PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

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JULIO NETO DOS SANTOS

A PRODUÇÃO DISCURSIVA NO BROCK - ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 80 - EM LETRAS DE MÚSICA DAS BANDAS BLITZ E TITÃS

LINHA DE PESQUISA: Discurso, memória e identidade

PAU DOS FERROS 2020 JULIO NETO DOS SANTOS

A PRODUÇÃO DISCURSIVA NO BROCK - ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 80 - EM LETRAS DE MÚSICA DAS BANDAS BLITZ E TITÃS

Tese apresentada à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus Avançado Profa. Maria Elisa de A. Maia, Programa de Pós-Graduação em Letras, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras.

ORIENTADOR: Charles Albuquerque Ponte

PAU DOS FERROS 2020 © Todos os direitos estão reservados a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. O conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do(a) autor(a), sendo o mesmo, passível de sanções administrativas ou penais, caso sejam infringidas as leis que regulamentam a Propriedade Intelectual, respectivamente, Patentes: Lei n° 9.279/1996 e Direitos Autorais: Lei n° 9.610/1998. A mesma poderá servir de base literária para novas pesquisas, desde que a obra e seu(a) respectivo(a) autor(a) sejam devidamente citados e mencionados os seus créditos bibliográficos.

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. S237p Santos, Julio Neto dos A produção discursiva no Brock - rock brasileiro dos anos 80 - em letras de música das bandas Blitz e Titãs. / Julio Neto dos Santos. - Pau dos Ferros, 2020. 184p.

Orientador (a): Prof. Dr. Charles Albuquerque Ponte. Tese (Doutorado em Programa de Pós-Graduação em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

1. Discurso. 2. Saber-poder. 3. Indústria cultural. 4. Brock. 5. Subjetivação/discursivização. I. Ponte, Charles Albuquerque. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III. Título.

O serviço de Geração Automática de Ficha Catalográfica para Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC´s) foi desenvolvido pela Diretoria de Informatização (DINF), sob orientação dos bibliotecários do SIB-UERN, para ser adaptado às necessidades da comunidade acadêmica UERN. A tese “A PRODUÇÃO DISCURSIVA NO BROCK – ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 80 – EM LETRAS DE MÚSICA DAS BANDAS BLITZ E TITÃS”, autoria de Julio Neto dos Santos, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de Doutor em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN

Aprovado pela banca em: 05/10/2020

BANCA EXAMINADORA

______Prof. Dr. Charles Albuquerque Pontes – UERN (Orientador e Presidente da banca)

______Profa. Dra. Rosângela Alves dos Santos Bernardino – UERN (Examinadora interna)

______Prof. Dr. José Francisco das Chagas Souza – UERN (Examinador interno)

______Prof. Dr. Márcio de Lima Pacheco – UFR (Examinador externo)

______Prof. Dr. Onireves Monteiro de Castro – UFCG (Examinador externo)

______Prof. Dr. Francisco de Assis Costa da Silva – UERN (Suplente de examinador interno)

______Profa. Dra. Adriana Sidralle Rolim Moura – UFCG (Suplente de examinadora externa)

PAU DOS FERROS 2020

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus sob todas as coisas, que me faz compreender coisas que está além de mim e que mesmo assim, eu ainda não entendo bem. Que me faz caminhar por linhas tortas tentando acertar, embora eu prefira continuar caminhando por essas linhas. Acertar é consequência. À minha mulher Daniella Brito, pela compreensão de minha ausência quando, muitas vezes, precisei para trabalhar nesta tese. Pelo enorme amor que dedica a minha pessoa, e que eu acho que não mereço tanto. Pelo nosso filho Francisco que está a caminho. Aos meus filhos, que compreenderam o porquê, de muitas vezes, precisar me ausentar, devido ao acúmulo de trabalho e leitura. Vocês são minha alegria de viver. Aos meus pais Francisco dos Santos e Expedita Maria dos Santos que, embora não soubessem bem o significado de estudar, me mandaram para escola. Ao meu amigo e orientador Professor Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho, que partiu prematuramente, deixando um vazio até o momento, impreenchível, com sua ausência. Serei- lhe eternamente grato. Como ele mesmo dizia: “um dia nos veremos novamente nesse outro caminho que todos um dia iremos trilhar: a morte”. Ao meu segundo orientador, professor Dr. Charles Albuquerque Ponte, por aceitar me orientar depois da morte do meu orientador inicial, e pelas dicas importantíssimas sobre o movimento punk para o meu trabalho. Estava faltando isso e você viu. Obrigado. Aos amigos que fiz durante o curso, que não citarei para não pecar pela falta de algum nome. A UERN que acolhe aos seus visitantes com tanta empatia, e divide conosco um pouco de seus conhecimentos sem fazer distinções. Agradeço enormemente.

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu amigo e orientador o professor Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho que, se estivesse entre nós, estaria felicíssimo com sua conclusão. Ao meu professor do Ensino Fundamental da Escola “Vicente Felizardo Vieira”, no Distrito de Olho D’água do Melão, Ipaumirim - CE, minha terra natal, Raimundo Cavalcante Rolim (Neguinho) que foi quem me pôs no caminho das letras. À minha professora Magnólia Batista, que me alfabetizou, e a Dona Maria Batista (Diretora), que me incentivava a continuar estudando, quando eu mesmo não tinha nenhuma razão para isso. Obrigado.

EPÍGRAFE

A música foi mais sensível às transformações tecnológica, muito mais estritamente ligada a elas do que a maioria das outras artes (exceto, sem dúvida, o cinema). (Michel Foucault)

O rock (muito mais do que antigamente o jazz) faz parte integrante da vida das pessoas, como também é indutor de cultura: gostar de rock, gostar mais de tal tipo de rock do que outro é também uma maneira de viver, uma forma de reagir; é todo um conjunto de gostos e atitudes. (Michel Foucault)

RESUMO

O objetivo deste trabalho é estudar a produção discursiva do Brock - rock brasileiro dos anos 1980 - em letras de músicas das bandas Blitz e Titãs. Nessa perspectiva, serão estudadas a emergência dos saberes na constituição do discurso sobre o Brock, a disciplinarização dos corpos, as relações de poder e a indústria cultural. A base teórica utilizada será a Análise do Discurso (AD) de tradição francesa; os pressupostos teóricos do filósofo francês Michel Foucault, desenvolvidos nos períodos arqueológico e genealógico; e a teoria da indústria cultural. Os principais autores utilizados serão Bakhtin(2006), Baronas(2011), Benveniste, (1976, 1989), Brait (2005), Brandão (2004), Charadeau (2006), Fernandes (2008), Garcia (2004), Mazière (2005), Henry (1992), Mussalim & Bentes (2009), Orlandi (2007, 2014), Possenti (2005), Sargentini & Navarro-Barbosa (2004), dentre outros. A metodologia segue os passos de Foucault, buscando nela, uma aplicabilidade plausível do corpus e suas relações discursivas, através da análise dos saberes e poderes estabelecidos como objetos do conhecimento. O método arquegenealógico não é um método no sentido clássico, se apresenta como um trajeto temático, uma forma não acabada de ler o objeto, mas um ponto vista sobre determinado campo do saber. A arquegenealogia visa estudar o conhecimento a partir de suas relações de saber e poder, observando sua constituição a partir dos micros poderes. Sobre as ideias e o método foucaultiano, as referências utilizadas foram: Foucault (1969; 1970; 1977; 1979; 1987; 1989; 1997; 1999; 2006; 2008 e 2015). Eribon (1996), Fonseca (2003), Deryfus & Rabinow (1995), Fuente, 2003), (Giacomoni, 2010), Gregolin (2003; 2006), Santos (2006; 2007; 2010), Vilas Boas (2002). Sobre a indústria cultural, o texto segue as perspectivas teóricas de Adorno (2002), Adorno & Horkheimer (1969), Teixeira (1980), dentre outros. Desse modo, o corpus desta pesquisa está formado por quatro letras de música das bandas Blitz e Titãs, sendo duas de cada uma e de álbuns diferentes. O Brock - rock brasileiro dos anos 1980, foi um movimento musical cultural e comportamental que emergiu partir de determinadas condições de produção discursiva em que a cultura, a música e a política se entrelaçavam com outros elementos constitutivos, como o movimento punk rock, que tiveram uma relação muito amistosa com a indústria cultural, criando necessidades e produtos para o consumo juvenil. A partir da análise das letras das bandas Blitz e Titãs, das teorias e do método utilizado, concluímos que o Brock emergiu do movimento punk rock, e sua produção discursiva se deu a partir da subjetivação/discursivização do amor, da rebeldia e da política, propiciando o surgimento de uma discursividade que contribuiu para a escrita da história do rock no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Saber-poder. Indústria cultural. Punk rock. Brock. Subjetivação/discursivização.

ABSTRACT

The objective of this work is to study the discursive production of Brock - Brazilian rock of the 1980s - in lyrics of songs by the bands Blitz and Titãs. In this perspective, will be studied the emergence of knowledge in the constitution of the discourse on Brock, the disciplinarization of bodies, power relations and the cultural industry. The theoretical basis used will be the Discourse Analysis (AD) of French tradition; the theoretical presupposed of the French philosopher Michel Foucault, developed in the archaeological and genealogical periods; and the theory of the cultural industry. The main authors used will be Bakhtin (2006), Baronas(2011), Benveniste (1976, 1989), Brait (2005), Brandão (2004), Charadeau (2006), Fernandes (2008), Garcia (2004), Mazière (2005), Henry (1992), Mussalim & Bentes (2009), Orlandi(2007, 2014) , Possenti (2005), Sargentini & Navarro-Barbosa (2004), among others. The methodology follows the steps of Foucault, seeking in it, a plausible applicability of the corpus and its discursive relations, through the analysis of the knowledge and powers established as objects of knowledge. The archegenealogical method is not a method in the classical sense, it presents itself as a thematic path, an unfinished form of reading the object, but a point of view on a certain field of knowledge. Archaegenealogy aims to study knowledge from its relations of knowledge and power, observing its constitution from the micros powers. On the ideas and the Foucault method, the references used were: Foucault (1969; 1970; 1977; 1979; 1987; 1989; 1997; 1999; 2006; 2008 and 2015). Eribon (1996), Fonseca (2003), Deryfus & Rabinow (1995), Fuente, 2003), (Giacomoni, 2010), Gregolin (2003; 2006), Santos (2006; 2007; 2010), Vilas Boas (2002). On the cultural industry, the text follows the theoretical perspectives of Adorno (2002), Adorno & Horkheimer (1969), Teixeira (1980), among others. Thus, the corpus of this research consists of four music lyrics by the bands Blitz and Titãs, two of each and from different albums. Brock - Brazilian rock of the 1980s, was a cultural and behavioral musical movement that emerged from certain conditions of discursive production in which culture, music and politics intertwined with other constitutive elements, such as the punk rock movement, who had a very friendly relationship with the cultural industry, creating needs and products for juvenile consumption. From the analysis of the lyrics of the bands Blitz and Titãs, the theories and the method used, we conclude that Brock emerged from the punk rock movement, and its discursive production took place from the subjectivation/discursivization of love, rebelliousness and politics, fostering the emergence of a discursivity that contributed to the writing of the history of rock in .

KEYWORDS: Discourse. Knowledge-power. Cultural industry. Punk rock. Brock. Subjectivation/discursivization.

RESUMEN

El objetivo de este trabajo es estudiar la producción discursiva del Brock - rock brasileño de los años 1980 - en letras de canciones de las bandas Blitz y Titãs. Desde esta perspectiva, se estudiará la emergencia de los saberes en la constitución del discurso sobre el Brock, la disciplinarización de los cuerpos, las relaciones de poder y la industria cultural. La base teórica utilizada será el Análisis del Discurso (AD) de tradición francesa; los presupuestos teóricos del filósofo francés Michel Foucault, desarrollados en los períodos arqueológico y genealógico; y la teoría de la industria cultural. Los principales autores utilizados serán Bakhtin (2006), Baronas(2011), Benveniste (1976, 1989), Brait (2005), Brandão (2004), Charadeau (2006), Fernandes (2008), Garcia (2004), Mazière (2005), Henry (1992), Mussalim & Bentes (2009), Orlandi (2007, 2014) Possenti (2005), Sargentini & Navarro-Barbosa (2004), entre otros. La metodología sigue los pasos de Foucault, buscando en ella, una aplicabilidad plausible del corpus y sus relaciones discursivas, a través del análisis de los saberes y poderes establecidos como objetos del conocimiento. El método arquegenealógico no es un método en el sentido clásico, se presenta como un trayecto temático, una forma no acabada de leer el objeto, sino un punto de vista sobre determinado campo del saber. La arquegenealogía busca estudiar el conocimiento a partir de sus relaciones de saber y poder, observando su constitución a partir de los micros poderes. Sobre las ideas y el método foucaultiano, las referencias utilizadas fueron: Foucault (1969; 1970; 1977; 1979; 1987; 1989; 1997; 1999; 2006; 2008 y 2015). Eribon (1996), Fonseca (2003), Deryfus & Rabinow (1995), Fuente 2003), (Giacomoni, 2010), Gregolin (2003; 2006), Santos (2006; 2007; 2010), Vilas Boas (2002). Sobre la industria cultural, el texto sigue las perspectivas teóricas de Adorno (2002), Adorno & Horkheimer (1969), Teixeira (1980), entre otros. De este modo, el corpus de esta investigación está formado por cuatro letras de música de las bandas Blitz y Titãs, dos de cada una y de álbumes diferentes. El Brock - rock brasileño de los años 1980, fue un movimiento musical cultural y conductual que emergió a partir de determinadas condiciones de producción discursiva en que la cultura, la música y la política se entrelazaban con otros elementos constitutivos, como el movimiento punk rock, que han tenido una relación muy amistosa con la industria cultural, creando necesidades y produtos para el consumo juvenil. A partir del análisis de las letras de las bandas Blitz y Titãs, de las teorías y del método utilizado, concluimos que el Brock emergió del movimiento punk rock, y su producción discursiva se dio a partir de la subjetivación/discursivización del amor, la rebeldía y la política, propiciando el surgimiento de una discursividad que ha contribuido a la escritura de la historia del rock en Brasil.

PALABRAS-CLAVE: Discurso. Saber-poder. Industria cultural. Punk rock. Brock. Subjetivación/discursivización.

SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 12

2 ANÁLISE DO DISCURSO: AGENCIAMENTOS DE SABER E PODER E A EMERGÊNCIA DOS DISCURSOS NA CONSTITUIÇÃO DA HISTÓRIA 22

2.1 O SUJEITO DO DISCURSO 25 2.2 DISCURSO E HISTÓRIA 30 2.3 A MEMÓRIA DISCURSIVA E SUAS RELAÇÕES COM A CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA 37 2.4 MICHEL FOUCAULT: SUAS IDEIAS E CONTRIBUIÇÕES PARA AD 41 2.4.1 O discurso 49 2.4.2 Relações de saber-poder 53 2.4.3 O poder disciplinar e sua relação com a organização da sociedade 57

3 O MÉTODO ARQUEGENEALÓGICO 65

3.1 O ENUNCIADO 71 3.2 A FORMAÇÃO DISCURSIVA 80 3.3 O ARQUIVO 83 3.4 A GENEALOGIA: CONDIÇÕES DE EMERGÊNCIA DO SABER-PODER 86 3.5 DESCRIÇÃO DOS ENUNCIADOS 94 3.5.1 Categorias de análise 96

4 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO PUNK ROCK: MÚSICA, COMPORTAMENTO E POLÍTICA 98

4.1 OS FANZINES E O MOVIMENTO PUNK 102 4.2 O MOVIMENTO PUNK NO BRASIL: MÚSICA, REBELDIA E POLÍTICA 105 4.3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DISCURSIVA QUE PROPICIARAM O SURGIMENTO DO BROCK - ROCK BRASILEIRO DA DÉCADA DE 1980 109 4.4 ROCK E INDÚSTRIA CULTURAL 119

5 A PRODUÇÃO DISCURSIVA DAS BANDAS BLITZ E TITÃS: SABER-PODER, SUBJETIVAÇÃO DO AMOR/DIVERTIMENTO, DA REBELDIA E DA POLÍTICA E SUAS RELAÇÕES COM A INDÚSTRIA CULTURAL 131

5.1 A BANDA BLITZ: RELAÇÕES DE SABER-PODER, DISCURSIVIZAÇÃO DO AMOR/DIVERTIMENTO E INTERFACES COM A INDÚSTRIA CULTURAL 132 5.1.1 Música: “Você não soube me amar” 134 5.1.2 Música: Weekend 143 5.2 TITÃS: EMERGÊNCIAS DE SABER-PODER, SUBJETIVAÇÃO/DISCURSIVIZAÇÃO DA REBELDIA E DA POLÍTICA E RELAÇÕES COM A INDÚSTRIA CULTURAL 147 5.2.1 Música: “Televisão” 148 5.2.2 Música: “Homem primata” 154

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 160

REFERÊNCIAS 166 ANEXOS 173 ANEXO “A”: LETRAS DE MÚSICAS DA BLITZ 174 ANEXO “B”: LETRAS DE MÚSICAS DO TITÃS 179

12

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O interesse pelo tema das condições de produção do Brock1 - rock brasileiro da década de 1980 - e sobre as teorias selecionadas como possiblidade para análise desse corpus, bem como a escolha do método arquegenealógico e do trajeto temático, foi um acordo tácito entre aluno e orientador. Ambos têm um interesse comum no objeto de estudo e na teoria de base analítica, por acreditar que isso seja de grande relevância social e acadêmica, uma vez que o movimento do rock foi um acontecimento ímpar para o modelo de sociedade que se desejou para as positividades da época. Nesse percurso, compreende-se o Brock não apenas como um movimento musical, mas também como um tipo de acontecimento discursivo que movimentou uma parte do mundo contemporâneo, especialmente, a partir da década de 1960, que inclui a Jovem Guarda, a música de protesto e o Tropicalismo, até a década de 1970 e 1980, quando acontece a emergência dos movimentos punk e do Brock. Esses movimentos estão imersos nas positividades dos governos ditatoriais no Brasil e no mundo, os movimentos pela paz, a intensificação da luta pelos Direitos Humanos contra a segregação racial, a ascensão do movimento pela liberdade, liderado pelas mulheres e outras minorias, a Guerra do Vietnã, tudo isso, foi tema de debate no movimento do rock and roll. Daí sua grande importância para o entendimento da sociedade, da cultura, da economia e do comportamento juvenil nesse período, e seus desdobramentos posteriores na condução da cultura e da música brasileira e do mundo. Pelo fato de o rock ser um tema muito abrangente, escolhemos trabalhar com o Brock, na perspectiva de mostrar as condições de produção do discurso que propiciaram seu surgimento, quanto à constituição de saberes e poderes que produziram uma escrita sobre a história desse estilo musical no Brasil. Trata-se de fazer um mapa arquegenealógico do Brock, mostrando como ele chegou ao Brasil e que desdobramentos, desvelamentos e que movimentos culturais, sociais, comportamentais e econômicos contribuíram para que ele se tornasse, definitivamente, uma música de cunho nacional, ao assumir-se como elemento catalisador da cultura, elo entre aquilo que a juventude desejava para o Brasil em termos de cultura pop e a música voltada, exclusivamente, para um público juvenil e ávido por consumir produtos da era do domínio da técnica sobre o mundo e o homem, e aquilo que se tinha em termos de cultura e entretenimento.

1 Nome dado ao movimento Br. Rock, ou rock brasileiro dos anos 1980, cuja autoria é atribuída a Arthur Dapieve no Livro “Brock – rock brasileiro dos anos 80”. Ver nas referências. 13

A tese desse trabalho é que o Brock – rock brasileiro dos anos 1980, emergiu a partir da subjetivação/discursivização de três elementos centrais; o amor, a rebeldia e a política, que se traduziu em enunciados que discursivizavam a sociedade brasileira, observando o comportamento juvenil, os outros estilos musicais do Brasil como a Bossa Nova, a MPB, o Tropicalismo, a música de protesto e a Jovem Guarda que, de um lado eram retomados em forma de uma memória discursiva ou rejeitavam esses discursos sob a forma de crítica social; de outro, o discurso sobre a constituição e a escrita da história a partir das positividades da década de 1980, uma vez que muitos desses movimentos também tinham uma interface com o rock como o Tropicalismo e a música de protesto, dentre outras. O Brock também tem uma interface com a indústria cultural, em que esse estilo musical se apresenta como uma música comercial, destinada a um público específico numa dada época da história do rock e da sociedade brasileira. No caso do Brock, houve a criação de um público consumidor de músicas, produtos e comportamentos, que culminou com sua ascensão. (GROPPO, 1996). A indústria cultural transforma bens e serviços em formas padronizadas de artefatos destinados ao consumo, de modo que a grande maioria daquilo que se produz, traz as marcas da indústria cultural, até mesmo o punk, que era contra todo tipo de padronização da mídia e dos veículos de transmissão, precisou se adequar a essa realidade, uma vez que mesmo tendo uma ideologia contrária a indústria do entretenimento, todos precisam sobreviver no mercado fonográfico. O Brock é o resultado de um desses processos de subjetivação/discursivização dos meios de produção da indústria do entretenimento. As condições de produção discursiva do Brock emergem a partir de condições sociais, culturais e econômicas bem específicas (DAPIEVE,1996). O que proporcionou seu surgimento foi um jogo de forças que operavam no centro da cultura brasileira, com o surgimento de dois grandes movimentos ligados à música como o punk rock e o new wave (uma variação do punk rock), uma espécie de rock suave, com letras e som menos agressivos, que tinha um padrão mais aceitável e mais ao bel-prazer da indústria fonográfica brasileira, o que proporcionou sua alavancada como positividade da cultura nacional da década de 1980. Para Beras, “O rock and roll como produtor de significados que desafiam a lógica tradicional de entendimento do mundo” (BERAS & FEIL, 2015, p. 13). De acordo com Beras, das muitas teses ligadas ao fenômeno rock and roll, como música revolucionária que surgiu como uma proposta reestruturante da sociedade, para tentar modificar comportamentos e antigos tabus sociais, um tipo de música produziu significados que modificaram de forma radical a sociedade da época. O movimento musical tinha uma lógica própria que se baseava na contestação da sociedade hegemônica, buscando nas fissuras dessa 14

dita sociedade, formas de corroer os antigos padrões e criar novos que estivessem de acordo com a juventude desse período. O rock sempre teve um lado juvenil muito forte, aliás o rock só apareceu porque o mundo se tornara jovem. Nesse contexto, o punk rock foi um movimento musical, cultural comportamental e político que emergiu a partir da década de 1970 no mundo inteiro, tendo suas principais manifestações no Brasil, em meados de 1976. Ele surge como uma espécie de contracultura contestando os elementos constitutivos da sociedade, subjetivando-os à sua maneira. Nas positividades que eram percebidas na música, rejeitavam os padrões do rock progressivo e da música estandarte, destruindo-a para começar do marco zero. Na cultura rejeitavam os padrões sociais ligados aos padrões burgueses. Na política era contra o sistema capitalista e neoliberal, discursivizando um tipo de política que favorecesse a maioria, que desse oportunidade para todos como saúde, emprego e educação. Disso tudo, resultou um movimento autodestrutivo que pretendia reorganizar o mundo a partir de uma anárquica. O movimento do rock brasileiro, na década de 1980 emerge dentro dessas positividades do punk rock. Herdaram dele o amor, a rebeldia e a política, que serão os elementos constitutivos das músicas da maioria das bandas, especialmente as que aqui serão analisadas; duas letras da banda Blitz do Rio de Janeiro e duas da banda Titãs. A escolha se deu pelo fato de se perceber que a produção discursiva do Brock é heterogênea, tendo bandas que se enveredaram pelo trajeto de subjetivação/discursivização do amor/divertimento como a Blitz e os Titãs que subjetivara/discursivizaram com menos predominância o amor/divertimento e manifestando mais em suas letras a questão da rebeldia e da política. O Brock emergiu a partir dessa atitude de rejeição aos padrões sociais de comportamento, bem como ao produto cultural musical predominante no país, a MPB. Muitos jovens da classe médio-alta tentaram, por esse viés do rock, criar uma cultura em que os jovens se vissem, diferentemente do que se tinha antes como conceito de música popular, voltado apenas para a classe social hegemônica. Esse embate vai mudar os rumos musicais no Brasil desde a Jovem Guarda, passando pelo Tropicalismo, a música de protesto até o rock brasileiro dos anos 1980, o (Brock). Sua configuração era esperada assim como se espera um messias, para nortear os caminhos tortuosos que havia no período de abertura para liberdade individual e coletiva, com a saída progressiva da censura política e moral da Ditadura militar. Nesse sentido, o rock no Brasil não é produto do acaso. Ele concorre com aquilo que acontecia no mundo e que estava aqui bem perto de todos, ou pelo menos daqueles que podiam ver e presenciar suas estrelas de rock favoritas. Esse fato é bem curioso, porque fazer rock não 15

foi uma atitude gerada in locus, ou seja, não nasceu no país Brasil2, mas no além-mar, em outro país, onde muitos dos protagonistas do Brock passaram suas férias em Miami, Nova York, Orlando, bem como Londres, França, etc. Essa juventude foi, aos poucos, trazendo para cá produtos que, progressivamente, foi se acostumando ao gosto brasileiro, para não falar do jeitinho. Desde , que vivia junto ao Consulado Americano na Bahia, assim como e que ouviam LPs de Little Richard, Chuck Berry, Elvis Presley, Beatles, Bill Haley and the Comets, dentre outros, até sujeitos bem debochados como Evandro Mesquita e sua filosofia surfista-praieira, de Lobão, o lobo falastrão, a Ritchie, um inglês erradicado no Rio de Janeiro, a Lulu Santos um músico muito talentoso, o rock foi um elemento cultural a mais, que serviu como argamassa reunindo tanto os países como as gerações de cantores de rock aqui e fora do Brasil. O processo que culminou com o rock como música nacional no Brasil demorou quase três décadas de gestação, para poder na década de 1980 surgir o “novo”, a partir de elementos já antes concebidos, como era o caso dos Mutantes, do Raul Seixas, do , do Roberto Carlos, do primeiro rock cópia de Celi Campello e depois, os irmãos Campello, Toni Tornado e tantos outros que já cantavam o estilo no Brasil. Ninguém imaginaria, claro, ter sido um acidente cultural, o que fez com que a Blitz se transformasse em banda de sucesso, quando um grupo de teatro do Asdrúbal Trouxe o Trombone, embora não tanto famoso Circo Voador, resolve abrir espaço para novos talentos que tocavam, ou melhor, ficavam fazendo barulho em instrumentos musicais durante os intervalos de uma e de outra apresentação: Lobão, Evandro Mesquita, Ritchie, Leo Jaime. Numa ocasião de falta de uma atração forma-se do dia para noite, melhor ainda, numa noite de ensaios, uma banda com nome de batida policial. Nesse processo, a Blitz se sobressaiu com “Você não soube me amar”. Quando se pensa em estudos e pesquisas, os trabalhos que analisam o rock no Brasil são poucos. Além disso, a maioria deles trata do tema dentro de outras perspectivas que não a Análise do Discurso, como na área de sociologia, da Filosofia, das Ciências Sociais, dentre outras. Os trabalhos com grande relevância na área do rock brasileiro dos 1980 – Brock – são a dissertação de mestrado de Luís Antônio Groppo, com quem entrei em contato, que me prestou várias orientações por correio eletrônico e enviou seu trabalho para que servisse de base de diálogo, se fosse o caso. Seu trabalho é na área de sociologia, intitulado “O rock e a formação do mercado de consumo juvenil: a participação da música pop-rock na transformação da

2 Vale salientar que desde a colonização, no Brasil se importa tudo, seja da Europa, da África ou mais recentemente dos Estados Unidos, ou seja, no Brasil quase tudo é importado e assimilado à cultura nacional, seja a língua, a cultura, os produtos industrializados, etc. 16

juventude em mercado de consumidor de produtos culturais, destacando o caso do Brasil e os anos 80”, orientado pelo Professor Dr. Renato Ortiz, em que analisa sociologicamente, a formação de um mercado consumidor através do pop-rock como mercadoria de consumo destinada aos jovens. Outro trabalho relevante na área do rock é o de Júlio Naves Ribeiro, pela UFRG, intitulado “De lugar nenhum a bora bora: identidades e fronteiras simbólicas nas narrativas do ‘rock brasileiro dos anos 80”. Nele, o autor analisa a geração de roqueiros da década de 1980 com relação ao simbolismo e a identidade e representação da cena roqueira brasileira, através das narrativas e dos discursos de algumas bandas do Brasil. O trabalho de Daniel Cantineli Sevillano, “Pro dia nascer feliz? Utopia, distopia e juventude no rock brasileiro da década de 1980”, uma tese de doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, analisa os conceitos de utopia, distopia e juventude no rock brasileiro dos anos 1980. Há ainda as referências citadas neste trabalho como o de Vanessa Paniago Mesquita com um texto sobre a produção da identidade juvenil, na área de publicidade e propaganda, e de Aline Do Carmo Rochedo, com o texto “Os filhos da revolução” A juventude urbana e o rock brasileiro dos anos 1980”, uma dissertação de mestrado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pós-graduação em História, que discute a revolução juvenil através da identidade no rock brasileiro e os enfrentamentos com o período da Ditadura militar. Os demais trabalhos nessa área são compêndios e livros que é preciso verificar melhor os argumentos apresentados, uma vez que sua produção é feita por produtores musicais, ex- líderes de bandas, biógrafos e pessoas de interesse na área. O nosso trabalho visa a uma análise mais profunda, no sentido de mostrar os caminhos que o rock percorreu ao longo de sua história, mostrando como se transformou em uma música de cunho nacional e que elementos e estratégias discursivas foram manipulados e movidos para que se tivesse a formação do Brock. Além disso, mostraremos como os discursos das bandas da década de 1980, observados a partir das letras de músicas das bandas Blitz e Titãs se entrelaçam com a escrita da história no Brasil, bem como com a cultura e a musicalidade brasileira. A Análise do Discurso (Doravante AD) que será uma das teorias utilizadas como base para a análise dos enunciados das músicas das bandas Blitz e Titãs, nasceu na década de 1960. a partir de três elementos constitutivos: da Linguística, especialmente como um contraponto às análises feitas do Estruturalismo; do materialismo histórico, advindo de releituras do marxismo feitas por autores como Michel Pêcheux, Louis Althusser, Michel Foucault, dentre outros; da Psicanálise, em que se discursivizou a noção de sujeito, de não-transcedentalidade do sujeito, do sujeito clivado, do sujeito social. Disso tudo, resultou uma teoria que estuda os discursos 17

observando as materialidades linguísticas, o contexto histórico onde os eventos acontecem e o sujeito como agente que, sendo o resultado de um processo de constituição de sentidos por meio da linguagem, é um efeito de sentido. Assim, o objeto de estudos da AD é o discurso como fio condutor de sentido que emerge a partir da prática discursiva advinda do uso da linguagem em situações concretas da língua. O discurso é o resultado de um processo ao mesmo tempo linguístico, social e psicanalítico, quando se observa as nuances de produção do exterior ao uso da língua. Nesse sentido, utilizaremos também as ideias do pensador francês Michel Foucault que nos dará uma dimensão epistemológica de como os discursos sociais são produzidos em determinada época e atua como um fio condutor fluido, que explicam como uma cultura adentra a outra de modo a ser percebida, e depois ser aceita como pertencente para uma sociedade que não a gestou. Nesse projeto de tentar observar como os saberes e poderes se estruturam em cada época, Foucault, com sua arqueologia, faz um distanciamento caraterístico que permite entender a modernidade como uma época em que o homem é ao mesmo tempo sujeito e objeto do seu próprio conhecimento. Essa descoberta vai emergir uma nova maneira de entender como funcionam as positividades de cada período histórico, uma vez que esse trajeto epistemológico feito por Foucault, traz uma revolução no conceito de homem e de objeto, colocando-os lado a lado, em pé de igualdade e permitindo que ambos sejam encarados como entidades analisáveis do ponto de vista do conhecimento. Essa fase foucaultiana foi denominada de arqueológica. Caracteriza-se pelo trabalho com a linguagem e as relações que estabelece com os estados de coisas. Para ele, as primeiras relações do homem com o mundo, que ele caracterizou como Idade Clássica, foi cunhada sob a ideia de representação, em que as coisas e as palavras possuíam uma relação natural, ou seja, havia uma identidade entre as palavras do mundo da cultura dos homens e o mundo da natureza, numa espécie de simetria. Assim aconteceu com a física, com a biologia, a botânica e outras ciências, em que essa realidade se fazia como uma verdade absoluta. Daí por diante a palavra vai ficando cada vez mais distante de sua relação direta com as coisas, passando a se identificar por assimilação e simpatia, maneiras distintas no qual um mesmo signo designará não apenas uma, mas o fato de poder se relacionar com mais de uma coisa, tornando sua relação mais distante. Mais que uma reflexão sobre as palavras e sua relação com as coisas, Foucault faz um corte, uma ruptura com a epistéme clássica, ao protagonizar o homem como o centro do mundo e da linguagem. Foucault reclama para si a ideia de introduzir os humanos nos conceitos de coisas do mundo, pois para ele “natureza e natureza humana se intercruzavam, mas não havia 18

uma ‘ciência do homem’” (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. 23). Segundo Foucault, o homem deveria ser o cerne da questão da linguagem, por isso, em As palavras e as coisas se tem o nascimento do homem moderno, que para ele tem poucos mais de dois séculos, quando se o observa partir da ideia de que ele é feito de linguagem. Quando a arqueologia não dá mais conta dos saberes e suas articulações com outras formas de saber, dentro de um conceito de modernidade, do homem não transcendental e dono absoluto do saber, Foucault muda seu foco, tendo Nietzsche e as teorias da Nova História como seus limites teóricos na conceituação de uma genealogia do mundo, das coisas e dos seres humanos. Foucault passa a dar interesse primordial às relações que ele chamou de micro poderes, quando traça duras críticas aos marxistas, por acreditarem em uma teoria geral da sociedade, dividindo-a em apenas duas classes, observando as coisas e os seres humanos de maneira maximizada, deixando de lado as micro relações que se estabelecem nas microrregiões dessa sociedade, em que o poder é distribuído entre seus sujeitos, que o estado não é aquele que detém todo o poder, mas ele existe somente em função daqueles micropoderes que são assimilados pelos sujeitos sociais. Nesse sentido, uma análise não anula a outras, mas complementam. Foucault faz uma trajetória que observa os castigos corporais e a docilização do corpo através do poder disciplinar (Vigiar e punir), paulatinamente, transferidos para os códigos de conduta, as leis, os estatutos e pelo formato arquitetônico das estruturas sociais e governamentais. Isso tudo protagoniza uma sociedade disciplinada e vigiada pelas relações dos micropoderes com seus indivíduos. Todos os elementos constituem o corpo social e passam a serem docilizados pela própria cultura, ou seja, tudo que se faz, se usa e se consome, possui uma realidade que produz verdades, e fazem com que seus sujeitos façam e ajam da forma como essa sociedade se torna estruturada. Essas teorizações de Foucault vão ao encontro da indústria cultural3, que cria realidades, desejos e formas de consumo para que a sociedade continue evoluindo e tornando tudo acessível a seus sujeitos. Entretanto, esse conceito de consumo é feito através de estratégias discursivas, em que o corpo é subjetivado para o consumo de produtos que geram desejos e ansiedades, que fazem parte do repertório cultural que todos devem ou deveriam aderir para consumir, sem que isso seja ao menos uma necessidade latente. As relações de poder que se estabelecem entre a indústria, a docilização do corpo do sujeito e as estruturas sociais formam um tecido discursivo

3 Embora as duas formas teóricas sejam contrárias do ponto vista da análise e da ideologia, ambas tratam de forma tentacular de como o discurso sobre a sociedade é visto. Foucault ver as coisas a partir das relações com sua genealogia e arqueologia, ou seja, a sociedade é vista por baixo. A teoria da indústria cultural é neomarxista, vê as coisas por cima, observando como se comporta a sociedade vista de cima. 19

em que as formas de manipulação daí oriundas, são maneiras de manter a sociedade adestrada, dócil e útil, já que o capital e os capitalistas lucram muito com essas ideias. Foucault criou objetos teóricos e formas de análises próprias, de acordo com o andamento de suas pesquisas. Seus métodos eram totalmente diferentes, pois buscava a compreensão da sociedade de forma diferente das análises propostas pela corrente da história tradicional e das filosofias reinantes de sua época. Ele conseguiu adequar suas teorias e análises sobre a sociedade, o homem a cultura de forma a contemplar análises que observassem a sociedade em seus pequenos detalhes, propondo microanálises de quase todo tipo de corpora, interpelando o mundo das ideias a concordarem com o mesmo, embora sua forma de trabalho e sua filosofia sofram duras críticas pela forma como veem e analisam os objetos teóricos por ele criados. Isso implica dizer que as críticas dirigidas ao autor também serão nossas críticas, uma vez que esse trabalho seguirá os passos dele e tentará fazer o mesmo tipo de análise, embora a um corpus diferente, mas de alguma forma, retoma seus passos, já que iremos analisar dados da cultura que são de outra época, que é a configuração, o estabelecimento e a estabilização do movimento rock and roll no Brasil, o Brock. A maneira como dispusemos a organização do trabalho e o direcionamento que se dará segue uma mesma linha que Foucault nas análises, embora tenhamos dividido este em capítulos, para melhor entendimento do leitor. Isso porque um leitor de Foucault perceberá que suas análises são muito amplas e seus objetos de análise são muito díspares, de modo que ele poderia fazer uma análise do poder através no neoliberalismo alemão e americano, mostrando as marcas desse poder em outros segmentos sociais de maneira bem vasta, em que seus trabalhos são bem difíceis de serem compreendidos, mesmo num conjunto repetido de leituras. Para a arquitetura deste trabalho faremos uma sequência que, inicialmente, faz de revisão das teorias visitadas, uma incursão nas ideias e métodos do autor, uma descrição panorâmica do corpus e uma seleção categórica das músicas e das bandas do movimento Brock para serem analisadas. Além disso, na seleção das músicas, se optou por aquelas que ganharam maior visibilidade na mídia radiofônica e televisiva, com o intuito de tornar mais acessível às formas de análise, bem como tornar essa mesma análise mais plausível do ponto de vista da possibilidade de se poder fazer uma interpretação mais próxima das teorias e ideias do autor. Dito isso, logo no segundo capítulo, trataremos da síntese histórica da Análise do Discurso de tradição francesa, seus principais pressupostos teóricos, seus desdobramentos e, por vezes, comparações com outras formas de fazer análise a partir da materialidade discursiva. Nela também detalharemos pontos importantes que servirão de base para a análise do corpus como o sujeito do discurso, a formação discursiva, a relação do sujeito com a memória e a 20

história e com o arquivo. Também fizemos nesse capítulo, as contribuições de Foucault para Análise do Discurso com as noções de discurso e relações de saber-poder e de docilização, que é um termo criado pelo próprio autor, a partir das incursões que o mesmo fez sobre a disciplinarização da sociedade, por meio de procedimentos e estratégias discursivas de subjetivação/discursivização e distribuição das condições de possibilidade de emergência dessas relações de poder. Logo após, no terceiro capítulo, discutiremos a questão da metodologia, em que mostraremos como se fará as análises e como se procederá. Como se trata do método arquegealógico, que trata tanto da análise arqueológica quanto a genealógica, fizemos a exposição dividida do método: primeiro faremos uma descrição teórica do método arqueológico e seus procedimentos de análise como o enunciado, a formação discursiva, a noção de arquivo e como será feita a descrição das músicas, sua seleção e como serão analisadas. Nesse mesmo capítulo, tratamos do método genealógico e como se faz análise a partir dele, observando as noções de história, as estratégias de saber e de poder e relações de micro e macro poderes. No quarto capítulo faremos uma discussão panorâmica do punk no mundo e no Brasil. Abordando as condições de produção do discurso sobre a emergência do punk, quais fatores foram preponderantes para que essa positividade tenha se tornado um saber sobre a sociedade. No percurso, mostraremos a importância dos fanzines para o movimento punk e as condições de possibilidade do discurso sobre a emergência do punk no Brasil, bem como faremos uma relação entre o rock e a indústria cultural. Falaremos de forma breve e panorâmica da possibilidade de surgimento do rock no Brasil, seus principais movimentos desde a Jovem Guarda, considerado movimento de importação de cultura americana, bem como seus movimentos seguintes, até chegar ao rock brasileiro dos anos 1980, o Brock. Este, por sua vez, já será considerado uma música de caráter nacional, uma vez que é nessa fase que o rock assume um padrão social e comportamental condizente com seu país, bem como uma atitude responsiva com a cultura, com a música e a sociedade brasileira. O Brock é o amadurecimento do rock no Brasil, através da subjetivação/discursivização dos elementos constitutivos do punk que lhe foi precursor. ‘ Na sequência, o último capítulo traz as análises. Antes, faremos uma breve trajetória discursiva da Blitz e depois dos Titãs, mostrando, através das letras de músicas selecionadas tanto da Blitz como dos Titãs, o discurso que propiciou o surgimento do Brock, a partir de um conjunto de estratégias discursivas de subjetivação/discursivização do amor/divertimento, da rebeldia e da política. Nessa mesma perspectiva, mostraremos as relações de saber e poder que estruturam os discursos sociais sobre música, cultura, sociedade e política, que se entrelaçam 21

com a escrita da história do Brock e quais interfaces da indústria cultural atuam como catalisadores desse movimento musical e a criação de um público consumidor juvenil na década de 1980 para a sociedade brasileira. Por fim, também mostraremos como o Brock se instala como um movimento que atua como elemento que possibilitará a escrita da história do Brasil e da história da música e da musicalidade brasileira. Além de mostrar as compatibilidades analíticas entre a teoria e o corpus, dentro daquilo que a teoria e o método proporcionam, e os possíveis desdobramentos do Brock para a configuração dos movimentos musicais posteriores, como sendo referência obrigatória para o rock dos anos 1990 e 2000, bem como outros movimentos musicais que vão se utilizar desses espaços abertos pelo Brock para a configuração e estruturação de outros estilos musicais.

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2 ANÁLISE DO DISCURSO: AGENCIAMENTOS DE SABER E PODER E A EMERGÊNCIA DOS DISCURSOS NA CONSTITUIÇÃO DA HISTÓRIA

A AD, de tradição francesa, surge na década de 1960, quando na época, se encontrava entrelaçada por uma série de debates sobre o estatuto das ciências humanas e sociais. Isso acontecia desde a construção e configuração de objetos teóricos, metodologias gerais e específicas e a desconstrução de paradigmas, que eram as formas teóricas e metodológicas do estruturalismo4. Essa base teórico-prática com análises exaustivas apenas das estruturas, já não mais servia como modelo para as atuais estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais de um lado, e de outro, o lançamento de novas leituras e releituras para a formulação de uma teoria geral, que desse conta das novas formas que se propunha para a modernidade5. As discussões sobre o marxismo e o Partido Comunista Francês deram aporte para a formulação tanto de novos embates, quanto na configuração de uma nova realidade teórica para encarar os desafios propostos para se pensar a realidade discursiva da época. Dessa forma, se percebeu que as teorias anteriores como o estruturalismo, já não davam conta do cenário social e cultural, como o famoso verão de 1968, a desconstrução de padrões familiares ligados aos patriarcalismos, o nascimento da cultura pop e das novas formas de comunicação cultural exigiam que houvesse uma mudança na mentalidade. Michel Pêcheux, fortemente influenciado pelas discussões sobre o marxismo, o materialismo histórico e a ideologia, preocupava-se com uma teoria geral que fizesse emergir uma máquina do discurso que contemplasse as teorias linguísticas, o discurso social e a política. Sua preocupação na condução do Partido Comunista e nos debates políticos que giravam em torno da esquerda francesa, fez com que, pouco a pouco, ele abandonasse a noção de estrutura imanente, derivadas do estruturalismo e do positivismo, para uma preocupação com a exterioridade do discurso e seus efeitos na leitura dos discursos políticos do período. Essa mudança para a concepção de uma teoria que desse conta da exterioridade do discurso e não apenas do sistema linguístico6, abstrato e arbitrário, fez com que novas formas de pensar as

4 Movimento teórico que predominou do início do século XX a meados da década de 1960, quando este já dava sinais de sua ineficiência e o não atendimento como teoria para explicar os fenômenos que se apresentavam para o período. O fato de se buscar explicações mais plausíveis para explicitar e discutir questões relativas à sociedade e a cultura em geral, o estruturalismo começou a perder terreno para as teorias sociais, que tentavam mostrar a sociedade por um viés de suas práticas sociais e discursivas e pelas instituições que constituíam seu tecido social. 5 O conceito de modernidade utilizado aqui e em diversas partes do texto é o de Zygmunt Bauman, segundo a 6 Aqui, vale salientar que, a AD não desconsiderava a língua como sistema, pois ela era necessária à produção de sentidos. O que não se admitia, ou pelo menos não era uma preocupação urgente, era o estudo do sistema interno da língua e suas particularidades, como já havia sido exaustivamente estudado pelos Estruturalistas e Gerativistas. A preocupação com a exterioridade precisava de novos dispositivos teóricos e metodológicos, ancorados por um viés social, cultural, econômico e político. 23

positividades da década de 1960, para que emergissem, não por uma espontaneidade ingênua, mas por um trabalho exaustivo de compreensão da sociedade, tanto na sua configuração cultural, econômica, política e do discurso que a fundamentava. A modernidade aparece com suas mudanças mais sensíveis aos eventos históricos, necessitando de novos aportes teóricos, que mostrassem a sociedade do pós-guerra de maneira mais plausível. Assim, atendia às novas exigências do mundo, o que era imperioso se pensá-la dentro de um viés que contemplasse, pelo menos inicialmente, em sua totalidade ou em parte, uma sociedade que contestava suas antigas raízes e buscava novas formas de compreensão do mundo e da realidade que os envolvia. Novos objetos teóricos são criados para se dá mais ênfase as discussões sobre a sociedade como o discurso, à enunciação e às formações ideológicas. O discurso passa a ser o grande condutor das teses propostas, de modo que importava mais, saber o que o discurso deixava ser visível do que sua análise linguística. A escolha de discursos para serem analisados em sua exterioridade, em sua substancialidade, na sua relação com outros discursos e com as instituições sociais e, consequentemente, com o sujeito social, era uma das formas de tentar compreender como se comportava a sociedade da época. O entendimento de como o discurso se materializava na conjuntura social, e seus efeitos de sentido para essa sociedade, era umas das formas de apreender e compreender a realidade social, uma vez que se buscava mais o sentido do que sua estrutura. Muitos autores contribuíram para essa formação inicial da AD. Jean Dubois, lexicólogo, introduz o termo enunciado7 em oposição à palavra, entendendo que esta estava ligada ao princípio de forma estrutural imanente, semântica e estruturalmente, deixando analisar apenas como um elemento da linguística e não da cultura, da história e da sociedade e, consequentemente, não social, não sendo passível de uma configuração externa. O enunciado, por outro lado, era social, tinha uma forma estrutural apenas como suporte linguístico, porém, estava envolvido pela cultura, se desdobrava em outras formas de efeitos de sentido, carregando em suas especificidades, as vivências dos seus sujeitos sociais, as materialidades da cultura e os sentidos por ela conduzidos.

7 Esse termo não possui a mesma configuração em fases posteriores da AD. Com a Arqueologia do saber, Michel Foucault dará a ele um estatuto social mais amplo, pois para esse autor o enunciado se deferência de frase, proposição, etc. Podendo assumir outras formas que não só contemplem a linguagem verbal e não verbal, mas também os quadros, as pinturas, as propagandas e imagens de modo geral, os sons caraterísticos de suas formas de poder, comercialização, mídia, música, etc. Dessa forma, o enunciado se tornou mais abrangente no sentido de contemplar todas as formas de comunicação por meio das diferentes formas de linguagem. Ver mais no capítulo sobre 24

O primeiro texto publicado com o nome “Análise do Discurso”, foi de Zellig Sabbetai Harris, no qual a palavra discurso aparece pela primeira vez, intitulado Discourse analysis, de 1952, ligado à corrente americana dos estudos sobre a distribuição dos constituintes imediatos da frase e tem cunho imanente, já que se limitava ao estudo da estrutura interior do texto, sua constituição interna e uma preocupação com o sistema linguístico. Embora muito frutífero, seu trabalho sobre os constituintes imediatos da frase e do texto, se prende muito ao sistema linguístico, operando com variantes internas ao texto. De outro lado, a AD de linha francesa que não descarta o estudo do texto, amplia este estudo colocando também como preocupação os fatores exteriores ao texto, que devem ser levados em conta na hora da análise linguística. Outro autor que contribuiu para a fundação da AD foi Michel Pêcheux que, preocupado com a epistemologia de sua fundação, se envereda pelo campo da reformulação do “corte saussuriano”, dando à parole um estatuto social, colocando-a no campo do discurso, em que se articulava o linguístico e o social, mostrando o linguístico como uma estrutura condutora de sentidos e o social como a construção desse sentido. Além disso, propõe uma integralização dos campos teóricos para a criação de dispositivos de análise de discursos, buscando as condições de produção desse discurso e os processos discursivos oriundos dessas análises. A AD foi também fortemente influenciada por Louis Althusser, um autor que fazia releituras dos textos de Marx, sendo o primeiro marxista crítico da teoria crítico-reprodutivista e da sociedade capitalista. Althusser orienta sua tendência discursiva para a leitura e interpretação do Manifesto Comunista (MARX & ENGELS, 1848), propondo uma teoria não subjetiva do sujeito, em que este era interpelado pela ideologia e tornando-se assujeitado. Essa postura levava em conta o fato de o sujeito não ser dono de seu discurso, sendo apenas o atualizador da memória social, ao resgatar por meio de dispositivos mnemônicos da sociedade novas significações no campo das estruturas sociais. Assim, “decorre do fato de discurso implicar uma exterioridade à língua, ser apreendido no social, cuja compreensão coloca em evidência aspectos ideológicos e históricos próprios à existência dos discursos nos diferentes contextos sociais” (FERNANDES, 2008, p. 8). Nessa etapa de formação da AD, o sujeito não é a “falsa consciência” de si, mas a relação dele com as condições reais produção de sua existência, ou seja, ele é interpelado como sujeito pela ideologia. Entretanto, ela se materializa nos Aparelhos ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1970), a relação do sujeito com sua existência material frente aos discursos das instituições sociais. A ideologia não é arbitrária, mas orgânica e necessária ao funcionamento da sociedade, pois ela determina as condições de produção da vida social no seu entrelaçamento 25

com a língua. O sujeito é o efeito do assujeitamento ideológico. Dessa relação, Pêcheux cria as condições de produção do discurso. Outro autor que contribuiu para a formação inicial da AD foi professor/filósofo/pesquisador Michel Foucault. Para ele, o discurso é uma prática que provém da constituição dos saberes e de sua articulação com as práticas discursivas. Esses saberes geram poder que se articulam dentro de formações discursivas, em que se entrelaçam discursos de natureza diversa, que convergem e divergem, sendo selecionados por seu campo enunciativo8, no qual cada um se agrupa e se repele por aquilo que possui de identificação no campo do saber-poder. Isto significa que os discursos se agrupam por sua identidade, ou seja, cada discurso se articula àquele que lhe faz simpatia e disso, nascem os discursos sobre a loucura, a psicopatologia, a sexualidade, a música, etc. Assim, no discurso, segundo Foucault, se articulam as noções de saber e poder, que são o resultado das práticas sociais e dos sujeitos envolvidos. O discurso é prática e isso lhe antecede qualquer princípio de imanência. Ele nasce do homem que vive em sociedade e que determina o seu lugar social, sua identidade e seu status de sujeito. Nesse sentido, para Brandão (2004, p. 16), a AD “inscreve-se em um quadro que articula o linguístico e o social, a AD vê seu campo estender-se para outras áreas do conhecimento e assiste a uma verdadeira proliferação dos usos da expressão ‘análise do discurso”. A análise do discurso tenta unir em seu esboço teórico, o linguístico em termos saussurianos e o social, isto é, incluir em sua análise, as construções sociais que usam a linguagem no seu dia a dia. O termo discurso sugere não só um sistema linguístico regido por regras que lhe são próprias, mas por um conjunto complexo e multifacetado de elementos de outras disciplinas como a sociologia, a história, o direito, a psicanálise, dentre outros. A ideia central é ampliar a visão dos elementos linguísticos do sistema defendido por Saussure, com a teoria social do discurso, ou seja, investigar como os discursos produzidos por meio da língua na sociedade influenciam na constituição da própria sociedade, do sujeito e da própria evolução da língua.

