MANA 7(1):133-163, 2001

ENTREVISTA O PRESENTE ETNOGRÁFICO: ENTREVISTA

pera concordaria com uma entrevista filmada. O texto a seguir baseia-se na entrevista que realizei com Schapera em minha casa, em Londres, no dia 15 de abril de 1998, e que foi filmada por Rolf Husmann. Schapera falou com fluência e entusiasmo por quase duas horas, revivendo suas histórias e res- pondendo com franqueza às minhas perguntas. Editei uma transcrição da entrevista para um livro de fotografias etnográficas tiradas por Schapera na década de 30, que ainda está em pre- paração1. O texto que se lerá aqui in- clui alguns comentários adicionais de Schapera. Isaac Schapera nasceu no ano de 1905, em Garies, uma pequena cidade de Isaac Schapera Northern Cape (África do Sul), região semidesértica de língua africâner, co- nhecida por abrigar uma grande popu- Conheci Isaac Schapera em 1963, quan- lação hotentote. Quando jovem estu- dome preparava para realizar trabalho dante, mudou-se para a Cidade do Ca- de campo no Protetorado de Bechuana- bo, prosseguindo os estudos na univer- land (hoje Botsuana). Somos amigos sidade local, sob a orientação de A. R. desde essa época e, até hoje, com seus Radcliffe-Brown. Em 1925 iniciou a pós- 90 anos, Schapera visita minha casa e graduação na London School of Econo- almoça conosco duas vezes por mês. Já mics, onde Malinowski era a figura do- se vão quarenta anos de conversa e eu minante em antropologia. Obteve o sempre pensei em fazer uma entrevista grau de Ph.D. com uma pesquisa biblio- formal, visando preservar algumas de gráfica sobre a história, as línguas e a suas melhores histórias e mostrar algo cultura das populações hotentote e bos- de sua personalidade aos colegas que químana. Em 1929 retornou à África do não tiveram a chance de conhecê-lo. Sul como professor [lecturer] de antro- No entanto, o impulso específico para pologia social, dando início à sua exten- realizar essa entrevista veio de um pe- sa pesquisa etnográfica entre os povos dido do antropólogo e cineasta Rolf Tswana do Protetorado de Bechuana- Husmann, que me perguntou se Scha- land. Os diversos trabalhos que publi- 134 ENTREVISTA

cou sobre os Tswana representam, tal- Tal civilização já está em desenvolvi- vez, a mais completa e, certamente, a mento – civilização em que, no momen- mais bem acabada etnografia feita indi- to, os europeus ocupam a posição de vidualmente na África. Schapera tam- aristocracia privilegiada e orgulhosa de bém deu contribuições ao estudo da li- sua própria raça, enquanto os nativos, teratura e da história Tswana, e aos es- embora indispensáveis do ponto de vis- tudos comparativos sobre os povos da ta econômico, estão restritos a um papel África do Sul em geral. Em 1950, dei- subordinado, de onde poucos podem xou a África do Sul para assumir uma emergir com sucesso. Mas, apesar dis- cátedra na London School of Economics so, os Bantu vêm penetrando cada vez e a partir daí publicou diversos ensaios mais em uma vida cultural comum a to- históricos e teóricos. Não tendo jamais da África do Sul.” (:386-387) se casado, viveu só, sempre em um pe- queno apartamento alugado no centro Kuper da cidade. Solitário, sujeito à depres- Pelo que consta, você dava um curso re- são, asceta, Schapera devotou sua vida gular na LSE, que ficou muito famoso, ao trabalho. em que teria dito “O que o antropólogo Isaac Schapera costumava descrever-se vê realmente quando vai a campo? Ele como etnógrafo, e tendia a desdenhar a vê escolas, vê igrejas, vê lojas, mas tudo teoria antropológica. No entanto, con- isso fica fora das etnografias”. Este co- tribuiu para o desenvolvimento de uma mentário foi a pretexto de uma crítica notável escola de etnografia na África das etnografias funcionalistas clássicas, do Sul, que insistia em considerar qual- correto? quer grupo étnico dentro do contexto mais amplo de uma sociedade sul-afri- Schapera cana única e em transformação. Esta Os funcionalistas, Malinowski e outros, perspectiva foi sintetizada por Schape- diziam: “Você deve estudar os povos ra no livro que editou em 1934, sob o tí- como eles são hoje”. Então, eu fui para tulo Western Civilization and the Nati- Mochudi [Botsuana] e o que encontrei ves of : Studies in foi uma igreja, as pessoas vestidas à Contact: moda dos brancos, falando inglês etc. “Sobre os Bantu, como um todo, pode- Para falar deles como eles eram, tinha se dizer que eles foram hoje definitiva- que se falar da igreja e de todo o resto. mente atraídos para dentro da órbita da Eu creio que aí estava a diferença entre civilização ocidental. Eles não adotam, o meu tipo de etnografia e a de Mali- e é provável que nunca venham a ado- nowski nas Ilhas Trobriand. Esse tipo tar, essa civilização em suas manifesta- de material nunca entrou nos seus li- ções puramente européias. É mais pro- vros. Alguma vez ele disse que lá havia vável que, pelo menos em alguns as- brancos, missionários, comissários dis- pectos, eles venham a desenvolver suas tritais etc.? Nunca. Só o fez muito mais próprias variações locais. Mas essas va- tarde… quando foi mesmo? Como se riações ocorrerão dentro do quadro chama aquele livro dele? mais amplo de uma civilização sul-afri- cana comum, compartilhada por negros Kuper e brancos, e apresentando certas pecu- Coral Gardens(Malinowski 1935), em liaridades que terão por base, justa- que há um famoso epílogo… mente, essa justaposição de culturas. O PRESENTE ETNOGRÁFICO 135

Schapera seu trabalho com os Tswana é que al- Onde ele observa que havia uma mis- guns dos principais estudos que escre- são que esquecera de mencionar… Ora, veu foram realizados por incumbência eu não esqueci de mencionar, e por isso do governo de Bechuanaland, ou para fui crucificado. os chefes.

Kuper Schapera Mas a questão vai além. Desde o início, Não. Meu primeiro trabalho, entre os seu trabalho é sobre mudança. O pri- Bakgatla, foi feito para o International meiro livro que você editou trata da “ci- African Institute, durante meu curso na vilização ocidental” (Western Civiliza- Universidade da Cidade do Cabo. Po- tion, 1934). Married Life (1940a) é um rém, mais para o final… Veja, eu come- livro sobre mudança. Portanto, mudan- cei ali em 1929. Em 1934, um dos che- ça era o seu tema, aquilo que você foca- fes sugeriu que o governo devia regis- lizava… trar o direito e o costume nativos para os novos chefes que estavam surgindo, Schapera e que, devido à mudança, nada sabiam Mas não tinha escapatória. a respeito, ou sabiam muito pouco. Eles iam recrutar três funcionários públicos Kuper para fazer o registro, quando eu disse: Algumas pessoas escaparam! “Olha, eu sou antropólogo. É o que eu faço”. E foi quando eu comecei. Então, Schapera o Handbook of Tswana Law and Custom Não. Seligman, que foi meu orientador (1938a) foi comissionado pelo governo. na London School of Economics, costu- mava falar sobre o Sudão. E no Sudão Kuper eles marcavam santuários ancestrais A pedido dos chefes? com potes de cerâmica. Uma vez eu es- tava caminhando tranqüilamente em Schapera Mochudi, com minha câmera, quando A pedido dos chefes. E foi nessa época vi, no fundo de um quintal, um tripé de que eu levei um belo fora. Havia um madeira, sobre o qual havia um pote de encontro anual dos chefes, no qual dis- cozinha. Eu disse, “Aha! Eis um santuá- cursaria o comissário residente [resi- rio ancestral!”, e resolvi perguntar. Ora, dent commissioner]3. Disseram que eu alguém estava cozinhando miolos de deveria participar. Fui apresentado: es- carneiro… Era puro nonsense! se é o Dr. Schapera que vai estudar as leis e costumes de vocês. E eu pensei Kuper que, sendo judeu, poderia fazer um Isso foi em 1929?2 agrado aos anciãos, e me levantei di- zendo que também havia sido circunci- Schapera dado com dez dias de idade. Então, um Sim. dos chefes velhos ergueu-se e falou: “Está tudo muito bem, mas não quer di- Kuper zer que você com dez dias de idade te- Então, seu foco era a mudança, e você nha adquirido o mesmo conhecimento começou a escrever esses textos sobre que nós obtemos quando somos circun- mudança. A segunda coisa incomum no cidados”. Que esnobada! Mas depois 136 ENTREVISTA

