seria rebuscado. Portanto, vamos a Mas não há flow-fly, há apenas o vento. de ter mostrado a She, o seu holocausto. um outro sopro objectivo, o do vento durante O sopro do vento atrai He à contemplação a noite, que precipita a queda das bolotas do da cena e talvez a admitir, no seu subcons- O tema do sopro é congénere do grande carvalho sobre o telhado da cabana. ciente, que tem de haver um agente maligno V tema da queda. Há muitas quedas, Isso aconteceu logo na primeira noite em por detrás de tudo isto. Mau-grado toda a sua mas três são importantes: a de Nic, Eden, quando as pancadas secas no telhado ciência e, seguramente, ateísmo. Essa é uma a das bolotas sobre o telhado da cabana de acordaram He. She tranquilizou-o, “it’s just the das grandes teses humanistas do filme: mais Eden, e a de uma cria de falcão que cai do stupid acorns”12. A queda das bolotas repete- do que ignorância, enquanto houver sofri- ninho e é devorada por um falcão — possi- -se após a horrível visão da cria despedaçada mento é impossível que a civilização humana velmente um dos seus progenitores, como e começa a abrir para uma narrativa maior, seja racional; o sofrimento faz jorrar a irra- Nolan Boyd fez notar10. A primeira queda já mais complexa. She alude-lhe. No Verão cionalidade na comunidade humana, como a abordei; a segunda abordarei mais tarde. anterior, o som das pancadas das bolotas o golpe o sangue. E o veículo do sofrimento Portanto, a terceira. tinha constituído para ela uma epifania sobre aqui particularizado é a depressão. Não é irre- Em larga medida, He é culpável por muito o espectacular dispêndio de recursos a que a levante que LvT estivesse deprimido durante a do que corre mal. Nega a She uma terapêutica Natureza cruelmente se permite para que um concepção e escrita de Antichrist, e sobre isso com antidepressivos e antipsicóticos, viola único organismo possa vingar: “She: Oak trees fez uma declaração iluminadora: “[Antichrist] a elementar deontologia tratando a própria grow to be hundreds of years old. They only have it’s based on me looking at plants and whatever, mulher, influencia-a a mergulhar nos seus to produce one single tree every one hundred years living things and how much they suffer. [...] it’s medos num momento em que a sua fragilida- in order to propagate... It may sound banal to you, really a nasty idea, life. And especially human life, de psíquica é óbvia. Porém, há um momento but it was a big thing for me to realize that when I because [it’s] one thing to be an animal and tortu- em que a intervenção de He parece dar frutos. was up here with Nic! The acorns fell on the roof red and made to suffer your whole life and then to He prepara um exercício para She na clareira then, too... and kept falling and falling... dying die in the end, but being a man, it’s... much worse, diante da cabana, na qual ela tem de cami- and dying”13. As bolotas fizeram She escutar o because first of all, the man knows that he’s going nhar do ponto A ao B, expondo-se a Eden. choro inaudível da natureza, “the cry of all the to die, and furthermore he knows that it’s morally She consegue percorrer o trajecto, em parte things that are to die”14. not right to kill other beings [...] and to know that às costas do marido. Ele congratula-a e faz O exacerbado patetismo desta distopia for every step we take we kill a lot of animals, or daquilo uma vitória fortalecedora e decisiva. ruinosa de eterno retorno é cortado pelo plants, or whatever, and for every breath we take De súbito, durante o abraço do casal, a pragmatismo e racionalismo de He: “It’s all we kill. So it’s really… that being a human is really hiperacuidade dela detecta algo: “[a] chick very touching... if it had been a children’s book! a nasty joke. [...] If it were a film— life — [...] now, falls, unable to fly [...], and lands in the middle Acorns don’t cry... you know that as well as I do. that would really be a horror film of substance”8. of a giant ant hill. It tries to drag itself out, but is That’s what fear is. Your thoughts distort reality, É o problema do desenvolvimento da cons- hindered by the vast number of ants nibbling at not the other way around”15 [ibid.]. Ele tem que ciência emotiva e afectiva neste quadro de it. It basks while the ants bite and their number restaurar as perturbações cognitivas que destruição que inquietam LvT: é impossível increases. Suddenly a shadow swoops down on estão a distorcer a percepção dela. E tem que ser bom, aqui, neste “vale de lágrimas”. The the chick just as it is almost off the ant hill; a repor ordem no caos do mundo: é tudo muito horror. The horror. hawk grabs it. It eats the chick alive on a branch horrível, está certo, mas também há muitas Nietzsche recuperou as palavras nihilistas close to the two, the hawk fixing its gaze on Her coisas boas, e a vida continua. de Sileno, o sátiro, a quem o rei Midas per- all the while”11. Nesse momento, os alegados guntou o que devia o Homem preferir acima progressos terapêuticos vão ralo abaixo. Mas estas meditações decisivas de de tudo: “A melhor coisa é-te completamente Trata-se da visão mais perturbadora do VI She deslocam o inciting incident da inacessível: não teres nascido, não seres, nada filme, pela impotência e desamparo da cria, queda de Nic para esse obscuro Verão seres. Portanto, a segunda melhor coisa para ti pela sucessão de predadores, pelo possível em que She e Nic estiveram sós em Eden, e é — morrer depressa”9, [Nietzsche, 1988, 35]. canibalismo. She fraqueja, chora, esconde onde algo na relação de She com a realidade começou a transformar-se. A experiência des- sa temporada foi traumática para ela: abando- nou a escrita da sua tese, sentiu medo de Eden, e foi assombrada pela alucinação do choro de uma criança (que não era Nic). He apercebe-se também, através das polaroids desse Verão, que She calçava Nic com os sapatos ao contrário: o esquerdo no pé direito, o direito no pé esquer- do. Este facto inquietante, porque repetido, lança luz sobre algo ainda mais inquietante que só He ainda conhece: o relatório da autóp- sia, que sinalizava uma deformidade nos pés de Nic e que despoletará o Terceiro Acto. She diz que abandonou a escrita da sua tese sobre “ginocídio”, o massacre de mulhe- res, porque, tal como He, começou a achar o tema “glib”; não porque fosse superficial e frágil, mas porque começou a admitir — num claro indício de psicopatologia e ideação an- ti-social — que a violência sobre as mulheres ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 17 faz sentido. Não é difícil extrair o raciocínio do anterior argumento: as mulheres têm, na espécie humana, o privilégio da maternida- de; mas quando se observa a Natureza perce- be-se que a maternidade é o acto de colocar um novo ser à mercê da potência destrutiva da Natureza; nesse sentido, as mulheres são o veículo de perpetuação do sofrimento a que a espécie humana é sujeita. Mais ainda: a Natureza é má; eu pertenço à Natureza; eu sou má. A deformidade destes raciocínios ver-se-à mais tarde, é sublinhada com a de- gradação da caligrafia de She no caderno de notas da sua tese: desde o Verão passado que She estava muito doente e He não o perce- beu. Ela já o tinha