2.1 O SUJEITO DO DISCURSO

Uma das teses centrais da AD é que as teorias anteriores, por não tratarem da história e da sociedade, acabaram por retirar as discussões sobre o sujeito. Isto porque as teses do

8 O campo enunciativo é local onde se desenvolvem as práticas discursivas dos sujeitos sociais. Nesse campo teórico, o discurso se estrutura em torno de uma formação discursiva que organiza os discursos sob determinado aspecto, criando assim, os objetos teóricos e do conhecimento. 26

estruturalismo e do positivismo não deixaram claro que espécie de sujeito se estava falando ou criando. Na realidade, esses movimentos teóricos tentaram mostrar a sociedade através de uma visão geral e científica, em que os objetos sociais foram criados com a intenção de compreender a sociedade nos seus detalhes mais característicos relativos às instituições e seu papel doutrinador, os fatos sociais e sua relevância na organização da sociedade capitalista, não havendo espaço para discussões sobre aquele que produzia o discurso. Assim,

Importa o sujeito inserido em uma conjuntura social, tomado em um lugar social, histórica e ideologicamente marcado; um sujeito que não é homogêneo, e sim heterogêneo, constituído por um conjunto de diferentes vozes. [...] as noções de polifonia, heterogeneidade e identidade também constituem objeto de reflexão e são necessárias para se compreender o que chamamos de sujeito do discurso. (FERNANDES, 2008, p. 8-9).

O resgate de Freud9 e o inconsciente pela AD é uma das formas de mostrar que o sujeito é constituído pelo discurso, que se mostra não como um corpo homogêneo, mas heterogêneo, clivado pelas estruturas sociais, atravessado pelos discursos e assujeitado pela ideologia. Nessa busca pela exterioridade do discurso, o sujeito aparece como forma resultante do processo de enunciação, como um efeito de sentido, abandonando-se as formas do sujeito antropológico e transcendental para dar lugar às formas empíricas de configuração, do ser no mundo como uma forma de linguagem. O sujeito assume um lugar no discurso como forma-sujeito, como uma entidade resultante da prática discursiva, efeito das relações entre a linguagem, a sociedade e as instituições sociais. Dessa forma, o sujeito é formado pelo conjunto de diferentes vozes no meio social. Não se procura o sujeito no seu início mítico ou mesmo na sua gênese, no sentido de quem falou primeiro, mas pelo conjunto heterogêneo de vozes e da polifonia (BRAIT, 2005), que caracteriza o sujeito como uma forma multidisciplinar e multifacetada pelo discurso social. Como uma categoria social, o sujeito não é apenas um ser biológico, mas um ser principalmente de linguagem e resultado dos seus efeitos de sentido. Para Mazière (2007, p. 12), “o sujeito falante do analista de discurso é agente por conta de um manejo do saber epilinguístico, capacidade natural de falar a própria língua, sem referência erudita”, ou seja, a capacidade de falar em língua simples, natural, cotidiana faz com que ele seja um analista e agente do próprio

9 Até as descobertas de Freud, o sujeito não era compreendido como uma entidade dividida entre o id, ego e superego, em que cada um deles manifesta um tipo de sujeito. Logo, o sujeito não é único, nem transcendental. Ele é clivado e atravessado por outros discursos que contribuem para a formação do sujeito social, ou seja, o sujeito se insere em uma estrutura social, marcado pela ideologia e atravessado por diferentes vozes que emanam da sociedade. 27

saber, manejando e o articulando de acordo com o que lhe propõe os discursos sociais. O discurso lhe oferece a possibilidade de atribuir-lhe sentidos diversos, sem a preocupação normativa do saber dicionarizado. O sujeito se aproveita de seu saber intuitivo sobre a língua e suas possibilidades de sentido e os exerce como um ser feito de linguagem e engajado da construção do saber e do poder social, já que o mesmo sabe que o domínio desses saberes implica em poder, o discurso também como poder. Segundo Fernandes, “o sujeito não é homogêneo, seu discurso constitui-se do entrecruzamento de diferentes discursos, de discursos em oposição, que se enganam e se contradizem” (FERNANDES, 2008, p. 24). Essa concepção de sujeito da AD contradiz, primeiramente, o tipo de sujeito que era teorizado em teorias estruturais, segundo as quais o sujeito ou não existia, era homogêneo, dono de seu dizer e autoconsciente, resultado de visões antropológicas e transcendentais. Entretanto, para este viés teórico, o sujeito ocupa um lugar, uma posição, assumindo diferentes configurações teórico-práticas, uma vez que sendo heterogêneo, participa de uma série de discursos outros que se contradizem e se anulam, já que a posição assumida pelo sujeito do discurso na AD se constitui por vários tipos de discurso, no qual pode assimilar e rejeitar os discursos sociais, até o ponto de resultar em sua identidade materializada no discurso entrecruzado por diversas vozes de outros sujeitos do meio social. Nesse sentido, o sujeito não é único, possui diferentes posições no interior do discurso, ou seja, dentro de cada formação discursiva há várias vozes, nas quais o sujeito se posiciona frente a determinados discursos, de modo que cada uma delas assume um lugar diferente. Isso se deve ao fato de o discurso proporcionar a visibilidade do sujeito pela linguagem, envolvido pela história e pela ideologia. A história, nesse sentido, não aparece como aquela que, tradicionalmente contínua, mostra os grandes feitos a partir de discursos bem constituídos como o das identidades nacionais. Segundo Foucault, a história se caracteriza por sua descontinuidade10, vista a partir dos objetos constituídos pela linguagem, as relações de poder atravessados pela prática discursiva e o sujeito como deslocado, disperso, um efeito de linguagem.

10 Conceito criado e desenvolvido por Foucault para mostrar os desvios históricos, as transformações e movências de sentido que não aparecem na história oficial. Com o conceito de descontinuidade, se observa o desaparecimento de uma positividade em determinada época, e a emergência de outra através da observação dos diferentes sistemas de formação de saber e poder, como por exemplo, a multiplicidade de discursos que levaram Foucault a pensar a História da loucura na Idade Clássica e o Nascimento da clínica. Esse termo abrange uma série de coisas ao mesmo tempo. Pode ser uma operação como resultado de uma descrição, um conceito e um instrumento que permite ao historiador transformar o documento em monumento. Através da descontinuidade, se permite ao historiador questionar a escrita da história oficial e mostrar outra forma de ler o monumento percorrendo as pistas deixadas por ele, que se apresenta pelos rastros deixados pelo homem em sua prática discursiva.

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A noção de sujeito em Foucault difere daquele sujeito cartesiano dono do seu saber e consciente de suas ações. O sujeito deixa de ser um artefato mecânico e autônomo, no sentido de conhecer sua função na representação do mundo, e passa a se constituir pela linguagem e pelas relações de saber e de poder, ou seja, um sujeito descentrado e disperso. Quanto à noção de descentramento e de dispersão operadas por Foucault, se entende que o sujeito é um efeito de linguagem e constitutivo, ou seja, não é completo e está sempre em constituição pelo fato de assumir sua subjetividade a partir de lugares sociais diferentes. Nessa concepção, o sujeito só se completa na linguagem e pelas posições sociais que ele assume enquanto um ser constituído de discurso, de modo que o discurso se configura como o espaço da constituição do sujeito nas diversas relações que se estabelecem na sociedade. Segundo Foucault:

as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. (FOUCAULT, 2008, p. 61).

Na prática discursiva, segundo Foucault, nas diversas modalidades enunciativas, o sujeito não é unificante no sentido de todo o saber e poder, mas ao contrário, é justamente no discurso que se opera sua dispersão, a posição assumida por ele nos diversos lugares sociais. Nesse sentido, o sujeito é constituído pelo discurso e também dele, não há uma linearidade que determina quem vem de quem, é uma atividade dialógica. O sistema de pensamento que opera a emergência do sujeito no e pelo discurso, caracteriza-se por um conjunto de relações estabelecidas a partir de uma prática discursiva, que em face de uma materialidade, determina o lugar do sujeito no discurso e como ele se institui enquanto um efeito de sentido. Neste sentido, a prática discursiva é

antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade. O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. (FOUCAULT, 2008, p. 61).

Para Foucault, a prática discursiva é o campo das regularidades e das possibilidades de dispersão do sujeito, e não um campo homogêneo que determinaria sua unidade. O sujeito em cada discurso se insere em determinado campo da atividade humana, que sua vez se estabelece 29

em uma formação discursiva dada. Nessa tensa rede de relações, o sujeito assume uma posição, a qual determina seu status, sua identificação e classificação dentro dos aspectos discursivos da linguagem. Na concepção foucaultiana, o sujeito é tanto sujeito como objeto do conhecimento. Como sujeito, é uma constituição a partir do discurso e das relações de saber e poder, nesse sentido, o sujeito é constitutivo; como objeto, obedece às mesmas regras de formação de objetos constituídos pela linguagem. A materialidade do discurso não separa os objetos, suas formações levam em conta os discursos que produzidos socialmente. Para uma maior autonomia do sujeito sobre o objeto, como foi dito anteriormente, o sujeito precisaria ser autônomo e consciente, mas para Foucault o sujeito é descentrado e disperso, sua constituição deriva pelo fato de ele se constituir a partir de um lugar social determinado, assim como os objetos. Existe uma supervalorização do discurso como constitutivo do conhecimento, do saber e do poder. Essa concepção do sujeito do discurso como descentrado, no sentido dele ser constituído pelas práticas de linguagem na sociedade, diz respeito também ao fato de que a sociedade produz discursos que são assimilados ativamente pelo sujeito do discurso que se constitui na sua constituição identitária. Nas práticas discursivas, o sujeito constitui e se deixa constituir pelos discursos veiculados socialmente. Isso pode se dar em formas de manipulação, alienação e construção e desconstrução de novos efeitos de sentido na/pela linguagem. A vida social é regida pela linguagem em suas diferentes interfaces, e o sujeito é o efeito delas, sem que isso resulte em algo determinante, mas determinado pelas práticas que a sociedade institui como formas de veiculação, de comunicação e institucionalização de formas discursivas que aí se produz. Para Fernandes,

O sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo; [...] um sujeito que tem existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história e não tem outro. A voz desse sujeito revela o lugar social; logo expressa um conjunto de outras vozes integrantes de dada realidade história e social; de sua voz ecoam as vozes constitutivas e/ou integrantes desse lugar sócio-histórico. (FERNANDES, 2008, p. 24).

Para Fernandes, o sujeito é apreendido em um espaço que ele divide com os demais sujeitos sociais, de forma que os discursos veiculados e produzidos socialmente atravessam a todos indistintamente, fazendo com que este se integre a vida social e seja considerado um corpo social, e como tal, socialmente constituído, tendo seu espaço preenchido social e ideologicamente em determinado momento histórico. A constituição do sujeito discursivo surge na interação com os outros participantes da vida social e ideológica, que se situam em um dado 30

momento histórico e social. A voz desse sujeito discursivo determina seu lugar social e sua posição frente aos demais, mostra sua identidade, seu ethos11 e o campo dos saberes do qual faz parte e dele participa ativamente. A marca do sujeito no discurso é sua voz num dado momento da história, que faz emergir as marcas de outros sujeitos que o constituem, que com ele também participam da formação do discurso que estruturam as instituições e a sociedade. Para entender como o sujeito se materializa dentro do discurso histórico e como isso faz emergir novas formas de se ver e observar a história oficial, na seção seguinte se discutirá como o discurso e a história se imbricam na formação de saberes e poderes como práticas constituintes da história e do sujeito do discurso.

2.2 DISCURSO E HISTÓRIA

A constituição e a escrita da história para a defesa desse trabalho são feitas a partir das ideias de uma história vista por um viés da “École de Annalles”, segundo a qual se rejeita os discursos e paradigmas da história tradicional e oficial, que se preocupava apenas com a história linear, com seus grandes heróis, mitos e feitos grandiosos, observando somente uma parte da história da sociedade, sem ter uma preocupação da escrita de outros fatos igualmente importante no campo de batalha da história. Nessa perspectiva da Nova História, a história é vista por baixo, observando-se fatos menores, heróis menores, pequenas histórias, como um fato histórico ou outro evento social carregado de sentidos, que é tratado como um monumento a ser escavado pelo pesquisador; o fato ou evento nunca está pronto e acabado, sempre há algo para dizer sobre ele. Para a constituição de uma nova história percebe-se

também uma mudança, entre os historiadores econômicos, de uma preocupação com a produção para uma preocupação com o consumo, mudança esta que cria uma dificuldade crescente na separação entre a história econômica e a história social e cultural. (BURKE, 1992, p. 8).

O número de historiadores cresceu muito durante o século XIX, que passaram a competir com outros tipos de fazer história devido à fragmentação da mesma. A história econômica, por exemplo, passou da preocupação com a produção para o consumo, não sendo possível separar esse tipo de história social da cultural. A história política também se dividiu,

11 Segundo Charaudeau e Maingueneau esse termo usado pela AD foi tomado emprestado da Retórica, significa personagem e designa a imagem discursiva que o locutor constrói de si para exercer influência sobre seu alocutário. Na AD é usado como referências as modalidades verbais de apresentação de si na interação verbal.

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de modo que passou a existir uma preocupação também com os micro poderes da escola, da fábrica, do sindicato, da , etc. Tudo isso representa uma crise de identidade no campo político. Segundo Peter Burke, a Nova História é uma reação à história tradicional e aos historiadores profissionais, que pode ser resumida em seis pontos: primeiro, pelo paradigma tradicional, a história diz respeito à política, enquanto para a Nova História toda atividade humana é interessante e culturalmente construída; segundo, a história do ponto de vista tradicional é uma sucessão de acontecimentos, mas para a Nova História, a análise das estruturas sociais; terceiro, a história tradicional oferece uma visão dos grandes feitos dos homens vistos de cima, a Nova História vê as coisas de baixo, observando as opiniões das pessoas comuns; quarto, a história tradicional se baseia em documentos oficiais, a Nova História mostra as limitações desses documentos e outras fontes não oficiais; quinto, a história tradicional está preocupada com movimentos coletivos, a Nova História com os individuais; sexto, para os tradicionalistas a história é objetiva e reflete uma realidade tal qual, enquanto para a Nova História, existe um relativismo cultural que em nossas mentes não refletem a realidade como ela é. Nesse sentido, a Nova História está associada às figuras de Lucien Febvre e Marc Bloch, mas ao lado deles outros homens contribuíram na luta contra os tradicionalistas. Esse nome Nova História, vem sendo usado desde 1912, mas ele remonta antes de Cristo. Sociólogos como Auguste Comte, Herbert Spencer e Karl Marx eram muito interessando na Nova História. Ela enfrenta problemas com relação à definição dos objetos que manipula e as atividades humanas do cotidiano (rotinização). Os maiores problemas para os novos historiadores são relacionados às fontes e aos métodos. Tem-se procurado fontes na história oral, nas imagens, nas estatísticas e em novas formas de ler os documentos oficiais. A história tem que ser repensada, tendo que ampliar sua explicação em áreas que outrora não era sua preocupação, como as ciências sociais. Tem-se tentado fugir da história linear e buscar explicações em campo mais amplos e com pessoas comuns, buscado também novas formas de adequar a história às teorias que mais se sobressaíram em determinadas partes do planeta, como a psicanálise nos Estados Unidos e o nazismo na Alemanha. Para não desfamiliarizar totalmente o passado e não fazer análises históricas muito superficiais, tem se adotado o conceito de “hábito” do sociólogo Pierre Bourdieu. O historiador, não fala apenas de história, mas entrecruza outras disciplinas e outras formas de conhecimentos sociais, de maneira que se diluem as fronteiras entre àquilo que, anteriormente, era separado como a política das relações sociais (BURKE, 1992). 32

Uma das maiores contribuições para a AD francesa, para o estudo da sociedade contemporânea e para uma ciência que trata dos seres humanos, é a mudança de perspectiva em relação à escrita da história. Isso se deve às inúmeras contribuições no campo epistemológico, que vão desde a rejeição de alguns postulados teóricos e paradigmas anteriores, e a escrita tradicional da história, baseada em eventos estanques e rígidos, observando apenas os fatos em um espaço geográfico fixo ou com mobilidade restrita. Nesse espaço não havia muita inovação em muitas áreas e acontecimentos que emergiram na história da humanidade, assim como na busca de um terreno mais fértil para contextualização de novas formas de mostrar a escrita da história consoante com a modernidade, o sujeito moderno e a sociedade tecnológica. Do ponto de vista da AD, a história é constitutiva, ou seja, nem um evento está pronto e acabado, dito suas últimas palavras. Todo acontecimento é movido por uma série estratégias e escolhas feitas por quem tem a autoridade para escrevê-lo, moldá-lo segundo sua perspectiva, sua trajetória política, ideológica e as influências que fizeram parte de sua formação. Observando dessa forma, a história seria vista apenas por um lado, a do historiador, que a escreve segundo sua ótica, a sua observação dos fatos, a coleta dos dados, a homologação do escrito, tudo isso é apenas um ponto de vista. Não se poderia aqui dizer que a escrita da história seja um dado mentiroso ou mesmo equivocado, já que se observa nesta perspectiva somente o que diz o historiador. A escrita da história, na perspectiva da AD, vem para escavacar o terreno dos eventos históricos, dos não ditos, dos discursos silenciados para dar-lhes visibilidade e mostrar novas maneiras de escrever os fatos, dissecando suas formas constitutivas para poder discorrer sobre tudo pode ser dito e escrito de outra forma. Muitos fatos e eventos históricos são altamente questionados quando se observa a história “por baixo”, isto é, dirige-se o olhar para outras peças do quebra-cabeça que não foram observados ou silenciados pela história oficial. A história contada pelo viés do discurso da AD dá voz àqueles que foram silenciados, visibilidade àquilo que não teve a oportunidade de ser visível, escrita para aquilo que não fora escrito. Assim, a história é constitutiva e montada em outro prisma, observando-se outras peças que não entraram na montagem do acontecimento, tão importantes como os elementos oficiais. Isso acontece quando se lê o monumento e se observa que há muitas lacunas em sua confecção. A AD observava-os e começa a fazer uma remontagem, na intenção de mostrar uma “nova história” por trás da história oficial, não a desmentindo, mas mostrando que há outras formas de interpretar o acontecimento discursivo, suas saliências e movências de sentido, e os efeitos de linguagem que foram ditos e não ditos na construção da escrita da história. Para isso, a AD recorre a uma série de construtos teóricos que mostram a história com outras interfaces, 33

outros autores sociais, outras formas discursivas e rituais que não haviam sido observados, quando se oficializou determinado momento histórico. O deslocamento das pesquisas empíricas e teórico-práticas para o estabelecimento de uma Nova História, comprometida com as positividades da modernidade, surgiu muito antes de Cristo, visto que pelo viés da “Nova História”, qualquer atividade que se registre a presença do ser humano, pode ser reescrito de outra maneira. Entretanto, essas discussões tiveram sua maior efervescência com o advento da modernidade, principalmente, em torno das discussões sobre economia com Carl Marx, da genealogia da moral com Nietzsche e a descoberta da psicanálise e do inconsciente com Freud. Essas pesquisas ab ovo, traziam em seus pressupostos, a ideia de que a história, contada e escrita, não refletia aquilo que realmente se observava, visto que esses pensadores passaram a ver a história dos homens de uma maneira mais rasteira, por baixo, não confiando apenas nos escritos da história oficial. As discussões de Marx sobre economia trouxeram à tona pesquisas que faziam críticas ao capitalismo imperioso em seus próprios nichos, mostrando que a história econômica da humanidade se baseava na expropriação do trabalho alheio, ao identificar que, ao serem forçados a saírem de suas propriedades para buscar trabalho nas grandes cidades, para venderem sua mão-de-obra, o operário servia de instrumento para o enriquecimento daquele que detinha os meios de produção. Além disso, viu que a classe trabalhadora, antes ignorada, tinha uma ideologia que a fazia ter uma força superior à dos seus patrões. Marx mostrou em suas pesquisas a história vista por baixo, sendo dita e escrita por aqueles que não tinham vez e voz, embora o trabalho sofra grandes críticas em torno da ideia de dividir a sociedade, principalmente, em duas classes, a burguesia e o proletariado. Essa perspectiva mostrou que ambas, embora fazendo parte da produção de bens materiais e serviços, possuem ideologias distintas. Essa leitura de Marx proporcionou e deu impulso a uma série de discussões em torno de muitas outras questões, discutidas ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, e que deram visibilidade a objetos empíricos ainda não vistos, escritos ou discutidos como a economia, o capitalismo, o neoliberalismo e as formas de governo atuais. Nesse pensamento, Nietzsche com seu método genealógico recusou a toda moral e a razão que dominava a sociedade de sua época. Em sua investida, mostrou a história de outra maneira, ao dizer que toda sociedade era escrava de uma moral cristã, que tornava seus sujeitos servos de uma tradição sem sentido, em que a crença em uma transcedentalidade inalcançável tornava todos escravos/cordeiros. Fez duras críticas à razão socrática e toda a tradição filosófica que veio anteriormente a ele, dando primazia à liberdade do homem pela morte de Deus. Disso, 34

se concretizou uma nova maneira de se ler a história dos homens, ao colocar como protagonista o homem como dono de seu próprio destino e de sua história. Assim,

a história é, para Nietzsche, a história da malícia mesquinha, das interpretações violentamente impostas, das intenções viciosas, das narrativas gloriosas que mascaram as razões mais vis. [...] o fundamento da moralidade, pelo menos desde Platão, não deve ser buscado na verdade ideal. Ele deve ser buscado na prudenda origo: “baixas origens”, lutas maldosas, crueldades menores, infindáveis conflitos de vontade. A história da história é a dos acidentes, da dispersão, dos acontecimentos casuais, das mentiras – não o desenvolvimento grandioso da Verdade ou completa encarnação da Liberdade. (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. 120)

De acordo com Foucault, a visão da história para Nietzsche não se resume às grandes narrativas impostas sob a égide da razão ou da moralidade, mascarando suas mais cruéis intenções, numa perspectiva idealista, em que os estados de coisas do mundo são o fundamento de uma verdade, disfarçada por um conceito de liberdade, que impõe como verdades irrefutáveis, fatos notórios e de grande magnitude como a verdade histórica. Para esse pensador, a história deve ser também buscada nas origens menos visíveis, menores e sem grandes repercussões, pois nelas também se escondem outras verdades que contrastam com a verdade moral e ideal. Uma história recontada dessa maneira deve ser vista por acontecimentos menores, dispersos, de mentiras sobre verdades e no grau de verdade sobre essas mentiras históricas. As discussões de Freud sobre o inconsciente trouxeram à tona a figura do sujeito, que antes não era abordado em outras teorias. Nessa empreitada, Freud descobre que o sujeito não é único, mas clivado por várias formações inconscientes que formaram seu ethos, ou seja, não é um sujeito transcendental e eminentemente racional. A imersão discursiva do sujeito na trama da história, o torna tanto sujeito quanto objeto de discussão na modernidade, emergindo o sujeito como constituinte da sociedade, e não apenas um resultado determinista dela. Assim, sujeito, sociedade e história se complementam, se misturam, ou seja, são constituintes do discurso sobre a própria constituição da sociedade. Nesse sentido, as contribuições da Nova História para a AD compreende que a sociedade não é constituída de forma linear, em que os acontecimentos são interpretados somente por aquilo que os torna visíveis, mas também por aquilo que não aparece, que não foi escrito, que ficou subtendido. Nesse entendimento, a constituição dos objetos que formam a sociedade é estrutural, espiralados, possuem camadas e ramificações sedimentares que permitem ao historiador verificar a presença de outros objetos que foram deixados no campo de batalha. Escavacar esse terreno fértil da constituição dos fatos, dos rastros deixados pelo ser humano, 35

desde seu aparecimento até nossos dias, é uma tarefa da AD, em consonância com outras teorias culturais e interculturais, que veem nessa discussão uma nova maneira de interpretar a realidade. Para Bourdier,

A escrita histórica – ou historiadora – permanece controlada pelas práticas das quais resulta; bem mais do que isto, ela própria é uma prática social que confere ao seu leitor um lugar bem determinado, redistribuindo o espaço das referências simbólicas e impondo, assim, uma “lição”; ela é didática e magistral. Mas ao mesmo tempo funciona como imagem invertida; dá lugar a falta e a esconde; cria estes relatos do passado que são o equivalente dos cemitérios nas cidades; exorciza e reconhece uma presença da morte no meio dos vivos. (BOURDIER, 2006, p. 95).

Como se vê no pensamento de Bourdier, “a escrita da história” é uma operação que resulta de práticas sociais, nas e pelas quais há uma determinação do sujeito no discurso da trama histórica. O sujeito é uma referência para a organização do discurso sobre os fatos históricos, pois são estratégias que permitem observar o passado como um “cemitério” entre os vivos, mas carregado de sentido que ao mesmo tempo “exorciza” o passado, permitindo escavar quais nuances discursivas formaram as possiblidades fundantes do discurso sobre a história. Para essa perspectiva, o passado e o discurso sobre a história são possiblidades de movências de sentido e novas formas de significar a história. Segundo Burke, a Nova História leva em conta o relativismo cultural, evitando os absolutismos da história dos grandes acontecimentos, que tem como base filosófica a ideia de que a realidade social é culturalmente constituída através da visitação empírica a outros elementos constitutivos da realidade dos acontecimentos, com a intenção de vê-lo de outra maneira. A partir dessa visão, a história não é apenas aquela constituída pelos grandes feitos extraordinários, nem dos heróis mitológicos e/ou grandes homens e seus feitos faraônicos. Nessa história nova, há papéis sociais destinados aos pequenos, aos que pouco tiveram a oportunidade de serem ouvidos e, dessa forma, entrar para o grande livro da história oficial. Essa história é constituída também de fatos menores próximos ao grande evento, de sujeitos que circundaram as trincheiras das grandes batalhas e nunca foram vistos, graças à sombra de seus comandantes, haja vista que a história foi contada segundo as perspectivas daqueles que comandaram, colocando nela somente o que lhes convinha. O discurso sobre a “escrita da história” pode se basear nas leis, no comércio, a maneira de ser de uma sociedade, hábitos e costumes. Isto implica dizer que a Nova História se preocupa com todo e qualquer traço ou vestígio que o homem fez ou pensou desde sua aparição na terra. (BURKE, 1992). 36

Dessa forma, sendo a realidade uma construção estrutural, cultural e social, a constituição da sociedade se dá pelas relações estabelecidas por meio da cultura, ou seja, pelo patrimônio acumulado de vivências e experiências dos sujeitos sociais envolvidos e suas práticas discursivas. A estrutura cultural de uma sociedade é maleável e suscetível a várias maneiras de interpretação, não uma estrutural rígida e com parâmetros interpretativos uníssonos por meio dos discursos que circulam socialmente. Uma das muitas preocupações da Nova História é o discurso de fundamentação dos objetos teóricos. A cultura popular, antes rechaçada, como o homem comum, os eventos e acontecimentos comuns também fazem parte do arsenal do discurso sobre a história. Não é apenas a pena que escreve sob determinado ângulo, é o discurso sobre esses objetos sucumbidos que inscreve na “escrita da história”, outras formas de interpretá-la. Essa nova forma de dá sentido à história não é somente um ato deliberadamente livre e sem intenções, mas um ato comprometido com a história em sua totalidade e não apenas com acontecimentos fragmentados. Nesse contexto, o discurso começou então a ganhar novos contornos e significados, ao redor das transformações que as materialidades discursivas iriam sofrer ao longo de sua história, principalmente, com a entrada da escola Annales e as influências de Nietzsche e a Nova História. Todas essas reformulações darão ao projeto inicial da AD outras formas de ver, observar e analisar as materialidades linguísticas e não linguísticas, devido às metamorfoses que esses discursos sofreram durante sua trajetória histórica. Foucault se estabelece nesse campo da história e da crítica a partir das suas leituras de Nietzsche, num projeto que coloca e propõe novos métodos e técnicas para análise da história tradicional. Para Sargentini & Navarro,

Foucault estabelece uma profunda relação crítica com a História, a partir de Nietzsche e das teses da “Nova História”. Desde os primeiros trabalhos, seu objetivo foi colocar em questão os métodos, os limites, os temas próprios da História tradicional, criticando o fato de ela volta sua atenção para os longos períodos e acentuar a alternância entre equilíbrios. Regulação e continuidades, apagando assim, a dispersão, os acidentes, a descontinuidade. (SARGENTINI, 2004, p. 163).

Os trabalhos de Foucault e sua contribuição para a AD se acentuam no terreno da história, ou melhor, da “Nova história” e sua contínua crítica à história tradicional. Para ele, tudo em questão de história deveria ser visto, não a partir da linearidade tão certeira da visão tradicional, ou que ela esteja totalmente equivocada, mas também das dúvidas e indagações que 37

cercam os acontecimentos históricos. Foucault pretendia analisar a história como um arqueólogo que procura o fóssil de uma espécie que, embora tenha existido, foi deixada de lado por não fazer parte da formação discursiva daquele historiador. Com isso, Foucault levanta profundas dúvidas sobre a escrita da história, desconfiando que esta poderia ter sido outra. Sua preocupação residia no fato de que os longos períodos da história deixam margem para a dispersão e descontinuidades dos acontecimentos, tendo em vista que sob o prisma de uma linearidade, esse movimento pode causar apagamentos, enganos e equívocos sobre os monumentos distorcendo a “escrita da história” evitando outras condições de possiblidade de produção de sentidos. Para Burke (1992, p. 11), “a nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o ‘paradigma tradicional’, aquele termo inútil, embora impreciso, posto em circulação pelo historiador de ciência americano Thomas Kuhn”. Essa nova perspectiva mostra que o fazer histórico é uma construção em que, rejeitando os paradigmas tradicionais, se opera a história através de uma análise, observando os acontecimentos de todos os lados, e não apenas em sua linearidade; ela é construída não da forma como é contada, mas da forma como o historiador resolve contar, tomando por base sua formação, sua ideologia e sua perspectiva teórico-prática. Observando as práticas dos historiadores oficiais, se percebe que a história dos grandes feitos da humanidade, dos grandes homens, da criação das instituições, das ideias e dos discursos sobre determinado acontecimento, pode sempre ser outra, quando esta é vista pelo viés da AD e as teses da Nova História. Assim, para entender como a AD e a “Nova História” se estruturam em torno da constituição de outros discursos sobre a “escrita da história”, vejamos agora a relação do discurso com a memória e a história.

2.3 A MEMÓRIA DISCURSIVA E SUAS RELAÇÕES COM A CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA

A memória não é um dado individual, não é apenas o resgate de fatos antigos, aliados à emergência de fatos modernos que suscitam sua ativação. Sempre que um fato novo vem à tona, quase sempre ele rememora e remonta a algum fato antigo, como uma forma de suporte histórico para sustentar teses novas, como as atuais discussões em torno da ditadura militar no Brasil e no mundo, aliada ao perfil de candidatos à presidência da república. Essa forma de 38

pensar é um dado importantíssimo para se perceber como a memória discursiva tem uma função essencial na constituição da cultura e da sociedade. O rock que se convencionou chamar clássico, ou a primeira leva de roqueiros, não é um produto de um discurso totalmente novo. Também não representa apenas uma tradição afro- americana de ritmos que se proliferaram no sul dos Estados Unidos, a partir da década de 1920. Em suas raízes, o rock é uma manifestação da memória discursiva ao resgatar sons tribais, batuques e ritmos oriundos de tribos africanas. Nascido a partir de uma ideia revolucionária, o rock alia cultura americana e a tradição africana do além-mar, cultuando em seus momentos de entretenimento ao trabalho pesado, sons que relembravam sua ancestralidade misturada à vida a qual os negros estavam submetidos. A música era uma espécie de catarse que aliviava a dor, o sofrimento, o preconceito e a submissão aos brancos, por isso, se diz que o blues, movimento que dá origem ao rock, é triste, não porque é triste, mas porque canta a tristeza como forma de alívio em tom de tristeza, ou seja, a música, o ritmo e a tonalidade melódica tem essa configuração triste e até sombria. O rock, em sua origem, emerge dessa ideia, um fator mnemônico, do entrecruzamento da memória com a história. A memória, segundo Orlandi (2007), é determinante na constituição dos sentidos historicamente construídos pela sociedade e pela cultura de cada povo. É a memória que aciona e atualiza, a cada momento de utilização desses discursos, os efeitos de sentido desejados por seus falantes em um dado momento histórico. Ao utilizar a língua como um discurso socialmente constituído, não são proferidos apenas enunciados socialmente localizados, mas discursos instituídos a partir das relações sociais de poder e saber. Há nisso, a partir dessa operação, a constituição de um novo discurso, ancorado na relação deste com sua memória como um dado constitutivo. A memória ativa e reativa no discurso, elementos que remetem a discursos já concebidos e, muitas vezes, já estabilizados pela cultura e pela sociedade, que no processo de discursivização, fazem emergir novos efeitos de sentido, ao relacionar o dado novo e sua relação com a memória discursiva, que se estabelece como um recurso estratégico a serviço dos sujeitos. Por sua vez, esses sujeitos utilizam a memória como resgate daquilo que já foi dito ou esquecido, que num dado momento relembra o próprio discurso. É uma ação deliberada pelo sujeito ao usar dados da cultura para utilizar o discurso como uma ferramenta de constituição de si e da sociedade. Nesse sentido, há uma relação da memória com o discurso e a história, que nesse caso chama-se interdiscurso12, ou seja, aquilo que foi dito antes e em outro tempo e lugar e que é

12 Esse termo, que foi desenvolvido por Michel Pêcheux como uma contribuição teórica para a AD de tradição francesa. Tem como tese central a ideia de que todo discurso está em uma relação de reciprocidade e antagonismo 39

recuperado pela memória discursiva para dar sentido aos discursos produzidos pela sociedade contemporânea. A memória discursiva comporta saberes e dizeres de enunciados já ditos e também não ditos, que numa situação específica de comunicação, reativa novos efeitos de sentido através da recuperação desses discursos já instituídos socialmente. Esses discursos poder ser em forma de símbolos que já tem um sentido muito arraigado na cultura, como por exemplo, o símbolo da cruz para os cristãos, que remete ao fato de o líder dos cristãos ter sido crucificado. Esse símbolo, sempre que é retomado, produz novos efeitos de sentido. A cruz com a imagem pregada nela é cultuada pelos católicos, enquanto a cruz sem a imagem é cultuada por algumas igrejas protestantes como os evangélicos, por exemplo. Para os primeiros predomina a ideia do Jesus de Nazaré, ou o Jesus histórico; para o segundo, a representação do Jesus crucificado/ressuscitado, que desceu da cruz e subiu aos céus. Para ambos, o símbolo da cruz possui efeitos de sentido diferentes, já que essas duas interpretações separam radicalmente esses dois segmentos religiosos e produz uma tensão muito grande no meio religioso. Para Orlandi a memória discursiva é

O saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. (ORLANDI, 2007, p. 31).

No pensamento de Orlandi, o que torna possível a construção do sentido é o interdiscurso, ou seja, o ato de ressignificar, por meio de uma retomada do discurso anterior. O sentido, nessa perspectiva, é a relação entre a memória, o discurso e a história, que traz à tona os sentidos produzidos pelos sujeitos numa situação de comunicação específica de uso efetivo da língua, seja ela em relação ao discurso e o sujeito, em relação ao sujeito-sociedade- instituições. Cada palavra é tomada pela memória discursiva, que retoma outros saberes já construídos para estabelecer as relações de sentido para o sujeito e a história. Assim, a memória é constitutiva do discurso dos saberes e poderes que compõem a estrutura da cultura e da sociedade. Ainda de acordo com Orlandi (2007), a memória discursiva é a condição de produção do discurso, uma vez que tanto no contexto imediato quanto no mais amplo que incluem o contexto sócio histórico e cultural, em que acontece a produção do sentido pelos sujeitos imersos pelas condições de produção do discurso, dadas em situações reais de uso da

com outros discursos. É o espaço, onde vários discursos interagem dentro de um campo discursivo, remetendo a outros campos discursivos com que pode manter relações de identidade e formações ideológicas antagônicas. Nessa perspectiva, todo discurso é retomado por outros discursos que se estabelecem no uso efetivo da língua. Essas retomadas podem ocorrer por meio de paródias, paráfrases, ou mesmo formações ideológicas. 40

linguagem, fazem a interação entre esses ditos, não ditos e visíveis, dentro da sociedade cultural, social e econômica, e atualizam a memória discursiva por meio de retomadas de pré-construídos socialmente. Assim, mantém a comunicação e ampliam uma série de discursos já estabilizados, atualizando assim, a memória e o discurso. Essa relação da memória com o sujeito e a história através do interdiscurso como fatores primordiais na constituição dos discursos, traz a noção de que não se pode dizer nada novo e original e que tudo já foi dito, no sentido de que tudo que foi dito pode ser dito de outra forma. Quando se faz isso, produz-se novos dizeres e saberes. Essa relação estabelece que a originalidade13 seja um mito, enquanto a criatividade é genuína, ou seja, através da relação da memória com o discurso socialmente produzido, podem-se acionar antigas formas de saberes já concebidos em outras épocas e situações distintas, atreladas à novas formas de dizer, materializando, no discurso e pelo discurso, novas formas de conhecimento. O discurso é a junção da memória como elemento constitutivo da atualidade como elemento de formulação. Para se produzir o discurso, é necessário acionar o já-dito com a formulação dos dizeres atuais. Segundo Pierre Achard (1999), a memória é analisada em sua materialidade complexa, enfatizando a relação do texto com a imagem e o discurso na sua passagem do dizível ao nomeado, ou seja, a memória deve ser objeto de análise na sua materialidade, quando ela nomeia a partir de sua possibilidade de materialização em algum discurso reminiscente. Dessa forma, a memória não pode ser provada, se enquadra no discurso concreto já-dito. Ela é uma forma embrionária que dá origem a outros discursos, por meio do resgate dos discursos que já foram ditos ou silenciados e que, de alguma forma, foi resgatado no momento de produção do discurso. Nesse caso, da memória como um dos fundamentos do discurso, para Achard

o que funcionaria então seriam operadores linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria deste modo, a colocação de uma série dos contextos e das repetições formais, numa oscilação entre o histórico e o linguístico. Através das retomadas e das paráfrases, produz na memória um jogo de força simbólico que constitui uma questão social. (ACHARD, 1999, p. 08).

Para esse autor é necessário que a memória seja um dado do discurso, pois segundo ele, são jogos de linguagem imersos numa situação enunciativa, que retomam outros discursos,

13 O fato de a originalidade ser um mito pelo que está sendo exposto aqui, refere-se a ideia de que não há aquele que proferiu a primeira palavra, ou primeiro discurso, um Adão mítico. Para a AD a linguagem é convencional e se estabeleceu pelo costume e acordo tácito entre as comunidades de linguagem. Nesse sentido, não há uma originalidade no discurso, há formas discursivas que foram sendo sedimentadas e cristalizadas pelas comunidades linguísticas e que serviram de base mnemônica para discursos posteriores. 41

fazendo emergir uma regularidade que, em contextos diversos, são repetidos e recuperados por interdiscursos, através de jogos de força e estratégias discursivas do poder simbólico. Em outras palavras, é necessário o uso da linguagem em suas mais variadas formas, manipulando os jogos linguageiros do poder simbólico, para que com os resgates se possam sentir e ver a memória fazendo sentido. Nesse sentido, os objetos culturais são ferramentas manipuladoras de memória, já que entrecruzam a memória coletiva e a história, são operadores sociais de memória, uma vez que a ela passa a ser transferida da cabeça das pessoas para os objetos da imprensa: computadores, pendrives, CDs, entre outros. Assim, forma pode-se falar de uma memória fabricada para fins específicos, guardar o conhecimento humano para que futuras gerações possam desposar deles. Dentro desse raciocínio, a produção de sentido para a AD é o intercruzamento do discurso com a memória e a história, através do interdiscurso. Este é a emergência do discurso recalcado na memória, que vem à tona quando utilizado em outras situações comunicativas, ou seja, cada discurso é ativado graças à memória que se fixou com seus sentidos, e que nessa nova utilização ganha novos efeitos de sentido através do interdiscurso. O discurso não é repetível na memória, ele é reorganizado, utilizando formas e estruturas da memória inconsciente latente para novos efeitos de sentido. A repetição do discurso em AD não existe, existem novos efeitos de sentido a partir do dito e do não dito. O dito pode ser retomado de diversas formas por meio da memória discursivas, pois se apodera de algo já estabelecido como um discurso já legitimado, e essa ressignificação é na verdade, o impulso criador que serve como base para o discurso novo, ou seja, ele não é tão novo no sentido genuíno de que foi feito por alguém que o pensou, mas pelo fato de que foi pensado com base em outro já dito. A seguir, mais algumas contribuições para a estruturação da AD. Desta feita, as ideias e contribuições de Michel Foucault.

2.4 MICHEL FOUCAULT: SUAS IDEIAS E CONTRIBUIÇÕES PARA AD

O tradutor, intérprete, conferencista e filósofo da linguagem, Michel Foucault, nasceu na França, numa pequena cidade chamada Poitiers, no dia 15 de outubro de 1926. Diplomou- se em Psicologia e Filosofia e faleceu em Paris, França, no dia 25 de junho de 1984 em consequência das complicações da AIDS. Lecionou em muitas universidades da França, Inglaterra e Suécia, nas quais exerceu várias funções: inicialmente, assistente de psiquiatria, intérprete e tradutor de francês, professor e conferencista em seus últimos anos. Ocupou a cátedra “História dos Sistemas de Pensamento" no Collège de France, onde lecionou até sua 42

morte. De seus trabalhos iniciais, ligados ao estudo da psiquiatria e da loucura, foi amadurecendo suas análises e seus métodos de investigação, até trabalhos mais consistentes com relação ao saber e ao poder nas sociedades modernas. Michel Foucault se tornou um dos mais influentes autores de sua época, na conceptualização e configuração de uma metateoria para o estudo do sujeito e da sociedade. Em sua investida, ele busca a constituição dos saberes através dos tempos, desde a época que ele chamou idade clássica até a modernidade. Nesse trajeto, precisou fazer alguns recortes epistemológicos para romper com alguns conceitos e sistemas de pensamento, que eram o cerne da questão predominante na organização dos saberes em cada época estudada. Seu trabalho, desde cedo, se voltou para uma análise diferente daquilo que propunham as ideias de sua época. Buscava, não apenas a descrição dos fatos e das ideias em termos daquilo que a tradição pregava, mas entendia que a história é constitutiva, e não apenas uma sequência linear de fatos históricos com seus líderes e heróis. Buscava pela análise das práticas discursivas, que envolviam o pensamento filosófico de sua época, e os estudos da sociedade em geral, mostrando como determinadas práticas e relações sociais criavam objetos, sugeriam uma relação e determinavam o surgimento de macro poderes e micrpoderes que instituíam uma sociedade em permanente evolução e vigilância. Seu primeiro livro, Doença mental e Psicologia, de 1954, mostra seu trabalho com aquilo que mais tarde se aprofundaria sobre o conceito de loucura. Nele, Foucault mostra o tratamento dado aos doentes mentais nas instituições psiquiátricas e o discurso que se tinha sobre o termo loucura. Sua vasta experiência como professor, pesquisador e colaborador em prisões, escolas, no internamento dos loucos, permitiu ver e analisar essas instituições sobre um outro viés, que não simplesmente o “olhar do médico”, fazendo com que as doenças mentais fossem vistas de outra maneira. Foucault fazia uma observação criteriosa não apenas dos loucos em si, mas de tudo aquilo que fundamentava sua prisão e segregação social, os métodos utilizados na cura e, principalmente, o tipo de discurso que se pregava no tratamento deles. Essa forma de descobrir algo a partir das escavações de um determinado campo do saber, fez Foucault, um graduado em psicologia, descobrir que as instituições mantinham certa relação de poder com os indivíduos que ali permaneciam por muito tempo. Que a criação de um local específico para pessoas com doença mental era garantida não somente pelo conceito da doença, mas pelo discurso que fundamentava todo um aparato institucional, médico, os tratamentos e as formas de reingresso na sociedade. Em História da loucura na Idade Clássica, Foucault observa que a lepra que assolou toda a Europa no final da Idade Média desaparece e os leprosários, locais onde ficavam 43

confinados os leprosos, foram paulatinamente sendo substituídos por casas de internação, como se fossem mini-hospitais, que antes acolhiam grandes quantidades de pessoas acometidas pela doença. Essa atitude era uma espécie de higienização das cidades, pois a lepra, sendo altamente contagiosa, separavam-se os indivíduos pelo grau de avanço da doença, colocando-os sob a guarda do Estado, que os mantinha afastados dos outros indivíduos por medo de que ela se alastrasse totalmente. Esse fenômeno culminou com a limpeza das cidades, com a criação de crematórios para os leprosos que morriam nos locais onde viviam aglomerados, bem como aqueles que morriam nas ruas. Com o fim da lepra, os leprosários dão espaço aos loucos, doentes, prisioneiros, mendigos e toda espécie de gente que perambulava pelas ruas da França. A lepra que era considerada uma doença da carne e, portanto, o castigo divino, dá lugar à doença da alma, pois acreditava-se que os loucos estavam acometidos de algum mal sobrenatural. A primeira atitude das autoridades foi colocá-los em navios e os laçarem ao mar em busca da salvação em outra terra, distantes de sua pátria. Essas pessoas iam e vinham o tempo todo, chegando ao ponto de interná-las nos locais que antes eram destinados aos leprosos, o que caracterizou a grande internação, que a partir daí começou a se criar um conceito médico sobre a loucura. Nesta obra, Foucault discorre sobre como inicialmente eram tratados os leprosos no final da Idade Média. Eles eram vistos como perniciosos e perigosos, e de alguma forma, foram punidos por Deus. Inicialmente, a lepra era vista como a deformação do corpo e manifestação da morte pela carne, daí esses indivíduos serem afastados e retirados do seio do povo. Com a superação do surto de lepra, devido ao fim das cruzadas e outros movimentos de levas de gente, a doença se transforma num sinal de loucura, e seu portador, alguém envolvido em delírios e devaneios que o faziam assemelhar-se a morte, ou possessão demoníaca. A loucura como sinal da morte. Por isso, eram colocados em navios e entregues à própria sorte para o além-mar. A exclusão do louco era vista como a salvação da alma. Sua viagem era tida como a busca pela salvação em outras cidades e lugares diferentes, uma invenção moderna para o trato com o problema. Essa exclusão se transformará, já no limiar da Renascença, na “Grande internação”, quando não só doentes eram colocados sob a guarda do Estado, mas toda uma massa heterogênea de pessoas como mendigos, ladrões, escravos, pessoas ociosas e toda espécie de gente que se aglomeravam nas cidades em busca de comida e moradia. Essas pessoas eram tratadas inicialmente como doentes, precisando, pois, passar por processos disciplinares operados pelo Estado para que eles se tornassem mais produtivos. Toda essa atividade era mantida com recursos do governante: comida, lugar onde dormir e rezar, os casamentos e, 44

inclusive, a aplicação de método de castigo sobre o corpo dos detentos para tentar humanizá- los. A lepra era sinal de morte do corpo, a loucura era a morte da alma. Esses discursos, segundo Foucault, foram os que fundamentaram a origem de muitas ciências como a psiquiatria, a psicologia e, principalmente, a medicina. Com isso Foucault,

tenta estudar a estrutura do discurso das várias disciplinas que enunciaram teorias da sociedade, do indivíduo e da linguagem [...] um estudo que se esforça por encontrar a partir de que conhecimento e teorias foram possíveis, segundo que tipo de ordem se constituiu o saber” (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. 19).

No seu livro intitulado As palavras e as coisas, estendido, uma arqueologia das ciências humanas, é um esforço categórico de Foucault para dar visibilidade às noções da vida e da linguagem através do discurso. Nessa investida, o autor procura descobrir como as relações epistemológicas de cada época se estruturam a partir das regularidades discursivas. Foucault tenta isolar os saberes que cada época produz e como eles se estruturaram desde a Renascença até a modernidade, observando que havia uma relação de poder e saber que mantém tanto o status do doente nessas intuições, bem como todo o discurso que perpassa a historicidade dessas doenças. Assim, o Estado mantém o controle sobre um indivíduo, disciplinando seu corpo para um fim que lhe é próprio: o trabalho. A disciplina sobre o corpo vai ser um tema muito amplo e muito bem discutido nos trabalhos mais maduros do autor. Neles, Foucault se preocupa em analisar o poder exercido sobre o corpo do indivíduo, e quais estratégias disciplinares eram feitas para docilizá-lo, para que o mesmo se tornasse apto a viver na sociedade. Essa disciplina vai desde os castigos físicos, a medicação, as regras e as estratégias discursivas utilizadas na cura do doente, para que o indivíduo se adapte a uma sociedade capitalista voltada para o lucro e a inserção deles como dócil e útil ao mercado produtor e consumidor. O autor observa que o nascimento de muitas instituições como a clínica, a escola e a prisão são reflexos de uma sociedade capitalista, que separa aqueles aptos ao consumo e ao trabalho, daqueles que não o fazem, usando estratégias discursivas para que todos os internados passassem por processos que tornassem seu corpo de um estado de loucura para um corpo sadio e dócil, disciplinado para viver harmonicamente em sociedade. Embora o nome capital e capitalismo utilizado aqui seja o nome recente, nosso entendimento é que, na história dos homens e das sociedades antigas e modernas, a ideia de trabalho e acúmulo de riquezas sempre foi uma questão central, uma vez que a ideia de 45

capitalismo nasce com a Revolução Industrial, mas sua forma de atuação na sociedade já existia há muito tempo. A primeira fase dos estudos foucaultianos é denominada de arqueológica, em que o autor tenta mostrar como determinados saberes apareceram em determinada época, em detrimento de outros que foram não ditos ou, simplesmente, desaparecidos. Para isso, precisou criar mecanismos e dispositivos teóricos para sustentar suas formas de interpretar a realidade e a configuração de objetos para analisar os sistemas de pensamento e as positividades de determinada época que não tinham como realizar da maneira como ele pensava. As análises de Foucault se imbricam por caminhos nunca antes percorridos por outros autores. Com seu método arqueológico, ele busca nos acontecimentos discursivos, uma leitura através das descontinuidades, tratando o documento como um monumento, ou seja, algo possível de leitura e de visibilidade no campo das ciências humanas, diferente do documento que é algo fóssil e acabado e com análise fechada pela história oficial. Para Dreyfus e Rabinow,

Foucault oferece [...] um coerente e poderoso recurso de compreensão. [...] seu trabalho representa o mais importante esforço contemporâneo não só de desenvolver um método para o estudo dos seres humanos, como de diagnosticar a situação atual de nossa sociedade. (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. XIII).