disso correu tudo bem, e eu escrevi o Schapera Handbook of Tswana Law and Custom. Mudança social. Veja, você começa es- tudando uma coisa como você a encon- Kuper tra. Depois se pergunta por que ela é E ele foi usado pelos chefes em seus tri- assim, e é aí que entra a mudança so- bunais. cial. Em outras palavras, o estudo tor- na-se histórico porque as coisas já não Schapera são como eram, digamos, cem anos Creio que sim. atrás, na época em que David Livings- tone e outros lá estiveram. Kuper E eles escrevem notas no verso, revi- Kuper sando… Isso é exatamente o oposto do que a maioria dos funcionalistas estava fazen- Schapera do. Eles faziam uma descrição de um Eu sei que o livro foi usado por magis- sistema dito tradicional, e no final sepa- trados… magistrados brancos. Por outro ravam um capítulo para dizer que, sem lado, foram impressas umas cem cópias dúvida, hoje tudo é completamente di- contendo páginas em branco, que fo- ferente. Você começou no caminho in- ram entregues aos chefes para que pu- verso. Você dava uma descrição do que dessem escrever seus comentários. via, todas as complexidades do cristia- Tshekedi4começou bem, mas depois… nismo, educação, migração da mão-de- por exemplo, quando chegou ao tema obra, para então perguntar: “como isso da sedução sexual… aconteceu?”, “que processos levaram à situação presente?” Ora, foi uma inver- Kuper são, uma inversão revolucionária das Que não é exclusividade Tswana! monografias funcionalistas clássicas.

Schapera Schapera Não é. Bom, Tshekedi era um puritano. Sim, mas todo antropólogo sul-africano Não achava que isso fosse direito e cos- estava em condições de fazer isso. tume. Kuper Kuper Na verdade, não estavam. Depois, você escreveu, também para o governo de Bechuanaland, um livro so- Schapera bre propriedade de terra (Schapera Se não estavam foi porque ainda ti- 1943a) e outro sobre trabalhadores mi- nham o cérebro lavado pela velha tra- grantes (Schapera 1947). dição. Aliás, velha tradição que se quer reavivar hoje – “disappearing cultu- Schapera res”. Houve um tempo em que a antro- Sim, eles me pediram. pologia era isso: não queremos saber o que eles são, mas o que foram. Kuper E todos esses trabalhos são o que veio a se chamar depois estudos de mudança social ou de antropologia aplicada. O PRESENTE ETNOGRÁFICO 137

Kuper Sendo justo ou injusto, é simplesmente Hoje você diria que os antropólogos impossível. Radcliffe-Brown fez aquele sul-africanos deveriam ter percebido… famoso discurso dizendo que a segre- gação é impossível, não necessaria- Schapera mente ruim, mas impossível7. Deveriam ter percebido… Schapera Kuper Radcliffe-Brown, coitado… Terminou Mas, na verdade, esse era o grande di- com o diretor da Universidade da Cida- visor. O grande debate na antropologia de do Cabo dizendo: “Radcliffe-Brown sul-africana era entre aqueles que di- foi um desastre”. ziam que a sociedade tradicional era a coisa a ser de algum modo protegida, Kuper conservada, revivida; e aqueles outros, Por que ele foi um desastre? como você, Radcliffe-Brown5e Macmil- lan6, que diziam que a situação se havia Schapera modificado tão completamente nas últi- Exatamente porque ele pregava contra mas duas gerações, que falar de socie- o apartheide, portanto, contra as nor- dade tradicional como algo ainda vital mas aceitas na sociedade branca e edu- era simplesmente ridículo. Essa era a cada da época, e acabou por afugentar divisão. E isso também era uma divisão as pessoas. política entre os que imaginavam ser possível ressuscitar a segregação e os Kuper que diziam “olha, nós temos uma socie- Mas ele atraiu outro tipo de gente, in- dade, e temos que arranjar um meio de cluindo o jovem Schapera. integrar as pessoas em uma única so- ciedade”. Certo? Assim, olhar para as Schapera situações correntes, situações integra- E então veio o jovem Schapera e disse: das, como seu foco principal, tinha im- “é assim que as coisas são”. E isso, na- plicações políticas. quele momento, seduziu os americanos que davam dinheiro para pesquisa. Eu Schapera fui famoso durante um tempinho, justa- Quais eram as implicações políticas? mente por isso. Também tive algum sta- tusna universidade, por estar atraindo Kuper dinheiro estrangeiro, coisa que Radcliffe- Implicações políticas na África do Sul, Brown por muito tempo, infelizmente, ao afirmar que era uma sociedade úni- não fez. ca, por exemplo. Kuper Schapera Isso foi na Universidade da Cidade do Sim, tem razão. Cabo, onde você começou como aluno de Radcliffe-Brown e onde você, mais Kuper tarde, o substituiria como professor? O que significava que era preciso haver uma política única para todo o país. Schapera Não pode haver segregação, não pode Sim. haver , nada disso funciona. 138 ENTREVISTA

Kuper “os Nama comem jabutis”. E eu me O que o trouxe para a antropologia? Vo- lembrei da minha antiga babá, cami- cê pretendia ser advogado… nhando comigo por uma colina, paran- do para pegar um jabuti, quebrando-o Schapera contra as pedras, acendendo uma pe- Tradição familiar judaica. Meu irmão quena fogueira, colocando rapidamen- mais velho era médico, meu segundo ir- te o jabuti sobre as brasas, e… eis nosso mão voltou-se para o direito… Mas na- jabuti assado. Pensei: “Ah! Disso eu me quela época em Namaqualand – que foi lembro”. E flautas de bambu. Você pe- a aldeia onde nasci, onde minha família ga uma haste de bambu e faz alguns fu- viveu e para onde fui muitas vezes em ros. Eu fazia quando criança. E até mes- férias – havia um cirurgião chamado mo a língua, que cheguei a aprender Laidler que possuía uma biblioteca um pouco. Então, eu pensei, estou na enorme. Ele era um antiquário. E eu co- soleira de casa. mecei a ler seus livros e fiquei interes- sado. No curso de direito na Cidade do Kuper Cabo, havia espaço no segundo ano pa- E após encerrar os estudos com Radcliffe- ra uma disciplina de livre escolha. Eu Brown, você decide sair e se tornar alu- escolhi antropologia por causa desse in- no de pós-graduação. teresse e porque eu gostava. Eu gosta- va das coisas que Radcliffe-Brown di- Schapera zia. Então, mudei do direito para a an- Isso era típico daqueles dias. Eu estava tropologia. completando o mestrado na Cidade do Cabo. Radcliffe-Brown, em seu último Kuper ano na Universidade, me disse: “Scha- O que lhe interessava dentre as coisas pera, se você obtiver uma distinção, que Radcliffe-Brown dizia? Porque ele consegue uma bolsa, e então pode es- não tinha nada a dizer sobre a etnogra- tudar com Malinowski, em Londres, ou fia sul-africana. com Lowie, na Califórnia”. A razão pa- ra isso, eu concluí, era que Lowie aca- Schapera bara de publicar um livro sobre socie- Não, não tinha. dade primitiva. Os Argonautasde Ma- linowski apareceu mais ou menos na Kuper mesma época8. Mas o interessante foi Então o que era? Radcliffe-Brown ter dito que se eu não conseguisse a bolsa, que fosse fazer Schapera trabalho de campo. Quer dizer, para Eu acho que o interesse na biblioteca ele, os estudos de pós-graduação eram do Laidler e também o fato de que, ao mais importantes que o trabalho de ler seus livros, eu lia sobre o que então campo. E eu penso que ele estava cer- se chamava, na África do Sul, os hoten- to. Eu vim para Londres para trabalhar totes. Hoje os hotentotes são correta- com Malinowski. Quando finalmente o mente denominados Khoi. No distrito conheci, ele me disse: “Sinto muito, es- de Little Namaqualand, onde eu nasci, tou com alunos demais. Seligman não havia uma população Nama, e os Nama tem praticamente ninguém9. Seligman eram uma tribo hotentote. Lendo um é África. Você vem da África. Não gos- daqueles livros eu vi a seguinte frase: taria de ser aluno do Seligman?” Você O PRESENTE ETNOGRÁFICO 139

tem a edição americana de Married “filho da mãe ingrato”*. Eu disse “Ok, Life…? você pode me chamar de filho da mãe. Mas por que ingrato?”. Ele disse: “Fui Kuper eu que consegui esse emprego para vo- Não, tenho a edição da Faber & Faber. cê”. Eu retruquei: “Achei que tinha si- do Seligman”. E ele: “Quando Selig- Schapera man sugeriu, eu não fiz objeção”. Eu Há uma edição americana prefaciada imagino que você se referia a essa bri- por Malinowski (1941), que eu desco- ga. Mas, no todo, Malinowski e eu nos nhecia completamente até conseguir demos razoavelmente bem. um exemplar. Ali ele diz: “Schapera foi um aluno do professor Seligman”. O Kuper que me deixa muito satisfeito, porque Creio que as pessoas não sabem disso, pelo menos evidencia que eu não era mas naquela época uma tese de Ph.D. um aluno de Malinowski! em antropologia não era baseada em trabalho de campo, mas na literatura Kuper existente e em fontes secundárias. Mas isso é, e ao mesmo tempo não é, verdade, pois, evidentemente, Malino- Schapera wski dominava o departamento, todos É verdade. Por isso Radcliffe-Brown os seminários teóricos eram dele, e por afirmou que eu deveria fazer o Ph.D. duas ocasiões você foi seu assistente de Na LSE, o livro de Firth sobre economia pesquisa. primitiva (1929) foi baseado na litera- tura. O meu também foi; o de Audrey Schapera Richards, Hunger and Work (1932), Certo. também.