culpado desse abandono, indiferença, distância, falta de zelo. Nesta segunda noite, com nova chuva de bolotas, começam a compreender, o espectador e He, que a melancolia de She é, como dizia o Dr. tador não conhece ainda o resultado, mas LvT natureza tão luxuriante quanto cruel. Wayne, “atípica”. Está povoada de lapsos, indica-nos a sua futura importância narrativa A identificação explícita, neste universo, irreflexões prenhes de significado latente, de com um flow-fly particularmente interessante: entre o sopro do vento e o mal, no quadro de um assustador egocentrismo (particularmen- o plano em câmara à mão começa no relatório uma Natureza em que tudo participa e em que te nas relações com o marido e o filho) que que He segura; He desvia o olhar do relatório todos participamos, termina a minha exposi- chama a si todas as dores do mundo, de alu- para a câmara — para o espectador — e a ção sobre este tema clássico, que LvT explorou cinações, de mundivisões distorcidas. Isso é câmara recua dramaticamente em grua num de modos muito sugestivos. Salvo erro, a der- dito por She num ímpeto: “Satan’s Church!”, tracking linear preciso à retaguarda. Segue-se radeira e decisiva aparição do vento dá-se num Ao que He responde, como se agora não um plano em slow-motion — um sonho — em plano tomado sob a copa das árvores sacudi- faltasse mais nada: “Satan? Jesus!...”; ela que He está diante da cabana, olhando o das por fortes rajadas de vento. Esse último reitera e clarifica: Nature“ is Satan’s Church!”. espectador, sob uma chuva de bolotas. O uso sopro do vento é constante e omnipresente, A câmara dá um solavanco e o plano muda: deste flow-fly tem novidades interessantes: violento, é uma tempestade. O que faz sentido vemos as cortinas da janela aberta, sobre a anuncia-nos o elemento futuro decisivo, o porque LvT se aproxima do final do Segundo bancada da cozinha, sacudidas por uma cor- relatório da autópsia e que ele contém infor- Acto, e “all hell breaks loose”. Esse plano sucede rente de ar. She exibe, confiante: Why,“ there mação importante, sem revelá-la; indica-nos o também derradeiro flow-fly, a infame cena de you have him. That was his breath”16. A Natu- o elemento passado decisivo, a queda das bo- sexo sobre as raízes da árvore donde pendem reza apresentada parece ser a obra de um lotas e a simbologia maligna a ela associada braços humanos inanimados; com ele concluo. demiurgo maligno e retorcido, entidade cuja por She; e empurra-nos para o subconsciente tradição representativa cristã é Satanás. No de He, para um sonho dele, onde uma série de O encontro de He com a raposa mar- sentido profundo de Igreja, da comunidade dados começam a incubar para contar uma VII ca o início do terceiro capítulo, que o que alimenta um mesmo projecto, torna-se história; finalmente, tal como terá acontecido separador indica versar sobre “gino- claro por que é que a Natureza só pode ser, a She, ao ser bombardeado pelas bolotas, cídio” e “desespero”. Este capítulo é decisivo para She, a Igreja de Satanás. He tem uma nova evidência, e é tocado pelo porque há revelações importantes: a descober- E o sopro de Satanás regressa como dis- carácter maligno de Eden. ta de He, no sótão da cabana, da perturbadora positivo narrativo de reificação desse per- No dia seguinte, retorna o sopro do vento. colecção de notas, apontamentos e imagens sonagem inefável, que é o mal, verbalmente She acorda com aspecto e atitudes revigoradas recolhidas por She na investigação da sua tese identificado. Não interessa tanto que o sopro e tenta convencer o marido de que está resta- durante o verão anterior; a segunda, que a de- do vento seja o símbolo do mal, interessa belecida, levando-o pelos lugares que antes formação dos pés de Nic revelada na autópsia que ele seja um dos seus sinais, que podem temia na floresta. He, apreensivo e inquieto, é responsabilidade de She, que o calçava com sinalizá-lo ostensiva e flagrantemente Olha,( não fica convencido. She zanga-se e retorna à os sapatos trocados, conforme comprovam as aí o tens!) e interessa a sua deslocação rápida, cabana. Ele prepara-se para segui-la, mas um polaroids tiradas no Verão anterior; terceiro, a capacidade de provocar súbitas mudanças, brusco movimento na folhagem atrai-o. He porque estas informações sobre She são por de surpreender, a omnipresença e a invisibili- aproxima-se e o movimento pára. Uma rajada ela confirmadas, admitindo acreditar que a dade (lembrando o célebre documentário de de vento aparece, dobra e sacode os fetos. Já sua natureza “interior” é, tal como toda a na- Joris Ivens, Une Histoire de Vent). Mais ainda, sabemos o que isso significa. He aproxima-se tureza, má, e insinuando que o marido devia a sinestesia de She e a decorrente faculda- de uma clareira de fetos e afasta-os: assusta-se estar alerta para o poder maligno de Eden. de de estar em consonância com o coração então com uma raposa ensanguentada que se Estas revelações cruciais vão precipitar a súbi- flagelado da natureza, fazem-na crer capaz de automutila, arrancando o pêlo e a pele do ven- ta e brutal passagem ao terceiro acto. A meu falar com ele, de o invocar, de se lhe aliar17. tre. Num slow-motion mesmerizante, a raposa ver, e no que directamente toca o quarto e úl- Mais adiante, She fará uma citação de Malleus entrega a sua mensagem a He, declarando em timo flow-fly do filme que me propus tratar, o Maleficarum, mas aqui já a percebemos adul- voz monstruosa: “Chaos reigns”. capítulo é sobretudo importante por descrever terada, confusa, lacónica. Aos poucos estão a A declaração é sobre a aleatoriedade a inequívoca entrada de He no universo psicó- juntar-se os elementos da tempestade. do sofrimento nessa natureza inclemente. tico que She foi exalando. Ocorre um episódio A esta reaparição do sopro, segue-se o pe- Está em linha com todas as apresentações clássico de folie-à-deux, uma mania contagiosa núltimo flow-fly do filme. Depois da pertur- anteriores do sopro satânico. Mas esta cena onde dois ou mais indivíduos se aliam para badora conversa com She, He anota “Satan” que o sopro anuncia diz algo decisivo: He consumar algo que, sozinhos, provavelmente no topo da pirâmide de medos, mas risca-o começou a alucinar — nem há nenhuma não levariam a cabo. logo. Isso permite-nos compreender o ridícu- raposa, nem ela fala, garante LvT no script —, Tal começa após He censurar She por ter lo da hipótese, mas também, se a hipótese for e a de que essas alucinações põem He diante sido levada a crer, no decurso da sua inves- tomada a sério, o calibre do medo a enfren- de horrores análogos aos que She presenciou tigação, que o mal perpetrado por homens tar. De seguida, He vai acender a lareira, no verão anterior18. Ou seja, He começa a ver contra mulheres ao longo dos tempos era e ao procurar fósforos no bolso do casaco, Eden através dos olhos de She, e o especta- justificado pela natureza interior feminina, redescobre o relatório da autópsia. O espec- dor começa a sentir a claustrofobia daquela intrinsecamente má. Nessa noite, ela tenta ENSAIO O SOPRO DE SATANÁS 18