Para esses comentadores, o trabalho de Foucault é um poderoso instrumento de compreensão da realidade, uma vez que desenvolve um método para o entendimento dos seres humanos. Seu trabalho é um diagnóstico da sociedade como tal e uma análise rigorosa do nascimento das ciências que tratam do homem. Nesse sentido, as primeiras obras de Foucault que tratam diretamente do surgimento das ciências humanas são: História da loucura na Idade Clássica, O nascimento da clínica, As palavras e as coisas e Arqueologia do saber. Este último se situa como uma metateoria ou teoria autoexplicativa das obras anteriores, já que Foucault foi duramente criticado na época e bem antes dela, por não ter método e fazer interpretações sem mecanismo teóricos/práticos, bem como desdizer e questionar as análises contínuas e lineares dos historiadores profissionais sem mostrar, contudo, um aparato teórico claro sobre suas conclusões a respeito de determinados temas como a loucura, a psiquiatria, a psicologia, etc. Embora isso fosse apenas uma crítica aos trabalhos iniciais do autor, uma vez que o mesmo afirmava que constrói objetos teóricos, à medida que suas pesquisas avançam, ou seja, a cada pesquisa, Foucault cria objetos teórico que sustentam suas análises. (ERIBON, 1996). 46

A ideia inicial da arqueologia foucaultiana é descobrir como determinados saberes se constituíram em determinada época, e que formas de práticas discursivas e discursos contribuíram para sua emergência como um saber, como essa forma de conhecimento fazia compreender a realidade social e cultural de uma dada sociedade. Os problemas encontrados foram: em primeiro lugar, a história oficial e os historiadores profissionais e sua resistência em aceitar outras formas de se fazer história; em segundo, a constituição de um método de análise e finalmente, em terceiro, a aplicabilidade do método de análise dentro da conjuntura social, cultural e política da sociedade. Nesse ponto, é imprescindível para Foucault a criação do dispositivo teórico: o discurso14. Com ele, o autor sai da análise da língua como mecanismo estrutural e passa a observar os acontecimentos em sua exterioridade, ou seja, naquilo que eles dizem e camuflam, que não foram ditos. Nisto, começa uma das maiores revoluções sobre a teoria do discurso que fará nascer disciplinas importantes, uma delas a Análise do Discurso de tradição francesa, uma vez que o discurso, compreendido dentro dos pressupostos que o autor destacou, fará emergir muitos sentidos, que se originarão a partir da observação, de como funciona a sociedade moderna e sua constituição a partir das práticas discursivas. Para explicar como acontecia tudo isso, Foucault estudava os documentos oficiais da época clássica, fazendo uma análise minuciosa destes e escrevendo sobre. Dessa época, encontrou nos documentos de conventos, asilos e casas de internação, uma prática muito comum relativa ao trabalho do médico: o discurso sobre a doença e os pacientes. Este foi incumbido do seu saber sobre a doença e era ele quem fazia a segregação dos detentos, por meio de uma seleção que levava em conta o grau da doença, sua reversibilidade e possível cura. Dessa prática, o autor observou que as instituições mantenedoras tinham poder total sobre o corpo do indivíduo em sua forma macro organizada, generalizada, com preocupações sociais mais amplas em torno do trabalho e da organização social. Daí por diante, Foucault observa que nas práticas intra-hospitalares, dos conventos e das casas de internamento, há um tratamento micro localizado sobre os pacientes. Dessa fase, irão nascer outros conceitos como a microfísica do poder e a docilização dos corpos, vistas não apenas como uma forma institucional, mas com relevantes poderes sobre o corpo social, pois ela não atinge o indivíduo somente pela forma da lei em geral, mas no próprio corpo do indivíduo. O poder se justificaria como uma operação legalizada em que os corpos eram tratados no seio da sociedade, não como forma apenas de cura ou adequação à ordem das coisas, mas

14 Vale salientar que este termo já existia antes de Foucault, ele apenas deu um novo redimensionamento ao seu sentido e uso dentro de suas teorizações. 47

como uma forma de controle e adestramento, inclusive, a construção e a organização de outras instituições sociais diferentes das casas de internamento como a escola, o presídio, as ruas emparelhadas, a prefeitura no prédio central das cidades, tudo contribuía para a vigilância e permanência do adestramento e docilização dos corpos na conjuntura social. O objetivo das práticas discursivas sobre o corpo é político, ou seja, tornar o indivíduo um corpo “útil e dócil” para a sociedade capitalista, para que participe da engrenagem social de forma mais ativa, se tornando, de alguma forma igual aos demais, obediente e socializado. Para Foucault, as palavras e os objetos sociais se desenvolvem a partir de sua prática, ou seja, se observam os estados de coisas em sua constante formação e movimento, caracterizando uma reviravolta no estudo sobre o texto e o discurso, visto que as análises propostas visam perceber como a língua, o sujeito e a sociedade se comportam diante de cada acontecimento discursivo, não vendo isso apenas como meros acontecimentos históricos estáticos e com sentido único. As ideias de Foucault irão influenciar na forma como o pensamento ocidental se desdobrará em suas questões mais cruciais como a economia, a política, a sexualidade e os discursos que fundamental as várias ideologias do cotidiano. Seu trabalho é fundamental para entender como a sociedade moderna funciona em suas várias formas de discursivização. As discussões travadas por Foucault foram de grande importância para o nascimento da AD de tradição francesa. Isso porque não havia somente uma AD, mas outras várias que utilizavam mecanismos diferentes, bem como as influências teóricas e as correntes filosóficas envolvidas, como por exemplo, a corrente americana. Todas, um pouco menos a AD americana, tinham o texto como ponto de partida, deixando de lado a análise meramente linguística da língua (a langue saussuriana), ampliando seus horizontes em busca dos atos de fala, das enunciações, dos sujeitos envolvidos no ato comunicativo e na busca de propostas de leitura e entendimento do mundo de maneira mais satisfatória. Embora trabalhe também com o social, a ACD americana tem como ponto central os processos de semiose, que envolve vários outros elementos da sociedade, analisados a partir de suas estruturas, tentando descrevê-las a partir de um ponto que o texto, a imagem, etc., lhes oferece materialidade. A semiose para a ACD é um recurso que permite observar as práticas sociais e sua estruturação a partir da constituição de gêneros discursivos, e uma possível estabilização de práticas sociais que podem ser percebidas nos atores sociais. Nesse sentido, a AD francesa emerge de discussões teóricas e necessidades práticas de comprometimento com a realidade do mundo. Em seu nascimento, os estados de coisas eram importantes para determinação de que rumos deveriam ser tomados com a emergência de 48

muitos saberes dentro da modernidade, dos novos desafios para a educação dos povos e da criação de uma teoria que fizesse emergir uma máquina que desse de conta dos grandes embates políticos que assediavam os países durante a Guerra Fria. Uma das contribuições de Foucault foi

a suspeita de que a linguagem não diz exatamente o que ela diz. O sentido que se apreende, e que é imediatamente manifesto, é talvez, na realidade, apenas um sentido menor, que protege, restringe e, apesar de tudo, o sentido mais forte e o sentido ‘por baixo’”. (FOUCAULT, 2015, p. 41).

Para Foucault, a linguagem era o grande mistério a ser desvendado nesse início de organização das coisas do mundo que giravam por meio da interpretação. Isso porque, através da linguagem e por traz de tudo daquilo que ela expressa, não se diz realmente o que quis dizer, ou seja, o sentido sempre pode ser outro, aquilo que é manifesto em linguagem oral, escrita, pictórica ou outra forma de comunicação, não é exatamente o que se quis dizer. O que se disse, pode ser dito de outra forma, e a maneira como se diz, o lugar e os sujeitos envolvidos podem dizer outra coisa que não aquela. As palavras e os enunciados não são transparentes, a linguagem é opaca, cinza, turva, sempre povoada por outras palavras não pronunciadas, por outros enunciados que não foram ditos e ficaram subtendidos, por sujeitos que se calaram e, em seu silêncio, comunicaram sua atitude responsiva, ou que falaram algo pequeno, falho ou até omisso em seu discurso, ou seja, “a linguagem faz nascer esta outra suspeita: que, de qualquer maneira, ela ultrapassa sua forma propriamente verbal, que há certamente no mundo outras coisas que falam e não são linguagem”. (FOUCAULT, 2015, p. 41). Assim,

cada forma cultural na civilização ocidental teve seu sistema de interpretação, suas técnicas, seus métodos, suas maneiras próprias de supor que a linguagem quer dizer outra coisa do que ela diz, e de supor que há linguagem para além da própria linguagem. (FOUCAULT, 2015, p. 41)

No uso da linguagem, cada civilização tem sua positividade histórica, seu sistema de interpretação e organização da realidade. Cada cultura elabora suas formas próprias de interpretar essa realidade, em que a linguagem é usada de forma particular. Em todas elas, a linguagem é sempre interpretativa, pode indicar, supor, omitir, dizer o que não foi dito, deixar “por baixo”, ou seja, a linguagem é sempre a não linguagem já que, quando usada e interpretada, diz aquilo que não era para dizer, no sentido de que não sendo transparente, está sempre sujeita a vários efeitos de sentido. A cada nova interpretação se conduz o signo a novas realidades e dá a ele novas maneiras de se relacionar com a própria linguagem, já que signo e linguagem se 49

completam, são indissociáveis. A cada corte epistemológico no centro das discussões, o signo abre espaço para novas significações e efeitos de sentido, causando uma nova visão daquilo que se tinha antes. Nesse caso, a linguagem fala da não-linguagem, fazendo ter visibilidade a algo que não era visto, o que não teve a possibilidade de ser dito, foi silenciado por algum dado histórico, uma ideologia particular, um ato normativo, uma lei, etc. É neste sentido que Foucault diz que

Freud fala, em algum lugar, que há três grandes feridas narcísicas na cultura ocidental: a ferida imposta por Copérnico; aquela feita por Darwin, quando ele descobriu que o homem descendia do macaco; e a ferida feita por Freud, já que ele próprio descobriu que a consciência repousava na inconsciência. [...]. Eles não deram um sentido novo a coisas que tinham sentido. Na realidade, eles mudaram a natureza do signo e modificaram a maneira pela qual o signo em geral podia ser interpretado. (FOUCAULT, 2015, p. 44).

No raciocínio de Foucault, as releituras feitas por Copérnico, Darwin e Freud deram outras dimensões à noção do signo linguístico, e por consequência, novos caminhos de interpretação da realidade. Essa forma de encarar a linguagem e o signo rompeu com as noções sígneas anteriores e estabeleceram outras maneiras de se ler, causando uma mutação na natureza do signo. Essa ruptura não é algo natural, mas um dado interpretativo, já que esses autores escavacaram o terreno das teorias e encontraram nelas sinais de que tudo podia ser dito de outra forma, uma estrutura conceitual bem desenvolvida pela AD francesa.

2.4.1 O discurso

Um dos grandes dispositivos teóricos desenvolvidos pela AD através das várias contribuições que recebeu de diversas áreas do conhecimento é o discurso. Ele se caracteriza por não ser uma frase, um ato de fala, ou mesmo uma premissa e nem está totalmente ligado às estruturas linguísticas. Estrutura-se em torno do sentido produzido pelo sistema da língua, está para a interpretação do que pela descrição, de modo que o discurso não é algo que se possa controlar no sentido de sua materialidade, mas de observar seu comportamento na e pela linguagem através dos diversos usos que se faz dela. Segundo Fernandes,

podemos afirmar que discurso, tomado como objeto da Análise do Discurso, não é língua, nem texto, nem a fala, mas necessita de elementos linguísticos para ter uma existência material. Com isso dizemos que discurso implica uma exterioridade à língua encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente linguística. (FERNANDES, 2008, p. 13)

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Como o próprio nome já diz, o discurso é umas das maiores preocupações da AD de tradição francesa. Esse termo, no meio cotidiano, ou mais corriqueiramente falando, se refere a todo tipo de pronunciamento de forma rebuscada, cheia de recursos estilísticos, com correção gramatical, muitas vezes, com alto grau de erudição, retórica, que é usado em muitas situações comunicativas de uso da língua. Normalmente, o que se entende por discurso, é algo feito para ser usado como em um espaço privilegiado, auditório, palanque, sedes de instituições diversas, etc. (FERNANDES, 2008). Entretanto, como objeto teórico da AD, possui outras caraterísticas e não apenas um produto da escrita feito para ser lido. É um processo interativo do sujeito com a história, a cultura e a ideologia, um produto da exterioridade do discurso e das diversas formas que a linguagem é utilizada em situações comunicativas concretas de uso da língua. Cria a possibilidade de constituição do sujeito e da própria sociedade, uma vez que, o discurso nessa perspectiva é constitutivo. O discurso não se confunde com a língua (no sentido estrutural), o texto ou a fala, ou seja, não é uma materialidade linguística em si, mas uma instância virtual carregado de sentidos, que por ser flexível, consegue agregar várias estratégias de saber e poder em sua configuração estrutural15, produzindo vários efeitos de sentido e se permitindo a funções diversas. O discurso representa a exterioridade das formas linguísticas, pois em sua configuração se acrescentam elementos sociais, culturais e ideológicos, de onde emerge a figura do sujeito, que marca sua posição na estrutura social, como um lugar-sujeito vazio, que pode ser preenchido a cada o novo discurso, produzindo novos efeitos de sentido. Com base no que se está aqui defendendo, o discurso é carregado de outros discursos, não é apenas forma, mas principalmente sentido, ou seja, a língua é apenas uma possibilidade de discursos, pois seu uso em situações comunicativas diversas produz vários efeitos de sentido. Para certos contextos, palavras, atos de fala, proposições têm um sentido diferente quando aplicados em outros contextos, isto é, cada uso da língua em situações comunicativas distintas gera efeitos de sentidos diferentes. O discurso é sempre observado dentro de uma estrutura social, ele não preexiste ao movimento dos sujeitos, nem da ideologia, nem da cultura, necessita de outros elementos sociais, culturais e ideológicos para que ele possa ser realmente chamado de discurso. O discurso sofre movências de sentido de acordo com as atividades humanas, pois está envolvido por elas, faz parte delas, é o resultado de processos de práticas discursivas, é o

15 A estrutura, nesse sentido, não é uma forma solida, um objeto de estudos criado como categoria epistemológica, como bem o fez a Sociologia clássica e os estruturalistas. O termo é usado aqui no sentido da organização do discurso nas entidades que ele agrega junto a sua materialidade e suporte linguístico. 51

resultado das atividades de linguagem produzido por sujeitos em determinado lugar social, quando este interage com outros sujeitos de formações ideológicas distintas, que mobilizam formas discursivas para dar sentido à vida e a sociedade. Para Foucault, é mais fácil dizer o que o discurso não é, pois, o discurso não é uma frase somente, nem a sucessão destas numa cadeia sintagmática, nem mesmo sua estrutura profunda nas relações paradigmáticas. Não é um conjunto limitado de estruturas transfrásticas, que ultrapassam os limites do texto em busca de uma significação intrínseca. Também não é representação de ideias homogêneas sobre um determinado tema. O discurso se constitui como um espaço de construção do saber através das materialidades históricas que estão à disposição dos sujeitos, é ferramenta de funcionamento do poder e um dispositivo da prática discursiva para a construção da sociedade contemporânea. Como fio condutor do sentido, o discurso se propõe aos sujeitos como uma forma de expressão de vontades, de saber e de poder e ordenação dos estados de coisas do mundo. Através de uma ordem discursiva, o discurso é que rege a vida social e transforma corpos em máquinas a serviço do mundo social e econômico. Nesse sentido, o discurso opera na materialização de verdades e contestação de outras também verdades. É dele que se torna possível a estrutura e a organização dos objetos teóricos, que tornam possível a visibilidade e a dizibilidade de certas materialidades e mostram os processos de discursivização dos acontecimentos discursivos, ao desmontar os objetos oficialmente construídos, ao subjetivá-los até seu ponto de saturação, sem que seja no mínimo, seu ponto final, mas apenas ponto de acesso ao conhecimento das formações discursivas e ideológicas que fomentam o mundo da modernidade. Para Fernandes, (2008, p. 47), “os aspectos ideológicos e políticos, no discurso apresentam-se semanticamente relevantes, pois refletem, na interação entre os sujeitos, o lugar histórico-social de onde o discurso é produzido”. Desse modo, os aspectos sociais da interação social dos sujeitos, as formações ideológicas, a política e a economia, são condições relevantes de produção discurso, ou seja, as condições de produção do discurso estão intimamente associadas às práticas discursivas na sociedade. A emergência de determinados discursos está ligada ao surgimento e/ou aparecimento de processos discursivos que levam ao entendimento e revelação de novos saberes e, ao funcionamento dos poderes. Assim, “a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando”. (ORLANDI, 1999, p. 15)

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No raciocínio de Orlandi, o discurso indica que os sujeitos são parte integrante da sociedade, que interagem com os outros sujeitos de seu contexto social, cultural e ideológico, de forma que o discurso se refere sempre à palavra em movimento constante, em que se observa a comunicação humana em sua prática discursiva, e não em sua forma imanente. O discurso explora os efeitos de sentido advindos do contexto comunicativo, observando suas peculiaridades, movências de sentido, resgate da memória discursiva e atualização dos discursos dos sujeitos, dessa forma atribui novos efeitos de sentido às práticas sociais e é constitutivo da sociedade. Para o funcionamento do discurso, importam seus efeitos de sentido e a ação movida pelos sujeitos sociais. O discurso indica que os estados das coisas estão em constante movimento e isso implica em dizer que o discurso está sempre para as movências de sentido em se falando de movimento discursivo diante das atividades humanas. Segundo Fernandes,

A unidade do discurso constitui-se por um conjunto de enunciados efetivamente produzidos na dispersão de acontecimentos discursivos, compreendidos como sequências formuladas, cuja compreensão é possibilitada pela indagação de Foucault “como apareceu um determinado enunciado e não outro em seu lugar”? (FERNANDES, 2008, p. 18).

De acordo com o pensamento desse autor, o discurso é fruto de um conjunto de enunciados que foram produzidos quando acontecimentos discursivos são apreendidos em sua dispersão. Na verdade, o discurso é o trabalho do sujeito sobre a dispersão dos acontecimentos, fazendo surgir suas entranhas, seus não ditos, seus apagamentos, isto é, o sujeito do discurso opera por meio da linguagem uma escavação do acontecimento, observando como determinadas coisas apareceram e outras não, e disso, resulta um discurso novo, carregado de outros discursos e outros efeitos de sentido, uma vez que sua produção implicou as movências de outros discursos para poder produzir novos sentidos. Para Mazière, “o discurso leva em conta o enunciado atestado, produzido no modo segundo o qual essa relação frástica, ou um de seus termos, pode tomar sentido por meio de uma discursivização datada e especificada, atualizada”. (MAZIÈRE, 2007, p. 12). Segundo Mazière, o discurso é testado e produzido segundo relação com outros enunciados, em que sua ação indica um processo de construção de novos sentidos. Nessa perspectiva, a análise e escavação arquegenealógica do monumento, através do processo de discursivização, faz surgir muitos outros efeitos de sentido, que atualizam o discurso sobre determinado objeto, fazendo emergir as formas discursivas que o comprovaram como tal, bem como as estratégias e os sentidos daí resultantes. 53

2.4.2 Relações de saber-poder

Foucault, em muitos de seus escritos, principalmente, em As palavras e as coisas, História da loucura na Idade Clássica e Nascimento da clínica, analisa as formas de como se constitui o poder nas sociedades modernas. Ele começou a perceber que na verdade não havia mecanismos teóricos que dessem conta de uma análise mais plausível sobre os grandes problemas gerados pelos excessos de poder, como no stalinismo e no fascismo. Assim, em seus trabalhos posteriores, Foucault investigaria como o poder se estabelece na sociedade contemporânea, principalmente, a partir de onde esse poder surge nas práticas discursivas. Nesse caso, o discurso sobre como geram os sistemas de poder é um balizamento dos mecanismos de poder no interior do discurso científico, ao qual de alguma forma todos temos que obedecer em certa época da vida. Quando se quer falar com propriedade sobre algum fenômeno social como a loucura, o saber médico, a gramática geral, economia ou política, torna-se imperativo, a partir de Foucault, entender como as relações de saber e poder interagem nesse espaço discursivo e quais efeitos de sentido essas relações propõem e estabelecem dentro dos saberes que constituíram a sociedade moderna. Nesse sentido, segundo Foucault, os mecanismos geradores de poder não têm uma explicação apenas na luta de classes ou na divisão categórica destas. Na verdade, o poder nasce a partir de uma necessidade econômica. A economia e os modos de sobrevivência e todas as sociedades, principalmente a moderna, é a mola propulsora de geração de poder, uma vez que os discursos sobre o poder giram em torno dos mecanismos históricos, onde a economia se fez presente. Tudo isso levou o povo, nessas condições, em nome da sobrevivência, a se submeter ao poder do estado através do grande internamento, sem que esses fossem somente loucos, ou seja, a luta pela sobrevivência é uma forma de exercício de poder que é muito bem explorado, desde o Estado até micro relações em que haja alguém que depende de outro. Os discursos sobre a modernidade geram mecanismos de poder através das verdades produzidas por esses próprios discursos, que induzem a uma verdade que produz poder e saber simultaneamente, uma vez que o saber gera poder e o poder manipula o saber constituído, um é a interface do outro. Essas relações se estabelecem não apenas pelo poder, como muitos entendem, mas pela relação desse poder com aqueles que são o alvo deles. O poder e o saber é o resultado das relações discursivas sobre determinado campo do conhecimento. Em muitos de seus escritos, Foucault não chama a Arqueologia do saber de método, nem uma explicação para suas pesquisas, mas é uma obra autoexplicativa daquilo que ele 54

tentava fazer, uma vez que o autor não usaria os mesmos mecanismos para objetos tão díspares em sua pesquisa. Prefere criar seus próprios mecanismos ao mesmo tempo em que pesquisava e escrevia. Esse tipo de procedimento metodológico era muito contrário aos dos estruturalistas, que usavam os mesmos mecanismos para analisar qualquer tipo de objeto, o que para Foucault era um grande equívoco, já que os estados de coisas do mundo não poderiam ser vistos dessa forma, daí o fato dele criar seus próprios objetos e suas próprias maneiras de análise. A cada nova pesquisa se criavam novos objetos e as maneiras de analisá-los. Assim foi em sua fase arqueológica, quando a preocupação era apenas de observar como os saberes eram constituídos, para isso, desde História da loucura na Idade Clássica, As palavras e as coisas, Arqueologia do saber e Nascimento da clínica, todos tinham essa preocupação de mostrar como e através da prática discursiva se constituíam elementos teóricos e analíticos que dessem forma aos saberes produzidos nessas épocas. Foucault, quando empreendia sua pesquisa arqueológica, descobriu que essa não dava conta de outros fatores que surgiam, por exemplo: quem tem o poder de dizer quem é internado? Quem precisa de certos cuidados? E por que cada sujeito era tratado diferente a partir de seu estado mental e sua representatividade social? Ele observou que havia relações de poder entre o Estado e os sujeitos, dos sujeitos em relação ao Estado e dos sujeitos com os próprios sujeitos, bem como dos sujeitos com a cultura e sociedade. Observou ainda que havia relações de poder e de saber que se estabeleciam de forma geral e particular, todas elas com estratégias discursivas distintas, operando uma ao lado outra, ou simultaneamente em poderes e saberes diferentes. O que Foucault pretendia em sua pesquisa era fazer aparecer às interfaces do saber e do poder nos discursos produzidos pela modernidade, uma vez que seu trabalho tratava do poder, a partir do que se convencionou chamar de “o segundo Foucault”, ou “segunda fase foucaultiana”. O mecanismo de estratégias do saber-poder já vai entrar numa discussão mais profunda a respeito da sociedade contemporânea, pois já não há como desvincular o saber do poder, nem estabelecer algum tipo de saber sem que ele não seja legitimado pelos efeitos de verdade oriundos das relações de poder. Dessa forma, segundo o autor

Produz-se verdade. Essas produções de verdade não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam. São essas relações verdade/poder, saber/poder que me preocupam. (FOUCAULT, 1977, p. 5).

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Como diz Foucault, “Produz-se verdade”, em que se percebe uma relatividade do conceito de verdade, uma vez que ela não existe por si só, é uma produção social. Ela é induzida para ser produzida, está presente nas relações sociais de poder e de saber, que se desvinculam uma da outra, estão em eternas relações de convergência e divergência, pois nenhum discurso sobre o poder ou sobre o saber se produz de forma harmônica. Existem nesses discursos grandes conflitos, grandes batalhas travadas no campo do discurso, haja vista que nesse campo do conhecimento, o conflito de ideias é inerente ao próprio conceito de sociedade, sujeito, saber, poder e relações macrossociais e microssociais. Dessa forma, Foucault se intitula um “empirista cego” (FOUCAULT, 2006), pois os objetos que cria e as estratégias que inventa e utiliza para analisá-los, decorre do pensamento hic et nunc da pesquisa, ou seja, a maneira como a pesquisa também cria seus objetos e suas formas de análise. Não implica, entretanto, que suas pesquisas e suas descobertas não sejam aplicadas a outro campo do saber-poder, pois o que ele pretendia não era simplesmente dizer que seu trabalho era inerte, aplicado somente a alguns campos do saber-poder e não a outros, ou que sua pesquisa fosse aplicada somente a um tempo histórico. Sua insistência em dizer que seu trabalho é feito dessa forma, é pelo fato de fugir às teorias gerais do estruturalismo e do marxismo, pois segundo Foucault, esses campos teóricos visavam uma análise macroestrutural, uma teoria máxima aplicada a vários segmentos da cultura, da economia e outros setores da sociedade. Assim, seu trabalho é muito claro, não é estruturalista nem marxista. Suas análises e seus objetos teóricos visam a uma visão mais minuciosa, mais visceral, considerando a microestrutura das relações de saber-poder e da produção de verdades. A força motriz para o trabalho de Foucault era as suas inquietações e o grande número de questões que a sociedade propunha. Suas escolhas levavam em conta as tensões e os terrenos conflituosos que as relações sociais instituíam a cada forma de discurso que se manejava, a cada descoberta de um novo tratamento, a cada polêmica que se instaurava no campo do debate político, de como os discursos sociais eram resgatados pelos sujeitos e o uso e a manipulação destes a favor ou contra determinada formação discursiva. Percebe-se nessa investida de Foucault que ele estava preocupado em dar à sociedade uma forma mais clara e possível de poder vislumbrar essa questão do poder e do saber de forma mais plausível, sem recorrer aos pressupostos gerais de teorias anteriores, nem analisar os estados de coisas da sociedade moderna de forma geral, mas observar suas microrregiões, seus micro poderes, suas pequenas relações que se estabeleciam longe dos centros hegemônicos de poder do Estado. Comumente, segundo Foucault, as relações de poder estão atreladas ao Estado e a seus aparelhos ideológicos, essa força dita geral, comandada pelo exército, pela polícia e que seria a 56

ideia de poder. Entretanto, esse poder só existe porque relações menores se estabelecem entre os indivíduos: entre homem e mulher, pais e filhos, o professor e os alunos, tudo isso de forma reversível. O poder e seu exercício são comandados em sua maioria pelo estado, ou sua presença mais visível, porque existem nas micro lutas e micro relações enraizamentos dessa prática, o que faz com que ela siga contínua do menor para o maior. O poder do estado não seria exercido se os sujeitos também não exercessem algum tipo de poder, ou seja, as relações de saber e de poder são o exercício do poder em qualquer que seja sua instancia seja ela maior ou menor. Quando se fala num método para a análise do poder, se percebe nos estudos foucaultianos que eles não são gerais, ou seja, a cada época e cada segmento da sociedade e seus indivíduos, o exercício do poder varia muito, por isso, essa análise do poder não atende a todos, nem dá conta de todas as atividades humanas em que os micro poderes se estabelecem. A forma como se produzia música na ditadura militar, por exemplo, os temas tratados, a maneira como a censura tratava os compositores é muito diferente, quando essa análise é feita no período posterior. Da mesma forma, se observa que as relações de poder estabelecidas entre a música, a mídia e as grandes gravadoras, em determinadas épocas, também é diferente. Nessa mesma linha, com base nos trabalhos de Foucault, as relações de saber-poder não cobrem toda uma época ou períodos muito extensos, mas uma parcialidade deles, uma vez que não é a análise equivocada ou inadequada, mas faz apenas uma leitura possível do objeto analisado não criando uma “camisa de força”, na qual se tenta forçosamente encaixar uma teoria numa prática discursiva e vice-versa. Nesses moldes, o poder, segundo Foucault, faz surgir à resistência. Nenhum poder é supremo e dura para sempre. Em todas as relações de poder há grandes lutas, conflitos que mantêm o poder sob regras bem específicas, isto é, um poder dominante de cada momento histórico possui a seu lado grupos de resistência, sejam eles ligados à política, economia, cultura. Entretanto, todos eles convivem com o contraditório, já que as relações dominantes de poder se mantêm como predominantes e nunca de maneira uniforme na maioria dos setores da sociedade. As relações de poder e saber, nessa perspectiva, devem conviver com o contraditório, pois é isso que causa as rupturas e alternâncias das relações de saber-poder. Dessas relações de poder surge um conceito de verdade. Nessa linha de pensamento de Foucault, a verdade surge como

o conjunto de procedimentos que permitem a cada instante e a cada um pronunciar enunciados que serão considerados verdadeiros. Não há absolutamente instância suprema. Há regiões onde esses efeitos de verdade são perfeitamente codificados, onde o procedimento pelos quais se pode 57

chegar a enunciar as verdades são conhecidos previamente, regulados. São em geral, os domínios científicos”. (FOUCAULT, 1977, p. 7).

Dessa forma, a verdade ou as verdades são procedimentos que indicam o lugar, o tempo e o sujeito que a enunciou, ou conjunto de sujeitos que a enunciaram; nesse campo de discussão, a verdade surge em determinada instância da produção social, em um domínio específico. Por exemplo, para o domínio religioso, Deus é o criador do universo, e nesse campo específico da atividade humana, essa verdade é tida como absoluta. Já para a ciência, o homem veio a partir da seleção natural de uma espécie de primata comum aos chimpanzés e outros mamíferos do mesmo grupo. Entretanto, a verdade para a ciência não é absoluta, são apenas hipóteses que foram testadas e observadas, através dos fósseis desses parentes ancestrais do homem, testes feitos com o DNA humano e desses animais e outros procedimentos que sugerem verdades alternativas a verdade religiosa. Para essa perspectiva, a verdade é relativa e atende aos pressupostos de cada área do conhecimento. Assim, para Foucault, o poder não é único e exclusivo do estado, assim como diziam os marxistas, bem como outros quando se falava em “Aparelhos ideológicos do estado” 16, mas ele está no cotidiano das pessoas, nas pequenas relações de poder, no qual um sujeito de alguma forma exerce sua forma de saber como um poder para docilizar o outro.

2.4.3 O poder disciplinar e sua relação com a organização da sociedade

Depois de seus trabalhos sobre a arqueologia das ciências humanas, Foucault discorre sobre a docilização. Esse trabalho do autor é uma base teórica sustentáculo de que o poder pode ser exercido de diversas formas sobre os indivíduos, mas principalmente, sobre o seu corpo. Em seu livro Vigiar e punir, entram em cena dois aspectos fundamentais para à formação da contemporaneidade: a vigilância e a punição. Isso implica dizer que, pela primeira vez, se falou na sociedade contemporânea que as instituições sociais possuem um caráter normatizador de suas práticas sobre aqueles indivíduos que estão sobre sua tutela. Depois de teorizar sobre como determinados saberes aparecem em determinadas épocas, por que alguns enunciados surgem e outros não, de como a positividade de cada período da história das ideias se forma através das práticas discursivas, em meio aos conflitos de uma sociedade, em que o homem e as instituições são seus principais protagonistas, Foucault amplia

16 A esse respeito ver Louis Althusser Aparelhos ideológico do Estado (1970), no qual o autor faz uma releitura do marxismo, aplicando seus conceitos básicos da noção de poder na aparelhagem do estado, a polícia, a escola, o sindicato e outras instituições que tem a função de exercer certo tipo de poder sobre os sujeitos. 58

sua visão para os micropoderes e a sociedade dominada pela doutrinação, através das instituições pela docilização dos corpos, como estratégias de organização e manutenção da ordem vigente. Observando como funcionavam muitas das instituições sociais, Foucault viu que a estrutura arquitetônica e as práticas dentro dessas instituições, tinham o objetivo de tornar seus pacientes aptos a retornar a sociedade de forma mais equilibrada, fosse no âmbito da adequação aos costumes, do respeito aos seus pares, na condução de sua vida e, principalmente, aptos ao trabalho. Em suma, a docilização do corpo visava a uma rígida disciplina sobre o corpo para tentar deixá-lo sadio e pronto para ser usado pela sociedade. A fabricação de corpos dóceis é semelhante a dos soldados, segundo Foucault,

O soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado” (FOUCAULT, 1987, p, 162).

Uma das instituições mais antigas é o exército, em que os indivíduos são docilizados, ou seja, deixam seu corpo adestrado e hábil para obedecer a comandos, fazer atividades, desempenhar tarefas diversas. Esse emprego da docilidade, em suas diversas formas de punição, castigos corporais, alienação patriótica, tem como finalidade principal, tornar o corpo produtivo, tornando-o ágil, saudável e livre dos vícios, com a intenção de produzir mais mão- de-obra para a sociedade capitalista, que é um dos sistemas econômicos e políticos que preza pela produtividade, afastando o ócio17 dos indivíduos para que não perca tempo e dinheiro com algo que não seja relativo à produção. Assim, a economia é quem comanda todos os processos que circulam na sociedade para torná-la mais produtiva, organizada e obediente. Através do processo disciplinar, que tem como resultado a docilização do indivíduo, a economia determina o que se pode comprar e vender, induz o que se pode ser consumido, cria mercados consumidores desde o par de sapatos ao disco que pode ser adquirido, inclusive, ao tipo de música a ser escutado, uma vez que o controle sobre os bens culturais visa à manutenção da

17 O ócio na sociedade contemporânea será uma das nossas teses quando estivermos no ponto sobre a indústria cultural. Por enquanto, fiquemos apenas com a noção ampla de que o ócio, derivado do latim otium, que era algo típico apenas das classes mais abastadas da sociedade romana e aos verdadeiros cidadãos, um tipo de disfrute e tempo livre para as atividades acadêmicas, deleites e fruição. Esse termo existe em oposição a negócio, do latim nec-otium, ou negação do ócio, exercido por pessoas que tinham como tarefa garantir a subsistência material de Roma como alimentos, trabalhos manuais, a guerra e o trato com a terra, criação de animais e comercialização de bens, etc. http://culturadbolso.blogspot.com/2011/04/ocio.html. 59

ordem vigente, do discurso da ordem sem muita abertura à subversividade, eliminando do mercado ou alienando e induzindo seus consumidores, de que aquilo é pernicioso à sociedade e, portanto, algo que não deve ser comercializado. Nesse percurso, homem e mercadoria tem o mesmo valor comercial. Nesse sentido, a fabricação de um soldado ocorre pelo adestramento e docilização do corpo, impondo-lhe um conjunto de normas, disciplina de forma a adaptar o corpo ao que se propõe como a guerra, o combate, a obediência cega, ou seja, transformar-se em algo obediente e produtivo. Essas relações de poder são exercidas sobre os indivíduos e estes sobre outros indivíduos, criando uma rede cíclica e infinita que faz com que todos sigam as mesmas normas e padrões para o bem da coletividade, sem que isso garanta a satisfação pessoal, interpessoal e social da economia, da cultura e de outros artefatos culturais e sociais, uma vez que a ordem geral observa tudo de maneira homogênea. Nesse contexto, segundo Foucault:

forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. (FOUCAULT, 1987, p.164).

Segundo a citação acima, a disciplina sobre o corpo não é uma opção do sujeito, mas uma imposição clara do tipo de poder que se que se deseja exercer. A maquinaria que se ocupa desse trabalho escolhe e impõe estratégias para docilizar o corpo bruto e não produtivo para dócil e com produtividade. Para muitos que creem em liberdade, esquecem que as operações e estratégias utilizadas pelas instituições para adestrar as pessoas, muitas vezes, não são percebidas a olho nu, mas estão bem claras nos padrões de beleza, nas normas de etiquetas, nos parâmetros educacionais, no ser educado diferente do não educado, etc. As técnicas operadas sobre os corpos dos sujeitos seguem regras e padrões bem definidos em curto prazo com a intenção de não deixar que o sujeito adquira práticas desconhecidas do sistema de relações de docilização, uma vez que desde o nascimento, o sujeito é domesticado e adestrado para obedecer a padrões que vão desde seu lar com as regras de convivência familiar, passando pela escola, o serviço militar e pela cultura em geral que cria e mantém padrões de convivência, consumo e dependência dos sujeitos em relação a sua experiência como um ser social. Para Foucault, tornar o homem uma máquina.

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é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios. (FOUCAULT, 1987, p.163)

Adestrar é transformar o indivíduo em um corpo dócil, manipulável, que pode ser submetido a qualquer situação de conflito e administrá-la de forma a se comportar de acordo com os padrões vigentes, sem que o indivíduo saiba disso, esse adestramento social não é percebido, nem sequer sentido, é obedecido cegamente. Consomem-se bens e produtos sociais sem saber sua origem, seus benefícios e malefícios, mas pelo simples fato de ter sido posto como algo que pode ser obtido em qualquer lugar da cidade. Isso é feito tanto para o consumo quanto para produtividade. Um fato interessante é o sertanejo universitário, uma música muito simples, com letras mais simples ainda, que refletem o ambiente das baladas, dos motéis, dos amores e desamores que, do ponto de vista da qualidade, seja em sua composição melódica, seja na organização do discurso sobre sua temática, é um tipo de música muito pobre, não como um julgamento de valor, mas fazendo-se uma pequena comparação com outros estilos como o próprio rock ou a MPB. Quando se observa isso, se percebe que tudo acontece em nome de uma coletividade, do trabalho mercadológico das gravadoras, das estratégias que se utilizam nas redes sociais para tornar o produto cultural mais aceitável, impõe de certa forma uma docilização e um adestramento para esse tipo de música, sem que mesmo seus consumidores tenham consciência disso. Nesse sentido, a docilização do indivíduo é algo planejado arquitetonicamente Quase toda organização das cidades é em forma de Panóptico18. Com a saída do homem medieval para o homem moderno, com o êxodo do campo para as grandes cidades, com os crescimentos dos grandes aglomerados urbanos, foi necessário segregar os tipos sociais que habitavam as cidades, para separá-los dentro de uma lógica de sua funcionalidade, colocando os sadios e os que trabalhavam de um lado, e os insanos e não aptos ao trabalho de outro. A função da vigilância nesse sentido é a de tornar os segregados dóceis e aptos a vida social e capitalista, visto que não havia espaço para o controle total desses indivíduos, fazendo com que, aqueles que não se

18 Termo cunhado por Jeremy Bentham que diz respeito às construções que a sociedade moderna desenhava para manter a vigilância daqueles que eram postos sobre a guarda do Estado. Para ele as escolas, as casas de detenção, as cadeias, hospitais, todos eram feitos em forma de um Panóptico, ou seja, de forma circular com torres e edifícios que facilitassem a vista dos indivíduos para vigiá-los. 61

adaptavam a vida social, fossem postos sob a vigilância do Estado, para que fossem curados e devolvidos ao seio da sociedade. Uma vez docilizados, seus corpos se tornavam produtivos e devolvidos ao seio da sociedade. Essa forma de encarar a realidade social sob a forma de tornar os indivíduos aptos a viver em sociedade, principalmente, a capitalista, voltada para o lucro e combate ao ócio, faz com que a economia predomine e perpasse todos os setores da sociedade, porque o planejamento social, do qual os indivíduos são seu principal alvo, é a forma mais eficaz e, ao mesmo tempo, vil para se manter uma sociedade organizada e produtiva. Em outras épocas, por exemplo, na Idade Clássica, da qual o próprio Foucault faz uma análise das instituições como os estabelecimentos mantidos pelo monarca e pela igreja, com a finalidade de separar os indivíduos sadios daqueles doentes e torná-los dóceis, ao ponto de contribuírem com a sociedade da época, as naus que levavam os loucos19 para todas as partes do mundo, ao serem obrigados a deixar as cidades, a Grande Internação dos loucos de toda espécie para aplicação de tratamentos, desde os mais simples aos mais perversos, tinha a uma única função econômica: tornar produtivos aqueles que se ocupavam do ócio ou, simplesmente, separá-los do convívio social, deixando-o entregue a própria sorte. Segundo Foucault,

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se toma hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. (FOUCAULT, 1987, p. 161).

Dessa forma, o corpo como objeto e alvo do poder ou do exercício do poder, não é algo novo. Desde a época clássica que isso foi percebido. Tentar modelar o corpo do indivíduo ao que se faz semelhante a uma máquina,20 é algo extremamente importante para se desvendar o

19 O termo louco designa não apenas aquele acometido de uma doença mental como a falta da razão e/ou da desrazão, mas também toda uma série de mendigos, vadios, epiléticos, adúlteros, gente abandonada à própria sorte e todos aqueles que não geravam renda e mantimentos. Essa análise feita por Foucault contraste com as ideias de muitos da época porque se fundamentava numa teoria analítica que observava como o mundo funcionava por meio da economia e do discurso sobre a doença e, posteriormente, sobre o saber médico. A internação, inicialmente vai gerar ônus para o Estado, mas depois se transformar no que se convencionou chamar de clínica psicológica, hospitais e casa de sanidade. 20 Para se entender isso, basta observar o processo de industrialização que começou com a Revolução Industrial se estendeu a todos os países mundo. As pessoas que trabalhavam e ainda trabalham nas fábricas, são treinadas a fazeres atividades rotineiras e repetitivas assim como as máquinas. Esse efeito máquina é o processo de docilização do homem para o trabalho. Na mesma linha de pensamento, o entretenimento do operário é controlado pela 62

exercício da sociedade capitalista sobre o homem moderno. As técnicas aplicadas de forma direta como as sanções, os regulamentos e toda uma série de princípios, incialmente, podem ter sido vistas como uma organização sistemática da vida moderna, mas na verdade era uma forma de controlar a vida particular do sujeito e sua ação sobre o mundo que o circundava. As técnicas se aperfeiçoaram e o corpo particular começou a fazer parte da grande engrenagem econômica como o homem que, assim como a máquina, desempenhava funções semelhantes e intercambiáveis, ao ponto de não se saber sua diferença. Assim, a docilização era um processo mecânico, em que o sujeito é forçado socialmente a participar dos discursos sem que, muitas vezes, ele tenha consciência disso. Para Foucault,

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tomaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. (FOUCAULT, 1987, p. 162).

A relação corpo-máquina tinha uma função de docilizar para se utilizar o corpo com uma função produtiva, útil e apto a uma sociedade dominada pela máquina e pela técnica. Os procedimentos utilizados buscavam perfeiçoar o corpo através de disciplinas que eram aplicadas diretamente sobre esse ele, tornando-o um objeto desejável e, ao mesmo tempo, dócil. Sem percebe que sua liberdade de fazer funcionar a grande máquina social, na verdade, era algo planejado minuciosamente, por uma estrutura social que lhe eram estranho e, ao mesmo tempo, familiar, já que sua disposição ao adestramento e ao consumo de insumos produzidos por ele, o tornava um ser visivelmente bem visto, pelo fato de fazer parte de uma estrutura. Assim,

Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno”. (FOUCAULT, 1987, p. 166).

Nesse sentido,

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, indústria cultural com a intenção de mantê-lo sempre nas rédeas, para que nenhuma ideia subversiva venha perturbar o sono do patrão. 63

uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (FOUCAULT, 1987, p. 163).

A fabricação de corpos dóceis pela disciplina potencializa a energia deles, aumentando sua aptidão e capacidade produtiva, através do exercício da força e da sujeição, seja ela na forma da política (leis, decretos, regimentos, etc.) ou de sua utilidade prática com a demonstração dos castigos, as punições e humilhações para tornar hábil e produtivo o corpo ocioso e improdutivo. Nessa escala de disciplinarização, o resultado é a morte do sujeito em prol da sociedade, que não pode parar nem deixar de produzir por inércia de mecanismos que tornem a vida social uma prática constante do exercício de dominação. A dominação tem dupla finalidade: se por um lado, o mecanismo disciplinar acentua e aumenta o poder de trabalho do corpo, explorando todas as suas potencialidades produtivas para se tornar algo desejável para manutenção da economia e dos meios de produção de matéria e serviços, por outro, a disciplina e o adestramento, ao dar primazia sobre seus efeitos sobre o corpo, diminui sua capacidade de reação do homo politicus, ao torná-lo mais obediente, dócil, sem muita aptidão para a prática das atitudes voltadas para organização do mundo político, social e administrativo, já que a disciplina visa um corpo saudável para trabalhar e manter a sociedade produtiva e não um corpo pensante21. De fato, na teorização de Foucault sobre a constituição do sujeito moderno e sua relação com os meios de produção, seja de bens materiais, é uma diferença que ele faz entre o homem econômico (homo oeconomicus) e do homem político (homo politicus). Essa diferença tem duas explicações plausíveis sobre a forma como se trata o sujeito na sociedade moderna. O homem econômico se configura como uma política de docilização sobre corpo para o trabalho e geração de bens que sustentam a sociedade capitalista. Nessa investida, a sociedade vigiada cria mecanismos e instituições para adestrar o sujeito para as atividades simples da economia para

21 O uso do termo pensante é uma defesa de Foucault. É claro e lógico que isso não impede que o sujeito não seja pensante pelo fato de ser disciplinado para o trabalho e a vida econômica. O trabalho de Foucault analisa a sociedade capitalista neoliberal, observando que, nesse tipo de mercado, o capital é uma das principais metas dos sujeitos, já que se explora do mesmo sua capacidade individual de gerar lucro e a possibilidade de obter lucro. Como o homem econômico é mais visível que o homem político, há dessa forma, uma maior discussão sobre ele. Além disso, há muitas críticas a essa posição do autor, o que é perfeitamente compreensível, dado a polissemia da linguagem e as movências de sentido por meio do discurso. 64

geração de bens. A família, a escola22, a igreja,23 em suas várias ramificações cristãs e não cristãs, as fábricas, os sindicatos, todos possuem um caráter normatizador de adequação do sujeito para a economia. De uma forma ou de outra, o trabalho árduo e disciplinado é tudo que o mercado capital almeja para uma sociedade justa e igualitária. A disciplina sobre o corpo é tão rígida e eficaz que suprime o sujeito político do homem, impondo-lhe uma forma de pensar a qual os dominadores pensam, fazendo com que seu exercício de poder seja uma atividade meramente burocrática, prevista em códigos, leis, estatutos, manuais sobre moral, códigos de ética, etc. Dessa forma, entende-se que os processos de organização da sociedade por meio da dominação manipulam as formas de conhecimento, as relações de poder, tanto aquelas exercidas pelo Estado quanto aquelas que são realizadas pelos próprios sujeitos em seus habitats. A forma como a sociedade se estrutura é uma maneira de manter a ordem vigente, em prol da manutenção do status quo daqueles que dominam, e a manutenção da ordem social, por meio de mecanismos e estratégias que tornem os corpos dóceis, úteis, disciplinados e bem comportados para que a sociedade continue produzindo e mantendo sua estrutura sem que haja muitos momentos de rompimento da paz.

22 As escolas de um modo geral seguem a política do Estado, que estabelece conceitos básicos para a formação do sujeito, visando sua formação humanística e sua preparação para o mundo do trabalho. Poucas fogem a esses dois critérios. 23 Em seu livro intitulado A ética protestante e o espírito capitalista, Marx Weber (1999) discorre sobre como os fundamentos do protestantismo, a partir de Lutero, influenciaram na conduta dos sujeitos para prática obstinada e quase inconsciente de dedicação exclusivista ao trabalho e a prática da religião protestante. Ele não exclui dessas práticas outras religiões, no entanto verificou nessa, a protestante, uma ligação mais contundente tendo o trabalho como sendo algo divino, dever e obrigação, via de regra, para todo cristão. Também se observa em seu texto, que religiões tradicionais como o catolicismo, que pregava outras formas culturais de leitura e lazer dentro de um espírito humanista, foram criticadas por Lutero por desnortear o sujeito de sua verdadeira vocação: a de trabalhar. O capitalismo, nesse sentido, estaria perfeitamente alinhado ao protestantismo, que vê no trabalho a presença de Deus, que garante o sustento de sua família e a geração de riqueza. O acúmulo de bens e o enriquecimento são tratados como de natureza divina. 65

3 O MÉTODO ARQUEGENEALÓGICO

O método adotado neste trabalho é o arquegenealógico, como passível de análise do nosso objeto de pesquisa, a produção discursiva do Brock - rock brasileiro dos anos 1980 - em letras de músicas das bandas Blitz e Titãs. Nessa primeira parte do método, exporemos sobre o método arqueológico, seus mecanismos constitutivos e as possibilidades de análise. Em seguida, faremos uma incursão no método genealógico e seus mecanismos de análise e, por último, mostraremos como será feita a análise do corpus proposto. O método arqueológico foi desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault. Não é um método de análise no sentido clássico, assim como o de Platão ou René Descartes, buscando um padrão científico a partir da análise de dados, seguindo padrões rigorosos de pesquisa, segundo métodos sistemáticos e matematicamente organizados, sejam eles empíricos, teóricos ou práticos, construídos a partir do conhecimento humano. Foucault tentou estabelecer uma “possibilidade de pensar” (SANTOS, 2010, p. 108) o objeto a partir de sua constituição para o pesquisador. Nesse caso, sua formação é feita por uma série de enunciados sobre determinado campo de atividade discursiva que o constitui como algo possível de análise. Para esse método, mais importante que criar teorias é estabelecer uma maneira de pensar e designar o objeto de estudo. Segundo Santos (2010, p.108), “o método arqueológico é importante para captar o não dito, o não pronunciado, ‘a transformação do descontínuo’ da sociedade contemporânea”. Ainda para Santos (2010), “a partir de uma perspectiva arqueológica não se pode falar em método no sentido clássico do termo, como uma técnica de pesquisa acabada, mas de uma ‘trajetória’” (SANTOS, 2010, p. 108). Para Santos, a pesquisa arqueológica não trabalha com a noção que toda pesquisa esteja acabada, ou que seus métodos sejam infalíveis, mas com a noção de trajeto temático, ou seja, a análise nunca está pronta e acabada, assume uma posição provisória e relativa da análise dos fatos, não se configurando como insuficiente metodologicamente, mas buscando uma análise mais próxima possível do objeto pesquisado, sem esgotar a possibilidade se empreender novas pesquisas no mesmo campo de investigação. Para Machado apud Santos (2010, p.109) “com Michel Foucault a própria ideia de um método histórico imutável, sistemático universalmente aplicável que é desprestigiada”. A arqueologia não trata de fatos contínuos, nem trabalha com a noção de verdade e falsidade, mas pretende explicitar os mecanismos que constituem os discursos como saberes e dizeres constituídos pelos homens em suas práticas discursivas por meio da linguagem. Não é 66

somente um saber instituído pela relação de poderes mantidos pelos “Aparelhos ideológicos do Estado”24, tal qual a filosofia marxista, posteriormente retomada por Althusser, mas pelo saber/poder obtido pelas relações de micro poderes dentro da sociedade; não é, portanto, interesse nesse caso, saber quem tem poder, mas saber como se constrói poder e saber, através da prática discursiva e a constituição de discursos, sobre determinados objetos e acontecimentos. A consistência de aplicabilidade do método se dá, inicialmente, pelo fato de estarmos trabalhando com discursos produzidos em outra época já que, para Foucault, o objeto pode ser pensado em seu tempo ou em um momento histórico distante do sujeito, sem que isso traga prejuízos ao pesquisador. Nossa referência temporal remete à década de 1950, quando emergiu o rock clássico, até o surgimento do Brock – rock brasileiro – na década de 1980. Para Araújo apud Santos (2010, p. 108), “hoje a arqueologia do saber tem a mais a dizer do que teve na década de 1960. Sua capacidade heurística não se esgotou”. Assim, o método arqueológico é importante para desnudar o não dito e o não pronunciado nas relações sociais da sociedade em qualquer tempo. Por se tratarem de discursos produzidos numa época distante da atual, não se pode, portanto, imaginar que a análise seja histórica, ou mesmo diacrônica. O objetivo desse trabalho é proceder a uma análise mostrando uma discursividade diferente para história do rock no mundo e no Brasil, através da escavação de terrenos antes nunca vistos, com o objetivo de mostrar nesse novo estilo musical que determinou um surgimento de um mercado consumidor, ao proporcionar uma revolução na música como objeto de desejo e de consumo, bem como a possibilidade de transformá-la em produto comercializável. Segundo Foucault, realizar essa tarefa arqueológica é:

Empreender a história do que foi dito [...] refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo) traído. Assim se encontra libertado o núcleo central da subjetividade fundadora, que permanece sempre por trás da história manifesta e que encontra, sob os acontecimentos, uma outra história, mais séria, mais secreta, mais fundamental, mais próxima da origem, mais ligada a seu horizonte último (e, por isso, mais senhora de todas as suas determinações). (FOUCAULT, 2008, p. 137).