Kuper Kuper Portanto, havia uma proximidade. A se- A exceção foi Evans-Pritchard (1937). gunda ocasião, aliás, terminou de modo Por que a tese dele foi baseada em tra- não muito amigável… balho de campo?

Schapera Schapera Eu tinha essa bolsa da universidade Não estou bem certo. Ele começou fa- que foi comutada de três para dois zendo trabalho de campo, estava no anos. Assim, no fim de meu segundo campo quando eu entrei. Ele fez a tese ano na LSE a bolsa estava acabando. sobre os Azande. Outro dos nossos con- Eu não tinha dinheiro, de modo que te- temporâneos foi Jack Driberg, que co- ria de sair sem obter meu Ph.D. Comen- meçou como comissário distrital no Su- tei com Seligman, que disse: “Se eu ar- dão e em Uganda, e escreveu um livro ranjar para que você dê um curso na sobre os Lango (1923). Só então foi para School por quatro meses, você fica e a London School fazer o Ph.D. Eu nun- completa o Ph.D.?” É claro que eu agar- ca lhe contei essa história? rei a oportunidade. Aí veio a famosa de- savença com Malinowski… Tínhamos discussões ocasionais, e uma vez, du- rante uma conversa, ele me chamou de *N. T. – No original, ungreatful little bastard. 140 ENTREVISTA

Kuper teoria em antropologia social, um novo Que história? modo de fazer antropologia, todos aqueles jovens brilhantes vindo se jun- Schapera tar a ele, e que seriam os grandes an- Seligman deu uma conferência no Ro- tropólogos da nova geração. Você sen- yal Anthropological Institute sobre “al- tia que tinha ali algum grande fermento gumas tribos pouco conhecidas do Su- intelectual, algumas novas idéias que… dão anglo-egípcio”. Driberg tinha esta- do no Sudão e disse ao Instituto que Schapera gostaria de dar uma conferência sobre Não. O que nós aprendemos com Mali- “algumas tribos ainda menos conheci- nowski foi que deveríamos estudar os das do Sudão egípcio”. Então, Evans- grupos como eles são, coisa que ele não Pritchard comentou comigo: “Schap, a fez; e estudar a totalidade da cultura, coisa está indo longe demais”. Puxou coisa que ele também não fez. A única uma caderneta e escreveu ao secretário outra coisa era que Malinowski fazia do RAI: “Sir (ou melhor, “Madame”, perguntas e com isso levava você a naquele tempo era Mrs. Merton que pensar. Radcliffe-Brown nunca fez nin- ocupava o cargo), eu gostaria de profe- guém pensar. Ele apenas ditava. Mara- rir uma conferência intitulada: “Algu- vilhosamente claro, é verdade, mas vo- mas tribos não existentes do Sudão an- cê não pensava nunca. Malinowski fa- glo-egípcio”! Conferência que, eu lasti- zia pensar. mo dizer, nunca foi dada. Kuper Kuper Ele fazia pensar, mas você tinha que Mas é capaz que ele a tenha escrito. chegar às mesmas conclusões que ele?

Schapera Schapera Sim. Ele era esse tipo de sujeito. Isso eu não sei. Não… Uma vez, não me lembro mais em que contexto, Mali- Kuper nowski me descreveu não como um Retrocedendo um pouco, você escreveu funcionalista, mas como um eclético. O o livro sobre os povos de língua Khoi que isto significava, não sei, mas queria baseado inteiramente em fontes secun- dizer que eu não era um funcionalista dárias (Schapera 1930). puro.

Schapera Kuper Bushmen and Hottentots… Não inteira- Mas você não era o único. Havia outros mente [baseado em fontes secundá- que não eram funcionalistas puros. rias]. Como eu disse, havia um pouco Evans-Pritchard foi um inimigo dos fun- de observação original: o jabuti, a flau- cionalistas. Ele não era funcionalista. ta de bambu, a língua, que aprendi com minha babá. Mas o resto foi inteiramen- Schapera te a partir da literatura. Certamente não.

Kuper Kuper E então houve todo aquele barulho so- Driberg certamente não era funciona- bre Malinowski estar criando uma nova lista. O PRESENTE ETNOGRÁFICO 141

Schapera Kuper Nós não éramos. Seligman também não. Como um daqueles mastros usados no dia 1ode maio [Maypole]11... Kuper Você quer dizer, os africanistas? Schapera Isso, como um daqueles. Ele perguntou Schapera sobre os postes e foi informado de que a Exato. comunidade estava realizando cerimô- nias de circuncisão. Relatou a história à Kuper Sra. Hoernlé, pessoa responsável pela Meyer Fortes também não tinha uma antropologia em Johannesburgo. Lá de- opinião muito boa a respeito de Mali- cidiram que se eu fosse a campo, deve- nowski enquanto pensador. ria visitar essa tribo, já que ainda prati- cavam costumes tradicionais. Quando Schapera eu estava a caminho, o missionário de Isso eu não sei. Fortes obteve o Ph.D. Mochudi escreveu um texto para o jor- em psicologia. nal Star, dizendo: que a investidura do principal chefe Bakgatla ocorreria no Kuper local. A tribo que a Sra. Hoernlé queria Depois veio Nadel, e ele também não que eu visitasse também era Bakgatla, via Malinowski como um pensador. então sugeriram: já que eu estava indo a Bakgatla, que aproveitasse e fosse Schapera primeiro a Mochudi para ver o princi- Eu creio que eles escolheram antropo- pal chefe tomar posse. Desse modo, logia porque, na época, havia poucos quando eu fosse ao Transvaal poderia empregos nas outras disciplinas, e ha- abrir meu caminho, dizendo: “Eu vi a via dinheiro para fazer trabalho de posse do chefe supremo de vocês”. E campo na África. Dinheiro da Fundação tudo foi arranjado. Conseguiram uma Rockefeller americana. permissão do governo para que eu fos- se a Mochudi junto com o comissário Kuper residente. Chegamos lá, mas na verda- Foi esse dinheiro que financiou sua pri- de assistimos apenas à posse oficial do meira pesquisa entre os Tswana, por in- chefe. A posse tradicional tinha ocorri- termédio do International African Insti- do bem cedo, no romper da manhã, e tute? nós chegamos na hora do almoço, a tempo de assistir apenas à posse oficial Schapera do governo. Aliás, meu primeiro infor- Não. Quando eu comecei – e isso era tí- mante naquele dia foi um jovem repór- pico do perfil antropológico daquele ter do Star, que me descreveu a cerimô- tempo –, as universidades sul-africanas nia de posse tradicional, que ele havia recebiam algum dinheiro do governo presenciado. Chamava-se Van der Post. para financiar pesquisas de campo. Ha- Laurens van der Post, meu primeiro in- via um geólogo do governo em trabalho formante. de campo no Transvaal do Norte, e esse sujeito se deparou, por acaso, com uma tribo, onde viu no meio do kraal10um poste alto, decorado, sabe, como um… 142 ENTREVISTA

