Redalyc.A Bola, a Nação E a Memória
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História: Debates e Tendências ISSN: 1517-2856 [email protected] Universidade de Passo Fundo Brasil Wasen Fraga, Gerson A bola, a nação e a memória História: Debates e Tendências, vol. 13, núm. 2, julio-diciembre, 2013, pp. 328-342 Universidade de Passo Fundo Passo Fundo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=552456388008 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto A bola, a nação e a memória The ball, the nation and the memory La pelota, la nación y la memoria Gerson Wasen Fraga* Resumo Bola ao centro Este artigo tem como objetivo apontar O futebol conquistou seu espaço no alguns caminhos trilhados pela memó- meio intelectual brasileiro. De prática cul- ria acerca do futebol no Brasil. Partindo tural elitista e exótica a instrumento de alie- do pressuposto de que, os estudos en- nação popular a serviço das elites, o esporte volvendo as práticas esportivas têm en- bretão passou, a partir da década de 1980, a contrado crescimento dentro do campo ser percebido como um campo privilegiado das ciências sociais, e de que o futebol, para a compreensão das transformações eco- em específico, configura-se como um nômicas, políticas e sociais de nossa história importante fenômeno cultural no Brasil, ao longo do século XX. Com efeito, diversos busca-se apontar como tal crescimento são os centros e grupos de pesquisa cujos repercute em termos de criação de uma trabalhos têm enfocado o futebol como ins- memória específica, envolvendo a traje- trumento de análise, o que por sua vez resul- tória dos meios de comunicação, as vin- ta na produção de uma boa quantidade de culações entre futebol e política ao longo 1 da história e o posicionamento da inte- livros, artigos e papers . lectualidade brasileira. A relação entre o futebol e as ciências humanas no Brasil, contudo, nem sempre Palavras-chave: Memória. Futebol. Identi- teve entrosamento. Durante longos anos, dade nacional. * Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Universida- de Federal da Fronteira Sul/Erechim. Recebido em 10/09/2012 - Aprovado em 06/11/2012 http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.13n.2.3723 328 História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 o assunto foi tratado como algo menor, in- A memória dos primeiros chutes digno de esforços por parte de nossa intelec- tualidade. Tal perspectiva (que em muito A memória do futebol brasileiro é con- refletia um histórico de afastamento entre tada a partir do centro do país. Com efeito, o saber acadêmico e o cotidiano popular a versão que atribui a paternidade do espor- brasileiro), sabidamente, foi reforçada ao te bretão, entre nós, apenas a Charles Miller longo do regime militar brasileiro, quando (São Paulo) e Oscar Cox (Rio de Janeiro) pro- as conquistas do selecionado canarinho move uma série de lacunas em nossa memó- passaram a integrar as ferramentas que o ria esportiva e social, ignorando realidades regime utilizava em seu favor. Essa asso- diversas em uma nação de dimensões con- ciação direta entre a pátria de chuteiras e a tinentais. Anos antes de Miller desembarcar pátria de farda cerrou os olhos de muitos em São Paulo com suas bolas de futebol na pesquisadores para a importância do fute- bagagem, os jesuítas, influenciados por vi- bol enquanto instrumento de representação sitas feitas a estabelecimentos educacionais e compreensão da sociedade brasileira. O ingleses, incentivavam a prática rudimentar futebol, em outras palavras, deveria ser ou- do esporte no Colégio São Luiz, na cidade de vido, mas não lido (exceto quando pelos jor- Itu, vendo neste um instrumento para uma nais ou revistas especializadas); visto, mas atividade corporal sadia, conforme, os dita- não pensado; praticado nos tempos de folga, mes, então em voga, do higienismo (SAN- mas nunca estudado. TOS NETO, 2002). No Rio Grande do Sul, o Pretendemos, neste artigo, apontar contato estreito com a região platina e a im- brevemente alguns dos caminhos trilhados plantação das primeiras linhas férreas e fri- pelo futebol em busca de sua legitimação goríficos, a partir da inversão de capitais in- enquanto objeto de análise por parte das gleses, levaram ao surgimento de clubes ao ciências humanas no Brasil. Muito embora, longo da região da fronteira com o Uruguai saibamos da amplitude do tema proposto e no litoral Sul que, durante três décadas, ri- e das limitações de espaço inerentes a um valizaram em hegemonia com os clubes de texto dessa natureza, acreditamos que tal Porto Alegre2. Pelos diversos portos do país, exercício seja importante na medida em que marinheiros ingleses, ao final do século XIX, a proliferação dos estudos acadêmicos sobre praticavam o futebol em seus momentos de o futebol constitui-se, em última instância, folga, despertando o interesse e a curiosida- na produção de uma memória acerca do es- de daqueles que