Nesta perspectiva teórica pretende-se mostrar um mapa arqueológico do rock brasileiro que, de certa forma não foi dito, já que o sentido pode outro e, através de inferências, pode-se analisar as dispersões enunciativas que formaram o movimento. Essas inferências serão feitas

24 Ver Louis Althusser 1970. 67

a partir da teoria da AD francesa, na qual o discurso é um tema que emerge nos níveis social e linguístico, constituindo o homem e a sociedade, ou seja, não há uma verdade absoluta sobre o que é dito, nem mesmo a de seu autor fundador, já que para a AD, o sujeito não é dono de seu dizer. Existirá um autor em um local social determinado que, em seu discurso, busca novos efeitos de sentido. Assim, se buscará o que se escondeu por traz da história do rock brasileiro que não ficou explicitado devido às tramas do discurso e da história através da análise dos não ditos, dos apagamentos, dos esquecimentos, etc. Nesse recorte temporal, se procederá a uma análise da arquitetura social e discursiva do rock nas músicas-discurso produzidas pelo movimento e mostrar, através de uma análise indutiva e inferencial, os saberes que o constituíram enquanto movimento musical, que deu ao Brasil a configuração discursiva de um novo mercado cultural e comercial, direcionados a juventude da época, e, posteriormente a ela, reagrupando as manifestações musicais produzidas pela sociedade da época, as influências que sofreu ao longo de sua formação e os principais autores que contribuíram para isso. O método arqueológico não segue uma linearidade temporal. Na verdade, os enunciados se justapõem uns aos outros para poder fazer sentido. Não significa que haja uma linha temporal ou uma cronologia, mas um percurso temático perseguido pelo pesquisador. Como o próprio Michel Foucault assinala, “a ordem arqueológica não é nem a das sistematicidades, nem a das sucessões cronológicas.” (FOUCAULT, 2008, p. 167). E afirma: “a descrição arqueológica se dirige às práticas a que os fatos de sucessão deve-se referir se não quisermos estabelecê-los de maneira selvagem e ingênua, isto é, em termos de mérito” (FOUCAULT, 2008, p. 167). Para Foucault é preciso rever a história das ideias que:

Em sua forma mais geral, podemos dizer que ela descreve sem cessar - e em todas as direções em que se efetua - a passagem da não-filosofia à filosofia, da não-cientificidade à ciência, da não- literatura à própria obra. Ela é a análise dos nascimentos surdos, das correspondências longínquas, das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes, das lentas formações que se beneficiam de um sem-número de cumplicidades cegas, dessas figuras globais que se ligam pouco a pouco e, de repente, se condensam na agudeza da obra. Gênese, continuidade, totalização: eis os grandes temas da história das ideias, através dos quais ela se liga a uma certa forma, hoje tradicional, de análise histórica. (FOUCAULT, 2008, p. 156).

No raciocínio de Foucault, empreender uma nova visão dos estados de coisas é necessário abandonar a “histórias das ideias” (FOUCAULT, 2008, p. 156) que é vítima das 68

continuidades ingênuas25, do passado como sedimentação das ideias, como se tudo se estabelecesse em um terreno firme. Tudo que foi dito se assenta em um terreno pantanoso e tudo pode afundar e emergir ao mesmo tempo, causando mudanças que antes não foram percebidas aos olhos e sentidos dos homens que viveram em determinadas épocas. A história das ideias é cega e surda aos acontecimentos e aos nascimentos mais obscuros da história, deixando de lado coisas essenciais no aprofundamento para o reconhecimento de uma história ou várias histórias ao lado de uma história linear. De um modo geral, a história das ideias se assenta na gênese, continuidade e totalização dos fatos, obscurecendo outras formas de conhecimento, saber e poder que estão por trás dela. Empreender uma nova visão da história é abandonar a história das ideias que toma tudo pela totalidade e esquece as menores e significativas partes. A isso Foucault deu o nome de descontinuidades. Nesse sentido a descrição arqueológica

É precisamente abandono da história das ideias, recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos, tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram. O fato de que alguns não reconheçam nessa tentativa a história de sua infância, que a lamentem e que invoquem, numa época que não é mais feita para ela, a grande sombra de outrora, prova certamente o extremo de sua fidelidade. (FOUCAULT, 2008, p. 156).

Descrever arqueologicamente um acontecimento é abandonar a ideia de que tudo já foi dito de forma absoluta, recusa-se esse postulado e buscam-se, nos enunciados obscuros da história, novas formas de sentido que ainda não foram ditas, e que o pesquisador precisa explicitar, para mostrar que os discursos em sua constituição arqueológica, podem ser sempre outros e que se mostram possíveis de novos efeitos de sentido. Não se trata de querer desmentir a história das ideias, mas dizer que ao lado dos discursos oficialmente ditos sobre o rock brasileiro, nosso objeto de os estudos, ou outro objeto, há outros que não foram explicitados ou não ditos, e que deles, podem surgir outras formas de explicar os fatos sem se basear numa história prioritariamente linear. Para empreender a descrição arqueológica, Foucault propõe que não se interprete o discurso apenas como documento opaco e obscuro, signo ou representação de ideias e de pensamentos, mas o discurso como monumento, ou seja, a arqueologia não é disciplina

25 Quando Foucault fala da ingenuidade não está dizendo que todas as ideias contínuas e cronologicamente organizadas são, de fato ingênuas, mas que há algo a mais para ser lido dentro das descontinuidades históricas, ou seja, encarar os fatos históricos como meras representações de uma época como algo dito e posto dogmaticamente, isso sim é ingenuidade. 69

meramente interpretativa que busca outros discursos no discurso, mas procura nos discursos que constituíram o próprio documento como monumento. A arqueologia busca descobrir a forma como determinados discursos vieram à tona na construção de um acontecimento e, como outros foram eclipsados, ou seja, procura justamente descobrir porque se tornaram discursos oficiais e outros não. Para o autor francês, a arqueologia deve

definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los. Ela não vai, em progressão lenta, do campo confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência. (FOUCAULT, 2008, p. 157).

Os discursos não são caracterizados por sua identidade estável e estabilizada pelas práticas do discurso, no sentido de acabamento, mas com a ideia de analisá-los em sua própria especificidade constitutiva, observando como ele funciona em seu exterior, configurando-se num campo delimitado de enunciados que caracterizam uma teoria ou uma ciência. É necessário para isso, observar quais foram as estratégias utilizadas na construção do sentido, como ele se originou no campo do conhecimento e como ele se relaciona como os demais discursos, ao se delimitar seu campo de abrangência na constituição dos saberes. Para Dreyfus e Rabinow (1995, p. 57), essa teoria ou ciência

é aquilo que transforma documentos em monumentos, e que lá onde se decifraram esses traços deixados pelo homens [...], desdobra-se uma massa de elementos que se trata [...] de colocar em relação, e de constituir em conjuntos. Houve um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos [...] dos objetos sem contexto [...], tendia a história e apenas fazia sentido pela restituição de um discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, hoje em dia, tende à arqueologia – à descrição intrínseca do monumento.

A arqueologia parte de problemas metodológicos, no sentido de buscar nos documentos pesquisados sua configuração como monumento, uma forma de analisá-los segundo suas especificidades constitutivas, ou seja, cada documento como monumento, possui características que lhe são inerentes e que requer uma pesquisa pertinente a ele. Foucault recusa a ideia de que métodos rígidos com padrões pré-fixados sejam possíveis a determinados objetos pesquisados. Cada objeto requer uma pesquisa específica, dependendo do seu grau de profundidade de análise. A arqueologia não trata o monumento como um documento deixado pelos homens, como se fossem fósseis históricos, mas estuda as próprias especificidades constitutivas do 70

objeto, suas relações com a história e suas implicações na construção dos saberes da sociedade. A arqueologia trata de conhecer como os objetos são constituídos pelo saber histórico, procurando as relações que os caracterizam na constituição desses monumentos como discursos possíveis de serem analisados. Nessa perspectiva, a arqueologia procura saber por que certos enunciados são mais evidenciados que outros na constituição dos monumentos, o que caracterizam como objeto e porque outros enunciados foram rejeitados e excluídos da relação com esse objeto. Nessa perspectiva, procura-se saber por que esse e não aquele enunciado foi selecionado na constituição de certos objetos e não outros. É isso que a arqueologia busca: o não dito e o não pronunciado, de modo que a arqueologia é a descrição dos objetos em sua constituição intrínseca, como se formou e como foi visibilizado segundo outras formas de análise. O objeto da arqueologia é o saber. Definir como se estruturam e se constituem os sistemas de saberes pelo discurso é uma tarefa árdua, já que requer a rejeição da epistéme clássica que lida com objetos contínuos e perenes. Na arqueologia, o objeto é mutável e a análise é constante e sujeita a modificações para acompanhar as transformações sofridas pelos objetos, pela sociedade e pela positividade que predomina em cada época. Eles são constituídos a partir das manipulações dos saberem sociais e históricos, ou seja, a análise não é fixa porque os objetos não são fixos nem a história é estanque, mas sempre sujeita a modificações constantes. Não queremos dizer com isso que o método arqueológico seja um método anarquista e esteja acima de todos os métodos, a ideia central é que nem tudo foi dito sobre determinado objeto e nenhuma análise, por mais profunda que seja, irá dizer tudo sobre determinado objeto. Assim, cada pesquisa arqueológica dá de conta de uma parte do objeto, sob determinado ângulo de pesquisa e de acordo com o objetivo de cada pesquisador. Na constituição dos objetos e saberes sociais, Foucault enfatiza a questão da relação e do efeito disciplinar dos discursos. Para ele, os saberes e os objetos não se constituem a seu bel- prazer, mas por um sistema de relações disciplinares que comandam o que se pode dizer e o que não se pode dizer em determinados lugares sociais e em determinados campos do saber. Cada ciência e teoria têm seus objetos definidos a partir das relações estabelecidas por seus enunciados, ou seja, há enunciados que são pertinentes a certas teorias e ciências e outros enunciados que são excluídos. Essas exclusões são feitas pela própria seleção daquilo que pode ser dito e não dito em um determinado campo do saber. Nesta perspectiva, os saberes são constituídos por campos de enunciados específicos, que configuram a identidade discursiva da teoria ou saber. Cada campo do conhecimento tem suas particularidades, delimitadas pelas categorias enunciativas que formam seus objetos de 71

pesquisa. Pode-se dizer que a arqueologia, para não ser tachada de sem método, uma vez que o objeto trabalhado sob a noção de recorte e limite. O recorte e o limite são rupturas com os métodos classificatórios, rígidos e universais, descartando um método eficaz a toda e qualquer análise. O importante para a arqueologia é fazer um recorte do campo a ser trabalhado ou analisado e estabelecer limites para análise ao especificar elementos e categorias de análise, que podem desnudar e fazer emergir os sentidos de um dado campo do conhecimento. Recortar e dar limites são imperativos na análise dos saberes na arqueologia. Significa que toda pesquisa deve ter um recorte do tempo e dos elementos analisados, assim como limites específicos que configuram sua identidade numa formação discursiva, mostrando como os enunciados se relacionam uns com os outros, ao mesmo tempo em que excluem outros enunciados que não fazem parte ou não têm relação com o objeto analisado.

3.1 O ENUNCIADO

Diferentemente de outras disciplinas como a gramática, que trabalha com a noção de frase, um tipo de manifestação escrita e oral que se relacionada ao sistema linguístico, em que o sentido se dá dentro desse mesmo sistema através da noção de oposição26 de valor27; ou da lógica, que tem a proposição como seu objeto de análise, obedecendo aos critérios de verdade/falsidade, uma representação figurativa do mundo, cujas particularidades restritivas se situam no mundo formal, o enunciado se constitui em bases empíricas e formais, ficando mais no campo da constituição dos objetos, do discurso, da relação com os sujeitos sociais. O enunciado se materializa na língua enquanto entidade formal e nos efeitos de sentidos produzidos por ela dentro de um contexto social, cultural e ideológico. Assim, com relação à frase e à proposição, Foucault deixa claro que

chamaremos frase ou proposição as unidades que a gramática ou a lógica podem reconhecer em um conjunto de signos: essas unidades podem ser sempre caracterizadas pelos elementos que aí figuram e pelas regras de construção que as unem; em relação à frase e à proposição, as questões de origem, de tempo e de lugar, e de contexto, não passam de subsidiárias; a questão decisiva é a de sua correção (ainda que sob a forma de ‘aceitabilidade’)” (FOUCAULT, 2008, p. 121).

26 Esse termo foi criado por Ferdinand de Saussure, no Curso de Linguística Geral. Nele o autor genebrino estabelece que uma forma linguística se relaciona com outra como oposição, ou seja, um sintagma nominal é o que é devido ao fato de não ser um sintagma verbal. Nessa perspectiva, um termo é aquilo que o outro não o é. 27 Termo também criado por Saussure. A noção de valor de estabelece através da noção de oposição. Ver nota 2. 72

Para o método arqueológico, adota-se a noção de enunciado que não é nem frase e nem proposição, não é uma unidade da linguística, não se define pela relação dos elementos constitutivos do sistema imanente da língua. Ele tem regras próprias em sua constituição, que estão relacionadas ao contexto, ao sujeito, a positividade de cada época e a próprio processos de enunciação. Ele não tem tempo nem lugar, é um espaço vazio, uma unidade em movimento, uma vez que, o sentido sempre pode ser outro, os efeitos resultantes sempre podem ser outros, ou seja, a língua está para o enunciado como a possibilidade de sentidos e nunca como uma unidade de sentido em si. O enunciado, segundo Foucault (2008, p. 121) é

a modalidade de existência própria desse conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível.

O enunciado em si não descarta a possibilidade de ser constituído de signos, o que é próprio da linguagem, mas se apresenta como uma unidade concreta, não um signo, mas um conjunto de signos que possui traços com as marcas da enunciação e do sujeito falante. Ele se permite relacionar com os objetos, que descreve em sua visibilidade e dizibilidade, manifestando não apenas o que é perceptível, mas mostrando as vicissitudes de manipulação de estratégias que permitem ao analista verificar sua consistência discursiva. Sua materialidade pode ser repetível sem nunca igual ou o mesmo, tal como uma frase, mas repetível no sentido de que a cada ocorrência, mesmo idêntica, é diferente e possui outros efeitos de sentidos. “O enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e não oculto” (FOUCAULT, 2008, p. 121). Nesse trajeto, o enunciado pode se referir dentro da linguagem ao dito e ao não dito, isso porque para Foucault o que ainda não ganhou uma materialidade está também no campo do dizível. Assim,

não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que regras se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. (FOUCAULT, 2008, p. 98).

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Dentro dessa perspectiva, o enunciado não se confunde com a combinação de elementos linguísticos referentes aos signos, mas funções e domínios específicos que se entrecruzam na constituição dos sentidos formando unidades e blocos heterogêneos, nos quais se realizam os efeitos do sentido. Se reconhece um enunciado por sua função enunciativa, ou seja, ele aparece quando há uma necessidade de o discurso se pronunciar e escolher dentre todas as formas linguísticas aquela que produz os sentidos desejados pelo sujeito falante. Para Foucault,

um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação; (FOUCAULT, 2008, p. 32).

O enunciado é superior às relações entre a língua e a produção de sentidos. É um acontecimento único, que está articulado à maneira como a palavra e as formas de escrita se entrelaçam com a memória, ou qualquer registro das atividades humanas. Ele é sempre um espaço aberto a novas produções de sentido, pois não se esgota apenas num sentido para um acontecimento, mas está sempre no campo do visível e do dizível e pronto a qualquer reativação que o faça ganhar novos contornos para ser-lhes atribuído novos efeitos de sentido. A repetição, intencional ou não, é uma das estratégias do enunciado que podem ser usadas na ativação de saberes que estão armazenados na memória e no arquivo. Esses saberes, por sua vez, ao serem repetidos em contexto social, cultural e ideológico distinto, produzem novos efeitos, uma vez que seu aparecimento se relaciona de maneiras diversas com o contexto, seja como uma repetição que dá visibilidade a algo já cristalizado na memória, seja para rechaçar algum tipo de acontecimento discursivo. Pode ser uma paródia de algo extremamente sensível à coletividade e que, de certa forma, é preferível a uma forma mais comum de atividade linguageira, haja vista que o enunciado repetido possui uma força enunciativa maior para aquele momento e os efeitos de sentido propostos do que um enunciado novo. Segundo Fernandes,

Trata-se, nesse contexto, de compreender a singularidade da existência do enunciado, suas condições de produção. [...] a partir de enunciados efetivamente produzidos em determinada época e lugar, as condições de possibilidade do discurso que esses enunciados integram. Isto equivale a dizer que as transformações históricas possibilitam-nos a compreensão da produção dos discursos, seu aparecimento em determinados momentos e sua dispersão. (FERNANDES, 2008, p. 18) 74

Para Fernandes, entender o contexto e as condições de produção do enunciado, sua existência enquanto uma materialidade enunciativa, é uma das premissas para se perceber o jogo de forças que o forjaram as estratégias discursivas, que levaram o enunciado a ter a configuração que possui. O contexto que produz os enunciados em determinada época, possibilita o aparecimento e a dispersão de muitos discursos, ou seja, cada período histórico produz seus próprios enunciados com base nas estratégias que são movidas pelos sujeitos e que determina de certa maneira, como se faz a escrita da história e as movências de sentido de dispositivos de cunho social, cultural e ideológico que formam as positividades de um dado momento histórico. Nessa mesma perspectiva, conhecer as possibilidades de aparecimento e dispersão dos enunciados, através dos jogos de linguagem e das movências de sentido, é uma das formas de compreender como determinados discursos tomaram corpo na trama histórica e como eles vieram a se tornaram uma positividade para cada época. Para o analista, importa mais as possibilidades discursivas, as estratégias e as condições de produção do discurso do que mesmo seu produto final, uma vez que esse produto sempre poderá ser outro, porque se mudando os jogos de linguagem e as estratégias, nessa trajetória, operando sobre as condições de produção do discurso, poderá emergir um novo discurso sobre o mesmo enunciado ou acontecimento. Uma das propriedades fundamentais do enunciado, segundo Foucault, é sua materialidade, que se refere ao fato de o enunciado ter um suporte no sentido de poder aparecer e não aparecer, seja em um quadro, em um outdoor, em uma pintura, em uma letra de música. Segundo Foucault, “não é simplesmente princípio de variação, modificação dos critérios de reconhecimento, ou determinação de subconjuntos linguísticos. É constitutiva do próprio enunciado. É preciso que o enunciado tenha uma substância, um suporte, um lugar e uma data” (SANTOS, 2010, p. 120). O enunciado tem sua manifestação na vida cotidiana em sua forma mais peculiar e substancial. Santos (2010) trabalha com a ideia de que o suporte, sendo linguístico ou não linguístico, sempre será a possibilidade do enunciado. Para que o enunciado exista enquanto uma entidade concreta e condutora de sentidos, é necessária uma materialidade. Interessante observar que, embora a materialidade seja parte integrante do enunciado, dentro desta perspectiva não se dá muita atenção a isso, já que a linguística estrutural/imanente já o fazia exaustivamente. Para a defesa discorrida aqui, importa a possibilidade de esta materialidade produzir efeitos de sentido, capaz de constituir o sujeito e a sociedade com todos os seus padrões de beleza, gostos musicais, leis, estatutos, etc. Como diz Foucault

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A linguagem parece sempre povoada pelo outro, pelo ausente, pelo distante, pelo longínquo; ela é atormentada pela ausência. Não é ela o lugar de aparecimento de algo diferente de si e, nessa função, sua própria existência não parece se dissipar? Ora, se queremos descrever o nível enunciativo, é preciso levar em consideração justamente essa existência; interrogar a linguagem, não na direção a que ela remete, mas na dimensão que a produz; (FOUCAULT, 2008, p. 126).

Neste ponto, Foucault defende que na linguagem há sempre a presença perceptível (mesmo que não escrita e falada) do outro, da instância produtiva do discurso e suas intenções quando este foi produzido. É uma função particular do enunciado sempre “povoado de outros enunciados” (FOUCAULT, 2008). A existência material de um enunciado pode ser, neste sentido, a presença não dita, mas perceptível, de outro enunciado que foi ocultado, cujo aparecimento se detecta pela emergência de um discurso sobre determinado objeto. Então, o enunciado não vai ao encontro de quem produz, ou seja, seu autor, mas na direção de seu interlocutor em busca de novos efeitos de sentido, não está para a fonte e sim para a relação e para seus sujeitos envolvidos no processo de produção e escrita dos acontecimentos históricos. Nesse sentido, o enunciado é uma categoria do discurso. Ele se estrutura a partir de sua interioridade e exterioridade, ambas passíveis de análise. A primeira refere-se ao fato de ser escrita ou falada em uma dada língua natural, com sua ordem gramatical própria, seu léxico, sua estrutura morfológica e sintática; a segunda, por seu sentido e sua relação com o mundo das ideias, podendo ser um produto ideológico produzido por homens em uma dada época, o efeito de sentido. Essa forma de encarar o enunciado explicita uma preocupação com o sentido, sem descartar a sua forma e sua escritura, seu formato como artefato linguístico. O que se pode afirmar é que tem que se observar no enunciado em sua forma geral, e não apenas na sua imanência, mas sim sua instância produtora de sentidos. A exterioridade do enunciado revela o tratamento que o analista dá a ele. É a apreensão daquilo que foi dito ou não, no contexto da organização das atividades humanas e escrita da história. Todo o trabalho exterior do enunciado se volta para descobrir a interioridade dos enunciados para desvendar seus segredos, não como forma, mas como a linguagem foi manipulada para produzir os efeitos de sentido desejados. Assim,

Empreender a história do que foi dito é refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo) traído (FOUCAULT, 2008, p. 137).

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Quanto a isso, Foucault (2008, p. 139) afirma que:

o conjunto das coisas ditas, as relações, as regularidades e as transformações que podem aí ser observadas, o domínio do qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um autor. ‘Não importa quem fala’, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente, no jogo de uma exterioridade.

A questão da exterioridade para o enunciado leva em conta a instância produtora do saber, não o autor em si, mas o que ele diz, como diz, para quem diz e que efeitos produz. A exterioridade permite observar as transformações ocorridas no tempo e no espaço, analisar sua formação discursiva e, a partir disso, interpretar a história em determinado ponto de dispersão do enunciado. Nesse jogo, importa quem diz, pelo fato de que, quem o faz é autorizado pelo discurso, possui um lugar social, uma posição social que quando fala, seu discurso ganha visibilidade, entrando para os arquivos da história, enquanto muitos que também produziram nas mesmas condições de possibilidade dos discursos, não tiveram a mesma aceitabilidade, seu discurso ficou como um não dito, porque não basta somente isso para ele figurar nas páginas da história. É preciso um jogo audacioso, malicioso e até mesmo, maléfico, mesquinho, para que o discurso ganhe sua visibilidade. O enunciado é uma unidade do discurso que deixa transparecer sua identidade de sentido. Através dele, se pode procurar sua atuação no campo da linguagem e descobrir suas várias formas de produção de sentido, as formas e as manipulações pelo qual o enunciado foi movido, as estratégias discursivas e as movências de sentido. Quanto à identidade do enunciado, Foucault (2008, p. 117) afirma: “a constância do enunciado, a manutenção de sua identidade através dos acontecimentos singulares das enunciações, seus desdobramentos através da identidade das formas, tudo isso é função do campo de utilização no qual ele se encontra inserido”. Segundo o autor, o que forma uma identidade do enunciado são as suas regularidades constantes, ou seja, cada enunciado está dentro de um campo específico que o configura como pertinente àquele tipo de discurso. Um discurso sobre política terá enunciados com seu conteúdo semântico voltado para o núcleo desse discurso. No mesmo discurso, enunciados que se refiram especificamente ao campo da psiquiatria não serão mais discursos políticos, e sim discursos psiquiátricos. Dessa forma, a identidade está na dispersão desse enunciado e não em sua sistematicidade cronológica, já que um mesmo enunciado pode viajar de uma época a outra sem, necessariamente, pertencer àquela época. O que importa é sua estabilidade no campo de sua utilização. 77

Dessa forma, pode-se dizer que os elementos da análise aqui proposta, no caso as letras de música do Brock, serão nosso objeto de estudo. Esses objetos são bastante heterogêneos não pelo simples fato de a linguagem em si já ser heterogênea, mas porque a disposição desses objetos é heterogênea em sua organização textual. A disposição dos enunciados que compõem as músicas é bastante eclética, no sentido de sua organização interna, não obedecer à sintaxe dita normal. São palavras e enunciados superpostos uns aos outros com a sintaxe quebrada, com o plano linguístico alterado e com a criação frequente de neologismos. Embora os enunciados estejam dispostos de maneira aleatória, eles se permitem ser organizados em blocos de sentido, que formam redes de significação que permitem formular conceitos sobre determinado objeto. No Brock, é comum o uso de gírias, palavras de baixo calão, expressões em língua estrangeira de bandas famosas para atestar sua filiação ao estilo ou à ideologia. Entretanto, mesmo com essa disposição, esses objetos não são aleatórios, pois essa suposta desorganização é justamente uma forma de procurar novos efeitos de sentido através dos enunciados que compõem a música. Todos os elementos possuem em sua configuração externa elos que os fazem constituir uma formação discursiva. A composição dos enunciados obedece à maneira subjetiva do seu produtor, com técnicas inovadoras em busca de novos efeitos de sentido, que manipula a linguagem segundo os efeitos desejados pelos mesmos. Essas estratégias enunciativas remetem sempre para o exterior, ou seja, havia nas ideias dos roqueiros uma preocupação com a realidade contemporânea, relativa à própria história que eles estavam vivendo, defendendo, interpretando e reconstruindo. Sobre isso Foucault assinala que

Os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso; tentamos estabelecer, assim, como os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, for retomado no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação, novos conteúdos semânticos, constituir entre si organizações parciais. Esses esquemas permitem descrever não as leis de construção interna dos conceitos, não sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem, mas sua dispersão anônima através de textos, livros e obras; dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de alteração recíproca, de deslocamento etc. Tal análise refere-se, pois, em um nível de certa forma pré-conceitual, ao campo em que os conceitos podem coexistir e às regras às quais esse campo está submetido. (FOUCAULT, 2008, p. 66).

Todo acontecimento discursivo é formado por enunciados ligados uns aos outros por várias formas de retomada, seja no campo da cultura, da economia ou pela ideologia. Todos, de 78

alguma forma, são estruturas que se organizam a partir de um enunciado já construído pela sociedade. Não importa de onde se retiram os enunciados, nem sua época, e muito menos quem produziu, a análise preocupa com os efeitos desses enunciados dentro da sociedade. Importa saber, para o analista do discurso, as estratégias, as movências e os deslizamentos de sentido que se aplicam a determinadas formações discursivas, como se constituiu determinado campo do conhecimento e que formas de sentido os sujeitos utilizaram na hora da sua produção. Um mesmo enunciado pode ganhar várias leituras num mesmo período de tempo, uma vez que sua utilização, mesmo repetível, possui um sentido próprio. Pode-se fazer uma extensão desse enunciado, através de uma paródia, uma substituição intencional de um determinado vocábulo, ou seja, as possiblidades de produção dos enunciados são vários e, infinitamente aberto de possiblidades de novos efeitos de sentido. As letras das músicas do Brock são enunciados heterogêneos, pelo fato de uma mesma música retomar por intertextualidade ou, por uma relação interdiscursiva, ou por outra forma de retomada elementos de outras formações discursivas. A construção das letras das músicas do Brock levou um processo de muitos anos de aculturamento de uma cultura estrangeira que, por muito tempo, foi só copiada e parodiada e ouvida no Brasil, retomando quase tudo que se produzia no exterior. Para o rock que se inicia na década de 1980, o cenário é totalmente diferente, no qual os artistas continuam bebendo na fonte de algumas vertentes no rock de antes, porém, entre eles, havia uma preocupação muito grande com a cultura brasileira. Os artistas da época, ainda com a censura moral do governo Geisel e João Baptista, tentavam mostrar a história do país e como funcionavam as coisas por aqui. Eles não estavam preocupados apenas com música, mas com os andamentos do país que, após mais de vinte anos de ditadura militar, crise econômica aguda, muitos movimentos juvenis clamavam por algo novo, diferente da então glorificada MPB. Um desses veículos de propaganda do governo e da música era a televisão embora tenha chegado ao Brasil na década de 1950, somente se popularizou em meados da década de 1980. Esse teor de linguagem pode ser observado nesse trecho da música “Televisão”, da banda Titãs: “é que a televisão me deixou burro, muito burro demais E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais”. (TITÃS, WEA. Junho, 1985). Nesse trecho da música, os autores retomam enunciados anteriores da cultura popular e da mídia, afirmando que assistir televisão demais deixava as pessoas burras. Esse fato descrito pela banda leva em conta o fato de a televisão veicular somente aquilo que interessa a ela, ou seja, as pessoas da imprensa televisiva que fazem a edição daquilo que deve ser assistido. E ainda se compara os sujeitos telespectadores a animais que vivem dentro de uma jaula. Os autores, ao fazerem isso, também se misturam aos outros sujeitos que assistem televisão e se 79

sentem da mesma forma, como animais selvagens, domesticados dentro de suas casas. Nesse sentido, a jaula pode ser comparada às casas das pessoas e o conceito de animais, é pelo fato de a televisão criar bandos de gente que se aglomeram durante uma programação, seja ela de mero entretenimento, seja programas que se dizem mais sérios, como os telejornais. Embora a crítica da música esteja no fato de, não apenas assistir televisão, mas no sentido de transmitir conteúdos que predem as pessoas, no mesmo instante em que produz verdades, pois a televisão tem o poder de mover enunciados de várias formações discursivas, na intenção de manter as pessoas fiéis, o seu público consumidor. O discurso sobre o rock brasileiro tem uma característica marcante, que é a retomada de outros discursos para afirmar sua posição discursiva diante dos demais discursos, de modo que “os elementos recorrentes dos enunciados poderem reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, ser retomados no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação, novos conteúdos semânticos” (FOUCAULT, 2008, p. 66). Nesse sentido, o enunciado pode ser entendido como uma formação social que leva em conta a história, o sujeito, os processos de formação de verdades sobre determinadas estruturas sociais. A ideologia veiculada em cada formação discursiva torna o enunciado uma formação teórica e prática de grande utilidade para compreensão da sociedade moderna, como, quais e que dispositivos e estratégias se utilizam os grandes canais de comunicação, bem como a sociedade em geral, na produção dos saberes, dos poderes e das condições de produção de verdades. No pensamento de Fernandes (2008), é preciso compreender como e em quais condições de produção do discurso o enunciado se propõe, o contexto de produção onde se ancoram os enunciados novos, as estratégias que se utilizam em sua retomada, os lugares e as transformações históricas que levam a condição de aparecimento/desparecimento de determinados enunciados na construção da escrita da história. A condição de possibilidade do enunciado é uma condição de estabilização/desestabilização de enunciados da trama da história. Compreender o enunciado em suas várias formas de aparecimento e desaparecimento, é buscar os rastros deixados pela humanidade que não foram lidos, vistos e visualizados, graças ao poder de movências ao trabalhar com a linguagem. Entender como funciona o enunciado é vislumbrar a constituição do sujeito, da sociedade, da economia, da cultura e da escrita de uma história, comprometida com os grandes avanços e transformações históricas.

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3.2 A FORMAÇÃO DISCURSIVA

Todo enunciado está inserido em um determinado campo de utilização da linguagem, ou seja, o discurso não é contínuo nem cronologicamente organizado, mas possui um núcleo comum ao qual se agregam todos os enunciados. Segundo Foucault (2008, p. 36), “os enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto”. Assim, a formação discursiva é o encontro de vários tipos de discursos dispersos, pertencentes a diversas formações ideológicas, mas de alguma forma, possuem algo que lhes sejam comuns e outros que lhes são opostos. A formação discursiva é feita por identidade e por alteridade, na qual os discursos são, ao mesmo tempo, convergentes e divergentes, um é a face oculta do outro. Todo o saber do homem se constitui a partir dos discursos que ele registra ao longo de sua existência. Cada campo de atuação do homem é composto por enunciados que pertencem a um dado objeto, ou seja, o objeto, neste sentido arqueológico, não existe a priori: o objeto nasce a partir do enunciado e sua configuração dentro de uma determinada formação discursiva. Dessa forma, para fazer uma análise arqueológica é preciso construir objeto teórico para análise para prática discursiva. Nesse sentido, a formação discursiva permite que se descrevam os enunciados a ela pertinentes. Ela é um conjunto de enunciados que forma um objeto que é passível de análise observando sua constituição de sentidos. Para Fernandes (2008, p. 43), “os enunciados, assim como os discursos, são acontecimentos que sofrem continuidade, descontinuidade, dispersão, formação e transformação, cujas unidades obedecem a regularidades, cujos sentidos são incompletamente alcançados”. Essa constituição não obedece a um sistema cronológico e contínuo de enunciados, mas a enunciados descontínuos, ou seja, é na descontinuidade que se analisam a constituição dos objetos e das identidades do enunciado. É na dispersão que se encontram os sentidos dos enunciados, rejeitando-se, dessa forma, qualquer tipo de saber acumulado e sedimentado pela filosofia clássica. Segundo Fernandes,

Uma formação discursiva revela formações ideológicas que a integram. [...] podemos atestar que toda formação discursiva apresenta, em seu interior, a presença de diferentes discursos, ao que, na Análise do Discurso, denomina- se interdiscurso (negrito no original). (FERNANDES, 2008, p. 39)

Como vemos, a formação discursiva é um conjunto de diferentes discursos que se integram uns aos outros, dando origem a outros através do interdiscurso, que é a retomada do dito e do não dito pela memória. Nesse mesmo trajeto, a relação entre os diferentes discursos 81

decorre das formações ideológicas, que perpassam todo o conjunto de enunciados quando se referem a um mesmo ou outro objeto do saber. Cada formação discursiva se mostra assim como uma heterogeneidade de discursos que se intercruzam em seu interior: “A formação discursiva resulta da combinação de diferentes discursos”. (FERNANDES, 2008, p. 41). Para Foucault,

Seria preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos; o sistema que rege sua repartição, como se apoiam (sic) uns nos outros, a maneira pela qual se supõem ou se excluem, a transformação que sofrem, o jogo de seu revezamento, de sua posição e de sua substituição. (FOUCAULT, 2008, p. 37)

Na hipótese foucaultiana, seria preciso observar o enunciado em sua coexistência com os demais enunciados dentro da formação discursiva, seria preciso individualizá-lo naquilo que ele tem de mais propriedade e relacioná-lo a outros do mesmo campo de atuação ou não, para poder apreendê-lo naquilo que propõe como um jogo de estratégias que visam a exclusão e transformação de outros e sua relação interior e exterior como os demais que compõem uma dada formação discursiva. Nessa lógica, o objeto letras de músicas do Brock é um conjunto heterogêneo de enunciados que interagem dentro de numa formação discursiva e agregam vários tipos de discurso. Nesses enunciados, pode-se perceber que há uma nova configuração da ideia de rock como música nacional e não apenas como produto importado, já que para o Brock, há três elementos imprescindíveis na organização das letras e do som que desejam produzir: a manutenção rebeldia juvenil, característica marcante do rock, o aperfeiçoamento das técnicas de guitarra e uma recusa total ao estilo da MPB. A formação discursiva do Brock tem como elemento integrador as várias intertextualidades representativas e o discurso da antiga e da nova juventude precursora do rock, com o resgate musical da banda Os Mutantes, principal grupo musical dos anos 60 e que influenciou a juventude da década de 1980, e o cantor e compositor baiano Raul Seixas28. Neste sentido, Sargentini & Navarro-Barbosa dizem que a formação discursiva é:

melhor compreendida como um jogo de princípios reguladores que formam a base de discursos efetivos, mas que permanecem separados deles. Essa

28 Embora a produção musical de Raul Seixas não seja alvo da análise proposta aqui, ele foi de grande importância para a juventude do Brock. Ele fez muito sucesso nas décadas de 60 e 70 e basicamente revolucionou o rock brasileiro, chegando a ser chamado de “Pai do rock brasileiro”. Sua música era carregada de misticismo, filosofia, cotidiano e reflexões sobre a vida anarquista, com requintes da cultura americana, principalmente de Elvis Presley, de quem era fã declarado, de John Lennon, Gene Vincent, dentre outros. A sua forma de cantar, vestir-se e comportar-se o transformou num ícone do rock brasileiro que movimentou gerações. 82

formulação sugere então que palavras, expressões e proposições adquirem seus significados a partir de determinadas formações discursivas nas quais são produzidas (os elementos linguísticos selecionados, como eles são combinados) e, assim o sentido se torna um efeito sobre um sujeito ativo, e não uma propriedade estável. (SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 54).

A formação discursiva compreendida nestes termos é uma regularidade em que os enunciados são aglutinados por dispersão. São enunciados pertencentes a outros discursos e domínios discursivos que se entrelaçam numa mesma regra, formação de uma identidade através de um dado de sentido. Como se pode observar, os elementos dispersos só adquirem um sentido efetivo quando estão dentro de uma mesma formação discursiva, ou seja, um conjunto de elementos que compartilham limites de sentido, haja vista que sugere a seleção de certos enunciados e a exclusão de outros que não façam parte da constituição de sentidos dentro do campo de atuação dos enunciados, que “parece obedecer a duas injunções contraditórias: trabalhar sobre sistemas e, no mesmo processo, desfazer toda unidade ou trabalhar sobre as regularidades da dispersão.” (SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 55). Para Fernandes, (2008, p. 40),

uma formação discursiva dada apresenta elementos vindos de outras formações discursivas que, por vezes, contradizem, refutam-na. [...] A interação envolve a natureza dos processos de produção do discurso, também chamado de prática discursiva. Na dimensão prática social, o discurso, ao ser produzido e interpretado, constitui uma ação em um contexto situacional, ideologicamente marcado.

Desse modo, uma formação discursiva agrega em seu interior um conjunto infinito de outras formações discursivas, pois nela interagem elementos que se contradizem entre si, produzindo processos de formação de discursos que definem uma determinada prática social, à qual o discurso é direcionado e configura, de alguma forma, sua dispersão ou descontinuidade, no sentido de se aproximar deste ou daquele objeto ou acontecimento discursivo. A formação discursiva é sempre percebida em sua prática discursiva, ou seja, é necessário analisar os diversos tipos de transformações que levam ao desaparecimento de uma positividade e à emergência de outra, analisando como mudaram os diferentes elementos de um sistema de formação (GREGOLIN, 2006). Nessa linha de raciocínio, a formação discursiva se assemelha aos gêneros do discurso de Bakhtin (1998), ou seja, entidades relativamente estáveis que fazem parte de um determinado conjunto de enunciados particulares dentro de um mesmo gênero. Os gêneros do discurso não 83

são materializáveis, não possuem um suporte específico, mas dão origem a todos os outros gêneros. No entanto, Foucault não se preocupou com a noção de ideologia, tal qual os marxistas, nem mesmo em diferenciar os diferentes gêneros e as esferas de onde eles emergiam, mas apenas em dizer que os vários domínios da linguagem, seja ela ordinária ou não, podiam se manifestar em blocos heterogêneos e dispersos, mas que comungavam com uma unidade de sentido. Nessa perspectiva, os enunciados são como se fossem gêneros textuais materializáveis que se materializam em algum gênero de texto e a formação discursiva como formações discursivas instáveis e imaterializáveis, mas que se organizam, segundo princípios próprios, em campo específicos do conhecimento como a economia, a política, a publicidade, etc., assim como os gêneros do discurso.

3.3 O ARQUIVO

Para a AD de linha francesa, é muito importante a noção de arquivo. O arquivo não se confunde com o conjunto de textos deixados pelos homens ao longo da história vivida, não é somente o rastro deixado pelas gerações para que as gerações posteriores possam estudar, ou seja, não é só aquilo devidamente registrado e catalogado em um arquivo de metal. Há por traz disso todo um processo de constituição de sentido que, muitas vezes, a história não registra e que é uma grande valia para a AD, que explora terrenos nunca explorados, que revisita constantemente os monumentos, para neles escavacar novos sentidos para o melhor entendimento de como funciona a sociedade moderna e de que processos discursivos ela foi formada. Para Foucault o arquivo não é

a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde (sic) desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2008, p. 146).

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Em Foucault, a noção de arquivo não é a materialidade deixada pelos homens e pelas instituições, mas as regras segundo as quais fizeram emergir esses discursos sobre determinado objeto, ciência ou teoria. O arquivo surge através de um jogo de performances verbais que atuam regidas por determinadas leis ou ordens do discurso que apareceram segundo relações manifestadas no nível do discurso. Esses arquivos podem estar em qualquer momento histórico, no cotidiano das pessoas, no silêncio das coisas que não foram ditas e escritas, nos objetos que foram colocados à margem da história oficial, enfim, em tudo aquilo com o qual se pode detectar a presença de um discurso latente ou de estratégias discursivas que não ganharam visibilidade no grande livro da história. Então, segundo Foucault

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas. (FOUCAULT, 2008, p. 146)

Para a noção de arquivo, é imperativo a dispersão, porque o arquivo não é algo que é dito e se sedimenta em forma de algum tipo de documento. Ele é formado por enunciados que surgem a partir de regras específicas, por isso não permanecendo inerte e parado no tempo. O arquivo explica o porquê de certos enunciados aparecerem de forma singular como um acontecimento e porque outros são ocultados. Essa noção de acontecimento e singularidade é que torna o arquivo como um monumento a ser estudado em qualquer época, já que ele não se confunde com um documento, ele é percebido através de sua dispersão, aparecimento e ocultamento, como um acontecimento que não foi dado a devida atenção. O arquivo não se acumula como uma massa amorfa e empoeirada pelo tempo, ele surge a partir de relações estabelecidas segundo ordens estabelecidas pela sociedade. Não permanece igual, mas como algo passível de desvelamento de seus não ditos, já que o sentido escapa às formas e às formações discursivas e, é regido segundo regularidades específicas. Para Sargentini e Navarro- Barbosa (2004), o conjunto de regras que definem o aparecimento de um enunciado num arquivo é a priori histórico [itálico do original] que é desenvolvido graças à positividade, um campo que estabelece as identidades e formas de continuidades temáticas e jogos de conceitos polêmicos. Para ela, a priori histórico são “as condições de emergência dos enunciados, a lei de sua coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem. O que chamo de a priori histórico é o 85

conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva” (SARGENTINE & NAVARRO- BARBOSA, 2004, p. 40). Para os autores, o a priori histórico é um conjunto de regras específicas que fazem surgir os enunciados no arquivo, ou seja, seu aparecimento e desaparecimento, graças a princípios que regulam sua coexistência com outros enunciados caracterizados pela prática discursiva. Nesse sentido, arquivo para a AD, é o termo que pode unir todos os outros conceitos de enunciado, conjunto de enunciados, formações discursivas, discurso, prática discursiva, criando uma hierarquia que regula os espaços discursivos e as práticas discursivas dentro de um discurso na história. No arquivo é onde se processam todas as estratégias de surgimento de enunciados e discursos sobre determinado objeto ou acontecimento. Ele é um livro com todas as manifestações de uma prática discursiva aberto para análises discursivas das mais variadas formas. Toda visita a um arquivo nunca antes visitado, ou revisitado por inúmeras vezes, sempre é um acontecimento singular. Para Foucault:

O domínio dos enunciados assim articulado por a priori históricos, assim caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido por formações discursivas distintas [...] é um volume complexo em que se diferenciam regiões heterogêneas e em que se desenrolam, segundo regras específicas, práticas que não se podem superpor. Ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história, palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, ternos nas práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. [...]. Trata-se do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, ha tantos milênios [...] tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2008, p. 147).

Dentro dessa perspectiva, o arquivo é constituído na história pelos a priori históricos, ou seja, um conjunto de regularidades específicas que determinam cada campo do saber constituído. Os saberes no arquivo são constituídos pela positividade da época e pelos jogos de memória e identidade que caracterizam cada formação discursiva com seu objeto. Nessa linha de raciocínio, o arquivo se constitui nas relações de saber e poder que aparecem e desaparecem graças às relações da utilização dos discursos por homens de cada época, não como fonte e origem do saber e poder, mas como autores sociais que falam a partir de uma formação discursiva. Ele é a movimentação discursiva dos acontecimentos e das coisas. Ambas são 86

ferramentas que produzem poder, saber e verdades, que estão lá para serem analisados e decifrados pelo pesquisador. O arquivo, para este trabalho serão algumas letras de músicas do Brock, especificamente, das bandas Blitz e Titãs, na década de 1980, mas que será preciso fazer um mapa arqueológico do nascimento do rock desde as primeiras manifestações desse fenômeno nos Estados Unidos e depois sua entrada no Brasil, a partir da Jovem Guarda e dos Tropicalistas. Essas músicas serão tratadas como enunciados que foram produzidos por autores sociais da época supracitada e que se caracterizaram como parte de um movimento em busca de renovação e experimentação no campo das artes e que, apesar das atitudes de rebeldia relativas às identidades, pode-se inferir, a partir do discurso e da formação discursiva, que hoje os saberes produzidos não são aleatórios e ao devir dos falantes, mas se caracterizam por um jogo de identidades constituídas pelo discurso nas relações de saber e poder. Para Gregolin (2006, p. 69), os arquivos são “jogos de regras que determinam numa cultura o aparecimento e o desaparecimento dos enunciados, sua permanência e sua extinção, sua existência paradoxal de acontecimentos e de coisas”. Assim, os arquivos são todo tipo de conjunto de estratégias, regras de formação, manipulações vis e toda espécie de elementos de estados de coisas e acontecimentos que provocaram os surgimentos dos enunciados. Ainda no pensamento de Gregolin (2006, p. 71) “o método arqueológico envolve a escavação, a restauração e a exposição de discursos, a fim de enxergar a positividade do saber em um determinado momento histórico. Ele se constitui na busca de elementos que possam ser articulados entre si e que fornecem um panorama coerente das condições de produção de um saber em certa época. Esse conceito de arqueologia envolve principalmente a noção de arquivo, no qual a escavação arqueológica constitui uma busca por elementos que foram deixados pelos homens, mas que não foram ditos, com a intenção de traçar um panorama sobre a situação discursiva de cada momento histórico, se esgotar suas possiblidades de análise e ainda mostrar como muitos discursos que foram silenciados têm o mesmo estatuto daqueles já estabilizados e oficializados.

3.4 A GENEALOGIA: CONDIÇÕES DE EMERGÊNCIA DO SABER-PODER

A segunda fase dos estudos foucaultianos é denominada de genealógica. Nela o autor se distancia pouco a pouco da ideia de uma arqueologia do saber, no qual faz emergir o estatuto das ciências humanas e o nascimento dos saberes em cada época. Esse afastamento não é brusco 87

nem total, mas apenas metodológico, no sentido de mostrar que a constituição dos saberes de determinada época se dá por meio de relações de poder. Nesse sentido, o poder exercido nas relações discursivas, em que envolvem sujeito, discurso e a história, não se define por entender aquele que manda e aquele que obedece, o poder em Foucault não se estabelece dessa forma. É incontestável o fato de que as instituições criam mecanismos de controle através das atividades burocráticas, do direito, da economia e das estratégias legais organizadas para exercer sobre o sujeito o poder que lhe conferem. Entretanto, para a genealogia o poder se observa nas microrregiões do saber, não se exerce verticalmente, mas de todos os lados atravessando os sujeitos por meio de dispositivos, como a influência exercida pelos meios de comunicação de massa, para a compra de produtos e insumos oriundos da tecnologia e da indústria do entretenimento. Foucault pretende com esse novo método ou forma de leitura, ou mesmo a maneira pela qual se compreende o poder dentro de determinados saberes, que não foram legitimados ou desqualificados e deixados à margem da/pela história oficial. Para descobrir neles os efeitos de poder e que estratégias são utilizadas para que ele apareça em determinadas formações discursivas e não em outras, e como o discurso é o fio condutor desses efeitos de saber-poder. A genealogia não pretende, como a etimologia do próprio nome diz, ver ou procurar as coisas em sua origem sacra e seu passado mítico, mas buscar através dos rastros deixados pela trama discursiva na emergência e configuração dos saberes, outros não ditos. Não basta dizer que o rock é um movimento cultural que apareceu ainda nos anos 1920 do século XX, que foi basicamente elaborado pelos negros do delta do Mississipi e que floresceu na década de 1950 devido ao grande desenvolvimento tecnológico, o aparecimento da televisão e dos toca-discos e dos disks jóqueis. Isso seria mascarar toda uma trama histórica não dita por aqueles que têm a legitimidade para escrever a história oficial. O nascimento e florescimento do rock enquanto movimento cultural/comportamental/histórico, não pode se esquecer da luta dos negros por liberdade e melhores condições de vida que a cidade proporcionava, nem mesmo dos brancos filhos dos brancos, herdeiros de uma tradição, que a rejeitaram em detrimento de uma modernidade emergente. Não se pode esquecer ainda da exploração, por parte das grandes empresas fonográficas, de grandes talentos do blues, do folk e muitos outros estilos cultivados a partir de uma raiz africana. Dessa forma, a genealogia explora o monumento constitutivo dos saberes e como as estratégias de poder estruturam esse saber. Como ele possui efeitos de sentido dentro de determinada formação discursiva, ou seja, de como esse poder é exercido e como esse exercício 88

proporciona certas relações de poder na veiculação de alguns discursos e como esse se estabelece como legítimo. Para Roberto Machado, discorrendo sobre a genealogia foucaultiana:

Seu objetivo não é principalmente analisar as compatibilidades e incompatibilidades entre os saberes a partir da configuração de suas positividades; o que pretende, em última análise, é explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidades externas aos próprios saberes, ou melhor, que, imanentes a eles – pois não se trata de considerá-los como efeito ou resultante -, os situam como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente política. (MACHADO, 2006, p. 167).