fazer sexo com ele. Frustrada, implora-lhe: bruxaria, atribuía-se o hábito de desmembrar 1. Agradeço a Fausto Cruchinho e ao Cine Clube de Viseu, “Hit me so it hurts!”19. Ele recusa e ela, após cadáveres e guardar partes deles, particular- na pessoa de Rodrigo Francisco, o convite para inte- grar esta publicação. uma curta chantagem emocional, corre nua mente mãos, para efeitos encantatórios e para- 2. Lars von Trier, Antichrist, Zentropa, Criterion para o exterior da cabana. O marido segue-a, lisantes. Chamavam-se-lhes “hands of glory”21. Collection, Blu-ray, 2009, 104’. 3. Lars von Trier, Antichrist: Final Script, 2008, p.1. nu também, e vai encontrá-la a masturbar- Esta sugestão indicia que She atraiu He a um (https://repositorio.bc.ufg.br). -se junto às raízes semi-descobertas de uma lugar simbólico, onde porventura haveria 4. O comentário ao filme tem sublinhado que o grande medo de She é o abandono, a morte de Nic, o espectro enorme árvore morta. Aproxima-se dela, uma presença latente da perpetração de actos do divórcio, que nunca é referido no filme, mas é-o sobre o seu corpo e, após contemplá-la, dá-lhe abomináveis. A cena, o plano, a acção, confi- no script [LvT, 2008, 7, 8]. Mais importante do que o uma bofetada. Ela murmura “Again!” e ele guram um ritual de iniciação, onde She, com abandono é, creio, a perda. 5. LvT, 2008, 5. repete. She está em êxtase. Ao conceder a este a cumplicidade de He, começa a materializar 6. De resto, o corte para a cena seguinte é feito com um desejo fronteiriço, He está finalmente a entrar as suas fantasias, com ênfase na aniquilação grande plano sobre um envelope que contém o relatório da autópsia de Nic. na psicose dela, na encenação activa da sua de tudo o que são símbolos do acto gerativo. 7. LvT, 2008, 34. fantasia auto-destrutiva — com contornos de Neste último flow-fly culminamos, através 8. Linda Badley, Lars von Trier, UIP, Chicago, 2011, 176. 9. Friedrich Nietzsche, KSA 1: Die Geburt der Tragödie conto de bruxas. A violência das bofetadas da nuca de He, no acesso à interioridade dele, (ed. G. Colli, M. Montinari), Walter de Gruyter, Ber- excita-os e o sexo recomeça, e She segreda-lhe ao mesmo tempo que entramos na fantasia lim, 1988, 35. “The two from Ratisbon could start a hailstorm”, alucinatória de She, metendo bruxas, sexo 10. Nolan Boyd, “Nature is Satan's Church”: Depression and the Politics of Gender in Lars von Trier's Anti- uma referência directa ao Malleus Malefica- violento e membros decepados. Tudo se con- christ”, Offscreen, vol. 20, 8, 2016. rum, e à alegada capacidade dos praticantes certa num novo acto sexual em pleno cenário 11. LvT, 2008, 39. 12. Id., 37. de bruxaria para provocar alterações atmosfé- dantesco, satânico. Embora não estejamos 13. Id., 44. ricas20. Ela fantasia-se como uma bruxa, que preparados para os horrores que se seguirão, 14-16. Id., 45. 17. Muitos se chocaram por o anticristo do filme ser ao mesmo tempo que engendra o mal quer ser todos os elementos desta tempestade, desta fo- uma mulher, ou a mulher. Isso é bem explícito logo no punida e He alinha. Temos então um plano lie-à-deux, estão convocados. Como já referi, a título, onde o “t” final é grafado com um símbolo que, magistral, a imagem-choque que fez os teasers seguir ao último flow-fly, a tempestade rebenta segundo Fred Gettings, tanto vale para o “feminino” como para “Cristo” [“Christ” no Dictionary of Occult, e os trailers do filme: em câmara à mão avança- num plano das copas das árvores de Eden. Por Hermetic and Alchemic Sigils, Routledge and Kegan mos sobre o casal nu no acto sexual, ele sobre isso serão precisos poucos catalisadores: basta Paul, Londres, 1981, 84]. Nesse choque, terão confun- dido um veículo narrativo com um statement misógino. ela; subimos ao longo dos seus corpos até He descompor She pela deturpação dos dados Sem dúvida que o mal percebido na Natureza conflui terminar em close-up da nuca de He (terminan- recolhidos sobre “ginocídio” e confrontá-la numa mulher, mas LvT sublinha que se trata de uma mu- do a sequência do plano); o , breve- com a conclusão da autópsia e com o hábito, lher doente (possivelmente deprimida) que, diante do flow close-up trauma da perda do filho e sem tratamento adequado, mente fixo, começa então a abrir, conforme provavelmente inconsciente, de calçar Nic desenvolve um caso narrativo psíquica e cinematografi- a câmara se afasta em fly, i.e., em steady linear mal, para que She compreenda que está em camente interessante. 18. Tem-se discutido a simbologia dos animais (dos tracking à retaguarda: vemos os corpos que vias de perder também o marido, que come- “beggars”), das estatuetas dos soldadinhos, das copulam e, emaranhados nas raízes da árvore çou a suspeitar da magnitude da perturbação constelações, da reunião final. São discussões ricas e férteis, mas há que sublinhar que LvT deliberada- morta, braços de cadáveres humanos. dela e que a sua espiral de autodemonização mente plantou elementos crípticos no filme, a que nem Há sugestões, muito subtis, de que Eden chegou ao ponto de ruptura 22. E aí começam vincula um significado específico, nem um figurativo. terá sido um local onde se terá praticado bru- as torturas, as mutilações, as alucinações, o Sobre a raposa, em particular, LvT indicou em entre- vista a Sean O'Hagan que teve origem num episódio de xaria, e que preserva uma energia mórbida. homicídio. É interessante e sugestiva a aluci- uma experiência shamânica tida no passado [Interview: She advertiu o marido para que não subesti- nação com os três pedintes, mas a alucinação Lars von Trier, The Guardian, 12.07.2009]. De resto, LvT reiterou que pôs as ideias e as imagens no script masse o poder daquele lugar; dali vêem-se as decisiva será o retorcido flashback sobre o tal como elas lhe apareciam, sem interpretação ou estrelas que assinalam as constelações dos Prólogo, onde She observa a queda de Nic, análise. 19. LvT, 2008, 55. “três pedintes” (the three beggars), a corça, a impassível, continuando o sexo com o marido. 20. “In the town of Ravensburg [R a tis b o n], two women raposa e o corvo, naquele mapa astral ocultis- A morte de Nic, com a qual tanto empatizá- were burned to ashes [for] stirring up storms”. ta; She parece efectivamente convocar uma mos, começa a perder o seu carácter caótico, Christopher S. Mackay, The Hammer of Witches, CUP, Cambridge, 2009, 277. tempestade; mais importante, LvT filmará irracional, infeliz e sugere-se como acto 21. Michael D. Bailey, Historical Dictionary of planos de Eden a que, numa estética boschia- deliberado, orquestrado por todos os elemen- Witchcraft, Scarecrow Press, Oxford, 2003, 61. 22. O comentário ao filme não tem hesitado em considerar na, faz sobrepor pilhas de cadáveres, como se tos, inclusive Nic, talvez não tão inocente, o que She é vítima de uma sociedade machista que finalmente nos fosse dado ver a hecatombe de menino-demónio referido por um dos epítetos objectualiza, comercializa, reprime e despreza as mulheres. Para o caso, a figura machista dominante é o crueldades perpetrada naquele local, que se de Satanás (Nic), que, sob o olhar licencioso da marido. A explosão de violência dela é uma derradeira entranhou nele e dele irradia. Há também a mãe, foi no encalço do sopro de vento e com aniquilação e humilhação de todos os símbolos mas- procissão final, nakoda , composta apenas por ele precipitou a irrupção de um mal vicioso culinos, torturando, violando, castrando, exercendo toda a violência possível sobre o Homem, como se mulheres, que, suponho, se dirigem às cinzas na vida deste casal, o sofrimento e a irracio- fosse a vingadora, a justiceira, de toda uma irman- de She. Porém, um outro elemento torna esses nalidade. É um tratamento fascinante e muito dade que sofreu e pereceu, sem apelo nem agravo, às mãos de homens ao longo dos tempos. A interpretação membros significantes: segundo Michael Bai- sugestivo da premissa de que LvT partiu: o parece-me justa. ley, entre as acusações feitas aos praticantes de mundo foi criado por Satanás, não por Deus 23. 23. Badley, op. cit., 176. ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 19 O PLANO FRONTAL EM