Kuper Schapera Imagino que você teve informantes me- Era 1929. A Sra. Hoernlé saiu de licen- lhores depois. ça por um ano e me convidou para as- sumir seu lugar em Wits [Universidade Schapera de Witwatersrand, em Johannesburgo] Alguns antropólogos pelo menos acha- nesse intervalo. Isso foi em 1930, e eu vam que a gente estudava a cultura tra- havia terminado meu primeiro período dicional. Eles queriam que eu visitasse de campo. Então fui para Johannesbur- essa tribo por causa disso. Na verdade, go, permanecendo lá por um ano. E isso o que eles não sabiam é que o grupo de também era típico da época. Eu tinha Bakgatla era o ramo mais novo da se- uma turma: , Ellen Hell- ção do Transvaal, de sorte que se eu ti- manm, , Eileen Krige, todos vesse ido ao Transvaal [para falar da eles posteriormente ficaram famosos, posse] teria sido um fiasco. Mas eu gos- cada um seguindo o próprio caminho. tei do que vi em Mochudi… Conheci Um dia eu estava falando a esse grupo Isang Pilane [regente Kgatla] no dia da de alunos sobre os Bakgatla, quando posse do jovem chefe Molefi [ver foto Eileen Krige me interrompeu, dizendo: 9]. No mesmo dia, fui a seu encontro e “Nós deveríamos estar aqui fazendo perguntei se era possível estudar sua antropologia e não sociologia”, e saiu tribo. “Certamente”, ele respondeu. da sala. Tudo porque eu estava descre- Dois ou três dias depois eu estava sen- vendo como eram os Bakgatla na reali- tado na casa dele, e ele fazendo às ve- dade, que eles iam à igreja, usavam zes de intérprete. Havia duas mulheres roupas, alguns falavam inglês… e isso velhas que ele convocara para me da- não era antropologia para alguns antro- rem informações sobre deuses e magia. pólogos naquela época. Agora, pense Eu estava impregnado de magia na nos trabalhos que Eileen Krige fez de- época. Malinowski acabara de escrever pois… como a Sra. Thatcher, foi uma um livro sobre o assunto12. Então, che- guinada de 180 graus13. gou uma mensagem para o chefe, di- zendo que o missionário queria vê-lo. Kuper Ele respondeu: “Mandem o missionário É verdade. embora, eu estou ocupado escrevendo um livro com o Dr. Schapera”. Ora, Schapera quando um homem trata você assim, Mas você tem razão: alguns antropólo- não dá para sair dizendo “Vou ao Trans- gos ainda não estudam os grupos como vaal estudar povos atrasados”. Sabe, aí eles são. está a justificativa para o tipo de antro- pologia que eu fiz. Isang queria colocar Kuper sua tribo no mapa. Depois você conseguiu emprego na Universidade da Cidade do Cabo, onde Kuper permaneceu por um longo período14. Você estava então voltando da LSE. Que emprego conseguiu ao retornar à Schapera África do Sul? Eu comecei como pesquisador-assisten- te do professor, que era um homem cha- mado Barnard15. Barnard foi no início naturalista, botânico etc., tendo partici- O PRESENTE ETNOGRÁFICO 143

pado de uma das expedições ao Pacífi- Kuper co. Ele escreveu uma tese (1924) so- Você também escreveu Tribal Innova- bre… o que mesmo? Parentesco? Enfim, tors(Schapera 1970), uma versão total- a história de Barnard é que foram ofe- mente revisada de um estudo prévio, recidos a ele dois empregos, ou pelo publicado em 1943, intitulado Tribal Le- menos ele concorria aos dois. Um era o gislation among the Tswana of the Be- de aide-de-camp do governador da chuanaland Protectorate. Austrália Meridional, que ele não pôde aceitar por ser casado. O outro foi uma Schapera cátedra na Universidade da Cidade do Este foi um trabalho meu mesmo, mas Cabo, por ele ter escrito uma tese sobre era uma abordagem histórica. parentesco. Kuper Kuper Ali você explicava a mudança recuan- Mas ele acabou decidindo que você era do bastante, até o final do século XIX. a pessoa mais indicada para o cargo. Schapera Schapera Foi uma grande decepção. O que eu Ele acabou cansando. Não tinha gran- tentei mostrar nesse livro foi que muitas de interesse em antropologia. Seu inte- mudanças ocorreram porque determi- resse principal eram as plantas. Aliás, nados indivíduos – nesse caso, os che- quando ele se aposentou, comprou uma fes – as desejavam. Mas naquela época casa perto de Bournemouth, onde foi não estava na moda dizer que as mu- plantar tulipas. danças aconteciam porque os indiví- duos assim desejavam. Kuper Ele foi plantar tulipas e você virou pro- Kuper fessor. Mas vamos voltar à Cidade do Cabo, onde você escrevia sobre os Tswana. Schapera Ali você também se envolveu com o Exato. comitê interuniversitário para estudos africanos. Kuper E nas férias você fazia trabalho de cam- Schapera po em Botsuana. O governo tinha dado dinheiro [para desenvolver pesquisas em estudos afri- Schapera canos]. Smuts (então primeiro-ministro Sempre que podia. Era um trabalho da África do Sul) queria financiar pes- atrás do outro. Havia o problema da mi- quisas em arqueologia, mas não antro- gração da mão-de-obra que afetava pologia. O rumor é que Smuts acredita- muitos jovens em busca de trabalho va que os arqueólogos estudavam ins- (Schapera 1947). E havia o problema da trumentos de pedra, e que estes, ao escassez de terra, e como resolvê-lo contrário dos nativos, não querem vo- (Schapera 1943a). tos. Portanto, seria mais seguro dar di- nheiro para a arqueologia. Mas no fim das contas convenceram-no, e algo em torno de 5 mil libras foi dado às univer- 144 ENTREVISTA

sidades para que financiassem traba- Kuper lhos de campo. Então foi criado um co- Mas, em 1948, o Partido Nacionalista mitê para decidir como distribuir o di- Africâner chegou ao poder na África do nheiro. Era o que nós fazíamos. Sul, e você decidiu partir. A relação en- tre esses dois fatos foi de causa e efeito? Kuper Você não tomava parte em questões na- Schapera cionais? Não. Eu não sei se deveria dizer isto, mas no início de 1950, quando a cáte- Schapera dra de antropologia em Cambridge va- Não. gou, Evans-Pritchard escreveu-me di- zendo: “Olha, a cátedra aqui em Cam- Kuper bridge está vaga. Eu estou no comitê de Você se preocupava com os caminhos seleção. Não posso prometer nada, mas que seu país tomava? acho que você deveria se candidatar”. Depois chegou uma carta do professor Schapera Hutton, que estava se aposentando, so- A gente tinha que se preocupar. Mas licitando, ou sugerindo, minha candida- para minha sorte, e para azar de pessoas tura. Candidatei-me e precisava arran- como Gluckman16, ninguém se preocu- jar cartas de recomendação. Escrevi a pava com essas coisas em Bechuana- Firth, que na época era professor na land. Era um país – pelo menos era mi- LSE. Ele respondeu: “Com prazer lhe nha impressão na época – absolutamen- dou uma recomendação, mas eu o indi- te “livre de raça” [race free]. Só uma quei para uma cátedra em Londres e vez… Eu viajava junto com um comissá- você já foi escolhido pelo comitê de se- rio distrital – era assim que eu viajava, leção”. E ao mesmo tempo pousaram pois não tinha carro. Nós chegamos a em minha mesa duas cartas: uma de um local, onde havia uma cerca, com um Evans-Pritchard, outra de Fortes. Evans- portão, e um menino correu para abrir o Pritchard dizia que Fortes havia sido se- portão. O comissário atirou um cigarro lecionado porque o comitê em Cam- para o menino que respondeu: “Dankie, bridge queria alguém de Oxbridge. Baas”. O homem saltou do carro, foi até Fortes se desculpava, lamentando que o garoto e falou: “Neste país nós não di- eu não fora selecionado, mas que, afi- zemos Baas”. Eu disse: “Graças a Deus, nal de contas, essas coisas acontecem. aqui não há diferença de cor”. E ele: Três semanas depois, recebo uma outra “Morena é o que dizemos”. Morena carta, de Londres, comunicando que eu significa “Senhor” [Lord]. Então… havia sido selecionado para a School. Foi por isso que eu saí, e não por causa Kuper do apartheid. Então essa era a diferença. Kuper Schapera Você veio para a LSE em 1950 e aqui Assim, eu podia ir aonde quisesse. Ao permaneceu até se aposentar. Aí você contrário de Gluckman que foi impedi- começou a fazer outro tipo de pesquisa, do de transitar livremente na Zululân- sobre Livingstone. Ou você já vinha dia. Essa era a diferença, a única dife- pesquisando os textos de David Li- rença política. vingstone desde antes? O PRESENTE ETNOGRÁFICO 145

Schapera pólogo chamado Hughes17. Ele estava Não, mas foi um desenvolvimento natu- indo trabalhar com os Matabele. Eu ral. Você faz a pesquisa documental, estava lá por conta de alguma confe- depois você volta às fontes. Livingstone rência e perguntei se ele lera tal e tal foi uma das primeiras fontes sobre Be- livro sobre os Matabele. Ele respon- chuanaland. Posteriormente foram des- deu: “Ah, não. Max Gluckman me dis- cobertos alguns de seus manuscritos. É se para não ler nada sobre os Matabe- óbvio que se há manuscritos, supõe-se le, para que eu possa chegar a campo que haja muita informação nunca pu- com a mente arejada, sem preconcei- blicada. Daí meu interesse. tos”. Ao contrário, Firth, eu e outros, fomos fazer nosso Ph.D. sobre fontes Kuper documentais. Em outras palavras, des- Você editou alguns volumes com textos cubra tudo o que puder antes de ir. As- e correspondências de Livingstone, e sim, no mínimo, fica-se sabendo o que acabou se tornando uma autoridade em não se sabe. Livingstone (Schapera 1959; 1960). Kuper Schapera Porém, você tinha mais a perspectiva Eu já tinha feito esse tipo de coisa, com histórica, a consciência histórica, que Moffat, que eu editei ainda na Cidade permitiu realizar esse tipo de trabalho, do Cabo (Schapera 1951). fazer as perguntas certas.