A genealogia não explica, ou pelo menos não está preocupada com o aparecimento dos saberes a partir das positividades de cada época, nem mesmo suas compatibilidades ou incompatibilidades na organização cultural, social e histórico desta, mas com as possibilidades que cada forma de saber se oferece na configuração dos poderes e como eles se estabeleceram ou foram legitimados a partir de discursos externos ao saber e não em sua forma imanente. Nesse ínterim, importa mais o que o discurso sobre determinado saber diz e não seus elementos estruturais constitutivos, isto é, de como certos poderes se estabeleceram a partir da emergência dos saberes e como esse poder estrutura o saber em sua prática discursiva. Ainda segundo Machado (2006, p. 167):

nesse termo é empregado é a ideia de que a questão central das novas pesquisas é o poder e sua importância para a constituição dos saberes. [...] da questão do poder como instrumento de análise capaz de explicar a produção dos saberes. A genealogia é uma análise histórica das condições políticas de possibilidade dos discursos. Nesse momento, muda também de modo radical o tipo de questão metodológica colocado por Foucault. Pois, não se tratando mais de justificar a especificidade da história arqueológica, momento em que as questões de conceito, da descontinuidade e da normatividade aparecem em primeiro plano, desaparece todo posicionamento em relação à história epistemológica.

Para esse autor, saber e poder são indissociáveis, uma vez que a própria constituição dos saberes se faz por meio das relações de poder. A genealogia é a análise do materialismo histórico e explica as condições de possiblidades dos discursos. Essas possibilidades refletem sempre uma ação política, uma vez que forças sociais e institucionais inferem diretamente na realização desses discursos sobre o saber e o poder. Esses dois elementos são constituintes dos discursos produzidos socialmente, ou seja, o discurso enquanto forma de determinado saber, é estruturado pelo poder que o constitui. Nas relações de poder é onde se deixa de observar as coisas como elas são e se passa a observá-las como deveriam ter sido, ou mesmo que o passado 89

tenha sido outro, que foi outro que já-é-outro, e só não teve a oportunidade de sê-lo devido ao seu sombreamento por outros saberes e outros poderes que tiveram maior visibilidade, o que não implica de maneira nenhuma que eles são tenham existido. Uma vez estabelecida a visibilidade do saber através da prática discursiva, o poder também se estabelece por meio das relações discursivas. Ambos, saber e poder, são constitutivos dos objetos sociais e dos saberes que determinam e constituem a sociedade tanto em seus aspectos sociais, culturais e institucionais. Para a ideia de poder estabelecido por Foucault não se descarta a possibilidade de as instituições sociais desempenharem esse papel que é central e geral, abarca a tudo e a todos e se é exercido por meio das leis, do direito, das instituições socialmente estabelecidas. O poder para a genealogia foucaultiana é exercido através dos micros poderes, das relações que estabelecem de individuo para individuo, de instituição para instituição, das relações que se estabelecem entre uma formação discursiva com outra da mesma identidade ou de identidade diferente. O poder, nesse sentido, não é algo que possa tocar, mas algo que é exercido, uma prática que se estabelece nas relações sociais e institucionais. Para Foucault, a genealogia é

aquilo que poderíamos chamar de condições de possiblidades políticas de saberes específicos, como a medicina e a psiquiatria, podem ser encontradas, não por uma relação direta com o Estado, considerado como um aparelho central e exclusivo de poder, mas por uma articulação com poderes locais, específicos. Circunscritos a uma pequena área de ação, que Foucault analisava em termos de instituição? (MACHADO, 2006, p. 168).

As condições de possibilidade de aparecimento dos poderes para a genealogia não se dão apenas com a articulação com o poder do estado, mas por relações menores que se estabelecem com poderes locais e específicos, inscritos em ações também minimizadas, mas que juntos com outros poderes, articulam a constituição dos saberes. Por exemplo: o fenômeno rock and roll surge em condições mínimas de articulação entre os saberes e poderes anteriormente constituídos e as novas relações que se estabeleceram com o nascimento da modernidade. O poder pode nascer da relação recíproca que se estabelece entre o novo e o velho, criando uma noção de continuidade daquele e estabelecendo novas relações de poder com os novos saberes e poderes. Ele também pode se estabelecer por meio da contestação de antigas relações, criando novas relações que poderão ser bem diferentes daquilo que se propunha antes. O rock nasce no mundo pós-guerra, contestando os valores estabelecidos pela sociedade patriarcal, ao mesmo tempo, renovando suas perspectivas em relação às novas positividades da 90

época, ao estabelecer como parâmetros a ideia de não aceitação dos padrões vigentes, seja com relação a tabus sobre a sexualidade feminina, o preconceito macabro e explicito em relação aos negros, seja pela expansão de ideais capitalistas e socialistas, o rock era novo em tudo, porque estabelecia relações com outras relações de poder como o crescimento das cidades e esvaziamento dos campos de algodão onde viviam os negros, o aumento da possibilidade de melhoria de vida na cidade através do poder do blues, do movimento da música folk e dos novos empreendimentos da indústria fonográfica para a música vinda do delta do Mississipi. A genealogia, para Foucault,

visa mostrar a diferença entre as grandes transformações do sistema estatal, as mudanças de regime político no nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto e a mecânica de poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder esse que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo -, e se situa no nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser caracterizado como micropoder ou subpoder. (MACHADO, 2006, p. 168).

A genealogia visa mostrar que a grande transformação social em relação aos mecanismos utilizados pela política e pelo grande conjunto que constitui a sociedade e que se expande por toda ela, com o objetivo, não de manter o sujeito preso ao poder do estado, através das leis e do direito, mas tingindo esse sujeito diretamente sobre seu corpo através das técnicas de dominação. Nessa perspectiva, abandona-se a ideia geral, de que o sujeito estaria subordinado ao poder do estado, não por que ele não exista de fato, mas porque sua distância e eficácia não assumem formas mais próximas e penetrantes na estrutura social. O micro poder e a dominação categórica são duas das formas mais viscerais de alcance social do indivíduo. Com ela, o poder se torna mais efetivo pelo fato de atingir diretamente o sujeito em seu trabalho e as normas e direitos trabalhistas, pela moda que determina e discute a sexualidade, pela cultura que molda e determina comportamentos, gostos, preferencias, influenciando diretamente os sujeitos, na compra e consumo de produtos fabricados e, destinados ao prazer e a satisfação pessoal. Essa fase da genealogia explora as formas e as estratégias de como o poder é exercido e sua influência direta sobre os sujeitos sociais. Não é um produto em si, mas se estabelece por meio das relações de poder e das estratégias de exercício desse poder. Não se pode encontrá-lo ou tocá-lo, mas senti-lo em toda sua essência e abrangência, bem como suas formas mais fulcrais de dominação e adestramento. Para Dreyfus e Rabinow, 91

Kant introduziu a ideia de que o homem é o único ser totalmente envolvido pela natureza (seu corpo), pela sociedade (relações histórica, políticas e econômicas) e pela língua (sua língua materna), e ao mesmo tempo, encontra uma sólida base para todos estes envolvimentos em sua atividade organizadora e doadora de sentido. (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. XV)

Para esses autores, parafraseando Kant, o homem apresenta três dimensões: a primeira, o homem em natural envolto pela natureza, um ser em seu estado biológico e, portanto, um ser único com seu corpo; a segunda, um ser social praticante da política em seu estado laico, envolvido pelas práticas sociais, pela economia, pelas relações de poder; por último, o homem produtor de sentido por meio da sua língua em um contexto de linguagem. Essa última dimensão já anuncia o homem como um efeito de linguagem, visto que, sendo a linguagem uma produtora e veiculadora de sentido, não pode o homem como ser de linguagem estar desvinculado dela, pois ao mesmo tempo em que produz sentido pela linguagem, o homem também é um ser de linguagem, e nesses termos, um produto dela, haja vista que atribui sentido a si mesma e ao próprio homem. Na elaboração de uma teoria sobre o corpo, Foucault recebe várias influências teóricas nesse campo de atuação para desenvolver sua teoria sobre a dominação e as estratégias de adestramento na sociedade moderna. Uma das alternativas usadas foi a do fenomenólogo Merleau-Ponty em Corps propre, ou simplesmente, corpo vivo. Dele, embora seja uma teoria geral, não muito desenvolvida pelo autor de Fenomenologia da Percepção, Foucault aproveita as teses de que o corpo é compreendido como uma estrutura que comporta vários sistemas de correspondência com as quais dialoga, como a cultura e os comportamentos sociais, que o moldam segundo a percepção humana de maneira universal. Segundo esse autor, o corpo possui gestos que são significativos para a cultura e a sociedade em geral, como a altura, o peso, as noções de direita e esquerda, a expressão facial e, de alguma forma, influenciam nas condições de normatização desse corpo, que ele chamou de interculturalidades. Entretanto, Foucault encontrava-se mais inclinado para as noções mais próximas das de Nietzsche, embora reconhecesse em Merleau-Ponty, um grande trabalho nessa parte de organização da genealogia como uma analítica do poder, sobre o corpo e suas relações discursivas na constituição do poder, e ainda estava mais interessado na parte em que tudo isso foi utilizado para o desenvolvimento das técnicas disciplinares. Por outro lado, Nietzsche atribui ao corpo uma liberdade dionisíaca, na qual estaria aberto às peripécias dos prazeres, das dores, amores, destituindo dele qualquer ato de disciplina ou controle externo. Nesse autor, Foucault evidencia um regime para o cálculo do regime dos prazeres e a organização da dor e dos amores 92

como atos normativos e extremamente disciplinares, já que pelo viés no qual Foucault se enveredava, a sociedade disciplinar e normalizadora utiliza os conceitos de liberdade como uma forma de dominação e exercício de poder sobre o sujeito. Nesse ínterim, Foucault entende que a liberdade do sujeito em sua prática cotidiana dá a ele uma falsa noção de liberdade, não no sentido da alienação própria dos marxistas, mas como uma prática que é disciplina e normatizada por suas próprias práticas, uma vez que cada ritual meticuloso já é uma receita pronta para disciplinar o corpo, tendo esse mesmo indivíduo plena noção e consciência do que está fazendo. Para a genealogia, o corpo está envolvido diretamente na política. As formas de organização dele para as operações de controle sobre os costumes, o trabalho, são estratégias que primeiro criam um sistema de signos que remetem diretamente à manutenção da sociedade moderna. São mecanismos que tornam corpo ao mesmo tempo útil e submisso, ou seja, apto ao trabalho e submisso às leis e às estratégias utilizadas para mantê-lo sempre saudável e fiel ao que preconiza a sociedade capitalista. O corpo é moldado tanto em termos de produtividade como de consumo de bens e serviços por ele produzidos para a manutenção da higienização social, que seleciona os mais aptos para produção e os desvios são combatidos por meio de regimes que o disciplinarizam para serem dóceis e úteis. Essa forma de conduzir as noções sobre disciplina é preconizada pela própria sociedade, pela cultura e pelo próprio indivíduo, sem a qual tais práticas seriam sem sentido, uma vez que essas mesmas práticas é o que o tornam um sujeito social. Foucault não está preocupado em encontrar a questão do poder ligado diretamente ao Estado e nos cruzamentos de saber-poder-corpo nas políticas sobre eles, mas especificamente, de como eles se estabelecem. Seu trabalho está mais inclinado para se perceber como as tecnologias do poder criam mecanismos de dominação e adestramento sobre o corpo na sociedade ocidental por meio das relações tecnológicas e não apenas por meio do estado de direito. Para o autor de Microfísica do poder, não é que o Estado não exerça alguma forma de poder sobre os indivíduos, não é só isso. Quando pensou em como se exercia uma política sobre o corpo e com intenções de utilizá-lo como uma engrenagem social, não estava preocupado com noções muito gerais, mas com preocupações mais localizadas em que o poder-saber era mais efetivamente encontrado: ou seja, nos indivíduos. Para detalhar tudo isso, preocupava-se como apareciam, se articulavam e se disseminavam as tecnologias políticas sobre o corpo. Acreditava ter encontrado a fonte do poder, observando as materialidades das forças exercidas socialmente através de rituais meticulosos de poder. 93

Em suas reflexões, Foucault coloca o nosso corpo na história como objeto de saber e de poder que está sujeito a experiências no campo das relações de forças entre o sujeito biológico e os poderes institucionalizados, bem como os resultados de procedimentos de dominação e adestramento para usufruto desse corpo como um bem material, apto a viver de acordo com as relações que se estabelecem entre o ser biológico e o ser social. Não se pode pensar um sem o outro. O sujeito social é um corpo biológico envolvido em práticas sociais. O corpo biológico é um sujeito social que age segundo normas e padrões disciplinares que, ao mesmo tempo, influenciam diretamente na constituição da sociedade capitalista: corpo e mente sã, um conceito muito antigo que remonta aos gregos, mas que tem na sociedade da modernidade sua forma mais vil. O esforço teórico de Foucault nessa abordagem genealógica, é desembaraçar o sujeito moderno, traçar um perfil da sua constituição na trama histórica da modernidade. Sua trajetória tenta mostrar o desenvolvimento das técnicas modernas sobre o indivíduo moderno, e como a tecnologia fabrica meios de controle, adestramento e docilização dos corpos por meios de discursos sobre o ele. Entretanto, para Dreyfus e Rabinow (1995, p. 122),

Neste campo, o genealogista vê que a luta pela dominação não é apenas a relação de governantes e governados, de dominantes e dominados: “A relação de dominação não é mais uma relação em que o lugar onde ela se exerce não é um lugar. E é por isso, exatamente, que cada momento da história, ela se fixa num ritual, impõe obrigações e direitos e constitui procedimentos cuidadosos”.

Nessa trama estabelecida no campo do discurso, a luta entre aqueles que pretensamente são dominados e aqueles que da mesma forma dominam, não é algo apenas tão simples assim, como pretendiam, por exemplo, as teorias discursivas sobre a alienação no marxismo; isso é feito por meio de relações que se estabelecem apenas in loco, mas por toda a parte onde haja o discurso: um ritual normativo, no qual cada um desempenha seu papel de acordo com o lugar que ocupa naquele momento da enunciação, ou seja, o lugar social é vazio e pode ser preenchido a por qualquer sujeito ou entidade empírica dependendo da forma que o ritual se estabelece previamente. Nessa perspectiva, muda-se o ritual, mudam-se os papéis, as identidades, os procedimentos e as estratégias de ver, sentir e agir, mostrando que o ritual é sui generis em sua constituição, porém atinge a todos de forma micro organizada, já que são os seus elementos constitutivos que oferecem a padronização da sociedade moderna. Segundo essa mesma abordagem, o ritual é o efeito de linguagem sobre o sujeito, pois ele determina suas ações e ao mesmo tempo o convida a participar e fazer parte da trama 94

discursiva, uma vez que o ritual é um artefato cultural, organizado para ser um instrumento de adestramento, docilização e normatização dos costumes e da cultura e que intervêm diretamente na constituição da sociedade e do sujeito. Dessa forma, sociedade e sujeito são constitutivos. Quando se observa o ritual meticuloso da perspectiva adotada por Foucault, se pensa que o sujeito é sempre regido pela linguagem, pelas formas culturais constituídas, pela normatização dos comportamentos e das formas de agir socialmente, que não há saída para o exercício da liberdade, por exemplo. Como se tratariam as revoltas? Os movimentos de contracultura? Como se trataria a revolta dos jovens em busca de novas formas de liberdade? A própria noção de liberdade é questionada pelo fato de não ser uma liberdade rousseriana ou sartriana, mas uma liberdade mais próxima do conceito de Kant, no qual o homem criou as formas jurídicas, as instituições e a própria linguagem como uma forma de ação guiada no mundo, ou seja, o homem criou o próprio caminho para que ele o siga. Nestes termos, a liberdade é algo criado pelo homem como forma de ação sobre o mundo. As grandes revoluções são formas de ação nas quais o homem abandona muitos rituais para seguir outros que não estão no ritual anterior, mas que nele guarda o princípio de escolha da prática enunciativa, sem a qual o homem, em seu exercício de liberdade, não a poderia ter. Isso acontece porque, na história da humanidade, o homem sempre escolhe uma maneira de lidar com a linguagem. O movimento protestante e o nascimento da imprensa, por exemplo, são novas maneiras de o homem interagir com a linguagem, criando novos rituais a serem seguidos, como a leitura da bíblia e a confecção de jornais impressos e, com isso, estabelecendo novos padrões ritualísticos de lidar com a linguagem, ao mesmo tempo em que se modificam os padrões de comportamento em relação ao que se praticava antes.

3.5 DESCRIÇÃO DOS ENUNCIADOS

A descrição dos enunciados do Brock - rock brasileiro dos anos 1980 - seguirá os passos de Michel Foucault e se fará uma análise arquegenealógica deles, uma interpretação levando- se em conta a exterioridade desses enunciados e seus efeitos de sentido na produção da escrita da história do rock no Brasil. Nessa perspectiva, se analisará as músicas dentro de seu contexto histórico de produção, levando-se em conta os sujeitos envolvidos, sua relação com a história e a indústria cultural. O processo cultural de produção musical no Brasil observará na análise o porquê de produção daquela música, seu contexto e as condições que propiciaram seu surgimento e as relações de poder que esta estabelece com as demais produções musicais no Brasil, inclusive, outros estilos 95

como a Música Popular Brasileira (MPB), a música de protesto e o rock psicodélico produzido anteriormente por outros sujeitos sociais. Seguindo os passos de Michel Foucault, se fará um levantamento da produção musical relativa ao rock da década de 1980, o Brock, sua relação com a história brasileira, sua relação com o rock americano e como esse movimento chegou ao Brasil e se tornou uma música de caráter nacional, quando as bandas da época, mesclando o processo de aculturamento do estilo musical rock and roll e a cultura brasileira de sua época. Observar-se-á como isso aconteceu e como se configurou uma música estrangeira com o selo de música brasileira. Dentro ainda dessa mesma linha de percepção, se discorrerá nas músicas do Brock o processo de docilização, termo criado por Michel Foucault, no qual se analisará como se criou um público consumidor a partir de estratégias sociais discursivas utilizadas pela indústria cultural, mais especificamente, a indústria fonográfica, e como esse público se tornou cativo e consumidor de um artefato cultural produzido no Brasil, mas que veio como música importada, como essa música influenciou no comportamento juvenil e no consumo de produtos a ela ligados. No processo de análise, as músicas serão citadas no corpo do texto e se fará análise mostrando como as categorias propostas se encaixam nessa descrição arquegenealógica. O processo de seleção das músicas levou em conta a tese do projeto em mostrar como surgiu o rock brasileiro, o discurso fundador do estilo musical e as relações que este tinha com a indústria cultural e o processo de docilização. Na seleção das músicas se levou em conta ainda o início das bandas, além de serem bandas de formações discursivas diferentes e que tinham uma realidade diferenciada com a relação à música, o tipo de público e as influências que sofreram no seu processo de formação de seu discurso fundador: a banda Blitz, ou rock carioca, fruto da new wave, um estilo mais suavizado e mais típico das praias e da juventude mais descomprometida; a banda Titãs, como o rock paulista da periferia, que sofreu influências diretas do punk inglês e de bandas menos comerciais, com um discurso mais agressivo sobre a modernidade, os sujeitos e sua relação muito conflituosa com a indústria cultural. As músicas, no caso da análise, são apenas uma parcela do trabalho das bandas, nelas se verificou no processo de escolha, como cada uma reflete um comportamento diferente com relação ao mesmo estilo musical, o rock. Também no processo de escolha se optou por aquelas que são mais conhecidas do público, com o objetivo de tornar a descrição das mesmas de forma mais abrangente pelo fato de serem conhecidas do grande público e pelo fato de, sendo conhecidas, passaram pela grande mídia, ou seja, é um produto cultural destinado à venda. Assim, tem-se as músicas que serão analisadas e suas respectivas bandas. 96

. Banda Blitz: Músicas: “Você não soube me amar”; “Weekend”; . Banda Titãs: “Televisão” e “Homem primata”.

3.5.1 Categorias de análise

. A formação discursiva: será descrita a formação discursiva de cada autor e como se deu a construção das músicas, levando-se em conta a positividade de cada época, bem como o tipo de arquivo selecionado por cada compositor dentro da memória discursiva. Nessa perspectiva, serão analisados os aspectos sociais e ideológicos que os levaram a pensar na hora de compor suas canções e nelas tentará se detectar como as letras se incorporam ao discurso da história e da cultura brasileira. A formação discursiva é a formação de cada autor, levando-se em conta os processos sociais e psicossociais que influenciaram na constituição do movimento Brock. . Discurso: nessa categoria, seguindo os passos do Michel Foucault, se discutirá qual era o discurso sobre o rock na década de 1980 e qual sua relação com o rock internacional. Também se interpretará as músicas das bandas Blitz e Titãs e analisará nas letras dessas músicas selecionadas, qual a relação delas com a formação discursiva da banda, as condições de produção das letras e como estas mantem relação com a escrita da história do rock no Brasil e com a história do rock mundial, bem como o discurso da indústria cultural e o processo de docilização para a criação de um público consumidor juvenil. Nessa investida, se observará a intertextualidade e a interdiscursividade, a memória discursiva, pois é através delas que se pode ver a presença de um texto no outro, a retomada de um texto através de outro, assim como a retomada de discursos através da memória discursiva que compõe o arquivo de cada autor e época. Através da formação discursiva, será descrita também a interdiscursividade, que é o intercruzamento dos vários discursos que cruzam as formações discursivas para poder se fazer comparações entre as composições do rock nacional com o internacional e com a história da música no Brasil, e de outros artistas ligados ao mesmo tema. A intertextualidade é a retomada dos discursos através de texto, às quais podem ser atribuídos muitos efeitos de sentido, já que pode ser recriado em forma de deboche, paródia, pastiche, etc., bem como outras formas de retomada que o texto pode propiciar. . Poder disciplinar e relações de saber-poder: o processo de disciplinarização como forma de adestramento dos sujeitos sociais para o consumo de produtos. Nesse item, a análise levará em conta o processo de formação de um público consumidor em que a incorporação do rock à música do Brasil, diferente da MPB que já tinha uma longa trajetória musical, foi um processo de docilização, ao propiciar aos sujeitos mecanismos e estratégias discursivas que 97

tornaram o rock um movimento nacional e aculturamento das instâncias produtoras de sentido, como a indústria do disco e do entretenimento e as estratégias utilizadas para tornar esse estilo musical mais apto ao consumo juvenil no país. . Indústria cultural: nessa categoria de análise, se argumentará que o rock é um artefato cultural, oriundo da modernidade e um produto feito para o consumo, e que o estilo musical nasceu do embate entre o novo e velho com relação aos costumes, à cultura e à sociedade. O rock nasce em condições propícias ao surgimento de outros bens também feitos para serem consumidos através da televisão, do rádio, do cinema e da moda de maneira geral, especificamente, aquela atrelada ao movimento com seus aparatos técnicos e vestimentas apropriadas ao estilo musical. Dessa forma, a defesa será de que o rock será o carro chefe de uma série de outras inovações tecnológicas, que o tornarão um produto comercializável e feito com essa intenção, sem se pensar na música como um bem cultural feito apenas para o deleite e a fruição estética. O rock é a quebra de um padrão estético que vai tornar a música ao mesmo tempo mais simples, barata, acessível a todos os tipos de público, e que dará à música do Brasil todos os ingredientes para a formação dos mais diversos estilos que a partir daí surgiram, como por exemplo, a própria modificação da MPB, a música brega, a música pop, o forró moderno e o sertanejo moderno, seja na retomada das ideias do movimento, seja na organização da melodia musical com o uso de instrumentos eletrônicos e a estruturação das bandas com relação ao tipo e a qualidade do som que desejam.

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4 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO PUNK ROCK: MÚSICA, COMPORTAMENTO E POLÍTICA

O movimento punk surge a partir de meados da década de 1970 em várias partes do mundo. Incialmente nos dois lados do Oceano atlântico: na Inglaterra, com a banda Sex Pistols e nos Estados Unidos com a banda Ramones. Depois se espalhou por várias partes do mundo, inclusive aqui no Brasil, a partir de 1976. Os destaques para as duas bandas se dão pelo fato de as duas assumirem as caraterísticas e a ideologia do movimento, com destaques para a rebeldia, comportamento agressivo e o niilismo, crítica social e política e, principalmente, pela contestação ao estilo do rock e dos artistas estandardizados da época, com destaque para os do rock progressivo29. Segundo Beras,

Na Inglaterra o movimento punk teve início com jovens da classe operaria que condenavam uma economia em declínio e o aumento do desemprego e questionavam as ideias políticas de reforma. Já nos Estados Unidos o punk era caracterizado como um movimento de jovens de classe média numa reação contra o tédio da cultura massiva. (BERAS, 2015, p. 105)

O movimento punk, embora tivesse surgido a partir do conceito de globalização, foi muito sensível às nuances locais. Enquanto na Inglaterra o punk era composto basicamente por jovens da classe operária que protestavam por melhores condições de salários, empregos e educação, nos Estados Unidos, ele foi caracterizado por jovens que lutavam por mudanças culturais ligadas à cultura contra os fenômenos massivos que imperavam na música. Esses dois fatores são a síntese do movimento, quando em sua emergência como saber, e que depois espalharia essas mesmas ideias por outros países, que passando por situações econômicas, sociais e culturais semelhantes, vão aderir ao movimento punk rock como um fenômeno de canalização de sentimentos, atitudes e espírito de revolta. Segundo Beras (2015), o punk emerge a partir de duas concepções opostas: o movimento punk e a sociedade de consumo. Dentro desta perspectiva, o punk surge a partir de sua contestação ao capitalismo selvagem que era positividade da época, e junto com ele fazia surgir uma série de eventos ligados à economia, educação, alto índice de desemprego, falta de

29 Há discussões sobre o fato de o rock progressivo ter sido paulatinamente substituído pelo punk. Para o crítico musical Regis Tadeu, o que fez com que o rock progressivo fosse pouco a pouco sendo menos ouvido e, consequentemente menos vendido foi a grande influência do rádio. Para ele, os shows do rock progressivo ficaram muito caros devido à alta sofisticação das músicas, dos artistas e das apresentações bilionárias das bandas. O punk foi um estilo musical simples, que embora fosse contra tudo que fosse estandardizado, seu formato musical era adequado ao rádio, o que causou grande impacto na música, principalmente em sua produção, execução e distribuição, tendo o rádio como principal veículo de propaganda, mais simples, mais barato e eficaz. 99

perspectivas etc. Tudo isso cria uma dicotomia entre o movimento do punk a partir das classes menos favorecidas e uma sociedade guiada pelo consumismo. Friedlander concorda com Beras, que essa atitude destrutiva do movimento punk advém do declínio econômico inglês e da falta de perspectivas para a juventude dos guetos, das favelas e dos locais mais afastados dos grandes centros e da saturação da cultura de massa que transforava tudo em igual, a mesma coisa, os mesmos ritmos, os mesmos cantores, as mesmas bandas, etc. Dessa forma, um movimento político e cultural, de forma que em tudo isso está uma explicação da agressividade do movimento. O punk retoma a filosofia inicial da emergência do rock em seus primórdios o “Do it yourself”30, no qual imperava o espírito da anarquia31 e da contracultura32. Nesse sentido, os punks iam contra tudo aquilo que era da cultura dominante, desde a política, a moda33, os costumes, a música etc. Era um movimento destruidor que pretendia acabar com tudo para reconstruir novamente, embora o próprio movimento não tivesse nenhum projeto para a sociedade, e a juventude da época, que apenas sabiam o que não queriam: uma sociedade doente, guiada pelo consumo proclamado pelo capitalismo e pelo neoliberalismo, que não dava condições de sobrevivência aos menos favorecidos, principalmente os jovens da periferia e zonas mais afastadas dos grandes centros. De forma geral, segundo Friedlander no punk

A maioria das letras refletiam sentimentos em relação à sociedade corrupta e em desintegração e à situação difícil dos companheiros da subcultura. A música e as letras revelavam uma atitude de confrontação que refletiam graus variados de odeio justificado, performance técnica, exploração artística do choque de valores e intenção de renegar as instituições oficiais de produção de música. (FRIEDLANDER, 2015, p. 352).

Segundo este autor, o movimento punk surge de necessidades e sentimento de revolta, em que as letras e as melodias refletia essa atitude de confrontar tudo aquilo que estava incomodando a juventude da época. Tudo isso era justificado por uma música com letras

30 Tradução do inglês “Faça você mesmo” 31 A ideia do movimento punk e, posteriormente do punk rock era a destruição total da sociedade, propondo uma sem a presença do Estado, sem leis, sem ordem institucional, que opunha a qualquer tipo de hierarquização ou dominação, seja ela política, econômica, cultural, como o Estado, o capitalismo, as instituições religiosas. Pretendiam um projeto social construtivo baseado na defesa da autogestão, defesa da liberdade e da cooperação mútua entre seus indivíduos, na qual todos podiam associar-se livremente sem nenhum tipo de intervenção. O francês Pierre-Joseph Proudhon é considerado o precursor do anarquismo 32 Movimento ou mentalidade que vai contra a cultural dominante. Teve seu início na década de 60 nos Estados Unidos com movimento culturais como o rock and roll, a Beat Generation, o movimento Hippie e seus desdobramentos posteriores como o movimento punk e o punk rock. 33 Segundo Bivar(1982), o punk também será um vertente da moda. Havia em Londres lojas e butiques especializadas em moda punk, desde grifes especializadas até acessórios de couro, braceletes, brincos, contos, etc. 100

contestatórias e o som destruidor, revelando uma postura crítica e, ao mesmo tempo, de desencantamento com o mundo, que os jovens dispunham aquele que os mesmos sonhavam conquistar. A partir dos anos 1970, o punk se mostra como um movimento musical totalmente novo do ponto de vista da sonoridade, das composições e das novas temáticas. O som era o mais simples e compacto possível, com poucos solos ou quase nenhum, a velocidade muito acima dos padrões anteriores, o que tornava a execução das músicas muito rápida, ou seja, as bandas de punk chegavam a tocar vinte músicas em poucos minutos. A musicalidade do punk é um som simples, rápido com o uso imediato do instrumento, não é preciso uma longa elaboração e maturação com instrumentos altamente sofisticados que eram uma das características do rock progressivo. Além do som quase sem nenhuma técnica musical, o importante eram as letras agressivas que falavam de sociedade, de cultura, de política, de governo, etc. o som era rápido, barulhento e direto sem tempo para elaboração e sofisticação. Apesar das músicas de menos de dois minutos e de três acordes, não justificava dizer que punks não sabiam tocar. Alguns realmente não tinham a mínima noção do instrumento, outros, porém tinham um certo grau de sofisticação como a banda britânica The Clash que adotava o estilo rítmico do blues e a mesma estrutura musical. Neste sentido, de acordo com Friedlander,

Neste cenário, surgiu um crescente segmento de jovens de classes menos favorecidas que se mostravam insatisfeitos om a falta de oportunidades econômica e educacional na Inglaterra. Empregos de salários decentes não estavam disponíveis e o acesso às escolas só era permitido às classes sociais privilegiadas, forçando vários jovens da classe operaria a desistir da educação. Esta juventude desiludida cada vez mais numerosa vislumbrava um futuro de subsistência à custa do sistema de previdência social britânico. Os jovens perceberam que para eles não havia futuro, e por isso se revoltaram. É possível ver a música, letras de grande rebeldia e a natureza antiautoritária de suas atitudes como um reflexo destas condições. (FRIEDLANDER, 2015, p. 352).

Em meados dos anos 1970 na Inglaterra, de onde houve as primeiras manifestações do punk, a juventude menos favorecida se revoltou com a falta de oportunidades. As composições e as novas temáticas das músicas e de suas bandas ganharam destaque devido ao fato de o punk ir mais fundo nas questões sociais como a miséria, a fome, a violência, as desigualdades sociais, etc. Esses temas na música e da política eram muito marcantes nas composições e nos temas do punk. Nessa mesma década iniciou-se um caos provocado pela queda do petróleo em 1973, o que ocasionou a desestabilização econômica em todo o mundo, criando uma série de eventos 101

que culminaria com o aumento do desemprego, da fome e do aumento ainda maior das desigualdades. A emergência de saberes que produziram o discurso sobre o punk é bem diversa. Não é só música, mas também política e comportamento rebelde. Esse movimento surge em um cenário onde o poder e o braço do Estado não se fizeram presente, como as favelas e bairros mais afastados dos grandes centros. O punk surge como um discurso destruidor de todo o sistema social, desde os elementos mais simples como trabalho, emprego e família, até as questões sobre política e o sistema social e ideológico vigente. Segundo Teixeira (2007), a palavra punk usada no dicionário inglês para designar algo como madeira podre, porém pode significar também pivete, moleque, coisa sem valor, delinquente. Como conceito sociológico e filosófico, o ser punk é aquele indivíduo que vivia o movimento e se comportava de acordo com a ideologia do grupo ou de sua gangue. Já o estar punk eram aqueles que participavam do movimento apenas em sua forma estética e em algumas características, inclusive, aquelas menos violentas. Essa distinção levou a indústria fonográfica a incentivar as bandas de new wave, que vai ser um movimento musical que surgira do punk. As letras e melodias do punk tinham um lado mais agressivo e outro mais divertido, debochado, que pouco a pouco vai assumindo a dianteira do movimento na indústria fonográfica e nas rádios, fazendo com que muitos artistas, que não eram tão avessos às estrelas de rock e a fazer sucesso, migrassem para essa nova onda, fazendo surgir novos contornos em torno desse estilo musical que dominará a década vindoura: 1980. Nesse contexto, na década de 1980, além das gravações de artistas oriundos do punk e a descoberta do rádio como um a fonte mais barata e mais acessível a esse novo público, teve também o incentivo das televisões especializadas, como por exemplo, o nascimento da MTV. Esses fatores irão impulsionar a produção, circulação e consumo dessa nova onda, colocar o punk como um movimento superado, servindo apenas como inspiração para as futuras gerações de músicos da new wave. No próximo subtópico abordaremos os fanzines, que eram os veículos utilizados pelo movimento punk para se promoverem, divulgar seus produtos e popularizar o movimento.

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4.1 OS FANZINES E O MOVIMENTO PUNK

Apesar de os fanzines já existirem desde a década de 1930, nos Estados Unidos, e que servia para publicações sobre ficção científica34, eles só ganhariam esse nome em 1941, batizado por Russ Chauvenet, um fanático por ficção científica. A denominação fanzine surge como um neologismo feito a partir da contração das palavras de língua inglesa “fanatic” e “magazine” – fanzine – significando “magazine do fã”, ou seja, uma revista de fãs feitas por eles e destinada a eles. Suas publicações abrangem não apenas o campo musical, como é o caso do punk rock, mas também outros temas de interesse dos fãs como a ficção científica, política, etc. Na verdade, embora abordassem temas únicos com relação ao tipo de público e fãs em cada modelo de fanzine, eles podiam falar sobre outros temas que traziam novidade do mundo do jornalismo, da moda, da política como elementos que acompanhavam suas postagens. Os fanzines foram o grande veículo de veiculação das ideias punks, bem como a divulgação de bandas, agenda de shows e outros entretimentos. O importante desse tipo de gênero textual é que ele era feito exclusivamente para pelos próprios fãs para divulgar as bandas que não faziam parte da grande mídia comercial e, por isso, sua produção, confecção, distribuição e custos eram feitos pelos fãs das bandas, daí o nome fanzine. Tratava-se, portanto, de um tipo de publicação independente e amadora, já que sua confecção não tinha uma linha de montagem ou uma formatação com selos e imagens próprios, mas seguiam uma formatação própria, que exigia baixo custo e pouca tiragem de exemplares. Como uma produção amadora, era impressa inicialmente em mimeógrafos e, posteriormente, em fotocopiadoras, impressoras a laser ou mesmo em offset. Contava apenas com os fãs para produzi-lo, ou algum outro tipo de associação, grupos, fãs clubes, etc. Segundo Magalhães,

Os punks nunca tiveram muito espaço na mídia maintream, e no começo do movimento isso era ainda pior, já que o movimento era muito destruidor, combativo da cultura dominante, necessitando, pois de uma cultura de divulgação de suas ideias, canções e eventos do movimento. Nesse contexto, nasce o fanzine. (MAGALHÃES 1993, p. 8-10)

Essas revistas eram o principal veículo de comunicação entre o movimento punk e seus fãs, visto que os mesmos não tinham muito espaço na mídia tradicional. Ninguém se arriscava a promover ou mesmo bancar o movimento, tendo em vista que, além de ser contra tudo e todos,

34 Segundo Magalhães, os fanzines eram um tipo de hobby que foi pouco a pouco se transformando em um veiculo de comunicação periférica, marginal que estava fora da mídia oficial. Segundo ele, os fanzines eram usados por fãs de HQ e aficionados por ficção científica. 103

não apresentava nenhuma perspectiva de investimento por parte de alguma revista especializada ou mesmo gravadora que se dispusesse a divulgar e promover as ideias e as músicas das bandas, porque o comportamento e a atitude autodestrutiva do movimento punk não inspirava segurança ao ponto de alguém querer patrociná-los como banda. Os fanzines tinham uma complexa rede de divulgação, uma vez que o circuito de distribuição atendia aquelas bandas de punk que estavam fora da mídia, ou seja, o o movimento sempre teve problema com a mídia, seja pela ideologia de ser um som independente, seja pelo fato de as gravadoras não aceitarem mesmo a ideologia e o comportamento autodestrutivo. Dessa forma, os fanzines atuavam como divulgadores dessas bandas mais distantes do seu público, tentando aproximá-los por meio de revistas especializadas feitas pelo próprio fã. Esses meios de divulgação podem ser abordados a partir do ponto de vista de uma mídia radical, inspirada em autores como Adorno, Gramsci, Habermas, Martín-Barbero35, etc, que são formas midiáticas de expressão popular de oposição a cultura hegemônica. De acordo com Magalhães (1993, p. 14),

A grande imprensa define os fanzines como jornais amadores, impressos em fotocópias a partir de uma matriz datilografada e composta artesanalmente, e quem se a princípio tratavam apenas dos ídolos do som punk e do rock, eles hoje, à medida que se proliferam, ampliam seu leque de temas. (MAGALHÃES, 1993, p. 14).

Reforçando o que já foi dito acima sobre a natureza e a função dos fanzines, pode se observar que eles eram considerados como jornais amadores36, feitos a partir de matrizes artesanais e que, a princípio, tratava somente de música, das bandas, dos ídolos, mas com o passar do tempo, também começou a abordar outros temas, que também eram de certa forma, abordados pelas bandas, como política, comportamento, moda jovem, moda punk, etc, tornando-se, assim um tipo de jornal amador que se assemelhava aos jornais comuns. Nem mesmo os leitores e diretores que produziam os fanzines sabem ao certo como defini-los devido à sua abrangência e limites. Pode ser considerado como um tipo de revista alternativa, ou um tipo de imprensa alternativa, que gera uma série de indefinições e dúvidas, devido ao fato de não haver consenso entre seus produtores, idealizadores e consumidores. Evidentemente, os fanzines podem ser considerados como uma imprensa alternativa, já que sua

35 Magalhães, 1993. 36 Ao fanzines são um tipo de revista e jornal alternativo semelhantes às revistas e jornais amadores. Há pouca diferença entre eles. A mais plausível é que os intitulados amadores e alternativos tinham caráter subversivo e até clandestino por abordar temas ligados a ditadura militar, denúncias, divulgação de partidos políticos clandestinos e ideias que iam de encontro as do governo. (Magalhaes, 1993). 104

produção não depende de meios comerciais e massivos, apresentando um conteúdo de contestação permanente, que difere da grande imprensa comercial. Nos fanzines circulam outras formas e tipos de conteúdo pelos aficionados por música, quadrinhos, poesia e tudo aquilo que não se observa nos livros, revistas e jornais oficiais que, por vezes, os fanzines se confundem com a imprensa alternativa, embora os fanzines sejam um tipo de imprensa alternativa, eles se diferenciam destas justamente por seu conteúdo informativo. Para esse autor,

Os fanzines apresenta-se como um boletim, veículo essencialmente informativo, órgão de fã-clubes de aficionados. Ou seja, a matéria-prima do fanzines é a informação, como artigo, entrevista, matéria jornalística. Na revista alternativa encontra-se a produção artística propriamente dita: contos, poesias, ilustrações, quadrinhos etc. A partir dessa concepção a revista alternativa é o veículo/porta-fólio que abre espaço para novos artistas e novas propostas de linguagem que não encontram guarida nos veículos comerciais. (MAGALHÃES, 1993, p. 15).

Pelo fato de os fanzines serem abertos às opiniões de editores e leitores das mais diversas e variadas temáticas, eles se tornaram uma espécie de manual de anarquia, em que cada um protestava por aquilo que achava conveniente. Essa anarquia proporcionada pelos fanzines emergia a partir da variedade de temática, já que cada um seguia sua linha de pensamento de acordo com o que pensavam e, principalmente, por que sua orientação era feita a partir da contestação a qualquer sistema estabelecido, embora os mesmos não tivessem qualquer linha ideológica, mas simplesmente um veículo para o extravasamento das ideias juvenis, do sentimento de revolta e de mudança da sociedade hegemônica. Talvez pela falta de técnica, de subsídios para a produção dos fanzines, seus editores e leitores optavam por elaborar uma proposta que pode se dizer rudimentar da imprensa alternativa. Alguns fanzines eram um aglomerado de cópias de textos que eram colados anarquicamente uns ao lado dos outros, um amontoado de ideias que eram escolhidos livremente por seus produtores, e que eram feitos a partir de um processo de colagem. A radicalização dessas colagens subjetiva um tipo de trabalho amador e, ao mesmo tempo, representa uma atitude anárquica frente a mídia e imprensa tradicionais com suas publicações bem elaboradas. A forma como produziam e veiculavam essas revistas também era uma atitude de contestação. Muitos fanzines vão buscar na imprensa comercial a matéria-prima para sua edição. São o que poderíamos chamar de fanzines-dossiês, uma vez que divulgam tudo o que já foi publicado, por exemplo, sobre determinado autor ou personagem de quadrinhos. Se a mera cópia do que já foi publicado pela grande imprensa descaracteriza o fanzines como matéria original é, no entanto, por seu intermédio que muitos leitores espalhados pelo Brasil tomarão 105

conhecimento de tais informações em primeira mão. Nesse caso, o fanzines tem o papel de resguardar a memória de fatos ou enfoques publicados, numa espécie de dossiê que mesmo a grande imprensa não se interessa por fazer (MAGALHÃES, 1993). Muitas bandas de punk tinham apenas os fanzines como seu único meio de divulgação, que divulgava os locais dos eventos, as bandas que iriam participar do circuito, alguns dados sobre as bandas, o tipo de público esperado, uma vez que tanto punks como metaleiros, roqueiros e outros grupos também participavam das apresentações, pois viam no movimento uma forma de mostrar sua tribo, seu estilo e sua música.

4.2 O MOVIMENTO PUNK NO BRASIL: MÚSICA, REBELDIA E POLÍTICA

Em 2011 foi lançado um documentário sobre a história do punk no Brasil, contada pelos próprios autores das bandas que emergiram nessa cena que começa em 1976 e se estende até meados de 1981, quando a new wave começa a ganhar espaço nas rádios, na TV e outros espaços dedicados ao rock. Esse documentário intitulado “Botinada” é o primeiro de uma série de entrevistas e produção de material sobre o punk no Brasil. Entretanto, antes de 1976, já havia rumores dos ideais punks no Brasil através de revistas (Revista Pop, 1977), de documentários que faziam menção às grandes bandas e punk, os Sex Pistols e os Ramones. Essas duas bandas influenciaram muito a criação de um movimento punk no Brasil, principalmente, porque propiciou o surgimento de bandas de garagem fazendo covers dessas bandas e, posteriormente, seu som e suas próprias letras através da cena underground. Como nesse começo o punk não era bem visto nem tinham espaço para mostrar seus trabalhos, eles faziam de forma quase clandestina, em salões alugados e danceterias, quando não tinham nenhuma tração especial. O punk foi surgindo assim por baixo das estruturas sociais. De acordo com Bivar (1982), aqui no Brasil se tinha todas as condições favoráveis ao surgimento do punk: fome, miséria, falta de emprego, economia em declínio, inflação galopante, repressão do estado militar, neoliberalismo fabricantes de lixo humano, tudo isso feito através de uma censura moral e de costumes vigiada e punida pelo governo militar. Dessa forma, o punk rock no Brasil é um movimento que é ao mesmo tempo local e global, ou seja, se conecta ao mundo através de um segmento cultural específico de uma região do país, no caso o das grandes cidades. Segundo depoimento de , “se o punk é o lixo, a miséria e a violência, então não precisamos importá-lo da Europa, pois já somos a vanguarda do punk em todo o mundo” (CHICO BUARQUE, BOTINADA, 16 de nov. de 2011). Esse dizer de Chico Buarque para o documentário “Botinada”, dirigido pelo Gastão Moreira, 106

demonstra que o punk não precisava importar nada da Europa ou outro país, pois aqui já possuía todas as condições sociais, econômicas e musicais para o florescimento do movimento, já que o movimento do punk rock emergiu a partir de condições bem específicas que aconteceram em muitas partes do mundo. Essas condições estavam pautadas pelas crises econômicas, pelo sistema social neoliberal, e disso resultou faltas de perspectivas, principalmente, para a classe jovem e a classe trabalhadora, que incluía dentre eles, a maioria de jovens trabalhadores da indústria e das fábricas do ABC paulista. As condições de produção do discurso que propiciaram o surgimento do movimento punk no Brasil emergem a partir de condições sociais como a falta de oportunidades para classe jovem tanto com relação ao trabalho e a educação e, por outro lado, da saturação do rock progressivo que, embora em seu auge da perfeição técnica, vocal e performances, já dava sinais de declínio, já que o rock tinha chegado ao seu mais alto nível de sofisticação, de vendagem de discos de enriquecimento de seus atores, bem como o seu tratamento como deuses do olimpo. O movimento punk no Brasil queria mostrar o quanto à sociedade estava doente, através das roupas, das palavras e do som, incomodando a sociedade da mesma forma que eram incomodados pela polícia, o governo, as religiões, etc. O punk surgiu pela falta de perspectiva sem futuro, “não há futuro” 37, não gostavam de Shakespeare, mas liam Nietzsche, Maiakovski, Herman Hesse, citavam trechos de poemas de Pablo Neruda. O punk é um movimento anarquista que pretendia derrubar tudo para reconstruir novamente, mas construir com dignidade. Nesse contexto, as primeiras manifestações do punk no Brasil enquanto cultura musical, se deu nas grandes cidades, principalmente, a de São Paulo e Brasília, através de revistas de jornais, revistas de moda, esporte e música. Muitas delas continham informações distorcidas ou apenas como uma forma de mostrar o movimento que acontecia fora do país, especialmente, na Inglaterra, com a banda Sex Pistols. Os punks de São Paulo reivindicam para si o título de precursores do punk e posteriormente do Brock. Da mesma forma, os punks de Brasília reclamam a mesma coisa. Importante observar que em São Paulo o punk surge no ABC paulista e na capital, ambos divididos por questões econômicas e sociais. O movimento em Brasília se tornou mais latente e mais visível em alguns momentos porque os jovens que compunham esse movimento eram filhos de diplomatas, militares, que tinham espaço para divulgação das bandas. Já em São Paulo, a divulgação não era muito boa porque os salões de dança eram ocupados com a discoteca, e a

37 Banda Horda Punk. “Não há futuro para mim/Não há futuro para ninguém/Não há futuro para você/Não há futuro para ninguém” 107

maioria dos punks, para se divertirem com algo que gostassem, precisavam convencer os donos dos salões a tocarem discos e fitas que eles levavam para esses lugares. Os jovens de São Paulo usavam um visual chocante com seus coturnos, calças jeans rasgadas, jaquetas camufladas do exército, brincos, piercings, arames, tampa de lata de refrigerante, ou seja, restos de objetos que podiam ser usados como adorno. Os cabelos de corte moicano colorido, ou raspado de um lado da cabeça e, principalmente, o comportamento rebelde. Desses jovens, parte eram dos subúrbios e das periferias da cidade, trabalhadores da indústria e das montadoras de carro do ABC paulista, outra parte eram da capital, com um visual mais debochado que seguia, eram os jovens de classe média alta que contestam o a establishment, sendo eles os representantes dessa mesma sociedade, a ideia a era contestar por contestar mesmo, o chamado “rebelde sem causa”, que mais tarde já no Brock, será música do Ultraje a Rigor. Os dois grandes movimentos de punk no Brasil aconteceram em São Paulo. De um lado os punks do ABC, trabalhadores da indústria, adeptos os movimentos sindicais, na época comandada pelo ex-presidente Lula. Eram em sua maioria jovens trabalhadores e da periferia, que no final de semana se reunião ou para ensaiar na garagem ou para curtir músicas do punk em algum salão da região. Devido as constantes brigas com a polícia, entre eles mesmos ou com os punks rivais, levaram o nome de gangues pela maneira como se vestiam e da forma como se comportavam. De outro lado, os punks da city, assim como eram intitulados o movimento de São Paulo capital. Esses eram jovens de classe média alta que usavam o movimento como forma de afastar o tédio e a mesmice. Não tinham uma causa definida. Segundo Caiafa (1985), eram rebeldes sem causa que viam no movimento uma maneira de vestir-se e comportar-se e gastar o dinheiro dos pais. Assim, “o punk não é só visual, só música crassa. É também uma crítica e um ataque frontal a uma sociedade exploradora, estagnada e estagnante nos seus próprios vícios. Os punks não querem mais esperar o tão prometido fim do mundo. Eles querem o apocalipse agora em 1976” (BIVAR, 1982, p. 49). Nesse pensamento, não é só o visual punk que assusta ou se mostra ou é visível. Ele se caracteriza também pelo tipo de música que produzem, que representa uma confrontação com a sociedade brasileira da maneira como ele mostrava para os jovens das favelas e periferias, onde ela se mostrava mais genuína, no sentido de produzir algo que fosse o grito de liberdade dos indivíduos, que viram na música, possiblidades de surgir um discurso que fosse de acordo com as positividades dessas classes. Essa forma de pensar do movimento punk mostra uma profunda descrença no mundo e um niilismo latente, que visava destruir para reconstruir tudo, 108

ou seja, “Uma geração que, insatisfeita com tudo, acaba de invocar o espírito de mudança”. (BIVAR, 1982, p. 47). Para Teixeira,

A rejeição ao autoritarismo e as reflexões em busca da liberdade sem Estado, são ícones fundamentais de questionamento dessas culturas, que fundem elementos do anarquismo clássico do século XIX com propostas inovadoras ou readaptadas, misturando às suas práticas ativistas muito humor, sarcasmo, ironia, rebeldia, contestação, pacifismo e inúmeras vezes o uso da violência física como um ato de autodefesa ou sobrevivência, atributos muito explícitos no final da década de 70, com o movimento punk. (TEIXEIRA, 2007, p. 26)

O punk segundo esse autor, incorporou vários elementos de diversos segmentos da sociedade para justificar o movimento. Isso acontece já desde os anos 1970, entretanto, ele ganha discurso no Brasil em meados de 1976. Muitos autores como Antônio Bivar considera, que nessa época há um movimento pré-punk, que por meio de algumas bandas iniciaram o movimento com base na banda inglesa Sex Pistols e da banda americana Ramones. Eram elas: Joelho de Porco e Banda do Lixo foram as primeiras. Depois, ainda na década de 1970: AI-5, Condutores de Cadáver (hoje, Inocentes), Restos do Nada, Invasores de Cérebro, Garotos Podres, Cólera (1978) Olho Seco (1973), Ulster, Passeatas, Indi-gentes, Ratos de Porão, Fogo Cruzado, Estado de Coma dentre outras. Além disso, se tinha notícias do movimento punk fora do eixo Rio-São Paulo, como por exemplo, o Camisa de Vênus na Bahia, Banda do Lixo em Minas Gerais, Replicantes de Porto Alegre. Todas elas tocavam punk a sua maneira observando as condições sociais, econômicas, comportamentais e políticas de sua região. Além da produção de fanzines essas bandas citadas acima contaram com a rádio Excelsior, comandada pelo cantor e intérprete de codinome Kid Vinil38 que, além promover o punk internacional no Brasil, também divulgava os trabalhos das bandas de São Paulo em sua maioria, até mesmo canções de new wave, que abriu espaço para o Brock. De modo geral, no Brasil, as bandas e as gangues se assemelhavam ao filme “Warriors”39 e “Laranja mecânica”, nos quais havia essa ideia de gangues, diversão, brigas, usos de drogas, etc. a filmografia punk incluía sempre aos ideais de liberdade, autodestruição, comportamento violento, anarquia. Embora boa parte disso seja verdade, com relação, principalmente, aos comportamentos agressivos e autodestruitivos, na verdade o discurso sobre

38 Nome artístico de Antônio Carlos Senefonte. Foi cantor, radialista, compositor, apresentador de televisão e jornalista. Foi vocalista das bandas Verminose, Magazine, Kid Vinil & Os Heróis do Brasil e Kid Vinil Xperience. Foi grande entusiasta do rock brasileiro dos anos 1980 e um grande incentivador do movimento punk no Brasil. Morreu em 19 de março de 2017. 39 The Warriors. EUA, 1979. Direção: Walter Hill. 109

o punk foi, na maioria das vezes, distorcido pela mídia tradicional, que viam neles um perigo para a estabilidade social dos costumes, da economia, da música. Talvez essa agressividade fosse uma forma de mostrar nas atitudes e, principalmente, no som que faziam e nas letras das músicas, uma forma de defesa, já que eles eram em sua maioria gente dos rincões mais afastados da sociedade brasileira. Mas o punk não era só destruição, rebeldia e política, havia também um lado divertido, romântico (não no sentido que comumente se aplica), mas de uma forma própria. A banda Lixomania lançou um compacto em 1982 em que dividia suas canções entre anarquia, rebeldia política e amor, uma delas se chamava “Os punks também amam”. Logo, outras bandas começaram a lançar títulos como “os punks também metem”, “os punks também gozam” dentre outras. O punk pouco a pouco, devido à falta de oportunidades no mercado musical, falta de espaço para mostrar seu trabalho foram paulatinamente migrando para a new wave, fazendo composições mais suaves, menos barulhentas, com letras mais organizadas e menos palavras de ordem. Isso fez com que muitas bandas punks se adequassem ao mercado musical, principalmente, no formato do rádio. Disso surgiram muitas bandas já com a cara do atual rock brasileiro que, aproveitando aquela fase juvenil, se lançaram no mercado fonográfico. Apesar de muitas bandas terem ido para new wave, mantiveram muito de sua essência como a banda Inocente e Garotos podres, por exemplo. Outras porém, já se aproveitavam dessa abertura proporcionada pelo punk e formaram suas bandas, mantendo ainda nas composições o tom de rebeldia e política e na parte do amor e do divertimento discursivizaram as angústias adolescentes, os sonhos distantes de amor, as desilusões amorosas, etc. Dessa forma, o movimento punk será um antecessor do Brock, haja vista ter sido um movimento juvenil anterior a este, e por que o Brock assimilou a maioria das teses do punk, iniciando a música dos anos 1980 que consagraria inúmeras bandas de Brock, sendo suas primeiras, a Blitz do Rio de Janeiro e a banda Titãs de São Paulo, cujas bandas serão o corpus de análise deste trabalho. As demais estarão inseridas dentro da mesma formação discursiva, mantendo o mesmo discurso com pequenas variações, tanto no som quanto nas letras que produziam.