televisão Peter Nestler em Einleitung zu Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer Nós por cá, por Fausto Cruchinho Lichtspielscene, de Jean-Marie Straub (1972)

lano frontal é o pla- a informação em particular, em que o que no autoritário. Nele importa não é o que se diz, mas quem diz. As- se afirma, sem lugar sim, a mensagem é a tecnologia que a permite ao contraditório, um transmitir, já que a notícia, a verdadeira razão P axioma. Ele confronta da televisão, passa para segundo plano. O o espectador como seu fundo do plano situa-nos no vazio do espaço e, opositor, frente a frente, por consequência, no vazio do tempo. afirmação contra Em cada segundo e em cada varrimento do afirmação. O desafio, o desafiante, resulta do ecrã, um espectador é tocado pelo olhar do inevitável olhar a que não se pode fugir, no locutor entertainer, partindo do pressuposto Jon Stewart em The daily show (2010) eixo da imagem, no centro das diagonais e civilizacional de que as pessoas se olham de na direcção que desenha o olhar da figura: o frente, mesmo na visão à distância: os que duplicável, uma vez que não se pode alterar centro de interesse do visível. O plano frontal estão distanciados do centro da visão ficam a relação do som com o ouvinte como se faz marca um ângulo de 90º na horizontal com distanciados do centro da atenção. A pretensa com a imagem e o seu espectador. O som apre- a figura, projectada contra um fundo em familiaridade do interlocutor só é aceitável senta-se como o analogon de si próprio. semi-circunferência. Esse ângulo recto divide porque efectivamente ele está à distância, Se temos, então, um plano da imagem a área visível em duas partes iguais, em duas separado pela tecnologia que igualmente ga- frontal e um plano do som dirigido, a televi- calotes esféricas. Desse modo, além de dividir rante a familiaridade. O ângulo que a câmara são constitui o momento por excelência da a área visível em múltiplos pequenos ângulos faz com o locutor no plano da televisão não rarefacção da autoria. A autoria, como vimos adjacentes na horizontal, define a posição da corresponde a um ponto de vista: em televi- antes, dispõe o mundo a partir de uma só von- figura em relação aodécor envolvente, a sua são não há ponto de vista. Para haver ponto tade — a do autor. A imagem no seu aparato centralidade. Também o plano frontal, à altura de vista tinha que haver autor, uma autoria singular de mostração do que é físico e o som do olhar da figura em pé ou sentada, não faz do ponto de vista. Por ponto de vista não se na sua irredutível plenitude concorrem para a ângulo na vertical, o plongée. Se não o fizer e entende o ângulo, a posição da câmara, a esco- desautorização, isto é, para a natureza acéfala interceptar o fundo em semi-circunferência no lha de aberturas, durações ou montagem de do dispositivo televisivo. Como encontrar ângulo dos 90º, estamos perante um ângulo planos, nem tão pouco a escolha dos assuntos, neste meio um fim se ele aparece tão desprovi- que faz eixo com a figura, iludindo uma pos- dos programas, dos locutores e intérpretes. do? A televisão é uma montra, um inventário sível exploração tridimensional. É o ângulo Por ponto de vista entende-se autoria, uma de novidades, uma sucessão interminável de do telejornal. Ao afirmar uma frontalidade, concepção do mundo, uma manifestação momentos e elementos que se ausentam da recusa o perfil, a metade do corpo da figura, dessa concepção e dos seus pressupostos. história das formas. Porém, o discurso que se a possibilidade de existência da tridimensio- Tal é ausente da televisão como instituição auto-instalou na sua produção desde as suas nalidade. O quadro enclausura e as fugas dos mundana. Esta não determinação do ponto de origens remete para uma suposta linguagem lados e dos topos do plano não são pontos de vista produz uma ausência programada dessa audiovisual assente no princípio da verdade do fuga, como acontece com a perspectiva, com ausência, quer dizer, na sua ausência instala-se que se vê e do que se ouve — uma teleologia. as linhas de fuga. o locutor no lugar do dono da palavra. O facto de que o som se ouvia através da O primeiro a desaparecer é o fundo, trans- A neutralidade pretendida pelo plano emissão e transmissão da rádio, do telégrafo e formado em cenário. Todo o fundo se trans- frontal também é o que convém ao discurso da de que a ausência física dos emissores de som e forma em cenário, em estúdio, em casa ou ao palavra, à sua ditadura e impostura. A palavra voz não contrariava uma crença na sua existên- ar livre. A figura está encostada a um cenário não tem ponto de vista nem lhe é possível cia física levou a que a imagem junta com a voz que já não é fundo, é cenário, limite absoluto tê-lo. O som não tem dimensão, direcção e ân- ainda mais credibilizasse o meio. Esta crença do campo visual, demonstração visível do que gulo, apenas tem volume e modulação, apenas transformou a televisão em porta-voz da reali- é o campo do dizer — à frente da boca — e o pode ser grande ou pequeno, alto ou baixo. dade, substituto realista do cinema, explicador que é o bastidor, o não apresentável, o insig- Assim, o controle sobre o som é o controle so- ao domicílio dos analfabetos e emigrantes. nificante e insignificativo. O cenário contém a bre todo o som em si. Não é possível aprender O enraizamento fora das grandes urbes e figura falante como adereço do falar, impos- aquilo que não tem controle: não temos uma em todo o mundo criou uma família que se sibilitado de interferir no sentido do falar. A parte do som nem ele se instala num campo entende unicamente pela constatação de que não historicidade prolonga a eternidade do controlável. Ao contrário da imagem, sempre o que é visto e ouvido na televisão é verdadei- discurso dito, torna-o liberto da temporali- passível de traduzir uma existência física, ro. Donde vem esta certeza? Da suposta não dade e dogma da informação. A imagem do o som corresponde sempre àquilo que ele é ficção, não encenação, não autoria, no efeito conjunto do falante e do cenário desvincula o quando produzido e não corresponde a uma reportagem, o espontâneo sem pensamento. dito da sua relação com o visto. reprodução mas a uma produção. Ele é som Esta verdade substitui o pensamento sobre a O olhar câmara não é o olhar para o vazio: em primeira instância, não uma duplicação