Kuper Schapera É verdade. E você também publicou Eu tinha também um material histórico aqueles primeiros estudos sobre os ho- bem melhor. tentotes (Schapera 1933). Estou enfati- zando este ponto porque você, certa- Kuper mente, é o único da sua geração de an- Mas há ainda uma outra categoria de tropólogos, que eu me lembre, a publi- trabalhos seus: os textos que escreveu car edições acadêmicas das fontes mais em Setsuana, para as escolas (Schapera antigas sobre a região que estudou. É o 1938b; 1940b). tipo de trabalho de um historiador, e não de um antropólogo. Schapera Isso foi, primordialmente, um meio de Schapera aprender a língua junto com meus as- Mas, uma razão para eu ter consegui- sistentes. Muitos deles eram professo- do fazê-lo é que eu já havia realizado res que haviam sido suspensos por um trabalho de campo. Eu conhecia o po- ano, impedidos de lecionar, por terem vo, conhecia a língua, de modo que era feito o que aparentemente muitos pro- capaz de selecionar alguns outros li- fessores fazem: engravidar alunas. Al- vros sobre a região. Quando se vai fa- guns não tinham o que fazer, e acaba- zer trabalho de campo, você vai com a ram ficando à toa. Então, eu costumava cabeça totalmente vazia, tábula rasa? solicitá-los: “Gostaria de saber sobre tal Vai sem saber nada sobre o povo? No assunto, quando você vier amanhã. Vá Rhodes-Livingstone Institute, que fica- para casa e escreva um texto para va na então chamada Federação da mim”. Malinowski fez tamanho alarde África Central, eu conheci um antro- sobre a coleta de textos em Coral Gar- 146 ENTREVISTA

dens, que nós passamos a acreditar na tos são documentos literários tremenda- coleta de textos. A grande vantagem é mente importantes em Botsuana. que você repassava o texto com o pró- prio sujeito que escreveu, e assim apren- Schapera dia a língua. Portanto, eu tinha essa co- Sim. Esses textos nunca haviam sido es- leção de textos, que forneceram mate- critos, até eu os transcrever. Com o pas- rial para os livros escolares. sar do tempo iam saindo da memória das pessoas, de sorte que os textos mais Kuper antigos do livro vêm de duas ou três ge- E ainda são usados em Botsuana. rações atrás, o resto foi esquecido. Foi um bom trabalho. Vem sendo feito em Schapera outras partes da África do Sul também. Ainda são. Kuper Kuper Você tinha a sensação de que seu tra- Quer dizer que se alguém for a Botsua- balho deveria abranger tudo? Casa- na hoje e perguntar sobre a história tra- mento, poemas de louvor, direito, pro- dicional de alguma aldeia, eles vão re- priedade da terra, tudo. Você é o soció- citar esse maravilhoso discurso a partir logo, você é o historiador da cultura, vo- de Schapera? cê é o historiador.

Schapera Schapera Isso mesmo. Apenas uma coisa eu não abarquei, e nem poderia: a música. Eu sempre tive Kuper um péssimo ouvido, nunca me interes- Falando sobre coleta de textos, você sei por música. Uma vez, chegando a reuniu os Praise-poemsof the Tswana Mochudi encontrei o Kirby, que era na Chiefs(1965). Um dia, nos anos 80, eu época professor de música da Universi- fui convidado para uma conversa infor- dade de Witwatersrand. Perguntei a ele: mal com o presidente de Botsuana, “que diabo você está fazendo, invadin- Quett Masire. Ele me afirmou que, em do meu campo aqui em Mochudi?” Ele sua opinião, o livro mais importante so- estava fazendo música, é claro18. Aí eu bre Botsuana é Praise-poemsof the vi que ele tinha tanto direito de realizar Tswana Chiefs, de Schapera, que lia seu trabalho ali quanto eu de realizar o com freqüência. meu. Mas, novamente, isso era típico da antropologia daqueles dias. Era o que se Schapera chama hoje em inglês NIMBY: not in my É muito gratificante. backyard– no meu quintal, não! Por exemplo, imagino que Firth pretendia ir Kuper a Trobriand, mas Malinowski disse não. E ele citou de cabeça uma passagem de Era intriga entre amigos, no fim das con- um dos poemas, um texto Ngwaketse tas. Já que eu estive lá, ninguém mais creio eu, em que apareciam algumas pode ir. Mas aí eu percebi que era pura palavras arcaicas. Disse que consultou estupidez pensar que o Kirby não podia alguns velhos e que eles responderam: ir a Mochudi fazer uma coisa que eu ja- “Sim, a transcrição de Schapera é rigo- mais conseguiria fazer, mesmo que esti- rosamente correta”. Ou seja, esses tex- vesse lá só para isso. O PRESENTE ETNOGRÁFICO 147

Kuper Schapera Com exceção da música, você fez de tu- O grande perigo é que hoje as pessoas do. Tudo o que, hoje em dia, seria obje- – algumas pelo menos – estão tendo a to do lingüista, do etnógrafo, do histo- opinião de que eu sou a fonte de tudo riador, do literato, do estatístico. isso. Bathoen, que foi o último chefe dos Bangwaketse, escreveu-me (certa vez Schapera dei a carta aos Comaroffs) dizendo que Era o velho grito de guerra do funcio- havia começado a escrever a história do nalismo: estudar os povos como eles seu povo e estava emperrado sem saber são, e estudar tudo. Então a gente ten- quem era o chefe em uma determinada tava. época, e me perguntava se eu não faria o favor de informar. Ora, quando o che- Kuper fe de uma tribo me pergunta uma coisa Não só você estudou tudo, como não es- dessa, algo vai mal com a tradição que tudou apenas uma única tribo. Você deveria estar sendo transmitida. Isso é não estudou apenas os Bakgatla, você perigoso. Eu acho que… Bem, pelo me- fez trabalho de campo em várias outras nos o que está registrado é bom, mas a tribos de Botsuana. minha memória… não dá para confiar cegamente. Portanto, algumas dessas Schapera histórias que eu conto, tome cum grano Era o lado governamental da coisa, vo- salis. cê tinha que ir a campo trabalhar com as outras tribos. Kuper Mas certamente você é muito reveren- Kuper ciado hoje em Botsuana. A Universida- Os estudos mais gerais, sobre composi- de de Botsuana lhe deu o título de dou- ção étnica e todos aqueles censos, foram tor honoris causa; você é nome de rua realizados por requisição do governo em Gaborone; a Sociedade Botsuana (Schapera 1952). Mas o fato é que ago- publicou um volume dedicado a você; ra, olhando para trás, eles são as fontes há exposições no Museu Nacional de dos pesquisadores que hoje trabalham Botsuana com coleções suas. na África do Sul e em Botsuana. São fontes históricas. Com eles pode-se ter Schapera uma noção básica de como era o país, Fico muito feliz com isso, porque houve em cada um dos seus aspectos, no pe- um tempo em que as pessoas andaram ríodo entreguerras.Recebi recentemen- dizendo que os antropólogos, em geral, te um e-mail de uma senhora que ensi- eram contra as populações estudadas. na antropologia na Universidade de Gordon Brown, por exemplo, meu con- Botsuana. Ela escreveu o seguinte: “No temporâneo na London School of Eco- final dos anos 70, o senhor enviou al- nomics, quando foi a campo em Tanga- guns estudantes a Botsuana para repetir nica teve que se dizer sociólogo, e não os censos que Schapera fez nas aldeias antropólogo, pois ele estudava o povo nos anos 30. Agora nós gostaríamos de como era naquele momento e não como repetir mais uma vez esses estudos”. Ou havia sido tempos atrás. Portanto, quan- seja, a base para a demografia das al- doo povo de Botsuana batiza uma rua deias de Botsuana ainda é o censo que com meu nome, ou me confere um títu- você realizou no começo dos anos 30. lo honorífico, isso mostra que não consi- 148 ENTREVISTA