4.3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DISCURSIVA QUE PROPICIARAM O SURGIMENTO DO BROCK - ROCK BRASILEIRO DA DÉCADA DE 1980

O rock no Brasil surge como um evento cultural importado a partir da década de 1960. O estilo era visto com espanto e cautela por aqueles que assistiam aos minis eventos. As 110

gravadoras eram indiferentes a eles. O som barulhento, gritado de forma agressiva, com uma linguagem totalmente renovada, comportamental e culturalmente, mostrava uma geração despreocupada com a positividade da época, como estudar, arranjar emprego ou até mesmo casar-se. Entre seu surgimento na mídia, através dos grandes eventos e festivais, outras bandas que imitavam bandas americanas já existiam no cenário musical do Rio de Janeiro. Bandas normalmente vindas de garagens e grupos de amigos que simpatizavam com bandas do além- mar como Beatles e Rolling Stones, por exemplo, que era a grande febre do momento. Bandas como a mimética Analfabitles, yeah year do The Bubbles, a americanizada The Outcast, são alguns exemplos do que acontecia no Brasil antes mesmo da Jovem Guarda, do Roberto Carlos, ou no mesmo intervalo de tempo. Acontece que essas bandas expressavam uma espécie de rebeldia com o som que predominava por aqui, principalmente, com a Bossa Nova. Eles participavam de qualquer evento, seja aniversário, casamento, festa de quinze anos, o importante era mostrar um som diferente daquilo que se estava acostumado. Definir o que é rock não é coisa fácil. Podemos elaborar uma série de diferentes perspectivas para descrever o fenômeno e, no entanto, não o entendê-lo assim mesmo. Será um tipo de música estrangeira que se adaptou a nacionalidade brasileira? Ou será algum tipo de moda de jovens ociosos que, em um momento de crise, buscaram em um estilo mais agressivo a satisfação e um norte para suas vidas? Podemos dizer que o rock nacional que surge na década de 1980 não é o fruto direto apenas dessa época, mas o resultado de uma longa sucessão de fatos que ocorreram desde a exibição do filme Sementes da violência40, que retratava o rock e toda sua forma de se manifestar entre os jovens e que iniciou um longo caminho para aqueles que adotaram o mesmo, seja como estilo de vida, seja como a busca de um sonho nos palcos da vida. Na década de 1980 é que o rock de fato pode ser considerado como música nacional do ponto de vista de sua genealogia. Já se tinha passado um longo período de experimentação com o rock americano, o progressivo inglês, o punk rock da década de 1970 por influência do punk inglês do Sex Pistols e da banda americana Ramones, finalmente, a nova onda, a new wave. Esta última foi a mais aceita entre os jovens brasileiros, e os que não aceitaram tiveram que se adaptar a ela e/ou adaptar seu estilo a indústria fonográfica brasileira. Explicamos melhor: depois de todas as experimentações, a partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, restou apenas duas vertentes do rock que lutavam entre si, que se resumem nos circuitos de São Paulo e Brasília com a vertente do punk rock e o Rio de janeiro com a onda new wave.

40 Sementes da violência. Direção de Richard Brooks. Estados Unidos. 1955, 101 min. 111

Entretanto, existem outros movimentos do Brock que emergiram a partir de suas positividades e nuances locais como é caso de Brasília, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, a Bahia, dentre outros. Nessa mesma década, surgiram muitos discursos em torno das novas formas musicais, muitos desses ligados à música americana, principalmente, o rock ballad41 ou mais especificamente, a new wave, nas famosas coletâneas da década explosiva e seus musicais no rádio e na televisão. Essa explosão musical não veio sozinha, era um fenômeno social e cultural que trazia em suas vísceras outras propostas para a renovação da arte, especificamente, a audiovisual, em que revoluções no mundo da televisão, do rádio e todo um aparato técnico industrial se pôs a favor dessa nova positividade. O consumo dessas novas mídias na época trouxe muitas inovações no comportamento musical dos jovens que, envolvidos nessa onda, assistiam a um verdadeiro espetáculo das músicas americanas no Brasil. Esse novo público, normalmente a classe média-alta, não é apenas seu destinatário imediato, na verdade, boa parte dessa massa tinha estadia nos Estados Unidos, participavam da “nova onda”, consumiam e reproduziam no Brasil o que florescia em outras partes do mundo. Geralmente eram filhos de brigadeiros, empresários, donos de grandes corporações e empresas multinacionais que tinham passagem livre nos consulados e alfândegas, o que permitia a importação sui generis de produtos americanos de toda espécie, inclusive o rock produzido na época. Inicialmente, esse produto americano vinha em forma de contestação da cultura vigente, seja aqui no Brasil, em que a MPB dominava ainda o cenário musical e as melhores produtoras de discos, abrindo pouco espaço para a nova onda, seja em outros países, a despeito dos Estados Unidos, que estavam mais interessados em achar uma nova forma de vender. Quem ouvia rock no Brasil era reacionário, pertencia ao grupo dos alienados, fazendo-se entender que quem ouvia e praticava a ideologia do rock era alguém ligado ao imperialismo norte-americano. Nada mais ilusório que praticar o sonho alheio e viver a ilusão. O princípio daquilo que era diferente era o mesmo princípio daquilo que do mesmo. Para os estados Unidos, o rock era música popular semelhante a Odair José aqui no Brasil, claro, a depender do modelo de rock. O que

41 Esse fenômeno musical estava ligado ao que se convencionou chamar de new wave, um subtipo musical que floresceu com o abrandamento das formas agressivas do rock clássico e do punk rock. Essas versões suavizaram as temáticas a impetuosidade técnica da música, no sentido de torná-la mais audível coma intenção clara de agradar a todos os ouvidos, já que a indústria fonográfica pretendia vender, dando pouca ou nenhuma importância a música em si como fenômeno cultural ligado as transformações da sociedade e um produto fruto de revoluções no campo artístico. 112

tornava o rock diferente era o fato de ser importada, executada em inglês, do qual pouca gente entendia, mas era diferente. Contrariamente a essas ideias, o conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer dizia que o princípio da liberdade que os meios de comunicação de massa pregavam era uma maneira de alienar o homem por meio da tecnologia, mostrando sua face mais cruel, a alienação por meio da liberdade condicionada de bens culturais criados para supor o um tipo de prazer, que se traduzia em fugacidade e prisão do espírito. A sociedade impõe ao indivíduo uma forma de ser e agir de acordo com seus princípios norteadores. Com base nisso, Foucault crê que a sociedade cria mecanismo de repressão e vigilância para manter seus cidadãos dentro dos padrões por ela instituídos. Todo discurso social é caraterizado por estar vinculado a um processo histórico, ou seja, as práticas discursivas sempre levam em conta as positividades de cada época, deixando sua marca registrada nos acontecimentos que envolvem essas práticas discursivas. No Brasil, o rock chega oficialmente com a Jovem guarda que, adotando um estilo do tipo “iê-iê-iê”, começa a ganhar espaço no Brasil através das rádios e, posteriormente, com os programas de televisão, comandados, inclusive, pelos próprios cantores do estilo, como é o caso do cantor e compositor Roberto Carlos. Logo após o Tropicalismo, que foi um movimento cosmopolita, mostrou que era possível fazer uma música diferente ao fazer a devoração da cultura estrangeira misturada com a cultura brasileira e provocar uma verdadeira revolução na música, na cultura e na sociedade brasileira. Nesse contexto, surge no final da década de 1970 e início dos anos 1980 o rock nacional ou rock brasileiro, que é a forma mais abrandada do punk rock, um movimento musical britânico. O rock brasileiro surge como uma revolução musical, se levarmos em conta o tipo de música que se escutava antes como a MPB, a Bossa Nova e a música popular brega. Seu advento e sua popularização no Brasil se deve, em grande parte, a indústria fonográfica brasileira, que viu no rock uma forma de música comercial que se podia lucrar muito com aquele seleto público de classe média alta na região sudeste e centro-oeste do Brasil. O movimento soul music, que possuía uma vertente muito ligada ao funk e soul americano, ritmo quente dançante e frenético, muito influenciado pelo movimento negro, blues, folk e rap americano, teve no Brasil, representantes de peso como Tim maia, Jorge Benjor, durante as décadas de 1970 e 1980 (Costa, 2001). Durante o final das décadas de 1960 até o final da década de 1970, predominou o rock psicodélico do Raul Seixas, da cantora e da banda Os Mutantes. Esse movimento tinha muitas características próprias: havia um culto ao rock americano do Elvis Presley, do Gene Vincent e a banda britânica The Beatles. As 113

músicas ou eram copiadas ou eram feitas versões de músicas conhecidas, uma espécie de cópia. Grande diversidade na execução das canções aqui no Brasil, predominando uma espécie de plurilinguismo, no qual se respeitava a variação linguística do cantor como é o caso do Raul Seixas, que basicamente refletia seu dialeto nordestino na execução de suas canções (COSTA, 2001). Para Chacon (1982, p. 33),

Em outubro de 1955 foi exibido nos cinemas nacionais Sementes da Violência, o filme norte-americano responsável pela primeira divulgação do Rock and Roll no Brasil, ao som de Rock Around The Clock. “É por isso que a estreia de Sementes da Violência nos cinemas brasileiros em outubro de 1955 é tão importante para a existência do rock Brasileiro” (FRAGA, 2005, p.37), porque foi a partir daí que os principais compositores e músicos da história do rock nacional tiveram seu primeiro contato com o estilo.

É a partir deste marco histórico que o rock adentra o Brasil, não em sua forma mais corpórea e robusta, mas como uma ideologia. O rock enquanto música nacional vai surgir a partir dos movimentos como o Tropicalismo, que o conduzirá aos anos 70, abrindo portas para outras variantes como o punk e o new wave. Após a vivência com todos esses estilos e suas variantes, nada disso pegou como moda para a juventude da época. Embora esses cantores fossem ídolos da geração de 1970 e 1980, não foi o estilo que se cultuava que norteou o nascimento do rock brasileiro (DAPIEVE, 1995). Para Chacon (1982, p.13), “por não ter comportamento uniforme, exige do rock a mesma polimorfa, para que se adapte no tempo e no espaço em função do processo de fusão com a cultura local e com as mudanças que os anos provocam de geração a geração”. O texto de Chacon fala principalmente da forma como o rock foi levado para outros locais, além daquele onde ele floresceu. Esse fenômeno se adaptou às culturas e às sociedades nas quais o rock foi implantado. Cada cultura o recebeu de forma diferente, fazendo com que ele se tornasse algo próprio da cultura que o assimilara, traduzindo-se em seus instrumentos peculiares, a tradição oral, as miscigenações, etc. No caso do Brasil, tínhamos entre meados de 1976 a 1982 o movimento punk oriundo da Inglaterra, que era uma contestação ao rock dito mais elitizado, como o denominado rock progressivo, de bandas como o Pink Floyd, Genesis42, Yes, dentre outras. O punk foi nessa época um dos maiores movimentos no Brasil, embora o cenário para ele não fosse muito amistoso, devido a sua não aceitação pelo mercado

42 Essas bandas produziram grandes álbuns e espetáculos até se tornarem inviáveis devido ao alto custo de suas produções. No período em que o punk surgia como uma alternativa musical, elas tiveram que adaptar sua estrutura, principalmente com músicas com duração menor, o que de certa forma causou impacto nos seus fãs. Isso aconteceu devido à influência do rádio. 114

fonográfico, fato que irá se modificar a partir da montagem das bandas de garagem a partir de 1976. O principal precursor desse movimento no Brasil foi Kid Vinil e sua banda Magazine. Outros como o cantor e compositor Lobão, um dos fundadores da Blitz, Lulu Santos e Ritchie. O próprio punk possuía variações. Tinha um lado muito agressivo nas letras, no som que se repetia, no comportamento dos grupos e das bandas, como o da banda inglesa Sex Pistols, Ramones, The Clash, The Stoogs, etc. E também possuía um lado melódico, que costumavam chamar de new wave, um som mais melódico e menos agressivo, com letras mais populares e temas mais ao gosto de boa parte da juventude. Esses dois movimentos dentro do punk vão gerar duas vertentes aqui no Brasil: o movimento rock São Paulo-Brasília e o movimento do Rio de Janeiro. A relação dos jovens da época com os dois estilos era bem dinâmica. De um lado, tínhamos a banda Titãs representando o movimento de São Paulo e o Aborto Elétrico no circuito de Brasília. Da mesma forma, tínhamos a Blitz e o Barão Vermelho no Rio de Janeiro que se apresentavam costumeiramente no Circo Voador. Inicialmente, os dois estilos eram quase rivais, depois descobrem que juntos são melhores e essas bandas começam a se apresentar nos circuitos de bandas punks e nos circuitos de bandas ditas não punks. Esses dois movimentos irão convergir mais tarde, no que se convencionou chamar de Rock Nacional ou Rock Brasileiro, que abrirá espaços para bandas como Legião Urbana, Capital Inicial, Ultraje A Rigor, , Uns e Outros, Inocentes, Magazine, só para citar algumas. Segundo Costa (2001), dos doze países que introduziram o rock como música estrangeira em sua cultura, só depois de dez anos conseguiram compor uma letra com um arranjo em sua língua. No Brasil há um caso inédito, desde seu início, já se cantava as canções do rock americano em inglês e português, como é caso do Roberto Carlos, e misturados com ritmos nacionais, como é caso do Raul Seixas. Outro caso que talvez tenha contribuído para a fixação do rock no Brasil foi o fato de o não uso de muita expressividade instrumental, como fazia grandes guitarristas como Jimi Hendrix, Eric Clapton, ou David Gilmour, entre outros, e expressão vocal como Janis Joplin ou Elvis Presley. O que teve foi um apego à técnica no caso das guitarras e instrumentos de solo e, ao invés da técnica expressiva de voz, se adotou um plurilinguismo, típico das regiões brasileiras para caracterizar suas produções. Isso foi uma grande jogada dos que se intitulavam roqueiros na época, a fim de criar o rock nacional, com a cara de nacionalidade brasileira e sem perder muito o foco do rock americano. De alguma forma, a indústria cultural se aproveitou do sucesso do rock no Brasil para vender. Não era preocupação do pessoal do iê-iê-iê, nem do rock da década de 1980 criarem 115

um novo estilo ou fazer alguma novidade no campo da música e da cultura nacional. O empreendimento era criar um público consumidor para os produtos aqui oferecidos, a música de importação com suas cópias e suas versões em português, assim como os chicletes, as jaquetas de couro, as lambretas, os tênis, entre outras coisas, ou seja, tudo que fosse ligado ao estilo. O rock não era só um estilo musical importado, era todo um conjunto de produtos que caracterizavam o rock também como comportamento juvenil. O aparecimento de um número significativo de jovens na década de 1980 com uma guitarra na mão, letras chulas e garagens repletas de bandas – as bandas de garagem – foi o efeito do que aqui já se fazia com relação ao rock da década de 1980, que representou o ápice dos movimentos anteriores em prol da renovação do discurso sobre a música e a cultura nacional. Em sua formação tivemos a configuração de várias vertentes do movimento rock and roll que se entrelaçavam no Brasil. O movimento jovem-guardista que incorporou o rock anglo-americano do iê-iê-iê, ligados a banda inglesa The Beatles e o rock italiano dos anos 1960, tinha um ritmo relativamente simples e entoavam canções animadas com temas diversos, muitos deles ligados a um estilo de vida mais livre e sem compromissos, talvez uma expressão do período pós- guerra, e canções românticas que refletiam a liberdade sexual e o apelo comercial. Os produtos culturais oferecidos para um público específico passam por um processo de manipulação dos corpos para consumir esses produtos e se tornarem consumidores eficientes. Segundo Foucault, isso acontece porque a sociedade possui mecanismos de coerção que fazem com que os corpos dos indivíduos sejam manipulados para obedecer aos padrões impostos por essa mesma sociedade. Há todo um poder exercido sobre esse corpo para torná-lo apto àquilo que se pretende fazer, feito sob determinadas operações e técnicas capazes de adestrar e manipular o corpo em questão. Há o interesse da sociedade disciplinar em tornar os corpos dóceis para facilitar sua manipulação e adoção de novos costumes por ela instituídos, ou seja, a ideia é sempre tornar esse corpo produtivo e ao mesmo tempo adestrado para não perder tempo com coisas inúteis e sim produtivo e disciplinado. A implementação de um estilo musical como foi feito com o rock no Brasil, foi um longo processo de adestramento das mentes e dos ouvidos dos indivíduos, uma vez que precisou de uma vivência muito ampla e demorada com o estilo para só então começar a ser visto como música. Para Foucault, tornar o homem uma máquina, é adestrar e transformar o indivíduo em um corpo dócil, manipulável que pode ser submetido a qualquer situação de conflito e administrá-la de forma desidiosa, sem mesmo o indivíduo saber disso, esse adestramento social não é percebido, nem sequer sentido, é obedecido cegamente. Consomem-se bens e produtos 116

sociais sem saber sua origem, seus benefícios e malefícios, mas pelo simples fato de ter sido posto como algo que pode ser obtido em qualquer lugar da cidade. Isso é feito tanto para o consumo como para produtividade. Esse processo que transforma corpos ociosos em corpos dóceis é semelhante à dos soldados, pelo adestramento e docilização do corpo, impondo-lhe um conjunto de normas, disciplina de forma adaptar o corpo ao que se propõe como a guerra, o combate, a obediência cega, ou seja, transformar-se em algo obediente e produtivo. Da mesma forma, trabalha a indústria cultural para que seus consumidores façam suas escolhas por produtos e serviços sem se perguntar por que se compra e se consome: “durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 1987, p.162). Assim,

com seus produtos a indústria cultural pratica o reforço das normas sociais, repetidas até a exaustão e sem discussão. Em consequência, uma outra função: a de promover o continuísmo social. E a esses aspectos centrais do funcionamento da indústria cultural viriam somar-se outros, consequência ou subprodutos dos primeiros: a indústria cultural fabrica produtos cuja finalidade é a de serem trocados por moeda; promove a deturpação e a degradação do gosto popular; simplifica ao máximo seus produtos, de modo a obter uma atitude sempre passiva do consumidor; assume uma atitude paternalista, dirigindo o consumidor ao invés de colocar-se à sua disposição. (COELHO, 1980, p. 12)

Como se pode perceber, a indústria cultural tem a mera finalidade de vender, usando todos os meios necessários para que o sujeito fique preso ao consumo de seus produtos, cujo teor e qualidade são questionáveis pelo fato de serem réplicas do que realmente deveria ser. A simplificação das coisas na indústria cultural é uma forma de manter o consumidor sempre atento, já que as coisas são feitas para serem consumidas e não para durarem. Com um mercado agitado, nem sempre se pode fazer tudo da forma como deveria ser feito, pois a pressa e a velocidade com que as coisas são consumidas não há tempo para investir em qualidade. Tudo o que é obra de arte se transforma em objetos de consumo, nada foge a essa indústria de bens e serviços, todos estão de alguma forma presos a ela e a sua ideologia. O corpo desde muito cedo foi alvo de investimentos de toda espécie para torná-lo dócil e apto à produtividade, bem como a poderes vindos dos meios de comunicação de massa, como a televisão, o rádio e o cinema. Da mesma forma que se treina o corpo do soldado para a guerra e a violência, indo até seus limites para provar sua eficácia, a indústria cultural, por meio de 117

mecanismos de docilização, treina os sentidos como o ouvido, o som da voz, o rebolado do corpo para consumir seus produtos. São mecanismos invisíveis aos olhos, que estão em toda parte sem que seja visto pelos sujeitos, eles apenas sentem seus efeitos em sua convivência com os demais. Nessa esfera se usa todo tipo de estratégia para tornar o corpo dócil. As propagandas, os slogans, os jingles, o comportamento de determinada banda, as roupas, suas cores, os decotes, o brilho, tudo é feito como um pacote completo para fisgar o consumidor com estratégias invisíveis que faça com que o sujeito se sinta feliz e gaste sem ao menos questionar a qualidade do produto. Impulsionados, de um lado pela abertura política iniciada na década de 1970, e de outro, pela falta de mercado onde pudesse expor sua mercadoria, o punk precisou criar sua própria estrutura para continuar no país. Assim,

A despeito do cenário econômico desfavorável para a indústria fonográfica e para o circuito mainstream, o movimento alternativo crescia a todo vapor, com bandas que surgiam da mutação pós-tropicália e do crescimento mundial do rock progressivo na década anterior. Além disso, o cenário político do país encontrava-se em um estágio de aproximação do fim da ditadura militar – com a abertura dos portos e aeroportos para produtos estrangeiros – e a amenização do regime promoveu a possibilidade de se repaginar a formação cultural musical na época. (MESQUITA, 2014, p. 14)

Os jovens dessa época, especialmente, o eixo São Paulo/Brasília, experimentavam algo diferente do que ocorria no Rio de Janeiro. O contexto da época os colocou em contato com o subgênero do punk rock inglês do Sex Pistols e de outras bandas como Ramones, The Clash, etc. A influência dessas bandas, direta ou indiretamente, foi bastante grande para criação de um rock nacional, já que o som e a ideologia dessas novas bandas estavam de acordo com o que se passava aqui no Brasil relativo à música, a cultura e a política. O estilo agressivo, o espírito niilista, o anarquismo e a revolução era a ideologia que movimentava a cena do punk rock da época. Em seus temas abordavam a guerra, o desemprego, a violência, o sexo, drogas e diversão. Essa juventude se autointitulada “geração de consciência”, já que discordavam do movimento do rock progressivo que era, segundo a juventude da época, muito elitizado. De fato, o punk rock em sua grande maioria sairia da periferia e dos bairros mais afastados dos grandes centros comerciais e industriais, das boas escolas e do lazer comprado e elitizado. O “faça você mesmo”, “Do it yourself”, simbolizou uma página do movimento punk em que todos faziam as coisas, desde as roupas até o modo de se comportar, cada um se vestia ou se comportava de acordo com aquilo que acreditava. Essa atitude destruidora de tudo que havia 118

de organizado e sedimentado na sociedade, serviu de base para reelaboração de conceitos, atitudes, comportamento e grandes mudanças dentro da cultura, da arte e da música mundial. No Brasil o punk entrou por São Paulo e Brasília, influenciando diretamente a formação das primeiras bandas de punk no país como Aborto Elétrico, Ratos de Porão e Inocentes, que divergiam diretamente do que acontecia no Rio de Janeiro, uma vez que a indústria fonográfica se concentrava naquele estado do país e estava muito bem com sua Blitz e todas as bandas do circuito que se apresentavam no Circo Voador. O que os punks desejavam era um mercado consumidor onde pudessem vender, tocar e divulgar sua ideologia, algo que já estava bem avançado com as bandas do Rio de Janeiro. Ora, algo muito contraditório a sua ideologia, porém há de se reconhecer que ninguém vive sem a indústria cultural, desde os mais radicais até os mais docilizados todos desejam fazer sucesso, ganhar dinheiro e “de tabela” dizer o que pensa. Entretanto, nesse momento do Brasil, o movimento punk iniciou um circuito de música, que eram festas alternativas onde a maioria dos jovens (na sua grande maioria de classe média alta), que desejavam algo diferente daquilo que estavam habituados a ouvir e viver. Isso tudo contribui para a identidade nacional do rock e foi o grande propulsor do movimento underground no Brasil. Para Rochedo (2013, p. 29),

Neste período, os grupos punks existentes já tinham conquistado um público fiel, códigos próprios, letras e roupas. Nessa época, existiam mais de 20 bandas na periferia de São Paulo. É a partir desse período que alguns grupos, como “Inocentes”, “Cólera”, “Ratos de Porão”, dentre outros, conseguem gravar seus primeiros discos.

Por volta de 1982, muitas bandas como as citadas acima, começam a gravar suas músicas, marcando o início do som do rock nacional nas gravadoras, nas rádios e nos palcos alternativos. É interessante destacar que os líderes e jovens que compunham essas bandas eram filhos de militares ou militares aposentados e, paradoxalmente, por falta de espaço na indústria cultural do início, essas bandas se apresentam em espaços do governo, com a “ajudinha” dos pais. Esse momento é de suma importância porque o punk passou a ser ouvido e divulgado pela “galera” local e os discos começaram a circular em larga escala. Segundo Rochedo,

Em paralelo, outro panorama do rock nacional começou a crescer no berço da MPB. No cenário do Rio de Janeiro, a corrente da música popular brasileira era ainda o que dominava a indústria cultural, o que dificultou a popularização do movimento punk que crescia na capital paulista. Porém, outra subvertente do rock – a new wave – ganhou espaço na cidade carioca. Este movimento, juntamente com o punk rock, influenciou o surgimento de bandas brasileiras 119

da nova fase do rock nacional, denominado “Brock”. (ROCHEDO, 2013, p. 15)

Essa cena underground do punk rock do circuito São Paulo/Brasília de um lado e o movimento do new wave do Rio de janeiro do outro, acaba incomodando e diminuindo consequentemente a grande influência da MPB entre os jovens, principalmente, no Rio de Janeiro, onde algumas bandas já estavam bem destacadas como a Blitz, o Barão Vermelho dentre outros que se apresentavam constantemente no Disco Voador. A junção disso tudo contribuirá para a formação de um rock legitimamente nacional. Com o enfraquecimento do regime militar e sua crescente insuficiência política, e a diminuição da censura, as bandas podiam deixar de usar metáforas para se comunicar com seu público para, não apenas falar, mas gritar naquele momento o que o país inteiro estava vivendo. O período estava propício, “era época de uma liberação política, e a arte que florescia só poderia ser mais livre, mais forte, mais crítica e audaciosa” (MOTTA, 2001, p. 110). Finalmente, o rock já começava a se apresentar como música brasileira. Seus adeptos, inicialmente, jovens da classe média alta e, posteriormente, o rock vai às massas, mas isto foi só o bum inicial, faltava agora a sedimentação do estilo. Agora mais forte do que nunca, se engajam as grandes gravadoras e produtoras de cultura, a chamada indústria cultural, que atuavam no cenário da MPB há anos, mas desde a implementação do rock que estas se mantinham em alerta sobre o movimento no país. A indústria cultural busca dinheiro, lucro, o que não poderia acontecer com o rock antes de se firmar como música nacional, só agora é que isso era possível, graças aos esforços das bandas que surgiram na época, que depois de enfrentarem todo o país conseguiram finalmente um espaço na mídia.

4.4 ROCK E INDÚSTRIA CULTURAL

Uma das grandes ironias do marxismo foi passar de uma ideologia ampla, como uma nebulosa que abarcava todas as teorias sobre a política e economia para vir enlatado sob a forma de um produto de consumo. Ora, nada mais catastrófico do que passar de uma modalidade universal para um conceito individual e com um alcance social mais restrito, porém com o mesmo e, talvez, maior poder de convencimento e alienação do homem em sua labuta social. A indústria cultural não só se reveste deste conceito marxista, como também se mostra muito eficaz no processo de condução de um modus vivendi, de uma sociedade dominada cegamente pela técnica. Esta que apareceu com um conceito de elevar o espírito do homem e 120

amenizar-lhe os sofrimentos ocasionados pelos bens manufatureiros, limitados e pouco atrativos, chega ao ápice de lhe ditar o próprio conceito de vida, trabalho, vivência e sociedade. O conceito de enlatado vem da própria criação industrial, em que todos os produtos criados pela técnica têm uma forma, um recipiente, uma forma de lata. Isso é a revolução: todo o prazer que o mundo pode dar vem em um recipiente individual que se pode levar até sua casa e desfrutar dele. Não é preciso nenhuma censura e nem mecanismo para tentar ler ou decifrar seu código, só precisa apertar o play que tudo começa no tempo e na hora que você desejar. Isso pode ser feito uma, duas, três, ou quantas vezes você quiser, o prazer enlatado sempre estará a sua espera. Não obstante, a sociedade é vista sob o prisma da técnica, de modo que tudo é posto como os mecanismos e as ferramentas que criamos para facilitar nossa vida e torná-la menos enfadonha e difícil. A técnica não só facilita, ela faz sozinha aquilo que precisaria de muitos para resolver o mesmo problema. A supremacia desta forma de viver tornou os homens dependentes de instrumentos e mecanismos para controlar o mundo em que se vive. A experimentação e o improviso não servem mais a esse mundo “científico”, onde todos dizem estar dentro de padrões altamente criteriosos, frutos de pesquisas de ponta. A questão se torna mais complicada quando entra o conceito de liberalismo e democracia. A falsa sensação de poder sentir-se à vontade com o mundo traz consigo o perigo ideológico de acreditar em uma liberdade plena, em que o consumismo desregrado de produtos ditos “de qualidade” faz o sujeito acreditar que está participando de um mundo no qual todos tem acesso a bens e serviços da mesma forma que os demais. Essa sensação é sentida na televisão nova de cinquenta polegadas bem no meio da sala, com uma estante de linha com fotografias instantâneas dos parentes, com uma programação já conhecida desde a criação da TV. A sociedade dita industrial nem sempre foi assim. A indústria é algo novo, ao passo que a cultura nasce com o próprio homem. O homo faber nasce de um conceito filosófico do saber fazer, ou seja, havia nas aldeias, cidades e povoados homens que tinham como sua especificidade a de fabricar produtos para as mais diversas atividades do dia a dia. Esses produtos, por sua vez melhoravam e agilizavam a vida cotidiana ao facilitar a realização de tarefas, por meio de algum aparato que facilitasse aquelas atividades. Segundo Hannah Arendt (2011, p. 90),

Nesse contexto, no entanto, é importante estar consciente de quão decisivamente difere o mundo tecnológico em que vivemos, ou talvez em que 121

começamos a viver, do mundo mecanizado surgido com a Revolução Industrial. A industrialização ainda consistia basicamente na mecanização de processos de trabalho, e no melhoramento na elaboração de objetos. O mundo no qual viemos a viver hoje, entretanto, é muito mais determinado pela ação do homem sobre a natureza, criando processos naturais e dirigindo-os para as obras humanas e para a esfera dos negócios humanos, do que pela construção e preservação da obra humana como uma entidade relativamente permanente.

O trabalho do homem, na tentativa de dominar a natureza através de processos fabris, inicialmente, se configurava como a simples criação de determinados objetos manufaturados para facilitar a vida do homem. Esse contexto de fabricação foi o início de processo de industrialização que irá mudar não apenas os processos de produção, mas sua relação de produção com quem produz e com quem manda fabricar. No início do processo de organização da vida social, a fabricação de objetos para o dia a dia e da melhoria da relação do homem com a natureza, por meio de instrumentos que facilitassem e agilizassem a vida social, tinha como objetivo central melhorar a vida do homem. A técnica tinha como escopo melhorar o homem como pessoa e sua relação harmoniosa com a natureza, sem a pretensão de usar essa mesma técnica como elementos que gerasse a desigualdade social, a destruição desenfreada dos recursos naturais, a poluição dos ambientes reservados ao sossego do homem, e a relação deste com a natureza, como elemento de catalisação do sofrimento e amenização dos esforços provocados pelo trabalho exaustivo. A fabricação de objetos no interior da vida social tinha como objetivo tornar a sociedade mais evoluída do ponto de vista da adequação das técnicas conquistadas, fazendo cada vez mais descobertas que pudessem manipular o maior número de coisas possíveis. Por exemplo, inicialmente, o telescópio vai ser uma revolução no mundo da física, a manipulação da pólvora e a invenção da bússola, são coisas que farão o mundo moderno mudar drasticamente. Assim, o homem se aproveitará das coisas que dispõe a natureza para fabricar aquelas que podem ser usadas e diferentes daquelas que são consumíveis, ou seja, dispor de um conjunto de instrumentos e ferramentas que são usadas para manipular a natureza e produzir coisas para o consumo que não são dadas pela natureza, mas é dada a matéria-prima para sua fabricação. Diante dessa constatação, o homo faber irá aperfeiçoar cada vez mais os elementos de intervenção natural para modificar o meio e adequá-lo às suas exigências baseadas na segurança e no conforto. Nesse processo, a instrumentalização do homem por meio das técnicas inventadas por ele, nos levará ao conceito de indústria e o advento das máquinas que substituíam o trabalho do homem em contato com elementos que prejudicavam a sua própria saúde. O vapor como 122

propulsor inicial, que substitui os moinhos de vento, movido pela queima do carvão, antes do petróleo e da energia atômica, será o início da industrialização que movimentará, desde as máquinas do setor têxtil até o trem das ferrovias e, com isso, aliviará o trabalho pesado do homem, ao passo em que diminui as distâncias e acelera a produção. Assim,

A discussão de todo o problema da tecnologia, isto é, da transformação da vida e do mundo pela introdução da máquina, vem sendo estranhamente desencaminhada por uma concentração demasiada exclusiva no serviço ou desserviço que as máquinas prestam ao homem. A premissa é de que toda ferramenta e todo utensílio destinam-se basicamente a tornar mais fácil a vida do homem e menos doloroso o trabalho humano (ARENDT, 2010, p.188).

Nessa perspectiva, a tecnologia, o uso da técnica como processo de exploração da vida natural para o benefício da vida social, presta um tipo de serviço em que se introduz a máquina como prestadora de serviços ao homem, enquanto se produz um desserviço ao concentrar as atividades nas mesmas para diminuir o trabalho doloroso do homem. Esse processo conduzirá a mudanças radicais nos meios de produção, outrora fabricados de modo artesanal, para um modo em série, retirando os meios de produção artesanal, tornando esse mesmo um meio de produção capitalista, algo das mãos de todos que detinham esses meios, e não apenas do artista que a projetava e fabricava. O processo de industrialização que se iniciou após a Revolução Industrial, não só aprimorou as técnicas até então desenvolvidas, mas as colocou em série para padronizar os produtos por ela fabricados. Essa forma de produção vai dar origem ao conceito inicial de produtos acabados e padronizados. Nesse sentido, o conceito de indústria cultural surge após a Revolução Francesa e mais recentemente a Revolução Industrial, ambas ligadas ao conceito de técnica, tecnologia e maquinização da sociedade. Com tudo isso, também surge a classe operária, que ao mesmo tempo é trabalhadora e consumidora dos produtos que ela mesma produz. A industrialização e a fabricação em série dão início a um novo conceito de sociedade. Ligados porém, à ideia de trabalho, está o descanso do trabalhador e o que ele deve fazer nos momentos em que estiver livre, daí o conceito de indústria cultural ligada à diversão e ao entretenimento, justamente para manter esse trabalhador conectado com a ideia do sistema de capital, para não poder pensar em ideias que contrariem essa suposta vida de trabalhar uma parte do dia ou da semana e dedicar parte desse tempo ocioso a família, a igreja, ao sindicato e, por que não, ao entretenimento por encomenda, prontinho na televisão, no cinema e no conteúdo das músicas veiculadas nas rádios. Antes da invenção do produto cultural, as músicas, por exemplo, quem quisesse ouvir o seu cantor favorito deveria esperar o mesmo cantar em algum local onde se pudesse ter acesso, 123

prioritariamente. A execução era instantânea, não havia gravações, esse invento de colocar as músicas em um aparato que pudesse ser reproduzido em outro local que não fosse o palco, era um produto industrial. Ao lado do disco que carregava a produção de um cantor, se vendia o aparelho que servia para executar aquelas músicas. Parece algo óbvio hoje, já que tudo é automático: as músicas podem ser baixadas e executadas em vários formatos técnicos industriais como mp3, mp4, CDs, etc., porém, na época, o disco foi uma revolução junto com a vitrola que executava essas canções. Com a necessidade de vender seus produtos, a indústria também começou a fabricar os elementos relativos à música em séries que pudessem ser obtidas por todos. De igual forma, aqueles que produziam as letras e as melodias precisavam desse invento. Assim,

O entretenimento e os elementos da indústria cultural já existiam muito tempo antes dela. Agora, são tirados do alto e nivelados à altura dos tempos atuais. A indústria cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter erigido em princípio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter despido a diversão de suas ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias. (ADORNO & HORKHEIMER, 1969, p. 110).

A cultura sempre foi tida como um processo de aprimoramento do homem em sociedade, ou seja, além de servir ao entretenimento, a cultura e seus sujeitos sociais eram um tipo de experiência social que era levada aos povos que, embora de forma rudimentar e precária, prestavam grande serviço às tradições, à literatura, à música e aos mais diversos meio de aculturação do cidadão. Contudo, isso não era visto como trabalho, no sentido mais restrito do conceito de trabalho assalariado, mas sim da esfera do ócio. O que a indústria cultural faz é transferir essa experiência da cultura através da técnica para a esfera do consumo, isto é, transformar qualquer tipo de manifestação do ócio em mercadoria para ser vendida diretamente ao cidadão, sem a necessidade de intermediários, eliminando a intervenção de terceiros no processo de transformação de tudo/qualquer coisa em bens de consumo atirado às massas como obra de arte. A indústria cultural ainda faz um processo de triagem do produto da arte, retirando dela as propriedades que causem discordância e contradições, para que esse produto mercantilizado chegue aos sentidos do consumidor/sujeito como algo pronto para ser consumido sem nenhum tipo de questionamento, ou seja, tornar passivo um consumidor ativo de produtos produzidos para fins comerciais e alienatórios. Adorno & Horkheimer ainda deixa claro que,

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o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. (ADORNO & HORKHEIMER, 1969, p. 100).

Nessa perspectiva, o processo de manipulação das massas para o consumo de produtos culturais enlatados ideologicamente para esse fim é um imperativo da indústria cultural que sobrepõe seu poder econômico na sociedade moderna, tornando a técnica não a libertação e a felicidade do homem, mas a afirmação de sua dominação por meio da alienação dos produtos culturais. A técnica não está a serviço do cidadão, muito pelo contrário, ela é instrumento a serviço do sistema burguês que, justificando seus fins pelos meios, torna a sociedade niveladamente justa, ao mesmo tempo que aumenta suas injustiças, manipulando-a segundo seus critérios e seus processos de obtenção de lucro através da alienação dos consumidores/sujeitos/cidadãos. Para Coelho,

A "indústria cultural" é um daqueles objetos de estudo que se dão a conhecer para as ciências humanas antes por suas qualidades indicativas, ou aspectos exteriores, do que por sua constituição interior, estrutural. E um desses traços indicativos é exatamente o da ética posta em prática por essa indústria. Este será, portanto, o ângulo de abordagem, a linha de investigação que orientará este trabalho de exposição dos aspectos centrais da indústria cultural. A questão que no fundo se coloca a respeito dessa indústria é "o que fazer" com ela — questão essencialmente ética. E é para uma resposta a essa questão que se procurará apontar aqui. (COELHO, 1980, p. 5).

A indústria cultural vai surgir como uma necessidade imperativa no interior da sociedade, seu aparecimento é produto do campo da aplicação do uso de técnicas desenvolvidas para criar objetos de consumo. Não se discute a questão da ética, pois ela não será o norte da indústria cultural, porque esta não precisará dela, e se precisasse, criaria sua própria ética, aquela ligada à venda e consumo de produtos industrializados, feitos única e exclusivamente, para serem comercializados: “a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social”. (ADORNO, 2003, p. 57). Para Reali e Antiseri,

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A indústria cultural perfidamente realizou o homem como ser genérico. Cada qual é cada vez mais somente aquilo pelo qual pode substituir qualquer outro: ser consumível, apenas exemplar. Ele próprio, como indivíduo, é o absolutamente substituível, o puro nada (REALI & ANTISERI, 2006, p. 474).

Desse modo, o sujeito da indústria cultural também se torna uma espécie de objeto, idêntico, genérico, que pode ser substituído por outro sem prejuízo dos demais. É a despersonalização do sujeito, ao tratá-lo como um mero produto social, um exemplar substituível das prateleiras da indústria cultural. Sobre isso, Foucault coloca que:

Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas, entretanto, são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica — movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. (FOUCAULT, 1987, p.163-164).

Segundo Foucault, essa ideia de direcionar o corpo para algo previamente estabelecido não é nova. Assim como se fabricava um soldado para guerra, potencializando suas energias para aquilo que se desejava, o corpo e as vontades do sujeito são planejados pela indústria cultural para o consumo de seus produtos. Tal assertiva é, em parte, consciente e inconsciente. Consciente, no sentido de que o planejamento do sujeito é feito por ele e não pela indústria cultural, a questão que se põe é que a indústria coloca tudo ao dispor desse sujeito, ele não tem a liberdade de escolher outro produto, e mesmo que o faça, esse produto também pertence à indústria cultural, ou seja, essa organização da indústria cultural é um tipo de armadilha conceitual, um emaranhamento de estados de coisas que não permite a liberdade social do indivíduo. Inconsciente, porque o sujeito não tem consciência da sua escolha, porque ela é manipulada pela indústria. Nessa questão, os homens seriam meras marionetes nas mãos da indústria cultural. Nesse pensamento, Foucault insiste que os métodos utilizados para docilizar o corpo, e ao mesmo tempo torná-lo útil, são estratégias que impõem regimes disciplinares sobre o corpo para que o mesmo seja colocado em constantes exercícios físicos e mentais, calculando sua eficiência, obediência cega, para seguir padrões altamente sofisticados, o que permite maior 126

exercício de poder sobre o mesmo, sujeitando a técnica e limpeza mental das ociosidades e das atividades que não servem às estruturas hierárquicas da sociedade. Ainda segundo Foucault, essas técnicas e estratégias são antigas e já eram usadas em conventos, mosteiros, no exército e na própria relação hierárquica da igreja durante os séculos XVII e XVIII. Na modernidade, esses mesmos procedimentos foram estendidos à cultura, à fábrica, às relações interpessoais, à escola, dentre outras instituições sociais. As técnicas e os métodos utilizados pela indústria cultural têm a função de docilização-utilidade, ou seja, tudo aquilo que se produz é feito através da docilização do corpo para consumir seus produtos sem questionar, obediente ao que lhe é posto. As propagandas, os slogans e todas as estratégias do marketing visam criar esse indivíduo consumidor, sem que ele mesmo perceba aquilo que foi posto como mercadoria, quando o mesmo sujeito, muitas vezes é um tipo de objeto mercatório. Além das técnicas de adestramento para o consumo de produtos típicos da indústria cultural, ela cria objetos de desejos e vontades para que gere nos sujeitos consumidores uma necessidade, isto é, muitos dos produtos que a indústria cultural põe a serviço dos sujeitos sociais não são necessários a sua sobrevivência, fazem parte de um leque de opções supérfluas, mas que o sujeito deseja ter e experimentar. De acordo com Adorno & Horkheimer,

A fusão atual da cultura e do entretenimento não se realiza apenas como depravação da cultura, mas igualmente como espiritualização forçada da diversão. [...] A diversão se alinha ela própria entre os ideais, ela toma o lugar dos bens superiores, que ela expulsa inteiramente das massas, repetindo-os de uma maneira ainda mais estereotipada que os reclames publicitários pagos por firmas privadas. A inferioridade, forma subjetivamente limitada da verdade, foi sempre mais submissa aos senhores externos do que ela desconfiava. A indústria cultural transforma-a numa mentira patente. A única impressão que ela ainda produz é a de uma lengalenga que as pessoas toleram nos best-sellers religiosos, nos filmes psicológicos e nos women’s serials, como um ingrediente ao mesmo tempo penoso e agradável, para que possam dominar com maior segurança na vida real seus próprios impulsos humanos. (ADORNO & HORKHEIMER, 1969, p. 117)

Para o autor que cunhou o termo “indústria cultural”, ela transforma a própria cultura dos povos num tipo de mercadoria feita para o consumo e o entretenimento. A diversão passa a ser um tipo de entretenimento pago, em que os meios de produção da indústria cultural utilizam para fazer fortuna ao criar e vender necessidades à população. Não obstante, essas necessidades são um tipo de ilusão mercadológica que faz com que se pense que aquilo que a indústria vende é real, quando na verdade, o real é visto sob a ideia da criação de necessidade para serem vendidas para seus consumidores. 127

Acrescente-se a esse tipo de mercado que lucra muito com a diversão e o entretenimento dos povos, o fato de que tudo não passa de uma grande mentira, a indústria cultural é essa mentira que é posta e vendida como verdade, usando de um psicologismo social barato, com base nas tragédias e milagres da população, socializada sob a forma de uma pedagogia barata, buscando o mais próximo de uma realidade cruel para a catarse da vida dos sujeitos sociais. A salvação pela informação mentirosa e inventada, com o objetivo de vender mais, ampliar as margens de lucros e enriquecer os empreendedores das grandes corporações do cinema, da música e da televisão. De acordo com Reali e Antiseri, a indústria cultural,

é constituída essencialmente pela mídia (cinema, televisão, rádio, discos, publicidade etc.). É com a mídia que o poder impõe valores e modelos de comportamento, cria necessidades e estabelece a linguagem. E esses valores, necessidades, comportamentos e linguagem são uniformes porque devem alcançar a todos; são amorfos, assépticos; não emancipam, nem estimulam a criatividade; pelo contrário, bloqueiam-na, porque habituam a receber passivamente as mensagens. (REALI & ANTISERI, 2006, p. 474)

Os veículos utilizados pela mídia constituem uma estratégia para produzir discursos sobre a sociedade, quebrando tabus para ditar comportamentos, valores e necessidades às quais a sociedade ainda não precisava, mas que se torna imperativo, graças à ação repetitiva e efetiva dos meios que utilizam. Esses meios normalmente são de grandes corporações, controladas por pequenos grupos que uniformizam suas estratégias mercadológicas para bloquear o processo de crítica e criatividade do consumidor/sujeito, para que seus produtos entrem na linha de mercado e sejam comprados e consumidos sem qualquer tipo de questionamento, ou seja, torna a sociedade passivamente consumidora do “lixo” que produzem. De acordo com Coelho,

As formas culturais atravessam as classes sociais com uma intensidade e uma frequência maiores do que se costuma pensar. Maiakovski sempre acreditou que o povo podia ser um consumidor da arte de experimentação vulgarmente chamada de elite — e acreditou nisso até que a burocracia stalinista levou-o à morte. (COELHO, 1980, p. 9)

Para o autor acima, essas formas culturais que estão ao dispor dos sujeitos, a maneira como elas chegam, seu formato, suas características peculiares, são de uma intensidade avassaladora para os consumidores do mundo globalizado, haja vista que os sujeitos têm ou não têm uma relativa consciência disso, tudo se torna mais fácil para que a indústria cultural continue a vender e inventar produtos para entreter a vida social. Para Baudrillard, 128

O processo acelera e atinge sua extensão máxima com os meios de comunicação de massa e com a informação. Os mídia, todos os mídia, e a informação, qualquer informação, funcionam nos dois sentidos: aparentemente produzem mais social e neutralizam profundamente as relações sociais e o próprio social. (BAUDRILLARD, 1985, p. 33).