origem dessa mesma verdade, donde vem e é o olhar para a câmara, intermediário do de outro som ou de outra realidade sonora. A como se constitui, em que modos e formas. transmissor entre locutor e auditor. A familia- imagem, ao contrário, porque tendencialmen- Teremos que voltar à literatura para ridade ou frontalidade nada têm de atrevimen- te semelhante a algo semelhante, é sempre encontrar a autoria, seja ela a dos autores das to ou desmascaramento do meio tecnológico uma segunda instância. O som é a manifes- notícias (os jornalistas), os autores das séries que serve a televisão; pelo contrário, serve a tação mais próxima da sua realidade, isto é, (os argumentistas), os autores do entreteni- espectacularidade em que se situa a televisão, corresponde à sua produção primária, não mento e da publicidade (os produtores). São NÓS POR CÁ O PLANO FRONTAL EM TELEVISÃO 20 todos oriundos da natureza literária, base a distinta da imagem em outros meios, pode- lugar do aluno ou do crente, no lugar daquele partir da qual se ilustra a imagem e se enche mos afirmar que o seu carácter electrónico, que está numa posição de recepção simpática o som. Trata-se pois, de uma transfusão de formada por unidades de cor e luz geradas do oráculo, do médium. um meio para outro. O suposto contrário por correntes electromagnéticas sobre o Simultânea e contraditoriamente, o seria a reportagem, o directo, os apanhados, ecrã, está na base da sua instabilidade. Não espectador é tratado como confessor, aquele os concursos, o espontâneo elaborado pela temos já a imagem química da fotografia e do a quem se testemunham ideias, segredos, literatura. Trata-se também da transferência cinema ou a imagem digital superveniente, notícias, conhecimentos, gostos e prazeres. da autoria literária para outras não autorias: mas uma imagem formada e reformada à Por um lado, o espectador é aliciado a ser tes- os locutores, os actores, os entertainers. distância, isto é, composta e decomposta e temunha e, em troca, é-lhe exigida passivida- depois recomposta, uma imagem donde foi perdido o carácter plástico a favor do carácter informativo, como uma fotocópia, a recom- posição de uma imagem noutra imagem. Porém, esse carácter informativo constitui-se como género literário a que se junta a voz e a imagem: o diário, a crónica, o ensaio, o folhe- tim e o romance histórico. A televisão reúne e condensa as contribuições de várias áreas do conhecimento, tornando-as ilustradas através do uso da imagem e da voz como ga- Jean-Luc Godard em Histoire(s) du cinéma Roberto Rossellini em La lotta dell’uomo per la (1988-1998) rante e testemunho da verdade, mais do que sua sopravvivenza, de Renzo Rossellini (1970) ponto de partida para um pensamento sobre o papel da imagem e do som num contexto interdisciplinar. O narrador não é o autor: o narrador é o certificador da verdade, seja ou não verdade. A imagem e o som, afinal, não garantem a verdade do que é visto e do que é dito, apesar de o seu uso ser estritamente mimético: é necessário alguém com autorida- de (jornalista, narrador) para certificar que a verdade é verdadeira. Mesmo quando se trata de ficção, a base informativa serve de garante Marshall McLuhan em The dangers of television da verdade da ficção. Guy Debord em Guy Debord: de son cinéma en son and the rise of the one-liner (1977) art et en son temps, de Guy-Claude Marie (2009) Alguns géneros do mundo do espectá- Assim, a imagem em televisão vê-se culo convergem na televisão: o concurso, o de, aceitação, fidelidade. O plano frontal fala destituída da sua natureza de transformação desporto, a missa. Para estes géneros, já de a cada um e a nenhum espectador; dirige-se do mundo da realidade em mundo da sua si codificados segundo o princípio de não se à massa média e a ninguém em particular. realidade, fazendo o papel de passador do saber como acabam, o controle faz-se sobre Olhos nos olhos, é aos ouvidos que o locutor som, lugar de inscrição da referência sonora, o tempo e o espaço. O tempo televisivo é o se dirige, à emoção e não à razão. O assunto eco do som. A imagem é destituída do seu tempo do espectáculo, formatado segundo o tratado é de natureza pública que se torna pu- valor indiciário para ter um simples valor princípio de que a publicidade ocupará uma blicitado. Nesse modo, o espectador sente-se icónico e, por vezes, simbólico. A natureza da parte substancial do tempo total. O espaço é distinto mas sente-se inútil com a distinção, imagem é submersa na avalanche da prosódia também determinado pela codificação prévia: sobretudo se não der a sua opinião. Mesmo sonora e tratada como o inevitável suporte da ao ar livre ou em lugares fechados, segundo que a dê, o canal é unívoco, só está aberto no imagem que se espera haver em televisão: som o princípio de que a leitura do espectador se sentido da televisão para o espectador. É esta com imagem. Esta natureza ilustrativa e até organiza pelas direcções que tomam os inter- a natureza do plano frontal: autoritário. tautológica da imagem não faz senão garantir venientes em movimento ou que a realização A voz narradora concorre com o plano que a televisão é “uma janela aberta sobre organiza os olhares. Estas duas organizações frontal como manifestação autoritária. Ela o mundo”, isto é, a substituição do mundo do espaço são codificadas pelo princípio da afirma-se frontalmente, sobrepõe-se a outras real com vantagem, a vantagem de já estar relação do movimento ou do olhar, pelos seus vozes e sons e determina quem é o dono o mundo convertido em janela, em imagem. cruzamentos ou pelas direcções e continui- da voz, o sentido que é para apreender. Na Essa imagem é então um permanente posto dades que tomam, pelo princípio abstracto de mesma situação, a voz do narrador não é de vigilância sobre o mundo, um polícia do que o espaço é aquilo que a imagem contém. uma invenção por excelência da televisão: ela mundo ou um pintor do mundo, em qual- Assim, a pluralidade sonora que normalmen- deriva de outro antepassado e herdeiro da quer caso algo que foi encarregado de abrir e te concorre nestas emissões de televisão tende televisão, o documentário. Tal como a televi- fechar a janela ou de a deixar meia aberta. É a secundarizar ou a tornar inútil a organiza- são, o documentário nasceu com o propósito este carácter utilitário que afasta a televisão ção do espaço, repetindo a fórmula de que o publicitário, misturando a imagem com o da arte e a aproxima do electrodoméstico. som comanda a televisão e de que a imagem som e dando a ambos um cunho de verdade Porém, o discurso da arte não atravessa a tem um carácter informativo e ilustrativo, que deriva da não ficcionalização da narra- televisão, já que ela nasceu sob o signo da in- unicamente. Ora, esse é o desígnio da publici- tiva, embora dramatizada, acrescentando formação e da educação, como vimos antes. dade, a inanidade da imagem e a precisão do ao narrador dentro ou fora da imagem. Este O seu carácter utilitário não lhe permite ser som, por onde passa a mensagem. narrador de voz transporta a marca da verda- pensada a partir da concepção artística, mas Como entender então o plano frontal, a de, como vimos antes. Porém, situando-se ao sob o signo