deram meu trabalho como algo que vro. Queira por favor retornar a fim de lhes seja prejudicial. contestá-las”. Eu então enviei um tele- grama a um amigo advogado, Stanley Kuper Field, e pedi que verificasse o caso, des- Creio que isso é, em larga medida, a cobrisse o que estava acontecendo. maior corroboração da sua estratégia. Agora vem o lado da história na Cidade Prova que funcionou. As próprias pes- do Cabo. Field contatou Buchanan e a soas olham para trás e dizem: “foi a coi- queixa era a seguinte: a minha descri- sa certa”. No entanto, não houve um ção do ato sexual entre os Kgatla estava pequeno problema quando você publi- muito próxima do modo como os civili- cou Married Life in an African Tribe? zados, europeus, faziam sexo. Não ti- Pelo fato de o livro tratar não apenas de nha nada de exótico no meu relato. Foi casamento, mas também de relações isso que aborreceu Buchanan e as “pes- sexuais, o que acabou por irritar os che- soas sérias” da Cidade do Cabo. fes mais puritanos. Kuper Schapera E como terminou a história em Bechua- Não. Tshekedi era o chefe dos Bangwa- naland? to e tinha um consultor jurídico na Ci- dade do Cabo, chamado Buchanan. Schapera Tshekedi uma vez me perguntou se a Como eu disse, ficamos sabendo de tu- universidade tinha um curso de direito do pelo rádio, a história das graves acu- por correspondência. “Não, por quê?”, sações etc. Buchanan comunicou o fato eu falei. Ele respondeu: “É que o Bu- a Tshekedi, e o comissário residente de chanan está nos custando 300 libras/ Bechuanaland, Arden-Clarke, fez sua ano de honorários”. Foi por isso que ele visita de rotina a Ngamiland, avisando- enviou Seretse19à Inglaterra, para fazer me de que se Tshekedi reclamasse do o curso de direito. O fato é que Bucha- meu livro, eu teria que me retirar de Be- nan era um KC20e consultor de Tsheke- chuanaland, pois me tornaria persona di. Em 1940, sai o Married Life in an non grata aos olhos dos chefes. Na rea- African Tribe. Buchanan, como consul- lidade, a história foi esfriando. Não sei tor jurídico, lia tudo que aparecia sobre se o Tshekedi chegou a reclamar. Mas, Botsuana, e leu o livro. Ficou horroriza- como você disse, havia a possibilidade do. Então, chamou o arcebispo da Cida- de acontecer. de do Cabo e mostrou-lhe alguns tre- chos. O arcebispo ficou horrorizado. Os Kuper dois foram ao diretor da universidade, Que outros problemas desse tipo, ou de que acabou por me mandar um telegra- outro tipo, você teve com os chefes ou ma. Eu estava em Maun, Ngamiland. com a administração enquanto fazia Naquela época, aos sábados, escutáva- sua pesquisa? mos as mensagens do rádio vindas de Mafikeng. Todos nós escutávamos o rá- Schapera dio, é claro. Era uma hora por semana. Novamente essa questão de estudar os [Veio a mensagem] Para o professor grupos como são no presente e não co- Schapera, do diretor da Universidade mo foram no passado. Houve uma con- da Cidade do Cabo: “Graves queixas ferência em Serowe, “quartel-general” foram levantadas em relação a seu li- dos Bamangwato, reunindo professores O PRESENTE ETNOGRÁFICO 149

nativos vindos de fora. Entre outras coi- esta série de fotos de uma mulher fa- sas, os professores estavam apresentan- zendo potes de cerâmica [ver foto 4]. do um concerto para o público. Achei Naquela época não tínhamos filmes, is- que seria interessante se houvesse uma to é, não havia câmeras de filmagem apresentação de dança tradicional, e que se pudesse levar a campo. Mas se perguntei ao encarregado da conferên- podia tirar instantâneos. Uma série de cia se não se poderia arranjar que al- dez fotos do fabrico de um vaso de ce- guns professores, ou até mesmo alguns râmica, mostrando os estágios, é sem dos Bamangwato, mostrassem à au- dúvida muito mais realista do que al- diência danças tradicionais. E eles o fi- guém narrando como se faz um vaso. zeram. Depois Tshekedi veio me dizer que aquilo não tinha sido correto de mi- Kuper nha parte. Eles queriam mostrar que Essa é uma das minhas preferidas [ver eram capazes de executar danças mo- foto 1]. É uma fotografia que você nos dernas, dança de salão, e não dança deu, eu tenho na parede até hoje. tradicional. Eis-nos de volta à questão de estudar os povos como são ou como Schapera foram. Era a reclamação de Macmillan O que eu gosto nessa foto é que mostra e de outros: achava que os antropólo- a diferença entre os trajes típicos dos gos só estavam querendo estudar os po- rapazes e das moças, bem como entre vos como haviam sido, e não como são. os trajes da mãe e dos dois filhos. E eu caí nesse erro, pedindo que voltas- sem a ser do jeito tradicional. Foi um Kuper dos meus poucos erros ali, creio eu, e as E aqui é Mochudi. Em 1930? pessoas se ressentiram. Schapera Kuper 1929. Mostra o Kgotla21tribal, e adiante Você também fez todas essas fotogra- o kraal, onde tradicionalmente era se- fias. Hoje entendemos que elas são, em pultado o chefe da tribo [ver foto 5]. si, documentos etnográficos valiosos. E Aliás, ele foi mesmo enterrado aí. elas vão ser publicadas em livro. Você se considera um fotógrafo? Tem interes- Kuper se na fotografia como arte? Se houvesse equipamentos modernos à disposição, você teria feito filmes etno- Schapera gráficos também? Não. Vejo a fotografia como parte do re- gistro documental: notas de campo e fo- Schapera tografias, as duas coisas juntas. Mas, Certamente. Exceto que… não sei… Dá certamente… para colocar filmes em um livro? Eu não sei muito bem o que fazer com filmes Kupe etnográficos. Certamente? Kuper Schapera O fato é que você estava documentan- Penso que, olhando as fotografias, se do tudo, com todos os meios disponíveis extrai muito mais de mim do que atra- à época. Mostrando como as coisas são, vés apenas das minhas palavras. Veja e de que modo se tornaram o que são. 150 ENTREVISTA

Olhando essas fotografias você vê um Kuper carro de boi, uma venda, uma igreja. Sem segredos, então? Elas estão aí na aldeia, são parte da al- deia, tanto quanto… Schapera Sem segredos. Schapera Agora, repare aqui [ver foto 3]. Tirando Kuper o fato que as casas são colmadas no es- Ele se sentia muito satisfeito em lhe tilo tradicional, uma coisa importante a transmitir o que sabia… se notar são esses dois mastros. Você passa e eles não significam nada, até Schapera que você resolve perguntar. Eles indi- Muito satisfeito. cam que há alguém doente na casa, e não se deve entrar. Essa é uma das van- Kuper tagens de carregar sempre a câmera fo- … compartilhando informação. O que tográfica. Você dobra uma esquina e se você lhe dava em troca? Contava a ele depara com isto: um grupo de mulheres quais eram as práticas do fazedor de fazendo o telhado de uma casa. Muito chuva Tsonga? diferente, voltando a Malinowski, das fotografias posadas de cerimônias das Schapera jovens púberes em Trobriand. Essa foto Eu pagava, como paguei a todos meus aqui não é posada. Se eu não tivesse informantes. Se eram professores, rece- dobrado a esquina com a câmera na biam o equivalente [à féria diária]. Ne- mão, não teria feito a foto. Isso fala mais nhum absurdo. Por que não? Aí está. que a descrição: mulheres cobrindo [Mostra a fotografia do fazedor de chu- uma choupana. Mostre a foto, e pronto. va]. Ele me convidava. Isso aqui foi nas terras dele. E aqui é um pote de fazer Kuper chuva para a cerimônia da chuva. Aqui As pessoas nunca fizeram objeção a ele está queimando remédios de chuva você tirar fotografias? para invocar as nuvens. Enfim, nenhum segredo. Schapera Não. Este aqui é o “fazedor de chuva” Kuper da tribo [ver foto 7]. Ele trouxe todos os Cem anos antes disso, Livingstone, na seus medicamentos para eu ver. Esse mesma região, teve uma grande discus- sujeito… é típico, ficamos muito ami- são com o fazedor de chuva, tentando gos. Ele morava a uns 20m de onde eu convencê-lo de que aquilo era contra a ficava, e uma vez mandou seu filho me vontade de Deus. Cem anos depois ele levar uma mensagem: eu deveria en- continua fazendo a cerimônia. Havia contrá-lo à noite, porque ele iria “ben- conflitos entre tradicionalistas e pro- zer” uma casa nova. Respondi: “é uma gressistas? Havia gente dizendo: “nós pena, mas infelizmente não poderei ir temos que fazer mágica, temos que fa- essa noite, pois o comerciante combi- zer essas coisas tradicionais”, enquanto nou uma partida de bridge”. Ele disse: outros diziam: “não, essas coisas per- “Ok, iremos amanhã à noite”. E fomos. tencem ao passado, não são cristãs”? Ele adiou a cerimônia. Ou era todo mundo bastante eclético? O PRESENTE ETNOGRÁFICO 151