Segundo Baudrillard, a noção de estado social do homem é uma ilusão grotesca porque, ao produzir o estado social do indivíduo, a mídia destrói a própria sociedade, uma vez que ela faz do social do sujeito, o social do mundo geral, criando uma espécie de pseudo-social do qual o indivíduo pressupõe participar, pensando este que o consumo e a participação em determinadas esferas da sociedade, o fazem um indivíduo socialmente engajado. Essa sensação de socializado pelos veículos da indústria cultural neutraliza a própria noção de sociedade e do regime de todos pelo comum, pois ao propor o indivíduo como social, neutraliza a própria ideia de sociedade. Segundo, ainda, Baudrillard,

As coisas, profundamente, jamais funcionaram de modo social, mas sim simbolicamente, magicamente, irracionalmente, etc. O que subentende a fórmula: o capital é um desafio à sociedade. O que quer dizer que essa máquina perspectiva, panóptica, que esta máquina de verdade, de nacionalidade, de produtividade que é o capital, não tem finalidade objetiva, não tem razão: ela é antes de mais nada uma violência, e esta violência se exerce pelo social sobre o social, mas na realidade ela não é uma máquina social, ela despreza o capital e o social em sua definição ao mesmo tempo solidária e antagônica. (BAUDRILLARD, 1985, p. 34).

Desse modo, o simbolismo que rege a máquina social o exerce de forma coercitiva, ou seja, o indivíduo, na maioria das vezes, age irracionalmente, porque a finalidade principal da sociedade de consumo não é o indivíduo e sim o capital. A própria noção de social e sociedade é uma violência contra o indivíduo, já que a mesma atua de forma antagônica e, ao mesmo tempo solidária, pois se apresenta de forma violenta, colocando o sujeito sob a perspectiva do capital, ao passo que ela é a realidade do sujeito, integrando-o ao seu seio e, tornando-o parte do corpo social. Para Adorno & Horkheimer,

Quanto mais firmes se tornam as posições da indústria cultural, mais sumariamente ela pode proceder com as necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as, disciplinando-as e, inclusive suspendendo a diversão: nenhuma barreira se eleva contra o progresso cultural. (ADORNO & HORKHEIMER, 1969, p. 118)

129

Para o autor da Escola de Frankfurt, a indústria cultural quanto mais adentra o meio social, como necessidade de sanar o que se propõe como necessário e essencial, mais ela pode dirigir e disciplinar as necessidades dos indivíduos ao ditar aquilo que ele deve ou não consumir, bem como suspender e trocar por outro bem que a mesma indústria considere bom e oportuno a seus membros. Ela é quem dita o que se deve ou o que não se deve usar, já que sua estrutura e sua organização social permitem que isto seja feito mesmo sem a permissão do sujeito consumidor. Na base da indústria cultural encontra-se o ócio, não aquele grego ou romano, direito reservado a poucos como uma dádiva de Deus aos homens abastados. O tempo livre do trabalhador, que a cultura industrial deixa para que o mesmo recupere suas energias, fique em casa com a família ou vá à igreja, deve ser preenchido com atividades de lazer oferecido sob a forma de “cultura” 43, lógico sem aqui querer se discutir a brevidade ou longevidade do conceito da mesma e sua abrangência. A visão pessimista de Adorno & Horkheimer vem do fato de que para eles, diversão e entretenimento são duas formas de alienação da cultura, ou seja, se vende algo com o mero valor de entretenimento e diversão, porque a indústria cultural é uma farsa, uma mentira que transforma tudo em mercadoria, quando na verdade se vende necessidades criadas para fins específicos. Tudo que a indústria cultural prega é uma mentira que causa no sujeito a falsa sensação de estar participando da grande engrenagem social, pois o sujeito consome algo que acredita ser produtos e necessidade que estão ao seu dispor, quando eles simplesmente estão ali por uma jogada mercadológica. Se tudo que a indústria cultural produz é uma farsa, então por que isso acontece e ninguém reclama ou pelo menos deixam de comprar esses produtos? Primeiro, a indústria cultural cria objetos que representam as necessidades dos sujeitos; segundo, essas necessidades são planificados, padronizados, fazendo com que aquilo que eu desejo seja o desejo do seu próximo, tornando esse objeto de necessidade/desejo não apenas semelhante, mas também possível de ser obtido, já que a escala de produção permite o barateamento dos preços e sua forma de aquisição. Para Adorno & Horkheimer,

O facto de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. (ADORNO & HORKHEIMER, 1969, p. 57)

43 A palavra cultura aqui citada não será discutida a fundo, visto que não é o principal objetivo do texto. 130

Nesse sentido, a indústria cultural se aproveita do fato de que muitas pessoas tem as mesmas necessidades e desejam os mesmos produtos, o que torna isso uma imposição aceitável de uma verdade fabricada já que, da forma como é posto, ninguém resiste à tentação de participar desse largo e frutífero mercado de produtos e bens para a diversão. Os centros de controle da produção participam da mesma assembleia de valores ideológicos, uma vez que a padronização desses produtos e bens não difere muito no formato, tamanho e peso, todos possuem características que lhe são ao mesmo tempo peculiares e semelhantes aos olhos do comprador e do freguês, embora todos sejam a mesma coisa, inclusive do mesmo produtor e fabricante, mudando, muitas vezes, o formato invólucro, com sua mídia de divulgação e a marca. De acordo com Adorno & Horkheimer,

A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus directores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos. (ADORNO & HORKHEIMER, 1969, p. 56).

Com vemos, a indústria cultural tende a uniformizar as coisas, tornando-as todas idênticas. Esse fato, embora óbvio, porque é isso que a indústria deseja que seja, é uma tática para encobrir a verdade sobre o que se produz dentro das estratégias da indústria cultural. Acredita-se que há dentro das características de qualquer obra-de-arte algo dela que seja universal e, portanto, podendo ser apreciada por todo o mundo e, algo particular, local que a faz singular em relação a sua origem e procedência. A indústria cultural elimina essa particularidade perigosíssima para sua manutenção, já que a padronização busca justamente por ao grande público global, local, universal e particular, com se as coisas fossem sempre as mesmas e em todo lugar, fato esse que promove, in facto, a eliminação das culturas. Essa estratégia ideológica trazida pela indústria cultural, busca legitimar aquilo que produzem como sendo mercadoria autêntica, afastando do consumidor/sujeito a possibilidade crítica de pensar sobre aquele produto adquirido, fazendo com que a indústria se perpetue em sua empreitada de continuar a vender seu lixo social e a criar novas formas e empacotar sua mercadoria para todas as demandas sociais. 131

5 A PRODUÇÃO DISCURSIVA DAS BANDAS BLITZ E TITÃS: SABER-PODER, SUBJETIVAÇÃO DO AMOR/DIVERTIMENTO, DA REBELDIA E DA POLÍTICA E SUAS RELAÇÕES COM A INDÚSTRIA CULTURAL

Todo o nosso percurso teórico e metodológico feito até agora foi a com a intenção de mostrar como as letras das Bandas Blitz e Titãs produziram discursos sobre a música, a cultura e a sociedade brasileira quando, cada uma a seu modo, subjetivou elementos discursos que produziram uma arquegenealogia do Brock. Nessa perspectiva analítica, tentando dentro daquilo que foi possível, sem forçar demais a teoria e o método, se percebe que na produção discursiva do Brock através das letras de músicas das bandas Blitz e Titãs, que o discurso das mesmas se imbricam com o discurso histórico e com os elementos constitutivos da década de 1980, ao protagonizar a censura moral da ditadura militar, o fracasso do liberalismo econômico com a inflação galopante, os movimentos populares pela abertura política do país e o caminho para assembleia que culminaria com a Constituição democrática de 1988, etc. Nessa investida em busca de uma melhor forma de mostrar como o discurso sobre a constituição do Brock aparece nas letras das músicas das bandas acima citadas, iremos proceder através de trajetos temáticos, que é uma das maneiras pela qual o método arquegenealógico utiliza para organizar e sistematizar a constituição e a emergência dos discursos. Esse trajeto temático se organiza através de eixos temáticos produtores de sentido que centralizam a forma de emergência desses discursos dentro das formações discursivas e do tipo de positividade de cada época. Para a banda Blitz, se fará o percurso temático do amor/divertimento, mostrando os modos de subjetivação e a discursivização dos enunciados das letras selecionadas “Você não soube me amar” e “Weekend”, que representa o corpus para análise. Essas duas músicas são de álbuns distintos: a primeira, pertence ao álbum “As aventuras da Blitz” e a segunda, ao álbum “Radio-atividade”. Neles se mostrará como essas duas letras de música proporcionam a possiblidade de emergência de um tipo de discurso que mostrará uma arquegenealogia do Brock através da subjetivação e discursivização do amor/divertimento. Para a banda Titãs, percorreremos a temática da rebeldia e da política que, embora mostre também um discurso sobre o amor, há a predominância da subjetivação e discursivização da rebeldia e da política, que será outro discurso que emergirá como a base de fundação do Brock. As letras selecionadas são “Homem primata” e “Televisão”, de diferentes, 132

o primeiro, chamado “Cabeça dinossauro” e o outro chamado “Televisão”. Essas duas letras serão o corpus de análise para a proposta até aqui apresentada. A partir de agora, procederemos com a análise das letras de músicas, de forma que, primeiro, faremos uma pequena biografia, bem panorâmica, porque isso não é o objetivo do trabalho, e em seguida, serão analisadas duas músicas de cada banda, observando os pressupostos teóricos e metodológicos propostos para esse trabalho.

5.1 A BANDA BLITZ: RELAÇÕES DE SABER-PODER, DISCURSIVIZAÇÃO DO AMOR/DIVERTIMENTO E INTERFACES COM A INDÚSTRIA CULTURAL

A banda Blitz é a uma das primeiras criadas em torno e sob as lonas do Circo Voador, que ficava situado na praia do Arpoador, no bairro de Ipanema e praia do mesmo nome, no Rio de Janeiro, comandado pela produtora Maria Juçá. Foi criado em 1982, com a intenção de proporcionar cultura e lazer para a cidade, um circo que fazia vários tipos de apresentação, teatro, atrações populares e muitos estilos de músicas, da MPB às pequenas bandas de garagem que tentavam mostrar algum tipo de trabalho autônomo, e consequentemente tentar alcançar sucesso. O circo foi fechado em 1996, pelo então prefeito Cesar Maia, até sua produtora entrar com uma ação judicial para manter os direitos sobre o Circo Voador e poder retornar às suas atividades. O local onde ficava o circo foi demolido e, em 2004, a prefeitura teve que o reconstruir, por determinação judicial e devolvê-lo a seus donos e idealizadores. Hoje, ele é uma ONG, “Associação Disco Voador”. As primeiras apresentações ficaram por conta dos integrantes do Asdrúbal Trouxe o Trombone, uma companhia de teatro itinerante, em que atuavam atores como Patrícia Travassos, Evandro Mesquita (futuro Blitz), Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé e Hamilton de Vaz Pereira. Aos poucos, o circo foi abrindo espaço para outras atrações, apesar de sua duração ter sido planejada para um mês. Três meses depois, ele ainda estava a todo vapor, o que chamou a atenção das autoridades do Rio de Janeiro, que culminou com fechamento de sessões, confusões com a polícia e a prefeitura até ser fechado, demolido e depois reaberto com terreno próprio, doado pela administração municipal do Rio de Janeiro no bairro da Lapa. A Blitz foi à primeira banda de new wave que se apresentava constantemente nos intervalos das sessões, mas dele saíram grandes nomes como Barão Vermelho e “Lobão”44,

44 Nome artístico do canto e compositor João Luiz Woerdenbag Filho. 133

dentre outros, além de resgatar nomes famosos da música que também faziam apresentações, como Cauby Peixoto, Ângela Maria, Adoniran Barbosa, , fazendo uma junção em única apresentação de vários estilos e nomes da cultura brasileira. Eles tiveram o apoio incondicional do prefeito da época Carlos Fortuna. A constituição da banda Blitz tem muita relação com o ambiente típico da praia, do surf e do teatro, tanto é que Evandro Mesquita era da companhia do Asdrúbal, bem como Lobão, que sempre estavam presentes às sessões do circo. A onda new wave, que é uma derivação mais suave do punk rock, era a onda do momento, com letras simples, poucos arranjos musicais e uma área da música, que há muito tempo a indústria fonográfica já estava de olho, só estava precisando que esse som se consolidasse no Brasil, uma vez que o que predominava era a MPB. Para esse tema da MPB, Lobão fala que,

na música, a MPB, sigla criada na época dos festivais para designar a produção musical de quem se alinhava ao pensamento de esquerda nos anos 1960 e para excluir os demais (sob todos os pretextos), é o exemplo típico de indução por meio da repetição obsessiva para dar a ideia de que a qualidade e a excelência do nosso cancioneiro, de que os grandes gênios e arautos da liberdade eram um fenômeno exclusivo daquela época e daquela sigla de proveta. (LOBÃO, 2013, p. 19)

Para esse cantor, compositor e escritor, a MPB foi a música dos grandes festivais e que não havia mais espaço para somente esse tipo de música, uma vez que ela era a repetição do já dito, da qualidade obsessiva em que somente brilhavam velhas figuras do cancioneiro da música. Segundo ele, foi uma sigla gestada para a classe média de esquerda que se valia dessa aura que a MPB carregava para manter esse status quo de música e musicalidade brasileira. Deveriam abrir espaço para outras manifestações culturais e musicais comprometidas não somente com a música, mas também com os andamentos da sociedade brasileira. A Blitz surge com o apoio incondicional de Lobão. Embora o mesmo sempre fosse um sujeito problemático, que se metia e ainda se mete em polêmicas de todo tipo. O nome da banda Blitz foi sugerido por ele (DAPIEVE, 1996), em um espaço de tempo de uma noite, enquanto ensaiavam para uma apresentação relâmpago no Circo Voador. É uma das figuras de fundação do Brock. A maioria dos jovens que se intitulava roqueiro queria ser punk, fazer um som revolucionário que mostrasse a cara do Brasil da ditadura militar, da censura moral, da hiperinflação, etc. Todos estavam querendo a liberdade para criar algo novo a partir da sincretude da música estrangeira (americana ou inglesa) com elementos da cultura do país, o que levou a uma onda punk rock que surgiu a partir de 1979 a meados de 1981. Porém, o punk 134

rock não vendia e as gravadoras não investiam neles e o povo nem sequer o conheciam, porque os punks eram autodestrutivos, e as gravadoras não queriam investir em algo ou algum artista que a qualquer momento podia morrer de overdose ou quebrar o decoro artístico e ser ostracizado pelos próprios fãs. Era preciso inventar algo que não tivesse a cara da MPB e nem fosse totalmente americanizado ou anglófono, mas novo no sentido de conter as peculiaridades sonoras, culturais e sociais do Brasil. Segundo Dapieve (1996), havia uma procura por parte da juventude de classe média da época, de algo novo que estivesse de acordo com as positividades da modernidade e que contemplasse o novo cenário nacional em relação à cultura, à arte e à música. Essas positividades giravam da luta pela descentralização do poder nas mãos dos militares, contra a hegemonia exercida pela MPB, pela falta de oportunidades de se produzir novas formas de expressão no campo da cultura, da política, das relações amorosas e constituição de novos saberes a partir da música, especialmente o rock e o punk.

5.1.1 Música: “Você não soube me amar”

A Blitz lança “Você não soube me amar” em 1982. É um compacto com apenas essa música, vendeu mais de cem mil cópias e, posteriormente lançada em LP, vendeu mais de um milhão. Foi basicamente a canção que colocou muitas bandas de garagem na mira das gravadoras. O ritmo era simples e a letra bem coloquial. Essa música foi feita por quatro autores: Zeca Proença criou o refrão, que é o título da música, Evandro Mesquita e o guitarrista Ricardo Barreto terminaram a letra, e Guto Barros pensou nos riffs de guitarra, a harmonia e os arranjos; estava pronta a música para gravação. A letra mostra uma história de amor típica da cena carioca com surf, praia, de um casal que se conhecem e passam a viver juntos. A letra mostra uma narrativa com começo, meio e fim da vida a dois: “No começo tudo era lindo /Era tudo divino era maravilhoso”. O conectivo, “mas” em, “Mas de repente a gente enlouqueceu /Ai eu dizia que era ela /Ela dizia que era eu”, mostra o casal em crise apontando para uma possível ruptura do relacionamento. Tudo isso é intercalado pelo refrão “Você não soube me amar”, repetido quatro vezes, a cada vez que aparecia. Como muitas músicas comerciais da época, essa música da Blitz estava dentro desse discurso e dessa formação discursiva. A melodia foi feita para ser rapidamente memorizada, assim como a letra e o refrão. Existia também a forma comportamental irreverente do vocalista Evandro Mesquita, ao cantar com as backing vocals que faziam uma espécie de eco por trás da 135

letra da música dando um ar de música de outra década, tornando a música não um ato apenas visto como atitude, mas como algo planejado. De acordo com Adorno, a indústria cultural está presente em todo e qualquer produto cultural, e para fazer parte dela, é necessário se adequar a determinados padrões para ser aceito por todos e sem muita resistência. A música da Blitz demorou a ser entendida como música nacional, principalmente, porque as gravadoras não acreditavam muito no rock daquele início. Porém, quando esta sentiu que esse tipo de música vendia, a banda Blitz e muitas outras que produziam esse tipo de música na época, começaram a ganhar as gravadoras e os programas de auditório. Os programas eram equipados com toda uma parafernália de coisas para atrair o consumidor/sujeito: mulheres seminuas, prêmios, brindes, participações de atores, outros estilos de música e tudo que fosse preciso para manter todos conectados com a televisão. Até o lançamento da Blitz, o rock ainda não era bem visto no Brasil. As primeiras manifestações desde a Jovem Guarda, passando por Raul Seixas, Rita Lee e os Mutantes, até o surgimento do punk rock e o new wave, o público ficava dividido entre a MPB, a Bossa Nova, a música de protesto, e de resto ouviam os ícones do rock. A new wave que teve maior aceitação no Rio de Janeiro e se adaptou muito bem ao clima dos jovens das praias de Copacabana, tinha um apelo mais comercial porque era mais leve que o punk, menos barulhento e mais harmonioso, com muita ênfase nos vocais, algo que era quase impossível com o punk. Essa ascensão também só foi permitida porque a ditadura militar já dava sinais de enfraquecimento, fazendo com que as censuras sobre as letras das músicas diminuíssem cada vez mais. Embora a inflação da época fosse muito alta, as gravadoras investiram muito nesse novo estilo, tornando-o cada vez mais comercial, acrítico e padronizado, tanto que a maioria das bandas da época mudava apenas o nome, mas a temática jovem da batida dançante era a mesma. Uns poucos se sobressaiam com algo mais sério, mas sua grande maioria cultivava essa nova onda do rock embalado ao gosto da televisão, da rádio e do público jovem. Desse modo, a indústria cultural hoje ainda é mais ativa do que foi qualquer outro movimento no Brasil e no mundo. Sua forma de atuar e seus produtos continuam fazendo com que seus consumidores continuem sempre à procura de produtos industrializados. A técnica, que nos primórdios de sua invenção, se propunha a tornar o mundo um lugar que todos pudessem ser livres, e vivendo a vida em sua plenitude, ao sair do mundo das trevas do trabalho manufatureiro, inventando técnicas que facilitassem a vida e diminuísse o esforço para manipular certas coisas do mundo, na verdade foi uma grande mentira, pois ao facilitar a vida do homem, ao diminuir o tempo de esforço e o próprio esforço para realizar certas atividades, trouxe consigo o adestramento social e a alienação em massa. 136

Segundo Adorno e Horkheimer (1969), a indústria cultural tende a uniformizar e a padronizar tudo que é produzido para a diversão e o entretenimento, tornando todos que estão a sua volta como consumidores que não questionam, apenas consomem. Isso é feito por meio da manipulação dos veículos de comunicação de massa como o cinema, o rádio e a televisão, que de posse de certos tipos produtos culturais, desde o chiclete, passando pelos filmes até a música, todos eles são feitos para o consumo e nada foge a essa dominação técnica. Segundo o referido autor, essa tendência da indústria cultural é um meio de manter os trabalhadores com suas mentes ocupadas e conectadas com as atividades da vida do trabalho e da ideologia dominante, que os fisga até mesmo quando eles acham que são donos de si e estão fazendo aquilo que desejam, quando na verdade, tudo o que fazem em termos de entretenimento já foi planejado para esse fim, eles apenas executam consumindo aquilo que é para seu ócio. O sujeito simplesmente não tem saída. Tudo que ele faz ou pensa em fazer, a indústria cultural tem uma opção para ele. A única liberdade que ele tem é a de escolher aquilo que lhe é oferecido, sem o questionamento de querer outra coisa senão aquelas que já estão no leque de produtos culturais ofertados. Em relação ao rock brasileiro que se produziu na década de 1980, embora seja pertencente a um movimento de ruptura e protesto, a forma estruturante na qual ele se configurou no Brasil o tornou um produto cultural direcionado a um público jovem de classe média alta que, na ausência de alguma coisa importante para fazer, montava bandas para passar o tempo. Não podemos descartar a grande contribuição do rock para a música brasileira nem esquecer que foi um movimento que ganhou força e sobrevive até hoje devido à indústria fonográfica brasileira, que viu nesse movimento uma oportunidade a mais para ganhar dinheiro, ter lucro e oferecer às massas (isso bem depois) uma forma menor de música, comparada ao rock americano, onde o estilo nasceu se desenvolveu e foi uma verdadeira revolução. Dessa forma, na modernidade nascem tanto à indústria cultural quanto o rock and roll, ambos filhos dos processos de industrialização e dos avanços tecnológicos da sociedade e, por isso, são tão conectados. A indústria cultural nasce com a industrialização e a produção em série, o rock nasce com ao aperfeiçoamento da indústria do cinema, do disco e dos instrumentos eletrônicos, da guitarra elétrica, do baixo elétrico e da organização de eventos na cidade, que é fruto do processo de urbanização. Entretanto, não podemos desconsiderar a hipótese de que o rock causou muitas mudanças na mentalidade jovem brasileira ao juntar um som diferente, distorcido, arranhado, desconcertante com a cultura brasileira de uma época de repressão, desengano, ausência de políticas públicas para a maioria da população, em um país dominado pela falta de perspectivas 137

na área econômica e política, onde imperavam ainda os investimentos das grandes corporações. Nesse contexto, o rock foi o novo e o revolucionário. Após sua entrada nos estúdios de gravação, nos palcos dos espetáculos e nas turnês Brasil afora, o rock é um produto cultural como qualquer outro exposto nas prateleiras de qualquer estabelecimento comercial. Os enunciados que compõem o discurso da música da banda Blitz mesclam figuras que mostram a subjetivação do amor. Não aquele amor que foi basicamente o pano de fundo da MPB, que protagonizou muitas cenas enunciativas desse amor ligado a muitas esferas discursivas de campos semânticos distintos, um certo amor cortês, sofisticado, regado a uísque, charutos e redutos da grande burguesia carioca, como é o caso da Bossa Nova e da MPB, mas menos talvez, na música de protesto liderada por Geraldo Vandré, Tom Zé e muito menos ainda nas músicas populares, ouvidas nas rádios e que lideravam, no meio da indústria cultura e do entretenimento, uma boa fatia dos investimentos na área da música. Nesse cenário não se descarta o fato de os roqueiros não serem da classe média alta, mas certos agenciamentos do discurso criavam um ambiente propício a uma guerra cultural; de um lado, estava a música brasileira centrada em torno de certas formações discursivas ligadas ao ambiente acadêmico, uma música quase palaciana, ancorada e já familiarizada com a cultura brasileira, ora ligada aos fenômenos culturais da ditadura militar, da política e das relações de classe; do outro lado, o rock brasileiro emerge a partir de condições de produção em que se recusa esse viés, principalmente da Bossa Nova e da MPB, por formações ideológicas e discursivas voltadas ao deleite, ao amor livre e à liberdade sem restrições da juventude da década de 80. No discurso do Brock liderado pela Blitz, há uma desconstrução bem-humorada, beirando, muitas vezes, a banalização das cenas enunciativas sobre o amor. Uma das construções do edifício enunciativo midiático que proporcionou o surgimento da música da Blitz talvez venha do grupo teatral do Asdrúbal Trouxe o Trombone, de onde boa parte dos integrantes veio e fizeram parte das apresentações do então famoso Circo Voador. Também fizeram parte dessas condições de produção do discurso do Brock as materialidades discursivas de um tipo de amor mais debochado, inocente e até “bobinho”, podendo vir do ambiente praieiro de Copacabana, do avanço tecnológico e do turismo presente na região que, concomitantemente, vem o avanço no campo das materialidades das relações pessoais, interpessoais e institucionais, uma vez que, as mudanças ocorridas nesse período, relativas principalmente, a essa temática sobre o discurso amoroso, não eram as mesmas para o restante do país, mas eram vendidas como uma mercadoria que criava verdades e relações de poder. 138

Essas formas discursivas de construção de verdades iniciadas, primeiramente como o enunciado “Você não soube me amar”, que atingiu a marca histórica de cem mil cópias, se comparada a outros estilos musicais, como o grupo de artistas que compunham a MPB, que vendiam no máximo, sessenta mil cópias, o que era comemorado com grande euforia pela indústria do disco. Essa marca da Blitz não só introduziu novos padrões musicais (agora sim, o Brock), como também abriu espaço para diversas manifestações culturais da mesma natureza que conjugavam no mesmo enunciado um aglomerado de enunciações relativas ao amor e suas diversas manifestações e variações típicas do cenário do Rio de Janeiro. Da mesma forma, se iniciava uma verdadeira revolução no campo discursivo da mídia radiofônica e televisiva que, vendo nesse agenciamento uma maneira de lucrar, posta em perspectiva, se endereça a Blitz e a outros grupos do mesmo gênero uma verdadeira fábrica de criação de enunciados indiciados de marcas discursivas voltadas para um público específico: a juventude da década de 1980. No enunciado “Você não soube me amar”, repetido várias vezes de forma enfática na formação discursiva da banda, além de reforçar a ideia de que repetindo se aprende. Tendo aprendido, se convence, convencido, se vende, adquirindo o lucro, num círculo que se completa, se inicia outro e mais outro, criando uma teia discursiva, em que o produto se torna algo como o próprio corpo, som, movimento, tátil, gustativo. Assim, uma moda que está totalmente adequada ao consumo de uma classe voltada para os prazeres, num empirismo materialista muito próximo das genealogias animais. Desse modo, o mesmo enunciado, sob a forma de repetição, não enfadonha, mas eficiente, proporciona ao sujeito não só o prazer da melodia bem ritmada com a letra, mas pelo fato de esse enunciado ser a síntese da defesa do que se propõe aos outros enunciados, bem como sua significação para o sujeito, que supõe, argumenta e até se convence de que alguém não sabe amar de verdade, ou seja, abre o pressuposto de que há pessoas que sabem amar e outras que não sabem. O enunciado começa interpelando o sujeito sobre uma situação específica: “Sabe essas noites que você sai caminhando sozinho/ De madrugada com a mão no bolso/Na rua”, em que esse sujeito relata uma situação cotidiana de alguém que está sozinho à deriva discursando consigo mesmo. Seu discurso é visto como uma solidão de alguém que está à procura de uma saída para todo esse desalento. Em seus silêncios do “caminhando sozinho”, “de madrugada” e “na rua”, o sujeito fica pensando em alguém que o tire dessa situação de amor ideal, e que apareça uma situação que ele possa encontrar esse amor. Na formação discursiva, “na sua”, o referido sujeito subjetiva a perspectiva de que o amor chegue para ele, que fique favorável e próximo de seu coração e do coração dela. Dessa forma, nos enunciados seguintes, em que o sujeito finalmente encontra aquilo que 139

procurava, um amor, é interpelado pela forma “broto”, que lembra brotar, nascer, aparecer um amor. Essa palavra também faz referência a Jovem Guarda, já que era bastante usada pela juventude da década de 1960. Esse nascimento de relação é recebido com euforia “que felicidade”, dito duas vezes, o que faz com que essa força explosiva do amor seja a plenitude de todo o centro irradiador do amor, o encontro, a concretização de uma idealização. Quem profere o enunciado é uma voz feminina, que nos dar a ideia de reciprocidade e correspondência do amor. No discurso materializado pelos enunciados, os silêncios e não ditos sugerem que ambos os sujeitos estavam andando sozinhos em busca de um encontro amoroso já que, em meio à situação em que o sujeito se encontrava, sozinho na rua, ele a encontra na mesma situação de rua e de solidão. Como os enunciados não indicam que os sujeitos eram conhecidos um do outro, a não ser pelo enunciado “pensando naquela menina”, o que se pode dizer pelas condições em que esses enunciados aparecem, é que a formação discursiva de ambos indica que se conheciam, não numa situação de formalidade, mas pelo próprio contexto em que a banda foi produzida, a praia, o surf, o estilo de vida do Rio de Janeiro na década de 1980, que eles eram apenas “conhecidos” do mesmo universo cultural e da mesma formação discursiva. Isso explica o fao dele a chamar para sentar-se em um bar, ou algo que sirva bebida, já que ele pede “cerveja” e na resposta, o garçom diz que só tem “chope”. No discurso proposto pelos enunciados da banda Blitz, o amor acontece ao acaso, não há necessidade de as pessoas se conhecerem, basta estarem envolvidos pela mesma formação discursiva, o mesmo ambiente praieiro de Copacabana. Para os sujeitos interlocutores que têm uma escuta dos enunciados e da materialidade melódica de fácil acesso, graças aos investimentos das indústrias de entretenimento, nesse caso, inicialmente, o rádio e os shows ao ar livre no Circo Voador, esse discurso do rock subjetivado pela banda em questão, supõe para o resto do país que os relacionamentos acontecem livremente, sem impedições e sem a fiscalização dos genitores, comum nas outras regiões como Norte, Nordeste, em que os encontros amorosos precisavam de todo um ritual, desde o conhecimento dos pares até a permissão pelos pais. Para o estrangeiro que visita o país ou escuta lá fora o discurso sobre o amor, vê nisso uma possiblidade de relacionar-se de maneira mais fácil, dando margens inclusive, para a prostituição. Aliás, para as outras regiões do país, a maneira como a banda subjetiva o amor não é vista da mesma forma, uma vez que a liberdade sexual foi sendo conquistada paulatinamente, e o auge dessas ideias são especialmente nas regiões mais urbanizadas da década de 1980. Depois desse encontro, nos enunciados seguintes, o casal se encontra em meio à 140

formação de um discurso em que se surgem os elementos da conquista, cerveja, chope, batata- frita, um tipo de ingrediente muito comum de bares e orlas marítimas. Já se percebe no discurso, que o casal já negocia o que se pede, com a palavra final do sujeito masculino: “desce dois, desce mais”, ou “ok você venceu, batata-frita”. Entretanto, nessa negociação, há todo um jogo discursivo, em que a discussão se resume a um “Ai blá blá blá blá blá blá blá blá blá” o discurso dele, “Ti ti ti ti ti ti ti ti ti” para o discurso dela. Essas formas enunciativas eram muito comuns no discurso cotidiano para se falar de coisas banais do tipo “jogar conversa”, fazendo parte de um ritual de início de relacionamento. Pela formação discursiva, se percebe que os enunciados do homem são de muita conversa, a fim de convencer a mulher a entrar no seu jogo, e o da mulher sugere que ela fizesse sinal de riso e apenas respondesse aos encantamentos do pretendente. Para finalizar a conquista, o homem diz que está “tudo muito bom”, “tá tudo muito bem”, seguido da repetição afirmativa dela ao concordar com o discurso dele. Mas no fundo o que ele queria mesmo era sexo, já que ele conclui que “Mas realmente/Mas realmente /Eu preferia que você estivesse /Nua”. Esta última palavra é ecoada pela voz feminina, o que sugere que ela complementa o pensamento dele, que talvez não tenha coragem e a ousadia de ir adiante no relacionamento. No parágrafo anterior o discurso é sobre o amor e o sexo. Essa relação que se tornou muito comum no discurso do rock, mas pela memória discursiva e o interdiscurso, ele resgata boa parte de todas as condições de produção que foi a grande ruptura do rock em relação a outras formas artísticas. Percebe-se que na relação quem discute as formas de amar, fazer sexo ou mesmo viver juntos são os próprios sujeitos, não havendo nenhuma parte interventiva dos pais ou responsáveis, o que se configura pelo discurso, uma espécie de rebeldia aos padrões pré-estabelecidos, ainda na época para as relações amorosas e os casamentos. Foi justamente esse tipo de liberdade amorosa e de rebeldia que deu origem ao discurso do rock da década de 80. O enunciado “Você não soube me amar” é uma espécie de enunciado-síntese que sustenta toda a discursivização pretendida pelo autor. A materialidade dos enunciados, inicialmente, fica comprometida com o enunciado-síntese, uma vez que ele não faz nenhum sentido, embora essa não seja, talvez, a intenção da banda, que esses enunciados no mundo musical servem justamente para chamar o sujeito pata ouvir, sentir e aderir ao discurso. De início, parece não fazer sentido, mas o discurso sugere que o sexo não tenha sido muito bom ou muito agradável, por isso o enunciado-síntese. Na continuação dos enunciados da música, se diz que: “No começo, tudo era lindo/Tá tudo divino, era maravilhoso/Até debaixo d'água, nosso amor era mais gostoso”, dando a entender que o amor começou muito bem, ou que no discurso 141

do cotidiano, de que “no começo tudo são flores”, o que contradiz o enunciado-síntese posto após cada sequência de enunciados e repetido quatro vezes. Nesse sentido, o enunciado “Tá tudo divino, era maravilhoso” faz uma certa alusão ao “Divino maravilhoso” de Caetano Veloso, que ganhou discurso na voz de , quando este enuncia que é preciso tomar cuidado com o que é “divino” e “maravilhoso”, é preciso ficar atento, pois não se sabe o que pode surgir na esquina. Na época, as condições de produção desse discurso discursivizado pela MPB e pelo Tropicalismo, já que o Caetano Veloso era um dos líderes desse movimento, era o da ditadura militar. Essa retomada por meio da memória discursiva desse discurso dá a ideia de que nem tudo que é divino é maravilhoso, que aquilo que se apresenta como bom e legal (cool), na verdade esconde peripécias e perigos, que os desavisados desconhecem. O fato de a ditadura militar deixar no ar a ideia de que tudo está divino, na verdade, esconde outras formas discursivas bem perigosas como à espreita, a surpresa e a vigilância. Talvez, da mesma forma, os enunciados da música estejam dizendo que é preciso estar atento, porque tudo é perigoso, embora também seja divino e maravilhoso. Que numa união tudo que parece estar bem pode automaticamente virar uma guerra. Os dois enunciados, embora de época distintas, dizem que é preciso estar atento e forte e, intencionalmente ou não, Caetano Veloso diz “Atenção para a estrofe e pro refrão” e os enunciados da Blitz dizem discursivamente por meio da retomada que “Você não soube me amar”. O que comprova que esse divino e maravilhoso era perigoso nos enunciados da Blitz é que logo após isso se segue: “Mas de repente a gente enlouqueceu/Aí eu dizia que era ela/Ela dizia que era eu”. Quando o relacionamento passa do “bom” e “legal” para a loucura. Nesse caso, o enunciado “a gente enlouqueceu”, mostra os efeitos contraditórios do discurso de uma vida de casal, no qual cada um colocava a culpa um no outro por não se entenderem mais. Nos enunciados seguintes, há a discursivização de uma discussão de casal:

Amor que que'cê tem? Cê ta tão nervoso Nada, nada, nada, nada, nada, nada Foi besteira usar essa tática Dessa maneira assim dramática (eu tava nervoso) O nosso amor era uma orquestra sinfônica (eu sei) E o nosso beijo, uma bomba atômica.

Esse processo de discursivização entra no discurso cotidiano em que a parte feminina tenta entender o porquê do nervosismo do parceiro. O “nada”, dito seis vezes pela parte masculina e em forma de eco na melodia da música, diz que ele não quer conversa e prefere 142

ficar da maneira como está, tentando explicar seu nervosismo com o relacionamento e, consequentemente, com sua parceira. Essa forma de agir no discurso faz com que o masculino se sobreponha sobre o feminino, pois ao não querer justificar esse nervosismo, faz com que ela encontre outra forma de tentar entendê-lo. Nos enunciados seguintes, se percebe que a parte feminina está arrependida da forma como abordou o discurso em relação a parte masculina: “Foi besteira usar essa tática”, de maneira dramática, enquanto ao término do enunciado dela, ele se justifica dizendo que “tava nervoso”. Mas ambos, se lembram que o amor deles era como “uma orquestra sinfônica”, belo e grandioso e o beijo como “uma bomba atômica”, de modo que esses enunciados finais se referem ao amor deles no passado, quando eles eram muito felizes, que o seu amor era comparado a coisas barulhentas, sinal vitalidade, de sexualidade bem vivida. Tudo termina como o mesmo enunciado-síntese em que se diz “Você não soube me amar”, porém com ele dizendo “É foi isso que ela me disse”. Nesses enunciados finais, se percebe que ambos reconheceram seus erros, tanto que esse enunciado-síntese é dito na melodia da música alternadamente por ambos, justificando que eles realmente não sabiam amar, que no relacionamento todos acertam e todos erram. A discursivização dessa música trouxe algumas mudanças no cenário do rock brasileiro. Primeiro, o tema cotidiano abordado sobre relacionamentos comuns, os rituais de sexualidade e a maneira debochada como isso é tratado, diferente do que se tinha antes, noutros gêneros musicais, em que isso não tinha muita aceitabilidade; segundo, o estilo musical adotado, uma mescla de punk com blues, permite uma nova forma de escuta, possibilitando que outras bandas também pudessem seguir essas positividades. Há um jogo de relações de poder entre a aceitabilidade do estilo e inauguração de novas formas de saber, ligados as esferas cotidianas, amores, desilusões amorosas, discussões de casais, entre outras. Nessa música há uma subjetivação/discursivização do amor e do divertimento, trazendo um discurso fala sobre o amor e o divertimento de forma bem-humorada, sendo que a prática discursiva nessa formação discursiva apresentada, não tem nada de divertido. A música é uma ruptura com os padrões culturais, sociais, musicais e comportamentais da época, ao explicitar em um gênero midiático, a subjetivação/discursivização do amor e do divertimento de forma bem-humorada.

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5.1.2 Música: Weekend45

“Weekend” é uma canção de produção da Blitz que aparece no segundo álbum da banda carioca intitulado “Radioatividade”. Para alguns autores, como Arthur Dapieve, tratava-se de uma sobra do primeiro álbum que não coube pela quantidade de canções, pois os discos de vinil só comportavam doze músicas, sendo seis de cada lado. O grande estouro de “você não soube me amar” garantiu a vendagem, o sucesso e a comercialização de quase todo o álbum. Com o sucesso garantido, a Blitz podia deixar as outras canções para compor um novo álbum que culminou com “Radioatividade”. Esse álbum da Blitz é bem sugestivo. Primeiro remete a algo radioativo, que vai minando pouco a pouco as estruturas sociais, já que a radiação46 é o discurso. A banda tinha esse débito com a ditadura, que havia censurado duas músicas suas do primeiro álbum em “As Aventuras da Blitz”; Tudo por causa de um “eu ando bundando” na música “Ela quer morar comigo na lua” e de “puta que pariu” em “Cruel, Cruel Esquizofrenético Blues”. Quando a censura indeferiu a execução dessas duas músicas, os discos já estavam prontos e a os produtores tiveram o enorme trabalho de riscar manualmente as duas faixas censuradas. Esse fato deve ter elevado à venda de agulhas magnéticas dos toca-discos, pois se o disco fosse esquecido na vitrola e entrasse na faixa riscada do disco, a agulha do aparelho seria danificada. Segundo que o nome “Radioatividade”, tudo junto, remete a ideia muito comum de pessoas ligarem para o rádio para pedir música e oferecer para alguém. Era um rádio em atividade. Essa música segue a formação discursiva da Blitz, com um discurso voltado para a subjetivação/discursivização do amor/divertimento, do ambiente praieiro e do uso da rádio como mecanismo de comunicação. Esse fato da rádio é interessante no caso da Blitz, porque a banda produz suas músicas como se fosse num estúdio itinerante, em que atores encenavam coisas do cotidiano das pessoas, ouviam as pessoas, liam suas cartas e ofereciam músicas. Depois de esclarecer o título e a positividade na qual a música estava envolvida, a música começa como se alguém estivesse em um estúdio de uma rádio e fala:

Alô, alô, ativo ouvinte! Você que está ligado na minha, na sua Na nossa Rádio-atividade E pra você que vai viajar, o tempo é bom Sujeito a amores impossíveis no final do período

45 Palavra de origem inglesa que significa final de semana. 46 Há também a sugestão de rádio em ação. 144

No endereço eletrônico https://www.letras.mus.br/blitz/44622/#radio:blitz, a palavra radioatividade aparece “Rádio-atividade” sugerindo um rádio em atividade como se discutia anteriormente. Nessa parte introdutória, um suposto locutor de rádio é encenado pelo vocalista da banda que manda o seu “Alô, alô, ativo ouvinte!” para quem está sintonizado naquela estação. O locutor dá notícias sobre o tempo, sugestões para quem vai viajar e até a suposição de que poderá surgir um amor novo nesse período. Essa maneira que a música explora seus enunciados é idêntica ao que é produzido nos discursos das FMs (frequência modulada), que já eram as substitutas das antigas AMs (amplitude modulada). Nelas, os locutores davam um panorama de como estavam às coisas, sejam elas sobre o tempo, dicas de viagem, transito, chuvas, sol, verão, praia, etc. A questão dos amores impossíveis está ligado à previsão dos signos do zodíaco, que geralmente eram lidos pelos locutores e que causavam grande emoção e comoção em seus ouvintes. Seguindo a viagem que a música sugere, nos próximos enunciados temos:

Dia após dia, durante semanas Fiquei esperando pra te ver Há mais de um mês que eu espero uma chance De me encontrar com você.

Essa discursivização do amor/divertimento na Blitz é algo bem característico da banda. Nos dois álbuns que estamos analisando, se percebe essa questão. Encontros amorosos, amores que acontecem das maneiras mais triviais como em “Você não soube me amar”. Aqui, nas ondas do rádio, numa comunicação direta com os ouvintes, se lança a ideia de um encontro que já é aguardado, haja vista que se o casal já se conhece, e estão aguardando um momento para se ver, que nesse caso é no “weekend”, no qual se tem um tempo livre para o lazer. Isso acontece na narrativa da música, em um ambiente de viagem, há nesse caso a sugestão de que estejam no carro com o rádio ligado ouvindo as notícias, o tempo. O locutor é apenas o mediador desse amor. Na verdade, se trata de um casal em um carro indo para um final de semana, enquanto escuta uma determinada estação de rádio, que vai dando dicas para esse tempo para divertimento. Nos enunciados seguintes, temos:

Seu cabelo eletrizado (chac, chac, chac) Sua boca de mel (mmel) Não sei se veio da terra Ou se desceu do céu!

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Nessa parte da música, os enunciados se relacionam com a ideia do corpo, no caso da mulher, já que quem fala é o homem. Fala-se de um cabelo eletrizado, através da onomatopeia, para se referir a ele “chac, chac, chac”. No enunciado seguinte, uma discursivização do sabor do beijo, que não tem nenhuma relação com os enunciados anteriores, a não ser pelo fato de ser uma previsão de encontro e, por isso, o desejo de tocar seus cabelos e provar de seu beijo. O interessante disso é que, quem responde as onomatopeias é a voz feminina, que faz de forma receptiva e amistosa, dando entender que ela aceita a forma como ele fala e como lhe deseja, ou seja, o desejo de se ver é mutuo. Esses enunciados traduzem de forma bem-humorada e teatral os adjetivos que qualificam uma pessoa da qual se gosta, só que da forma que se expressa com a variante linguística carioca, pelo uso de palavras e expressões típica da região. Nos próximos enunciados há a repetição do enunciado “Só quero passar um weekend com você”, sugerindo que esse amor é apenas por um final de semana, por puro divertimento, compromisso de ambos os sujeitos. É a formação discursiva do amor livre, preenchida pelos discursos da praia, carro, do sol do vento, que se percebe uma relação com a indústria do entretenimento, que propõe a vida dos finais de semana e dos amores passageiros e da curtição. Nos próximos enunciados tem elementos característicos de um passeio de final de semana.

Primeiro passou um cavalo Depois eu vi dois bois Um ônibus acendeu o farol Eu liguei o rádio, ela abriu a blusa, ela me deu um beijo Parei pra esticar (Amor, olha ali uma lanchonete!) Xixi, café, chiclete Xixi, café, chiclete.

Nesse percurso rumo ao final de semana, aparecem elementos típicos de animais na pista, “cavalos, dois bois”, outros meios de transporte, “Um ônibus acendeu o farol”, representando a viagem do casal. Ali mesmo no carro, há uma prática relação amorosa quando ele diz que ela abriu a blusa e o beijou. Os dois param num ponto da estrada para fazer algumas necessidades (xixi, café, chiclete”. E a viagem segue. Logo depois:

Patrulha rodoviária (a quinhentos metros) Patrulha rodoviária (a duzentos metros) Eu desliguei o rádio, ela abriu o vidro, tudo escureceu O guarda mandou parar (que chato!) Blitz, documentos! Ué, só temos instrumentos Aí rapaz o que cê faz? Tá vindo de onde, tá indo pra onde? 146

O que você tem nessa bolsa? Qual teu signo, que time torce?

Tudo bem pode ir, viajandão hein!

Nesses enunciados, surge o poder do estado por meio dos órgãos de fiscalização e repressão, representado pela polícia rodoviária. Acontecem coisas simples do cotidiano como pedir documentos, para onde está indo, abrir o vidro do carro, etc. O fator inusitado é o fato de o carro ter além dos viajantes, apenas instrumentos musicais. Essa cena se assemelha muito a formação da banda que levou esse nome justamente por isso, quando eles andavam fazendo shows e, de vez em quando, eram parados e a polícia só encontrava instrumentos musicais, daí o nome da banda: Blitz. Há uma bem-humorada situação quando se pergunta o que tem na bolsa, que time torce, qual o signo, coisas que não são típicas de uma blitz rodoviária. No final tudo bem e a viagem segue com a mesma ideia de “passar um weekend com você”. Essa música assim como a maioria do que a banda produziu, mostra sempre essa forma bem-humorada de tratar dos temas, inserindo-se numa formação discursiva sempre ligada ao amor/divertimento, mostrando o lado bem-humorado das coisas, com um discurso simples de situações típicas do cotidiano do Rio de Janeiro, como viagem e amores passageiros. O discurso da banda além de bem-humorado, mostra suas relações com a indústria do entretenimento, quando propõe que a vida no Rio de Janeiro é só praia, sol e mulheres. Essa relação mostra o lado comercial da banda que, pela primeira vez na história do Brock, conseguiu alcançar uma vendagem de discos que superou a MPB da época, que comemorava com a vendagem de sessenta mil copias, enquanto a Blitz vendeu cem mil em uma única tiragem (Dapieve). Desse modo, o discurso da banda, embora apresente enunciados bem-humorados em suas músicas, chamou a atenção dos órgãos institucionais, quando a Blitz foi vítima de censura pelo governo militar e ter parte de seu material fonográfico danificado, por ter conter elementos que iam ao encontro dos bons costumes e da moral pregada como uma positividade para a época. Fora tudo isso, as letras da banda rompem com essa formação discursiva da época, sofrendo penalidades, mas trouxe um discurso novo para o rock brasileiro, ao subjetivar/discursivizar o amor e o divertimento tão típicos, inclusive, em outras bandas que surgirão a partir dessa abertura proporcionada pela banda Blitz. Na sequência, iremos fazer a análise de letras da banda Titãs, que oferece outra formação discursiva, outro tipo de discurso, formas de saber e poder que divergem muito do que foi feito pela banda Blitz. 147

5.2 TITÃS: EMERGÊNCIAS DE SABER-PODER, SUBJETIVAÇÃO/DISCURSIVIZAÇÃO DA REBELDIA E DA POLÍTICA E RELAÇÕES COM A INDÚSTRIA CULTURAL

A banda Titãs faz parte do rock paulista, ligado ao punk rock inglês, diferente da new wave que acontecia no Rio de Janeiro. A banda era composta por oito membros, todos violonistas que já tocavam e cantavam, ou tinham alguma experiência com a música. Era um grupo heterogêneo de formações, ideologias e relações interpessoais. Antes do Titãs, seus integrantes já tocavam e compunham e participavam de outros grupos e, apesar de todos serem violonistas, foi preciso tocar outros instrumentos, já que a banda precisava de bateria, baixo, guitarra, entre outros. Cada músico tinha uma linha de pensamento diferente, mas tiveram que trabalhar como um grupo. A banda não tinha líder, eram todos líderes, eram todos titãs. Desse modo, os Titãs não se consideravam uma banda de new wave, preferiam serem conhecidos pela cena punk que movimentava os bairros periféricos de São Paulo e, de alguma forma, respiravam um ar de anarquia, querendo dar uma impulsionada na música brasileira através do som do punk inglês como Sex Pistols, The Clash, dentre outros, aliado à devoração da cultura brasileira, mostrando suas mazelas sociais ligadas à economia, à música e à juventude sem perspectiva das favelas e bairros mais afastados da cidade, onde o braço do Estado não conseguia alcançar. Nesse contexto, eles se apresentaram pela primeira vez, no SESC Pompeia, em outubro de 1982, com 21 músicas inéditas. Não tinham disco gravado, somente tocavam até o lançamento oficial da banda com codinome de Titãs de iê-iê-iê, uma alusão alegórica ao movimento da Jovem Guarda, um grito de guerra ao que se produzira em outras épocas do rock. Em 1981, lançaram o show chamado de “Idade da pedra jovem” que convenceria a pequena plateia de que uma nova banda tinha chegado. Os Titãs se inserem numa formação discursiva em que seus enunciados mostram a produção de um discurso voltado para a crítica social em forma de rebeldia, uma condição de produção muito característico do rock, embora no Brock essa forma discursiva assuma formas distintas de se referir à sociedade, aos padrões sociais de comportamento, a política e ao próprio sujeito social. A rebeldia que era uma forma de produção cultural e uma das maneiras do jovem interagir com a sociedade, traz consigo estratégias discursivas que permitem criar formas de corrosão da ordem vigente, ao se refletir sobre os fenômenos sociais. Uma dessas estratégias é fazer a subjetivação/discursivização de alguns elementos da sociedade sob a forma de uma linguagem simples, compreendida por todos, convocando a sociedade geral para o debate 148

público. Essa característica da rebeldia e da política vai ser muito comum nas primeiras manifestações do discurso do Titãs. Eles a utilizavam em muitos tipos de formação discursiva, tanto as da contemporaneidade quanto aquelas que rememoravam as origens da civilização ocidental, numa tentativa de mostrar nosso presente latente nas formas sociais que o sujeito assumiu em sua trajetória rumo à modernidade.