da visão e da audição à distância. invenção por excelência da televisão? Porquê lado da ficção, o reconhecimento da voz do Os progressivos usos da televisão, utilizando a afirmação da imagem para, através do olhar narrador, quer seja jornalista ou actor, acres- os satélites de telecomunicações, permiti- directo para a câmara do locutor, chegar ao centa uma garantia extra de veracidade, uma ram criar experiências em que o seu meio foi espectador? Porque, através da imagem, o chancela de autenticidade de que a televisão utilizado de forma interactiva em directo, isto locutor fala para um público invisível, inu- sempre carece. Dada a natureza e finalidade é, utilizando a sua natureza intrínseca, uma merável e inclassificável? Essa frontalidade é publicitárias da televisão e do documentário, arte televisiva que passa pelo seu próprio simétrica da frontalidade do espectador? Mas a voz do narrador quer garantir a apreensão dispositivo etéreo e a sua efemeridade. o dono da imagem e do som é a televisão, o da mensagem ou, pelo menos, tem a intenção Retomando a imagem em televisão como espectador é passivo. O espectador está no de o conseguir. ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 21 A DISTORÇÃO PARANÓICA DA REALIDADE AO SERVIÇO DA RETÓRICA DO PODER BREVES APONTAMENTOS

Subsolo, por Manuel Pereira The War Game, Peter Watkins (1965)

uso de formas híbridas ordena aquilo que (eventualmente) a imagem Tribulation 99 de Craig Baldwin, recorre entre a ficção e o do- não alcança por si só, aliada à sua presença igualmente à collage como estratégia privile- cumentário reveste-se “dolorosamente familiar” (Wiener), tem giada para desmontar essa articulação, sendo de roupagens distintas, contribuído para a passividade do espectador, que a “liberdade de continuamente usar e O apresentando contudo, e consequente falta de confiança nas ima- reusar documentos dos arquivos” evidencia a de forma permanente, gens que um reordenamento crítico permite impossibilidade de “determinar uma verdade um desafio ficcional (e baralhar e dar de novo, apontando para os estável e objectiva acerca do passado” (Almei- portanto externo) a este princípios primordiais da íntima relação da), devendo o foco orientar-se, por conseguin- último, sendo que estas formas problemati- entre imagem, som, palavra e intervalo, que a te, para o questionamento dos métodos dessa zam a relação entre as convenções típicas do collage possibilita como estratégia subversiva, articulação — como se faz? — os seus propósi- género e o discurso factual (Hight & Roscoe). mas igualmente como busca de uma essência tos — porquê e para quê? — e a sua submissão Remetem desse modo para um alcance crítico restituída ao cinema. perante os interesses dos poderes instituídos. vasto, que extrapola o estritamente cinemato- Querendo evitar a infantilização do olhar Estas ligações imprevistas de detritos gráfico, desmontando e expondo os mecanis- que necessita da muleta do narrador para en- visuais surgem aglutinadas por uma voice mos constitutivos dos discursos do poder, em quadrar os fragmentos, e como tal, não pode over que, pelo seu tom trocista (exagerando a particular, quando alicerçados em imagens. aspirar a mais que uma ilustrativa repetição seriedade a que o narrador no cinema docu- Ao mimetizar o enquadramento formal do da matéria dada, a collage permite confrontar mental nos habituou), produz um efeito crítico documentário, adquirem-se os conteúdos e os inúmeras narrações, tantos discursos quantos relativamente à construção desses discursos. sentimentos associados a este, replicando-se os pedaços originais exumados à sua poei- Assim, a articulação entre os usos documen- a experiência através da sua antítese e de um renta existência esquecida e reabilitados para tais e ficcionais do cinema gera fissuras e distanciamento crítico que desmistifica os a convulsão do presente. Tão problemáticos desníveis, provocando um contraste entre o mecanismos que registam e ordenam “o real”. quanto “as armadilhas da autoridade” (Wie- racional e o irracional, entre uma forma séria Revelando-se a sua intrínseca codificação, ner) que pretendem expor a falibilidade da e um tema absurdo (ed. Juhasz & Lerner), que este é exposto como discurso manipulado figura do narrador, contribuem para o reava- está na base do humor. (ed. Juhasz & Lerner), sendo a desconfiança liar da sua importância para um olhar crítico perante a imagem um exercício recorrente nas que desconstrua a sobredosagem mediática PETER WATKINS obras aqui em análise. contemporânea, e que esteja, dessa forma, NOME MAIOR DO DOCUDRAMA, FORMA HÍBRIDA EXPLO- Peter Watkins, em The War Game, con- mais apto a defender-se desse fluxo caótico e RADA COM ACUTILÂNCIA E TALENTO ÚNICOS, PETER WATKINS REVELA A CONSTRUÇÃO DE QUALQUER DIS- cretiza-o ao confrontar, de forma delibera- ininterrupto. CURSO VISUAL AO SERVIÇO DO PODER HEGEMÓNICO, da, linguagens cinematográficas distintas, Esta autoridade liga-se, de igual modo, a um PELA EXPOSIÇÃO EXAGERADA DOS SEUS ARTIFÍCIOS. provocando a estranheza e extraindo desse enquadramento formal pedagógico, que não só Filmografia seleccionada: encontro entre “elementos díspares e apa- contribui para essa mesma posição passiva do THE WAR GAME (1965) • PUNISHMENT PARK (1971) rentemente incomparáveis”, como sejam as espectador, como, no contexto da análise que THE JOURNEY (1988) “dramatizações dos efeitos da guerra nuclear aqui nos importa desenvolver, é essencial para CRAIG BALDWIN e as extremamente artificiais (...) leituras de promover o medo hiperbolizado e tendencial- CINEASTA QUE INCORPORA O FOUND FOOTAGE EM citações de autoridades políticas e religiosas” mente abstracto — a paranóia — como estraté- FALSOS DOCUMENTÁRIOS, COM UMA INTENÇÃO CRÍ- (Goldsmith), um efeito paródico resultante da gia política e discursiva tremendamente eficaz. TICA RELATIVAMENTE AOS MASS MEDIA, RECLA- MANDO A REINVENÇÃO DO ARQUIVO E DAS SUAS justaposição dos mesmos. A collage propõe assim uma desmontagem MEMÓRIAS E A SABOTAGEM DAS FISSURAS LEGAIS Ultrapassado o estrito alcance cinema- crítica dos mecanismos que se encadeiam DA PROPRIEDADE INTELECTUAL. tográfico (uma intenção reclamada desde o para a formação dos alicerces de uma preten- Filmografia seleccionada: início, no sentido de desmontar criticamente sa verdade, codificada pelo poder e apresenta- ROCKETKITKONGOKIT (1986) • TRIBULATION 99: as subtis combinações destes elementos e a da como conjunto de noções inegociáveis que ALIEN ANOMALIES UNDER AMERICA (1991) SONIC OUTLAWS (1995) sua presença nos media mais convencionais), o espectador pode apenas aceitar, assimilar a confluência do real e do encenado questiona e consumir. Se existe alguma aproximação à EMILE DE ANTONIO e coloca em perspectiva quer um quer outro, verdade, esta não se encontra naquilo que se PIONEIRO DO USO POLITICAMENTE SUBVERSIVO DA formulando-se um objecto novo, híbrido, que ouve, nas camadas superficiais de entendi- COLLAGE E DA REFORMULAÇÃO DA REALIDADE FIL- resulta desse desafio ficcional a um formato mento para que essa voz remete, mas naquilo TRADA PELO ECRÃ DA TV, DE ANTONIO FOI PONTA DE LANÇA DE UM CINEMA DE GUERRILHA NOS EUA, habitualmente associado a um real não- que se esconde sob a arqueologia do irre- NO PERÍODO DA GUERRA FRIA, DESMONTANDO OS -mediado, noção ilusória que estes objectos parável, os escombros que alimentam uma MECANISMOS QUE SUSTENTAVAM A PROLONGADA permitem desmontar. A figura do narrador ressurreição problemática e evidenciam a TENSÃO DA IMINÊNCIA DA CATÁSTROFE. é de igual forma determinante para o posi- construção de qualquer destes discursos, por Filmografia seleccionada: POINT OF ORDER (1964) • IN THE YEAR OF THE PIG cionamento do espectador perante o objecto mais que pretendam camuflar a manipulação (1969) • 1968: AMERICA IS HARD TO SEE (1970) em causa. A autoridade da voz que enuncia e que lhes dá origem e corpo. SUBSOLO A DISTORÇÃO PARANÓICA DA REALIDADE AO SERVIÇO DA RETÓRICA DO PODER — BREVES APONTAMENTOS 22