Schapera história aconteceu em 1926-27. Você Não sei. Dei o exemplo da dança que pode ler em Tribal Innovatorsque os Tshekedi reclamou. Uma vez, Isang chefes aboliram o bogwera. Aí você vai mandou um velho para trabalhar comi- a Mochudi, e em vez do antigo bogwe- go, como informante. Chamava-se Ra- ra, os rapazes são circuncidados no hos- kaban, eu tenho a foto dele em algum pital. Isso depois da minha época. Tudo lugar. Tinham me dito que esse homem isso acabou. O pai de Tshekedi – Kha- fora professor nas cerimônias de inicia- ma – aboliu o bogadi[preço da noiva]. ção, e que estivera com os Bakgatla Mas quando a filha de Tshekedi casou, quando eles ainda viviam no Transvaal. foram oferecidas 108 cabeças de gado Ele falava africâner, eu também – isso como preço da noiva. É um ciclo que no começo, antes de eu falar a língua continua… [Tswana]. Ele havia lutado contra os bôeres em 1900, apreendido muito ga- Kuper do etc., e era conhecido como um agte- Então, não se trata apenas de moderni- rosde Paul Kruger [presidente da Re- zação. É a mudança sem direção, da pública do Transvaal], quer dizer, um qual não se tem certeza… boi do coice*. Na época em que ele es- tava no Transvaal, havia infestação de Schapera mosca tsé-tsé na área. Paul Kruger cos- O mesmo se dá com a teoria antropoló- tumava colocar os Bakgatla para puxar gica: os modismos voltam. Não há dúvi- sua carroça pelas áreas onde havia da. Quem está ressuscitando Hocart? moscas, e o Rakaban era o sujeito que puxava a carroça. Um dia, estando com Kuper ele, perguntei: “Meu velho, me disse- Só para completar meu quadro, você ram que você costumava ensinar no voltou a Botsuana pela última vez na bogwera” [escola de iniciação de rapa- década de 80. Aproveitou a oportunida- zes]. “Conversa fiada” ele disse, e foi de para visitar antigos lugares e rever embora. Fiquei sem vê-lo por quatro se- velhos amigos? manas. Ele simplesmente se recusou a aparecer. Esse foi meu grande erro. Ele Schapera ficou alarmado. Isso mostra que é preci- Não tinha mais ninguém, com exceção so ser muito cauteloso com certos as- de um homem. Todos os outros morre- suntos. ram.

Kuper Kuper Ele ficou alarmado porque o bogwera Mas quando fomos juntos, por volta de era secreto? 1985, você visitou o Bathoen, ex-chefe dos Ngwaketse, com quem havia traba- Schapera lhado nos anos 30. Ele ainda vivia na Era secreto e havia sido abolido naque- mesma casa onde você o encontrou cin- la tribo. Em 1901 houve o último. Essa qüenta anos atrás. E foi muito interes- sante ver dois velhos amigos se reen- contrando daquele jeito. Ele estava hos- *N. T. – “Animal que, em um carro de bois, faz parte da dupla que se acha diretamente ligada ao pedando uma jovem aluna minha – veículo” (Novo Aurélio – O Dicionário da Língua uma das alunas que levaram adiante a Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999) sua pesquisa. E o Bathoen, ele e a espo- 152 ENTREVISTA

sa, tomavam conta dela com muita se- Kuper veridade, controlando os horários em Foi quando você decidiu se aposentar? que ela devia estar em casa à noite, cer- tificando-se que ia à igreja aos domin- Schapera gos… Eu estava doente e cansado. Eu era um mau professor, nunca gostei de lecio- Schapera nar. Era um mau conferencista. Daí, me Em outra ocasião, Isang e a irmã tive- aposentei satisfeito. Isso foi logo depois ram uma briga. Ela tinha recebido es- de Eggan22vir à Inglaterra. Eu o conhe- ses potes de fazer chuva, que eu foto- ci em Chicago e ficamos amigos. Con- grafei, e não queria cedê-los ao irmão. versávamos em uma ocasião, e ele me Ele, então, devolveu à família do mari- disse: “Schap, não entendo a antropo- do da irmã todo o gado-bogadi, isto é, o logia moderna”. Aí eu disse: “Graças a preço da noiva, que aqueles tinham pa- Deus, um parceiro!” E hoje você toma go. Isso, na verdade, significava que conhecimento de encontros de antropo- Isang estava formalizando o divórcio de logia e conferências para discutir inten- sua irmã. Então, o marido escreveu-me cionalidade. Que diabos é intencionali- perguntando: “O que significa isso? O dade? Eles inventam termos. Não, isso que vamos fazer?” Eu não sabia. Mas o não é mais antropologia. fato é que esse apelo a mim, creio eu, é o reconhecimento de um falso status Kuper que eles me concederam. Quando seus Tudo bem, isso não é mais antropologia. informantes começam a lhe fazer as Lá atrás, quando você começou a lecio- perguntas, algo está errado, mostra que nar, Eileen Krige saiu da sala dizendo a tradição está escapando, indo embo- que você não ensinava antropologia, ra. Portanto, acaba sendo bom que as mas sociologia. coisas estejam escritas. Schapera Kuper É verdade. Enfim, depois de fazer esse tipo de an- tropologia por trinta anos, você voltou à Kuper antropologia britânica do pós-guerra, E agora você está dizendo que o que que era, então, uma antropologia pós- eles fazem hoje não é mais antropolo- Malinowski, pós-Radcliffe-Brown, com gia. Afinal, o que é antropologia, essa novos debates surgindo. Como você viu coisa que não é mais? tudo isso? Schapera Schapera Eu não sei realmente. Veja… Em 1950 ainda estava tudo ok. Então, veio o famoso 1968, quando aqueles jo- Kuper vens americanos que fugiam do recru- Mas você sabe o que a antropologia tamento vieram se refugiar na London não é. School. Eu acho que foi nessa época que ocorreu uma mudança na antropo- Schapera logia. Você falou há pouco dos trabalhos que eu fiz em Bechuanaland para o gover- no. Naquele tempo, a opinião geral era: O PRESENTE ETNOGRÁFICO 153

se se trata de nativos, é antropologia; Kuper não importa o que… é antropologia. Em Mas você sempre se viu como uma es- certa época, houve reclamações dos na- pécie de cientista social, ou mais como tivos da região de Tati: “Não temos ter- uma espécie de historiador? Se tivesse ra suficiente. Precisamos de mais ter- que escolher… ra”. Aí o governo diz: “mandem o Scha- pera investigar, pois são os nativos que Schapera querem mais terra”. Ora, diabos, eu Eu costumava me definir como etnógra- não sabia absolutamente nada sobre is- fo. Eu descrevo o povo. so. Mas eu tive que ir lá, descobrir se realmente a terra era insuficiente para Kuper eles. Falei com o comissário do distrito, Que é como Evans-Pritchard veio a se falei com os nativos, e então escrevi um definir. relatório dizendo que havia escassez de terra. E o governo responde: “É falso”, Schapera e envia um técnico agrícola, um comis- Sim. Uma vez dei uma palestra em sário nativo e outras três pessoas para Cambridge – me pediram para falar. corrigir meus erros. Essa equipe então Nessa ocasião eu disse: “Eu não sou an- diz: “Schapera não carregou suficiente tropólogo, não sou historiador. Eu sou nas tintas. A coisa é muito pior do que um etnógrafo”. O mais próximo do que ele descreveu”. Enfim, o que estou que- eu poderia me considerar é um historia- rendo dizer é o seguinte: para o gover- dor econômico: alguém que senta e es- no, se tinha nativos no meio, a tarefa creve sobre, digamos, a Inglaterra no era do antropólogo. Portanto, isso era século XII. O que essa pessoa descre- antropologia, independente de qual- ve? Ela usa documentos atuais, mas es- quer coisa, fosse o que fosse. E isso é creve aquilo que um antropólogo à mo- nonsense. E hoje em dia, as pessoas não da antiga escreveria: como os ingleses sabem… eu não sei o que é a antropolo- viviam no século XII, por exemplo. gia moderna. É qualquer coisa; vai lá e estuda a prostituição no East End em Kuper Londres; isso é antropologia se é feita Se você fosse um certo tipo de antropó- por alguém que possui um diploma de logo moderno, e escutasse essa sua des- antropologia. Como eu disse, é puro crição, iria dizer: “Ah, o Schapera não nonsense. Participei uma vez de um se- tem uma teoria”. minário interdisciplinar na Cidade do Cabo, com professores de sociologia, de Schapera economia, entre outros. Batson era o É verdade, eu nunca tive uma teoria. professor de sociologia. Perguntei a ele Um dia, na verdade, Radcliffe-Brown o que era sociologia. E ele: “Se uma co- me disse: “Schapera, é hora de você co- munidade tem mais de vinte mil habi- meçar a escrever teoria”. Radcliffe- tantes, é sociologia; menos de vinte Brown tinha uma teoria da personalida- mil, é antropologia”. E eu pergunto: de social. Firth tinha uma teoria das es- que sentido se pode tirar desse tipo de truturas sociais ou coisa que o valha. coisa? Malinowski tinha várias teorias. Onde elas estão? Sepultadas em livros que ninguém lê. Teorias passam. 154 ENTREVISTA

Kuper Schapera O importante, então, o que fica é… Não.