5.2.1 Música: “Televisão”

A música “Televisão” é a primeira faixa do álbum do mesmo nome, da banda brasileira de rock Titãs, lançada em 19 de junho de 1985 pela WEA. É considerada pela banda e pela crítica, como a música com o lado mais pop do grupo, se comparada aos próximos álbuns, já que após esse disco, lançam o álbum Cabeça dinossauro, mostrando seu lado mais agressivo, punk e menos comercial. “Televisão” tem influências do rock progressivo inglês, mas com batida simples e arranjos simples, voltados para a execução no rádio, como era maioria do rock brasileiro da época, com riffs característicos do estilo, com a guitarra bem acentuada, marcada pelo baixo e acompanhamento da bateria. O vocalista, normalmente, segue a cadência musical do ritmo, é direto e sem paradas até o final, com intervalos apenas para algum riff da guitarra ou do solo de saxofone. Nesse sentido, a formação discursiva do rock inglês foi bastante influente nas bandas brasileiras, principalmente, pelos Titãs, que herdaram do punk os enunciados repletos de crítica social, o amor, a subjetivação/discursivização da rebeldia, da política e um discurso carregado de ironia, se deixando levar mais para a crítica social (rebeldia e política) do que os outros discursos, caracterizando uma junção perfeita do som agressivo e de enunciados cheios de discursos provocativos à ditadura militar, ao liberalismo econômico e as formas de governos que propiciaram as condições discursivas do período. A música começa com os versos que seguem: “A televisão me deixou burro, muito burro demais/Agora todas coisas que eu penso me parecem iguais”. (TITÃS, WEA. Junho, 1985). Nesse início, há dois enunciados-assertivos em que há uma constatação: o sujeito se considera burro, ignorante, alienado, e a causa disso é a televisão, ou melhor, aquilo que a televisão veicula, importando mais o conteúdo da televisão do que mesmo o aparelho, o objeto em si. A televisão já existia há cerca de trinta e cinco anos aqui no Brasil e só agora se percebeu que ele causava burrice. A indústria cultural atua na edição e na função do conteúdo veiculado que, na maioria das vezes, visa à manipulação e a dominação, por meio de um discurso filtrado, unidimensional, de forma que o indivíduo, às vezes, sabe que é manipulado, mas se conforma 149

em reconhecer sua estupidez, provocando no sujeito a falsa ideia de compreensão dos malefícios da televisão. O sujeito se sente diferente e menos alienado, dando a entender que, mesmo sendo dependente da televisão, saber como ela atua, torna a dor de ser manipulado, menos maléfica. Até essa constatação é prevista pela indústria cultural. Nesse pensamento, os discursos oriundos da televisão visam satisfazer um vazio no sujeito consumidor, lhe dando a falsa sensação de satisfação, uma vez que seus produtos não garantem nem conferem autenticidade do que ela propaga, mas apenas alivia um estado de angústia propiciada pela própria sociedade, em que a indústria do entretenimento atua, que é o choque do indivíduo em particular com a universalidade dos estados de coisas do mundo. O discurso de bem-estar temporário é, para o sujeito, o remédio e o veneno ao mesmo tempo, haja vista que, ao curá-lo de seu estado de angústia e desamparo, a indústria cultural cria o sujeito consumidor dependente, ou seja, ela é um vício, uma necessidade que gera o desejo ao sujeito, e uma vez satisfeito o desejo, esse desejo volta a se renovar para satisfazer-se continuamente. A indústria cultural não é a necessidade, ela a cria. O segundo enunciado-assertivo é uma das condições de produção discursiva de atuação da indústria cultural: a padronização do consumo tornando tudo igual, tanto os produtos quanto de comportamentos, quanto de necessidades. A televisão é um dos meios que torna as coisas iguais, sua programação, os produtos, as propagandas, não deixando espaço para a diversidade e o contraditório. Vale salientar também que boa parte da programação da televisão é feita com a intenção de educar, trazer informações, divertir, opinar, fazer pesquisas de opinião, mas a maioria de seu conteúdo tem uma versão ideológica dos fatos daqueles que a fazem e a patrocinam, encobrindo uns e dando ênfase a outros. De alguma forma, essa suposta imparcialidade e esse mundo maravilhoso oferecido pela televisão causa no sujeito a ideia de que tudo está bem e como deveria ser. Nesse sentido, a padronização do discurso veiculado pela televisão, tem como efeito no sujeito, a ideia de segurança, ou seja, se todos são assim, é porque tudo deve estar correto, “legal”, de modo que ser diferente não é uma saída muito interessante, porque causa um mal- estar, a exclusão, o diferente que no sujeito tem o efeito de não pertencer a nem um grupo nem a ninguém, e esse discurso é reforçado pela televisão, que justifica seu discurso com o efeito de massificação e padronização daquilo que ela mesma produz. Esse discurso que a televisão produz são saberes que o sujeito absorve ativo e passivamente, criando condições de produção de verdades que são o efeito discursivo de relações de poder entre o que pode e o que não pode ser veiculado, discursivizado, subjetivado, já que a ênfase em alguns discursos e o apagamento 150

de outros, tem a intenção de massificar um discurso em detrimento de outro, para manter a hegemonia do discurso televisivo. A condição de produção do discurso televisivo cria condições de verdade para seu público consumidor, traduzida em forma de discursos de especialistas pagos para esse fim, patrocinada por alguma marca importante e destaque no mercado de valores e do consumo, por estatísticas feitas por empresas especializadas que são, muitas vezes, a mesma empresa que paga ao especialista e ao anunciante para vender seus produtos e criar necessidades que têm como foco principal o consumismo. Essas verdades soam aos ouvidos dos consumidores em sua maioria, como discursos verdadeiramente incontestáveis, porque foi feito através de pesquisas e métodos científicos de ponta para garantir a lisura e a confiabilidade dos telespectadores. Quando no enunciado-assertivo se diz que as coisas parecem iguais, há no sujeito enunciativo uma atitude responsiva, pois sua enunciação é uma denúncia do que ele vê e experimenta, como se ele, ao mesmo tempo em que faz a constatação de que há uma padronização das coisas, também há uma conformidade por parte dele, uma aceitação de que as coisas são assim mesmo e, concomitantemente, uma revolta, já que ser igual lhe parece algo entediante, pelo fato dessa planificação causar certo mal-estar. Quando para o sujeito há a constatação de massificação das coisas por meio da televisão, sua percepção está voltada para o fato de que nesse aparelho doméstico, há horários exclusivos para sua grade de programação: a novela das seis, o telejornal depois dessa novela quando todo mundo janta em frente à TV. O que se percebe quando o sujeito diz que as coisas lhe parecem iguais é que na televisão funciona como uma espécie de filtro, uma edição daquilo que se deseja transmitir, as passo que tudo que é dito está de acordo com os padrões sociais que a televisão, seus patrocinadores e seus parceiros querem instituir como verdades, ou seja, a ideia de tornar todos iguais por meio de discursos vários é uma forma de manter as coisas como estão e de mudar aquilo que é preciso mudar. Assim, a televisão produz verdades, veicula discursos homogeneizados, possibilitando a emergência de diversas relações de saber e poder que tem como objetivo informar e alienar. A forma como a televisão atua é uma forma de controle e disciplina dos corpos para torná-los dóceis. A grade de programação, o tipo de programa e os horários determinados é uma forma de disciplinarização, uma vez que adestra o sujeito dentro de uma teia discursiva que o faz interagir com a televisão, participando ativamente de tudo que ela veicula. Além disso, há pesquisas de opinião sobre que tipo de programação certo público, de determinada faixa etária, o gênero, grau de escolaridade, o tipo e o valor da renda, etc. Tudo isso serve como parâmetro utilizado pela televisão para que seus ouvintes/consumidores se adequem cada vez mais aos 151

discursos veiculados por ela. Além da programação das telenovelas, dos jornais e dos filmes que a televisão utiliza para disciplinar os corpos, há também o viés político e ideológico, no qual quem detém esses meios de produção do discurso, estão inseridos em determinadas formações discursivas e pregam certas positividades que estão a favor ou contra algumas ideologias políticas. É o caso dos grandes debates utilizados nas campanhas majoritárias e parciais do país, fazendo com que neles, certas ideologias sejam aceitas como verdades, que são fabricadas no calor do momento e servindo como veículo condutor de sentidos para as coletividades que acompanham as grades de programação da televisão. Os próximos versos seguem as ideias dos primeiros: “O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida/E agora toda noite quando deito é boa noite, querida”. (TITÃS, WEA. Junho, 1985). Os enunciados acima são formas discursivas possivelmente veiculadas pela televisão, a de que sorvete deixa as pessoas gripadas, sendo que não há nenhuma comprovação disso, além do fato de a televisão pregar a ideia de que sorvete causa gripe é a mesma que faz propagandas e comerciais de marcas de sorvetes. Esse discurso surge nas condições propiciadas pelo discurso cotidiano, de que o sorvete causa gripe, que é uma contestação do discurso científico. O “boa noite, querida” é uma constatação do que a televisão prega, que se deve dar boa noite a mulher antes de dormir, transformando rotina em comportamento padrão. Ambos os produtos são formas de atuação da indústria cultural e da disciplinarização dos corpos, com o objetivo de torná-los dóceis e obedientes, de forma que os sujeitos são compelidos inconscientemente a ver televisão e a consumir sorvetes, seus corpos são manipulados, adestrados, treinados para fazer isso, envolvidos numa rede social em que tudo isso parece normal, mesmo quando ele desconfia que algo está errado. A televisão não apenas sugere tipos de comportamento, ela dita. Os sujeitos envolvidos pelas práticas televisivas, que acompanha total ou parcialmente a programação da televisão, começa a se adequar aos padrões criados por ela, como os rituais de boa etiqueta, os modelos de roupas, os corpos malhados, expostos como verdades a serem copiadas, os produtos de beleza, colocados como sendo milagrosos, chegando inclusive a afetar a variação linguística dos sujeitos, que vão paulatinamente abonando sua variação local em prol de uma variação mais prestigiada, já que é falada por artistas, famosos, jornalistas apresentadores de telejornais, repórteres, pois todos eles que falam a variante de prestigio, são modelos para os sujeitos de outras regiões do país. Tudo isso são apenas alguns exemplos de discursos veiculados pela televisão que atuam na fabricação de verdades, na produção de um discurso homogêneo sobre a sociedade em geral, que exclui determinadas formações discursivas, discursos e positividades, em prol de outros que lhe são mais plausíveis e, na maioria das vezes, mais rentáveis. A 152

docilização dos corpos tem finalidades comportamentais, políticas e econômicas. Nos enunciados que seguem, a banda diz:

Ô cride, fala pra mãe Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura! Ô cride, fala pra mãe!. (Titãs, WEA. Junho, 1985).

O primeiro enunciado dessa formação discursiva é de um famoso humorista chamado Ronald Golias que, sempre que ia dar um aviso falava “Ô cride, fala pra mãe” e faz referência a Euclides Gomes dos Santos, amigo de infância do Ronald. O sujeito contesta a opinião da televisão dizendo que o livro contradiz aquilo que a televisão fala. Ainda diz que, mesmo assim, alguém não entende o que ele diz. De alguma forma, o sujeito diz que o que a televisão prega uma verdade incontestável, já que ele pede para um famoso humorista falar para sua mãe que espirro é um “vírus sem cura”. Isso é fruto de a indústria cultural criar ideias para serem propagadas e se transformarem em consumo de produtos. A televisão passa propagandas de sorvetes de várias marcas, diz que esses sorvetes fazem você espirrar e sugere que se deva comprar remédios para curar a gripe. A televisão vende a doença e o remédio. A música, embora faça uma crítica a um meio de comunicação de massa, ainda sim é algo muito simplório e não traz uma reflexão crítica acerca dos meios de alienação do homem, somente pontos na qual a televisão se mostra. Com certeza, quem não tinha televisão arranjou uma forma de ter uma, ou seja, a própria crítica já é uma propaganda do meio massivo e a propagação da música em vídeo clip pela televisão e pelo rádio ajudou muito para disciplinar os sujeitos para o consumo desse meio de comunicação. Os próximos versos tratam da vida do sujeito trancado em seu mundo:

A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada A luz do sol me incomoda, então deixa a cortina fechada É que a televisão me deixou burro, muito burro demais E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais. (Titãs, WEA. Junho, 1985).

Nessa outra passagem da música. há a presença da acomodação. O sujeito culpa a televisão por transformá-lo em nada e querer fazer nada. Nesse contexto, o sujeito se transforma em um animal qualquer, pois ficou tão burro que não consegue realizar as atividades comuns à sua espécie. A luz do sol aparece como uma verdade sobre o sujeito, mas o mesmo prefere ficar no quarto com a cortina fechada, longe do mundo real. Normalmente se fecha a cortina para a 153

imagem da televisão ficar mais nítida. Nesse caso, a televisão na penumbra do quarto é o mundo desse sujeito, tornando-o seu dependente ao ponto de não querer mais fazer nada e nem sair de casa. Assim, o sujeito se compara um animal, pois diz que vive numa jaula junto de outros animais, e quem criou essa jaula foi à televisão. Esse discurso faz menção ao fato de o sujeito se sentir tão dependente do meio de comunicação, que se sente preso à ela, como se vivesse em uma jaula, percebendo que não está sozinho nisso, pois vive preso junto com outros da mesma espécie. Pode-se fazer dessa parte da música fazer uma analogia ao “mito da caverna” do filósofo Platão, em que os sujeitos presos no interior de uma caverna, têm as sombras do mundo real como sendo a realidade para eles, não desejando sair para ver o mundo real. O sujeito do texto tem consciência dessa realidade lá fora, ele já viu a realidade e voltou ao mundo das sombras, mas agora prefere viver nesse mundo de penumbra. Essa sombra que o sujeito prefere ficar é também sua zona de conforto, por não querer sair dela, porque é mais seguro, pois a maioria das verdades produzidas pela televisão, só são aceitas como verdades porque dão ao sujeito certa segurança, que o mundo real talvez não proporcione, pois ele lhe parece um caos com muitos discursos, positividades que precisa de uma prática discursiva do sujeito para selecioná- las para ele poder fazer suas escolhas. Como a televisão já faz tudo isso, então ele transmite, conforto, segurança e comodidade.

Ô Cride, fala pra mãe Que tudo que a antena captar meu coração captura Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura! Ô Cride, fala pra mãe!. (Titãs, WEA. Junho, 1985).

Nessa parte do refrão que encerra a letra da música, o sujeito se sente um receptáculo da televisão, dizendo para a mãe que tudo que a televisão dizer/ditar ele faz, já que nesse ponto se percebe uma passividade do sujeito em relação à realidade imposta pela televisão. Ele diz que seu coração é como uma antena que captura tudo que a televisão também captura. Percebe- se ainda nesse trecho da música, uma súplica incisiva do sujeito e um alerta para a “criatura”, no caso sua mãe, transformada em um ser genérico pela forma como ele se refere a ela, para afirmar de uma vez por todas que a mesma entenda o que ele já é, um produto da televisão. A transformação dos corpos em objetos de consumo é uma das táticas da indústria cultural, é um tipo de higienização mental que abarca todos os indivíduos, mesmo que eles tenham noção do que está acontecendo, não há saída, todos estão inseridos na mesma malha social, fazendo com que em distintos graus de docilidade, todos estejam submetidos a ela. 154

5.2.2 Música: “Homem primata”

Um dos enunciados que invadiu as televisões, os palcos do circuito cultural das grandes cidades e, posteriormente, por meio das mídias para o resto do país e do mundo, foi intitulada “Homem primata”. Nessa música, a banda assume uma postura antropológica ao defender que o homem advém do macaco, um discurso que ainda traz inúmeras divergências entre o criacionismo das religiões e da ciência darwinista, pois ambas as formações discursivas fazem a subjetivação/discursivização da origem da humanidade de formas distintas, preconizando uma tentativa de explicação de onde viemos. Nos enunciados seguintes, podemos observar que: “Desde os primórdios/Até hoje em dia/O homem ainda faz o que o macaco fazia”. (Titãs, WEA. 1986). Nesses enunciados, a banda faz uma incursão na origem do homem, assumindo a tese de que viemos do macaco (uma espécie de primata) e, ao fazê-lo, rejeita automaticamente, silencia e deixa no não dito o fato de as religiões defenderem que a origem do homem e a forma como ele se encontra hoje, foi através de um sopro divino de um Deus criador, mais especificamente, o Deus cristão, descrito nos enunciados da Bíblia Sagrada. O enunciado ainda coloca que o homem atual é uma espécie de macaco da sociedade moderna, impreterivelmente a capitalista, que não evolui em nada no fazer, construir artefatos para sobrevivência, armas, o uso do fogo, etc. A subjetivação/discursivização do homem, nessa perspectiva, é o homem genérico, o homo sapiens, sem abertura para discussões de gênero. Toda a discussão ficará em torno do homem como representante da espécie humana, a perspectiva do método científico. Quando a banda subjetiva/discursiviza essa forma discursiva do homem e de sua trajetória histórica, ela dá ênfase ao fazer, ao manipular, ao criar essa forma de comportamento que a Hannah Arendt chamará de homo faber, ou seja, apenas saber fazer e dar forma a objetos do mundo concreto, utilizar a natureza como único bem para suprir suas necessidades. O discurso da banda traz para a discussão conceitos filosóficos que modificaram ou deveriam modificar a mentalidade dos homens ao longo da história, já que depois que o homem aprendeu a fazer coisas, vêm outros conceitos ligados à evolução da espécie humana como o homo politicus, que é forma discursiva que se aplica ao fato de o homem aprender conviver em sociedade e possuir estratégias que permitem a reflexão sobre as coisas e não apenas modificá- las para saciar seus instintos. Segundo a perspectiva dos enunciados da banda, o homem ainda está fazendo aquilo que seu ancestral primata fazia, ou seja, apenas faz coisas para manter sua existência. 155

Nessa discussão, o que se percebe na mensagem da banda é que o homem não evoluiu desde seu aparecimento na terra até os dias atuais, ou seja, na sociedade moderna com todos os seus aparatos tecnológicos, todo o bem-estar que a sociedade conquistou ao longo dos anos, o homem ainda se comporta como um animal, um primata tal quais seus ancestrais. Além dessa forma que a banda coloca sobre a ancestralidade do homem, põe também a ideia que marca uma contradição pelo fato do homem se comportar como um animal em plena modernidade, ignorando todos os avanços que ele mesmo produziu, mostrando que o fato de apenas lutar para ter, fazer e consumir é um comportamento ancestral e animalizado, visto que dessa forma não abre espaço para a reflexão e organização da sociedade. Nos enunciados seguintes, que completa o pensamento dos primeiros discutido acima, a letra da música diz: “Eu não trabalhava, eu não sabia/Que o homem criava e também destruía”. (TITÃS, WEA. 1986). Nessa perspectiva, os enunciados nos trazem a ideia de trabalho, fazendo analogia ao fato de que o homem enquanto primata não trabalha, apenas cria e destrói. O trabalho é colocado como uma força produtiva que modifica o meio em favor do homem, respeitando outras formas de vida e mantendo a força criativa de produção de forma sustentável, em que se cria para o bem da humanidade e não para sua autodestruição. A subjetivação/discursivização do trabalho como forma organizada de produção de meios para subsistência da humanidade, é um contraponto ao fato de que, como o homem não trabalha ou não sabe trabalhar, ele apenas cria e ao mesmo tempo destrói. Percebe-se também que essa destruição do meio pelo homem contradiz o fato de os primatas e os primeiros homens serem nômades, pois segundo a história das sociedades humanas, o fato de os homens fixarem território, construírem casas, inventarem a agricultura, domesticarem os animais, foi que fez com que se iniciasse o processo de degradação do meio onde o homem vivia. Nesse sentido, pelo fato de não saber trabalhar, o homem apenas cria e destrói para sobreviver. Observando a contradição da ideia de que o homem quando era nômade fazia as coisas no mundo de maneira mais sustentável, e o homem moderno com tudo que conquistou a longo de sua trajetória histórica, causa destruição, então supõe-se que não houve evolução no sentido da sustentabilidade, um tema muito recorrente nos discursos sobre o meio ambiente no mundo. Entretanto, segundo a Escola de Frankfurt, todo trabalho já traz em si a destruição. Segundo Adorno e Horkheimer, todo esforço humano para melhoria do mundo através do trabalho tem um preço a se pagar, que é a própria destruição do planeta e, consequentemente, do ser humano. Na verdade, toda obra criada pela civilização vem da barbárie, ou seja, o trabalho, nesta perspectiva não é o oposto de destruição, ele a promove. Logo, percebe-se que o discurso da banda Titãs sobre o trabalho, o homem e a civilização pode ser entendida dentro 156

desse processo de subjetivação/discursivização, em que o “eu não sabia” pode significar que um paradoxo da questão, no qual talvez o homem não entenda que seu trabalho sobre a natureza, ao mesmo tempo que promove a satisfação, causa destruição. Logo após essa discussão, em que se apresenta uma contradição entre o fato da ancestralidade do homem ser objeto de uma reflexão em plena modernidade, e como seu trabalho sobre a natureza é explica pelo enunciado-síntese: ““Homem primata/Capitalismo selvagem/Ô ô ô”. (TITÃS, WEA. 1986). Nesses enunciados, o homem primata tem sentido coletivo, enquanto o homem capitalista (apesar de tão primitivo) é individualista. Esses enunciados induzem as seguintes perguntas: será que o homem capitalista permanece primata como sempre foi ou se o primitivismo humano é que cria o capitalismo selvagem? Capitalismo e selvageria tem alguma relação com homem primata? Pelo que foi dito sobre os enunciados anteriores, percebe-se nesse enunciado-síntese, que ele é ao mesmo tempo, o resumo que dá sentido e produz outros efeitos de sentido aos outros enunciados. As questões levantadas acima por meio do discurso e do interdiscurso fazem referência tanto às condições de produção da burguesia mercantil do século XV quanto ao capitalismo moderno, que é modo de produção basilar econômico em quase todo o mundo. A burguesia mercantil que surgiu no século XV transformou as condições de trabalho no campo, onde a maioria dos trabalhadores da época conhecia em uma selva, ou seja, trabalhar em média dezesseis horas por dia, tanto sendo homens, mulheres, crianças e idosos que aguentassem trabalhar, caso contrário, eram postos para morrer de fome nas ruas e nos arredores das cidades. Não havia final de semana remunerado, decimo terceiro salário, terço de férias. Esses direitos são criação contemporânea que surgiram a partir das revoltas d proletariados por meio de associações e sindicatos. Quando a banda fala que o capitalismo é selvagem, é apenas uma constatação bem obvia do ponto de vista epistemológico, já que é um dado histórico o fato do surgimento do capitalismo e seus desmembramentos ao longo da história, mas as condições de emergência do discurso sobre o capitalismo e suas diferentes maneiras de lidar com o sujeito na história é que merece atenção do que fala o discurso da banda Titãs. As condições de produção discursiva nesse momento da história brasileira, estavam ligadas ao militarismo implantado no país. A ditadura militar usava o liberalismo econômico e o capitalismo como modelo econômico, fortemente influenciado pelo modelo norte americano. Dentro dessa formação discursiva, havia a emergência de uma selvageria dos meios de produção de trabalho e de capital, embora nesse mesmo período, esse capitalismo selvagem 157

estivesse dando, já há muito tempo, sinais de falência, haja vista que por parte dos governantes militares não se tinha formas de controle da inflação que estava em sua fase “galopante”, e o modelo de liberalismo praticado pelos militares, perigosamente, se vinculava a uma prática conservadora dos costumes, da cultura e a da vida cotidiana, chegando ao ápice de censurar músicas de diversos artistas brasileiros, proibir o uso de determinadas expressões que denotassem a insurgência de rebelião ou lesa soberania nacional. Essa prática do liberalismo econômico pelo militarismo no Brasil, embora fosse não o liberalismo clássico praticado nos séculos anteriores, estava na positividade da época, justificada por um “fantasma do comunismo” e todos os seus desdobramento e mitos em torno dele, discurso este que havia sido usado para justificar o golpe militar de 1964, agora continuava para manter o poder e justificar sua dominação, e que era novamente usado para as eleições já articuladas nesse período como forma de manter a positividade e o discurso dos militares. Tanto que, depois de muitas formas de produção do discurso, o país continuava com a velha dicotomia de pobres e burgueses, militares e civis, não havia nada na época que pudesse superar essa dicotomia: de um lado, os militares se articulando para projetar a sua forma de governo para posterioridade; do outro, uma ala política mista, composta por sujeitos do meio civil, militares que discordavam de seus pares, setores do mundo da cultura, da música e organizações não governamentais (RODRIGUES, 1992). Os enunciados dos Titãs refletem toda essa positividade da época, que foi possível graças a essa rebeldia muito típica do Brock dos anos 1980. Segundo Florestan Fernandes, sociólogo brasileiro, o capitalismo é selvagem porque não é domesticável, não se pode controlá-lo, ele sempre será uma máquina de exploração de um pelo outro, gerando opressão e discriminação sem concerto, quanto mais é usado mais aumenta e agrava sua selvageria, já que isso é um dado próprio de sua condição enquanto um sistema econômico. Para o autor, o capitalismo selvagem nunca terá fim, pois sempre se mantem graças ao fato de ele estar atrelado à política e sempre ter meios que possibilitem sua produção, circulação e consumo. Segundo Fernandes,

O capitalismo, entre nós, o capitalismo dependente, é selvagem e só pode ser selvagem. O que significa que ele não é, nem será domesticável. O capitalismo selvagem é e será crescentemente uma máquina de exploração, de opressão e de discriminação sem conserto, nem saídas porque, quanto mais esse capitalismo se desenvolver, tanto maior a exploração, a opressão e a discriminação, agravando a selvageria que é sua própria condição. Por isso mesmo, para Florestan, o capitalismo selvagem só se mantém e reproduz graças à sua sobredeterminação política. (FERNANDES, 2006, p. 25).

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O enunciado do discurso dos Titãs faz uma referência ao homem moderno e ao sistema social, econômico e político que predominava da década de 1980, em que pelo fato do capitalismo ser um sistema que não se domina, também criava sujeitos não pensantes, que só agiam como primatas, algo que se faz desde os primórdios da humanidade. Também se percebe no jogo enunciativo do discurso da banda, que a sociedade não está preocupada com a evolução da humanidade e dos sujeitos, mas apenas com sua exploração por meio do acumulo de capital financeiro e a construção de riquezas. Fica não dito que a evolução do homem não vem por meio da revolução do capital (Revolução Industrial) ou das revoluções sociais (Revolução Francesa), mas a verdadeira revolução está na cultura, quando o homem supera seus limites através da percepção de que, quem faz a revolução é o domínio da cultura acessível a todos e não do capital que é acessível a poucos. O discurso da banda faz analogia bem sensível ao período da ditadura militar que estava em seu estado de abertura para a democracia. Os militares investiram bastante no capitalismo selvagem via Estados Unidos, com empréstimos exorbitantes para o fortalecimento e aquecimento da economia liberal, que na época já dava também seus sinais de fracasso, já que havia a hiperinflação, o fechamento das indústrias nacionais, o crescimento do que ficou conhecido como a dívida externa, um verdadeiro estado de caos criado ao longo dos períodos militares. Quando a banda enuncia:

Eu aprendi A vida é um jogo Cada um por si E Deus contra todos”. (Titãs, WEA. 1986).

Nesse discurso, a banda faz uma referência clara ao liberalismo econômico, em que se prega a liberdade do sujeito, menor controle do Estado sobre as ações sociais, a liberdade econômica e a livre concorrência. Isso fica muito explicito quando se diz que a vida é um jogo em que cada um luta por si mesmo, sem preocupações estatizantes, ou seja, o sujeito fica entregue à própria sorte: cria seus próprios meio de sobrevivência sem a intervenção do Estado, busca por meio da liberdade econômica adotar uma política individualista que faça com que ele sobreviva na selva desse capitalismo. Nesse mesmo sentido do individualismo pregado pelo capitalismo selvagem, aliado ao liberalismo econômico, até Deus permanece em luta contra todos, uma vez que a religião prega o controle minucioso sobre diversas práticas, desde a missa, o culto, etc., até trabalho e emprego, como de disciplinar os corpos. É o jogo proposto pelo filósofo Thomas Hobbes, “Uma 159

guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida” (HOBBES, 2003, p.88,89). É a luta de todos contra todos, o estado animalizado do homem, um primata da/na sociedade capitalista, em que todos vivem em constante luta para preservar o seu individualismo, sua propriedade privada, sua liberdade e, para isso, todos estão numa guerra cultural permanente, em que sobrevivem àqueles que melhor se adequarem aos padrões sociais do liberalismo, à selvageria do capitalismo e à ideia de que nada é para sempre, tudo está em constante movimento, onde não há espaço para a reflexão, a fruição estética e a reflexão crítica sobre a realidade. O que se percebe é uso dos bens materiais para usufruto e produção de riquezas e acumulação de capital. Para reforçar os padrões do liberalismo econômico e do capitalismo selvagem a banda traz também enunciados em língua inglesa, que traduzem essa realidade da sociedade capitalista:

I am a cave man A young man I fight with my hands With my hands I am a jungle man A monkey man” Concrete jungle Concrete jungle Hey. (Titãs, WEA. 1986).

Nos enunciados acima há o reforço do discurso sobre o fato à bestialidade do homem moderno frente ao capitalismo selvagem, homem das cavernas que luta ainda com as próprias mãos, um homem da selva, silvícola, um homem macaco, verdadeiramente, um homem macaco selvagem que vive numa selava de pedras, ou melhor, de concreto e pedra. Com esse discurso, a banda em seus enunciados, transmite a ideia de que, quem vem visitar o Brasil, uma dimensão do ambiente social dos que aqui vivem. Por isso, a mídia, muitas vezes taxa o Brasil de um país violento, que não é muito visitado por turistas de outras nações pelo fato de o país não oferecer muito segurança aos seus visitantes. Para a grande indústria do entretenimento, ou indústria cultural, os Titãs reforçam um discurso negativo do país, ao protagonizar que aqui no Brasil somos muito animalescos ainda, que usamos a mãos para realizar a maioria de nossas atividades. Esse reforço do uso das mãos faz referência ao proletariado que tem em sua força de trabalho o único meio de sobrevivência, e quem realiza os trabalhos manuais da sociedade.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de toda essa discussão, podemos concluir que o discurso dentro de qualquer formação discursiva, se torna um fio condutor de sentidos, mostrando que as materialidades linguísticas e não linguísticas, traduzidas pela língua ou outro sistema semiótico, carregam outros sentidos por meio do interdiscurso que, quando acionados, rememorados nas malhas discursivas da escrita da histórica, produz novos efeitos de sentido, tornando qualquer monumento apto, propício à emergência de saberes e poderes. O discurso e a discursividade sobre a escrita da história da emergência do Brock foram uma das maneiras de condução deste trabalho. As condições de produção do discurso de qualquer evento histórico seguem as regras e estratégia discursivas de cada época, através de como fato se formou. Esse conjunto de estratégias que o cria, o emerge a partir de pontos de vista, que tem o historiador oficial da história oficial como seu principal protagonista. O evento histórico não reflete as reais condições de produção do mesmo, segue uma linha ideológica que é defendida pelo historiador. A Análise do Discurso e a Nova História observa esse evento como um monumento que tem possiblidades de produzir sentido através de estratégias discursivas que permitem fazer o processo de subjetivação/discursivização desse objeto. Foi através disso, usando essas teorias que se fez uma arquegenealogia do Brock. As contribuições teóricas de Michel Foucault foram bastante pontuais para a realização da pesquisa. Os conceitos de discurso, enunciado, formação discursiva, positividade e arquivo deram um melhor enquadramento para analisar os processos de discursividade do Brock e algumas letras de músicas das bandas Blitz e Titãs. Com eles, podemos dizer que tipo de discurso perpassava os enunciados das letras das músicas selecionadas, em que formação discursiva cada um se colocava como descontinuidades. Além disso, se percebeu que tipo de positividade predominava na década de 1980, entrelaçando o discurso, o enunciado, a história, os processos de discursividade, e que estratégias discursivas foram utilizadas para a configuração do arquivo sobre o Brock. Todos esses elementos não participaram plenamente de cada enunciado, mas emergiram parcialmente e cada enunciado e letra de música, mostrando que é possível fazer uma análise sem esgotar a possiblidade de novos efeitos de sentido os processos de discursividade de emergência do rock brasileiro. Podemos dizer que o Brock emergiu a partir do punk rock, não apenas copiando os elementos constitutivos do movimento, mas fazendo uma relação interdiscursiva, em que foi retomada pela filosofia do “faça você mesmo”, as relações amorosas, a rebeldia e a política. 161

Com esses três elementos, foi possível fazer uma arquegenealogia do rock brasileiro, mostrando como ele se desenvolveu a partir do movimento do punk rock. Essa perspectiva metodológica utilizou um trajeto temático que foi agregando os fatores sociais, culturais, econômicos e comportamentais da sociedade da década de 1980, mostrando como eles contribuíram para a emergência do movimento e para a constituição de uma escrita sobre o movimento do rock brasileiro. Com o auxílio das teorias do discurso e sobre a Nova História, vimos no movimento do Brock outra história sobre a emergência do rock no Brasil, uma história vista por descontinuidades e positividades emergentes, vistas “por baixo”. Esse movimento não foi uma continuidade histórica da música que vinha se desenvolvendo no país desde a Jovem Guarda, do Tropicalismo e dos outros movimentos musicais, haja vista que ele surgiu a partir de descontinuidades no campo da cultura, pois o punk rock emerge em condições discursivas totalmente diversas daquelas que se tinha anteriormente. O movimento punk rock na década de 1970 e meados da década de 1980, foi preponderantemente, o discurso de emergência do movimento Brock. Apesar de o Brock ter surgido a partir da subjetivação/discursivização dos elementos do discurso que formaram o movimento punk, há uma relação interdiscursiva com a Jovem Guarda e o Tropicalismo, pois quando esses elementos foram acionados pela memória discursiva, buscando novos efeitos de sentido, produziram novos discursos ancorados nas estruturas mnemônicas. A banda Titãs, inicialmente chamada de Titãs do iê-iê-iê, que rememorava e muito a Jovem Guarda, e muitos enunciados da Blitz, como por exemplo, na música “Betty frígida” aparece “E os urubus continuam passeando a tarde inteira entre os girassóis”, fazendo um interdiscurso com a música “Tropicália” do movimento Tropicalista, numa referência a censura moral da ditadura militar. Assim, a discursividade do Brock agregou predominantemente a ideologia e os elementos que compunham a discursividade sobre o punk rock, mas também trouxe a subjetivação/discursivização de outros movimentos musicais, principalmente, aqueles que tinham uma interface com o rock, como A Jovem Guarda e o Tropicalismo. Nesse sentido, a escrita da história do Brock emerge a partir da contestação de positividades da sociedade das décadas de 1970 e 1980, como a censura moral, o capitalismo selvagem, o neoliberalismo comandado pelos militares e a falta de oportunidades para a classe trabalhadora. Essa escrita vai sendo desvelada pelo punk rock oriundo dos guetos e favelas das grandes cidades, mostrando a dura realidade desses espaços sociais e, ao mesmo tempo, uma denúncia ao abandono desses setores por parte do poder público. Para isso, resolveram produzir 162

algo que fosse de acordo com suas perspectivas, que ia desde o estilo de roupa, o comportamento, as letras e a música que produziram. O Brock foi um movimento musical que surgiu com mudanças significativas na sociedade brasileira da década de 1980. Primeiro, com a ruptura do cenário musical, cultural e político aberto pelo movimento punk rock, fazendo com que a juventude da época se visse dentro de novas possiblidades de experiências culturais. Segundo, pelo surgimento da new wave com uma vertente musical mais suave que saiu das entranhas do punk rock, pois como era mais adequada às rádios e à indústria fonográfica brasileira, teve mais êxito. Nesse contexto, a indústria cultural, embora fosse rechaçada inicialmente tanto pelas bandas de punks quanto as do Brock, foi uma grande aliada na configuração do movimento. Sem ela, muitas bandas que emergiram a partir dessa discursividade/positividade do amor/divertimento, da rebeldia e da política, jamais teriam tido visibilidade no campo da cultura e da arte, ou teriam passado por muitos empecilhos até se estruturar como banda. A aceitabilidade de qualquer discurso veiculado necessita do auxílio da mídia e dos meios de produção do discurso, e quase ninguém está acima disso, todos indistintamente precisaram dela. O que aconteceu é que a mídia sempre deu preferência àquilo que poderia ser vendido como mercadoria de consumo ou criando necessidades para ela. A atitude rebelde e política das bandas via na mídia algo nefasto, já que a mesma somente dava espaço aos grandes ícones da música ou bandas de renome, não abrindo espaço para discursos inovadores. Na verdade, estava mais para algum tipo de fetiche, uma vez que todos queriam vender, fazer sucesso, fama e dinheiro, e isso não seria feito se não fosse por meio da indústria cultural. Ela é uma espécie de mal necessário à sobrevivência do homem, que está em todas as estruturas sociais e que transforma sujeitos em objetos de desejo, criando discursos que permeiam a sociedade e interpelam o sujeito para ser consumista. A partir de processo de subjetivação/discursivização de letras de músicas da Blitz se percebeu que as mesmas usavam estratégias que permitiam o surgimento de um discurso voltado para o entretenimento e para o amor. Isso tudo era visto de maneira irônica divertida, uma vez que essas letras refletiam um cenário de praias, sol e curtição, mostrando como as relações amorosas e a diversão acontecia dentro das positividades do discurso sobre os aspectos culturais e sociais Rio de Janeiro. Tudo isso, de alguma forma, se estruturava em torno de um discurso que foi muito bem explorado pela indústria do entretenimento, pois para ela o discurso da Blitz era vendável e rentável, daí ser uma das primeiras bandas a se popularizar no rádio e na televisão. 163

A new wave em que as letras de músicas da Blitz estão envoltas, mostram como o discurso sobre o Brock, a partir da perspectiva dos cariocas, uma musicalidade dançante, frenética e voltada para o amor e a diversão. A Blitz traz para o movimento Brock esse discurso divertido, com pouca crítica social e cultural, de modo que o que se produziu em termos discursivos pela Blitz, foi muito diferente das letras produzidas por outras bandas, inclusive, da mesma formação discursiva e com as mesmas positividades como é o caso do Barão Vermelho, do em carreiro solo, dos Paralamas do Sucesso e o Kid Abelha, que são exemplos dos que apareceram mais na mídia. Todas essas bandas são do Brock via Rio de Janeiro e que surgiram logo após a explosão da Blitz com a new wave. Entretanto, muitas outras não apenas do Rio de Janeiro, seguiram por essa mesma formação discursiva e com o mesmo discurso inaugurado pela Blitz, como é o caso de João Penca e seu Miquinhos amestrados, Biquíni Cavadão, Inimigos do Rei, Erva Doce, dente outras. A subjetivação /discursivização de letras da banda Titãs já mostra o Brock com muita influência do punk paulista, que já sofrera influência do movimento punk britânico, tanto os do ABC, quanto os da capital. Como se pode perceber, o discurso dessa banda foi voltado para a rebeldia e a política. O discurso rebelde revelou seu lado anárquico em que iam contra tudo e contra todos. A música “Homem primata” revela uma postura de rebeldia contra o homem do capitalismo selvagem, individualista, objeto de desejo dos neoliberais, que apenas trabalhava para manter os grandes lucros das empresas privadas. Essa música também mostrou uma atitude política de revolta contra as instituições do Estado representadas pela ditadura militar. “Homem primata” e “Capitalismo selvagem” é uma referência direta aos militares e seu modelo governamental e econômico, em que todos estão contra todos numa guerra cultural, social e econômica, que prevalece aquele que melhor se adaptar ao sistema capitalista. Além disso, os Titãs também mostraram seu lado mais comercial. O álbum “Televisão” é considerado um dos lados mais pop da banda que, embora faça duras críticas à indústria cultural, a banda precisou também se adequar a esse formato mercadológico que incluía as rádios e a televisão. A crítica a esse meio televisivo foi feita com base naquilo que a televisão produz para manter seus telespectadores/consumidores com sujeitos fiéis a sua programação. Toda a arquitetura arqueológica e genealógica da televisão é feita para ser vendida como um produto de consumo em massa. Sua programação é estruturada de acordo com o seu público, com a idade, o grau de escolaridade, o tipo de trabalho e renda, entre outros fatores. Trata-se de um veículo de comunicação de massa que visa convencer através de sua programação, ao mesmo tempo em que cria verdades e as dita com sendo algo passível de ser seguido. Dentro dessa mesma linha de produção discursiva, surgiram também às bandas de Brasília como 164

Aborto Elétrico, que depois virou Legião Urbana e a Plebe Rude (muito perseguida pela ditadura militar). As bandas gaúchas Nenhum de Nós e Engenheiros do Havaí, as paulistanas Inocentes, Ira, Ultraje a rigor e Zero só alguns exemplos. Então o Brock produziu uma discursividade em sua emergência como saber que estabeleceu relações de macro poderes e micropoderes da sociedade brasileira da década de 1980. Em sua configuração, foram manipuladas muitas estratégias discursivas que vão desde a configuração do estilo aos padrões midiáticos da indústria cultural, bem como a docilização dos corpos por meios de estratégias sociais, comportamentais e políticas como processos disciplinares, que fez com que esse movimento ganhasse a visibilidade que teve na época. A televisão e o rádio exerceram muita influência na docilização dos corpos para a compra e o consumo de LPs, camisetas, bonés10 pôsteres das bandas, revistas especializadas, etc. Com base no que estamos dizendo, todas as bandas, partindo das que estamos analisando, seguiram por esse viés: subjetivação/discursivização do amor, da rebeldia e da política, provando que o movimento Brock com essas positividades, estratégias discursivas e o discurso dessas bandas, se alinharam dentro dessa formação discursiva, em que cada compositor e banda, os usavam como forma de mostrar como o movimento do rock brasileiro tinha chegado finalmente ao seu verdadeiro lugar de direito, fazendo parte do cenário musical brasileiro, com espaços na mídia e mantendo algumas estratégias de manipulação dos discursos que foram subjetivadas/discursivizadas pelo movimento do punk rock. Vale apena salientar que o movimento punk se acabou e começou o Brock, na verdade, o movimento continuou e até ainda encontra muitos remanescentes no país. O que aconteceu foi que uma nova onda que se originou a partir da subjetivação/discursivização dos elementos constitutivos do punk rock, fez emergir o Brock, que já tinha seu próprio discurso, a delimitação de sua formação discursiva e das estratégias para se produzir um discurso sobre o produzir rock no Brasil, e assim emergir processos de discursividade sobre o rock brasileiro da década de 1980. Dessa forma, a maioria das bandas que emergiram a partir dessas estratégias discursivas do Brock, se enveredou pelas mesmas formações discursivas, mantendo subjetivação/discursivização do amor/divertimento, da rebeldia e da política como sendo seu discurso predominante, e assim escrevendo as páginas da escrita da história sobre a cultura, a história, a política e o conjunto de elementos que compunham as positividades da década de 1980. Por fim, vale aqui citar que o Brock influenciou direta e indiretamente a formação do rock dos anos de 1990 e 2000, de onde emergiram bandas que, embora mantendo os mesmos elementos constitutivos do punk rock e do Brock, continuaram produzindo discursos sobre a 165

história, a cultura e a sociedade brasileira. As teorias e o método utilizados neste trabalho não se pretendem ser a última palavra definitiva sobre a discursividade do Brock. Foi realizado um trajeto temático, em que pudemos observar que foi feita uma arquegenealogia do rock brasileiro da década de 1980, através de letras de músicas das bandas Blitz e Titãs, mostrando como esses processos e estratégias discursivas, deram à cultura brasileira, uma discursividade do Brock através da subjetivação/discursivização do amor/divertimento, da rebeldia e da política.

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Laranja Mecânica. Direção Stanley Kubrick. Reino Unido, EUA: Warner Bros., 1971. 1. DVD (136 min).

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The Warriors. EUA, 1979. Direção: Walter Hill. https://www.vagalume.com.br/blitz/voce-nao-soube-me-amar.html Acesso em 30.04.2017 https://www.vagalume.com.br/blitz/voce-nao-soube-me-amar.html Acesso em 30.04.2017 https://www.youtube.com/watch?v=ELK6ZSnG1tk – Acesso em 08.03.2019 SOBRE O BLUES https://www.youtube.com/watch?v=qrFa1Eg39pI – Acesso em 08.03.2019 - SOBRE O ROCK NACIONAL http://www.titas.net/ - acessado em: 15.03.1019 http://www.blitzmania.com.br/site/release - 15.03.1019- https://www.letras.mus.br/blitz/44622/ - Acesso em: 22.07.2020. https://blogconfrariafloydstock.blogspot.com/2018/09/regis-tadeu-nao-foi-o-punk-que-matou- o.html https://www.youtube.com/watch?v=trIAXkc003k&t=1474s – BOTINADA- Acesso em: 07.01.2020. https://www.youtube.com/watch?v=hM-IDZ-qT9U - PROVOCAÇÕES 94 BLOCO 1– PROGRAMA ANTONIO ABUJAMRA-07.01.2020 https://www.youtube.com/watch?v=MAxzk106nuY- PROVOCAÇÕES 94 BLOCO 2– PROGRAMA ANTONIO ABUJAMRA- 07.01.2020. https://www.youtube.com/watch?v=iwnwYDJazuo- Subversão em Movimento - A História do Punk em SP- acesso em: 14.04.2020. https://www.youtube.com/watch?v=G6zQO5MgQMw&t=610s- Acesso em 22.12.2019. Crítico musical Régis Tadeu sobre o movimento punk e o rock progressivo

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ANEXOS

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ANEXO “A”: LETRAS DE MÚSICAS DA BLITZ

Você não soube me amar Blitz - Composição: Evandro Mesquita / Guto / Ricardo Barreto / Zeca Mendigo Sabe essas noites Que cê sai Caminhando, sozinho De madrugada Com a mão no bolso (Na rua) E você fica pensando Naquela menina Você fica torcendo E querendo Que ela estivesse (Na sua)

Aí finalmente Você encontra o broto Que felicidade (Que felicidade) Que felicidade (Que felicidade)

Você convida ela pra sentar (Muito obrigada) Garçom, uma cerveja (Só tem chopp) Desce dois, desce mais

Amor, pede Uma porção de batata frita OK! você venceu Batata frita 175

Ai blá blá blá blá blá blá blá blá blá Ti ti ti ti ti ti ti ti ti

Você diz pra ela Tá tudo muito bom (Bom) Tá tudo muito bem (Bem) Mas realmente Mas realmente Eu preferia Que você estivesse Nuaaaa

Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar

Todo mundo dizia Que a gente se parecia Pois cheio de tal e coisa E coisa e tal E realmente a gente era A gente era um casal Ah! Um casal sensacional

Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar

No começo tudo era lindo Tá tudo divino Era maravilhoso Até debaixo d'água 176

Nosso amor era mais gostoso Mas de repente A gente enlouqueceu Ah! eu dizia, que era ela Ela dizia que era eu

Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar

Amor que que cê tem? Cê tá tão nervoso Nada, nada, nada, nada, nada

Foi besteira usar essa tática Dessa maneira assim dramática (Eu tava nervoso) O nosso amor Era uma orquestra sinfônica (Eu sei) E o nosso beijo Uma bomba atômica

Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar

Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar Você não soube me amar

É foi isso que ela me disse

Oh! baby não! 177

Weekend Blitz - Composição: Evandro Mesquita / Ricardo Barreto.

Composição: Evandro Mesquita / Ricardo Barreto.

Alô, alô, ativo ouvinte! Você que está ligado na minha, na sua Na nossa Rádio-atividade E pra você que vai viajar, o tempo é bom Sujeito a amores impossíveis no final do período

Dia após dia, durante semanas Fiquei esperando pra te ver Há mais de um mês que eu espero uma chance De me encontrar com você

Seu cabelo eletrizado (chak! chak! chak! chak!) Sua boca de mel (mel!) Não sei se veio da terra Ou se desceu do céu

Quero passar um weekend com você (eu também) Um weekend com você Eu só quero passar um weekend com você Estrada de terra, estrada de asfalto, estrada de luz Um weekend com você Estrada de terra, estrada de asfalto, estrada de luz

Primeiro passou um cavalo Depois eu vi dois bois Um ônibus acendeu o farol Eu liguei o rádio, ela abriu a blusa, ela me deu um beijo Parei pra esticar (Amor, olha ali uma lanchonete!) Xixi, café, chiclete Xixi, café, chiclete 178

Quero passar um weekend com você (eu também) Um weekend com você Eu só quero passar um weekend com você Estrada de terra, estrada de asfalto, estrada de luz Um weekend com você Estrada de terra, estrada de asfalto, estrada de luz

Patrulha rodoviária (a quinhentos metros) Patrulha rodoviária (a duzentos metros) Eu desliguei o rádio, ela abriu o vidro, tudo escureceu O guarda mandou parar (que chato!)

Blitz, documentos! Ué, só temos instrumentos Aí rapaz o que cê faz? Tá vindo de onde, tá indo pra onde? O que você tem nessa bolsa? Qual teu signo, que time torce?

Tudo bem pode ir, viajandão hein!

(Quero passar) Branco esperto Um weekend com você Quero passar Um weekend com você Estrada de terra estrada de asfalto estrada de luz Quero passar weekend com você (eu também)

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ANEXO “B”: LETRAS DE MÚSICAS DO TITÃS

Televisão Titãs - Composição: Tony Belotto / /

A televisão me deixou burro, muito burro demais Agora todas coisas que eu penso me parecem iguais O sorvete me deixou gripado pelo resto da vida E agora toda noite quando deito é boa noite, querida Oh Cride, fala pra mãe Que eu nunca li num livro que o espirro fosse um vírus sem cura Vê se me entende pelo menos uma vez criatura Oh Cride, fala pra mãe

A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada A luz do sol me incomoda, então deixa a cortina fechada É que a televisão me deixou burro, muito burro demais E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais

Oh Cride, fala pra mãe Que tudo que a antena captar meu coração captura Vê se me entende pelo menos uma vez criatura Oh Cride, fala pra mãe

A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada A luz do sol me incomoda, então deixa a cortina fechada É que a televisão me deixou burro, muito burro demais E agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais E eu digo: Oh Cride, fala pra mãe Que tudo que a antena captar meu coração captura Vê se me entende pelo menos uma vez criatura Oh Cride, fala pra mãe.

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Homem Primata Titãs - Composição: / Marcelo Fromer / / Sérgio Britto

Desde os primórdios Até hoje em dia O homem ainda faz O que o macaco fazia Eu não trabalhava Eu não sabia Que o homem criava E também destruía Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô! Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô!

Eu aprendi A vida é um jogo Cada um por si E Deus contra todos Você vai morrer E não vai pro céu É bom aprender A vida é cruel

Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô! Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô! 181

Eu me perdi Na selva de pedra Eu me perdi Eu me perdi

I am a cave man A young man I fight with my hands With my hands I am a jungle man A monkey man Concrete jungle Concrete jungle Hey

Desde os primórdios Até hoje em dia O homem ainda faz O que o macaco fazia Eu não trabalhava Eu não sabia Que o homem criava E também destruía

Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô! Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô!

Eu aprendi A vida é um jogo Cada um por si E Deus contra todos Você vai morrer 182

E não vai pro céu É bom aprender A vida é cruel

Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô! Homem primata Capitalismo selvagem Ô! Ô! Ô!

Eu me perdi Na selva de pedra Eu me perdi Eu me perdi Eu me perdi Eu me perdi