Tempo ISSN: 1413-7704 [email protected] Universidade Federal Fluminense Brasil

Palomanes Martinho, Francisco Carlos Reseña de "Salazar: uma biografia política" de MENESES, Filipe Ribeiro de Tempo, vol. 16, núm. 31, 2011, pp. 313-316 Universidade Federal Fluminense Niterói, Brasil

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A monografia de um tempo português1 Francisco Carlos Palomanes Martinho2

MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar: uma biografia política. 3. ed. Lisboa: D. Quixote, 2010.

Em 2007, a RTP (Rádio e Televisão Publicada originalmente para um de Portugal) promoveu um concurso público não português, a obra consiste intitulado “Os Grandes Portugueses”, em um aprofundado estudo que inte- a fim de escolher o nome mais repre- gra as vidas pessoal e pública de um sentativo de sua história. Concor- professor de Economia, católico e sol- rendo com personagens da grandeza teirão que incorporou para si a tarefa de Camões, e Fer- de fazer os portugueses viverem habi- nando Pessoa, entre outros, o ditador tualmente, conforme disse ao pensa- do Oliveira Salazar saiu dor católico francês Henri Massis. O vencedor com pouco mais de 40% dos viver projetado por Salazar consistia votos.12 em uma ditadura alheia às aventuras A despeito de sua “representati- revolucionárias dos fascismos clássicos vidade”, Salazar ainda não havia sido alemão e italiano ou mesmo do milita- objeto de um trabalho acadêmico rismo de pendor cesarista de seu vizi- rigoroso. A lacuna foi, entretanto, pre- nho espanhol. Filipe de Meneses con- enchida com a chegada do estudo de segue perceber os importantes traços Filipe Ribeiro de Meneses. de continuidade entre o filho de Santa Comba Dão, o ex-seminarista que, quando ingressou como professor da 1 Resenha recebida e aprovada para publicação Universidade de Coimbra, apresentou em março de 2011. uma tese defensora da pequena pro- 2 Professor do Departamento de História da priedade agrícola, e o chefe de governo USP e pesquisador do CNPq.

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que nunca deixou de afirmar a superio- no seio do regime autoritário. Como ridade do campo sobre a cidade, esta ministro das Finanças, arquitetou a lugar dos “vícios dissolventes” da tra- transição de uma ditadura militar para dição portuguesa. uma ditadura civil e corporativa sob Filho caçula de uma família pobre, o seu controle. Mantendo sempre um com quatro irmãs, Salazar estudou no militar na presidência, não deixou de seminário de Viseu. Destacado aluno, acalentar as esperanças dos monarquis- ingressou na Universidade de Coim- tas ávidos pela mudança do regime. Na bra, onde se formou em 1911. Dessa montagem do governo, incorporou à época o livro aponta para relações de sua máquina republicanos conserva- amizade que permaneceram ao longo dores, católicos e até mesmo militantes de toda a vida do futuro ditador, como do integralismo lusitano, a versão por- Mário de Figueiredo e Manuel Gon- tuguesa do fascismo. Nesse caso, sobre- çalves Cerejeira, o futuro patriarca da tudo, trouxe para a esfera da adminis- Igreja Católica em Portugal. tração jovens universitários que, em Militante na Universidade do Cen- breve tempo, teriam espaço e impor- tro Católico, Salazar foi sempre fiel aos tância crescente no regime, como Pedro valores legados de um pensamento Teotónio Pereira e . social católico que tem na Encíclica Ciente do complexo leque de alianças Rerum Novarum a sua principal refe- que o apoiava, Salazar dissolveu o Cen- rência. Foi, por isso, um forte opositor tro Católico e criou um partido único, tanto do liberalismo e da democracia um “não partido”, de acordo com suas parlamentar quanto do comunismo e palavras, a União Nacional. A consti- dos movimentos socialistas. Seu pro- tuição aprovada em 1933, corporativa jeto político-ideológico sempre foi e autoritária, manteve, entretanto, um a constituição, em Portugal, de um verniz liberal quer na permanência de regime centralizado e fiel às tradições uma Câmara, aliás duas, se contarmos que, a seu ver, marcam a formação por- a Câmara Corporativa, quer na eleição, tuguesa: um catolicismo marcado por por sufrágio universal, do presidente uma forte vocação messiânica, cruza- da República. dista e expansionista. Apesar da preocupação em analisar O livro é rico em exemplos que a vida privada de Salazar, o livro cresce demonstram a capacidade de Salazar nos momentos em que relata as crises em mediar com interesses conflitantes vividas pelo Estado Novo português e

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as medidas tomadas por Salazar. Como vez mais constante, relativizando a durante a Segunda Guerra Mundial, natureza atlântica, tão cara aos adep- quando a incerteza a respeito da conti- tos do Estado Novo. Mas, sobretudo nuidade do Estado Novo era motivo de na África, os movimentos de liberta- euforia para seus opositores e preocu- ção começavam, em 1961, a defender a pação para seus adeptos. Naquela con- ruptura com a antiga metrópole. Ape- juntura, Salazar adotou uma política de sar de tentativas de mediação por parte neutralidade, ao mesmo tempo em que das diplomacias americana, brasileira, envidava todos os esforços para impe- espanhola ou mesmo do Vaticano, dir que a vizinha Espanha aderisse ao Salazar recusava-se a ceder ou mesmo conflito. Neutralidade que, entretanto, negociar. “Estamos cada vez mais orgu- não impediu a cessão para os Aliados lhosamente sós”, foi o que disse em res- da Base Militar dos Açores. A estratégia posta às insistentes pressões interna- do ditador garantiu a entrada imediata cionais. Em 1968, ano em que sofre o de Portugal na OTAN (Organização do acidente caseiro que o impossibilita de Tratado do Atlântico Norte) e a conti- continuar a governar, a guerra colonial nuidade do regime no pós-guerra. No já não tinha retorno. Com ela, o país vê final da década de 1950, novo período seus braços partirem. Para o ultramar de instabilidade, com a campanha à alguns. Para a França ou para o Bra- presidência da República de Humberto sil outros. Que se a participar de um Delgado. Uma campanha de massas, conflito que não compreendiam e não “à americana”, estranha e incômoda ao aceitavam, pelo menos não a ponto de regime. Também na década de 1950, se alistarem na tropa. Um paradoxo: o Salazar se viu obrigado a mediar as ditador recusava-se a mover qualquer disputas entre setores “conservado- palha em um país que já não vivia mais res”, sob a liderança de Santos Costa, “habitualmente”. Essa última década e “modernos”, capitaneados por Mar- de vida política de Salazar foi também cello Caetano. a que sofreu mais questionamentos, Mas foi na década de 1960 que o inclusive internos. A recusa de ceder “caldo” começou de fato a entornar. Os no caso africano reproduzia-se tam- estudantes saíam às ruas e misturavam bém na relação com o poder. Cedê-lo reivindicações tanto acadêmicas como pressupunha a possibilidade de ser políticas. Nas relações diplomáticas, a criticado por sucessores. Nesse caso, Europa tornava-se um parceiro cada a aparência franciscana podia tam-

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bém ser confundida com arrogância e alhea­mento para com os outros. Disse Gramsci que a trajetória de um homem pode ser a monografia de seu tempo. O livro de Filipe Ribeiro de Meneses, sólido, erudito, bem-docu- mentado, é uma referência obrigatória para o entendimento da recente histó- ria portuguesa.

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