por ali passassem. porte que popularmente integra nossa iden- Contudo, a memória futebolística bra- tidade nacional advinda de universidades e sileira tem em Charles Miller seu grande grupos de pesquisa (ou seja, uma memória herói3. Segundo Hilário Franco Júnior, tal social e politicamente produzida a partir das perspectiva integra uma espécie de “versão instituições de ensino superior). Bola ao cen- oficial” de nossa história, privilegiando as tro, iniciemos o jogo. elites como protagonistas que concederiam direitos às classes menos favorecidas. Tal 329 História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 qual nossa emancipação política, a abolição lecendo o contraponto às perspectivas racia- da escravatura ou mesmo a proclamação do listas do começo do século XX. A obra, até regime republicano, o futebol teria entre nós hoje citada e criticada, possivelmente seja o a característica de uma benesse concedida a primeiro trabalho a integrar a memória fute- um povo incapaz de ser agente ativo de sua bolística nacional externamente ao âmbito li- própria história (2007, p. 61). terário. Destaque-se, também, o prefácio re- Assim, estabelecer paternidades quase he- digido por Gilbero Freyre em 1947, no qual roicas e datas oficiais não esclarece as rela- o sociólogo pernambucano, já reconhecido ções entre o futebol e a sociedade brasilei- pela publicação de Casa-Grande & Senzala, ra. Pelo contrário, suas significações mais chancela a obra de Mário Filho dentro da profundas residem no processo de apro- priação pelos diversos setores sociais que historiografia brasileira. o transformaram em fenômeno de massas Aqui está um capítulo da história do fute- (FRANCO JUNIOR, 2007, p. 62). bol no Brasil que é também uma contribui- ção valiosa para a história da sociedade e Essa criação, ocorrida ao longo da pri- da cultura brasileiras na sua transição da meira metade do século XX, está intimamen- fase predominantemente rural para a pre- te ligada à atuação da imprensa que, desen- dominantemente urbana. Além disto, as volvendo-se dentro de moldes capitalistas, páginas mais sugestivas de Mário Filho nos põem diante do conflito entre estas percebia o potencial do futebol enquanto duas forças imensas – a racionalidade e a produto vendável, capaz de atrair a atenção irracionalidade – no comportamento ou de seus leitores e, por conseguinte, vender na vida dos homens. No caso, homens do jornais. Assim, as primeiras análises produ- Brasil. Homens de uma sociedade híbrida, zidas, vinculando o futebol com nossa nacio- mestiça, cheia de raízes ameríndias e afri- canas e não apenas europeias (FREYRE, nalidade, são apresentadas nas páginas dos 2003, p. 24). periódicos mesclando aspectos opinativos e interpretativos. Os textos encontravam-se Já então, a literatura havia desperta- eivados das visões elitistas existentes, distin- do para o potencial do futebol como tema, guindo o jogo praticado pela elite dentro de retratando não somente sua prática, mas a um pretenso espírito amador daquele prati- associação apontada por Gilberto Freyre cado nos arrabaldes e periferias dos grandes entre a popularização do jogo e o processo centros urbanos (PEREIRA, 2000). de urbanização do Brasil. Um dos primeiros Não causa estranheza, portanto, que a exemplos, nesse sentido, advém do moder- primeira obra de fôlego interpretativo acer- nista Antônio de Alcântara Machado que, ca de nosso futebol tenha vindo das mãos de em 1927, publicou o livro Brás, Bexiga e Barra um jornalista. Com efeito, O negro no futebol Funda, no qual consta o conto “Corinthians brasileiro, obra de Mário Filho, em que pese (2) vs. Palestra (1)”. Dando visibilidade a um seu caráter romanceado e seu foco exclusi- tema até então “pouco nobre” para a criação vo no cenário carioca, possui o mérito de artística, Alcântara Machado ousou, ainda, apresentar à nossa intelectualidade as vin- ao colocar como personagens principais culações entre futebol e brasilidade, estabe- de seu conto figuras femininas que torcem 330 História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 avidamente pelos seus clubes, contrariando conhecidos por todo o Brasil, sem que isto o paradigma do futebol como universo ex- demandasse a contrapartida pelo centro em clusivamente masculino. O fenômeno não se reconhecer no cotidiano futebolístico dos ficaria restrito a esse autor. Outros nomes da estados mais distantes da federação. Assim, literatura modernista, como Oswald e Mário a difusão do futebol pelo Brasil na primeira de Andrade explicitariam em seus poemas a metade do século XX obedeceu a lógicas que forma com que o futebol tomava conta das expressaram, ao seu modo, o problema de grandes cidades. nossa identidade nacional mal consolidada, Hoje quem joga? na qual a parte é tomada pelo todo, mas o O Paulistano. Para o Jardim América das todo é visto como um conjunto de retalhos rosas e dos pontapés! de tonalidades diversas e inconciliáveis.