Schapera Kuper A etnografia. Nunca? Ateu a vida toda?

Kuper Schapera As descrições de como as coisas são, e Olha, uma coisa boa é que fui educado de como elas eram. em uma família que se poderia chamar de moderadamente ortodoxa. E eu era Schapera o que se poderia chamar de um bom E é por isso, sem dúvida, que eu voltei a menino judeu. Quando minha mãe fa- Livingstone e aos outros. Eles descreve- leceu naquela época, eu passei por to- ram aquilo que viram na época. do o ritual de luto – nove meses, creio eu. E não era nada bom. No final, disse Kuper a meu pai que não acreditava naquele Então, você é o Livingstone do século tipo de coisa, e perguntei se ele se im- XX, só que sem a religião. portaria se eu não fosse mais à sinago- ga. Ele disse: “Eu mesmo também não Schapera acredito, mas achei que você deveria Na verdade, eu acho que o mais próxi- ter uma educação ortodoxa”. Então, es- mo seria um historiador econômico, al- tava tudo bem. Ele concordou comigo, guém que tenta reconstituir a socieda- e eu lhe sou agradecido por ter me da- de inglesa na era elisabetana, e assim do esse background. por diante. Kuper Kuper Sem religião, sem engajamento políti- Embora não tivesse religião, você se in- co, sem teorias antropológicas. teressou pela Bíblia (Schapera 1955). Você leu a Bíblia em hebraico ou em in- Schapera glês? Nada. Não, eu prefiro voltar ao que Ma- linowski disse sobre mim: eclético – de Schapera tudo um pouquinho. Eu lia em hebraico, quando era garoto. Eu tirava boas notas em hebraico, he- Kuper braico clássico e latim. Hoje não consi- Você disse que não gostava de ensinar, go nem ler em hebraico, e o latim já foi mas, o fato é que você orientou, inspi- para os quintos. A memória vai embora. rou, ou estimulou, muitas pessoas a dar Mas lendo a Bíblia, e depois me tornan- prosseguimento às suas pesquisas na do antropólogo… você acaba interessa- África do Sul. do nos temas bíblicos, e passa a estu- dá-los. Schapera De que modo? Kuper Mas você nunca teve um interesse reli- Kuper gioso? Eu apareci dizendo que gostaria de fa- zer trabalho de campo na África do Sul, O PRESENTE ETNOGRÁFICO 155

mas não tinha permissão para trabalhar lá. Aí você disse que havia uns grupos, que você visitara certa vez, que não ha- viam sido estudados ainda… Werbner foi a Botsuana, você o estimulou, conse- guiu que ele fosse. Também Jean e . Todo esse pessoal, ao longo desses vinte, trinta anos, pessoas que passaram por você e trabalharam com você. E mesmo quem não era ofi- cialmente seu aluno, você tratava como se fosse.

Schapera E, sem dúvida, você roubou essa pági- na do meu roteiro, quando enviou os seus alunos de Leiden a Botsuana, não foi?

Kuper De fato. Mas, novamente aqui, você apareceu, visitou-os em Leiden, con- versou com eles, encorajou-os, e conse- guiu que eles fossem. E até hoje em dia, as pessoas que estão escrevendo sobre Botsuana procuram você, vêm fazer perguntas a você. Neil Parsons acabou de publicar esse livro (Parsons 1998), que vem recebendo críticas muito posi- tivas, esse livro histórico. Você sugeriu o tema, incentivou-o a escrevê-lo e ofe- receu-lhe seus recursos.

Schapera Você tem que passar o bastão adiante.

Kuper E você vem passando coisas adiante há setenta anos.

Schapera Assim, no final, elas não morrem. Espe- ro que você lembre disso. 156 ENTREVISTA

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2 O PRESENTE ETNOGRÁFICO 157

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1 Mãe com duas crianças em vestimentas tradicionais 2 Um adivinho 3 Mulheres colmando uma choupana 4 Oleira trabalhando

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5 Kgotla tribal (Mochudi 1929) 6 Reunião do conselho de chefes (Mochudi 1932) 7 Fazedor de chuva 8 Montando uma armadilha de pássaros 9 Isang Pilane (regente Kgatla) 160 ENTREVISTA

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10 Schapera no campo 11 Schapera no campo 12 Schapera em sua última visita a Botsuana (1985) 13 Schapera e Raymond Firth em 1996 (na casa de Adam Kuper), por ocasião da celebração de seu primeiro encontro, na London School of Economics, em 1906 162 ENTREVISTA

Notas

1 A transcrição inicial foi feita por Ellen 10 Kraalé uma palavra africâner muito uti- Prove.[As notas a esta entrevista foram escri- lizada na África do Sul, e adotada por antro- tas por Adam Kuper.] pólogos. Seu significado é ambíguo. Pode 2 Durante os anos 1929-34, Schapera fez designar tanto um local de residência tradi- várias visitas aos Kgatla no Protetorado de cional, quanto o curral onde o gado é reunido. Bechuanaland, permanecendo, no total, mais 11 Um maypoleé um poste alto, decorado, de quatorze meses entre eles. Em 1934 foi em torno do qual se realizam danças tradi- convidado pela Administração de Bechuana- cionais no dia 1ode maio na Inglaterra. land a realizar pesquisas sobre direito tradi- 12 Na realidade, Coral Gardens and their cional, que resultaram no livroTswana Law Magic, principal livro de Malinowski sobre and Custom, além de permanecer quatro magia em Trobriand, foi publicado em 1935. meses entre os Ngwato. Entre 1938 e 1943, Porém, antes, ele dava cursos sobre o tema fez intensa pesquisa de campo junto aos na LSE. Ngwaketse, Kwena e Tawana. Fez também 13 Eileen Krige ficou conhecida por sua visitas mais curtas aos Tlokwa, Malete e Ro- etnografia dos Levedu do Transvaal, mas long. publicou também trabalhos pioneiros de 3 No caso dos protetorados, o comissário etnografia urbana (ver, p. ex., Krige 1936). residente tinha função equivalente à do 14 Como professor, Schapera ingressou governador das colônias regulares. nessa universidade em 1931. Em 1935 obte- 4Tshekedi Khama (1905-1959) foi o regente ve a cátedra de antropologia social. Per- dos Ngwato de 1926 a 1949. Os Ngwato er- maneceu na Cidade do Cabo até 1950, ano am a maior tribo do então chamado Prote- em que aceitou uma cátedra na London torado de Bechuanaland, e Tshekedi foi o School of Economics. líder Tswana de maior influência política de 15 T. T. Barnard foi estudante de pós-gra- sua geração. duação em antropologia social na Universi- 5 A. R. Radcliffe-Brown foi o primeiro pro- dade de Cambridge, sob orientação de fessor de antropologia social da Universi- Rivers. Realizou trabalho de campo nas ilhas dade da Cidade do Cabo (1921-1925). Novas Hébridas em 1922 (ver Barnard 1924). 6 W. M. Macmillan (1885-1974) foi profes- 16 Max Gluckman foi proibido de continuar sor de história na Universidade de Witwater- seu trabalho de campo na Zululândia em srand, de 1917 a 1934. Foi o fundador da 1939. escola liberal de historiografia na África do 17 A. J. B. Hughes (ver Hughes 1956). Sul. 18 P. R. Kirby (1934). 7 Aula inaugural da cátedra de antropolo- 19 Sir Seretse Khama (1921-1980) era sobri- gia social na Universidade da Cidade do nho de Tshekedi Khama, e foi o primeiro pre- Cabo, publicada em Cape Times, 25 de agos- sidente de Botsuana. to de 1921, reimpressa como apêndice em 20 Abreviatura de King’s Counsel, que cor- Gordon (1990). responde ao nível mais alto de um advogado 8 Primitive em 1920; Argonauts of no sistema jurídico britânico. Tal pessoa pode the Western Pacific em 1922. fazer seguir seu nome pelas iniciais KC e 9 C. G. Seligman, psiquiatra e etnólogo. pode ser referido como um “KC”. Um dos veteranos da Expedição ao Estreito 21 Kgotlaou Kxotlaé a assembléia pública de Torres, ocupou uma cátedra em etnologia de uma aldeia ou tribo Tswana. na London School of Economics de 1913 a 22 Fred Eggan (1906-1991), professor de 1934. antropologia da Universidade de Chicago. O PRESENTE ETNOGRÁFICO 163

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