O conceito de radical scavenging, na obra de Emile de Antonio, é igualmente crucial para desmontar e subverter a retórica da História e da identidade através da sua representação, reconsiderando as suas funções e significa- dos e levantando questões sobre essa mesma representação (Steenveld). A reavaliação dos elementos constitutivos do documentário, no contexto da sua associação privilegiada à representação de eventos históricos, aponta precisamente para questões ligadas à própria representação enquanto noção mais vasta. Desse modo se entende que estes exercícios se autorizem à reconfiguração absurda dos even- tos, expondo a construção em que se baseiam os relatos e os registos, tal como a falência da aspiração do documentário a uma reprodução pretensamente inócua e imparcial, eviden- ciando o seu inevitável carácter ideológico, e potenciando, como tal, uma apreciação crítica Point of Order, Emilio de Antonio (1964) e uma desmontagem que o evidencie. Assume- -se, através desse esforço, o concretizar de uma disseminação, potencia a imposição de uma permite responder a constantes permutações “tensão dialéctica entre o passado e o presente imagem unívoca, que “pretende ser inques- na percepção do quotidiano (Springer). que só o espectador pode resolver”, ou seja tionável, evidente por si mesma, um discur- A interrogação da pertinência destas uma “colisão dissonante”, em que perspecti- so superficial mas com implicações muito práticas, a partir dos exemplos de Baldwin, vas contraditórias se encontram e se fundem, profundas.” O cinema que usa a collage como Watkins ou De Antonio, é vital num mo- coexistindo de forma problemática, desconfor- ferramenta disruptiva propõe dessa forma mento em que são simultâneas a crescente tável, num exercício de montagem que remete um discurso distinto, e em vez de propor circulação de imagens e a acelerada diluição para experiências primordiais e definidoras simplesmente um outro entendimento, “abre do seu conteúdo, sendo que as estratégias da arte cinematográfica, gerando um diálogo um diálogo entre a representação do evento de produção de sentido não-hegemónico a inusitado entre essas imagens resgatadas ao histórico e a forma como é representado.” partir do uso de imagens de found-footage têm passado e uma sua análise crítica no presente Este não conduz necessariamente à negação perdido a capacidade de se constituir como (Lewis). Segundo o próprio De Antonio, sob ou anulação do entendimento prévio acerca figura infractora, sendo cada vez mais difícil a aparência da neutralidade, da pretensão de desse mesmo evento, mas evita que se tomem subverter esse mecanismo com recurso a “deixar a realidade falar por si mesma”, expõe- as imagens e os discursos oficiais como cer- imagens geradas pela própria indústria. -se o poder, “as suas tácticas arrogantes, as tos, abrindo espaço para a complexidade e a Se as obras aqui mencionadas estão neces- suas ideias sinistras, o seu rosto feio e a sua voz contradição (Moran). sariamente circunscritas a um determinado insuportável”. Trata-se, portanto, de uma téc- Mais uma vez segundo Emile de Antonio, contexto histórico, que é essencial para a mo- nica poderosa, segundo Bill Nichols, em que “a verdadeira História dos EUA, durante tivação profunda que subjaz aos esforços de o “discernimento substitui o reconhecimento, a Guerra Fria, está nos outtakes” (Moran), desregulação do discurso a este associado, a novas possibilidades se sugerem a si mesmas, e sendo que a cobertura mediática hegemónica verdade é que nos parece prematuro considerá- alternativas surgem à tona.” (Steenveld) é uma falácia ao serviço de um dos poderes -las obsoletas, mesmo quando analisadas num Serão as obras que recorrem ao found footage em confronto. Assemelha-se a uma cobertura momento posterior. O inimigo, tendencial- como matéria prima, e à collage como método, do evento, que ultrapassa a redundância do mente abstracto, pode passar de um agente mais certeiras e esclarecedoras em relação ao imediatismo, quando na realidade não é, pelo soviético tresloucado a um alienígena dema- passado e à identidade e consciência colectivas facto de nunca se ver interrogada a motivação siado curioso, passando por um qualquer de determinado povo que os próprios arquivos profunda do conflito. barbudo genericamente apelidado de terroris- do passado? O remexer nos fragmentos dessa Mais que esse aprofundamento crítico, ta, mas o esqueleto da ameaça, a motivação memória colectiva, naquilo que existe fora da procura-se difundir um temor abstracto, pos- profunda do discurso de medo e de ódio é an- versão oficial (naturalmente condicionada pela sibilitado pela aparente seriedade do enqua- terior às formas das quais se reveste: o Poder sua vinculação ao poder e às representações dramento científico, mesmo que ao serviço de mente, seja qual for a tonalidade do engano, hegemónicas de cada época) possibilitará conteúdos ficcionais. Nesse sentido, o “estilo e como tal, a crítica à retórica que o alimenta uma incursão mais profunda e reveladora dos documental e a paranóia da Guerra Fria não mantém-se tão relevante como outrora. propósitos dessa identidade? Esta noção é par- são influências distintas, mas uma só, na me- ALMEIDA, Ana Sofia (2016).Found Footage e o Documentário: A ticularmente relevante no contexto da Guerra dida em que a paranóia e a pedagogia são ne- recontextualização de material found footage na construção Fria, para a qual todos estes exemplos cinema- cessárias para se completarem uma à outra” de um discurso original (visual e sonoro) dentro do documentário. (Mestrado em Comunicação Audiovisual). Escola tográficos remetem, directa ou indirectamente, (Springer), sendo que a forma e o estilo são Superior de Música e Artes do Espetáculo, Portugal. enquanto “construção socio-ideológica funda- mais eficazes nessa difusão do medo do que GOLDSMITH, Leo (2006). The War Game. Edinburgh Film Guild. da em percepções distintas de uma identidade quaisquer monstros, insectos ou alienígenas HIGHT, Craig & ROSCOE, Jane (2011). Faking It: Mock- -Documentary and the Subversion of Factuality. Manchester: própria e da construção social de um inimigo.” que povoem os filmes, pois foi esse mesmo Manchester University Press. Crucial para essa construção ao serviço do enquadramento, repetido à escala global, nos JUHASZ, Alexandra & LERNER, Jesse (eds.) (2006). F is for Phony: Fake Documentary and Truth's Undoing. Minnesota: poder hegemónico, e de igual forma, para as lares e nos quotidianos do espectador anóni- University of Minnesota Press. manifestações artísticas que procurem replicar mo, que nos ensinou a ter medo. MORAN, Anne Labandeira (2015). From Waste to Worth: Recycling Moving Images as a Means for Historical esses mecanismos para os subverter critica- A paranóia e a pedagogia surgem, nes- Inquiry. (Doutoramento em Filosofía, Lengua y Literatura). mente, o cinema e a TV constituem-se como te contexto, como noções indissociáveis, Universidad Carlos III de Madrid, Espanha. ferramentas essenciais para “cada uma das impondo credibilidade pela mimetização dos SPRINGER, John Parris & RHODES, Gary D. (eds.) (2006). Docufictions: Essays on the Intersection of Documentary and ideologias em confronto criarem a sua própria discursos da factualidade e amplificando a Fictional Filmmaking. Jefferson, McFarland & Co Inc. imagem e a do seu inimigo.” (Moran) ameaça, plasmada na imagem que se cria de STEENVELD, Lynette (1997). Radical Scavenging: the documentary politics of Emile de Antonio. A força da saturação dos circuitos que só um inimigo, por um processo de “distorção Communicatio, 23:1, 48-54 o poder hegemónico pode empreender, pela paranóica da realidade”. Assim, a paranóia WIENER, Jon (2007). The omniscient narrator and the unreliable narrator: The case of Atomic Café. Film & vastidão a que se autoriza, e pela estrutura não é uma condição imutável e abstracta, mas History: An Interdisciplinary Journal of Film and Television que permite a concretização prática dessa uma condição especificamente social que Studies, 37 (1), 73-76. ARGUMENTO N162 BOLETIM CINE CLUBE DE VISEU 23

JORGE COLOMBO Observatório A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa. A desafiar os convidados, um tema comum, a cinefilia. André Ruivo

NÃO TE COMPROMETES COM e portanto às vezes as fronteiras diluem-se. GRANDES NARRATIVAS (O QUE O cinema é um mundo que eu não consigo DE CERTA FORMA TAMBÉM É abarcar sozinho, ao contrário dos livros. No JARMUSCHIANO). OS TEUS LI- cinema preciso sempre de colaboradores. VROS, COMO OS TEUS FILMES, A ACIDEZ DAS TUAS FIGURAS E O HUMOR ABARCAM HISTÓRIAS CURTAS, CORROSIVO DAVAM-SE BEM COM O PEQUENOS EVENTOS, OU APE- CARTOON POLÍTICO. O TEU TRABALHO NAS GESTOS QUE DEPOIS SÃO VINCULOU-SE ALGUMA VEZ A UMA COMPILADOS. COMO ESCO- POSTURA INTERVENTIVA, OU TRATAVA- LHES O QUE INTERESSA PARA -SE APENAS DE UM CASAMENTO FELIZ? O TEU TRABALHO? Eu tenho-me vindo a afastar desse tipo de Eu deixo para o cinema o Humor. ilustração política empenhada, e mesmo para O cinema de animação dá tanto jornais generalistas também tenho deixado trabalho, por causa dos milhares de de colaborar. Encontrei um espaço próprio desenhos que temos que fazer, que com a edição de livros meus com pequenos Ilustração: livro do Ruivo, capa André de mais recente é bom que seja divertido, que nos editores, e tenho mais liberdade na criação faça rir, se não acho que seria muito de conjuntos de desenhos cujas temáticas são pesado, fazer um filme sobre temas escolhidas por mim de acordo com os meus tristes. O Jarmusch ensinou-me a estados de espírito e pensamento. gostar de um plano de cada vez, ENTRE EXPOSIÇÕES, EDIÇÕES, FILMES, isso é muito importante no cinema. E COM UMA RELAÇÃO (INTERMITEN- AS TUAS ILUSTRAÇÕES, AIN- TE?) COM A MÚSICA, PELO MENOS NOS DA QUE ESTÁTICAS, TAMBÉM ROLLANA BEAT, A TUA PRODUÇÃO AR- ESTÃO CARREGADAS DE GESTOS RANHA O FEBRIL (NO MELHOR SENTI- E HUMOR: HÁ UMA AURA DE DO). PARA UM ESPECTADOR E PARA UM ANSIEDADE, DE PERTURBAÇÃO. ARTISTA, O QUE PODE A ARTE NESTE É COMO SE A FRONTEIRA ENTRE MUNDO DE ANSIEDADE? O MUNDANO E O ABSURDO ESTI- A arte é a coisa mais importante que pode jun- VESSE SEMPRE EM CAUSA. tar pessoas de nacionalidades diferentes, com Sim, é isso, é o mundano e o absur- personalidades muito diferentes, seja numa ndré Ruivo (n. 1977) do, a vida é absurda, estarmos vivos é feira de arte ou numa orquestra. A arte tem a é natural de Lisboa. absurdo. O livro que melhor traduz essa tua capacidade de através de metáforas transmitir Licenciado em Design ideia é as Aventuras de Qualquer Coisa, em ideias que às vezes não se conseguem expri- de Comunicação pela que as personagens saem de casa para dar mir normalmente. Tem uma capacidade de Zzzzzzzzzz A FBAUL e mestre em passeios pela cidade e são passeios também acalmar as pessoas que estão ansiosas, sim, Cinema de Animação pelos seus pensamentos nonsense. ouçam Mahler ou Erik Satie. Ou então inquie- pelo Royal College of E O QUE INTERESSA NO CINEMA DE tar também dá. É aí que eu coloco os Rollana (Stolen Books), Feira na Livro lançado do Lisboa de 2019. de Art em Londres, é um ANIMAÇÃO DIFERE MUITO DO QUE Beat, inquietação, inquietação… artista multi-disciplinar reconhecido sobretu- INTERESSA QUANDO ILUSTRAS? COM OU SEM AJUDA DE UM ARGUMENTIS- do pelo seu trabalho de ilustração, já publi- Sim, dos livros que venho editando que são TA E DE UM — IMPROVÁVEL — FINANCIA- cado no Público, O Independente, Combate, de desenhos apenas sou eu o único autor. MENTO GARANTIDO, QUANDO TE AVEN- Visão, Ler e Op, bem como em inúmeras No cinema geralmente adapto um guião de TURAS POR UMA LONGA-METRAGEM? edições em nome próprio. Conta também outra pessoa. Sou uma espécie de ilustrador Haha, só com ajuda de outros realizadores, quase uma dezena de curtas-metragens de no cinema de animação. Ilustro o guião ou o como tentámos fazer agora com os vídeos animação (O Dilúvio, O Campo à Beira-Mar, argumento que me é dado. Rollana Beat, em que conseguimos 45 mi- O Circo, etc...), fez parte da banda Rollana NA INTERNET SURGE UMA DESCRIÇÃO nutos de imagens feitas por 13 realizadores, Beat e editou dois discos a solo. CURIOSA SOBRE AS TUAS ILUSTRAÇÕES: sem subsídios e tendo como ponto de partida --- QUE ESTABELECEM UMA PONTE ENTRE as gravações que fizemos entre 1998 e 2002. TRAZER AO ARGUMENTO O DEAD AS FIGURAS REDONDAS E COLORIDAS DE Trabalhar em equipa é a solução! MAN FOI UMA OPÇÃO IMEDIATA? SERÁ YELLOW SUBMARINE E AS CENAS DO DIA- JIM JARMUSCH UM DOS GRANDES -A-DIA EM JACQUES TATI. O CINEMA COLABORARAM EM NÚMEROS ANTERIORES: REALIZADORES DO NOSSO TEMPO É UMA FONTE DE INSPIRAÇÃO? ALICE GEIRINHAS, ANA BISCAIA, ANA (E ESTE JARMUSCH COM ROBERT Sim, os meus pais levavam-me muito ao OLIVEIRA, ANDRÉ COELHO, BETÂNIA V. MITCHUM UM ÍCONE)? cinema. O primeiro filme que vi foi oYellow PIRES, ESGAR ACELERADO, JUAN CAVIA, Foi, foi um filme que me marcou e vi várias Submarine do George Dunning; o Tati, já L. FILIPE DOS SANTOS, LUÍS BELO, LUÍS MANUEL GASPAR, LUÍS TROUFA, NIKITA KAUN, vezes no cinema, e ouvi o CD com a banda o descobri mais tarde quando fui estudar PATRÍCIA MATOS, PEDRO SERPA, RICARDO sonora do Neil Young. O Jarmusch faz filmes cinema de animação para Londres. Sim, o REIS, ROSÁRIO PINHEIRO. NA PRÓXIMA simples e muito humanos, acho que é por isso cinema é uma fonte de inspiração, eu que leio EDIÇÃO: NANDO MURIO E PACHICLÓN (MÉXICO) que gosto dele. Deve ser um tipo porreiro. pouco. Também faço cinema de animação Observatório. ANDRÉ RUIVO, 2019. A PARTIR DE DEAD MAN, DE JIM JARMUSCH (1995), CANETAS DE FELTRO SOBRE PAPEL.